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Organizado por:

Alvaro Klein
Luciana Dombkovitsch
Luciane Toss
Ramiro Crochemore Castro

MUITO ALÉM DO ALGORÍTMO


O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Belo Horizonte
2021
Todos os direitos reservados à Editora RTM.
Proibida a reprodução total ou parcial, sem a autorização da Editora.

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Muito além do algorítmo: o direito do trabalho no séc. XXI / Organizado


M953 por: Alvaro Klein, Luciana Dombkovitsch, Luciane Toss, Ramiro
Crochemore Castro – Belo Horizonte: AGETRA : RTM, 2021.
233 p. – Inclui bibliografia.

1. Direito do trabalho 2. Relações trabalhistas 3. Teletrabalho I. Klein,


Alvaro (org.) II. Dombkovitsch, Luciana (org.) III. Toss, Luciane (org.)
IV. Castro, Ramiro Crochemore V. Título

CDU 331

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Meire Luciane Lorena Queiroz CRB 6/2233.

ISBN: 978-65-5509-050-5
Editoração Eletrônica e Projeto Gráfico: Editora RTM - Instituto RTM de Direito do Trabalho
Equipe RTM e Gestão Sindical
Capa: Michel de Oliveira Rodrigues Rua João Euflásio, 80 - Bairro Dom Bosco BH -
Editor Responsável: Mário Gomes da Silva MG - Brasil - Cep 30850-050
Revisão: Luciana Dombkovitsch, Luciane Toss Tel: 31-3417-1628
e RTM WhatsApp:(31)99647-1501(vivo)
E-mail : rtmeducacional@yahoo.com.br
Site: www.editorartm.com.br
Loja Virtual : www.rtmeducacional.com.br

Conselho Editorial: Lorena Vasconcelos Porto


Adriano Jannuzzi Moreira Lutiana Nacur Lorentz
Amauri César Alves Marcella Pagani
Andréa de Campos Vasconcellos Marcelo Fernando Borsio
Antônio Álvares da Silva Marcio Tulio Viana
Antônio Fabrício de Matos Gonçalves Maria Cecília de Almeida Monteiro Lemos
Bruno Ferraz Hazan Maria Cecília Máximo Teodoro
Carlo Cosentino Maria Rosaria Barbato
Carlos Henrique Bezerra Leite Ney Maranhão
Cláudio Jannotti da Rocha Raimundo Cezar Britto
Cleber Lucio de Almeida Raimundo Simão de Mello
Daniela Muradas Reis Renato Cesar Cardoso
Ellen Mara Ferraz Hazan Ricardo José Macedo de Britto Pereira
Fernado Maciel Rômulo Soares Valentini
Gabriela Neves Delgado Rosemary de Oliveira Pires
Giovani Clark Rúbia Zanotelli de Alvarenga
Gustavo Seferian Sandro Lunard Nicoladeli
Jorge Luiz Souto Maior Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva
Jose Reginaldo Inacio Valdete Souto Severo
Juliana Teixeira Esteves Vitor Salino de Moura Eça
Lívia Mendes Moreira Miraglia Wânia Guimarães Rabêllo de Almeida
Competência pra competir

gamificação liberta, da vida


bonito é ser feio
legal é ser ilegal
juiz pra botá freio
liberdade dá a vida
uber é empresa de tecnologia
empresa de transporte não precisa caminhão
tudo é ideologia
comida vai de moto ou bicicleta
trabalho não, colaboração
salário não, compartilha a gorjeta
não tem caminhão, motorista também não
salário não, esmola é o pasto da mula
trabalhador trabalha
mercado regula
bonito é ser ilegal
ser legal é que é feio
liberdade alimenta, existência desnutrida
lei atrapalha
juiz estrangula
morte aposenta a vida
emprego, na legalidade é liberdade
na mentira aprisiona
o bonito e legal é que liberta
fica o alerta!

Álvaro Klein
Autores
Adriana Letícia Saraiva Lamounier Rodrigues
Advogada sócia no escritório Caldeira Brant. Pós-Doutorado pela Faculdade
de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutora em
Direito pela UFMG em cotutela com a Universidade de Roma Tor Vergata
(2017). Master em Direito do Trabalho pela Universidade de Roma Tor Ver-
gata. Bacharel em Direito pela UFMG (2011). Endereço eletrônico: adrianal-
slr@yahoo.com.br.
Álvaro Klein
Mestre em Diversidade Cultural e Inclusão Social pela Universidade Feevale
(Novo Hamburgo/RS) e Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do
Rio dos Sinos (UNISINOS/RS).
Antonio Escosteguy Castro
Formado em Direito pela UFRGS em 1981, assessor de entidades sindicais,
membro do Coletivo Jurídico da CUT/RS, diretor da AGETRA - Associa-
ção Gaúcha da Advocacia Trabalhista e autor do livro Trabalho, Tecnologia
e Globalização.
Benizete Ramos de Medeiros
Advogada Trabalhista; doutora em Direito e Sociologia (UFF); mestre em
Direito (FDC); professora de graduação, pós-graduação latu e stricto sensu;
membro da Escola Superior da Advocacia Trabalhista da ABRAT; membro
da Comissão de Direito do Trabalho do IAB; diretora da JUTRA e professora
convidada da Universidad Internacional Ibero Americana –UNINI.
Bruna Carolina de Oliveira
Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISI-
NOS/RS).
Caroline Ferreira Anversa
Diretora da Associação Gaúcha da Advocacia Trabalhista - AGETRA, sócia
do Escritório Direito Social, especialista em Direito e Processo do Trabalho,
formada pela PUCRS/RS.
Cíntia Roberta da Cunha Fernandes
Advogada especialista em Direito do Trabalho. Sócia do Escritório Mauro
Menezes e Advogados. Mestranda em Direito das Relações Sociais e Traba-
lhistas. Integra o grupo de estudos sobre Trabalho em Plataformas Digitais.
cinta@mauromenezes.adv.br.
Denis Rodrigues Einloft
Advogado. Sócio do escritório CCM ADVOGADOS. Mestre em Direito. Es-
pecialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Especialista em
Direito Processual Civil. Especialista em Direito Previdenciário. Integrante
da REDE LADO. Associado da ABRAT, AGETRA e IARGS.
Hugo Fonseca
Advogado especialista em Direito Material e Processual do Trabalho. Sócio
do Escritório Mauro Menezes e Advogados. Graduado em Direito pela Uni-
versidade de Brasília – UnB. Integra o grupo de estudos sobre Trabalho em
Plataformas Digitais. hugof@mauromenezes.adv.br.
Jaqueline Büttow Signorini
Advogada e assessora sindical. Especialista em Direito do Trabalho e Proces-
so do Trabalho pela Faculdade de Ciências Sociais de Florianópolis. Mestra
em Ciência Política pela Universidade Federal de Pelotas.
Julio Guilherme Köhler
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Advogado.
Luciana Alves Dombkowitsch
Professora, advogada trabalhista, especialista em Direito e Processo do Tra-
balho pela Universidade Castelo Branco, mestre em Direito e Justiça Social
pela Universidade Federal do Rio Grande – Furg, doutoranda no programa
de pós-graduação em Politica Social e Direitos Humanos da Universidade
Católica de Pelotas – UCpel, diretora de interior da Associação Gaúcha da
Advocacia Trabalhista - AGETRA nas gestões 2017-2019 e 2019-2021.
Luciane Toss
Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela UNISINOS, Especialista em No-
vos Rumos do Direito pela Universidad de Burgos (ESP), Direitos Humanos
e Direitos Trabalhistas pela Universidad Castilla La Mancha (ESP), Espe-
cialista em Direito Privado e Constitucional pela UNISINOS, professora da
FEMARGS, integra o corpo docente da Escola da ABRAT, Coordenadora,
professora e fundadora da Escola Trabalho e Pensamento Crítico, sócia e
consultora da Ó Mulheres! Consultoria em Gênero e Direitos Humanos. Ad-
vogada Trabalhista. Vice-presidente da AGETRA e integrante do grupo Femi-
nismo da ABRAT e do Coletivo Advogadas do Brasil.
Maria Emília Valli Büttow
Advogada e assessora sindical. Especialista em Direitos Humanos e Trans-
nacionais do Trabalho pela UCLM. Mestra em Sociologia pela Universidade
Federal de Pelotas.
Meilliane Pinheiro Vilar Lima
Advogada trabalhista no LBS. Mestranda em Direito das relações sociais e do
Trabalho na UDF.
Pedro Carvalho de Mendonça
Advogado trabalhista.
Ramiro Crochemore Castro
Graduado em Direito pela PUCRS. Advogado Trabalhista. Especialista em
Direito do Trabalho pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM) na
Espanha e pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho e Seguridade
Social na Fundação Escola da Magistratura do Estado do Rio Grande do Sul
(FEMARGS). Mestrando em Direito pela Fundação da Escola Superior do
Ministério Público (FMP-RS) e vinculado ao grupo de pesquisa Transparên-
cia, Direito Fundamental de Acesso e Participação na Gestão da Coisa Públi-
ca coordenado pela professora doutora Maren Guimarães Taborda. Endereço
eletrônico: ramiro@copadvogados.com.br.
Renata Gabert de Souza
Advogada, bacharelada em Estudos Jurídicos e Sociais na UNISINOS em
1987, com especialização e Direito e Processo do Trabalho, pós-graduada em
Filosofia Contemporânea pelo IMED 2018.
Rubens Soares Vellinho
Advogado e assessor sindical. Mestre em Sociologia pela Universidade Fede-
ral de Pelotas e Doutor em Política Social e Direitos Humanos pela Universi-
dade Católica de Pelotas.
Participação Afetiva
Cezar Britto
Advogado e escritor, autor de livros jurídicos, romances e crônicas. Foi pre-
sidente da Ordem dos Advogados do Brasil e da União dos Advogados da
Língua Portuguesa. É membro vitalício do Conselho Federal da OAB, da Co-
missão Brasileira de Justiça e Paz, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas
e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.
PREFÁCIO

Ludmila Costhek Abílio

Neste livro encontra-se o exercício de reflexão de profissionais que


compreendem o direito como um campo em permanente movimento e trans-
formação. Longe de uma abordagem pretensamente neutra, aqui são abraça-
dos os dilemas que envolvem a todos nós que nos voltamos pela busca de uma
sociedade mais justa e igualitária, ainda que a tempestade venha de longe nos
empurrando vitoriosamente para outra direção.
Em um país que se funda nos permanentes pilares coloniais e escrava-
gistas, uma sociedade que constitui um mercado de trabalho onde a informa-
lidade é regra e grande parte dos trabalhadores persistentemente sobrevivem
com um salário mínimo, a defesa dos direitos do trabalho, - ou melhor seria,
do direito do trabalho? – parece se tornar tarefa cada vez mais desafiadora.
Emprego, regulação do trabalho, integração social via assalariamento
são categorias que sempre nos enredaram na enorme dificuldade em tema-
tizarmos nossa realidade tal como ela é e tal como poderia ser. A crise se
aprofunda, na medida em que as próprias categorias que nos balizam parecem
se desmanchar, se deslocar, adquirir novas roupagens, ou persistir de forma
obliterada frente às transformações contemporâneas do trabalho. Este é um
desafio que acompanhará o(a) leitor(a) em todos os capítulos desse livro.
Passaram-se já mais de quatro décadas em que seguimos enredados no
que se convencionou como neoliberalismo. O termo que hoje tem diferentes
sentidos e perspectivas, refere-se, dentre outros elementos, à defesa da empre-
gabilidade que opera como legitimação de demolição dos direitos, proteções e
garantias associadas ao trabalho; às regulações que fundamentaram a liberali-
zação de fluxos financeiros e de investimentos e os mecanismos desenfreados
e inalcançáveis da valorização financeira. A alta mobilidade do capital desafia
ainda mais as forças sociais do trabalho, dependuradas hoje na chantagem
permanente da descartabilidade. A referência das telas de proteção social vai
sendo substituída pela do quadro inóspito do empreendedorismo e da transfe-
rência de riscos e custos para os trabalhadores.
Resumindo a ópera, o horizonte do emprego formal que tanto baliza
os direitos do trabalho vê-se profundamente desafiado para os processos de
informalização que vão deixando claro, como bem avisou o atual presidente
da república, que a informalidade é a regra geral para o mundo do trabalho
brasileiro. E neste sentido, escapemos dos eternos dilemas entre o velho e o
novo, para entender que somos o espelho do que vem se chamando de futuro
do trabalho.
As atuais formas de gerenciamento nos evidenciam que é possível in-
formalizar os próprios meios de controle do trabalho, sem que isto signifique
a perda de subordinação, expropriação ou exploração do trabalhador. O que
vimos nestas décadas são processos profundos de transferências de riscos e
custos para os trabalhadores, que correram juntos com a eliminação de media-
ções regulatórias que estabeleciam as fronteiras entre o que é ou não tempo de
trabalho, o que é ou não trabalho remunerado, o que são custos do trabalho,
o que são deveres e responsabilidades do empregador. Leia-se, todo tempo
torna-se potencial tempo de trabalho, custos do trabalho tornam-se custos
para o trabalhador, o valor do tempo de trabalho flexibiliza-se e perde suas
formas sociais bem estabelecidas, possibilitando novos mecanismos de rebai-
xamento do valor da força de trabalho, acompanhados ainda da eliminação ou
transferência dos poros do trabalho para trabalhadores e trabalhadoras. Esses
e essas contam cada vez menos com formas bem estabelecidas de resistência
coletiva, enfrentam cotidianamente a ameaça da espada do desemprego, além
de terem de ser excelentes gerentes de si próprios para sobreviver num jogo
cada vez mais sem regras ou garantias claras e socialmente estabelecidas. O
empreendedorismo torna-se o novo nome para a gestão da sobrevivência, que
agora é solitariamente transferida para o trabalhador. O trabalhador uberizado
hoje materializa emblematicamente estes processos, escancarando nas ruas
das cidades, mas também em tantos outros lugares mais ou menos reconhecí-
veis e visíveis, onde chegamos e para onde nos encaminhamos.
A uberização se refere essencialmente à consolidação de trabalhadores
sob demanda, que estão subordinados, mas são controlados por meios difíceis
de reconhecer e mapear. Trata-se de uma informalização das regras, também
elas flexíveis, não acordadas, e em permanente movimento. Os custos do tra-
balho são transferidos para o trabalhador, as definições estáveis e contratuais
sobre jornada de trabalho ou remuneração desaparecem. O trabalhador ube-
rizado está inteiramente disponível ao trabalho, mas só é utilizado de acordo
com as determinações das empresas. Seu trabalho é definido por um geren-
ciamento que parece ser regido por uma neutralidade técnica, altamente efi-
ciente, automatizada e aleatória dos algoritmos. Mas o que a uberização nos
evidencia é o que a tecnologia é política, o seu caráter aparentemente neutro é
a expressão invertida de relações de poder, de dominação e exploração.
A pandemia deixou evidente o que é o viver sem redes de proteção
social. O limiar da vida e morte que entrou em todas as casas e ruas do país
nos retirou qualquer resquício de véu sobre nossas persistentes desigualdades
e injustiças sociais. Das taxas de letalidade aos índices de isolamento, foram
se desenhando as linhas que nos atravessam e nos formam. Recolocam-se
então os dilemas em um novo patamar. A linha divisória entre os que têm ou
não têm o que se tornou o “privilégio” de se isolar vai definindo a cor, clas-
se, território dos números, também eles incertos, precários e invisibilizados.
Nos vemos então imersos em uma espécie de laboratório engenhoso, em um
home office generalizado – para quem pode; onde a segurança corre junto
com a perda de medidas dos custos e do tempo de trabalho. Já o exército de
trabalhadores uberizados que nos deixa clara a perversidade do viver de um
trabalhador sob demanda e sua expansão. O que se desenha é a ampliação de
meios de intensificação do trabalho e extensão do tempo de trabalho, entre
outros elementos que hoje estão no cerne dos dilemas que enfrentamos.
Escrever sobre o próprio tempo não é tarefa simples, o que dirá então
pavimentar os caminhos que definem as sempre instáveis referências do que
é justo e digno. Nesta obra coletiva vemos os percursos individuais da refle-
xão e o encontro de ideias e perspectivas voltadas para outros possíveis das
organizações coletivas, das formas de resistência, das regulações do trabalho.
Novo normal ou velha exploração: E A.I.?
Cezar Britto

