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MARIA CECÍLIA MÁXIMO TEODORO

FLÁVIA SOUZA MÁXIMO PEREIRA


LÍVIA MENDES MOREIRA MIRAGLIA
MÁRCIO TÚLIO VIANA
RAINER BOMFIM
JÉSSICA SANTOS PEREIRA
O RGANIZADORES

DIREITO MATERIAL
E PROCESSUAL
DO TRABALHO
A CONSUMAÇÃO
DA VIDA NO
CAPITALISMO
XII CONGRESSO LATINO-AMERICANO
DE DIREITO MATERIAL E
PROCESSUAL DO TRABALHO
Organizadores
Maria Cecília Máximo Teodoro
Flávia Souza Máximo Pereira
Lívia Mendes Moreira Miraglia
Márcio Túlio Viana
Rainer Bomfim
Jéssica Santos Pereira

DIREITO MATERIAL E PROCESSUAL DO TRABALHO:


A CONSUMAÇÃO DA VIDA NO CAPITALISMO
XII CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE DIREITO MATERIAL
E PROCESSUAL DO TRABALHO

Belo Horizonte
2023
Todos os direitos reservados à Editora RTM.
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Congresso Latino-Americano de Direito Material e Processual do
Trabalho (12: 2021)

C749d Direito material e processual do trabalho: a consumação da vida no


capitalismo : XII Congresso Latino-Americano de Direito Material e
Processual do Trabalho / organizadores: Maria Cecília Máximo Teodoro
... [et. al.]. - Belo Horizonte: CAPES: Progama de Pós-graduação em
Direito/ PUC Minas: RTM: Faculdade de Direito da UFMG: Novos:
RED: FAPEMIG, 2023.

299 p. : il. - Inclui bibliografia.

1. Direito do trabalho. 2. Justiça do trabalho. 3. Trabalho.


4. Consumo (Economia). I. Teodoro, Maria Cecília Máximo.
II. Título.

CDU: 331(061.3)
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Meire Luciane Lorena Queiroz CRB 6/2233.

ISBN: 978-65-5509-138-0
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Equipe RTM Gestão Sindical
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Adriane Reis de Araújo Lutiana Nacur Lorentz
Adriano Jannuzzi Moreira Marcella Pagani
Amauri César Alves Marcelo Fernando Borsio
Andréa de Campos Vasconcellos Márcio Túlio Viana
Antônio Álvares da Silva Marcus Orione
Antônio Fabrício de Matos Gonçalves Maria Aparecida Gugel
Bruno Ferraz Hazan Maria Cecília de Almeida Monteiro Lemos
Carlo Cosentino Maria Cecília Máximo Teodoro
Carlos Henrique Bezerra Leite Maria Rosaria Barbato
Cláudio Iannotti da Rocha Nasser Ahmad Allan
Cleber Lúcio de Almeida Ney Maranhão
Daniela Muradas Reis Raimundo Cezar Britto
Delaíde Alves Miranda Arantes Raimundo Simão de Mello
Elaine Noronha Nassif Renato César Cardoso
Ellen Mara Ferraz Hazan Ricardo José Macedo de Britto Pereira
Fernando Maciel Rômulo Soares Valentini
Gabriela Neves Delgado Ronaldo Lima dos Santos
Giovani Clark Rosemary de Oliveira Pires Afonso
Gustavo Seferian Rúbia Zanotelli de Alvarenga
Jorge Luiz Souto Maior Sandro Lunard Nicoladeli
José Reginaldo Inácio Sayonara Grillo
Juliana Teixeira Esteves Valdete Souto Severo
Leonardo Tibo Barbosa Lima Vitor Salino de Moura Eça
Lívia Mendes Moreira Miraglia Wânia Guimarães Rabêllo de Almeida
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

APRESENTAÇÃO

Apresentar uma obra é estabelecer um convite para as paginações que vem a seguir.
Um convite que não tem encontro determinado e é marcado diversidade de possibilidades
como potência. Esse encontro é lembrando pela continuidade e expectativa que envolve
a comunidade acadêmica, profissionais e estudantes da área crítica do Direito do Traba-
lho que se encontram anualmente no Congresso Latino-americano de Direito Material e
Processual do Trabalho.
Neste ano, este livro é resultado de intensos debates e reflexões de pesquisadoras/es
do Direito Material e Processual do Trabalho latino-americano, contando com autoras/es
estrangeiras/os e renomadas/os professoras/es de diversos programas de pós-graduação
stricto sensu. São muitas/os que estão por trás desse congresso e fazem com que, a cada
edição, as discussões se renovem e os laços acadêmicos sejam fortalecidos. Os desafios
da pandemia não impediram que este evento acontecesse e pudemos estreitar laços que
atravessaram as fronteiras.
Nesta edição, os debates dos resumos selecionados pelo edital para as oficinas de
artigos foram centrados na discussão sobre a complexa relação de trabalho e consumo.
Desde a primeira até a última mesa, o consumo interseccionado e entrelaçado com o tra-
balho eram temas centrais. Seja pela vertente da produção, da organização do trabalho,
pela ótica marxista, pela teoria do desvio produtivo, pela vertente decolonial ou mesmo
pela ecofeminista a relação do trabalho foi tensionada por outras lentes. Lentes estas que
não podem ser desvistas após desnudadas pelas/os participantes, é um encontro daqui
para frente. Foram 14 professoras/es que ministraram palestras para mais de 300 pessoas
(participando de forma online) para debater essa tão importante e complexa temática.
Assim, esta coletânea intitulada a “Consumação da vida no capitalismo” é fruto das
oficinas de artigos e de palestras realizadas no XII Congresso Latino-americano de Direi-
to Material e Processual do Trabalho, promovido pelos Programas de Pós-Graduação em
Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais em parceria com os PPGDs
da Universidade Federal de Ouro Preto e da Universidade Federal de Minas Gerais entre
os dias 21e 22 de outubro de 2021. A presente obra abarca de maneira crítica e atual as
transformações do mundo do trabalho diante de uma nova realidade incitada pelo capi-
talismo: a sociedade do consumo. A preocupação das/os mais diversas/os autoras/es foi
problematizar como esta sociedade afeta as pessoas em suas diversas capilaridades.
O Congresso, em sua 12ª edição, teve como escopo fundamental dar sequência ao
processo de internacionalização do PPGD- PUC-Minas, selando parcerias e estreitando
laços com a Carleton University do Canadá. Além disso, contou com artigos de universi-
dades nacionais, como Universidade Federal da Bahia, Universidade Federal de Juiz de
Fora, Rede Doctum, Fundação Getúlio Vargas, Universidade de Brasília, Universidade
Estadual Paulista, entre outras.

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Neste contexto, este livro trata-se de uma seleta compilação de artigos apresenta-
dos pelas/os palestrantes, docentes e discentes que participaram do referido congresso,
discutindo temas sensíveis e urgentes do Direito do Trabalho. Neste ramo urge a crítica
como um dos elementos centrais e esta não pode deixar de ser feita na atual sociedade
consumista.
“Trabalho e Consumo” são os eixos pensados em um contexto pandêmico, que as
relações foram desmaterializadas, o consumo foi intensificado pelas redes sociais e plata-
formas digitais e tudo isso disposto em um momento em que a tecnologia da informação
vem sendo utilizada pelo capitalismo para estabelecer uma nova lógica de acumulação
fundada no controle do comportamento humano e fomento ao consumo de acordo com
as informações extraídas pelos algoritmos empresariais. O trabalho sofre por diversas
alterações, o consumo também passa por isso. O consumo é a base nas atuais relações
ou o trabalho? Não ousamos finalizar essa discussão. Estamos listando novos encontros
e possibilidades.
Por fim, a luta pelo conhecimento é compartilhada e se deve a muitas/os. Agrade-
mos ao apoio institucional dos Programas de Pós-graduação em Direito da PUC-Minas,
UFOP e UFMG. Temos nesta parceria de mulheres-pesquisadoras do Direito do Trabalho
um laço que já traz bons frutos e pesquisas contínuas. Estendemos nossos agradecimentos
à CAPES e FAMIG pelo apoio financeiros e de recursos para a realização do evento e
publicação da presente obra, bem como todas/os que participam anualmente do evento.
Esta leitura trata-se, portanto, do interesse não apenas das/os profissionais do Di-
reito do Trabalho, mas de todas/os aquelas/es que de algum modo se propõem a pensar o
Direito de maneira subversiva, enquanto resistência, especialmente em tempos em que as
violações aos direitos fundamentais trabalhistas se tornaram uma constante.

Belo Horizonte, inverno-ainda-pandêmico, 19 dias de julho de 2022.

Maria Cecília Máximo Teodoro


Jéssica Santos Pereira
Rainer Bomfim

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Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

PREFÁCIO

Donde imponga la luz su travesía


ni islas abandonadas
ni tejedoras náuticas
burlando el desconcierto a la velo-
cidad del beso habrá:
no más penélopes tentándole los
límites al cielo (añilador silvestre
de las playas)
ni Ulises acallando
que de azul de alta mar responde
abismo

Juana Rosa Pita, Viajes de Pené-


lope.

Ao ler este livro e ao participar do XII Congresso Latino-Americano de Direito


Material e Processual do Trabalho, chego a uma feliz e recente constatação: hoje somos
um Direito do Trabalho mais plural. Com uma miríade de vivências e origens diversas,
mas que podem ser traduzidas em um desejo em comum. O desejo de redesenhar juntas
as cartografias epistêmicas do Direito do Trabalho. Não para destruí-lo ou para implodir
a relação de emprego protegido, como busca o neoliberalismo, com teses economicistas
intelectualmente desonestas. Mas para expandir sua proteção jurídica. Para redefinir o
conceito de vida vivível1 para o Direito do Trabalho.
Não por acaso, o título deste livro é “A consumação da vida no capitalismo”, o que
me faz pensar no significado da vida. Afinal, o que é vida para o Direito do Trabalho?
Para responder esta pergunta, talvez seja mais importante questionar quem determinou o
que é vida para o Direito do Trabalho.
Como nos lembra Sumi Madhok2, existe uma ligação umbilical inequívoca entre
epistemologia e ontologia. E para novas orientações do Direito do Trabalho, nas palavras
de Romina Lerussi3, é necessário pensar na indissociabilidade das categorias jurídicas
ontológicas e epistêmicas.

1
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2015.
2
MADHOK, Sumi. A critical reflexive politics of location, ‘feminist debt’ and thinking from the Global
South. European Journal of Women’s Studies, 27(4):394-412, 2020.
3
LERUSSI, Romina Carla. Orientaciones feministas para un nuevo derecho del trabajo Rev. Direito e
Práx., Rio de Janeiro, 11 (4): 2725-2742, 2020.

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Logo, quando falamos das cartografias epistêmicas do Direito Trabalho, necessaria-


mente estamos falando de modos de existir que foram classificados como matéria-viva,
enquanto outras existências foram consideradas como matéria-morta. Há uma divisão
científica do vital determinada pela epistemologia do Direito do Trabalho, que projetou
escolhas. Escolhas jurídicas que determinaram que certas vidas são descartáveis e fungí-
veis, autorizando legalmente a sua extração e despossessão.
Por um lado, o Direito do Trabalho é uma infiltração no projeto moderno/colonial4
de acumulação, e, por outro, legitimou juridicamente a própria lógica capitalista de des-
possessão da vida. Tudo, portanto, depende de qual lado da fronteira você está. De qual
cor é a fronteira que você habita. De qual gênero é a fronteira pela qual você transita. De-
pendendo da situalidade e da materialidade do seu ser, ele será classificado como humano
ou não-humano. Em corpo ou em carne para consumo do mercado. Em matéria-viva ou
matéria-morta.
E aqui se encontram as fronteiras entre o extrativismo epistêmico e o extrativismo
ontológico5 do Direito do Trabalho. Uma epistemologia juslaboral que foi projetada e vi-
vida por homens brancos do Norte, cisgênero, heterossexuais e sem deficiência, protege
modos de existência vinculados a este lugar ontológico colonial.
Contudo, a perversidade do extrativismo ontológico não para nesta constatação
epistêmica. A perversidade consiste na contínua negação deste extrativismo ontológico
na teoria do conhecimento do Direito do Trabalho. A negação da existência de fronteiras.
Para que seja impossível tentar redesenhá-las.
São narrativas negacionistas, tão presentes em tempos pandêmicos. Negacionistas,
porque as fronteiras existem e são visíveis também no Direito do Trabalho. E convenha-
mos, aquelas e aqueles que produzem o Direito do Trabalho no seu cotidiano, conseguem
enxergar estas fronteiras. Fronteiras que determinam a zona do ser e do não-ser.
E se nós ainda falamos em fronteiras é para que, em algum momento, elas deixem
de existir. Contudo, por enquanto, é ainda necessário falar de dentro dela, como nos recor-
da Gloria Anzaldua6. Por isso, eu falo habitando esta fronteira. Em cada parte do meu ser.
Justamente por estar na fronteira, o meu pensamento está em diálogo com o Direito
do Trabalho produzido na modernidade, sem pretender destruí-lo. Porém, este diálogo se
dá a partir de perspectivas subalternas. E este diálogo precisa de tradução. Uma tradução
decolonial, como nos lembra Sylvia Wynter7, não considera a humanidade como um mero

4
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad do poder, eurocentrismo e América Latina. In LANDER, Edgardo
(org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos
Aires: CLACSO, 2005.
5
GROSFOGUEL, Ramón. Do «extrativismo económico» ao «extrativismo epistêmico» e «extrativismo
ontológico»: uma forma destrutiva de conhecer, ser e estar no mundo. Tabula Rasa [online]. n.24, 2016,
pp.123-143.
6
ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Spinsters/Aunt Lute.
1987
7
WYNTER, Silvia. On being human as praxis. Durham, Duke University Press, 2015.

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Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

substantivo. Ser humano é uma práxis. Ser vida vivível é uma práxis, que não pode ser
presumida ou considerada uma categoria autoexplicativa.
Por isso, a tradução decolonial não é uma rápida reivindicação das práticas subal-
ternas como superiores às práticas eurocêntricas. Estamos viajando entre mundos, nas pa-
lavras de María Lugones8: “El sentido de viajar que uso en ‘viajar’ no es ‘por el mundo’,
sino ‘viajar-mundos’. Todas aquellas personas que han sido subordinadas, explotadas y
esclavizadas fueron forzadas a ‘viajar-mundos’ en los cuales han animado seres subor-
dinados. (…) Sólo los hombres de cierta clase y raza están en posición de ejercer su mo-
vilidad sin restricciones.” Para que seja possível situar “o subalterno tanto dentro como
fora da relação de subalternidade”9, é necessário viajar entre mundos e viajar dentro de si.
Mas você está pronto para se deixar levar? Porque a crítica decolonial, como toda
viagem ao desconhecido, é uma aposta. Uma aposta que não pretende mimetizar saberes
hegemônicos. E, portanto, é uma aposta lenta, que trabalha com pistas, que é cartográfi-
ca10. De onde partimos? Para onde vamos?
Comecemos alterando o movimento do extrativismo epistêmico. Para que, em al-
gum momento, seja possível extinguir o extrativismo ontológico. Nas palavras de Silvia
Cusicanqui11: “a alternativa ao extrativismo é a profunda reciprocidade. A reciprocidade
profunda de ser e estar no mundo como vida. É estabelecer processos justos de troca nas
relações entre humanos e entre humanos e não-humanos. Reciprocidade implica devolver
ao cosmos a reprodução da vida que nós absorvemos dela”.
Isso implica considerar fundacional para uma consciência ecológica, uma consciên-
cia de classe, mas também do racismo ambiental e do ecofeminicídio, que determinaram
o conceito de vida na modernidade. Por isso Leanne Simpson12 afirma que decolonizar
epistemicamente não é suficiente. É preciso decolonizar as formas de ser, viver e estar no
mundo.
Você está pronto para se deixar levar? Como decolonizar o Direito do Trabalho?
Porque decolonizar não é diversificar. Não é viajar na superfície. É teorizar nas entranhas
epistêmicas. Decolonizar requer fazer perguntas diferentes, com o genuíno interesse na
teoria produzida no Sul. Envolve ceder lugares de protagonismo acadêmico. Nomear a
base epistêmica a partir da qual se fala. Requer se desvincular de declarações não-perfor-
mativas13 de inclusão. Envolve recusar parcerias teóricas com quem não esteja engajado
em práticas de justiça social no Norte e no Sul. Requer esforço e vontade para alterar o
trânsito epistêmico da produção de conhecimento. Para mudar os fluxos da divisão social
do trabalho científico e do próprio significado desse trabalho.
Então, de onde partimos? Para onde vamos? Comecemos por quem é considerado
vida para o Direito do Trabalho. O que é considerado pessoa para o Direito do Trabalho.
Conforme a doutrina juslaboral brasileira14, é essencial para a configuração da relação de
emprego que a prestação do trabalho realizada pela pessoa física tenha caráter semelhante
ao de infungibilidade. A relação de emprego é uma relação jurídica intuitu personae em
relação ao empregado.

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Infungibilidade é a qualidade daqueles bens que não podem ser substituídos por
outros de mesma espécie, valor, quantidade e qualidade. A doutrina juslaboral, portanto,
acredita que o empregado é dotado de pessoalidade, porque o seu trabalho é dotado de
qualidades específicas, ligado à uma subjetividade particular. Subjetividade que contém
inteligência, sentimentos, espírito, corpo e liberdade, que contém vida humana. A relação
de emprego, assim, é trabalho humano e livre, mesmo com os limites da autonomia da
vontade em um sistema capitalista totalizante.
Mas como a pessoalidade pode ser tratada de forma homogênea? Como a especifi-
cidade do labor prestado, intrínseca a cada ser, pode ser concebida sem ser situada? É na
artificialidade do homogêneo que prevalece o hegemônico. A pessoalidade é tratada de
forma homogênea pelo Direito do Trabalho, porque ela foi ontologicamente definida na
modernidade por e para um único conceito de humanidade15.
Humanidade: um conceito eurocêntrico-colonial, criado na invasão das Américas16,
que, ao criar categoria geopolítica de raça ligada à cor da pele, ao gênero e à sexualida-
de17, inseriu a dialética de inferiorização de outras e outros. Uma colonialidade do ser18
que impede, até hoje, que homens negros e mulheres sejam incluídas na categoria jurídica
de humanidade, criada e sustentada pela branquitude masculina cisheteronormativa, sem
deficiência.
A existência subalterna é simultaneamente produzida e negada pela dominação co-
lonial, tanto como pressuposto, tanto quanto como consequência. Seu destino e seu uso
é condicionado ao gozo libidinal19 do capital, podendo tornar-se valor econômico, de
cuidado, de desejo, de violência, de matéria-viva ou de matéria-morta.
E o Direito do Trabalho não escapa da lógica da necropolítica20. Porque o Direito
do Trabalho é fruto do capitalismo moderno/colonial, seja para amenizar sua exploração,
seja para legitimar sua expansão. Isso significa que a grande conquista operária da rela-
ção de emprego coexistiu e dependeu da energia de escravizados e do trabalho feminino
reprodutivo gratuito. Energia considerada não-humana, proveniente do Sul, que continua

15
CORRAIDE, Marco Túlio; PEREIRA, Flávia Souza Máximo. Trabalho preto, instituições brancas: a
pessoalidade racializada na relação de emprego no Brasil. Teoria Jurídica Contemporânea. V.6, 2021.
16
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad do poder, eurocentrismo e América Latina. In LANDER, Edgardo
(org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos
Aires: CLACSO, 2005
17
LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis, 22(3):320,se-
tembro-dezembro/2014.
18
MALDONADO-TORRES, Nelson. A topologia do Ser e a geopolítica do conhecimento: Modernidade,
império e colonialidade. Revista Crítica de Ciências Sociais, 114, 2017
19
Economia libidinal é a economia, ou distribuição e arranjo, de desejo e identificação, de energias, preo-
cupações, pontos de atenção, ansiedades, prazeres, apetites, repulsões e fobias - toda a estrutura da vida psí-
quica e emocional - que são inconscientes e invisíveis, mas que têm um efeito visível no mundo, incluindo
a economia monetária. Ver HARTMAN, Saidiya. Scenes of subjection: terror, slavery and self-making in
nineteenth-century America. Oxford: Oxford University Press, 1997.
20
MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018

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Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

sustentando o sistema capitalista global, enquanto a branquitude masculina ocupa com


pessoalidade a relação de emprego.
Apesar de homens negros e mulherem do Sul continuarem como a energia deste
sistema capitalista, estes permanecem em um estado de precariedade em um contexto de
proteção jurídica, além de ter que suportar outras dimensões extrativistas: que massacram
sua terra, sua saúde, sua religião, seu saber e sua ecologia.
Este racismo ambiental-patriarcal está presente em discursos antropocêntricos do
Norte, que afirmam que corpos negros e femininos do Sul devem assumir as mesmas res-
ponsabilidades dos brancos-colonizadores pelos efeitos da destruição do planeta. Além
de absorver, como nos lembra Katryn Yussof21, a mais-valia da poluição, dos desastres
climáticos e dos crimes ambientais.
Tudo, portanto, depende de qual lado da fronteira você está. De qual cor é a frontei-
ra que você habita. De qual gênero é a fronteira pela qual você transita. Nós escrevemos
enquanto habitamos essa fronteira. Se falamos no feminino e em primeira pessoa, não
é porque o nosso conhecimento é autobiográfico, particular ou ficcional. Ele também é.
Assim como o seu. Nós sabemos que quando conseguimos redesenhar provisoriamente
a fronteira epistêmica, ocupando um lugar de produção da teoria científica – como este
- ainda somos vistas com condescendência. Como um estudo de caso. Como um conhe-
cimento local. Como uma vitrine de interseccionalidade subalterna.
Então, repito, você vai conseguir se deixar levar? Você está pronto para se deixar levar?
Espero que sim. Mas desta vez, nós também queremos decidir para onde vamos. E dizer de
onde partimos. Para subvertermos a divisão colonial do que é vida para o Direito do Trabalho.
Como nas belas palavras de Juana Rosa Pita que abrem este prefácio, chega de Penelópes22
testando os limites do céu. Estamos cansadas de terem Ulisses silenciando a nossa história23.
Belo Horizonte, 16 de julho de 2022

Flávia Souza Máximo Pereira

21
YUSOFF, Kathryn. A Billion Black Anthropocenes or None. Minneapolis, University of Minnesota
Press, 2018.
22
Penélope, na mitologia grega, é esposa de Ulisses. Por dez anos, Penélope esperou a volta de seu marido
da Guerra de Troia. A longa viagem de retorno de Ulisses é o tema da Odisseia, de Homero. Ver PITA,
Juana Rosa. Viajes de Penélope. Roma, Campanotto Editore, 1980.
23
Pensando nisso em termos de desobediência epistêmica, todas as autoras e autores referenciados aqui são
de mulheres, de homens negros e de homens do Sul.

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Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

SUMÁRIO

Environmental Racism at Work – Reflections from a Settler Colony of Canada ........17


Ania Zbyszewska
Racismo Ambiental no Trabalho – Reflexões de uma Colônia de Colonos do
Canadá ...........................................................................................................................27
Ania Zbyszewska
Tradução: Jéssica Santos Pereira
A Guetização do Trabalho Feminino: entre a esfera reprodutiva e a terceiriza-
ção ...................................................................................................................................37
Maria Cecília Máximo Teodoro
Rainer Bomfim
Casas, Ruas e Vírus: possíveis tendências do Direito do Trabalho na era pós pande-
mia ..................................................................................................................................55
Márcio Túlio Viana
Maria Rosaria Barbato
Pela Contrapolítica de Afetos da Justiça do Trabalho ...............................................71
Flávia Souza Máximo Pereira
O Direito do Trabalho nos Limites do Antropoceno/Capitaloceno ...........................83
Felipe Santos Estrela de Carvalho
O Trabalhador-Consumidor no Panóptico Pós-Moderno ........................................105
Maria Cecília Máximo Teodoro
Breves Considerações sob “Estar Protegido” no Contexto da Relação entre Capital e
Trabalho .......................................................................................................................117
Cleber Lúcio de Almeida
Da Extração Analógica à Extração Digital ................................................................125
Marco Túlio Corraide
Ouvir e contar Histórias Subalternas: reflexões metodológicas sobre a decolonização
do trabalho doméstico remunerado ...........................................................................139
Bianca Caroline Bento Menezes

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Teletrabalho da Mulher e o Recrudesimento da Desigualdade de Gênero ............153


Valéria Santos Araújo
Ana Lúcia Ribeiro Mól
A Formatação do Sujeito Neoliberal e o Direito do Trabalho: a exclusão das pessoas
com deficiência em razão do padrão de produtividade capitalista .........................167
Lorena Isabella Marques Bagno
Nicolle Gonçalves
A Responsabilidade Civil do Empregador pelos Danos decorrentes da Covid-19 nas
Atividades de Risco .....................................................................................................179
Thainara Stefany Haeck Righeto
Primaveras Feministas: uma (r)evolução do conceito tradicional de greve? ........193
Márcia Fernanda Corrêa
Rainer Bomfim
Discriminações Algorítmicas: racismo e sexismo nas relações laborais .................207
Luiza Barreto Braga Fidalgo
A Utilização de Dados como Meio de Subjugação do Trabalhador e Consumidor: os
novos escravos da era digital ......................................................................................219
Jéssica Santos Pereira
Thaís Castro de Menezes
Regiane Pereira Silva da Cunha
Relação de Trabalho e Consumo na Pandemia: os novos hábitos e padrões de com-
portamento provocados pelo coronavírus .................................................................233
Mickael Ferreira Alves
Migração Feminina e Políticas Públicas de Enfrentamento da Violência de Gênero
no Mundo do Trabalho Doméstico .............................................................................243
Rafael de Lima Kurschner
Denise Rissato
Carolina Spack Kemmelmeier

14
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Profissão de Fé ou Atividade Profissional? A natureza jurídica da relação entre pas-


tores e igrejas neopentecostais ....................................................................................255
Francisco Gérson Marques de Lima
Marina Ribeiro Mota
Trabalho Escravo Infantil: histórias de um passado que insiste em nos assom-
brar ...............................................................................................................................273
Lívia Mendes Moreira Miraglia
Marcela Rage Pereira
O Trabalho Infantil como Catalisador do Ciclo Hereditário da Pobreza ..............289
Carolina de Souza Novaes Gomes Teixeira

15
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

ENVIRONMENTAL RACISM AT WORK – REFLECTIONS FROM


A SETTLER COLONY OF CANADA

Ania Zbyszewska1

I have been asked to speak on the theme of Coloniality, racism, and the socio-eco-
logical dimensions of Labour Law: which lives are consumed?2
Before I begin, I want to acknowledge my own colonial location. I deliver these
remarks from the city of Ottawa, which is within the traditional and unceded territories
of the Anishinaabe Algonquin Nation, and in a wider continental space that indigenous
peoples of this region refer to as Turtle Island and which is also known as Canada. To
openly acknowledge this location is to name and thank the traditional indigenous custo-
dians of this land – but also to recognize that those of us inhabiting a settler space, even
as recent immigrants, are ultimately implicated in ongoing projects of colonialism and
dispossession.3
Now, to further contextualize my talk, I should also say that neither colonialism nor
racism have featured prominently in my earlier research. Informed by feminist political
economy perspective, my research has centered gender as it intersects with other so-
cial relations, and the processes of social reproduction to critique labour law’s dominant
normative storyline and its material implications and exclusionary operations. But, in
focusing my earlier inquires on political economic and legal transformations in Eastern
Central Europe, Poland to be exact, the questions of race, racism, or colonialism did not
come up in my work to the extent that gender, class, and Poland’s transitional political
economy have.
In the last few years, however, my interests have shifted to questions of socio-
-ecological sustainability, or rather, to the deeply unsustainable and harmful models of
extraction, production, and consumption – and work organization – that capitalism in
its localized and global forms has unleashed. Law has helped to institutionalize these
models, even as it has sought to respond to some of the most egregious externalities they
produce. For us labour lawyers, it is the social externalities that matter – we care about
curbing commodification and exploitation of human workers. For environmental lawyers,
the environmental costs of these models are what is at stake, with their efforts focused
on protection and conservation of nature in its own right, or for some humans’ use. The
climate crisis has forced the question of addressing both in tandem, as evidenced by
International Labour Organization’s (ILO) policy work over the last decade4, as well as
1
Assistant Professor, Department of Law and Legal Studies, Carleton University.
2
Keynote, XII Latin American Congress on Material and Procedural Labor Law, 21 October 2021.
3
GTDF Collective, “Letter to prospective immigrants to what is known as Canada”, 2021. Available on-
line: https://decolonialfutures.net/portfolio/letter-to-prospective-immigrants/.
4
ILO, Global Forum on Just Transition: Climate Change, Decent Work and Sustainable Development.
Final Report of the 1st Global Forum on Just Transition. Geneva, 2018; ILO, Guidelines for a Just Transi-

17
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

institutional embedding of just transition and decent work in the global legal architecture
on climate.5 In legal scholarship we are only at the start of these discussions, although
important interventions have been made6 and have stimulated interest in further research.
In my own research, I have been trying to think about the labour/environment ne-
xus, contra the legal ‘division of labour’ that characterizes it, and in recognition of the
materially entwined relationship between these two domains.7 Some of the questions that
my research explores are: Why does the law treat the domains of labour and environment
as if they were unrelated, what are the material implications of this regulatory division
of labour in specific sites, and what are the possibilities of organizing and regulating the
labour/environment nexus in ways that more directly attend to labour’s socio-ecological
embedding and support a wider range of livelihood practices and socio-natures?
And that’s where coloniality and racism come in, because exploring law’s im-
plication in both, current unsustainability and possibilities of more sustainable futures,
demands re-consideration of capitalist modernity. In turn, capitalist modernity and its
extractive logics – as they apply to labour and nature – cannot be disentangled from
colonialism, capitalism, and developmentalism, and relatedly, from expropriation, ex-
ploitation, racism, and anthropocentrism.8 Drawing on frameworks of racial capitalism
and coloniality, labour law scholars have begun to reflect on how labour law, despite its
emancipatory ethos, has been itself imbricated in colonial (historic and ongoing) and
racial capitalist projects.9 As Diamond Ashiagbor notes, contemporary labour market ine

tion: Towards Environmentally Sustainable Economies and Societies for All, Geneva, 2015; ILO, “Climate
Change and Labour: The Need For A Just Transition.” International Journal of Labour Research 2010 2(2).
5
United Nations, Paris Agreement, 2015, Preamble; Solidarity and Just Transition Silesia Declaration.
COP 24, Katowice, 2018.
6
See, for example, the 2018 special issue 40(1) of the Comparative Labor Law and Policy Journal on
Labour Law and Sustainability; Sara Seck, “Transnational Labour Law and the Environment: Beyond the
Bounded Autonomous Worker” Canadian Journal of Law & Society 2018 33(2): 137-157; Juan Escribano
Gutiérrez and Paolo Tomassetti, Agreenment: A Green Mentality for Collective Bargaining. Final Report,
and associated national case studies (2020); David Doorey, “A Law Of Just Transitions?: Putting Labor
Law To Work On Climate Change.” Osgoode Legal Studies Research Paper No. 55/2015.
7
Ania Zbyszewska, “Regulating Work with People and ‘Nature’ in Mind: Feminist Reflections”. Compar-
ative Labor Law and Policy Journal 2018 40(1): 9-28.
8
See, for example, Anibal Quijano, “Coloniality of Power, Eurocentrism and Latin America”. Nepantla:
Views from the South, 2000 1 (3): 533–80; Silvia Federici, Caliban and the Witch. Women, the Body and
Primitive Accumulation. Brooklyn: Autonomedia, 2004; Maria Mies, Patriarchy and Accumulation On a
World Scale. Women and the International Division of Labour. London: Zed Books, 2014 (First Published,
1986); Nancy Fraser, Nancy Fraser, “Expropriation and Exploitation in Racialized Capitalism: A Reply to
Michael Dawson” Critical Historical Studies 2016 3(1): 163; Eduardo Gudynas, Extractivisms: Politics,
Economy and Ecology. Winnipeg: Fernwood Publishing, 2021.
9
See: Diamond Ashiagbor, “Race and Colonialism in the Construction of Labour Markets and Precari-
ty, Industrial Law Journal 2021 50(4): 506–531; Adelle Blacket, “On the Presence of the Past in the Future
of International Labour Law” Dalhousie Law Journal 2020 43(2): 947; Daniela Muradas and Flavia Souza
Maximo, “Decolonial thinking and Brazilian Labor Law: Contemporary Intersectional Subjections” Di-
reito y Praxis 2018 9(4).

18
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

qualities cannot be grasped or rectified without addressing race, racism, and colonialism
as constitutive of labour markets and present in the legal form by which the latter are
regulated.10 At the heart of these inquiries is also the question of land (or nature) and its
relationship with labour. This question is also key to understanding how the ongoing lega-
cies of colonization and ecological transformation have undermined possibilities of social
reproduction, or living and thriving, outside of racial capitalist relations.

***

Environmental racism, a constituent part of racial capitalism11, is particularly useful


for thinking about labour and environment in tandem. In the time I have today I want to
explore – by example of Canada – what the dynamics of environmental racism illuminate
about the labour/environment nexus, and about the entanglements of labour, livelihoods,
and environmental concerns with ongoing colonial legacies, and the racial hierarchies
they engender. I will first talk briefly about what environmental racism is, then share some
examples of how it operates, especially in relation to labour and in the context of settler
Canada. I will conclude with some reflections on what the environmental racism frame
offers – or how it complicates how we as labour lawyers tend to look at and respond to
the problem of inequality at work.
Environmental racism – a term first coined in the 1980s by US civil-rights organizer
and activist and former executive director of the National Association for the Advance-
ment of Colored People (NAACP), Rev. Dr. Benjamin Chavis12 – refers to geographies
of harm stemming from industrial environmental destruction and uneven enforcement of
environmental laws and regulations. Environmental racism is a spatial relation, and it is
often produced by law and policy. Its most recognizable manifestation is the dispropor-
tionate location of industries and facilities that emit polluting toxic substances and pose
other environmental hazards near communities whose inhabitants are racialized and/or
indigenous, often low income or working class.13 The overrepresentation of racialized
people in so called 3D jobs – dirty, dangerous, and demeaning – and the frequent exclu-
sion of these workers from legal protection, is another manifestation of environmental
racism at work.

10
Ashiagbor, 2021 supra.
11
Laura Pulido, “Geographies of race and ethnicity II : Environmental racism, racial capitalism and
state-sanctioned violence” Progress in Human Geography 2017 41(4), 524–533.
12
Richard J. Lazarus, “Environmental Racism! That’s What it is.” University of Illinois Law Review 2000:
255-274.
13
Ingrid Waldron, “Re-thinking waste: mapping racial geographies of violence on the colonial landscape”,
Environmental Sociology, 2018 4(1): 36-53.

19
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Thus, to this panel’s organizing question of – whose or which lives (and bodies)
are consumed, presumably by the dominant capitalism models of extraction, production,
and work organization – the environmental racism lens provides a clear answer: racial-
ized bodies, indigenous bodies, poor bodies – whether or not they are bodies of workers
as such.
While locating a polluting industry near a disadvantaged community might offer
jobs and economic opportunities to some community members, these benefits are usually
not a sufficient or an acceptable trade off to the harms the industry produces.14
On the contrary, the bodies of local workers and local inhabitants become ‘sinks’
– places where pollution can be deposited, much as when it is dumped into lakes, rivers,
soils, and air – which also become sinks. And so, the environmental harms that are produ-
ced by dirty industries affect workers and community members’ health, while also under-
mining the community’s capacity to sustain other ways of making a living, be it traditional
or new, when those ways rely on the viability of the surrounding natural environment. As
such, environmental racism is more than a maldistribution of environmental harm; it goes
deeper because it tends to undermine traditional livelihoods past and present, but also the
possibilities of developing alternative futures where these futures are linked to land – or
socio-ecology - that is being destroyed. Land, after all, does not only support, sustain,
and nourish human and non-human life, but is also the very basis for what scholars Glenn
Coulthard and Leanne Betasamosake Simpson refer to as grounded normativity.15 While
Coulthard and Simpson’s respective notions of grounded normativity pertain to specific,
indigenous, place-based interrelationalities, practices of worldmaking, and ethical com-
mitments, work of scholars such as Vandana Shiva, Eduardo Gudynas, Marisol de la
Cadena, and Arturo Escobar suggests that such ecologically embedded normativities and
cosmologies are also present more widely.16 Environmental racism, and the degradation
that accompanies it, imperil the praxes that reproduce these normativities and lifeworlds.
In Canada, black and indigenous communities have been at the sharp edge of envi-
ronmental racism for years. There are numerous examples – both, historic and contem-
porary – of these communities bearing the harms of industrial dumping related to human

14
Areli Valencia, Human Rights Trade-Offs in Times Of Economic Growth: The Long-Term Capability
Impacts of Extractive-Led Development. New York: Palgrave Macmillan, 2016.
15
Glenn Coulthard, Red Skin, White Masks: Rejecting the Colonial Politics of Recognition, Minneapolis:
University of Minnesota Press, 2014; Leanne Betasamosake Simpson, As We Have Always Done: Indig-
enous Freedom through Radical Resistance, Minneapolis: University of Minnesota Press, 2017. Simpson
draws on Coulthard concept of grounded normativity discussing it interchangeably with the notion of Nish-
naabewin.
16
Vandana Shiva, Ecology and the Politics of Survival: Conflicts over Natural Resources in India. New
Delhi: Sage, 1991; Eduardo Gudynas, ‘“Buen Vivir” [‘Living Well’]: Today’s Tomorrow.’ Development
2011 54(4): 441-447; Marisol de la Cadena, Earth Beings: Ecologies of Practice across Andean Worlds,
Durham, NC: Duke University Press, 2015; Arturo Escobar, Designs for the Pluriverse: Radical Interde-
pendence, Autonomy, and the Making of Worlds. Durham, NC: Duke University Press, 2018.

20
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

health and degradation of the surrounding natural environment – which are the socio-eco-
logical legacies of settler colonialism and capitalism.17
I want to share three such examples – or aggregated stories, – of environmental
racism in Canada. I name the first story, the story of Forests and Lakes – it is a story of
dispossession, socio-ecological transformation, and environmental racism par excellence,
the harms of which endure with the settler colonial project. The second story, I call the
Tomato Fields and Kill Floors – it is a story of environmental racism inherent in tempo-
rary migrant labour in Canada’s agriculture and processing industries. The third story is
a story about Waste – it is a story about environmental racism as spatial dynamic that
traverses the community and the workplace.
Through these stories, I hope to illustrate how labour, livelihoods, and environment
are entangled in the production and reproduction of ongoing settler colonial and racial ca-
pital projects, and associated socio-ecologies. While these stories are specific to Canada,
I anticipate that you will find some resonance in these examples given that both Americas
share settler colonial legacies, and both constitute what scholar Macarena Gomez-Barris
refers to as the extractive zone18.
Three Stories of Environmental Racism at Work
First Story: Forests and Lakes
The project of settler colonialism in Canada has been environmental racism at work
par excellence. Settlement of what is known as Canada entailed primitive accumulation
through dispossession: full or partial removal of indigenous inhabitants from their lands
(through dislocation, relocation, and dispossession, often with force), which the settlers
then appropriated.19 Local landscapes and socio-ecologies were transformed through in-
tensive logging, river damming, wetland draining, plane flooding, and turning natural
waterways into canals for transport of lumber, and other commodities, in the process
destabilizing the very ecological conditions that sustained local indigenous nations for
thousands of years before contact. In Ontario, the province in which I live, for example,
forests which were traditional hunting grounds were clear cut to make space for farming,
access to traplines was disrupted, fishing and traditional rice cultivation were undermined
by transformation of waterways and their eventual pollution by agricultural run-off and
industrial activity.20
17
For a comprehensive approach to environmental racism involving indigenous and racialized communi-
ties in the province of Nova Scotia, see Ingrid Waldron’s Environmental Noxiousness, Racial Inequities and
Community Health (ENRICH) Project: enrichproject.org.
18
Macarena Gomez-Barris, The Extractive Zone: Social Ecologies and Decolonial Perspectives. Duke
University Press, 2017.
19
Coulthard 2014 supra; Natalia Ilyniak, “Mercury Poisoning in Grassy Narrows: Environmental Injus-
tice, Colonialism, and Capitalist Expansion in Canada.” McGill Sociological Review 2014 4: 43-66; Shiri
Pasternak and Hayden King et al., Land Back: A Yellowhead Institute Red Paper, October 2019. Available
online: redpaper.yellowheadinstitute.org.
20
See Simpson 2017, supra.

21
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

This transformation of environmental conditions of life was of course accomplished


with labour – some unfree, much of it exploited (including that extracted from disposses-
sed indigenous people), but also white, settler labour, whose work ethic and industry were
regarded as superior, and a means of acquiring property ownership over lands deemed to
have been unworked, unused, full of untapped and ‘free’ resources. The gentle long-term
cultivation of this land by original indigenous custodians was ignored though their local
socio-ecological knowledges exploited and appropriated. Settler workers, while themsel-
ves exploited, participated in the process of accumulation by dispossession, their houses,
workplaces, basic infrastructures they relied upon ultimately premised on the capture and
control of indigenous land.21
The environmental racism inherent in settlement as transformation of landscape
and environmental conditions of life is hardly a thing of the past. The process continues,
with indigenous communities all over the country bearing the brunt of polluted rivers,
lakes, air, and human bodies. Grassy Narrows – one such a community in the province of
Ontario - continues to suffer the long-term effects of mercury poisoning of its local water
systems, and of animals, fish, and soil on which they depend, dating back to the 1960s.22
The Aamjiwnaang First Nation in Sarnia, also in Ontario, is surrounded by sixty refineries
and chemical plants from which the area’s Chemical Valley designation derives. Its peo-
ple suffer from a wide range of health effects, with women suffering stillbirths, miscar-
riages and infertility at a rate that far exceed the regional average.23 And these are only a
couple of countless examples – tar sands, uranium mines, intensive logging, burst pipeli-
nes running through indigenous territories are some of the other contemporary examples.
Second Story: Tomato Fields and Kill Floors
The transformation of landscape achieved during colonial settlement created swa-
thes of agricultural land in regions of Ontario deemed suitable for agriculture. Fast forward
to more recent times, and European settler farmers have long been replaced in the fields
by temporary migrant workers. Today, seasonal workers from Indonesia, the Caribbean
and Mexico are the backbone of large-scale cultivation of tomatoes and other fruit crops
in southern Ontario, and those who work in year-round greenhouses and mushroom farms
are often women and racialized immigrant workers, even if they have settled status.
Conditions of seasonal migrant work in agriculture are well documented as excee-
dingly poor, and this is not just a Canadian reality. Exclusion from certain basic labour
standards and from having a right to collectively bargain terms and conditions of work,

21
Sai Englert, “Settlers, Workers, and the Logic of Accumulation by Dispossession.” Antipode 2020 53(6):
1647-1666.
22
Ilyniak, 2014 supra; Judy Da Silva, “Grassy Narrows: Advocate for Mother Earth and Its Inhabitants.”
In Alliances: Re/Envisioning Indigenous-nonIndigenous Relationships, edited by Lynne Davis, 69–76. To-
ronto: University of Toronto Press, 2010.
23
Indigenous Environmental Justice Project, In Conversation with Beze Gray: https://iejproject.info.yorku.
ca/in-conversation-with-beze-gray/. Beze Gray is an Anishinaabe water protector from the Aamjiwnaaang
First Nation.

22
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

combined with the structure of the temporary and seasonal migration programs that bring
migrant workers to Canada, renders these workers vulnerable, precarious and often facing
restrictions on mobility.24 Given all this, these workers have been sometimes said to work
in conditions of unfreedom – with the Seasonal Agricultural Workers Program deemed by
some scholars to be a continuation of legacies of slavery and indenture.25
These workers are also often at the sharp end of environmental racism. They are
exposed to dangerous chemicals, toxins, and other workplace hazards. Health and sa-
fety regulations – including on the use of pesticides – are lax and often unenforced in
the sector. Although since 2005, migrant farm worker in Ontario have been covered by
Occupational Health and Safety legislation, and benefit from the right to be informed and
the right to refuse dangerous work, many research studies have shown that migrant farm
workers are rarely provided with adequate training on health and safety or provided with
safety equipment as protection against chemical exposures.26 Pesticides and toxins aside,
the environmental risks inherent in migrant work have been made very visible during
the ongoing pandemic, with numerous covid-19 outbreaks at farms27, affecting migrant
workers because of their confined living conditions (in on-farm dormitories), or the fact
that lockdowns and slowdowns in a sector characterized by seasonality is not something
employers would embrace, nor consumers endorse.
Like farms, meat processing plants in Canada tend to employ migrant workers and
have also been sites of COVID-19 outbreaks.28 Meat packing is mean business at best of
times – the work conditions are hard, and the rates of injury particularly high.29 It is not
just workers bodies that suffer injury, but there is a demonstrated psychological toll of

24
Adrian Smith, “Racialized in Justice: The Legal and Extra-legal Struggles of Migrant Agricultural
Workers in Canada.” Windsor Yearbook of Access to Justice 2013 31: 15-38; Rebecca Casey, Eric Tucker,
Leah F. Vosko, “enforcing Employment Standards for Temporary Migrant Agricultural Workers in Ontario,
Canada: Exposing Underexplored Layers of Vulnerability.” International Journal of Comparative Labour
Law and Industrial Relations 2019 35(2): 227-254.
25
Amy Cohen, ‘“Slavery hasn’t ended, it has just become modernized” border imperialism and the lived
realities of migrant farmworkers in British Columbia, Canada.’ ACME 2019 18(1): 130-148.
26
Janet McLaughlin, Jenna Hennebry and Ted Haines, “Paper versus Practice: Occupational Health and
Safety Protections and Realities for Temporary Foreign Agricultural Workers in Ontario, Perspectives in-
terdisciplinaires sur le travail et la sante 2014 16(2).
27
CBC Radio, White Coat Black Art: “COVID outbreaks on farms reveal crack in system that migrant
workers slip through say health care workers,” 20 November 2020.
28
Alberta Health Services, Meat Processing Plant COVID-19 Outbreaks, Response to COVID-19 in Meat
Processing Facilities, 11 March 2021.
29
OHS Canada, The recent meat recall at XL Foods Inc. in Brooks, Alberta is not wanting in superlatives,
10 January 2013: https://www.ohscanada.com/features/silence-on-the-floor/; Frederic Charlebois, “Cana-
da’s meatpacking workers face dangerous conditions and ruthless exploitation” 1 October 2021: https://
www.wsws.org/en/articles/2021/10/02/came-o02.html; Joel Novek, Annalee Yassi, Jerry Spiegel, “Mecha-
nization, the Labor Process, and Injury Risks in the Canadian Meat Packing Industry.” International Jour-
nal of Health Services 1990 20(2).

23
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

working in a business of killing and processing dead animal bodies.30 This is yet another
form of dirty-dangerous-demeaning work, and environmental racism at work in Canada.
Third Story: Waste
Like industrial pollution or toxicity associated with mass food cultivation, and the
physical and psychological impact of working with dead flesh, the disposal of waste is
another example of environmental racism at work.31 In Hamilton, a former metals manu-
facturing city on the shores of Lake Ontario, recycling and waste facilities border resi-
dential neighbourhoods in the city’s North End.32 Some process (or in practice, frequently
‘stockpile’) electronics waste which is toxic soup, full of harmful substances, heavy me-
tals, flame retardants, and other pollutants that are harmful to human health and the local
environment. Other facilities located near residential homes process chemical waste, in-
cluding pesticides, and human fecal matter. All pose significant hazards, and numerous
accidents have been reported. In 1997, plastics fire at Plastimet recycling, considered to
be one of the worst environmental disasters in the province led to evacuation of 650 resi-
dents, and affected much of the city’s air quality.33
In the case of these waste dumps, environmental racism cuts in both directions.
Workers in so-called 3D jobs – dirty, dangerous, and demeaning – are more likely to be
persons of colour and immigrant, and the business of waste is no different, although some
of these jobs, especially where they remain within the public sector, are unionized and so
might attract better pay. The communities that neighbour dumps and disposal facilities
also tend to be low income. Indeed, the Hamilton waste facilities are just a fraction of
waste facilities – most Canadian waste gets shipped away, to be processed by racialized
workers in other parts of the world.34

***
While the stories of environmental racism at work that I have briefly shared are all
Canadian stories, the dynamics these stories illustrate are likely recognizable beyond Ca-
nada because they are not unique, but rather describe patterns of maldistribution of harm
related to where dirty industries are located or who tends to work in those environmen-
tally harmful jobs that are also least paid.

30
Michael Lebwohl, “A Call to Action: Psychological Harm in Slaughterhouse Workers.” The Yale Global
Health Review, 2016; Jessica Leibler et al., “Prevalence of serious psychological distress among slaughter-
house workers at a United States beef packing plant.” Work 2017 57(1): 1-5.
31
Ingrid Waldron, “Re-thinking waste: mapping racial geographies of violence on the colonial landscape”,
Environmental Sociology, 2018 4(1): 36-5.
32
S Harris Ali, “Disaster and the Political Economy of Recycling: Toxic Fire in an Industrial City.” Social
Problems 2002 49(2): 129-149.
33
Harris Ali 2002, supra.
34
Georgia Evans and Toni Steele, “Canada’s International Waste Shipment: A Call to Action.” Kroeger
Policy Review, 29 March 2021.

24
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Environmental racism is still a relatively underexplored area for labour lawyers,


though one that is likely to gain traction alongside debates related to climate crisis, decar-
bonization, sustainable development, just transition, green jobs and green new deals, and
so on. In Brazil, you are certainly familiar with these debates not least because they also
put spotlight on – and question the viability of - development models build on extraction
of natural resources and heavy industrialization. Many South American countries pursue
these models of development. Indeed, Canada, does so as well, at home and abroad, des-
pite its pretentions to being ‘green’ and ‘clean’.
Many people’s jobs are on the line when these models are threatened or questioned,
which is why the prospect of moving away from these models elicits so much justified
emotion – after all, it will be workers and communities that will bear the brunt of these
changes. And as labour lawyers, we tend to want to preserve jobs or opportunities, and
look out for rights of workers. The notion of just transition speaks precisely to these con-
cerns.
However, the lens of environmental racism makes it very difficult to ignore the fact
that – in settler colonies like Canada, or indeed, on a global scale – the benefits and harms
of extractive, industrial or otherwise polluting industries and development are very une-
venly distributed. Some communities have born all risk and no benefit. Labour activists
and labour lawyers cannot ignore these problematic dynamics in our pursuit of defending
workers, especially if we take a broader perspective of what it means to work, make a
living and make a life.
The environmental racism framework is a good entry point into such complex dis-
cussions and a good basis for solidarity building. One, environmental racism speaks to the
problem of distribution, but it expands it beyond the workplace to also account for mal-
distribution of environmental externalities and harms stemming from industrial activity.
In this frame, someone’s workplace is always embedded in someone else’s community
– and often there is overlap. Making dirty jobs safer without addressing the community
and environmental impacts is inadequate. And just because industries and jobs are billed
‘green’ does not mean that they have no implications for workers and local communities.
Health and safety law does not stop at the gate or the fence of the dirty or ‘green’ business.
Nor does its enforcement stop because the bodies of workers are not bodies that we see as
permanently belonging to our communities (e.g. migrant workers).
But neither should environmental planning and law seek to protect patches of pri-
mordial wilderness while carving out sacrifice zones that may be integral to some peo-
ple’s livelihood, sense of collective belonging, grounded normativity, and a launchpad
for resistance and alternative worldmaking. Laws that skirt around this complexity fail to
respond and challenge environmental racism and continue to feed capitalist extraction,
racial capitalism, and coloniality. I am afraid labour law tends to also skirt around this
complexity: while it seeks decommodification of labour, it does not directly question ca-
pitalist logics, or its colonial and socio-ecological implications. It is also a luxury for most
world’s workers – as labour law scholar Pamidzai Bamu reminds us.

25
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

A challenge for labour lawyers who wish to transcend these limits is to think labour
law differently. If we want labour law that is based on values on non-domination, a labour
law that is anti-capitalist, decolonial, and ecological we need to look beyond the legal
form that are fraught with problematic legacies, and beyond forms work that it already
privileges to more heterogenous practices of work, labour and livelihoods as embedded
in and nourishing of local socio-ecologies. What regulatory solutions and ideas emerge
from those grounded practices?

26
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

RACISMO AMBIENTAL NO TRABALHO – REFLEXÕES DE UMA


COLÔNIA DE COLONOS DO CANADÁ1

Ania Zbyszewska2
Tradução: Jéssica Santos Pereira

Me pediram para falar sobre o tema Colonialidade, racismo e as dimensões socioe-


cológicas do Direito do Trabalho: que vidas se consomem?3
Antes de começar, quero reconhecer minha própria localização colonial. Faço estas
observações da cidade de Ottawa, que está dentro dos territórios tradicionais e não cedi-
dos dos Anishinaabe Algonquin Nation, e em um espaço continental mais amplo que os
povos indígenas desta região chamam de Ilha da Tartaruga e que também é conhecido
como Canadá. Reconhecer abertamente essa localização é nomear e agradecer aos tradi-
cionais guardiões indígenas desta terra – mas também reconhecer que aqueles de nós que
habitam um espaço de colonização, mesmo como imigrantes recentes, estão implicados
em projetos em andamento de colonialismo e desapropriação.4
Agora, para contextualizar ainda mais minha palestra, devo dizer também que nem
o colonialismo nem o racismo apareceram com destaque em minhas pesquisas anteriores.
Informada pela perspectiva da economia política feminista, minha pesquisa centrou o
gênero em sua intersecção com outras relações sociais e os processos de reprodução so-
cial para criticar o enredo normativo dominante do direito do trabalho e suas implicações
materiais e operações excludentes. Mas, ao focar minhas indagações anteriores sobre as
transformações políticas, econômicas e jurídicas na Europa Central Oriental, na Polônia,
para ser exato, as questões de raça, racismo ou colonialismo não surgiram em meu traba-
lho na mesma medida em que gênero, classe e transição política econômica da Polônia.
Nos últimos anos, no entanto, meus interesses mudaram para questões de susten-
tabilidade socioecológica, ou melhor, para os modelos profundamente insustentáveis e
prejudiciais de extração, produção e consumo – e organização do trabalho – que o ca-
pitalismo em suas formas localizadas e globais desencadeou. O direito ajudou a institu-
cionalizar esses modelos, ao mesmo tempo em que procurou responder a algumas das
externalidades mais flagrantes que eles produzem. Para nós, advogados trabalhistas, são
as externalidades sociais que importam – nos preocupamos em coibir a mercantilização e
a exploração dos trabalhadores humanos. Para os juristas ambientais, o que está em jogo

1
A tradução foi feita no sentido de preservar ao máximo as ideias e sentidos trazidas pela autora. A Co-
missão Organizadora agradece a generosidade e a autorização para a publicação do artigo da professora
Ania Zbyszewba.
2
Professora Assistente do Departamento de Direito e Estudos Jurídicos da Carleton University.
3
Keynote, XII Congresso Latino-Americano de Direito Material e Processual do Trabalho, 21 de outubro
de 2021.
4
Coletivo GTDF, “Carta aos potenciais imigrantes para o que é conhecido como Canadá”, 2021. Disponí-
vel online: https://decolonialfutures.net/portfolio/letter-to-prospective-immigrants/.

27
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

são os custos ambientais desses modelos, com seus esforços voltados para a proteção e
conservação da natureza por direito próprio, ou para uso de alguns humanos. A crise cli-
mática forçou a questão de abordar tanto em conjunto, como evidenciado pelo trabalho
político da Organização Internacional do Trabalho (OIT) na última década 5, quanto a
incorporação institucional de transição justa e trabalho decente na arquitetura legal global
sobre o clima . 6Na academia jurídica estamos apenas no início dessas discussões, embora
importantes intervenções tenham sido feitas7e tenham estimulado o interesse em novas
pesquisas.
Em minha própria pesquisa, tenho tentado pensar sobre o nexo trabalho/ambiente,
contra a ‘divisão do trabalho’ legal que o caracteriza, e em reconhecimento da relação
materialmente entrelaçada entre esses dois domínios.8Algumas das questões que minha
pesquisa explora são: por que o direito trata os domínios do trabalho e do meio ambiente
como se não estivessem relacionados, quais são as implicações materiais dessa divisão
regulatória do trabalho em locais específicos e quais são as possibilidades de organização
e regular o nexo trabalho/ambiente de maneira que atenda mais diretamente à incorpora-
ção socioecológica do trabalho e apoie uma gama mais ampla de práticas de subsistência
e socionaturais?
E é aí que entram a colonialidade e o racismo, porque explorar a implicação do
direito em ambos, insustentabilidade atual e possibilidades de futuros mais sustentáveis,
exige reconsideração da modernidade capitalista. Por sua vez, a modernidade capitalista
e suas lógicas extrativistas – como se aplicam ao trabalho e à natureza – não podem ser
desvinculadas do colonialismo, do capitalismo e do desenvolvimentismo e, afins, da ex-
propriação, exploração, racismo e antropocentrismo.9Com base em estruturas de capita-
5
OIT, Fórum Global sobre Transição Justa: Mudanças Climáticas, Trabalho Decente e Desenvolvimento
Sustentável. Relatório Final do 1º Fórum Global sobre Transição Justa . Genebra, 2018; OIT, Diretrizes
para uma Transição Justa: Rumo a Economias e Sociedades Ambientalmente Sustentáveis para Todos ,
Genebra, 2015; OIT, “ Mudanças Climáticas e Trabalho: A Necessidade de uma Transição Justa ”. Interna-
tional Journal of Labor Research 2010 2(2).
6
Nações Unidas, Acordo de Paris, 2015, Preâmbulo; Declaração de Solidariedade e Transição Justa da
Silésia . COP 24, Katowice, 2018.
7
Veja, por exemplo, a edição especial 40(1) de 2018 da Revista Comparativa de Direito e Política do
Trabalho sobre Direito do Trabalho e Sustentabilidade; Sara Seck, “Direito Trabalhista Transnacional e
Meio Ambiente: Além do Trabalhador Autônomo Limitado” Canadian Journal of Law & Society 2018
33(2): 137-157; Juan Escribano Gutierrez e Paolo Tomassetti, Agreenment: A Green Mentality for Collecti-
ve Bargaining. Relatório Final e estudos de caso nacionais associados (2020); Davi Doorey, “ Uma Lei de
Transições Justas?: Colocando a Lei do Trabalho para Trabalhar nas Mudanças Climáticas”. Osgoode Legal
Studies Research Paper No. 55/2015.
8
Ania Zbyszewska, “Regulando o trabalho com as pessoas e a ‘natureza’ em mente: reflexões feministas”.
Revista Comparativa de Direito e Política do Trabalho 2018 40(1): 9-28.
9
Ver, por exemplo, Anibal Quijano, “ Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina”. Nepantla:
Vistas do Sul , 2000 1 (3): 533–80; Silvia Federici, Caliban e a Bruxa. A Mulher, o Corpo e a Acumulação
Primitiva. Brooklyn: Autonomedia, 2004; Maria Mies, Patriarcado e Acumulação em Escala Mundial.
Mulheres e a Divisão Internacional do Trabalho . Londres: Zed Books, 2014 (Primeira Publicação, 1986);
Nancy Fraser, Nancy Fraser, “Expropriação e Exploração no Capitalismo Racializado: Uma Resposta a

28
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

lismo racial e colonialidade, estudiosos do direito do trabalho começaram a refletir sobre


como o direito do trabalho, apesar de seu ethos emancipatório, tem sido imbricado em
projetos capitalistas coloniais (históricos e em andamento) e raciais.10 Como observa Dia-
mond Ashiagbor, as desigualdades contemporâneas do mercado de trabalho não podem
ser compreendidas ou corrigidas sem abordar a raça, o racismo e o colonialismo como
constitutivos dos mercados de trabalho e presentes na forma legal pela qual estes são re-
gulados. 11 No centro dessas indagações está também a questão da terra (ou da natureza)
e sua relação com o trabalho. Essa questão também é fundamental para entender como os
legados contínuos de colonização e transformação ecológica minaram as possibilidades
de reprodução social, ou viver e prosperar, fora das relações capitalistas raciais.

***

O racismo ambiental, parte constitutiva do capitalismo racial12, é particularmente


útil para pensar o trabalho e o meio ambiente em conjunto. No tempo que tenho hoje, que-
ro explorar – pelo exemplo do Canadá – o que a dinâmica do racismo ambiental ilumina
sobre o nexo trabalho/meio ambiente e sobre os emaranhados de trabalho, meios de sub-
sistência e preocupações ambientais com legados coloniais em andamento e as diferenças
raciais. hierarquias que engendraram. Primeiro falarei brevemente sobre o que é o racis-
mo ambiental, depois compartilho alguns exemplos de como ele opera, principalmente
em relação ao trabalho e no contexto do colonizador Canadá. Concluirei com algumas
reflexões sobre o que o quadro de racismo ambiental oferece – ou como ele complica a
maneira como nós, advogados trabalhistas, tendemos a olhar e responder ao problema da
desigualdade no trabalho.
Racismo ambiental – um termo cunhado pela primeira vez na década de 1980 pelo
organizador e ativista dos direitos civis dos EUA e ex-diretor executivo da Associação
Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP), Rev. Dr. Benjamin Chavis 13– re-
fere-se a geografias de danos decorrentes de destruição ambiental industrial e aplicação
desigual de leis e regulamentos ambientais. O racismo ambiental é uma relação espacial,
e muitas vezes é produzido por leis e políticas. Sua manifestação mais reconhecível é a

Michael Dawson” Estudos Históricos Críticos 2016 3(1): 163; Eduardo Gudinas, Extrativismos: Política,
Economia e Ecologia . Winnipeg: Fernwood Publishing, 2021.
10
Veja: Diamond Ashiagbor, “Raça e Colonialismo na Construção dos Mercados de Trabalho e Preca-
riedade, Industrial Law Journal 2021 50(4): 506–531; Adelle Blacket, “Sobre a presença do passado no
futuro do direito internacional do trabalho” Dalhousie Law Journal 2020 43(2): 947 ; Daniela Muradas e
Flavia Souza Maximo, “ Pensamento decolonial e direito do trabalho brasileiro: sujeições interseccionais
contemporâneas” Direito y Praxis 2018 9(4).
11
Ashiagbor, 2021 supra .
12
Laura Pulido, “Geografias de raça e etnia II: Racismo ambiental, capitalismo racial e violência sancio-
nada pelo Estado” Progress in Human Geography 2017 41(4), 524–533.
13
Richard J. Lazarus, “Racismo Ambiental! É isso que é.” Revisão da Lei da Universidade de Illinois
2000: 255-274.

29
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

localização desproporcional de indústrias e instalações que emitem substâncias tóxicas


poluentes e representam outros riscos ambientais próximos a comunidades cujos habi-
tantes são racializados e/ou indígenas, muitas vezes de baixa renda ou classe trabalhado-
ra.14A super-representação de pessoas racializadas nos chamados trabalhos 3D – sujos,
perigosos e humilhantes – e a frequente exclusão desses trabalhadores da proteção legal
é outra manifestação do racismo ambiental no trabalho.
Assim, para a questão organizadora deste painel – de quem ou quais vidas (e cor-
pos) são consumidos, presumivelmente pelos modelos capitalistas dominantes de extra-
ção, produção e organização do trabalho – a lente do racismo ambiental fornece uma res-
posta clara: corpos racializados, corpos indígenas, corpos pobres – sejam ou não corpos
de trabalhadores como tais.
Embora localizar uma indústria poluente perto de uma comunidade desfavorecida
possa oferecer empregos e oportunidades econômicas para alguns membros da comuni-
dade, esses benefícios geralmente não são uma compensação suficiente ou aceitável para
os danos que a indústria produz.15
Ao contrário, os corpos dos trabalhadores locais e dos habitantes locais tornam-se
‘sumidouros’ – locais onde a poluição pode ser depositada, assim como quando é despeja-
da em lagos, rios, solos e ar – que também se tornam sumidouros. E assim, os danos am-
bientais produzidos pelas indústrias sujas afetam a saúde dos trabalhadores e dos mem-
bros da comunidade, ao mesmo tempo em que prejudicam a capacidade da comunidade
de sustentar outras formas de ganhar a vida, sejam tradicionais ou novas, quando essas
formas dependem da viabilidade do ambiente natural circundante. Como tal, o racismo
ambiental é mais do que uma má distribuição de danos ambientais; vai mais fundo porque
tende a minar os meios de subsistência tradicionais passados e presentes, mas também
as possibilidades de desenvolver futuros alternativos onde esses futuros estão ligados à
terra – ou socioecologia – que está sendo destruída. Afinal, a terra não apenas sustenta, ela
sustenta e nutre a vida humana e não humana, mas também é a própria base para o que os
estudiosos Glenn Coulthard e Leanne Betasamosake Simpson chamam de normativida-
de fundamentada. 16Enquanto as respectivas noções de normatividade fundamentada de
Coulthard e Simpson pertencem a inter-relacionamentos específicos, indígenas, baseados
no lugar, práticas de construção de mundo e compromissos éticos, o trabalho de estudio-
sos como Vandana Shiva, Eduardo Gudynas, Marisol de la Cadena e Arturo Escobar su-

14
Ingrid Waldron, “Repensando o desperdício: mapeando as geografias raciais da violência na paisagem
colonial”, Sociologia Ambiental , 2018 4(1): 36-53.
15
Areli Valencia, Trade-offs de direitos humanos em tempos de crescimento econômico: os impactos da
capacidade de longo prazo do desenvolvimento liderado pelo extrativismo . Nova York: Palgrave Macmil-
lan, 2016.
16
Glenn Coulthard, Pele Vermelha, Máscaras Brancas: Rejeitando a Política Colonial de Reconheci-
mento , Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014; Leanne Betasamosake Simpson, As We Have
Always Done: Indigenous Freedom through Radical Resistance , Minneapolis: University of Minnesota
Press, 2017. Simpson baseia-se no conceito de Coulthard de normatividade fundamentada discutindo-o de
forma intercambiável com a noção de Nishnaabewin.

30
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

gere que tais normatividades e cosmologias ecologicamente incorporadas também estão


presentes de forma mais ampla.17 O racismo ambiental e a degradação que o acompanha
colocam em risco as práxis que reproduzem essas normatividades e mundos da vida.
No Canadá, as comunidades negras e indígenas estão no limite do racismo ambien-
tal há anos. São inúmeros os exemplos – históricos e contemporâneos – dessas comunida-
des sofrendo os danos do despejo industrial relacionado à saúde humana e à degradação
do ambiente natural circundante – que são os legados socioecológicos do colonialismo e
do capitalismo de colonização.18
Quero compartilhar três desses exemplos – ou histórias agregadas – de racismo
ambiental no Canadá. Chamo a primeira história, a história das Florestas e Lagos – é uma
história de desapropriação, transformação socioecológica e racismo ambiental por exce-
lência, cujos malefícios perduram com o projeto colonial do colonizador. A segunda his-
tória, eu chamo de Tomato Fields and Kill Floors – é uma história de racismo ambiental
inerente ao trabalho migrante temporário na agricultura e indústrias de processamento do
Canadá. A terceira história é uma história sobre Resíduos – é uma história sobre o racismo
ambiental como dinâmica espacial que atravessa a comunidade e o local de trabalho.
Por meio dessas histórias, espero ilustrar como trabalho, meios de subsistência e
meio ambiente estão envolvidos na produção e reprodução de projetos de capital colonial
e racial de colonos em andamento e socioecologias associadas. Embora essas histórias
sejam específicas do Canadá, prevejo que você encontrará alguma ressonância nesses
exemplos, uma vez que ambas as Américas compartilham legados coloniais de colonos e
ambas constituem o que a acadêmica Macarena Gomez-Barris chama de zona extrativista
19
.
Três histórias de racismo ambiental no trabalho
Primeira história: Florestas e lagos
O projeto de colonialismo colonizador no Canadá tem sido o racismo ambiental
em ação por excelência. A colonização do que é conhecido como Canadá implicou a
acumulação primitiva por meio da desapropriação: remoção total ou parcial dos habi-
tantes indígenas de suas terras (por meio de deslocamento, realocação e desapropriação,

17
Vandana Shiva, Ecologia e a Política de Sobrevivência: Conflitos sobre Recursos Naturais na Índia.
Nova Deli: Sage, 1991; Eduardo Gudynas, ‘Buen Vivir’ [‘Viver Bem’]: Hoje é Amanhã.’ Desenvolvimento
2011 54(4): 441-447; Marisol de la Cadena, Seres da Terra: Ecologias da Prática nos Mundos Andinos,
Durham, NC: Duke University Press, 2015; Arturo Escobar, Designs for the Pluriverse: Radical Interde-
pendence, Autoonomy, and the Making of Worlds . Durham, Carolina do Norte: Duke University Press,
2018.
18
Para uma abordagem abrangente do racismo ambiental envolvendo comunidades indígenas e raciali-
zadas na província de Nova Escócia, veja o Projeto Enriquecimento Ambiental, Desigualdades Raciais e
Saúde Comunitária (ENRICH) de Ingrid Waldron: richproject.org.
19
Macarena Gomez-Barris, A Zona Extrativista: Ecologias Sociais e Perspectivas Decoloniais . Duke
University Press, 2017.

31
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

muitas vezes à força), das quais os colonos então se apropriaram.20 As paisagens locais e
as socioecologias foram transformadas através da extração intensiva de madeira, repre-
samento de rios, drenagem de pântanos, inundações planas e transformação de cursos
d’água naturais em canais para o transporte de madeira e outras mercadorias, no processo
desestabilizando as próprias condições ecológicas que sustentavam as nações indígenas
locais por milhares de anos antes do contato. Em Ontário, a província em que moro, por
exemplo, as florestas que eram tradicionais áreas de caça foram cortadas para dar espaço
para a agricultura, o acesso às armadilhas foi interrompido, a pesca e o cultivo tradicional
de arroz foram prejudicados pela transformação dos cursos d’água e sua eventual polui-
ção por escoamento agrícola e atividade industrial.21
Essa transformação das condições ambientais de vida foi naturalmente realizada
com o trabalho – alguns não-livres, muitos deles explorados (incluindo aqueles extraídos
de povos indígenas despossuídos), mas também o trabalho branco, colono, cuja ética de
trabalho e indústria eram consideradas superiores, e um meios de adquirir a proprieda-
de de terras consideradas inexploradas, não utilizadas, cheias de recursos inexplorados
e ‘livres’. O cultivo suave e prolongado desta terra por guardiões indígenas originais
foi ignorado, embora seus conhecimentos socioecológicos locais fossem explorados e
apropriados. Os trabalhadores colonos, enquanto eles próprios explorados, participaram
do processo de acumulação por desapropriação, suas casas, locais de trabalho, infra-es-
trutura básica de que dependiam, em última análise, tendo como premissa a captura e o
controle da terra indígena.22
O racismo ambiental inerente ao assentamento como transformação da paisagem e
das condições ambientais de vida dificilmente é coisa do passado. O processo continua,
com comunidades indígenas de todo o país sofrendo o impacto de rios, lagos, ar e corpos
humanos poluídos. Grassy Narrows – uma dessas comunidades na província de Ontário
– continua a sofrer os efeitos de longo prazo do envenenamento por mercúrio de seus
sistemas de água locais e de animais, peixes e solo dos quais dependem, desde a década
de 1960.23 A Primeira Nação de Aamjiwnaang em Sarnia, também em Ontário, é cercada
por sessenta refinarias e plantas químicas das quais deriva a designação Chemical Valley
da área. Seu povo sofre de uma ampla gama de efeitos à saúde, com mulheres sofrendo
natimortos, abortos espontâneos e infertilidade a uma taxa que excede em muito a média

20
Coulthard 2014 supra ; Natalia Ilyniak, “Envenenamento por Mercúrio em Estreitos de Grama: Injustiça
Ambiental, Colonialismo e Expansão Capitalista no Canadá”. McGill Sociological Review 2014 4: 43-66;
Shiri Pasternak e Hayden King et al., Land Back: A Yellowhead Institute Red Paper, outubro de 2019. Dis-
ponível online: redpaper.yellowheadinstitute.org.
21
Ver Simpson 2017, supra .
22
Sai Englert, “Settlers, Workers, and the Logic of Accumulation by Dispossession”. Antípoda 2020 53(6):
1647-1666.
23
Ilyniak, 2014 supra ; Judy Da Silva, “Grassy Narrows: Defender a Mãe Terra e seus habitantes”. In
Alliances: Re/Envisioning Indigenous-nonIndigenous Relationships , editado por Lynne Davis, 69–76. To-
ronto: University of Toronto Press, 2010.

32
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

regional.24 E esses são apenas alguns incontáveis exemplos – areias betuminosas, minas
de urânio, extração intensiva de madeira, dutos rompidos que atravessam territórios indí-
genas são alguns dos outros exemplos contemporâneos.
Segunda história: Tomates Fields and Kill Floors
A transformação da paisagem alcançada durante o assentamento colonial criou fai-
xas de terras agrícolas em regiões de Ontário consideradas adequadas para a agricultura.
Avançando rapidamente para tempos mais recentes, os colonos europeus há muito foram
substituídos nos campos por trabalhadores migrantes temporários. Hoje, os trabalhadores
sazonais da Indonésia, Caribe e México são a espinha dorsal do cultivo em larga escala
de tomates e outras frutíferas no sul de Ontário, e aqueles que trabalham em estufas o
ano todo e fazendas de cogumelos são muitas vezes mulheres e trabalhadores imigrantes
racializados, mesmo se eles tiverem status estabelecido.
As condições de trabalho migrante sazonal na agricultura estão bem documentadas
como extremamente precárias, e essa não é apenas uma realidade canadense. A exclusão
de certas normas trabalhistas básicas e do direito de negociar coletivamente termos e con-
dições de trabalho, combinada com a estrutura dos programas de migração temporária e
sazonal que trazem trabalhadores migrantes para o Canadá, torna esses trabalhadores vul-
neráveis, precários e muitas vezes enfrentando restrições de mobilidade .25 Diante de tudo
isso, por vezes se diz que esses trabalhadores trabalham em condições de não-liberdade –
com o Programa de Trabalhadores Agrícolas Sazonais considerado por alguns estudiosos
como uma continuação de legados de escravidão e servidão.26
Esses trabalhadores também estão frequentemente na ponta do racismo ambiental.
Eles estão expostos a produtos químicos perigosos, toxinas e outros perigos no local
de trabalho. As regulamentações de saúde e segurança – inclusive sobre o uso de pes-
ticidas – são negligentes e muitas vezes não aplicadas no setor. Embora desde 2005, os
trabalhadores agrícolas migrantes em Ontário estejam cobertos pela legislação de Saúde
e Segurança Ocupacional e se beneficiem do direito de serem informados e do direito de
recusar trabalhos perigosos, muitos estudos de pesquisa mostraram que os trabalhadores

24
Projeto de Justiça Ambiental Indígena, em conversa com Beze Gray: https://iejproject.info.yorku.ca/
in-conversation-with-beze-gray/. Beze Gray é um protetor de água Anishinaabe da Primeira Nação Aam-
jiwnaaang.
25
Adrian Smith, “Racializado na Justiça: As Lutas Legais e Extralegais dos Trabalhadores Agrícolas Mi-
grantes no Canadá”. Windsor Yearbook of Access to Justice 2013 31: 15-38; Rebecca Casey, Eric Tucker,
Leah F. Vosko, “aplicando padrões de emprego para trabalhadores agrícolas migrantes temporários em
Ontário, Canadá: expondo camadas subexploradas de vulnerabilidade”. Revista Internacional de Direito do
Trabalho Comparado e Relações Industriais 2019 35(2): 227-254.
26
Amy Cohen, ‘’A escravidão não acabou, apenas se modernizou’ o imperialismo fronteiriço e as realida-
des vividas pelos trabalhadores agrícolas migrantes na Colúmbia Britânica, Canadá.’ ACME 2019 18(1):
130-148.

33
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

agrícolas migrantes raramente recebem treinamento adequado sobre saúde e segurança


ou providos de equipamentos de segurança como proteção contra exposições químicas.27
Pesticidas e toxinas à parte, os riscos ambientais inerentes ao trabalho migrante torna-
ram-se muito visíveis durante a pandemia em curso, com numerosos surtos de covid-19
em fazendas 28, afetando trabalhadores migrantes por causa de suas condições de vida
confinadas (em dormitórios nas fazendas), ou fato de que bloqueios e desacelerações em
um setor caracterizado pela sazonalidade não são algo que os empregadores adotariam,
nem os consumidores endossam.
Como as fazendas, as fábricas de processamento de carne no Canadá tendem a
empregar trabalhadores migrantes e também foram locais de surtos de COVID-19.29 A
embalagem de carne é um negócio difícil na melhor das hipóteses – as condições de traba-
lho são difíceis e as taxas de lesões particularmente altas.30 Não são apenas os corpos dos
trabalhadores que sofrem lesões, mas há um custo psicológico comprovado de trabalhar
em um negócio de matar e processar corpos de animais mortos.31 Esta é mais uma forma
de trabalho sujo-perigoso-degradante e racismo ambiental em ação no Canadá.
Terceira história: Resíduos
Assim como a poluição industrial ou a toxicidade associada ao cultivo em massa
de alimentos e o impacto físico e psicológico de trabalhar com carne morta, o descarte de
resíduos é outro exemplo de racismo ambiental no trabalho.32 Em Hamilton, uma antiga
cidade de fabricação de metais às margens do Lago Ontário, instalações de reciclagem e
resíduos fazem fronteira com bairros residenciais no North End da cidade.33 Alguns pro-
cessam (ou, na prática, frequentemente ‘armazenam’) resíduos eletrônicos que são uma
27
Janet McLaughlin, Jenna Hennebry e Ted Haines, “Papel versus Prática: Proteções de Saúde e Segurança
Ocupacional e Realidades para Trabalhadores Agrícolas Estrangeiros Temporários em Ontário, Perspecti-
vas interdisciplinares sur le travail et la sante 2014 16(2).
28
Rádio CBC, White Coat Black Art: “Surtos de COVID em fazendas revelam rachaduras no sistema que
trabalhadores migrantes passam, digamos, profissionais de saúde”, 20 de novembro de 2020.
29
Alberta Health Services, Meat Processing Plant COVID-19 Outbreaks, Response to COVID-19 in Meat
Processing Facilities, 11 de março de 2021.
30
OHS Canada, O recente recall de carnes na XL Foods Inc. em Brooks, Alberta, não falta em superla-
tivos, 10 de janeiro de 2013: https://www.ohscanada.com/features/silence-on-the-floor/ ; Frederic Charle-
bois, “Os trabalhadores de frigoríficos do Canadá enfrentam condições perigosas e exploração implacável”
1 de outubro de 2021: https://www.wsws.org/en/articles/2021/10/02/came-o02.html ; Joel Novek, Annalee
Yassi, Jerry Spiegel, “Mecanização, Processo de Trabalho e Riscos de Lesões na Indústria Canadense de
Embalagem de Carne”. Jornal Internacional de Serviços de Saúde 1990 20(2).
31
Michael Lebwohl, “Um apelo à ação: danos psicológicos em trabalhadores de matadouros”. The Yale
Global Health Review , 2016; Jessica Leibler et al., “Prevalência de sofrimento psicológico grave entre tra-
balhadores de matadouros em uma fábrica de embalagem de carne bovina dos Estados Unidos”. Trabalho
2017 57(1): 1-5.
32
Ingrid Waldron, “Repensando o desperdício: mapeando as geografias raciais da violência na paisagem
colonial”, Sociologia Ambiental , 2018 4(1): 36-5.
33
S Harris Ali, “Desastre e a economia política da reciclagem: fogo tóxico em uma cidade industrial”.
Problemas Sociais 2002 49(2): 129-149.

34
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

sopa tóxica, cheia de substâncias nocivas, metais pesados, retardadores de chama e outros
poluentes prejudiciais à saúde humana e ao meio ambiente local. Outras instalações loca-
lizadas perto de residências processam resíduos químicos, incluindo pesticidas e matéria
fecal humana. Todos representam perigos significativos, e numerosos acidentes foram
relatados. Em 1997, o incêndio de plásticos na reciclagem de Plastimet, considerado um
dos piores desastres ambientais da província, levou à evacuação de 650 moradores e afe-
tou grande parte da qualidade do ar da cidade.34
No caso desses lixões, o racismo ambiental corta em ambas as direções. Trabalha-
dores nos chamados empregos 3D – sujos, perigosos e humilhantes – são mais propensos
a ser pessoas de cor e imigrantes, e o negócio de resíduos não é diferente, embora alguns
desses empregos, especialmente quando permanecem no setor público, são sindicalizados
e, portanto, podem atrair melhores salários. As comunidades vizinhas aos lixões e instala-
ções de descarte também tendem a ser de baixa renda. De fato, as instalações de resíduos
de Hamilton são apenas uma fração das instalações de resíduos – a maioria dos resíduos
canadenses é enviada para fora, para ser processada por trabalhadores racializados em
outras partes do mundo.35

***

Embora as histórias de racismo ambiental no trabalho que compartilhei brevemente


sejam todas canadenses, as dinâmicas que essas histórias ilustram são provavelmente
reconhecíveis além do Canadá porque não são únicas, mas descrevem padrões de má dis-
tribuição de danos relacionados a onde as indústrias sujas estão localizadas ou que tende
a trabalhar naqueles empregos prejudiciais ao meio ambiente que também são menos
remunerados.
O racismo ambiental ainda é uma área relativamente inexplorada pelos advogados
trabalhistas, embora provavelmente ganhe força ao lado de debates relacionados à crise
climática, descarbonização, desenvolvimento sustentável, transição justa, empregos ver-
des e novos acordos verdes e assim por diante. No Brasil, você certamente conhece esses
debates, até porque eles também colocam em evidência – e questionam a viabilidade de
– modelos de desenvolvimento baseados na extração de recursos naturais e na industriali-
zação pesada. Muitos países sul-americanos seguem esses modelos de desenvolvimento.
De fato, o Canadá também o faz, em casa e no exterior, apesar de suas pretensões de ser
‘verde’ e ‘limpo’.
O emprego de muitas pessoas está em jogo quando esses modelos são ameaçados
ou questionados, e é por isso que a perspectiva de se afastar desses modelos provoca
tanta emoção justificada – afinal, serão os trabalhadores e as comunidades que sofrerão o
impacto dessas mudanças. E como advogados trabalhistas, tendemos a querer preservar

34
Harris Ali 2002, supra .
35
Georgia Evans e Toni Steele, “Remessa Internacional de Resíduos do Canadá: Um Chamado à Ação”.
Revisão da Política Kroeger, 29 de março de 2021.

35
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

empregos ou oportunidades e zelar pelos direitos dos trabalhadores. A noção de transição


justa fala precisamente a essas preocupações.
No entanto, a lente do racismo ambiental torna muito difícil ignorar o fato de que
– em colônias de colonos como o Canadá, ou mesmo em escala global – os benefícios e
danos das indústrias e do desenvolvimento extrativistas, industriais ou poluentes são dis-
tribuídos de forma muito desigual. Algumas comunidades nasceram com todos os riscos
e nenhum benefício. Ativistas trabalhistas e advogados trabalhistas não podem ignorar
essas dinâmicas problemáticas em nossa busca pela defesa dos trabalhadores, especial-
mente se tivermos uma perspectiva mais ampla do que significa trabalhar, e ganhar a vida.
O quadro do racismo ambiental é um bom ponto de entrada para discussões tão
complexas e uma boa base para a construção da solidariedade. Primeiro, o racismo am-
biental fala do problema da distribuição, mas o expande para além do local de trabalho
para também explicar a má distribuição de externalidades ambientais e danos decorrentes
da atividade industrial. Nesse quadro, o local de trabalho de alguém está sempre inserido
na comunidade de outra pessoa – e muitas vezes há sobreposição. Tornar os trabalhos su-
jos mais seguros sem abordar a comunidade e os impactos ambientais é inadequado. E só
porque as indústrias e os empregos são classificados como “verdes” não significa que não
tenham implicações para os trabalhadores e as comunidades locais. A lei de saúde e segu-
rança não para no portão ou na cerca do negócio sujo ou ‘verde’. A sua aplicação também
não cessa porque os corpos dos trabalhadores não são corpos que vemos como pertenci-
mento permanente às nossas comunidades (por exemplo, trabalhadores migrantes).
Mas o planejamento ambiental e a lei também não devem procurar proteger trechos
de selva primordial enquanto esculpem zonas de sacrifício que podem ser parte integran-
te da subsistência de algumas pessoas, senso de pertencimento coletivo, normatividade
fundamentada e uma plataforma de lançamento para resistência e criação de mundo al-
ternativa. As leis que contornam essa complexidade não respondem e desafiam o racismo
ambiental e continuam a alimentar a extração capitalista, o capitalismo racial e a colo-
nialidade. Receio que o direito do trabalho também tenda a contornar essa complexida-
de: embora busque a desmercantilização do trabalho, não questiona diretamente a lógica
capitalista ou suas implicações coloniais e socioecológicas. É também um luxo para a
maioria dos trabalhadores do mundo – como nos lembra o estudioso de direito trabalhista
Pamidzai Bamu.
Um desafio para os advogados trabalhistas que desejam transcender esses limites
é pensar o direito do trabalho de forma diferente. Se queremos um direito do trabalho
baseado em valores de não dominação, um direito do trabalho que seja anticapitalista,
descolonial e ecológico, precisamos olhar além da forma jurídica que está repleta de
legados problemáticos, e além das formas de trabalho que já privilégios a práticas mais
heterogêneas de trabalho, trabalho e meios de subsistência como embutidos e nutridores
de socioecologias locais. Que soluções e ideias regulatórias emergem dessas práticas fun-
damentadas?

36
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

A GUETIZAÇÃO DO TRABALHO FEMININO:


entre a esfera reprodutiva e a terceirização1

Maria Cecília Máximo Teodoro2


Rainer Bomfim3

Introdução
O Direito do Trabalho e o trabalho, quando analisados sob a perspectiva de gênero,
levantam dissonâncias quanto as pautas e marcos teóricos adotadas pelos diversos coleti-
vos feministas4. O enfoque da análise de gênero está em constante disputa5. Desta forma,
para esta pesquisa, tem-se como pressuposto que as normas jurídicas não são neutras6 e
são produzidas por sujeitos interessados7, dentro de instituições brancas pré-formadas8 e
que atendem a interesses capitalistas construídos sob óticas específicas. Então, é com esse
ponto de partida que se analisa a formação de guetos no trabalho feminino, principalmen-
te através da terceirização. As margens do mundo do trabalho são ocupadas por mulheres
negras e que moram nas periferias das cidades que se apresentam como sustentáculo da
(re)produção do sistema capitalista9.

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 concedido ao segundo autor.
2
Pós-doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília. Doutora em Direito pela Universidade de São
Paulo. Mestra em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharela em Direito pela
PUC-MG. Professora da graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC/MG.
3
Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, com bolsa CAPES. Mes-
tre em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Bacharel em Direito pela UFOP. Professor
de Direito da Rede Doctum – Unidade de João Monlevade e Professor Substituto da Universidade Federal
de Juiz de Fora – Campus Governador Valadares. Membro do Grupo de Pesquisa RESSABER e Retraba-
lhando o Direito (RED) – PUC/MG.
4
LERUSSI, Romina. (2018). Escritos para una filosofía feminista del derecho laboral. Estudios del Traba-
jo. Revista de la Asociación Argentina de Especialistas en Estudios del Trabajo (ASET), (56).
5
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato
Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
6
A contestação do sujeito hegemônico e produtor de conhecimento como alguém neutro é uma política
tipicamente feminista. HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e
o privilégio da perspectiva radical. Cadernos Pagu, Campinas, p. 7-41, 1995.
7
O masculino nesta construção é utilizado de forma proposital pela atual formação do Legislativo brasi-
leiro.
8
CORAIDE, Marco Túlio; PEREIRA, Flávia Souza Máximo. Trabalho preto, instituições brancas: a pes-
soalidade racializada na relação de emprego no Brasil. Teoria Jurídica Contemporânea. V.6, 2021.
9
BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social? Trad. Maíra Mee Silva e Mariana
Luppi. In: Outubro, n. 32, 1º semestre de 2019, p. 103; VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial.
Trad. Jamille Pinheiro Dias Raquel Camargo. São Paulo: Ubu, 2020, p. 17; LERUSSI, Romina. (2018).
Escritos para una filosofía feminista del derecho laboral. Estudios del Trabajo. Revista de la Asociación
Argentina de Especialistas en Estudios del Trabajo (ASET), (56).