1 - O admirável mundo tecnológico


O mundo da inteligência artificial é uma pop star admirada e visível no
habitat do agora. A todo instante se anuncia que através da inteligência artifi-
cial vários tipos de doenças foram catalogados, diagnosticados e descobertos
como poderiam ser tratados ou curados, não raro de forma virtual e através
dos dados pessoais dos pacientes colhidos e repassados os robôs-médicos em
tempo real. Alexa, Bia, Bina, Han, Philip, Sophia, Victor, Watson e outros
computadores mais íntimos já são louvados como mais eficazes, rápidos, pre-
cisos e inteligentes do que a mente humana. As máquinas, os algoritmos e os
dados, enfim, são apontadas como as novas energias propulsoras da socie-
dade, responsáveis pela solução mais adequada para cada um dos enigmas
mais complexos da vida e das relações humanas, fazendo obsoletos os livros,
as universidades e os infindáveis debates interpessoais sobre a natureza das
coisas.
Neste “admirável mundo novo” – utilizando-se a nomenclatura em que
Aldous Huxley narra a distopia futurística que imaginou em imperdível livro
– a vida seria mais segura, organizada e selecionada segundo a capacidade
das classes e o potencial das máquinas. O cotidiano seria mais confortável nas
casas informatizadas que calcularão a temperatura, a sonoridade, a luminosi-
dade e todos os mimos domésticos que pudessem garantir o conforto ambien-
tal para os moradores, após merecidas horas disponibilizadas aos afazeres
construtivos. Até mesmo os alimentos, adquiridos em porções previamente
preparadas com rigores nutricionais, seriam apresentados como vencedores
genéticos das pragas causadoras da fome. As distâncias seriam encurtadas em
desafio ao tempo real, não raro através de meios de locomoção que observa-
rão a proteção ao meio ambiente. E a paz social seria finalmente alcançada,
com as rápidas e eficazes prisões de criminosos, identificados em aparelhos
faciais ou através de dados automaticamente colhidos das redes sociais pelos
robôs-policiais.
E as decantadas propagandas sobre os benefícios irreversíveis do mun-
do tecnológico não estão postas apenas nas obras ficcionais. O mundo tecno-
lógico integrou-se, imperceptível ou não, ao cotidiano do mundo do trabalho,
modificando os modelos obrigacionais, interferindo no inter-relacionamento
das partes envolvidas no processo produtivo, agilizando as comunicações,
dinamizando as pesquisas, ampliando os horizontes científicos, encurtando
o tempo da produção, melhorando a qualidade dos serviços e alterando, so-
bretudo a necessidade presencial do trabalhador no local de trabalho. As
inovações tecnológicas já interferem na melhoria do processo produtivo, com
poucos danos colaterais à ambiência laboral. Afinal, através delas, não são
destinados aos trabalhadores e às trabalhadoras os serviços estafantes, peri-
culosos, insalubres ou com o acometimento de graves riscos. Ao contrário,
grande parte destes gravames laborais e que comprometem a vida humana
fora transferida para os robôs.
A Lei 13.467/17 – conhecida como Reforma Trabalhista – procurou re-
gulamentar o fenômeno do trabalho tecnológico subordinado, trazendo para a
legislação laboral o instituto do teletrabalho, também chamado, a depender da
cultura ou do país, networking, telecommuting, remote working, téletravail,
teletrajo e telelavoro. Ainda neste campo, procurou-se disciplinar o traba-
lho intermitente, uma modalidade de contratação flexível e com remuneração
vinculada à hora contratada, sempre se afirmando que o tempo livre seria
estimulador de novas modalidades relacionais. E não apenas no mundo da
economia regulamentada o trabalho está sendo modificado pela tecnologia,
destacando-se como grande novidade relacional os trabalhadores e as traba-
lhadoras de aplicativos, que hoje representam a maior categoria subordinada
do Brasil.
A pandemia provocada pelo Covid-19 generalizou, normalizou e tornou
oficial o teletrabalho e a atividade em home office. Os meios de comunicação
alardeiam que o futuro foi antecipado, podendo a classe trabalhadora, final-
mente, melhor gerenciar o seu tempo, compatibilizando-o com uma maior
integração familiar e dedicação ao ócio criativo. Livre do controle patro-
nal e das intermináveis horas perdidas nos abarrotados transportes públicos
ou engarrafados trânsitos, a classe trabalhadora somente poderia ser cobrada
pela produtividade, não mais pela burocracia monótona das horas. E, confir-
mando a importância desta nova visão laboral, várias empresas anunciam que
diminuirão seus espaços físicos presenciais, apostando no infindável espaço
virtual do mundo tecnológico.
E neste pacote de benefícios se poderia acrescer o melhoramento pro-
vocado pelo avanço tecnológico sobre o meio ambiente, poupando-o da des-
truição de milhares de árvores que, convertidas em papéis, deixariam de lotar
os arquivos-mortos, os aterros não-sanitários, os rios, os mares e a já poluída
ambiência pública. Na boa conceituação de desenvolvimento sustentável, o
mundo tecnológico virtual teria a vocação de aposentar a decadente Era do
Papel, deixando no passado os danos florestais. Neste aspecto, o avanço tec-
nológico significaria um ganho humanitário indiscutivelmente, insuperável
até. Afinal, o ambiente sustentável é um dos direitos fundamentais que uma
geração não pode negar à outra. Na Era Digital, com certeza, as árvores e o
planeta lucrarão quando o papel deixar de ser, definitivamente, elemento inte-
grante da cadeia cultural das pessoas e instituições.
O argumento da sustentabilidade, registre-se aqui, estava presente nas
falas das autoridades judiciárias brasileiras e nos encontros que reuniam pre-
sidentes de tribunais, magistrados, técnicos e servidores dos tribunais, quan-
do firmaram a compreensão de que o peticionamento eletrônico deveria pau-
tar o planejamento estratégico dos órgãos do Poder Judiciário. Diziam que a
economia de recursos financeiros obtida seria utilizada como condição funda-
mental para a modernização do Judiciário e, em consequência, reaplicada na
garantida do acesso à Justiça. E como arremate final, determinaram que o PJe
- Processo Judicial Eletrônico seria a fórmula exclusiva e ideal para garantir
o Direito de Acesso à Justiça.
A política de implementação imediata do PJe fez o sistema judicial viver
a percepção de que, rapidamente, encontrara a solução mágica para responder
ao aumento da litigiosidade. A Era Digital então foi festejada como sendo a
maior aliada do cumprimento da garantia constitucional do acesso à Justiça,
notadamente quando aos itens eficiência, celeridade, custos e modernidade.
A tramitação eletrônica, a comunicação eletrônica dos atos processuais e a
entrega de petições por meio eletrônico entraram no dicionário jurídico com
a força de irreversibilidade. Alardeou-se, dentre outras medidas, a conquis-
ta da celeridade e a eliminação das chamadas etapas mortas do processo, a
exemplo da confecção e grampeamento dos processos em papel, pilhas para
juntada de petições, malotes de remessa de autos e peças processuais, arqui-
vamento e busca de autos em infindáveis armários.
Outras vantagens foram apresentadas aos advogados, porta-vozes da
cidadania na busca por Justiça, destacando-se:
a) o aumento do tempo de expediente para a prática dos atos processuais,
pois não se mais dependeria do horário externo dos tribunais e fóruns para
o peticionamento;
b) a possibilidade de consulta ininterrupta dos autos, a qualquer tempo e em
qualquer lugar acessível à internet;
c) a possibilidade de praticar atos em qualquer unidade federativa, do pró-
prio computador instalado no escritório;
d) ampliação do prazo para a prática do ato processual, que poderia ser efe-
tivado até a meia-noite do último dia do prazo;
e) maior controle sobre os prazos, mesmo porque a intimação de ato volun-
tário do próprio advogado;
f) eliminação das filas e do tempo perdido nos balcões de atendimento nos
fóruns e tribunais;
g) diminuição do estresse e acidentes provocados pelo trânsito, durante o
deslocamento do escritório e o fórum, especialmente quando necessária a
interposição de medida de urgência;
h) redução dos custos de manutenção dos escritórios, especialmente com a
desnecessidade de arquivos físicos, a economia de papel e a eliminação
das caríssimas e poluentes tintas de impressora.
Alguns até disseram que o STF já constitucionalizou o avanço tecno-
lógico como garantia fundamental ao desenvolvimento da sociedade quando
decidiu, contra literal disposição processual da época, que a sentença dati-
lografada tinha o mesmo valor processual da sentença redigida de próprio
punho pelo magistrado. A questão, que soaria fantasiosa em plena era de
assinatura digital, comprova que as invenções, as máquinas, a robótica, os
computadores, a inteligência artificial e toda parafernália criada pela mente
humana pertencem ao mundo evolutivo da História, ainda que gerem reações
adversas daqueles que não se adaptaram ao admirável mundo que sempre
renasce em cada descoberta. É como se válida a profecia musical cantada por
Belchior, quando, diante da polêmica entre o velho e novo, vaticinou: “Mas é
você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem”.
Realmente, estes benefícios são sentidos e multiplicados na velocidade
da luz, espalhando-se nas redes sociais, aproximando pessoas, conhecidas
ou não, pelo critério da afinidade e interesses comum. Tudo isso comparti-
lhado, acompanhado, acessado e executado, individual e democraticamente,
por bilhões de computadores portáteis que também servem para telefonar.
Em reforço a este argumento, poder-se-ia complementar, como exemplo, o
impacto tecnológico positivo dos astrolábios, dos quadrantes, das bússolas,
das balhestilhas e da cartografia na “Era das Navegações e dos Achamentos
Territoriais”, modificando o mundo como agora conhecemos e, de quebra,
permitindo que velhos marujos de outrora, como bem lembrado pelo poeta
português Fernando Pessoa, ensinassem-nos que “navegar é preciso”. Dizer
poético que poderia ser substituído, em tempos de navios, submarinos, aviões
e foguetes, por “voar, decolar, mergulhar ou pilotar são precisos”.
2 - O direito de ter a propriedade do avanço tecnológico
A reflexão que julgo importante perquirir em texto escrito – recusan-
do-me a buscar a resposta nas propagandas ufanistas e no os sites virtuais de
busca sobre todos os assuntos – não guarda relação direta sobre a importância
inexorável dos avanços tecnológicos na consolidação do “admirável mundo
novo”. Como já registrado na parte introdutória, o avanço tecnológico sempre
foi, e sempre será fundamental, imprescindível até. A questão fundamental
para o debate é aquela formulada na seguinte indagação titular: O mundo
admirável que virá provocado pela tecnologia é realmente novo ou é apenas
uma modernização terminológica da velha exploração?
Neste sentido e para resolver este dilema propositivo, necessário se faz
trazer ao debate outras questões, como agora se formula: Quem é o pro-
prietário da tecnologia? Quem nela investe? A quem se destina? Com que
finalidade é utilizada? A quem serviu as pirâmides e as tidas maravilhas do
mundo antigo? Quem eram os donos das caravelas? Quem investiu no vapor,
na eletricidade e nos combustíveis sólidos? A que se destina as armas bélicas?
Qual a finalidade real dos computadores? Qual a solução – tecnológica ou
não – apresentada para os foram e serão excluídos do mercado ou para os que
jamais terão acesso aos benefícios por ela alardeados?
Antes de buscar no computador da memória algumas respostas para
a indagações aqui pontuadas, julgo importante anotar como parâmetro re-
flexivo os conceitos que serão aqui utilizados, até porque, por admitirem
interpretações diversas, merecem ser clareados sob o óculo com que estão
postos. Estes declaratórios voluntariamente antecipados serão importantes
para a compreensão do viés aproveitado. Assim, anoto o direito de ter como
sendo o conjunto normativo destinado a garantir a propriedade das coisas, a
posse sobre as pessoas humanas e o uso dos frutos produzidos por ambos,
fundamentado na escolha de uma política de preservação da supremacia de
um grupo sobre o outro, no escopo de proteger essa na qual as forças privi-
legiadas determinam e são as principais destinatárias desta própria política.
Como contraponto conceitual, registro a expressão direito de ser como sendo
o aparato jurídico que reconhece a pessoa humana, nas relações individuais
e coletivas, de modo a figurar como o principal fundamento para legitimação
das ações praticadas pelos grupos que buscam a hegemonia sobre a política, a
economia e edição das normas de conduta adotadas pelo Estado.
Esclarecidos os pontos iniciais da abordagem a ser desenvolvida, ante-
cipo que os avanços tecnológicos postos ao longo da História, especialmente
quando destinados a interferir no mundo do trabalho, sempre foram destina-
dos à preservação do direito de ter. É que não se pode negar que a invenções
tecnológicas, virtuais ou não, sempre foram utilizadas para preservação e con-
quista de poder, aumento das riquezas de quem as domina, o aprofundamento
das desigualdades entre o fornecedor e o consumidor da inovação, o aumento
da dominação e da dependência. Enfim, o patrimonialismo controlador dos
avanços tecnológicos sempre usou, ditou regras, apropriou-se, beneficiou-se
e lucrou com as invenções reveladas ou descobertas.
Os escribas, os sacerdotes, os militares, os artesãos, os comerciantes, o
vizir e o faraó, no Egito Antigo, eram os donos dos artefatos tecnológicos e
de guerra, dos conhecimentos médicos e farmacológicos, da engenharia quí-
mica, naval, civil e hidráulica, dentre outros, utilizando-os para legitimar o
direito de ter a propriedade da natureza, dos camponeses, dos escravos e de
tudo que fosse produzido, gerasse lucro ou conservasse uma estrutura de po-
der elitista, hierarquizada, excludente e injusta, de desde o controle alimentar
do trigo até as magnânimas pirâmides garantidoras de um além-mundo igual-
mente discriminatório. Não muito diferente do que ocorrera na Mesopotâmia,
Índia, China, Grécia e Roma e demais histórias do mundo antigo.
Eram os reis, os nobres, os de sangue-azul e os vassalos quem se fize-
ram, simultaneamente, donos e beneficiários dos conhecimentos científicos
obtidos nos nascidos centros universitários, da arquitetura cisterciense e gó-
tica, da prensa móvel, das invenções navais, da pólvora e das novas armas de
guerra, da filosofia, dos fármacos e de todo legado tecnológico medieval. A
aristocracia, os traficantes de escravos e os ricos comerciantes eram os donos
tecnológicos foram os que lucraram durante o mercantilismo, assim como os
escravistas proprietários de terras na Independência dos EUA, os burgueses
na Revolução Francesa, os industriais na Revolução Industrial, os proprietá-
rios de escravos no Império do Brasil e os barões do café na Velha República.
As histórias dos povos índigenas que se espalhavam pelo continente
americano e os aborígenes australianos não são diferentes de todas as his-
tórias das civilizações conhecidas. Nela, mais uma vez, a civilização domi-
nante utilizou-se da diferença e do poderio tecnológico para conquistar, não
raro com chacinas, trabalho forçado, aprisionamento e grilagem de terras, a
civilização colonizada. A mesma (i)lógica insana aplicada à escravidão pela
cor se perpetuou oficialmente por séculos, ainda praticada na criminosa ideia
de que é “aceitável” a coisificação do trabalho humano, como se poderia con-
cluir do livro Escravismo Colonial, em que o historiador Jacob Gorender,
corretamente, apontava ser o escravismo um “modo de produção em si”, não
o “capitalismo atrasado” de Caio Prado Junior, ou o “feudalismo incompleto”
de Alberto Guimarães.
As armas de pedra, as lanças, as facas, as espadas, a pólvora, os canhões
e bombas nucleares são exemplos de evoluções tecnológicas que fizeram da
morte coletiva um fenômeno político natural ao próprio conceito de nação ou
identidade de um povo. A tecnologia das armas e das máquinas interferiu nos
meios de produção, sendo utilizada para controlar, dominar, subjugar e justi-
ficar escravidão dos vencidos nas guerras, a escravidão da cor dos espoliados
na partilhada rapina africana, a servidão feudal aos detentores das riquezas ou
exploração salarial pelos donos dos instrumentos de trabalho. Eram também
instrumentos de sequestros de mulheres para o sexo e a procriação de novas
crias servis.
Os avanços tecnológicos – independentemente do período histórico
analisado – sempre foram utilizados como instrumentos de poder, quase sem-
pre destinados ao domínio, exploração, controle e lucro da camada social que
se julga no direito de ter a propriedade das coisas e das pessoas. Não foram
os avanços tecnológicos, em conclusão, utilizados para melhorar o direito de
ser pessoa humana, proporcionar a distribuição das riquezas produzidas cole-
tivamente, permitir o acesso universal às inovações ou a socializar os benefí-
cios por elas anunciados. Ao contrário, os avanços teológicos aperfeiçoaram
os métodos ampliação do direito de ter, desde a opressão-violenta através
da matança dos corpos humanos, passando pela opressão-pacífica através do
aniquilamento das raízes sócio-culturais dos povos e, em apertada síntese, a
opressão-econômica consolidada no modo produtivo e no ato de trabalhar.
3 - O direito de ser o destinatário do avanço tecnológico
Ao compreendermos que a quase totalidade da tecnologia é patenteada,
propriedade privada do seu investidor, destinada a poucos e utilizada para o
fortalecimento dos que se julgam no direito de ter a propriedade das coisas,
da natureza e das pessoas, encontraremos múltiplas luzes no fim do túnel
das respostas. Uma destas respostas – segundo penso – está na compreensão
da importância do direito de ser na consolidação da História, especialmente
quando suas páginas mostram o caminho evolutivo traçado pela humanidade
nas mais diversas quadras do tempo. É que a humanidade já apontou que não
aceitava a preponderância do direito de ter enquanto direito posto e legitima-
do. Anotou que a pessoa humana deveria ser a razão da política, falou a língua
da solidariedade e pregou que somente através da ação comprometida com os
direitos humanos poder-se-á coibir a exploração.
E não só! Querelas contra a barbárie, a dominação, a opressão e as vá-
rias formas de legitimação do ter foram reconhecidas como novas formas de
concretização do direito. Rebelou-se contra o tráfico de seres humanos, os
navios negreiros e o direito de propriedade sobre homens mulheres e crianças.
Reformou-se a intolerância religiosa que se apresentava como dogma, não
mais aceitando corpos queimados em fogueira como se fossem manifestações
divinas e os conflitos entre religiões simples guerras santas. A humanidade
também exigiu que palavras como direitos humanos, liberdade, igualdade,
fraternidade e Justiça fossem proferidas e apontadas como únicas respostas
legais possíveis para um novo direito posto. Legislou-se para a paz e não para
a guerra; a sensibilidade como alternativa à frieza; a construção do amor para
implodir castelos de ódios. A poesia rebelde, a música engajada, a escrita
corajosa, as cores insurgentes, a fé resistente, a mente revolucionária, a ação
destemida e a voz amotinada também se rebelaram e exigiram um direito
posto à disposição do ser.
O direito de ser estava presente e se fez posto na velha Lei do Habeas
Corpus inglesa de 1679, que concebeu, pela primeira vez, o heroico instru-
mento de “proteção ao ir e vir”. Era ele um dos fundamentos da Declaração
de Direitos Bill of Rights de 1689 que reconheceu o princípio da legalidade,
do devido processo legal, do direito de petição e de eleição, dentre outros. Fe-
z-se referência obrigatória na Declaração de Virgínia, feita em 16 de junho de
1776, quando proclamado o direito à vida, à liberdade, ao princípio da legali-
dade, à liberdade de imprensa e a liberdade religiosa, bem assim a Declaração
de Independência dos Estados Unidos, de 04 de julho de 1776, que limitou o
poder estatal e valorizou a liberdade individual. Ganhou corpo na Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão posta no mundo jurídico pela Revo-
lução Francesa, priorizando as liberdades públicas, o direito de resistência à
opressão, o direito de concorrer pessoalmente ou por representantes para a
formação da lei, como expressão da vontade geral e o direito de acesso aos
cargos públicos.
Os mascates, os inconfidentes, os conjurados, os cabanos, os sabinos,
os balaios, os alfaiates, os praianos, os quilombolas, os sertanejos de Antônio
Conselheiro, os tenentistas e milhares de outros brasileiros e brasileiras porta-
ram a sua bandeira, independentemente da motivação de suas rebeldias. A Lei
Áurea, de 13 de maio de 1888, posta no direito como reconhecimento e triun-
fo do direito de ser, também teve como precedente a luta abolicionista e a vi-
toriosa crescente da “desobediência civil” praticada por escravos rebelados. A
resistência dos quilombolas é um dos maiores exemplos de luta pela liberdade
e redução do número de escravos, pois não podiam aceitar a insana lógica da
escravidão, em que uns são melhores do que outros em função da cor. Canga
Zumba, Zumbi, Diogo, Ramil, James, Cornélio e João Mulungu são alguns
dos homens-livres que contribuíram para o estimulo à “desobediência civil” e
o nascimento de cidade-livres como Palmares (Alagoas), Jabaquara (Santos)
e Leblon (Rio de Janeiro). Revoltas e rebeliões, a exemplo da Revolta dos
Malês, em 1835, na Bahia, foram decisivas nas lutas de libertação, além de
servirem para alimentar a resistência dos que sonhavam com um Brasil igual.
É a efetivação do direito de ser, especialmente nas questões relacio-
nadas à vida, à dignidade humana, ao direito de resistência, ao direito ao
trabalho, à autodeterminação dos povos, dentre outros que se contrapõem ao
direito de ter, que garantirá a “socialização dos algoritmos”. As “normas pri-
márias” construídas através do “cimento do tempo”, utilizando-se expressões
de Norberto Bobbio (A era dos direitos), são os avanços que devem nortear
os próprios avanços tecnológicos, coibindo-os ou exigindo as adequações tec-
nológicas necessárias quando agridam o direito de ser, especialmente aquele
de conteúdo coletivo. Elas são, portanto, os contrapontos fundamentais para
a compreensão do papel dos avanços tecnológicos.
Em conclusão quanto ao item, pontua-se que o grande desafio da huma-
nidade não está na proibição do uso da tecnologia ou no cessar imediato dos
investimentos que a permita avançar de forma inflexível, desafiadora e evolu-
cionária. O desafio maior é o de inverter o uso da tecnologia como elemento
fortalecedor do direito de ter, colocando-a, em consequência, à disposição e
fortalecimento do direito de ser. Afinal, o direito de ser mostrou-se como sen-
do o verdadeiro antídoto e contraponto principal ao uso da tecnologia como
elemento de fortalecimento do direito de ter. Escrevendo em outras palavras:
Somente a visão humanista do avanço tecnológico é que alterará o seu uso
excludente, classista e protetor do poder econômico, político e social dos pro-
prietários das máquinas, dos robôs e das inteligências ditas artificiais.
4 - O avanço tecnológico no mundo do trabalho
A caracterização do Direito ao Trabalho como princípio fundamental
inerente ao direito de ser é fruto do eterno aperfeiçoamento do conceito de
humanidade. Um não existe sem o outro, assim como não pode viver o ser
humano sem o oxigênio que irriga o seu corpo. Direito ao Trabalho e huma-
nidade fazem parte, nesta linha de caminhada, da mesma trilha evolutiva do
ser humano enquanto razão de ser da política de Estado. Não se tem dúvida,
assim, da importância de se estabelecer mecanismos de controles sociais so-
bre o Direito ao Trabalho e à forma em que é regulada ou autorizada a sua
defesa enquanto princípio fundamental. Neste sentido, tem razão Francisco
Guillém Landrián (La codificacioón del Derecho Laboral en Cuba, Editorial
de Ciencias Sociales, La Habana, 1987, p. 7), quando registra:
O Derecho Laboral está estrechamente vinculado con la base
econômica de la sociedad y, en consecuencia, los cambios en
ésta repercuten rapidamente en aquél, haciéndolo muy dinámi-
co.

Em razão da Revolução Industrial tornou-se hegemônica a afirmação de


que o Direito ao Trabalho nasceu com o surgimento das máquinas, das suas
indústrias e a da massificação da mão-de-obra que se aglutinava em torno
do novo método de produção de riquezas. Não obstante o iniciar desta nova
visão sobre o direito ao trabalho, a exploração sobre a embrionária classe tra-
balhadora ainda era visível, generalizada e cruel. A “coisificação” do trabalho
seguia presente na compreensão de um mundo centrado na lógica da proteção
do ter e na cumulação de poder e de riquezas materiais. Não estava revo-
gada a secular e preconceituosa compreensão de que trabalhar era atributo
dos miseráveis, dos desvalidos e dos desafortunados pela sorte. Não chocava
à sociedade dominante a simples constatação de que a jornada de trabalho,
quando mais branda, tinha início com o nascer e término ao por do sol, bem
assim que crianças e mulheres laboravam em condições absolutamente insa-
lubres, periculosas e análogas à condição de escravidão. Não a sensibilizava a
exploração assumida, os acidentes de trabalho corriqueiros a devorar vidas, a
miséria aceita como inexorável e a fome que se espalhava nas ricas unidades
fabris. As máquinas e os avanços tecnológicos estavam, única e exclusiva-
mente à disposição do direito de ter.
Paralelamente, no século XIX começou a se desenvolver a classe ope-
rária, assumindo ela o papel propositivo na contestação do direito de ter his-
toricamente presente no direito posto. Com as indústrias nasceram as primei-
ras associações sindicais livres e os movimentos reivindicatórios do direito
de ser, trazendo para o direito uma nova visão sobre o trabalho como fator de
dignidade da pessoa humana. Esta nova visão sobre o direito se rebela contra
a exploração embrionária da pessoa humana e a “coisificação” do trabalho
centrada na lógica da acumulação de poder e de riquezas materiais. E com
a modificação das relações de trabalho, o aumento da consciência de classe,
as propostas de suavização da exploração e a luta pela própria valorização
do trabalho como fator gerador de riquezas, o século XX passou a vivenciar
o nascimento de mais um movimento que influenciou decisivamente na con-
cepção do direito ao trabalho.
Neste clima de efervescência social e consolidação de riquezas, uma
nova e rebelde conceituação do Direito do Trabalho começou a ser teorizada,
fazendo com que a luta pelo direito ao trabalho como princípio fundamental
também provocasse o surgimento do Direito Coletivo do Trabalho. É desta
época, em resumo, o aprofundamento dos conflitos que fizeram o século XIX
também ser conhecido como a Era do Socialismo. O direito de ter x o direito
de ser, o papel produtivo da máquina x valor laboral do trabalho humano
e, com mais destaque, o velho conflito capital x trabalho eram discutidos
abertamente. Agregou-se, depois, um novo conceito ao efervescente confli-
to Capital x Trabalho, agora de conteúdo nitidamente revolucionário. Nesta
fase – ainda apontada como utópica – o Trabalho passava a ser considerado
como fonte direta de poder político a ser exercido pelo próprio trabalhador. O
direito ao trabalho, nesta inovadora concepção, não mais seria um princípio
fundamental a ser reivindicado pelas organizações dos trabalhadores, mas,
sobretudo, o próprio poder em si mesmo. Apropriar-se do trabalho significa-
ria também se apropriar do poder. Era a época do surgimento de propostas de
uma sociedade mais justa e igualitária, sem qualquer exploração de classe.
Este novo movimento revolucionário faz crescer e proliferar várias propostas
de um mundo mais justo e equilibrado, destacando-se a Revolução Mexicana
e a Revolução Bolchevique, ambas abolindo o direito de ter e coletivizando,
em consequência, o uso da tecnologia.
Nesta fase em que o Capitalismo buscava uma resposta convincente aos
movimentes sociais, independente do modelo do Estado adotado, o direito
ao trabalho teve o seu período mais fértil de regulação. Teorias de proteção
ao trabalho foram elevadas ao status de direito fundamental, inseridas nas
constituições nacionais ou nas legislações infraconstitucionais. Direitos fo-
ram consolidados, constitucionalizados e internacionalizados, destacando-se
a fixação da jornada de trabalho de oito horas, o direito às férias, a concessão
do repouso remunerado, a regulamentação do trabalho insalubre e periculoso,
as normas protetoras do trabalho das mulheres e adolescentes e o pagamento
de um salário-mínimo.
O advento da Quarta Revolução Industrial modificou, rapidamente, a
regulação e a compreensão do trabalho com fator de dignidade humana, pro-
pondo, de imediato, a revogação ou flexibilização da legislação trabalhista
consolidada no avançar do tempo. Baseada em avanços tecnológicos, inter-
net, energia verde, acesso rápido e fácil à informação, comércio online de
produtos e serviços, grandes automações, aplicação da robótica em diversos
setores do trabalho e o intenso uso da computação cognitiva no dia a dia
(PRISECARU, 2016), desfigurou-se o conceito clássico de empregadores e
empregados. Advogou-se a tese de que o próprio direito ao trabalho deveria
desparecer, inclusive com a extinção dos órgãos oficiais encarregados da re-
gulação do histórico conflito Capital x Trabalho.
Os grandes impactos negativos da Quarta Revolução Industrial já são
sentidos, assim como os causados pelas revoluções industriais anteriores de-
vido à velocidade, profundidade e a transformação praticamente completa de
todos os sistemas relacionados. Não é novidade que os maquinários do campo
sempre aprofundaram o êxodo rural, assim como os robôs industriais gera-
ram desempregados e desalentados em proporções geométricas, vários deles
sem qualquer perspectiva inclusiva de habitar no mundo da boa aventurança
tecnológica.
No mesmo ritmo quedaram-se desatualizados e condenados ao desapa-
recimento os bancários, os agentes de seguro, os taxistas, os hotéis, os restau-
rantes e comerciantes não estão vinculados aos serviços de entrega virtuais e
milhões de outras profissões e incontáveis empreendimentos. É o que se pode
denominar efeitos em cadeia, como, por exemplo, aqueles advindos do uso
do carro sem motorista, que fará desnecessário o próprio trabalhador motoris-
ta, os instrutores de direção, oficiais de teste de licenças e os avaliadores de
seguro, além do que, como estes veículos pessoais utilizarão o período notur-
no, afetar-se-á as indústrias de hospedagem e de companhias aéreas (BROU-
GHAM et al., 2018).
Como é de conhecimento público, sabe-se que uso contínuo da STARA
(Smart Technology, Artificial Intelligence, Robotics and Algorithms) no co-
tidiano das pessoas, das empresas e das relações de trabalho. Estima-se que
47% (quarenta e sete por cento) dos empregos já estão extintos ou ameaçados
de extinção. Estima-se, também, que um terço dos postos de trabalho que
existem hoje possam ser ocupados por STARA até 2025, devido a melho-
rias significativas na destreza e inteligência robótica, juntamente com uni-
dades autônomas de baixo custo que têm o potencial de superar os humanos
em muitas tarefas manuais e conceituais (BROUGHAM et al., 2018). E não
apenas os trabalhos de baixa remuneração e baixa qualificação estão sendo
duramente atingidos, até porque, neste aspecto, não é artificial o desemprego
coletivo e geral (BROUGHAM et al., 2018). A advocacia e os juízes já estão
sendo trocados pela inteligência artificial, assim como já começou o processo
de extinção de cargos como os de taquígrafos, oficiais de justiça e escreven-
tes.
Aliás, um olhar atento aos exemplos apresentados na parte introdutória
deste artigo revelaria o desaparecimento de pessoas, instituições e instrumen-
tos coletivos incorporados ao conceito de essencialidade no mesmo avançar
da sociedade. Todos quedados, invisíveis, ao “novo que sempre vem”. Tele-
fonistas, empresas de telefonia, datilógrafo, secretárias, estagiários, carteiros,
ECT, marqueteiros, agências de propaganda e eletricitários se fizeram desne-
cessários nos rápidos toques tecnológicos preparatórios deste artigo. E, por
serem invisíveis, sem qualquer sentimento de dor ou culpa, mesmo sendo
óbvio que quanto mais a tecnologia avança mais desaparece ou é relegado ao
obscurantismo o trabalho por ela tornado obsoleto ou inimigo.
O “novo e admirável mundo tecnológico” também vem revogando
grandes conquistas do “mundo humanista do trabalho”, especialmente no
que se refere à jornada de trabalho, remuneração digna, descanso semanal
remunerado e gozo de férias. O teletrabalho testado em larga escala durante
a pandemia revelou jornadas de trabalho elásticas, transferência para a classe
trabalhadora dos custos da produção, estresse, fadiga funcional e aumento das
doenças mentais. No teletrabalho adotado à pressa no Brasil, a economia ope-
racional das empresas não foi transferida para a classe trabalhadora no que
se refere ao aumento dos seus gastos com energia, internet e outros aparelhos
tecnológicos.
A recente greve dos entregadores e entregadoras vinculados aos apli-
cativos desmascarou, também, o mito do empreendedorismo provocado pelo
avanço tecnológico. Afinal, revelado o que já se mostrava óbvio antes da pró-
pria pandemia: Os trabalhadores e trabalhadoras de aplicativo são explorados
pelos proprietários das tecnologias, não recebem remunerações dignas, tra-
balham jornadas absurdamente superior à normal, não controlam os instru-
mentos de trabalho postos à sua disposição, são controlados pelos aplicados e
pelos consumidores, assumem com exclusividade os riscos da atividade eco-
nômica, não compartilham dos lucros e, igualmente grave, sequer conhecem
a tecnologia em que é vinculada e que se diz sócia do negócio empreendido.
Agravando o caos provocado no mundo do trabalho, sabe-se que as pro-
fissões extintas não estão sendo substituídas por novas fórmulas profissionais
mais adaptadas ao tempo tecnológico. É que o número de pessoas contrata-
das pelas novas tecnologias é infinitamente inferior ao número de pessoas
que serão descartadas como “inaproveitável pelo mercado”. Ironicamente, os
excluídos ainda são acusados como verdadeiros culpados da própria exclu-
são, pois, ao não se prepararem adequadamente para o “tempo nascente”, não
mereceram um lugar ao sol. O terrível efeito colateral dos “novos tempos”,
paradoxalmente, é de não se encontrar uma solução inteligente, socialmente
aceitável e economicamente digna para a “velha massa de pessoas” excluída
dos benefícios propagandeados pela Era Digital.
É evidente que o Direito ao Trabalho ainda mantém um considerável
peso político/econômico. Mas é preciso ficar alerta aos sinais, fatos e cons-
tatações de que as máquinas e os avanços tecnológicos continuam, única e
exclusivamente à disposição do direito de ter. A “nova regulação do traba-
lho” – estabelecida pela Lei 13.467/17 – já consolidou lesões trabalhistas
e retrocessos inimagináveis, inclusive com graves violações à Constituição
Federal e aos tratados internacionais firmados pelo Brasil. Da mesma fora,
os “trabalhadores sobreviventes” começam a ser transferidos para o sistema
conhecido como “uberização do trabalho”, que retoma e amplia a exploração
originária da primeira Revolução Industrial, afastando todo o sistema prote-
tivo conquistado e posto no mundo do direito durante o avançar do tempo.
Não obstante o “admirável mundo tecnológico”, a “coisificação” do
trabalho segue presente na compreensão de um mundo centrado na lógica
da proteção do ter e na acumulação de poder e de riquezas materiais. Não
choca à sociedade dominante a simples constatação de que direitos trabalhis-
tas estão sendo drasticamente reduzidos ou que os “modernos trabalhadores
uberizados” têm jornadas de trabalho imensamente superiores à histórica e
conquistada oito horas diárias, que os riscos e os instrumentos de trabalho
são dos próprios “urberizados”, que não controlam ou sabem como são ar-
recadados ou distribuídos os lucros do trabalho por eles produzidos e, igual-
mente grave, que podem ser demitidos por um simples comando virtual, sem
qualquer motivação ou indenização. Ao contrário, a sociedade parece exige
é mais exploração, fiscalizando e punindo o “urberizados” com avaliações e
pontuações, não raro cobrando a pressa que sabe mortal para os motorizados.
5 - Conclusões
A queda do Muro de Berlim (1989) e as grandes rachaduras na Mura-
lha de Wall Street (2008) deixaram o mundo órfão de teoria sobre o futuro
do direito ao trabalho. A falência do mundo que pregava a igualdade sem
liberdade resultara no fortalecimento do Capitalismo. A quebra do mundo da
liberdade sem igualdade também pareceu significar – segundo os analistas de
2008 – que o triunfo do Capitalismo não era um atestado de segurança para
as pessoas e para o próprio capital. Revelou-se, nestas duas derrocadas, que
a História não acabara, pois a ganância apenas havia gerado crises e escassez
de recurso. Esperava-se, que o novo cenário de incertezas, crises econômicas,
Estados à beira da falência e ausência de paradigmas ideológicos vitoriosos e
confiáveis, gerassem novas conceituações para o direito ao trabalho, o Direito
do Trabalho e o Direito Coletivo do Trabalho. Novos conceitos que seriam
formados pelas gerações que vivenciaram o 1989 e o 2008.
A queda do Muro de Berlim e as grandes rachaduras na Muralha de
Wall Street deveriam servir de aprendizado para a humanidade, inclusive
apontando caminhos que servissem de modelo solucionador da crise econô-
mica/social provocada pela crise sanitária oriunda da pandemia do Covid-19.
Esperava-se que lições do passado conduziria à revogação de ideologia que
pregava a igualdade sem liberdade. Da mesma forma em que exigiria o fim
da proposta da liberdade sem igualdade. E que, finalmente, a solidariedade
seria adotada como palavra-chave destinada a abrir a porta de mundo social e
tecnologicamente inclusivo.
O tempo desmontou o esperançar daquela quadra da História. Infeliz-
mente, as propostas encaminhadas após a Queda do Muro de Berlim e a Cri-
se Capitalista de 2008 apontaram para o fortalecimento do direito de ter a
propriedade das riquezas e das pessoas, aniquilando-se o direito de ser con-
quistado no avançar do tempo. Neste repaginado contexto, o moderno seria
ampliar as riquezas das pessoas jurídicas e somente depois cuidar de sua dis-
tribuição entre as pessoas físicas mais carentes. O aumento da concentração
de renda nas mãos de poucos e a miséria imposta a muitos, indicam que não
aprendemos com as lições do passado e, por isso mesmo, a dificuldade em
lidar com a crise sanitária do presente. O Mercado seguiu sendo o poderoso
e exigente Deus, aquele que não admite destoar do velho mantra que afirma
que “dinheiro vale que vida”.
Durante a Crise de 2008, bancos, seguradoras e instituições financeiras
quebraram mundo afora, lesando clientes, desarranjando a economia. Nem
mesmo os nomes dos responsáveis foram são divulgados. O noticiário não
fulanizou a crise. Tratava apenas de pessoas jurídicas, instituições, setores.
Não havia indivíduos, condutas, princípios. Não existiram punições. Não
ocorreram responsabilizações pessoais. Despidos de que qualquer pudor ci-
vilizatório – não mais ameaçados pelas ideais socializantes do direito de ser
– implementou-se uma nova forma de relacionamento entre governos e em-
presas: o capitalismo com seguro estatal. Capitalismo sem risco. Capitalismo
sem qualquer preocupação social.
As medidas praticadas para a solução da Crise da Pandemia de 2020
seguem o mesmo modelo da Crise do Capitalismo de 2008. Segundo os de-
fensores do direito de ter, a “modernidade” aponta para o surgimento de uma
“economia sem máscara”, em que a igualdade e a solidariedade atrapalham o
crescimento econômico. Assim, não há problemas diante das crises: o Estado
banca. O Estado banca o banco. O capitalista – principalmente o financeiro
– pode gastar à vontade os seus incontáveis dólares. Em caso de má gestão,
corrupção, crise sanitária ou qualquer outro fator que venha ameaçar a sua fa-
lência, o Estado estará lá, presente, para garantir que não tenha qualquer pre-
juízo.As medidas econômicas anunciadas nos países centrais – especialmente
no Brasil – têm como destinatários os bancos e o grande capital financeiro.
Elas demonstram que o capitalismo não ruiu, não faliu com a crise. Apenas
foi “aperfeiçoado” ao conquistar um cobiçado “seguro estatal”.
Nesta face do capitalismo mundial. Tudo é sistêmico. Quanto ao direito
ao trabalho, não há nada equivalente. Não se cogitou em 2008 e não se co-
gita agora criar um seguro de proteção aos direitos do trabalhador. Ninguém
proclama: “Vamos proteger os trabalhadores da crise”. Muito ao contrário,
o que se diz é que, para sair da crise, é preciso retomar as velhas receitas
do capitalismo neoliberal, o mesmo que se dizia aniquilado com a busca do
seguro-estatal. Mais uma vez a propaganda de que os direitos sociais atrapa-
lham o crescimento ou a recuperação econômica. Retoma-se a acusação de
que arcaico é o país que reconhece a função social do trabalho e que, por isso
mesmo, não resistirá à crise. E, de novo, os amargos remédios: flexibilização
e redução dos direitos do trabalhador.
Não se trata, infelizmente, apenas de teorias inofensivas. Suas aplica-
ções já produzem efeito. É o que pandemia escancarou no Brasil, com claro e
não disfarçado apoio governamental. Além de ampliada a política de retirada
de direitos, estimulou-se que a classe trabalhadora – sem a proteção adequada
– continuasse trabalhando, sob a perversa lógica de que as vidas das empre-
sas valem mais do que as vidas das pessoas. Em ideológico negacionismo,
a classe trabalhadora foi considerada mera estatística a ilustrar um trágico
prontuário de pessoas anônimas vitimadas pela Covid-19.
Viver é fazer opções, é ter que, diariamente, fazer escolhas sobre todas
as coisas. Mesmo o ato de não escolher é uma escolha, uma forma de decidir,
pois a omissão ou o simples acomodamento provoca consequências, graves
ou não. Escolhemos os amigos, elegemos os inimigos e somos por eles esco-
lhidos. Escolhemos até quando escutamos os falsos amigos, mesmo quando
nos alertam de suas falsidades e abraços interesseiros. Enfim, estamos sempre
a recitar, ainda que imperceptivelmente, o que um dia exclamou Shakespea-
re através do seu predileto Hamlet, com o seu famoso “ser ou não ser, eis a
questão”.
Assim como o ser humano faz escolhas em sua vida individual, inde-
pendentemente da motivação, não é diferente em sua vida coletiva, embora,
não raro, nesta complexa área também se decida por ele. Aliás, neste campo
não há espaço para vazios decisórios, pois sempre tem alguém ou um outro
grupo a escolher pelo outro, por imposição, convencimento, medo, respeito
ou outra forma de consolidar uma ideia. Sabe-se, aliás, que a Quarta Revo-
lução Industrial aumentará mais ainda as desigualdades no mundo, especial-
mente nas regiões que passaram pela segunda ou terceira revolução industrial
(PRISECARU, 2016). Hoje, portanto, a escolha é saber qual a melhor opção
uso da tecnologia e o seu reflexo no mundo do mundo do trabalho, se a “op-
ção econômica” ou a “opção social”.
Escolher o avanço tecnológico apenas como uma “opção econômica” é
apostar na política em que se preserva a manutenção de um sistema fundado
no privilégio do direito de ter a propriedade das pessoas, na sustentação de
uma estrutura que conserve as forças que dominam, são destinatárias princi-
pais e traçam as diretrizes de um Estado e que tornam secundárias ou mera-
mente complementares as medidas que ressaltar a igualdade, a liberdade e a
solidariedade entre os homens. Da mesma forma, escolher o compartilhamen-
to dos avanços tecnológicos como “opção humanista” é apostar na política
que privilegie o direito de ser, fornecendo elementos para que se reduza a
desigualdade e a injustiça, permitindo habitar um planeta saudável e acessível
a todos.
É este o equilíbrio que se deve buscar na fase intermediária entre o atual
capitalismo e o próximo sistema comunal. O papel do Estado, neste caso, será
o de cobrar a reciprocidade solidária, exigir o retorno social a toda e qualquer
tecnologia nova, dentre ela a manutenção do nível de empregos ou pelo me-
nos a um esforço efetivo nessa direção. A contrapartida da solidariedade so-
cial deve ser o novo contrato social para o futuro dos avanços tecnológicos. A
escolha entre a utopia de um mundo justo, solidário, igual e livre para todos.
Ou a distopia de um mundo para os privilegiados tecnológicos, edificando
muros e campos de concentração para os excluídos. Avanço tecnológico com
avanço humanista, esta é urgente opção do momento.
Um exemplo desta opção é utilizar a própria tecnologia para interferir
na regulação do trabalhador “urberizado”, enquadrando-o no sistema prote-
tivo do Direito do Trabalho, melhor remunerando que exerce este exaustivo
labor, travando os aplicativos em caso de jornada extensiva e abuso laboral,
exigindo a motivação quando da ruptura contratual e, sobretudo, obrigando
ao dono do aplicativo todos os deveres do dono do negócio previstos na legis-
lação trabalhista. Estas são escolhas urgentes para que sejam concretizadas a
promessas de um mundo mais justo, igualitário, livre e solidário. Ou, no sábio
dizer do Papa Francisco, um mundo em que todos habitem, em condições
idênticas, a “Nossa Casa Comum”.
Neste resumido texto, afirmo que somente a visão humanista do avanço
tecnológico, fundada na primazia do direito de ser sobre o direito de ter, é
que se alterará o seu uso excludente, classista e protetor do poder econômico,
político e social dos proprietários das máquinas, dos robôs e das inteligências
ditas artificiais. Este desafio é mais importante do que o duelo entre o velho
e o novo. Até porque, como também esclareceu Belchior no refrão seguinte
da genial canção já mencionada, a humanidade não pode concluir, outra vez,
que “minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo o que
fizemos, nós ainda somos os mesmos e vivemos, ainda somos os mesmos e
vivemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”.
Cezar Britto é advogado e escritor, autor de livros jurídicos, romances e crônicas. Foi
presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e da União dos Advogados da Língua Por-
tuguesa. É membro vitalício do Conselho Federal da OAB, da Comissão Brasileira de
Justiça e Paz, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas e da Associação Brasileira de
Juristas pela Democracia.
SUMÁRIO