37
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Quando se discute o escopo jurídico do trabalho e quais são os sujeitos que ocupam
estes postos é preciso observar a presença cotidiana do Direito do Trabalho. A forma coti-
diana diz muito sobre o Direito10. Especialmente no dia a dia das mulheres, na medida em
que traz em seu rol de proteção traz direitos exclusivos das mulheres11, como a garantia
provisória de emprego após a gestação, limitação do carregamento de peso, previsão de
igualdade salarial com os homens, proteção de condições insalubres da gestante, den-
tre outras regras justrabalhistas. Muitas vezes tais direitos são lidos como custos e para
outros/as sujeitos/as como sustentáculo da vida. Este ramo tem dentro da sua finalidade
teleológica a proteção daquele/a que está na condição de subalterno/a e está destituído dos
meios de produção sendo subordinado estruturalmente pelo capital e, como uma dupla
função (ambivalente), apaziguar as demandas e conflitos sociais a partir de concessões
de direitos.
Embora este ramo seja uma conquista subalterna, que visa redistribuição de renda
de forma igualitária e foca na equalização das relações desiguais que acontecem entre os
capitalistas e os/as trabalhadores/as12, em geral, há normas específicas que tentam equili-
brar as desigualdades lidas como biológicas13 entre homens e mulheres. Mesmo que na
atual circunstância seja necessária a proteção e reafirmação do Direito do Trabalho, se
faz necessário olhar para as suas próprias contradições internas/externas e seus impactos
adversos para transformá-las em lutas e instrumentos políticos14. É preciso proliferar o
pensamento crítico para entender as dinâmicas e as problemáticas do Direito do Trabalho
para a partir disso repensá-las15.
A crítica perpetrada neste excerto tem como objetivo o aumento da proteção do
Direito do Trabalho e repudia veementemente a construção neoliberal que subsidia a
destruição da proteção social constitucional. Isto para os/as estudiosos/as do Direito do
Trabalho é óbvio, mas precisa ser reafirmado em tempos de neoliberalismo.
A destruição contemporânea está relacionada a um esvaziamento da proteção tra-
balhista e previdenciária com o intuito de atender aos interesses exclusivamente econô-

10
LERUSSI, Romina. (2018). Escritos para una filosofía feminista del derecho laboral. Estudios del Traba-
jo. Revista de la Asociación Argentina de Especialistas en Estudios del Trabajo (ASET), (56).
11
LERUSSI, Romina. (2018). Escritos para una filosofía feminista del derecho laboral. Estudios del Traba-
jo. Revista de la Asociación Argentina de Especialistas en Estudios del Trabajo (ASET), (56).
12
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18 ed. São Paulo. LTr, 2019, p. 540.
13
Entende-se que a corporalidade do Direito do Trabalho é lida, pensada e estruturada a partir da cis-he-
teronormatividade.
14
LERUSSI, Romina.. Escritos para una filosofía feminista del derecho laboral. Estudios del Trabajo. Re-
vista de la Asociación Argentina de Especialistas en Estudios del Trabajo (ASET), (56), 2018.
15
LERUSSI, Romina; PÁRRAGA; Francisco Trillo. Presentación del dossier un nuevo derelho del trabajo
para el mundo actual. Ensanchar la base y expandir la imaginación. Teoria Jurídica Contemporânea.
2021.

38
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

micos. A falácia que a proteção trabalhista aumenta os custos não tem respaldo científico
e aqui não se compactua com esse discurso que tem por finalidade a precarização16.
Nesta toada, a produção jurídica com o olhar para o trabalho da mulher implica
em uma redefinição das categorias em disputa e uma desocultação17 de trabalhos que são
forjados como gratuitos. Para isso, toma-se a lição de Françoise Vergès18 de que “os direi-
tos das mulheres, quando esvaziados de toda dimensão radical, tornam-se um trunfo nas
mãos dos poderosos.”. É preciso desvendar as amarras jurídico-institucionais que estão
por traz desse silenciamento19.
Neste sentido, sob a vertente jurídico-sociológica20, trata-se das dimensões do tra-
balho das mulheres dentro da sociedade brasileira abordando tanto temas vinculados ao
dogma jurídico e aspectos atinentes a questões sociológicas, como a divisão socialmente
construída acerca das responsabilidades do lar (ou trabalhar “gratuitamente”) dentro das
famílias. A questão problema que guia essa incursão jurídica é: quais são os postos tradi-
cionalmente ocupados pela maioria das mulheres brasileiras dentro da divisão sexual do
trabalho e como isso reflete na sua ocupação em postos terceirizados?
Como hipótese tem-se que as mulheres, por realizarem os trabalhos vinculados à
esfera reprodutiva, são levadas a postos precários, como trabalhos terceirizados, e como
consequência tem-se a formação de verdadeiros guetos.
As mulheres, por uma divisão sexual do trabalho21 construída na sociedade mo-
derna, são levadas a desempenharem diversas atividades que não estão vinculadas, em
termos capitalistas, com as esferas produtivas22. Como cuidado do lar, planejamento das
atividades do lar, cuidado com crianças e idosos e são incumbidas da reprodução da força

16
MÁXIMO PEREIRA, Flávia Souza; NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Os segredos epistêmicos do
Direito do trabalho. Revista Brasileira de Políticas Públicas, 2020.p. 520-545
17
A motivação para investir na desocultação de postos de trabalho, especialmente os femininos, vem dos
escritos publicados por Flávia Souza Máximo Pereira e Pedro Augusto Gravatá Nicoli em: MÁXIMO PE-
REIRA, Flávia Souza; NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Os segredos epistêmicos do Direito do trabalho.
Revista Brasileira de Políticas Públicas, 2020.p. 520-545.
18
VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Trad. Jamille Pinheiro Dias Raquel Camargo. São
Paulo: Ubu, 2020, p. 17.
19
BOMFIM, Rainer. Proteção da transição de gênero pela Assistência Social: uma proposta-truque para
o conceito de hipossuficiência. São Paulo, Dialética, 2022.
20
Adota-se uma vertente jurídico-sociológica na construção desse trabalho no sentido formulado por
Miracy Barbosa de Sousa Gustin e Maria Tereza Fonseca Dias (2013).
21
Helena Hirata e Danièle Kergoat (2007, p. 599) definem em duas concepções: a primeira estuda a distri-
buição diferencial entre homens e mulheres, ofícios e profissões, variações dessa distribuição no tempo e no
espaço, analisando a sua associação à divisão desigual do trabalho doméstico entre os sexos. Por sua vez,
a segunda acepção afirma que a divisão sexual do trabalho articula a descrição real como reflexão sobre os
processos mediante os quais a sociedade utiliza essas diferenças para hierarquizar as atividades e, portanto,
os sexos, para criar um sistema de gênero.
22
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos
de Pesquisa – Fundação Carlos Chagas, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595- 609, set./dez. 2007.

39
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

de trabalho, ou seja, gestarem filhos23_24. As principais funções da reprodução da classe


trabalhadora têm as suas atividades vinculadas fora do local de trabalho25. Contudo, no-
ta-se materialidades diversas a depender da classe, cor da pele, origem, etnia, orientação
sexual e identidade de gênero que são interseccionadas.
Objetiva-se demonstrar que as mulheres são marginalizadas dentro da divisão dos
trabalhos e, por serem incumbidas com triplas jornadas, são levadas a ocupar postos pre-
cários.
Para isso inicia-se a discussão com a apresentação da teoria da reprodução social
desenvolvida por Tithi Bhattacharya26, em seguida discute-se a precariedade e a desi-
gualdade do trabalho feminino. Segue-se com a discussão dos impactos das atividades da
esfera reprodutiva no trabalho feminino e finaliza-se com a demonstração, através de da-
dos, que as mulheres ocupam os trabalhos terceirizados, formando assim, um verdadeiro
gueto feminino nos moldes conceituados por Loïc Wacquant. Desenvolve-se o presente
trabalho com uma perspectiva teórica, através do qual se utiliza o método da revisão bi-
bliográfica para alcançar aos objetivos tratados.
Teoria da Reprodução Social
Tithi Bhattacharya27 apresenta a teoria da reprodução demonstrando como a forma
da produção de bens e serviços está integrada com a produção da vida. Para que aconteça
uma liberação das pessoas para a atividade produtiva existe uma preparação destas fora
do âmbito da economia formal que acontece a um custo bem baixo para o capital28.
A autora elenca que existem três processos interconectados que contribuem para a
inserção das pessoas e com a consecutiva produção de bens e serviços dentro da socie-
dade:
1. Atividades que regeneram a trabalhadora fora do processo de produção e
que a permitem retornar a ele. Elas incluem, entre uma variedade de outras
coisas, comida, uma cama para dormir, mas também cuidados psíquicos que
mantêm uma pessoa íntegra.

23
Não se retira aqui a discussão de que a gestação pode não estar estritamente às mulheres e sim as pessoas
com útero, mas tomam-se aqui os dados em números quantitativos para apresentar essa discussão discussão
ligada à maternagem.
24
BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social? Trad. Maíra Mee Silva e Mariana
Luppi. In: Outubro, n. 32, 1º semestre de 2019, p. 103.
25
BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social? Trad. Maíra Mee Silva e Mariana
Luppi. In: Outubro, n. 32, 1º semestre de 2019, p. 103.
26
BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social? Trad. Maíra Mee Silva e Mariana
Luppi. In: Outubro, n. 32, 1º semestre de 2019, p. 103.
27
BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social? Trad. Maíra Mee Silva e Mariana
Luppi. In: Outubro, n. 32, 1º semestre de 2019, p. 103.
28
BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social? Trad. Maíra Mee Silva e Mariana
Luppi. In: Outubro, n. 32, 1º semestre de 2019, p. 103.

40
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

2. Atividades que mantêm e regeneram não-trabalhadores que estão fora do


processo de produção - isto é, os que são futuros ou antigos trabalhadores,
como crianças, adultos que estão fora do mercado de trabalho por qualquer
motivo, seja pela idade avançada, deficiência ou desemprego.
3. Reprodução de trabalhadores frescos, ou seja, dar à luz.29

O primeiro se refere a divisão sexual do trabalho, que decorre das relações sociais
entre os sexos e é fator primordial para a sobrevivência da relação entre homens e mu-
lheres30. Sua característica principal é a designação dos homens na esfera produtiva31,
enquanto as mulheres são socialmente destinadas à esfera reprodutiva32. Assim, essas
desigualdades são sistemáticas e ditam a inferiorização das mulheres nas relações de
trabalho33.
Ao longo dos anos, com o avanço das indústrias e de novos serviços, algumas
mulheres puderam ocupar novos cargos, avançando diante da iminente necessidade da
indústria capitalista, e, parte delas pôde estabelecer relações de emprego em áreas mas-
culinizadas. Contudo, tais mudanças não foram suficientes para superar o distanciamento
entre os gêneros, que continuou condicionando mulheres à realização de tarefas domésti-
cas e de cuidado, e precarizando o labor feminino no espaço produtivo.
Neste compasso, traduz que essas atividades descritas por Bhattacharya são a base
do capitalismo, visto que (re)produzem a/o trabalhador/a em sua esfera privada. De tal
forma que na hora da contratação esse tipo de trabalho não é cobrado pela realização des-
sa preparação. É uma transferência na formação daquela pessoa para dentro de um siste-
ma capitalista. Este custo é uma privatização dos custos sociais, o que é, paulatinamente,
transferido às famílias.

29
BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social? Trad. Maíra Mee Silva e Mariana
Luppi. In: Outubro, n. 32, 1º semestre de 2019, p. 103.
30
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos
de Pesquisa – Fundação Carlos Chagas, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595- 609, set./dez. 2007.
31
Em termos marxistas, é aquele que insere um bem ou serviço no mercado, capaz de gerar mais-valia,
ou seja, autovalorização do valor decorrente do tempo de trabalho excedente à disposição do capitalista
(MARX, 2011).
32
Em termos marxistas, é aquele que não gera mais-valia direta, pois é desenvolvido no âmbito lar, sem in-
serir nenhum bem ou serviço no mercado, imbricado na falaciosa esfera de afeto feminino (MARX, 2011).
33
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos
de Pesquisa – Fundação Carlos Chagas, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595- 609, set./dez. 2007.

41
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

No Brasil, em 2019, foi constatado que as mulheres realizavam 10,4 horas a mais
do que os homens em atividades domésticas34 ou em cuidado de pessoas35. Na mesma pes-
quisa ficou constatado que 92,1 % das mulheres realizavam alguma atividade de afazer
doméstico enquanto a proporção dentre os homens era de 78,6 %36.
Como método da pesquisa, para explanar o que era afazer doméstico foram utili-
zadas questões que descrevem as atividades com resposta que a/o entrevistada/o deveria
responder “sim” ou “não” para cada atividade37. Em todas as respostas, a taxa de realiza-
ção de afazeres domésticos, por sexo, em qualquer condição de domicílio (responsável,
cônjuge ou companheira/o, filha/o ou enteada/o), são maiores para as mulheres. Sobre
isto, transporta-se o gráfico da pesquisa:

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua 2019.

34
Na realização desta pesquisa foram considerados as pessoas com 14 anos ou mais, independente de
sua ocupação, e como atividades domésticas forma considerados: 1. Preparar ou servir alimentos, arrumar
a mesa ou lavar as louças; 2. Cuidar da limpeza ou manutenção de roupas e sapatos; 3. Fazer pequenos re-
paros ou manutenção do domicílio, do automóvel, de eletrodomésticos ou outros equipamentos; 4. Limpar
ou arrumar o domicílio, garagem, quintal ou jardim; 5. Cuidar da organização do domicílio (pagar contas,
contratar serviços, orientar empregados); 6. Fazer compras ou pesquisar preços de bens para o domicílio; 7.
Cuidar dos animais domésticos; 8. Outras tarefas domésticas (IGBE, 2019).
35
IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua 2019.
36
IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua 2019.
37
IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua 2019.

42
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Desta maneira, percebe-se que as mulheres estão mais atribuídas e envolvidas com
os trabalhos domésticos e de cuidado do que os homens no Brasil38, e que há uma tentati-
va de naturalização desses processos como femininos39. Existe, então, uma feminilização
do cuidado40. Mas, ao contrário desta tentativa, o que se tem é uma construção social que
atribuiu uma ordem patriarcal, baseada na exclusão das mulheres do trabalho assalariado
e sua subordinação aos homens41. Existe, dentro do capitalismo, uma regeneração cotidia-
na da capacidade do trabalho que é destinada às mulheres, como um trabalho gratuito42.
Assim, pode-se destacar a conclusão de Tithi Bhattacharya de que o capitalismo é
um sistema unitário que pode integrar desigualmente a esfera da reprodução e a esfera da
produção, sendo que as mudanças em uma não reverberam necessariamente na outra43.
Estas mudanças estão interligadas com a relação e ocupação das mulheres nos espaços
públicos, na sua menor participação em cargos de chefia, mesmo que elas representem,
estatisticamente, aquelas que têm mais qualificação. E, mesmo depois dessas constata-
ções de ocupação do mercado formal, observa-se que a ocupação desses espaços de che-
fia e liderança não impacta nas tarefas do lar, que ainda estão sob responsabilidade da
mulher, sendo aquelas de organização e gestão44, seja a delegação das suas atividades a
outras mulheres mais subalternizadas45. Como as mulheres compatibilizam tantas horas
de trabalho reprodutivo (não-pago) com as suas atividades do seu trabalho remunerado?
A resposta parece estar vinculada com a sobreposição de jornadas e acumulação dos seus
afazeres (para aquelas que conseguem ou é possível) ou mesmo a ocupação de postos de
trabalho parciais46.

38
HIRATA, Helena, KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos
de Pesquisa – Fundação Carlos Chagas, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595-609, set./dez. 2007, p. 575.
39
COELHO, Bianca Lemos; SILVA, Kyara Mariana Corgosinho; BOMFIM, Rainer. A divisão sexual do
trabalho na mineração no quadrilátero ferrífero de Minas Gerais; apontamentos e questões introdutórias
que (des)viabilização (novas) sujeitas que são exploradas na mineração. Cadernos do Direito, v. 20, n.
39, 2021; COELHO, Bianca Lemos; SILVA, Kyara Mariana Corgosinho; BOMFIM, Rainer. A (in)eficácia
de normas trabalhistas e discriminação interseccional da mulher no mercado de trabalho. Cadernos do
Direito v. 20, n. 39, 2021
40
VIEIRA, Regina Stela Correa. Trabalho e cuidado no Direito: perspectivas de sindicatos e movimentos
feministas. Estudos Avançados, v. 34, n.98, 57-72, 2020.
41
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora
Elefante, 2017, p. 26-38.
42
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora
Elefante, 2017, p. 26-27.
43
BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social? Trad. Maíra Mee Silva e Mariana
Luppi. In: Outubro, n. 32, 1º semestre de 2019, p. 104.
44
As atividades de organização e gestão aqui são entendidas como o planejamento da alimentação da casa,
programação das atividades de limpeza, responsabilidade das compras e acompanhamento dos preços, pla-
nejar as atividades dos filhos, marcar consultas de rotina, dentre tantas.
45
BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social? Trad. Maíra Mee Silva e Mariana
Luppi. In: Outubro, n. 32, 1º semestre de 2019, p. 104-106.
46
BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social? Trad. Maíra Mee Silva e Mariana
Luppi. In: Outubro, n. 32, 1º semestre de 2019, p. 106.

43
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Percebe-se, então, que a base material da opressão realizada às mulheres está inti-
mamente atrelada ao sistema capitalista e seu modo de funcionamento47. Assim, é interes-
sante para o sistema capitalista a manutenção do status a quo e prevenir mudanças amplas
dentro da forma que são organizadas as relações de gênero, visto que mudanças reais
podem, em última instância, afetar os lucros48. Isto posto, é preciso estudar as condições
de desigualdade e precariedade que são impostas pelo sistema capitalista.
Precariedade e a Desigualdade do Trabalho Feminino
Tem-se observado o avanço de políticas reformistas dos direitos sociais brasileiro,
no qual se percebe a transformação radial do trabalho remunerado que, cada vez mais,
concretiza o projeto de governo neoliberal com a proteção do capital em detrimento dos/
as trabalhadores/as49. Existe um movimento do estímulo ao individual em relação ao co-
letivo50.
A colonização do espaço jurídico com políticas de precarização mostra-se como
frequente em toda a história brasileira, contudo, ataques e a demonstração de ações esta-
tais e políticas recentes parecem ter finalidades específicas: o ataque a corpos precários51
que estão alijados do capital e a imputação das atividades de cuidado para as famílias de
formas individuais52.
Corpos precários aqui são entendidos a partir do enfoque de Judith Butler que apre-
senta a precariedade sobre dois enfoques: relacionalidade e finitude. A precariedade, em
termos de relacionalidade, se dá pela exposição das pessoas ao mundo social e às suas
possibilidades de contingência53. A finitude se manifesta no fato de que todos os seres
humanos estão expostos ao convívio social; sempre se encontram em uma relação de
exposição, o que denota que a existência pode ser findada a qualquer momento e, como
decorrência disso, todos os seres humanos são absolutamente substituíveis54. Essa leitura
47
BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social? Trad. Maíra Mee Silva e Mariana
Luppi. In: Outubro, n. 32, 1º semestre de 2019, p. 104.
48
BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social? Trad. Maíra Mee Silva e Mariana
Luppi. In: Outubro, n. 32, 1º semestre de 2019, p. 109.
49
DARDOT Pierre; LAVAL, Cristian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. 1ª
ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
50
Essa estratégia é tipicamente utilizada pelo Neoliberalismo. Este é uma forma de governança e de inter-
venção econômica que depende de uma ação estatal abrangente, em que se objetiva dominação da lógica
do capital e das relações sociais (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 16-33). Trata-se de uma racionalidade que
visa homogeneizar a experiência individual e coletiva para flexibilizar todas as esferas em nome da razão
econômica (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 16-33).
51
BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2019.
52
BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social? Trad. Maíra Mee Silva e Mariana
Luppi. In: Outubro, n. 32, 1º semestre de 2019, p. 109.
53
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2020ª, 19-25.
54
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2020ª, 19-25.

44
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

deste segundo elemento deve ser feita dentro da lógica proposta pela autora de uma lei-
tura não existencialista55.
Neste sentido, todos/as estão expostos/as à condição precária, dada a vulnerabili-
dade e a contingência. Entretanto, existem graus assimétricos de exposição a esses riscos
eminentemente sociais, o que a autora chama de condição precária56. Esse conceito é
desenvolvido no sentido de demonstrar que existe uma distribuição diferencial da preca-
riedade pelos próprios marcadores socais, amplificando as condições precárias de deter-
minados indivíduos, que são escolhidos pela sociedade. Esta condição está inserida em
certas populações que sofrem com redes sociais e econômicas de apoio diferenciado em
relação às outras e ficam expostas de forma diferenciada às violações, às violências, aos
riscos sociais e, consequentemente, à morte57.
Assim, camadas privilegiadas estão inseridas ao mínimo de precariedade em re-
lação às outras. Aquelas que se adequam a subjetividade neoliberal, ao seu padrão de
consumo, dentro das relações trabalhistas de maior prestígio social estão expostos a um
menor risco social. Estas leituras devem ser localizadas pelas inter-relacionalidades des-
tas camadas de privilégio em termos de raça, gênero, sexualidade, condição social, nacio-
nalidade, identidade de gênero, entre tantos outros.
Grupos vivenciam condições de estruturas sociopolíticas que tornam sua existência
mais precária em relação às outras, sendo que são mais vulneráveis em sua existência,
o que inclui as condições de acesso a direitos. Discutir o valor diferenciado dado à vida
humana pode revelar uma percepção de que existem vidas que valem mais do que outras,
ou que devem ser mais protegidas do que outras. Isso é denotado em nível de grupos que
são excluídos da sociedade por meio da ação institucional do Estado.
A comprovação dessa política de governo neoliberal aparece marcada pelo avan-
ço do direito contratual sobre o Direito do Trabalho, concretizada com a legitimação
do negociado sobre o legislado (consagrado com a Lei n° 13.467/2017), a extinção do
Ministério do Trabalho e Emprego em 2018, a Reforma da Previdência em 2019, a Lei
13.874/2019 (chamada de Lei da Liberdade Econômica), que dificulta o acesso aos bens
dos/as empregadoras/es, as Medidas Provisórias n° 927, 936, 944 e 945 todas de 2020.
Enfim, são ataques institucionalizados ao emprego formal que se mostram como uma
avassaladora forma de ataque do capital aos/às trabalhadores/as. Percebe-se que a política
de reformas é um processo58.

55
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2020ª, 19-26.
56
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2020a, 24-29.
57
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2020a, 45-47.
58
ALMEIDA, Cléber Lúcio de. ALMEIDA, Wânia Guimarães Rabêllo de. Neoliberalismo, subjetivida-
des e mutação antropológica e política. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2020.

45
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Percebe-se, então, que as desigualdades econômicas são enfrentadas de acordo com


a materialidade-histórica dos indivíduos59 e que na sociedade contemporânea existe um
realce na ótica de meritocracia, ou seja, do mérito individual que está destruindo a reali-
dade dos direitos sociais. Isso aumenta a precariedade dos indivíduos em termos econô-
micos e sociais.
Dessa maneira, considerando a necessidade da leitura localizada das relações de
trabalho como relações de poder deve se observar a existência do direcionamento de de-
terminados grupos sociais a setores e ramos específicos do trabalho. Analisa-se a forma
como as mulheres, principalmente as negras, são levados a postos de trabalho precari-
zados pela sua atribuição social de triplas jornadas de trabalho (cuidado60, reprodutivo e
produtivo) e pela existência de uma pré-formatação discriminatória dos seus postos de
trabalho.
Guetização das Mulheres em Trabalhos Terceirizados no Brasil
A exploração é considerada uma relação mediada através dos processos de produ-
ção, sendo esta uma característica de todas as sociedades de classes e a força motivadora
é a produção de mercadorias61. Neste ínterim, não podemos atribuir apenas as mulheres o
papel da exploração dentro de uma sociedade capitalista.
Contudo, determinadas nuances dessa exploração são sobrepostas em razão do gê-
nero, classe e da raça daquela pessoa. Assim, Romina Lerussi62 apresenta que existe
uma subdelegação das margens do mundo do trabalho para as mulheres nas quais elas
são responsáveis pelo trabalho doméstico, pelo trabalho de cuidado, são mais exploradas
enquanto trabalhadoras sexuais (chamados por ela de mercados nocivos), são levadas
a postos com condições de subemprego para conseguir se inserir dentro da sociedade e
sobreviver.
Esta manifestação é percebida também dentro da realidade brasileira, visto que as
mulheres são levadas a estes postos como uma forma de garantir a sua subsistência e do
seu núcleo familiar.
Inicialmente, faz-se necessário compreender o histórico da terceirização no Brasil
para demonstrar, posteriormente, sua vinculação com o trabalho feminino.

59
LUGONES, Maria. Rumo ao feminismo descolonial. Revista de Assuntos Feministas REF, Universi-
dade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, v. 22, nº. 03, setembro dezembro/2014, p. 942-943.
60
Helena Hirata e Guita Grin Debert (2016, p. 7) definem que a atividade de cuidado perpassa por “pro-
cessos, relações e sentimentos entre pessoas que cuidam uma das outras”. Para Pautassi (2018, p. 719-723)
deve-se entender que as tarefas e atividades de cuidado devem ser uma formulação em bases universais,
visto que a perspectiva é vinculada com o cuidado e autocuidado.
61
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Trad. Rubens Enderle. Campina: Boitempo. 2ed,
2011, p. 208-215.
62
LERUSSI, Romina. (2018). Escritos para una filosofía feminista del derecho laboral. Estudios del Traba-
jo. Revista de la Asociación Argentina de Especialistas en Estudios del Trabajo (ASET), (56), p. 17-20.

46
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Terceirização e o contexto normativo brasileiro


A terceirização é um fenômeno jurídico e social que desde a década de 1970 se de-
senvolve de forma gradativa no Brasil63. Terceirizar consiste na transferência de parcela
da execução da mão de obra para uma empresa prestadora de serviços, sendo que o que
estaria se contratando é uma prestação de serviços específicos e não a mão de obra de
um/a trabalhador/a64.
Para Rachel Gouveia Passos e Cláudia Mazzei Nogueira65 trata-se de uma das for-
mas mais nefastas de aumento da precarização da classe trabalhadora, pois, além de re-
baixar os salários, promove perda de direitos trabalhistas. Ademais, se mostra como uma
forma de contenção de custos com a mão de obra, com um possível ganho de eficácia e
produtividade aos custos de perda de direitos trabalhistas66.
A primeira súmula que tratou do tema foi o Enunciado n° 25667 do Tribunal Superior
do Trabalho no ano de 1986. Em 1993, esta foi revisitada e ampliada sendo “regulamenta-
da” pela Súmula 33168 do Tribunal Superior do Trabalho que permitia a terceirização nas
atividades-meio e proibia a terceirização nas atividades-fim.
Contudo, em 2017, durante o governo de Michel Temer, teve-se a promulgação
das Leis n° 13.429/2017 e 13.467/2017 na qual se permitia a terceirização de qualquer
atividade, sem a limitação estabelecida na referida súmula. Maurício Godinho Delgado
define a terceirização como
(...) É o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da
relação justrabalhista que lhe seria correspondente. Por tal fenômeno insere-se
o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços sem que se esten

63
PASSOS, Rachel Gouveia; NOGUEIRA, Cláudia Mazzei. O fenômeno da terceirização e a divisão
sociossexual e racial do trabalho. Katal, v. 21, n. 3, p. 484-503, set./dez. 2018, p. 485.
64
SEVERO, Valdete Souto. Terceirização: o perverso discurso do mal menor. 2015.
65
PASSOS, Rachel Gouveia; NOGUEIRA, Cláudia Mazzei. O fenômeno da terceirização e a divisão
sociossexual e racial do trabalho. Katal, v. 21, n. 3, p. 484-503, set./dez. 2018, p. 485.
66
SEVERO, Valdete Souto. Terceirização: o perverso discurso do mal menor. 2015.
67
“Salvo os casos de trabalho temporário e de serviço de vigilância, previstos nas Leis nºs 6.019, de
03.01.1974, e 7.102, de 20.06.1983, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, forman-
do-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços” (BRASIL, 1983)
68
“SUM-331 CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE. I - A contratação de tra-
balhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços,
salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974). II - A contratação irregular de trabalha-
dor, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública
direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). III - Não forma vínculo de emprego com o tomador
a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como
a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a
subordinação direta. IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica
a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja partici-
pado da relação processual e conste também do título executivo judicial” (BRASIL, 1993)

47
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

dam a este os laços justrabalhistas, que se preservam fixados em uma entidade


interveniente.69

O Ministério Público Federal propôs a Ação de Descumprimento de Preceito Fun-


damental n° 324, na qual objetivava a inconstitucionalidade da referida lei. Entretanto, o
Pleno do Supremo Tribunal Federal estabeleceu, em sede de controle concentrado, o tema
725 com a seguinte tese:
É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se
configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da
contratada; II - A terceirização, compete à contratante: i) verificar a idoneidade
e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente
pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações
previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993.70

Desta maneira foi consagrada pelo Supremo Tribunal Federal a possibilidade da


terceirização de toda a atividade e que isto não seria configurada a relação de emprego
entre trabalhador e tomador. Foi uma política de precarização proposta pelo Executi-
vo, aprovada no Legislativo e legitimada pelo Judiciário. Assim, vê-se que o Direito do
Trabalho é utilizado a serviço das empresas e não dos/as empregados/as, de tal modo a
inverter a lógica progressista desse ramo jurídico71.
Nota-se uma dissociação entre a entrega de trabalho e a existência de uma relação
de emprego com aquele em que se contrata72. Desta forma, o trabalho se transforma em
mercadora, sendo apenas uma prestação de serviços mediadas por um contrato que não se
tem a percepção de direitos trabalhistas com o seu empregador direto.
Tem-se, como já foi demonstrado, um nítido desmonte dos direitos trabalhistas pela
progressiva informalização (trabalhos sem carteira assinada) e a terceirização que acarre-
ta perda de parte dos direitos trabalhistas73.

69
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18 ed. São Paulo. LTr, 2019, p. 540.
70
BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Tema 725, publicada em 06/06/2018.
71
BITARÃES, Ana Cecília de Oliveira; SANTOS, Michel Carlos Rocha. Da condição da mulher em con-
texto da mão de obra. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região. V, 65, p. 139-163, jan/
jun, 2019;
72
SEVERO, Valdete Souto. Terceirização: o perverso discurso do mal menor. 2015.
73
PASSOS, Rachel Gouveia; NOGUEIRA, Cláudia Mazzei. O fenômeno da terceirização e a divisão so-
ciossexual e racial do trabalho. Katal, v. 21, n. 3, p. 484-503, set./dez. 2018, p. 486.

48
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Guetização do Trabalho feminino


A concepção utilizada neste trabalho é desenvolvida por Loïc Wacquant74_75 na
acepção formal do seu termo, na qual se estabelece que gueto é a materialização da do-
minação etno-racial por meio da segmentação espacial da cidade. Então, guetos não são
áreas naturais como produtos da história da migração, mas sim uma forma especial de
violência coletiva que é impetrada no espaço urbano, na qual se acumula espaços de gue-
tização, pobreza e segregação76.
Assim, se estabelece que ao conceituar a terceirização como um gueto feminino
observa-se este espaço como forma de segregação do trabalho feminino ao enclausurar
mulheres em trabalhos precários e com menos garantias, visto que, até 2018, tinha-se 4.9
milhões de mulheres em postos de trabalhos terceirizados, o que representa 41,1% dos
postos ocupados77.
Contudo, embora não sejam a maioria em postos numéricos, o que se destaca é um
aumento em termos absolutos e relativos da sua participação ano após ano78. Como pode
se observar na tabela:

Observa-se que as mulheres aumentaram a ocupação destes postos de maneira gra-


dativa no intervalo de 2006-2018. Nota-se, ainda, que está ocupação é feita de forma
setorizada, com maior ocupação massiva das mulheres em atividades de limpeza e con-

74
Não é possível utilizar a dimensão sociológica desenvolvida pelo autor no sentido de formar também
uma máquina de identidade coletiva (WACQUANT, 2004, p. 155-162), visto que a maioria das pessoas
ficam nos seus trabalhos terceirizados menos de um ano (RODRIGUES, SANTOS, SILVA, 2020, passim).
75
WACQUANT, Loïc. Que é gueto? Construindo um conceito sociológico. Rev. Sociol. Polit. [online].
2004, n.23, p.162.
76
WACQUANT, Loïc. Que é gueto? Construindo um conceito sociológico. Rev. Sociol. Polit. [online].
2004, n.23, pp.155.
77
RODRIGUES, Francisco Demetrius Monteiro; SANTOS, José Márcio dos; SILVA, Priscila de Souza.
Perfil dos trabalhadores terceirizados no Brasil. Revista da ABET. V. 19, n. 1., jan/jun, 2020, p. 173.
78
RODRIGUES, Francisco Demetrius Monteiro; SANTOS, José Márcio dos; SILVA, Priscila de Souza.
Perfil dos trabalhadores terceirizados no Brasil. Revista da ABET. V. 19, n. 1., jan/jun, 2020, p. 173.

49
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

servação79. Essas atividades são ligadas ao trabalho reprodutivo remunerado, e a elas


supostamente não estão ligadas a produção direta de um produto. Vislumbra-se que estas
mulheres estão interligadas na produção de qualquer que seja aquele produto, visto que
são as responsáveis pelas atividades de viabilização do trabalho produtivo e o custo das
suas atividades está acoplado no valor final. Aí se revela a crueldade da terceirização
destas atividades, que busca baratear os custos trabalhistas pela contração de serviços e
uma desumanização das pessoas que exercem tais atividades. Ou seja, há uma desperso-
nalização da atividade realizada por um/a funcionário/a ao se adotar a impessoalidade da
contratação por serviços, tudo com foco na lucratividade.
Ademais, identifica-se que existe uma grande rotatividade de ocupação destes pos-
tos, com a maioria absoluta com salários entre um a três salários mínimos, mostrando a
fungibilidade desses corpos, sendo que a maior parte das trabalhadoras está nestes postos
entre um e menos de três anos80. Como trazem:
Como corolário, o trabalho terceirizado corriqueiramente é sinônimo de re-
dução de custos e competitividade para o empregador, mas também de bai-
xos rendimentos, jornada de trabalho indeterminada, rotatividade do emprego,
discriminação social e de direitos e, por fim, invisibilidade de classe para o
empregado, que é rebaixado ao papel de ser inferior. Assim, representa
uma modernidade que corrompe as condições de trabalho.81

Da mesma forma, percebe-se que existe um percentual de mulheres negras que está
em trabalhos precários82. De tal modo, que a terceirização precariza a força de trabalho de
mulheres e de forma mais acentuada a força de trabalho da mulher negra83.
Portanto, ao analisar as vertentes de sobreposição do trabalho da terceirização com
o trabalho reprodutivo, identifica-se que existem mulheres que sofrem mais com a pre-
carização do que outras, não apenas por uma construção histórica da divisão sexual do
trabalho, mas, sobretudo, de uma divisão racial-sexual do trabalho que reserva lugares
precários de trabalho a determinados corpos, indicando quem pode ou não ocupar os es-
paços de trabalho84) e reproduzindo a guetização do trabalho feminino.

79
RODRIGUES, Francisco Demetrius Monteiro; SANTOS, José Márcio dos; SILVA, Priscila de Souza.
Perfil dos trabalhadores terceirizados no Brasil. Revista da ABET. V. 19, n. 1., jan/jun, 2020, p. 173.
80
RODRIGUES, Francisco Demetrius Monteiro; SANTOS, José Márcio dos; SILVA, Priscila de Souza.
Perfil dos trabalhadores terceirizados no Brasil. Revista da ABET. V. 19, n. 1., jan/jun, 2020, p. 177-180.
81
RODRIGUES, Francisco Demetrius Monteiro; SANTOS, José Márcio dos; SILVA, Priscila de Souza.
Perfil dos trabalhadores terceirizados no Brasil. Revista da ABET. V. 19, n. 1., jan/jun, 2020, p. 180.
82
PASSOS, Rachel Gouveia; NOGUEIRA, Cláudia Mazzei. O fenômeno da terceirização e a divisão
sociossexual e racial do trabalho. Katal, v. 21, n. 3, p. 484-503, set./dez. 2018, p. 489-490.
83
PASSOS, Rachel Gouveia; NOGUEIRA, Cláudia Mazzei. O fenômeno da terceirização e a divisão
sociossexual e racial do trabalho. Katal, v. 21, n. 3, p. 484-503, set./dez. 2018, p. 489-490.
84
PASSOS, Rachel Gouveia; NOGUEIRA, Cláudia Mazzei. O fenômeno da terceirização e a divisão so-
ciossexual e racial do trabalho. Katal, v. 21, n. 3, p. 484-503, set./dez. 2018, p. 490; VERGÈS, Françoise.
Um feminismo decolonial. Trad. Jamille Pinheiro Dias Raquel Camargo. São Paulo: Ubu, 2020, p. 17-24.

50
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Considerações Finais
Desta forma, parece urgente a discussão do trabalho feminino em suas diversas di-
mensões demarcando pressupostos e marco teórico. Neste trabalho apresentou-se a inter-
-relação do trabalho da mulher com a ocupação de subempregos vinculados com a teoria
da reprodução social, na qual são destinados trabalhos precários e horas de trabalho a
mais para as mulheres do que aos homens, contribuindo para a formação de guetos femi-
ninos no mercado de trabalho.
Neste compasso, a vinculação do gueto com o trabalho feminino acontece quando
se tem uma maior atribuição do trabalho reprodutivo para as mulheres, seguido da neces-
sidade de desenvolver as atividades de cuidado com todos/as aqueles/as que estão no seu
núcleo familiar e terem que trabalhar no setor produtivo.
Contudo, essa ocupação das mulheres no mercado formal acontece de forma pre-
cária, visto que quando se tem uma possibilidade de inclusão no setor produtivo elas tem
duas escolhas: aceitar o trabalho e acumular todo o trabalho reprodutivo ou delegar a
outra mulher aquele trabalho reprodutivo – normalmente negra e com baixa qualificação
e baixo salário – reproduzindo o ciclo de exclusão social e de subdelegação feminina do
trabalho de cuidado.
Assim, trabalhos domésticos são estabelecidos como secundários e que não geram
valor e são menos valorizados dentro do mercado produtivo e da mesma forma as mulhe-
res, por esta sobreposição de trabalhos e por serem discriminadas dentro do mercado de
trabalho, são levadas a postos mais precários com menos garantias e grandes exigências
de produtividades, como a terceirização analisada neste artigo.
Feitas estas considerações, tem-se a confirmação da hipótese apresentada, na qual
se observa que as mulheres, por realizarem os trabalhos vinculados à esfera reprodutiva,
são levadas a postos precários, como trabalhos terceirizados, formando verdadeiros gue-
tos no sentido formal estabelecido por Loïc Wacquant.
Referências85
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vista.com.br/wpcontent/uploads/2016/11/02_Bakan_2016.pdf

85
Para viabilizar a discussão do trabalho feminino por mulheres, optou-se por utilizar predominantemente
escritos de mulheres como referências para a escrita deste artigo. A ideia desta produção está vinculada com
a publicação do artigo que também adotou esta forma de produção: MÁXIMO PEREIRA, Flávia Souza;
BERSANI, Humberto. Crítica à interseccionalidade como método de desobediência epistêmica no Direito
do Trabalho brasileiro. REVISTA DIREITO E PRÁXIS, v. 11, p. 2743-2772, 2020.

51
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

BITARÃES, Ana Cecília de Oliveira; SANTOS, Michel Carlos Rocha. Da condição da


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Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

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54
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

CASAS, RUAS E VÍRUS:


possíveis tendências do Direito do Trabalho na era pós pandemia

Márcio TúlioViana1
Maria Rosaria Barbato2

1. Introdução
Como não é segredo para ninguém, tudo interage com tudo – ou, no mínimo, com
quase tudo.
Os exemplos se multiplicam.
Em Roma, nas tempestades de verão, os ventos às vezes trazem areias do Saara. É
como se o deserto se transferisse para a cidade.
Na Amazônia, as chuvas quase diárias não se originam apenas da evaporação dos
rios; as árvores transpiram compostos orgânicos, que aglutinam as moléculas de água, e
esses compostos, exalando leves perfumes, fortalecem o sistema imunológico de quem
caminha pela floresta3.
O próprio corona não surgiu por acaso. Com o aquecimento global, é possível que
se libertem novos e perigosos vírus, até hoje adormecidos sob as camadas de gelo4.
No campo das relações sociais, as interações também não param de acontecer.
Assim, por exemplo, uma pequena mudança num artigo de lei pode afetar a inter-
pretação de outras tantas normas; conforme o caso, pode até mesmo despertar no juiz
reações que também pareciam adormecidas, como se ao seu redor derretesse uma camada
de gelo.
Com mais razão, se grande parte da sociedade passa a viver emoções diferentes, e
a atribuir novos sentidos para o mundo, a vida do Direito se transforma – ainda que as
estruturas, aqui ou ali, conservem a mesma aparência.
O que o texto propõe é exatamente mostrar as tendências que hoje presidem essas
interações. São ideias simples, sujeitas a crítica, mesmo porque, como também sabemos,
infinitas variáveis transitam pelas nossas vidas; o acaso é um elemento presente não ape-
nas no reino da Biologia quanto em nosso cotidiano (MONOD, 1976, p. 137).

1
Professor no Programa de Pós Graduação em Direito da PUC Minas.
2
Professora na Faculdade de Direito da UFMG e líder sindical.
3
VIANA, Virgílio Mauricio, professor convidado em Harvard. Palestra no Programa de Pós graduação em
Direito na PUC-Minas. Belo Horizonte, 18/03/19.
4
CLAVERIE, Jean-Michel, apudFox-Skelly, Jasmin. There are diseases hidden in ice, and they are
waking up. Disponível em: http://www.bbc.com/earth/story/20170504-there-are-diseases-hidden-in-ice-
-and-they-are-waking-up

55
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Substancialmente, e valendo-se de duas metáforas – a casa e a rua - a pesquisa tra-


balha com a hipótese de estarmos vivendo uma profunda transformação nas tendências
históricas do Direito do Trabalho, com reflexos em suas fontes e em seu conteúdo – pro-
cesso que tende a ser acelerado em razão da atual pandemia. Para confirmar essa hipótese,
opta pela investigação multidisciplinar, abrangendo aspectos do Direito, da História, da
Antropologia e outras ciências afins, e fundada especialmente em pesquisa bibliográfica.
O objetivo básico é tentar desnudar – ou pelo menos aclarar um pouco -o curso de
um processo que tem permanecido nas sombras, a fim de possibilitar uma crítica mais
profunda do processo de desconstrução do Direito do Trabalho e abrir novos caminhos
para a sua reversão.
2. O panorama de ontem
A palavra “lar” é tão curta quanto rica. Ela nos remete, por exemplo, ao lugar onde
vivemos, junto às pessoas que nos são mais próximas e queridas (COULANGES, 200,
p.14); ao deus que os antigos cultuavam, e que protegia a família, na forma de um fogo;
à ideia de um recanto nosso, e de mais ninguém, e onde os estranhos só entram se auto-
rizados por nós.
Durante milhares de anos nos habituamos a ver o lar – em sua expressão material –
na forma de uma construção de tijolos, com as suas paredes, o seu teto e o seu chão, assim
como as suas portas e janelas. Sob os aspectos real e metafórico, esta construção - a casa
– transmitia a ideia não só de solidez e permanência, mas de defesa e proteção.
Com a modernidade, especialmente, o lar (ou a casa) passou também a simbolizar,
em certo sentido, a nossa relação com o espaço e o tempo, um e outro bem separados,
bem definidos - à semelhança de seus quartos, salas e banheiros - e por sua vez definindo
os nossos próprios passos ao longo dos dias e da vida.
Apenas as portas – e, em menor medida, as janelas - mantinham certa ambiguidade,
pois tanto podiam nos abrigar e conter, quando fechadas, como nos soltar para o mundo,
quando as abríamos para a rua. Eram como uma espécie de pele – tênue espaço entre o
dentro e o fora.
Da mesma forma que o lar, a fábrica continha elementos de abrigo e de permanên-
cia. E era também um lugar que dava ao trabalhador a sensação de que ele era um cida-
dão, um sujeito de direitos, ainda que nem sempre, na prática, fosse bem assim.
Na verdade, os próprios direitos – como o salário base, as horas extras, as indeni-
zações - pareciam estar ali, contidos naquelas quatro paredes. Afinal, eles legitimavam e
também limitavam a opressão do dia a dia; e a pessoa que os devia pagar, de certo modo,
morava ali.

56
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Naquela espécie de casa, pode-se dizer até que o trabalhador reencontrava, em seu
inconsciente, as figuras da mãe ou do pai, tanto em forma de proteção quanto de disci-
plina, como nos mostram algumas pesquisas5. Proteção, quando a fábrica o ajustava à
moral social, que lhe exigia trabalho, e deste modo o salvava da crítica social ou mesmo
das rondas da polícia; disciplina, ao ajustá-lo à linha de montagem, girando manivelas
ou apertando parafusos, em troca de um salário que lhe permitia, às vezes, até se esquecer
do que fazia6.
Também naquela espécie de casa, entre um parafuso e outro, o trabalhador podia ir
arquitetando os seus pequenos planos, como a pescaria do fim de semana ou – com um
pouco de sorte - as férias com a família, talvez à beira do mar. Na hora do almoço, podia
também contar anedotas, brincar com os amigos, trocar confidências ou falar de futebol,
vivendo então os seus minutos de gente.
Às vezes, podia até inventar certas manhas para facilitar o trabalho, pois nem
mesmo o modelo taylorista de produção tinha sido capaz de eliminar completamente os
seus saberes tácitos7. Nos momentos de mais rebeldia, podia também praticar outras for-
mas de resistência, rabiscando o banheiro contra o patrão, fazendo corpo mole quando a
ocasião permitia ou cochichando notícias sobre a próxima greve.
Por seu turno, e à semelhança do lar e da fábrica, o sindicato se erguia sobre ali-
cerces duros, de bom concreto, e também continha, moldava e protegia o operário entre
as suas quatro paredes. E se o lar tinha o seu deus, nas pessoas dos mortos, e a fábrica
também o tinha, na figura de seu fundador, no sindicato este deus era o grande líder, capaz
de dizer às coisas que todos queriam ouvir, e de propor as palavras de ordem, as táticas da
greve, os termos da negociação.
O próprio Direito do Trabalho, de certa maneira, foi erguido como a fábrica, o lar e
o sindicato, apresentando as mesmas virtudes de certeza, proteção, controle e durabilida-
de. Os seus princípios eram as suas paredes. E se as portas e janelas permitiam, às vezes,
a entrada de algum elemento estranho era preciso que ele antes batesse à porta, pedindo
licença, e se mostrasse compatível com o interior da casa - como dispunha, expressamen-
te, o art. 8º da CLT.
Também como a fábrica, o lar e o sindicato, as normas de proteção fortaleciam ain-
da mais os laços entre os operários, não só porque eram, com frequência, a prova viva de
suas lutas, como também porque lhes prometiam um destino comum.
Além disso, se o Direito do Trabalho dividia, parcelava, por outro lado também
recompunha, mimetizando nesses dois movimentos a linha de montagem e as hierarquias

5
Como as de LIMA, Maria Elizabeth Antunes. Os equívocos da excelência. Petrópolis: Vozes, 1996
6
Veja-se, sobre este último aspecto, o testemunho de WEIL, Simone. A condição operária e outros estudos
sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
7
A propósito, consulte-se, por exemplo, DOS SANTOS, Geraldo Alves dos. A pedagogia da ferramenta:
estratégias de produção e formalização de saberes tácitos criados pelos ferramenteiros de uma indústria
metalúrgica (dissertação de mestrado). Belo Horizonte: UFMG, 2004.

57
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

sindicais. O seu padrão era o contrato sem prazo, quase sempre duradouro, previsível,
sem surpresas legislativas no caminho – exceto as que o fortaleciam e ampliavam.
Sempre como a fábrica e o sindicato, o Direito perseguia uma linha reta, coerente.
E os seus princípios - assim como os alicerces de uma casa - também serviam para isso.
Mesmo a sua vocação de avançar sem cessar, redistribuindo parte das riquezas - também
crescentes - do capital tinha um componente de estabilidade, já que os avanços se davam,
naturalmente, sempre na mesma direção. (LA CUEVA, 1956, passim).
Na verdade, o próprio mundo era assim, bem mais simples, planejado e seguro, e,
por isso, ainda otimista e confiante – apesar de suas profundas desigualdades, de seus
desastres ecológicos e de duas guerras mundiais. Daí os grandes sonhos e projetos, e,
também por esta razão, uma maior tolerância e respeito em relação às regras, disciplinas
e hierarquias, teoricamente destinadas a realizá-los.
Num mundo como esse, a memória coletiva tinha especial importância. No interior
do sindicato, assim como no lar ou na empresa, podiam-se encontrar mais facilmente
recordações antigas - como falas, fotos, escritos ou algum outro objeto - que as pessoas
ainda reverenciavam. Afinal, para realizar o futuro, era preciso valorizar o passado, re-
construído sob o olhar do presente.
Por tudo isso - e não obstante os desejos de autonomia, tão caros à modernidade– a
liberdade convivia de forma menos conflitiva com o seu contrário, exceto, basicamente,
entre os jovens e algumas outras minorias. Aliás, até na utopia revolucionária seriam exa-
tamente os trabalhadores subordinados que fariam a revolução... Não à toa, os sindicatos
ignoravam os autônomos, mesmo quando pobres e sofridos.
E hoje?
3. O panorama de hoje e as possibilidades do amanhã
Hoje, tanto o nosso lar, como a fábrica e o sindicato parecem deslizar sobre os seus
pés. Os alicerces balançam; as portas e as janelas, arrombadas, deixam entrar e sair os
mais diferentes personagens; e a supressão literal do requisito da compatibilidade, na
nova redação do art. 8º da CLT, é apenas a tradução, no campo do Direito, dessa nova
tendência, que também o atinge.8
Ao invés do uniforme, do previsível, do seguro, do estável, do contido e do regu-
lado, vivemos tempos líquidos, (BAUMAN, 2014, passim), ou a emersão do múltiplo,
(VÁZQUEZ, 2011, passim). Tudo é fluido e variado – inclusive as verdades. Não à toa,
em 2018, “pós verdade” foi eleita a “palavra do ano” pelos professores de Cambridge.

8
A redação anterior dizia do parágrafo único do art. 8º dizia: “O direito comum será fonte subsidiária do
direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste”. A nova
redação do parágrafo 1º do mesmo artigo diz: “O direito comum será fonte subsidiária do direito do traba-
lho”.  Mas isso não significa, necessariamente, que devamos interpreta-lo como quis o legislador – já que
sempre se pode entender que lei apenas suprimiu uma redundância e, de todo modo, a aplicação de um
direito incompatível violaria os princípios do Direito do Trabalho.

58
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Nesse contexto, as próprias regras de proteção parecem desprotegidas; e nem mes-


mo os princípios lhes servem de anteparo, já que eles próprios passam a ser lidos ao con-
trário. Com menos sonhos, projetos e utopias; e resistentes – também por isso -a tudo o
que é organização, disciplina e hierarquia, os trabalhadores já não encontram no sindicato
uma forma de se realizar como gente e como grupo, ou mesmo de suprir suas carências –
até afetivas –, compensando as dores do trabalho.
Naturalmente, há muitos outros fatores que conspiram contra a união coletiva. Ape-
nas como exemplos, podemos citar o enfraquecimento do Estado, o fortalecimento cor-
respondente das grandes corporações, a ideologia, as terceirizações, o modelo de fábrica
em rede, o uberismo, os contratos curtos, diferenciados e fragmentados, e, em geral, tudo
o que compõe a chamada “reestruturação produtiva”. Até a arquitetura tradicional do sin-
dicato parece desafiar a mobilidade (muito maior) dos produtos, das ideias, das emoções
e dos próprios projetos pessoais.
Para muitos trabalhadores, a CLT já não parece símbolo de sua resistência, enquan-
to classe, mas – ao contrário – uma ameaça ao seu emprego. Mesmo quando não é assim,
as novas regras - menos coerentes, mais heterogêneas e fragmentárias - já não os enredam
como antes, servindo, às vezes, até para dividi-los – como, por exemplo, ao fomentar a
prática de prêmios.
Como se não bastasse, a perda crescente da memória coletiva- potencializada pela
“hipertrofia do presente”9, mas também pela tendência ao recorte, ao fragmento - dificul-
ta ainda mais a utilização do passado para a construção do futuro. E os novos modos de
produzir potencializam, cada vez mais, esse processo, jogando com a tendência de au-
toafirmação do sujeito para transforma-lo numa espécie de clone do patrão10, sempre em
busca de performances11 e em regime de competição.
Acima, falamos de alicerces que balançam. Mas a realidade parece ainda mais drás-
tica. Se tudo entra e tudo sai, e se tudo se transforma muito mais, e em velocidade tão
surpreendente, é porque o próprio modelo arquitetônico da casa está sendo engolido pelo
seu oposto.
Das construções perenes e tranquilas – como eram o nosso lar, as sedes das empre-
sas, os prédios dos sindicatos e a nossa CLT - passamos a priorizar o modelo da rua, com
as suas esquinas, os seus cortes, as suas surpresas, as suas não razões, a sua inconstância,
o seu movimento convulsivo e quase caótico.

9
NORONHA, Elaine Nassif. Conciliação judicial e indisponibilidade de direitos: paradoxos da «justiça
menor» no processo civil e trabalhista. São Paulo: LTr, 2005, passim.
10
TEODORO, Maria Cecilia Máximo. A síndrome de patrão. Disponível em: https://www.migalhas.com.
br/depeso/258217/a-sindrome-de-patrao. Acesso em 13/05/20.
11
Sobre a obsessão por performances, vide VIANA, Márcio Túlio; VIANA, Anamaria Fernandes. O juiz,
o operário e o bailarino: relações entre o palco, a fábrica e a sala de audiências. Belo Horizonte: RTM, 2016,
p. 27 e segs.

59
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

3.1. A rua como novo personagem


Ao longo dos tempos, a rua tem sido palco de encontros e desencontros, lamentos
e alegrias, amores e conflitos. Por isso mesmo, como se dizia, é o lugar do imprevisto, do
inesperado, da surpresa.
Era nas ruas, por exemplo, que as mulheres inglesas – entre os séculos XVI e XIX,
sobretudo – marchavam para preservar o preço do pão, às vezes comandando os seus
maridos; era também pelas ruas que algumas delas, em outros dias, desfilavam com uma
corda no pescoço, puxadas pelos mesmos maridos, que as vendiam na feira (THOMP-
SON, 2017, p.44-142).
Foi ainda nas ruas que as comunas de Paris construíram suas barricadas; que os es-
tudantes e operários, no fim dos anos 60, tentaram exigir um novo modelo de mundo; que
multidões, no Brasil, realizaram as primeiras greves gerais, protestaram contra a ditadura
e defenderam as “diretas-já”.
Mas o que há de novo na rua - desde o fim da II Grande Guerra – é que ela vai sendo
usada, cada vez mais, não apenas como lugar para o protesto ou o festejo, o abraço ou o
adeus, a paz ou a rebeldia, mas como espaço original de criação, exposição e participação
coletiva; uma espécie de estúdio aberto, que pode também ter algo de museu, teatro ou
palco, mas cujos assistentes se tornam às vezes protagonistas.
Autores como Hanru12 lembram que as primeiras experiências nesse sentido – as
dos chamados “situacionistas” – usaram a rua para contestar a sociedade de consumo, ou
do “espetáculo13; ela se tornou assim um campo de ação ideal para a transgressão, a pro-
vocação, o impacto: “os artistas encorajavam o público a compartilhar do seu entusiasmo
em fazer alguma coisa de inusitada, de aventureira e arriscada, e talvez também emanci-
patória” (HANRU, 2018, p.29).
Irromperam então as mais variadas práticas. No fim dos anos 60, em sua perfor-
mance, o artista Vito Acconci passou um mês inteiro seguindo  passantes ao acaso; dez
anos depois, Hsieh Tehcing vagou por  um ano pelas esquinas, recusando-se a  entrar em
qualquer lugar fechado; mais ou menos na mesma época,  David Hammons estendia um
tapete numa avenida nova-iorquina para vender flocos de neve. Outros artistas ou mili-
tantes políticos se puseram a bloquear o trânsito, pintar paredes, distribuir abraços, cantar
ou dançar, declamar poemas, seduzir ou provocar os transeuntes.
Assim, a rua passava a ser vista como um espaço privilegiado não só para represen-
tar o mundo em que vivemos, mas para denunciar os seus paradoxos, os seus absurdos, e
fantasiar utopias – mesmo sem teorizações por detrás:
“As forças criativas – artistas, arquitetos, ativistas, etc – agiam como guerri-
lheiros urbanos e construíam barricadas visíveis e invisíveis, permanentes ou

12
HANRU, Hou. La stradadove si creail mondo. In: HANRU, Hou (coord.) La stradadove si creail mondo.
Roma: Quodlibet – MaXXI, 2018, p. 12-40
13
Para citar DEBORD,Guy. La Sociétéduspectacle. Paris: Gallimard, 1993, passim.

60
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

efêmeras, para resistir e destruir as estruturas materiais impostas pelo mundo


da política e do poder do moderno planejamento urbano (...) Procuram colocar
em prova o grau de tolerância do público “médio” e suscitar reflexões e dis-
cussões sobre o que deveria ser uma boa vida cívica”.(HANRU, 2018, p.30).

Essa revolução singular continua, e parece estar crescendo. Em inúmeros senti-


dos – até em nossa busca crescente pelos parques, pelas praças, numa tendência não de
todo inversa à dos shoppings centers14 – a rua tende a assumir um protagonismo cada vez
maior; e também em vários aspectos se exibe como metáfora da pós modernidade.
Por fim, se desde sempre ela traz elementos tanto da cidade formal (carros, prédios,
lojas, bancos) como da cidade informal (camelôs, mendigos, cortiços, passantes em ge-
ral), consegue fundir, em alguma medida, os dois espaços – e não apenas nos carnavais. É
o que se vê, por exemplo, na Praça (ou “Praia”) da Estação ou no Viaduto Santa Tereza,
ambos em Belo Horizonte, onde pessoas do morro convivem com segmentos da classe
média (sobretudo jovens e intelectuais), ainda que essa mistura esteja apenas começando.
Na verdade, para um universo crescente de pessoas, a casa pode se tornar – parado-
xalmente - a própria rua.  É ali que elas dormem, conversam, brincam com seus cachor-
ros e guardam suas pequenas coisas. Como no filme “Cinema Paradiso”, de Giuseppe
Tornatore, pode ser que elejam até uma praça inteira como sua...  No entanto, nessa casa
diferente, os moradores costumam ser confundidos com o lixo das ruas. 
3.2. O novo personagem da rua
Como qualquer outro personagem das ruas, o coronavírus chega sem aviso; é tam-
bém invisível, imprevisível e - se não nos protegemos bem – pode nos ser fatal.
Ele atinge especialmente quem está na rua – seja porque precisa lutar dia após dia
pela sobrevivência, sem qualquer fundo de reserva, seja porque o seu casebre não é tão
diferente da rua, ou seja, enfim, porque é ali mesmo que ele dorme, sob as marquises das
lojas ou debaixo dos viadutos.
Embora, em si mesmo, ele não apresente traços positivos, é possível imaginar que
o coronavirus vá produzir – ou já esteja produzindo – efeitos interessantes.
Segundo leituras otimistas, por exemplo, ele seria capaz de pôr em crise o modelo
neoliberal15, reforçar o Estado Nação16, induzir novas políticas públicas17 ou criar novas

14
Nas pessoas que passeiam pelos corredores dos shoppings talvez se possa ver também a necessidade
de ir ao encontro da verdadeira rua, embora nesse caso pervertida ou contaminada tanto pela obsessão do
consumo como pela busca de segurança, diante dos medos que a cidade de hoje transmite.
15
HAN, Byung-Chul. O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã. El Pais. Madrid, 20/03/20, Dispo-
nível em: https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-
-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html. Acesso em 12/05/20
16
IGNATIEFF, Michael. La seguridade del Estado frente a una menaza global. In: El País. El futuro des-
pués del coronavirus. Disponível em: https://elpais.com/especiales/2020/coronavirus-covid-19/prediccio-
nes. Acesso em 12/05/20. O Autor também alerta para os riscos dessa tendência.
17
Idem.

61
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

perspectivas para o urbanismo18. No campo subjetivo, já estaria nos ensinando a sermos


mais solidários, a consumir de forma mais responsável,19 a mudar para melhor a nossa
relação com a Natureza, a potencializar o nosso espírito criativo, com formas de protesto
inovadoras20 e até a nos vestirmos de forma mais simples e confortável21.
Em sentido inverso, no entanto, há os que apostam que a ameaça de novas pande-
mias irá permitir que o Estado Nação, seguindo o modelo chinês, produza mais vigilância
sobre a cidade, as ruas e as pessoas, exacerbando o seu biopoder ( FOUCAULT, 2002,
passim); e, no campo do Direito do Trabalho, sirva de justificativa para que se intensifique
o processo de destruição que há várias décadas o golpeia.
É possível, também, que o controle aumente não só em termos sanitários, mas em
forma de higienização social, de eugenia. Estará então aberta a caça aos imigrantes22, aos
sindicatos mais agressivos e aos militantes de esquerda em geral – riscos ainda maiores
em governos como o nosso, marcados pela censura, pelo autoritarismo, pela discrimina-
ção e pela apologia da violência.
Tentando reunir algumas peças desse jogo de xadrez, parece razoável supor que a
nova crise, sucessiva ao vírus, realmente sirva de pretexto para que a relação de forças
entre capital e trabalho se desequilibre ainda mais. Aliás, com a perspectiva de um futuro
ameaçador, a crise pode começar a ser vista como perene; (SANTOS, 2010, p.45 e segs)
e nesse caso servirá de forma ainda melhor para acentuar as diferenças entre as classes
sociais.
Não custa observar que até a razão puramente econômica exige uma guinada de 180
graus nos rumos do sistema capitalista. Um estudo publicado na Revista Science mostra,
por exemplo, que “o custo para preservar o ambiente no Planeta seria de 22 bilhões de
dólares, um valor considerado elevado, mas ainda menor do que os 2,6 trilhões de dólares que
já foram perdidos no combate à Covid-19 23”.

18
SENNET, Richard. Hacia ciudades de 15 minutos. El País. El futuro después del coronavirus. Disponí-
vel em: https://elpais.com/especiales/2020/coronavirus-covid-19/predicciones. Acesso em 12/05/20.
19
CAPARRÓS, Martin. El País. Madrid, 20/03/20, Disponible en: https://brasil.elpais.com/ideas/
2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html. Ac-
ceso en: 12/05/20.
20
Della Porta, Donatella. Protestas innovadoras. El País. El futuro después del coronavirus. Disponível
em: https://elpais.com/especiales/2020/coronavirus-covid-19/predicciones. Acesso em 12/05/20.
21
VALERIE, Steele. La victoria de laropa informal. El País. El futuro después del coronavirus. Disponível
em: https://elpais.com/especiales/2020/coronavirus-covid-19/predicciones. Acesso em 12/05/20.
22
A propósito, cf. NAIM, Moisés. Conflictos por lasmigraciones; BENHABIB, Seyla. El control será más
estricto.In: El País. El futuro después del coronavirus. Disponíveis em: https://elpais.com/especiales/2020/
coronavirus-covid-19/predicciones. Acesso em 12/05/20.
23
Estudo mostra que investir na redução do desmatamento e do tráfico de animais previne pandemias. In:
BizNews/Br. Disponível em:https://www.biznews.com.br/estudo-mostra-que-investir-na-reducao-do-des-
matamento-e-do-trafico-de-animais-previne-pandemias/ Acesso em 29/07/20.

62
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Se a hipótese mais pessimista se confirmar, o sistema poderá estar aprofundando


as suas contradições internas, até mesmo em razão da plasticidade24 que lhe é inerente. E
não se sabe o que virá depois. Na verdade, as próprias epidemias e tragédias climáticas –
talvez não imaginadas por Marx, pelo menos nessa dimensão - poderão torná-lo inviável
e forçar a sua superação.
Nessa perspectiva mais interessante, talvez os movimentos sociais consigam re-
cuperar suas forças, e possa acontecer o que Ricardo Antunes chama de “nova rebelião
social” - repetindo as que vimos nos anos 2012/2013, em várias partes do mundo (AN-
TUNES, 2010, p.181).
Também nesse sentido, não custa notar que um grande contingente de trabalhadores
simples, subvalorizados, e que se viam quase à margem do respeito social, têm conquis-
tado algum reconhecimento, aqui ou ali, por parte de pessoas que sequer os enxergavam.
É o caso dos entregadores de encomendas, dos lixeiros, das “diaristas” de casa de família
e de um vasto contingente de pequenos autônomos.25
Naturalmente, isso não tem impedido que sejam explorados por seus empregado-
res – e até mais do que antes. Pesquisas recentes mostram, por exemplo, que o salário
dos motoboys que entregam mercadorias está diminuindo, enquanto as horas de trabalho
aumentam. 26 A explicação estaria simplesmente na lei da oferta e procura.
3.3. Rua e Direito
Assim como as pessoas da rua, as normas de proteção – antes, elas próprias prote-
gidas pelas quatro paredes da casa – transitam sem rumo em várias direções, encontran-
do-se ou defrontando-se nas esquinas, embora perdendo força a cada passo. As próprias
solidariedades, quando existem, tendem a ser breves, casuais, sem compromissos – à
semelhança das que vemos na rua quando um velho tropeça e cai, ou um mendigo nos
estende as mãos.
Ora, se é assim - ou, pelo menos, se é esta a teotondência - temos basicamente três
opções à nossa frente, em relação ao Direito do Trabalho.
A primeira é simplesmente a de resistir, tentando reforçar os alicerces das constru-
ções antigas, com os métodos antigos – como se fosse possível convencer o trabalhador
a aderir ao velho sindicato, revivendo razões e emoções, ou mostrar ao legislador os seus
equívocos, supondo-se que as suas ações recentes fossem, realmente, simples equívocos.

24
LATOUR, Bruno. La plasticidad del orden mundial. El País. El futuro después del coronavirus. Disponí-
vel em: https://elpais.com/especiales/2020/coronavirus-covid-19/predicciones. Acesso em 12/05/20.
25
A propósito, cf. Hacia una politica del bien común. SANDEL, Michael. El País. El futuro después del
coronavirus. Disponível em: https://elpais.com/especiales/2020/coronavirus-covid-19/predicciones. Aces-
so em 12/05/20.
26
DUVIVIER, Gregório. Greg News Delivery, edição de 17/04/20. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=v3B9w6wWNQA. Acesso em 20/07/20.

63
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

A segunda é a de aderir à onda, seja sob o argumento simplista de que o mundo mu-
dou, seja por desalento, seja porque na vida tudo pode acontecer e o ruim – quem sabe?
- Talvez não se revele tão ruim quanto pareça. Nesse caso, jogaríamos com a fé, tentando
reviver – fantasiosamente - o otimismo dos chamados “anos gloriosos”27 do capitalismo.
Mas a melhor solução nos parece a terceira – que envolve uma espécie de mistura,
sem que essa mistura signifique propriamente um meio termo. A propósito, aliás, não cus-
ta notar que também elas, as misturas, são um elemento presente na pós-modernidade,
como se vê nas escolas, nos cardápios, nas modas, nos modos e especialmente nas artes
– que nos oferecem a pintura com foto, o samba com rock, a salsa com funk ou mesmo a
baratinha dos anos 50 ou 60 equipada com motor turbinado.
Trocando em miúdos, essa terceira solução implicaria, em síntese, aproveitar os
elementos positivos dos novos tempos, já que eles também existem, e não são poucos; e
tentar banhá-los com a essência que o passado nos legou.
Essa essência é a proteção aos oprimidos pelo sistema. Apesar de todas as trans-
formações, e mesmo em tempos de liquidez ou de “pós verdade”, ela não pode jamais se
perder, pois expressa a nossa própria humanidade. Negá-la seria o mesmo que afirmar o
desejo de nos tornarmos lobos na planície, ou talvez numa “Terra plana”28.
Veja-se que até os novos movimentos sociais – ou muitos deles – têm procurado
essa espécie de terceira via, compondo-se com os novos tempos, ou mais exatamente
com os elementos interessantes que eles nos trazem. O melhor exemplo são as ocupações.
Ao invés de sonhar primeiro para fazer depois, os novos militantes, ou ocupantes, dei-
xam-se afetar pelo presente, com todas as suas inconstâncias, e a partir daí vão realizando
as suas práticas, em busca de uma terra ou de um lar.
É como se, na falta de um grande futuro confiável, tentassem antecipá-lo - em dose
menor, e de forma casuística - para o presente. E sempre aprendendo com a prática, no dia
a dia, recriando táticas e estratégias, embora sem perder aquela essência.
Outros exemplos são a busca por mais democracia direta, por relações mais igua-
litárias, com a participação em inúmeros níveis – dos programas de TV ao orçamento
participativo. Em todas essas dimensões, os movimentos sociais se nutrem de elementos
pós-modernos; e tentam resgatar, em suas práticas, a etimologia da palavra “companhei-
ro” – do Latim cumpanis, que expressava o costume de “repartir o pão”. (BRANDY,
1986, p. 36).
Mas é preciso pensar um pouco, também, nas relações entre a rua e a epidemia. Ou
mais propriamente entre a rua e as epidemias, além de outros possíveis cataclismos que
poderão nos atingir em futuro próximo29.

27
Para usar a expressão de HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
28
Teoria esposada por muitos apoiadores da atual direita radical brasileira.
29
MORENO, Jose Maria M. Habrá más epidemias y serán más peligrosas. In: El País. El futuro después
del coronavirus. Disponível em: https://elpais.com/especiales/2020/coronavirus-covid-19/predicciones.
Acesso em 12/05/20.

64
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Conclusões
Com a exaustão do modelo casa, e a provável chegada de novas calamidades, as
desigualdades irão provavelmente aumentar. No modelo rua, os riscos tendem a ser cada
vez maiores, assim como as lutas pela sobrevivência – não só de cada um, mas do próprio
Direito do Trabalho.
Paradoxalmente, se há alguma esperança, é provável que ela também esteja nas
ruas. Mas para isso será necessária à força de pressão dos mais variados segmentos
sociais, ainda que de forma fluida, imprevisível, pragmática, como convém aos novos
tempos.
Isso significa, também, que o Direito do Trabalho não será construído apenas - ou
tanto - por grupos de pessoas homogêneas, ligadas por condições semelhantes de traba-
lho. Será produto de gentes dos mais diferentes aspectos, profissões, culturas, mas todas
elas animadas pelo fogo – o mesmo fogo que animava os corpos e corações nas casas da
cidade antiga.
Será então a reunião desses fragmentos - mais do que a soma de vozes iguais, como
as do sindicato e as de suas greves - a principal força popular que irá exigir e poderá obter
melhores condições de vida e dignidade.
Dito de outro modo, a construção que se espera possível para o Direito do Trabalho
não será semelhante à que lhe deu origem – ou à que está presente em nossos projetos de
casa. Será feita a cada dia, palmo a palmo, sem pausa, sem fôlego, sem descanso, como
nas históricas barricadas do passado, e também sem desalento.
Provavelmente, assim como acontece com as pessoas da rua, esse processo poderá
encontrar, em cada esquina, em cada dia, tanto uma surpresa feliz quanto uma terrível
ameaça. E terá talvez idas e vindas, e confrontos constantes. E o Direito do Trabalho
que surgir daí só se sustentará se conseguir gritar escandalosamente as suas vontades e
verdades, e conseguir impor a sua presença, como também vemos acontecer tantas vezes
nas ruas.
Em certo sentido, o símbolo – ou a metáfora humana – desse novo Direito do Tra-
balho já não será tanto ou apenas o operário de fábrica, nem o empregado de escritório,
que contam com alguma garantia, mesmo que às vezes pequena, de que no fim do mês
poderão pagar as suas contas; será antes o ambulante, o malabarista, o comedor de fogo,
o vendedor de droga, o pequeno contrabandista, o homem placa30, o gritador,31 a mulher
que vende doces, o menino que nos oferece cigarros e – de modo especial – o entregador
de encomendas, o motoboy, que desliza por nossas vidas como faz entre os carros no
trânsito. Pois eles realmente lutam, a cada dia, ou a cada hora, para comer no dia ou na
hora seguinte.

30
É o título que com frequência se dá, em algumas capitais, aos que oferecem aos transeuntes a possibili-
dade de vender suas peças de ouro.
31
É o nome que se costuma dar aos que vendem celulares nas ruas de cidades como Belo Horizonte.

65
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Entre eles estará também outros personagens que ganham destaque na pandemia;
Um deles é o teletrabalhador. Mesmo estando em casa, ele trabalha num espaço - a
Internet – com elementos próprios da rua. E o seu universo– já expandido – tende a cres-
cer cada vez mais, pois a fase da pandemia ensinou às empresas, definitivamente, que é
mais barato e produtivo explorar o trabalhador em seu próprio ambiente. Afinal, ao con-
trário dos tempos pré-capitalistas, já não é difícil controlar à distância; além dos próprios
meios tecnológicos, a empresa pode utilizar, com muito mais eficiência, a própria alma
do trabalhador.
Outro personagem importante é o entregador de pizza, ou de remédio, ou de qual-
quer outra encomenda entre os milhares de outros objetos que os aplicativos fazem chegar
às nossas casas. Muitos chegam de moto, outros tantos de bicicleta, talvez alguns estejam
a pé, mas todos têm em comum a instabilidade, o baixo salário, os riscos à saúde e à vida.
Construído ele próprio precariamente, mas de forma muito mais plural, o Direito
do Trabalho terá de ser também assim, ou pelo menos em grande parte assim. Um Direito
flexível – no sentido de cambiante – mas mantendo o mesmo rigor em sua luta histórica
contra os excessos do capital. Um Direito – qualquer que seja o seu nome - capaz de
abranger não apenas trabalhadores subordinados, como hoje acontece, mas todos os que
– vivendo do trabalho - são explorados pelo sistema econômico em que vivemos, ainda
que de forma menos direta e visível. Um Direito ainda capitalista, mas com potencial para
extravasar, no futuro, os seus próprios limites.
Para o sindicato, desde logo, os novos personagens também exigem novas posturas.
Cada vez mais, ele terá - dentre tantas outras medidas – de ver-se mais como coalizão do
que como organização sólida; de cobrar menos compromissos e aceitar mais adesões efê-
meras; e de reconstruir suas práticas em termos líquidos e múltiplos, inclusive no sentido
de se abrir para fora de si mesmo.
Antes habituado à greve – com o seu planejamento, as suas táticas, os seus líderes,
e os seus militantes tão iguais, como soldados de um regimento – ele também terá de se
habituar às manifestações plurais, rebeldes, multicoloridas, menos controláveis e previ-
síveis. Ao ganhar as ruas – nos sentidos real e metafórico - suas pautas serão talvez mais
efêmeras, circunstanciais, mas é possível que faça germinar aspirações maiores, radicais,
por um novo modelo de mundo e de vida.
Por tudo isso, seria útil, para ele, receber lições daqueles novos movimentos sociais,
que vêm trocando o vertical pelo horizontal, construindo suas metas a partir das próprias
práticas e deste modo inserindo - de forma quase oposta à dos velhos tempos - pequenas
mas profundas contradições no sistema. Mas deverá também juntar-se a eles, como co-
meça a ensaiar, mesmo porque suas razões e objetivos, em última análise, são comuns.
E seria útil, ainda, utilizar de forma mais eficaz as redes sociais e outros elementos
da tecnologia; tentar reconstruir, em outras bases, algo das solidariedades perdidas, talvez
mesclando o interesse coletivo com o individual; e se habituar, humildemente, a um exer-

66
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

cício constante de autocrítica, para mudar sempre, na mesma velocidade com que mudam
os produtos, as ideias e as práticas do nosso tempo.
É importante notar que – para além das ocupações - o indivíduo do nosso tempo vem
encontrando ou inventando nas próprias ruas elementos de resistência, como acontece
ainda uma vez no campo das artes, com os grafites, as pichações, as práticas de flashmob,
as danças no metrô, os teatros nas praças, as poesias do slam, os concertos nos parques,
os malabaristas de esquina ou as instalações que param, às vezes, o próprio trânsito, para
anunciar novas verdades, mesmo fluidas. E uma participação mais intensa desses sujeitos
na vida do Direito significará, naturalmente, um Direito um pouco menos escravo das
classes dominantes e um pouco mais comprometido com a justiça social.
Pergunta-nos um professor e magistrado32se essa remessa do homem para a rua não
representaria um reencontro com a sociedade; um reconhecimento da identidade comum.
Nessa hipótese, o sujeito rua seria alguém que se vê no outro, também sujeito rua; e mes-
mo fora da dimensão do trabalho um e outro se sentiriam de novo unidos, como talvez
tenha sido em outros tempos.
De fato, é o próprio sujeito que parece estar se reinventando, e não necessariamente
de forma pior que no passado. Como sujeito rua, talvez esteja mais vulnerável, oscilante,
correndo mais riscos; e têm gerado reações opostas, algumas violentas, como a dos su-
jeitos arma33; mas o importante é que diante dele será cada vez mais difícil discriminar,
assediar ou ignorar impunemente as distorções de nossa sociedade ou do próprio legisla-
dor34.
Até o trabalhador formal, que tem sido às vezes descrito como mais passivo –
vítima de uma “captura de subjetividade” 35 - pode estar sendo inoculado também com
um elemento ativo, que hoje serve ao sistema, mas amanhã talvez o dessirva. Afinal, se
o capital tenta fazer com que ele reaja como capitalista – performático, obcecado com a
concorrência, disposto a tudo para vencer – até que ponto conseguirá controla-lo no futu-
ro, se ele voltar a se perceber trabalhador?
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quence=1&isAllowed=y.Acesso em 12/05/20.

32
Carlos Augusto Junqueira Henrique, do TRT da 3ª Região e professor da Faculdade de Direito Milton
Campos, em Belo Horizonte.
33
Embora em contexto um tanto diferente, a palavra é usada por MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenome-
nologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p.29. E faz pensar-nos que hoje governam o País.
34
Sobre o jogo sujo que deu origem à recente reforma trabalhista no Brasil veja-se: MAIOR, Jorge Luiz
Souto. A quem interessa esta reforma trabalhista? Disponível em: https://www.jorgesoutomaior.com/blo-
g/a-quem-interessa-essa-reforma-trabalhista Acesso em 12/05/18
35
A propósito, veja-se ALVES, Giovanni. São Paulo: Boitempo, 2011, passim.

67
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

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70
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

PELA CONTRAPOLÍTICA DE AFETOS DA JUSTIÇA DO TRABALHO

Flávia Souza Máximo Pereira1

Como se fosse privilégio


assumir o leme
e empunhar palavra
e se é a minha contra a sua
não tem problema
carrego a língua calejada
de enfrentar marés
e na pele todas as marcas
da luta estampada
enquanto sua opressão
continua velada

Luiza Romão, 2017

Não existe teoria jurídica nua2. Nenhuma teoria do direito pode ser etérea, pois
não é possível uma teorização jurídica justa feita a priori. Partimos então do pressuposto
epistemológico da produção de um direito “sem vestes, exposto às intempéries, na pers-
pectiva daquilo que o produz, o afeta e o mantém”3.
Na produção de um conhecimento jurídico situado, o direito é localizado em re-
lações de poder em termos de geopolítica, que consiste no reconhecimento de uma po-
sição econômica, social, epistêmica e ontológica. Nas espacialidades da geopolítica de
conhecimento, fronteiras de poder são formadas, negociadas e transgredidas4. Como nos

1
Professora Adjunta de Direito Processual do Trabalho e Direito Previdenciário da Universidade Federal
de Ouro Preto Doutora em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais em cotutela com a Università
degli Studi di Roma - Tor Vergata. Membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação
da UFOP. Coordenadora do Grupo Ressaber - Estudos em Saberes Decoloniais na UFOP. Pesquisadora do
Grupo Trabalho e Resistências na UFMG e da rede democratizingwork.org.
2
FRANZONI, Júlia Ávila. Geografia jurídica tropicalista: a crítica do materialismo jurídico-espacial. Rev.
Direito Práx., Rio de Janeiro, V.10, N.4, 2019, p. 2923-2967.
3
Idem, p. 2926.
4
WALSH, Catherine. Interculturalidade e decolonialidade do poder: um pensamento e posicionamento
“outro” a partir da diferença colonial. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Pelotas (RFDP).
v. 5, n. 1, 2019.

71
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

explica Sumi Madhok, uma produção de conhecimento jurídico situado deve considerar
“de onde você está olhando e quem você está vendo5”.
Além daquilo que estamos vendo, existe um fator intangível na nossa produção de
conhecimento jurídico: os nossos afetos6. O projeto moderno/colonial7 não trata apenas
do controle da política, do gênero, da raça, da sexualidade e do trabalho, mas também
do controle sobre a nossa percepção8. Corpos e subjetividades estão engajados em certas
formas padronizadas de sentir.
Nossos afetos por um sujeito ou por um coletivo são determinados por relações
hegemônicas, que atribuem hierarquias de valor e de significado9. Afeto não é necessaria-
mente algo positivo ou negativo: é o que nos faz sentir sentimentos. “Afeto é a maneira
como o corpo se prepara para a ação, inserindo uma dimensão quantitativa de intensidade
à qualidade de uma experiência10”.
O afeto é “uma expressão de intensidade, que não é mediada pela linguagem”11.
Ocupa o lugar do que não é dito, mas é sentido12 e gera efeitos em nossos comportamen-
tos. O poder do afeto reside no fato de ser abstrato, assimétrico e transmissível13. Trata-se
de um fazer sentir coletivo, situacional, não verbalizado e não consciente14.
Percepções afetivas não devem ser concebidas como resultado de estados mentais
individuais, mas como consequência de uma dinâmica relacional entre vários atores que
determinam configurações sociomateriais15. O sentir coletivo é canalizado de maneira

5
MADHOK, Sumi. A critical reflexive politics of location, ‘feminist debt’ and thinking from the Global
South. European Journal of Women’s Studies, Vol. 27(4) 394–412, 2020, p. 396, tradução nossa.
6
Afeto, sentimento e emoção são utilizados neste ensaio de forma intercambiável, mas possuem carac-
terísticas diferentes. “Os sentimentos são pessoais e biográficos; as emoções são sociais e os afetos são
pré-pessoais”. SHOUSE, Eric. Feeling, Emotion, Affect. M/C Journal, 2005, s/p, tradução nossa.
7
O projeto moderno/colonial refere-se à colonialidade do poder, que consiste em um padrão histórico que
caracteriza a modernidade, Este padrão de poder impôs, como modo de controle da autoridade coletiva, o
Estado-nação; a instituição da família burguesa predominou no controle do gênero; o paradigma eurocên-
trico foi a forma hegemônica de produção de conhecimento e, por fim, como modo de controle trabalho, o
capitalismo, subsidiado pela divisão racial laboral. QUIJANO, Aníbal. Colonialidad do poder, eurocentris-
mo e América Latina. In LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências
sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
8
VAZQUEZ, Rolando; MIGNOLO, Walter. Decolonial AestheSis: Colonial Wounds/Decolonial Healings.
Social Text-Periscope, 2013.
9
AHMED, Sara. The cultural political of emotions. Edinburgh University Press, Edinburgh, 2014.
10
SHOUSE, Eric. Feeling, Emotion, Affect. M/C Journal, 2005, s/p, tradução nossa.
11
GUTIÉRREZ RODRÍGUEZ, Encarnación. Reading Affect - On the Heterotopian Spaces of Care and
Domestic Work in Private Households. Forum: Qualitative Social Research, Volume 8, N.2, Art. 11, May
2007, p. 03, tradução nossa.
12
Ibidem.
13
SHOUSE, Eric. Feeling, Emotion, Affect. M/C Journal, 2005.
14
Ibidem.
15
MACON, Cecilia. Saber o mentir: la conformación afectiva del poder según Las facultades. Cuadernos
del CILHA, n. 33–2020.

72
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

orquestrada e imperceptível, o que pode manter ou subverter relações de poder16. Tais


recursos afetivos também controlam as desigualdades entre sujeitos, nos envolvendo de
maneira naturalizada e contínua17.
“Afetos se acumulam ao longo do tempo, como uma forma de valor”18. Para Marx,
a mercadoria assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas19, “na qual os
produtos do trabalho se tornam coisas sensíveis-suprassensíveis”20. Sentimentos também
se tornam fetiches, qualidades que parecem residir em objetos, em razão de um apaga-
mento da história de sua produção e circulação21. Afetos são uma forma de capital: não
residem objetivamente na mercadoria, mas são efeitos de sua circulação social, econômi-
ca e emocional. A ordinariedade das coisas, dos corpos, dos espaços é também efeito da
reificação capitalista afetiva22.
Apesar de crucial para a expansão do projeto moderno/colonial, a atmosfera afetiva
neoliberal vem sendo submestimada pelo direito, incluindo o direito do trabalho23. Como
nos relata Lander24, a dificuldade em imaginar e efetivar sistemas de sociabilidade mais
justos deve-se, em grande parte, ao fato de que o neoliberalismo é concebido somente
como uma teoria econômica, ignorando sua atuação como modelo civilizatório. O neoli-
beralismo, conforme o autor, é uma “extraordinária síntese dos pressupostos e dos valores
básicos da sociedade liberal moderna no que diz respeito ao ser humano, à riqueza, à
natureza, à história, ao progresso, ao conhecimento e à boa vida”25 O sistema neoliberal é

16
SHOUSE, Eric. Feeling, Emotion, Affect. M/C Journal, 2005.
17
Idem.
18
AHMED, Sara. The cultural political of emotions. Edinburgh University Press, Edinburgh, 2014. p.
46, tradução nossa.
19
MARX, Karl. O capital. [Livro I]. Crítica da economia política. O processo de produção do capital. São
Paulo, Boitempo, 2013.
20
Idem, p. 122.
21
AHMED, Sara. The cultural political of emotions. Edinburgh University Press, Edinburgh, 2014.
22
Idem.
23
A filosofia e da sociologia do trabalho possuem pesquisas robustas sobre a manipulação da subjetividade
da classe trabalhadora no contexto neoliberal, sob diversos marcos teóricos, a exemplo dos sociólogos bra-
sileiros Ricardo Antunes e Giovanni Alves, com o pioneiro conceito de captura da subjetividade, que vem
sendo pulverizado no contexto da plataformização da relações de trabalhos, sob a ideia de “empreendedor
de si mesmo”; da pesquisa de Dardot e Laval, que concebe o neoliberalismo como uma nova racionalida-
de que mercatililiza todas as esferas da vida; e o sofrimento no trabalho, desenvolvido na psicanálise de
Christophe Dejours. Contudo, mesmo na filosofia e na sociologia do trabalho, a política de afetos assume
uma posição secundária. Ver ALVES, Giovanni; ANTUNES, Ricardo. As mutações no mundo do trabalho
na era da mundialização do capital. Educ. Soc., Campinas, v. 25, n. 87, p. 335-351, maio/ago. 2004; DAR-
DOT, Pierre.; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo:
Editora Boitempo, 2016; DEJOURS, Christophe. Subjetividade, trabalho e ação. Revista Produção, v. 14,
n. 3, p. 027-034, Set./Dez. 2004
24
LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos In LANDER, Edgardo (org.). A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires:
CLACSO, 2005.
25
Idem, p. 08.

73
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

baseado “em complexas interações entre o racional e o emocional, tornando o afeto e sua
ecologia um poder em si mesmo”26.
As relações entre nossos corpos e afetos podem ser apreendidas conjuntamente no
trânsito das transformações neoliberais mediante um regime de produção do medo e da
distribuição desigual da insegurança27. Uma atmosfera afetiva pelo medo se exprime em
gentrificação e em condomínios fechados, mas também em culturas de repulsão, aporo-
fobia, racismo, sexismo28. A primeira reação da dimensão afetiva neoliberal, quando está
em crise diante de insurgências potentes, é produzir mais ansiedade e incerteza. Instaura-
-se uma atmosfera raivosa e irracional de perturbação sobre a insegurança de privilégios
derivados da colonialidade do poder29.
Revolve-se o repositório afetivo de angústias coloniais, com a promessa urgente de
reformas neoliberais – a exemplo da reforma trabalhista (Lei n. 13.467/17) e previdenciá-
ria (Emenda Constitucional n. 103/19) - imbricadas em uma política de comoção quase
tão universalista quanto àquela da colonização, a exemplo do sentimento messiânico, que
se apresenta em prol do progresso, da segurança e da democracia. A flexibilização de
direitos sociais torna-se condição intransponível para o avanço do empreendedorismo, do
crescimento econômico e da geração de empregos30.
Para Macon31 e Stoler32, há uma relação entre a ativação da atmosfera afetiva de an-
siedade neoliberal e a insurgência coletiva capaz de gerar um dano na ordem estabelecida,
em uma contrapolítica de afetos. “O medo busca a ‘preservação de um nós’ em antecipa-
ção ao dano”33 “A instalação da incerteza busca, mais do que um objetivo específico de
curto prazo, a manutenção de um outro subordinado”34.