A flexibilização das relações de trabalho e do processo produtivo como


flagelo social ............................................................................................... 31
Luciane Toss

A informalidade dos trabalhadores de plataformas digitais e a necessida-


de de sua organização coletiva ................................................................. 41
Adriana Letícia Saraiva Lamounier Rodrigues e Meilliane Pinheiro Vilar
lima

A pandemia de 2020 e o mundo do trabalho no brasil - recortes históri-


cos, sociológicos e jurídicos ....................................................................... 61
Benizete Ramos de Medeiros e Pedro Carvalho de Mendonça

A quarta revolução industrial e os desafios ao exercício dos direitos sindi-


cais .............................................................................................................. 85
Cíntia Roberta da Cunha Fernandes e Hugo Fonseca

A regulação do trabalho em plataformas digitais ................................. 101


Antonio Escosteguy Castro

Como desconectar do trabalho em um mundo on-line: o direito à desco-


nexão como elemento obrigatório dos contratos de trabalho .............. 113
Álvaro Klein e Bruna Carolina de Oliveira

Em um cenário da classe trabalhadora à deriva, a ação sindical converte-


-se em espaço de resistência e contra ofensiva ....................................... 127
Jaqueline Büttow Signorini e Maria Emília Valli Büttow e Rubens
Soares Vellinho

Indústria 4.0 e o trabalho decente ........................................................... 139


Julio Guilherme Köhler

O direito do trabalho e o direito ao trabalho: uma reflexão sobre o valor


constitucional da atividade humana ...................................................... 157
Ramiro Crochemore Castro
O trabalhador na sociedade globalizada, o trabalho precário e a razão
do direito do trabalho .............................................................................. 173
Renata Gabert de Souza

Sustentação Financeira do Movimento Sindical ................................... 189


Denis Rodrigues Einloft

Teletrabalho e o fornecimento de tecnologia de informação e comunica-


ção – quem paga esta conta? ................................................................... 205
Caroline Ferreira Anversa

Você não estava aqui: uma história para muito além do algorítmo: a dife-
rencial distribuição da precariedade no mundo do trabalho e na vida de
trabalhadores e trabalhadoras de aplicativos ....................................... 217
Luciana Alves Dombkowitsch
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

A FLEXIBILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO E DO


PROCESSO PRODUTIVO COMO FLAGELO SOCIAL

Luciane Toss1

RESUMO: O novo/velho mundo do trabalho na dinâmica de seus processos


de exclusão acentua a invisibilidade social dos trabalhadores. Os dispositivos
discursivos promovem a aversão dos vínculos laborais e inserem uma cultura
empresarial marcada por uma espécie de nomadismo ocupacional. A classe
operária precarizada exerce jornada intermináveis, desprovidas de regulação.
Tudo a mercê do ritmo do capital financeiro. Aqui não há espaço para o hu-
mano.
Palavras-chaves: Capitalismo, Precariado, Identidade, Trabalho, Direitos.

1
Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela UNISINOS, Especialista em Novos Rumos
do Direito pela Universidad de Burgos (ESP), Direitos Humanos e Direitos Trabalhistas
pela Universidad Castilla La Mancha (ESP), Especialista em Direito Privado e Constitu-
cional pela UNISINOS, professora da FEMARGS, integra o corpo docente da Escola da
ABRAT, Coordenadora, professora e fundadora da Escola Trabalho e Pensamento Crítico,
sócia e consultora da Ó Mulheres! Consultoria em Gênero e Direitos Humanos. Advogada
Trabalhista. Vice-presidente da AGETRA e integrante do grupo Feminismo da ABRAT e do
Coletivo Advogadas do Brasil.

31
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
“Como se pode buscar objetivos de longo prazo
numa sociedade de curto prazo? Como se pode
manter relações sociais duráveis? Como pode um
ser humano desenvolver uma narrativa de identi-
dade e história de vida numa sociedade composta
de episódios e fragmentos? As condições da nova
economia alimentam, ao contrário, a experiência
com a deriva no tempo, de lugar em lugar, de em-
prego em emprego (...)o capitalismo de curto pra-
zo corrói o caráter dele, sobretudo aquelas quali-
dades de caráter que ligam os seres humanos uns
aos outros, e dão a cada um deles um senso de
identidade sustentável.” (SENNETT, Richard)

1 - INTRODUÇÃO
Introduzindo severas mudanças a partir da finalidade econômica, tanto
na definição quanto nos objetivos, o trabalho contemporâneo desconstrói a
possibilidade de que se desenvolva uma identidade profissional ou uma iden-
tidade relacionada ao trabalho. A precarização, a vulnerabilidade, a efemeri-
dade e a fragmentação do trabalho atuam dificultando a elaboração de uma
significância, de um sistema de pertencimento.
Esta desestruturação se estende para além daquilo que antes era conhe-
cido como o pátio da fábrica (local da prestação de serviços). Há uma impli-
cação direta na organização coletiva do trabalho, em como o trabalho passa a
ser tratado pelo sistema e como as pessoas trabalhadoras adotam uma ética da
sobrevivência como única possibilidade possível.
Este artigo aborda de que forma a flexibilização e a adoção de meca-
nismos de informalidade na prestação de serviços, desconstrói a identidade
das pessoas trabalhadoras e como o sistema avança para a desvalorização e a
desconstrução das pessoas que vivem do trabalho.
2 - CONSTRUINDO A IDENTIDADE A PARTIR DO TRABALHO
A identidade com o e no trabalho nos remonta às subjetividades, às ima-
gens, aos símbolos, as perspectivas e as visões de mundo que cada pessoa
que vive do trabalho tem:
[...] subjetividade não é o ser, mas os modos de ser, não é a
essência do ser ou da universalidade de uma condição, não se
trata de estados da alma, mas uma produção tributária do so-
cial, da cultura, de qualquer elemento que de algum modo crie
possibilidades de um ‘si’, de uma ‘consciência de si’, sempre
provisória... São modos pelo qual o sujeito se observa e se reco-

32
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
nhece como um lugar de saber e de produção de verdade. (Cou-
tinho, apud, Bernardes & Hoenisch, 2007).

Conforme Sennet (1999), a atual morfologia do trabalho reduz o acesso


destas pessoas à construção de narrativas individuais. Mais problemático ao
processo de identificação do sujeito com o trabalho é o fato de, nessas cir-
cunstâncias, [...] as pessoas trabalhadoras enfrentarem sérios limites às suas
possibilidades de estabelecimento de vínculos interpessoais com seu fazer
[...] (COUTINHO, 2007) e, consequentemente, uma mitigação da capacidade
de vinculação com os demais sujeitos e com o trabalho propriamente dito.
As chamadas reformas trabalhistas não alteraram apenas o sistema jurí-
dico suprimindo proteções legais, elas mudaram o quem e o que nós somos.
Porque, segundo Antunes (2002), em que pese as mudanças que o atraves-
sam, o trabalho continua sendo uma categoria fundante do sujeito e de suas
relações sociais. De acordo com Coutinho (2007), o trabalho não só pode
definir a identidade social, ou seja, a quais grupos sociais se inserem as pes-
soas, como também a constituição identitária de cada uma dessas pessoas de
forma singular.
O sujeito, enquanto trabalhador dá lugar ao que Maffesoli (1997) cha-
ma de estar-junto grupal (p.195). É a identificação do sujeito com o objeto
do seu trabalho, com o local e com seus colegas. Várias dinâmicas sociais
serão operadas a partir deste grupo social. O trabalho dota de significância
esta auto-imagem que o sujeito tem de si e de seu entorno: como a pessoa tra-
balhadora se vê. Trata-se, segundo Taylor (1999) do sentimento de pertença,
que os culturalistas atribuem como fator fundamental para o reconhecimento
do sujeito em seu meio.
Nesta perspectiva teórica, a identidade se define (ou se constrói) a par-
tir de processos dialéticos entre o eu individual e eu (ou eus) societário. Assim
se refere Coutinho, apud Berger e Luckmann (2007) [...] a identidade do ou-
tro reflete na minha e a minha na dele [...]. Para Taylor (1999), o conceito de
identidade baseado na alteridade, que também foi analisado por Woordward
(2004), para quem o primeiro conceito não pode ser entendido sem o segundo.
Do ponto de vista social, onde o trabalho está inserido, esta alteridade
importa em estabelecer processos de inclusão e exclusão:
A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações
sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem
está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade signi-
fica demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que

33
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
fica dentro e o que fica fora. (DA SILVA, 20042)

Como elemento de centralidade, o trabalho exerce tamanha influência


neste sentimento de pertença que acaba por tomar o lugar do próprio sujeito
(ao eu penso se opõe o eu sou pensado, MAFFESOLI, 1997, p. 196).
O trabalho passa a ser observado como um instrumento de valor e de
dignidade. A pessoa trabalhadora, sujeito ativo no processo de produção (seja
esta intelectual, manual ou tecnológica) se vê incluída naquela gama de con-
sequências que o trabalho produz: ser profissional, ter um ambiente específico
para o exercício desta profissão, se relacionar com as outras pessoas trabalha-
doras, estabelecer vínculos afetivos com colegas de trabalho, organizar sua
vida privada em torno das possibilidades que este trabalho lhe dá. Conforme
Coutinho (2007), a inserção em um grupo societário imprime, a ela pessoa
trabalhadora, um significado no mundo.
Dejours (1990, p. 16) afirma que por trás de toda crise, de toda doença
mental ligada ao trabalho, se esconde uma crise de identidade: o [...] traba-
lho representa uma segunda chance de obter ou consolidar a identidade e
adquirir um pouco mais de confiança pessoal. A terceirização e os modelos
flexibilizantes de prestação de serviços provocam uma espécie de banimento
social. Incertezas e impotência diante da realidade e vulnerabilidade social
provocam ausência de pertença e sensação de solidão. Todas as questões rela-
cionadas a sobrevivência, ao trabalho, a renda, passam a ser da conta somen-
te da pessoa. (COUTINHO, apud, SAINSAULIE, 2007).
3 - MUDANÇAS E IDENTIDADE: A DESCONSTRUÇÃO DO TRA-
BALHADOR COMO SUJEITO SOCIAL
O modelo fordista não era um simples modelo mas um local epistemo-
lógico de construção sobre a qual se erigiam visões de mundo, ou seja, as
expectativas de vida, as rotinas, as experiências faziam parte de um mundo
e de um modus operandi bem conhecidos. O fordismo era a autoconsciência
da sociedade moderna. Capital, trabalho e administração andavam juntos. O
importante, para Antunes (2002), era expandir – tanto na produção, quanto
nas fronteiras.
Mas no chamado capitalismo leve não há noções de tempo e espaço
para o capital. A alegoria de Bauman (2001) é a de um navio onde antes os
passageiros confiavam na tripulação e agora percebem que a cabine está va-

2
DA SILVA, T. T. (org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.
Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2000, 133 págs. Acessado em: 10.04.2017. Disponível em:
https://www.periodicos.unb.br/index.php/les/article/view/6525/5602.
34
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

zia e não há ninguém no leme3. As primeiras e mais significativas mudanças


surgem com a organização horizontalizada do trabalho e com ela um forte
apelo por desregulamentação e flexibilidade e a categorização das pessoas
trabalhadoras em dois grupos: um grupo central, composto por mão de obra
qualificada, que detém os empregos formais e estáveis, e um grupo periféri-
co, composto por terceirizados, temporários, autônomos e subcontratados em
geral, segundo Antunes (2015).
O discurso da motivação (nova ética para o trabalho) é acompanhado
de um discurso para a vida dos trabalhadores: exacerbação do individualismo
que faz com que cada um e uma se torne responsável pelo seu sucesso ou seu
fracasso. Vencedores e perdedores se separam, é a exacerbação do individua-
lismo e a quebra da solidariedade4.
As mudanças afetam fortemente a construção da identidade como per-
tencimento e alcançam não só as pessoas que trabalham diretamente com a
produção, mas todas que alienam sua força de trabalho:
[...] o enorme leque de trabalhadores precarizados, terceiri-
zados, fabris e de serviços, part time  que se caracteriza pelo
vínculo de trabalho temporário, em expansão no mundo pro-
dutivo. Deve incluir também o proletariado rural, os chamados
bóias-frias das regiões agroindustriais, além, naturalmente, da
totalidade dos trabalhadores desempregados que se constituem
nesse monumental exército industrial de reserva (ANTUNES,
2002, p.218-219).

O trabalho terceirizado e precário, conforme nos lembra Souto Maior


(2004), invisibiliza as pessoas. São trabalhadores sem nome, sem lugar, sem
vínculos. As mudanças, tanto do impacto econômico (redução de renda e
valor do trabalho) quanto as que afetam o tempo e os formatos contratuais
estabelecem alterações nas relações interpessoais do trabalho. Há comprome-
3
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2001,
p. 70.
4
A modernidade líquida cria uma identidade que só pode existir como projeto não-realiza-
do. Mas há duas características que a fazem nova: a falta de perspectiva – a crença no telo
alcançável – o colapso da ilusão moderna de um futuro melhor, da ordem perfeita, das coisas
no seu lugar; e a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres modernizantes
– mundo dos indivíduos -, os indivíduos é que administram suas vidas, seus recursos. A mu-
dança ético-política relevante é a substituição da busca pela sociedade justa para o respeito
aos direitos humanos, donde estes últimos, ficam em foros individuais, proteções unitárias.
A defesa da sociedade dá lugar a defesa do indivíduo. Não há mais pesadas obrigações
emancipatórias ou grandes líderes a seguir. Cada um faz sua própria história. BAUMAN,
Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2001, p.p. 36-39.
35
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

timento da solidariedade. O neoliberalismo e a restruturação produtiva da era


da acumulação flexível, na definição de Harvey, 1992) vai se caracterizar por
seu forte caráter destrutivo.
4 - A FLEXIBILIZAÇÃO COMO FLAGELO DAS PESSOAS QUE
VIVEM DO TRABALHO
A terceirização e a subcontratação como instrumentos de liberdade de
mercado resultou em um mecanismo influente e eficaz de supressão de polí-
ticas regulatórias e de proteção para as pessoas que vivem do trabalho. Esses
processos flexíveis, desencadeados desde o século passado, em muitas nações
ocidentais, tem redefinido a questão social relacionada ao trabalho e seu papel
como vetor de identidade das pessoas que dependem dele para sobreviver.
Depois do chamado terceiro mundo, hoje sul global, para Santos (2010),
as crises também atingiram o centro do sistema produtor de mercadorias.
Conforme Kurz (1992), quanto mais avança a competitividade intercapital,
quanto mais desenvolvida a tecnologia competitiva, maior é o desmonte de
muitos parques indústrias que não alcançam o ritmo intenso imposto pelo
sistema. Da Rússia à Argentina, da Inglaterra ao México, Itália, Portugal, pas-
sando pelo Brasil, os exemplos aumentam e repercutem profundamente no
enorme contingente de mão de obra humana desses países.
É uma forma de sociabilidade que para ter sucesso em sua empreitada
de precarização afeta mais de 200 milhões de pessoas, cerca de 1/3 da força
humana mundial que vive do trabalho, conforme dados da OIT (2019).
O processo de super exploração e de desprezo pelas pessoas que vivem
do trabalho coincide com as políticas neoliberais, a ruptura dos laços legais de
subordinação do trabalho e a inserção neste mercado capitalista sem regras,
excludente e que culmina na supressão, não só de bens sociais, mas também
do sentimento de pertencimento a um grupo social, cultural e econômico, de
acordo com Vargas (2021).
Por isso podemos falar em flagelo social, porque o sistema destrói não
somente as possibilidades econômicas da classe trabalhadora, mas também as
pessoas que vivem do trabalho. Então, entre tantas destruições possíveis está
aquela que atinge a mão de obra humana. Mészaros (2011, p. 692), acentuou
esta tendência ao afirmar que o capital é desprovido de uma orientação [...]
humanamente significativa [...], assumindo um controle social onde a [...]
destruição pode se dar sem qualquer dificuldade importante.
As relações trabalhistas se converteram em objetos de uma série de
reformas que tem como objetivo a redução de custos e a implementação de

36
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

flexibilidade contratuais. Os resultados desses processos são o debilitamento


das condições de trabalho, as reduções e supressões salarias e a consolidação
das formas precárias de contratação, as denominadas formas atípicas (prazo
determinado, atempo parcial, subcontratado, terceirizado, intermitente, etc.).
Segundo OIT (2021), a fragmentação ocupacional inerente a implantação
destes processos tem como pano de fundo o inevitável mundo do trabalho
definido pelo desemprego estrutural.
É importante que se diga, que segundo Mészaros (2011) a desregula-
mentação, a flexibilidade e a subcontratação, assim como o mantra do empre-
sário de si mesmo que ecoa no mercado, são expressões de uma lógica social
onde a mão de obra humana conta apenas como parte essencial de reprodução
do própria capital, porque este capital não se realiza sem a exploração do
trabalho das pessoas . Então o sistema reduz as possibilidades de trabalho,
mas não as elimina, paralisa grandes contingentes produtivos, mas não os
extingue.
Para Harvey (2008), a diáspora de grandes contingentes de empregados
submetidos a reformas alinhadas com o neoliberalismo ampliam a fragmen-
tação da sociabilidade e tornam rarefeitas as áreas de integração da sociedade
assalariada, ampliando os espaços de informalidade e de anomia social.
O Brasil se integrou fortemente a este conjunto de transformações ao
longo da década de 90, notavelmente a partir de 1994. O país se encorpou
rapidamente e de maneira subordinada a nova ordem proposta. Para Uriarte
(1996) O desemprego estrutural, a informalidade e a precariedade do mundo
do trabalho se inserem no espaço social brasileiro com a abertura econômica
dos mercados interacional, as privatizações e o retrocesso de politicas sociais
do Estado.
Como em outros momentos da sua história, a opção política pela mo-
dernização conservadora significou a deterioração das condições sociais de
grande parte da massa de pessoas que viviam do trabalho. Mas é importante
que vejamos a reforma trabalhista como a culminação deste processo de re-
dução da renda gerada pelo trabalho e de desconstrução de possibilidades de
resistência coletiva.
Como todo sistema de distribuição de bens se baseia no contrato formal
e na renda salarial, ao reduzir significativamente as possiblidade de vincu-
lação empregatícia, a reforma caminha na direção da acumulação flexível:
suprime direitos e consolida o que Antunes (2020) chama de precariado: uma
massa de trabalhadores com peso representativo no mundo do trabalho que
sofrem uma dupla exploração, qual seja, a dos bens e meios e produção (pro-
letários) e sem direitos (precários).
37
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

O sistema então se consolida no exercício incessante de trabalho irre-


gular, sem salário, mas voltado a sobrevivência. A solidariedade social se vê
comprometida pelas dificuldades inerentes de uma dinâmica de fragmenta-
ção, onde quem trabalha está ideologicamente voltado para si mesmo, uma
perspectiva voltada para a velocidade e para o individualismo.
5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
O precariado coloca em cheque os conceitos de trabalho por conta
alheia e denuncia a extrema fragilidade da organização coletiva derivada da
sociedade assalariada. Essa massa de pessoas trabalhadoras que comporá o
que Harvey (2016) chamou de capitalismo desorganizado constituem-se de
imensos contingentes de populações, atravessa os espaços dos grandes cen-
tros urbanos em meio a vulnerabilidade social, sobrevive em locais efêmeros
e em tarefas ocasionais, consolidando, por fim, uma agenda fragmentaria.
Estes movimentos da nova ordem capitalista escondem um conteúdo
contraditório: enfatizam o discurso da tecnologia e da inovação, ao mesmo
tempo em que praticam uma arquitetura de exploração ultraconservadora.
Tudo parece novo, mas a exploração que dessa novidade resulta remonta aos
princípios da revolução industrial.
 As possibilidades de flexibilidade no mundo do trabalho são tantas e
tão lesivas às pessoas que vivem dele que fica difícil apontar as mais relevan-
tes. Vivemos um momento de legitimação da invalidação social do emprego
formal, vendido como burocrático e ineficaz. Se trata de uma nova organiza-
ção social do trabalho que vem não só da inovação tecnológica, mas também
de estratégias do capital para descontruir o trabalho formal, suprimir redes
sociais de apoio e desregular direitos sociais. Neste cenário, que aponta o
indivíduo como único responsável por sucessos ao longo de sua trajetória,
assistimos a desfiliação de grande parte da população de possibilidades de
resistência coletiva.
Esse status dificulta desenvolver um marco de referencias que reclame
uma unidade interna, uma lógica discursiva que seja capaz de dar sentido às
pessoas. Nas periferias do mundo globalizado há muito espaço para todas as
pessoas que compartilham a condição precária e subordinada da nova ordem
mundial. Numa deteriorada sociedade salarial, as identidades sociais vincu-
ladas ao trabalho se dissipam.
Os resultados degradam e isolam cada vez mais a compreensão das pes-
soas trabalhadoras acerca dos efeitos deste mercado sobre suas vidas e sobre
sua saúde. É um mundo do trabalho ficcional que acaba com os espaços de
resistência, como sindicatos e associações, expondo-os a sofrimentos indivi-
duais e solitários, que muitas vezes levam ao suicídio.
38
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

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40
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

A INFORMALIDADE DOS TRABALHADORES DE PLATAFORMAS


DIGITAIS E A NECESSIDADE DE SUA ORGANIZAÇÃO COLETIVA

Adriana Letícia Saraiva Lamounier Rodrigues1


Meilliane Pinheiro Vilar Lima2

RESUMO: No atual capitalismo pós-industrial globalizado, agravou-se


a assimetria entre capital e trabalho. A desregulamentação, flexibilização
e precarização, em seu sentido amplo, vêm solapando progressivamente o
direito, o trabalho e o sindicato. Uma das derivações mais preocupantes é
a informalidade que cresce exponencialmente em todo o globo. Diante
disso, o presente artigo (cuja metodologia é teórico-propositiva) tem como
objetivo expor e analisar o trabalho informal, de modo mais específico, os
trabalhadores informais das plataformas digitais e, ao final, propor uma rede
de atuação coletiva de tais trabalhadores. Propõe-se que seja impulsionada a
constituição de sindicatos de trabalhadores de plataformas digitais e de redes
nacionais e internacionais de tais sindicatos para que seja possível a conquista
de direitos por meio de acordos coletivos de trabalho.
Palavras-chaves: Informalidade; Trabalhadores de Plataformas Digitais;
Organização Coletiva; Sindicato dos Riders.