26
MACON, Cecilia. Saber o mentir: la conformación afectiva del poder según Las facultades. Cuadernos
del CILHA, n. 33–2020. p. 105, tradução nossa.
27
CORRÊA, Murilo Duarte Costa; SOUZA, Karoline Coelho de Andrade. Afetar o por vir dos corpos:
micropolíticas da insegurança neoliberal, Polis [Online], 55, 2020.
28
Idem.
29
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad do poder, eurocentrismo e América Latina. In LANDER, Edgardo
(org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Bue-
nos Aires: CLACSO, 2005.
30
Pesquisas que comprovam que não há relação entre a flexibilização de direitos sociais e geração de
empregos: BLS. Bureau of Labor Statistics. USA. International Comparisons of Hourly Compensa-
tion Costs in Manufacturing. 2012. Disponível em: https://www.bls.gov/fls/ichcc.pdf. Acesso em: 16 jun.
2021; CESIT, Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho. Contribuição crítica à reforma
trabalhista. Campinas: Unicamp, 2017; DEAKIN, Simon. The contribution of labour law to economic
development & growth. Cambridge: University of Cambridge, 2016.
31
MACON, Cecilia. Saber o mentir: la conformación afectiva del poder según Las facultades. Cuadernos
del CILHA, n. 33–2020.
32
STOLER, Ann Laura. Along the archival grain. Epistemic anxieties and colonial common sense: Prin-
ceton University Press, Princeton, 2008
33
AHMED, Sara. The cultural political of emotions. Edinburgh University Press, Edinburgh, 2014. p.
46, tradução nossa.
34
MACON, Cecilia. Saber o mentir: la conformación afectiva del poder según Las facultades. Cuadernos
del CILHA, n. 33–2020, p. 99.

74
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Exemplo disso é o fortalecimento dos feminismos, que culminou com a assunção


da primeira mulher à presidência e o seu respectivo golpe35 no Brasil; ou das lutas de-
coloniais, com a derrubada de estátuas de brutais colonizadores, como a do escravocrata
Borba Gato, que geram prisões abusivas36. A dimensão afetiva neoliberal trata de impor
ansiedade principalmente a quem pensa37 que exerce o poder, mas que, na verdade, cons-
titui a imensa e heterogênea classe-que-vive-do-trabalho38.
A Justiça do Trabalho não escapa dessa dimensão capitalista do sentir. O regime
afetivo neoliberal faz com que este ramo especializado seja estruturalmente marginaliza-
do. Apesar de existirem instituições judiciárias nos mesmos moldes em outros países39, a
atmosfera de abjeção à Justiça do Trabalho no Brasil é sentida com violência. A repulsa
tem um papel fundamental para a garantia de preservação de formas de dominação colo-
nial, pois gera o impulso de rebaixar e destruir quem ameaça o establishment.
A Justiça do Trabalho gera este sentimento coletivo de repúdio, porque ela incomo-
da: ela faz parte de uma cartografia afetiva contra-hegemônica, que causa infiltrações em
um cenário marcado pela miséria, reabrindo feridas coloniais que não foram cicatrizadas.
A Justiça do Trabalho, ao contrário da Justiça Comum, não quer manter a ordem das coi-
sas. Ela percebe a desigualdade da relação na qual um dos sujeitos detém o poder diretivo;
e, o outro – na melhor das hipóteses40 - permanece jurídica, econômica e psicologicamen-
te àquele sujeitado, em um contrato de adesão, traduzido no paradoxo do trabalho “livre”
e subordinado41.

35
O processo de impeachment instaurado no Brasil em face da presidenta Dilma Rousseff é juridicamente
infundado, tratando-se de um golpe de Estado orquestrado por parlamentares envolvidos em casos de cor-
rupção, entre eles, o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que, para obstruir investiga-
ções contra ele em curso no Supremo Tribunal Federal e no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados,
aceitou o pedido de impeachment na Câmara, o que, por si só, já tornaria o processo nulo por vício de
iniciativa. Além disso, não restou configurado o crime de responsabilidade em face da lei orçamentária ou
conduta eivada de improbidade administrativa para a retirada da presidenta do cargo.
36
Refere-se aqui à prisão temporária do líder dos entregadores antifascistas, Paulo Roberto da Silva Lima
e de sua esposa, Géssica Silva Barbosa, que não possui os requisitos exigidos pela Lei 7.960/89.
37
Ver SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira ou como o país se deixa manipular pela elite.
São Paulo: Leya, 2015.
38
Afinal, a figura do empregador e do capitalista não se confundem na realidade precária brasileira. Peque-
nos empresários, que atuam com a sua própria força laboral, possuem uma vulnerabilidade social, econômi-
ca e técnica que os aproximam mais da hipossuficiência da classe trabalhadora que da realidade do capita-
lista, a exemplo do microempreendedor individual e do empresário individual de responsabilidade limitada.
39
Exemplos de países que possuem uma justiça trabalhista especializada: Alemanha, Finlândia e França. 
40
O Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2020, elaborado antes da pandemia,
nos informa que 61% dos trabalhadores) do mundo são informais. ILO. World Employment and Social
Outlook: Trends 2020. International Labour Office. Geneva: 2020.
41
ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes. O direito do trabalho na filosofia e na teoria social crítica. São
Paulo: LTr, 2014.

75
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Da Justiça do Trabalho emanam qualidades afetivas singulares e insurgentes que


“excedem o corpo de um indivíduo para associar uma multiplicidade de corpos”42. Afi-
nal, “afetos têm um papel na formação do poder, mas também no modo de desafiá-los”43.
Assim, a jurisdição trabalhista não é apenas definida por uma teoria de justiça redistributi-
va, de reconhecimento e de representação44, mas por uma política afetiva de luta. Ela não
foi construída pelo mero exercício de ética aplicada45, pois foi erguida por resistências
coletivas históricas. No entanto, a Justiça do Trabalho ainda enfrenta o arranjo emotivo
neoliberal que lhe conecta, paradoxalmente, à passividade ou ao oportunismo da classe
trabalhadora, ecoando o mito da outorga de Getúlio Vargas46.
A dimensão afetiva da Justiça do Trabalho, portanto, é fruto de um conhecimento
adquirido para se opor à opressão vivenciada historicamente pela classe trabalhadora47.
Nada disso se passa em um espaço etéreo, de pura imaginação, mas sim de violências
experimentadas enquanto coletividade48. Trata-se de um conhecimento situado, “sem ves-
tes”49. A sua política afetiva de luta mantém seu pensamento social crítico, que diverge
das teorias, comportamentos e afetos que mantêm o padrão histórico de poder.
Por isso, a Justiça do Trabalho suscita reações de aversão imediatas daqueles que
não querem uma mudança na política hegemônica de afetos. Que não querem compar-
tilhar o espaço do aeroporto com o seu porteiro. Ou não querem que sua empregada
doméstica transite no mesmo shopping ou no mesmo restaurante. A dimensão neoliberal
do sentir tem uma gramática própria que não pode ser capturada pela linguagem, mas
absorve estímulos não-verbalizados, que envolvem contextos históricos cruéis50.

42
MACON, Cecilia. Saber o mentir: la conformación afectiva del poder según Las facultades. Cuadernos
del CILHA, n. 33–2020. p. 97, tradução nossa.
43
Idem.
44
FRASER, N. Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação.
Estudos Feministas, Florianópolis, v. 15, n. 2, maio/agosto, p. 291-308, 2007.
45
HEPPLE, Bob. Factors Influencing the Making and Transformation of Labour Law in Europe In LAN-
GILLE, Brian; DAVIDOV, Guy. The Idea of Labour Law. Oxford, Oxford Scholarship Online: Septem-
ber 2011.
46
“O mito da doação se propagou com a maior intensidade, principalmente a partir do ‘Estado Novo’,
e pela sua difusão se tentou fazer crer que a legislação social não passaria de uma dádiva caída dos céus
getulistas sobre a cabeça dos trabalhadores brasileiros” PARANHOS, Adalberto. O roubo da fala: origens
da ideologia do trabalhismo no Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999, p. 23.
47
COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do
empoderamento. São Paulo, Boitempo, 2019.
48
Idem.
49
Idem, p. 2926.
50
MASSUMI, Brian. Parables for the virtual. Movement, affect, sensation. Durham: Duke University
Press, 2002.

76
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

No âmbito desta política afetiva capitalista, é possível verificar integrantes do pró-


prio Judiciário que afirmam, sem nenhuma responsabilidade epistêmica, que “existe um
mercado bilionário fomentado pelas condenações na Justiça do Trabalho”51 ou que que o
“Brasil, sozinho, é responsável por 98% dos processos trabalhistas de todo o planeta”.52
Sem pesquisa53, sem sistematização de dados científicos, sem fontes confiáveis, basea-
dos somente no seu egocentrismo ou em notícias isoladas em sites de internet: apenas
movidos pela repugnância afetiva em relação à Justiça do Trabalho. Abjeção irracional
que acusa a Justiça do Trabalho de ter uma cultura – obviamente, marxista - de “super-hi-
possuficiência, forjada pela advocacia e inflamada pelos juízes, grande responsável pela
aversão lhe aflige”54.
“De onde você está olhando e quem você está vendo?55”. Interessante como a po-
lítica de afetos neoliberal atua: sob o verniz da neutralidade pretensamente científica,
quem fala não possui localização epistêmica, econômica, cor ou gênero. Quem fala - e é
ouvido como discurso - não reconhece seus privilégios e culpabiliza a legislação protetiva
e a própria classe trabalhadora pela sua pobreza. É ilógico, mas faz parte da construção
neoliberal-emotiva da “racionalidade” e do “equilíbrio” para a manutenção da ordem das
coisas.
Ordem das coisas? Em 2019, antes da pandemia, conforme relatório da Organiza-
ção Internacional do Trabalho56, mais de 630 milhões de trabalhadores em todo o mundo,
ou seja, cerca de um em cada cinco, viviam em condição de pobreza extrema ou modera-
da, que é definido como renda diária abaixo US$ 3,20, cerca de 450 reais mensais.

51
Frase do artigo repudiado pela Ordem de Advogados do Brasil do Rio de Janeiro, baseado em dados
sem cientificidade retirados do site “O Antagonista”. CALVET, Otavio Venda de créditos trabalhistas: o
bilionário mercado da Justiça do Trabalho, Conjur, 2021.
52
Fala falaciosa do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, em apoio à Reforma
Trabalhista, que foi desmarcarada por CARELLI, Rodrigo. Barroso, negros de primeira linha e a reforma
trabalhista: os experimentos de Milgram explicam, Jota, 2017. Disponível em https://www.jota.info/opi-
niao-e-analise/artigos/barroso-negros-de-primeira-linha-e-a-reforma-trabalhista-21062017 Acesso em 30
jul. 2021.
53
E há orgulho declarado em não realizar pesquisas, gerando conclusões sem dados de que a situação de
miserabilidade do trabalhador é resultante da própria legislação protetiva laboral “ Não é preciso fazer
pesquisa científica para se observar que a cada ano a inadequação da atual legislação trabalhista produz
um ambiente totalmente desfavorável ao ser humano trabalhador. Em quase 24 anos de magistratura tra-
balhista vejo o número de trabalhadores formais reduzir paulatinamente, sendo já considerado por muitos
ser um privilégio estar com ‘carteira assinada’. Só 30% da população ativa se enquadra atualmente como
empregado celetista”. CALVET, Otavio. O triste fim da Justiça do Trabalho: a super-hipossuficiência e a lei
do retorno, Conjur, 2021, s/p, grifo noso.
54
Ibidem.
55
MADHOK, Sumi. A critical reflexive politics of location, ‘feminist debt’ and thinking from the Global
South. European Journal of Women’s Studies, Vol. 27(4) 394–412, 2020, p. 396, tradução nossa.
56
ILO. World Employment and Social Outlook: Trends 2020. International Labour Office. Geneva: 2020.

77
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Ordem das coisas? De acordo com a Fundação Getúlio Vargas57, em 2018 - após a
reforma trabalhista e antes da pandemia - o rendimento médio mensal do brasileiro que
se encontrava entre o 1% dos mais ricos foi 33,8 vezes maior que o rendimento dos 50%
mais pobres. Baseando-se sem dados da Pesquisa Nacional por Amostra a Domicílios
Contínua, o relatório da FGV mostrou que os mais ricos têm rendimento médio mensal
de R$27.744, enquanto a renda dos mais pobres é cerca de R$820. Entre 2017 e 2018,
período de implantação da reforma trabalhista, o rendimento daqueles que estão entre
os 10% mais pobres caiu 3,2%, enquanto a renda do 1% mais rico aumentou em 8,4%.
Conforme a FGV58, com o fim do auxílio emergencial em dezembro de 2020, o ano de
2021 começou com um salto na taxa de pobreza extrema no Brasil. O país tem hoje mais
pessoas na miséria do que no começo da década passada, em 2011. Neste janeiro de 2021,
12,8% dos brasileiros passaram a viver com menos de R$ 246 ao mês (R$ 8,20 ao dia).
Ordem das coisas. No Brasil, os jovens, os sem escolaridade, os nordestinos e os
negros foram os que mais perderam renda do trabalho na pandemia59. Antes da pandemia,
33% das mulheres negras estavam abaixo da linha da pobreza. Em 2021, mesmo com o
auxílio emergencial, essa taxa está mais alta, em 38%60. Em junho de 2020, a OXFAM61,
mostrou que 57% das mortes por COVID-19 no Brasil eram de pessoas negras, enquan-
to as de pessoas brancas correspondiam a 41%. Se a taxa de mortalidade da COVID-19
fosse a mesma para pessoas negras e de cor branca, 9.220 pessoas negras ainda estariam
vivas, no total, em junho de 2020.
A Justiça do Trabalho não quer manter a ordem das coisas. A ordinariedade das
coisas, que fechitiza corpos, espaços e vidas é reflexo da reificação capitalista afetiva62. A
Justiça do Trabalho quer uma ordem afetiva alternativa. Em outras palavras, a arena afe-
tiva não é apenas uma estrutura para manutenção de desigualdades, mas um recurso para
a agência63. Para desafiar os modos de constituição de subordinação64. Afinal, o poder do
afeto reside no fato de ser abstrato, assimétrico e transmissível65. Que a contrapolítica de
57
NERI, Marcelo. A escalada da desigualdade: qual foi o impacto da crise na distribuição da renda e da
pobreza? 2019. Disponível em https://www.cps.fgv.br/cps/bd/docs/A-Escalada-da-Desigualdade-Marcelo-
-Neri-FGV-Social.pdf Acesso em 31 jul. 2021.
58
Idem.
59
Idem.
60
NASSIF-PIRES, Luísa; CARDOSO; OLIVEIRA; Ana Luíza Matos de. MADE. Centro de Pesquisa
em Macroeconomia das desigualdades. Gênero e raça em evidência durante a pandemia no Brasil: o
impacto do Auxílio Emergencial na pobreza e extrema pobreza, 2021. Disponível em https://madeusp.com.
br/wp-content/uploads/2021/04/NPE-010-VF.pdf Acesso em 30 jul. 2021.
61
OXFAM. O vírus da desigualdade: unindo um mundo dilacerado pelo coronavírus por meio de uma
economia justa, igualitária e sustentável - Nota metodológica, jan/2021. Disponível em https://d2v21prk-
53tg5m.cloudfront.net/wp-content/uploads/2021/01/Nota-Metodologica-O-virus-da-Desigualdade.pdf
Acesso em 31 jul. 2021.
62
Idem.
63
MACON, Cecilia. Saber o mentir: la conformación afectiva del poder según Las facultades. Cuadernos
del CILHA, n. 33–2020, p. 109.
64
Ibidem.
65
SHOUSE, Eric. Feeling, Emotion, Affect. M/C Journal, 2005.

78
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

afetos da Justiça do Trabalho se trasmita, contagie e se torne pandêmica.


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81
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

O DIREITO DO TRABALHO NOS LIMITES DO ANTROPOCENO/


CAPITALOCENO

Felipe Santos Estrela de Carvalho1


Introdução
Há cerca de 1.750.000 anos, no período geológico do Pleistoceno, o Homo sapiens
surgiu no que hoje conhecemos como continente africano e se espalhou pelo mundo.
Todavia, foi no Holoceno, nos últimos 12 mil anos, que a humanidade se desenvolveu
potencialmente como espécie e se converteu numa força onipresente na superfície ter-
restre. A estabilidade climática do Holoceno, após uma longa era glacial, proporcionou
o desenvolvimento econômico, social e político, a expansão das atividades agrícolas, a
domesticação de animais, a construção de cidades, a fundação de estados, o estabeleci-
mento de uma máquina de produção e consumo de bens e serviços inédita ao longo dos
4,5 bilhões de anos do planeta Terra.
De forma exponencial, os sucessivos modos de produção instituídos pela humanida-
de repercutiram de tal modo, que no ano 2000, o biólogo estadunidense Eugene Stoermer
e o químico holandês Paul Crutzen, prêmio Nobel em 1995, avaliando as consequências
destruidoras das atividades humanas sobre a natureza, afirmaram que o planeta entrara
numa nova era geológica, o Antropoceno, que significa época da dominação humana
(CRUTZEN; STOERMER, 2000). Na virada para o século XXI, tornou-se extremamente
difícil abordar temas relacionados às transformações sociais sem fazer alguma referência
sobre o colapso ambiental em curso (ALVES, 2020).
Para o historiador indiano, Dipesh Chakrabarty (2013), o trabalho, vaticinado na
perspectiva marxiana como intercâmbio orgânico entre seres humanos e a natureza2, con-
verteu a humanidade num tipo de força geológica. Assim, o conceito Antropoceno re-
fere-se às mudanças ambientais, morfológicas e climáticas decorrentes desse domínio
da humanidade sobre os principais processos naturais do planeta, de tal magnitude que
parte da comunidade científica atesta que a sexta extinção em massa estaria em curso3. O
conceito tornou-se relevante, formando um campo de debate transdisciplinar, no qual se
discute quando e como esse poder destrutivo surgiu.
1
Professor de Direito do Trabalho da Universidade do Estado da Bahia (DEDC – XV/UNEB) e da Uni-
versidade Federal da Bahia (UFBA). Doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de
Brasília (PPGD- UnB); Membro da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia
(AATR); Membro do Grupo Transformações do Trabalho, Democracia e Proteção Social (TTDPS/UFBA).
2
“O trabalho é primeiramente um processo que acontece entre o homem e a natureza, um processo em que
o homem regula e controla seu metabolismo com a natureza pela mediação de sua própria ação. Ele se apre-
senta diante da matéria natural como uma potência natural em si. Ele põe em movimento as forças naturais
de sua pessoa física, de seus braços e pernas, de sua cabeça e mãos, para apropriar-se da matéria natural de
uma forma útil para sua própria vida. Mas, agindo sobre a natureza exterior e modificando-a por meio desse
movimento, ele altera também sua própria natureza. […] O processo de trabalho […] é a condição natural
eterna da vida dos homens” (FOSTER, 2018).

83
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

No entanto, como alerta Jason Moore (2017; 2020), não é a crise de uma espécie,
no caso a humana, que estamos presenciando, mas sim, a de um sistema, historicamente
determinado pelo capitalismo, em sua expressão contemporânea neoliberal extrativista
financeira. Como resultado dessas formulações, outro conceito foi elaborado, o de Ca-
pitaloceno, para qualificar o primeiro. Nesse caso, o poder destrutivo é considerado não
advindo da atividade humana em abstrato, mas de sua organização eminentemente capi-
talista (Barrios; Martínez, 2020).
Além das graves consequências nas dinâmicas naturais da biosfera, o capitalismo
contemporâneo também tem impulsionado transformações profundas na realidade das
relações laborais em todo o mundo, com aumento da informalidade, da intensidade, dos
riscos e danos relacionados ao trabalho. Dados globais da Organização Mundial da Saú-
de – OMS e da Organização Internacional do Trabalho – OIT, revelam que em 2016, 1,9
milhão de trabalhadores morreram em decorrência de doenças e lesões relacionadas ao
trabalho, demonstrando o alto patamar de mortes prematuras evitáveis devido aos riscos
relacionados ao meio ambiente laboral.
As “Estimativas conjuntas da OMS e da OIT sobre o ônus de doenças e lesões
relacionadas ao trabalho, 2000-2016” (OMS; OIT, 2021a), levam em consideração 19
fatores de risco ocupacional, como exposição a longas jornadas de trabalho e exposição
no ambiente de trabalho à poluição do ar, a asmagens, a substâncias cancerígenas, a riscos
ergonômicos e a ruído. O principal risco foi a exposição a longas horas de trabalho, que
estava associada a cerca de 750.000 mortes. A exposição no local de trabalho à poluição
do ar (partículas, gases e fumos) causou 450.000 mortes (OMS; OIT, 2021b).
Num contexto de forte exposição à concorrência global, de valorização cambial e
abertura indiscriminada, além do baixo e instável crescimento econômico, os estados na-
cionais (desenvolvidos e em desenvolvimento), os agentes financeiros internacionais e as
empresas têm intensificado os processos de exploração do trabalho e da natureza, causan-
do graves impactos no meio ambiente, e particularmente no meio ambiente do trabalho
como estratégia de recomposição da lucratividade.
No caso brasileiro, a degradação do direito do trabalho e do meio ambiente laboral
se inserem no processo econômico, social e político mais abrangente de institucionaliza-
ção de novas formas de exploração e subordinação do trabalho e da natureza, renovando
e reconfigurando a precarização estrutural e histórica no país (DRUCK, 2011; 2012). O
mercado de trabalho nacional é marcado por profundas contradições estruturais, gestadas
ao longo de quase quatro séculos de escravidão colonial e fragilmente enfrentadas no
processo de instituição da legislação social protetiva no país. Excedente de mão de obra,
informalidade, desigualdades raciais e de gênero, heterogeneidade dos vínculos, alta ro-
tatividade, baixa qualificação, jornadas exaustivas, baixo padrão remuneratório, baixa
representatividade sindical, amplitude do poder patronal, baixa cobertura e efetividade da
legislação social e altas taxas acidentárias e de mortes no local de trabalho são algumas
dessas características.

84
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Por exemplo, a tragédia causada pelo rompimento das barragens de propriedade da


empresa multinacional Vale S/A, localizada no município de Brumadinho/MG, em janei-
ro de 2019, é representativa dessa fusão corrosiva entre as crises trabalhista e ambiental
no Brasil. Do ponto de vista socioambiental, a situação reflete o estado conflitante entre
meio ambiente e desenvolvimento econômico no contexto atual do capitalismo neoextra-
tivista predatório em ascensão no país. Já do ponto de vista laboral, o caso Brumadinho
representou o maior acidente de trabalho da história nacional, o segundo acidente in-
dustrial – categorização utilizada para desastres em larga escala causados por atividades
empresariais – de maior fatalidade do século XXI, em todo o mundo (SOUZA; FALLET,
2019). O evento se repete há pouco mais de três anos do ocorrido em 2015, no municí-
pio de Mariana/MG, onde outra barragem também de responsabilidade da empresa Vale
rompeu, matando 19 pessoas e destruindo completamente o rio Doce, quinto maior curso
fluvial do país. Até então, o maior acidente registrado nacionalmente tinha sido o desa-
bamento da estrutura de concreto armado do pavilhão de exposições projetado por Oscar
Niemayer em 1971, na cidade de Belo Horizonte/MG, matando 69 pessoas e ferindo mais
de cem.
Com base no disposto na Lei 8.213/1991 que estabelece o Plano de Benefícios do
Regime Geral da Previdência Social, por acidente de trabalho deve-se entender o evento
que ocorre pelo ou no exercício do trabalho, provocando lesão corporal, perturbação fun-
cional, redução da capacidade laborativa ou morte do trabalhador. Doenças profissionais
(derivadas da prestação laboral peculiar numa dada atividade) e as doenças do trabalho
(adquiridas ou desencadeadas em função das condições de realização da prestação labo-
ral) também são consideradas acidente de trabalho.
De acordo com levantamento feito pelo Ministério Público do Trabalho de Minas
Gerais (MPT/MG), 427 trabalhadores estavam na área da empresa às 13 horas, momento
exato do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, muitos situados no refeitório da
empresa, em intervalo para repouso e alimentação. Desse total, 255 trabalhadores, pró-
prios e terceirizados encontram-se mortos e 15 estão desaparecidos. Auditores-Fiscais do
Trabalho, da Superintendência Regional do Trabalho em Minas Gerais (SRT/MG) apre-
sentaram relatório de investigação sobre o maior acidente trabalhista nacional, apontando
nove causas para o evento sinistro3. Os problemas remontam à época da construção da
infraestrutura no ano de 1976 (SINAIT, 2019). A principal causa apurada pelos auditores
foi a linha freática muito alta, ou seja, havia muita água na barragem e a drenagem era
insuficiente para escoá-la. Pelo inquérito, a empresa não adotou as medidas necessárias e
efetivas para baixar o nível da água após atingir seu patamar crítico, indicando negligên-
cia por parte da Vale. As atividades da mina deveriam ter sido paralisadas desde 2016 e a

3
“As nove causas apontadas foram distorções no cálculo dos fatores de segurança, geologia local desco-
nhecida, operação irregular – lançamento de rejeitos e largura de praia, sistema de drenagem – interno e
superficial – insuficiente e mal conservado, demora no rebaixamento efetivo da linha freática, existência de
anomalias recorrentes, falhas em planos de emergência, auscultação deficiente – piezômetros, inclinôme-
tros, e gestão de segurança e saúde no trabalho precária” (SINAIT, 2019).

85
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

população que estava no caminho do rejeito tóxico deveria ter sido avisada do risco que
corria.
Um dos estudos internos obtidos pelo MPT/MG e juntados à Ação Civil Púbica4
impetrada revelam que a Vale já havia calculado os gastos decorrentes da tragédia an-
tes mesmo do rompimento das barragens em Brumadinho5, estimando a indenização por
morte no valor de R$ 9,8 milhões (RODRIGGUES, 2019). Até o presente momento,
segundo a empresa, familiares de 250 empregados, próprios e terceirizados, mortos no
rompimento das barragens em Brumadinho firmaram acordo de indenização extrajudicial
com a Vale, somando R$ 1,1 bilhão ao cumprimento de 680 acordos trabalhistas, abran-
gendo 2,4 mil pessoas. Entre cíveis e trabalhistas, já foram celebrados 5,5 mil acordos,
envolvendo 11,2 mil pessoas, o que resultou no pagamento de mais de R$ 2,4 bilhões6
(VALE, 2021). A monetização dos riscos e danos como via pragmática de responsabiliza-
ção empresarial – e quando acontecem –conformam um tipo de economia necropolítica
(MBEMBE, 2016) que afeta principalmente os trabalhadores e o meio ambiente em que
estão inseridos em contextos de expropriação e descartabilidade.
Ante à catástrofe iminente que define os limites da humanidade no Antropoceno/
Capitaloceno, as discriminações sistêmicas e interseccionais de origem, etnia, raça, gê-
nero, sexualidade, geração, classe e condição, importam numa distribuição desigual dos
graves danos experimentados nesse processo de predação característico da civilização
colonial-capitalista que dominou o ocidente ao longo da modernidade.

4
Ação Civil Pública Cível 0010261-67.2019.5.03.0028
5
“Intitulado Estabelecimento do contexto e identificação dos eventos de risco em barramentos, o do-
cumento foi produzido em 2015 e inclui um estudo de ruptura hipotética de uma barragem no qual são
apresentadas fórmulas matemáticas para estimar danos econômicos. No item 7.1, o estudo registra que a
‘indenização por perdas de vidas humanas é o tema com maior divergência de opiniões, elevado grau de
incerteza e questões éticas associadas’. O documento apresenta três abordagens distintas, sendo uma delas
a curva de tolerabilidade de riscos proposta pelo engenheiro norte-americano Robert Whitman. Nesta me-
todologia, elaborada em 1981, o valor da vida foi calculado em US$ 1 milhão. De acordo com o documento
da Vale, o montante atualizado para agosto de 2015 seria de US$ 2,56 milhões. ‘Esse valor deve ser conver-
tido de dólar americano para reais conforme a cotação da moeda norte-americana na data de realização do
cálculo do custo da indenização’, acrescenta o documento. Na cotação atual, a indenização por morte seria
de aproximadamente R$ 9,8 milhões” (RODRIGUES, 2019).
6
“Um acordo assinado na noite de segunda-feira, 15 de julho de 2019, entre o Ministério Público do Tra-
balho (MPT) e a Vale S.A, em audiência na 5ª Vara do Trabalho de Betim, estabelece as obrigações que a
empresa deverá assumir para reparar os danos morais e materiais decorrentes do rompimento da barragem
de Córrego do Feijão, em Brumadinho, no dia 25 de janeiro de 2019. Tomando como exemplo a situação
de um trabalhador que deixou esposa, dois filhos, pai, mãe e dois irmãos, o grupo familiar vai receber o
montante de R$ 3,8 milhões. Cônjuge ou companheiro, filho, mãe e pai vão receber individualmente R$
700 mil, sendo R$ 500 mil para reparar o dano moral e R$ 200 mil a título de seguro adcional por acidente
de trabalho. Irmãos de trabalhadores falecidos receberão individualmente R$ 150 mil por dano moral O
acordo também prevê estabilidade no emprego de três anos para o empregados da Vale e terceirizados que
estavam lotados na Mina de Córrego do Feijão, na data do desastre. Bem como pagamento de auxílio cre-
che, no valor de R$ 920,00 mensais, para filhos com até 3 anos de idade e auxílio educação, no valor de R$
998,00 mensais, para filhos com até 25 anos de idade” (PRT3, 2019).

86
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Ao lado da descaracterização do núcleo formal da relação empregatícia ante as


formas contratuais atípicas (terceirização, pejotização, uberização etc.), a fragilização do
poder regulatório público legal e negocial, a majoração do poder patronal na determina-
ção dos elementos centrais do vínculo de emprego (contratação, remuneração e jornada),
a desestruturação dos sistemas de proteção social via reformas trabalhistas e os ataques
ideológicos sistemáticos promovidos pela mídia corporativa, universidades e agências
neoliberais de think tank, parecem ter corrompido tanto a funcionalidade protetiva do
direito do trabalho como a noção de meio ambiente do trabalho digno e seguro.
Nesse sentido, com o presente artigo pretendemos refletir sobre como as tendências
atuais dos regimes de acumulação de capital sob a égide do neoliberalismo repercutem de
forma catastrófica tanto para o meio ambiente quanto para as relações laborais contempo-
râneas, ao catalisar processos globais de expropriação e flexibilização dos sistemas nor-
mativos de proteção social do trabalho e da natureza. Para subsidiar o entendimento sobre
as funções concretas e potenciais do direito do trabalho nesse cenário avançado de crise,
o texto foi organizado em duas partes, além da introdução e das considerações finais.
Primeiramente, buscamos contextualizar sinteticamente a regulação do meio ambiente do
trabalho pelo ordenamento brasileiro para analisar como a reforma trabalhista implemen-
tada com a aprovação da Lei 13.467/2017 tem corroído o meio ambiente laboral seguro
e saudável enquanto direito fundamental. No segundo momento, a partir da revisão dos
conceitos de Antropoceno e Capitaloceno na literatura especializada, propomos explicar
o estágio atual de degradação do trabalho, do meio ambiente e do direito laboral no Brasil
e no mundo para além dos aportes teóricos e práticos oferecidos sobre as crises de or-
dem econômica no esteio do capitalismo financeiro neoliberal, situando esse movimento
predatório nos marcos de uma crise civilizatória mais abrangente que ameaça a própria
existência da humanidade e das demais espécies no planeta Terra tal qual conhecemos.
2. Reformas trabalhistas e a corrosão do meio ambiente do trabalho no Brasil
A tutela jurídica ambiental sofreu profundas transformações na experiência brasi-
leira. Ao longo do século XX, o ordenamento jurídico brasileiro passou de uma total des-
regulamentação para a consolidação de um amplo sistema de proteção do meio ambiente,
incluindo o meio ambiente do trabalho, com um extenso corpo legislativo constitucional,
infraconstitucional e internacional, além da criação de órgãos específicos de execução,
monitoramento e fiscalização das políticas públicas, com atuação dos órgãos do sistema
de justiça.
A lei 6.938/1981, que institui a Política Nacional do Meio Ambiente, em seu artigo
3º, inciso I, define que: “entende-se por meio ambiente, o conjunto de condições, leis,
influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege
a vida em todas as suas formas” (BRASIL, 1981). Para José Afonso da Silva (2004), o
meio ambiente decompõe-se em: meio ambiente natural ou físico, formado pelo conjunto
de elementos naturais em correlação com as espécies e demais seres vivos; meio ambiente
artificial, aquele constituído pela ação antrópica de transformação da natureza, sendo o

87
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

espaço urbano seu exemplo mais característico; e o meio ambiente cultural, representa-
tivo das relações sócio-históricas estabelecidas entre a coletividade e o meio natural em
que está inserida.
Avançando sobre as formulações do constitucionalista, Celso Antônio Pacheco Fio-
rillo (2017) teoriza que o meio ambiente do trabalho pode ser compreendido como o local
onde as pessoas desempenham suas atividades laborais, sejam remuneradas ou não, cujo
equilíbrio está baseado na salubridade do meio e na ausência de agentes que comprome-
tem a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores, independentemente da condição
que ostentem (se mulheres, homens, maiores, menores, celetistas, servidores públicos
etc.). Para Júlio Cesar de Sá da Rocha (2013), o meio ambiente do trabalho é composto
por elementos, inter-relações e condições que influenciam o trabalhador em sua saúde
física e mental, comportamento e valores presentes no seu local de trabalho. Assim, o
trabalhador é afetado diretamente pelo ambiente em que labora, com consequências na
prestação e na performance do trabalho.
A regulamentação do meio ambiente do trabalho tem natureza constitucional, sendo
um direito fundamental de terceira geração, de caráter difuso e coletivo. Há um conjun-
to de garantias previstas na Constituição Federal de 1988 que asseguram o direito a um
meio ambiente equilibrado, incluindo aí o ambiente de trabalho. A dignidade da pessoa
humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa são fundamentos do estado
democrático de direito e se irradiam para qualificar o direito ambiental do trabalho. O art.
7º, XXII, da CF/1988 dispõe que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais: a redu-
ção dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
Inserido no artigo 196 da Carta Cidadã, a saúde é compreendida como direito de
todos e estabelece o dever de o Estado garanti-lo por meio de políticas voltadas para a
redução do risco de adoecimento, bem como pelo acesso universal e igualitário a ações e
serviços para a promoção, prevenção e recuperação da saúde. Assim, as regras não tratam
tão somente de direitos trabalhistas ou ambientais, sendo incluídas no rol dos direitos
sociais à saúde, devendo ser garantidos mediante políticas públicas sociais e econômicas,
integrando-as na estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio das ações de vi-
gilância sanitária e epidemiológica da saúde no trabalho e da proteção do meio ambiente
do trabalho, como dispõe o art. 200. Já o art. 225 da CF/1988 estabelece que todos tem
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como de uso comum do povo
e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
No plano infraconstitucional, o meio ambiente do trabalho é regulamentado, dentre
outros, pelos seguintes instrumentos: a) Política Nacional do Meio Ambiente, instituída
pela Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981; b) Consolidação das Leis do Trabalho – CLT,
alterada pela Lei nº 6.514, de 22 de dezembro de 1977; c) Normas Regulamentadoras –
NR do Ministério do Trabalho e Emprego.
Na CLT (BRASIL, 1943), o Capítulo V é destinado à segurança e medicina do
trabalho (arts. 154 a 200). São normas de ordem pública, de indisponibilidade absolu-

88
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

ta. Segundo o art. 157 da CLT, cabe às empresas cumprir e fazer cumprir as normas de
segurança e medicina do trabalho, além de instruir os empregados quanto as precauções
a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais. Destaca-se
aqui o entendimento jurisprudencial do TST consignado na Súmula 289 de que o “sim-
ples fornecimento do aparelho de proteção pelo empregador não exime do pagamento do
adicional de insalubridade. Cabe-lhe tomar as medidas que conduzem à diminuição ou
eliminação da nocividade, entre as quais relativas ao uso efetivo do equipamento empre-
gado”. Já aos empregados, cabem observar as normas de saúde e segurança, sob pena de
cometimento de falta funcional de natureza grave, cuja reincidência pode acarretar no
rompimento motivado do vínculo de emprego.
A CLT delegou à autoridade administrativa do poder executivo federal a regula-
mentação detalhada das normas de saúde e segurança. A União, através do ministério
correspondente tem competência para expedir as Normas Regulamentadoras (NRs). Estas
são de observância obrigatória pelas empresas privadas e públicas e pelos órgãos da ad-
ministração direta e indireta, bem como pelos órgãos dos poderes Legislativo e Judiciário
que possuam empregados regidos pela CLT. O não cumprimento das disposições legais
e regulamentares sobre a segurança e medicina do trabalho acarretará ao empregador a
aplicação das penalidades previstas na legislação pertinente. Assim, por meio de ações
coordenadas do Sistema Único de Saúde (SUS), das Superintendências Regionais do Tra-
balho e dos órgãos e secretarias do Ministério do Trabalho, cabe ao Poder Executivo
fiscalizar o cumprimento das normas de saúde e segurança, exigibilidade de adoção de
condutas preventivas e reparadoras, além da imposição de penalidades.
Além disso, a CLT e as NRs estabelecem a obrigatoriedade de parte dos emprega-
dores de elaborar e implementar o Programa de Controle Médico e Saúde Ocupacional
(PCMSO) que tem o objetivo de promover e preservar a saúde do conjunto de seus traba-
lhadores. Esse programa deve ter caráter de prevenção, rastreamento e diagnóstico preco-
ce dos agravos à saúde, relacionados ao trabalho, inclusive pela constatação de doenças
profissionais ou danos irreversíveis à saúde do trabalhador. A NR-9 prevê ainda a obriga-
toriedade na elaboração e implementação do Programa de Prevenção de Riscos Ambien-
tais (PPRA) que terá como função antecipar, reconhecer e avaliar dos riscos ambientais
existentes ou que possam surgir no ambiente de trabalho de segmentos potencialmente
poluidores.
O art. 163 da CLT e a NR-5 regulamentam as atribuições da Comissão Interna de
Prevenção de Acidentes (CIPA). Em regra, os empregadores, seja de natureza pública ou
privada, estão obrigados a constituir a CIPA (só as empresas com menos de 20 emprega-
dos é que estão desobrigadas). Com relação à prevenção e à reparação dos danos ao meio
ambiente do trabalho, além da responsabilidade objetiva na forma do § 3º do art. 225 da
Constituição Federal e § 1º do art. 14 da Lei n. 6.938/1981, aplica-se a responsabilidade
solidária de todos aqueles que, pela sua atividade, causem danos ao meio ambiente ou
potencializem a criação de risco para o mesmo. Assim, responde solidariamente quem se
omitir de um dever de tutela e prevenção ambientais, pois o meio ambiente sadio, pleno e

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

global é um direito de todos e dever do Estado e da sociedade, como preconiza o art. 225
da Constituição Federal.
No âmbito da regulamentação internacional, o meio ambiente do trabalho encontra
cobertura em uma série de tratados ratificados pelo Brasil junto a OIT. As convenções
sobre proteção à maternidade (n. 103), contra radiações ionizantes (n. 115), sobre o peso
máximo das cargas (n. 127), prevenção de acidentes (n. 134), sobre câncer ocupacional
(n. 139), meio ambiente do trabalho (n. 148), serviços de saúde no trabalho (n. 161),
prevenção de grandes acidentes industriais (n. 174), erradicação das piores formas de
trabalho infantil (n.182) são alguns desses instrumentos internacionais.
Apesar da extensa legislação socioambiental, da formatação de instituições públi-
cas de regulação e fiscalização, do reconhecimento formal do poder de negociação dos
sindicatos, a realidade do mercado de trabalho nacional ainda é marcada pelo alto grau
de risco acidentário, como níveis elevados de insegurança nos locais de prestação dos
serviços. Segundo os dados do Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho,
instrumento desenvolvido e mantido pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em coo-
peração com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), no período de 2012 a 2020
foram registrados aproximadamente 5.589.837 (milhões) de acidentes de trabalho no Bra-
sil. Um acidente estimado a cada 48 segundos (MPT; OIT, 2021).
Desse total, quase 20.467 resultaram em mortes acidentárias notificadas. Um aci-
dente fatal a cada 3 horas 51 minutos 28 segundos. Somados os períodos de cada aciden-
tado, são mais de 427 milhões de dias de trabalho perdidos com afastamentos previden-
ciários acidentários no país, representando um gasto para a Previdência de mais de R$100
bilhões no período. Pelos cálculos da OIT, acidentes e doenças de trabalho implicam
perda anual de cerca de 4% do Produto Interno Bruto (PIB), o que, no caso do Brasil,
equivaleria, em números de 2017, a R$ 264 bilhões (MPT; OIT, 2021).
Para agravar ainda mais esse cenário de risco generalizado, a aprovação da Lei
n.13.467/2017 (BRASIL, 2017) que instituiu a chamada reforma trabalhista repercutiu
diretamente na flexibilização das normas de proteção do meio ambiente do trabalho, a
partir da legalização de quatro tendências predatórias. A defesa da flexibilização da re-
gulação social trabalhista é apresentada por setores patronais como solução ao crescente
desemprego, permitindo às empresas fazerem ajustes na perspectiva de reduzir os custos
de produção, ampliando a produtividade e a competitividade, num contexto econômico
de forte exposição à concorrência, de valorização cambial, abertura indiscriminada, de
baixo e instável crescimento, sob a hegemonia do capital financeiro.
Em termos práticos, a reforma trabalhista disponibilizou à classe patronal uma série
de mecanismos jurídicos de ajustamento do emprego e das condições de trabalho aos ní-
veis de produção, às flutuações do mercado (variação de demanda, de taxa cambial, etc.)
e às inovações tecnológicas (KREIN, 2018). A flexibilização da legislação social traba-
lhista é vendida como única alternativa aos limites de crescimento e geração de postos de
trabalho típicos do padrão regulatório tayloriano-fordista, estruturando-se em um conjun-
to de medidas voltadas para o afrouxamento das regras de proteção social do trabalho e do

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Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

trabalhador, frente às mudanças da realidade econômica. Vejamos mais detalhadamente


cada uma dessas tendências e as repercussões na degradação do meio ambiente de traba-
lho seguro e saudável no país.
A primeira é a ampliação geral e irrestrita da terceirização dos serviços, com a gene-
ralização dos riscos daí decorrentes. A reforma trabalhista foi inaugurada com a aprova-
ção da Lei nº 13.429/2017, que alterou a Lei do Trabalho Temporário (Lei nº 6.019/1974),
regulamentando a terceirização por meio dos artigos 4º-A e 5º-A. A nova lei estabelece
que terceirização é a transferência feita pela empresa contratante a empresa de prestação
de serviços especializados da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive a prin-
cipal.
Segundo o economista do trabalho e professor da Unicamp, José Dari Krein (2013),
a terceirização se constitui na principal forma de flexibilização da contratação no Brasil,
especialmente a partir da década de 1990, numa contraofensiva aos processos de con-
quistas de direitos obtidos pelos trabalhadores organizados ao longo dos anos de 1970 e
1980. Reflexo das modernas técnicas de gestão, a terceirização não é um fenômeno novo
na produção capitalista, mas adquire expressão nos anos recentes, dentro do contexto de
reestruturação produtiva e de ajuste organizacional promovido pelas empresas na busca
de competitividade e produtividade, via redução de custos.
A terceirização se manifesta de distintas formas nos diversos segmentos econômi-
cos em que atua, especialmente por meio da: a) subcontratação de rede de fornecedo-
res; b) contratação de empresas especializadas de prestação de serviço; c) alocação de
trabalho temporário; d) cooperativas de trabalho, dentre outras, visando 1) a busca pela
redução de custos; 2) a flexibilidade organizacional; 3) a partilha dos riscos da atividade
econômica com os trabalhadores ou outros agentes econômicos. A terceirização não se
reduz a essas formas de contratação, pois abarca todo processo de externalização de ativi-
dades produtivas para outras empresas ou pessoas físicas. A adoção de certos mecanismos
jurídicos que ocultam a figura do real empregador pode trazer dificuldades para se definir
os verdadeiros polos da relação de emprego.
Ao estimular a transformação de empregados em pessoas jurídicas, com a pejotiza-
ção e as falsas cooperativas, o uso indiscriminado da terceirização foi porta para amplia-
ção da informalidade. O processo de terceirização baseado na redução dos custos tende
a fortalecer relações de trabalho atípicas, incluindo o trabalho por conta própria sem a
devida proteção social, além da contratação de trabalhadores sem registro, aumentando
os riscos de ocorrência de acidentes de trabalho.
De acordo com a Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANMT), no se-
tor extrativo de petróleo e gás, por exemplo, os profissionais terceirizados têm 5,5 vezes
mais chances de morrerem em um acidente de trabalho do que os empregados efetivos
(ANMT, 2013). Na Petrobras, empresa pública de ponta no ramo, entre 1995 e 2018,
dos 377 mortos em serviço, 307 eram terceirizados, assustadoramente, 81% do total dos
óbitos. No setor elétrico, a proporção de terceirizados mortos é de 3,4 vezes em relação
aos efetivos. Dois fatores ajudam a explicar esses números: primeiro, pela gestão menos

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

rigorosa dos riscos ocupacionais nas empresas terceirizadas e suas tomadoras; segundo,
pelo fato das tarefas terceirizadas serem aquelas que geralmente envolvem maiores riscos
ocupacionais.
Muitas vezes, na luta concorrencial e para ajustar-se ao preço da tomadora dos
serviços, a empresa terceirizada tende a precarizar as condições de trabalho e de remu-
neração, intensificando o trabalho, pagando menores salários, rebaixando as condições
de saúde e segurança. Para cumprir o determinado no contrato civil de atividade firmado
com a contratante, a terceirizada é pressionada a burlar algumas determinações legais
como estratégia competitiva, a exemplo do desvirtuamento dos vínculos de emprego, não
proceder os recolhimentos das contribuições sociais, não fornecer equipamentos de pro-
teção individual ou treinamento especializado à execução dos serviços pelo trabalhador
(BIAVASCHI; MORETTO; DROPPA, 2015). Dados do Departamento Intersindical de
Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIESSE), divulgados pelo Fórum Nacional de
Centrais Sindicais em Saúde do Trabalhador, revelam que a cada dez vítimas de acidentes
laborais, oito são terceirizadas (SANTOS, 2018).
Apesar da desverticalização e da especialização nem sempre representarem proces-
sos de precarização nas relações de trabalho, o padrão que se verificou no Brasil foi de
uma terceirização voltada para a redução de custos e aumento da flexibilidade da empresa
na gestão dos fatores de produção. A terceirização está presente em praticamente todos os
segmentos econômicos do país, com mais intensidade no setor de serviços, mas também
no setor público.
A segunda tendência da reforma trabalhista é a naturalização do trabalho extraor-
dinário, ao possibilitar a alteração dos regimes de jornada, instituição do banco de horas,
a generalização da jornada 12x36, a supressão do intervalo de repouso/alimentação, o
fracionamento das férias, a exclusão do pagamento das horas in itinere, a legalização do
teletrabalho sem controle de jornada, tudo via negociação coletiva ou acordo individual.
Como fora apontado no início do texto, é justamente o excesso de jornada um dos fato-
res que mais contribuem para a ocorrência de acidentes de trabalho, particularmente, os
fatais.
Os incisos I e II do artigo 611-B, inseridos pela reforma, autorizam que trabalha-
dores e empregadores ajustem livremente o pacto da jornada de trabalho e o banco de
horas, desde que respeitado o limite constitucional de oito horas diárias e 44 horas sema-
nais, estabelecido no inciso XIII do artigo 7º da Constituição Federal de 1988. É o caso
também do novo regramento do contrato em regime de tempo parcial, regulado a partir
do artigo 58-A da CLT. De acordo com o dispositivo, o trabalho em regime de tempo
parcial passou a ser válido nas seguintes hipóteses: a) aquele cuja duração não exceda a
30 (trinta) horas semanais, sem a possibilidade de horas suplementares; ou b) aquele cuja
duração não exceda 26 (vinte e seis) horas suplementares semanais, com a possibilidade

92
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

de acréscimo de até seis horas suplementares semanais. Considerando o regime de


compensação semanal, um trabalhador por tempo parcial pode chegar a trabalhar 32
horas na semana sem ter direito ao recebimento de adicional de horas extraordinárias.
A questão da distribuição da jornada de trabalho e da apropriação dos bens produ-
zidos nela são aspectos centrais do conflito entre capital e trabalho, especialmente com
o desenvolvimento das forças produtivas, onde se tem a necessidade de se produzir mais
em menos tempo. Diferentemente dos outros fatores de produção, o tempo é o único
recurso efetivamente não renovável. A dimensão do conflito na utilização do tempo de
trabalho pode ser verificada na centralidade que a redução de jornada teve nas lutas dos
trabalhadores, desde a escravidão colonial moderna até a universalização do trabalho
assalariado, moldando constituições e estados nacionais sob a égide dos direitos sociais
fundamentais. Hoje, a jornada de oito horas diárias parece coisa do passado para várias
categorias de trabalhadores.
Ao reduzir a porosidade do trabalho e vincular o incremento da remuneração à
produtividade, o trabalhador intensifica o ritmo de trabalho, ampliando os riscos de so-
frer um acidente. Para viabilizar esse cenário, a reforma cuidou de alterar a natureza das
regras sobre duração do trabalho, sendo esta, a terceira tendência. O inciso III do artigo
611-B permite que a negociação coletiva estabeleça regramento alternativo para fruição
do intervalo interjornada, diferente do disposto no artigo 71 da CLT, e sem a autorização
do órgão do poder executivo federal. Se antes, o intervalo mínimo para repouso e alimen-
tação era de uma hora para jornadas superiores a 6 horas, com a reforma, esse intervalo
poderá ser de 30 minutos.
A intensificação do trabalho se deve à diminuição dos intervalos entre uma ativida-
de e outra, reduzindo a ociosidade do trabalhador, ou seja, cada ínfimo momento de pausa
para recomposição do trabalho é capturado, pois sua força de trabalho está sendo inten-
samente absorvida e controlada pelo processo de produção. Com jornadas mais extensas,
os trabalhadores estão expostos a um risco maior no ambiente de trabalho, aumentando
as taxas de acidentes laborais.
Em São Paulo, por exemplo, no ano de 2018, foram registrados 37 acidentes fatais
envolvendo trabalhadores motofretistas de empresas-aplicativo como Uber Eats, Ifood,
Loggy, Rappi e Glovo, contra 27 no ano de 20177. É prática comum no setor oferecer
bônus em dinheiro aos que fazem entregas em menos tempo, crescendo o risco de aci-
7
“Em 2018, foram 366 mortes na capital paulista, contra 311 em 2017. Aplicativos de comida dão bônus
por entregas rápidas. (...). Além da conhecida pressa dos motociclistas, alguns aplicativos, especialmente de
entrega de comidas, dão bônus em dinheiro aos que fazem entregas em menos tempo e aumentam o risco
de acidentes. (...). Felipe do Nascimento é motoboy e a necessidade de faturar supera o perigo de correr
entre os carros. ‘Quanto mais agilidade a gente tiver, mais dinheiro a gente ganha, né? Quanto mais serviço
você fizer você ganha mais, mas o risco é grande.’ (...). ‘Infelizmente, é um incentivo à insegurança. Essas
empresas estão gerando um grande risco a esses profissionais. E o pior: o profissional está aceitando esse
risco. A ideia é que a entrega seja feita dentro dos padrões de segurança, da velocidade, dos equipamentos
de segurança, ou seja conforme prega as resoluções e a legislação’, afirmou José Aurélio ramalho, diretor-
-presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária” (G1, 2019).

93
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

dentes. Ao vincular a possibilidade de aumento da remuneração à produtividade, o mo-


tofretista se vê pressionado a intensificar seu ritmo de trabalho, ampliando a jornada na
busca de melhores salários. Na economia da auto-exploração maximizada pela reforma
trabalhista, a conversão massiva do tempo social em tempo produtivo se faz às custas da
saúde e segurança do trabalhador.
Uma das mudanças mais significativas foi a instaurada pelo novo § 2º do art. 4º da
CLT. Por não se considerar tempo à disposição do empregador, não será computado como
período extraordinário o que exceder a jornada normal, ainda que ultrapasse o limite de
cinco minutos quando o empregado, por escolha própria, buscar proteção pessoal, em
caso de insegurança nas vias públicas ou más condições climáticas, bem como adentrar
ou permanecer nas dependências da empresa para exercer atividades particulares, entre
outras: I – práticas religiosas; II – descanso; III – lazer; IV – estudo; V – alimentação;
VI – atividades de relacionamento social; VII – higiene pessoal; VIII – troca de roupa ou
uniforme, quando não houver obrigatoriedade de realizar a troca na empresa. É o proces-
so de radicalização do uso do tempo de trabalho, passando a considerar como sendo de
“natureza pessoal”, atividades inerentes à relação de emprego como troca de uniforme,
por exemplo.
Por fim, a quarta tendência é a de exposição prolongada ao risco através da flexibi-
lização das regras de proteção contra os efeitos da insalubridade no ambiente de trabalho.
Delgado e Delgado (2017) nos lembram que o trabalho em atividades insalubres sempre
foi tema regulado com rigor pelo direito do trabalho e pela Constituição. Não por menos,
o constituinte originário elevou o direito ao adicional de insalubridade e periculosidade
à condição de direito social fundamental trabalhista. São normas de indisponibilidade
absoluta e juntamente com os demais dispositivos do artigo 7º, inciso XXII, além do 611-
A da CLT instituem uma verdadeira política de proteção no meio ambiente do trabalho,
visando a prevenção e a redução dos riscos aos trabalhadores (DELGADO, 2018).
A nova redação do art. 611-A da CLT prevê que por meio de negociação coletiva
seja possível enquadrar o grau de insalubridade de forma diferente do estabelecido em lei.
Embora a nova lei proíba que acordos e convenções coletivas estipulem quais atividades
são ou não insalubres, autorizam que possam determinar o grau mínimo, médio e máxi-
mo, diferentemente do estabelecido em lei. Esse regramento parece de constitucionalida-
de duvidosa, na medida em que o art. 7º, inciso XXIII da CF/1988 inclui entre os direitos
dos trabalhadores o adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou
perigosas, na forma da lei. Além disso, Santos e Elizeu (2019) nos lembram que a própria
CLT dispõe no artigo 195 que o enquadramento das atividades em seus graus de insalu-
bridade respectivos depende de perícia técnica especializada a ser feita por profissional
certificado, cabendo, inclusive, validação em juízo, não podendo, ser objeto de livre dis-
posição entre as partes.
De forma espantosa, o art. 394-A procurou facilitar a prorrogação da jornada em
ambientes insalubres, até mesmo para as mulheres grávidas e lactantes, sem a verificação
necessária da autoridade competente quanto à sua viabilidade, conveniência e repercus-

94
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

são nas condições de saúde e segurança das e dos trabalhadores. Os efeitos do artigo estão
suspensos por decisão liminar do Min. Alexandre de Moraes do STF, proferida em maio
de 2019. A ADI 5938 foi ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Me-
talúrgicos, questionando os incisos II e III do artigo 394-A Consolidado que preveem o
afastamento da empregada de atividades insalubres “quando a mulher apresentar atestado
de saúde, emitido por médico de confiança da mulher, que recomende o afastamento du-
rante a gestão ou lactação. Ante o argumento da parte autora de que a nova previsão legal
afronta a proteção que a Constituição Federal atribui à maternidade, à gestação, à saúde,
à mulher, ao nascituro, aos recém-nascidos, ao trabalho e ao meio ambiente do trabalho
equilibrado, o relator confirmou a presença dos requisitos da verossimilhança e do perigo
da demora para conceder a medida cautelar.
O contexto prolongado da pandemia global da Covid-19 acirrou ainda mais as fra-
gilidades da economia e da precariedade estrutural do trabalho no Brasil. A crise de or-
dem sanitária desdobrou-se numa grave crise social, econômica e política, com fortes
impactos no mercado de trabalho e na estrutura de regulação das relações trabalhistas.
Segundo dados do IBGE, até o mês de maio, a pandemia ceifou mais de 650 mil vidas e
corroeu 7,8 milhões de postos de trabalho nacionais. Pela primeira vez na história da série
contínua da PNAD, menos da metade das pessoas em idade para trabalhar está emprega-
da. O desemprego atinge a vida de 12,7 milhões de brasileiros8.
As mudanças advindas com a reforma trabalhista, acirradas na pandemia da Co-
vid-19, parecem generalizar a sociedade do cansaço pensada pelo filósofo sul-coreano e
professor da Universidade de Berlim, Byung-Chul Han, em seu livro homônimo. O mal-
-estar contemporâneo e as enfermidades produzidas pelos novos dispositivos de poder
típicas de um mundo do trabalho marcado pela hiperinformação, pela hiperatividade, pelo
hiperdesempenho são os dilemas do século XXI (HAN, 2015). A passagem do relógio de
ponto para o relógio de pulso tem se mostrado eficiente no incremento da produtividade
e vinculação (objetiva e subjetiva) do trabalhador às novas formas de subsunção da sua
força de trabalho, muitas vezes rifando sua saúde, quando não, a própria vida (ABÍLIO,
2016). Todo esse cenário mais complexo, desvela a “insustentabilidade absoluta do mo-
delo anterior, baseado na exploração sem fim da mão de obra (rectius: seres humanos) e
da terra (rectius: recursos naturais finitos do planeta Terra)” (CARELLI, 2020).
Leituras dogmáticas, tecnicistas e disciplinarmente isoladas não possuem a capaci-
dade de explicar de modo satisfatório o estágio atual de degradação das forças do trabalho
e da natureza no esteio do ultraliberalismo dominante, muito menos de apresentar alter-
8
Nessa conjuntura, o poder executivo federal elabora as Medidas Provisórias 927 e 936, com o objetivo de
promover alterações transitórias na estrutura das relações de emprego no país como forma de conter os efei-
tos da crise pandêmica. A edição das MPs 927 e 936 são exemplos de como a estratégia do governo federal
passa pela oneração desproporcional do conjunto das/os trabalhadoras/es brasileiros. A MP 927 apostou na
expansão draconiana do sistema de banco de horas, no adiamento do pagamento de parcelas remuneratórias
como as férias e no afastamento das normas de saúde e segurança do trabalho, expondo trabalhadoras e tra-
balhadores ao risco de contágio, adoecimento e morte, ao mesmo tempo em que flexibiliza direitos sociais
fundamentais (FREITAS; CARVALHO; DUTRA, 2020).

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

nativas radicais ao enfrentamento do problema. A nova razão do mundo, professada por


Dardot e Laval, expressa na hegemonia político-econômica do neoliberalismo, reforça
a lógica da exploração exponencial do trabalho e dos recursos naturais indispensáveis à
vida planetária.
3. Antropoceno/Capitaloceno: natureza e direito do trabalho em ruptura sociome-
tabólica
O direito do trabalho, legatário do padrão de desenvolvimento pós-escravista urba-
no-industrial que acelerou a apropriação da força de trabalho e da natureza ao longo do
século XX, hoje tem sido descartado pelo novo padrão de desenvolvimento da chamada
revolução 4.0, radicalizando as formas de subordinação dos trabalhadores, ao mesmo
tempo em que subverte a noção de meio ambiente do trabalho, ocultando suas bases
ambientais destrutivas sob a pecha de empreendedorismos e economias de compartilha-
mento.
As tendências de informalização da força de trabalho em todo o mundo e do au-
mento dos níveis de precarização da classe trabalhadora, com o incremento exponencial
da pobreza, do desemprego, da violência, do poder patronal que reduzem a capacidade
de instituição de novos direitos e da exploração intensiva dos recursos naturais. As mu-
danças em curso estariam impondo um padrão de desregulação socioambiental, elevando
a autonomia da vontade como instituto jurídico basilar para regular as novas relações de
trabalho, ao mesmo tempo em que subverte o meio ambiente laboral com a externalização
dos riscos e responsabilidades para o próprio trabalhador.
Diante da catástrofe que se impõe, estaria o direito do trabalho limitado a cumprir
somente uma função de adequação à nova ordem austera do Estado de direito (CARVA-
LHO, 2022), promovendo um ajuste socialmente excludente, humanamente degradante
e ambientalmente nocivo à sociedade e ao conjunto dos trabalhadores; ou seria possível
imaginar outros sentidos e funcionalidades que reforcem um sistema de proteção e garan-
tias pautados pela relação simbiôntica e totipotente entre o gênero humano e a natureza,
entre trabalhadores e o meio ambiente?
Para compreender em profundidade essas questões, Raúl García Barrios e Nancy
M. Jiménez Martínez (2020) sinalizam que refletir sobre os conceitos de Antropoceno e
Capitaloceno é fundamental num contexto em que as crises sanitária, econômica, política,
militar e climática atuais parecem colocar a humanidade mais perto do fim do mundo tal
como conhecemos, denunciando com agudez, a partir de evidências incontornáveis, as
limitações de um sistema capitalista globalmente interconectado, fragilmente articulado
e incapaz de resolver as contradições socioambientais decorrentes do seu próprio funcio-
namento.
Esse debate público, avançam os pesquisadores da Universidade Nacional Autôno-
ma do México – UNAM, por um lado, tem alertado sobre os ajustes necessários entre a
forma de vida humana e o meio natural em que está inexoravelmente inserida. Por outro,

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Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

tem servido para nominar o momento atual da história planetária, além de atribuir respon-
sabilidades sobre esse processo.
Como fora apontado, a gênese do conceito de Antropoceno “se refere ao poder
que a atividade humana adquiriu até se tornar uma força ambiental destrutiva em escala
geológica” (Barrios; Martínez, 2020). Eugene Stoermer e Paul Crutzen utilizaram o ter-
mo pela primeira vez para descrever as mudanças que o globo experimentava devido à
presença humana. Para os cientistas naturais, o grau de intervenção antrópica na biosfera
continuará visível por milhões de anos, gravadas nas camadas geológicas do planeta.
Assim, paleontólogos de um futuro distante - ou mesmo outra civilização terrestre ou
oriunda do espaço profundo, caso esta aqui venha a ser dizimada – poderão identificar as
transformações abruptas na composição atmosférica, o derretimento das calotas polares,
a acidificação e expansão dos oceanos, desertificações, o aquecimento global e a extinção
massiva de espécies, provocados pelos modos de reprodução socioeconômica da humani-
dade em sua passagem devastadora sobre a Terra (ESTEVES, 2014).
Muito embora não haja consenso quanto ao início da conversão da humanidade em
força geológica, se com o início da revolução neolítica, das grandes navegações coloniais
ou da era nuclear, Paul Crutzen, a partir de pesquisas desenvolvidas junto ao Programa In-
ternacional Geosfera-Biosfera9 (IGBP), sugeriu que a data de início do Antropoceno fosse
estabelecida perto do final do século XVIII, no mesmo período da revolução industrial (e
da gênese do direito do trabalho), coincidindo com a invenção da máquina ao vapor por
James Watt em 1784. Após discussões coletivas, a equipe do IGPB definiu o ano de 1750
como marco inicial do Antropoceno, período em que se começou a registrar mudanças
profundas nas dinâmicas naturais do sistema terra.
Karl Marx [1845-46], 1998), em “A ideologia alemã”, já apontava sobre o processo
de conversão das forças produtivas em forças potencialmente destrutivas como expressão
ontológica da acumulação de capital e realização do mais valor. Nesta complexa e imbri-
cada equação, o trabalho ocupa a condição de variável determinante, justamente por ser o
meio de intervenção no ambiente natural, direta ou indiretamente. Virgínia Fontes (2017)
nos lembra que somente na sociedade capitalista os seres sociais – em sua imensa maioria
– são convertidos genericamente em trabalhadores, ou seja, em seres cuja utilidade social
fundamental é produzir riqueza, tendo na venda da força de trabalho, sua necessidade
singular insuperável, sob quaisquer condições e atravessando todas os marcadores sociais
de sexo, gênero, cor, religião, educação, região ou nacionalidade, numa busca irrefreável
pela sobrevivência.
O sociometabolismo entre trabalho e capital – aqui compreendido como essa troca
entre seres sociais na sua relação de transformação da natureza – é profundamente diver-

9
Como parte do projeto, a equipe de síntese queria construir uma imagem mais sistemática das mudanças
causadas pelo ser humano no Sistema Terrestre, baseando-se principalmente, mas não exclusivamente, no
trabalho de nos projetos principais do IGBP. A ideia era registrar a trajetória do ‘empreendimento humano’
por meio de um número de indicadores e, no mesmo período, acompanhar a trajetória dos principais indica-
dores do estrutura e funcionamento do Sistema Terrestre” (CRUTZEN; STOERMER, 2000).

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

so, desigualmente combinado e assume várias feições segundo os lugares e os períodos


históricos em que se desenvolvem. As formas de interação entre o trabalho e o capital de-
pende das maneiras pelas quais, em cada momento da história, a sociedade decidiu orga-
nizar sua vida material e cultural. Quanto mais se expande o capitalismo, mais o trabalho
assume múltiplas configurações. Foi assim da primeira até a quarta revolução industrial,
resta saber se chegaremos à quinta.
Na seara dessa verve destrutiva, o período do pós-II Guerra marca tanto o ciclo
de ouro do capitalismo ocidental (HARVEY, 1992), com a consolidação das sociedades
salariais, do regime de acumulação tayloriano-fordista e das promessas do Estado de bem
estar social, do centro à periferia do capitalismo, como o período da chamada Grande
Aceleração10, estabelecido a partir das alterações profundas nas dinâmicas ambientais do
planeta, com o avanço da agricultura industrializada, da extração de commodities, espe-
cialmente petróleo, grãos, proteína, água e minério, da expansão da energia nuclear e da
imposição do consumo como elemento central do modo de vida atual.
Diante desses fatores, o debate sobre o Antropoceno transcende os círculos de cien-
tistas da terra para fundamentar questionamentos éticos a partir das ciências sociais e
humanidades. Barrios e Martínez (2020) apontam que “persistiu entre muitos cientistas,
tanto naturais como sociais, uma posição que chamaremos ‘acrítica’, que destaca que o
Antropoceno é o conceito mais decisivo produzido até agora como alternativa às noções
do moderno e da modernidade, e deu a enorme contribuição de colocar diferentes setores
acadêmicos em diálogo”. A dimensão acrítica desta posição estaria relacionada à redução
dos problemas ambientais a um tipo de ajuste técnico político a ser resolvido a nível glo-
bal, nos marcos dos instrumentos e organismos de direito internacional em aliança com
redes civis transnacionais de defesa do meio ambiente, na qual o capitalismo verde e a
geoengenharia exerceriam papéis fundamentais.
Nesse sentido, ao estimular uma reflexão acerca da crise socioambiental contem-
porânea sem considerar com a devida atenção, as causas históricas radicais que a fun-
damentam, as noções disseminadas sobre o Antropoceno tendem a separar a lógica do

10
“Das várias teorias sobre do surgimento do Antropoceno e, portanto, uma nova Época geológica dentro
do Período Quaternário, a que conquistou mais ou menos consenso dentro da ciência do sistema Terra é
a chamada Grande Aceleração, que localiza o ponto de origem no período pós-1945. Essa periodização
substituiu os relatos alternativos, que incluem o ’Antropoceno Antigo’, que postula o início do Antropo-
ceno com o início da civilização no Pleistoceno Superior ou o início da Revolução Industrial. A Grande
Aceleração começou entre 1950 e 1964, mas pode ser formalmente datada em 16 de julho de 1945, com a
detonação da primeira bomba atômica. Há claras evidências de um pico de radiocarbono atmosférico regis-
trado em 1964, em anéis de árvores, e que pode ser atribuído a testes nucleares, que vão além da variabili-
dade natural (Zalasiewicz et alii, 2011). Qualquer que seja a origem específica, agora é amplamente aceito
estar nesse período - essencialmente nos últimos 50 anos -, quando a mudança planetária também se torna
evidente no sistema Terra como um todo. Isso inclui a mudança climática, mas também uma série de outras
mudanças, como as relacionadas aos oceanos, por exemplo, a formação do plástico como uma nova rocha.
Evidências recentes sugerem que o plástico, uma invenção humana de 1907, se combinou com o sedimento
natural para formar um novo estrato de rocha“ (DELANTY, 2018).

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Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

crescimento econômico linear das nações de sua base estrutural, silenciando-se sobre o
papel do capitalismo nesse processo. Contrariamente a esta perspectiva reducionista, Ja-
son Moore (2017; 2020) tem sugerido a substituição do termo Antropoceno pelo de Capi-
taloceno, justamente por descrever de forma mais precisa os impactos humanos concretos
sobre a Terra, na medida em que atribui às sociedades capitalistas o desenvolvimento de
externalidades ambientais mais nocivas ao sistema Terra. O termo dialoga ainda com as
determinações raciais e de gênero que conformam o padrão patriarcal-escravagista do
capitalismo global, ao denunciar os processos de superexploração da força de trabalho de
mulheres, negros, imigrantes e a distribuição desigual dos prejuízos ambientais para estes
setores subalternizados.
“Ao colocar a natureza no centro do pensamento sobre o trabalho e o trabalho
no centro de nosso pensamento sobre a natureza, o Capitaloceno permite pensar a crise
ecológica mundial de uma maneira mais clara e profunda” (BARRIOS; MARTÍNEZ,
2020). Mais do que um sistema econômico, o capitalismo é uma forma social predatória
de organização da natureza a partir da exploração do trabalho coletivo alheio (MOORE,
2020). As forças destrutivas engendradas pelo capital revelam seu potencial destrutivo
sobre os recursos naturais e humanos do planeta, tendo no controle do trabalho e do meio
ambiente seus elementos de reprodução ampliada. É a partir desta perspectiva que Jason
Moore (2017; 2020) propõe a superação do dualismo reducionista que tende a apartar em
caixas distintas o que seria de um lado, as crises ecológicas, climáticas e ambientais e do
outro, as crises sociais, econômicas e culturais.
Assim, se a crise ambiental é também a crise do trabalho, e vice-versa, como precei-
tua a teoria da ruptura sociometabólica em Marx11 e as análises em torno do conceito de
Antropoceno/Capitaloceno, abre-se então, um campo investigativo para se refletir sobre
as funções ambientais do direito do trabalho em seus processos acelerados de crise e fle-
xibilização, para além do seu aspecto meramente regulatório.
Pensando sobre as graves repercussões sanitárias, ambientais e trabalhistas acirra-
das com a pandemia global da Covid-19 e sobre os desafios societários colocados pela
modelo de vida predatório neoliberal, Carelli (2020) defende que somente a constituição
de Direito Ecológico do Trabalho, pautados por diretrizes de universalidade, de democra-
tização das tarefas de reprodução social, de reconhecimento do valor social das diversas
atividades e funções, ampliando as noções de trabalho e empregador para determinar
sujeitos e beneficiários do trabalho alheio para fins de justa retribuição. Assim, “o Direito
Ecológico do Trabalho funcionaria teria um tripé de atuação: regulação estrita do tempo
de trabalho, garantia da renda mínima universal e defesa do meio ambiente do trabalho
(grifos do autor)”.

11
A redescoberta, na última década e meia, da teoria da ruptura metabólica de Marx passou a ser vista por
muitos na esquerda como uma crítica poderosa da relação entre a natureza e a sociedade capitalista contem-
porânea. O resultado foi o desenvolvimento de uma visão ecológica mais unificada do mundo, transcen-
dendo as divisões entre ciências naturais e sociais e permitindo perceber as maneiras concretas pelas quais
as contradições da acumulação de capital estão gerando crises e catástrofes ecológicas” (FOSTER, 2020).

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

A virada ecológica do direito do trabalho impõe-se ante a necessidade de se conce-


ber alternativas viáveis para: i) conter a invasão do tempo de trabalho remunerado sobre
o tempo de vida, uma vez que quanto menor a jornada máxima de trabalho, mais postos
de trabalho são gerados; ii) garantir renda permanente para subsidiar o direito de viver
dignamente em todas as etapas da vida, aliada ao fortalecimento dos serviços públicos in-
dispensáveis; iii) proteger o meio ambiente, nele compreendido o do trabalho, integrando
simbioticamente o gênero humano à natureza que o constitui, radicalizando os princípios
ambientais da prevenção e da precaução sobre as noções de desenvolvimento e progresso
(CARELLI, 2020).
4. Para continuar debatendo
Somente com o rompimento de visões dogmáticas, sectárias e autorreferenciadas é
que se poderá explicar adequadamente o estágio atual da crise que assola a humanidade
neste início de século XXI. Uma crise cuja singularidade reside não somente no cres-
cimento exponencial da pobreza e do desemprego estrutural, maximizados pela racio-
nalidade técnico-financeira da governança neoliberal dominante, mas, na possibilidade
concreta de extinção da vida planetária como conhecemos.
As consequências ambientais degradantes do projeto econômico global em curso,
afetando principalmente o conjunto de trabalhadoras e trabalhadores subalternizados nas
periferias do capitalismo, reforçam que esse debate nunca foi alarmismo, como pressu-
põem os defensores neoliberais e negacionistas climáticos. Talvez o desafio resida no
compromisso político e acadêmico de situar o estágio atual da crise do trabalho a partir
da crise ambiental e vice-versa, principalmente para denunciar a relação de autorreforço
entre a flexibilização dos sistemas de regulação social do trabalho e a predação do meio
ambiente em suas múltiplas dimensões. Nesse caso, a experiência brasileira tem sido tra-
gicamente representativa.
Forjar um direito do trabalho capaz de transcender as limitações dogmáticas de
adequação às políticas de austeridade neoliberal é tarefa urgente e os processos cotidianos
de resistência sistêmica e epistêmica protagonizados por trabalhadores precários, grupos
subalternos e intelectuais marginais na luta por melhores condições de trabalho e de vida
oferecem as ações e ideias necessárias para adiar o fim do mundo, tal como nos instiga
o filósofo e pensador indígena, Ailton Krenak (2019), radicalizando as concepções de
humanidade e humano, a partir de uma outra ontologia, não alienada, cosmoperceptiva e
integradora em sua dimensão natural e ancestral. Não há mais tempo a perder.
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102
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

FOSTER, John Bellamy. Marx e a ruptura no metabolismo universal da natureza


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103
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

PRT3. Reparações trabalhistas para vítimas de Brumadinho estão garantidas em


acordo firmado entre o MPT e a Vale S.A. MPT/MG. (2019). Disponível em: <https://
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104
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

O TRABALHADOR - CONSUMIDOR NO PANÓPTICO PÓS-MODERNO

Maria Cecília Máximo Teodoro1

1. Introdução
Vivenciam-se hoje os frutos das últimas revoluções tecnológicas (notadamente a
internet), e a consolidação de um novo modelo produtivo, chamado de Uberista. Carac-
terizada pela passagem da sociedade industrial para a sociedade dos dados, a Era Uber
estabelece uma nova lógica de acumulação e faz atual o Panóptico de Jeremy Benthan,
embora refinado e adaptado à essa nova realidade.
Nesse contexto, o capitalismo financeiro mostra sua hegemonia usando dos algo-
ritmos, do biopoder e dessa nova lógica da acumulação, que Soshana Zuboff2 chama de
uma nova forma de capitalismo de informação, para prever e manipular o comportamento
humano como instrumento de criar receitas e controle de mercado.
O estudo se propõe a analisar, neste contexto, os conceitos de big data e do big
other, caracterizando-os e mostrando seus impactos nas vidas das pessoas. Em seguida
explicar-se-á a atualidade do panóptico de Jeremy Benthan3, passando por demonstrações
das experiências de condicionamento clássico de cachorros, a fim de traçar um paralelo
com a sociedade contemporânea e com a tomada da subjetividade das pessoas.
Por fim, analisaremos como o panóptico se mostra ainda atual, embora refinado,
neste contexto de uma vida digital e quais os impactos na vida do trabalhador e do con-
sumidor.
2. O Contexto Atual do Big Data e do Big Other
As transformações históricas da sociedade e da economia determinam diretamente
mudanças no pensamento filosófico, cultural, na ciência do direito e na ciência jurídica e
nas interações sociais e humanas.
Da mesma maneira caminham os direitos da pessoa, em constante mutação e es-
tabelecendo um relacionamento direto com outras áreas do conhecimento. Os direitos

1
Pós-Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de Castilla-La Mancha com bolsa de pesquisa
da CAPES; Doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela USP- Universidade de São Paulo;
Mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Graduada em
Direito pela PUC/MG; Professora de Direito do Trabalho do Programa de Pós-Graduação em Direito e
da Graduação da PUC/MG; Professora Convidada do Mestrado em Direito do Trabalho da Universidade
Externado da Colômbia. Pesquisadora; Líder do Grupo de Estudo RED – Retrabalhando o Direito, vinculado
à RENAPEDTS.
2
ZUBOFF, Shoshana. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de in-
formação. In: BRUNO, Fernanda et al. (org.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São
Paulo: Boitempo, 2018.
3
BENTHAM, Jeremy et al. O panóptico. Organização de Tomaz Tadeu. Traduções de Guacira Lopes
Louro, M. D. Magno, Tomaz Tadeu. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

105
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

humanos constituem uma classe variável, como a história desses últimos séculos demons-
tra suficientemente, mudando e se complexificando diária e incessantemente. Também
são inexoráveis as transformações das condições históricas, dos interesses das classes no
poder e dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, dos conflitos sociais e das
demandas humanas.
A análise do contexto atual é importante para a tentativa de compreensão e caracte-
rização do mercado de trabalho do hoje, da sociedade de consumidores e das interações
sociais em um mundo digital, a fim de se compreender os direitos das pessoas humanas
que trabalham e consomem.
Uma nova dinâmica social se delineia, desde uma perspectiva da globalização e
das intensas renovações e revoluções tecnológicas, e faz surgir, na mesma medida, novos
conflitos e novos direitos, modificando drasticamente o modo de vida das populações de
todos os países.
Os episódios não repercutem mais apenas no âmbito local, mas sim globalmente.
Em questão de segundos, por vezes em tempo real, como o 11 de setembro por exemplo,
uma catástrofe reverberou no mundo e todos tomaram conhecimento instantaneamente, a
ponto de assistirem pela televisão o colapso do segundo avião com as torres gêmeas. Uma
desvalorização da bolsa norte-americana ou do japão colapsa toda a economia mundial. É
o big data como um novo eixo e o seu poder de fazer o mundo girar em torno da informa-
ção. Os meios digitais e as redes sociais, cada vez mais aprimorados e eficientes, se por
um lado tornam dinâmicas e imediatas as relações entre as pessoas, por outro lado, têm
o efeito colateral de “transformar em públicas informações que deveriam ser privadas”4.
O advento da internet permitiu mudanças significativas no modelo produtivo, inau-
gurando uma nova era chamada de Uberista, caracterizada pela passagem de uma so-
ciedade eminentemente industrial para uma sociedade organizada, norteada e ditada por
dados. As empresas desse novo modelo propagam a ideologia de que cada um de seus
trabalhadores é um “empreendedor de si mesmo”5, no intuito de se furtarem dos encargos
sociais que a relação de emprego gera e também sabedoras que são de que “o trabalho tem
como fundamento propulsor a satisfação de uma necessidade”6.
A nova lógica da acumulação tem fascínio pelos dados pessoais e entra na era di-
gital. Nela, o “big data” é a nova medula desse organismo chamado “capitalismo de
vigilância”7 e cognitivo. A extração não é mais tão somente do excedente da força de
trabalho, mas também dos dados dos usuários das novas tecnologias e junto destes dados

4
OCTAVIANI, Tiago. Globalização e constitucionalismo frente à dicotomia público e privado. Disponível
em:<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7803>. Acesso em: 7 set. 2019.
5
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São
Paulo: Editora Boitempo, 2016.
6
SCHLESENER, Anita Helen. Marxismo(s) e educação. Posição 281.
7
ZUBOFF, Shoshana. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de in-
formação. In: BRUNO, Fernanda et al. (org.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São
Paulo: Boitempo, 2018, p. 18.

106
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

também das suas subjetividades decorrentes do produto das interações sociais cada vez
mais digitais.
Como uma nova espinha dorsal, o big data diz respeito aos dados pessoais, dentre
eles dados sensíveis da pessoa humana. As informações mais íntimas, os hábitos e desejos
são insumos fornecidos pelos próprios usuários das redes, que alimentam este novo mo-
delo - agudamente rendoso, disputado e de transparência duvidosa - em suas interações
nas redes sociais.
Os usuários das redes de computadores e trabalhadores alienam seus dados acrítica
e voluntariamente, abrindo o baú de suas intimidades rumo a um desígnio desconhecido,
não sabendo como serão tratadas suas informações mais íntimas e como isso pode afetar
suas próprias vidas.
Os algoritmos então passam a captar as transações e as relações feitas pelos compu-
tadores, smartphones e tablets, fazendo com que “os comportamentos que anteriormente
não eram observáveis, sejam agora captados”8.
Já o big other é “o nome de batismo dessa nova arquitetura universal que existe em
algum lugar entre a natureza e Deus”9. Trata-se de um poder, que parece sobrenatural, e
que se caracteriza como uma governança em rede que inventaria, transforma e mercado-
riza a vida cotidiana, “desde o uso de um eletrodoméstico até seus próprios corpos, da
comunicação ao pensamento, tudo com vista a conquistar mais consumidores”10.
Google e Facebook foram empresas precursoras nesse novo mercado produtivo
de dados, adotando a estratégia de usar a tecnologia a seu favor para apurar os desejos
das pessoas e lhes devolver sob a forma de propaganda. “Mas, para tanto, percebeu que
deveria passar da fase de captura do maior esforço físico para a captura do produto da
cooperação social”11.
Com esse desiderato, a tecnologia é empreendida para a maior aquisição de dados
de usuários, que serão usados como insumos na análise e na produção de algoritmos, de-
senvolvendo “o chamado microtargeting, uma propaganda dirigida a um alvo específico,
uma visada precisa do anúncio publicitário em relação às características dos usuários”.

8
ZUBOFF, Shoshana. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de in-
formação. In: BRUNO, Fernanda et al. (org.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São
Paulo: Boitempo, 2018, p. 41.
9
TEODORO, Maria Cecília Máximo; ANDRADE, Karin Bhering. O panóptico pós-moderno no trabalho.
In: Futuro do Trabalho: os efeitos da revolução digital na sociedade. organização: Rodrigo de Lacerda
Carelli, Tiago Muniz Cavalcanti, Vanessa Patriota da Fonseca. – Brasília : ESMPU, 2020, p. 251-271, p.
258.
10
ZUBOFF, Shoshana. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de in-
formação. In: BRUNO, Fernanda et al. (org.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São
Paulo: Boitempo, 2018, p. 43-44.
11
FUMAGALLI, Andrea; LUCARELLI, Stefano. A model of Cognitive Capitalism: a preliminary anal-
ysis. In: European Journal of Economic and Social Systems, December 2007. Disponível em: http://mpra.
ub.uni-muenchen.de/28012/> Acesso em 16 set. 2020.

107
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Ou seja, “mais informação circulando significa mais capital circulando, uma vez que o
sistema opera em função da propaganda12.
O documentário Privacidade rackeada, disponível no canal Netflix, mostra como as
eleições presidenciais dos EUA, (nas quais Trump foi o vencedor) e o BREXIT (a saída
do Reino Unido da União Européia) foram acontecimentos arquitetados pela coleta ou
venda indevida dos dados pelo facebook para a Empresa Cambridge Analytica, levando
a uma manipulação antidemocrática da opinião das pessoas caracterizadas como persua-
síveis.
A Empresa Uber, desde 2016, atualizou seu aplicativo de forma a coletar dados
de localização de seus usuários. Uma alteração que passou por imperceptível pelos seus
usuários, não retratando a grandiosidade da mudança em termos de invasão de privacida-
de. O aplicativo passou a rastrear a movimentação dos passageiros mesmo fora de uma
viagem, o que antes acontecia apenas durante o uso do app e que agora capta os dados por
até 5 minutos depois da pessoa descer do carro13.
Com o monitoramento durante e após as viagens, tanto do motorista quanto do
passageiro, a Uber captura dados pessoais detalhados da vida cotidiana das pessoas, pas-
sando-se “à materialização de uma sociedade plenamente administrada”14.
Com apuro jurídico e esmero linguístico, a Uber, a fim de se apropriar de trabalho
desprotegido e dos dados pessoais, tenta se mostrar inserida no modelo de economia so-
lidária e busca passar a ideia de consumo colaborativo.
Mas tal discurso se mostra ideológico e não passa de sharewashing, ou seja, empre-
sas fingem praticar a economia compartilhada, diante do forte apelo social e ecológico do
compartilhamento, que visa ser um contraponto ao consumo desenfreado e ao irrefreável
imperativo de crescimento econômico, que levam a crises ambientais. Trata-se de uma
economia que visa ao compartilhamento de recursos, a fim de reduzir o consumo desne-
cessário. É o próprio compartilhamento, o movimento não monetário de bens e serviços
entre amigos e dentro das comunidades.
Assim, em sua acepção pura, a economia compartilhada não se relaciona com o
sharewashing. A principal diferença entre a promessa da economia compartilhada real e a
enxurrada de empresas que “se passam por empresas de economia compartilhada” fazen-
do uma “lavagem de ações e buscando se esconder sob seu manto é que a última envolve
12
ANTUNES, Deborah Christina; MAIA, Ari Fernando. Big Data, exploração ubíqua e propaganda diri-
gida: novas facetas da indústria cultural. Psicol. USP, São Paulo, v. 29, n. 2, p. 189-199, Ago. 2018. Dispo-
nível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642018000200189&lng
=en&nrm=iso>. Acesso em 16 Set. 2020.
13
UBER passa a rastrear localização de usuários mesmo após o fim de uma corrida. Canaltech. Por Reda-
ção. 29 de nov. 2016. Disponível em: <https://canaltech.com.br/apps/uber-passa-a-rastrear-localizacao-de-
-usuarios-mesmo-apos-o-fim-de-uma-corrida-84945/> Acesso em 15 set 2020.
14
ANTUNES, Deborah Christina; MAIA, Ari Fernando. Big Data, exploração ubíqua e propaganda diri-
gida: novas facetas da indústria cultural. Psicol. USP, São Paulo, v. 29, n. 2, p. 189-199, Ago. 2018. Dispo-
nível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642018000200189&lng
=en&nrm=iso>. Acesso em 16 Set. 2020.

108
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

inescapavelmente troca monetária, por lucro, em total contraste com qualquer definição
de “compartilhar”15.
A Uber em seguida “esgota seus adversários no tribunal ou eventualmente concorda
em pagar multas que representam um investimento negligenciável para um retorno signi-
ficativo”, prática hoje chamada de “imperialismo de infraestrutura”1617.
Nessa lógica, as pessoas são cooptadas a serem empreendedoras de si mesmas,
cujo fio condutor é a ideia de liberdade, mas acaba por permitir que todo o fruto das suas
interações sociais seja captado pelo sistema e como um bumerangue as informações são
tratadas e voltam como ofertas de consumo, quase como num passe de mágica, incutindo
necessidades artificiais.
No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados, (Lei 13.709 de 14 de agosto de 201818)
é publicada como um instrumento de controle e limitação à captura, tratamento e utiliza-
ção dos dados pessoais.
A LGPD visa proteger os chamados dados pessoais sensíveis e não sensíveis, con-
ceituados no artigo 5º, incisos I e II. São estes o produto das interações das pessoas
naturais nas redes sociais, que a identificam ou a tornam identificável, em especial os
sensíveis ligados à sua origem racial ou étnica, opiniões políticas e convicções religio-
sas ou filosóficas, sua filiação sindical ou não, seus dados genéticos, dados biométricos,
informações relacionadas a saúde, dados relativos à vida sexual ou orientação sexual da
pessoa.
O conceito de dados pessoais dado pela LGPD, do ponto de vista teórico, se apre-
senta adequado e suficiente, mas como barrar a utilização indevida desses dados é a gran-
de questão posta. A LGPD tenta dizer como empresas e entes públicos podem coletar e
tratar informações de pessoas, estabelecendo direitos, exigências e procedimentos.
Em tese o titular ganha direitos, podendo por exemplo solicitar os dados que a
empresa tem sobre ele e para qual finalidade foram usados. E se forem usados incorreta-
mente, poderá cobrar a correção. Em determinados casos, poderá se opor a um tratamento

15
KALAMAR, Anthony. Sharewashing is the new greenwashing. OpEdNews Op Eds maio de 2013.
Disponível em: < https://www.opednews.com/articles/Sharewashing-is-the-New-Gr-by-Anthony-Kala-
mar-130513-834.html> Acesso em 16 set 2020.
16
ZUBOFF, Shoshana. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de in-
formação. In: BRUNO, Fernanda et al. (org.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São
Paulo: Boitempo, 2018, p.30.
17
Exemplificativamente, vale citar que no Tribunal mineiro [TRT3] das 11 turmas, apenas 03 reconhecem
o vínculo de emprego entre motorista e plataforma, a depender da composição dos julgadores, são elas:
a sétima turma, a primeira e a décima primeira. Sabendo-se disso, a Uber faz uma análise econômica do
risco e controla a jurisprudência, sempre fazendo acordos em sigilo quando os recursos caem nas referidas
turmas.
18
A referida lei passaria a vigorar apenas em 2021 em razão da pandemia da COVID-19. Mas, após o
Congresso não converter o adiamento previsto em Medida Provisória em Lei, em 17/09/2020, a LGPD foi
sancionada pelo Presidente da República. E assim, passou a vigorar no ordenamento jurídico brasileiro a
partir de 18/09/2020.

109
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

de dados, e pedir revisão de decisões automatizadas tomadas com base no tratamento de


dados. No entanto, até que isso aconteça, os dados foram capturados e usados.
A questão que se coloca é se a LGPD surge como mecanismo eficaz à contenção
do uso desenfreado do big data pelas empresas ou se servirá, em realidade, para criar um
ambiente jurídico favorável à captura e ao uso impróprio de dados pessoais.
De qualquer forma, o controle que se desenvolve pela captura dos dados massivos
se diferencia do regimes disciplinares, que se baseavam em restrições e coerções diretas;
mas também se aproxima deles porque o controle não desaparece, apenas é feito pelos
próprios usuários, que alimentam as redes com as suas informações e, “enquanto imagi-
nam obter gratuitamente informações, diversão e lazer”, estão, na verdade, inseridos num
“jogo assimétrico” no qual não se sabem monitorados, “não podem escolher quais dados
fornecer, e menos ainda o que será feito com suas informações”19.

3. O Trabalhador e o Consumidor numa Vida Digital


A série britânica Black Mirror, que se propõe ser antológica e de ficção científica,
criada por Charlie Brooker, atrai inúmeros espectadores com seus episódios com temas
obscuros, complexos, inusitados e um tanto quanto satíricos.
O que caracteriza as séries televisivas disponíveis ao público em geral, levando-os
a “maratonar” diante da tela, é a sequência de fatos e personagens, deixando o expectador
viciado e desejando saber o desfecho do próximo capítulo. Na série, todos os episódios,
mesmo sem conexão uns como os outros, tratam e examinam crítica e satiricamente os
impactos da tecnologia nas interações sociais, na percepção própria e coletiva dos indiví-
duos e em sua realidade diária na sociedade atual.
Todos os episódios, mesmo sem conexão uns como os outros, tratam e examinam
crítica e satiricamente a sociedade atual, notadamente no que se refere aos impactos da
tecnologia nas interações sociais e na percepção própria e coletiva dos indivíduos e sua
realidade diária.
Vários episódios iniciam da tela de um smartphone, o que parece inspirar o próprio
título de Black Mirror que, numa tradução livre “Espelho Preto”, remete à tela dos nossos
telefones e ao fato de que hoje boa parte da nossa vida ali se desenvolve.
Ainda mais curioso é o fato de que a série, mesmo relativamente nova, lançada pela
primeira vez em 2011, e se pretendendo distópica, se mostra cada vez mais premonitória
de uma realidade que bate à porta.
No episódio “Queda Livre” (Nosedive) os likes recebidos pelas pessoas servem de
mecanismo de avaliação e, via de consequência, de mecanismo de escalonamento social.

19
ANTUNES, Deborah Christina; MAIA, Ari Fernando. Big Data, exploração ubíqua e propaganda diri-
gida: novas facetas da indústria cultural. Psicol. USP, São Paulo, v. 29, n. 2, p. 189-199, Ago. 2018. Dis-
ponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642018000200189&lng=
en&nrm=iso>. Acesso em 16 Set. 2020.

110
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Comportamentos e atitudes normais dos usuários são passíveis de avaliação e boas notas
podem gerar prestígio e mobilidade social, sendo passível de conduzir à obtenção de um
novo emprego dos sonhos ou à chance de adquirir um apartamento ou um carro novo,
por exemplo. Na série, a protagonista entra num processo obsessivo em busca de likes,
acabando por destruir-se, numa verdadeira queda livre.
O cenário do episódio remete a um mundo perfeito, com tons claros, numa atmosfe-
ra sublime. Qualquer semelhança entre o aplicativo star do episódio com a nossa realida-
de, notadamente com o aplicativo Instagram, será mera coincidência? Em tese, a grande
diferença entre o cenário de Queda livre e o Instagram é o fato de que as avaliações feitas
no app star geram efeitos e determinam a vida real. E o Instagram, em tese, não.
É inegável que a vida no Instagram tem ritmo, sons e tons sublimes, pastéis, idíli-
cos, beirando a perfeição, mas seria inadequado afirmar que as curtidas e interações do
aplicativo também determinam diretamente a vida real?
Na introdução de sua obra “Vida para o consumo: a transformação das pessoas em
mercadoria”, Zygmunt Bauman narra três diferentes casos retirados do renomado jornal
britânico The Guardian.20
O primeiro deles é de 2006 e relata o crescimento exponencial de redes sociais
como MySpace; Spaces, MSN e Bebo, atentando para o fato de que o cerne da questão
está na felicidade dos usuários, na maioria colegiais, em compartilhar informações pes-
soais e detalhes íntimos de suas vidas pessoais. Ele chama esta sociedade de “confessio-
nal” e diz ser notoriamente caracterizada pela eliminação da fronteira entre o privado e
o público e “por transformar o ato de expor publicamente o privado numa virtude e num
dever públicos”, sendo certo que “para a sociedade virtual, o não compartilhamento da
intimidade poderá tornar a pessoa invisível, podendo ainda levar a sua rejeição social” 21.
No segundo relato, em 2016, a tecnologia era usada para classificar os clientes, num
ranking variável de 1 a 3, pelo qual a empresa poderia otimizar o seu tempo e atender de
forma diferenciada, priorizando o pronto e qualificado atendimento dos clientes nota 1,
e deixando na fila de espera os clientes de nota 3, considerados menos importantes. Bau-
man chamou de controle panóptico, um sistema de vigilância negativa22.
E o terceiro caso narrado diz respeito ao sistema de pontuação dos migrantes, anun-
ciado pelo Ministro Britânico do Interior, Charles Clarke. O sistema usaria da tecnologia
para selecionar migrantes e permitir ou não seu ingresso no país, pois seria apto a classifi-
ca-los tendo como referência quem teria mais dinheiro para investir ou maior capacidade

20
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 7.
21
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p.9-10.
22
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 10-11.

111
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

para ganha-lo. Ou seja, um sistema de seleção de seres humanos nos mesmos moldes
mercadológicos, onde se elege o melhor produto entre os ofertados na vitrine/prateleira.23
O que os três casos, embora totalmente diferentes, tem em comum é exatamente o
papel de produtores e mercadorias desempenhados pelos adolescentes, pelos clientes em
potencial e pelos candidatos a imigrantes, mediante o forte estímulo à competitividade e
à promoção pessoal, promovendo o marketing de si mesmos, no intuito de se tornarem
seres humanos atraentes e desejáveis. E “para tanto, fazem o máximo possível e usam os
melhores recursos que têm à disposição para aumentar o valor de mercado dos produtos
que estão vendendo. E os produtos que são encorajadas a colocar no mercado, promover
e vender são elas mesmas”.24
Buyng Chul Han chama a comunicação digital de “mídia de afetos”, ao permitir
uma “descarga de afetos instantânea possível”, pois nenhuma hierarquia clara separa o
remetente do destinatário. “Todos são remetentes e destinatários, consumidores e produ-
tores”.25 (HAN, 8%)
Voltando o olhar para o contexto do trabalho, a situação não se difere muito, man-
tendo substancialmente as mesmas características, posto que na sociedade atual a pessoa
é cobrada (ou se cobra) a se entregar inteiramente ao trabalho, sacrificando tudo pela sua
carreira.
Vincent de Gaulejac diz que a demanda por sucesso se fundamenta num desejo
inconsciente de onipotência, que alimenta o próprio narcisismo do indivíduo. De fato,
o trabalhador (e seu trabalho, agora comparados à mercadoria) deve se apresentar em
condições impecáveis, mostrando-se atraente e vendável, a fim de encorajar o capitalista
a gastar seu dinheiro comprando a sua mão-de-obra. O trabalhador, então, “tomado pela
ilusão de seu próprio desejo”, é levado “pelo medo de fracassar, de perder o amor do ob-
jeto amado (aqui, a organização). É o temor de não estar à altura, a humilhação de não ser
reconhecido como um bom elemento26.
Byung-Chul Han explica que as redes sociais, enquanto “espaços de exposição do
privado”, alimentam uma “imperiosa coação icônico-pornográfica da intimidade e da es-
fera privada”, de modo que “nenhuma esfera privada é mais possível”, pois a comuni-
cação digital transforma os olhos humanos em câmeras, de forma que “os olhos fazem
imagens”27.

23
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 11-12.
24
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 13.
25
HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital / Tradução de Lucas Machado. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2018, p. 9.
26
GAULEJAC, Vincent. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação so-
cial. Tradução Ivo Storniolo. 3ed. Aparecida: Ideias & Letras, 2007, p. 124.
27
HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital / Tradução de Lucas Machado. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2018, p. 10.

112
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

A exaltação da exibição da vida privada acaba por transformar a pessoa mesma em


mercadoria. Ao transformar o corpo em mercadoria a ser avaliada e consumida, o corpo
passa a ser controlado pelas mídias sociais, deixando de pertencer à pessoa, uma vez que
para pertencer e ser aceito, o indivíduo precisa adequar o seu corpo ao estilo predomi-
nante.
No trabalho, o mesmo se passa. O sistema de produção impõe ao trabalhador um
controle que é realizado também pela constante cobrança de se reciclar, se adaptar e se
atualizar a fim de permanecer no mercado, sob pena de ser extirpado do sistema, caso tais
imposições não sejam cumpridas.
Nesse sentido, Bauman afirma que na sociedade de consumidores, “ninguém pode
se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém poderá manter segura a sua
subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades
esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável”28.
A pessoa, assim dotada de um valor econômico e apta a reproduzir o círculo vicioso
de ora servir ao sistema como produtora, ora como a própria mercadoria, mantém uma
lógica econômica estritamente privada e guiada pela ênfase nas capacidades, competên-
cias, imagem e valores que cada pessoa deve mostrar ter para garantir uma posição no
mercado de trabalho29.
Sendo assim, fica difícil de saber se um indivíduo que, preocupado com sua
própria desatualização, faz um curso de especialização, pós-graduação ou de
reciclagem está se fortalecendo com relação à empresa ou se, pelo contrá-
rio, está tacitamente confirmando o poder dela: afinal, ele se tornará “melhor
para... a empresa! (GAULEJAC, 2017, p. 21)

O vínculo de emprego apresenta-se como importante fonte de coleta de dados, em


razão da abrangência e dos desdobramentos do poder empregatício, que permite à em-
presa monitorar seu trabalhador, que, em permanente estado de controle, dentro e fora do
trabalho, acaba por alienar sua subjetividade através da entrega da sua privacidade, mas
também de seu direito à desconexão, de seu tempo de lazer e até de suas horas de sono. E
porque não dizer: de sua liberdade.
Isso quer dizer que o trabalhador de hoje passa a retroalimentar o sistema capitalista
em três importantes momentos: no início, com a sua produção; no momento intermediá-
rio, com a oferta dos seus dados; e na ponta, ao consumir.

28
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 20.
29
GAULEJAC, Vincent. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação so-
cial. Tradução Ivo Storniolo. 3ed. Aparecida: Ideias & Letras, 2007, p. 21.

113
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

4. Considerações Finais: um panóptico pós-moderno


A ideia de um panóptico pós-moderno demonstra que com a adição do processo de
captura e de tratamento dos dados pessoais pelas suas interações sociais, a pessoa passa
agora a retroalimentar o sistema capitalista em três importantes momentos: no início, com
a sua produção enquanto trabalhador; no momento intermediário, com a oferta dos seus
dados; e na ponta, ao consumir.
Jeremy Bentham desenvolveu a ideia do Panóptico para criar um sistema de vigi-
lância permanente. Para tanto, os prisioneiros permaneciam em uma circunferência en-
quanto o apartamento do inspetor permanecia no centro dentro de um edifício circular30.
O panóptico era aplicável a “qualquer tipo de estabelecimento, no qual se necessi-
tasse manter pessoas sob inspeção”: seja o de punir o incorrigível, encerrar o insano, re-
formar o viciado, curar o doente. E a sua ideia de perfeição ideal era justamente que cada
pessoa estivesse realmente nessa condição, durante cada momento do tempo”31.
Michel Foucault, ao analisar a arquitetura do panóptico de Jeremy Bentham, em
que ele se inspirou, diz que esta tem “o efeito de induzir no observado um estado cons-
ciente e permanente de visibilidade, que assegura o funcionamento automático do poder”.
Ou seja, ele “é visto mas não vê; é objeto de uma informação, mas nunca sujeito numa
comunicação” 32.
A mesma lógica é observada nos experimentos de Pavlov. Ivan Pavlov pesquisou a
salivação dos cachorros na presença de comida. Em suas experiências, ao tocar um sino e
em seguida premiar com a comida, os cachorros salivavam. Depois de oferecer os dois
estímulos (sino e comida) repetidamente, Pavlov conseguiu que eles ficassem associados:
bastava tocar o sino, mesmo sem dar a comida, que os cachorros salivavam.
Aqui reside a semelhança. O panóptico é pós-moderno, refinado, repaginado. O
novo sistema de castas na sociedade é dado pelo consumo, signo de poder e de status. As
pessoas são levadas a consumir cada vez mais para adquirirem os bens que farão com que
elas pareçam pertencer a uma classe superior.

30
NUNES, Talita Camila Gonçalves. A precarização no teletrabalho. Escravidão tecnológica e impactos
na saúde física e mental do trabalhador. Belo Horizonte: RTM, 2018, p. 164.
31
BENTHAM, Jeremy et al. O panóptico. Organização de Tomaz Tadeu. Traduções de Guacira Lopes
Louro, M. D. Magno, Tomaz Tadeu. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008, p. 19-20.
32
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis:
Vozes, 1987. Disponível em: <https://comunicacaodasartesdocorpo.files.wordpress.com/2013/11/foucault-
michel-vigiar-e-punir.pdf.> Acesso em: 02 set. 2020, p. 166-167.

114
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Os trabalhadores, ao se venderem como mercadorias e priorizarem o consumo, vi-


venciam uma Síndrome de Patrão33, numa analogia à Síndrome de Estolcomo, em que
os trabalhadores se identificam muito mais com seus patrões do que com seus pares, sua
classe.
Para tanto, invertem a ordem trabalho, logo consumo, para quero consumir, logo
tenho que trabalhar o tanto que for necessário para conseguir. O sistema alimenta essa
síndrome introjetando na pessoa necessidades artificialmente criadas a partir de seus pró-
prios dados pessoais, por ela mesma ofertados em suas interações sociais digitais.
O resultado é o mesmo do panóptico, as redes sociais e as empresas fazem com que
as pessoas (ou usuários, para não dizer, viciados) sejam seus próprios algozes sem nem
mesmo perceber. Estando constantemente conectadas e nutrindo a falsa ideia de liberda-
de, as pessoas estão aprisionadas e sorrindo, como num Show de Truman34, cada vez mais
dependentes, mais controladas e vigiadas, alineadas, conformadas, como fantoches de um
sistema que coleta seus dados e dita suas necessidades.
Referências Bibliográficas
ANTUNES, Deborah Christina; MAIA, Ari Fernando. Big Data, exploração ubíqua e
propaganda dirigida: novas facetas da indústria cultural. Psicol. USP, São Paulo, v. 29,
n. 2, p. 189-199, Ago. 2018. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0103-65642018000200189&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 16 Set. 2020.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias.
Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
BENTHAM, Jeremy et al. O panóptico. Organização de Tomaz Tadeu. Traduções de
Guacira Lopes Louro, M. D. Magno, Tomaz Tadeu. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2008.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Rama-
lhete. Petrópolis: Vozes, 1987. Disponível em: <https://comunicacaodasartesdocorpo.fi-
les.wordpress.com/2013/11/foucaultmichel-vigiar-e-punir.pdf.> Acesso em: 02 set. 2020,
p. 166-167.

33
TEODORO, Maria Cecília Máximo. A síndrome de patrão. In: Tópicos contemporâneos de Direito do
Trabalho: reflexões e críticas: vol. 2. Coordenadores: Maria Cecília Máximo Teodoro, Roberta Dantas
Mello, Ana Flávia Paulinelli Rodrigues Nunes, Eduardo Perini Rezende da Fonseca. Belo Horizonte: RTM,
2017, p. 15.
34
Truman Burbank é a estrela de “O Show de Truman”, um fenômeno da TV que vai ao ar 24 horas por
dia e transmite todos os aspectos da sua vida sem o seu conhecimento. Disponível no netflix.

115
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

FUMAGALLI, Andrea; LUCARELLI, Stefano. A model of Cognitive Capitalism: a


preliminary analysis. In: European Journal of Economic and Social Systems, December
2007. Disponível em: http://mpra.ub.uni-muenchen.de/28012/> Acesso em 16 set. 2020.
GAULEJAC, Vincent. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e frag-
mentação social. Tradução Ivo Storniolo. 3ed. Aparecida: Ideias & Letras, 2007, p. 124.
HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital / Tradução de Lucas Machado.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.
KALAMAR, Anthony. Sharewashing is the new greenwashing. OpEdNews Op Eds maio
de 2013. Disponível em: < https://www.opednews.com/articles/Sharewashing-is-the-
-New-Gr-by-Anthony-Kalamar-130513-834.html> Acesso em 16 set 2020.
NUNES, Talita Camila Gonçalves. A precarização no teletrabalho. Escravidão tecnoló-
gica e impactos na saúde física e mental do trabalhador. Belo Horizonte: RTM, 2018, p.
164.
OCTAVIANI, Tiago. Globalização e constitucionalismo frente à dicotomia público e
privado. Disponível em:<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7803>. Acesso
em: 7 set. 2019.
SCHLESENER, Anita Helen. Marxismo(s) e educação. Posição 281.
TEODORO, Maria Cecília Máximo; ANDRADE, Karin Bhering. O panóptico pós-mo-
derno no trabalho. In: Futuro do Trabalho: os efeitos da revolução digital na socieda-
de. organização: Rodrigo de Lacerda Carelli, Tiago Muniz Cavalcanti, Vanessa Patriota
da Fonseca. – Brasília: ESMPU, 2020, p. 251-271, p. 258.
TEODORO, Maria Cecília Máximo. A síndrome de patrão. In: Tópicos contemporâneos
de Direito do Trabalho: reflexões e críticas: vol. 2. Coordenadores: Maria Cecília Má-
ximo Teodoro, Roberta Dantas Mello, Ana Flávia Paulinelli Rodrigues Nunes, Eduardo
Perini Rezende da Fonseca. Belo Horizonte: RTM, 2017, p. 15.
UBER PASSA A RASTREAR LOCALIZAÇÃO DE USUÁRIOS MESMO APÓS
O FIM DE UMA CORRIDA. CANALTECH. POR REDAÇÃO. 29 DE NOV. 2016.
DISPONÍVEL EM: <HTTPS://CANALTECH.COM.BR/APPS/UBER-PASSA-A-
-RASTREAR-LOCALIZACAO-DE-USUARIOS-MESMO-APOS-O-FIM-DE-U-
MA-CORRIDA-84945/> ACESSO EM 15 SET 2020.
ZUBOFF, Shoshana. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civi-
lização de informação. In: BRUNO, Fernanda et al. (org.). Tecnopolíticas da vigilância:
perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018.

116
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

BREVES CONSIDERAÇÕES SOB “ESTAR PROTEGIDO”


NO CONTEXTO DA RELAÇÃO ENTRE CAPITAL E TRABALHO

Cleber Lúcio de Almeida1

Introdução
O art. 22 da Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe que toda pessoa
tem direito à segurança social, ao passo que o art. 6º da Constituição estabelece que a
segurança constitui um direito social, observando-se que este dispositivo constitucional
utiliza a expressão “segurança” sem qualquer restrição em relação ao seu alcance, o que
permite afirmar que ela abrange a segurança social. A segurança social constitui, assim,
um direito humano e fundamental.
Da Recomendação n. 202 da Organização Internacional do Trabalho resulta que o
trabalho decente, que o Direito do Trabalho pretende estabelecer, e a seguridade social,
que o Direito da Seguridade Social procura garantir, se apoiam mutuamente. Já o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, além de também estabelecer
que os Estados que a ele aderiram reconhecem o direito à segurança social, dispõe que
nesta estão incluídos os seguros sociais (art. 9º), deixando claro que os seguros sociais
(seguridade social) são apenas parte de um todo, qual seja, da segurança social.
Isto significa que o Direito do Trabalho e o Direito da Seguridade Social são in-
terdependentes e complementares, constituindo, deste modo, subsistemas do sistema de
segurança social.
Ao direito à segurança social corresponde o direito à proteção social.
No nosso sistema jurídico a proteção social é assegurada por dois modos principais:
1) reconhecimento do direito ao trabalho e atribuição aos(às) trabalhadores(as) de
uma série de direitos relacionados com o trabalho subordinado, inclusive com status de
direitos humanos e fundamentais.
Neste sentido, o art. 23 da Declaração Universal de Direitos Humanos dispõe que:
Artigo 23. 1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do traba-
lho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o
desemprego.
2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho
igual.
3. Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que
lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana,

1
Pós-doutor em Direito pela Universidad Nacional de Córdoba/ARG. Doutor em Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor
da graduação e do programa de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Juiz
do Trabalho. Coordenador e pesquisador do Grupo de Pesquisa e Extensão Capitalismo e Proteção Social
na Perspectiva dos Direitos Humanos e Fundamentais do Trabalho e da Seguridade Social.

117
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social (des-


tacamos).
4. Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se
filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses.

Trata-se, então, de proteção social a ser assegurada pelo Direito do Trabalho, va-
lendo notar que para o poder diretivo do empregador são estabelecidos vários limites,
como o pagamento de salário mínimo e fixação da duração do tempo do trabalho, o que
permite afirmar que os direitos assegurados pela ordem jurídica aos(às) trabalhadores(as)
atuam como verdadeiros contrapoderes frente aos poderes do empregador;
2) reconhecimento do direito à seguridade social, que contempla o direito à saúde,
previdência social e assistência social (arts. 6º e 194 a 204 da Constituição da República).
Tem-se, neste caso, a proteção assegurada pelo Direito da Previdência Social.
Direito do Trabalho e Direito da Seguridade Social são, deste modo, instrumentos
estabelecidos pela ordem jurídica visando a realização concreta do direito à proteção
social.
A proposta do presente artigo é analisar a proteção social sob o prisma do Direito
do Trabalho.
Proteção social e Direito do Trabalho: quem tem direito à proteção.
O Direito do Trabalho constitui um subsistema do sistema de segurança social e,
deste modo, de proteção social, o que faz com que adote como um dos seus princípios
fundamentais a proteção dos(as) trabalhadores(as). Neste sentido, que em vários momen-
tos a Consolidação das Leis do Trabalho alude à proteção dos(as) trabalhadores(as), como
se dá, por exemplo, no seu art. 444 e ao estabelecer “normas especiais de tutela do traba-
lho” (Título II) e normas de proteção do trabalho da mulher (Título II, Capítulo II) e do
menor (Título II, Capítulo IV).
A definição do alcance deste princípio impõe que se defina, primeiro, quem é o
destinatário da proteção que o Direito do Trabalho pretende realizar.
Para responder a esta questão, cumpre anotar que o Direito do Trabalho possui um
“pecado original”, uma vez que limita a proteção que procura assegurar aos(às) trabalha-
dores(as) somente quando estes(as) prestem serviços a outrem de forma subordinada, isto
é, aos(às) trabalhadores(as) empregados de outrem.
Portanto, o Direito do Trabalho é exclusivo e excludente, no sentido de que limita
o seu foco no trabalho subordinado, em desfavor de um sistema universal de proteção
social, que tenha em vista não apenas os(as) trabalhadores(as) empregados(as), mas o
ser humano que trabalha para garantir o atendimento de suas necessidades fundamentais.
Cumpre ressaltar, no entanto, que o(a) trabalhador(a) subordinado(a) não é o(a)
único(a) protegido(a) pela ordem jurídica.
É que a ordem jurídica (e não o Direito do Trabalho) estabelece o que pode ser
denominado “regime híbrido de proteção social”, que diz respeito às situações nas quais,

118
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

embora não esteja configurada a relação de emprego, aos(às) trabalhadores(as) são esten-
didos direitos relacionados com a prestação subordinada de trabalho.
Citem-se como exemplos:
a) trabalhadores(as) sócios(as) de cooperativas de trabalho.
Cooperativa de trabalho é “a sociedade constituída por trabalhadores para o exercí-
cio de suas atividades laborativas ou profissionais com proveito comum, autonomia e au-
togestão para obterem melhor qualificação, renda, situação socioeconômica e condições
gerais de trabalho” (art. 2º da Lei n. 12.690/12).
Aos(às) sócios(as) da cooperativa são legalmente assegurados os seguintes direi-
tos, próprios da relação de emprego: duração do trabalho normal não superior a 8 (oito)
horas diárias e 44 (quarenta e quatro) horas semanais, exceto quando a atividade, por sua
natureza, demandar a prestação de trabalho por meio de plantões ou escalas, facultada a
compensação de horários; repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domin-
gos; repouso anual remunerado; retirada para o trabalho noturno superior à do diurno;
adicional sobre a retirada para as atividades insalubres ou perigosas; seguro de acidente
de trabalho (art. 7º).
A cooperativa de trabalho é regida pelos princípios da preservação dos direitos
sociais, do valor social do trabalho e da não precarização do trabalho (art. 3º, VIII e IX).
Estes princípios também informam o Direito do Trabalho, em razão, por exemplo,
do Capítulo II da Constituição, que reconhece aos(às) trabalhadores(as) uma série de di-
reitos sociais, muitos dos quais diretamente relacionados com a relação de emprego (art.
7º a 11), do art. 1º, IV, da Constituição, que inclui entre os princípios da República e, deste
modo, da ordem jurídica laboral, o valor social do trabalho, do art. 170, da Constituição,
segundo o qual a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano, tem
por fim a todos assegurar uma vida digna, conforme os ditames da justiça social, e do art.
186, , III e IV, que dispõe que a função social da propriedade é atendida quando forem
respeitados os direitos reconhecidos pelo Direito do Trabalho e for explorada de forma
a favorecer o bem-estar dos(as) trabalhadores(as), observando-se que os direitos sociais
sequer poderão ser suprimidos ou ter o seu alcance reduzido por emenda constitucional
(art. 60, IV, da Constituição).
A adoção da dignidade humana e do valor social do trabalho como princípios fun-
damentais da República e a atribuição de função social à propriedade, com a sua vincula-
ção ao respeito ao Direito do Trabalho, autorizam afirmar que o trabalho, subordinado ou
não, não pode ser reduzido à condição de simples esforço humano aplicado à produção
de riqueza ou de mercadoria.
Tal conclusão é confirmada pela estreita relação existente entre os arts. 1º, 3º, 170,
193 e 186 da Constituição, os quais impõem o respeito à dignidade humana e ao valor
social do trabalho como condições para a realização da justiça social. Neste sentido, os
princípios referidos no art. 1º atuam como parâmetros fundamentais da ordem econômica
e social, condição na qual informam a busca pela realização dos objetivos fundamentais

119
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

da República definidos no art. 3º, o que significa, por exemplo, que o desenvolvimento a
que alude o art. 3º, II, deve ser perseguido com respeito à dignidade humana e ao valor so-
cial do trabalho e visando a realização da justiça social, como, inclusive, decorre do caput
do art. 170, que vincula o exercício de qualquer atividade econômica à garantia a todos
de uma existência digna e à realização da justiça social, sendo a justiça social, ainda, um
dos objetivos também da ordem social (art. 193).
O trabalho, inclusive o subordinado, será precarizado, e, com isto, não terá o seu
valor levado em conta, quando não forem respeitados os direitos atribuídos aos(às) traba-
lhadores(as) pela ordem jurídica, sejam estes direitos específicos da relação de emprego
(direitos trabalhistas específicos) ou decorrentes da condição de ser humano daquele(a)
que depende da alienação da sua força de trabalho para atender às suas necessidades fun-
damentais (direitos trabalhistas inespecíficos);2
b) o trabalho avulso, por força do art. 7º, XXXIV, da Constituição, que assegura a
igualdade de direitos entre o(a) trabalhador(a) com vínculo empregatício permanente e
o(a) trabalhador(a) avulso(a), lembrando que avulso(a) é àquele(a) que, sindicalizado(a)
ou não, presta serviços de natureza urbana ou rural, sem vínculo empregatício, a diversas
empresas, com intermediação do sindicato da categoria ou, quando se tratar de atividade
portuária, do Órgão Gestor de Mão de Obra.
A existência de “regimes híbridos de proteção social” implica reconhecimento de
que o direito à proteção social não é assegurado apenas aos(às) trabalhadores(as) que
estabelecem vínculos de emprego com os tomadores de seus serviços e não afasta, por si
só, a relevância da verificação, em cada caso concreto, se se está diante de uma autêntica
relação de emprego, em especial diante de outro princípio fundamental do Direito do
Trabalho, que a primazia da realidade sobre a forma.
Mas, como foi dito, o Direito do Trabalho procura proteger apenas os(as) trabalha-
dores subordinados(as). Assim, no que diz respeito a quem deve ser protegido, o Direito
do Trabalho apresenta como resposta clara: os(as) trabalhadores(as) subordinados(as).
Registre-se eu a criação de regimes híbridos de proteção social não se dá em razão da
força expansiva do Direito do Trabalho, que diz respeito ao alargamento das fronteiras do
Direito do Trabalho para que passe alcançar relações de trabalho antes não contempladas.
Definido quem deve ser protegido na perspectiva do Direito do Trabalho, surge
uma segunda questão, que diz respeito ao tipo e aos níveis de proteção a que têm direito
aos(as) trabalhadores(as) subordinado.

2
O trabalho está relacionado a todas as necessidades a que faz referência a pirâmide ou hierarquia das
necessidades de Maslow, quais sejam, fisiológicas (o trabalho está relacionado com a sobrevivência física),
de segurança (os trabalhadores e trabalhadoras necessitam de segurança no emprego, no trabalho e de gan-
hos, por exemplo), sociais (o trabalho permite o estabelecimento de relações sociais, em especial nos locais
de trabalho), de estima (o trabalho a possibilidade de reconhecimento social e autoestima) e de realização
pessoal (o trabalho favorece o desenvolvimento pessoal), observando-se que as necessidades fisiológicas
estão na base da pirâmide, e, a realização pessoal, no seu topo.

120
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Tipo e Níveis de Proteção


De início, cumpre observar que a teoria da flexibilização vincula a suposta rigidez
do Direito do Trabalho ao desemprego, conduzindo à atribuição aos direitos por ele asse-
gurados aos(às) trabalhadores(as) a condição de privilégio de alguns poucos e transfor-
mando o mínimo necessário a uma vida digna traduzida por aqueles direitos em patamar
máximo a ser praticado e perseguido, isto apesar de a Constituição da República assumir,
expressamente, que o mínimo que estabelece é apenas provisório e constitui uma etapa
na busca pela melhoria na condição social do trabalhador e construção da justiça social,
como resulta do caput do seu art. 7º. Direitos de dignidade humana, justiça social, cida-
dania e democracia não são privilégios.3
Mas, que direitos devem ser efetivamente gozados pelos (as) trabalhadores(as) para
que estejam realmente protegidos, sob o prisma do Direito do Trabalho?
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, após reconhecer o direito à segu-
rança social, a ela relaciona o gozo de direitos econômicos, sociais e culturais.
Tem-se, assim, um valioso parâmetro definir o que é estar protegido: estar protegido
é gozar, efetivamente, de direitos econômicos, sociais e culturais.
Mas, quais deverão ser estes direitos, para a proteção seja efetiva?
Na Recomendação n. 202 da OIT, que foi aprovada pela Conferência Geral da OIT,
em maio de 2002, é recomendado que os Estado estabeleçam e mantenham pisos de pro-
teção social.
Assim, na perspectiva do Direito do Trabalho, os Estados devem estabelecer e man-
ter um piso de proteção social dos(as) trabalhadores(as), o qual deve contemplar um
conjunto de direitos básicos que lhe assegurem uma vida conforme a dignidade humana
(art. 170) e contribuam para a realização da justiça social, cidadania e democracia (arts.
1º, II, III, e parágrafo único, 3º, I, 170, caput, 186, III e IV, e 193).
No Brasil, este piso é representado pelos direitos fundamentais do trabalho referi-
dos nos arts. 7º a 11 da Constituição e, por força desta mesma Constituição (art. 5º, § 2º),
pelos direitos humanos do trabalho, ou seja, os direitos reconhecidos pelo Direito Interna-
cional dos Direitos Humanos do Trabalho, aos quais foi feita alusão no capítulo anterior.
Em suma, o(a) trabalhador(a) estará protegido quando gozar efetivamente os direi-
tos fundamentais e humanos do trabalho.
Contudo, a proteção social não se resume ao reconhecimento normativo de direitos.
Direitos fundamentais e humanos do trabalho não constituem direitos que se tem pelo fato
de prestar serviços a outrem de forma subordinada, mas direitos que se deve ter.
Aliás, o Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Constituição da República
reconhecem, expressamente, que a proteção normativa dos(as) trabalhadores(as) não se
confunde com a proteção real, o que fazem ao atribuir a todos o direito a uma série de
3
Sob este prisma, o Direito do Trabalho seria um direito de privilégios. No entanto, viver com dignidade
não constitui um simples privilégio, mas um direito de todos e todas.

121
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

garantias voltadas à realização concreta dos direitos assegurados pela ordem jurídica.
Estas garantias são atribuídas exatamente porque a existência de uma norma não torna
realidade o que ela contém enquanto reconhecedora da titularidade de um direito.
Neste contexto, é afirmado que o(a) trabalhador(a) estará protegido quando:
a) contar com adequada proteção normativa, a ser realizada por meio de normas,
nacionais e supranacionais, que assegurem direitos que garantam condições de vida e
trabalho compatíveis com a dignidade humana;
b) gozar efetivamente os direitos assegurados pela ordem jurídica;
c) ter fácil, econômico e célere acesso às garantias voltadas à realização concreta
dos direitos assegurados pela ordem jurídica, tendo-se presente que a proteção dos direi-
tos fundamentais e humanos do trabalho vai muito além da ideia de sua proteção jurisdi-
cional. A proteção dos direitos constitui gênero do qual constitui espécie a sua proteção
jurisdicional;4
d) seja beneficiado pela distribuição equânime da riqueza e do poder, o que inclui a
criação de condições materiais e jurídicas para participar da construção da ordem jurídica
laboral, a qual tem estreita relação com a distribuição de riqueza e poder no contexto da
relação entre capital e trabalho.
Sob a perspectiva do princípio da não precarização do trabalho, pode ser dito que
o(a) trabalhador(a) está protegido quando não for submetido à precariedade:
1) econômica, que corresponde à dimensão econômica da precariedade laboral e
se manifesta de duas formas: a pobreza material, resultante do desemprego e de baixos
rendimentos auferidos pelo(a) trabalhador(a), e a pobreza caracterizada pela dependência
do(a) trabalhador(a) da alienação da sua força de trabalho para garantir o atendimento das
suas necessidades fundamentais próprias e familiares, ou seja, da sua dependência eco-
nômica em relação àqueles que detêm os meios de produção. A precariedade econômica
submete os(as) trabalhadores(as) a uma verdadeira guerra pela sobrevivência.
2) existencial, que corresponde à dimensão existencial da precariedade laboral e
decorre de vários fatores, dentre os quais, a insegurança no mercado do trabalho, resul-
tante, principalmente, da percepção das dificuldades de encontrar espaço no mercado
de trabalho, em razão de vários fatores, entre os quais a idade e o sexo, por exemplo, a
insegurança no emprego, decorrente: da ausência de estabilidade no emprego e fragili-
dade dos instrumentos voltados a assegurar a continuidade da relação de emprego, o que
submete o trabalhador à discricionariedade do empregador, à descontinuidade dos tempos
de trabalho; da alternância de funções, com prejuízo da profissionalização e da identidade
construída a partir da profissão exercida; da falta de garantia de um mínimo de trabalho

4
Na perspectiva do acesso à ordem jurídica justa, como aquela que reconhece direitos e garante a sua
efetividade, pode-se falar, no contexto em questão, da existência de uma verdadeira “justiça multiportas”:
vários são os caminhos que podem assegurar a efetividade dos direitos. A “justiça multiportas” não se con-
funde que o denominado ‘tribunal multiportas”, que diz respeito à variedade de métodos para a resolução
de conflitos, estando entre eles a arbitragem e a mediação como alternativas à jurisdição.

122
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

durante a semana ou mês, o que implica total insegurança remuneratória, como se dá no


contrato de trabalho intermitente.
Cite-se, ainda, a insegurança de ganhos, como consequência da adoção do salário
variável e, por força dela, da vinculação do salário à condição do empregador no merca-
do, o que implica transferir os riscos da atividade econômica do empregador para o(a)
trabalhador(a), com a flexibilização da norma conforme a qual cabe a quem desenvolve
atividade econômica arcar com os riscos respectivos (art. 2º da CLT), lembrando que a
insegurança de ganhos gera a insegurança alimentar.
3) política, que corresponde à dimensão política da precariedade laboral e se ma-
nifesta na ausência ou dificuldade de os(as) trabalhadores(as) participarem da tomada de
decisões coletivas, em especial em relação ao conteúdo e alcance do Direito do Trabalho.
Dito de outra forma, a precariedade política retira dos(as) trabalhadores(as) condições de
definir ou participar da definição das suas próprias condições de existência. Esta dimen-
são da precariedade laboral fragiliza a cidadania ativa, entendida como possibilidade real
de participação na tomada de decisões coletivas, e a democracia, vez que sem cidadania
ativa não existe possibilidade de democracia.
4) jurídica, que corresponde à dimensão jurídica da precariedade laboral e diz res-
peito à proteção, em especial normativa, dos(as) trabalhadores(as).
Esta forma de precariedade pode decorrer, por exemplo, (a) da desconstitucionali-
zação das normas que regem a relação entre capital e trabalho, (b) da negativa de força
normativa aos tratados sobre direitos humanos, (c) da desmaterialização do Direito do
Trabalho, isto é, a sua desvinculação da sua finalidade fundamental, que é o respeito, a
proteção e a promoção da dignidade humana de quem depende da alienação da sua força
de trabalho para atender às necessidades fundamentais próprias e familiares, e da sua
função fundamental, que é contribuir para a realização da justiça social, da cidadania e da
democracia,5 (d) da fragilização da força normativa do Direito do Trabalho, por meio da
adoção da regra da prevalência do negociado (acordos e convenções coletivas de trabalho)
sobre o legislado6 e supervalorização da vontade individual e dos poderes do empregador.
Acrescente-se, ainda, a criação de barreiras para o acesso dos(as) trabalhadores(as)
à proteção jurisdicional dos direitos, o que ganha especial relevo pelo fato de o acesso
à proteção jurisdicional não constituir um fim em si mesmo, mas meio de acesso aos
direitos não respeitados (barreiras impostas ao acesso à justiça são barreiras impostas ao
acesso aos próprios direitos).
5) cultural, que corresponde à dimensão cultural da precariedade e se apresenta na
falta ou carência de acesso à educação e formação profissional adequadas, a qual possui
implicações políticas, na medida em que impede a formação de consciência dos fatores

5
Trata-se, dito de outro modo, de negar a eticidade do Direito do Trabalho
6
Esta forma de precariedade estabelece a tensão permanente entre as normas fruto de negociação coletiva
e a lei.

123
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

alienantes da ideologia neoliberal e que os(as) trabalhadores(as) construam as suas estra-


tégias de resistência.
6) ecológica, que diz respeito à relação do(a) trabalhador(a) com o meio ambiente,
cuja degradação coloca em risco a sua saúde e vida, assim como a existência da humani-
dade, lembrando-se que o meio ambiente em sentido lato compreende o meio ambiente
do trabalho (art. 200, VIII, da Constituição). O(a) trabalhador(a) é submetido(a) à pre-
cariedade ecológica quando lhe é imposto trabalhar em ambiente de trabalho inseguro,
agressivo, opressor e discriminador, assim como quando lhe é negado um meio ambiente
ecologicamente equilibrado, como condição para uma sadia qualidade de vida.
Considerações Finais
Trabalhadores e trabalhadoras têm direito à segurança social e, com isto, à proteção
social.
A ordem jurídica brasileira estabelece um sistema de proteção social, que é com-
postos pelos subsistemas representados pelo Direito do Trabalho e Direito da Seguridade
Social.
Na perspectiva do Direito do Trabalho, trabalhadores e trabalhadoras estarão pro-
tegidos contarem com adequada proteção normativa, a ser realizada por meio de normas,
nacionais e supranacionais, que assegurem direitos que garantam condições de vida e
trabalho compatíveis com a dignidade humana, gozarem efetivamente os direitos assegu-
rados pela ordem jurídica, tiverem fácil, econômico e célere acesso às garantias voltadas
à realização concreta dos direitos assegurados pela ordem jurídica e forem beneficiados
pela distribuição equânime da riqueza e do poder, o que inclui a criação de condições
materiais e jurídicas para participar da construção da ordem jurídica laboral, a qual tem
estreita relação com a distribuição de riqueza e poder no contexto da relação entre capital
e trabalho.
Sob a perspectiva do princípio da não precarização do trabalho, pode ser dito que
o(a) trabalhador(a) está protegido(a) quando não for submetido(a) à precariedade econô-
mica, existencial, política, jurídica, cultural e ecológica.

124
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

DA EXTRAÇÃO ANALÓGICA À EXTRAÇÃO DIGITAL1

Marco Túlio Corraide2

Introdução
Existimos em um período tecnológico-social que esfrega em nossos rostos o estado
de disparate gerado pelo sistema capitalista que vivenciamos. No Brasil encontramos
celulares sendo vendidos por R$13 mil reais3, ao mesmo tempo em que, em 2019, cerca
de 51,9 milhões de pessoas estavam vivendo abaixo da linha da pobreza (CARRANÇA,
2021).
Ainda que não pensemos necessariamente em um celular do preço aqui exposto,
o equipamento ainda marca um valor significativo diante dos dados econômicos das
famílias brasileiras. Porém, não devemos nos restringir apenas aos celulares. Equipa-
mentos eletrônicos como um todo, incluindo computadores, tablets, celulares e qual-
quer outro dispositivo que possibilita conexão com a internet possuem valores altos4
(AGRELA, 2021), mas ao mesmo tempo, se tornam cada vez mais imprescindíveis. O
abismo socioeconômico se entrelaça com um aspecto que se estabelece como essencial
para uma vida digna: o acesso à internet.
Segundo dados da pesquisa TIC Domicílios de 20195, cerca de 134 milhões de
brasileiros acessam a internet, isso em um país com cerca de 210 milhões de habitantes
no total. Quando feito um recorte por renda, 61% daqueles que ganham menos de um
salário mínimo disseram que acessam a internet, esta porcentagem se mantém em ascen-
são enquanto falamos do aumento de renda, tendo 86% daqueles que recebem de três a
cinco salários mínimos declarados que acessam a internet e 94% com remuneração acima
de 10 salários mínimos possuem o mesmo hábito. Partindo dessas informações era de se
esperar que a maioria destes acessos ocorre por meio de dispositivos, em tese mais bara-
tos e práticos, sendo que 99% das pessoas declaram que acessam a internet pelo celular
(VALENTE, 2020).

1
As informações aqui contidas são resultadas de diversos encontros e discussões com vários de meus ami-
gos. Gostaria de agradecer então Rainer Bomfim, Márcia Fernanda Côrrea Faria e Flávia Souza Máximo
Pereira.
2
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto. Mestrando em Direito no programa Novos
Direitos, Novos Sujeitos, pela Universidade Federal de Ouro Preto. Membro do grupo de pesquisa RESSA-
BER — Grupo de estudo em saberes decoloniais. Advogado.
3
Preço aproximado de um iPhone 12 Max Pro, comprado no site da marca Apple. Valor consultado em:
https://www.apple.com/br/iphone-12-pro/. Acesso em: 16 de jun. 2021.
4
De acordo com levantamento da IDC Brasil, a média de preço de um computador de mesa no Brasil é de
cerca de R$3.700,00 e de notebooks é cerca de R$4.300,00. Esses valores representam em torno de 3 a 4
vezes o valor do atual salário mínimo.
5
Os dados apresentados e outras informações da pesquisa podem ser consultados em: https://cetic.br/
media/analises/tic_domicilios_2019_coletiva_imprensa.pdf.

125
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Com a observação destes dados, somados às informações apresentadas no estudo


“Desigualdades Sociais por Cor ou Raça”, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), onde os dados demonstraram que a população branca de nosso país
ganha 74% mais que a população negra — soma de pretos e pardos — (CUCOLO, 2019),
conseguimos ter uma ideia de quem é e como é formada a maioria das pessoas no am-
biente cibernético brasileiro. Existe uma internet branca, que é reflexo de um projeto de
estruturas político-sociais que funcionam em prol da branquitude.
Raça e classe, aspectos importantíssimos no processo de existência de todo o pe-
ríodo colonial e também da colonialidade, mecanismos utilizados por moldar o que se
possui no imaginário popular como aspectos padrões universais, são absorvidos também
pela internet e feitos de ferramentas para que o mesmo processo de fagocitação se repita.
Estar conectado é algo muito importante mas também significa ser percorrido pelo
processo de colonização de dados que acontece perante a rede mundial de computadores.
Se em um passado era possível encontrar pessoas que não possuíam email, ou algum tipo
de mensageiro em seus aparelhos celulares, hoje a exceção é encontrar alguém offline —
não conectado constantemente à internet.
Desde uma esfera micro, compondo as relações interpessoais cotidianas das pes-
soas até ao processo de um reconhecimento estatal onde o indivíduo precisa ter uma
existência online para usufruir de determinado direito, existir e consequentemente produ-
zir dados digitais nos faz sermos notados de uma forma que talvez seja necessário, para
muitas pessoas, até mesmo para sobreviver.
Recentemente, com a ocorrência do COVID-19, o governo brasileiro instituiu o
auxílio emergencial, com o intuito de que os impactos gerados pela pandemia fossem
diminuídos. As leis 13.982 de 2020 (BRASIL, 2020) e 14.075 de 2020 (BRASIL, 2020)
ditam as normativas para lidar com o assunto, sendo que na prática o acesso ao auxílio
se dá através do acesso à internet. Notadamente se constrói aqui uma problemática. Pelos
dados é fácil observar que as pessoas que mais necessitam do auxílio emergencial, as
que estão em um contexto de pobreza, naturalmente são também as pessoas que possuem
menos acesso a internet.
Se repete então a marginalização de corpos pobres e consequentemente negros, que
já ocorre em uma esfera material externa para o campo digital. Por exemplo, como pes-
soas em situação de rua recebem um benefício que é necessário baixar um aplicativo no
celular? (NAÍSA, 2021) A tecnologia e a internet se tornaram peças fundamentais para o
reconhecimento de pessoas de direito. Como explica Paulo Santarém,
[...] se a tecnologia não é encarada como uma ferramenta social, mas como
uma mera ferramenta individual, dependente da posse pessoal e vinculada ao
poder aquisitivo, ela mesma se torna fator de diferenciação, ampliando as de-
sigualdades. Assim, qualquer que seja a tecnologia – da leitura à banda larga
– ela deve não apenas ser sempre posta ao acesso de todos os indivíduos, como
forma mesma de distribuição de iguais oportunidades, mas ser pensada em sua
função social. (SANTARÉM, 2010, p. 126)

126
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

A internet, em tempos de existências sócio-políticas-jurídicas-digitais, precisa ser


compreendida como um direito básico a ser atribuído a todo indivíduo de direitos da mes-
ma forma que educação e alimentação.
O Direito à Internet é, antes de mais, um direito de aceder a esse meio
de comunicação universal, ou seja, de aceder aos suportes tecnológicos que
tornam possível os serviços de comunicação disponíveis através da rede de
redes. É um direito de utilização da infraestrutura tecnológica nascida nos
anos 60, nos Estados Unidos, em plena Guerra fria, um direito de acesso
à rede e aos equipamentos que propiciam esse acesso. Mas a Internet não se
resume ao seu aspecto tecnológico em sentido estrito, antes constituindo,
igualmente, uma estrutura social, em que diferentes atores participam
interagindo entre si, comunicando informação, trocando serviços, relacio-
nando-se interactivamente em permanência. (CASTRO, 2016, p. 9)

O Direito brasileiro parece compreender os aspectos, potencialidades e perigos da


internet quando pensamos em discussões e legislações recentes como a lei nº 12.965, o
Marco Civil da Internet (BRASIL, 2014) e a lei nº 13.709, a Lei Geral de Proteção de
Dados (BRASIL, 2018), mas, assim como nos diversos outros campos, projeta um ideal
de que somos todos iguais em relação a este acesso, quando não somos. Se as políticas
públicas e a legislação vigente não são capazes de promover a educação e a alimentação
para a população preta e pobre, não seria de se esperar que agissem de forma diferente
com a internet.
Um cenário gritante de como apenas essas legislações não representam um avan-
ço na compreensão do que compõe a relação das pessoas com a internet é o trabalho
por aplicativo e a discussão sobre subordinação por algoritmos no Direito do Trabalho6
. Existem diversas problemáticas envolvendo internet e tecnologia, direito, raça, classe e
trabalho no nosso país, e isso pode ser atribuído ao processo colonial.
Partindo do clássico conceito de colonialidade do poder de Aníbal Quijano (2005),
encontramos uma nova análise para o processo colonial que assola os corpos não euro-
peus, brancos, cisgêneros, héteros, masculinos. A colonialidade de dados transporta toda
a violência, em todos suas possibilidades, para o mundo cibernético e assim como na
vivência fática, repete a somatória capital, trabalho e raça para a internet.
Nós reduzimos deste modo a manufatura que no passado resultava objetos palpá-
veis para que fossem então gerado o capital para uma parcela específica da população
para o mesmo condicionamento, com exceção de que, agora, aquilo que se é produzido se
encontra invisível aos olhos nus e é composto por zeros e uns.

6
Para entender melhor sobre subordinação algorítmica, ler: DE STEFANO, Valerio. The rise of the “just-
-in-time workforce”: On-demand work, crowdwork and labour protection in the “gig economy”.Inclusive
LabourMarkets, Labour Relations and Working Conditions Branch. Genebra, International Labour Orga-
nization, 2016.

127
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Colonialidade de Dados: As informações que você produz não são suas


Antes de mais nada, é importante compreender o que significa colonialidade.
O Brasil — e a América Latina como um todo — funciona e se construiu como
resultado de um processo universalizador dominante de poder. A colonialidade se estabe-
lece como padrão das movimentações, em todos os campos científicos e sociais, de forma
a inserir o Brasil como participante submisso de uma relação onde a Europa se encontra
como hegemonia global (QUIJANO, 2005a).
[...] enquanto esse padrão de poder culmina sua trajetória de desenvolvimento
e no próprio momento da exacerbação de suas piores tendências, com a pla-
netarização de seu domínio, a América Latina não só continua prisioneira da
colonialidade do poder e de sua dependência, mas sim, precisamente devido a
isso, inclusive arrisca não chegar ao novo mundo que se vai configurando na
crise atual, a mais profunda e global de todo o período da colonial/modernida-
de. (QUIJANO, 2005a, p. 15).

A partir do momento em que se instaura a conexão política forçada entre Europa


e América Latina se inicia um processo de limpeza. Ocorre uma limpeza geográfica/
natural dos recursos que precisavam ser utilizados para geração de capital, uma limpeza
epistemológica, do qual se destrói comunidades, saberes e métodos de organização e uma
limpeza ontológica, resultante da violência contra os povos originários e corpos negros
que seriam depositados ali.
Deste modo é instaurada a premissa de que existe apenas uma única maneira de
alcançar uma suposta e desejada verdade e que essa maneira é por meio da epistemolo-
gia e condutas do colonizador. Ao tornar invisível aquele que enuncia um conhecimento
diverso, se consolida um mito de prospecto universal. Um padrão globalizado que não
consegue lidar com aquilo que não é semelhante. O contexto europeu/ocidental, segundo
Ramón Grosfoguel (2008), antepõe uma visão egopolítica, que restringe e permite ao
homem europeu, ocidental, colonizador, alcançar uma universalização subjetiva. Descar-
tando tudo aquilo que não o agrada.
Colonialidade poderia então ser entendido como a junção de diversos conceitos de
existência alternativos introjetados em uma concepção de inferioridade diante dos contex-
tos norteadores europeus de maneira a se construir estruturas de exploração e dominação.
[...] a colonialidade não foi somente uma expansão econômica, nem somente
a expansão da Europa ao resto do mundo, ou a incorporação da mão de obra
barata em uma divisão internacional do trabalho de todos os territórios con-
quistados, não é somente isso: é a destruição de outras formas de organizar a
vida. (GROSFOGUEL, 2021, p. 15)

O processo de colonialismo e os efeitos gerados pela colonialidade, caracterizavam


a negritude, identificavam seus sexos e poderes e bens aquisitivos determinando classes,
que diretamente conectadas às atividades determinadas e exercidas por esses “outros”. A

128
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

busca da extração do máximo possível para possibilitar o acúmulo de capital permite que
“nós”, por meio da escravatura, servidão feudal, produção de mercadorias, por exemplo,
conseguíssemos lucrar e ao mesmo tempo impedir aqueles diferentes de possuírem a
possibilidade de viver dignamente. Forma-se uma ideia de “coletividade” excludente,
baseada em um sistema de dominação e exploração.
Desde o início da formação do sistema-mundo capitalista, a acumulação inces-
sante de capital esteve sempre enredada com ideologias racistas, homofóbicas
e sexistas. A expansão colonial europeia foi conduzida por homens europeus
heterossexuais. Aonde quer que chegassem, traziam consigo os seus precon-
ceitos culturais e formavam estruturas heterárquicas de desigualdade sexual,
de gênero, de classe e raciais. Deste modo, no “capitalismo histórico” – enten-
dido como “sistema heterárquico” ou “estrutura heterogénea” – o processo de
incorporação periférica na acumulação incessante de capital foi sendo cons-
tituído por, e enredado com, hierarquias e discursos homofóbicos, sexistas e
racistas. (GROSFOGUEL, 2008, p. 135)

A conceituação de Aníbal Quijano para todo esse movimento de dominação racial,


sexual, econômico pelo colonizador se dá o nome de colonialidade do poder. Quando
falamos de colonialidade do poder, estamos tratando da potencialidade de poder definir
quem é o “outro”, com a branquitude tendo uma posição estratégica de privilégio sobre
essa habilidade de ditar, sendo assim, bem sucedida na construção de um conceito de
mundo que a beneficie (LABORNE, 2014). Segundo Daniela Muradas e Flávia Souza
Máximo Pereira (2018, p. 2122), o termo anuncia que as “[...] relações de colonialidade
nas esferas econômica, política, social e epistêmica não findaram com a destruição da
colonização, ou seja:a colonialidade nos permite compreender a continuidade das formas
coloniais de dominação para além da colonização.”
Com o advento das possibilidades de desenvolvimento futuros, de novas tecnolo-
gias, se é abordado então um novo cenário no contexto da colonialidade.
O que se define como colonialidade de dados é, de forma concisa, a aplicação da
colonialidade, do conceito de colonialidade do poder de Aníbal Quijano, enquanto pen-
samos no ambiente digital. O objetivo também continua o mesmo, a obtenção de capital.
Traçando continuidades desde a apropriação histórica do colonialismo de vas-
tos territórios, como o Brasil contemporâneo, até o papel dos dados na vida
contemporânea, sugerimos que embora os modos, intensidades, escalas e con-
textos da expropriação de hoje sejam distintos, a função subjacente permanece
o mesmo que no colonialismo histórico: adquirir recursos em grande escala
dos quais o valor econômico pode ser extraído.7 (COULDRY; MEJIAS, 2019,
p. 11, tradução autoral)

7
No original: By tracing continuities from colonialism’s historical appropriation of vast territories, such
as contemporary Brazil, all the way to data’s role in contemporary life, we suggest that although the modes,
intensities, scales, and contexts of today’s dispossession are distinctive, the underlying function remains the
same as under historical colonialism: to acquire large-scale resources from which economic value can be
extracted.

129
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

As novas tecnologias se entrelaçam de forma a se integrar cada vez mais ao


contexto da vida humana e a colonialidade de dados necessita dessa integração. Es-
tamos diante de um círculo sem fim baseado, de forma geral, na relação entre huma-
nidade, capital e tecnologia, onde que a colonialidade de dados “[...] se apropria não
apenas dos recursos físicos, mas também dos nossos próprios recursos para co-
nhecer o mundo. Isso significa que o poder econômico (o poder de criar valor) e
o poder cognitivo (o poder sobre o conhecimento) convergem como nunca antes.8
(COULDRY; MEJIAS, 2019, p. 12, tradução autoral).
Os dados são as informações geradas por cada indivíduo. Esses dados são então
capturados por plataformas de processamento e utilizados de maneira a serem trans-
formados em lucro. Desse modo é possível fazer diversas leituras a partir dos dados
gerados. É neste momento que se consegue transformar esses dados em capital. Existe
toda uma cadeia de produção, que agora não mais se refere à materialidade, mas que é
responsável por captar, interpretar, mapear e com isso vender as informações obtidas.
Para o colonizador digital, esses dados representam conhecimento que gera lucro a partir
de possibilitar descobrir opiniões, gostos e até mesmo conseguir prever ações futuras9
dos indivíduos a que esses dados pertencem.
Segundo Nick Couldry e Ulises Ali Mejias (2019), a colonialidade de dados trata-se
do controle humano para que se transforme seus dados em capital, sendo um passo além
da ideia tradicional de trabalho e capital porque a partir de agora, o processo de vigilân-
cia pode ocorrer de maneira constante. Dessa forma, o processo de vigília, controle dos
corpos, se avança diretamente com o controle que o colonizador já mantinha durante o
processo colonial.
Pode-se apontar que uma das maiores problemáticas quando se trata de colonialida-
de de dados é a facilidade que se encontra ser possível colonizar os dados que produzimos
e as subjetividades responsáveis por essas produções. Não é mais necessário, como foi no
passado, investimentos gigantescos. Estamos falando de uma ferramenta de comunicação
acessível, popular, de utilização contínua e muita das vezes obrigatórias para se existir.
Agora, a leitura do capitalismo permite que “[...]sem acabar com sua exploração do
trabalho e sua transformação da natureza física, o capitalismo amplie sua capacidade de
explorar a vida ao assimilar novos ou reconfigurados atividades humanas (consideradas

8
No original: [...] data colonialism appropriates not only physical resources but also our very resources
for knowing the world. This means that economic power (the power to make value) and cognitive power
(the power over knowledge) converge as never before.
9
Para exemplificar a potencialidade da leitura e dissecação de dados e o que é possível fazer, ler: TYAGI,
Amit Kumar et al. Mining Big Data to Predicting Future. Journal Of Engineering Research And Appli-
cations, [S. L.], v. 5, n. 3, p. 14-21, mar. 2015. Disponível em: https://www.semanticscholar.org/paper/
Mining-Big-Data-to-Predicting-Future-Tyagi-Priya/3add1840c5a697a7093267a66950f1a473f58b7b#pa-
per-header. Acesso em: 30 jun. 2021.

130
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

como trabalho ou não) como suas entradas diretas.10” (COULDRY; MEJIAS, 2019, p. 17,
tradução autoral).
Nick Couldry e Ulises Ali Mejias apontam que assim como o colonialismo históri-
co funcionou como combustível para a era industrial, a colonialidade de dados funciona
também como um impulsionador para a incorporação literal do que é humano naquilo que
é entendido como capital (COULDRY; MEJIAS, 2019). O limiar de uma expressão de
trabalho — e especificamente nesta pesquisa, trabalhos digitais — e existência se borram
cada vez mais se manifestando então em um espectro de novas possibilidades de trabalho
— também precários — em um mundo digital.
Consequentemente, assim como no colonialismo histórico e na leitura de Aníbal
Quijano, a colonialidade do poder, ao se estar nessa posição de assumir essas possibili-
dades de trabalho, juntamente com o fator de raça, é colocada como um pilar para que se
controle e assuma uma perspectiva universalizante excludente.
Trabalhos Digitais: Não é porque não vemos que eles não existem
Como já mencionado, existe um fascínio atual por analisar os trabalhadores por
aplicativos no Direito do Trabalho, isso desde a explosão de crescimento deste mecanis-
mo de controle do trabalho. Entendo que seja uma discussão importante para se levar em
conta, pensando que para muitas pessoas, a renda gerada por esses aplicativos são suas
únicas maneiras de sobreviver. Entretanto, gostaria de destacar que quando estamos fa-
lando de colonialidade de dados existem diversas outras possibilidades de discussão que
envolvam trabalho e tecnologia.
A extração11 do capital pela existência humana enseja, com o advento das novas
tecnologias, novas possibilidades de extração de recursos utilizando a vida, ao mesmo
tempo que embaça a linha da legalidade, da moralidade e até mesmo o sujeito que pratica
as atividades em questão. Se no passado o colonizador efetuou a leitura do “outro” como
aquele diferente de si mesmo, aquele que não é humano, assim traçando uma linha que
permite violentar quem não é seu semelhante, quando tratamos de dados isso se torna
ainda mais fácil, pois eu nem mesmo estou vendo o “outro”, apenas recebo os frutos da
minha extração diante da sua atividade e de seu corpo.
“Extrativismo” é um roubo, um saque, uma pilhagem. É uma forma de estar e
estar no mundo, onde se apropria dos outros sem consentimento e sem pensar
10
No original: [...] without ending its exploitation of labor and its transformation of physical nature, ca-
pitalism extends its capacity to exploit life by assimilating new or reconfigured human activities (whether
regarded as labor or not) as its direct inputs.
11
Uso o termo extração como é proposto por Ramón Grosfoguel em seu texto “Del «extractivismo econó-
mico» al «extractivismo epistémico» y al «extractivismo ontológico»: una forma destructiva de conocer, ser
y estar en el mundo”. No texto em questão, a leitura do termo extração deve ser feita ensejando um aspecto
de coisificação e destruição perante as relações de poderes que se formam. Para compreender melhor, ler:
GROSFOGUEL, Ramón. Del «extractivismo económico» al «extractivismo epistémico» y «extractivismo
ontológico»: una forma destructiva de conocer, ser y estar en el mundo. Tabula Rasa, [S.L.], n. 24, p. 123-
143, 30 jun. 2016.

131
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

ou se preocupar com o impacto negativo que gera na vida de outros seres vi-
vos (humanos e não humanos). A lógica da atitude do extrativista ontológico
é: “Enquanto me beneficiar, não me importo com as consequências para os
outros seres vivos (humanos ou não humanos).” Essas atitudes egocêntricas,
esses modos de ser e estar no mundo, egomaníaco, são típicos de sociedades
formadas por uma longa história de imperialismo, capitalismo, colonialismo
e patriarcado, ou seja, formadas a partir da pilhagem de riquezas, trabalho e
conhecimento. Para outros povos considerados racialmente inferiores e às mu-
lheres para o benefício de alguns povos considerados racialmente superiores
ou machos considerados dignos de privilégios sobre as mulheres porque os
vêem como recursos a serem explorados. As sociedades imperiais / coloniais
/ capitalistas / patriarcais são insustentáveis, porque vivem roubando e des-
truindo os outros (humanos e não humanos). As sociedades baseadas na con-
quista de humanos e não humanos destroem as formas reprodutivas de vida.12
(GROSFOGUEL, 2016, p. 138, tradução autoral)

Ao processo extrativista digital se mimetiza o extrativismo ontológico, epistêmico


e econômico para então lidar com as novas possibilidades de atividades. De forma a ilus-
trar essas atividades, podemos pensar nos trabalhos que vão muito além do que o Direito
do Trabalho brasileiro se define como tal.
Como primeiro exemplo podemos citar as fazendas de likes. São denominados fa-
zendas de likes o serviço de compra de seguidores “reais” de forma a gerar engajamento
em algum perfil específico e que não seja produzido por meio de contas programadas, ou
seja, bots. Dessa forma, se paga valores ínfimos, cerca de R$0,006 por cada ação repe-
titiva que esses trabalhadores devem produzir nas contas pelas quais foram contratadas.
Vale notar que esse trabalho, obviamente, é feito sob condições precárias e se reproduz,
na sua grande maioria, nas periferias de países asiáticos, africanos e também no Bra-
sil.13

12
No original: El «extractivismo» es un robo, un saqueo, un pillaje. Es una forma de ser y estar en el mun-
do, donde se apropia de los demás sin consentimiento y sin pensar ni preocuparse en el impacto negativo
que genera en la vida de otros seres vivos (humanos y no humanos). La lógica de la actitud del extractivista
ontológico es: «Mientras me beneficie a mí, no me importa las consecuencias sobre los otros seres vivos
(humanos o no humanos)». Estas actitudes egocéntricas, estas formas de ser y estar en el mundo, egolátri-
cas, son propias de las sociedades formadas a través de una larga historia de imperialismo, capitalismo,
colonialismo y patriarcado, es decir, formadas mediante el saqueo de riquezas, trabajo y conocimientos
a los demás pueblos considerados racialmente inferiores y a las mujeres para el beneficio de unos pocos
pueblos considerados racialmente superiores u hombres machistas considerados meritorios de privile-
gios sobre las mujeres porque las ven como recursos por explotar. Las sociedades imperiales/coloniales/
capitalistas/patriarcales son insostenibles, porque viven de robar y destruir a los demás (humanos y no
humanos). Las sociedades basadas en la conquista de humanos y no humanos destruyen las formas de
reproducción de la vida.
13
Para entender melhor ler: GROHMANN, Rafael et al. O que são plataformas de fazendas de clique e
por que elas importam. Nexo, [S.L], 6 de maio de 2021. Disponível em: https://pp.nexojornal.com.br/pon-
to-de-vista/2021/O-que-s%C3%A3o-plataformas-de-fazendas-de-clique-e-por-que-elas-importam. Acesso
em: 13 jan. 2022.

132
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Dentro desse contexto de fazendas de likes, pode se encontrar também o que se


chama de microtrabalhos14. Que se caracterizam como tarefas de repetições, geralmente
checagens de algo, ou correções, em alguma plataforma, para grandes empresas, pagando
valores semelhantes aos apresentados anteriormente, atraindo novamente, em sua mino-
ria, corpos não-brancos em situações precárias. Podemos mencionar plataformas em que
trabalhadores produzem e treinam dados para sistemas de inteligência artificial, como
algoritmos de reconhecimento facial, avaliação de publicidade e transcrição de áudios de
redes sociais e assistentes virtuais. Alguns exemplos são Amazon Mechanical Turk (cujo
slogan é “inteligência artificial artificial”), Appen (com frases do tipo “dados com um
toque humano”) e Lionbridge.
Outro tipo de trabalho, aqui pensando na possibilidade direta da extração de huma-
nidade, mencionado por Nick Couldry e Ulises Mejias, é um fenômeno que nos últimos
tempos se tornou bastante comum no Brasil, é a tokenização de humanidades por meio
de avatares digitais. Nesse exemplo específico, a questão não se volta mais tanto para
a visão de atividade precária, repetitiva, mal-remunerada e efetuada por pessoas não-
-brancas, mas se trata da absorção do sistema capitalista neoliberal de pautas políticas
identitárias-sociais por meio de personas de existência digital, que são criadas por corpos
semelhantes ao do colonizador.

Da esquerda para direita: Nat, da empresa Natura. “Baianinho”, da empresa Casas Bahia. Lu, da empresa
Magazine Luiza

14
Para compreender melhor o impacto dos microtrabalhos na economia e no trabalho digital, ler: TUBA-
RO; LUDEC, Le; CASILLI. Counting ‘micro-workers’: societal and methodological challenges around
new forms of labour. Work Organisation, Labour & Globalisation, [S.L.], v. 14, n. 1, p. 67, 2020.

133
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Segundo a pesquisa “Quem coda o Brasil?” realizada pela Thoughtworks Brasil em


parceria com o Olabi, o perfil dos trabalhadores responsáveis por esse tipo de criação15 é
composto de 68% do total de trabalhadores homens e 58.3% brancos. Vale notar que em
77,1% dos casos, um máximo de 10% das equipes declaram orientação diferente de hete-
rossexual, em 85,4% das equipes não há uma pessoa sequer com deficiência e em 95.9%
das equipes não há uma pessoa advinda de grupos originários16.
Dessa forma se inaugura um novo passo de paradigma de extração e de trabalho on-
tológico17, no qual, esses representantes de minorias sociais — pessoas negras e mulheres
— trabalham sem precisar de fato serem contratados ou sequer existir. É a transformação
do sonho do capital. O colonizador literalmente produz corpos para trabalharem sem pre-
cisarem serem pagos, promoverem greves ou sequer se manifestarem18.
Já aos corpos que existem além das telas, trabalham e se sacrificam para que toda a
internet funcione de maneira “mágica”, Mary L. Gray e Siddharth Suri dão o nome de tra-
balhadores fantasmas. Para os autores, tais trabalhadores vivem em condições ainda mais
precárias do que os corpos de trabalhadores que por exemplo, trabalham com aplicativo,
porque esses é possível visualizá-los, enquanto a atividade por trás de avatares e fazendas
de likes é despercebida, já que não é possível de fato ver um corpo se movimentando para
que determinada atividade se materialize (GRAY; SURI, 2019).
Todos esses trabalhos se baseiam na extração de dados, como já mencionado, e em
sua interpretação para que seja possível deduzir o próximo passo que promoverá maior
lucro. Tudo que o usuário está produzindo, conscientemente ou não, está sendo usado
para essas formas de trabalho. Deste modo encontramos o usuário como mineral, de onde
os mecanismos de controle de dados somados ao prospecto do capital extraem valor e
repassam para o colonizador. O processo colonial se repete, apenas em um contexto di-
ferente.
O Direito não Intenta Abarcar essas Novas Perspectivas
Tendo em mente as condições que existem por trás de todas as possibilidades de
trabalhos digitais, condições essas que se revelam precárias e abusivas, é preciso começar

15
Aqui os dados foram lidos como trabalhadores da tecnologia no geral. Os avatares em questão promo-
vem atividade de marketing, o que envolve animação, design entre outras atividades, além de funcionarem
como bots de atendimento para os clientes entre outras funções, sendo assim, envolvendo não só trabalha-
dores que desenvolvam atividades de concepção de imagem.
16
O acesso aos dados pode ser feito no seguinte link: https://assets-global.website-files.com/5b05e2e1b-
fcfaa4f92e2ac3a/5d671881e1161a6d2b8eb78b_Pesquisa%20QuemCodaBR.pdf Acesso em: 7 jul. 2021.
17
Para compreender melhor a absorção do mercado capitalista das corpo-políticas dos trabalhadores e con-
sequentemente o exercício de seus trabalhos ontológicos, ler: CORRAIDE, Marco Túlio.; PEREIRA, Flá-
via Souza Máximo. TRABALHO PRETO, INSTITUIÇÕES BRANCAS: A PESSOALIDADE RACIALI-
ZADA NA RELAÇÃO DE EMPREGO NO BRASIL. Teoria Jurídica Contemporânea, v. 6, n. 0, 30 jun.
2021. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/rjur/article/view/e41631>. Acesso em: 7 jul. 2021.
18
Para mais exemplos de tokens digitais, acessar: https://influu.me/blog/voce-sabe-quem-e-lu-do-magalu-
-conheca-os-influenciadores-robos/. Acesso em: 7 jul. 2021.

134
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

a pensar em formas de alcançar os trabalhadores envolvidos nessas atividades. Construir


um plano de política-judicial que englobe, entenda e consiga abarcar as novas demandas
que essas novas modalidades de trabalho necessitam. Não é razoável permanecer amar-
rado em perspectivas de configuração de relação de emprego, que advém de um sistema
europeu já datado em décadas.
Como dita Rafael Grohmann, é necessário perspectivas de segurança e alcance de
direitos básicos diante das produções desses trabalhos.
Lutar por trabalho decente em plataformas envolve: salário-mínimo, condi-
ções de trabalho adequadas que proporcionem saúde e rede de segurança, con-
tratos claros e acessíveis, processo de gestão que garanta equidade entre tra-
balhadores e combata desigualdades – como de raça e gênero – na plataforma,
algoritmos que não prejudiquem trabalhadores, e espaço para que, de fato, eles
tenham voz. Além desses princípios, a autogestão pressupõe ainda que, além
do trabalho para a plataforma, haja um trabalho de cuidado coletivo. Isto é, a
saúde – física e mental – de trabalhadores é uma responsabilidade coletiva.
(GROHMAN, 2021)

Nós estamos inseridos em uma realidade que o Direito do Trabalho, como construí-
do pelo processo colonial, advém de um saber científico eurocêntrico específico. Cada
vez mais, com o desenvolvimento da precarização da legislação trabalhista no Brasil e
no mundo é perceptível o desdobramento daqueles que se encontram no poder, perante
os pilares do capital e consequentemente a exploração sem limites do trabalhador. Dessa
forma, seria até mesmo imprudente, facilitar que os direitos dessas pessoas sejam alcan-
çados se isso “prejudicaria” a intenção de acumular.
Os elementos fáticos-jurídicos para configuração da relação de emprego — pessoa
física, pessoalidade, subordinação, não-eventualidade e onerosidade — além de outras
garantias mínimas para as relações de trabalho no geral, não alcançam os exercícios das
atividades mencionadas aqui e nem mesmo diversas outras.
Não que seja impossível que o avanço tecnológico ao qual estamos sujeitos não
possa promover modificações do Direito do Trabalho. Entretanto, parece que o que o
futuro nos reserva é cada vez mais a destruição do Direito do Trabalho em prol da possi-
bilidade de acumulação de capital na mão dos tecnocratas.
Vale destacar que o direito de acesso à rede é um direito que garante a efeti-
vação de diversos outros direitos fundamentais, já há muito consagrados, tais
como o direito de liberdade de expressão e de acesso à informação, de
modo a ser possível caracterizar ele mesmo (o direito de acesso) como
sendo um direito fundamental. Com efeito, o exercício e fruição dos
direitos fundamentais inerentes aos regimes democráticos podem se dar por
diversos meios e, nesse sentido, é possível que diante dos avanços tec-
nológicos de nosso tempo tais formas sejam, em sua maioria, conectadas
(GAMBA, 2020, p. 97-98).

135
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

O que coloco aqui em perspectiva é se em um estado de austeridade constante ao


qual nos encontramos, os corpos dissidentes que exercem atividades que nem mesmo
são visualizadas/lembradas — reforçando também o tratamento precário já aplicado pelo
Direito do Trabalho em relação a atividades que ainda que vistas são consideradas “in-
feriores” pelo resto da sociedade — se tornam objeto de preocupação de proteção pelo
Direito do Trabalho, sendo mais fácil manter o status quo o qual já nos encontramos, em
discussões rasas sobre os princípios para relação de emprego enquanto esses trabalhado-
res são cada vez mais sucateados.
Não há indícios de mudança da matriz, já estabelecida pela colonialidade, de explo-
ração violenta do trabalho humano (MOREIRA, 2019), ainda mais de corpos dissidentes.
Todos os aparatos que possibilitam a exploração do corpo em um contexto digital/tecno-
lógico de usurpação de dados se mantêm ainda baseado na lógica produtiva do período
escravocrata.
A forma que o aparato legislativo juslaboral segue lidando com tecnologia e traba-
lho nos apresenta um cenário que, baseando-se na colonialidade de dados, se volta cada
vez menos para os corpos vulneráveis e cada vez mais ouvir (e obedecer) ao que as gran-
des corporações estão a dizer (MAGALHÃES; COULDRY, 2021).
Conclusão
É necessário compreender que a construção de um futuro é diretamente a construção
da realidade social que vivemos. Precisamos olhar para o presente, para as nossas mazelas
atuais e também pensar, de forma sócio-política, o que desejamos para o futuro (e não é
um futuro que mimetize o presente, posso confirmar que não desejamos isso).
O Direito do Trabalho precisa compreender que existe uma variedade de corpos,
vivências, epistemologias e ontologias que exercem atividades que nem mesmo são con-
sideradas trabalho para grande parte da sociedade, atividades essas que nem mesmo são
passíveis de serem observadas e mesmo assim merecem proteção constante.
O perigo da colonialidade de dados é exatamente a repetição do passado. O descarte
de corpos como aqueles que valem menos por não serem passíveis de serem contabiliza-
dos e humanizados, ainda mais em um contexto digital e assim passíveis de serem explo-
rados e descartados diante dos tomadores de suas atividades.
Essa realidade não está distante, não acontecerá daqui 100 anos, mas sim no agora
e é preciso se atentar a essas novas formas de exploração do corpo do trabalhador.
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136
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

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soais (LGPD). Brasília, DF, abril 2018.
BRASIL. Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020. Altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro
de 1993, para dispor sobre parâmetros adicionais de caracterização da situação de vulne-
rabilidade social para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC), e
estabelece medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período
de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decor-
rente do coronavírus (Covid-19) responsável pelo surto de 2019, a que se refere a Lei nº
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137
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

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so em: 16 jun. 2021.

138
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

OUVIR E CONTAR HISTÓRIAS SUBALTERNAS:


REFLEXÕES METODOLÓGICAS SOBRE A DECOLONIZAÇÃO DO
TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO

Bianca Caroline Bento Menezes1

Introdução
Após pouco mais de cinco anos da promulgação da Lei Complementar 150 de 2015,
o trabalho doméstico continua sendo um tema relevante para o Direito do Trabalho. Ain-
da que a inclusão jurídica tenha significado grande avanço na promoção dos direitos das
domésticas, as disparidades relacionadas à raça e ao gênero e os índices de informalidade
e vulnerabilidade social revelam o quanto a colonialidade do poder e do gênero ainda
aprisiona mulheres em relações de trabalho precarizadas.
Diante desse contexto, é importante que as pesquisas sobre o tema optem por par-
tir da perspectiva das trabalhadoras, visando alcançar a realidade material e construir
respostas decoloniais. O giro feminista decolonial nas pesquisas jurídicas acadêmicas,
pressupõe viabilizar que mulheres de cor sejam também produtoras do conhecimento e
não apenas informantes ou objetos de pesquisa.
Nesse sentido, este artigo discute o feminismo decolonial enquanto uma metodo-
logia de pesquisa necessária para a descolonização do gênero no Direito do Trabalho. Os
conceitos da diferença colonial, pensamento de fronteira e enunciação fraturada são re-
visados a fim de sistematizar um breve escopo da metodologia feminista decolonial para,
em seguida, discutir as potencialidades e desafios dessa proposta nas pesquisas jurídicas.
Como tema de investigação, propõe-se compreender, em termos metodológicos,
como produzir pesquisas jurídicas a partir das vozes subalternas no trabalho doméstico
remunerado. Investiga-se como o pensamento de fronteira pode ser aplicado no Direito do
Trabalho e quais são as suas potencialidades e desafios. A resposta prévia para a pergunta
colocada é que para produzir pesquisas feministas decoloniais, é necessário refletir sobre
voz e perspectiva, recusar o silenciamento das vozes subalternas causado por vozes pri-
vilegiadas e, consequentemente, deslocar o centro de enunciação para o lado subalterno.
O texto está dividido em três tópicos além desta introdução e das considerações fi-
nais. O primeiro relaciona o trabalho doméstico com as teorias da colonialidade do poder
e do gênero, destacando o que cada uma delas deixa de contribuição epistemológica para
o ramo jurídico laboral. No segundo tópico, revisa-se os conceitos de diferença colonial
e pensamento de fronteira. Em seguia, procura-se elaborar o desenho teórico da meto-
dologia feminista decolonial a partir da revisão de literatura. Por fim, o terceiro tópico
1
Mestranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na Linha História, Poder e
Liberdade. Pesquisadora do Grupo Trabalho e Resistências, vinculado à Rede Nacional de Pesquisas e Es-
tudos em Direito do Trabalho e da Seguridade Social - RENAPEDTS. Endereço eletrônico: biancacaroline.
menezes@gmail.com.

139
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

discute as limitações do feminismo acadêmico na constituição de lugares de enunciação


para as vozes subalternas. Em tempo, apresenta dois apontamentos metodológicos sobre
a escuta e a fala de vozes subalternas, considerando a teoria das vozes de Karina Bidaseca
e a ferramenta do storytelling.
1. O Trabalho Doméstico remunerado e a Colonialidade do Poder e do Gêne-
ro
Compreender o trabalho doméstico remunerado a partir de lentes decoloniais re-
quer, em primeiro plano, reconhecer as continuidades existentes na categoria. Nesse sen-
tido, os dados qualitativos e quantitativos sobre o tema indicam a constante feminização
do setor e a configuração de raça e classe que o constitui2. Além de demonstrar que o
trabalho doméstico no Brasil possui raça e gênero, os dados também evidenciam a preca-
riedade e vulnerabilidade das relações de trabalho (BIRTES; FRAGA, 2014).
A colonialidade do poder e do gênero são duas das teorias que podem ser utilizadas
para denunciar a lógica colonial nas relações de trabalho doméstico3. O objetivo deste
capítulo é destacar em cada uma delas as contribuições epistemológicas para o estudo do
trabalho doméstico e que, em um segundo momento, constituem delineamentos metodo-
lógicos para pesquisas decoloniais no ramo do Direito do Trabalho.
1.1. Colonialidade do poder
A colonialidade do poder é definida como a “continuidade das formas coloniais de
dominação após o fim das administrações coloniais, produzidas pelas culturas coloniais e
pelas estruturas do sistema-mundo capitalista moderno/colonial” (GROSFOGUEL, 2008,
p. 25). Isso significa que, ainda que o período histórico do colonialismo tenha terminado,
as expressões de poder e as relações coloniais continuam atuando sobre a economia e a
política e compõe o capitalismo e a modernidade4.
A colonialidade do poder é estruturada por quatro eixos centrais. São eles a raça, a
formação da estrutura de controle do trabalho, a divisão do globo em regiões identificadas
e a fixação do eurocentrismo como perspectiva dominante da intersubjetividade (QUI-
2
Segundo os últimos dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apu-
rados até 2018, o total de 5,7 milhões de mulheres no Brasil estavam ocupadas em atividades domésticas
remuneradas, representando o percentual de 92% dos trabalhadores que compõe a categoria, sendo que,
63% delas eram negras (IPEA, 2019).
3
No intuito de explicar a persistência da inserção de mulheres negras na categoria, o trabalho doméstico
é frequentemente relacionado com as heranças do passado colonial escravocrata. Contudo, como Mariane
Cruz (2016) explica, reconhecer os aspectos hereditários não significa que a ligação entre o trabalho domés-
tico que existiu na colônia e o do dias atuais seja direta e clara, tendo em vista que são relações de trabalho
intrinsecamente distintas. O que explica as continuidades é a persistência de categorias e papeis sociais
formados no período colonial e que ainda informam e definem as hierarquias sociais.
4
O grupo Modernidade/Colonialidade compreende a modernidade, a colonialidade e o capitalismo como
fenômenos coetâneos e indissociáveis, que, de acordo com Aníbal Quijano (2002), tiveram início com em
1942 com a colonização da América. Esses três fenômenos funcionam articulados entre si e constituem o
padrão de poder mundial vigente.

140
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

JANO, 2013). Esses quatro elementos são necessários para pensar o trabalho e logo sua
regulamentação no contexto da globalização do mundo colonial/moderno.
Em primeiro lugar, a ideia da raça enquanto cor da pele serviu como fundamento
do padrão universal de classificação básica e denominação social da população mundial.
A raça foi imposta à intersubjetividade da população mundial, constituindo identidades
como a do colonizador e a do colonizado (QUIJANO, 2013). Ramón Grosfoguel explica
que “a ideia de raça organiza a população mundial segundo uma ordem hierárquica de
povos superiores e inferiores que passa ser princípio organizador da divisão internacional
do trabalho e do sistema patriarcal global” (GROSFOGUEL, 2008, p. 24).
Não apenas a população, mas as regiões globais também foram divididas, por sua
vez, a partir de identificações. Nessa denominação, a Europa Ocidental é tomada como
centro do poder e cada região do globo é classificada pela sua posição na colonialidade
do poder e dentro da estrutura do capitalismo (QUIJANO, 2013).
Assim, como Luciana Ballestrin destaca, o conceito da colonialidade do poder,
além de denunciar a continuidade das relações coloniais, consegue atualizar e explicar
os processos de divisão internacional do trabalho que a modernidade teria supostamente
apagado, assimilado ou superado (BALLESTRIN, 2013). Isso, pois o conceito permite
reconhecer o processo de estruturação do sistema-mundo colonial e sua articulação entre
os lugares periféricos, a divisão internacional do trabalho e as hierarquias ético-raciais
(GROSFOGUEL, 2008).
Nesses termos, é possível compreender como o trabalho é distribuído entre os su-
jeitos e os lugares globais. As raças classificadas como superiores, imbricadas ao gênero,
residem nos lugares denominados como centros e exercem as atividades laborais mais
protegidas. Por sua vez, as raças inferiorizadas são inseridas em trabalhos precários nas
periferias. Essa compreensão desnaturaliza a narrativa moderna sobre o progresso, na
qual os sujeitos os lugares colonizados são atrasados e um dia atingirão as posições das
raças superiores.
Ainda na discussão sobre o trabalho, a colonialidade do poder explica a estrutura
de controle do trabalho no capitalismo mundial. Nessa perspectiva, afirma-se que todas
formas de trabalho pré-capitalistas5 estão geopoliticamente distribuídas no globo e ar-
ticuladas em torno do eixo capital-salário e do mercado mundial. Por consequência, o
trabalho assalariado não é o único sujeito antagônico ao capitalismo, embora seja central,
tampouco é a única forma de trabalho existente (QUIJANO, 2013).
A implicância disso para a epistemologia do Direito do Trabalho é o reconheci-
mento da pluralidade heterogênea das identidades dos trabalhadores e trabalhadoras e da
diversidade de seus interesses concretos. Isso requer pensar não apenas o trabalho assala-
riado, mas todas as formas de trabalho em relação ao capital. Conforme Aníbal Quijano
afirma, essa mudança de perspectiva é necessária para conhecer os problemas que afetam

5
As formas de trabalho pré-capitalistas citas por Aníbal Quijano (2013) são escravidão, servidão, pequena
produção de mercadorias e reciprocidade.