1
Advogada sócia no escritório Caldeira Brant. Pós-Doutorado pela Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutora em Direito pela UFMG em
cotutela com a Universidade de Roma Tor Vergata (2017). Master em Direito do Trabalho
pela Universidade de Roma Tor Vergata. Bacharel em Direito pela UFMG (2011). Endereço
eletrônico: adrianalslr@yahoo.com.br.
2
Advogada trabalhista no LBS. Mestranda em Direito das relações sociais e do Trabalho
na UDF.

41
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
“Por trás da aparência da autonomia, esconde-se uma reapropriação pelas direções
e pelas chefias da autonomia dos assalariados.”
(LINHART, 2007)

1 - INTRODUÇÃO
Na sociedade pós-industrial, a informalidade espraia-se em progressão
geométrica. O trabalho formal vem sendo substituído pelas mais variadas
formas de trabalho informal e precarização. Assiste-se a um desemprego
estrutural em escala global com a conseqüente criação de novas vagas na
precariedade e informalidade. Substitui-se o formal pelo informal, num
constante processo de destrutividade (ANTUNES, 2011, p. 2) do emprego,
sob a roupagem de uma ‘benéfica’ flexibilização.
A crescente3 informalização advém do impulso de exponencialização
dos lucros. Interessa cada vez mais ao capital as relações informais. Grandes
empresas “têm mudado a fisionomia do trabalhador na medida em que o
capital se relaciona com seus opositores, como se ao invés de comprar força
de trabalho estivesse comprando mercadoria” (TAVARES, 2002, p.56). Trata-
se de exploração do trabalho na esfera da mais valia absoluta (TAVARES,
2002, p.57).
Porém, para enfrentar o poder das leis, a informalidade teve que se
valer da mobilização de recursos sociais. Sem os “elos comunitários, os
contratos ‘informais’ não seriam possíveis” (NORONHA, 2003, p. 116).
Logo, as redes de informalidade foram capazes de sobrepujar a dita ‘rigidez’
da legislação trabalhista. E tais redes se alastram tanto nos sertões de países
subdesenvolvidos como nos grandes centros dos países mais ricos do mundo.
Notoriamente, verifica-se que também o capital se organiza por meio de
redes, sendo a rede produtiva (ou cadeia produtiva) seu exemplo mais nítido.
Nossa sociedade pós-industrial é uma sociedade em rede (CASTELLS,
2005, p. 2); os problemas são conectados, a sociedade é interligada e tudo se
move por meio de ações articuladas.

3
Crescente porque no presente artigo considerou-se a informalidade em sentido amplo,
incluindo aqui os formais com traços de informalidade. Não se ignorou o fato de que houve
um aumento no emprego formal nos anos 2000 nos países emergentes. Ademais, mesmo com
o significativo aumento da formalidade nesses países, o subemprego continuava presente
de forma expressiva. Como exemplo, tem-se que, entre os anos 2000 e 2005, os países
conhecidos como BRICs - Brasil, Rússia, Índia e China - criaram 22 milhões de novos postos
de trabalho e ainda assim o índice de informalidade permanecia muito alto, chegando a 90%
na Índia (INFOMONEY, 2007).

42
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

E se há rede de problemas, também deve haver rede de soluções, ou


talvez a solução seja colocar as ações de combate à informalidade funcionan-
do em um circuito harmônico. Portanto, se o capital e a informalidade se
movem por intermédio de ações articuladas, também os trabalhadores in-
formais, juntamente com os sindicatos, devem agir assim, com a finalidade
de “desmontar a rede que torna invisíveis os fios com os quais o trabalho
informal é articulado à produção capitalista” (TAVARES, 2002, p. 52).
Hoje é possível identificar um grande exemplo de informalidade em
rede: as plataformas digitais ou aplicativos. Na realidade, são empresas trans-
nacionais que arregimentam mão de obra barata e se mimetizam em meros
intermediadores na relação de emprego disfarçada de empreendedorismo. No
Brasil, apesar das dificuldades, a CLT e a Constituição Federal de 1988, são
plenamente capaz de tutelar a relação de emprego nos termos dos artigos e
3º conjugados com o artigo 6º. É o que se constatará mais adiante em tópico
específico do presente texto.
Apesar do significativo contingente4 de trabalhadores informais, são
poucas ainda as efetivas experiências de organização coletiva desses. Deste
modo, pode-se inferir que os informais constituem grupo expressivo de
trabalhadores que têm a defesa precária de seus direitos; a omissão em face
deles afeta negativamente a representatividade sindical (KALIL, 2013, p.
22). Trata-se, portanto, de um cenário em que trabalhadores e sindicatos são
prejudicados.  
A informalidade é, ainda, um tema árduo para o Direito do Trabalho,
tanto em seu trato individual como coletivo. O desafio que será discutido
no presente artigo, após um panorama crítico sobre a informalidade, é a
organização coletiva dos trabalhadores informais, especificamente, dos
trabalhadores de plataformas digitais, e a formação de redes sindicais nacionais
e internacionais, a fim de propiciar harmônica e eficiente ação conjunta entre
as entidades sindicais.

2 - INFORMALIDADE
A informalidade, em sua heterogeneidade, desfaz os vínculos de
contratação e regulamentação dos trabalhadores, tal como se estruturou
classicamente.

4
Segundo a Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico - OCDE, no
mundo existem 1,8 bilhão de trabalhadores nesta situação. Disponível em: <http://www.
oecd.org/development/risinginformalemploymentwillincreasepoverty.htm>.

43
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Os processos de informalização e precarização caminham juntos, sendo


o segundo mais amplo do que o primeiro. De acordo com Ricardo Antunes
(2011, p. 3), “se a informalidade não é sinônimo direto de precariedade,
sua vigência expressa formas de trabalho desprovido de direitos e, por isso,
encontra clara similitude com a precarização”. Poder-se-ia arriscar elaborar
uma premissa de que todo trabalho informal é precário, mas nem todo traba-
lho precário é informal.
Na realidade, “a flexibilização e a informalização da força de trabalho
são caminhos seguros, utilizados pela engenharia do capital, para arquitetar e
ampliar a intensificação, a exploração e a precarização estrutural do trabalho
em escala global” (ANTUNES, 2011, p.4).
Conforme já pincelado, o conceito de informalidade não se resume à
marginalização do Direito, mas agrupa uma multiplicidade de fenômenos
demasiadamente diversos para serem agregados num só bloco (NORONHA,
2003, p.111).
2.1 - Globalização: expansão e mimetismo da informalidade
O aprofundamento da globalização, a ascensão do neoliberalismo e as
consequentes mudanças econômicas, políticas e sociais propiciaram revisão
e expansão da definição de informalidade.
As características das atividades e do trabalho informal sofreram
um processo expansionista de transformação, criando a necessidade de re-
formulação dos antigos conceitos. Maria Cristina Cacciamali (2000) observa
que essa nova dinâmica subordina o setor informal ao processo de acumu-
lação capitalista.
A economista propõe o conceito de “processo de informalidade”, asso-
ciando-o, de um lado, ao movimento de reorganização do trabalho assalaria-
do, dado pelo enorme crescimento de formas de emprego assalariado sem
carteira e de vínculos de trabalho flexíveis e, de outro, às diferentes formas
de auto-emprego, ou seja, às estratégias de sobrevivência relacionadas com o
trabalho por conta própria ou o trabalho em microempresas (CACCIAMALI,
2000, p. 163-164).
O termo informal reporta-se à análise de um processo de mu-
danças estruturais em andamento na sociedade e na economia
que incide na redefinição das relações de produção, das formas
de inserção dos trabalhadores na produção, dos processos de
trabalho e de instituições – denominado de Processo de In-
formalidade.(CACCIAMALI, 2000, p. 163).

44
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

A crescente heterogeneidade da informalidade e suas relações com as


atividades da economia formal têm sido analisadas por estudos recentes pela
noção de “nova informalidade”. Esse conceito foi cunhado por Juan Pablo
Pérez-Sainz em 1995 e consiste num conjunto de transformações que criam
a necessidade de repensar a informalidade (ARAÚJO; LOMBARDI, 2013,
p.4). A nova informalidade está relacionada à desregulamentação dos merca-
dos de trabalho e à flexibilização das relações de trabalho e, assim, perde-
se progressivamente a diferenciação entre formal e informal, verificando-se,
portanto, um mimetismo.
De acordo com Ângela Maria Carneiro Araújo e Maria Rosa Lom-
bardi (2013, p.5), o conceito permite afirmar que a contínua ampliação
da informalidade ocorre de forma cada vez mais relacionada com o de-
senvolvimento capitalista.
No Brasil, a nova informalidade tem se caracterizado pelo aumento do
número de autônomos que trabalham para as empresas formais; pelo aumento
de ingresso de novas pessoas na informalidade, cujas trajetórias profissionais
foram desenvolvidas nas atividades formais, capitalistas ou legais; pela
criação de novos produtos e de novas atividades econômicas, bem como pela
redefinição de outras anteriormente existentes (DEDECCA; BALTAR, 1997).
Os autores Lima e Soares (2002, p. 167), por sua vez, entendem que
“a informalidade deixa de representar algo transitório para constituir-se em
definitivo na medida em que incorpora contingentes de trabalhadores antes no
mercado formal e protegido” e que a nova informalidade
caracterizar-se-ia também, pelo “retorno do ônus da reprodução
da força de trabalho na própria família e o enfraquecimento
da regulação sobre o mercado de trabalho”, que permitiria a
proliferação de atividades mais flexíveis, instáveis e precárias
(LIMA; SOARES, 2002, p. 167).

Diante disso, verifica-se que o conceito de informalidade é complexo.


Porém, sendo o conceito de 1970 ou a ‘nova informalidade’, por mais que seja
difícil de descrevê-lo, é fácil reconhecê-lo na realidade dos fatos e inseri-lo no
gênero precariado (um grupo formado basicamente por pessoas destituídas
das garantias sociais e trabalhistas, da segurança no emprego, submetidas
a rendimentos incertos e carentes de uma identidade coletiva enraizada no
mundo do trabalho) (STANDING, 2014, grifos nossos).
E se “vivemos sob a sombra do precariado”, devemos pensar a ação
coletiva desse novo grupo, marcado por instabilidades, e os desafios que ela
apresenta ao sindicalismo como um todo.

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Percebe-se, assim, uma crescente contaminação do informal no formal


e uma ampliação contínua das modalidades informais, dada a criatividade do
capital quando pretende o desvencilhamento dos encargos trabalhistas.
2.2 - Trabalhadores informais em plataformas digitais
A informalidade hoje, como se viu, tem se alastrado pelos mercados de
trabalho do Brasil e do mundo, sendo o trabalho em plataformas digitais seu
mais novo modo de expressão. Diante desse fato, nada mais justo que apresen-
tar as origens do crescimento dessa classe no país, bem como a estratégia
utilizada pelas empesas para se passarem por meros intermediadores da re-
lação de emprego disfarçada de empreendedorismo. Esse ardil só aprofunda
o fosso entre a informalidade e a aplicabilidade da CLT e da Constituição
Federal de 1988.
Sobre a origem do trabalho digital tem-se que as transformações
tecnológicas ocorridas nas últimas décadas, semeadas pelo surgimento das
tecnologias da informação, possibilitaram a formação de uma nova classe de
trabalhadores informais, os chamados trabalhadores em plataformas digitais.
No Brasil, o incremento do número de trabalhadores nessa situação
ocorreu principalmente após a reforma trabalhista; fato que instiga não só
o estudo sociológico da questão, como também o aspecto jurídico desse
fenômeno. É cada vez mais importante analisar as variáveis da relação ju-
rídica entre os trabalhadores atrelados às plataformas digitais e as empresas
de aplicativos, à luz da CLT e da Constituição Federal 1988. (ANTUNES,
2020, p. 25)
Certo é que a partir do ano de 2015 houve o crescimento expressivo
da massa de trabalhadores precarizados no Brasil. Esse fenômeno decorre,
dentre outros fatores, do aumento do desemprego causado pelas reformas
trabalhista e previdenciária, bem como pelo aprofundamento da crise eco-
nômica no Brasil. É nesse cenário social e econômico que as plataformas
digitais entraram no país prometendo ganhos expressivos e imediatos. Ao
mesmo tempo, se aproveitaram de um grande exército de mão de obra de
reserva, composto em sua maioria por homens jovens e negros expulsos do
mercado formal de trabalho que encontraram no trabalho em plataforma a
única possibilidade de sustento. (KREIN; MANZANO, 2020)
Essas empresas de aplicativo se autodenominam empresas de tecno-
logia responsáveis somente por disponibilizar o aplicativo como elo entre
o trabalhador e o cliente. Nada mais. A tecnologia é baseada no uso de

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

algoritmos5 programados por computadores para resolver problemas, como


por exemplo: fazer com que um entregador, conectado ao aplicativo, busque
a comida em um restaurante associado à plataforma, e a entregue ao cliente
conectado ao aplicativo. O cálculo da remuneração do trabalhador segue a
mesma lógica algorítmica; só que nesse caso sem qualquer transparência.
Dessa lógica, é possível extrair friamente que, para os trabalhadores o
ganho é pífio se contrastado com os riscos acentuados a que são submetidos.
A renda média é abaixo do salário mínimo e resulta de longas jornadas e
riscos de acidentes fatais; infelizmente uma realidade no trânsito das grandes
cidades. (ANTUNES; FILGUEIRAS, 2020)
É nesse cenário que a intervenção do Direito do Trabalho se faz
necessária como meio de disciplinar a tensão entre a nova morfologia do
capital, por alguns denominada de capitalismo de plataforma ou capitalismo
da Industria 4.0. A nomenclatura na realidade não importa pois, a novidade
segue sua natural tendência de extrair ao máximo a força de trabalho dos
trabalhadores.
O lema que impulsiona o disciplinamento desse novo contingente de
trabalho baseia-se na mensagem explícita de total liberdade de atuação dos
trabalhadores e da flexibilidade de horários. É o que se extrai da consulta
ao site da iFOOD, uma das muitas empresas atuantes no Brasil no ramo
de entrega de alimentos, onde consta que “68% dos entregadores parceiros
recomendam a plataforma para os amigos, 22% não opinaram e apenas 10%
não recomendam.” E que : em cada 10 entregadores valorizam ter flexibili-
dade de horário e liberdade para compor sua renda .” 6
Esse tipo de mensagem, carregada de estímulo à liberdade plena e à
autodeterminação, visa afastar os trabalhadores em plataformas da proteção
das normas trabalhistas, e indica que a relação entre o trabalhador e a empresa
é de caráter puramente civilista ou comercial. A mensagem subliminar ressal-
ta ausência de controle de jornada e flexibilidade de horários, e visa reforçar
o ideal meritocrático típico neoliberal.
Antunes e Filgueiras, por exemplo, dizem que essa aura de autonomia
incentivada pelas empresas a qual distancia os trabalhadores da noção de
assalariamento e os aproxima da identificação de clientes, empreendedores

5
Segundo o dicionário HOUAISS a palavra algoritmo significa: “sequência finita de regras,
raciocínios ou operações que, aplicada a um número finito de dados, permite solucionar
classes semelhantes de problema.”
6
Dado retirado de pesquisa no site da empresa Ifood. https://entregador.ifood.com.br/
abrindo-a-cozinha/transparencia/ acesso em 18 de novembro de 2020.

47
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

ou colaborares, é estratégia pré-definida para intensificar a subordinação e


espoliação dos trabalhadores. (ANTUNES; FILGUEIRAS, 2020).
No campo legal, verifica-se que até o momento não há norma específi-
ca que discipline o trabalho em plataforma de aplicativo, apesar de haver
propostas legislativas nesse sentido.7 Esse “vácuo normativo” justifica a falsa
ideia de que a CLT não é apta para regulamentar essa nova forma de trabalho
e assim os aplicativos seguem livres para expandir o alcance de seus negócios
por meio de termos de condições de uso disfarçados de contrato de emprego.
A liberdade plena das empresas também se faz presente na hora da
contratação dos trabalhadores. Hoje para se tornar entregador digital basta
ter um celular conectado à rede, um pacote de dados de internet, o aplicativo
habilitado e uma conta bancária. Mediante o aceite das condições impostas
pela empresa, a relação subordinada fica sacramentada.
Os termos de uso do aplicativo, em geral, denotam excelente conhe-
cimento pela empresa dos critérios caracterizadores do vínculo de emprego
contidos art. 3º da CLT, pois advertem explicitamente sobre a ausência de
subordinação e pessoalidade. 8
Por outro lado, reforçam que o entregador tem o dever assumir a
totalidade dos riscos inerentes ao trabalho, assim como pela mercadoria
transportada. Além do mais, avisa que realiza o monitoramento do trabalha-
dor e usa o bloqueio do aplicativo como punição.
Diante do teor dessas cláusulas, não fica difícil identificar a clássica
relação de emprego, modalidade mais expressiva do direito do trabalho,
justamente porque nasce carregada de um amplo espectro protetivo para o
trabalhador, e ao mesmo tempo atua com instrumento de concretização da
democracia. (DELGADO, 2019, p.334)
Decorrem do contrato de emprego, o direito ao salário mínimo, irre-
dutibilidade salarial, proteção social diante da dispensa, FGTS, seguro
desemprego, 13º salário, férias acrescidas do 1/3 constitucional, dentre outros
benefícios. Todos esses direitos expressam bem o valor social do trabalho
indicado no art. 1º da Constituição de 1988 bem, como sua natureza de direito
social fundamental contida no art. 6º da Constituição.
Ocorre que, a tão propalada intermediação algorítmica entre traba-
lhador e tomador, que se apresenta como novo paradigma regulador das

7
Projeto de LEI 3478/2020 e 1665/2020.
8
https://entregador.ifood.com.br/abrindo-a-cozinha/transparencia/acesso em 18 de novem-
bro de 2020.

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

novas formas de trabalho, ainda não é forte o bastante para excluir a clássica
relação de emprego. Essa tem sido a atual discussão no judiciário e no
meio acadêmico. Algumas decisões já identificam a presença inequívoca do
vínculo de emprego, confirmando a tese de que a tecnologia 4.0 utilizada
pelas plataformas significa “mais do mesmo.”9
Em recente decisão, o TRT da 3ª Região acabou por sinalizar que os
requisitos da relação de emprego são factíveis e implicam no reconhecimento
do vínculo entre trabalhador e plataforma. A decisão colegiada mostra que,
de acordo com o art. 2º da CLT, os aplicativos que se auto intitulam empresas
de tecnologia possuem como finalidade preponderante o frete, entrega de
mercadoria. Isso porque o lucro é extraído de cada entrega feita, sendo que o
percentual entregue ao trabalhador é determinado pelo algoritmo.
O princípio da primazia da realidade foi utilizado com o fundamento pa-
ra desconstituir a ideia de que as empresas não passam de meras agenciado-
ras de mão de obra, ou meras estreitadoras da relação entre o entregador e o
consumidor.
No quesito onerosidade, a decisão destaca que a intenção do trabalhador
ao procurar a empresa, é a de receber dinheiro. Já a empresa se defende alegan-
do que entregador é remunerado pelo cliente, e que a empresa só repassa o
valor entregador. Trata-se de tese descabida, visto que não há desqualificação
da onerosidade, pois a legislação trabalhista prevê que as gorjetas pagas pelo
cliente configuram remuneração paga ao empregado.
A não eventualidade, na decisão em análise, restou configurada sob en-
foque da atividade preponderante da empresa. Isto é, analisou-se a atividade
desempenhada pelo trabalhador em correlação com as atividades normais e
permanentes da empresa, o que acaba por atrair o requisito da subordinação
sem a necessária aferição formal da jornada de trabalho, conforme o art. 6º
da CLT.
Já o critério pessoalidade, esse pôde de ser facilmente constatado pela
interpretação gramatical dos termos de adesão que exigem a pessoalidade e
a exclusividade na utilização do aplicativos sob pena de bloqueio unilateral.
De todos os requisitos analisados pela decisão do Tribunal Regional da
3ª Região, o elemento subordinação é o que mais tem causado discussões,
pois o uso da tecnológica como elemento central no desempenho da força

9
TRT 03. RECURSO ORDINÁRIO: RO nº 0010239-44.2020.5.03.0005. Relator: Desem-
bargador Marcelo Lamego Pertence. DJET: 09/12/2020. Disponível em < https://pjeconsulta.
trt3.jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/00102394420205030005>. Acesso em: 14
fev. 2021.

49
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

de trabalho ,é o aparato usado pelas empresas para esconder, talvez, a su-


bordinação mais intensa identificada na história do trabalho. (ANTUNES;
FILGUEIRAS, 2020, p.29).
E, em recentíssimo voto10 do Ministro do TST Maurício Godinho
Delgado, foi reconhecido o vínculo empregatício entre o motorista e a
plataforma Uber. O ministro afirmou que o Brasil é um dos poucos países
do mundo que já têm legislação que se aplica “como uma luva” a casos de
“uberização”. Trata-se do parágrafo único do artigo 6º da CLT, segundo o qual
“os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se
equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de
comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.
Antunes e Filgueiras elencam onze atos empresariais que determi-
nantemente estabelecem a forte subordinação dos trabalhadores em relação às
plataformas. Os pesquisadores identificaram que os trabalhadores podem ser
dispensados a qualquer tempo, são ameaçados de bloqueio, pressionados a
não declinarem entregas; além de os aplicativos determinarem quando como
e onde o trabalho deve ser executado.
Todavia, para efeitos de caracterização de vínculo empregatício, basta a
ocorrência de apenas uma destas situações para que, analisada conjuntamente
com os demais requisitos mencionados, constatem a relação empregatícia.
(ANTUNES; FILGUEIRAS, 2020, p.29).
De acordo com Daniela Muradas e Eugênio Corassa, tendo em vista
as formas manifestadas nas plataformas digitais, é evidente a “subordinação
por algoritmos” que se manifesta pelo exercício de um “controle totalizante,
uma subordinação totalizante a um controle de qualidade exercido pelos
consumidores, que esconde o verdadeiro papel de dominação, controle e
disciplina dos novos meios de trabalho” (REIS; CORASSA, 2017, p.06).
Diante dessas constatações, seria possível dizer que temos mais do
mesmo? Os requisitos da relação de emprego estão presentes, porém com
nova roupagem?
As respostas a esses questionamentos não estão prontas. O que se
pode constatar até o momento é que, o avanço tecnológico representado pela
tecnologia 4.0 tem sido usado como bandeira para declarar a morte da CLT pela
crença de sua incapacidade em resolver os problemas relacionados às novas
formas de trabalho. Por óbvio, essa mensagem retroalimenta a propaganda
neoliberal de superação das formas tradicionais de assalariamento.

10
TST. Processo nº 100353-02.2017.5.01.0066.
50
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Contudo, a CLT continua viva, apesar dos intensos ataques sofridos


a partir de 2016. Certo é que os artigos 2º, 3º e 6º da CLT, em especial, não
estão ultrapassados para regulamentar o trabalho em plataformas digitais. O
mesmo pode ser dito sobre a Constituição Federal de 1988 em seus artigos 6 º,
7º, 170, além de outros que invocam a noção do valor social do trabalho e da
liberdade de iniciativa como fundamentos da República Federativa do Brasil.
Essa coalizão normativa que visa proteger minimamente os trabalha-
dores, formalizados ou não, não merece ser negligenciada sob a desculpa de
um envelhecimento normativo que objetiva anular os esforços legislativos
duramente conquistados até aqui pelos trabalhadores.
Para o momento, é juridicamente viável a aplicação das leis trabalhis-
tas já existentes na CLT e na Constituição Federal de 1988. Essa por sinal
avançadíssima, diante da existência de rol de direito fundamentais trabalhis-
tas plenamente aplicáveis aos trabalhadores em plataforma.
A questão da inexistência de norma especifica para essa categoria de
trabalhadores em nada afeta a proteção legal já existente. O esforço na criação
de lei nesse sentido se aproxima mais de vontades relacionadas à conjuntura
política do país (moeda política), do que o real interesse em proteger uma
categoria que não nasceu de um rompante no ano de 2020, mas que cresce ao
sabor dos objetivos precarizantes da Reforma Trabalhista de 2017 e da onda
de desregulamentação neoliberal do Ocidente.
3 - ATUAÇÃO COLETIVA DOS TRABALHADORES INFORMAIS
O Direito do Trabalho cuida de relações entre sujeitos desiguais: em
geral, empresas de um lado, donas de meios de produção e de capitais; de
outro, trabalhadores assalariados e subordinados, que dependem do seu labor
para sobreviver. Por mais que ficções jurídicas sejam elaboradas, e são, nunca
haverá uma paridade absoluta de condições entre os atores em permanente
litígio de interesses.
É por isso que a organização da parte mais fraca, em entes coletivos,
pode tornar menos desigual a relação. Este é um dos porquês de os sindicatos
possuírem total importância na esfera do direito do trabalho e nas políticas
públicas voltadas para o social. Assim como o direito do trabalho, os sin-
dicatos também foram forjados com base no que se conhece como “trabalho
formal”, desde sua época áurea, com pilares desenvolvidos pela doutrina do
corporativismo. Sujeitos definidos, estanques, categorizados, por vezes, de
maneira artificial.

51
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

As novas formas de relação de trabalho vêm exigindo dos sindicatos


uma mudança de comportamento. Dentre elas, a de perceber em torno de
si a realidade dos trabalhadores informais. A inexistência de diálogo deste
mundo “formal” com o ‘informal” é substancialmente prejudicial para ambos
os lados: os sindicatos deixam de ter representatividade; os trabalhadores
informais, já muito vulneráveis, potencializam esta condição, ficando ao bel
prazer do jogo do livre mercado.
Existe a possibilidade de os sindicatos dos trabalhadores formais abar-
carem os trabalhadores informais do mesmo segmento econômico.
Gerardo Castillo (2002, p.20) identifica as principais formas pelas quais
se dá a organização sindical nesses termos:
1.sindicato congregando trabalhadores de um mesmo ramo
da economia (por exemplo, o comércio), tanto formais como
informais; e 2. existência de uma secretaria em um sindicato de
trabalhadores, em determinado ramo da economia, destinada a
tratar exclusivamente dos informais.

No caso da absorção dos informais pelo sindicato dos trabalhadores


formais de mesmo segmento econômico, poderá haver a dificuldade de ca-
tegorizar os trabalhadores informais. Além disso, é possível que os sindicatos
já existentes não saibam como lidar com a informalidade dentro da categoria.
E, se não bem gerida tal absorção, o sentimento de identidade de classe pode
ser prejudicado.
Também existe a possibilidade dos trabalhadores informais se or-
ganizarem em sindicatos próprios. Kalil, citando Castillo, afirma: 
Gerardo Castillo et al. (2002) identificam alguns modelos
de organização sindical de trabalhadores informais. Para os
casos em que esses trabalhadores criam o sindicato, apontam
os seguintes: 1. sindicato organizado conforme o comércio
ou emprego associado ao trabalho informal; 2. sindicato que
congregue trabalhadores informais de diferentes setores de
uma mesma região, e o formato mais adequado para essa
organização seria o de uma federação regional; e 3. federação
específica de âmbito nacional, em que o trabalho informal é
compreendido como um grande setor (CASTILLO et al., 2002
apud KALIL,2013).