141
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

igualmente as relações entre capital e salário, mas que a centralidade do trabalho assala-
riado oblitera (QUIJANO, 2013).
No caso do trabalho doméstico remunerado, essa perspectiva serve para fazer no
mínimo duas proposições. Primeiro, levando em consideração que 70% da categoria são
trabalhadoras informais (IPEA, 2019), o foco das investigações deve recair não somente
sobre o tema da regulamentação e do emprego, mas sobre os fundamentos e mecanismos
jurídicos, políticos e econômicos que configuram a informalidade e que criam o lugar
ontologicamente subalterno do trabalho doméstico.
Em segundo, a categoria das trabalhadoras domésticas deve ser analisada enquanto
plural e heterogênea. As experiências no trabalho doméstico são múltiplas e distintas a
depender da região do país. Por exemplo, enquanto no Norte do país 7,8% das diaristas
possuem cobertura previdenciária, no Sul o percentual é de 63,4% das mensalistas. Nesse
seguimento, os dados demonstram a coexistência de níveis diferentes de vulnerabilidade
e desproteção social entre as populações (IPEA, 2019).
De tal modo, não existe uma experiência homogênea sobre o trabalho doméstico
remunerado. A variedade das realidades sociais e do grau de vulnerabilidade entre as tra-
balhadoras implica em demandas concretas também distintas. Assumir a heterogeneidade
da categoria permite compreender quais são os reais desafios diante da materialidade das
relações, além de conhecer as demandas que poderiam acabar silenciadas no processo de
homogeneização.
1.2. Colonialidade de Gênero
A modernidade colonial se estrutura a partir de categorias homogêneas, atômicas
e separáveis. Essas categorias permitem criar dicotomias hierárquicas como as divisões
entre humano e não humano, branco e negro, homem e mulher (LUGONES, 2014).
Durante a colonização, a classificação imposta aos povos colonizados por meio
das categorias humano e não-humano foi a marca da civilização e tornou-se a ferramenta
normativa para disciplinar as condutas e personalidades dos povos (LUGONES, 2014).
Com o fim do colonialismo, as classificações permaneceram e constituíram identidades.
Os modelos implícitos de humanidade e de civilização continuam refletindo a experiência
do homem branco europeu e representam metas a serem alcançadas.
Do processo de classificação dos povos colonizados, depreende-se a ocorrência da
invenção do outro e a supressão das formas de organização política, econômica, religiosa
e social dos povos pelo colonizador. No encontro colonial, as histórias e formas de vida
dos colonizados foram apagadas e as lógicas coloniais escritas em seu lugar. Tanto o gê-
nero como a raça funcionam como eixos estruturantes desse modelo de dominação.
Dessa forma, a colonialidade de gênero permite compreender a opressão no sistema
capitalista moderno/colonial como “uma interação complexa de sistemas econômicos, ra-
cializantes e engendrados, na qual cada pessoa no encontro colonial pode ser vista como
um ser vivo, histórico, plenamente caracterizado” (LUGONES, 2014, p. 940). Interessa

142
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

ao pensamento decolonial de gênero identificar os processos de resistência à lógica colo-


nial, a fim de reinscrever a história suprimida das sujeitas e sujeitos colonizados.
Para a análise da opressão sofrida por mulheres de cor no sistema capitalista mo-
derno/colonial, deve-se notar que, sendo as categorias modernas homogêneas, atômicas
e separáveis, a junção das categorias e mulher e negro não permite ver a mulher negra
(LUGONES, 2014). Nessa junção, as experiências que se apresentam são as dominantes
de cada grupo, qual sejam, a da mulher branca e a do homem negro.
Diante da constatação do vazio semântico da expressão “mulher negra”, Lugones
propõe ir além das categorias modernas para analisar a opressão das mulheres de cor den-
tro do sistema capitalista moderno/colonial. A colonialidade de gênero, nesse sentido, é
utilizada como uma lente que permite ver o que se esconde por detrás das compreensões
sobre raça e gênero e suas relações com a heterossexualidade normativa (LUGONES,
2014).
No campo epistemológico do Direito do Trabalho, a colonialidade de gênero possi-
bilita perceber a imbricação das opressões de raça, gênero e classe presente nas relações
de trabalho. Desse modo, as normas jurídicas devem ser questionadas a partir dos eixos
de intersecção dessas categorias e não de modo separado. Daí, questiona-se ao ordena-
mento jurídico: quais sujeitos ele protege? Quem deixa de fora e por que?
Em outro giro, vez que a colonialidade do gênero e do poder denunciam a invenção
dos sujeitos colonizados, a sua redução a seres primitivos e a supressão de suas vozes
em detrimento da perspectiva masculina eurocêntrica, também cabe questionar: de qual
lugar epistêmico o Direito é enunciado? Quem é o sujeito que o enuncia? Quais são as
vozes ouvidas? Nos moldes de um feminismo decolonial, a descolonização do Direito do
Trabalho passa pelo resgate dos processos de resistência à imposição da lógica colonial
de gênero.
Nesse seguimento, no próximo tópico discute-se os métodos feministas decoloniais
de pesquisa e sua constituição enquanto meios de decolonização do saber e do Direito do
Trabalho.
2. Por uma Metodologia Feminista Decolonial do Conhecimento
Além de servir como lente de análise teórica, a colonialidade de gênero oferece
um método de decolonização e produção do conhecimento. Nesse sentido, o feminismo
decolonial é a ferramenta para a descolonizar o gênero por meio do reconhecimento dos
processos ocultados de resistência à diferença colonial. Para compreender a proposta do
método feminista decolonial, passa-se à revisão dos significados de pensamento das fron-
teiras e diferença colonial.
De início, a ideia de fronteira é introduzida por Gloria Anzaldúa no ensaio “La
consciência de la mestiza: rumo a uma nova consciência”. Gloria parte da proposição de
que a síntese das raças não produz um ser inferior, mas uma prole híbrida e com carga
genética rica. Então, a autora reflete sobre a sua própria condição enquanto uma mulher,

143
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

lésbica, descendente de indígenas e espanhóis e de nacionalidade estadunidense e expõe


a sua luta interna, na qual as culturas brigam dentro de si.
Gloria entende que na carne da mestiça existe uma luta de fronteiras na medida
em que duas ou mais culturas existem ali. As fronteiras são os pontos de separação entre
as raças e culturas distintas. Desse embate fronteiriço, os valores culturais, biológicos,
ideológicos e espirituais são transferidos de uma cultura para outra, ou seja, ocorre uma
transpolinização (ANZALDÚA, 2005).
A consequência é a formação de uma nova consciência que a autora nomeia como
consciencia mestiza, consciencia de mujer ou consciência das fronteiras (ANZALDÚA,
2005). A consciencia mestiza revela a possibilidade de um dos caminhos para a libertação
da opressão colonial. A mestiça, por conter em si ambas as raças, transcende a dualidade
das categorias coloniais, com isso costura a ferida que divide as culturas e redefine a cul-
tura dominante a partir da resistência da cultura oprimida.
A mestiça, biologicamente posicionada entre as margens, possui uma visão mais
ampla, capaz de enxergar os vários lados da diferença colonial. Por isso, ela possui o
olhar rico e apto para se opor à dicotomia moderna. Considerando que nas lutas frontei-
riças os lados hegemônicos ocultam os subalternos, a cicatrização da diferença se dá pela
resistência subalterna, que se pronuncia ao invés de ser apagada.
Esse é o caminho apresentado por Gloria Anzaldúa para uma nova visão de mundo
ou caminho para a libertação. Em tal perspectiva, a dualidade é transcendida pelo modelo
de inclusão da outra margem. Tomada como analogia, a concepção da luta fronteiriça que
forma a consciencia da mestiza pode ser aplicada nos estudos das ciências sociais, em
especial no Direito, vez que este também possui forças hegemônicas e subalternas que
disputam os seus sentidos.
Traçando um projeto epistemológico, Walter Mignolo dá continuidade à teoria de
Gloria Anzaldúa ao se debruçar sobre o tema do pensamento liminar6. Para isso, o au-
tor trabalha com o conceito de diferença colonial, compreendido como “o espaço onde
emerge a colonialidade do poder” e como o “o espaço onde as histórias locais que estão
inventando os projetos globais encontram aquelas histórias locais que o recebem” (MIG-
NOLO, 2020, p. 10).
A partir desse conceito, Joaze Bernardino-Costa depreende que a diferença colonial
“é uma consequência natural do sistema mundo moderno/colonial”, tendo em vista que
a colonialidade do poder convive com as respostas oferecidas pela resistência subalter-
na. Nesse sentido, a diferença colonial “é o produto do embate entre as histórias locais
europeias que se apresentam como projetos globais e as respostas das diversas histórias
locais” (BERNARDINO-COSTA, 2007, p. 63).
Conforme o autor complementa, o projeto de colonização não apagou por com-
pleto o que já havia nos territórios colonizados. No embate entre os projetos globais e as
histórias locais, diferentes loci de enunciação são produzidos de acordo com a diferença
6
Pensamento liminar e pensamento de fronteira são usados como sinônimos neste texto.

144
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

colonial. Outro aspecto importe é que a diferença colonial guarda características de poder
e dominação, o que a distingue da simples diferença cultural (BERNARDINO-COSTA,
2007).
Retomando a ideia de Gloria Anzaldúa sobre a consciência das fronteiras, a diferen-
ça colonial oferece condições para as situações dialógicas entre os lados hegemônicos e
subalternos. Na posicionalidade dialógica, a reação subalterna ao discurso e à perspectiva
hegemônica resulta em uma enunciação fraturada, a qual Mignolo chama de pensamento
de fronteira. Nas palavras do autor, “o pensamento liminar é mais do que uma enunciação
híbrida. É uma enunciação fraturada em situações dialógicas com a cosmologia territorial
e hegemônica” (MIGNOLO, 2020, p. 11).
É desse lugar fronteiriço que Maria Lugones propõe o feminismo decolonial. O in-
teresse da autora é entender a resistência à colonialidade do gênero por meio da perspecti-
va da diferença colonial. Ela diz pensar “sobre feminismo desde as bases e nelas, e desde
a diferença colonial e nela, com uma forte ênfase no terreno, em uma intersubjetividade
historicizada, encarnada.” (LUGONES, 2014, p. 939).
Nesse sentido Lugones propõe um feminismo na liminaridade da fronteira, habi-
tando o espaço de onde é possível conhecer como as pessoas resistem à colonialidade do
gênero na diferença colonial e aprender umas com as outras. Conforme a autora enfatiza,
“a tarefa da feminista descolonial inicia-se com ela vendo a diferença colonial e enfatica-
mente resistindo ao seu próprio hábito epistemológico de apaga-la” (LUGONES, 2014,
p. 948).
A resistência subalterna guarda o potencial dos grupos oprimidos em constituir sig-
nificados entre si, que recusam aqueles impostos pelo sistema de poder moderno/colonial.
De tal modo, o pensamento de fronteira, enquanto um método, tem por função trazer a
enunciação fraturada, ou seja, a resistência subalterna ao projeto colonial, para o foco de
análise ao invés de apaga-la.
Conforme a descrição feita por Joaze Bernardino-Costa, a metodologia dos oprimi-
dos, no projeto decolonial, viabiliza reescrever as histórias que são apagadas no encontro
colonial. O seu ponto fundamental é a superação da ideologia de dominação do mundo
moderno/colonial pelo processo de reconhecimento da “arbitrariedade do sistema simbó-
lico eurocêntrico” (BERNARDINO-COSTA, 2007, p. 73).
Do mesmo modo, os métodos feministas decoloniais pressupõem ler, ouvir, obser-
var e aprender sobre a resistência no lócus fraturado. Como Maria Lugones destaca, as
sujeitas devem aprender umas com as outras (LUGONES, 2014), de modo a conhecer a
opressão em suas múltiplas facetas. Essa tarefa requer o modelo de co-teorização (LU-
GONES, 2018), no qual as mulheres podem aprender de forma colaborativa a partir da
fala em rede. Isso significa que todas as sujeitas, dentro e fora da academia, estão aptas a
contar as suas realidades ao invés de terem que atuar apenas como informantes no modelo
de representação.

145
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Em termos metodológicos, o pensamento de fronteira é uma das formas de supera-


ção da colonialidade. Ramón Grosfoguel conceitua a expressão como “a resposta epistê-
mica do subalterno ao projecto eurocêntrico da modernidade” (GROSFOGUEL, 2008, p.
16). O autor ainda elogia o pensamento crítico de fronteira ao afirmar que este consegue
superar o discurso emancipatório moderno por meio da epistemologia e cosmologia su-
balterna sem, contudo, recair no fundamentalismo antimoderno.
Nesse sentido, Grosfoguel explica:
Aquilo que o pensamento de fronteira produz é uma redefinição/subsunção da
cidadania e da democracia, dos direitos humanos, da humanidade e das rela-
ções econômicas para lá das definições impostas pela modernidade europeia.
O pensamento de fronteira não é um fundamentalismo antimoderno. É uma
resposta transmoderna descolonial do subalterno perante a modernidade euro-
cêntrica. (GROSFOGUEL, 2008, p. 17).

Em síntese, o pensamento crítico de fronteira consiste em deslocar a enunciação


para o lado subalterno da diferença colonial. A enunciação fraturada do subalterno, então,
redefine os elementos da modernidade a partir da sua crítica, dando novos sentidos. As-
sim, a modernidade não é rechaçada por completo, mas subsumida e redesenhada a partir
da crítica subalterna.
Essa perspectiva parece interessante ao Direito do Trabalho. Isso, pois pelo pensa-
mento crítico de fronteira é possível oferecer uma crítica decolonial a esse ramo jurídico,
especialmente quanto as suas margens, e ao mesmo tempo defender o modelo de em-
prego protegido. Assim, tomando o emprego como algo bom da modernidade, a crítica
subalterna o inclui e apresenta respostas criativas aos problemas de raça e gênero na (des)
proteção laboral.
Para pensar o Direito do Trabalho pela diferença colonial e propiciar o diálogo de
fronteira, deve-se deslocar a enunciação dos polos hegemônicos para os subalternos. As
sujeitas e sujeitos subalternizados devem ser ouvidos. Desse modo, as histórias subalter-
nas sobre trabalho, direitos e resistências deixam de ser apagadas e são postas em evidên-
cia. Trata-se de identificar o Direito do Trabalho não somente nos tribunais e na academia,
mas nas periferias, ruas, casas e corpos, a fim de aprender uns com os outros.
Em resumo, depreende-se que para aprender no lócus fraturado é necessário deslo-
car o foco da análise do centro privilegiado de produção do conhecimento para os outros
lugares e sujeitos, a fim de tornar visível o que a colonialidade encobre. As sujeitas e
sujeitos subalternos, bem como as periferias, têm algo a dizer sobre o Direito. Eles não
devem estar no campo do conhecimento apenas como objetos ou informantes, mas como
sujeitas e sujeitos do saber.
Contudo, esse giro deverá implicar a configuração de novos lugares de enunciação.
Levando em consideração que a produção do conhecimento assimila as hierarquias co-
loniais de gênero, questiona-se como pode ser possível a constituição desses lugares de
enunciação?

146
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

A partir dessa pergunta, o próximo tópico apresenta dois apontamentos metodoló-


gicos sobre a constituição de espaços de enunciação da perspectiva subalterna na produ-
ção do conhecimento jurídico.
3. Ouvir E Contar as Histórias SubalternaS: Apontamentos Metodológicos sobre as
Enunciações
Pensar o Direito do Trabalho a partir da diferença colonial é identificar as fronteiras
nas quais as histórias hegemônicas e subalternas se encontram. Quem pode dizer o que
é o direito no trabalho doméstico? Comumente, essa história é contada pelos manuais,
pelas produções científicas ou pelas decisões judiciais. E quais são as vozes que estão por
detrás desses textos? Quem são as mentes, corpos e vozes que absorvem, filtram, pensam
e enunciam os direitos no trabalho?
Tais perguntas servem para refletir sobre onde estão as mulheres trabalhadoras
domésticas na produção do saber. São elas sujeitas, objetos ou informantes? Ao propor
investigações com o tema do trabalho doméstico, sabendo quem são as mulheres que
realizam esse serviço, como uma postura crítica decolonial, deve-se ter em mente duas
perguntas destacadas por María Lugones. São elas: “para quem é a investigação? e para
que é a investigação?”7 (LUGONES, 2018, p. 77, tradução nossa).
Se a resposta para essas perguntas passam por resolver os problemas jurídicos en-
frentados materialmente pelas trabalhadoras domésticas, nada mais sensato que estas es-
tejam incluídas na elaboração da solução. As trabalhadoras, enquanto lado subalterno
no conflito entre o capital e o trabalho, produzem a enunciação fraturada, evidenciam as
injustiças e proporcionam a redefinição da democracia e dos direito humanos.
Este capitulo destaca algumas das limitações da atividade acadêmica na inclusão da
perspectiva subalterna. Pretende-se no primeiro tópico discutir as vozes na pesquisa e no
segundo apresentar o recurso do storytelling.
3.1. Ouvindo as histórias subalternas: a teoria das vozes
A colonialidade constrói relações de gênero. Mas, o grupo oprimido pelo patriarca-
do, as mulheres, não é homogêneo em suas posições, características, demandas e formas
de opressão. Ao falar pelas mulheres de cor, o “feminismo ‘branco’ inscreve-se em uma
narrativa imperialista”8, quando sustenta o que Karina Bidaseca chama de retórica salva-
cionista (BIDASECA, 2011, p. 62, tradução nossa).
No caso da condenação do homem Wichí pelo Tribunal de Salta9, Karina discute o
colonialismo discursivo nos espaços de poder. Na situação da qual trata, a autora analisa
os depoimentos sobre o caso, buscando identificar de quem são as vozes, de onde falam,
qual o seu conteúdo e o seu impacto sobre o julgamento. Ela conclui que as vozes subal-
7
No original: “¿para quién es la investigación? y ¿para qué es la investigación?”.
8
No original: “el feminismo ‘blanco’ se inscribe en una narrativa imperialista”.
9
No acórdão analisado por Karina Bidaseca, um homem Wichí foi acusado de ter relações sexuais com a
filha de dez anos de sua concubina.

147
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

ternas, como a da menina Wichí e sua mãe não são de fato ouvidas, pois são impedidas
de falar por elas próprias.
Partindo do conceito de colonialidade do poder, Bidaseca apresenta o que ela cha-
ma de teoria das vozes. Em tal concepção, a voz é o instrumento político do sujeito, pois
por meio da fala o subalterno denuncia as injustiças e constitui intersubjetividades. Por
conseguinte, a voz subalterna expõe os mecanismos pelos quais a opressão se concretiza
e dirige uma contra-história à narrativa hegemônica. Por isso, o ato de silenciar é uma das
práticas de controle assumidas pela colonialidade (BIDASECA, 2011).
Nesse segmento, o silenciamento da voz subalterna pela retórica salvacionista é
uma das ameaças ao diálogo de fronteira em pesquisas jurídicas. A questão levantada é:
como garantir que as vozes subalternas sejam ouvidas?
Para responder essa pergunta, apresenta-se um apontamento metodológico que con-
siste no exercício ativo e analítico de ouvir as vozes do texto acadêmico. De acordo com
o que Marília Amorim descreve, o “texto é lugar de produção e de circulação de conheci-
mentos porque penso que a escrita de pesquisa não se reduz a uma simples transcrição de
conhecimentos produzidos em situação de campo” (AMORIM, 2002, p. 8).
Nessa perspectiva, o texto pode ser interrogado de diferentes formas. Uma delas é
quanto a presença e a ausência de vozes. Em uma pesquisa jurídica sobre o trabalho do-
méstico, por exemplo, é possível praticar o exercício de identificar, por meio das fontes
bibliográficas e dos dados, quais são as vozes que aparecem ali. A autora ou o autor de-
ve-se perguntar: quem são os sujeitos que escreveram ou produziram os dados? De qual
lugar social e geopolítico eles falam?
Assim, propõe-se a leitura crítica e analítica que vise “identificar quais são as vozes
que se deixam ouvir no texto, em que lugares é possível ouvi-las e quais são as vozes
ausentes.” A finalidade desse trabalho não é a análise linguística ou literária, mas diagnos-
ticar quais os limites, impasses e potenciais do texto (AMORIM, 2002, p. 8).
Talvez esse exercício revele que, embora estejam presentes as vozes das teóricas
feministas, as vozes das trabalhadoras domésticas estão ausentes ou representadas por
outras mulheres. O que pretende-se aqui não é dizer que o texto não pode conter as vozes
privilegiadas pelo sistema de poder, mas que os limites da representação, ou os da fala
por sujeitos que não experimentam a realidade tratada, estejam estabelecidos. A partir de
então, pode-se conhecer em quais aspectos metodológicos e teóricos a investigação deve
avançar para se abrir aos lugares de enunciação subalterna.
3.2. Contando as Histórias Subalternas: o storytelling
Em outro giro, o segundo apontamento metodológico trazido por este artigo é
sobre como a perspectiva subalterna pode ser contada nos textos de pesquisa. Tendo em
vista que colonialidade do poder e do gênero produz hierarquias também no campo do sa-
ber e que privilegia as formas eurocêntricas de produção do conhecimento, a enunciação
subalterna é prejudicada. Diante desse contexto, este último tópico revisa a proposta e o

148
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

conceito do storytelling enquanto ferramenta de construção de saberes contra-hegemôni-


cos.
O storytelling ou narrativa é um recurso utilizado para retratar trajetórias, fatos e
ideias por meio da história contada. Richard Delgado adota a premissa de que as histórias
constroem a realidade social, pois por meio delas é possível acolher uma ou outra versão
da realidade. As histórias concedem aos grupos, sejam eles hegemônicos ou subalternos,
coesão, criação de vínculos e a possibilidade de criar significados compartilhados (DEL-
GADO, 1989).
O mundo jurídico também é estruturado por histórias. Tanto os grupos dominantes
quanto os grupos subalternos criam histórias jurídicas, porém em sentidos diferentes. As
histórias dos grupos dominantes reforçam a sua identidade em relação aos grupos domi-
nados e sustentam a realidade compartilhada de que a sua posição superior é natural. Já os
outgroups10 criam suas histórias e as circulam dentro do grupo como uma contra-realida-
de. Ocorre que as histórias dos grupos marginalizados são, em grande medida, suprimidas
ou deslegitimadas (DELGADO, 1989).
A aposta de Richard é que as histórias contadas pelos outgroups, as contra-histó-
rias, podem ser utilizadas para desafiar a história hegemônica e preparar o caminho para
o novo. Por isso o autor investiga como as histórias podem ser utilizadas na luta pela
reforma racial. Richard afirma que “histórias, parábolas, crônicas e narrativas são meios
poderosos para destruir o mindset - o feixe de pressuposições, sabedorias recebidas e en-
tendimentos compartilhados contra um pano de fundo sobre o qual o discurso jurídico e
político ocorre.”11 (DELGADO, 1989, p. 2413, tradução nossa).
Nesse sentido, o apontamento levantado por este artigo é que a narrativa pela pers-
pectiva subalterna pode ser utilizada em pesquisas jurídicas a fim de constituir lugar de
enunciação para as contra-histórias12. Objetiva-se, assim, desafiar o status quo, denunciar
formas de opressão e construir uma outra concepção de direitos mais sensíveis aos pro-
blemas coloniais de raça e gênero.

10
Outgroups é o termo original usado pelo autor. A palavra refere-se a qualquer grupo marginalizado que
teve sua consciência suprimida e dominada pelo grupo hegemônico.
11
No original: “Stories, parables, chronicles, and narratives are powerful means for destroying mindset -
the bundle of presuppositions, received wisdoms, and shared understandings against a background of which
legal and political discourse takes place.”
12
Acrescenta-se que as proposições apresentas neste tópico desafiam as hierarquias coloniais e formas
legitimadas de produção do saber. Por isso destaca-se as seguintes questões para serem discutidas em outra
oportunidade: quais alterações ou tensões a voz subalterna ou narrativa provoca nos métodos convencionais
de pesquisa em Direito? E mais, qual o efeito de tais alterações e tensões para o debate na arena jurídica,
frente às vozes e os saberes hegemônicos?

149
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Considerações Finais
Este artigo teve como objetivo principal compreender métodos de produção de pes-
quisas jurídicas a partir das vozes subalternas no trabalho doméstico remunerado. De
início, as teorias da colonialidade do saber e do gênero foram relacionadas ao tema do tra-
balho doméstico remunerado a fim de destacar as bases da crítica decolonial. Em seguida,
fixou-se os contornos de uma metodologia subalterna por meio da revisão e discussão dos
significados de diferença colonial, diálogo de fronteira e enunciação fraturada. O último
tópico problematizou o espaço de fala e escuta das vozes subalternas nas pesquisas jurí-
dicas.
Em termos de considerações finais, considera-se o perigo de silenciamento das vo-
zes subalternas, tendo em vista que a colonialidade do poder e do gênero cria hierarquias
na produção do saber. Portanto, é necessário questionar os textos de pesquisa em relação
às vozes que o constituem. Ademais, a aplicação das metodologias subalternas provoca
tensionamentos aos métodos hegemônicos de conhecimento. Quanto ao diálogo de fron-
teira, acredita-se que este possa produzir avanços no projeto de decolonização epistêmica
por evidenciar a razão subalterna sem rechaçar por completo a modernidade.
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Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

TELETRABALHO DA MULHER E O RECRUDESCIMENTO


DA DESIGUALDADE DE GÊNERO

Valéria Santos Araújo1


Ana Lúcia Ribeiro Mól2

Introdução
O surgimento das novas tecnologias trouxe consigo uma mudança de paradigma na
sociedade, com modificações tão profundas a ponto de se delinear uma Quarta Revolução
Industrial. A ampliação da comunicação e a redução de distâncias efetivadas pela internet
e pelos meios digitais unificou o mercado mundial e transformou as formas de trabalho e
de produção.
Mesmo com origens mais remotas, uma das transformações que se consolidou a
partir desse contexto foi a implementação do teletrabalho, que se caracteriza pela possi-
bilidade da prestação de serviços fora do estabelecimento do empregador, por meio das
tecnologias da informação e da comunicação (TICs). Esse regime de trabalho tem cresci-
do nos últimos anos e ganhou um reforço em sua concretização com a pandemia da CO-
VID-19, tendo em vista a necessidade de se levar a cabo medidas de isolamento social.
Uma das formas de teletrabalho mais destacadas é o homeoffice, que permite a exe-
cução das atividades na própria residência do trabalhador, o que, a princípio, contribuiria
para uma diminuição dos gastos com a prestação dos serviços, acompanhada de um au-
mento da produção do empregado, que tem a gestão do tempo do trabalho em suas mãos.
Essas vantagens, propaladas como meio de se disseminar esse regime de trabalho
e fortalecer as diretrizes capitalistas que reforçam sua adoção, nem sempre suplantam os
efeitos nocivos das atividades em homeoffice, especialmente quando a análise é feita sob
o ponto de vista da mulher trabalhadora. O exame desses efeitos e de sua contribuição
para o aumento da desigualdade de gênero é o objetivo do presente artigo, que se em-
basou numa pesquisa exploratória, de caráter descritivo, com pesquisa de bibliografia
especializada sobre o tema.
Para o desenvolvimento do estudo, partiu-se de uma análise da definição e carate-
rísticas do teletrabalho como decorrência da Quarta Revolução Industrial, passando pelo
exame da desigualdade de gênero sob a perspectiva da Agenda 2030 da Organização das
Nações Unidas (ONU), para, em arremate, serem estabelecidas as diferenças existentes
entre o teletrabalho da mulher e do homem e os impactos decorrentes dessa circunstância.
1
Mestranda em Economia (Desenvolvimento Econômico e Estratégia Empresarial) pela Universidade de
Estadual de Montes Claros/ MG. Especialista em direito do Trabalho e Previdenciário pelas Faculdades
Integradas do Norte de Minas - FUNORTE. E-mail: valeriasantosaraujo92@gmail.com.
2
Doutoranda em Direito (Proteção dos Direitos Fundamentais: Direito Processual Coletivo e Efetividade
dos Direitos Fundamentais) pela Fundação Universidade de Itaúna/MG. Mestre em Direito Processual pela
PUC/MG. E-mail: anaribeiromol@gmail.com.

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

1. O teletrabalho como corolário da Quarta Revolução Industrial


Desde o final do século XX, a sociedade tem sido impactada pelo surgimento e
avanço da tecnologia, o que tem ensejado transformações em múltiplos setores, inclusive
e principalmente nas esferas econômica e social. O uso da internet e dos meios digitais
têm reduzido distâncias, diminuído lapsos de tempo para a prática das atividades em
geral, sem redução, a princípio, da qualidade. Ao contrário, constata-se que, cada vez
mais, é possível a execução de mais funções de maneira mais eficiente. Em razão das
facilidades implementadas por esse contexto, as ferramentas tecnológicas se encontram
arraigadas no cotidiano das pessoas, não se restringindo à esfera privada, mas já atingindo
a esfera pública, posto que vários serviços executados pelo Estado utilizam-se dos meios
digitais para sua prestação.3
Essa conjuntura torna as relações jurídicas mais complexas, uma vez que amplifica
a possibilidade de interação e a troca de informações com uma rapidez até então inimagi-
nável e por meios bastante diversificados. As alterações geradas por esse contexto são de
tanta profundidade que são chamadas por Swab (2016) de Quarta Revolução Industrial,
a significar a existência de um considerável progresso em relação às revoluções indus-
triais anteriores, marcadas notadamente por um capitalismo de produção. Essa nova era é
pautada não apenas na rapidez em que as transformações ocorrem, mas também em sua
extensão, já que estabelecidas de forma multisetorial e plural, gerando uma verdadeira
ressignificação do próprio ser humano e das atividades por ele exercidas.
Certo é que toda essa conjectura impactou e vem impactando as relações entre
empregado e empregador, com mudanças significativas na ideia da prestação de serviços
tradicional, imprimindo desafios para a regulação dos novos parâmetros do trabalho.E
não se poderia esperar que fosse diferente, já que as novas tecnologias vêm estabelecendo
amplas modificações na economia, da qual o trabalho constitui-se em uma das suas molas
propulsoras.
O teletrabalho desponta como um dos reflexos gerados pela Quarta Revolução In-
dustrial, não obstante haver apontamentos de atividades à distância desde 1950. Na década
de 70, essa forma de trabalho começa a estruturar-se como uma realidade mais palpável,
especialmente nos Estados Unidos e na Europa, após o desenvolvimento e disseminação
das ferramentas tecnológicas e depois da crise do petróleo nessa época (ROCHA; AMA-
DOR, 2018). Sua implementação na sociedade brasileira já existia anteriormente, mas foi
pontencializada com a pandemia da COVID-19, que implicou na adoção de medidas de
isolamento social para a contenção da disseminação do coronavírus, altamente letal ao
ser humano.

3
A grande utilização da tecnologia tem sido acompanhada, contudo, de exclusão de grande parte da po-
pulação brasileira. Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGEdiz que 40
milhões de brasileiros não possuem acesso à internet e aos meios necessáriosà uma verdadeira inclusão
digital (IBGE, 2021).

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Aliado a esse contexto, o teletrabalho mostrou-se coerente às exigências da econo-


mia capitalista, uma vez que sua implantação tende a reduzir os gastos dos empregadores
com local de trabalho e com a forma convencional de execução das atividades dos em-
pregados, substituindo os mecanismos engessados de produção para um formato mais
maleável, consubstanciado em metas a serem cumpridas em determinados prazos estipu-
lados pelas empresas. Além disso, o teletrabalho diminui os gastos de tempo com o des-
locamento para o trabalho, já que se pauta na prestação de serviços fora das dependências
do empregador, por meio do uso de tecnologias da informação e da comunicação (TICs).
É de se destacar que o conceito de teletrabalho mostra-se vacilante na doutrina,
sendo, muitas vezes, as espécies tomadas como se fossem o gênero. Contudo, há pontos
de encontro entre as várias definições do termo, que tornam possível estabelecer-se uma
ideia central a esse respeito. Sobre essa questão, destaca-se que
Nos EUA, é mais frequente o uso do termo telecommuting, enquanto na Eu-
ropa sobressai o uso do telework. O primeiro termo enfatiza o deslocamento
entre o centro demandante do trabalho e o local onde é realizado, sendo substi-
tuído pelo uso de ferramentas telemáticas. O segundo enfoca as atividades rea-
lizadas por tais meios tecnológicos. Ambos os termos, porém, dizem respeito a
um mesmo universo de organização do trabalho, referindo-se à atual tendência
das atividades laborais serem realizadas com uso de meios telemáticos sem ne-
cessidade de deslocamento do trabalhador ao local onde os resultados devem
ser apresentados (ROCHA; AMADOR, 2018, p. 153).

Quanto à regulamentação do teletrabalho, as primeiras preocupações do legislador


brasileiro com essa temática emergiram a partir da Lei nº 12.551, de 15 de dezembro de
2011, que alterou o art. 6º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), quando então
restaram afastadas quaisquer diferenciações entre as atividades exercidas ou não no es-
tabelecimento do empregador, desde que configurados os elementos fático-jurídicos da
relação empregatícia. Nessa mesma regra, em seu parágrafo único, deixou-se claro que
a subordinação jurídica pode ser exercida pelo direcionamento e fiscalização do serviço
prestado pelo empregado através dos meios digitais e tecnológicos.
Não obstante constituir-se num primeiro passo para sua normatização, a alteração
legislativa em análise não trouxe verdadeiramente um direcionamento específico quanto
a várias questões relacionadas a essa forma de trabalho. Os principais questionamentos
a respeito do teletrabalho, quais sejam o modo de gestão e controle das atividades do
empregado, e a possibilidade de trabalho em sobrejornada e sua respectiva remuneração,
não foram abordadas pela lei.
Em 2017, por meio da Lei nº 13.467, de 13 de julho daquele ano, foram incorpora-
das à CLT várias regras sobre o teletrabalho. A chamada Reforma Trabalhista incluiu um
capítulo próprio sobre as atividades exercidas fora do estabelecimento do empregador,
avançando um pouco mais no tratamento normativo da matéria. Mais uma vez, tem-se a
definição das características dessa forma de prestação de serviços, bem como a fixação de
diretrizes para sua formalização e para alteração do contrato de emprego entre os regimes

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

presencial e de teletrabalho. Estabeleceu-se, ainda, regras para que sejam evitados aci-
dentes e doenças do trabalho nessas hipóteses (arts. 75-A a 75-E, da CLT). Outras regras
também passaram a delinear o regime em análise, como a não aplicação, pelo menos em
tese,do regime jurídico das horas extras (art. 62, inciso III, da CLT).
Esse arcabouço normativo é, em linhas gerais, o que atualmente rege o trabalho fora
do estabelecimento do empregador, que vem ganhando cada vez mais espaço no mercado
de trabalho não somente do Brasil, mas também do mundo. Em relatório recentemente
apresentado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), estima-se uma tendência
de aumento substancial dessa forma de prestação de serviços (OIT, 2021).
Ressalte-se que uma dessas formas de execução do teletrabalho, em especial, teve
um crescimento vertiginoso nos últimos anos, que é o homeoffice, no qual as atividades
são prestadas pelo empregado em seu domicílio. A pandemia da COVID-19, como ante-
riormente salientado, contribuiu primordialmente para que esse cenário se efetivasse de
uma forma extremamente célere e, por isso mesmo, com impactos que precisam ser re-
vistos e redirecionados, para que não apenas seja garantida a continuidade do crescimento
econômico e lucrativo dasempresas, mas que principalmente seja efetivada a proteção do
trabalhador, que é a peça chave para que essa engrenagem funcione adequadamente.
A realização dessa forma de trabalho pelas mulheres, de forma específica, aprofun-
dou substancialmente os reflexos que as diferenças de gênero apresentam nesse regime
de prestação de serviços, o que demanda uma atenção mais acurada sobre essa questão, o
que será feito nas linhas que se seguem.
2. A desigualdade de gênero na perspectiva da Agenda 2030 da Organização das
Nações Unidas (ONU)
Historicamente, desde a descoberta do sexo do bebê, a família já começa a construir
estereótipos sobre o que o homem ou a mulher se tornará. Certas formas de comporta-
mento são declinadas de forma diferente conforme o gênero da criança. Há, inclusive, um
condicionamento quanto às profissões direcionadas para homens ou para mulheres, sendo
relegadas a estas, muitas vezes, funções tidas como menos importantes (SILVA, 2015).
Isso contribui para que as pessoas ocupem lugares sociais diferentes e tenham perspecti-
vas de vida desiguais a partir da atribuição de papéis de gênero.
No entanto, a definição do gênero depende da construção social de cada indivíduo.
Transpõe a biologia e éesculpido nas esferas culturais, políticas, econômicas, sociais e
nas relações de poder. Nesse sentido, gênero é definido como um elemento constitutivo de
relações baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e uma forma primária de dar
significado às relações de poder (SCOTT, 1995), as quais estão em constante movimento,
provocando transformação de padrões culturais e socais (SAFIOTTI, 1992).
Com vistas a impulsionar essas transformações desses padrões, a Agenda 2030 da
ONU definiu o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 5 (ODS nº 5), consubstancia-
do em alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas, através

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de nove metas específicas que têm foco em muitas das causas básicas da desigualdade de
gênero.
Para demonstrar a importância do ODS nº 5 de alcançar a isonomia entre homens e
mulheres e acompanhar o avanço das metas estabelecidas, é importante analisar os dados
disponíveis no relatório da ONU, denominado Gender equality: women’s rights in review
25 years after Beijing, e os dados coletados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Avan-
çada (IPEA), a fim de subsidiar a discussão sobre a desigualdade de gênero do contexto
global para o contexto nacional.
A eliminação de todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas (meta
5.1) é de fundamental importância para garantia dos direitos humanos do gênero femini-
no. Entretanto, para atingi-la, é necessário superar desafios arraigados principalmente na
cultura de sociedades patriarcais, de modo que demanda esforços contínuos em políticas
públicas que promovam a igualdadeentre homens e mulheres, especialmente, com avan-
ços no arcabouço legislativo, no acesso àeducação, saúde, recursos econômicos, elimi-
nação da pobreza extrema e de outras mazelas que fazem perpetuar a discriminação da
mulher.
A meta nº 5.2 refere-se àeliminação de todas as formas de violência contra mulheres
e meninas nas esferas públicas e privadas. Trata-se de um desafio árduo, pois a violência
contra o gênero feminino continua generalizada e pouco relatada, sendo que, no contexto
global, 18% das mulheres de 15 a 49 anos já sofreram violência física e/ou sexual pelo
parceiro atual ou anterior, mas apenas 40% delas denunciam os crimes ou procuram qual-
quer tipo de ajuda, o que denota falta de confiança nos sistemas de justiça (UN WOMEN,
2020).
Apesar disso, houve progresso da meta 5.3 de eliminar todas as práticas nocivas,
como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações genitais femininas,
através da elaboração de leis contra violência doméstica em vários países e diminuição
de casamentos infantis, precoces e forçados. Também vale registrar os esforços para aca-
bar com a mutilação genital feminina, a violência de gênero e com o assédio sofrido em
ambientes públicos, no local de trabalho e nas residências. Contudo, no contexto global a
violência feminina ainda é estarrecedora: 12 milhões de meninas se casam antes de com-
pletar 18 anos todos os anos; 34% das meninas de 15 a 19 anos sofrem mutilação genital,
sendo que apenas uma em cada três o procedimento é feito por um profissional de saúde;
e nas zonas de guerras ou conflitos, pelo menos, uma em cinco mulheres deslocadas ou
refugiadas já sofreram violência sexual (UN WOMEN, 2020). No Brasil o principal de-
safio é eliminar os casamentos e uniões precoces, forçados e de crianças e jovens. (IPEA,
2020).
Quanto ao reconhecimento e valorização do trabalho de assistência e doméstico não
remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas
de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do
lar e da família (meta 5.4), é de grande relevância para o empoderamento da mulher, haja
vista que, em termos mundiais, as mulheres realizam em média três vezes mais cuidados

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

não remunerados e trabalhos domésticos (4,1 horas por dia), do que os homens (1,7 horas
por dia) (UN WOMEN, 2020), enquanto no Brasil a proporção é de 11,8 horas de trabalho
doméstico e de cuidados para mulheres e 5,3 horas para homens (IPEA, 2020).
Essa desproporção na divisão do trabalho não remunerado reverbera em prejuízo
de longo prazo para a segurança econômica da mulher. Isto porque, no contexto global,
31% das mulheres entre 15 e 24 anos não estão empregadas, estudando ou em treinamen-
to, enquanto a proporção para os homens é de 14%. Além disso, as mulheres são remu-
neradas em 16% menos que os homens. Essas circunstâncias contribuem para que 25%
das mulheres de 25 a 34 anos sejam mais pobres que os homens, vivendo com menos de
US$1.90 por dia e tenham menor acesso global alinhas de crédito (UN WOMEN, 2020).
Dentro desse contexto, constata-se que a necessidade de se reforçar o papel e a
importância da mulher é fundamental para garantirsua participação plena e efetiva com
igualdade de oportunidades na liderança em todos os níveis de tomada de decisão, seja na
vida política, econômica oupública (meta 5.5).Nesse âmbito, há registros deum aumento
de 25%do número de mulheres na política no contexto global (UN WOMEN, 2020), sen-
do que no Brasil, até 2018, apenas 77 assentos da Câmara dos Deputados estavam ocu-
pados por mulheres e 144 ocupados por homens (IPEA, 2020). Além disso, um número
crescente de países tem reconhecido a importância da liderança de mulheres em acordos
de paz, mas até 2018 apenas 13% de negociadores, 4% de signatários e 3% de mediado-
res nos principais processos de paz eram mulheres (UN WOMEN, 2020). Existe também
desproporção na ocupação de cargos gerenciais, sendo que no mundo as mulheres ocu-
pam uma em quatro vagas de gerência (UN WOMEN, 2020) e no Brasil 37,4% das vagas
são ocupadas por mulheres e 62,6% por homens (IPEA, 2020).
No que diz respeito ao acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e quanto aos
direitos reprodutivos da mulher (meta 5.6) também houve avanço. As mulheres passaram
a ter maior acesso aos cuidados institucionais de maternidade e redução de mortes em
partos. Apesar disso, a taxa de mortalidade materna global ainda é muito alta, sendo 211
mortes por 100.000 nascidos vivos, com um agravante de que, até 2019, 190 milhões de
mulheres em idade reprodutiva em todo o mundo que desejavam evitar gravidez não usa-
vam nenhum método anticoncepcional (UN WOMEN, 2020).
Noutro aspecto, as reformas para dar às mulheres direitos iguais aos recursos eco-
nômicos e acesso à propriedade e controle da terra (meta 5.a) é de suma importância,
especialmente porque o acesso a tais direitos é reduzido e está sendo ainda mais preju-
dicado pela degradação ambiental, grilagem, escassez de alimentos e água, ar poluído e
desastres climáticos, que afetam mais as mulheres por terem menos recursos econômicos
e menos acesso à terra. Em que pese 39% das mulheres empregadas estarem trabalhando
na agricultura, silvicultura e pesca, apenas 14% são proprietárias agrícolas. Alerta-se,
ainda, que os desastres climáticos podem levar ao aumento da violência contra mulheres
e meninas, pois o deslocamento e a migração em massa podem gerar condições de vida
insegura, aumentar a pobreza e o isolamento, expondo-as à violência e ao abuso (UN
WOMEN, 2020).

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Uma pesquisa realizada por Deere (2018) apurou que a desigualdade no acesso à
terra nos países da América Latina é menor naqueles que adotam como padrão o regime
de comunhão parcial de bens e que possuem regime de herança equitativo. Além disso, a
autora enfatiza que o acesso à propriedade de terra e a participação no processo decisório
doméstico e da produção agrícola é importante não só para o alcance da autonomia da
mulher no lar e na comunidade, como também para que sejam implementadas as demais
metas estabelecidas nos objetivos da Agenda 2030 da ONU, a exemplo da meta 2.3, que
é de dobrar até 2030 o aumento da produtividade agrícola e da renda de pequenos produ-
tores de alimento, particularmente, das mulheres.
A meta 5.b de aumentar as tecnologias de base igualmente contribui para o alcance
da igualdade de gênero, pois as novas tecnologias possuem grande potencial para o empo-
deramento de mulheres e meninas, ao passo que criam novos empregos e oportunidades e
fortalecem sua autonomia. Entretanto, é necessário eliminar a exclusão digital de gênero,
possibilitando às mulheres a participação no desenvolvimento das tecnologias e igual
acesso e uso de ferramentas digitais (UN WOMEN, 2020), embora no Brasil mais mulhe-
res (82,5%) do que homens (79,3%) possuam telefone celular (IPEA, 2020). Além disso,
é preciso assegurar o direito à privacidade e mitigar o uso de algoritmos que perpetuam a
desigualdade de gênero e os riscos de violência cibernética (UN WOMEN, 2020).
Quanto ao avanço na meta 5.c de adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação
aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulhe-
res e meninas, na última década, 131 países editaram 274 reformas legais e regulatórias
em apoio à igualdade de gênero, as quais estão ajudando mulheres e homens a reconciliar
trabalho e vida familiar, a exemplo do benefício de licença maternidade e paternidade
(UN WOMEN, 2020).
O Brasil possui avançado arcabouço legislativo de proteção a mulher, como se ex-
trai, a título de exemplo, das Leis nº 11.340/2006, que criou mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher; nº 12.845/2013 que trata do atendimento
obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual; nº 13.104/2015 que pre-
ver o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Contudo, ain-
da precisa avançar em políticas que assegurem melhores condições de trabalho, igualdade
de remuneração, acesso a cargos de gerência e a justa divisão do trabalho doméstico e de
cuidado, a fim de superar as mazelas do patriarcalismo e da divisão sexual do trabalho.
3. O teletrabalho à luz da desigualdade de gênero
A divisão sexual do trabalho se consubstancia na separação das atividades de pro-
dução e reprodução de acordo com o sexo da pessoa que as realiza. Essa divisão, muitas
vezes, é legitimada por interpretações biológicas, ao argumento de que fatores inerentes
à natureza do homem como provedor o designam às atividades produtivas, enquanto a
mulher como cuidadora é designada para o trabalho de reprodução e de cuidados (STAN-
CKI, 2003).

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Com a flexibilização das fronteiras entre os espaços reservados aos homens e mu-
lheres através das transformações socioeconômicas, das revoluções culturais e do movi-
mento feminista, surgiram novas configurações sociais, permitindo o ingresso da mulher
no mercado de trabalho. Todavia, não reverteu o afastamento dos homens do trabalho
doméstico (SOUZA; GUEDES, 2016).
Essa realidade pode ser agravada pela implantação do teletrabalho na modalidade
de homeoffice, tendo em vista a sobreposição entre as esferas produtivas e reprodutivas,
ao argumento de que permite maior economia de tempo em deslocamento, flexibilidade
de horário, mais tempo em casa e melhor conciliação entre o trabalho profissional e as
atividades domésticas e de cuidados (BAUERMANN; BOTEGA, 2020).
Entretanto, para as mulheres que precisam aglutinar as atividades profissionais,
domésticas e de cuidados, a realidade é de intensificação da injusta divisão sexual do
trabalho, com prejuízo do seu tempo de descanso e lazer, (MANDALOZZO; CAMPAG-
NOLI, 2020), haja vista que, como demonstrado anteriormente, a mulher gasta quase três
vezes mais tempo cuidando de pessoas e afazeres domésticos que o homem. Essas cir-
cunstâncias podem refletir negativamente em diversas áreas da vida da mulher, causando
prejuízos à saúde, aos relacionamentos, aos estudos, à carreira profissional e à economia
financeira.
Nesse sentido, De Oliveira e Tourinho (2020, p. 3) advertem que o “teletrabalho
tem apresentado indícios de agravamento de doenças profissionais, notadamente, a sín-
drome de burnout, decorrente de trabalho altamente desgastante”. No caso da mulher que
trabalha em regime de homeoffice e aglutina as funções profissionais, domésticas e de
cuidado, há maior risco de adoecimento por estresse e esgotamento decorrentes do desen-
volvimento de tripla jornada, que produz sobrecarga mental e física de forma acentuada
(PEREIRA, et al, 2021), até porque, em muitos casos, a mulher não tem contribuição
do homem, nem possui condições financeiras para pagar um ajudante (MANDALOZ-
ZO; CAMPAGNOLI, 2020). Em razão disso, a saúde física e psicológica das mulheres é
potencialmente mais prejudicada quando comparada ao gênero masculino (FERREIRA;
RODRIGUES, 2021).
A sobrecarga de trabalho da mulher em homeoffice pode ser acentuada, ainda mais,
pela exclusão do teletrabalho do controle de jornada (artigo 62, III da CLT), possibili-
tando o labor em sobrejornada e o descumprimento dos intervalos inter e intra jornada,
que, aliás, são normas de saúde pública que visam assegurar a integridade psicofísica do
trabalhador e evitar doenças profissionais (DE OLIVEIRA; TOURINHO, 2020).
Além disso, tais circunstâncias têm ensejado violações ao direito de desconexão
da trabalhadora, gerando disponibilidade excessiva ao empregador, que exerce seu poder
de subordinação e fiscalização mesmo fora da empresa, através dos meios telemáticos,
podendo ocorrer chamados nos momentos de descanso e lazer da empregada (ROSEDÁ,
2007). Em países como França e Portugal, já existem legislações que garantem expressa-

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mente o direito à desconexão, sendo a legislação brasileira omissa nesse ponto. Todavia,
essa circunstância não significa ausência de proteção legal, até porque
Entende-se o direito à desconexão como um direito fundamental implícito no
ordenamento jurídico, o qual deriva do direito à privacidade e ao lazer, da
limitação da jornada de trabalho, dos períodos de descanso (intervalos intra
e interjornada, repouso semanal remunerado e férias anuais remuneradas) e
também do princípio da dignidade da pessoa humana, que visa a preservar o
direito à saúde, à segurança, ao lazer e à vida privada, preservando a cidadania
(SCALZILLI, 2020, p. 655).

O desrespeito ao tempo de ócio do empregado, especialmente da mulher em ho-


meoffice, prejudica o desenvolvimento integral de sua personalidade, a convivência fa-
miliar e social, a prática de atividades físicas, religiosas, estudos, viagens, lazer, dentre
outras atividades que melhoram sua condição social, sendo essencial o equilíbrio entre o
tempo de trabalho e de não trabalho para preservação da higidez física e mental da mulher
(MANDALOZZO; CAMPAGNOLI, 2020).
É de se ressaltar que a regulamentação quanto às condições laborais em homeof-
fice não garante, na prática, ambiente de trabalho adequado e proteção contra os riscos
ocupacionais (artigo 75-E da CLT). Certo é que, além de instruir a empregada acerca das
normas e medidas de segurança do trabalho, o empregador deve fiscalizar o seu cumpri-
mento (art. 157, I da CLT), e buscar a implementação de medidas pela própria empresa
no sentido de direcionar as tarefas a serem por ela executadas dentro da jornada normal
de trabalho, de modo a garantir que a mulher possa usufruir dos períodos adequadosde
descanso.
Ademais, a execução do teletrabalho isola a trabalhadora, o que, muitas vezes, traz
prejuízos ao seu crescimento profissional (BELMONTE; MARTINEZ, 2020). Além de
não ter o apoio técnico necessário para o exercício de sua função, a redução do seu apa-
recimento no ambiente da empresa e em eventos sociais relacionados às suas atividades
certamente diminui sua rede de contatos e o acesso a novas possibilidades. Ainda, a ne-
cessidade de conciliar o trabalho normal e remunerado com as atividades domésticas
constitui óbice às atualizações, realizações de cursos e medidas importantes para sua
ascensão profissional.
Destaca-se que a desigualdade de gênero e a divisão sexual do trabalho têm afetado
até mesmo a pesquisa e a produção científica da mulher em homeoffice. No ano de 2020,
em um levantamento realizado pelo Movimento Parent in Science (2020), revelou que
dos pesquisadores que conseguiam trabalhar remotamente, entre os docentes, 8% são mu-
lheres, sendo 4,1% com filhos e 18,4% sem filhos; 18,3% são homens, sendo 14,9% com
filhos e 25,6% sem filhos. Entre os pós-doutorandos 13,9% eram mulheres, sendo 2,2%
com filhos e 25,1% sem filhos; 27,9% eram homens, sendo 4,2% com filhos e 37,6% sem
filhos. Entre os pós-graduandos, 27% eram mulheres, sendo 11% com filhos e 34,1% sem
filhos; 36,4% homens, sendo 20,6% com filhos e 41,1% sem filhos.

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Os dados revelam que mesmo em relação a membros da academia a divisão sexual


do trabalho ainda é injusta. Essa desigualdade ocasiona severos prejuízos à pesquisadora
que se torna mãe e tem interesse em inscrever-se em bolsas ou financiamento de pesquisa,
por exemplo, haja vista que a maioria dos editais avalia as publicações de um determina-
do período, sem levar em consideração ou conceder qualquer compensação à pesquisado-
ra que pausa a produção científica em razão da maternidade.
Para suplantar todos os efeitos deletérios da divisão sexual de trabalho, em todos os
níveis e em todas as esferas, mostra-se imprescindível que a o ODS nº 05 da Agenda 2030
da ONU deixe de ser um mero documento escrito para se tornar uma prática recorrente e
efetiva no Brasil e no mundo, de modo a estabelecer-se uma rede de apoio às mulheres e
a possibilidade de acesso a meios e instrumentos de capacitação profissional e exercício
do trabalho. Nesses termos, tornar-se-ia factível a realização das atividades laborais pelo
gênero feminino, de forma remota ou presencial, com a mesma dignidade e o mesmo
tratamento dado aos homens, possibilitando sua proteção como pessoa acima de qualquer
outra questão.
Conclusão
O teletrabalho, como forma de execução das atividades profissionais fora do estabe-
lecimento do empregador, ganhou destaque a partir da Quarta Revolução Industrial, mas
chegou ao seu ápice com a pandemia da COVID-19. Essa forma de trabalho, especial-
mente uma de suas espécies – o homeoffice – tem se tornado uma estratégia de mercado
cuja adoção parece ser um caminho sem volta. Contudo, não obstante os ganhos que
possam ser extraídos dessa conjuntura para a empresa, com redução de gastos e aumento
da produtividade dos trabalhadores, e mesmo para o empregado, que tem a possibilidade
de gerenciar de forma mais adequada seu tempo e ter uma qualidade de vida e de trabalho
melhor, essa não é a realidade quando se fala da mulher empregada.
Um grande número de mulheres, a partir do homeoffice, precisa dividir a responsa-
bilidade que lhes é imposta com suas atribuições profissionais e educacionais de um lado,
e suas funções domésticas e de cuidado com os filhos, de outro. Esse regime dificulta a
separação de tais atividades, que são realizadas simultaneamente e se estendem no con-
traturno, causando sobrecarga às trabalhadoras e dificuldade de desconexão do trabalho,
que, na maioria das vezes, não encontra simetria quando se fala no teletrabalho executado
por homens.
A efetivação das diretrizes da Agenda 2030 da ONU, especialmente do ODS nº
05, desponta como uma possibilidade de diminuição da diferença de gênero, especial-
mente a partir de um maior compartilhamento das atividades domésticas entre homens
e mulheres; do maior acesso delas aos avanços tecnológicos, de modo a lhes permitir,
inclusive, a possibilidade de empreenderem e de executarem, de forma mais cômoda, as
suas atividades profissionais; e da implementação prática da legislação de proteção e au-
xílio às mulheres trabalhadoras, estabelecendo-se políticas públicas que permitam a elas

162
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

o amparo adequado para que possam exercer suas múltiplas jornadas sem prejuízo de sua
higidez física e mental.
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165
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

A FORMATAÇÃO DO SUJEITO NEOLIBERAL E O DIREITO DO TRA-


BALHO: A EXCLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA EM RAZÃO
DO PADRÃO DE PRODUTIVIDADE CAPITALISTA

Lorena Isabella Marques Bagno1


Nicolle Gonçalves2

Introdução
Os temas centrais deste ensaio são a deficiência e o Direito do Trabalho. O objetivo
é refletir qual é o espaço que se possibilita ao sujeito com deficiência. Mais especifica-
mente: qual é o espaço dentro do Direito do Trabalho? Isso porque, a partir de uma pers-
pectiva decolonial, o sujeito branco-homem-heterossexual-sem deficiência é o padrão
estipulado pelo capitalismo como ideal e desejável para as formas de produção. Deste
modo, quem está fora deste contorno, como os indivíduos com deficiência aqui enfo-
cados, encontram incidência incipiente de direitos, tendo suas “vidas consideradas não
importantes” (PRINS, MEIJER, 2002, p. 161). No contexto laboral, o mesmo problema
é reforçado pela formatação do sujeito operada pelo neoliberalismo e pela globalização,
promovendo a crença de que a vida deve ser por todos gerida em termos empresariais,
pois assim, as diversas histórias, culturas e pessoas, que antes dividiam a humanidade, se
uniriam “no cálido abraço da globalização” rumo a um “processo progressivo de integra-
ção planetária” (CORONIL, 2005, p.50).
Parte-se do pressuposto de que o Direito do Trabalho tem uma natureza dual: cons-
tituído a partir do capitalismo e, portanto, serve à sua manutenção e estabilização das ten-
sões sociais, ao mesmo tempo que funciona como amortização da exploração do trabalho
humano, com alguma pretensão dignificante da pessoa que trabalha. Nesse enredo, o có-
digo do capitalismo de valorização e formatação envolve alguns corpos e mentes que são
interessantes para a produtividade, em detrimento de outros que não recebem a atenção
para serem inseridos ou mantidos (com um patamar mínimo de dignidade) no mercado de
trabalho, a exemplo das pessoas com deficiência, enfocadas no presente estudo.
Diante desse cenário, o presente trabalho tem o objetivo de propor algumas refle-
xões iniciais sobre o ocultamento das pessoas com deficiência do campo de atuação do
Direito do Trabalho, que possui insuficientes mecanismos de inclusão, promoção e adap-
tação do mercado de trabalho a esses indivíduos. O caminho a ser percorrido para refletir
1
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito “Novos Direitos, Novos Sujeitos” da Univer-
sidade Federal de Ouro Preto. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Damásio
Educacional. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto. Membra do Grupo de Estudos
em Direito do Trabalho (GEDIT) da Universidade Federal de Ouro Preto.
2
Advogada. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito “Novos Direitos, Novos Sujeitos”
da Universidade Federal de Ouro Preto. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo
Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Graduada em Direito pela Universidade de Brasília (2019).
Integrante do Grupo de Estudos em Direito do Trabalho (GEDIT) da Universidade Federal de Ouro Preto.

167
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

sobre tal questionamento passa por entender os paradigmas médico e social pelos quais
a deficiência foi e é estudada. A escolha destes dois paradigmas se justifica por serem
os mais utilizados. Além disso, será apresentada a legislação brasileira existente para a
proteção das pessoas com deficiência, sendo o enfoque principal na esfera trabalhista, e
alguns dados sobre a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho, com o intuito de
confrontar a norma com a realidade fática.
Com os dados do mundo concreto, percebe-se que a legislação acerca da inclusão
de pessoas com deficiência no mercado de trabalho não é capaz de apreender a subjetivi-
dades dos indivíduos, a exemplo das questões relacionadas à gênero ou as diferenças em
termos de deficiência. Neste ponto, é evidente, portanto, a existência de um Direito do
Trabalho que não abarca a complexidade das questões afetas à pessoa com deficiência,
uma vez que são insuficientes as formulações legislativas.
O que se pretende, enfim, é discutir o espaço no Direito do Trabalho, em um en-
tendimento de que a sua atual conformação não encontra aderência nas várias formas
de existência dos homens e mulheres que trabalham, com ênfase nas pessoas com defi-
ciência. A consequência é a privação de uma esfera importante da vida, vez que o traba-
lho traz consigo um aspecto de dignidade, sociabilidade e realização pessoal. Em última
instância, a omissão do Direito do Trabalho acaba por se colocar como um óbice à uma
fruição de direitos que seja compatível com a subjetividade da pessoa com deficiência que
trabalha ou deseja trabalhar. Nessa conjuntura, são impostos limites à própria concretiza-
ção da cidadania.
O Capitalismo e a Formatação do Sujeito Neoliberal
A história da humanidade é contada a partir de uma visão eurocêntrica, em que seu
conteúdo passa por uma divisão entre vitoriosos e derrotados, sustentada pela perspectiva
de mérito individual do homem moderno. A modernidade é pregada como um expoen-
te civilizatório que proporciona à humanidade um novo estágio de desenvolvimento do
ser humano e de suas relações, inclusive as de trabalho. À vista disso, as instituições
constituíram-se a partir de uma visão capitalista, branca, heterosexual, ocidental e sem
deficiência, expandindo-se e acomodando as outras formas de vida como uma periferia
do “Sistema-Mundo” que se formatava. A colonialidade do ser, do saber e do poder são
as diretrizes que orientam a produção do conhecimento, a formação das instituições e a
construção da dogmática jurídica (BALLESTRIN, 2013). Neste enredo, a globalização
surge como um expoente anunciador de uma nova fase do capitalismo, mais naturalizado
nas relações mundiais, por meio de um discurso de “uniformização, homogeneização e
normalização” (MAGALHÃES, 2012, p.15).
O neoliberalismo e a globalização se colocam como modelos de existência insupe-
ráveis que, ao mesmo tempo propagandeiam o capitalismo global como gerador de opor-
tunidades vinculadas ao mérito individual e criam uma atmosfera de homogeneização
mundial sobre os padrões de comportamento e valores, que está intimamente relacionado
ao vínculo do trabalho com o consumo: o fim do trabalho é o consumo e o consumo é o

168
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

resultado de um mérito individual conquistado através do trabalho. As subjetividades não


importam e não são levadas em conta dentro do binômio de lucro/não-lucro. Os indiví-
duos são divididos entre normais e anormais, sendo que a normalidade é o padrão a ser
buscado através do mérito individual. A formatação a partir dos padrões de normalidade
interessa ao neoliberalismo como um controle dos indivíduos e dos movimentos, colo-
cando como tarefa do indivíduo demonstrar sua potência e se enquadrar na normalidade,
inclusive dentro do mercado de trabalho:
O modo como as sociedades têm segmentado os corpos normais e anormais
é fundamental à produção e à sustentação do que significa ser humano em
sociedade, definindo, então, como se dá o acesso a nações e comunidades e
a escolha e participação na vida cívica, a partir da fixação do que se constitui
como ser racional. Conforme apontado por Foucault, a “norma traz consigo ao
mesmo tempo um princípio de qualificação e um princípio de correção” asso-
ciado a um panorama de poder normativo (ARAÚJO, 2021, p. 1296).

O que o capitalismo tenta fazer é ocultar a realidade de uma permanente submis-


são do outro. A desigualdade está posta e se retroalimenta como uma fórmula do próprio
sistema que possui várias camadas e não permite o seu desfazimento (MORENO, 2005).
Central pontuar que a análise da formação do capitalismo colonial/moderno deve passar
por um necessário pensamento interseccional de raça, gênero e sexualidade. São nessas
instâncias que ocorrem as relações de “exploração/dominação/conflito” (BALLESTRIN,
2013, p. 101), articulando-se e produzindo uma diferença que tem como ponto de refe-
rência o capitalismo, branco, patriarcal, heterosexual e sem deficiência. A dominação,
portanto, opera por meio dessa lógica que faz com que a posição social do indivíduo e,
em especial, a sua condição de trabalho e produtividade estejam diretamente relacionadas
com o lugar que este sujeito ocupa - dentro dos padrões do sistema ou fora deles (MI-
GUEL, 2018).
Como esclarece Escobar (apud LANDER, 2005), a economia ocidental é mais do
que um sistema de produção, pois também conjuga poder e significação. Esses três ele-
mentos- produção, poder e significado - foram fundamentais para o desenvolvimento do
capitalismo e do discurso moderno, a fim de transformar os seres humanos em sujeitos
produtivos: “[a economia] é antes de mais nada uma produção cultural. Uma forma de
produzir sujeitos humanos e ordens sociais de um determinado tipo” (ESCOBAR apud
LANDER, 2005, p.18).
O capitalismo neoliberal, a partir de um design psicológico repetidor de exortações
morais (SAFATLE, 2020), pretende formatar o sujeito para que ele seja ao “mesmo tempo
como membro de uma empresa e como sendo ele mesmo uma empresa apropriadamente
conduzida, em ambos os casos, por estratégias de governança aplicáveis a empresas”
(BROWN, 2018, p. 6-7). Há ainda a exaltação da concorrência que pode ser vista como
causa ou consequência do espraiamento da racionalidade neoliberal para todas as esferas
cotidianas da vida, inclusive o trabalho e o consumo. Assume-se aqui que a concorrência

169
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

foi incentivada e por isso o ideal empresarial e empreendedor chegou aos indivíduos que
passaram a se gerir nestes termos.
O objetivo, afinal, é extrair o máximo da produtividade do indivíduo em benefício
do capital sem que ele perceba isso e não ofereça resistência. Ao contrário, os recursos
psicológicos aplicados na esfera econômica são desenhados para que sejam internaliza-
dos como desejo autônomo e verdadeiro do sujeito que quer investir em si mesmo como
forma de realização individual. Qualquer resistência a isso é vista como uma falta moral,
“uma recusa em assumir a virtude da coragem diante do risco de empreender e assumir
novos caminhos por conta própria” (SAFATLE, 2020, p. 30).
O discurso neoliberal é genérico, homogêneo e aplicado a toda e qualquer pes-
soa, constituindo-se, assim, uma expressão de violência capitalista fundada na ausência
de solidariedade, na ilusão da igualdade, no cinismo da meritocracia e na exploração de
trabalhadores e trabalhadoras, reafirmando que o direito e suas bases tradicionais não se
preocupam com o que não é economicamente produtivo, eficaz e útil. Conforme se verá
mais adiante, não há espaço para corpos e mentes diversos da formatação esperada pelo
capitalismo: é útil o que é produtivo segundo os padrões estabelecidos pelo próprio siste-
ma.
Direito do Trabalho como um Direito formatado a partir das Engrenagens do Capi-
talismo e a Exclusão como Regra
Diante do contexto acima narrado, não se pode pensar que as instituições, em es-
pecial o Direito do Trabalho, estão imunes aos ideários do capitalismo. Ao contrário, as
instituições e o Direito foram formatados sob a lógica hegemônica do sistema capitalista,
em que pese o seu alicerce construído sob a argumentação de naturalidade, neutralidade
e imparcialidade. Há um ocultamento dos conflitos existentes em torno das normas e da
disputa por direitos e pela justiça. A padronização operada pelo sistema jurídico oculta os
embates e diferenças sociais e subjetivas, ao mesmo tempo que apaga as estruturas que
estão por trás da dogmática jurídica construída: dominação, subalternização e hierarquia
(ARAÚJO, 2021), por meio das imposições dos padrões de heteronormatividade, cisge-
neridade e de corponormatividade (MAGNABOSCO; SOUZA, p. 6).
O Direito do Trabalho, portanto, faz parte dessa lógica. Funciona como um estabili-
zador das relações de trabalho no sentido de garantir a manutenção do sistema capitalista
e a pacificação dos corpos, ao projetar a sua proteção a um feixe específico de indivíduos,
os empregados. Mais ainda, não leva em consideração as diversas subjetividades e modos
de existir no mundo. Por outro lado, os sujeitos que não se encontram no modelo capi-
talista-neoliberal são marginalizados, com restrições para participar da formulação dos
direitos e para usufruir destes. O Direito do Trabalho não tem o condão de reformular a
lógica excludente do capital: a sua aposta é pela permanência do status quo, em que a
regra é o ocultamento da diversidade, com algumas poucas concessões, a exemplo da Lei
8.213/91 que estabelece cotas para pessoas com deficiência em empresas privadas.

170
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Para Genro (1988), assim como todas as conquistas democráticas na sociedade bur-
guesa, o Direito do Trabalho é contraditório: ao mesmo tempo que é um instrumento de
conciliação e perpetuação dos interesses conjunturais do capitalismo, é um processo de
conquista e afirmação dos movimentos dos trabalhadores por instrumentos jurídicos de
proteção e de resistência à dominação desenfreada do capital. O Direito do Trabalho é
fruto da luta obreira, mas ao mesmo tempo fragmenta a classe trabalhadora quando isola
algumas de suas frações enquanto destinatários de proteção, em detrimento de uma mas-
sa gigantesca de indivíduos ocultados e desprotegidos. O que acaba acontecendo é uma
elitização de determinados estratos da classe trabalhadora (GENRO, 1988) que são mais
interessantes à lógica produtiva capitalista. O sujeito trabalhador, portanto, é formatado
a partir dos ideais capitalistas e neoliberais (em sua cognição e em seu corpo físico) e
envolvido por algumas proteções do Direito do Trabalho.
A realidade é que as novas formas de reprodução capitalista intentam impelir cada
vez mais trabalhadores para a extremidade das estruturas protetivas do conteúdo juslabo-
ral, o que resulta em um centro de proteção cada vez mais reduzido em comparação à uma
margem de trabalhadores e trabalhadoras. Diante desse cenário, o feixe de proteção do
Direito do Trabalho é estreito: homens e mulheres com corpos e mentes que interessam
à produção capitalista e que estão inseridos no mercado de trabalho através do vínculo
empregatício. Essa problemática tende a se agravar no contexto em que o atual estágio de
reprodução capitalista empurra os postos de trabalho para lugares distantes do artigo 3º
da CLT. Com ideais neoliberais de luta pela sobrevivência, aliados a formas de trabalho
precárias, a pessoa com deficiência possui ainda menos espaço para existir no mundo do
trabalho de maneira dignificante, misturando-se como uma massa homogênea aos traba-
lhadores inservíveis à racionalidade neoliberal. Se até os homens e mulheres que possuem
corpos e mentes considerados úteis ao mercado de trabalho não encontram arrimo nas
normas juslaborais, quanto mais os homens e mulheres com deficiência. A desproteção,
portanto, acaba por ser a regra:
Em um tempo de violentos paradoxos, em que a celebração da individuali-
dade extrema convive com uma miséria desproporcional, aqueles que podem
ser efetivamente indivíduos estão margeados por uma multidão descomunal e
sem face de desclassificados sociais, a quem não é reconhecido o mesmo belo
caminho de realização da liberdade e de si. Essa suposta margem, franja, zona
de exclusão, de tão desconcertantemente enorme, passa a ser, na verdade, a
própria corporificação do real do mundo do trabalho os desprotegidos pelo
Direito do Trabalho protegida pelo Direito do Trabalho (NICOLI, 2015, p. 9).

O que se pretende com esses apontamentos não é propor uma imediata destruição
do Direito do Trabalho, tendo em vista que esta deve ser defendida apenas em uma con-
juntura de superação do próprio sistema capitalista. É que pensar em possibilidades de
dignidade e autonomia fora do Direito do Trabalho, nas atuais condições, é ainda mais
difícil do que dentro dele:
E se é certo que a fórmula do trabalho subordinado abriga, em larga escala,
práticas de sujeição e opressão, a autonomia fora do direito, nos horizontes

171
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

do capitalismo industrial e de suas estratégias, está ainda muito distante de ser


uma alternativa de ampliação das possibilidades de emancipação e igualdade.
É preciso transformar, não há dúvida. Mas a transformação deve certamente se
dar na continuidade do projeto ético do sujeito, como substancialmente igual,
antes de ilusoriamente autônomo (NICOLI, 2016, p. 49).

O que se propõe, como um primeiro passo, é uma reflexão acerca da abrangência do


Direito do Trabalho, considerando que as margens dignificantes do conteúdo laboral são
muito estreitas diante da atual realidade heterogênea do mercado de trabalho. Mulheres e
homens são continuamente esgarçados por ritmos de trabalho desumanizantes, enquanto
outros sequer encontram espaço no mercado de trabalho, a exemplo da pessoa com defi-
ciência, aqui enfocada.
A Pessoa com Deficiência e seu Lugar no Direito do Trabalho: A Lacuna entres a
Proteção Legislativa e a Efetiva inserção no Mercado de Trabalho
Por certo, os efeitos da lógica do capital são sentidos de forma mais intensa por
determinados grupos sociais em razão de sua localização geográfica, cor da pele, gênero,
entre outras. Escolheu-se aqui tratar das pessoas com deficiência, que formam um desses
grupos mais oprimidos pela ideia de produtividade máxima ditada pela razão capitalista
neoliberal. Nesse sentido, a pergunta que deve ser feita é: qual é o espaço que o Direito
do Trabalho possibilita para as pessoas com deficiência? É importante considerar que a
formatação capitalista tem diversos efeitos sobre as questões de gênero, raça e deficiên-
cia, por exemplo. Como dito anteriormente, as relações de dominação ocorrem em muitas
instâncias que podem ser sobrepostas. Apenas por um recorte metodológico, o enfoque
do presente trabalho é na questão da deficiência. Não é possível, contudo, desconsiderar
que outras opressões também venham a perpassar a existência de um mesmo indivíduo.
A deficiência já foi estudada sob alguns aspectos, sendo os paradigmas médico
e social os mais debatidos. O modelo médico da deficiência se concentra na lesão pro-
priamente dita, entendendo a deficiência como uma má sorte individual e incapacitante,
que poderia ser superada mediante reabilitação (DE LOUREIRO MAIOR, 2017). Sendo
assim, a inclusão se daria com a cura ou o tratamento da lesão, uma vez que o sucesso da
medicalização seria medido pela maior proximidade com a ideia de normalidade do corpo
(DINIZ, BARBOSA, SANTOS, 2009, p.68).
A superação do modelo médico se deu pelo modelo social da deficiência, segundo
o qual a deficiência não é responsável pelas desvantagens vivenciadas pelo sujeito que
a possui, mas sim a sociedade, que não se ajusta à diversidade existente na população e,
por isso, apresenta barreiras que revelam a visão normalizadora e o preconceito vigentes
(MAGNABOSCO, SOUZA, 2019). O modelo social foi uma resposta ao movimento que
reivindicou os direitos das pessoas com deficiência a partir do reconhecimento delas pró-
prias como sujeitas de direitos, com autonomia e independência para fazer suas escolhas,
aportadas pela sociedade que eliminaria as barreiras necessárias para então promover a
inclusão das pessoas com deficiência. (DE LOUREIRO MAIOR, 2017).

172
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

No Brasil, esse cenário ganhou força a partir da Constituição Federal de 1988 que,
em vários artigos3, atribuiu direitos gerais e específicos para as pessoas com deficiência.
Há ainda diversas leis destinadas às pessoas com deficiência que fazem parte de uma
política de inclusão e acessibilidade, sejam em leis próprias ou inseridas em legislações
gerais4.
Em termos de tratado internacional, a recepção da Convenção Internacional sobre
os Direitos da Pessoa com Deficiência, com força de Emenda Constitucional em 2009,
tem especial relevância, considerando que foi o primeiro documento a contar com a par-
ticipação dos movimentos sociais que lutam pelo reconhecimento de direitos da pessoa
com deficiência (DE LOUREIRO MAIOR, 2008). Em 2015 foi aprovada a Lei 13.146,
o Estatuto da Pessoa com Deficiência, tendo os princípios da Convenção como alicerce,
sendo a legislação mais recente sobre o tema.
Em que pese este microssistema jurídico brasileiro destinado à proteção das pessoas
com deficiência ser reconhecido como um dos mais abrangentes do mundo, em relação à
proteção trabalhista, o que se tem de mais significativo está em apenas um artigo inserido
na Lei 8.213 aprovada no ano de 1991. Trata-se, na verdade, de uma lei previdenciária,
que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social, mas também trata de
outras providências. No artigo 93 estão as chamadas cotas para pessoas com deficiências,
onde se lê:
Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a pre-
encher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com
beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na
seguinte proporção:
I - Até 200 empregados - 2%;
II - De 201 a 500 - 3%;
III - de 501 a 1.000 - 4%;
IV -De 1.001 em diante - 5%.
V - (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)
§ 1o A dispensa de pessoa com deficiência ou de beneficiário reabilitado da
Previdência Social ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90
(noventa) dias e a dispensa imotivada em contrato por prazo indeterminado so-
mente poderão ocorrer após a contratação de outro trabalhador com deficiência

3
Art. 7º, XXXI; Art. 23, II; Art. 24, XIV; Art. 37, VIII; Art. 203, IV, V, Art. 208, III; Art. 227, II; Art. 244,
entre outros. Ressalta-se que embora a CF/88 fale em “pessoas portadoras de deficiência”, desde 2009 fa-
la-se em “pessoa com deficiência” por entender que a deficiência é uma condição existencial e eliminar a
ideia de um fardo a ser carregado.
4
Leis 10.048/2000 e 10.098/2000 que tratam de acessibilidade; Decreto 5296/2004 que trata de prioridade
de atendimento à pessoa com deficiência; Lei 10.436/2002 que tornou oficial a Língua Brasileira de Sinais
(Libras); Decreto 5626/2005 e Lei 12.319/2010 que tratam da formação e regulamentação de tradutores
e guias intérpretes; Lei 11.126/2005 e Decreto 5904/2006 que tratam da possibilidade de permanência de
cães-guias em ambientes e transportes coletivos; Lei 13.409/2016 que reserva vagas para pessoas com de-
ficiência em escolas técnicas e instituições de ensino superior federais; Lei 8.742/1993 que estabeleceu o
atendimento da pessoa com deficiência em diversos tipos de assistência social. ( DE LOUREIRO MAIOR,
2017).

173
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

ou beneficiário reabilitado da Previdência Social. (Redação dada pela Lei nº


13.146, de 2015)
§ 2o Ao Ministério do Trabalho e Emprego incumbe estabelecer a sistemática
de fiscalização, bem como gerar dados e estatísticas sobre o total de empre-
gados e as vagas preenchidas por pessoas com deficiência e por beneficiários
reabilitados da Previdência Social, fornecendo-os, quando solicitados, aos sin-
dicatos, às entidades representativas dos empregados ou aos cidadãos interes-
sados. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
§ 3o Para a reserva de cargos será considerada somente a contratação direta
de pessoa com deficiência, excluído o aprendiz com deficiência de que trata
a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei n o
5.452, de 1o de maio de 1943 (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) (BRASIL,
1991).

Possível perceber que se trata de uma lei que reflete o conceito social da deficiên-
cia, uma vez que o intuito é que a sociedade elimine a barreira do acesso ao mercado de
trabalho, fazendo com que as pessoas com deficiência sejam inseridas nele. O Estatuto da
Pessoa com Deficiência também reforça a não discriminação no ambiente de trabalho nos
artigos 34 e 35 e a inclusão da pessoa com deficiência no ambiente de trabalho nos artigos
37 e 38. No entanto, a eficácia da norma trabalhista/previdenciária é discutível quando se
considera os dados sobre empregabilidade das pessoas com deficiência.
De acordo com os dados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho disponibilizados
em 2018, apenas 50,6% das cotas para as pessoas com deficiência foram cumpridas, o que
reflete na baixíssima quantidade de trabalhadores com deficiência inseridas no mercado
de trabalho: de um total de 46,6 milhões de trabalhadores formais brasileiros, os trabalha-
dores com deficiência correspondem a apenas 1% desse total. (INCLUIR, 2021). Além
disso, os dados mostram, em 2018, que as mulheres são minoria no mercado de trabalho
e esses números são ainda menores quando se tratam de mulheres com deficiência: en-
quanto o número total de trabalhadoras alcança os 44,1%, as mulheres com deficiência
trabalhadoras alcançam 36,1% (INCLUIR, 2021).
Também é possível notar a prevalência de trabalhadores com deficiência brancos
sobre trabalhadores com deficiência pardos/negros no mercado de trabalho formal. Estes
alcançavam 44,9% enquanto aqueles alcançam os 54,1% (INCLUIR, 2021). Mas essa
prevalência deixa de existir quando se analisa as diferentes regiões geográficas do país.
Nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste a maioria dos trabalhadores com deficiência
era pardo ou negro, com concentrações de 83,3%, 77,3% e 62,7%, respectivamente, em
2018.
Também há dados acerca da desproporção acerca do tipo de deficiência das pessoas
que trabalham. Quase metade dos trabalhadores possuía deficiência física (47,3%) en-
quanto o restante da porcentagem era assim dividido: 18,1% deficiência auditiva; 15,3%
deficiência visual; 8,9% deficiência mental, 8,6%% pessoas reabilitadas e 1,9% deficiên-
cia múltipla (INCLUIR, 2021).

174
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Considerando estas informações, a crítica que se faz ao modelo social da deficiên-


cia, que parece ser o substrato do art. 93, da Lei 8.213/91, é que ele não se preocupou
com as especificidades das pessoas e com corpos que, independentes dos ajustes sociais
feitos, não seriam eficientemente produtivos para os parâmetros do mercado. Por isso,
embora seja necessário reconhecer a positividade das adaptações sociais para a inclusão
de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, também deve-se criticar o modelo
social e as leis, como a 8.213/91, que, em certa medida são nele refletidas. Na prática,
vê-se que esse tipo de normativa cria uma cisão binária entre corpo e relações sociais
(MAGNABOSCO, SOUZA, 2019), de modo que são consideradas separadamente, como
se apenas uma delas fosse a causa da segregação e do preconceito sofrido por pessoas
com deficiência. A eliminação da barreira do acesso ao mercado de trabalho, sem conside-
rar as especificidades de cada pessoa com deficiência, ou seja, sua lesão, é um tratamento
homogêneo que iguala quem não é igual. Isso talvez explique o não preenchimento das
cotas destinadas às pessoas com deficiência5, já que não há um esforço para a capacitação
profissional de pessoas com deficiência que conjugue a lesão experimentada pelo traba-
lhador e as tarefas as quais ele deverá desempenhar. As vagas são lançadas e aqueles que,
apesar da lesão, puderem desempenhar as funções exigidas conseguem adentrar ao mer-
cado de trabalho e aqueles que não, continuam excluídos. Desse modo, a lesão e o olhar
da sociedade sobre quem tem deficiência não podem ser vistos separadamente, sob pena
de continuar excluindo sujeitos, especialmente aqueles em cujos corpos há sobreposição
de opressões (gênero e raça, por exemplo).
Nesse sentido, é preciso pontuar os gargalos em uma formulação legislativa com
tendência a desconsiderar as diversas formas de subjetividade e de deficiência existentes.
Na quase inexistente legislação trabalhista sobre o tema, o que se tem é uma reserva geral
para pessoas com deficiência sem o cuidado com as especificidades de cada indivíduo
que traz consigo sua lesão e seus marcadores sociais. O lugar reservado para as pessoas
com deficiência no Direito do Trabalho, no contexto capitalista neoliberal que se apre-
sentou, é um não lugar, na medida em que são corpos lidos como descartáveis em razão
de sua não validade econômica e ausência de produtividade máxima. É preciso pontuar
que determinações legislativas que se baseiem em dados numéricos e percentuais não é
suficiente para a inserção das pessoas com deficiência, na realidade, continua represen-
tando uma não inserção para a maioria destes indivíduos. Os discursos homogêneos e
homogeneizantes do capital criam, assim, uma sobreposição de sofrimentos para a pessoa
com deficiência: seu sofrimento causado pela lesão e pelas barreiras sociais que ainda
estão presentes e seu sofrimento de não conseguir ser o sujeito produtivo esperado pela
sociedade, cuja cidadania está condicionada à produtividade e eficiência.

5
Em 2018, apenas 50,6% das vagas reservadas para estabelecimentos com 100 empregados ou mais esta-
vam ocupadas por Pessoas com Deficiência. (INCLUIR, 2021).

175
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Considerações Finais
Nota-se, finalmente, que a corponormatividade neoliberal capitalista impõe um pa-
drão de eficiência e desempenho corporal ou mental que pode afetar inclusive quem não
tem deficiência (MAGNABOSCO, SOUZA). Os indivíduos são incentivados e/ou coagi-
dos por um profundo trabalho de design psicológico que visa produzir uma relação do su-
jeito consigo mesmo e com o mundo guiada por princípios empresariais de performance,
investimento e rentabilidade (SAFATLE, 2020, p. 30). A vida permeada por esses ideais
é traduzida em termos econômicos. A pessoa com deficiência também é alvo dos mesmos
discursos, na medida em que, como já exposto, não há preocupação do capitalismo com
as subjetividades. Os discursos são homogêneos e homogeneizantes e quem não se ade-
qua, pelo motivo que for, está fora do jogo e, consequentemente, da cidadania.
Alejandro Moreno explicita essa relação entre mercado e cidadania. De acordo com
o autor, ambos são sistemas de regras de funcionamento, de produção e de reprodução,
fora das quais nem um nem outra existiriam (2005, p.89). Assim, participaria da cidada-
nia quem está dentro do mercado. Inclui-se aqui o mercado de trabalho, do qual as pes-
soas com deficiência participam em números muito baixos.
Apesar da tentativa legal, calcada no modelo social da deficiência, a barreira do
acesso ao mercado de trabalho formal para as pessoas com deficiência não é transponível,
uma vez que a determinação é apenas numérica. Tratam-se de números calculados a partir
do total de empregados existentes na empresa, o que demonstra a despreocupação com
a lesão do indivíduo e outros elementos característicos da pessoa humana. Não existem
subsídios reais para inserir o trabalhador na medida da sua subjetividade e deficiência.
Parece que a resposta para a pergunta do início é que o espaço reservado às pessoas com
deficiência no Direito do Trabalho é mínimo e ignora suas reais necessidades e realidades,
reproduzindo o padrão colonial que formata os indivíduos para a produtividade e silencia
aqueles que não se enquadram no padrão de normalidade estipulado pelo sistema.
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178
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR PELOS DANOS


DECORRENTES DA COVID-19 NAS ATIVIDADES DE RISCO

Thainara Stefany Haeck Righeto1

Introdução
Com o advento da pandemia da Covid-19, muitos trabalhadores tiveram que conti-
nuar trabalhando em regime presencial, expondo-se ao risco de contaminação para prover
o próprio sustento e garantir a manutenção das atividades essenciais. Os profissionais da
área da saúde têm sido, sem dúvidas, os mais afetados, pois atuam na linha de frente no
combate ao coronavírus, submetendo-se a um alto risco de contágio e morte.
Neste contexto, começaram a surgir controvérsias sobre a possibilidade de a Co-
vid-19 ser considerada doença ocupacional e ensejar a responsabilização do empregador
em caso de contaminação de seus empregados no local de trabalho ou em razão do exer-
cício do mesmo, sobretudo nas atividades de risco. Trata-se de uma questão complexa
e de suma relevância, sobretudo por inserir-se num contexto excepcional e envolver os
direitos fundamentais mais essenciais do trabalhador: a vida, a saúde e o trabalho.
O presente artigo pretende elucidar essa questão, com base no estudo da legislação
vigente sobre responsabilidade civil por acidentes de trabalho. Para tanto, busca-se ana-
lisar os fundamentos e pressupostos para a responsabilização do empregador, de acordo
com a Lei 8.213/91, a teoria da responsabilidade civil objetiva (Código Civil) e a juris-
prudência recente sobre o tema, sob a luz da proteção constitucional à saúde e segurança
no trabalho.
Quanto à metodologia, adota-se a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, com em-
prego do método de abordagem dedutivo.
A pesquisa jurisprudencial delimita-se aos acórdãos proferidos pelos Tribunais Re-
gionais do Trabalho da 2ª, 15ª e 3ª Regiões (Estados de São Paulo e Minas Gerais). A
busca foi realizada utilizando-se os termos “covid-19/responsabilidade civil/atividade de
risco” na pesquisa livre do site oficial dos Tribunais. Foram localizados e analisados um
total de 06 acórdãos (tendo em vista que a matéria ainda é extremamente recente) e as
conclusões deduzidas foram expostas no último capítulo do artigo.
1. A Responsabilidade Civil por Acidentes de Trabalho
A responsabilidade civil do empregador pelos danos decorrentes de acidentes de
trabalho possui fundamento no artigo 7º, XXII e XXVIII da Constituição, que consagra,
dentre os direitos fundamentais dos trabalhadores, “a redução dos riscos inerentes ao tra-
balho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”; e o “seguro contra acidentes

1
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (FCHS – Campus de
Franca). E-mail: trigheto@gmail.com.

179
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado,
quando incorrer em dolo ou culpa” (BRASIL, 1998).
A proteção constitucional à saúde do obreiro impõe ao empregador o dever de cum-
prir e fazer cumprir todas as normas de saúde, higiene e segurança do trabalho – nos ter-
mos do artigo 157 da CLT – protegendo a saúde dos empregados da forma mais ampla e
eficaz possível, sempre com foco na prevenção e redução dos riscos (OLIVEIRA, 2009,
p. 124).
Quando a prevenção não é eficaz e vem a ocorrer um acidente de trabalho, o empre-
gador é responsável pela reparação dos danos sofridos pelo trabalhador, tanto materiais
quanto morais.
1.1. Conceito de acidente de trabalho e doença ocupacional
O conceito jurídico de acidente de trabalho lato sensu é delineado pelo artigo 19
da Lei 8.213/91 (Lei de Benefícios da Previdência Social), que dispõe que acidente de
trabalho é todo acontecimento que ocorre em razão do exercício do trabalho, provocan-
do lesão corporal ou perturbação funcional, que cause a morte ou a perda ou redução da
capacidade laboral.
Acidente de trabalho é gênero, do qual são espécies o acidente de trabalho stricto
sensu (ou acidente típico) e as doenças ocupacionais (acidentes de trabalho por equipa-
ração).
O acidente de trabalho stricto sensu é um fato súbito e violento, ocorrido durante o
trabalho ou em razão deste, que afeta a capacidade laborativa do trabalhador (OLIVEI-
RA, 2009, p. 46).
Doença ocupacional, por sua vez, é toda e qualquer patologia ou lesão adquirida
ou agravada em razão do exercício da atividade laboral, que pode ser de duas espécies:
doença profissional ou doença do trabalho. Tais patologias, quando causam a perda ou a
redução da capacidade para o trabalho, são equiparadas ao acidente de trabalho, nos ter-
mos do artigo 20 da Lei 8.213/91 (OLIVEIRA, 2020, p. 81).
Cumpre salientar que, para a caracterização da doença ocupacional, basta que o
trabalho tenha contribuído diretamente para o adoecimento, ainda que tenha atuado em
conjunto com outras concausas (OLIVEIRA, 2009).
1.2. Pressupostos para responsabilização do empregador
Os elementos da responsabilidade civil são disciplinados nos artigos 186 e 927 do
Código Civil. Tais dispositivos, conjugados com as previsões da Lei 8.213/91, estabele-
cem os pressupostos básicos para a responsabilização do empregador nas hipóteses de
acidentes de trabalho.
Não obstante, cumpre destacar que a aplicação do instituto da responsabilidade
civil no âmbito laboral possui especificidades em relação ao Direito civil, em razão do
caráter tutelar e social do Direito do trabalho (NETO, 2010, p. 119).

180
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Por outro lado, é importante ressaltar também que o dever de indenizar não decor-
re automaticamente do reconhecimento da natureza acidentária da incapacidade, pois o
nexo causal previdenciário é muito mais amplo e não se perquire a existência de culpa do
empregador (DINIZ; LIMA; COSTA, 2020, p. 99).
Os pressupostos da responsabilidade civil na seara trabalhista são: o dano, o nexo
causal e a culpa. No contexto acidentário, considera-se dano a lesão corporal, perturbação
funcional ou doença que cause a perda ou a redução da capacidade laboral, ou ainda a
morte do trabalhador. Também estão compreendidos no conceito de dano os desdobra-
mentos relacionados ao acidente, como os danos materiais, os lucros cessantes e os danos
morais, suportados tanto pelo empregado quanto por seus familiares e dependentes (DI-
NIZ; LIMA; COSTA, 2020, p. 104).
O nexo causal se consubstancia na relação de causa e efeito entre o exercício do
trabalho e o dano sofrido pelo trabalhador. Para que este se configure, o dano deve ser
decorrente das condições de trabalho. O empregador só pode ser responsabilizado quando
o trabalho for a causa direta e necessária do acidente ou da doença, de modo que sem ele
o dano não ocorreria (NETO, 2010, p. 116).
Vale destacar, no entanto, que a exigência de prova absoluta do nexo causal tem
sido flexibilizada pela jurisprudência dos Tribunais do trabalho, que têm pautado suas
decisões em juízos de probabilidade, em prol do princípio da reparação integral. Além
disso, a doutrina e jurisprudência majoritárias entendem ser cabível a inversão do ônus da
prova a favor do empregado nas ações indenizatórias por acidente de trabalho (OLIVEI-
RA, 2009, p. 128).
A culpa do empregador se configura pela violação do dever legal de proteção à
saúde e segurança dos empregados, seja por negligência, imprudência ou imperícia. A lei
impõe aos empresários o dever de respeitar todas as normas de saúde, higiene e segurança
do trabalho, adotando todas as medidas possíveis para reduzir os riscos de acidentes no
local de trabalho, sob pena de serem responsabilizados por eventuais danos à saúde dos
trabalhadores (MELO, 2013).
Aplica-se, no âmbito acidentário, uma concepção objetiva da culpa, de modo que
basta o descumprimento de qualquer uma dessas normas para que se configure a respon-
sabilidade do empregador (NETO, 2010, p. 103).
1.3. A responsabilidade civil objetiva no âmbito laboral
O parágrafo único do artigo 927 do Código Civil estabelece uma cláusula geral de
responsabilidade civil objetiva, fundada na teoria do risco, que permite a responsabiliza-
ção do causador do dano independentemente da verificação de culpa.
O protagonismo da culpa na teoria da responsabilidade civil tem, paulatinamente,
cedido espaço para o conceito de risco, em virtude da preocupação com a reparação do
dano injusto sofrido pela vítima, que não pode ficar desamparada diante da dificuldade de
comprovar a culpa do agente responsável (DINIZ; LIMA; COSTA, 2020, p. 103). Segun-

181
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

do Sebastião Geraldo de Oliveira, trata-se de “um processo de humanização e objetivação


da teoria da responsabilidade civil” (OLIVEIRA, 1998, p. 211).
Entende-se que o ordenamento jurídico brasileiro consagra a teoria do risco criado,
segundo a qual aquele que exerce atividade empresarial que, por sua natureza, cria riscos
para outrem, deve responder pelos danos daí decorrentes, independentemente da existên-
cia de culpa. Tal teoria prioriza a proteção da vítima, “porquanto não indaga se houve ou
não proveito para o responsável, a reparação do dano é devida pela simples criação do
risco” (OLIVEIRA, 2005, p. 87).
Cumpre pontuar que a aplicabilidade da responsabilidade civil objetiva no contexto
dos acidentes de trabalho já foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 932
de Repercussão Geral, em que foi firmada a seguinte tese:
TEMA 932. Tese de repercussão geral: O artigo 927, parágrafo único, do Códi-
go Civil é compatível com o artigo 7º, XXVIII, da Constituição Federal, sendo
constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decor-
rentes de acidentes de trabalho, nos casos especificados em lei, ou quando a
atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição
habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador
ônus maior do que aos demais membros da coletividade (BRASIL, 2020).

De acordo com a teoria do risco, aquele que exerce atividade empresarial que, por
sua natureza, expõe os trabalhadores a um risco especial, deve responder pelos danos
decorrentes de acidentes de trabalho, independentemente da verificação da culpa. Isso
porque o empresário assume os riscos da atividade, e tem o dever de reparar os danos
causados pelo exercício da mesma, sobretudo no caso de acidentes de trabalho, quando
estes constituem um risco inerente à atividade empresarial (MELO, 2013, p. 141).
A atividade de risco, que atrai a responsabilidade objetiva do empregador, é aquela
que apresenta intrínseca potencialidade lesiva à saúde ou à integridade física dos obreiros,
expondo-os a um risco excepcional e incomum. Não se trata do risco empresarial ordiná-
rio, mas sim de um risco especial, que impõe ao trabalhador um ônus maior do que aos
demais membros da coletividade (MELO, 2010, p. 250).
Nestes casos, presume-se o nexo causal pela relação etiológica entre o dano e o
risco da atividade, sendo desnecessária sua comprovação. Ou seja, basta que se comprove
que o dano sofrido está relacionado à atividade perigosa desempenhada, para que surja o
dever de indenizar (NETO, 2010, p. 117).
Cumpre salientar que a responsabilidade objetiva incide somente quando o risco é
inerente à atividade normalmente desenvolvida pelo empregado ou pela empresa, de for-
ma habitual e profissional. O termo “normalmente desenvolvida” pode se referir tanto ao
objeto empresarial quanto às atividades habitualmente realizadas pelo trabalhador. Isso
significa que, mesmo que a atividade econômica em si não seja de risco, se as funções
ordinárias do empregado expuserem-no ao risco, está caracterizada a atividade de risco

182
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

e, consequentemente, a incidência da responsabilidade objetiva (DINIZ; LIMA; COSTA,


2020, p. 111).
Outrossim, é importante pontuar que, nas atividades de risco, existe uma presunção
de nexo causal, que acarreta a inversão do ônus da prova em favor do obreiro, incumbin-
do ao empregador provar que o acidente ou a doença derivou de outra causa que não o
trabalho para se eximir da responsabilidade (SILVA, 2020, p. 34).
O empregador não se exonera do dever de indenizar alegando ausência de culpa ou
caso fortuito interno, mas tão somente se comprovar uma das seguintes excludentes, que
rompem o nexo causal: caso fortuito externo, força maior, fato de terceiro e culpa exclu-
siva da vítima (MOLINA, 2013, p. 78).
O caso fortuito e a força maior, via de regra, não têm o condão de afastar a responsa-
bilidade nas atividades de risco, pois estão incluídos nos riscos inerentes à atividade, que
devem ser cobertos pelo empregador. Tais eventos somente excluirão o dever de indeni-
zar quando não tiverem qualquer relação com a atividade, sendo completamente alheios
ao risco criado pelo exercício da mesma, de caráter inevitável e imprevisível (MOLINA,
2013, p. 79).
Neste sentido, as lições de Molina:
Já na responsabilidade civil objetiva é irrelevante a prova de ausência de culpa
do agente ofensor, pois ainda assim remanesce o dever de indenizar. Também
não o exonera o chamado caso fortuito interno, inerente aos riscos da atividade.
Em último nível, apenas o caso fortuito externo e a força maior rompem com
a relação obrigacional, na medida em que ambos são inevitáveis e irresistíveis.

Por fim, ressalta-se que a teoria da responsabilidade objetiva não se confunde com
a teoria do risco integral, que não admite qualquer excludente de responsabilidade e não
encontra hipóteses de aplicação no âmbito do Direito do trabalho. Em vista disso, ainda
que as excludentes da responsabilidade objetiva sejam restritas e de difícil comprovação,
é possível afastar o dever de indenizar se uma delas restar caracterizada no caso concreto
(MOLINA, 2013, p. 78).
2. A Covid-19 como Doença Ocupacional
A Covid-19 é uma doença de fácil contágio e alta taxa de transmissão. Em razão do
contexto de pandemia e da incerteza quanto ao local e ao momento da contaminação do
trabalhador, surgiram controvérsias quanto à possibilidade da Covid-19 caracterizar-se
como doença ocupacional e ensejar a responsabilização do empregador.
O Presidente da República tentou regulamentar a questão no artigo 29 na Medida
Provisória 927/2020, que dispunha que os casos de contaminação pelo coronavírus não
seriam considerados ocupacionais, salvo mediante comprovação do nexo causal. A inten-
ção da norma era afastar a natureza ocupacional da doença a priori, atribuindo ao empre-
gado o difícil ônus da prova do nexo causal (OLIVEIRA, 2020, p. 78).

183
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Tal dispositivo, no entanto, teve sua eficácia suspensa pelo Supremo Tribunal Fe-
deral, nos autos da ADI 6342/DF, por ser considerado inconstitucional. A Corte entendeu
que a presunção contrária ao enquadramento dificultaria a reparação dos danos sofridos
pelos empregados e isentaria os empregadores de respeitarem as medidas sanitárias de
prevenção, em violação ao direito fundamental à redução dos riscos inerentes ao trabalho,
consagrado pelo artigo 7º, XXII da CRFB/88 (BRASIL, 2020).
Segundo o entendimento firmado pelo Supremo nessa decisão, a Covid-19 pode ser
considerada doença ocupacional e acarretar a responsabilização do empregador, incum-
bindo a este o ônus de provar que a contaminação não ocorreu em razão do trabalho para
se isentar da obrigação de reparar os danos.
Com base na legislação vigente sobre acidentes de trabalho, a doutrina explica que
a Covid-19 pode caracterizar-se como doença ocupacional, desde que a contaminação
do empregado resulte da exposição ou contato com o vírus determinado pela natureza da
atividade ou pelas condições especiais de trabalho, nos termos do artigo 20, §1°, “d” da
Lei 8.213/91 (OLIVEIRA, 2020, p. 84).
§ 1º Não são consideradas como doença do trabalho:
d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela
se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato
direto determinado pela natureza do trabalho.

De acordo com o dispositivo supracitado, a doença endêmica – que é aquela que


existe em determinada região constante e intensamente, de modo que todos os habitantes
estão expostos ao risco de contaminação – via de regra, não é considerada doença do
trabalho; no entanto, se a contaminação for resultante da exposição ou contato direto de-
terminado pela natureza do trabalho, estará caracterizada a natureza acidentária.
A Covid-19 pode ser considerada, por analogia, uma doença endêmica, pois a pan-
demia nada mais é do que uma endemia em escala global. E a excepcionalidade do con-
texto pandêmico justifica uma interpretação extensiva dessa exceção à regra, no que diz
respeito à caracterização da doença ocupacional (OLIVEIRA, 2020, p. 83).
Em vista disso, entende-se que o enquadramento pode ocorrer não somente nas ati-
vidades de risco, em que o trabalhador está exposto a um maior risco de contágio (como
na área da saúde), mas também em qualquer outra atividade em que as condições inade-
quadas de trabalho sejam a causa da contaminação – ou seja, quando o empregador não
adotar todas as medidas de prevenção necessárias. A diferença é que, no primeiro caso,
existe uma presunção de nexo causal, ao passo que, na segunda hipótese, é necessária sua
comprovação (OLIVEIRA, 2020, p. 82).
Vale enfatizar que é cabível a inversão do ônus da prova a favor do empregado, em
prol da máxima proteção à saúde do obreiro (MELO, 2013).

184
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

3. Os Pressupostos para Responsabilização do Empregador


O enquadramento da Covid-19 como doença ocupacional, por si só, não enseja a
responsabilização do empregador. O dever de indenizar não decorre automaticamente do
reconhecimento da natureza acidentária da doença para fins previdenciários, sendo ne-
cessário, para tanto, que estejam presentes os elementos da responsabilidade civil, quais
sejam: a ação ou omissão culposa, o dano e o nexo causal (DINIZ; LIMA; COSTA, 2020,
p. 100).
Nas atividades em geral, aplica-se a regra da responsabilidade civil subjetiva, fun-
dada na culpa do agente. Nas atividades de risco, incide a teoria da responsabilidade ob-
jetiva, fundada no risco, que independe de culpa (DINIZ; LIMA; COSTA, 2020, p. 102).
O primeiro requisito para a responsabilização é o dano. Para que o trabalhador te-
nha direito à indenização, não basta o mero contágio pelo coronavírus, mas é necessário
que a doença cause danos significativos a sua saúde, resultando na perda ou redução de
sua capacidade para o trabalho, de forma temporária ou definitiva. Também são passíveis
de reparação os danos materiais e morais decorrentes do adoecimento ou da morte do
obreiro, inclusive os danos reflexos ou em ricochete, sofridos pelos familiares (DINIZ;
LIMA; COSTA, 2020, p. 104).
Outro pressuposto da responsabilidade é o nexo causal, que exige que a contamina-
ção do trabalhador tenha ocorrido no local de trabalho ou em razão deste. A questão mais
controversa do tema diz respeito ao ônus da prova do nexo de causalidade, cuja flexibi-
lização se impõe diante da impossibilidade de se comprovar em que local e momento a
doença foi contraída (SILVA, 2020, p. 28).
Via de regra, nas atividades em geral, o ônus da prova do nexo incumbe ao empre-
gado, que deve provar que estava exposto ao risco de contágio em razão da natureza ou
das condições especiais do trabalho. Dito de outro modo, basta que o obreiro comprove
que a empresa não adotou todas as medidas de prevenção necessárias ou descumpriu as
normas sanitárias para que se configure o nexo causal (SILVA, 2020, p. 28).
Por fim, exige-se ainda (nas atividades que não são de risco) a comprovação da
culpa do empregador, que se configura pela inobservância das normas que estabelecem
medidas sanitárias de prevenção à Covid-19. As empresas têm o dever de respeitar as
regras e instruções do poder público e adotar todas as medidas possíveis para prevenir o
contágio no ambiente de trabalho, sob pena de, não o fazendo, serem responsabilizadas
pelos danos sofridos pelos empregados contaminados (DINIZ; LIMA; COSTA, 2020, p.
119).
Cumpre salientar que, segundo o entendimento do STF, deve haver a inversão do
ônus da prova em favor do obreiro, de modo que o empregador deve ser obrigado a reparar
o dano se não provar que cumpriu todas as normas e adotou todas as medidas necessárias
para prevenir a contaminação de seus empregados durante o trabalho. E, considerando
que a decisão da Corte não fez distinção entre as atividades de risco e as demais ativida-

185
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

des, infere-se que é devida a inversão em todos os casos, em prol da máxima proteção ao
direito fundamental à saúde do trabalhador (OLIVEIRA, 2020, p. 79).
4. A Responsabilidade do Empregador pelos Danos decorrentes da Covid-19 nas
Atividades de Risco
Como dito, nas atividades de risco, a responsabilidade do empregador pelos danos
decorrentes da Covid-19 é objetiva, ou seja, independe de culpa.
Para delimitar o âmbito de incidência da responsabilidade objetiva, faz-se neces-
sário, primeiramente, compreender o que se considera como atividade de risco no atual
contexto de pandemia.
Existem divergências quanto à abrangência do conceito de “atividade de risco”.
Alguns doutrinadores, como SILVA (2020), defendem a aplicação da responsabilidade
objetiva em todas as atividades consideradas essenciais, o que abrange uma lista dema-
siadamente extensa de atividades (como motoristas de ônibus, caixas de supermercados,
entregadores de aplicativos e muitas outras).
A doutrina majoritária, no entanto, entende que o conceito de atividade de risco
deve ser delimitado tão somente aos serviços de saúde, em que os trabalhadores têm
contato direto e habitual com o coronavírus. Isso porque a incidência da responsabilidade
objetiva pressupõe que o empregado esteja exposto ao risco com habitualidade, ou seja,
que a própria natureza da atividade em si implique um alto risco de contaminação. A
excepcionalidade do contexto de pandemia não justifica a expansão da responsabilidade
objetiva a todas as atividades essenciais, de forma irrestrita (DINIZ; LIMA; COSTA,
2020, p. 111).
Assim, a responsabilização independente de culpa seria aplicável somente às ati-
vidades classificadas como de alto grau de risco, segundo a Nota técnica Conjunta n.
02/2020 da PGT, CODEMAT E CONAP: médicos, enfermeiras, dentistas, paramédicos,
técnicos de enfermagem e profissionais que realizam exames de covid e autópsia. Por
analogia, pode-se estender a proteção a todos os demais profissionais da área da saúde que
atuam em hospitais, clínicas, ambulâncias e laboratórios, desde que tenham contato direto
com o coronavírus (DINIZ; LIMA; COSTA, 2020, p. 111).
Em tais atividades, o nexo causal é presumido ope legis, invertendo-se o ônus da
prova em favor do obreiro; ou seja, presume-se que a Covid-19 foi contraída no ambiente
de trabalho, incumbindo ao empregador provar que a doença fora adquirida em outro
local ou momento (SILVA, 2020, p. 34).
Em suma, o elevado grau de risco da exposição ao novo coronavírus, considerada
a natureza da atividade do empregador, autoriza a presunção da etiologia ocupacional da
COVID-19 em favor do empregado que desenvolve a doença no curso do contrato de
trabalho, impondo ao empregador o ônus de provar o contrário.
A jurisprudência, embora ainda incipiente, tem consolidado o entendimento acima
esposado, no sentido de que a responsabilidade objetiva se aplica somente nas atividades

186
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

de risco estritamente consideradas – ou seja, apenas aos profissionais da área da saúde


que são expostos ao contato com o coronavírus – conforme é possível inferir do seguinte
acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP):
DOENÇA DO TRABALHO. COVID-19. INDENIZAÇÃO POR DANO
MORAL TRABALHO NO INTERIOR DE COMPLEXO HOSPITALAR.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA. ARTIGO 927, PARÁGRAFO ÚNI-
CO, DO CÓDIGO CIVIL. PROVA DO NEXO CAUSAL. TEORIA DA
VEROSSIMILHANÇA PREPONDERANTE E REDUÇÃO DAS EXI-
GÊNCIAS PROBATÓRIAS. A atividade do reclamado, por sua natureza,
implica um risco inerente e habitual de contágio de doenças, pela circulação
e atendimento de pacientes. Trata-se de um risco inerente à atividade, por
ser um Complexo Hospitalar. Assim, em razão de as funções exercidas pela
reclamante estarem diretamente ligadas à atividade de risco do reclamado, ela
está exposta habitualmente a um risco especial, implicando em um ônus maior
do que aos demais membros da coletividade, nos exatos termos da norma do
parágrafo único do art. 927 do Código Civil. Quando não há possibilidade de
pleno esclarecimento da causalidade, não há como exigir uma “convicção de
certeza”, bastando a “verossimilhança”, sob pena de não se poder entregar a
tutela jurisdicional ao direito material, negando-se a própria peculiaridade do
direito em discussão. Por meio da teoria da “verossimilhança preponderante” 
a regra do ônus da prova perde relevância, pois não pesaria sobre nenhuma das
partes. O magistrado decide em favor da parte que tiver a posição mais veros-
símil do que a outra, ainda que minimamente, ou seja, a “verossimilhança pre-
ponderante” significa a possibilidade de o juiz julgar em favor da parte que de-
monstra ter o direito mais verossímil. A reclamante se ativa em uma atividade
de risco inerente ao contágio de doenças, inclusive o coronavírus (COVID-19),
por trabalhar dentro do Complexo Hospitalar, de modo que é mais verossímil
a alegação de que contraiu a doença em razão de suas atividades e não em
outro local. Mantida a condenação (TRT-2 – RO 1000723-17.2020.5.02.0035,
17ª Turma, Relatora: Maria de Lourdes Antonio, Data da publicação no DJE:
10/12/2021).

A contrario sensu, em outro caso envolvendo uma situação diversa, em que a recla-
mante não comprovou que estava exposta ao risco de contágio em razão da natureza da
atividade, o mesmo Tribunal afastou a tese da responsabilidade objetiva:
Considerando as atividades supra narradas reputo que a hipótese de responsa-
bilidade objetiva, com base no parágrafo único do art. 927 do Código Civil,
está descartada, visto que o trabalho da reclamante não implicava, por sua
natureza, exposição dos funcionários a risco mais acentuado. Não há que se
falar, portanto, em responsabilidade objetiva do empregador (TRT-2 - ROT
1001266-59.2020.5.02.0022, Relator: Waldir dos Santos Ferro, Data da publi-
cação no DJE: 02/12/2021).

O TRT-3 (MG) também proferiu decisões no mesmo sentido.


Quanto à responsabilidade civil do empregador, entende este Juízo tratar-se
da modalidade objetiva, uma vez que, ao se ativar no tratamento de pacientes

187
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

portadores da Covid-19 (art. 927, parágrafo único, CC), estava habitualmente


exposta a riscos com potencialidade lesiva superior ao demais membros da
sociedade, nos termos do art. 927, parágrafo único, CC (TRT-3 - RORSum
0010270-17.2021.5.03.0171, Relator: Antonio Neves de Freitas, Data da pu-
blicação no DJE: 10 nov. 2021).

A questão ainda não foi objeto de análise pelo Tribunal Superior do Trabalho, a
quem caberá pacificar eventuais divergências.
Fundamentando a inversão do ônus da prova a favor do empregado, porém sob uma
concepção mais ampla de atividade de risco, as lições de José Antônio Ribeiro de Oliveira
Silva:
Ora, quando está presente, na colisão de direitos, o direito à saúde do trabalha-
dor, não há como se estabelecer juízo de ponderação. A saúde deve prevale-
cer, sempre. Daí que se pode extrair uma ratio decidende desse precedente do
STF, em matéria de ônus da prova: a inconstitucionalidade de qualquer norma
definidora de ônus da prova em matéria de doença ocupacional, que venha a
exigir do trabalhador o ônus de comprovar o nexo causal entre o trabalho e a
doença, quando ele estiver a laborar com elevada exposição ao contágio, como
ocorre nas atividades essenciais. Esse nexo de causalidade deve ser presumido,
“invertendo-se” o ônus da prova, tendo o empregador de demonstrar a situação
inversa: que a doença foi adquirida em outro local ou momento, não durante a
prestação de serviços (SILVA, 2020, p. 30).

Insta ressaltar que se trata de presunção relativa (juris tantum), que admite prova
em contrário, de modo que, se o empregador comprovar que adotou todas as medidas de
prevenção necessárias, e que o empregado se expôs ao risco fora do ambiente de trabalho,
poderá se eximir da responsabilidade (SILVA, 2020, p. 35).
Ademais, não é possível, no contexto de pandemia, alegar caso fortuito ou força
maior como excludentes de responsabilidade nas atividades de risco, pois o risco de con-
tágio é inerente à atividade. Destarte, o empregador só conseguirá se exonerar do dever
de indenizar se comprovar a culpa exclusiva da vítima – ou seja, que o empregado se
contaminou fora do local de trabalho – o que constitui uma prova extremamente difícil.
A aplicação da teoria da responsabilidade objetiva nas atividades de risco, nos
moldes acima delineados, mostra-se adequada para proteger os trabalhadores da área da
saúde, que, em meio à pandemia, expõem suas próprias vidas a risco para salvar as de
outrem. O ordenamento jurídico deve conferir proteção mais ampla e eficaz a estes traba-
lhadores, em prol do interesse coletivo de combate à Covid-19 e manutenção dos serviços
essenciais de saúde, com vistas a tutelar, em última instância, os direitos fundamentais à
vida e à saúde não só do obreiro, mas de toda a sociedade.
Conclusão
A Covid-19 pode caracterizar-se como doença ocupacional e ensejar a responsabi-
lização do empregador pelos danos materiais e morais suportados pelo empregado, desde

188
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

que a contaminação do obreiro ocorra no local de trabalho ou em razão das condições


inadequadas de labor.
Os pressupostos para responsabilização do empregador são: o dano, o nexo causal
e a culpa (responsabilidade subjetiva como regra).
Nas atividades de risco, aplica-se a teoria da responsabilidade objetiva, que inde-
pende de culpa, com fundamento na teoria do risco criado. No atual contexto de pande-
mia, segundo o entendimento da doutrina e jurisprudência majoritárias, consideram-se
atividades de risco somente os serviços de saúde, em que os trabalhadores têm contato
direto com o coronavírus.
Nestas hipóteses, o nexo causal é presumido, o que gera a inversão do ônus da pro-
va em favor do obreiro, incumbindo ao empregador comprovar que o contágio ocorreu
fora do local de trabalho para se eximir da responsabilidade.
Não é possível alegar caso fortuito ou força maior para se exonerar do dever de in-
denizar, pois tais eventos são inerentes ao risco criado pela atividade. A única excludente
aplicável à hipótese é a culpa exclusiva da vítima. O ordenamento jurídico deve conferir
proteção mais ampla e eficaz aos trabalhadores da área da saúde, em prol do interesse co-
letivo no combate à pandemia e na proteção ao direito fundamental à saúde e segurança
no trabalho.
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União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
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189
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Recurso ordinário nº


1001266-59.2020.5.02.0022. Relator: Waldir dos Santos Ferro. São Paulo, 02 dez.
2021. Disponível em: https://pje.trt2.jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/
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190
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

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191
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

PRIMAVERAS FEMINISTAS:
Uma (r)evolução do conceito tradicional de greve?1

Márcia Fernanda Corrêa2


Rainer Bomfim3

1. Introdução4
As novas formas de lutas coletivas dos trabalhadores estão diretamente ligadas aos
novos desenhos organizacionais do capitalismo em nível mundial, que culminam em uma
estrutura precária no campo social do trabalho, desenvolvida inicialmente pelos modelos
flexíveis de produção (PEREIRA,2017). A estruturação de códigos de conduta seguidos
dentro e fora do ambiente laboral solidificam formas de comportamento padronizadas, as-
sim, o capital, passa a monitorar não apenas a força de trabalho, mas também as relações
sociais e a consciência individual (ALVES, ANTUNES, 2004).
Deste modo, a classe trabalhadora delineada no capitalismo contemporâneo não
possui as mesmas características que reunia na modernidade (ALVES, ANTUNES, 2004),
a partir do advento da acumulação flexível a classe-que-vive-do-trabalho se organiza de
forma heterogênea, com reivindicações e subordinações diversas e plurais (PEREIRA,
2017). As estratégias de flexibilização e precarização das relações de trabalho somadas à
profusa crise do sistema capitalista moderno colonial alteram a organização e efetividade
dos movimentos de luta da classe trabalhadora (VIANA, 2009).
Neste cenário, a configuração tradicional da greve5 – cunhada na modernidade, já
não faz sentido sociologicamente, na medida em que não é eficiente mediante a variabili-
1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 fornecido aos autores.
2
Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto, com bolsa de pesquisa CAPES. Bacha-
rela em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto. Pesquisadora do Grupo de Estudos em Saberes
Decoloniais da Universidade Federal de Ouro Preto (RESSABER- UFOP). Colaboradora da Ouvidoria
Feminina da Universidade Federal de Ouro Preto.
3
Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, com bolsa de pesquisa
CAPES. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Bacharel em Direito pela
UFOP. Professor do curso de Direito da Rede Doctum – Unidade de João Monlevade. Professor Substituto
de Direito na Universidade Federal de Juiz de fora – Campus Governador Valadares. Pesquisador do RES-
SABER-UFOP e Retrabalhando o Direito – PUC/MG.
4
A autora e o autor agradecem a interlocução constante com a pesquisadora, orientadora e professora Dra.
Flávia Souza Máximo Pereira (UFOP), que revoluciona nossas pesquisas a partir do afeto.
5
Entende-se aqui por conceito tradicional do movimento paredista, o exercício ligado exclusivamente a
reivindicações de caráter econômico-profissional pleiteadas através da interrupção de prestação laboral dos
trabalhadores-definidos por uma categoria específica, ao empregador. Essa definição constituída a partir do
ambiente produtivo fabril foi cooptada pela doutrina, jurisprudência e legislação jus laboral à nível mun-
dial, como exemplo, podemos citar o artigo 2º da Lei brasileira que dispõe sobre o exercício do direito de
greve (7783/89): “Para os fins desta Lei, considera-se legítimo exercício do direito de greve a suspensão
coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador.”

193
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

dade e fluidez dos modos de produção e exploração capitalista (PEREIRA, 2017). Então,
a partir dos novos arranjos de opressão derivados do capital, o campo dos movimentos
sociais também se reorganiza (PEREIRA, 2017). Na infinidade de sujeitos e movimentos
que emergem dessas circunstâncias destaca-se a participação das mulheres. (PEREIRA,
2017).
Partindo da ideia de greve enquanto interrupção de cotidiano (VIANA, 1996), so-
mada ao conceito de greves interseccionais apontado na obra Feminismo para os 99%, um
manifesto (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019), analisa-se, sob a vertente
jurídico-sociológica (GUSTIN, DIAS, 2013) a hipótese de que as paralisações denomi-
nadas primaveras feministas desempenham papel (r)evolucionário no tocante a superação
do conceito de greve concebido na modernidade. Acredita-se, ainda, que a potência in-
surgente destes movimentos reside em elementos muito característicos das manifestações
feministas, dentre eles, destaca-se seu caráter interseccional.
A relevância desta análise localiza-se na escassez de estudos relacionados aos mo-
vimentos interseccionais no âmbito do jus laboral. Além disso, o trabalho que aqui se
apresenta procura compreender o fenômeno greve enquanto variável da sociedade, bus-
cando sua ampliação a partir de demandas relacionadas ao ambiente social do trabalho.
Sendo assim, questiona-se: teriam as greves interseccionais feministas influência revolu-
cionária no tocante à superação da ideia tradicional de greve?
2. Do Chão das Fábricas ao Chão das Casas: O contexto da (r)evolução do conceito
de greve
A heterogeneidade assumida pela classe trabalhadora no capitalismo contemporâ-
neo é fator crucial para que o exercício do direito de autotutela extrapole o conceito de
greve advindo da modernidade, as reivindicações dos trabalhadores não mais se limitam
apenas a questões de caráter econômico-profissional (PEREIRA, 2017). Para compreen-
der as novas formas de luta desenvolvidas pelos trabalhadores e trabalhadoras é necessá-
rio analisar o contexto sociológico das relações de trabalho na modernidade, bem como,
as mudanças ocasionadas nesta seara a partir das novas configurações do capitalismo,
pretende-se neste tópico fazê-lo.
No campo laboral, o padrão de poder moderno se constrói a partir do capitalismo
no modelo de produção taylorista-fordista (PEREIRA, 2017). Ao cunhar seus métodos de
gerenciamento do capital, Taylor e Ford inseriram uma separação nítida entre o controle
do trabalho e sua execução (ANTUNES, 1999). No sistema taylorista-fordista a submis-
são do proletariado a organização econômica era meramente formal e não incorporava a
lógica do capital de forma ampla a outros setores da vida do trabalhador (ALVES, AN-
TUNES, 2004).
Neste modelo organizacional, toda a produção se concentrava no ambiente fabril,
de modo que o conhecimento e controle da produção eram dominados pelo gerente (AN-
TUNES, 1999). Essas relações hierárquicas ocasionaram a separação entre o saber e o
fazer na fábrica, gerando um estranhamento do trabalhador em relação ao processo pro-

194
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

dutivo, pois, o proletariado não detinha mais nenhum conhecimento sobre a mercadoria
produzida (ALVES, ANTUNES, 2004). Além disso, o produto final também não perten-
cia mais à pessoa que o produzia (PEREIRA, 2017).
Desta forma, a alienação do trabalhador ao processo produtivo, segundo Marx, não
se dá apenas no resultado do processo, atingindo também o ato de produção: “como
poderia o trabalhador defrontar-se alheio ao produto de sua atividade se no ato mesmo
da produção ele não se estranhasse a si mesmo?” (MARX, 2008, p. 82). A concepção de
classe trabalhadora na modernidade surge, portanto, enraizada no ambiente hierarquizado
taylorista-fordista, no qual os trabalhadores produziam no mesmo local, unidos, compar-
tilhando as mesmas condições de trabalho, de forma que passaram a se reconhecer uns
nos outros, enquanto classe homogênea (PEREIRA, 2017).
Já os aspectos territoriais da classe operária na modernidade podem ser analisados
sob a perspectiva da teoria marxista de Henri Lefebvre (2013). Segundo o autor, o espaço
moderno possui características precisas: homogeneidade, fragmentação e hierarquização
(LEFEBVRE, 2013). Lefebvre leciona que:
a luta de classes deve ser lida no espaço, na medida em que ele é objeto de
poder que configura e ordena a vida em sociedade. Além disso, o modo de
produção capitalista organiza e produz – ao mesmo tempo que certas relações
sociais- seu espaço (e seu tempo) (LEFEBVRE, 2013, p.127).

Observa-se que o conceito6 de classe social que representa o proletariado se cons-


titui na modernidade como homogêneo, ou seja, se limita a homens, empregados indus-
triais, brancos, com interesses predominantemente econômicos, em oposição a uma clas-
se dominante, que se caracterizava como tal a partir do acúmulo de capital (PEREIRA,
2017). Esse conflito de interesses ocorreu como reflexo da estrutura produtiva no seu
formato taylorista-fordista, como descreve Flávia Souza Máximo Pereira (2017, p. 35):
Dessa forma, podemos afirmar que o conceito de classe social elaborado na
modernidade indica, em geral, a autorrepresentação consciente dos homens
operários e brancos, fundada em interesses comuns monolíticos, de caráter
econômico, construídos em face de uma oposição de interesses em relação à
classe capitalista europeia. Tal espectro reducionista de identidade coletiva na
modernidade é reforçado pela estrutura clássica produtiva capitalista em seu
formato taylorista-fordista, na qual a separação entre capital e trabalho é mais
nítida, completando o padrão histórico de poder da modernidade.

Seguindo este raciocínio, afirma-se que a conjuntura anteriormente descrita, não é a


vivenciada nos moldes do capitalismo contemporâneo (PEREIRA, 2017). A classe traba-
lhadora a partir da reconfiguração do capitalismo se organiza de forma heterogênea; pres-
6
Isso não quer dizer que não existiam mulheres trabalhadoras nas fábricas; trabalho informal; trabalho
feminino reprodutivo, ou trabalhadores negros escravizados na modernidade. Contudo, o conceito de classe
social, que se reflete no conceito jurídico de greve, simplificou a complexidade da identidade coletiva da
classe-que-vive-do trabalho em uma única narrativa masculinizada, branca, eurocêntrica e empregatícia
(PEREIRA, 2017)

195
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

ta serviços em diversos espaços, por vezes em países diferentes; com relações de trabalho
precárias, o que dificulta a eficácia do exercício de greve nos moldes da modernidade
(PEREIRA, 2017). Na medida em que se configura de maneira diversa, também possui
outros tipos de reivindicação que não são de natureza econômica, tais como: demandas
relacionadas a igualdade de gênero, raça, proteção do meio ambiente, políticas públicas,
dentre outras (PEREIRA, 2017).
O crescimento do capitalismo na modernidade teve seu ápice durante o apogeu do
fordismo, no entanto, neste mesmo período, houveram sinais de crise do sistema, o que
levou à reconfiguração do processo produtivo (ALVES, ANTUNES, 2004). Os Estados
Nacionais, neste contexto, deixaram de representar uma fronteira para o capital, e as redes
econômicas passaram a funcionar em escalas multinacionais (PEREIRA, 2017). A partir
de então, os Estados se tornam reféns do capital, pois, com a industrialização dos países
periféricos, acentua-se a concorrência entre os possíveis mercados de trabalho. Assim, os
países que possibilitassem as condições laborais mais precárias se consagrariam vencedo-
res na disputa para investimento do capital financeiro (PEREIRA, 2017).
A reestruturação do capital se explica por diversas questões: esgotamento do pa-
drão de acumulação taylorista-fordista, que gerava incapacidade de resposta à diminuição
de consumo; internacionalização da esfera financeira, necessidade de redução de gastos
públicos e sua transferência de responsabilidade para o setor privado, aumento de pri-
vatizações, flexibilização do processo produtivo e também, a luta operária (ANTUNES,
2007). Os trabalhadores da modernidade, por meio de suas reivindicações grevistas, se
mostraram capazes de controlar a luta de classes, como também, o funcionamento das
empresas, e consequentemente, o fluxo de capital (ANTUNES, 2007).
Dentre as experiências de reestruturação do mercado, a mais eficaz em superar a
dinâmica taylorista-fordista no cenário mundial foi a da empresa japonesa Toyota - que
implementou o Toyotismo (ANTUNES, 2007). Este sistema vislumbrava a recomposição
da linha produtiva por meio de protocolos organizacionais, que exploravam não apenas a
força de trabalho, como também a inteligência e capacidade organizacional dos trabalha-
dores (ANTUNES, 2007).
As fábricas toyotistas possuíam em seu maquinário mecanismos de parada automá-
tica no caso de funcionamento defeituoso, o que possibilitou maior gestão de qualidade,
além do sistema just-in-time7, por meio do qual empresas passaram a funcionar com es-
toque mínimo (ANTUNES, 2007). Consequentemente, além de ocasionar o desemprego
em massa, houve a diminuição do valor da mão de obra, em razão do aumento do exército
de reserva (ANTUNES, 2007).
O Toyotismo, portanto, ressignificou a dinâmica organizacional da produção capi-
talista (PEREIRA, 2017). Após essa nova construção produtiva, houveram também mu-

7
O sistema just-in-time que significa “momento certo” é um sistema com o objetivo de produzir a quanti-
dade exata de um produto de acordo com a demanda, de forma rápida e sem a necessidade de formação de
estoques (ANTUNES, 2007).

196
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

danças sociológicas no ambiente de trabalho: o Toyotismo passou a demandar um novo


perfil da classe operária: os trabalhadores deveriam desenvolver atividades polivalentes,
exercendo diversas funções ao mesmo tempo (ALVES, 1999).
Este cenário reflete valores do “novo” capitalismo: autonomia, mobilidade, cola-
boração, polivalência, comunicabilidade, abertura para novidades, disponibilidade, cria-
tividade, intuição visionária, sensibilidade para as diferenças, capacidade de dar atenção
à vivência alheia, aceitação de múltiplas experiências, atração pelo informal e busca por
contatos interpessoais (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).
A nova organização do trabalho ocasiona maior poder de manipulação do opera-
riado (PEREIRA, 2017). A influência na esfera subjetiva da vida do trabalhador torna-se
mais sutil e profunda, pois, o capital influencia também o tempo denominado reprodutivo,
o que ocasiona uma confusão entre o tempo de trabalho e o tempo vital dos trabalhadores,
já que foi criado um ambiente de desafio e competição contínuos (PEREIRA, 2017). Ou-
tra característica muito marcante do capitalismo contemporâneo é a identificação entre os
valores da empresa e os do trabalhador: os empregados deixam de se reconhecer nos ou-
tros, o que prejudica de forma acentuada o reconhecimento da classe trabalhadora como
tal, comprometendo, assim, a luta coletiva (PEREIRA, 2017).
As estratégias de flexibilização e precarização das relações de trabalho também
influenciaram negativamente o movimento sindical (VIANA, 2009). Como exemplo, po-
demos citar o teletrabalho, ampliado pelo atual contexto da pandemia do coronavírus. Por
meio desta modalidade de relação de emprego há maior distanciamento do trabalhador de
seus demais colegas, que não podem mais se unir no mesmo espaço. Consequentemente,
cria-se a ideia de uma falsa autonomia do trabalhador e uma identificação deste com a
empresa. De acordo com Márcio Túlio Viana:
Nesse ambiente quase corporativo, alimentado pela competição ou pelo de-
semprego – vale dizer, pelo amor ou pelo terror – há pouco lugar para conflitos
coletivos e o desenvolvimento de contrapoderes. O espírito coletivo desliza
do sindicato para o trabalho em grupo, a equipe; em troca da identidade de
classe, a empresa propõe ao operário que ele se identifique com ela própria.
Como já notou alguém, não se trata mais, ou não se trata tanto de enfrenta-
mentos diretos, frente a frente, como num campo de batalha; o novo modelo
corrói por dentro o sindicato, minando sua capacidade de representar a clas-
se trabalhadora, e a própria autopercepção dos trabalhadores enquanto classe
(VIANA,2009, p. 116)

Assim, tem-se o enfraquecimento do movimento sindical (VIANA, 2009). As gre-


ves perdem seu sentido sociológico, na medida em que os trabalhadores e as trabalhado-
ras não dividem mais o mesmo ambiente laboral, mesmas condições de trabalho e existe
uma dificuldade dos empregados e das empregadas em reconhecer sua própria subordi-
nação, ou seja, há uma deturpação do papel sociológico imposto a cada um pelo capital
(VIANA, 2009).

197
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

O conceito moderno de greve também encontra dificuldades de prosperar como for-


ma de luta, devido à nova estrutura das empresas, que se apresentam agora como socieda-
des mais complexas e horizontais, que não possuem apenas mecanismos de exploração de
cunho econômico, pois há também interações políticas, ambientais, culturais, de gênero
e raça (PEREIRA, 2017).
A partir da nova roupagem do capitalismo, além do surgimento de outras formas
de luta, o trabalho passa a influenciar diretamente em outros setores da sociedade (PE-
REIRA, 2017). A produção irresponsável em larga escala feita por multinacionais gera
poluição desenfreada que atinge a classe trabalhadora, resultando em crimes ambientais,
como os episódios recorrentes em Minas Gerais relacionados ao rompimento de barra-
gens de mineradoras.
Assim, as lutas coletivas da classe trabalhadora ultrapassam o sistema econômico-
-industrial da modernidade e passam a tocar também áreas relativas à identidade, cultura
e meio ambiente (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019). Desse modo, “o
formato tradicional da greve já não faz sentido sociologicamente, pois não é eficaz peran-
te a variabilidade e fluidez dos modos de ser de exploração desencadeados por multina-
cionais de forma estrutural no capitalismo tardio” (PEREIRA, 2017, p. 123).
Por isso, o campo dos movimentos sociais se torna híbrido com a confluência de
lutas da classe trabalhadora, na medida em que as formas de opressão deixam de se res-
tringir apenas ao espaço de produção. Segundo leciona Flávia Souza Máximo Pereira “‘o
pós-modernismo’ teve o mérito de destacar a possibilidade de politização e socialização
em outros espaços para além da fábrica.” (PEREIRA, 2017, p. 154). No entanto, vale
ressaltar que a retirada da luta de classes do ambiente fabril não decreta o fim da classe
operária, anunciar tal fim seria omitir que todas as reivindicações também perpassam por
conflitos do trabalho (PEREIRA, 2017).
Neste sentido, a partir da precarização generalizada do trabalho e das formas de
opressão redesenhadas no capitalismo contemporâneo surge a classe-que-vive-do-traba-
lho (VIANA, 2009), totalidade de homens e mulheres, desprovidos dos meios de produ-
ção, e que, consequentemente, se sustentam a partir da venda do seu corpo (PEREIRA,
2017). A classe-que-vive-do-trabalho é caracterizada principalmente pela insegurança e
incertezas no ambiente laboral e nos projetos de vida. O trabalho é marcado pela infor-
malidade, falsa autonomia, terceirização, com a privação de direitos sociais (PEREIRA,
2017).
Em conclusão, pode-se perceber que o capitalismo contemporâneo concebeu novos
sujeitos- a partir da precarização das relações laborais, e, consequentemente, novas for-
mas de luta (PEREIRA, 2017). Precariedade que não atinge apenas a dimensão do traba-
lho como mercadoria: essa nova sistemática confunde o tempo de produção com o tempo
de reprodução, em consequência de uma jornada de trabalho excessiva e mecanismos

198
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

de manipulação que capturam a subjetividade do trabalhador8 (PEREIRA, 2017). Sendo


assim, aqueles que vivem da venda da força laboral produzem em toda sua generalidade,
em todo lugar, o tempo todo (NEGRI; HARDT, 2014).
Nesta perspectiva, a partir da ressignificação da classe-que-vive-do-trabalho, su-
pera-se a análise que concebe a luta dos trabalhadores e trabalhadoras como algo homo-
gêneo (PEREIRA, 2017). Pois, ao transbordar para além do espaço produtivo fabril, a
lógica da autovalorização do valor veiculada pelo lócus do trabalho humano extravasou
subalternidades interseccionais de gênero, raça, origem e sexualidade que exigiram a re-
configuração dos eixos de luta coletiva (PEREIRA, 2017).
A (r)evolução do conceito de greve se deu ainda por questões que extrapolam a
organização social do trabalho. A crise do sistema capitalista que se apresenta de forma
ampla e desmedida alcançando os mais diversos setores da sociedade, é crucial para as
mudanças apresentadas na organização dos trabalhadores enquanto classe social (ARRU-
ZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019). Acredita-se, por fim, que nos diversos des-
dobramentos da crise do sistema capitalista moderno/colonial reside também a potência
das ‘primaveras feministas’- denominação estabelecida propositalmente no plural, com
o intuito de não restringir a amplitude e a potência do conceito de greves interseccionais
feministas.

3. Primaveras Feministas: Multidões9 de mulheres


A inovação nas formas de luta coletiva dos trabalhadores, como destacado ante-
riormente, está diretamente ligada a nova estrutura do capitalismo em nível mundial.
(ALVES, 1999). Modelos de produção versáteis, como o criado por Taiichi Ohno con-
sideram a força de trabalho apenas uma mercadoria, seguindo a lógica do mais valor, o
que progressivamente, ocasiona o enfraquecimento das leis trabalhistas, assim como, das
lutas coletivas articuladas nos moldes desenvolvidos na modernidade (VIANA, 2009).
Ao atingir a subjetividade do trabalhador e fragilizar a formação de movimentos
sociais e o aparato legal no tocante à proteção trabalhista, a lógica capitalista os sujeita a
diversas subalternidades interseccionais, o que culmina em formas inovadoras de resis-
tência coletiva (PEREIRA, 2017). Assim, as manifestações da classe trabalhadora ultra-
passam a definição cunhada na modernidade. Dentre as novas formas de luta destaca-se
o protagonismo das mulheres, - que neste contexto são submetidas a jornadas triplas de
labor, em razão divisão sexual do trabalho10 (PEREIRA, 2017).
8
Sob a ótica de Giovanni Alves (1999), não apenas o essencial para a atividade laboral dos trabalhadores
é apreendido pelo sistema capitalista, seu tempo e modo de vida, que são alheios ao trabalho produtivo por
ele prestado, também são capturados pelo sistema capitalista, cooperando com o mesmo.
9
Utiliza-se aqui a ideia de multidão proposta por Antônio Negri (2014), que trabalha multidões como um
conceito de classe em constante movimento, que é incessantemente explorada pelo capital.
10
Termo que surgiu na França em meados da década de 70, como forma de questionar a distribuição dife-
rencial de homens e mulheres no mercado de trabalho, além da divisão desigual entre homens e mulheres
do trabalho doméstico. Deste termo desenvolveu-se também o conceito de novas configurações da divisão

199
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

As trabalhadoras inovaram os meios de luta através de greves interseccionais11 fe-


ministas, que se caracterizam a partir da conexão entre o trabalho reprodutivo e o trabalho
produtivo, extravasando a divisão sexual do trabalho12 no capitalismo contemporâneo
(PEREIRA, 2017). Estes movimentos, na medida em que denunciam vulnerabilidades
no meio reprodutivo e produtivo através de múltiplas sujeitas têm sua efetividade de luta
potencializada (PEREIRA, 2017).
Pode ser considerado como marco inicial13 das lutas coletivas que são objeto cen-
tral deste trabalho um evento ocorrido em outubro de 2016 na Polônia14, mais de cem
mil mulheres deixaram seus postos de trabalho produtivo e reprodutivo, e foram às ruas
reivindicar o direito ao aborto no país (MILHARES ..., 2018). Ao final do mesmo mês, na
Argentina15, surgiu um movimento representado pela hashtag #NiUnaMenos que tomou
proporções mundiais, e desencadeou reivindicações em países da Europa e América que
denunciavam violência de gênero e abuso sexual sofrido por mulheres ao redor do mundo
(MAGGIE, 2016).
Outro exemplo que merece ser mencionado ocorreu no Brasil em 2019, no Espírito
Santo. Mulheres como maneira de assegurar melhores condições de trabalho e salário a
seus filhos e maridos militares, que não podem exercer o direito de greve, de acordo com
o artigo142, IV16 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, impediram
sua saída para chamados nas portas dos quartéis. (APÓS ...,2017). A onda de movimen-
tos que teve início na Polônia se alastrou e tomou proporções jamais vistas (ARRUZZA;

sexual do trabalho, que retrata melhor a realidade social das trabalhadoras a partir de uma análise que en-
globa a divisão racial e sexual do trabalho. (HIRATA; KERGOAT, 2007).
11
Greves Interseccionais: São movimentos da classe-que-vive-do-trabalho que não ocorrem isolados de
demais reivindicações relacionadas à crise do capital, como problemas climáticos, racismo, opressões se-
xuais e de gênero. Essas lutas são parte integrante do desmantelamento do capitalismo (ARRUZA; BHAT-
TACHARYA; FRASER, 2019).
12
Divisão Sexual do Trabalho: A desvalorização do trabalho feminino frente ao trabalho masculino, ou
seja, o tratamento superior ao labor dos homens, que pode ser percebido através de melhores salários, assim
como mediante a presença masculina em cargos de poder (princípio da hierarquia). Além disso, a divisão
sexual do trabalho determina uma distribuição desigual de atividades, na medida em que trabalhos domésti-
cos e de cuidado são destinados às mulheres, e, muitas vezes, efetuados por elas de forma gratuita (princípio
da separação) (HIRATA; KERGOAT, 2007).
13
Não se afirma aqui que se inicia em 2016 a participação das trabalhadoras em reivindicações trabalhistas,
sociais e econômicos. É sabido que as mulheres sempre ocuparam papel de vanguarda na luta por direitos
sociais e laborais. Afirma-se aqui, que se inicia em 2016 a onda de manifestações feministas que se
caracterizam principalmente pela ruptura de prestação laboral por parte das trabalhadoras no ambiente
produtivo e reprodutivo, somada à junção de reivindicações que se relacionam à violência e subalternidade
de gênero às mais diversas questões ligadas à crise do capital – demandas econômico-profissionais,
ambientais, sociais, dentre outras.
14
No dia três de outubro de 2016, as mulheres da Polônia vestiram-se de preto e decretaram greve do tra-
balho produtivo e reprodutivo para protestar contra um projeto de lei que reduziria as hipóteses de aborto
legal no país (MILHARES, 2018).
15
A greve de duração de uma hora foi movida, na Argentina, pela morte de Lucía Perez, de 16 anos, na
cidade litorânea de Mar del Plata (MAGGIE,2016).
16
Art. 142, IV: Ao militar são proibidas a sindicalização e a greve (BRASIL, 1988).

200
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

BHATTACHARYA; FRASER, 2019). No dia internacional da mulher do ano seguinte


- oito de março de 2017, militantes feministas do planeta interromperam seus afazeres
produtivos e reprodutivos para chamar atenção às diversas submissões experimentadas
por mulheres ao redor do mundo. (BRANCO, 2017).
Quatro anos após o início dos movimentos descritos, milhares de mulheres per-
manecem protestando no dia oito de março. Em 2020 no dia oito de março, diversas mu-
lheres foram às ruas reclamar igualdade de direitos, fim da violência de gênero, garantias
trabalhistas e direitos reprodutivos. No Brasil, houveram movimentos em pelo menos
setenta cidades diversas, os quais, além das demandas produtivas e reprodutivas também
se constituíam por críticas contundentes ao governo de Jair Bolsonaro (DIA ...,2020).
Ainda, no mesmo ano em Belarus, país do Leste Europeu mulheres se encontram
na linha de frente dos protestos em favor democracia e contra o patriarcado, em diversas
cidades do país. A onda de manifestações que voltou a atenção do mundo para o país
europeu se iniciou a partir de uma marcha composta por mulheres organizada através do
Telegram com o propósito de denunciar a ditadura instaurada no país através de fraude
nas eleições presidenciais. (SAHUQUILLO,2020).
Cinzia Arruzza, Thithi Bhattacharya e Nancy Fraser em seu livro: Feminismo para
os 99%: um manifesto (2019), evidenciam que o manifesto feminista não se relaciona
apenas com a crise capitalista em seu sentido econômico, mas também ecológico, político
e de reprodução social, dentre outras questões que são apresentadas como adversidades
para a classe trabalhadora na contemporaneidade. Segundo as autoras, um dos principais
fatores que contribuíram para essa tendência foi o reconhecimento de que o campo so-
cial está intersectado por várias camadas de subordinação – tais como raça, etnia, classe,
orientação sexual, idade, religião – que não podem ser reduzidas a uma única opressão,
sujeições estas ocasionadas pela crise sem precedentes do capital (ARRUZZA; BHAT-
TACHARYA; FRASER, 2019).
Ao levantar questionamentos múltiplos sobre as subalternidades vividas por mulhe-
res de locais e realidades diversas, este movimento feminista assume como traço principal
de sua luta de classes a interseccionalidade (PEREIRA, 2017). Assim, estes movimen-
tos englobam e relacionam diversos eixos da crise e dominação capitalista, dentre eles,
destaca-se: gênero, classe, raça e sexualidade, de modo a compreender a universalidade
atribuída à classe trabalhadora sem excluir as particularidades dos agentes, das opressões
e das circunstâncias (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019).
Além disso, ao politizar e unificar essas lutas, as mulheres invocam o espírito de
luta da classe trabalhadora, trazendo à tona a potência política que estes movimentos re-
presentam quando unem o cessar dos trabalhos produtivos e reprodutivos:
Reanimando aquele espírito combativo, as greves feministas de hoje estão re-
cuperando nossas raízes nas lutas históricas pelos direitos da classe trabalha-
dora e da justiça social. Unindo mulheres separadas por oceanos montanhas
e continentes, bem como por fronteiras, cercas de arame farpado e muros,
elas dão novo significado ao lema “Solidariedade é nossa arma”. Abrindo o

201
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

caminho em meio ao isolamento dos muros internos e simbólicos, as greves


demonstram o enorme potencial político do poder das mulheres: o poder da-
quelas cujo o trabalho remunerado e não remunerado sustenta o mundo. (AR-
RUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019, p. 32/33).

Flávia Souza Máximo Pereira ao dissertar sobre os movimentos híbridos segue


a mesma linha de raciocínio, na medida em que afirma que após a crise do capital na
contemporaneidade, a interseccional classe-que-vive-do-trabalho, aparece como poder
constituinte (PEREIRA, 2017). Dessa forma, os heterogêneos protagonistas do mundo
social do trabalho tentam sobreviver sobrecarregados por subalternidades sobrepostas,
que vão além das estratificações econômicas - como gênero, raça, origem, que atuam na
produção e reprodução das desigualdades sociais – expressando seu conteúdo crítico em
novas formas de lutas interseccionais, movimentos mais eficazes do que mecanismos de
ação coletiva provenientes da modernidade, como a greve tradicional (PEREIRA, 2017).
Na mesma toada segue Natália Maria Félix de Souza (2019) quando trata dos mo-
vimentos híbridos na América Latina. De acordo com a autora, as articulações feministas
introduzem novas nuances nas políticas (SOUZA, 2019). Cada vez mais, as feministas
são vistas não apenas como grupos de identidade que representam uma posição minori-
tária dentro de um movimento maior e mais importante contra o capital e opressões, mas
sim, como protagonistas de um papel de vanguarda no campo político (SOUZA, 2019).
A importância destes movimentos, de acordo com Souza - e em congruência com a
hipótese aqui apresentada, baseia-se na maneira como eles estabelecem uma ligação entre
a violação de corpos femininos às extraordinárias alianças entre diferentes movimentos
sociais (SOUZA, 2019). Por fim, quando ‘mulheres’ instituem a junção de diversas su-
balternidades transformando-as em ações, as articulações estabelecidas a partir de então
recuperam vozes anteriormente silenciadas por estruturas necropolíticas de poder, na me-
dida em que criam ações coletivas derivadas da singularidade (SOUZA, 2019).
Em resumo, a crise sem precedentes do sistema capitalista (ARRUZZA; BHATTA-
CHARYA; FRASER, 2019) somada a organização contemporânea do capital demanda da
classe trabalhadora novos meios e formas de luta (PEREIRA, 2017) – sem limites territo-
riais, formais ou materiais. Acredita-se que as primaveras feministas ocupam papel dian-
teiro na (r)evolução do direito de autotutela da classe-que-vive-do-trabalho em função
de três elementos característicos das greves interseccionais: a ruptura da normalidade de
prestação laboral nos sustentáculos da produção capitalista (FEDERICI,2019)- ambientes
de produção e reprodução social (PEREIRA, 2017); a junção de reivindicações relacio-
nadas a estes pilares do sistema econômico vigente (PEREIRA, 2017); e finalmente, sua
constituição interseccional, que possibilita a fusão dos mais diversos movimentos sociais
(SOUZA, 2019).
Ainda, a potência da (r)evolução feminista habita na junção destes três componen-
tes, pois, há a partir deles o enfrentamento congruente à crise ampla e sem precedentes do
sistema capitalista pela união de movimentos sociais à classe-que-vive-do-trabalho. Além
disso, o giro no conceito de greve ocasionado pela ruptura de prestação laboral também

202
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

no ambiente reprodutivo enfrenta para além da produção capitalista, a reprodução e ma-


nutenção de corpos trabalhadores nos moldes deste sistema econômico.
Conclusão
O modo de produção e organização do sistema capitalista na contemporaneidade
demonstram sua plasticidade e potencial destrutivo. Crises ambientais, sociais e econô-
micas somadas a políticas de austeridade nos mais diversos cantos do planeta reforçam
a ideia de que a crise sem precedentes deste sistema econômico convoca ações à altura.
A expressão da resistência da classe-que-vive-do-trabalho se constitui na forma
de movimentos híbridos e versáteis que extrapolam a ideia de luta cunhada no ambiente
produtivo fabril. Neste cenário, a ação das mulheres vai além de inovações no tocante
às formas de exercício do direito de autotutela, confirma-se, portanto, a ideia de que as
primaveras feministas simbolizam uma (r)evolução no conceito de greve na medida em
que alcançam os mais diversos desdobramentos da crise capitalista- direcionando-se aos
movimentos sociais, além de ocasionar tensões para além da produção capitalista- a partir
da ruptura da normalidade também no ambiente reprodutivo.
Referências
ALVES, Giovanni. Trabalho e mundialização do capital: a nova degradação do traba-
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205
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

DISCRIMINAÇÕES ALGORÍTMICAS:
racismo e sexismo nas relações laborais

Luiza Barreto Braga Fidalgo1

1. Introdução
O artigo em análise possui como objetivo avaliar os impactos dos mecanismos de
inteligência artificial em relação à perpetuação de práticas discriminatórias, bem como
no que toca ao combate às desigualdades sociais, racismos e sexismos, nas relações labo-
rais. Os algoritmos, em si, são neutros, mas o racismo estrutural, o machismo patriarcal
e as disparidades de classe que permeiam a sociedade estão presentes no subconsciente
humano e se refletem na parametrização de sequências matemáticas enviesadas nas ferra-
mentas de IA (Inteligência Artificial).
Inicialmente, houve a conceituação teórica de algoritmos, de machine learning
(aprendizado de máquina), bem como foram estabelecidas interfaces entre as ferramentas
de IA e o direito laboral. Outrossim, foram ponderadas as acepções de discriminação, em
modalidades diversas, com ênfase nas práticas discriminatórias algorítmicas. Paralela-
mente, foram mapeadas pesquisas empíricas da literatura estrangeira em que constatados
vieses racistas e sexistas em algoritmos correlatos às fases pré-contratuais, de manuten-
ção e ascensão profissionais.
Identificadas tais mazelas dos enviesamentos algorítmicos, analisou-se de que for-
ma tais fórmulas matemáticas poderiam atuar de modo contramajoritário, em favor de
políticas inclusivas e diversas, como instrumentos reparatórios. Nessa conjuntura, ratifi-
cou-se a necessidade da acurácia de dados, auditorias, prestação de contas, inteligibilida-
de, transparência, dos mecanismos de Inteligência Artificial, a fim de que se potencialize
a equidade nas relações laborais, com a conformação de vieses algorítmicos operando em
favor do princípio da isonomia.
2. Inteligência Artificial e Discriminação
2.1. Machine Learning e Algorítmos
No que concerne aos mecanismos de inteligência artificial, a Resolução nº 332, de
21 de agosto de 2020, do Conselho Nacional de Justiça conceitua algoritmo como “Art.
3o (...) sequência finita de instruções executadas por um programa de computador, com o
objetivo de processar informações para um fim específico;” (CONSELHO NACIONAL
DE JUSTIÇA, 2020). O algoritmo pode se referir a qualquer instrução, como um código
de computador, que realiza um conjunto de comandos. Essa instrução é essencial para
1
Procuradora do Trabalho no 2º Ofício da Procuradoria do Trabalho de Rio Branco (MPT). Bacharela em
Direito pela Universidade Federal da Bahia (2016). Pós-graduada em Direito do Trabalho com Ênfase na
Reforma Trabalhista pela Faculdade Verbo Educacional (2019). Pós-graduada em Direito e Processo do
Trabalho pela Faculdade Verbo Educacional (2019). E-mail: fidalgoluiza@gmail.com

207
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

o modo como os computadores processam dados. Seriam, desse modo, procedimentos


codificados para transformar a entrada de dados na saída desejada, com base em cálculos
específicos. (ARTICLE 19, 2018, p. 8, tradução livre do inglês)
Trata-se de fórmulas matemáticas pensadas e elaboradas por programadores, enge-
nheiros, técnicos, com conhecimentos científicos predominantemente da área de exatas,
sem responsabilidade com barreiras éticas, morais ou sociojurídicas que imponham dire-
trizes para condutas não discriminatórias (FRAZÃO, 2021b, p. 2)
Nos epicentros de comunidades tecnológicas, as ausências de pluralidade étnica,
de inclusão de grupos vulneráveis e de diversidade de pontos de vista se revelam não
apenas na baixa contratação de técnicos de tais grupos marginalizados (VINUESA et
al, p. 3, 2020, tradução livre do inglês); mas, sobretudo, na pífia representatividade de
grupos historicamente excluídos que integrem os centros decisórios na elaboração de
machine learning, conforme referenciado por pesquisa de Joy Buolamwini, cientista da
computação e pesquisadora do MIT (Massachusetts Institute of Technology) Media Lab
no documentário Coded Bias (NETFLIX, 2020).
Frequentemente, o aprendizado de máquinas utiliza algoritmos treinados com uma
vastidão de dados para melhorar a performance do sistema em uma tarefa ao longo do
tempo. Tarefas tendem a envolver tomada de decisões ou reconhecimento de padrões,
com muitas possibilidades de saídas e uma variedade de domínios e formulários. (ARTI-
CLE 19, 2018, p. 9, tradução livre do inglês). Nesse contexto, além de os vieses algorit-
mos poderem emanar dos valores e prioridades daqueles que os treinam e os projetam,
é possível que as discriminações algorítmicas decorram de dados de treinamento não
representativos, quando o dataset, ou o banco de dados, para fórmulas algorítmicas, é
insuficiente. (KERTYSOVA, 2019, p.5, tradução livre do inglês)
A investigação acerca da razoabilidade de implementação de mecanismos de inte-
ligência artificial em etapas admissionais, bem como no decurso da relação de emprego,
possui em seu bojo a compreensão sobre como lidar com a opacidade algorítmica, so-
bretudo diante da complexidade das redes neurais envoltas em decisões automatizadas.
(KERTYSOVA, 2019, p.5, tradução livre do inglês) Paralelamente, na esteira do susten-
tado por Maja Brkan (2019, p.71, tradução livre do inglês), é essencial reconhecer que
qualquer tecnologia é em si mesma neutra, e que a democracia e outros valores públicos
são afetados pelo uso humano dessa tecnologia e seu propósito, conforme determinado
pelos humanos.
2.2. Discriminações Algorítmicas
O conceito de discriminação em sua acepção de desigualdade ilegítima pressupõe a
ocorrência de distinções arbitrárias, inaceitáveis, injustificáveis, intoleráveis (MALLET,
2010), diante das circunstâncias e padrões então vigentes. Consubstancia, pois, a ex-
teriorização do preconceito, mediante a utilização de fatores de discrímen, de critérios
injustamente desqualificantes (DELGADO, 2010, 108), em franca ofensa ao princípio da
neutralidade (art. 5º, caput, CFRB).

208
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

A discriminação pode ocorrer de modo direto, quando há violação ao princípio da


igualdade de tratamento, de forma arbitrária e desmotivada. Ainda, pode ocorrer de forma
indireta, quando não há intenção aparente de discriminar, mas as disposições, critérios, ou
práticas aparentemente neutras colocam determinadas pessoas ou grupos em situação de
desvantagem quando comparados às demais (CARLOS, 2019, p. 87)
O conceito de discriminação indireta (JAKUTIS, 2006, p. 59) associa-se, assim, ao
da teoria do impacto desproporcional ou do impacto adverso (conforme precedente do
direito norte-americano Griggs v. Duke Power), sendo a discriminação ilegítima indireta
vedada pelas Convenções 100 e 111 da OIT, que representam core obligations, conforme
Declaração de Princípios de 1998 da OIT. Quando dita disposição, critério ou prática pos-
sam ser justificadas objetivamente em atenção a uma finalidade razoável, não se configura
a discriminação indireta.
Os mecanismos de inteligência artificial têm influência crescente nas relações la-
borais, dadas as evoluções tecnológicas no bojo da Revolução Cibernética, da Indústria
4.0, ou da Quarta Revolução Industrial na gig economy (KALIL, 2019, p. 99). Consoante
trazido por Katarina Kertysova (2019, p.2, tradução livre do inglês), apesar de seus inú-
meros benefícios, os sistemas movidos a IA geram uma série de questões éticas e repre-
sentam novos riscos para os direitos humanos e políticas democráticas. Preocupações
levantadas pela comunidade de especialistas incluem a falta de justiça algorítmica (le-
vando a práticas discriminatórias, como preconceitos raciais e de gênero), personalização
de conteúdo resultando em parcial cegueira de informações (“bolha do filtro”), violação
da privacidade do usuário, manipulação potencial do usuário, ou manipulação de vídeo e
áudio sem o consentimento do indivíduo.
A discriminação algorítmica ocorre quando há contaminação do banco de dados
de inputs por determinados vieses que produzem distorções nos outputs, revelando um
resultado em desconformidade ou com efeitos negativos que ultrapassam o objetivo do
programador. Tal prática se configura quando certo conteúdo é valorado negativamente
ou excluído do output correspondente ao que o artifício entende como adequado, com
fulcro em critérios tidos por injustamente desqualificantes. (MINISTÉRIO PÚBLICO
DO TRABALHO, 2021, p. 21)
À primeira vista, a alternativa de uma “escolha às cegas” de currículos apenas de
trabalhadores tecnicamente mais qualificados se mostrou uma solução louvável. Todavia,
na prática, as fórmulas elaboradas para realizar tais seleções prévias se mostraram tão
ou mais preconceituosas, racistas (SWEENEY, 2013, p. 44, tradução livre do inglês) e
sexistas (LINDOSO, 2019, p. 116), que entrevistadores humanos em si. Na esteira do ex-
planado por Tania Sourdin (SOURDIN, 2018, p. 1129, tradução livre do inglês), algumas
formas de Inteligência Artificial que estão em uso já demonstraram que pode haver riscos
significativos no uso dessas ferramentas em termos de viés, bem como que os programa-
dores e outros tomadores de decisão podem replicar o preconceito humano ainda que sem
a intenção de fazê-lo.

209
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

No que tange à repercussão dos algoritmos nas relações laborais, Cathy O`Neil
(2016, p.17, tradução livre do inglês) descreve uma situação de classificação de pro-
fessores em Washington conforme pontuações arbitrárias que eles recebiam a partir de
cruzamentos de dados realizados por algoritmos. As estatísticas e probabilidades de um
docente ser uma má contratação, ou um professor incompetente, provinham de resultados
algorítmicos, os quais não conseguiam ser explicitados sequer pelas próprias instituições
de ensino que os adotavam. Além de fracamente ofensivas ao núcleo essencial dos direi-
tos humanos, os resultados da supracitada pesquisa com os professores em Washington
revelaram desarmonia entre as pontuações algorítmicas e as opiniões de alunos, diretores,
acerca da competência de professores avaliados negativamente. (O`NEIL, 2016, p.19,
tradução livre do inglês)

2.2.1. Vieses racistas


Pesquisas empíricas na literatura estrangeira demonstraram a presença de algorit-
mos refletindo vieses racistas, sexistas (SILVA; KENNEY, 2019, p. 37, tradução livre
do inglês), de tomadores de decisões humanos, acarretando a prática de discriminação
algorítmica nas relações de trabalho (KLEINBERG; LUDWIG; MULLAINATHAN;
SUNSTEIN, 2019, p. 164, tradução livre do inglês). A reprodução de racismo estrutural
em fórmulas algorítmicas se reflete em anúncios publicitários direcionados conforme cri-
térios de raça, cor (SWEENEY, 2013, p. 44, tradução livre do inglês) e acentua critérios
injustamente desqualificantes desde as etapas de contratação nas relações laborais. (O`-
NEIL, 2016, p. 95, tradução livre do inglês)
Nos Estados Unidos, pesquisas empíricas com mecanismos algorítmicos pré-con-
tratuais demonstraram indícios de discriminações diretas e indiretas. Consoante trazido
por Cathy O`Neil (O`NEIL, 2016, p. 95, tradução livre do inglês), levantamentos de da-
dos realizados em 2002 por pesquisadores do MIT revelaram a preferência de sistemas de
seleção de currículos por nomes “tipicamente brancos”, em comparação aos “tipicamente
negros”.
2.2.2. Vieses sexistas
Além do rechaço às práticas sociais que revelam racismo estrutural, o combate às
discriminações algorítmicas perpassa pelo rechaço da divisão sexual do trabalho (ARAÚ-
JO, 2019, p. 377), por meio da salvaguarda dos direitos das mulheres, vítimas de condutas
machistas, patriarcalistas, opressoras, que as segregam de condições justas no mercado
laboral. (TEODORO, 2020, p. 105)
No que tange especificamente à discriminação sobre mulheres e minorias, pontuam
Ricardo Vinuesa et al (2020, p. 3, tradução livre do inglês) que há outra lacuna importante
da IA no
​​ contexto do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de n. 5 sobre igualdade
de gênero: não há pesquisas suficientes para avaliar o impacto potencial de tecnologias
como algoritmos inteligentes, imagem reconhecimento, ou aprendizado reforçado, sobre
discriminação contra mulheres e minorias. Exemplificativamente, algoritmos de aprendi-

210
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

zado de máquina treinados de forma acrítica, sem acompanhamento de artigos de notícias


regulares, inadvertidamente aprenderam e reproduziram os preconceitos sociais contra
mulheres e meninas, que estão incorporadas nas linguagens atuais (VINUESA et al, 2020,
p. 3, tradução livre do inglês)
Ademais, ainda a título de exemplo, Cássio Casagrande (2020, p. 147) cita situação
ocorrida na empresa Amazon, na qual a utilização de algoritmos para o controle da pro-
dutividade dos empregados demonstrou resultados em que os trabalhadores mais “lerdos”
no desempenho de suas tarefas, segundo os softwares, seriam mulheres grávidas. A média
de cumprimento de tarefas era obtida a partir do cômputo do tempo gasto em scanners
pessoais que os empregados utilizam para remessa dos produtos de suas prateleiras e es-
teiras. As trabalhadoras grávidas, que despendiam tempo da jornada em pausas para idas
ao banheiro, pela condição peculiar da gravidez, tiveram suas demandas fisiológicas mal
interpretadas pelos algoritmos, que as classificaram como as funcionárias que, por serem
improdutivas, deveriam ser dispensadas.
Os exemplos supra corroboram a tese do grande risco genérico de sistemas de IA,
representado pela produção de um resultado que revela problemas marcados pela opaci-
dade, arbitrariedade de critérios e de conclusões, correlatos à discricionariedade, à dis-
crepância com direitos fundamentais e outros princípios jurídicos, vinculando o sistema
ao aprofundamento da desigualdade e imprevisibilidade do impacto da sua aplicação de
correlações e inferência automatizadas. (PEIXOTO, 2020a, p. 55). A utilização de meca-
nismos algorítmicos em afronta aos direitos fundamentais infringe a premissa de trans-
parência (KROST, GOLDSCHMIDT, 2021, p. 68), fiscalização de dados e prestação de
contas de ferramentas de inteligência artificial e, portanto, deve ser coibida.
2.3. Conformação de Vieses e Ações Compensatórias
Comprovadas empiricamente as possíveis mazelas da utilização de ferramentas de
inteligência artificial, pontuaram Selena Silva e Martin Kenney (2019, p. 39, tradução
livre do inglês) que o enviesamento dos algoritmos em si pode ser resolvido. Consoante
asseveram os referidos autores, os processos digitais criam um registro que pode ser exa-
minado e analisado com ferramentas de software. No mundo analógico, discriminações
étnicas ou outras eram difíceis e dispendiosas para estudar e para identificar. De outra
banda, no contexto digital, os dados capturados são frequentemente permanentes e podem
ajudar a identificar e monitorar progresso na abordagem do preconceito étnico, dentre
outros tipos de discriminação.
A utilização de vieses benéficos de algoritmos também tem sido aventada, na lógica
de discriminações positivas, ações compensatórias e propostas reparatórias. Consoante
Cass Sunstein (2018, p.1, tradução livre do inglês), algoritmos bem projetados devem ser
capazes de evitar vieses cognitivos de vários tipos. Ademais, é possível que algoritmos
sejam engendrados de modo a evitar levar em consideração a raça (ou outros fatores),
quando utilizados de forma ilegal, bem como podem ser concebidos de modo a produzir
qualquer tipo de equilíbrio racial, sexual, pretendido e, assim, revelariam compensações

211
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

entre vários valores sociais. Nessa segunda perspectiva, a formulação enviesada de algo-
ritmos se destinaria a equilibrar valores sociais concorrentes, atingindo uma nova trans-
parência sobre algumas compensações difíceis.
No mesmo sentido, favoráveis à utilização potencialmente benéfica dos algoritmos,
asseveram Jon Kleinberg, Jens Ludwig, Sendhil Mullainathan, Cass R Sunstein (2019, p.
114, tradução livre do inglês) que, quando algoritmos estão envolvidos, provar a discrimi-
nação será mais fácil, deveria sê-lo ou pode ser feito para ser. A lei proíbe a discriminação
por algoritmo, e essa proibição pode ser implementada regulando o processo pelo qual os
algoritmos são projetados. Esta implementação pode codificar a abordagem mais comum
para construir algoritmos de classificação de aprendizado de máquina na prática e adicio-
nar requisitos de manutenção de registros detalhados.
Ainda na esteira de Jon Kleinberg, Jens Ludwig, Sendhil Mullainathan, Cass R
Sunstein (2019, p. 114, tradução livre do inglês), tal abordagem forneceria transparência
valiosa sobre as decisões e escolhas feitas na construção de algoritmos, bem como acerca
de compensações entre os valores relevantes. Os desafios fulcrais para a realização desse
mister remetem, em suma, ao fato de que, em um sentido crucial, algoritmos não são
decifráveis: não é possível determinar o que um algoritmo irá fazer lendo o código sub-
jacente. Tal inviabilidade é mais do que uma limitação cognitiva; é uma impossibilidade
matemática. Para saber o que um algoritmo fará, deve-se executar a tarefa em mãos, co-
letando uma lacuna observada, tal como diferenças nas taxas de contratação por gênero,
para decidir se a diferença deve ser atribuída à discriminação conforme a lei a define.
Tais atribuições não demandam uma leitura do código. No lugar disso, pode haver um
exame dos dados fornecidos ao algoritmo, bem como sondagem de suas saídas, o que é
eminentemente viável. A opacidade do algoritmo não impede os estudiosos de escrutina-
rem sua construção ou experimentarem com seu comportamento, duas atividades que são
impossíveis com humanos.
Dentre os possíveis benefícios de uma utilização isonômica de ferramentas de inte-
ligência artificial, é possível citar a economia do tempo, a redução da discricionariedade
em relação à realização de escolhas, a construção de estatísticas inteligentes, assim como
a racionalização do processo de tomada de decisão. (GOMES; NUNES; ROCHA; PEI-
XOTO, p. 6, 2021) Trata-se de premissa amplamente aplicável à utilização de algoritmos
nas relações laborais.
Nessa senda, Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser (2019, p. 12, tra-
dução livre do inglês), asseveram que o feminismo que se deve ter em mente reconhece
que precisa responder a uma crise de grandes proporções. Há padrões de vida em queda,
desastres ecológicos iminentes; guerras violentas, expropriação intensificada; migrações
em massa encontraram arame farpado; racismo e xenofobia foram encorajados; e houve
a reversão de direitos conquistados a duras penas, tanto sociais quanto políticos. Em tal
cenário, o acesso equânime de trabalhadores ao mercado laboral representa uma primazia
não apenas do princípio da neutralidade (art. 5º, caput, CRFB), mas da consagração do
próprio princípio matriz da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CFRB).

212
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

A transparência e os controles de ferramentas algorítmicas devem ser compreendi-


dos como formas essenciais de accountability (prestação de contas), acurácia, do sistema,
dispondo a utilização de algoritmos a vantagem de não ser obscurecida pela ambiguida-
de das tomadas de decisões humanas. (KLEINBERG; LUDWIG; MULLAINATHAN;
SUNSTEIN, 2019, p. 116, tradução livre do inglês). Nessa perspectiva, a conformação
de vieses algorítmicos nas relações laborais consubstanciaria um acesso a direitos fun-
damentais de forma equânime, efetiva, plural, concretizando uma dimensão de acesso à
justiça pela via dos direitos trabalhistas (ORSINI, 2018, p.5), mediante um combate às
desigualdades sociais.
Considerações Finais
Na presente pesquisa, as práticas discriminatórias algorítmicas, no bojo da Indústria
4.0, foram analisadas a partir de seus impactos nas relações laborais, em fases contratuais,
de manutenção e ascensão profissionais. Constatou-se, empiricamente, na literatura es-
trangeira, que os enviesamentos algorítmicos são responsáveis pela perpetuação de ex-
clusões de grupos historicamente marginalizados, tais como mulheres e pessoas negras,
na seara laboral.
As discriminações algorítmicas apresentam razões diversas. Por um lado, podem
decorrer de prévias configurações preconceituosas elaboradas por programadores de
acordo com as ordens emanadas de centros decisórios das empresas de tecnologia e sof-
tware. Por outro lado, também é possível que advenham de dataset e bancos de dados não
representativos da pluralidade étnica, racial, de gênero, que permeiam a sociedade.
É essencial ratificar que os algoritmos, em si, são isentos de valores, mas podem vir a
emanar as arbitrariedades, discricionariedades, dos técnicos que conduzem o aprendizado
de máquina. A justiça algorítmica, portanto, é plenamente factível, em um contexto de
controle de dados, acurácia do sistema, auditorias frequentes e permanentes de dataset,
que viabilizem a utilização de instrumentos algorítmicos de modo democrático, transpa-
rente, inteligível e, inclusive, compensatório e contramajoritário.
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218
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

A UTILIZAÇÃO DE DADOS COMO MEIO DE SUBJUGAÇÃO DO


TRABALHADOR E CONSUMIDOR: OS NOVOS ESCRAVOS
DA ERA DIGITAL

Jéssica Santos Pereira1


Thaís Castro de Menezes2
Regiane Pereira Silva da Cunha3

1. Introdução
O presente artigo visa, em um primeiro momento, apontar como o neoliberalismo
por meio das novas Tecnologias de Comunicação e Informação – TCI está manipulando e
direcionando ações dos indivíduos no âmbito consumerista e trabalhista.
Para isso, será apresentado o conceito de neoliberalismo e como ele manipula o
subconsciente dos indivíduos enquanto consumidores e trabalhadores, fazendo com que
se viva de acordo com a lógica do mercado, trabalhando-se para consumir conforme os
ditames impostos pelo capital.
Os dados dos indivíduos estão sendo manuseados e utilizados de maneira indiscri-
minada para capturar as preferências do indivíduo com o intuito de manipular e escra-
vizar os sujeitos. No ambiente laboral, a tecnologia possui a função de proporcionar ao
empregador uma maior vigilância de seus empregados e, no ambiente do consumo, as
tecnologias são utilizadas para implantar desejos nos sujeitos.
Nesse sentido, torna-se essencial a seguinte reflexão: diante do atual cenário global
de manipulação dos subconscientes dos sujeitos por meio das novas tecnologias, é possí-
vel ser livre? É possível combater as imposições do neoliberalismo na vida do indivíduo
como consumidor e trabalhador?
Diante de tais premissas, por meio de uma pesquisa bibliográfica, o artigo irá fo-
mentar o debate sobre a relação entre tecnologia, trabalho e consumo, utilizando-se do
método de abordagem indutivo e a pesquisa dogmático-jurídica, por meio da consulta de
obras, artigos e trabalhos acadêmicos.

1
Mestranda em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – linha de pesquisa
Trabalho, Democracia e Efetividade. Graduada em Direito pela PUC-MINAS. Advogada.
2
Mestranda em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – linha de pesquisa
Trabalho, Democracia e Efetividade. Especialista em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais. Graduada em Direito pela PUC-MINAS. Advogada.
3
Mestranda em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – linha de pesquisa
Trabalho, Democracia e Efetividade. Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Cató-
lica de Minas Gerais. Graduada em Direito pela PUC-MINAS. Advogada. Bolsista FAPEMIG - Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais.

219
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

2. O Neoliberalismo e a Utilização da Tecnologia como Manipulação do Subconsciente


dos Sujeitos
A doutrina neoliberal foi cunhada no século XX “para lidar com os impasses do ca-
pitalismo. [...] ela é resultado das crises reais que a ordem capitalista enfrentava.” (FRAN-
CO et al. 2021, p. 47). Neoliberalismo é uma racionalidade econômica, política, social
e cultural que traduz uma das formas de ser do capitalismo. Para os para os professores
Cleber Lucio Almeida e Wânia Guimarães Almeida (2020), o neoliberalismo é forma de
fazer o capitalismo funcionar, sendo um “processo de produção de subjetividades, isto é,
de modos de ser, sentir, compreender e agir.” (ALMEIDA, ALMEIDA, 2020, p. 93).
Nesse sentido, Bourdieu (2020, online) preceitua que o neoliberalismo impõe às
empresas a redução de custos a qualquer preço para aferirem-se lucros cada vez maiores
e, para isso, utiliza-se de políticas de redução do custo de mão de obra e impõe a flexibi-
lização do mercado de trabalho.
A política de lucrar a qualquer custo e a curto prazo, emanada do neoliberalismo,
obriga as empresas a se adaptarem às suas exigências, sob pena de perderem seus inves-
timentos e apoio econômico.
[...] As próprias empresas, colocadas sob tal ameaça permanente, devem se
ajustar de maneira cada vez mais rápida às exigências dos mercados; isso sob a
pena, como se costuma dizer, de “perder a confiança dos mercados”, e, de uma
vez só, o apoio dos acionistas que, preocupados com obter uma rentabilidade
de curto prazo, são cada vez mais capazes de impor sua vontade aos managers,
de lhes fixar normas, por meio de diretrizes financeiras, e de orientar suas
políticas em matéria de contratação, de emprego e de salário. (BOURDIEU,
2020, online)

Para convencer o trabalhador a entrar no jogo criado pelo neoliberalismo, as empre-


sas utilizam-se de técnicas de manipulação para fazer com que o indivíduo produza mais
sem criar resistências à lógica do mercado.
Uma das técnicas acima mencionadas é o fortalecimento da política de gestão de
si, engendrando no trabalhador a ideia de que ele é responsável pelo seu sucesso e que
sua prosperidade depende apenas do quanto ele está disposto a trabalhar e se esforçar. O
neoliberalismo não permite que os indivíduos sejam conscientes do controle que é exer-
cido sobre a vida, e para isso é gerada uma falsa sensação de autonomia e de liberdade,
quando na verdade, os indivíduos estão cada vez mais submetidos ao poder do capital e
ao espetáculo que eles mesmos criaram.
Verifica-se, portanto, que o neoliberalismo não impõe seu modo de ser apenas às
empresas, mas também realiza “intervenções diretas na configuração dos conflitos sociais
e na estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que um modelo econômico, o neolibera-
lismo era uma engenharia social” (SAFATLE, 2021, p. 25)
Nessa senda, a racionalidade neoliberal busca “moldar o modo de ser, sentir, com-
preender e agir dos seres humanos por meio da produção, manipulação e mobilização de

220
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

afetos, assim como através da neutralização de afetos contrários ao interesse do capital


[...]” (ALMEIDA; ALMEIDA, 2020, p. 44)
As relações sociais influenciam a formação da subjetividade do ser humano, desta
forma, para entendermos o indivíduo, é necessário compreendermos o mundo em que se
vive, uma vez que ao se relacionar o homem constrói e modifica o mundo, possibilitando
elementos suficientes para a sua constituição de forma completa. (AGUIAR, 2015, p.
121)
Vários são os fatores que participam da constituição do ser humano, sendo o tra-
balho, um dos protagonistas dessa edição, pois, além da garantir meios de subsistência
ao homem, constitui importante meio de socialização, reconhecimento e inserção social.
(AZEVEDO; SILVA, 2015, p.119)
Por ocupar um papel de destaque no processo de construção do ser humano, o
trabalho é sempre afetado por ideologias que buscam explicar e promover a organização
social.
Assim, pode-se afirmar que em cada período da história, destacou-se uma ideologia,
que buscou influenciar a forma como o homem iria se relacionar na sociedade, refletin-
do os interesses da classe dominante na estrutura de organização social que influenciam
diretamente a formação do próprio ser humano, na sua forma de agir e pensar. (CHAUÍ,
1980, p. 93-94)
Ao longo da história, várias foram as proposições de construções sociais em torno
do trabalho, contudo, foi no capitalismo que houve uma decisiva construção ideológica,
fazendo com que o trabalho deixasse de ser um fim em si mesmo, para se tornar um meio
para alcançar o lucro, transformando-se em mercadoria. E cada mercadoria pretende se
impor como se fosse única.
Assim, a partir da revolução industrial houve uma mudança radical nos meios de
produção, bem como na forma de alocação dos trabalhadores que passaram a ocupar
grandes plantas fabris ao passo que os meios de produção foram reservados a uma peque-
na classe de empresários e a “utilização da mão de obra pelo mercado produtivo passou a
ser regida por uma racionalidade estritamente econômica” (RIBEIRO, 2021, p. 46)
No século XX o modelo produtivo fordista-taylorista fazia com que os gestos dos
operários das fábricas, induzidos pelas máquinas, soavam automaticamente, assim como
as “batidas do coração”, e todos aceitavam de forma natural as ordens advindas de seus
superiores hierárquicos, assim como as frustrações da realização do trabalho (VIANA,
2019, p. 2)
Há que se destacar que, apesar dos avanços e conquistas desse período, os trabalha-
dores permaneciam submetidos a condições de alienação da sua subjetividade, uma vez
que, nesse período permanecia o objetivo de educar e formar o ser humano em uma base
homogênea, a fim de que ele atuasse, a todo momento, de forma a viabilizar o sistema
de atitudes automáticas, disciplinada, com hierarquia, produção e consumo de massa.
(GONÇALVES, 2015, p. 51)

221
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Cindiu-se a ligação existente entre a parte intelectual e a manual da execução de


serviços, transformando o trabalhador em um prolongamento da máquina, em busca de
maior lucro, em menor tempo. “Ao mesmo tempo, aquele indivíduo a quem se pregou a
possibilidade da liberdade precisa ser controlado e treinado, para estar a serviço do capi-
tal.” (GONÇALVES, 2015, p.51)
Contudo, na segunda metade do século XX, após a crise econômica vivenciada pe-
los países capitalistas ocidentais significativas mudanças ocorreram no contexto político,
econômico e social, possibilitando o retorno das teorias ultraliberais silenciadas ainda na
década de 1930 com a realização do Welfare State e a redução do poder de consumo da
classe operária.
Desta forma, o capitalismo viu-se pressionado a retomar as possibilidades de expan-
são econômica e recuperação dos lucros, o que culminou em uma severa reestruturação
produtiva baseada na produção flexível, enxuta e inovadora, conhecida como toyotismo.
Desta forma, diante de tantas transformações no cenário político, econômico e so-
cial, já era de se esperar os impactos significativos no trabalho no decorrer dos próximos
anos, com a inserção de novas máquinas que exigiam especialização no seu manuseio,
reestruturação empresarial através da redução de cargos e funções, inserção da terceiriza-
ção do trabalho, novo sistema de gestão de mão de obra, o toyotismo, que visa em síntese
elevar a produtividade do trabalho, a multifuncionalidade do trabalhador e a adaptabili-
dade das empresas em contextos de alta competitividade. (BOLTANSKI, CHIAPELLO,
2009, p.21)
Ato seguinte, vislumbra-se que o Século XXI trouxe consigo múltiplas mudanças
na organização e na natureza das relações de trabalho ligadas ao uso de novas tecnologias
por meio da internet, que proporcionam diferentes formas de produção de trabalho, com
a utilização de plataformas digitais e aplicativos.
As tecnologias a cada dia se engendram mais no trabalho humano e o capital se
utiliza dessas novas modalidades laborais para exploração de trabalhadores. Um exemplo
apresentando por Antunes (2020, p. 36) é o zero hour contract, modalidade de contratos
que não têm determinação de horas, mas exige-se que os trabalhadores fiquem a disposi-
ção esperando uma chamada. “Quando a recebem, ganham estritamente pelo que fizeram,
nada recebendo pelo tempo que ficam à disposição da nova ‘dádiva’.” A referida forma de
contrato engloba vários labores, como médicos, enfermeiros, trabalhadores do cuidado,
motoristas, eletricistas, advogados, profissionais dos serviços de limpeza, de consertos
domésticos entre outras.
Assim, a tecnologia passou a ser utilizada pelo neoliberalismo como meio de ma-
nipulação e subjugação do indivíduo como trabalhador e como consumidor. Esse é o
poder disciplinar, cuja função explicada por Han (2018), é a afirmação completa da vida,
mas que administra a população de forma meticulosa, pois ela é a massa de produção e
consumo.