As propostas 2 e 3 de constituição de sindicato próprio de trabalhadores


‘informais em geral’ podem ter vários obstáculos. Em primeiro lugar, os
informais constituem uma grande massa de trabalhadores. Sendo assim, são

52
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

heterogêneos, têm necessidades e petições muito diversificadas. Além disso,


torna-se muito difícil organizar uma entidade coletiva de enorme diversidade.
Em segundo lugar, a própria noção de categoria impõe dificuldades à criação
destes sindicatos. Categorias são normalmente vinculadas a um empregador
específico ou a uma atividade econômica específica. A categoria “trabalha-
dores informais” diz tudo e não diz nada. Isto significa que poderia haver
problemas na representação política e na própria tomada de decisões.
No direito brasileiro, o cenário é ainda mais complexo. O artigo 8º, II
da Constituição Federal consagra o princípio da unicidade sindical, ao vedar
a criação de mais de uma organização sindical na mesma base territorial (área
não inferior a um Município).
Diante deste quadro de unicidade, todos os problemas acerca de uma
criação de sindicato de informais (em geral) não são encontrados apenas
na realidade de fato destes trabalhadores, mas também em uma vedação da
ordem jurídica brasileira.
Contudo, em se tratando de trabalhadores informais de determinada
especificidade, proposta de nº 1 de Castillo, verifica-se a adequação a uma
categoria e, assim, maiores possibilidades de êxito. Essa proposta tem sido
aplicada no Brasil e no mundo, com experiências enriquecedoras.
3.1 - Organização coletiva dos trabalhadores de plataformas digitais
No que concerne aos trabalhadores de aplicativos ou plataformas
digitais, espécie de trabalhadores informais, tem-se em observado um
movimento crescente na organização coletiva dos trabalhadores de aplicativo
no Brasil e em alguns países da Europa.11 No caso brasileiro, de acordo com
Machado, há que se fomentar os direito à liberdade sindical e de negociação,
sem que se faca distinção entre trabalhadores com contrato formal ou
autônomos, uma vez que a Constituição de 1988 não limita atuação coletiva
aos trabalhadores autônomos, como são considerados os trabalhadores de
aplicativos. (MACHADO, 2020, p. 438).
Kalil (2019, p. 269), ao tratar da organização coletiva dos trabalhadores
em plataformas digitais, dividiu a temática em três nuances: sindicatos,
cooperativas e espaços virtuais. No que concerne aos sindicatos, o autor
indica que a entidade sindical é responsável pela realização dos direitos
coletivos básicos: a representação sindical e a negociação coletiva. Ressalta,
com suporte nas ideias de Hannah Johnston e Chris Land-Kazlauskas, que
os sindicatos do mundo têm adotado determinadas estratégias de ação em
11
Itália, Espanha e Reino Unido.

53
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

relação ao capitalismo de plataforma e elenca cinco pontos de ação: a primeiro


se refere ao ajuizamento de ações judiciais com a vistas a reconhecer o
vínculo empregatício ou outro tipo formalização; a segunda se realiza por
meio do atuação sindical atrelada às associações de trabalhadores expostos ao
capitalismo de plataforma; a terceira objetiva a construção legislativa como
instrumento de reconhecimento legal dos trabalhadores em plataformas;
a quarta se baseia na conscientização dos sindicatos de trabalhadores
formalizados em absorverem os trabalhadores em plataformas digitais; a
quinta e última estratégia é a criação de sindicato dos próprios trabalhadores
atrelados as plataforma digitais.
Em relação à quinta estratégia, nos últimos anos, os trabalhadores de
aplicativos de transporte têm se organizado em sindicato próprio.
No Brasil, tais trabalhadores se uniram de modo a estabelecer uma
categoria própria, específica, denominada como “trabalhadores com aplica-
tivos de transporte” ou “motoristas de transporte individual de passageiros
por aplicativos” ou condutores de veículos que utilizam aplicativos” como se
pode verificar, por exemplo, no Sindicato dos Trabalhadores com Aplicativos
de Transporte Terrestre Intermunicipal do Estado de São Paulo, do Sindicato
dos Motoristas de Transporte Individual de Passageiros por Aplicativo do
Estado do Pernambuco (PEREIRA, 2019) e Sindicato dos Condutores de
Veículos que utilizam Aplicativos do Estado de Minas Gerais.
3.2 - Caso Sindicato dos Riders em Bolonha – Itália
Um caso paradigmático e histórico foi a criação do sindicato dos
entregadores de comida por aplicativo, os “riders” em Bolonha no ano de
2017.
De acordo com Marrone, a estratégia organizativa e as práticas
reivindicativas adotadas pelo Sindicato dos Riders mais do que representar
um “sindicalismo 2.0. parece inserir uma tendência que vê uma progressiva
convergência na forma como conflitos se articulam fora do que foi a exceção
europeia dos gloriosos trinta anos (MARRONE, 2019, p. 11).
A experiência do Sindicato dos Riders não só há produzido importantes
inovações no que tange às estratégias de organização coletiva, mas também
foi capaz de conseguir a criação da “Carta dos direitos dos trabalhadores
digitais no contexto urbano” que representou o pioneiro acordo vigente na
Itália no âmbito do “food delivery”.
O caráter informal do sindicato dos Riders é, antes, o resultado da
própria fuga à subordinação feita pelas plataformas (MARRONE, 2019).

54
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

A organização coletiva dos riders de Bolonha nasceu com o objetivo de


criar um nível mínimo de proteção válido para todos os trabalhadores de food
delivery que prestam serviços na cidade de Bolonha.
Em consonância com as experiências de trabalhadores precários que
fizeram das coalizões o seu centro estratégico de gravidade, o Sindicato dos
Riders assume a forma de uma coalizão urbana que vê em torno da disputa
dos trabalhadores também a mobilização de uma rede municipal de ativistas
e solidários.
As estratégias utilizadas pelo Sindicato dos Riders, quais sejam:
a informalidade da organização, o uso de estruturas de mutualismo, o uso
de práticas típicas dos movimentos sociais e a adoção de estratégias de
reivindicação que visam influenciar a opinião pública e o comportamento das
instituições, não são novidade. Estas características podem ser encontradas
facilmente no passado da história do movimento sindical europeu e ainda no
presente da luta dos trabalhadores formalizados (MARRONE, 2019, p. 26,
tradução livre).
E, tendo em vista, a tendência neoliberal de desregulamentação em
matéria de Direito do Trabalho, o sindicalismo de específicos trabalhadores
informais serão a tendência, uma vez que representa o contrapoder e uma
alternativa para se tentar ao menos garantir o mínimo de dignidade para
trabalhadores superexplorados nos fios invisíveis da informalidade.
Como nos ensina o exemplo de Bologna, o uso da informalidade como
estratégia de fortalecimento sindical pode ser um parâmetro, com as devidas
adaptações, a ser adotado no Brasil, uma vez que soluciona o problema
da unicidade sindical formal e permite o uso de plataformas digitais para
conexão, tal como faz o próprio capital na chamada era da indústria 4.0. E
ainda pode ser um dos sindicatos de entregadores de comida por aplicativo,
tendo em vista seu pioneirismo e força, com quem se estabelecer rede
internacional para compartilhamento de estratégias e formas de resistência
contra as grandes plataformas multinacionais de entrega de comida.
4 - CONCLUSÃO
O capitalismo estrategicamente busca o esvaziamento do Direito
do Trabalho e a inviabilização da resistência operária, sendo a rede da
informalidade uma experiência bem sucedida para esse fim. Em termos
aparentes, a fábrica se horizontaliza. Em termos reais, continua vertical,
na medida em que detém sobre os parceiros invisíveis relações de domínio
(VIANA, 2005, p.3).

55
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

E, na sociedade contraditória da contemporaneidade, “onde há poder


há também contrapoder, que é a capacidade de os atores sociais desafiarem
o poder embutido nas instituições da sociedade a fim de reivindicar a
representação de seus próprios valores”(CASTELLS, 2013, p. 10), cabendo,
assim, às entidades coletivas, especialmente aos sindicatos, contrapor-se aos
arbítrios das empresas multifacetadas.
Tal contraposição aliada à conseqüente proteção dos trabalhadores
informais, conforme exposto no artigo, pode se dar por meio de rede de atua-
ção coletiva dos trabalhadores, como uma rede de resistência (CASTELLS,
2013, p.2), propiciando uma integração entre formais e informais nos
sindicatos, associações e cooperativas, de modo a garantir um mínimo de
proteção social.
Há, entretanto, um longo caminho a se percorrer. Os obstáculos são
variados: desde a dificuldade de se definir a que categoria pertence um tra-
balhador informal até à burocracia e a estratégias de organização.
E, ainda, a ausência da relação de emprego acarreta uma desproteção
desmedida, deixando o trabalhador submetido ao humor das novas invenções
que buscam  pagar sempre o menor valor possível a quem labora.
Diante de um problema novo, o caminho para a solução precisa ser
novo. A criação de redes sindicais (nacionais e internacionais) entre sin-
dicatos de trabalhadores de plataformas digitais daria a eles a possibilidade
de, coletivamente, exigirem melhores condições de trabalho e salário digno.
Somente a rede de solidariedade pode encarar a ausência total de tutela
jurídica, sobretudo àqueles que laboram na informalidade.
Assim, os sindicatos devem ser maleáveis para se adaptar a todas
as formas de trabalho e acompanhar as múltiplas faces da realidade, sem
prescindir do seu princípio protetor.
As entidades sindicais devem ter função cada vez maior e mais variada
no Direito do Trabalho. Além de alcançar maior representatividade para si
mesmos, os sindicatos que tenham nos seus quadros trabalhadores informais
(sendo estes ceifados da proteção justrabalhista, como os trabalhadores de
aplicativos) podem, também, garantir a eles um patamar mínimo de direitos
por meio dos instrumentos de negociação coletiva. Os sindicatos deverão
“servir de costura a esses recortes de vida, garantindo proteção variada e
variável, mas sempre presente, e muito mais efetivo do que é hoje”. (VIANA,
2005, p. 4)

56
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

A PANDEMIA DE 2020 E O MUNDO DO TRABALHO NO BRASIL -


RECORTES HISTÓRICOS, SOCIOLÓGICOS E JURÍDICOS

Benizete Ramos de Medeiros1



Pedro Carvalho de Mendonça2

RESUMO: O ano de 2020 é, com certeza, considerado um dos mais críticos da


história recente da humanidade em diversos aspectos, pois a pandemia causada
pelo COVID 19, impactou em todos os segmentos coletivos e individuais.
O mundo do trabalho no Brasil foi sacudido, alterado, transformado, assim
como a saúde publica, a economia e a vida das pessoas no geral. Na pandemia
do século passado com a chamada gripe espanhola, tratamentos semelhantes
por parte do governo federal no sentido de sobrepor a economia sobre a saúde
coletiva, minimizar, negar a existência e a potencialidade de contaminação e os
índices, tentando calar a imprensa. Com isso, analisa as mudanças do contrato
de trabalho durante a pandemia global do coronavírus, trazendo recortes
históricos sobre a primeira pandemia mundial (Gripe Espanhola) seguindo
nas principais alterações no mundo do trabalho no Brasil atualmente, como
o trabalho remoto, o desemprego, as suspensões e alterações do contrato,
identificando os setores que foram mais afetados com o lockdown e que tipos
de legislações emergenciais vêm sendo editadas para garantir a vida digna e
o mínimo existencial. Para isso, foram analisadas as MP’s 927/020 e 936/020
e Lei 14.020/20.
Palavras-chaves: Pandemia. Desemprego. Crise.

1
Advogada Trabalhista; doutora em Direito e Sociologia (UFF); mestre em Direito (FDC);
professora de graduação, pós-graduação latu e stricto sensu; membro da Escola Superior da
Advocacia Trabalhista da ABRAT; membro da Comissão de Direito do Trabalho do IAB;
diretora da JUTRA e professora convidada da Universidad Internacional Ibero Americana
–UNINI.
2
Advogado trabalhista.
61
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
“Se queres prever o futuro, estuda o passado” (Confúcio).

1 - INTRODUÇÃO
A partir da frase de Confúcio e, ao pretender esboçar algum texto sobre
o mundo do trabalho na pandemia de 2020, torna-se necessário, uma volta ao
passado, ainda que superficialmente, sobre a pandemia que assolou o século
anterior, a chamada gripe espanhola e traçar alguma diferença no tratamento
relacionada ao trabalho. Por isso, as pesquisas se dão tanto no contexto atual,
quanto do passado em matérias mais panfletárias e midiáticas com algumas
publicações em livros.
O ano de 2020 é, com certeza, considerado um dos mais críticos da his-
tória recente da humanidade em diversos aspectos, pois a pandemia causada
pelo COVID 19, impactou em todos os segmentos coletivos e individuais.
O mundo do trabalho no Brasil foi sacudido, alterado, transformado, assim
como a saúde publica, a economia e a vida das pessoas no geral. Embora
a história seja melhor entendida posteriormente aos fatos, muitos textos e
pesquisas já vem se mostrando eficiente e, este, é mais um tímido ensaio com
mote nas relações trabalhistas brasileiras.
Assim, o objetivo é analisar as mudanças do contrato de trabalho du-
rante a pandemia global do coronavírus, trazendo recortes históricos sobre
a primeira pandemia mundial (Gripe Espanhola) seguindo nas principais
alterações no mundo do trabalho brasileiro no contexto atual da pandemia
pelo COVID-19 como o trabalho remoto, o desemprego, as suspensões
e alterações do contrato, identificando os setores que foram mais afetados
com o lockdown e que tipos de legislações emergenciais vem sendo editadas
para garantir a vida digna e o mínimo existencial. Para isso, serão analisadas
as MP’s e Leis, principalmente as MP’s 927/020 e 936/020, esta última
transformada na Lei 14.020/020.
2 - A PRIMEIRA PANDEMIA GLOBAL – A GRIPE ESPANHOLA
A história nos confere a notícia de ter havido no inicio do século passa-
do outra grande pandemia que ceifou muitas vidas, mormente por involução
ainda no campo da ciência, foi a chamada da Gripe Espanhola. Apesar do
nome, a gripe espanhola não surgiu na Espanha. Não se sabe exatamente ainda
o local de origem, mas segundo a pesquisadora e professora Christiane Maria
Cruze Souza, os primeiros registros da doença apareceram nos campos de
treinamento Militar na cidade de Crosby, Texas, Estados Unidos, em março

62
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

de 19183.
Pelo fato da Espanha ter sido um país neutro na Primeira Grande
Guerra, a imprensa4, noticiava a praga, enquanto nos Estados Unidos, em
meio a uma guerra, tinha ordens de censura de tais notícias para não afetar o
país em guerra, impedindo assim o alastramento da peste, com a adoção da
teoria de negacionismo.
A doença então se espalhou durante a Primeira Guerra Mundial quando
os soldados americanos foram à Europa e desembarcaram nas costas fran-
cesas, alastrando assim o vírus e comprometendo toda a saúde mundial.
A pandemia da gripe espanhola teve diversos impactos negativos nas
atividades econômicas, assim como no emprego e renda dos países europeus
e nos Estados Unidos da América. Eram noticiados que os trabalhadores no
auge da vida laboral – entre 15 a 49 anos – eram os mais afetados, com a
maior taxa de mortalidade da época.
Na linha da historiadora Liane Bertucci em um podcast5, a gripe
espanhola chegou ao Brasil, no ápice da pandemia que ocorria na Europa. O
Brasil enviou a Missão Médica Brasileira, formada por Médicos e profissio-
nais da saúde que vão à Europa para ajudar na guerra que estava em seu
auge. Há notícias que início de setembro de 1918 vários médicos brasileiros
adoeceram e alguns morrem contaminados, sem um diagnóstico, porque não
se sabia exatamente o que estava acontecendo em termos de saúde pública.
No mesmo mês de setembro de 1918, o navio Demerara vindo de
Liverpool, passando por Lisboa com destino ao Rio de Janeiro, com paradas
em Recife e Salvador, vem trazendo passageiros contaminados com a
gripe. Os que apresentaram sintomas ficaram em quarentena. Contudo, os
assintomáticos, foram liberados para desembarque, havendo nesse grupo
casos de pacientes contaminados, resultando em poucos dias depois desse
desembarque as notícias de pessoas acometidas nas capitais Recife, Salvador
e Rio de Janeiro. 6

3
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702008000400004
Acessado em 21/09/2020.
4
https://saude.abril.com.br/blog/cientistas-explicam/gripe-espanhola-100-anos-da-mae-das-
pandemias/ Acessado em 21/09/2020.
5
https://lehmt.org/2020/04/19/vale-mais-04-a-pandemia-de-1918-e-os-mundos-do-trabalho
Acessado em 14/09/2020..
6
https://historiasdomar.blogosfera.uol.com.br/2020/04/04/ha-102-anos-pandemia-chegava-
ao-brasil-escondida-em-um-navio/ Acessado em 14/09/2020.
63
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

No mês de novembro de 1918 a quantidade de contaminados pelo vírus


era de 4.000 novos casos por dia, o que levou o governo a mudar seu discurso
inicial que era de manter as pessoas em casa e não mandar para os hospitais,
gerando a necessidade de criação de novos hospitais provisórios.
Aqui vale uma nota que, se nesse período a ciência demorou a dar conta
do fenômeno, diferente vem acontecendo com a pandemia atual, em razão
da rápida descoberta de vacinas em tempo recorde de menos de um ano, em
laboratórios de diversos países. Mas, por outro lado, há um ponto comum do
EUA com o Brasil, o negacionismo, a tentativa de impedir a divulgação.
3 - O IMPACTO DA GRIPE ESPANHOLA NOS TRABALHADO-
RES DA ÉPOCA
O mundo do trabalho do inicio do século passado era absolutamente
diverso do atual, tanto na forma e meios de produção como na proteção
legislativa. A luta por melhores condições de trabalho já havia iniciado
nos séculos anteriores (XVIII e XIX), avançando no tempo na busca de
solidificação e ampliação dos poucos direitos já conquistados.
Diante do negacionismo e ausência de maiores informações, a gripe
espanhola atingiu os trabalhadores fortemente. Os jornais da época atacavam
o governo de São Paulo e o serviço sanitário que estavam escondendo in-
formações. O serviço sanitário, por sua vez, pedia para que os médicos e
donos de fábricas notificassem sobre os trabalhadores que estavam doentes
ou pessoas na família contaminadas, para assim, serem instalados postos de
atendimento nas próprias fábricas. Em São Paulo chegou a existir mais de 40
postos de socorro para os trabalhadores.
Há relatos de jornais da época7, como O Estado de São Paulo e Gazeta
de Notícias, de que os políticos tratavam somente como se fosse mais uma
gripezinha8 além dos empresários que protestavam9 por causa das cidades
vazias, da situação do comércio que estava em crise e o transtorno comercial
que a quarentena estava causando.
Nesse período, os direitos trabalhistas no Brasil, não estavam con-
solidados, o que somente começou a ocorrer a partir do Governo Vargas

7
https://www.360meridianos.com/especial/gripe-espanhola-1918. Acessado em 21/09/2020.
8
https://www.360meridianos.com/wp-content/uploads/2020/04/gripe-espanhola-rio.jpg
Acessado em 21/09/2020.
9
https://www.360meridianos.com/wp-content/uploads/2020/04/crise.jpg Acessado em 21/
09/2020.

64
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

em 1934, e, portanto, os operários da época estavam indefesos e à mercê


do Governo e dos patrões. Seguindo a perspectiva que, se não trabalhassem,
não haveria ganhos, lembrando que nesse período também não se falava
em benefícios sociais, pois somente em 1923, veio a lume a primeira lei da
Previdência Social no Brasil. Era o caos do ponto de vista social. Diversa-
mente é a situação social e jurídica da pandeia de 2020.
4 - A PANDEMIA DE 2020
Se na gripe espanhola do século anterior os trabalhadores sofreram pela
falta de amparo de direitos trabalhistas, sendo obrigados a se ativarem mesmo
doentes e contaminados, disseminando o vírus, de forma diversa ocorre com
a pandemia de 2020 e 2021, não só pelo avanço na conquista dos direitos
sociais a partir da década de 40, atingindo seu ápice no final da década de
80 com a CRFB/88, mas também pelas medidas emergenciais surgidas para
amparo dos trabalhadores e do pequeno capital em 2020.
Nessa esteira, dia 6 de fevereiro de 2020 foi criada a primeira lei em
caráter geral, para combater a calamidade pública iminente, a Lei 13.939/020,
que dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento
da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do
coronavírus, definindo também os conceitos de isolamento social e quaren-
tena.
A princípio, o trabalho estava seguindo, naturalmente. No mês de
fevereiro a China estava em seu ápice da pandemia, porém não havia
ainda nenhum caso diagnosticado no Brasil, quando estavam ocorrendo
normalmente as festas carnavalescas durante todo o mês, mesmo com
divulgação de escassas “notícias” de que o Brasil já estava tendo casos.
Segundo o Ministério da Saúde, o primeiro caso de contaminação no
Brasil, somente é confirmado no dia 26 de fevereiro10, um homem de 61 anos
que viajou a Itália deu entrada no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. O
segundo caso veio três dias depois, de outro homem também na cidade de São
Paulo que chegara da Europa e dezesseis dias após o primeiro caso, já havia
60 casos confirmados, editando-se a primeira MP voltada a pandemia, a MP
924/20.
No dia 21 de março já eram noticiadas a morte de dezoito pessoas pelo
novo coronavírus11. Foi nesse dia que o presidente Jair Bolsonaro definiu os
10
https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/primeiro-caso-de-covid-19-no-brasil-
permanece-sendo-o-de-26-de-fevereiro Acessado em 13/10/2020.
11
https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/21/casos-de-coronavirus-no-
brasil-em-21-de-marco.ghtml Acessado em 13/10/2020. 65
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

serviços e atividades essenciais para o funcionamento do país. Termina o mês


de março com 4.683 casos confirmados de covid-19 e chega a 167 o número
de mortos. Fecha também o mês com a criação de quatorze novas Medidas
Provisórias, entre elas destacam-se aquelas relacionadas à sustentação do
emprego e renda, quais sejam as MP’s 927/20, do dia 20 de março e a 936/20
de 1º de abril de 2020.
Anote-se, desde já que o final do ano de 2020, ao contrário do esperado,
é marcado por uma segunda onda que chega de forma mais agressiva, com
fechamento de atividades em diversos estados e cidade, reabertura de leitos e
hospitais de companha fechado. Alguns estados como o Para e o Amazonas a
situação fica extremamente crítica com 100% das ocupações dos leitos.
5 - O IMPACTO NOS EMPREGOS E A REINVENÇÃO DO
TRABALHO
No início da pandemia no Brasil, muitas dúvidas surgiram com re-
lação ao trabalhador no ambiente de trabalho e a continuidade da atividade
econômica, aspecto, aliás, que vem polarizando o debate. Apesar da solução
encontrada inicialmente ter sido a quarentena total da população, isso afetaria
radicalmente grande parte dos trabalhadores, empresários do país e os postos
de trabalho.
Um estudo da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua
(Pnad Contínua)12, divulgado no dia 28 de fevereiro de 2020, mostra que a
taxa de desemprego vinha caindo, chegando a 11,2%. Porém, com o advento
da pandemia, era aguardado que o desemprego voltasse a aumentar e foi o
que aconteceu, quando no mês de agosto a taxa de desemprego atingiu os
14,3%, alcançando 13,7 milhões de pessoas, maior número na história desde
o início das pesquisas iniciadas pelo IBGE13.
Segundo outra pesquisa do IBGE, desta vez a Pnad Covid14, em agosto
de 2020, um total de 2,8 milhões de pessoas foram afastadas do seu trabalho
por consequência do distanciamento social, número que empurrou a taxa de
desemprego a chegar a esse marco histórico. A mesma pesquisa ainda mostra
que este afastamento atingiu principalmente os empregados do setor privado
12
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/
26974-desemprego-recua-para-11-2-e-carteira-assinada-cresce-no-tri-encerrado-em-janeiro
Acessado em 06/10/2020.
13
https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-09/ibge-desemprego-na-pande-
mia-atinge-maior-patamar-em-agosto Acessado em 06/10/2020
14
https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/trabalho.php Acessado em 14/10/2020.
66
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

com carteira assinada, sendo a maior proporção de pessoas afastadas devido


ao distanciamento social.
Para alguns setores o trabalho seguiu normalmente ou até mesmo mais
intenso como, por exemplo, o setor da indústria farmacêutica, o comercio
varejista de medicamentos. A empresa IQVIA fez uma projeção15 de que o
setor farmacêutico brasileiro fecharia o mês de maio com um crescimento de
8,4% em valor, e para o diretor sênior da IQVIA, Edu Rocha: “o Brasil nunca
esteve tão bem quanto hoje”. Ainda conforme a IQVIA, caso a quarentena
terminasse, e o desemprego estivesse estável com a retomada das atividades,
o mercado brasileiro iria crescer em 7,3% neste ano. Pode-se ainda citar a
carência de profissionais da saúde para cuidar da quantidade de pacientes que
só aumentavam no país além dos mutirões feitos em hospitais de campanha
por todo o território brasileiro.
De outra sorte, diversos setores sofreram e ainda sofrem muito com
a pandemia e a quarentena. O turismo, por exemplo, é uma atividade que
existe essencialmente com a mobilidade humana, ficou extremamente afeta-
do e até hoje não retornou completamente, em razão da segunda onda. Com
a necessidade do distanciamento social e evitar aglomerações vários pontos
turísticos foram fechados, aeroportos ficaram desertos e eventos foram
cancelados, para um setor que era responsável por 3,7% do PIB do Brasil, de
acordo com a CNC (Confederação Nacional de Comércio, Serviços, Bens e
Turismo)16, com isso, já acumula perdas de R$ 86,6 bilhões somente nos três
primeiros mês de início da pandemia.
Outro setor que sofreu foi o do comércio, que mesmo com a continuida-
de do serviço, um dos poucos que tiveram crescimento foi os supermercados
e farmácias, enquanto o os outros segmentos varejistas foram prejudicados
tendo uma variação acumulada no mês de julho de 2020 comparado ao mesmo
mês do ano anterior de 6,3%17.
Os setores de turismo, entretenimento, prestação de serviços e pro-
fissionais liberais bem como os ambulantes, autônomos e similares, foram
igualmente atingidos, sem recuperação ainda nesse inicio de 2021 e ante o
ápice da segunda onda da pandemia de forma mais agravada, com índices
15
https://pfarma.com.br/noticia-setor-farmaceutico/mercado/5668-distribuicao-medicamen-
tos-coronavirus.html Acessado em 06/10/2020.
16
http://cnc.org.br/editorias/economia/noticias/turismo-acumula-perdas-de-quase-r-90-bi-
lhoes-em-tres-meses Acessado em 06/10/2020.
17
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/comercio/9227-pesquisa-mensal-de-co-
mercio.html?edicao=28834&t=destaques Acessado m 06/10/2020.
67
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

de contaminação chegando a 11.950.459 e de mortes 292.752, dados de


fevereiro, a economia está longe de recuperação plena.
Apesar do número de casos ainda aumentarem a cada dia no Brasil,
os setores que foram afetados estão voltando gradualmente e, para que
voltem, com a intermediação de alguns sindicatos. Mas, as demissões e as
precarizações foram inevitáveis. Agravando-se em algumas cidades com a
saída da FORD do Brasil, ultimamente.
Segundo presidente do Sindicato dos Comerciários
A situação é crítica, por isso queremos, em acordo com as
empresas, criar ações emergenciais para impedir a proliferação
do coronavírus, cuidando da prevenção dos comerciários e das
comerciárias e também garantindo o emprego de todos neste
momento de crise. Vamos procurar as empresas para criarmos
um protocolo que contribua para impedir que o coronavírus se
espalhe ainda mais. (AYER, 2020)

Ainda a criação de Comitês de Prevenção e a promoção de ações para


impedir que a doença atinja os comerciários, que em sua grande maioria
mantem contato com milhares de pessoas diariamente, além do acesso
a higiene pessoal e do local de trabalho dos trabalhadores e com medidas
emergenciais caso haja uma contaminação.
5.1 - Uma das soluções – trabalho em home office
Umas das medidas encontradas por diversos setores, inclusive o públi-
co foi o trabalho remoto no sistema de home office. O trabalho virtual já era
uma realidade crescente cuja legislação sofrera alteração com o advento da
reforma trabalhista trazida com a Lei 13.467/2017.
Antes de começar a quarentena total, o número de trabalhadores no
trabalho remoto era de 5%18, sendo a grande maioria destes os trabalhadores
autônomos, sem vínculo formal e de baixa renda. Com a instauração da
calamidade pública, já em seu início foi sentida a mudança. A Agência
Brasil19,para o mês de maio, trouxe dados de que o Brasil chegou aos
13% de pessoas exercendo o teletrabalho, o equivalente a 8,7 milhões de
trabalhadores, desses muitos executivos, professores, profissionais liberais e
principalmente os servidores públicos.
18
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/07/trabalho-remoto-na-pandemia-acentua-
desigualdades-dizem-pesquisadores.shtml Acessado em 14/10/2020.
19
https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-07/em-maio-133-das-pessoas-
ocupadas-exerceram-teletrabalho Acessado em 14/10/2020.
68
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Conforme a Pnad Covid20, divulgada no dia 31 do referido mês, o


número de empregados remotamente tinha chegado aos 8,9 milhões de
trabalhadores na primeira semana de julho, até a segunda semana que veio
a cair para 8,2 milhões. Na última pesquisa divulgada no mês de agosto21, o
número continuava a cair, chegando a 7,8 milhões de pessoas, o que mostra
a volta gradual dos trabalhadores ao seu local de trabalho, alterando-se em
meses posteriores ante a chegada da segunda onda.
Porém tal mudança no padrão de trabalho é algo que vem sendo discuti-
do há algum tempo. Para algumas empresas a implementação do trabalho
remoto é o futuro, conforme expõe a Organização Mundial do Trabalho
(OIT) e a pesquisa da Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades
(SOBRATT).
Afirma a consultora técnica sênior sobre o futuro do trabalho na
Organização Internacional do Trabalho (OIT), Susan Hayter, em entrevista
ao G122:
[...] em meio a uma dramática desaceleração econômica causa-
da pela pandemia e aumento das taxas de desemprego, existe
a possibilidade de se promover mudanças na organização do
trabalho, incluindo novos esquemas de compartilhamento que
permitam flexibilidade e salvem os empregos (HAYTER, 2020).

Ela ainda complementa que a transformação do trabalho remoto traz


a possibilidade de trabalhadores mais experientes prolongarem sua vida
profissional, porém, para outras profissões é impossível esse formato de tra-
balho, tanto pela natureza como mesmo pela falta de adaptação ao trabalho
remoto e meios telemáticos.
Segundo a mesma pesquisa da Sociedade Brasileira de Teletrabalho
e Teleatividades, divulgada um ano após a reforma trabalhista, em 01 de
dezembro de 201823, 45% das empresas participantes da pesquisa já haviam
adotado o Home Office e outras 15% estariam avaliando a sua implementa-

20
https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/200731_cc48_pnad_co-
vid.pdf Acessado em 14/10/2020.
21
https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/trabalho.php Acessado em 14/10/2020.
22
https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/2020/06/19/pandemia-
adiantou-mudancas-no-mundo-do-trabalho-veja-as-10-principais-tendencias.ghtml. Acessa-
do em 21/09/2020
23
http://www.sobratt.org.br/site2015/wp-content/uploads/2018/12/pesquisa-sap-2018-com-
pleta.pdf Acessado em 14/10/2020.

69
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

ção. Dentre as que já praticam tal modelo de trabalho, 25% foram imple-
mentadas há menos de um ano, ou seja, após a reforma trabalhista.
6 - AS MP’S E A LEI. 14.020/2020
Após o surgimento da pandemia foi necessário fazer adequação ao
ordenamento jurídico para manutenção dos empregos e subsidiar os tra-
balhadores informais, autônomos e pequenas empresas. Assim é que du-
rante o mês de abril de 2020, ápice do debate acerca das relações de tra-
balho, alterações contratuais legislação sanitária, economia, divergências do
governo federal, negacionismo e outros desdobramentos, foram publicadas
26 medidas provisórias pelo Governo, à exceção de uma, todas as demais são
relacionadas a pandemia do covid-19, somando-se posteriormente, o numero
de 3524.
Apesar do número massivo de MP’s, muitas são para a criação de
créditos extraordinários, como a MP 924/2020 que em seu 1º artigo estabelece:
Fica aberto crédito extraordinário, em favor dos Ministérios da
Educa-ção e da Saúde, no valor de R$ 5.099.795.979,00 (cinco
bilhões noventa e nove milhões setecentos e noventa e cinco mil
novecentos e setenta e nove reais), para atender à programação
constante do anexo (BRASIL, 2020)

No que diz respeito às relações contratuais, destaca-se a MP 944/020


que previu a criação do Programa Emergencial de Suporte a Empregos,
com o objetivo de conceder linha de crédito a empresas com receita bruta
anual superior a R$ 360.000,00 e igual ou inferior a R$ 10.000.000,00 para o
pagamento do salário dos seus empregados. Mas, as duas de maior expressão
quanto ás relações contratuais foram a MP 927 e a 936, sendo a segunda
posteriormente transformada na Lei 14.020/2020..
6.1 - A MP 927 /2020
A primeira Medida Provisória que merece análise, em razão do grande
impacto e insegurança jurídica gerado, foi a MP 927, de 22 de março de 2020
que ficou em vigor até o dia 19 de julho daquele ano. A referida MP foi uma
das primeiras criadas com o objetivo de minimizar os impactos da crise da
Covid-19, permeada por incongruências práticas e muita insegurança jurídica.
24
Medidas Provisórias n° 921; 924; 925; 926; 927; 928; 929; 933; 934; 935; 936; 937; 938;
939; 940; 941; 942; 943; 944; 945; 946; 947; 948; 949; 950; 951; 952; 953; 954; 956; 957;
958; 959.

70
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

A primeira grande crítica foi que previa a possibilidade de suspensão do


contrato de trabalho por quatro meses sem pagamento do salário. Dois dias
após a publicação, ante as inúmeras críticas, foi revogado tal artigo, manten-
do a suspensão do contrato, porém deveria o empregador arcar parcialmente
com o salário e o governo complementar outra parcela do salário.
A MP teve em sua totalidade 39 artigos e em seu art. 2º a MP permitia
que o empregado e empregador celebrassem um acordo individual escrito
para a permanência no emprego – principal mote de sua existência – sem
corte total do salário, bem como tratou do banco de horas, teletrabalho,
FGTS, férias e feriados e as exigências de segurança e saúde no trabalho e da
qualificação do trabalhador.
O primeiro assunto abordado foi o do teletrabalho, permitindo que o
empregador alterasse o regime de trabalho presencial para trabalho remoto,
mesmo que existissem acordos individuais ou coletivos com clausulas es-
pecíficas, adequando-se assim, a um formato de trabalho possível ao mo-
mento social, evitando-se paralisações de algumas atividades.
Mas, não era tão simples de ser implementado, pois o Brasil possui
um número elevado de trabalhadores que recebem apenas o salário mínimo,
chegando a 27,3 milhões de brasileiros, um terço do total da força de
trabalho25, e, muitos destes não teriam – como não têm – condições de traba-
lhar remotamente por diversos fatores, embora em seu parágrafo 4° previsse
que o empregador deva fornecesse os equipamentos necessários para o
serviço, sem se caracterizar verba de natureza salarial.
Outro aspecto polêmico da MP foi a antecipação de férias individuais
e as coletivas. No que diz respeitos às individuais mesmo que o período
aquisitivo não tenha sido implementado desde que havendo comunicação de
48 horas de antecedência, além de indicar o período de gozo, devendo ser de
pelo menos cinco dias corridos, podendo ser negociada por acordo individual
escrito, além de permitir o empregador de antecipar feriados não religiosos,
notificando os empregados com antecedência. Trouxe a possibilidade, para
certos setores como a saúde, por exemplo, do empregador suspender as férias
e licenças dos empregados.
Com o intuito de facilitar os empregados e o empregador, a MP permitiu
que as férias coletivas pudessem ser concedidas sem a necessidade do
empregador, comunicar ao Ministério da Economia ou sindicato da categoria,
devendo, apenas com 48 horas de antecedência ao próprio empregado. O

25
https://www.conversaafiada.com.br/economia/27-3-milhoes-de-brasileiros-ganham-ate-
um-salario-minimo Acessado em 15/10/2020.
71
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

afastamento do Sindicato das tratativas foi objeto de diversas polêmicas e


ADIN no STF.
No artigo 14 trouxe o banco de horas com regime especial de com-
pensação no prazo de dezoito meses a partir do término do estado de calami-
dade pública e enquanto durar a calamidade pública poderá o empregador
dar folgas a serem compensadas no banco de horas especial.
Outra grande polêmica dessa MP 927/020 foi a suspensão da obri-
gatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e
complementares. Mantendo-se os exames demissionais. Além dos exames
citados, foram suspensos os treinamentos periódicos previstos nas normas
de segurança e saúde do trabalho. Deu-se o prazo de sessenta dias para
serem feitos os exames após o fim da calamidade ou no caso de o médico
coordenador indicar ao empregador a necessidade da realização dos exames
enquanto os treinamentos periódicos o prazo foi maior, de noventa dias ou
realizado na modalidade ensino a distância.
Trouxe mudança nas regras do recolhimento do FGTS referente aos
meses de março, abril e maio daquele ano, com suspensão provisória dos
recolhimentos, esperando-se com isso, uma maior brevidade no tempo de
pandemia, alinhando-se os recolhimentos para o futuro de forma parcelada
em até seis vezes.
No entanto, a MP em comente perdeu a eficácia no dia 19 de julho de
2020, pois, sem o acordo entre o Congresso Nacional e o governo federal.
A caducidade fez com que todas as normas legais previstas perdessem
sua validade. De acordo com o artigo 62, parágrafo 3º, da CRFB. Mas, as
cláusulas contratuais que foram alteradas com base na norma temporária se
mantiveram válidas conforme dispõe o parágrafo 11 do mesmo artigo 62 ou
se modificaram com a MP 936/2020.
O STF julgou em 2018 a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 216/200626, e decidiu que os atos, para serem válidos, devem
ser praticados dentro do período de validade da MP. Logo com o fim da MP,
nenhuma outra medida poderá ser tomada com relação ao conteúdo da mes-
ma.
Em breves linhas, foram essas as principais mudanças que vigoraram
no prazo da MP referida, mas, importa, por fim, anotar que acirrados foram
os debates acerca da insegurança jurídica por ela causada à época e que,
26
https://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:supremo.tribunal. federal;plenario:acordao;adpf:
2018-03-14;216-3937007 Acessado em 29/10/2020.

72
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

perpetuam à medida em que, não só a pandemia com os afastamentos do


trabalho permanece, mas também o fechamentos de atividades econômicas
sem quitação de direitos ou encerramento dos contratos, carreando para
Justiça do Trabalho as interpretações necessárias.
6.2 - A MP 936 /2020
Apesar de aparentemente terem conteúdos iguais, a Lei 14.020 então
originária da MP 936, tem traços distintos. Mormente pela inclusão de te-
mas e regras inexistentes na norma primitiva. De toda sorte, se faz importan-
te uma breve análise do teor e das controvérsias da MP.
A MP 936 entrou em vigor no dia 1° de abril deste ano e teve como
objetivo a criação do benefício emergencial e a previsão de que as empresas
reduzissem os salários e jornadas de trabalho ou suspendessem seus contratos
temporariamente em troca manutenção com garantia provisória do emprego,
além da criação do BEm, o benefício emergencial pago pelo Governo Federal.
Foi voz corrente desde o inicio, a dificuldade de entender alguns
pontos por ausência de dialética na redação e repetição da mesma matéria
em diversos artigos, trazendo, além do mais, insegurança jurídica. Mas, o
artigo 5°27 da referida MP estabeleceu seu objetivo., como a possibilidade de
alteração do contrato com redução de jornada e salário, suspensão do contra-
to e pagamento do BEm pelo governo federal
O benefício emergencial começou a ser pago no dia 4 de maio calcula-
do sobre o valor mensal do seguro-desemprego, como previsto no parágrafo
único e quinto do artigo citado, não se confundindo com o auxílio emergencial
pois o BEm é direcionado aos trabalhadores de carteira assinada que tiveram
seu salário ou contrato de trabalho alterados com redução de jornada e salário
ou suspensos
Na terceira seção encontra-se a previsão da proporção de redução que
poderá ser efetuado na jornada de trabalho e, consequentemente no salário
do empregado, definindo-se em três faixas assim distribuídas de 25% (vinte
e cinco por cento), 50% (cinquenta por cento) e 70% 9setenta por cento),
fixando-se, para isso, o prazo máximo noventa dias.
Há algumas peculiaridades entre cada faixa de corte. No caso do corte
de 25% é a mais branda, pois poderá ser feita por acordo individual entre

27
5°: Fica criado o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, a ser
pago nas seguintes hipóteses:
I - redução proporcional de jornada de trabalho e de salário; e
II - suspensão temporária do contrato de trabalho.
73
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

o empregador e emprego e é independente da faixa salarial do empregado,


ou seja, qualquer empregado poderá fazer o corte de 25%. Já as outras duas
faixas de corte, de 50% e 70% o acordo individual só poderá ser efetuado
caso o empregado tiver salário inferior a R$ 3.135,00 (três mil, cento e trinta
e cinco reais) ou superior a duas vezes o limite do teto da Previdência Social,
de R$ 12.202,15, valores da época.
Os trabalhadores que recebem entre R$ 3.135,00 (três mil, cento e
trinta e cinco reais) e R$ 12.202,15 (doze mil, duzentos e dois reais e quinze
centavos) só poderão ter suas jornada e salários reduzidos se houver acordo
ou convenção coletiva, ou seja, é necessária a participação do sindicato.
Na seção sequente foi estabelecida a suspensão do contrato de trabalho
que terá prazo máximo de sessenta dias, podendo ser dividido em dois
períodos de trinta dias. Tal medida poderá ser pactuada diretamente entre
o empregador e empregado por meio de um acordo individual e deverá ser
efetuado dois dias antes de entrar em vigor, conforme o artigo 8°.
O parágrafo 4° do mesmo artigo prevê a descaracterização da sus-
pensão caso o empregador mantenha as atividades de trabalho, mesmo que
parcialmente por teletrabalho, trabalho remoto ou à distância, e ainda prevê,
em seus incisos, sanções no caso de descaracterização.
No último parágrafo dessa seção foi estabelecida uma faixa para
empresas com receita bruta superior a R$ 4.800.000,00, hipótese em que,
havendo suspensão do contrato, a empresa arca com uma ajuda compensatória
mensal no valor de 40% do valor do salário de cada empregado durante a
suspensão pactuada.
O afastamento da entidade Sindical profissional das negociações foi
motivo de calorosas discussões em diversos segmentos com reação do mo-
vimento sindical, sendo levado ao STF, através da ADI 6363, cuja análise do
julgamento, bem como de todas as MPS, foi feita pela primeira autora deste
texto em seu Canal no Youtube28
6.3 - A lei 14.020/20
A então MP, no dia 06/07/2020, foi convertida na Lei 14.020 e, durante
sua passagem pelo Congresso, sofreu algumas modificações no texto origi-
nal. Manteve os pilares da MP 936, mas, trouxe extensão dos prazos, como

28
MEDEIROS. Benizete Ramos de - ANÁLISE DO JULGAMENTO DO STF na ADI 6363
s/ MP 936/2020 e participação dos Sindicatos profissionais. In https://www.youtube.com/
watch?v=_6zYkaNjZ4A. Acesso, 28.01.2021.

74
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

também ampliou alguns valores e faixas para negociações, além de inserir


outros assuntos.
Uma das principais novidades foi a possibilidade prorrogação do prazo
das medidas do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da
Renda. Originalmente na medida provisória, era de no máximo noventa dias
e a da suspensão de sessenta dias sem possibilidade de prorrogação, porém
com a nova tornou-se possível prorrogar o prazo por tempo determinado em
ato do Poder Executivo.
Outra mudança se deu em relação às faixas salariais e negociação via
sindicato. Como já dito no subcapitulo anterior, na MP 936/020, a suspensão
do contrato de trabalho e a redução de jornada e de salário podiam ser acor-
dados individualmente por empregados com salário superior a duas vezes o
limite do teto da Previdência Social = R$ 12.202,12 ou por empregados com
salário equivalentes a três salários mínimos em 2020 sendo ele R$ 3.135,00
com exceção a redução da jornada e salário em 25% que era possível a todos
os tetos salariais. Já a Lei em comento trouxe a possibilidade de empresas
com receita bruta superior a R$ 4,8 milhões em 2019 e empregados com o
salário de até R$ 2.090,00, equivalente a dois salários mínimos ou superiores
a duas vezes o limite do teto da Previdência Social, este mantido igual para
todas as empresas, poderem negociar as alterações individualmente.
Mais uma novidade trazida, foi quanto tema relacionado ao aviso pré-
vio, que segundo o artigo 23, tanto o empregador quanto o empregado podem
optar, em comum acordo, pela retratação ou melhor, a opção do cancelamento
do aviso prévio em curso. Mas, de qualquer sorte, já havia esta previsão na
CLT acerca da possibilidade de qualquer das partes se retratarem quanto ao
aviso prévio, desde que a outra parte aquiescesse.
Uma inovação foi a vedação da dispensa do empregado com deficiên-
cia, enquanto durar o estado de calamidade, conforme inciso V do artigo
17, como o aclaramento dos grupos de empregados que podem se socorrer
de tais medidas, especificando os domésticos e rurícolas, trabalhadores
em contrato de trabalho intermitente, de aprendizagem, de tempo parcial e
gestantes e adotantes. Outra ainda foi acerca do empregado que já recebe
aposentadoria, poder ter as medidas implementadas em seu contrato, desde
que o empregador assuma a ajuda compensatória mensal, conforme art. art.
9º e art. 6º, parágrafos 1º e 2°.
Ficou mantido no inciso II do art. 10° quanto à garantia provisória de
emprego pelo mesmo prazo da alteração feita. Porém há uma diferença no
que diz respeito a garantia da gestante, nos termos do inciso III do mesmo
75
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

artigo, cujo prazo somente irá iniciar após a finalização do prazo de que trata
o art. 10, II, b, ADCT, que é de cinco meses após o parto. Nessa esteira, a ga-
rantia provisória do o empregado com deficiência, (inc.V, no art. 17).
Quanto à violação da garantia provisória, o artigo 10, parágrafo 1º,
prevê o valor da indenização que o empregador deverá pagar em caso de
dispensa do empregado sem justa causa no curso da garantia provisória. Para
os empregados com jornada de trabalho e salário reduzidos entre 25% e 50%
o empregador será obrigado a indenizar em 50% do salário que o empregado
teria direito no período; no caso da dispensa do empregado com a redução ou
salario entre 50% e 70%, será devido 75% e por último, no caso do empregado
com salário e jornada reduzidos igual ou superior a 70% ou suspensão do
contrato de trabalho, arcará o empregador com 100% do salário a que teria
direito o empregado durante este tempo de garantia. Nessas hipóteses, ainda
que o empregado esteja recebendo o BEm, faz jus ao seguro desemprego. Tais
multas ou penalidades, não se aplicam às dispensas por justa causa ou pedido
de demissão.
7 - IMPACTOS SOCIAIS EXPERIMENTADOS ATÉ O MOMENTO
As MP’s vieram minimizar os reflexos da pandemia com afastamento
dos postos de trabalho que os trabalhadores e empresas estavam por vivenciar.
Porém, mesmo com essa tentativa, era iminente que o Brasil sofresse uma
recessão, como em qualquer outro lugar do mundo, o desemprego que em
fevereiro/020 atingia 11,6%29 e já era um problema para a sociedade brasilei-
ra se agravou nos meses subsequentes.
Houve nas primeiras MP’s criadas pelo presidente Jair Bolsonaro
um grande alarde negativo, principalmente a MP 927 cujo conteúdo mais
criticado foi a supressão de salários e suspensão do contrato de trabalho por
até 4 meses sem o pagamento do salário. Até então, o presidente defendia que
a suspensão do contrato sem salário como uma forma de preservar o emprego
durante a pandemia do coronavírus.
A referida MP ainda passou por julgamentos no STF. A sessão virtual
do dia 29 de abril julgou e derrubou, acompanhando o relator Marco Aurélio
Mello, sete ações diretas de inconstitucionalidade30 (ADIs) que questionavam
o texto da MP 927. O ministro Alexandre de Moraes acompanhou o relator

29
https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/03/31/desemprego-fica-em-116percent-em-
fevereiro-e-atinge-123-milhoes-diz-ibge.ghtml Acessado em 05/11/2020.
30
ADI: 6.342; 6.344; 6.346; 6.348; 6.349; 6.352; 6.354.

76
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

no voto, porém abriu uma divergência aos artigos 29 e 31, e esta divergência
ocasionou no dia 27 de maio, no plenário do STF, a suspensão de ambos os
artigos.
Após a criação de outras MP’s, era esperada a manutenção de parte
dos empregos e, apesar disso, o que não ocorreu e consequentemente, grande
impacto na economia do país. O desemprego em janeiro de 2020, quando não
existia a pandemia, estava em 11,2% e como acreditado, cresceu rápido já
em abril, chegando a 12,6%31. Mesmo com as medidas tomadas pelo governo
federal e estadual, era iminente que iriamos passar por problemas difíceis e
que a cada mês os números iriam aumentar. O desemprego chegou a mais
um número recorde no trimestre fechado em agosto, alcançando 14,3% de
desempregados, 3% a mais do que no início do mesmo ano.
Apesar do crescente número de desempregados, a divulgação do IBGE
no final do mês de setembro mostra uma estagnação nesse número, tendo
uma variação muito pequena para o final do mês anterior. O início do mês de
setembro houve uma melhora, caindo a 13,7% mas, no final do mesmo mês o
número voltou a subir e parou perto do que já tínhamos em agosto, 14,4%32.
Com tamanha recessão, diversos setores do trabalho sofreram quedas
gigantescas, em sua maioria negativamente. A indústria foi uma das mais
afetadas negativamente, em fevereiro tinha um crescimento de produção
constante de 1% e após esse mês, teve uma queda gigantesca, chegando no
mês de abril a -19,5%, voltando a crescer em maio, com maior número no
ano de 8,7% e teve uma queda constante, porém controlada, finalizando oo
mês de setembro com 2,6% de variação.
O comércio muito afetado, com a queda no mês de fevereiro, o volume
de vendas chegou a incríveis -16,7%, e voltou a crescer paralelamente a
indústria, atingindo seu maior número em maio com 12,7%, mas, caindo
posteriormente. Fechou o mês de agosto com uma variação de 3,4% de
crescimento relativo ao mês anterior.
A área de serviços começou a cair já antes das outras. No mês de
fevereiro já havia uma negativa no seu volume de serviços de 1,1% e chegou
ao seu menor número junto as outras, em abril com -11,9%, voltando porem

31
https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-05/taxa-de-desemprego-cresce-
para-126-em-abril-diz-ibge#:~:text=A%20taxa%20de%20desemprego%20no,do%20
trimestre%20encerrado%20em%20janeiro. Acessado em 09/11/2020
32
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,taxa-de-desemprego-sobe-para-14-4-na-
quarta-semana-de-setembro,70003477575 Acessado em 09/11/2020

77
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

mais rapidamente, atingindo seu maior número no ano até então com 5,3%
em junho.
O PIB brasileiro consequentemente sofreu junto com o desemprego
de todos os setores. No primeiro trimestre de 2020, com pouco tempo de
pandemia, houve um recuo de 0,3% e após alguns meses de pandemia e
quarentena chegou ao número recorde de retrocesso, alcançando negativos
11,4%33.
Em uma entrevista ao jornal Nexo, Emerson Marçal, coordenador do
Centro de Macroeconomia Aplicada da EESP-FGV ao ser perguntado sobre o
que o número do PIB do segundo trimestre diz acerca da economia:
A queda foi um pouco mais forte do que o mercado estava
esperando. Essa queda do segundo trimestre não foi tão grande,
se comparada com alguns países, principalmente europeus.
Parte disso vem dos efeitos do auxílio emergencial do governo,
que representou um volume muito grande de recursos e evitou
uma queda ainda maior (MARÇAL, 2020)

Na mesma entrevista, a professora de economia do Cedeplar-UFMG,


Débora Freire respondeu sobre o que pode se esperar daqui para a frente no
curto prazo:
Vai depender muito da ação do governo. No curto prazo, temos
ainda uma situação muito instável, de muita incerteza quanto ao
próprio vírus. Essa incerteza inibe o investimento, muito embora
tenhamos taxas de juros mais baixas (FREIRE, 2020)

Já era esperado o retrocesso nas principais áreas atingidas pela


paralização, mas, ainda importante que a sociedade cobre o governo ações
que ajudem os setores atingidos a se recuperarem, mas, o Governo federal está
muito preocupado com as eleições para presidência do Senado e da Câmara
e de olho na reeleição.
8 - CONCLUSÃO
A crise social e econômica trazida pela pandemia de 2020, veio sem
pressa de ir embora, o esforço conjunto para vencer não somente o vírus,
mas as mortes, o desemprego, os retrocessos, agravados pela crise política,
não vêm encontrando amparo no chefe do executivo nacional, que insiste
em negar os fatos e pior, retardar a implementação de ações mais eficazes e
rápidas para o Brasil vencer o quadro.
33
https://www.ibge.gov.br/indicadores Acesso em 09/11/2020.
78
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Esse negacionismo, a minimização do que chamou de “gripezinha”, a


falta de qualquer empenho na aquisição de vacinas, a propaganda contrária
à sua eficácia com atitudes e frases contrárias como “país de maricas” ou
quem toma vacina “vira jacaré” e outras formas de banalizar os fatos reais e
sobrepor a economia à saúde pública e a vida, parece que é um déjà-vu com
a pandemia do inicio do século passado da gripe espanhola.
O governo editou diversas Medidas Provisórias em caráter emergen-
cial para conter o impacto nefasto na economia e no emprego, sendo as
mais importantes as de números 927/020 e 936/020 e, a despeito disso,
não houve manutenção de todos os empregos, uma vez que alguns setores
sequer reabriram como o do entretenimento, enquanto outros, o do turismo,
começaram no terceiro semestre de 2020 a funcionarem de forma gradativa
e lenta, e voltando a recuar nesse inicio de 2021.
O desemprego em janeiro de 2020, quando não existia a pandemia,
estava estimado em 11,2% e já em abril, atingia a marca de 12,6%, e, no
trimestre fechado em agosto/020 alcançou o índice 14,4% (quatorze, quatro
por cento) de desempregados, o que não é pouco, para um país com diversos
trabalhadores autônomos e invisíveis.
A divulgação do IBGE mostra que início do mês de setembro houve
uma melhora, caindo a 13,7% mas, no final do mesmo no final do mesmo
mês uma estagnação nesse número, tendo uma variação muito pequena para
o final do mês anterior chegando próximo a 14,4%.
As MP’s e a Lei 14.020/2020, embora necessárias para o mento, têm
a marca da ausência de dialética em seu texto, da insegurança jurídica, da
violação a normas constitucionais e não foram capazes de recuperar ou manter
os postos de trabalho, tampouco alguns setores da economia funcionando.
O Brasil e o resto do mundo, entram no ano de 2021, com a sombra da
segunda onda de contaminação do vírus, da baixa imunização, de diversos
setores da economia ainda sem perspectiva de retorno, mas, com a supremacia
da ciência revelando toda a sua capacidade, seu valor, sua importância, mes-
mo contra total fata de incentivos do governo brasileiro.
A Gripe Espanhola que assolou o Brasil no início do século passado
não serviu de exemplo para o quadro atual, já que se observa cenas parecidas,
como os mais pobres com baixo acesso ao tratamento, a leitos, a moradia
com isolamento e alguns políticos e empresários ridicularizando a pandemia
enquanto os trabalhadores sofrem para trabalhar com segurança, com o
transporte público mais precário ainda.