222
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

As Tecnologias de Informação e Comunicação - TIC se engendraram na vida do


indivíduo, fazendo com que a disseminação de informações e dados se acelere exponen-
cialmente e esse compartilhamento de informações faz com que as indústrias e as empre-
sas consigam conhecer mais os indivíduos e consequentemente manipulá-los com uma
maior facilidade.
Com o implacável crescimento dos e-escores, somos colocados em lotes e bal-
des de acordo com fórmulas secretas, algumas delas alimentadas por dossiês
cheios de erros. Somos vistos não como indivíduos, mas como membros de
tribos, e ficamos atados a essa designação. (O’NEIL, 2020, p. 249)

Os algoritmos são utilizados para capturar as preferências do indivíduo e transfor-


má-las em dados com o intuito de fomentar o consumo e tornar o indivíduo escravo do
materialismo. “Farão conosco o que quiserem, e mal saberemos o que está acontecendo.”
(O’NEIL, 2020, p. 269).
No ambiente laboral a tecnologia possui a função de proporcionar ao empregador
uma maior vigilância de seus funcionários e, no ambiente do consumo, as tecnologias
são utilizadas para implantar desejos nos sujeitos. As relações afetivas são baseadas em
créditos. É a mercantilização das relações para se tirar proveito econômico em todas as
situações. “O capitalismo pretende instaurar um mercado de almas e corações através da
economia” (ALMEIDA; ALMEIDA, 2019 p. 7).
Diante dos apontamentos acima realizados, verifica-se que o neoliberalismo atua
no comportamento dos indivíduos, na regulação de ideias, nas identificações e visões de
mundo. Ele cria desejos nas pessoas, cria valores e modos de vida e a tecnologia passou
a ser utilizada como meio de se aumentar cada vez mais essa manipulação. “O sujeito
submisso não é nunca consciente de sua submissão. O contexto de dominação permanece
inacessível a ele. É assim que ele se sente em liberdade”. (HAN, 2018, p. 26)

3. Marionetes do Consumo
Para ser atraente para o mercado de uma forma geral, faz-se necessário que o ser hu-
mano se coloque em uma posição em que ele se torne vendável ao mercado, ou seja, é ne-
cessário que ele se qualifique constantemente, tenha as habilidades individuais esperadas
pelas empresas para capturá-las e utilizá-las a seu benefício e esteja sempre pronto para o
ambiente altamente competitivo. Assim, o próprio trabalhador passa a ser visto como um
objeto de consumo pelas empresas e pelo próprio capital e “[...] fica desde logo claro que
o trabalhador, durante toda a sua existência, nada mais é que força de trabalho, que todo
o seu tempo disponível é, por natureza e por lei, tempo de trabalho, a ser empregado no
próprio aumento do capital.” (MARX, 2016, p. 306).
Bauman preceitua que na sociedade dos consumidores “ninguém pode se tornar
sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém poderá manter segura a sua subjetivi-
dade se reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas
e exigidas de uma mercadoria vendável” (BAUMAN, 2008, p. 20)

223
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Diante disso, para garantir a realização de seus desígnios, o neoliberalismo tem uti-
lizado da matemática como instrumento para controlar não só as máquinas, mas também
os seres humanos e tudo o que eles produzem, fazem e pensam. Desta forma, a matemá-
tica poderia ser um instrumento de evitar novas catástrofes, mas em vez disso passou a
ser utilizada como meio de produção de estatísticas para estudar os nossos desejos, mo-
vimentos e poder aquisitivo.
Assim, os modelos não são construídos apenas de dados, mas da escolha sobre quais
informações os dados deveriam focar a sua atenção. E é exatamente esta a manobra uti-
lizada pelo neoliberalismo ao manipular dados, informações, afetos e pensamentos para
atuar sobre a subjetividade do trabalhador, implantando uma nova lógica de mercado.
Isso quer dizer que o neoliberalismo se utiliza de todos os dados e informações cap-
tados para disseminar propagandas a um alvo específico. Desta forma, os dados são capta-
dos e instantaneamente transformados em ofertas de consumo. O neoliberalismo vale-se
de todas as formas particulares de informação ou propaganda, publicidade ou consumo
direto do entretenimento, e materializa o modelo vigente na vida socialmente dominante.
Buyng-Chul Han pondera que o imperativo neoliberal, que se vale da parafernália
tecnológica, traduz-se na otimização pessoal, que serve a um funcionamento perfeito do
sistema. Esse imperativo descola-se de compromissos com o bem-estar ou com a pessoa
humana, que é tratada como mera mercadoria, haja vista que “tudo é comparável, mensu-
rável e está sujeito à lógica do mercado”. Não há “nenhuma preocupação com a boa vida
que impulsiona a otimização pessoal.” (HAN, 2018, p. 45).
Em uma sociedade permeada por valores consumistas, o trabalho assalariado pas-
sou a ser visto como essencial para propiciar que os indivíduos tenham poder de compra
e de disseminação dos valores perpetrados pelo capital, ou seja, através do trabalho o
indivíduo garante os meios necessários para participar da logica consumista e materialista
e alimenta o ciclo trabalho-consumo-trabalho proposto pelo sistema.
Ocorre que, a partir de toda essa dinâmica, o indivíduo passa a ser visto e valori-
zado pela sociedade a partir da sua capacidade de compra, uma vez que numa sociedade
na qual as características da pessoa como consumidora representam as medidas para o
seu nível de aprovação ou reprovação social, os “consumidores falhos” estão fadados a
exclusão; e para escapar dessa espécie de invalidez social, resta, pois, adotar e seguir os
preceitos da cultura consumista (RIBEIRO, 2021, p. 108)
Nesse sentido, Baudrillard ensina que há um “processo de classificação e de dife-
renciação social” (BAUDRILLARD, 2011, p.66), na medida em que o indivíduo passa a
ser avaliado de acordo com a sua possibilidade e padrão de consumo e é “por meio dele
que se alcança visibilidade social; é também por meio dele que se é socialmente julgado
e classificado” (RIBEIRO, 2021, p. 112). O consumidor real torna-se um consumidor de
ilusões. A mercadoria é esta ilusão efetivamente real, e o espetáculo a sua manifestação
geral. (DEBORD, 2003, p. 35-36)

224
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Diante do exposto, há que se considerar a manipulação do subconsciente do indi-


víduo perpetrada pelo capitalismo em cada momento da sua evolução de acordo com os
desígnios que pretende disseminar naquele estágio, sendo importante destacar que nesse
momento histórico, o neoliberalismo busca através de ideologias utilitaristas e valores
instaurar na subjetividade do indivíduo de uma forma sutil, como se fossem seus os pen-
samentos e desejos, valores individualistas e consumistas com o objetivo de perpetuar
a dinâmica e os lucros capitalistas. A manipulação das ações do sujeito não é realizada
apenas no consumo, mas também no ambiente laboral dos sujeitos. Assim, no próximo
tópico discorrer-se-á acerca das técnicas empresariais de subjugação dos indivíduos a
novos escravos da era digital.
4. A Captura da Subjetividade no Trabalho – Escravos da Era Digital
Para Ana Flávia Paulinelli Rodrigues Nunes, a subjetividade é “a síntese construída
pelo ser humano a partir da totalidade das experiências por ele vividas, a qual é revelada
por seu modo de ser, pensar, sentir e agir, de acordo com a singularidade de cada um.
(NUNES, 2017, p. 21). Assim, a construção da subjetividade é um processo dialético, em
que o mundo exterior age sobre o ser humano, mas esse também deixa sua marca, por
meio de suas ações e expressões.
Supiot explica que o que há na sociedade atual é uma verdadeira inversão de valo-
res. “Em lugar de indexar a economia às necessidades dos homens e a finança às neces-
sidades da economia, indexa-se a economia as necessidades da finança, e tratam-se os
homens como “capital humano” a serviço da economia”. (SUPIOT, 2014, p.23)
O trabalho é que torna possível a aquisição, pelo ser humano, do desenvolvimento
de seu raciocínio, desta forma, pode-se dizer que o trabalho exerce um papel central na
formação da subjetividade do ser humano. (CHAUÍ, 1980, p. 93-94)
Porém, importante ressaltar que, ao mesmo tempo que o trabalho pode ser um meio
de realização e desenvolvimento do ser humano, pode também ser uma forma de domi-
nação, adoecimento e negação do sujeito que o executa. (CLOT, 2006, p. 69) E isso, de-
penderá das relações sociais de produção de cada momento histórico, ou seja, o trabalho
possui uma faceta híbrida.
Através de uma ideologia utilitarista, instaurada pelo neoliberalismo, no âmbito
coletivo, e de ideias de liberdade e autorrealização, na esfera individual, foi possível a
instauração de novos princípios que maquiaram a ideia de autonomia do trabalhador na
execução de seus serviços, gerando uma superexploração do ser humano através de um
consentimento velado. (DEJOURS, 2007, p. 41)
Forjaram-se novas utopias e novas formas de organização do trabalho pautada na
racionalidade econômica, de forma que o futuro da empresa passou a ser mais importante
para o bem da nação, do que as próprias condições dos trabalhadores.
Nessa nova ideologia, que adota os princípios filosóficos do Toyotismo e Uberismo,
o trabalhador tem que ser flexível, disponível, engajado e polivalente. Em outras palavras,

225
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

quer-se dizer que o trabalhador precisa ter conhecimento, ser capaz de executar várias
fases do processo produtivo e aumentar a produtividade, além de sanar rapidamente even-
tuais defeitos, erros e problemas no decorrer da produção. (ALVES, 2011, p. 96)
O objetivo de se buscar no trabalho a construção de identidade, autenticidade, re-
conhecimento, socialização e visibilidade passou a existir apenas em segundo plano, uma
vez que “a legitimação da racionalização econômica do trabalho naturaliza o ideal de se
trabalhar tão somente pelo dinheiro, em velocidade, quantidade e modo determinados
pelas ambições consumeristas do trabalhador, sempre variáveis e tendencialmente cres-
centes” (RIBEIRO, 2021, p. 120)
Nesse sentido, todo o arcabouço relacionado ao trabalho se tornou economicamente
mensurável e pautado na capacidade do indivíduo poder alimentar o seu poder de compra,
ou seja, o trabalho passa a ser visto primordialmente sob o prisma da quantificação de
quanto aquele trabalho pode oferecer para que seja possível manter-se nas prateleiras do
consumismo.
Segundo Ribeiro, os indivíduos encontram-se imersos em uma sociedade
na qual desejos e caprichos são postos como necessidade e na qual o trabalho
assalariado, via de regra, é reduzido tão somente a um meio de realização de
consumo (...) quem há um tempo trabalhava pelo “pão”, tende, hoje, a traba-
lhar, também, e sobretudo, pelo “smartphone de última geração. (RIBEIRO,
2021, p. 116)

Nessa senda, estrategicamente, o capitalismo respondeu as críticas dos trabalhado-


res do modo de produção fordista-taylorista em relação a ausência de autonomia e apre-
sentou um novo cenário sem hierarquias aparentes, com a presença de um novo trabalha-
dor polivalente. Ocorre que o intuito do capitalismo era exatamente transpor a realidade
dos trabalhadores-consumidores da era fordista-taylorista que trabalhavam apenas para
conseguir o suficiente, para uma nova sociedade pautada no individualismo, materialismo
e consumismo.
Na novas realidade da sociedade do consumo, os trabalhadores, a grosso modo, se
sujeitam a quaisquer metas, condições de trabalho, jornadas extenuantes e até mesmo ter
mais de um emprego, desde que receba uma remuneração elevada a ponto de o manter
apto a perpetuar na escala de consumo desejável.
O neoliberalismo mercantiliza toda a vida, pois todo pensamento passa a ser um
pensamento econômico. Quando o salário é transformado em capital, o ser humano se
vê como o próprio capital, e aí surge a ideia do homem como empresário de si mesmo,
é o sujeito administrando seu próprio capital. “O trabalho torna-se assim um assunto
estritamente pessoal, uma atividade empresarial, na qual o trabalhador se transforma, pa-
radoxalmente, em empresário: empresário de si mesmo.” (CRESPO, SERRANO, 2007,
p. 248)
Byung-Chul Han (2018) explica que no neoliberalismo, cada trabalhador explora
a si mesmo como própria empresa, não havendo mais que se falar em uma sociedade de

226
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

classes, pois a autoexploração acomete todas as classes de forma indiscriminada. “Quem


fracassa na sociedade neoliberal do desempenho, em vez de questionar a sociedade ou o
sistema, considera a si mesmo como responsável e se envergonha por isso.” (HAN, 2018,
p. 16)
Esse processo malicioso de reconstrução da ideologia capitalista é realizado por
meio da manipulação social que utiliza a roupagem de um resgate da subjetividade, de
aumento de autonomia, autoafirmação, sucesso, disseminação de valores, expectativas,
fetiches e utopias de mercado. Na verdade, camufla-se a real intenção do discurso, qual
seja, a redução do ser humano que trabalha a mera força de trabalho para consecução dos
objetivos do capital:
Especialista dele mesmo, empregado dele mesmo, inventor dele mesmo, em-
presário dele mesmo: a racionalidade neoliberal pressiona o eu a agir sobre ele
mesmo no sentido de seu próprio reforço para seguir na competição. Todas as
atividades devem se comparar a uma produção, a um investimento, a um cálcu-
lo de custo. A economia se torna uma disciplina pessoal. (DARDOT; LAVAL,
2010, P. 412).

Contudo, nesse novo cenário, os próprios trabalhadores tornam-se seus algozes,


uma vez que exigem cada vez mais de si mesmos, bem como passam a vigiar e a controlar
os seus colegas de trabalho, de forma em que se vive em uma sociedade de controle.
Essa submissão do jeito ao capital, a ideia do empreendedor de si, é chamada pela
professora Maria Cecília Máximo Teodoro (2017, online) de Síndrome de Patrão. Essa
síndrome faz com que o empregado não se reconheça como empregado, faz com que ele
não tenha um sentimento de pertencimento à sua categoria, mas se reconhece muito mais
igual ao seu superior (empregador) do que com os seus iguais (colegas empregados).
Teodoro (2017, online) ainda comenta que a síndrome de patrão retira a subjetivi-
dade do trabalhador, pois a ele é vendida a ideia de que vai trabalhar com o que se ama
e passa a se apaixonar pela ideia neoliberal de que precisa vestir a camisa da empresa,
passando a ter não só sua jornada de trabalho controlada, mas também sua vida e seus
sentimentos.
Fumagalli (2010) denomina essa fase do capitalismo como “cognitivo”, uma vez
que se apropria do conhecimento, do know-how, experiência do trabalhador como meio
de propiciar o desenvolvimento do capital. “Se trata de uma questão de ordenar biopoliti-
camente a vida dos seres humanos através de novos dispositivos coercitivos e de controle
que pressupõem o passo da subsunção total da vida, isto é, do bios” (FUMAGALLI,
2010, p. 27, tradução)
Antunes (2020, p.35) destaca que o “capitalismo atual apresenta um processo mul-
tiforme, no qual informalidade, precarização, materialidade e imaterialidade se tornam
mecanismos vitais, tanto para a preservação quanto para ampliação da lei do valor.”
Assim, o capital por meio de suas imposições, incentiva cada dia mais a interação entre
trabalho vivo e trabalho morto (trabalhadores e tecnologia) na busca do aumento de

227
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

produtividade, “intensificando os mecanismos de extração do sobretrabalho, com expan-


são do trabalho morto corporificado no maquinário tecnológico-científico-informacional.
Nesse movimento, todos os espaços possíveis se tornam potencialmente geradores de
mais-valor.”
Tal cenário provoca a perda de valores humanos, em verdadeiro prejuízo da pessoa
como ser humano, impedindo o exercício de uma subjetividade autêntica e autodetermi-
nada. Ademais, o indivíduo passa a perder o controle de esferas sensíveis da vida humana
em troca do gozo momentâneo do materialismo exacerbado proposto pelo sistema.
Atrelada as ideias acima referenciadas, destaca-se outro jargão da vez, como sendo
a era do empreendedorismo, tornar-se patrão de si mesmo, ser livre e produtivo, praticar
o anywhere office, ser responsável pelo seu sucesso, sua jornada de trabalho e resultados.
É como os trabalhadores tivessem um script a ser seguido. (ALVES, 2011, p. 104)
Neste contexto, segundo Alves (2010) a incerteza, a instabilidade das novas moda-
lidades de contratação salarial e a vigência da remuneração flexível alteram a troca meta-
bólica entre os homens, entre o homem e si mesmo, desaguando assim, na precarização
do trabalho e na formação da tríplice crise da subjetividade humana, qual seja, a crise da
vida pessoal, da sociabilidade e por fim, a crise de auto referência pessoal.
No passado, as empresas buscavam manter trabalhadores que apenas reproduziam
movimentos, sem se expressar ou alterar processos de produção, ao passo que, atualmen-
te, as empresas se interessam pelas habilidades individuais dos empregados, como por
exemplo, os seus valores, a sua forma de comunicar, comprometimento, cultura, extrain-
do dos trabalhadores não apenas a técnica mínima exigida para preenchimento do cargo
ofertado, mas também, a sua disposição intelectual afetiva.
Desta forma, estamos diante de uma alteração na forma de se atrair, manter e ma-
nipular a subjetividade de trabalhadores. Isso quer dizer que, nas palavras de Teodoro “o
trabalhador de hoje passa a retroalimentar o sistema capitalista em três importantes mo-
mentos: no início, com a sua produção; no momento intermediário, com a oferta de seus
dados; e na ponta, ao consumir” (TEODORO, 2021, p. 337)
Ocorre que, não se pode esquecer que antes mesmo de ser considerado trabalhador,
o indivíduo deve ser visto como pessoa, como cidadão, detentor de direitos e sobretudo,
proprietário da sua subjetividade. Assim como é imperioso lutar pela melhoria de direitos
trabalhistas, faz-se necessário lutar pela manutenção da autenticidade da subjetividade
dos trabalhadores, sendo essa intrínseca àquela, pois não haveria manutenção da disposi-
ção afetiva dos trabalhadores sem direitos trabalhistas assegurados.
Pontua Supiot que “é necessário voltar aos dados elementares se quisermos escapar
às miragens da quantificação” (SUPIOT, 2010, p.102), permitindo-se que haja um resgate
da autenticidade da subjetividade, e a libertação dos consumidores-trabalhadores escra-
vos da era digital.

228
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Considerações Finais
O neoliberalismo ganhou força, agindo como um modo de ser do capitalismo e
imponto suas regras na sociedade, que se espalha na economia, na política, na vida do
indivíduo, tanto externamente quanto internamente em sua psique, pois impõe modos de
agir e de ser ao ser humano.
No que concerne ao âmbito do consumo, o neoliberalismo age como manipulador
e criador de vontades e direcionador de consumo. Já no mundo do trabalho, o neolibera-
lismo promove a redução das garantias de emprego, impondo a contratação de empregos
temporários, reduzindo salários, incentivando a informalidade, convencendo o trabalha-
dor que ele é responsável por si e pelo seu sucesso, transformando-o em o empregado de
si, tirando as responsabilidades trabalhistas das empresas e transferindo-as para os pejo-
tas, sejam formais ou informais.
Nesse sentido, vive-se na era da escravidão digital, em que quem possui o poder
são as empresas que manipulam os dados dos indivíduos e assim conseguem direcionar as
escolhas do consumidor e ainda tornar o trabalhador mais dócil as imposições do capital.
Entende-se que é possível combater as imposições do neoliberalismo por meio da
criação de políticas de proteção de dados e de conscientização dos consumidores.
É imperioso lutar pela melhoria de direitos trabalhistas, pela manutenção da
autenticidade da subjetividade dos trabalhadores, pelo fomento do trabalho digno e de
qualidade, que proporcione aos indivíduos uma qualidade de vida.
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232
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

RELAÇÃO DE TRABALHO E CONSUMO NA PANDEMIA:


os novos hábitos e padrões de comportamento provocados pelo coronavírus

Mickael Ferreira Alves1

Introdução
Em todo o planeta, a pandemia da Covid-19 gerou restrições ao deslocamento de
consumidores, trabalhadores e de bens de consumo, impactando a logística dos negócios,
atividades diárias e as interações pessoais.
Como consequência, mudanças de hábitos e padrões de comportamento que vinham
se desenhando ou mudando lentamente tiveram uma forte aceleração. A digitalização dos
negócios e a intensificação do uso de canais digitais de interação com os consumidores
são exemplos de tendências que já se manifestavam, mas apresentaram uma forte acelera-
ção em questão de meses. E recentemente surgiram modernas relações de trabalho, como
uma espécie de novo autônomo no fundo de quintal, as novas salas de aulas virtuais, bem
como as casas e lares pessoais que se transformaram em novos ambientes de trabalho, tor-
nando assim um desafio a ser superado pelas empresas hoje em relação as novas formas
de trabalho que se tornaram mais flexíveis e inclusivas (EY, 2020).
Frente as modificações, alterações e o novo contexto social, realçou-se a neces-
sidade da pesquisa, na qual buscou descrever como a pandemia do coronavírus alterou
hábitos e padrões de comportamento nas relações de trabalho e consumo, tendo como
objetivo geral explicar como a pandemia da Covid-19 alterou hábitos e padrões de com-
portamento nas relações de trabalho e de consumo. E como objetivos específicos, tentou
descrever as alterações ocorridas nos comportamentos e relações de trabalho e consumo,
bem como novas ferramentas usadas como estratégia para continuação do trabalho e do
consumo humano.
Diante da inexistência das medidas preventivas específicas para a COVID-19, a
OMS recomendou aos governos a adoção de intervenções as quais incluem medidas
preventivas, de alcance individual ambiental e comunitário. Utilizando da restrição ou
proibição ao funcionamento de escolas e universidades, locais de convívio comunitário,
transporte público, entre outros espaços, destacando-se a restrição social.
Diversas medidas foram adotadas, principalmente no Brasil pelos estados e municí-
pios, como o fechamento de escolas e comércios não essenciais. Os Trabalhadores foram
orientados a desenvolver suas atividades em casa, alguns municípios e estados encerra-
ram-se em seus limites e divisas. A maior parte das autoridades públicas locais chegaram
a decretar bloqueio total (lockdown). De forma que aqueles que não cumprissem, seriam

1
Advogado. Mestre em Gestão Empresarial. Especialista em Direito Processual Civil. Especialista em
Direito Tributário. Docente Universitário nos cursos de Direito do Grupo Kroton.

233
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

punidos, valendo para estabelecimentos e indivíduos que não se adequassem às norma-


tivas.
A restrição social foi a medida mais difundida e efetiva pelas autoridades, para as-
sim evitar a disseminação da doença. Com isso, a repercussão clínica e comportamental
dessa obrigação implicou mudanças no estilo de vida, trabalho, afetando a saúde mental
dos cidadãos. Implicando na restrição social, nas atividades diárias, mudanças de hábitos,
alto nível de consumo, compras, principalmente no que diz ao modelo de trabalho.
Em todo o planeta houve uma grande transformação, a empresas de todos os seto-
res foram afetadas, gerando restrições aos trabalhadores e consumidores, impactando as
logísticas dos negócios, havendo uma grande aceleração. Os meios digitais se intensifica-
ram e ficaram mais interativos com os consumidores, novas necessidades foram surgindo,
emergindo um cenário novo e de incertezas com novas prioridades, tendo que ser adequa-
do tanto no viés do trabalhado como do consumidor.
Este trabalho analítico e de revisão bibliográfica se realizou segundo o método de-
dutivo, emanado de uma generalização para uma questão mais particularizada. Segundo
Gil (2008), este meio de pesquisa parte de princípios reconhecidos como verdadeiros e
indiscutíveis, possibilitando chegar a conclusões em virtude unicamente de sua lógica.
É o segmento proposto pelos racionalistas, segundo os quais só a razão é capaz de levar
ao conhecimento verdadeiro, que decorre de princípios a priori evidentes e irrecusáveis.
Com isso a pesquisa tentou responder a seguinte pergunta de pesquisa: Quais os
novos hábitos e padrões de comportamento provocados pela Covid-19 nas relações de
trabalho e consumo?
1. Novos Hábitos de Consumo
A Consultoria da EY Parthenon publicou no final do anexo de 2020, um estudo em
que analisa especificamente o impacto da pandemia da COVID-19 sobre os consumidores
brasileiros, seus hábitos de consumo e comportamentos, o entendimento de sentimentos,
preocupações de curto, médio e longo prazo, novos perfis de compra e novas relações de
consumo dos brasileiros.
Desde que o isolamento social passou a ser adotado no país, em meados de março,
novas necessidades surgiram e novas prioridades de compra emergiram em um cenário
de grandes incertezas. Isso faz com que seja essencial interpretar os hábitos de consumo
para adequar os modelos de negócio a novas realidades.2
No Brasil, há uma lei específica, a 8.078/90 que versa sobre a proteção do consu-
midor e dá outras providências sobre este assunto, sendo conhecido como o Código de
Defesa do Consumidor (CDC).
Em termos gerais, entende-se como relação de consumo, aquela que para se concre-
tizar é necessário a presença de 03 elementos essenciais, o “tripé”, sendo o fornecedor, o
consumidor e algo que os liga, podendo ser um produto ou serviço.
2
https://veja.abril.com.br/insights-list/insight-3/

234
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

O CDC define cada um dos elementos em seus artigos. O consumidor é definido no


art. 2, o qual garante que este adquire o produto como destinatário final, isto é, para uso
próprio ou da sua família. Há outras formas de caracterização do consumidor, como o por
equiparação, explicado no parágrafo único do art. 2, o art. 17 e o art. 29 do mesmo código
(BENTO; ALMEIDA, 2020).
Já o fornecedor é conceituado no art. 3º do CDC, como aquela pessoa que insere
produto ou serviço no mercado de consumo com habitualidade, independente das carac-
terísticas daquela.
A pandemia ampliou o uso da casa, que deixou de ser apenas o local de moradia e
transformou-se também em escritório, restaurante, sala de aula, academia e sala de espe-
táculos, para citar apenas algumas das novas funções integradas a esse espaço. Abastecer
de conteúdo este hub será essencial para estabelecer conexão entre sua marca e as pessoas.
A experiência de trabalhar em casa agradou a muitos profissionais e empresas, por
aliar produtividade e melhor equilíbrio com a vida pessoal, permitindo que o contato
com a família, por exemplo, se estreitasse, e que o estresse diário no deslocamento para
o trabalho fosse reduzido. Tudo indica que o modelo híbrido prevalecerá, com as pessoas
trabalhando alguns dias no escritório e outros em casa. Marcas que forem competentes
em oferecer serviços e produtos para essa nova realidade tendem a lucrar com a novidade
(MARINHO, 2021).
Com a casa assumindo novas funções, como a de escritório, por exemplo, foi ne-
cessário adaptar os espaços, tornando-os mais acolhedores e funcionais. Isso provocou o
desejo (e não apenas a necessidade) de cuidar da casa. Não é à toa que, segundo o portal
Imovelweb3, a procura por apartamentos com varanda cresceu 128% e a busca por casas
com quintal subiu 98% em maio de 2020, na comparação com o ano anterior. Na mesma
linha, aumentou o gasto das pessoas com plantas em casa. Produtos e conteúdo que tor-
nem o lar mais atraente serão bem recebidos pelas pessoas.
Várias pessoas passaram a se exercitar em casa, na impossibilidade de fazê-lo em
uma academia – ou em função do medo do contágio nesses locais. Isso abriu uma janela
de oportunidades tanto para academias, de expandir serviços online, quanto para marcas
dedicadas a abastecer as pessoas de recursos para fazer os exercícios em casa. Um exem-
plo foi a Etna, que lançou uma linha de 40 produtos para atividade física no lar.
Com os restaurantes fechados, mais gente foi para a cozinha. O resultado? Segundo
a pesquisa do portal, A vida no Centro/SPTuris4, 67% das pessoas passaram a preparar
mais comida em casa e 7% aprenderam a cozinhar na pandemia, impulsionando sites de
receitas na web. E nada menos do que 76% pretendem continuar comendo em casa, seja
cozinhando, seja pedindo comida pelo delivery. A saída é investir em delivery, cloud ki-
tchens e prover informação, por meio de parcerias como sites de receitas, por exemplo.

3
https://mercadoeconsumo.com.br/2021/01/07/a-pandemia-mudou-a-relacao-das-pessoas-com-suas-ca-
sas-e-cidades-e-com-o-consumo-tambem/
4
Idem.

235
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

A arte e o entretenimento foram para dentro das casas, em diferentes formatos,


inclusive alguns bem inusitados, como teatro por Zoom, por exemplo. Várias pessoas
visitaram museus, assistiram a lançamentos de filmes e curtiram show ao vivo do confor-
to dos seus sofás. Os especialistas acreditam que algumas dessas iniciativas vieram para
ficar e que, assim como o trabalho, o consumo de cultura será híbrido daqui para a frente.
As marcas terão de aprender a oferecer essas experiências à distância e tentar estimular
consumo por meio de estratégias como live commerce (MARINHO, 2021).
Cidades que antes eram consideradas dormitórios, com as novas dinâmicas do home
office, tendem a mudar de perfil, apoiando o desenvolvimento de infraestrutura e comér-
cio local. Da maneira inversa, áreas das cidades que eram essencialmente dedicadas às
atividades empresariais deverão ganhar características de bairros. Ambos os movimentos
proporcionam oportunidades para atividades comerciais (MARINHO, 2021).
Como forma de prevenção diante da pandemia, trazendo impactos na vida de toda
população, os consumidores se tornarão cautelosos, o que causou impacto na vida dos
consumidores que antes estavam nas lojas, agora cria-se um modelo e perfil para as com-
pras, voltando-se assim para o e-commerce. Crescendo assim o consumo e interesses por
produtos de necessidades básicas, manutenção, bem-estar, essenciais, armazenamento de
alimentos entre outros, tanto de produtos como de serviços, viabilizando assim o comér-
cio online, alternativa mais segura diante a crise pandêmica, atendendo desta forma as
necessidades das pessoas e elevando assim o consumismo, o fortalecimento das empresas
online, os sites de notícias e entretenimento. Comportamentos estes que corroboraram
para o fortalecimento a comunicação e os canais digitais e serviços de entrega.
Nessa linha de raciocínio, comércios que antes não tinham presença digital, para
não fechar, melhoraram suas páginas e perfis em redes sociais, montaram sites, ainda que
básicos. E, assim, a transformação digital se tornou um grande tsunami para todo tipo de
negócio. Atualmente, para driblar os períodos de lockdown ou de funcionamento intermi-
tente, o delivery ganhou espaço em lojas de roupa, brinquedo, e tudo o que existia antes
do COVID-19. O delivery e o pedido para ‘retirada da loja’ foram as primeiras ações
vistas como tábua de salvação.
A relação de consumo se tornou complexa e a busca por promover uma boa ex-
periência para o cliente, intensa. Não é novidade que se pode comprar quase tudo pela
internet. Mas agora a concorrência online está maior. Essa é uma forte tendência que deve
permanecer depois que tudo isso passar. Quem não estava na rede, teve que entrar. Quem
não entrou, provavelmente fechou as portas. E quem segue resistente à transformação
digital, tende a não ir muito longe.5
Outra coisa que certamente vai ficar, por um bom tempo é o uso do álcool e o olhar
atento quanto às questões de higiene sanitária. As pessoas foram impactadas e passaram
a olhar coisas que não observavam antes.

5
https://www.agenciasantafe.com.br/blog/relacao-de-consumo/

236
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Os valores também mudaram e estão diretamente ligados a essa relação de consu-


mo. Em outras palavras, os consumidores estão mais atentos para comprar de empresas
que estão conectadas com seus princípios. Sejam eles sociais, ambientais ou até mesmo
políticos.6
Nesse contexto, diante de exclusões recíprocas de responsabilidade, para resolver o
impasse não nos parece razoável considerar que uma pandemia mundial possa ser consi-
derada como risco inerente à atividade empresarial, atribuindo-se todo o peso financeiro
decorrente da mesma exclusivamente às empresas fornecedoras, sob pena de se compro-
meter toda cadeia de produção e consumo, gerando colapso econômico.
Em linhas gerais, o microssistema ora tratado é estruturado para defender o con-
sumidor, mas, por outro lado, não admite desequilíbrio nessa relação a ponto de gerar
onerosidade excessiva ao fornecedor em que este seja obrigado a arcar com todos os ônus
diante de um fortuito externo (GRAÇA; SENTO, 2020).
2. Impacto da Pandemia da Covid-19 nas Relações de Trabalho
Frente o processo de modificação devido ao Covid-19, houve grande flexibilização
nas relações de trabalho, e com isso foram sendo criados meios e modelos de prestação
de serviços para os consumidores. O que contribui para a diminuição e desvalorização
da atividade laboral humana, viabilizando o trabalho informal e sendo parte da realidade
vivenciada nos dias de hoje.
Passados quase dois anos início da pandemia de Covid-19 no Brasil, é inegável o
quanto as relações de trabalho foram significativamente afetadas. A título de exemplo,
citamos o fato de que, após decretada a quarentena pelos governantes no início da pande-
mia, em março de 2020, milhares de trabalhadores passaram a exercer o regime de teletra-
balho ou home office, literalmente, de um dia para o outro, sendo necessária a adequação
dos meios tecnológicos e a adaptação forçada e urgente de empregados e empregadores.
Contudo, o teletrabalho não foi suficiente para o enfrentamento da pandemia no
mundo laboral, sendo que muitos empregadores se depararam com a queda abrupta, ou
até mesmo, completa, da renda das suas empresas, impactando diretamente em suas fo-
lhas de pagamento, gerando, num primeiro momento de pânico, inúmeras demissões,
e, até mesmo, encerramento de empresas, pedidos de recuperação judicial e de falência
(CARVALHO; MARX, 2021).
Após grande expectativa, ao final de março e início de abril de 2020, foram edita-
das medidas provisórias pela Presidência da República, destacando-se duas, objetivando
a manutenção dos empregos e renda, quais sejam, a extinta MP 927 que tratou de temas
como antecipação de férias, teletrabalho, diferimento do FGTS, e a MP 936, importantís-
sima, visto que tratou de redução de jornada e salário, e suspensão do contrato de traba-
lho, esta última convertendo-se na lei 14.020/2020 (CARVALHO; MARX, 2021).

6
Idem.

237
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Com o prolongamento da pandemia para o ano de 2021 e a consequente prorroga-


ção das restrições pelos governantes, foram editadas novas medidas provisórias, trazendo
textos similares aos moldes das medidas 927 e 936, sendo elas, MP 1046 (antiga MP 927)
e MP 1045 (antiga MP 936).
Referidos regramentos foram absolutamente necessários e importantes, transmitin-
do certa segurança jurídica para empregados e empregadores, de modo que milhares de
empresas se utilizaram das opções implantadas pelas MPs (CARVALHO; MARX, 2021).
O home office e o teletrabalho também são objeto de embates judiciais, com signi-
ficativas discussões neste período. Como exemplo, citamos a discussão sobre a respon-
sabilidade quanto ao fornecimento de internet e ergonomia correta aos empregados que
executam suas atividades fora das dependências do empregador. Diversos projetos de
lei que pretendem regulamentar o tema permanecem no aguardo de votação no senado
(CARVALHO; MARX, 2021).
Recentemente, foi publicada a lei 14.151/2021, prevendo o afastamento da empre-
gada gestante das atividades de trabalho presencial durante a emergência de saúde públi-
ca, decorrente do novo coronavírus, sem prejuízo de remuneração. A lei, que é extrema-
mente suscinta, determinou que as atividades das empregadas gestantes sejam realizadas
em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho
a distância.
Se antes da crise da Covid-19 o teletrabalho vinha ganhando força à medida em que
a mentalidade dos empregadores ainda engatinhava para a aceitação, agora, em 2020 e
2021, com a recomendação do isolamento e distanciamento social, a modalidade ganhou
espaço significativo no mercado de trabalho (PITALUGA, 2021).
Nesse confuso contexto, então, algumas modalidades de trabalho, que antes ocu-
pavam um lugar secundário em nossa sociedade apareceram como solução para muitos
problemas. É o que observamos acontecer, por exemplo, com o teletrabalho, com o tra-
balho remoto, com o home office e com a prestação de serviços por meio de plataformas
digitais.
Cabe destacar que, atualmente, esses tipos de atividades tem sido desenvolvidas de
forma subordinada aos grupos tecnológicos e seus aplicativos (apps), introduzindo novos
elementos no conjunto de relações precarizadas do capitalismo contemporâneo (de acu-
mulação flexível) (ABÍLIO, 2019; FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020).
A necessidade do diálogo entre empregador e empregado e da utilização de meca-
nismos internos para a rápida solução dos impasses que têm surgido, reforçou positiva-
mente o potencial de solução de conflitos dentro do próprio ambiente em que se desen-
volve a relação de trabalho (PITALUGA, 2021).
O Ministério Público do Trabalho (MPT), por meio da Nota Técnica nº 6, publica-
da em 22/03/2020, item IV, expressou seu posicionamento no sentido da priorização do
teletrabalho, como principal medida de enfrentamento trabalhista.

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Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

O tempo do trabalho, portanto, deixa de ser tão relevante, o que pode ser positivo,
inclusive ao empregado, que passa a ver viável a consecução de sua antiga vindicação
pela conciliação digna de suas diversas dimensões vivenciais.
No teletrabalho, não há compra de tempo, não há jornada a cumprir. O teletrabalho
é atemporal e flexível. Como a tecnologia não vê fronteiras geográficas, o teletrabalho
permite muitos transbordamentos (municipais, regionais, nacionais) e isto leva ao repen-
sar dos modelos contratuais e ao alerta para a necessidade de entidades internacionais
fortes e representativas, que garantam a efetividade e eficácia das avenças e dos mínimos
existenciais. (STÜRMER; FINCATO, 2020).
O avanço dos recursos tecnológicos e das possibilidades de interação entre empre-
gado e empregador torna a modalidade de trabalho à distância não mais sinônimo de iso-
lamento ou de condições inadequadas de trabalho, pois nesse cenário a virtualidade passa
a ser a nova realidade, restando irrelevante o local onde o trabalho é realizado e alterando
a lógica empresarial, agora voltada prioritariamente a objetivos e resultados, ao invés de
exigir a mera presença física do trabalhador. (FINCATO, 2018).
Um olhar mais atento e para além da superfície percebe que não se trata apenas de
retórica da comunicação oficial da empresa, mas sim, de uma estratégia de categorizar
seus trabalhadores como parceiros e não como empregados para que possam se esquivar
dos custos de contratação e os direitos assegurados na Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT) como férias, licenças remuneradas, 13º salário, jornada de trabalho regulada e até
mesmo a própria condição de assalariamento e a exigência de ganhos iguais ou superiores
ao salário mínimo (POCHMANN, 2017).
Ante a todo esse cenário, temos que a pandemia do Covid-19 trará significativas
mudanças nas relações de trabalho, bem como a legislação precisará acompanhar essa
evolução, já que é necessária a proteção do empregado para que não retornemos a época
da escravidão, o que quem sabe poderemos chamar de escravidão conectada (PITALU-
GA, 2021).
O contexto pandêmico gerou novas demandas de aprendizagem aos trabalhadores.
A rápida adaptação ao trabalho remoto de caráter compulsório não foi acompanhada ou
precedida de preparação material ou psicológica. Trabalhadores e gestores foram impe-
lidos a adquirir habilidades afetivas para a comunicação mediada por tecnologias, asser-
tividade para buscar ajuda e suporte social de colegas e superiores, aprender a regular os
tempos de trabalho e descanso, equilibrar as atividades do trabalho com as domésticas e
regular os diversos estados afetivos que o isolamento exacerbou (OLIVEIRA; RIBEIRO,
2021).
A criatividade e a proatividade são apontadas como novas soluções para o trabalho
em resposta à pandemia. A criatividade pode auxiliar no enfrentamento do novo, na adap-
tação ao ritmo acelerado das mudanças. A proatividade envolve uma atitude voltada para
o futuro que extrapola a realização da atividade atribuída. Ambas permitem que o traba-
lhador identifique oportunidades, aja sobre elas e desenvolva novos métodos de trabalho
aprimorando o seu desempenho (OLIVEIRA; RIBEIRO, 2021).

239
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Do ponto de vista organizacional, fomentar e estimular a criatividade dos trabalha-


dores permite às empresas uma melhor adaptação ao contexto de crise, e aos trabalhado-
res a sensação de pertencimento e capacidade de contribuir efetivamente.
Conclusão
Diante da pesquisa realizada, o desafio foi entender o novo consumidor, as mo-
dernas relações de trabalho, os novos comportamentos, as novas prioridades e os novos
valores, provocados em meio ao momento de crise da pandemia do coronavírus. Investir
na diferenciação e diversificação de produtos é o caminho para as empresas que desejam
crescer.
A volta ao trabalho tende a ser no modelo híbrido com flexibilidade de dias e horas.
O uso de ferramentas e de novos canais digitais como aplicativos, Whatsapp e demais
redes sociais devem fazer parte da estratégia de comunicação, e por último o uso da Inte-
ligência Artificial permite uma maior assertividade e um acesso mais ágil e dinâmico das
necessidades desse novo consumidor.
É perceptível o quanto a pandemia alterou o curso, impactando na vida de todos,
nos funcionamentos de trabalho, empresas, consumidores e também na tecnologia. O
quanto gerou também novas formas de possibilidades e viabilização de comércio, dando
oportunidades a outros nichos de empreendedorismo. Por outro lado, afetou as relações e
forma de trabalho significadamente, causando rupturas.
Contudo, os novos modelos e meios continuarão se aperfeiçoando e se estruturando
para a continuação deste novo formato de tecnologia, trabalho, empresa e consumidores
sociais causado pela Covid-19.
É preciso entender que a dramática conjuntura sanitária se trata de uma legalidade
extraordinária em que o Poder Público precisa adotar condutas e medidas excepcionais e
temporárias, consagradas no ordenamento jurídico para controlar a disseminação do vírus
e a contaminação das pessoas (OLIVEIRA, 2021).
Portanto, neste contexto da pandemia sanitária mundial, a atuação do Estado deve
assegurar os valores relativos à proteção e preservação da vida de todos, sendo imperioso,
para tanto, que o Direito do Trabalho se adapte às necessidades da saúde, sem, no entanto,
violar direitos fundamentais do trabalhador.
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renciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 3, p. 41-51, nov.
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240
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

RELAÇÃO de Consumo em tempos de Pandemia – O que será que muda depois que tudo
isso passar? Disponível em: <https://www.agenciasantafe.com.br/blog/relacao-de-consu-
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STÜRMER, Gilberto; FINCATO, Denise. Teletrabalho e Covid-19. 2020. Disponível
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reito-covid-19-ppgd-artigos_e_ensaios-teletrabalho_e_covid-19.pdf>. Acesso em: 10 de
janeiro de 2022.

242
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

MIGRAÇÃO FEMININA E POLÍTICAS PÚBLICAS DE


ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO MUNDO
DO TRABALHO DOMÉSTICO

Rafael de Lima Kurschner1


Denise Rissato2
Carolina Spack Kemmelmeier3

1. Introdução
O objetivo deste artigo é analisar os deveres estatais e dos empregadores para o en-
frentamento da violência de gênero no mundo do trabalho doméstico, a partir da Conven-
ção 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de modo a subsidiar o debate
sobre os deveres do Estado e dos empregadores e a elaboração e a realização de políticas
públicas que contemplem a Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT).
A violência de gênero cometida contra a mulher pode ser compreendida como a
produção de ações de violência física, sexual, psicológica, patrimonial ou moral e inclui
condutas e práticas discriminatória. Essa forma de violação de direitos humanos pode se
dar, tanto no âmbito privado, como nos espaços públicos, incluindo o ambiente de traba-
lho, onde as mulheres enfrentam maiores dificuldades relacionadas à discriminação e ao
preconceito de gênero no processo de inserção laboral e profissional onde, normalmente,
recebem uma remuneração inferior àquela paga aos homens, mesmo quando realizam as
mesmas atividades/funções.
Com relação à mulher migrante, pode-se dizer que existe uma dupla vulnerabili-
dade, pois além do preconceito e da discriminação de gênero, das quais, muitas vezes, já
foram vítimas em seu país de origem, também enfrentam as dificuldades inerentes a sua
condição de migrante. Vale acrescentar que, muitas vezes, essas mulheres tiveram seus
direitos violados em seus países de origem e ao migrarem para outro país lidam com
situações semelhantes, enfrentando diversas formas de violência, sobretudo no mercado
de trabalho informal, uma vez que se encontram inseridas em postos de trabalhos que,
historicamente, são direcionados para mulheres dentro da cultura patriarcal, como é o
caso do trabalho doméstico.
Acrescenta-se que a Convenção 190 da OIT, reconhece o mundo do trabalho livre
de violência e assédio como um direito, uma vez que estas ações provocam danos físicos,
1
Graduando em Direito, Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Foz do Iguaçu.
2
Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), professora adjunta da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Foz do Iguaçu.
3
Doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo (USP), professora adjunta da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Foz do
Iguaçu.

243
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

psicológicos e/ou econômicos. Tal Convenção juntamente com a Recomendação Com-


plementar 206, preconizam medidas para prevenir e combater a violência e o assédio no
mundo do trabalho, sobretudo, neste momento histórico no qual a humanidade busca se
recuperar da crise sanitária decorrente da Covid-19 e dos seus efeitos perversos sobre o
mercado de trabalho.
Em termos metodológicos, este trabalho foi construído através de revisão de lite-
ratura em trabalhos acadêmicos e a análise documental, relativos à questão migratória
internacional e o trabalho doméstico exercido pela mulher migrante no Brasil.
O desenvolvimento deste artigo foi estruturado em dois eixos. O primeiro deles
aborda, de forma geral, parte da realidade das mulheres migrantes no Brasil, demarcando
os desafios enfrentados pelas mesmas, no que diz respeito a violência de gênero e xeno-
fobia. O segundo segmento contextualiza a violência de gênero contra as mulheres mi-
grantes trabalhadoras domésticas em Foz do Iguaçu/PR, visando identificar as formas de
exploração laboral enfrentadas por estas trabalhadoras. Ambos os eixos estruturais visam
traçar um paralelo entre os desafios enfrentados pelas migrantes e as recomendações da
Convenção 190 da OIT.
2. A Mulher Migrante no Brasil e a Violência Laboral
Como dispõe a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), da qual o
Brasil é signatário, migrar é um direito humano, que independe de distinção de raça, de
cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política, de origem nacional ou social, ou
seja, todos podem exercer os direitos e liberdades presentes em tal declaração. Apesar
disso, existem importantes evidências de que as populações migratórias nem sempre têm
seus direitos humanos respeitados.
A Convenção 190 da OIT (2020), em seu artigo 1, destaca que os atos de violência
e assédio baseado em gênero dizem respeito a “violência e assédio dirigido a pessoas por
causa de seu sexo ou gênero, ou que afeta pessoas de um determinado sexo ou gênero de
forma desproporcional, e inclui assédio sexual”, podendo ocorrer no setor público e no
privado, na economia formal e na informal, em áreas urbanas ou rurais (Convenção 190,
art. 2).
Além disso, tal Convenção estabelece o combate à violência e ao assédio de uma
forma abrangente, incluindo “espaços públicos e privados que sejam locais de trabalho;
locais onde o trabalhador é pago, descansa ou se alimenta, ou usa instalações sanitárias,
de lavagem e vestiários, ou em acomodações fornecidas pelo empregador” (Convenção
190, art. 3). Dessa forma, tornam-se necessárias medidas jurídicas e de políticas públicas
para o enfrentamento de violações ligadas ao gênero no mundo do trabalho, através de
abordagens inclusivas e integradas e, também, observando os novos desafios impostos
pela crise sanitária mundial.
Cabe observar que os tratados e convenções internacionais consideram os migran-
tes como um grupo social que possui demandas específicas e que necessitam de uma aten-

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Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

ção diferenciada do Estado nos países receptores para que seus direitos humanos sejam
assegurados e efetivados (BRASIL, 2015), uma vez que a violação de tais direitos, podem
deixá-los em situação de extrema vulnerabilidade (ANGÉLICO, 2019).
Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), as diversas situa-
ções de vulnerabilidade vivenciadas pelos migrantes tendem a ser agravadas por questões
de gênero, o que faz com que as mulheres sejam um dos subgrupos de maior vulnerabili-
dade no âmbito migratório (OIM, 2017).
Corroborando com esse entendimento, a OIT, por meio da Recomendação 206 e
da Convenção 190, orienta e recomenda aos países que adotem medidas legislativas e/
ou de outra natureza, no enfrentamento da violência e do assédio no mundo do trabalho,
levando em conta as suas causas subjacentes e os fatores de risco, sobretudo, no que diz
respeito às relações de poder desiguais que se estabelecem em função de nacionalidade,
dos estereótipos raciais e de gênero e/ou de quaisquer tipos de discriminação e precon-
ceito. Com isso, a OIT reitera a necessidade de proteção às trabalhadoras migrantes, in-
dependentemente do estatuto migratório e das formas de violência que possam ter sofrido
em seus países de origem e/ou de trânsito (OIT, 2019, 2020).
É importante destacar que, os trabalhadores migrantes e, de modo particular
as mulheres migrantes, estão entre os grupos que mais sofrem com várias formas de
violações de direitos humanos, seja por discriminações múltiplas, seja por formas de vio-
lências mais severas tais como a violência sexual, o tráfico de mulheres e o trabalho em
condições análogas à escravidão (CERQUEIRA, 2018; GOMES, 2019).
No Brasil, essa realidade não é diferente. Rosário (2019) salienta que muitas destas
mulheres migraram para fugir de uma condição de opressão patriarcal, violência domés-
tica e de condições precárias de trabalho em seus países de origem, uma vez que a migra-
ção também significa uma tentativa de alcance da liberdade, porém, acabam enfrentando
dificuldades similares no Brasil.
Nesse mesmo sentido, Moreira (2018) enfatiza que as mulheres migrantes vêm en-
frentando recorrentes situações de violência no Brasil, a exemplo da experiência relatada
pelas venezuelanas em Boa Vista/RR, que passaram a ser vítimas de estupros e espanca-
mentos em função de sua nacionalidade.
Cabreira (2018) destaca que, muitas vezes, as mais variadas formas de violências
impostas às mulheres migrantes são naturalizadas e/ou ignoradas pela sociedade recepto-
ra, o que torna tal realidade consideravelmente mais complexa, visto que, em alguma me-
dida, a negação e as justificativas para tais problemas são, na maioria das vezes, atribuídas
ao grande contingente de fluxos migratórios e à incapacidade e/ou omissão do Estado, no
sentido de garantir proteção e a assistência às mulheres migrantes quando, na verdade,
também depende do comportamento individual dos agentes sociais, tanto no âmbito da
vida privada quanto da vida coletiva.
No que diz respeito às políticas públicas dirigidas aos migrantes, Angélico (2019)
ressalta que as mesmas devem ser estabelecidas por meio de programas específicos, mas

245
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

vinculadas às políticas universais já existentes, de modo a ampliar a rede de assistência,


proteção e atendimentos dessas mulheres que demandam atenção individualizada, desde
a acolhida em abrigos apropriados até a inserção no mercado de trabalho, incluindo a
proteção especial para as que são vítimas da violência e da exploração.
No Brasil, apesar da Nova Lei de Migração, não tratar explicitamente, da questão
de gênero, em seu art. 3º, estabelece que a política migratória deve reger-se pelos prin-
cípios da universalidade e de repúdio e prevenção de quaisquer formas de discriminação
(BRASIL, 2017).
Contudo, mesmo com a positivação da Nova Lei de Migração, é possível com-
preender que ainda existem muitos desafios a serem enfrentados, no que diz respeito à
discriminação das mulheres migrantes. Como exemplo, observa-se que enquanto, apro-
ximadamente, 57% das mulheres inseridas no mercado de trabalho brasileiro, no terceiro
trimestre de 2019, ocupavam postos de trabalho formais (DIEESE, 2021), no caso espe-
cífico das trabalhadoras migrantes, menos de 30% estavam nessa situação em 2019, dessa
forma, é de grande importância que haja meios de combate à violência laboral com pers-
pectiva de gênero no Brasil, que devem abranger as migrantes, diante da maior exposição
destas ao trabalho informal (TONHATI e MACEDO, 2020).
Não se pode perder de vista, que a discriminação das mulheres migrantes no mundo
do trabalho é mais uma das faces da violência praticada contra as mulheres no Brasil. No
entanto, pode-se dizer é uma forma agravada de violência e discriminação, na medida
em que, na ampla maioria das vezes, expressa uma combinação preconceitos (misoginia,
racismo e xenofobia) que reiterados pela exploração econômica do trabalho.
3. A Mulher Migrante e a Violência Laboral no Trabalho Doméstico
No Brasil, o trabalho doméstico, remunerado ou não, normalmente, tem sido reali-
zado por mulheres. Essa divisão do trabalho por gênero no país, segundo Manera e Manus
(2021), se instaurou no período escravocrata, mas tem sido reproduzida até os dias atuais
em decorrência de inúmeros fatores sociais, jurídicos, econômicos e culturais.
De acordo com a Convenção 189 da OIT, o trabalho doméstico remunerado pode ser
compreendido como o trabalho que, exercido em tempo parcial, completo ou por horas,
proporciona cuidados a outras pessoas, e realizam múltiplas tarefas para a manutenção
do lar, como cozinhar, limpar, cuidar de crianças, de adultos idosos e/ou com deficiência,
cuidar do jardim ou de animais domésticos, e tarefas afins, dessa forma, o trabalho do-
méstico se explica com base no lugar de trabalho, o domicílio privado (OIT, 2011).
No âmbito da migração feminina e do trabalho doméstico, é possível identificar a
América Latina e Caribe como regiões onde, entre 11 e 18 milhões de pessoas se dedicam
ao trabalho doméstico remunerado, das quais 93% são mulheres, além disso, este trabalho
representa uma média entre 10,5% e 14,3% dos empregos das mulheres em tais regiões,
e 16% em países como Paraguai e Argentina. Contudo, mais de 77,5% destas mulheres
trabalham em condições de informalidade, sendo destacado que na América Central e no

246
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Caribe os níveis de informalidade superam os 90%, além de que os salários das destas
trabalhadoras são iguais ou inferiores ao 50% da média de todas as pessoas trabalhando,
demonstrando que, em grande medida, essas mulheres convivem em condições precárias
e sem acesso à proteção social (OIT, 2020).
Conforme destaca Rodrigues (2019), existe um aumento de mulheres que migram
sozinhas e encontram no trabalho doméstico remunerado uma fonte de sustento e digni-
dade, trabalho este, que é historicamente atribuído às mulheres. Contudo, muitas vezes,
sofrem com a invisibilidade e a falta de reconhecimento, que limitam a condição de sujei-
tos de direito das mulheres migrantes.
De acordo com dados da OIT, que servem como plano de fundo para conhecer a rea-
lidade brasileira no que diz respeito ao trabalho doméstico remunerado, em 2009, o país
contava com 7.223.000 trabalhadores domésticos, das quais 93% eram mulheres, dentre
as quais, 61,6% eram negras e 38,4% brancas, colocando o país como, provavelmente, o
com maior número de pessoas que exercem esta atividade no mundo (OIT, 2010).
Em pesquisa documental realizada por Silva e Rissato (2021), em Foz do Iguaçu/
PR, é possível constatar a existência de violações de direitos humanos de trabalhado-
ras domésticas migrantes, cabendo destacar que o amparo político-jurídico institucional
oferecido para essas trabalhadoras é insuficiente para a preservação da dignidade, que é
constitucionalmente garantida.
Em consonância a tais constatações, em pesquisa realizada por Farina (2015), cujo
escopo era analisar o trabalho doméstico remunerado exercido por mulheres migrantes
em Foz do Iguaçu/PR, foi possível identificar que entre 2011 e 2013, o Ministério Público
do Trabalho propôs 100 processos preparatórios e inquéritos civis, dos quais 56 dizem
respeito a condomínios residenciais, e que 22 procedimentos de investigação foram esco-
lhidos de maneira randômica para serem pauta da análise, possibilitando a comprovação
de um ambiente onde trabalhadoras domésticas, em sua maiorias de origem paraguaia,
eram exploradas.
Além disso, em relatório feito pelo Centro de Direitos Humanos e Cidadania do
Imigrante, em conjunto com o Solidarity Center, que trata das relações de trabalho que
envolvem mulheres migrantes trabalhadoras domésticas em Foz do Iguaçu/PR, revela
que, das 18 trabalhadoras entrevistadas, apenas 3 possuíam contrato de trabalho formal,
sendo as demais contratadas por meio de acordos verbais, deste total, 12 não possuíam
dias de folga e somente 2 trabalhadoras recebiam pelas horas extras trabalhadas, ademais,
cerca de 83% destas migrantes não conheciam seus direitos trabalhistas (DUTRA; SI-
MÕES; SALMUNI, 2020).
Dentro desta questão, a Convenção 190 da OIT, destaca a necessidade proteger as
pessoas que se encontram expostas à violações de direitos humanos no trabalho, tendo
em vista que a COVID-19 intensificou tais ocorrências em alguns setores, profissões e
formas de organização do trabalho, como é o caso do trabalho doméstico remunerado,
que já apresenta elevados níveis de exposição à violência mesmo antes da crise sanitária
mundial (OIT, 2020).

247
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

No âmbito jurídico, em um panorama geral, em comparação aos demais trabalhos


remunerados, apenas 10% das trabalhadoras domésticas do mundo tem as mesmas condi-
ções de acesso à justiça, haja vista que, em grande medida, essas trabalhadoras estão sob
regimes de proteção parcial e quase 30% não têm proteção trabalhista (ILO, 2013).
No contexto brasileiro, como destaca Esteves, Bitu e Gurgel (2021), em alguma
medida, mesmo que ocorra o acesso ao poder judiciário, o salário devido a doméstica
pode ser interpretado como uma “ajuda” ou uma “mesada”, como é expresso na funda-
mentação do processo 0011172-97.2015.5.03.0132 do TRT-3, onde foi interpretado que,
mesmo realizando trabalho doméstico remunerado, tal atividade não significaria que a
reclamante seria empregada doméstica, concluindo que trabalhadora passou a integrar
a família, dessa forma, ela seria responsável por realizar tarefas que qualquer membro
daquela família realizaria, como a limpeza da casa (BRASIL, 2017).
Dessa forma, com relação aos deveres estatais, a Convenção 190 da OIT determina
que o acesso à justiça em sua forma material, deve assegurar medidas de solução de con-
trovérsias seguras, efetivas e que adotem a perspectiva de gênero, sendo imprescindível
que autoridades recebam capacitação e recursos para atuar em matéria de violência de
gênero (OIT, 2020). Somando-se a isso, a Recomendação 206 da OIT esclarece que as
medidas de solução de controvérsias relativos à violência de gênero devem ser acompa-
nhadas por julgadores devidamente qualificados para a atuação nessa área, capazes de
adotar procedimentos eficientes e rápidos, que considerem a possibilidade de inversão do
ônus da prova (OIT, 2019).
Nesse sentido, Kemmelmeier e Pasqualeto (2021) destacam que, a Convenção 190
da OIT pode colaborar para transformar a cultura da voluntariedade em dever de preven-
ção da violência, sem restringir o conceito de violência laboral à uma conduta intencional
do agente, como a de causar dano ou de discriminar em razão de gênero, contribuindo
para a tipificação jurídica e podendo diminuir a dificuldade de produção de provas.
Ainda, com fundamento na Convenção 190 da OIT, há a necessidade da adoção de
leis, regulamentos e políticas que garantam o direito das migrantes à igualdade e à não
discriminação, sobretudo para as trabalhadoras que se encontrem em situações de vul-
nerabilidade, como as trabalhadoras domésticas migrantes, que são muito afetadas pela
violação de direitos humanos no mundo do trabalho, uma vez que este trabalho apresenta
uma série de desafios a serem enfrentados no que diz respeito ao enfrentamento das desi-
gualdades de gênero, raça, divisão sexual do trabalho e a desvalorização do trabalho re-
produtivo, por conta de suas características peculiares e de sua função no que diz respeito
à estruturação do mercado de trabalho (OIT, 2020; OIT, 2011).
Conclusão
Ao finalizar as discussões, é possível realizar algumas reflexões a título de consi-
derações finais.
Inicialmente, pode-se destacar que a violência de gênero cometida contra a mulher
é responsável por uma série de ações que atingem as mesmas, não apenas de forma física,

248
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

mas também na forma psicológica, patrimonial e moral. Além disso, tais ações estão for-
temente ligadas à precariedade no trabalho, haja vista que as mulheres são maioria entre
as pessoas ocupadas de forma temporária, precária e informal, demonstrando a existência
de grandes dificuldades postas pelo preconceito de gênero relativo à inserção laboral e
profissional, reforçado ainda, pelo contexto histórico de recebimento de menores salários
em comparação ao que é pago aos homens, sobretudo na realização de mesmas funções
e ocupação de mesmos cargos.
Em outro plano, foi possível destacar que, muitas vezes, as mulheres migram para
fugir da opressão patriarcal, da violência doméstica e de condições precárias de trabalho,
acabam inseridas em um contexto de dupla vulnerabilidade, tendo em vista a “acumula-
ção” de dois preconceitos, o de gênero, pelo simples fato de serem mulheres, e o atrelado
às suas condições de migrantes, que as afetam tanto no âmbito da convivência em socie-
dade, por conta de estereótipos sociais próprios, que refletem suas expressões culturais,
mas também atingidas pela violência sexual, tráfico de mulheres e trabalho em condições
análogas à de escravo. Sabendo-se também que, muitas vezes, elas não possuem apoio
familiar, redes proteção social, apoio da comunidade e do Estado no país receptor.
Ao tratar do trabalho doméstico, foi possível compreender que o mesmo deve ser
observado em seus dois sentidos, um enquanto trabalho não remunerado, que acontece no
âmbito familiar, e outro enquanto trabalho remunerado, no qual, grande parte das traba-
lhadoras migrantes encontram sua fonte de sustento e dignidade, despendendo sua força
de trabalho para proporcionar cuidados a outras pessoas e/ou manutenção do domicílio
privado em troca de salário.
Em ambas as formas deste trabalho, em grande parte, são realizados por mulheres,
tendo em vista fatores sociais, jurídicos, econômicos e também históricos, considerando
que no Brasil, a exploração do trabalho escravo tem influências no trabalho doméstico
na contemporaneidade, isso colabora, em alguma medida, para a invisibilidade e a falta
de reconhecimento deste trabalho como sendo uma ocupação digna, e também influencia
para a deslegitimação da mulher migrante como sujeito de direitos.
No que diz respeito a migração feminina e trabalho doméstico em Foz do Iguaçu/
PR, foi possível verificar que existem pesquisas que constatam violações de direitos hu-
manos destas trabalhadoras, com grande parte destas trabalhadoras realizando suas ativi-
dades laborais sem contratos de trabalho formal, sobrepondo-se os acordos verbais, sem
dias de folgas ou férias, sem receber pagamento de horas extras trabalhadas, e desconhe-
cendo seus direitos enquanto trabalhadoras. Para além disto, é possível verificar que, no
âmbito do domicílio privado, em condomínios residenciais da cidade supracitada existe a
comprovação de um ambiente onde trabalhadoras domésticas migrantes eram exploradas.
Dessa forma, ao incorporar a Convenção 190 da OIT (2020) junto a temática de
gênero e a migração feminina internacional no Brasil, bem como, as atividades laborais
no âmbito do trabalho doméstico realizado por estas mulheres, tem-se a recomendação
da busca pelo fim da violência e ao assédio, através de medidas jurídicas e de políticas
públicas para combater tais violações de direitos humanos mundo do trabalho, através

249
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

de abordagens inclusivas e integradas. Haja vista que existe a necessidade de proteger as


pessoas que se encontram expostas à violações de direitos humanos no trabalho, sobretu-
do por conta da crise sanitária mundial, que intensificou a ocorrência de violações de tais
direitos alguns setores, profissões e formas de organização do trabalho, como é o caso do
trabalho doméstico remunerado, uma vez que este trabalho já apresentavam elevados ní-
veis de exposição à violência, tendo em vista que o amparo político-jurídico institucional
oferecido para essas trabalhadoras é insuficiente para a preservação da dignidade.
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253
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

PROFISSÃO DE FÉ OU ATIVIDADE PROFISSIONAL?


A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO ENTRE PASTORES
E IGREJAS NEOPENTECOSTAIS

Francisco Gérson Marques de Lima1


Marina Ribeiro Mota2

1. Introdução
Para a maioria das pessoas, a prática da religião adotada e o exercício do trabalho
profissional são duas atividades bastante distintas, com finalidades, obrigações e afazeres
próprios. O ser humano exerce um trabalho para se sustentar, para se aprimorar em um
ofício, para receber uma remuneração ou até mesmo para ajudar o próximo, como no caso
do trabalho voluntário. Já a prática de uma religião, mormente por aqueles que escolhem
dedicar sua vida a isso, é um serviço prestado ao Divino, extensível ao próximo, que é
feito por vocação e orientado por uma convicção de que a verdadeira retribuição vem de
(ou está em) outro plano.
Inicialmente a distinção parece clara, mesmo nos casos daqueles que têm como
principal atividade de vida o exercício de uma religião (padres, pastores, rabinos – reli-
giosos em geral). A majoritária jurisprudência entende que a atividade por eles desempe-
nhada é de natureza vocacional, motivada pela fé, inexistindo subordinação empregatícia,
já que os líderes espirituais se submetem apenas às ordens e ao julgamento divino. Por
esse motivo, existem inúmeras decisões negando a existência de vínculo de emprego en-
tre chefes religiosos e suas respectivas igrejas, enquadrando, então, suas atividades como
trabalho voluntário, o qual é regulamento pela Lei 9.608/1998.
Entretanto, tem chegado ao Poder Judiciário uma série de ações ajuizadas por pas-
tores em face da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), na qual se demonstra que
a estrutura hierarquizada de que se compõe essa instituição não é apenas para fins de
organização eclesiástica (o que é comum em várias religiões), mas, principalmente, para
estimular e aprimorar a arrecadação de fundos e o cumprimento de metas financeiras,
atividades que seriam as principais finalidades da instituição. Esta igreja, assim como
outras enquadradas por sociólogos e antropólogos como neopentecostais, fundam-se na
chamada “teologia da prosperidade” – corrente que ressignifica a relação do ser huma-
no com o dinheiro, interpretando a fortuna material como um sinal de benção divina, a
qual será alcançada mediante a devoção, inclusive financeira, à igreja. Em suma, como
bem sintetiza o sociólogo Jonatas Silva Meneses, a teologia da prosperidade funda-se em
1
Doutor, professor na Universidade Federal do Ceará, Subprocurador-Geral do Trabalho, Tutor do GRU-
PE – Grupo de Estudos em Direito do Trabalho, membro da Academia Cearense de Direito do Trabalho e
da Academia Cearense de Letras Jurídicas.
2
Mestranda em Direito Constitucional na Universidade Federal do Ceará, especialista em Direito e Pro-
cesso do Trabalho pela Damásio, membro do GRUPE – Grupo de Estudos em Direito do Trabalho.

255
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

“(…), promessas de que Deus, que é o dono do ouro e da prata, devolverá em dobro, ou
muito mais, tudo aquilo que for depositado no altar” (MENESES, 2017, p. 427).
Ações judicias também noticiam que se tem exigido dos pastores iurdienses a sub-
missão à cirurgia de vasectomia – imposição derivada da orientação interna da institui-
ção, baseando-se na ideia de que o aumento da entidade familiar atrapalharia o exercício
da atividade religiosa e aumentaria os custos, arcados pela igreja, com o sustento do pas-
tor e de seus familiares (vide, por exemplo, a decisão proferida, por unanimidade, pela 4ª
Turma do Tribunal Superior do Trabalho no AIRR-33-81.2010.5.02.0511, cujo voto, de
relatoria da Ministra Sueli Gil El Rafihi, fora publicado no dia 03/10/2014).
Sobre isso, o teólogo e doutor em Ciência da Religião Leonildo Silveira Campos
noticia (CAMPOS, 2006, fls. 127-128) que a obrigatoriedade do pastor iurdiano de reali-
zar a cirurgia de vasectomia antes de viagem missionária para o exterior seria um artifício
criado por essa igreja para diminuir as despesas com o remanejamento e sustento dos
pastores fora do país, além de ser uma forma de aumentar o grau de comprometimento do
religioso com a organização.
Tão grande fora a quantidade de ações indenizatórias contra a IURD decorrentes da
submissão de pastores à vasectomia que o Ministério Público do Trabalho ingressou com
a Ação Coletiva nº 0101968-33.2016.5.01.0043, ainda em trâmite, requerendo a condena-
ção da referida instituição em danos morais coletivos não inferiores a R$100.000.000,000
(cem milhões de reais).
Há, publicamente, reportagens jornalísticas e depoimentos de ex-pastores da re-
ferida igreja ratificando a existência dessa exigência (realização de vasectomia) para a
permanência ou ascensão hierárquica dentro da instituição3.
Diante desses casos, já estudados por acadêmicos da antropologia, sociologia e
direito, destacadamente a partir da década de 1990, surge a necessidade de se fazer uma
distinção entre as relações nas quais os líderes espirituais se orientam por dogmas de fé –
em instituições religiosas que se estruturam internamente com vistas ao exercício da sua
religião, em contraposição às relações nas quais os líderes espirituais são submetidos a
exigências institucionais sem fundamentos religiosos – em igrejas que se estruturam para
o exercício de prática mercantilista.
A falta de um acurado distinguishing entre esses dois tão diferentes casos têm ge-
rado decisões conflitantes sobre a existência ou não de vínculo de emprego entre o pastor
e a Igreja Universal do Reino de Deus, assim como sobre a competência para apreciar
pretensões (como danos morais) decorrentes dessa relação, culminando em conflitos de
competência entre a Justiça do Trabalho e a Justiça Comum. Tanto o Tribunal Superior do
Trabalho (TST) como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm decisões atraindo e rejei-
tando suas respectivas competências para casos envolvendo as citadas partes.

3
Vide, por exemplo, os links: https://www.youtube.com/watch?v=lqUbiBIVi-g , https://www.youtube.
com/watch?v=iBZF-PNfl1Q , https://www.youtube.com/watch?v=et7Q79z9Q6I , https://tviplayer.iol.pt/
programa/o-segredo-dos-deuses/5a2e9e520cf28cad2995c3d0/video/5b119efb0cf248a37235b479

256
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

À vista do exposto, o presente artigo traz como problema a definição das diferenças
entre o trabalho vocacional (profissão de fé) e o exercício de uma profissão que não mais se
enquadra como legítimo sacerdócio, analisando-se também, a partir dessa problemática, a
questão da competência para apreciar demandas que tratam da natureza do vínculo entre o
chefe espiritual e sua instituição religiosa ou de pretensões derivadas dessa relação.
A pesquisa realizada classifica-se como empírica e qualiquantitativa, de base do-
cumental, a partir de estudo de casos, com análise comparativa entre a realidade e as de-
cisões jurisprudenciais da Justiça do Trabalho e da Justiça Comum, complementando-se
com a doutrina atinente. Para tanto, utilizou-se o método indutivo e a metodologia de
análise descritiva de dados.
1. Distinguishing
Distinguishing é o termo jurídico utilizado para quando se observa que determinado
precedente não é aplicável a um caso processual aparentemente a ele similar, por se
identificar que este apresenta peculiaridades que o diferem das premissas fáticas e das
razões de decidir do caso precedente.
Desse modo, a fim de uniformizar a jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e
coerente, os julgadores precisam investigar as circunstâncias fáticas que motivam os pre-
cedentes fixados e, por consequência, também as circunstâncias fáticas que envolvem o
caso em apreço. Até porque, se as peculiaridades do caso concreto forem desconsideradas
no processo de apreciação do Direito aplicável, é possível que lesões ou ameaças ao di-
reito escapem da apreciação do Poder Judiciário.
Quanto à relação entre os chefes religiosos e suas respectivas igrejas, no julga-
mento do Agravo de Instrumento em Recurso de Revista nº 0001007-13.2011.5.09.0892,
publicado em 05/12/2014, a 3ª Turma do TST, por unanimidade, em voto de relatoria do
Ministro Alexandre Agra Belmonte, assentou que não se descaracteriza o vínculo voca-
cional entre as partes o fato de o líder espiritual propagar a liturgia pregada em meios
de comunicação (rádio, TV, panfletos, etc), assim como o fato de receber remuneração
quando esta não tem por fim retribuir o trabalho prestado, mas sim prover o sustento do
que se vincula à profissão da fé.
Entendeu-se, ainda, que a existência de uma hierarquia dentro da congregação reli-
giosa, com atribuições específicas, por si só, também não configura vínculo de emprego.
Igualmente, a acumulação das atividades religiosas com tarefas básicas de dirigência da
unidade institucional (como arrecadação de fundos de receita, divisão de papeis a serem
desempenhados na cerimônia religiosa) também não refuta, segundo o referido julgado, o
exercício da atividade religiosa, assim como o fato do pastor ser responsável pela manu-
tenção da igreja a qual dirige, acumulando determinadas funções administrativas.
Deveras, todas as situações supracitadas fazem parte do cotidiano do exercício
profissional de diversas religiões. É comum que os líderes religiosos, inclusive os que
gerenciam determinada unidade institucional, atuem em meios de comunicação, rece-

257
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

bam remuneração (comumente chamada de “ajuda de custo” ou “prebenda”) para o seu


sustento e da sua família, enquadrem-se em determinada hierarquia institucional, fiquem
responsáveis por providenciar o pagamento de certas contas, entre outros papeis decisio-
nais e administrativos.
No entanto, todas essas práticas devem ocorrer em função ou em razão do líder
espiritual ter como principal ofício a prática daquela religião, que constitui a principal ati-
vidade da qual se ocupará a igreja que ele integra, pois as instituições religiosas também
são pessoas jurídicas (inciso I do artigo 16 do Código Civil) e também possuem, portanto,
uma atividade principal.
Contudo, constatou-se, em alguns casos, que a relação entre o chefe religioso e a
igreja não se enquadrava nas circunstâncias fáticas acima enumeradas.
No supracitado julgado (AIRR nº 0001007-13.2011.5.09.0892), o ministro relator
primeiramente indicou o que poderia ser enquadrado como atividade religiosa e quais cir-
cunstâncias não eram aptas a afastar esta natureza. Após, o ministro apontou que o pedido
de reconhecimento de vínculo de emprego formulado in casu não se fundamentava em
nenhuma das circunstâncias inaptas a afastar a presunção de vínculo vocacional, mas em
outras causas de pedir. Em verdade, conforme fixado na referida decisão, ficara constata-
do nos autos que o pastor, naquele caso, era obrigado a ir habitualmente a treinamentos
de campanhas de arrecadação de receitas, tinha horário diário definido para o exercício
do trabalho (pelo que era fiscalizado) e eram fixadas diretrizes a serem seguidas e setores
a que o pastor deveria se reportar caso houvesse algum problema administrativo.
Além disso, a citada decisão estabeleceu que, naquele caso, o trabalho, de natureza
não eventual, era destinado ao atendimento das necessidades da instituição e que consistia
no gerenciamento da igreja e na participação obrigatória em cultos e programas de rádio
e televisão, cujo fim não era a divulgação da ideologia da instituição religiosa, mas sim
a arrecadação de receita, “servindo a religião apenas de meio para o convencimento dos
fiéis”, segundo a decisão.
Após investigar o aspecto antropológico do neopentecostalismo, ORO (2001, p. 80)
conclui ser necessário distinguir “a lógica das igrejas-empresas, que necessitam arrecadar
dinheiro para se manterem, e a dos fiéis que participam dessas mesmas igrejas, para os
quais o dinheiro constitui uma mediação sacrificial que se vincula à lógica simbólica do
dom”.
Em face disso, no acórdão do referido julgado (AIRR 1007-13.2011.5.09.0892), a
3ª Turma do TST entendeu ter se constatado que: “os pastores trabalhavam, na verdade,
pela remuneração mensal, como vendedores da ideologia religiosa da entidade, com obri-
gação de atingir quotas obrigatórias de venda de revistas e jornais, com subordinação a
metas de arrecadação, sob pena de despedida”.
Em casos como esse, observa-se que a igreja vai muito além do que deveria ser a
sua relação com os seus líderes, a qual, quando autenticamente vocacional, consiste pre-

258
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

cipuamente na orientação para o exercício e propagação da religião segundo as diretrizes


da fé.
Por outro lado, nos casos em que se forma um vínculo empregatício, vê-se que a
instituição religiosa, na verdade, submete seus representantes ao cumprimento de tarefas
institucionais que não derivam dos mandamentos da fé, mas sim dos objetivos capitalis-
tas da pessoa jurídica, sujeitas à fiscalização e à penalização, e os remunera conforme o
atingimento de metas financeiras, o que também se fixa como pressuposto para ascensão
hierárquica.
Revela-se, assim, uma estrutura planejada para a arrecadação de receitas, com base
no que se estipula a remuneração, a elevação eclesiástica, a fiscalização e a penalização
das condutas dos pastores, sendo a angariação de fundos a finalidade principal da pessoa
jurídica que compõe a igreja.
A existência da subordinação jurídica em casos como o descrito será melhor deta-
lhada nos próximos tópicos, limitando-se o presente a destacar a importância do supra
explanado distinguishing. Com isso, evita-se que violações de Direito fiquem escondidas
na suscitação de precedentes incompatíveis ao caso, o que fere não apenas o princípio da
inafastabilidade da jurisdição, como também a confiança no Judiciário4.
BRAGA e YAMAGI (2016), in “Direitos Sociais dos Trabalhadores Religiosos
Neopentecostais na América Latina: comparações entre Brasil e Chile”, alertam que, no
Chile, a realidade jurídica é diferente quanto aos costumes relativos às formas de contra-
tação dos pastores em relação ao Brasil, pois as igrejas protestantes e as igrejas batistas
chilenas firmam com seus litúrgicos contratos de trabalho, assim como o fazem com os
demais trabalhadores. Face a isso, as juristas criticam a postura da jurisprudência nacio-
nal quanto ao mérito:
Apesar de todas as especificidades do trabalho religioso neopentecostal, sub-
metidos à lógica do lucro tal como qualquer empregado de empresa da socie-
dade capitalista, o judiciário trabalhista tem uma forte e sedimentada juris-
prudência que não reconhece vínculo de emprego entre pastor e igreja, por
uma questão dogmática, que desconsidera a análise de aspectos sociológicos,
temporais, locais e o pluralismo religioso. A falta de amparo estatal para a
atividade deixa um campo aberto para que a exploração mercantilista dos ope-
rários da fé seja acobertada sob o manto da defesa da liberdade religiosa e da
separação Estado-Igreja, segundo o qual o Estado não pode intervir em assun-
tos de domínio religioso. (BRAGA; YAMAGI. 2016, fl.10)

4
Nesse contexto, louvável a decisão da 5ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho no julgamento do Re-
curso de Revista nº 157500-11.2012.5.17.0132, proferida em 08/10/214, sob a relatoria do Desembargador
Relator Convocado Marcelo Lamego Pertence, na qual se fixou que: “As relações jurídicas se definem e
se conceituam pelo seu real conteúdo, pouco importando a nomenclatura atribuída pelas partes. Sendo as-
sim, sempre prevalecerá a situação fática real ocorrida. No caso, a única premissa lançada para se afastar
a relação empregatícia consistiu no fato de se tratar de pastor de igreja que desenvolve atividade ligada à
evangelização de fiéis na comunidade religiosa. Todavia, as instâncias ordinárias nada cogitaram acerca dos
outros requisitos formadores da relação empregatícia, nos termos estabelecidos no art. 3º da CLT”.

259
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

A ausência desse distinguishing tem dado margem para decisões divergen-


tes por parte do TST, que ora entende que a relação entre pastor e igreja evangélica,
por ser eminentemente religiosa, é de competência da Justiça Comum (AIRR 11136-
18.2015.5.03.0112, Min. Vieira de Mello Filho, publicada em 05/06/2018) e ora entende
que essa relação, dada as peculiaridades do caso, pode se caracterizar como de emprego
(RR 1980-83.2008.5.01.0065, 7ª Turma do TST, data de julgamento: 08/02/2012), atrain-
do a competência para apreciação e julgamento desses feitos para a própria Justiça do
Trabalho.
Essa mesma desarmonia ocorre também na jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça (STJ), de modo que existem decisões no sentido de que a apreciação da sobredita
relação é da competência da Justiça Comum (CC: 169895/SC – STJ – DJe 05/03/2020),
mas também existem julgados no sentido de que cabe à Justiça do Trabalho verificar o
exame da pretensão, “...ainda que só para indeferir a petição inicial e/ou extinguir o pro-
cesso, quando verificar que não existe relação de emprego” (CC 98704/RJ- STJ – DJe
04/03/2009).
Há também decisão do STJ no sentido de que a competência para a apreciação de
pedido decorrente da relação entre pastor e igreja será da Justiça Comum, porquanto “a
causa de pedir e o pedido deduzidos na exordial nem sequer se referem à existência de
relação de trabalho entre as partes” (CC: 125472/BA – STJ – DJe 09/04/2013).
Por isso, faz-se necessária uma detida análise dos casos concretos a fim de que,
após a realização do distinguishing, possibilite-se a produção de uma jurisprudência mais
harmoniosa quanto ao mérito e pacifique-se a questão da competência para apreciar as
demandas derivadas da relação entre instituições religiosas e seus representantes e da nor-
ma material aplicável às lides entre estas partes - duas questões que serão aprofundadas
a seguir.
3. Subordinação Religiosa e Subordinação Jurídica
Conforme pontuado, nas demandas entre igrejas e seus representantes, a controvér-
sia geralmente gira em torno de qual deve ser a norma material aplicável, o que depende-
rá dos elementos da relação estabelecida entre as partes, cuja análise poderá resultar na
aplicação da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) ou da Lei do Trabalho Voluntário
(Lei 9.608/98).
Como explana FRAGA (2011, p. 44), a cada ano surgem novas formas de relação
de trabalho, que sequer poderiam ser imaginadas pelo legislador à época do surgimento
do Direito Laboral – quando a realidade era de uma sociedade industrial. Por isso, essas
novas relações às vezes escapam do âmbito de proteção formal do Direito do Trabalho.
Em razão disso, o jurista destaca a necessidade de novas reflexões acerca de um dos mais
importantes conceitos no estudo desse ramo jurídico - o da subordinação.
Nas ações em que religiosos pedem o reconhecimento de vínculo de emprego com
sua igreja, os requisitos da pessoalidade, habitualidade e onerosidade (art. 3ª da CLT)

260
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

são facilmente verificáveis. Os litúrgicos, na maioria das vezes, tem que celebrar as ce-
rimônias religiosas pessoalmente, de forma habitual e recebem da igreja algum tipo de
remuneração (chamada de “prebenda” ou “ajuda de custo”). Mas a questão da existência
ou não de subordinação entre o clérigo e a instituição religiosa é, na esmagadora maioria
dos casos, o ponto de divergência jurisprudencial, por isso focaremos nela.
Para melhor aprofundamento, detalharemos a seguir como a subordinação jurídi-
ca dentro de uma relação aparentemente vocacional pode ser constatada se verificada a
preponderância de uma estrutura capitalizada dentro da igreja ou o desvirtuamento do
serviço religioso.
3.1. Estrutura capitalizada da pessoa jurídica registrada como instituição religiosa
Conforme citado no julgamento do AIRR nº 0001007-13.2011.5.09.0892, a existên-
cia de uma estrutura hierárquica dentro da instituição religiosa, por si só, não implica no
reconhecimento de vínculo de emprego, pois, de fato, toda pessoa jurídica, independente
de seus fins, precisa de uma estrutura para melhor organizar o desempenho do seu objeto.
Do mesmo modo, a existência de um planejamento para a arrecadação financeira
também não implica, por si só, que a igreja tenha uma estrutura capitalista. Afinal, vive-
mos em um mundo em que, na maioria dos países, se adota esse sistema econômico, o que
significa que até as instituições sem fins lucrativos têm que arrecadar dinheiro para pagar
suas contas e até para a realização de atividades filantrópicas.
Por outro lado, quando a organização da pessoa jurídica registrada como igreja está
mais voltada para a obtenção de lucro do que para o exercício e expansão da religião,
vê-se que essa pessoa jurídica possui uma estrutura (e, portanto, uma finalidade) predomi-
nantemente capitalista, e não religiosa. A religião também estará presente na instituição,
claro, mas em uma função adjacente e, algumas vezes, até instrumental (como meio para
captação de pessoas que possam aumentar a arrecadação monetária).
ORO (2001, p. 73) explana que, no neopentecostalismo5, a riqueza material é con-
siderada como símbolo da graça divina, diversamente da maioria das religiões, nas quais
o dinheiro é visto como algo, sobretudo, impuro. Por isso, o antropólogo afirma que o
“neopentecostalismo junta a lógica do dom com a lógica do mercado” (Oro, 2001, p. 82).
Para CAMPOS (1995), a Igreja Universal do Reino de Deus organiza-se de forma
a facilitar o controle centralizado da instituição, o que, numa situação de mercado, viabili-
za a padronização interna na manufatura do produto religioso. Na mesma linha, PASSOS
(2014, p. 198) afirma que: “Com visão empresarial objetiva, logística espiritual sofistica

5
ORO (2001) utiliza a denominação de “neopentecostalismo” para individualizar o tipo de pentecostalis-
mo que emergiu no Brasil a partir da década de 1960, cujas igrejas apresentam as seguintes características
(Oro, 2001, p. 73): exclusividade nos serviços e meios de salvação; ênfase na realização de milagres me-
diatizados pelas igrejas, com testemunhos públicos dos mesmos; ênfase em rituais emocionais; uso intenso
dos meios de comunicação de massa (impressos, radiofônicos, televisivos e informatizados); combinação
de religião com marketing, dinheiro e, em alguns casos, política; sensibilidade para captar os desejos dos
fiéis e projeto de constante expansão.

261
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

da e grande oferta de bens e produtos simbólicos personalizados, as igrejas neopentecos-


tais tornaram-se grandes conglomerados empresariais alicerçados no mercado religioso”
(APUD LUNA, 2019, p. 42).
A pedra de toque encontra-se justamente na estrutura organizacional da igreja.
Quando a instituição religiosa tem como finalidade o exercício e a propagação da sua fé,
vê-se que sua estrutura é planejada para precipuamente atender a esse objetivo, ainda que
haja, de forma secundária, um planejamento para arrecadação financeira - esta, no entan-
to, não compõe a base estrutural da instituição.
Nessa situação, a natureza da relação jurídica entre o líder espiritual e sua igreja,
é de fato, vocacional, pois, como ensina URIARTE (2013, p. 505-506), a intenção do
litúrgico é a de propagar a ideologia, formando-se, nesse caso, um vínculo religioso (ou
mesmo associativo), que afasta qualquer possibilidade de construção de contrato de tra-
balho ou de prestação de serviços civis.
De outra sorte, revela-se clara a estrutura capitalizada da pessoa jurídica quando
a instituição religiosa, por exemplo, submete seus representantes a treinamentos obri-
gatórios para arrecadação de fundos6, quando atrela a ascensão hierárquica e o valor da
remuneração do religioso à quantidade de dinheiro por ele arrecadado ou quando exige
dele o cumprimento de metas financeiras, sobre as quais ele será sujeito à fiscalização e a
punições administrativas (como a transferência para congregação menor).
Vê-se, ainda, que, em alguns casos, a IURD também exigiu a participação de seus
representantes em meios de comunicação (rádio, tv, revistas, etc), mas não para o fim de
divulgação da ideologia, e sim para arrecadação de receita.
Ao notar o crescente número de reclamações trabalhistas de pastores face a igrejas
evangélicas, FRAGALE FILHO et. al. (2004) realizaram um estudo acadêmico que re-
sultou no artigo “O vínculo Empregatício dos Pastores Evangélicos: Notas Conclusivas”,
o qual, embora publicado em 2004, guarda uma semelhança impressionante com os dias
atuais, inclusive em relação ao acanhamento da jurisprudência trabalhista quanto ao mé-
rito.
Nesse trabalho, cuja pesquisa pautou-se na análise de processos judiciais da época,
os autores destacam que:
Nota-se uma clara lógica empreendedora nas igrejas pentecostais, fruto de
uma visão nitidamente empresarial, que supera a lógica religiosa em muitos
aspectos. Esta afirmativa poderia ser um esboço de explicação para o aumen-
to do número de pastores reivindicando o reconhecimento de vínculo em-
pregatício, justamente contra estas igrejas. Existe, em tais instituições, uma

6
Quanto à formação teológica, CAMPOS (2006, fl. 125) apurou que no treinamento dos pastores iurdianos
dá-se pouca ou nenhuma ênfase à escolarização sistematizada, ao contrário de outras religiões que exigem
formação teológica com aulas de hebraico, grego, exegese e hermenêutica. Esses requisitos, contudo, não
são exigidos na IURD porque, nas palavras do autor - (…) é no cotidiano que o futuro pastor assimila, não
somente um universo simbólico, mas sobretudo as melhores técnicas de como trabalhar o público, tirar uma
boa coleta, dar um bom conselho, realizar milagres e fazer exorcismo.” (Campos, 2006, fl. 126).