79
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Por fim, nessa perspectiva do trabalho, o modelo remoto para os


serviços possíveis, inclusive o setor público, tem sido uma solução que, ao
que tudo indica, é uma forte tendência no futuro do trabalho e, para aqueles
cujas atividades não cabem nessa alternativa, a alternativa foi a suspensão
dos contratos e alterações para redução de jornada e salário, com garantia
provisória de emprego, um alento possível que não atinge aos que perderam
seus empregos, já que o retorno ao mercado não é promissor nesse ano de
2021que se inicia.
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84
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

A QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E OS DESAFIOS AO EXER-


CÍCIO DOS DIREITOS SINDICAIS

Cíntia Roberta da Cunha Fernandes1


Hugo Fonseca2

RESUMO : Discute-se os desafios ao exercício dos direitos sindicais enfren-


tados pelos trabalhadores sob a égide da chamada Quarta Revolução Indus-
trial, também conhecida como Indústria 4.0, que adota a inteligência artificial
e se caracteriza por um conjunto de tecnologias que permite a fusão entre
o mundo físico, digital e biológico. Para compreender a Quarta Revolução
industrial, buscou-se, inicialmente, um resgate histórico da Revolução Indus-
trial, definida em três fases anteriores, marcadas por precarização das condi-
ções de trabalho e pela necessidade de implementação de direitos trabalhistas,
que foram conquistados pela organização coletiva dos trabalhadores. Situada
historicamente, o que se verificou é que a nova forma de se trabalhar na In-
dústria 4.0 trata de uma tendência tecnológica que facilita a vida das grandes
empresas que oferecem postos de serviços via plataforma digitais, mas que
tem sedimentado uma condição progressiva de postos de serviços precários,
em especial pela ausência do reconhecimento de vínculo empregatício, esca-
moteado na ideia de “parceria”. A tese defendida é que a fragilidade das re-
lações trabalhistas na Indústria 4.0 apresenta-se como obstáculo ao exercício
dos direitos sindicais e à organização coletiva dos trabalhadores, fato que, por
sua vez, intensifica a precarização do trabalho. Por outro lado, observou-se
que, muito embora a utilização de instrumentos telemáticos tenha sofisticado
as formas de exploração do trabalho, em algumas experiências concretas a ar-
ticulação pela internet possibilitou mobilizações de trabalhadores a nível na-
cional e global com potencial real de transformação e de avanço civilizatório.
Palavras-chaves: Quarta Revolução Industrial. Indústria 4.0. Precarização
do Trabalho. Direito sindical.

1
Advogada especialista em Direito do Trabalho. Sócia do Escritório Mauro Menezes e Advo-
gados. Mestranda em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas. Integra o grupo de estudos
sobre Trabalho em Plataformas Digitais. cinta@mauromenezes.adv.br.
2
Advogado especialista em Direito Material e Processual do Trabalho. Sócio do Escritório
Mauro Menezes e Advogados. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília – UnB.
Integra o grupo de estudos sobre Trabalho em Plataformas Digitais. hugof@mauromenezes.
adv.br.

85
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

1 - INTRODUÇÃO
O avanço da tecnologia de comunicação e informação, culminou na
quarta fase da Revolução Industrial denominada Indústria 4.0, que adota a
inteligência artificial e se caracteriza por um conjunto de tecnologias que per-
mite a fusão entre o mundo físico, digital e biológico.
No cenário laborativo, verifica-se a atuação em diferentes modalidades,
como entregadores por aplicativos, transportadores de passageiros, tradução,
programação informática, atendimentos especializados, entre outras ativida-
des, uma vez que há um campo grande e diversificado de execução de ativi-
dades.
Contudo, a despeito das circunstâncias favoráveis em relação à inter-
net e expansão de processos automotivos, no tocante às relações de trabalho
potencializam-se as desigualdades sociais e o crescimento do desemprego de
caráter estrutural.
Diante dessa conjuntura, o presente artigo faz uma abordagem sobre o
contexto histórico da Revolução Industrial, compreendida em quatro fases,
todas marcadas por precarização das condições de trabalho e pela necessidade
de implementação de direitos trabalhistas.
Na atual fase da Revolução Industrial, verifica-se que, apesar da essen-
cialidade do trabalhador, não só os seus direitos, mas a sua identidade tem
sido ceifada numa era de capitalismo digital com a permissão de condições
indignas de trabalho, porquanto as empresas de aplicativos e de plataformas
digitais têm escamoteado os contratos de trabalho com a finalidade de com-
pleta supressão das garantias trabalhistas, legal e constitucionalmente asse-
guradas.
Associada a essa conjuntura fática, muitos trabalhadores estão subme-
tidos ao desamparo dos direitos sindicais, em razão de fatores como: dificul-
dade de enquadramento sindical, enfraquecimento da solidariedade entre os
trabalhadores, receio de retaliação por parte dos empregadores.
O assunto possui significativa importância, visto que, além dos prejuí-
zos aos trabalhadores e trabalhadoras, há impacto direto na sociedade, de fácil
percepção diante de inúmeros trabalhadores adoecidos, da desqualificação e
do crescente desemprego.
Desse modo, mostra-se necessário disseminar a premissa de que a mo-
dernização da tecnologia de comunicação e informação, justamente por se
tratar de uma constante evolução, devem potencializar a valorização do tra-
balho humano e não servir de retrocesso e desregulamentação dos direitos
sociais com a precarização laboral, exploração e coisificação das pessoas.
86
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

2 - CONTEXTUALIZAÇÃO DAS FASES DA REVOLUÇÃO IN-


DUSTRIAL
A compreensão da Quarta Revolução Industrial, também denominada
indústria 4.0, exige o resgate histórico da Revolução Industrial, definida em
três fases anteriores, ou seja, Primeira, Segunda e Terceira Revolução Indus-
trial, todas marcadas por precarização das condições de trabalho e pela neces-
sidade de implementação de direitos trabalhistas.
A Primeira Revolução Industrial tem sua origem entre os séculos XV e
meados do século XVIII e decorre da Revolução Comercial, período em que a
produção e a troca deixaram de ter natureza de próprio sustento e deram espa-
ço ao mercantilismo. Essa fase teve como principal característica a transição
da manufatura pela maquinofatura, principalmente com a criação da máquina
a vapor, fato que ensejou o surgimento da classe operária – também chamada
de proletariado –, que consistia na prestação de serviços mediante extensas
jornadas de trabalho e mão de obra barata, dando início a um cenário de alta
produtividade e expansão econômica, por meio do sacrifício da dignidade do
trabalhador e do valor social do trabalho.
Conforme sinaliza Gald (2019), essa transição foi designada por Karl
Marx como “composição orgânica do capital”, ou seja, a conjugação de “tra-
balho morto” (máquinas, produzidas por outros trabalhadores) com o “traba-
lho variável” (trabalho atual, vivo, prestado diretamente por operários).
Além das condições precárias de trabalho, com alto grau de periculosi-
dade, os trabalhadores estavam submetidos a uma elevada jornada de traba-
lho, que somavam 16 horas diárias. A coisificação do ser humano tornou-se
evidente: trabalhadores que não suportassem a jornada ou aqueles aciden-
tados eram prontamente substituídos sem qualquer amparo. Por outro lado,
mulheres e crianças, em condição de igualdade de trabalho, recebiam paga-
mentos menores do que os homens.
Arruda (2019) elucida que a Primeira Revolução Industrial rompeu os
paradigmas da produção, consolidando os aspectos basilares do capitalismo
industrial, à medida que proporcionou sensíveis aumentos no retorno de ca-
pital investido nas indústrias, às custas da exploração do trabalho humano, o
qual perde valor de mercado ante a substituição da mão de obra humana pelas
máquinas.
Esse cenário deflagrou dois grandes movimentos dos trabalhadores em
prol de melhores salários e da redução de jornada de trabalho, quais sejam:
ludismo e cartismo. O ludismo defendia ações mais radicais e diretas, e por
isso foi notabilizado pela destruição do maquinário como forma de protesto.

87
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

O cartismo, por outro lado, tratava-se de uma mobilização mais reformista.


Contudo, ambos tinham finalidades semelhantes quanto às melhores condi-
ções de trabalho. As referidas formas de protesto, associadas à paralisação
dos trabalhadores, resultaram em tímidas melhorias, a exemplo da redução da
jornada de trabalho para 10 horas diárias.
Os avanços de novas técnicas industriais conduziram à segunda fase da
Revolução Industrial, com início em meados do século XIX e extensão até
a primeira metade do século XX, no período da Segunda Guerra Mundial.
Evidencia-se, nessa fase, o uso da eletricidade e, principalmente, do petróleo
em substituição ao vapor. Com a intensificação do industrialismo, iniciou-se
um processo de urbanização, com demanda da população do campo para as
cidades.
Singer (1999) destaca que a Segunda Revolução Industrial também ge-
rou inúmeros novos produtos de consumo, que têm prolongado e enriquecido
a vida humana. O nível de consumo cresceu mais do que a produtividade do
trabalho, de modo que os setores novos da economia absorveram mais força
de trabalho do que a liberada por setores antigos renovados. Como aqueles
que ocuparam os novos empregos gerados pela tecnologia nem sempre foram
os mesmos expulsos dos empregos eliminados pela tecnologia, as calamida-
des sociais provocadas pelo desemprego tecnológico não devem ser menos-
prezadas.
A despeito do surgimento de novas indústrias, houve o aumento signi-
ficativo do desemprego, principalmente considerando a substituição do tra-
balho humano por máquinas, o que resultou no empobrecimento da classe
trabalhadora.
Embora os trabalhadores tivessem conquistado alguns direitos traba-
lhistas, preponderava o trabalho degradante com validação de um grande pa-
radoxo, uma vez que, enquanto o mundo evoluía em questões tecnológicas
e no que diz respeito ao conforto humano, os trabalhadores suportavam ex-
tensas jornadas, míseros salários, em franca desigualdade social. O fordismo
e o taylorismo – novos movimentos dos trabalhadores –, também iniciaram
durante a Segunda Revolução Industrial, revolucionado a forma de trabalho.
Os dois movimentos possuem como metodologia o andamento das linhas
de produção nas indústrias, porém, enquanto o fordismo foca na produção
em massa, o toyotista visa a produção sob demanda. Ambos resultaram na
precarização de direitos trabalhistas e das condições de trabalho.
Após a Segunda Guerra Mundial, a partir de 1950, surge a terceira fase
da Revolução Industrial, também considerada Revolução Digital, com a evo-
lução da tecnologia eletromecânica para a eletrônica digital, com expressiva
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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

ascensão nas áreas da genética, robótica, informática, telecomunicações, ele-


trônica e, consequentemente, promovendo a globalização. Esse período cul-
minou em criações importantes, como telefonia móvel, foguete de longo al-
cance, de robôs usados nas indústrias, além da utilização da energia atômica.
Singer (1999) destaca que a Terceira Revolução Industrial traz consigo
acelerado aumento da produtividade do trabalho tanto na indústria como em
numerosos serviços, sobretudo dos que recolhem, processam, transmitem e
arquivam informações.
A despeito dos cenários favoráveis em relação à internet e expansão de
processos automotivos, no contexto laborativo potencializam-se as desigual-
dades sociais e o crescimento do desemprego de caráter estrutural.
Ao lado de toda a expropriação de riqueza e da extrema marginalização
de populações inteiras, sob a “soberania” de Estados-nação fracos, quase-Es-
tados, tal como explica Gald (2019), prospera o avanço tecnológico capita-
neado por Estados-nação ricos, fortes e portentosos. O ápice desse processo
de desenvolvimento tecnológico conduz ao início daquilo que convencionou-
-se denominar Indústria 4.0, marcada pela ampliação dos processos de robo-
tização.
3 - A QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL - A NOVA FORMA
DE TRABALHAR A PARTIR DA INDÚSTRIA 4.0
A Quarta Revolução Industrial, também conhecida como Indústria 4.0,
adota a inteligência artificial e se caracteriza por um conjunto de tecnologias
que permite a fusão entre o mundo físico, digital e biológico. Esse marco
revolucionário, denominado Quarta Revolução Industrial pelo alemão Klaus
Schwab, em 2016, gera um mundo no qual os sistemas de fabricação virtuais
e físicos cooperam entre si de uma maneira flexível, a nível global.
No cenário laborativo, a essa nova forma de trabalho é dado o nome
crowdworking ou gig work, com atuação em diferentes modalidades, como
entregadores por aplicativos, transportadores de passageiros, tradução, pro-
gramação informática, atendimentos especializados, entre outras atividades,
uma vez que há um campo grande e diversificado de atuações.
A relação de trabalho que se estabelece em uma plataforma digital pode
ser online: realizada 100% dentro da plataforma, com solicitação e execução
e entrega; também pode ser offline: a solicitação se inicia dentro da platafor-
ma, mas a execução e entrega se realiza fora dele mediante o contato físico
entre as partes. Desse modo, numa plataforma digital é estabelecida uma rela-
ção triangular entre o trabalhador, o consumidor final e a plataforma.

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

De fato, trata-se de uma tendência tecnológica e facilita a vida dos con-


sumidores e das empresas de plataforma digitais. Contudo, quanto ao traba-
lhador, essa relação de trabalho mediada por aplicativos tem sedimentado
uma condição progressiva de empregos precários.
E sobre essa perspectiva de direitos trabalhistas, trava-se uma discussão
sobre como esses trabalhadores devem ser tratados, ou seja, como autônomo,
empreendedor, colaborador, parceiro, enfim, verifica-se uma série de nomen-
claturas adotadas como forma de escamotear a verdadeira relação de trabalho
que se consolida na prática, e assim ceifar direitos mínimos, constitucional-
mente garantidos, a exemplo de verbas trabalhistas e da assistência sindical.
Em grande parte dos casos, conquanto o trabalhador seja rotulado de
autônomo ou de parceiro, constata-se a presença de elementos caracteriza-
dores da relação de emprego, como a subordinação e a pessoalidade, além
da evidência do poder fiscalizatório e disciplinar do empregador por meio de
algoritmo.
Com relação a esse exemplo, cumpre mencionar os motoristas vincula-
dos ao aplicativo da empresa Uber S.A. A multinacional, que transformou a
dinâmica do transporte urbano mundo afora, oferece a plataforma digital para
conectar motoristas a pessoas que precisam de locomoção, residindo aí sua
fonte de lucro.
Para entender esse processo, Josiane Caldas Kramer (2017) explica
que, assim como no início dos anos 90, do advento do ideal neoliberal, fo-
ram se propagando concepções de empoderamento através de uma ideal de
empreendedorismo, nesta 4ª Revolução Industrial, com a individualização
e universalização do acesso às tecnologias, foram se abrindo iniciativas de
compartilhamento, ou seja, iniciativas que explorassem essa nova forma de
organização social descentralizada e cooperativa que, a um primeiro olhar,
impossibilita um controle único das atividades e dos serviços.
A chamada Economia do Compartilhamento significa
[...] uma forma de cooperação, aparecendo no cenário econômi-
co mundial como uma ‘alternativa’, uma nova forma de estabe-
lecer relações econômicas, na qual o acesso a bens e serviços é
mais importante do que a posse, e a transformação do consumo
a partir do uso eficiente do que é produzido ocorre com o uso
da tecnologia: Em vez de ter um automóvel, melhor usar um
aplicativo para localizar um, e, usar um veículo somente quando
precisar; em vez de investir em uma casa na praia, é melhor
alugar quartos ociosos nas casas de outras pessoas. (KRAMER,
2017, p. 54)

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Contudo, apesar do marketing, o trabalho em plataformas digitais co-


mo o que é oferecido pela Uber representa uma utilização camuflada do com-
partilhamento. Isso porque não há como se falar em compartilhamento, em
parceria, ao se observar que a empresa desempenha um papel fundamental
quando se trata da definição dos preços das corridas, adaptando-os de manei-
ra a beneficiar cada vez mais sua estratégia de negócios. A tarifa a ser paga
pelo motorista à empresa é estabelecida, de forma unilateral e através de um
mecanismo baseado em oferta e demanda, para atender muito mais aos inte-
resses da empresa do que daqueles em que insiste em chamar de “parceiros”
(KRAMER, 2019).
Em outras palavras, o preço das corridas é definido unilateralmente pela
empresa, de modo que, caso o motorista queira abaixar o preço, deve retirar
unicamente de seu percentual. Ou seja, não há qualquer sinal de parceria.
Na verdade, a multinacional encontra uma mão de obra totalmente des-
protegida e que assume todos os riscos da atividade econômica, haja vista que
os veículos, os celulares e os provedores de internet são custeados pelo pró-
prio motorista, que também não conta com seguro de prevenção de acidentes,
seguro de vida, plano de saúde, ou alguma outra garantia contra os riscos do
trabalho.
Não bastasse, conforme relatos de motoristas, a empresa detém inú-
meros mecanismos de controle do trabalho realizado, sobretudo para obter a
disponibilidade máxima dos trabalhadores às necessidades dos usuários que
ela atende.
Dentre os mecanismos de controle e organização, podem ser relaciona-
dos: a indicação de metas semanais de corridas a serem realizadas, distribui-
ção de incentivos financeiros nas hipóteses de os motoristas superarem deter-
minadas metas, determinação de um limite de recusa de viagens solicitadas
pelos usuários deste meio de transporte – tudo sob pena de ameaças e efetivo
corte das contas dos motoristas, isto é, sumário desligamento.
E não é só. Talvez o dispositivo mais emblemático seja o fato de o
aplicativo criar um sistema de pontuação, em que o motorista é avaliado pelo
passageiro. O sistema de pontuações é um fator de aumento da precarização
deste trabalho, tendo em vista que o motorista, reduzido a uma média aritmé-
tica das impressões dos usuários, é constantemente vigiado e pode ser desli-
gado da empresa caso algum passageiro desgoste do serviço prestado.
Com isso, se observa que a empresa define o valor a ser cobrado em
cada corrida, exige o cumprimento de metas periódicas, institui sistema de
avaliação do serviço prestado e, ainda, detém o poder potestativo de desliga-

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

mento do trabalhador a qualquer momento.


Assim, torna-se indiscutível que a ideia de que esses trabalhadores são
meros “parceiros”, é juridicamente equivocada. A própria Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT), em seu artigo 6º, parágrafo único, reconhece que
“os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se
equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de
comando, controle e supervisão do trabalho alheio”. 
Mesmo assim, a justiça do trabalho brasileira tem tido dificuldades em
lidar com essa nova modalidade de trabalho. Ainda não se consolidou na ju-
risprudência pátria a existência, ou não, de vínculo de emprego de trabalha-
dores como os da Uber. No entanto, algumas decisões judiciais têm entendido
que o trabalho prestado é autônomo e que, portanto, a empresa não seria igua-
lada à posição de empregadora.
No primeiro julgamento da temática no Tribunal Superior do Trabalho,
a 5ª Turma da Corte Superior Trabalhista entendeu pelo não reconhecimento
do vínculo de emprego considerando:
[...] a ampla flexibilidade do autor em determinar sua rotina,
seus horários de trabalho, locais que deseja atuar e quantidade
de clientes que pretende atender por dia. Tal autodeterminação é
incompatível com o reconhecimento da relação de emprego, que
tem como pressuposto básico a subordinação, elemento no qual
se funda a distinção com o trabalho autônomo [...]
Dentre os termos e condições relacionados aos referidos servi-
ços, está a reserva ao motorista do equivalente a 75% a 80%
do valor pago pelo usuário, conforme consignado pelo e. TRT.
O referido percentual revela-se superior ao que esta Corte vem
admitindo como bastante à caracterização da relação de parceria
entre os envolvidos, uma vez que o rateio do valor do serviço em
alto percentual a uma das partes evidencia vantagem remunera-
tória não condizente com o liame de emprego3” (BRASÍLIA,
2020)

De fato, empresas como a Uber se vendem no mercado dessa forma, in-


vestindo no marketing de que os motoristas trabalham como e quando querem
e de que as empresas, tão somente, fornecem o aplicativo. Contudo, conforme
se demonstrou, a realidade é outra.
Na verdade, o trabalho ofertado em plataformas digitais acabou por re-
presentar uma severa sofisticação das formas de exploração do trabalho hu-
3
(RR-1000123-89.2017.5.02.0038, 5ª Turma, Relator Ministro Breno Medeiros, DEJT
07/02/2020).

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

mano. Cabe registrar que a experiência da Uber é de tal maneira relevante,


que esta forma camuflada de “compartilhamento”, que tem se alastrado por
diversos outros setores da economia, também é chamada de uberização do
trabalho.
Tal como esse exemplo, segundo FRAGA (2020), já são realidade
plataformas de cadastramento de professores em aplicativos, para servir ao
processo contínuo de substituição tanto na educação básica quanto superior.
A iniciativa é também chamada de uberização do trabalho docente, e a pers-
pectiva é que a precarização via uberização alcance, cada vez mais, outras
categorias profissionais.
Assim, consoante sinaliza Oliveira (2019), o velho dilema trabalhista
fundante retorna como tragédia: milhões de trabalhadores vendem sua força
de trabalho, inclusive em extensas jornadas, em troca de parca remuneração,
enquanto milhões são apropriados pelos titulares de plataformas digitais, tudo
sob a forma jurídica de “parceria” numa relação de trabalho autônomo.
Nesse aspecto, a despeito das tentativas de catalogar o empregado co-
mo empreendedor, parceiro, autônomo, ou qualquer outra nomenclatura que
absolva as empresas de direitos celetistas, é importante destacar que a con-
dição de trabalhador por si só enseja direitos que não têm sido respeitados, a
exemplo do meio ambiente de trabalho e direitos sindicais.
São muitas as circunstâncias que envolvem o trabalho em plataformas
digitais e atrai especial atenção, tendo em vista a retomada de um ritmo de
trabalho semelhante à primeira fase da Revolução Industrial, uma vez que
a intenção empresarial reside na desregulamentação de direitos trabalhistas,
de modo a manter uma relação entre trabalhador e tomador de serviços, sem
qualquer intervenção estatal.
Contudo, a condição de vulnerabilidade do trabalhador não permite que
a relação seja isonômica, mormente considerando a situação de dependência
do trabalhador para o fim de sobrevivência. Portanto, essa nova tendência
viabiliza a mesma exploração dos séculos passados, mediante jornadas de
trabalho extenuantes, baixos salários, desamparo legal e comprometimento
das normas de segurança e saúde do trabalho.
Essas inúmeras terminologias utilizadas para definir o trabalhador, que
exerce suas atividades em plataformas digitais, resultam numa gama de pro-
blemas de ordem não só trabalhista, como também econômica. Num primeiro
momento, há uma alta lucratividade para as empresas, mediante a exploração
da mão de obra, porém as consequências desaguam na sociedade, de fácil
percepção diante de inúmeros trabalhadores adoecidos, da desqualificação e
do crescente desemprego.
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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

A respeito do limbo em que o trabalhador em plataformas digitais foi


inserido, Figueiras e Cavalcante (2020) explicam que há três diferentes abor-
dagens. A primeira, a mais radical, afirma que o trabalho por conta própria
está aumentando e que há uma tendência para que ele substitua o emprego
assalariado
A segunda abordagem afirma que estão crescendo novas formas de tra-
balho que não se enquadram nas formas de trabalho assalariado, nem de tra-
balho por conta própria, constituindo o que é chamado de “zona cinzenta” ou
“terceira via”.
A terceira é apresentada por Guy Standing (2011), quando fundamenta
seu conceito de “precariado”: uma nova classe social em crescimento, en-
quanto os assalariados e o proletariado encolhem em todo o mundo.
Os autores ainda destacam que, para Standing, estamos experimentan-
do uma revolução nas formas de trabalho, que inviabiliza a regulação anterior
para proteger os trabalhadores e reduzir as desigualdades. O tipo de trabalho
que cresce mais rápido é o que ele chama de “trabalho em multidão” realizado
pelos responsáveis e que fazem parte do precariado atuando em atividades
sem direitos trabalhistas, estabilidade ou garantia de renda.
4 - A COLETIVIDADE DOS TRABALHADORES AMEAÇADA
POR ALGORITMOS
Apesar da essencialidade do trabalhador, não só os seus direitos, mas
a sua identidade tem sido ceifada numa era de capitalismo digital com a per-
missão de condições indignas de trabalho. Associada a essa conjuntura fática,
muitos trabalhadores estão submetidos ao desamparo dos direitos sindicais,
em razão de fatores como: dificuldade de enquadramento sindical, enfraque-
cimento da solidariedade entre os trabalhadores, receio de retaliação por parte
dos empregadores.
Conforme já se demonstrou, os trabalhadores plataformizados são tra-
tados como parceiros, autônomos, empreendedores, e essa circunstância difi-
culta a sua organização coletiva, haja vista que o sentimento de pertencimento
a uma coletividade é um dos primeiros passos para a organização sindical.
Como os trabalhadores se verão como sindicalizáveis se nem sequer são vis-
tos como categoria profissional?
Estes trabalhadores são colocados de forma isolada em seus celulares e
computadores, não possuem ferramentas de comunicação entre si, não se co-
nhecem e, ainda, contam com um rígido controle de jornada. Para além disso,
possuem um vínculo de trabalho extremamente precário, tendo em vista que

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

podem ser desligados da empresa a qualquer momento, sem nenhuma justifi-


cativa e não contam com direitos sindicais dos demais empregados.
Portanto, não possuem a estabilidade dos dirigentes sindicais (art. 543,
da CLT), a contribuição sindical, dentre outros, que lhes permitiriam o pleno
gozo da autonomia e liberdade sindicais previstas no artigo 8º, da Consti-
tuição da República. A ausência de uma representação institucional coletiva
diminui o poder de negociação da categoria e, por consequência, intensifica a
precarização do trabalho.
As dificuldades enfrentadas ameaçam o próprio regime democrático,
uma vez que os sindicatos são essenciais para a democracia. A esse respeito,
Maurício Godinho Delgado (2011), com acuidade, acentua que o Direito Co-
letivo do Trabalho, no âmbito social, é um dos mais relevantes instrumentos
de democratização de poder existente nas modernas sociedades democráticas.
Não é possível subsistir uma relação de igualdade entre empregado e
empregador, uma vez que este é um ser coletivo por natureza, ao qual o em-
pregado está submetido. Destarte, os sindicatos exercem papel fundamental
para equilibrar esse desnível, porquanto viabiliza uma relação em patamares
semelhantes, isto é, entre sujeitos coletivos, em consonâncias com os princí-
pios de uma democracia.
De Stefano (2016) pondera que a organização coletiva dos trabalha-
dores é essencial para que o trabalho em plataformas digitais não ocorra em
condições precárias, e para o aumento da conscientização dos trabalhadores
sobre os seus direitos.
Não é de agora que os sindicatos têm enfrentado desafios em razão da
evolução tecnológica, das transformações quanto à forma de trabalho e das
novas modalidades laborativas. Esse panorama é evidenciado nas palavras de
Rodrigues Martins (1998) que, há duas décadas, diante do cenário de globali-
zação, deixaram registrado: a diversificação de funções, causada pelas muta-
ções tecnológicas, que leva à fragmentação dos interesses dos trabalhadores,
dificulta a unificação das demandas e diminui a coesão e a solidariedade.
Desse modo, os direitos coletivos são prejudicados diante da dispersão
dos trabalhadores em diversas unidades de produção, às vezes espalhadas
até por países diferentes; da maior mobilidade do capital internacional;
da redução da dimensão das unidades de fabricação, da terceirização e do
aumento da produção em pequenas empresas, que dificultam a aglutinação
dos trabalhadores de mesma categoria; da tendência a acordos por empresas e
locais de fabricação; da flexibilização da produção e das normas que regiam
as tarefas, hierarquias e carreiras dos empregados; da maior heterogeneidade
da força de trabalho, em virtude do surgimento de novas profissões.
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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Nascimento (2009) aponta que o trabalho autônomo, informal e pre-


cário gerou segmentos cada vez maiores de pessoas que não se socorrem da
representação sindical, fato que demonstra a natureza crônica dos problemas
sindicais enfrentados em razão das evoluções tecnológicas.
Na atual crise, além da retomada de problemas vivenciados desde a
Revolução Industrial, sedimentaram-se novos obstáculos à coletividade dos
trabalhadores. As dificuldades já citadas, relacionadas ao enquadramento sin-
dical, à solidariedade, ao receio de retaliação, são potencializadas com a fa-
cilidade que as empresas possuem para extinguirem as relações de trabalho
mediante o descadastramento do trabalhador, ou desativação. Além disso, as
plataformas e os aplicativos viabilizam o monitoramento pelo empregador,
fato que desencoraja os trabalhadores a reivindicarem seus direitos de forma
coletiva.
Contudo, se as dificuldades são grandes, ainda mais necessário se faz
ressaltar a existência de algumas iniciativas de trabalhadores de plataformas
digitais, que visam a organização coletiva e a luta por melhores condições de
trabalho.
Em meio à pandemia provocada pela Covid-19, os serviços de entrega
de alimentos e outras mercadorias, muitos deles gerenciados por plataformas
digitais, foram alçados à condição de essencial para a sociedade. Se este fato,
por um lado, escancarou a importância dessa nova modalidade de trabalho
para a dinâmica dos grandes centros urbanos, por outro lado, escancarou a
fragilidade desses trabalhadores que, enquanto prestavam um serviço essen-
cial, não obtinham nenhuma medida de proteção financiada pelas empresas
de aplicativo.
A indignação se alastrou pelas ruas do Brasil, até que os motoristas e
entregadores vinculados a plataformas digitais organizaram uma greve na-
cional em 01/07/2020, nomeada de Breque dos Apps. Nessa ocasião, os tra-
balhadores convocaram a sociedade a boicotar os aplicativos por um dia em
forma de apoio às suas demandas: a adoção de medidas de proteção ao contá-
gio do Covid-19, a concessão de auxílio alimentação, pagamento de plano de
saúde e seguro de prevenção de acidentes, aumento da remuneração, fim dos
desligamentos unilaterais, dentre outros.
A greve teve um grande impacto na sociedade brasileira e, principal-
mente, nos trabalhadores, que puderam se enxergar como categoria profissio-
nal. Após essa paralisação, várias outras mobilizações surgiram, razão pela
qual o Breque dos Apps pode ser considerado um marco histórico nesta linha
do tempo da Revolução Industrial e da Organização do Trabalho.