262
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

organização interna empresarial, uma exigência constante de lucro e produtivi-


dade dos pastores, somada ao fornecimento de vantagens indiretas aos mesmos
e a existência de uma carreira eclesiástica com caráter de ascensão funcional.
Tudo isso ocorre em meio a uma frenética disputa de mercado por conversões,
as quais acontecem sem maiores dificuldades, emolduradas pelo gosto do fiel-
-consumidor, diante de um serviço que é avaliado em função da satisfação que
consegue lhe proporcionar e pelo marketing agressivo utilizado pelas igrejas.
A fé transforma-se, assim, em uma relação de consumo, e o Estado ainda não
definiu seu papel perante esta realidade: deve ou não proteger o cidadão-con-
sumidor de possíveis enganações e explorações e, caso deva, como conciliar a
demanda de intervenção nos domínios da fé com a ideia de um Estado laico?
(2004, p. 31)

Acerca da visão jurídica a respeito do tema, os autores (Fragale Filho et. al., 2004,
p. 39) registram ser evidente a resistência do Judiciário Trabalhista em admitir o vínculo
empregatício entre pastores e igrejas, o que consubstanciaria uma visão dogmático-ju-
rídica do fenômeno, a qual não se coaduna com a percepção do Direito como parte de
um sistema social, com todas as suas implicações, indefinições e mudanças. Por isso, os
autores salientam ser preciso, sobretudo, conhecer a realidade em que se situam as partes
em questão, tanto a igreja, com seu expansionismo desenfreado e desregrado, quanto os
pastores, com a exploração de seu trabalho sem nenhum tipo de controle ou punição.
Depreende-se, com base no exposto, a importância da evolução, mormente juris-
prudencial, no que tange à enraigada presunção de que a relação entre líder religioso e
sua igreja pode ostentar apenas caráter vocacional – uma generalização que, além de me-
nosprezar as peculiaridades do caso concreto, despreza também as mudanças ocorridas na
sociedade no decorrer do tempo.
3.2. Desvirtuamento do serviço religioso
No julgamento do Recurso de Revista nº 19800-83.2008.5.01.0065, a 7ª Turma
do TST fixou o que seria o desvirtuamento do serviço religioso, o qual pode ser praticado
tanto pelo litúrgico, de forma individual, como pela instituição religiosa, organizacional-
mente. Vejamos:

Pode ocorrer, no entanto, o desvirtuamento do serviço religioso, com con-


sequências variadas para as relações entre o religioso e a instituição a que
pertence:
a) desvirtuamento do religioso, que perde o sentido mais elevado de sua vo-
cação e que pretende receber uma “indenização” pelos anos de dedicação à
instituição na qual serviu, ao se desligar dela; e
b) desvirtuamento da instituição, que perde o seu sentido de difusão de uma
determinada fé, para transformar-se em “mercadora de Deus”, estabelecendo
um verdadeiro “comércio” de bens espirituais, mediante pagamento.
No primeiro caso, o desvirtuamento da vocação religiosa não permite o reco-
nhecimento de uma relação de emprego com a Instituição à qual se filiou o
“religioso”. Isto porque os integrantes da hierarquia da Igreja, os membros de

263
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

uma ordem religiosa, os pastores, rabinos e representantes das diversas religi-


ões se confundem com a própria instituição.
No segundo caso, pode haver instituições que aparentam finalidades religiosas
e, na verdade, dedicam-se a explorar o sentimento religioso do povo, com fins
lucrativos. Nesse caso, o caráter “comercial” da “igreja” permite que seja reco-
nhecido o vínculo empregatício entre os “pastores” e a instituição. Só assim
se entende que haja sindicatos de pastores, criados para defender os interesses
trabalhistas de uma “categoria profissional dos pastores” contra uma “catego-
ria econômica das igrejas evangélicas”. (TST - RR: 198008320085010065,
Relator: Ives Gandra Martins Filho, Data de Julgamento: 08/02/2012, 7ª Tur-
ma, Data de Publicação: 10/02/2012)

Verifica-se, assim, que o desvirtuamento do serviço religioso pela igreja pode ser
constatado quando a atividade dos seus representantes não é orientada para priorizar o tra-
balho de cunho altruístico, eclesiástico, focado no desenvolvimento espiritual. Ao invés
disso, os chefes espirituais são orientados a priorizar os resultados lucrativos (arrecada-
ção de fundos) - objetivo este que sai da esfera de pretensão adjacente da igreja e passa a
ser uma prioridade institucional, a qual é repassada para o litúrgico, inclusive por meio de
exigências (como a submissão à cirurgia de vasectomia) que derivam da priorização dos
objetivos financeiros da instituição, e não dos dogmas da religião professada.
Desse modo, ainda que os autos não demonstrem que determinada igreja detém uma
estrutura capitalista, caso se demonstre que eram exigidas do litúrgico práticas alheias às
advindas dos dogmas da fé, restará comprovado o desvirtuamento do serviço religioso
prestado por aquela instituição, o que lhe retirará a presunção de funcionamento para fins
sacramentais e a submeterá às regras gerais atinentes às demais pessoas jurídicas, como
a possibilidade de reconhecimento de vínculo de emprego entre ela e seus prestadores de
serviço (representantes).
É importante destacar que o reconhecimento do vínculo de emprego, nesses casos,
em nada ofende o direito da parte ou da instituição à liberdade religiosa - esta é assegurada
pela Constituição (art. 5º, inc. VI) com vistas a proteger o livre exercício e propagação de
dogmas de fé, quaisquer que sejam.
É incabível, entretanto, que o direito à liberdade religiosa seja deturpado para fins
alheios ao que se destina (proteção à convicção espiritual) e seja usado como escusa para
violação de direitos sociais e da dignidade da pessoa humana.
O direito à liberdade religiosa, tão acertadamente assegurado pelo constituinte, não
pode ser usado como fachada para acobertar o exercício de atividade mercantilista e para
fugir da regulamentação cabível quanto à exploração da mão de obra humana para fins
capitalistas.
Em suma, restará resguardada a natureza vocacional da relação entre a igreja e seus
representantes quando as ordens às quais estes forem submetidos encontrem justificativa
nos dogmas da fé veiculada, o que não pode ser confundido com a submissão de chefes
litúrgicos a diretrizes sem embasamento na religião praticada, fixadas pela pessoa jurídica
que se reveste de igreja.

264
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Nos casos em que se reconheceu o vínculo de emprego entre pastores e a Igreja


Universal do Reino de Deus, esta exigia condutas que iam além dos dogmas estabele-
cidos pela fé, ultrapassando a subordinação religiosa (dever de adequação do litúrgico
aos dogmas de sua igreja) e adentrando na subordinação em relação à pessoa jurídica
(para ingressar ou ascender naquela instituição, o pastor deveria cumprir determinados
requisitos que não são atrelados à religião, como a submissão à cirurgia de vasectomia ou
cumprimento de metas de arrecadação financeira sequencialmente majoradas).
Como exemplo de autêntica subordinação religiosa, pode-se citar a norma a que se
submetem as Testemunhas de Jeová quanto à não doação ou transfusão de sangue, pois
elas acreditam em uma interpretação da Bíblia7 segundo a qual tais atos seriam proibidos
– um regramento que, portanto, deriva da religião. Outro exemplo é o dos rabinos, que,
assim como todos os judeus, são proibidos de comer carne de porco, isso porque o seu
livro sagrado8 o considera um animal impuro. Esses comandos, portanto, derivam da fé
professada e têm uma justificativa em razão dela. .
Quando uma condição é exigida ao religioso, não pelos dogmas da fé praticada,
mas sim pela pessoa jurídica que representa aquela igreja, essa subordinação claramente
não é mais religiosa, e sim jurídica, pois não é imposta para atender à profissão da fé,
mas sim para atender aos interesses da pessoa jurídica que corporifica o exercício de uma
atividade que se disfarça de religiosa.
Paralelamente a isso, é preciso destacar que nem mesmo o direito de religião é ab-
soluto, pois vivemos em um Estado baseado na lei (Estado de Direito), e não na religião
(teocracia). Assim, quando o direito de religião conflita com outros direitos fundamentais,
a solução será jurídica, o que resultará na aplicação da técnica da ponderação.
Conforme leciona LIMA (2014), na vida prática, podem ocorrer choques ou con-
flitos de direitos fundamentais, então chamados de colisões, as quais são resolvidas pelas
regras da Hermenêutica moderna, buscando-se, se possível, a harmonização plena desses
direitos ou, ao menos, a preservação dos seus respectivos núcleos. Em última circuns-
tância, sacrifica-se pontualmente o direito a ser menos afetado, que não tenha risco de
irreversibilidade, que seja de menor relevância naquele momento específico, que cause
menor impacto ao interesse público ou social e que leve em conta o menor número de
pessoas prejudicadas.

7
Em Gênesis 9:4, Deus disse a Noé: “Somente a carne com a sua alma — seu sangue — não deveis co-
mer.”. Em Levítico 17:14, Deus disse que: “Não deveis comer o sangue de qualquer tipo de carne, porque
a alma de todo tipo de carne é seu sangue. Quem o comer será decepado da vida.”. Em Atos 15:20, Deus
disse: “Abstenham-se do sangue.”.
8
Segundo a página eletrônica da organização judaica Chabad-Lubavitch, essa proibição encontra-se na
Torá, de modo que a tradução do mandamento Divino original, em Devarim [Deuteronômio] capítulo 14:8-
10, diz que: “E o porco, porque tem um casco fendido, mas não rumina seu alimento; não é puro para ti. Não
podes comer sua carne nem tocar sua carcaça. Esses podes comer de todos que estão nas águas; todos que
tenham barbatanas e escamas, podes comer. Mas aquele que não tenha barbatanas e escamas, não comerás;
é impuro para ti.”

265
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

É o caso, por exemplo, de decisões judiciais9 que, diante do grave risco de vida nas
situações apresentadas, consideraram lícita a conduta de médicos que realizaram transfu-
são de sangue em pacientes Testemunhas de Jeová, independentemente do consentimento
delas ou de seus pais, quando o paciente era menor de idade.
Face ao exposto, resta assente a necessidade de detida análise de cada caso concreto
a fim de que nenhum direito fundamental seja desconsiderado.
4. Competência da Justiça do Trabalho
Conforme já relatado, a competência da Justiça Laboral para apreciar demandas en-
tre religiosos e suas respectivas igrejas tem sido objeto de controvérsia tanto nessa Justiça
Especializada como na Justiça Comum, inclusive pelos órgãos de cúpula dos respectivos
seguimentos (TST e STJ), razão pela qual o sobredito distinguishing (entre os casos de
relação legitimamente vocacional e os de relação empregatícia) poderia auxiliar na pro-
dução de uma jurisprudência mais coesa.
Contudo, ainda que se entenda que a relação de trabalho entre o litúrgico e sua
igreja não é de índole empregatícia, ela se qualificaria como trabalho voluntário (Lei
9.608/1998), razão pela qual as pretensões baseadas nessa relação (ex.: danos morais
decorrentes do exercício da atividade ou ressarcimento de despesas de custo) deveriam
ser ajuizadas na Justiça do Trabalho, que, nos termos do art. 114, inc. IX da CF, detém a
competência para processar e julgar outras controvérsias decorrentes da relação de traba-
lho, na forma da lei.
Como as relações de trabalho são o gênero do qual as relações de emprego são
espécie, a competência da Justiça Laboral para apreciar e julgar as relações de trabalho
deveria compreender todas as relações que envolvem o trabalho humano.
Portanto, não deveria haver conflito (negativo ou positivo) acerca de qual órgão de-
tém a competência para apreciar e julgar as lides trabalhistas entre instituições religiosas
e seus representantes, de modo que a Justiça Laboral, ao receber tais ações, analisaria ape-
nas se é o caso de legítimo vínculo vocacional (aplicando a Lei do Trabalho Voluntário)
ou de vínculo empregatício (aplicando a CLT) - caso detectada a existência de subordina-
ção jurídica, conforme os critérios acima explanados. Nesse sentido:
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. IGREJA. PASTOR. RE-
LAÇÃO DE TRABALHO. DANOS MORAIS. ART. 114, I E VI, DA CONS-
TITUIÇÃO DA REPÚBLICA. Ainda que não haja pedido de vínculo empre-
gatício, o dano moral requerido pelo Pastor em face da Igreja deriva direta-
mente de uma causa de pedir que define a competência absoluta, inderrogável,
da Justiça do Trabalho (art. 114, incisos I e VI, da Constituição da República),
que é a prestação de serviços típica de uma relação de trabalho e os danos
morais decorrentes. É a Justiça do Trabalho o ramo especializado para apre-
ciar lides envolvendo danos morais decorrentes de relação de trabalho, ain-

9
Vide, por exemplo, os julgados da Apelação Cível 0712619-82.2019.8.07.0001/DF e 000.190.354-1/00/
MG.

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Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

da que não de emprego, entre Pastor que labora para a Igreja. (TRT-1 - RO:
00020053520125010482 RJ, Relator: Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da
Silva, Data de Julgamento: 26/06/2013, Sétima Turma, Data de Publicação:
04/12/2013)
EMENTA. PASTOR EVANGÉLICO - VÍNCULO EMPREGATÍCIO. É pos-
sível existir contrato de trabalho entre o pastor e sua Igreja, eis que esta última
constitui pessoa jurídica de direito privado - inciso I do artigo 16 do Código
Civil e, como tal, pode ser empregadora e celebrar um contrato de trabalho.
Assim é que o pastor ou sacerdote poderá, independentemente de seus deveres
de sacerdote, estabelecer contrato de trabalho para a prestação de serviços que,
mesmo compatíveis com seus deveres, com eles não se confundem. A análise
deve ser feita em cada caso. Apenas quando demonstrados os elementos defini-
dores da relação de emprego, nos termos do artigo 3o. da CLT, esta poderá ser
reconhecida. (TRT-3 - RO: 2071308 00297-2008-055-03-00-0, Relator: Jales
Valadão Cardoso, Segunda Turma, Data de Publicação: 29/10/2008, DJMG.
Página 10. Boletim: Não.)

Não obstante, ainda que se entenda que a Justiça Comum seria a competente para
apreciar os casos em que não se busca o reconhecimento de vínculo de emprego com a
instituição religiosa, a Justiça do Trabalho deveria, ao menos, ter como reconhecida sua
competência para os casos em que há essa pretensão, pois a delimitação da causa petendi,
para fins de definição da competência ratione materiae, deve resultar também da análise
da causa de pedir imediata (ou próxima), ou seja, da aferição da natureza dos fundamen-
tos jurídicos que justificam o pedido.
De outro modo, o reconhecimento da competência da Justiça do Trabalho para
apreciar todas as lides laborais derivadas da relação ora discutida não só atende ao texto
constitucional, como também submete a apreciação dessas demandas à justiça especiali-
zada no trato do trabalho (força produtiva) do ser humano e que poderá entregar a tutela
satisfativa com mais celeridade10, mormente nos casos de reconhecimento de vínculo
empregatício, cuja urgência deriva da própria natureza alimentar das verbas em questão.
Considerações Finais
Como visto, a religião acompanhou a evolução das demandas sociais, sendo até
mesmo influenciada pelo capitalismo quando, no âmbito do neopentecostalismo, ressig-
nificou o que a abundância de bens materiais e a busca por eles representa na vida terrena,
pregando-se uma teologia segundo a qual a prosperidade financeira seria a vontade de

10
Conforme dados do Conselho Nacional de Justiça, disponíveis no relatório “Justiça em números”, re-
lativo ao ano de 2020, o tempo de tramitação dos processos na Justiça do Trabalho é bastante inferior ao
tempo de tramitação na Justiça Comum. Inclusive, o relatório informa que: “As maiores faixas de duração
estão concentradas no tempo do processo pendente, em específico na fase de execução da Justiça Federal
(7 anos e 8 meses) e da Justiça Estadual (6 anos e 9 meses)”. (in CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA.
Justiça em números. 2021. fl. 175. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/
WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf >. Acesso em 12
ago. 2021).

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XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Deus – alcançada, apenas, de forma recíproca, através da incomensurável doação material


à igreja.
Embora a antropologia, a psicologia, a sociologia e o Direito já tenham chamado a
atenção para esse fenômeno, o Estado ainda ignora a desproteção trabalhista, consume-
rista e constitucional do cidadão vítima de manipulação religiosa. Daí a necessidade de
se averiguar com diligência cada caso concreto, pois é preciso perceber que o direito à li-
berdade religiosa, quando genuinamente exercido, é plenamente compatibilizável com os
demais direitos fundamentais e sempre sujeito à máxima da dignidade da pessoa humana.
Referências
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www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%-
BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2021.
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2014/0219441-0. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/863920088/
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2019/0367935-9. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/861463664/
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Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

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Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

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Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

TRABALHO ESCRAVO INFANTIL:


histórias de um passado que insiste em nos assombrar

Lívia Mendes Moreira Miraglia1


Marcela Rage Pereira2

1. Introdução
Era início do primeiro semestre de 2014 na faculdade de Direito da UFMG e assim
como em tantos outros semestres, a Divisão de Assistência Judiciária (DAJ) recomeçava
seus atendimentos. A área trabalhista havia sido recentemente reativada e esperávamos
receber aqueles casos que tratam de violações de direitos básicos trabalhistas e que são,
infelizmente, comuns: falta de pagamento de salários, não observância de cláusulas con-
tratuais, ausência de assinatura de CTPS, dentre outras lesões. Afinal, quando poderíamos
imaginar que trabalho escravo infantil ainda pudesse ser uma mazela tão próxima de nós?3
O trabalho infantil acomete mais de 168 milhões de crianças entre 5 e 17 anos no
mundo, sendo que 5 milhões estão submetidas ao trabalho análogo à escravidão, a maio-
ria em regiões mais afastadas e, principalmente, em atividades agrícolas4.
No Brasil, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD) Contínua de 2016, do total de 40,1 milhões de crianças de 5 a 17 anos, 1,8 mi-
lhão estava em situação de trabalho infantil (4,6%)5. Em 2015, contudo, os dados divul-
gados pelo IBGE apontam para o total de 2,7 milhões de crianças ocupadas6.
De acordo com o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho In-
fantil (FNPETI) e a Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil, em virtude de alteração

1
Professora Adjunta da Faculdade de Direito e Ciências do Estado da Universidade Federal de Minas Ge-
rais e membro do corpo permanente de professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG.
Coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG.
Doutora em Direito do Trabalho pela UFMG. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/MG.
2
Mestranda em Direito da Linha de Pesquisa História, Poder e Liberdade do Programa de Pós-graduação
de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduada em Direito pela UFMG. Advo-
gada.
3
Relato da autora Lívia Miraglia sobre sua experiência como Professora Coordenadora da Divisão de
Assistência Jurídica da Faculdade de Direito da UFMG em 2014.
4
INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. World Report on Child Labour 2015. Disponí-
vel em: https://www.ilo.org/ipec/Informationresources/WCMS_374853/lang--en/index.htm. Acesso em:
2 dez. 2020.
5
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Trabalho Infantil 2016. 2017, p.2.
Disponível: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101388_informativo.pdf. Acesso em: 30
nov. 2020.
6
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: síntese de indicadores 2015. IBGE,
Coordenação de Trabalho e Rendimento. Rio de Janeiro: IBGE, 2016, np. Disponível em: https://biblioteca.
ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv98887.pdf. Acesso em: 16 nov. 2020.

273
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

na metodologia do IBGE que, em 2016 excluiu as crianças e adolescentes que trabalham


para o próprio consumo, os números reais são maiores do que o revelado pela estatística7.
Assim, o ideal seria ter em mente o número de 2,7 milhões com base na PNAD
de 2015. Ainda não foram divulgados os dados dos anos subsequentes até o presente
momento. Todavia, tem-se conhecimento que, somente em 2019, das mais de 159 mil
denúncias de violações a direitos humanos recebidas pelo “Disque 100”8, cerca de 86 mil
(54%) estavam relacionadas com o trabalho infantil9.
Embora o trabalho infantil e o trabalho escravo contemporâneo sejam práticas que
guardam proximidade, seja pela ilicitude, seja pela exploração de pessoas vulneráveis,
seja pela sua ligação com a pobreza, eles não se confundem.
Em relação às estatísticas, não se sabe ao certo quantas crianças são submetidas ao
trabalho análogo ao de escravo no Brasil. Isso nos faz supor que a ausência de informação
se deve, provavelmente, em razão da sua invisibilidade, tendo em vista a dificuldade de
identificação, agravada pela herança cultural colonialista de normalização de certas práti-
cas típicas da escravidão moderna como corriqueiras e usuais.
No entanto, mais do que trazer à tona os números, o presente trabalho tem como ob-
jetivo humanizar a narrativa de casos e promover uma reflexão sensível sobre as mazelas
do trabalho escravo infantil, sobretudo o doméstico, na atualidade.
Para tanto, iniciaremos a análise a partir do caso da DAJ, a fim de ilustrar e de trazer
à tona uma história como a de tantos, mas que muitos ainda ignoram.
2. As Sombras do Passado
O caso atendido pela DAJ naquele início de semestre de 2014 é emblemático para
demonstrar como as violações dos direitos das crianças, por vezes, transvestem-se de
práticas arraigadas e normalizadas pela nossa sociedade.
A mulher que naquela tarde de março procurou atendimento na DAJ tinha por volta
de 48 anos, chamava-se Elina10 e ansiava pelo reconhecimento da sua “adoção à brasilei-
ra” pela senhora a quem se referia como mãe, dona Gertrude11.

7
IBGE muda metodologia: e Brasil tem oficialmente 1,8 milhão de crianças e adolescentes trabalhan-
do. Rede Peteca: Chega de trabalho infantil, Brasil, 29 nov. 2017. Disponível em: https://www.chegade-
trabalhoinfantil.org.br/noticias/materias/brasil-tem-tem-quase-1-milhao-de-criancas-trabalhando-de-mo-
do-proibido/. Acesso em: 2 dez. 2020.
8
O Disque 100 é um canal de comunicação que recebe, analisa e encaminha denúncias de violações de
direitos humanos.
9
SUDRÉ, Lu. Crescimento da exploração do trabalho infantil é risco iminente durante pandemia. Brasil
de Fato, São Paulo, 12 jun. 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/06/12/crescimen-
to-da-exploracao-do-trabalho-infantil-e-risco-iminente-durante-pandemia. Acesso em: 2 dez. 2020.
10
O nome é fictício.
11
O nome também é fictício.

274
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Os alunos que a atenderam decidiram, como é de praxe nesses casos, marcar um


novo encontro para dialogar com dona Gertrude e assim, pensavam eles, poder ingressar
com a ação. Ao que tudo indicava, tratava-se de um caso simples envolvendo direito de
família.
Contudo, a realidade mostrou-se complexa e nos colocou diante de uma situação
que é, ainda e infelizmente, muito mais recorrente do que qualquer dado ou estatística
possa e consiga comprovar.
A entrevista com dona Gertrude levou à descoberta de que Elina foi, na verdade,
explorada durante toda a sua vida. Segundo o relato da própria Gertrude, feito de forma
assustadoramente natural, a mãe biológica de Elina havia lhe entregado a filha para que
ela pudesse morar na capital. Acordaram que a menina, então com oito anos de idade,
faria todo o serviço doméstico da casa e que, em troca, Gertrude lhe permitiria morar e
comer na sua residência e, se possível, estudar.
Assim feito, por toda sua vida, Elina residiu com aquela família, pensando dela
fazer parte e referindo-se à dona Gertrude como “mãe” e aos filhos dela como “irmãos”.
Todavia, ficou evidente, após conversa individual e mais detalhada com Elina que
se tratava de hipótese evidente de trabalho escravo infantil doméstico.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, o trabalho em condições análogas à
escravidão ocorre quando se evidencia uma das suas quatro hipóteses legais: trabalho for-
çado, servidão por dívidas, submissão a condições degradantes de trabalho ou à jornada
exaustiva12.
No caso em análise, a prova dos fatos mostrou-se contundente na caracterização do
trabalho escravo. Elencamos alguns deles para ilustrar a situação.
Primeiro fato: Elina, ao contrário de seus “irmãos”, nunca teve um quarto próprio.
Dormia, inicialmente, em um colchão no chão ao lado deles. Quando eles cresceram e não

12
De acordo com o Código Penal brasileiro, trabalho em condições análogas à de escravo é assim precei-
tuado: Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados
ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por
qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação
dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela
Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de
trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do
trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
I - contra criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II  - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (Incluído pela Lei nº 10.803, de
11.12.2003). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm.
Acesso em: 16 nov. 2020.

275
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

desejaram mais uma “babá” dormindo em seu quarto, Elina “ganhou” o quarto de empre-
gada. Mais recentemente, após todos terem se mudado, havia “conquistado” o direito a
dormir em um dos quartos “de dentro”.
Segundo fato: o quarto onde Elina habita atualmente não foi escolhido de acordo
com suas preferências. É aquele que se localiza mais próximo do quarto de dona Ger-
trude, haja vista que a idade avançada da “mãe” instiga cuidados maiores e é importante
que ela esteja o mais próximo possível, pois obviamente, a função de cuidado cabe, ex-
clusivamente, a ela, todos os dias da semana, todas as horas do dia. Não havia descanso,
intervalo e muito menos férias.
Terceiro fato: sempre coube a Elina a obrigação de lavar, passar, cozinhar, arrumar
e limpar a casa. E não, não era uma simples divisão de tarefas entre crianças de uma casa
aprendendo a realizar trabalhos domésticos. Afinal, seus irmãos eram “homens” e confor-
me lhe foi ensinado “homem não faz essas coisas”13.
Quarto fato: Elina foi a responsável por cuidar e zelar dos seus “irmãos” durante
toda a sua infância. Destaca-se que o uso do pronome “sua” para qualificar infância é
proposital, haja vista que as infâncias de Elina e seus “irmãos” se confundem no quesito
temporal, uma vez que Elina tinha apenas oito anos quando chegou àquela casa. No que-
sito direitos, contudo, as infâncias não poderiam ser mais discrepantes e inconfundíveis.
Enquanto eles gozavam e desfrutavam todos os seus privilégios de meninos de classe
média, ela trabalhava sem cessar, sem direito a gozar e desfrutar de sua infância.
Aliás, é importante ressaltar que, mesmo após todas as conversas, Elina recusava-se
a reconhecer a exploração sofrida e negava ter qualquer vínculo jurídico empregatício
com “sua família”. Para Elina, o único vínculo possível existente entre eles era o de fa-
mília e de afeto.
A construção da sua identidade não permitia que ela se enxergasse como “emprega-
da doméstica” daqueles que eram sua única referência familiar e de amor. Muito menos
que se reconhecesse como “escravizada”.
A história de Elina parece tirada de uma reportagem do século passado ou de algu-
ma obra ficcional. No entanto, é uma realidade mais próxima e atual do que se imagina.
Nessa tarde de março de 2014, a vítima era Elina, mas poderia ter sido José, Car-
linhos, Eulália ou Zilda14. Todos eles foram, de alguma forma, atendidos pela Clínica de
Trabalho Escravo da UFMG no ano de 2016. Embora estivessem em diferentes cidades e
Estados, todos partilhavam uma história de vida semelhante.
Esses quatro trabalhadores rurais foram resgatados em fazendas do interior de Mi-
nas Gerais e Goiás pela fiscalização do Ministério do Trabalho. Todos já em idade avan-
çada e a maioria com alguma limitação, seja na fala, seja motora, seja cognitiva.

13
A fala é da própria Elina e denota além da naturalização de sua condição e do machismo arraigado em
nossa sociedade.
14
Nomes fictícios.

276
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

No curso da fiscalização, um denominador comum chamou atenção: todos eles re-


lataram ter “nascido e crescido” nas fazendas de onde foram resgatados. Trabalharam
de sol a sol, sem feriados, férias ou qualquer pagamento, praticamente, desde quando se
lembram existir. Tinham moradia e comida. Às vezes sobrava uns trocados na época da
colheita. Nenhum deles tinha Carteira de Trabalho e Previdência Social que comprovasse
seu histórico de trabalho ou que atestasse sua qualidade de “trabalhador”.
Além disso, todos tinham ou consideravam ter algum grau de parentesco com seus
“senhores”, havendo estabelecido um vínculo tortuoso de afeto e de gratidão que, muitas
vezes permitia sua submissão a castigos e a maus tratos físicos e psicológicos sem o ofe-
recimento de qualquer resistência15.
De acordo com o Coordenador Nacional do Programa de Combate ao Trabalho
Escravo da OIT Brasil, Luiz Machado, embora o índice numérico de crianças resgatadas
nas ações de fiscalizações tenha decrescido, há uma nítida relação entre trabalho escravo
e trabalho infantil.
Relatos como o de José, Carlinhos, Eulália e Zilda ilustram a vida de 92,6% dos
121 trabalhadores resgatados entre 2006 e 2007 em 10 fazendas de Mato Grosso, Pará,
Bahia e Goiás. Nesses casos, a idade média de ingresso dos trabalhadores nas atividades
laborais foi de 11,4 anos, mas 40% já trabalhavam antes dessa idade16.
Todas as histórias servem como alerta do subdimensionamento do trabalho escravo
infantil. E nos leva a concluir que a subnotificação, provavelmente, ocorre pelo mesmo
fato que leva essas crianças a serem submetidas, às vezes por toda a sua vida, à essa situa-
ção: sua condição de vulnerabilidade, de miserabilidade e de pobreza.
Afinal, como resgatar, efetivamente, alguém que sequer sabe que está sendo explo-
rado? Que desconhece outra realidade que não aquela? Que entende ser aquele o modelo
de família? Que passa a sua vida acreditando ser “merecedor” de punições e trabalhos
sem remuneração em troca de casa e de moradia? Que acredita ter sido salvo da fome e
da miséria?
Como fazer com que essas pessoas tenham voz? Como garantir a elas a liberdade
definitiva das amarras escravocratas que, ainda que invisíveis aos olhos, são capazes de
aprisionar e de furtar a infância e os sonhos? Como dar visibilidade a essas situações que
ocorrem dentro do ambiente familiar de pessoas que são consideradas pela sociedade
como honestas e do bem?
Como desmistificar a ideia de que tal condição é melhor para a criança, pois ao me-
nos permitiu a ela ter acesso a uma moradia, comida e, algumas vezes, ao estudo? Como
acabar com esses discursos e romper a cultura escravocrata que permite que tais casos
15
Sobre esse mesmo assunto ver a série de reportagens produzida em parceria com a Clínica de Trabalho
Escravo da UFMG pelo jornalista Leonardo Barbosa, intitulada Codinome Senzala. Disponível em: http://
historiaincomum.com.br/codinome-senzala-3/.
16
OIT alerta: 168 milhões de crianças realizam trabalho infantil no mundo. InPACTO, São Paulo, 12 jun.
2015. Disponível em: https://inpacto.org.br/oit-alerta-168-milhoes-de-criancas-realizam-trabalho-infantil-
no-mundo/. Acesso em: 2 nov. 2020.

277
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

sejam tratados com naturalidade pelos modernos “senhores de escravo” e, às vezes, até
mesmo por aqueles que deveriam combatê-los?
As histórias relatadas tiveram, em sua maioria, finais relativamente “felizes”. Se é
que se pode denominar de feliz qualquer resolução dada a essas situações. Fato é que, foi
dado aos casos soluções jurídicas que trouxeram alguma satisfação às vítimas.
Elina foi, após muitas reviravoltas e brigas, reconhecida como filha de dona Ger-
trude, conseguindo aquilo que tanto almejava: ter o nome daquela que considerava sua
mãe em seus documentos, a fim de poder dar publicidade, mesmo que após 48 anos, à sua
“real” identidade.
José, Carlinhos e Eulália foram resgatados das fazendas em que viviam e trabalha-
vam.
José conseguiu, após processo judicial, o reconhecimento da sua condição de víti-
ma, e o pagamento de indenização pecuniária, embora o pedido de desculpas tanto dese-
jado por ele nunca tenha se concretizado. O valor está longe de ser suficiente para reparar
o sofrimento de tantos anos, mas foi capaz de garantir-lhe a dignidade de poder realizar
o tratamento dentário que tanto almejava. Foi-lhe devolvida a capacidade de sonhar e de-
sejar e, um sorriso, ainda que tímido, voltou a compor o seu rosto marcado eternamente
pela sua história.
Carlinhos e Eulália também conseguiram, após o ajuizamento de ação trabalhista,
receber indenização pecuniária que lhes garantiu acesso a uma nova realidade e encheu-
-lhes de esperanças de poder viver o tempo que lhes resta com dignidade.
Nada obstante, importante destacar que qualquer montante em dinheiro não pode
ser compreendido como reparação integral diante da perda irreversível de não se viver e
de não se gozar de uma infância e de uma vida plenas.
Zilda, infelizmente, faleceu antes de ser resgatada. Ela representa, em nossa histó-
ria, todas aquelas crianças que, além de serem ceifadas de sua infância, não conseguem
sequer sobreviver para vivenciar a felicidade, ainda que tímida, de se perceberem mere-
cedoras de uma vida livre, digna e de se reconhecerem cidadãos portadores de direitos
inalienáveis.
O balanço que fizemos dessas ações reflete o retrato do trabalho escravo infantil
em nosso país: não há vencedores. Não se pode afirmar que, tenhamos sido vitoriosos em
nenhum dos casos, mas acalentamos nossos corações com a certeza de que fizemos o que
nos cabia juridicamente para que essas pessoas pudessem se reconhecer como cidadãos e
se perceberem destinatários de direitos e merecedores de uma vida digna.
3. Permanências do Trabalho Escravo Infantil
O trabalho infantil compreende toda e qualquer atividade realizada por crianças
e adolescentes menores de 16 anos. É o que estatui a Constituição da República em seu

278
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

art. 7º, inciso XXXIII17. A única exceção de ordem constitucional é o trabalho do apren-
diz, permitido a partir dos 14 anos, desde que preenchidos os requisitos legais e desde que
tenha por finalidade precípua a formação educacional da criança.
No Brasil, criança é toda pessoa menor de 12 anos, ao passo que adolescente com-
preende aqueles dentro da faixa etária de 12 anos completos até os 18 anos incompletos18.
Desse modo, nota-se que, qualquer forma de trabalho infantil é terminantemente proibida
pela Constituição e também pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que repro-
duz o dispositivo constitucional19.
Nesses termos, falar em trabalho infantil significa referir-se a uma violação de di-
reito constitucional. Não existe espaço para naturalizar um contexto em que há trabalho
de menor de 14 anos, na medida em que o princípio da proteção integral da criança não
coaduna com a exploração de sua mão de obra.
Noutro giro, à luz da conceituação contemporânea, o trabalho análogo ao de escra-
vo não tem como marcas a privação da liberdade de ir e vir, grilhões, correntes ou senza-
las. O núcleo jurídico tutelado pelo Código Penal é a dignidade humana.
Com efeito, “a redução de um ser humano à condição de escravo importa des-
tituí-lo de sua dignidade, e não de seus direitos trabalhistas.” 20. A dignidade deve ser
entendida em dois aspectos – individual e social – sendo que, a dimensão social exige o
respeito aos direitos fundamentais trabalhistas21.
Dessa maneira, uma criança submetida a condições análogas às de escravo neces-
sariamente está em uma situação de trabalho infantil, embora o contrário não seja sempre
verdadeiro.
Natália Suzuki, ao explicar a relação entre trabalho infantil e trabalho escravo, as-
severa que “o trabalho escravo contemporâneo e o trabalho infantil costumam estar as-
sociados de duas formas. Além de o escravizado geralmente começar a trabalhar muito
cedo, em muitos casos há a presença de crianças e adolescentes” submetidos à escravi-
dão22.

17
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 2 dez. 2020.
18
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
l8069.htm. Acesso em: 2 dez. 2020.
19
É o que estatui o art. 60 do ECA. Art. 60. É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de
idade, salvo na condição de aprendiz. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.
htm. Acesso em 2 dez. 2020.
20
MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira. Trabalho escravo contemporâneo: conceituação à luz do princi-
pio da dignidade da pessoa humana. 2ª ed. São Paulo: LTr, 2015, p. 155.
21
Ibidem.
22
SUZUKI, Natália Suzuki ; PLASSAT,  Xavier. O perfil dos sobreviventes. Escravidão Contemporâ-
nea. São Paulo: Contexto, 2020, p. 85.

279
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Além disso, quando se observa o quadro de geral de trabalhadores resgatados, per-


cebe-se que, em sua maioria são analfabetos ou com ensino fundamental incompleto23, o
que reforça a relação existente entre evasão escolar, trabalho infantil e trabalho escravo24.
De acordo com a PNAD Contínua de 2016, 18,6% das crianças ocupadas não fre-
quentavam a escola em 2016. Os dados mostram que os grupos de idade mais avançada
têm taxas menores de escolarização. Ainda, o comparativo evidencia que os jovens não
ocupados apresentam taxas superiores aos ocupados.25
Enquanto 97,1% das crianças de 14 ou 15 anos não ocupadas frequentavam a es-
cola em 2016, o percentual para as ocupadas foi de 92,1%. Na faixa etária dos 16 ou 17
anos a diferença é maior, posto que 86,1% dos adolescentes não ocupados frequentavam
a escola, em oposição a 74,9% dos ocupados. Destaca-se, ainda, que 94,8% das crianças
ocupadas frequentavam a rede pública de ensino. 26
Quanto à remuneração, tem-se que 74% das crianças entre 5 a 13 anos não recebiam
contraprestação financeira pelo seu trabalho.27
Insta salientar, porém, que esses dados devem ser compreendidos com ressalva me-
todológica. Até 2015, a PNAD considerava a produção para o consumo próprio, como a
pesca e o plantio de alimentos, atividades em que há maior incidência de trabalho infantil
abaixo de 13 anos28. Em 2016, porém, essas atividades deixaram de integrar os números
oficiais. Por conseguinte, além de ficarem excluídas de programas de prevenção e de
erradicação do trabalho infantil, essas crianças ficaram mais invisibilizadas e ainda mais
vulnerabilizadas.
Apesar dessa ressalva necessária, a PNAD de 2016 fornece dados importantes sobre
o perfil de sexo e de raça dessas crianças. Do total de crianças que estavam no mercado
de trabalho em 2016, 34,7% eram do sexo feminino e 65,3%, do sexo masculino29. O re-
latório pontua que houve aumento na participação de feminina no grupo de 14 a 17 anos.

23
Os dados do Observatório da Erradicação de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas apontam que 85%
dos trabalhadores resgatados no Brasil possuem tais características. Disponível em: https://smartlabbr.org/
trabalhoescravo/localidade/0?dimensao=perfilCasosTrabalhoEscravo. Acesso em: 2 dez. 2020.
24
SUZUKI, Natália Suzuki ; PLASSAT,  Xavier. O perfil dos sobreviventes. Escravidão Contemporâ-
nea. São Paulo: Contexto, 2020, p. 86.
25
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Trabalho Infantil 2016. 2017, p.
4. Disponível: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101388_informativo.pdf. Acesso em: 30
nov. 2020.
26
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Trabalho Infantil 2016. 2017, p.
4. Disponível: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101388_informativo.pdf. Acesso em: 30
nov. 2020.
27
Ibidem.
28
Nota do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI). Disponível em:
https://www.chegadetrabalhoinfantil.org.br/noticias/materias/brasil-tem-tem-quase-1-milhao-de-criancas-
-trabalhando-de-modo-proibido/. Acesso em: 2 dez. 2020.
29
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Trabalho Infantil 2016. 2017, p.
2. Disponível: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101388_informativo.pdf. Acesso em: 30
nov. 2020

280
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

A atividade agrícola foi predominante para as crianças de 5 a 13 anos (47,6%).


O percentual do trabalho doméstico girou em torno de 6,4%, número pouco expressivo
quando comparado com outras atividades. Contudo, há que se questionar a subnotificação
por detrás desse quantitativo, haja vista a natureza não econômica do trabalho doméstico
e o fato dele ser realizado no interior das residências, além do já mencionado aspecto
colonial e naturalizante que envolve esse tipo de trabalho.
Só para se ter uma ideia dessa subnotificação, em termos numéricos, o Observató-
rio da Prevenção e da Erradicação do Trabalho Infantil, demonstrou que em 2010 havia
253,3 mil crianças entre 10 e 17 anos no trabalho doméstico, sendo que o estado de Minas
Gerais apresentou a maior quantidade dessa população (34.693)30.
Quanto à raça, constatou-se predomínio de crianças pretas e pardas tanto no grupo
de 5 a 13 anos (71,8%), quanto no grupo de 14 a 17 (63,2%)31. Em paralelo, a partir das
características das pessoas resgatadas de trabalho escravo, tem-se que, no período de
2003 a 2018, 54% eram pretas e pardas32.
O trabalho escravo contemporâneo representa o ponto de confluência de vários as-
pectos de vulnerabilidade social, econômica, de gênero e de raça, reflexos da colonialida-
de, do racismo e do machismo permanentes e enraizados na nossa sociedade.
O ciclo da pobreza do trabalho infantil parece estar condicionado a “looping” eter-
no, considerando que a baixa escolarização empurra o trabalhador para os postos mais
precários de trabalho e o analfabetismo, ainda que funcional, impede-o de acessar direitos
fundamentais básicos.
Desse modo, não parece ser exagero afirmar que, muito provavelmente, o trabalha-
dor infantil de hoje será o trabalhador escravo de amanhã que pode ou não ser resgatado
em um “final de história feliz” ou sucumbir antes da libertação.
4. O Mito das “Filhas de Criação”
As crianças das histórias narradas acima, Elina, José, Carlinhos e Eulália33, tinham
ou consideravam ter algum grau de parentesco com aqueles que seriam os responsáveis
pelos desvios que marcaram não só as suas infâncias, mas todas as suas vidas.
José, Carlinhos e Eulália, porém, diferentemente de Elina, relataram ter “nascido e
crescido” nas fazendas onde foram resgatados. A seu turno, Elina foi entregue34 por sua
30
SMARTLAB. Observatório da Prevenção e da Erradicação do Trabalho Infantil: Censo Demográ-
fico de 2010. [S. l.], 2010. Disponível em: https://smartlabbr.org/trabalhoinfantil/localidade/0?dimensao=-
censoDemografico. Acesso em: 1 dez. 2020.
31
IBGE, op. cit., 2016, p. 3
32
SMARTLAB. Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas: Perfil
dos casos de Trabalho Escravo. [S. l.], 2018. Disponível em: https://smartlabbr.org/trabalhoescravo/locali-
dade/0?dimensao=perfilCasosTrabalhoEscravo. Acesso em: 1 dez. 2020.
33
Nomes fictícios.
34
O vocábulo “entregue” não deve ser lido como um ato de frieza como “dar algo a alguém”. A entrega em
si é marcada por sentimentos e escolhas difíceis por parte de uma família pobre que, diante das dificuldades
da vida, acredita que a única opção para que seus filhos tenham um futuro e não passe fome é deixá-los

281
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

mãe biológica para uma família aos oito anos de idade, na esperança de que ela pudesse
ter um destino melhor.
Além disso, Elina não foi resgatada, nem possuía pleito trabalhista em face de dona
Gertrude, sua “mãe”/empregadora. A pretensão de Elina era regularizar seu “suposto pro-
cesso de adoção”. Sob seu ponto de vista não havia exploração, nem relação de trabalho,
pois o único vínculo com aquela família era o afetivo.
José, Carlinhos e Eulália, por outro lado, foram resgatados das fazendas em que
viviam e trabalhavam. De acordo com o relato dos trabalhadores, percebe-se que a forma-
ção de um vínculo tortuoso de afeto e de gratidão permitia a submissão a maus tratos fí-
sicos e psicológicos. Contudo, a relação de trabalho não era desconsiderada por eles, nem
sobreposta ao vínculo afetivo. Tanto que, com o resgate, procuraram buscar reparação
pelos anos de trabalho realizados e não remunerados, além da indenização pela situação
humilhante e degradante a que eram submetidos.
Ainda que os quatro personagens dessas histórias reais tenham trabalhado sem pa-
gamento, sem férias, apenas com moradia e comida, o modo pelo qual experimentaram
o afeto nessas relações ambíguas com seus exploradores foi diferente. Nada obstante, o
afeto foi indispensável para moldar a percepção de si mesmos, enquanto filhos, trabalha-
dores e cidadãos.
Na luta pelo reconhecimento da “adoção à brasileira”, Elina pode ser identificada
como mais uma vítima do fenômeno “filhas de criação”, observado no Brasil no século
XX e ainda presente nos dias atuais. Importante destacar que a própria denominação
“filhas de criação” invisibiliza e mascara a verdadeira situação, naturalizando processos
machistas e racistas exploratórios que culminam no trabalho escravo contemporâneo.
Em certa medida, a perpetuação dessa prática está associada à naturalização do
trabalho doméstico e à aceitação cultural dessas práticas35.
A dinâmica da “adoção à brasileira” das “filhas de criação” consiste na “entrega”,
por mães desesperadas, de suas crianças e adolescentes, geralmente oriundas de regiões
mais pobres e, predominantemente mulheres negras, a famílias de “mais posses” na ilu-
são que isso lhes assegurará um futuro e um destino mais próspero36.
Todavia, muitas vezes essas meninas acabam inseridas em contexto de trabalho
escravo doméstico, sendo obrigadas a cuidar da casa e dos filhos, ainda que da mesma

aos cuidados de outra família. Os três primeiros minutos do documentário “Você viu a Rosinha?” ilustram
como a separação é difícil para os pais e marcada por angústia. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=f13aN0W0x6g. Acesso em: 3 dez. 2020.
35
Cf. SANTOS, Judith Karine Cavalcanti. Quebrando as correntes invisíveis: uma análise crítica do
trabalho doméstico no Brasil. 2010. 120 f. Dissertação (Mestrado). Curso de Direito, Universidade de
Brasília, Brasília, 2010.
36
Cf. QUEIROZ, Jane Bernardes da Silva Franco de. Adoção de má-fé e trabalho escravo: abandono
por esperança, adoção de má-fé e trabalho escravo na relação familiar com filhos de criação. Pontifícia
Universidade Católica de Goiás. Curso de Pós-graduação em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho
(Artigo). Goiás, 2012.

282
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

idade, em evidente violação de seu direito fundamental a infância digna, livre de qualquer
tipo de trabalho ou exploração37.
Nessa esteira, cabe aqui mencionar mais uma dessas histórias que são de muitas,
mas que poucas contam e quase ninguém sabe que existe. Rosinha era apenas uma meni-
na quando foi morar com a “comadre” de sua mãe na cidade de São Paulo para estudar e
ter uma vida melhor38.
Algum tempo depois, sem conseguir obter notícias de sua filha, a mãe à beira do
desespero vai à capital paulista procurar a menina, mas chegando lá descobre que a “co-
madre” se mudou sem deixar rastros. Sua mãe nunca a encontrou, mas soube pelos relatos
que colheu, que sua filha nem chegou a estudar, ficava em casa a lavar, passar, cozinhar e
cuidar do filho da “comadre”39.
No que tange à expressão “filhas de criação”, insta esclarecer que o uso da palavra
filhas entre aspas se justifica por partir do pressuposto de que não existe de fato o vínculo
de filiação. Este, segundo as lições civilistas de Silvio Venosa, exprime o status familiae
da relação existente entre os pais e os filhos, a partir de dois critérios determinantes, um
biológico e outro socioafetivo40.
Na filiação adotiva, o vínculo é criado a partir de um ato de vontade que se baseia
numa relação de afetividade entre aqueles que ostentam a posse do estado de filho. Isto
é, as pessoas se reputam como pai e filho e são tratadas no meio social como se assim
fossem, independentemente da existência de vínculo biológico41.
Em oposição, no caso das “filhas de criação” percebe-se que essa denominação
é utilizada para mascarar seus papeis como domésticas do lar. É inexistente o laço so-
cioafetivo, tendo em vista que as partes dessa complexa relação não se consideram, não se
nominam como tal e, ainda, aos olhos da sociedade são vistas, no máximo, como “quase
da família”.
Com efeito, na história de Elina essa descrição amolda-se perfeitamente. A conver-
sa com dona Gertrude - “mãe de Elina” -, revela que a adoção da menina foi feita com a
finalidade de que ela realizasse o serviço doméstico da casa.
Durante toda a sua vida recebeu tratamento diferenciado dos “seus irmãos”. E, de
modo mais grave, guardou em seu íntimo a convicção de que era “filha”, fato que permi-
tiu a prestação de serviço sem qualquer remuneração e a vivência de uma relação sem o
afeto típico de uma família.

37
Ibidem.
38
O documentário “Você viu a Rosinha?” produzido pela Professora Célia Gurgel, da Universidade Fe-
deral do Ceará (UFC), em 2007, retrata a história da menina Rosinha que viveu a triste realidade do traba-
lho escravo infantil doméstico. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f13aN0W0x6g. Acesso
em: 3 dez. 2020.
39
O documentário “Você viu a Rosinha?” está disponível no endereço eletrônico do YouTube. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=f13aN0W0x6g. Acesso em: 3 dez. 2020.
40
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 4. Ed. São Paulo, Atlas, 2004, p. 276.
41
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 4. Ed. São Paulo, Atlas, 2004, p. 326.

283
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Desse modo, constata-se que o tratamento “quase da família”, decorrente dessa


adoção com finalidade desviante, funciona como fator de exclusão. A mensagem transmi-
tida é que apesar de estar no núcleo familiar a pessoa não o integra. Tanto que se a relação
de trabalho chegar ao fim por alguma razão, o vínculo afetivo “como se fosse” se extingue
como se nunca houvesse existido42.
Kátia Magalhães Arruda trabalha a realidade brasileira à luz do conto de fadas da
Cinderela. Segundo a autora, crianças e adolescentes levadas ao trabalho doméstico vão
para as casas das famílias com a promessa de que serão bem criadas, terão direito ao es-
tudo e serão tratadas como parte da família. Nada obstante, na realidade terão que lavar,
passar e limpar a casa, sem jornada de trabalho e remuneração definidas, em retribuição
ao “favor” dos patrões43.
Tal como a Cinderela era obrigada a trabalhar de forma extenuante, enquanto a
madrasta e suas filhas levavam uma vida de ócio e conforto, as “filhas de criação” vivem
essa parte do conto de fadas. Durante sua vida, Elina foi Cinderela, em sua fase de gata
borralheira44, pois a ela sempre coube a obrigação de lavar, passar, cozinhar, limpar a casa
e, ainda, cuidar de “seus irmãos”. Ressalte-se ainda que, na realidade brasileira, a Cinde-
rela tem também a raça como fator de diferenciação e de exploração.
Nesse ponto, o argumento de que faltam a essas “filhas” a experiência do estado de
filiação é reforçado. Se fossem assim verdadeiramente reputadas, jamais seriam subme-
tidas a tal tipo de exploração, nem colocadas em posição de subserviência em relação ao
restante da família. A própria Constituição de 1988 veda qualquer distinção discriminató-
ria entre os filhos, biológicos e adotados45.
Noutro giro, em relação ao vínculo afetivo, define-se o afeto como expressão cogni-
tiva de sentimento, podendo ser algo positivo ou negativo. Enquanto sentimento, encon-
tra-se no âmbito íntimo das pessoas, não pode ser descrito com precisão e sua percepção
é variável entre os sujeitos de uma relação.

42
FERRAZ, Deise Luiza da Silva; MOURA-PAULA, Marcos; BIONDINI, Bárbara Katherine Faris; MO-
RAES, Aline Fábia Guerra de. Ideologia, subjetividade e afetividade nas relações de trabalho: análise
do filme “Que horas ela volta?”. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais v. 4. n. 1, p. 252-278, jun.
2017. p. 256-261. Disponível em: https://rbeo.emnuvens.com.br/rbeo/article/view/252. Acesso em: 30 nov.
2020.
43
Cf. ARRUDA, Kátia Magalhães. O trabalho infantil doméstico: rompendo com o conto da Cinderela.
In: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Belo Horizonte, v. 45, n. 75, p. 199-206, jan./
jun.2007. Disponível em: https://www.trt3.jus.br/escola/download/revista/rev_75/Katia_Arruda.pdf. Aces-
so em: 25 nov. 2020.
44
De acordo com o dicionário, “gata borralheira” é a moça que, por obrigação ou servidão, realiza serviços
domésticos. Disponível em: https://www.dicio.com.br/gata-borralheira/. Acesso em: 3 dez. 2020.
45
O art. 227, §6º da Constituição da República ao tratar dos deveres da família estabelece que “Os filhos,
havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas
quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”

284
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Em outras palavras, o afeto pode ser entendido como expressão da subjetividade


que é produzida por meio de uma atividade social na instância do sentir o mundo46.
No caso do trabalho doméstico infantil das “filhas de criação”, esse sentimento aca-
ba por afastar a discussão sobre os direitos trabalhistas, vez que incute nessas mulheres a
ideia de que aquele trabalho é parte delas e crucial para pertencerem ao âmbito familiar.
Como consequência, ignoram a percepção de suas atividades como profissionais.
Na prática, quanto mais forte o vínculo de afeto, o bom tratamento dispendido, a
proximidade com o núcleo da residência, maior é a quantidade de serviço exigida pela
“família”. O sentimento de gratidão e a proximidade podem levar à eterna tentativa de
agradar, de servir, de cuidar, a fim de manter não só o afeto experimentado, como também
as supostas benevolências em termos de moradia, roupas e alimentação.
Entretanto, o que ocorre é o sentimento de afeto sendo utilizado – ainda que de
modo inconsciente - como forma de garantir maior poder de controle da família emprega-
dora em relação à trabalhadora, que não tem a percepção de si mesma como tal.
Nesse deslinde, as principais características desse trabalho são o confinamento da
criança no âmbito doméstico, a ameaça de punição por desobediência e a coação psico-
lógica. A sobrecarga das atividades diárias no âmbito doméstico também impede essas
“filhas” de continuarem os estudos47.
Não só isso, mas a forma pela qual o trabalho é prestado, sem nenhum controle da
jornada, dado o caráter servil e naturalizado do trabalho doméstico cria a falsa obrigação
de estarem sempre disponíveis para atender às necessidades da família48.
Já no aspecto familiar, além de não receberem salário, dada a posição de “como se
da família fossem”, não recebem os mesmos benefícios dos filhos verdadeiros, ocupam
quartos separados da casa, alimentação diferenciada e as permissões no ambiente caseiro
são bastante distintas das condições experimentadas pelos reais membros da família49.
Nada obstante, em que pese sua função de servir a “família”, o sentimento de gra-
tidão pela imaginária adoção de boa vontade, acaba mantendo essas mulheres atreladas à
ilusão de pertencerem ao seio familiar, que em verdade é uma relação de servidão seme-
lhante à das antigas mulheres escravizadas do período colonial.
Em síntese, o afeto relega as “Elinas” desse Brasil ao pior dos dois mundos: não
são da família, haja vista o advérbio “quase” que acompanha seus títulos denotando a au-
sência do vínculo socioafetivo de filiação. Também, não são trabalhadoras, pois ao serem
tratadas como se da família fossem, não se reconhecem, nem são reconhecidas como tal.

46
FERRAZ; MOURA-PAULA; BIONDINI; MORAES, op. cit., 2017, p. 261.
47
O documentário “Você viu a Rosinha?” evidencia essa caracterização. A Rosinha depois de alguns me-
ses frequentando a escola tem que abandoná-la para dar conta dos serviços de casa que sua “madrinha” lhe
obriga a executar diariamente. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f13aN0W0x6g. Acesso
em: 3 dez. 2020.
48
FERRAZ; MOURA-PAULA; BIONDINI; MORAES, op. cit., 2017, p. 268.
49
FERRAZ; MOURA-PAULA; BIONDINI; MORAES, op. cit., 2017, p. passim.

285
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Por conseguinte, não recebem direitos, e qualquer reclamação é encarada como


ingratidão ou rebeldia, passando toda a infância e vida em cenário invisível de trabalho
infantil e, quiçá, análogo ao de escravo.
Considerações Finais
A narrativa desenvolvida ao longo do texto revela a trajetória de tantos brasileiros e
brasileiras cujos nomes, olhos e marcas das mãos resultam invisíveis no cotidiano.
Evidentemente que, tal qual Rosinha, Elina, Eulália, Zilda, José e Carlinhos exis-
tem outras tantas meninas, meninos, homens e mulheres espalhados pelo Brasil, crescen-
do sem ter acesso à educação, desempenhando trabalhos domésticos, rurais ou urbanos
e sendo levados a acreditar que a “vida”, o “afeto”, o “trabalho” e a “família” são assim
mesmo.
Desconhecem a plenitude da infância, o amor de uma família, a dignidade de um
salário, a identidade de uma carteira de trabalho, os direitos aos quais fazem jus e a noção
de serem cidadãs.
O relato dessas histórias tem por objetivo garantir-lhes sobrevida e propagação.
Elina, José, Carlinhos, Eulália, Zilda e Rosinha não podem ser esquecidos nunca.
Suas histórias devem ser compreendidas como lembranças de um passado que ainda nos
assombra e de uma realidade que deve ser duramente combatida.
Sendo o afeto um sentimento, não é possível afirmar com certeza o que se passa
no íntimo daquelas empregadoras que assumem a posição “matriarcal escravocrata” e
acabam violando a infância de seus “quase filhos escravos”.
É preciso considerar todos esses sujeitos inseridos na permanente lógica escravista
colonial machista e racista que insiste em manter certas estruturas sociais e em naturalizar
a exploração.
Os questionamentos apresentados no início desse trabalho: como resgatar, efetiva-
mente, alguém que sequer sabe que está sendo explorado? Que desconhece outra reali-
dade que não aquela? Que entende ser aquele o modelo de família? Que passa a sua vida
acreditando ser “merecedor” de punições e trabalhos sem remuneração em troca de casa
e moradia? permanecem com as respostas em aberto.
Porém, não podemos mais admitir que existam adultos como Elina, José, Carli-
nhos, Eulália, Zilda e Rosinha. Para isso, temos que lutar, diária e incansavelmente, para
que Elina, José, Carlinhos, Eulália, Zilda e Rosinha sejam crianças que gozam plenamen-
te de seu direito de ter uma infância, vivenciada em toda a beleza e a magia que essa fase
deve representar na vida de um ser humano.
Assim, quem sabe um dia, será possível apresentar um horizonte livre de trabalho
escravo infantil, em que as futuras gerações tenham notícia desses relatos apenas em li-
vros de História cujas páginas as deixarão perplexas e indignadas.

286
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Referências

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Cinderela. In: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Belo Horizonte, v.
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288
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

O TRABALHO INFANTIL COMO CATALISADOR DO CICLO HEREDI-


TÁRIO DA POBREZA

Carolina de Souza Novaes Gomes Teixeira1

1. Introdução
As crianças e os adolescentes receberam atenção especial da legislação brasileira,
sobretudo da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
n. 8.069/90) e da Convenção sobre os Direitos da Criança, devidamente ratificada pelo
Brasil.
O presente artigo tem como objetivo apresentar as normas de proteção ao trabalho
infantil no ordenamento jurídico interno, buscando elucidar como sua concretização con-
tribui para a manutenção do ciclo hereditário da pobreza.
Mesmo diante de inúmeras normas nacionais e internacionais de proteção, os direi-
tos humanos das crianças e dos adolescentes têm sido constantemente violados, sendo a
exploração do trabalho infantil ainda uma realidade, longe de ser extirpada.
2. Histórico Legal da Proteção ao Trabalho Infantil
O surgimento do Direito do Trabalho e a proteção ao trabalho infantil são indis-
sociáveis. A legislação protetiva laboral nasce através de lutas de operários contra uma
exploração contínua da força de trabalho na Revolução Industrial. Nesta época, diante da
ausência de normas que assegurassem qualquer direito trabalhista, não era incomum que
homens, mulheres e, principalmente crianças, fossem submetidos à jornadas extenuantes,
sem limitação.
O Peel’s Act editado em 1802 na Inglaterra foi considerada a primeira norma de
proteção ao trabalhador, visando, sobretudo, a proteção das crianças e adolescentes que
vendiam sua força de trabalho, na maioria das vezes recebendo em troca alimentos. A
norma fixava o tempo máximo de duração do trabalho infantil em dez horas diárias.
(NASCIMENTO; VILLAS BOAS,2014)
Posteriormente, outros países europeus vieram na esteira da proteção, tais como
a França - que através da edição das leis de 1.841, 1.848 e 1.874 determinou uma idade
mínima de admissão ao emprego, tempo máximo de duração do trabalho, proibição de
serviço noturno e em minas subterrâneas- além de Suíça, Rússia, Bélgica, Holanda, Por-
tugal e Alemanha. (NASCIMENTO; VILLAS BOAS,2014)

1
Mestre e Doutora em Direito Material e Processual do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Professora Adjunto I na mesma instituição. Professora convidada de cursos preparatórios e
pós-graduações lato sensu. Advogada.

289
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

É interessante ressaltar que enquanto o século XIX foi marcado pelo advento da
Revolução Industrial nos países europeus, o Brasil ainda encontrava-se sob o sistema
escravagista. Considerando que o Direito do Trabalho é possível apenas em um contexto
de liberdade de trabalho, entende-se que este direito só foi contemplado em nosso país
após a abolição da escravatura, através da aprovação da Lei Áurea, em 1888, com a
assinatura da regente do Brasil, a princesa Isabel. Com a proclamação da república,
Grasiele Nascimento e Regina Villas Boas explicam que diversas normas de proteção ao
trabalho infantil foram editadas, sem contudo apresentarem uma eficácia real:
É o caso, por exemplo, do Decreto 1.313, de 17.01.1891, referente ao trabalho
dos menores nas fábricas do Distrito Federal, limitando a idade mínima de
trabalho aos 12 (doze) anos, salvo o aprendiz em indústrias têxteis, cujo traba-
lho era autorizado a partir dos 08 (oito) anos de idade. O mencionado Decreto
jamais foi regulamentado. (NASCIMENTO; VILLAS BOAS,2014, p.50)

Além do decreto acima, temos como marcos legislativos de proteção ao trabalho


infantil o Código de Menores, que em 1932 estabeleceu condições de trabalho das crian-
ças e adolescentes na indústria, determinando a idade mínima de 14 (quatorze) anos para
o ingresso no mercado de trabalho comum e 16 (dezesseis) anos nas minas. Em 1934, a
Constituição Federal proibiu a discriminação salarial e de admissão em razão da idade, o
trabalho noturno aos menores de 16 (dezesseis) e o trabalho em atividade insalubre aos
menores de 18 (dezoito) anos. (NASCIMENTO; VILLAS BOAS,2014)
Em 1943, com a aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho, pelo Dec.-lei
5.452, tem-se o primeiro Capítulo legislativo dedicado à proteção do trabalho do adoles-
cente, inserido nos artigos 402 a 411, como detalharemos em tópico específico.
Em 1988 a Constituição Federal eleva a idade mínima para o ingresso no mercado
de trabalho para 16 (dezesseis) anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 (qua-
torze) anos de idade. Mantem as proibições ao trabalho noturno, perigoso ou insalubre
aos menores de 18 (dezoito) anos. Ressalta-se que a Constituição de 1988, focada na am-
pla proteção à criança e ao adolescente, preocupando-se especialmente com sua formação
pessoal e educacional, garante o acesso do trabalhador adolescente à escola (art. 227, §
3º), além de inserir o direito à formação profissional entre os objetivos básicos da educa-
ção, garantindo à criança e ao adolescente o respeito a sua integral formação pessoal (art.
214, IV). (NASCIMENTO; VILLAS BOAS,2014)
O Estatuto da Criança e do Adolescente é promulgado em 1990 pela Lei 8.069,
reservando um capítulo especial ao direito à profissionalização e à proteção no trabalho,
nos arts. 60 a 69. (BRASIL, 1990)
As Convenções da Organização Internacional do Trabalho tem por finalidade pro-
mover a justiça social e a igualdade entre os Estados, desempenhando um papel importan-
te na definição das legislações trabalhistas, assim como na elaboração de políticas econô-
micas e sociais. Ressalta-se que no âmbito internacional o Brasil ratificou as Convenções
de nºs: 5, 6, 7, 10, 16, 58, 117, 124, 138, 142 e 182. Atenção especial as duas últimas que

290
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

disciplinam a adoção de desenvolvimento de política e programas referentes à orienta-


ção e formação profissional, no desenvolvimento de recursos humanos e a proibição das
piores formas de trabalho infantil e a ação imediata para sua eliminação, instituindo a
lista TIP – Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil.2 As Convenções da OIT men-
cionadas incorporam-se ao nosso ordenamento jurídico pátrio pautadas pelo princípio da
primazia da norma mais favorável ao ser humano. Uma vez que um Tratado é aprovado
pelo Congresso Nacional, ratificado e promulgado pelo Poder Executivo, suas normas
tornam-se obrigatórias para os seus signatários por ocasião da sua publicação.
2.1. Proteção celetista ao Trabalho do Adolescente
Inicialmente é importante salientar que a CLT não regulamenta o trabalho de crian-
ças, haja vista que a Constituição Federal Brasileira autoriza o trabalho apenas aos maio-
res de 16 (dezesseis) anos, salvo na condição de aprendiz aos maiores de 14 (quatorze)
anos. Deste modo, as normas presentes na CLT são destinadas aos maiores de 16 (dezes-
seis).
Em capítulo específico, denominado “Da Proteção do Trabalho do Menor”3, nos ar-
tigos 402 a 411, a CLT regulamenta que o trabalho do menor reger-se-á pelas disposições
celetistas, exceto no serviço em oficinas em que trabalhem exclusivamente pessoas da
família do menor e esteja este sob a direção do pai, mãe ou tutor. (BRASIL, 1943)
Quanto às vedações, dispõe-se que o trabalho do menor não poderá ser realizado
em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e
social e em horários e locais que não permitam a frequência à escola. Também não será
permitido o trabalho nos locais e serviços perigosos ou insalubres e em locais ou serviços
prejudiciais à sua moralidade. Especificamente no tocante ao trabalho exercido nas ruas,
praças e outros logradouros, estes dependerão de prévia autorização do Juiz da Vara da
Infância e Juventude, que deverá averiguar se a ocupação é indispensável à sua própria
subsistência ou à de seus pais, avós ou irmãos e se dessa ocupação não poderá advir pre-
juízo à sua formação moral. (BRASIL, 1943)
Para a legislação trabalhista é considerado prejudicial à moralidade do trabalhador
adolescente, entre outros, aquele prestado, em boates, circos e aquele consistente na ven-
da, a varejo, de bebidas alcoólicas. No entanto, o Juiz da Vara da Infância e Juventude
poderá autorizar o trabalho do adolescente nessas condições quando a prestação de servi-
ços tenha fim educativo ou não possa ser prejudicial à sua formação moral, desde que se
2
Entre as piores formas de trabalho infantil elencadas na mencionada lista, encontram-se atividades que
sejam prejudiciais à sua saúde, segurança e moralidade, nos seguintes setores: agricultura, pecuária, silvi-
cultura e exploração florestas; pesca; indústria extrativa; indústria de transformação; produção e distribui-
ção de eletricidade, gás e água; construção; comércio (reparação de veículos automotores objetos pessoais
e domésticos); transporte e armazenagem; saúde e serviços sociais; serviços coletivos,sociais, pessoais e
outros; serviço doméstico; entre outros.
3
Embora a CLT ainda utilize em seu bojo a expressão “menor”, esta se encontra em desuso, em virtude
do seu caráter perjorativo e antiquado, uma vez que remete ao Código de Menores e à doutrina da situação
irregular, como veremos mais a frente.

291
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

certifique ser o trabalho do adolescente indispensável à própria subsistência ou à de seus


pais, avós ou irmãos e não advir nenhum prejuízo à sua formação moral. (BRASIL, 1943)
Ainda visando proteger a integridade física e moral do trabalhador adolescente a CLT
determina que verificado pela autoridade competente que o trabalho executado pelo me-
nor é prejudicial à sua saúde, ao seu desenvolvimento físico ou a sua moralidade, poderá
ela obrigá-lo a abandonar o serviço, devendo a respectiva empresa, quando for o caso,
proporcionar ao menor todas as facilidades para mudar de função. Ainda, tem-se que é
facultado ao responsável legal do adolescente pleitear a extinção do contrato de trabalho,
caso as funções exercidas possam acarretar para ele prejuízos de ordem física ou moral.
(BRASIL, 1943) 

2.2. Normas de proteção laboral dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescente


Pode-se conceituar o direito da criança e do adolescente, do ponto de vista formal,
como:
o conjunto de princípios e de leis que se direcionam a disciplinar os direitos e
obrigações das crianças e dos adolescentes sob o prisma da proteção integral
e do melhor interesse”2. Já do ponto de vista material, considera-se que o di-
reito da criança e do adolescente “é um dos meios do Estado e da Sociedade
de efetivação das políticas voltadas à proteção de seus direitos fundamentais
mencionados no ECA. (ISHIDA, 2019, p.31)

A legislação relacionada à proteção da criança e do adolescente perpassa por di-


ferentes fases. Inicia-se com a absoluta indiferença, onde não existiam normas jurídicas
destinadas a tratar dos direitos e deveres específicos de crianças e adolescentes, já que
estes não eram objeto de preocupação ou tutela do Estado; passando pela fase tutelar, em
que as normas tratavam-nas como objetos de direito, e não sujeitos de direito, calcadas
no binômio carência-delinquência, em que só se justificava a atuação do Estado para as
crianças e adolescentes que estivessem em situação irregular, de carência, abandono ou
delinquência. Atente-se que, neste momento, as leis não se aplicavam de forma indistinta
a todos infantes. (BRASIL, 1990)
Por fim, a doutrina da Proteção Integral da criança e do adolescente foi adotada
pela Constituição Federal de 1988 e pelo ECA, passando a criança e o adolescente a ser
tratado como sujeito de direito dotado de inúmeros mecanismos jurídicos voltados à sua
proteção, vedado qualquer tratamento discriminatório, seja em razão de situação econô-
mico-familiar ou de delinquência. Com o advento do ECA, as crianças e adolescentes
também passam a ter garantia de prioridade, compreendendo não apenas a primazia de
receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, mas também a precedência de
atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, a preferência na formula-
ção e na execução das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos
públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. Extremamente

292
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

relevante é a imposição do ECA ao intérprete e aplicador do direito de sempre buscar a


solução mais vantajosa para a criança ou adolescente. (BRASIL, 1990)
3. Do Direito à Educaçã, à Profissionalização e à Proteção no Trabalho como Que-
bra do Ciclo Hereditário da Pobreza
O tratamento juslaboral dispensado aos infantes não busca desestimular, inibir ou
até proibir o trabalho do adolescente, mas sim tutelá-lo, objetivando se adequar ao princí-
pio da proteção integral, garantindo não apenas mínimas condições de trabalho e proteção
contra abusos que possam trazer danos ao desenvolvimento pleno, mas também propi-
ciando a educação deste trabalhador. Ressalta Sérgio Pinto Martins que estre tratamento,
“Justifica-se o fundamento cultural, pois o menor deve poder estudar e receber
instrução. No que diz respeito ao aspecto moral, deve haver uma proibição no
sentido de o menor não trabalhar em locais que lhe prejudiquem a moralidade.
No atinente ao aspecto fisiológico, o menor não deve trabalhar em locais insa-
lubres, perigosos, penosos ou a noite, para que possa ter um desenvolvimento
físico normal. Por último, o menor, assim como qualquer trabalhador, deve ser
resguardado com normas de proteção que evitem os acidentes de trabalho, que
podem prejudicar sua formação normal. “(MARTINS, 2006, p.517)

Um dos direitos essenciais da criança e do adolescente, objetivando o seu desen-


volvimento integral, é o direito à educação. Educação essa que visa ao pleno desenvol-
vimento da pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho.
Reconhecido o direito fundamental dos infantes à educação no art. 54 do ECA. Priscilla
Ramineli Leite destrincha o conteúdo de tal direito:
(...) estabelecendo que deve ser dada igualdade de condições para acesso e
permanência na escola; direito de ser respeitado pelos educadores; contestar
critérios avaliativos mediante recursos; organização e participação em entida-
des estudantis; acesso à escola pública e gratuita, próxima de sua residência,
garantindo-se vagas no mesmo estabelecimento a irmãos que frequentem a
mesma etapa ou ciclo de ensino da educação básica. Aos pais de alunos, por
sua vez, é direito ter ciência do processo pedagógico e de participar das pro-
postas educacionais. (LEITE, 2020, p.52)

Percebe-se uma especial atenção à garantia de acesso e de permanência, tendo to-


das as crianças e adolescentes o direito de ingressar na escola, sem distinção de qualquer
natureza, não podendo ser obstada a permanência de quem teve acesso. Esse direito é
garantido através da matrícula em escola pública ou particular, determinando o ECA que
o ensino fundamental, obrigatório e gratuito deve ser assegurado a todos, inclusive para
aquelas crianças e adolescentes que não tiveram acesso na idade própria.
O ECA ainda dispõe, nas palavras de Priscilla Ramineli Leite,
Também é dever do estado fornecer atendimento em creche e pré-escola às
crianças de 0 a 5 anos de idade (Lei 13.306/16). Quanto ao ensino médio, é
prevista a progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade. A extensão da

293
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

obrigatoriedade foi implementada por meio da Lei nº 12.796/2013, que alterou


a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº9394/1996), estabelecendo a
educação básica gratuita dos 4 aos 17 anos de idade. Já no que atine aos níveis
mais elevados do ensino, assim considerado o acesso ao nível superior, ape-
nas dispõe o ECA que será garantido conforme a capacidade de cada um. Em
atenção às pessoas com deficiência, o atendimento educacional especializado
deve ser feito, preferencialmente na rede regular de ensino, para que possam
ter contato com os demais alunos, privilegiando-se assim a educação inclusiva.
(LEITE, 2020, p.52 -53)

O papel da educação, em especial a educação básica, é essencial no amplo desen-


volvimento e progresso social. Na sociedade contemporânea, a capacidade de ler, escre-
ver e compreender o mundo que o cerca é o que proporciona uma existência bem infor-
mada. A alienação e incompreensão do mundo é como estar preso “...e a educação escolar
abre uma porta através da qual as pessoas podem escapar do encarceramento.” (DRÉZE;
SEN, 2015,p.126)
No entanto, muitas vezes a vida não oferece escolha ao infante trabalhador, que não
se dá ao luxo de optar entre estudar em detrimento de trabalhar. Nesse momento, a fome
prevalece sobre o saber. Consequência da desigualdade social e da má-distribuição de
renda que assola o país, é visível a inserção da criança e do adolescente no mercado de
trabalho. (TEIXEIRA, 2003)
O Estado tem se mostrado ativo através de várias propostas de ação. Dentre elas,
destaca-se o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), criado pelo Governo
Federal em 1996, cujo principal objetivo é retirar crianças e adolescentes, com idade in-
ferior a 16 anos, do mercado de trabalho precoce, mediante a concessão, às famílias, de
uma bolsa auxílio, com valores que variam de acordo com a localidade.
No entanto, o trabalho infantil é uma realidade no Brasil. Embora o impacto das
políticas de proteção possa ser apontado na diminuição dos números, a eficácia da lei
ainda é relativa, haja vista a alta taxa de trabalho infantil. De acordo com os dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PnadC), em 2016, 2,4 milhões de crianças
e adolescentes de cinco a 17 anos se encontravam em situação de trabalho infantil, o que
representa 6% da população (40,1 milhões) nesta faixa etária. A maior concentração de
trabalho infantil esta presente na faixa etária entre 14 e 17 anos, somando 1,94 milhão. Já
a faixa de cinco a nove anos registra 104 mil crianças exploradas pelo trabalho infantil.
As regiões nordeste e sudeste registram as maiores taxas de ocupação, respectivamente
33% e 28,8% do total. (PNADC,2016)
Quanto à divisão por gênero, o número de meninos em situação de trabalho infan-
til é de 1,6 milhão, quase o dobro de meninas trabalhadoras, 840 mil, ou 35,1%, contra
64,9% de meninos. (PNADC,2016)
As oportunidades econômicas e perspectivas de emprego estão diretamente relacio-
nadas com o nível educacional e as habilidades apreendidas. Exatamente por isso, o labor
durante a infância e juventude também contribui para a perpetuação do ciclo hereditário
da pobreza e da miséria.

294
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Além de não promover o infante a sociedade, o trabalho precoce traz severos pre-
juízos sobre o aspecto físico, emocional, intelectual e social daquele que é um ser em
formação. Normalmente, os filhos explorados pelo trabalho infantil são oriundos de pais
que também passaram por tal situação, sem oportunidades de escolarização, e que não
conseguiram interromper o círculo vicioso:
É notório observar ainda que, a partir do momento em que se aumenta o nível
de escolaridade dos pais, a probabilidade de a criança trabalhar diminui ainda
mais. No caso do pai, se ele tiver um nível de escolaridade maior, esta também
influenciará, positivamente, na escolaridade de seus filhos, tendo probabilida-
de maior com relação aos meninos, de acordo com Peres (1999). Quanto mais
tarde a criança ingressar no mercado de trabalho, maior provavelmente, será a
sua escolaridade. (LIRIO;PAULA; AMODEO, 2012, p.64-65)

Na verdade, o trabalho infantil é resultado de uma série de fatores, sendo o principal


a necessidade do reforço no orçamento familiar. A pobreza é a principal causa que tem
incentivado pais a incorporar seus filhos no mercado de trabalho.
Como exposto na crítica feita por Marshall (1963), cidadão é aquele que pertence
plenamente e de forma ativa a uma comunidade. Essa participação ativa se efetiva na
concreção de direitos inerentes ao trabalho, à segurança social, a saúde, à educação e à ha-
bitação por parte das classes trabalhadoras. É no acesso justo e igualitário a todos destes
direitos, e não apenas na normatização, que a dignidade está efetivada. Essa perpetuação
do ciclo hereditário da pobreza e da miséria esta, então, intimamente relacionada à ausên-
cia de concretude desses direitos, em especial ao infante trabalhador, que por necessitar
do labor para buscar sua própria subsistência, e de sua família, não consegue se desenvol-
ver de forma plena, pois não tem acesso aos direitos fundamentais.
No Brasil, a ausência de generalização ou vigência social da igualdade, em virtu-
de da corrupção sistêmica, desemboca na não institucionalização também da cidadania,
que se materializa na exclusão e marginalidade de grande parcela da população, que não
possui acesso a enorme gama de direitos previstos constitucionalmente. Em pesquisa de
iniciativa do IBGE4, no Brasil, em 2017, a taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos
ou mais de idade foi estimada em 7,0% (11,5 milhões de analfabetos). Este número vem
caindo, tendo em vista que se comparada à taxa de 2016 (7,2%), houve uma queda de
aproximadamente 300 mil pessoas. O taxa de analfabetismo também é maior em pessoas
de cor preta ou parda: entre as pessoas de 15 anos ou mais de cor branca, 4,0% eram anal-
fabetas, enquanto que entre as de cor preta ou parda a taxa foi 9,3%.

4
Informações retiradas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD Contínua, rea-
lizada pelo IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, nos anos de 2016-2017

295
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

Importante também apresentar os dados relacionados ao nível de instrução. “O ní-


vel de instrução é o indicador que capta o nível educacional alcançado por cada pessoa,
independentemente da duração dos cursos por ela frequentado.” 5 No Brasil, a proporção
de pessoas de 25 anos ou mais de idade que finalizaram a educação básica obrigatória, ou
seja, concluíram, no mínimo, o ensino médio, passou de 45,0%, em 2016, para 46,1%,
em 2017.
Quanto a taxa de escolarização, entre as crianças de 0 a 3 anos a taxa foi 32,7%, o
equivalente a 3,3 milhões de estudantes. 6 Entre as crianças de 4 e 5 anos, faixa corres-
pondente à pré-escola, a taxa foi 91,7% em 2017, frente aos 90,2% em 2016, totalizando
quase 4,9 milhões de pessoas. Já na faixa de idade de 6 a 14 anos a universalização,
desde 2016, já estava praticamente alcançada, com 99,2% das pessoas na escola. Entre
os jovens de 15 a 17 anos, em 2017, manteve-se no mesmo percentual de 2016, 87,2%.
Entre as pessoas de 18 a 24 anos e aquelas com 25 anos ou mais, 31,7% e 4,3% estavam
frequentando escola. De forma geral, percebe-se que as crianças de 6 a 10 se mantêm
adequadamente na idade/etapa correta nos anos iniciais do ensino fundamental, porém
ao passar para os anos finais, começa a acentuar o atraso. Logo, uma parte desse grupo
já chega atrasado ao ensino médio e as distorções só tendem a se intensificar nessa etapa
seguinte do ensino. Em 2017, 95,5% das pessoas de 6 a 10 anos estavam frequentando
o ensino fundamental na etapa idealmente estabelecida, isto é, os anos iniciais do ensino
fundamental. Para o grupo de 11 a 14 anos de idade, essa taxa foi 83,3% para os homens
e 88,0 % para as mulheres. Na etapa final, os dados são ainda mais assustadores: para o
grupo de 15 a 17 anos apenas 68,4% estavam na idade/série adequada.
Embora sob um panorama geral os números pareçam favoráveis, a não frequência a
escola também apresenta índices elevados, estimando-se que em 2017, 25,1 milhões das
pessoas de 15 a 29 anos de idade não frequentavam escola, cursos pré-vestibular, técnico
de nível médio ou de qualificação profissional e não haviam concluído uma graduação.7
Houve um aumento de 1,4% se comparado ao ano de 2016, 343 mil pessoas a mais nessa
situação alegando: “motivo de trabalho, ou seja, trabalhava, procurava trabalho ou con-
seguiu trabalho que iria começar em breve (39,7%); não tinha interesse (20,1%); e por
ter que cuidar dos afazeres domésticos ou de pessoas (11,9%).” (IBGE, 2017) A falta de
dinheiro para pagar as despesas com o estudo também foi alegada, por 9% dos homens e
por 12% das mulheres. (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTI-
CA, 2018a, p.12).

5
Ressalta-se que, como as escolhas educacionais são individuais e variam ao longo da vida, esse indicador
é melhor avaliado entre aquelas pessoas que já poderiam ter concluído o processo regular de escolarização,
em geral, em torno dos 25 anos.
6
Comparado ao ano de 2016, a taxa de escolarização das crianças de 0 a 3 anos aumentou 2,4 p.p. ou
aproximadamente 210 mil pessoas.
7
Nesse grupo se caracterizava por 52,5% de homens e 64,2% de pessoas de cor preta ou parda. Em re-
lação ao nível de instrução, 55,1% tinha o ensino médio completo ou superior incompleto, 23% o ensino
fundamental completo ou médio incompleto e 21,9% era sem instrução ou com o fundamental completo.
(IBGE, 2017)

296
Direito Material e Processual do Trabalho: a consumação da vida no capitalismo

Decompondo os dados estatísticos acima apresentados, nota-se que estes são mais
desfavoráveis entre aqueles que são vítimas das desigualdades sociais e regionais no nos-
so país. A questão do acesso à escola deve ser encarada não de forma homogênea, mas
através do reconhecimento das diferenças entre perfis populacionais, considerando re-
gião, gênero, etnia, renda, entre outros.
Percebe-se também, claramente, a não concretização do princípio da igualdade, do
direito à educação universal, gratuita e de qualidade, e, portanto, ausência de materiali-
zação da cidadania. A não concretização dos direitos constitucionalmente assegurados
evidencia a sobreposição dos imperativos econômicos e políticos perante o sistema jurí-
dico, culminando na desjuridificação da realidade constitucional e causando a corrupção
sistêmica do direito.
A educação representa a principal determinante da mobilidade social, com impacto
muito mais forte do que o da classe de origem ou raça. Portanto, a desigualdade e defi-
ciência no acesso à educação causam reflexos futuros e duradouros. O núcleo da geração
e da reprodução das desigualdades em nosso país está em “uma luta de classes que não se
dá nos pátios das montadoras de automóveis do ABC paulista, como muitos pensavam, e
sim no desenho de nosso sistema educacional”. (FERREIRA apud SOUZA; RIBEIRO;
CARVALHAES, 2010, p.96-97).
A busca pela equidade e pela qualidade da educação em um país recheado de de-
sigualdades como o Brasil é uma tarefa que implica políticas públicas de Estado que
incluam uma ampla articulação entre os entes federativos e a sociedade. Ressalta-se que
o Estado Democrático de Direito, tão propagado, não existe de fato quando as prestações
sociais não são implementadas aos subcidadãos, criando uma política de exclusão e a
manutenção persistente da marginalidade, revelando uma ineficácia e uma inefetividade
da norma constitucional.
Essa política de exclusão é claramente exemplificada pelo infante trabalhador que
não consegue concluir ao menos a educação básica, e também pela educação através do
ensino público, muitas vezes deficitário, ofertado à classe majoritariamente pobre, de
subcidadãos e subintegrados, que depende das escolas públicas de modo integral e prati-
camente exclusivo. Essa exclusão iniciada na educação básica, no início da vida da pes-
soa, perpetua por toda sua existência, contribuindo para que aquele que teve oportunidade
a uma educação digna e de qualidade tenha chances de se integrar ao mercado de trabalho
como um trabalhador qualificado, menos sujeito à precariedade das condições laborais.
Conclusão
Mesmo diante de diversas políticas públicas, o trabalho infantil ainda é uma reali-
dade. Sua eliminação é um processo gradativo que depende de diversas alternativas, tais
como programas de educação direcionados para que o menor possa receber para estudar
um valor que não seja irrisório a ponto de força-lo ao trabalho. É dever do Estado, através
de programas sociais, promover meios satisfatórios para que os infantes estudem ao invés
de laborar: “no Brasil, a educação, indispensável sem dúvidas, necessita ser compartilha-

297
XII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho

da com a subsistência” (CERQUEIRA apud TEIXEIRA, 2002) Se não for garantida a


subsistência da criança e do adolescente, não há meio de se estudar.
Referências
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NASCIMENTO, Grasiele Augusta Ferreira; VILLAS BOAS, Regina Vera. O TRABA-
LHO INFANTIL NO BRASIL E A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES. XXIII Congresso Nacional  – João
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XXI”. João Pessoa: PA, 2014, fls.46-61
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http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v25n73/v25n73a05.pdf . Acesso em: 2 set. 2019.

299
Esta coletânea intitulada "Consumação da vida no capitalismo" trata-se de
uma seleta compilação de artigos apresentados pelas/os palestrantes,
docentes e discentes que participaram do XII Congresso Latino-americano
de Direito Material e Processual do Trabalho, discutindo temas sensíveis e
urgentes do Direito do Trabalho. Neste ramo surge a crítica como um dos
elementos centrais e esta não pode deixar de ser feita na atual sociedade
consumista.“Trabalho e Consumo” são os eixos pensados em um contexto
pandêmico, que as relações foram desmaterializadas, o consumo foi
intensificado pelas redes sociais e plataformas digitais e tudo isso disposto
em um momento em que a tecnologia da informação vem sendo utilizada pelo
capitalismo para estabelecer uma nova lógica de acumulação fundada no
controle do comportamento humano e fomento ao consumo de acordo com
as informações extraídas pelos algoritmos empresariais. O trabalho sofre por
diversas alterações, o consumo também passa por isso. O consumo é a base
nas atuais relações ou o trabalho? Não ousamos finalizar essa discussão.
Estamos listando novos encontros e possibilidades nas paginações a seguir.

Programa de
Pós-graduação
em Direito

978- 65- 5509- 138- 0

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