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

As mobilizações surgiram espontaneamente, por meio da internet. A


mesma tecnologia que isola os trabalhadores possibilitou a sua interação re-
mota, a organização coletiva sem qualquer ingerência ou fiscalização por par-
te das empresas, permitindo, ainda, o apoio da sociedade. Isso tudo lhes deu
engajamento às denúncias e à divulgação das suas bandeiras de luta.
E mais: só a internet tem o potencial de ampliar a organização dos tra-
balhadores chegando a um nível internacional. Sobre isso, deve-se mencionar
que menos de um mês após a criação do sindicato Alphabet Workers Union
(AWU) – originado por trabalhadores do Google dos Estados Unidos e Cana-
dá –, funcionários do Google espalhados pelo mundo anunciaram a formação
de uma nova aliança sindical global: a Alpha Global.
De acordo com Shimabukuro (2021), para o site Olhar Digital, o Sin-
dicato Global abordará o tratamento de moderadores de conteúdos em certos
países, lutará pelos direitos dos funcionários da Alphabet e denunciará casos
de trabalhadores sendo forçados a assinar acordos de sigilo. Por sua vez, de
acordo com Zaruvni (2021) o Sindicato Global será, ainda, afiliado à UNB
Global Union: uma federação de sindicatos que representa 20 milhões de pes-
soas no mundo todo e que, em 2020, ajudou a organizar a campanha “Make
Amazon Pay”, uma greve internacional de funcionários da Amazon durante
a Black Friday.
A organização desses trabalhadores vinculados a empresas globais de
tecnologia é um recado importante. Se o modus operandi desse grande con-
glomerado é atuar a partir da desregulamentação pelos governos, o compar-
tilhamento de informações entre os trabalhadores auxiliará na prevenção às
violações e nas estratégias de enfrentamento aos abusos de poder.
Diante de todo esse contexto, é importante se pontuar que, em momento
algum, deve-se negar a tecnologia, o avanço da automação, das ferramentas
telemáticas de comunicação e até de oferecimento de serviços. No entanto, a
sociedade precisa estar atenta à instrumentalização das ferramentas tecnoló-
gicas como forma de retrocesso dos direitos sociais, dentre eles o direito ao
trabalho.
Conforme já se demonstrou, a organização sindical é fundamental para
a democracia e para o avanço civilizatório. Se algumas condições de trabalho
não são mais permitidas é porque o enfrentamento da classe trabalhadora foi
capaz de reduzir o poder do capital. A aposta de agora é que a inclusão digital
possibilite o diálogo e a organização contra a precarização promovida pelo
trabalho em plataformas digitais, onde a tecnologia seja instrumento para
emancipação da classe trabalhadora.

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
As Revoluções Industriais evidenciam uma gradual e constante evolu-
ção das indústrias e de diferentes formas de tecnologia ao mesmo passo que
representa exacerbada exploração da força de trabalho.
Diante da precarização das condições laborativas e do tratamento desu-
mano dispensado aos trabalhadores e trabalhadoras, a união do proletariado
foi fundamental para a implementação de limites e de direitos, de modo que
sem a força coletiva o trabalho estaria relegado à escravidão.
Os direitos trabalhistas conquistados ao longo das fases da Revolução
Industrial, contudo, têm sido submetidos ao retrocesso, tendo em vista a des-
regulamentação de direitos e diante das novas modalidades de trabalho, com
aumento considerável de trabalhadores plataformizados, os quais são consi-
derados autônomos ou até mesmo empreendedores como forma de escamo-
tear o vínculo de emprego existente. O limbo que esses trabalhadores são
submetidos constitui óbices ao reconhecimento de garantias trabalhistas, a
exemplo dos consectários legais e do exercício de direitos sindicais.
Diante disso, a Indústria 4.0 representa um avanço da tecnologia de
comunicação, porém segue em descompasso com a necessária evolução de
direitos trabalhistas, uma vez que muitos trabalhadores precisam se vincu-
lar às plataformas digitais informalmente, submetidos a condições precárias.
Além das questões relacionadas à nomenclatura do trabalho exercido e às cir-
cunstâncias de labor, esse cenário desafia outros direitos fundamentais, como
o enquadramento e a assistência sindical, prejudicados atualmente.
Contudo, as mesmas ferramentas que têm desafiado a classe trabalha-
dora, podem ser utilizadas como forma de organização coletiva e de luta por
melhores condições de trabalho. Dessarte, não se nega a tecnologia e o avan-
ço da automação, das ferramentas telemáticas de comunicação e até de ofe-
recimento de serviços, mas reivindica-se a atenção a respeito da instrumenta-
lização das ferramentas tecnológicas como forma de retrocesso dos direitos
sociais.
A modernização da tecnologia de comunicação e informação, justamen-
te por se tratar de uma constante evolução, devem potencializar a valorização
do trabalho humano e não servir de retrocesso e desregulamentação dos direi-
tos sociais com a precarização laboral, exploração e coisificação das pessoas.

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

A REGULAÇÃO DO TRABALHO EM PLATAFORMAS DIGITAIS

Antonio Escosteguy Castro1

RESUMO: Trata o presente artigo da apresentação das razões e fun-


damentos, teóricos, jurídicos e históricos, que justificam a decisão de, para
a regulamentação do trabalho em aplicativos de plataformas digitais de
transporte de passageiros e mercadorias, optar-se, no PL 4172/2020, por criar
um novo tipo de contrato de trabalho, que açambarque as proteções sociais
constantes da Constituição Federal e da ordem jurídica internacional.
Palavras-chaves: tecnologia; emprego; plataformas digitais; contrato de
trabalho.

1
Formado em Direito pela UFRGS em 1981, assessor de entidades sindicais, membro
do Coletivo Jurídico da CUT/RS, diretor da AGETRA-Associação Gaúcha de Advogados
Trabalhistas  e autor do livro Trabalho,Tecnologia e Globalização..

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

1 - INTRODUÇÃO
No Brasil temos verificado, já há alguns anos, altas e crescentes taxas
de desemprego, que se elevaram ainda mais com a pandemia do coronavírus.
De 6,9% no trimestre jul/set de 2014, o desemprego passou para 11,8% no
mesmo trimestre de 2019 e com a crise advinda da COVID 19 saltou para
14,6% em 2020. Este período de avanço do desemprego foi simultâneo à
chegada no país das plataformas digitais de transporte de passageiros e de
mercadorias. Estas empresas se beneficiaram diretamente do aprofundamento
da crise econômica, credenciando milhões de pessoas a trabalhar em seus
aplicativos, sem lhes assegurar quaisquer direitos. Sem encontrar emprego no
mercado formal, para muitos a única alternativa restante para obter alguma
renda era a Uber, Ifood e congêneres.
A pandemia do coronavírus, agravando a crise econômica brasileira
e ampliando o desemprego, jogou um contingente ainda maior de pessoas
a buscar o trabalho nos aplicativos, levando a uma significativa queda do
rendimento por pessoa. Matéria do jornal Folha de São Paulo em fins de
2020 apontava que 55% dos entregadores tiveram redução de rendimentos no
período da pandemia e porcentagem semelhante trabalhava mais de 8 horas
por dia para auferir um valor mínimo (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020). Isto
certamente se deveu à desenfreada entrada de novos trabalhadores num setor
que não tem qualquer regulação e que não garante quaisquer direitos.
A situação foi se tornando cada vez mais grave, levando à mobilização
e a uma pioneira greve dos trabalhadores por aplicativos em 1º de julho de
2020, conhecida como o “ breque dos apps”. O processo de debate deflagrado
por esta greve, que foi ampla, nacional e razoavelmente bem sucedida (e
seguida por diversos outros movimentos, nacionais ou locais), trouxe o tema
da regulação do trabalho nas plataformas digitais para o centro do palco
político.
Diferentemente de outros países, como a Espanha, onde em setembro
de 2020 a Suprema Corte reconheceu a natureza do contrato de um entregador
da empresa Glovo como sendo vínculo empregatício2, o Poder Judiciário
brasileiro tem se mostrado, particularmente em seus tribunais superiores ,
avesso a tal reconhecimento. Até o atual momento, a maior parte das decisões
do TST3 e mesmo do STJ sobre o tema não reconhecem o vínculo de empre-
go e a natureza trabalhista da relação havida entre motoristas, entregadores
2
Para mais informações, ilustra-se com a presente notícia: www.uol.com.br/tilt/noticias/
reuters/2020/09/23/.
3
Por exemplo, RR 1000123-89.2017.5.04.0038, 5ª T, 23/02/21.

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e as plataformas. Com o evidente processo de conservadorização das cortes


superiores no governo Bolsonaro , nada indica que esta tendência se altere nos
próximos anos. O Judiciário não será a arena onde conquistaremos os direitos
dos trabalhadores em aplicativos. Ademais, o recente exemplo da Califórnia,
onde uma decisão favorável do Judiciário foi superada pela aprovação em
plebiscito (após uma milionária campanha das plataformas) da Resolução 224
que chancela as pretensões das empresas, faz necessário que se debata o tema
no Legislativo.
Como caixa de ressonância da política no país, o Congresso Nacional
repercutiu o debate sobre os trabalhadores em aplicativos, e já há mais de
60 projetos de lei protocolados nas duas câmaras legislativas sobre o tema.
Não restem dúvidas de que será no Congresso Nacional, sob intenso debate
político, que teremos de estabelecer a regulação deste trabalho e deste setor
econômico. Um destes projetos de lei é o PL 4172/20205, do Deputado
Henrique Fontana (PT/RS), e o escritório de advocacia ao qual pertence o
autor deste artigo colaborou na sua elaboração. O presente artigo se destina
a apresentar as justificativas pelas quais optou-se, no PL 4172/20, a criar um
novo tipo de contrato de trabalho em nosso ordenamento jurídico, como a
melhor forma de regular o trabalho nas plataformas digitais. O exame em si
do PL fica para outra ocasião...
2 - O TAYLORISMO/FORDISMO E O CONTRATO DE EMPREGO
Após a Segunda Guerra Mundial consolida-se o que se convencionou
chamar de “modelo de desenvolvimento fordista”, combinando modos de
regulação monopolista com regime de acumulação intensiva de capital
(FARIA, WINKLER, 1994). A regulação estatal passou a ser fundamental
naquele período, e o Estado tornou-se o responsável pelo desempenho
macroeconômico da sociedade. Inaugurava-se uma era em que se aceitava a
intervenção do Estado não apenas no curto prazo, no cotidiano dos negócios,
mas também como coordenador (e ator ) de intervenções de longo prazo,
visando a manter e a ampliar o crescimento econômico (FIORI, 1996).
A esse período corresponde um paradigma tecnológico herdado da
Segunda Revolução Industrial, combinado com um modelo de organização
da produção dito taylorista/fordista. É o período áureo da sociedade
4
Sobre o tema ver: https://exame.com/tecnologia/uber-e-lyft-criam-plano-com-beneficios-
para-motoristas-e-entregadores/#:~:text=Uber%20e%20Lyft%20informaram%20
que,recebem%20apenas%20o%20primeiro%20benef%C3%ADcio.
5
Para ver a íntegra do projeto, acessar: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichade
tramitacao?idProposicao=2259942.

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

industrial de massas, e tem como característica a criação de uma estrutura


ocupacional bastante homogênea, cujo rompimento será, por sua vez, pleno
de consequências, como se verá mais adiante.
Esse período se caracteriza pela produção em massa de produtos
homogêneos, padronizados. Os produtos que melhor simbolizam esse tempo
são os bens de consumo duráveis, como eletrodomésticos e automóveis,
fabricados exatamente iguais em longas e tediosas linhas de montagem
Frederick Winslow Taylor, um ex-operário norte-americano, é o pai
da gerência científica do trabalho. Esta foi um produto emblemático de seu
tempo, a virada do século XIX para o XX, época da afirmação industrial
dos Estados Unidos. Observando e estudando os tempos e os movimentos
de cada operação no processo de trabalho, Taylor desenvolveu uma teoria
destinada a obter a máxima produtividade e eficiência. E a regra de ouro da
teoria era liquidar completamente com a autonomia e a iniciativa do operário
no processo de trabalho. Cada tarefa deveria ser detalhadamente descrita e
previamente comunicada ao obreiro, para que este não tivesse que tomar
nenhuma decisão no curso de seu trabalho. Todos os seus movimentos, todos
os seus tempos, deveriam ser rigidamente controlados. Disciplina e hierarquia
são pilares essenciais do taylorismo e o poder do capitalista, absoluto. A
divisão do trabalho atinge seu paroxismo: haverá de se separar completa e
totalmente a concepção e a gerência da execução do trabalho. O trabalho
intelectual deve comandar o processo, e o trabalho manual, operá-lo.
Henry Ford, não por acaso outro norte-americano da mesma época ,
foi responsável por importantes desdobramentos nas teses de Taylor, com a
introdução da linha de montagem. Estabelecia-se uma linha, um sistema de
máquinas, desenvolvidas para fazer as tarefas mais especializadas e simples
possíveis, que pudessem ser operadas por obreiros de baixa qualificação,
e, portanto, de baixa remuneração. Buscava-se a completa integração do
operário na tarefa específica e individualizada que viria a fazer, que deveria,
igualmente, ser a mais simples e repetitiva possível. Não mais se “controlava”
o tempo; este agora era imposto ao trabalhador pelo ritmo da esteira...
É verdade que dentro do parâmetro tecnológico então predominante,
na esfera da chamada automação dedicada ou automação de base eletromecâ-
nica, a organização de trabalho taylorista/fordista obtinha considerável pro-
dutividade. Mas é igualmente verdade que numa época em que o tempo
envolvido com o trabalho e a parcela de nossas vidas dedicadas a este eram
extremamente altos, a imposição deste modo de organização do trabalho
teve também nítido conteúdo ideológico; ficava claro que a vida dependia
de rígida hierarquia e de uma drástica fragmentação, onde nossa parte era
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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

bem pequena, e o sucesso dependia, por sua vez, de um controle severo e


disciplinador, exercido, é óbvio, pelos chefes intelectuais, os bem-nascidos,
bem-instruídos e bem-fornidos de capital.
No ambiente deste parâmetro tecnológico altamente homogêneo , o
movimento operário e sindical travou suas lutas e o resultado foi um conjunto
de direitos que se constituiu fundamentalmente no contrato de emprego. O
contrato de emprego é, pois, um conjunto de direitos adequado a uma forma
de organizar e prestar o trabalho altamente subordinada e bastante homogênea,
estruturada, grosso modo, sobre a linha de montagem, fosse numa montadora
do ABC, fosse numa padaria em Fortaleza.
O longo período de hegemonia do parâmetro tecnológico da automação
dedicada coincidiu com o crescimento e a positivação do Direito do Trabalho
e o contrato de emprego, por consequência, vertebrou este ramo do Direito
que também reconheceu, entretanto, outros tipos de contratos de trabalho,
secundários e periféricos no sistema produtivo predominante.
3 - A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA MICROELETRÔNICA E AS
NOVAS RELAÇÕES DE TRABALHO
A Revolução Tecnológica Microeletrônica (RTME) foi a maior re-
volução do século XX. Alguns a chamam de Terceira Revolução Industrial,
3ª Onda ou ainda outros apelidos, mas esta denominação é a que me parece
mais adequada e precisa.
A automação de base microeletrônica, o fenômeno que mudou o mun-
do nestas últimas décadas, caracteriza-se por ser uma automação flexível.
Aprofundar a automação significa ampliar o grau de autonomia da
produção em relação ao trabalho humano. A automação clássica, de base
eletromecânica , parâmetro tecnológico da época fordista, era uma automação
rígida, dita dedicada. Era afeita apenas à produção de grandes quantidades
de produtos padronizados. Se necessário diferenciar o produto, ou mudá-lo,
a máquina não tinha capacidade de executar os novos movimentos que se
tornavam necessários sem passar por profundos, demorados e custosos ajustes.
Assim, a flexibilidade na produção, quando demandada, era introduzida pelo
instrumento por natureza flexível - o trabalho humano.
A revolução da automação flexível foi, portanto, a capacidade de in-
troduzir, em face dos avanços da microeletrônica, máquinas que podiam re-
produzir algumas das faculdades humanas (MORAES, 2003). A sofisticação
microeletrônica permitiu, ainda, o desenvolvimento dos controles adaptati-
vos, ou seja, sensores nas próprias máquinas que lhes permitem monitorar a

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

produção, alterando elas mesmas as taxas, níveis e velocidade de alimenta-


ção daquela, de forma automática (MELMAN, 2002).
A automação de base microeletrônica, portanto, trouxe flexibilidade
produtiva à velha linha de montagem. Passou-se a ter uma produção mais
rápida, menos irregular, com redução de flutuações e paradas, geradora de
produtos com menos defeitos e com maior garantia de funcionamento (LE
ROUX, 1998). Tornaram-se possíveis inúmeros novos produtos, diferenciados
uns dos outros e entre si; racionalizou-se o consumo de insumos, e a produção
tornou-se muito mais poupadora de energia e matérias-primas (HIRANO,
1999). E com tudo isso, ainda aumentou sensivelmente a quantidade produ-
zida por unidade de trabalho.
As inovações tecnológicas não só alteraram a produção em si, como
alteraram o próprio mercado. Novos sistemas de transporte e comunicação
tornaram todas as nações mais próximas, e essa proximidade permitiu que os
produtos sejam feitos, comparados e consumidos praticamente de qualquer
lugar para qualquer lugar.
Estruturou-se, portanto, um novo padrão de acumulação, radicalmente
distinto e muito mais eficiente que o velho paradigma fordista.
A automação de base microeletrônica, portanto, permitiu intenso apro-
fundamento na substituição do trabalho humano, colocando máquinas em
pontos da produção antes por nós ocupados. Esse tipo de automação permitiu,
igualmente, que fossem atingidos níveis antes impensados de velocidade,
precisão e variação na produção.
O processo de implantação das novas tecnologias foi acompanhado de
uma redução nos postos de trabalho, principalmente na indústria, e por uma
concentração empresarial muito intensa. Esse processo resultou numa maior
focalização e especialização das empresas e, contraditoriamente, gerou uma
fragmentação da produção, envolvendo inúmeras pequenas e microempresas
prestadoras de serviços e fornecedoras de partes e de detalhes para os
produtos de suas irmãs maiores. Esse processo se expressa, ainda, em unidades
menores das empresas e numa produção segmentada e descentralizada, o que
faz ampliar a demanda por produtos e serviços de terceiros.
Essa produção cada vez mais fragmentada e descentralizada, com
o aperfeiçoamento tecnológico, tende, ademais, para uma crescente sin-
gularização, o uso específico de tecnologia, software e procedimentos próprios
de um determinado setor e mesmo de uma determinada empresa.
Em consequência desse processo complexo e profundo, as formas de
organizar e prestar o trabalho oriundos da RTME tendem, igualmente, a ser

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

ca-da vez mais distintas daquelas altamente subordinadas e bastante homogê-


neas do parâmetro tecnológico taylorista/fordista. As novas tecnologias fa-
zem surgir novos tipos de relações de trabalho.
4 - A REGULAÇÃO PROTETIVA DAS NOVAS RELAÇÕES DE
TRABALHO
Temos de resistir à tentação de acreditar num determinismo tecnológico,
que não tem fundamento real, pelo qual todas as relações de trabalho derivadas
das novas tecnologias são necessariamente precárias. No mais das vezes,
tal se origina de um sentimento de aversão pelas profundas modificações
trazidas pela RTME, vindas, ademais, numa velocidade estonteante. Temos,
muitas vezes, a natural e humana reação de considerar um passado mais
compreensível os “ bons e velhos tempos”. Mas o parâmetro tecnológico da
automação dedicada não é algo que nos deva fazer falta.
Benedito de Moraes Neto (2003), um grande estudioso do tema, afirma:
A dimensão do sofrimento causado pelo desemprego, particu-
larmente na ausência de proteção social, não deve levar ao
saudosismo dos “ bons tempos do fordismo”. Uma das razões
é sua inutilidade: o revolucionamento das forças produtivas no
atual momento histórico é fato irreversível. Outra razão é que
a crítica ao trabalho humano proposto por Taylor e Ford deve
ser realizada de forma radical. Taylor e Ford não merecem sau-
dades (MORAES NETO, 2003, pg.116) .

Devemos nos afastar, também, da ideia de que o futuro nos reserva o


fim do trabalho, que as novas tecnologias terminarão por dispensar o trabalho
humano totalmente ou quase. Nossa luta haverá de ser para que as novas
tecnologias sejam dominadas, reguladas e utilizadas em prol da sociedade
(PAES, 2021).
Frente aos desafios que nos trazem as novas formas de produção , nossa
reação haverá de ser propor as regulações protetivas que se façam necessárias
e não lutar para recuar no tempo. É evidente que este será um processo duro,
intensamente disputado. Todo o período neoliberal em que vivemos desde
a ascensão de Reagan e Thatcher na década de 80 do século passado se
caracteriza pela desregulamentação da economia.
Toda e qualquer forma de regulamentação, portanto, em especial as de
natureza jurídica , que imponham limitações e restrições ao “ livre mercado”
, passam a ser vistas como obstáculos ao desenvolvimento da produtividade
e da competitividade das empresas, devendo ser eliminadas. A batalha pela
desregulação foi a expressão no mundo normativo da batalha pela ampliação
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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

dos lucros, a qualquer custo. Stiglitz (2003) registra com clareza:


Quando feita corretamente,a regulamentação ajuda a garantir
que os mercados funcionem competitivamente. Há sempre
algumas empresas que querem tirar vantagem de sua posição
dominante. Idealmente, a regulamentação impede que as em-
presas tirem vantagem de seu poder de monopólio quando a
competição é limitada porque há um “ monopólio natural”,
um mercado no qual haveria naturalmente uma ou duas em-
presas,mesmo que nada se faça para bloquear a entrada ou
eliminar os concorrentes. As regulamentações ajudam a conter
os conflitos de interesse e as práticas abusivas,de modo que os
investidores possam estar confiantes em que o mercado propicia
um jogo de iguais e que aqueles que deveriam defender seus
interesses realmente o fazem. Mas o lado reverso de tudo isso
é que a regulamentação restringe os lucros e , assim, a des-
regulamentação significa mais lucros (STIGLITZ, 2003, p.112).

A dureza da luta , porém, não haverá de nos desviar do caminho de


enfrentá-la. Na mesma obra supra citada, Joseph Stiglitz (2003), ao estudar os
efeitos da desregulação neoliberal, propõe como conceito entender a regulação
como sendo um balanço entre incentivo e punição, entre o que se incentiva
o produtor a fazer, recompensando-o se assim agir e como nos propomos a
puni-lo, se agir de forma diversa ou contrária. Não adianta estabelecer fortes e
severas punições, se a normatização incentivar a agir em direção do ilícito, se
a recompensa estiver na transgressão e não no seu cumprimento. O equilíbrio
haverá de ser obtido sopesando cuidadosamente o que se incentiva o cidadão
a fazer com aquela norma reguladora , e o que seu cumprimento lhe trará de
positivo e o descumprimento, de negativo (STIGLITZ, 2003). É o nosso
roteiro.
O ordenamento jurídico brasileiro já reconhece a multiplicidade
de relações de trabalho. Se em 1988, quando originalmente promulgada
a Constituição Federal, ainda nos primórdios do avanço da RTME e suas
consequências pelo mundo, o art. 7º da nova Carta Magna dizia em seu
inciso I que a relação de trabalho protegida era a relação de emprego e o art.
114, ao estabelecer a competência da Justiça do Trabalho, falava em julgar:
“os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores”
(BRASIL, 1988), com a Emenda 45, em 2004, será positivada a proteção “às
ações oriundas da relações de trabalho, e outras controvérsias decorrentes da
relação de trabalho na forma da lei”(BRASIL, 2004).
A leitura sistemática e conjunta do texto constitucional depois daí,
portanto , faz erigir os dispositivos legais constantes do art. 7º em princípios
108
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

protetivos das relações de trabalho admitidas no país. A regulação das novas


relações de trabalho haverá de partir da enumeração dos direitos presentes na
Constituição. São os marcos fundamentais das novas normatizações.
O ordenamento jurídico internacional é outra fonte de direito essencial
para a regulação das novas relações de trabalho. Tanto porque o Brasil
reconhece o caráter supralegal das Convenções da OIT (entre a Constituição
e a legislação ordinária )6 como porque esse organismo internacional tem
se dedicado sobremaneira a construir obstáculos de resistência à pressão
neoliberal pela desregulação dos direitos trabalhistas e sociais há muitos
anos.
O conceito de Trabalho Decente, formalizado em 1999, sintetiza muito
desta luta da OIT contra o processo de desregulamentação econômica e per-
da de direitos sociais e trabalhistas. Não por acaso, a OIT tem recentemente
apoiado o Projeto Fair Work (Trabalho Justo), capitaneado pela Universidade
de Oxford, da Inglaterra, que busca estabelecer princípios e proteções para o
trabalho em plataformas digitais, denotando a especificidade destas relações
de trabalho. Os cinco princípios fundamentais do Fair Work (Fair Pay; Fair
Conditions; Fair Contracts ; Fair Management e Fair Representation) estão na
base do projeto de lei que apresentamos à sociedade (OIT, OXFORD, 2020).
A partir da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e do ordenamento
jurídico internacional, portanto, podemos estabelecer os parâmetros protetivos
das novas formas de organizar e prestar o trabalho oriundas das novas
tecnologias. Em face da redução dos níveis de subordinação e a ampliação da
autonomia do trabalhador, algumas destas novas relações de trabalho não se
encaixam dentro do arcabouço restritivo do contrato de emprego, demandando
a normatização de um novo tipo de contrato de trabalho.
Arnaldo Paes (2021) , no artigo já supra citado, avança:
Esses aspectos, entre outros, demonstram a necessidade da
existência de um marco regulatório adequado para a proteção
do trabalho do futuro. O nível de proteção deve-se ajustar à
extensão e intensidade dos poderes de organização, direção e
controle exercidos pelo tomador dos serviços sobre as ativi-
dades laborais.
A regulação não se presta apenas a salvaguardar os traba-
lhadores em razão de sua condição de dependência, pois ser-
vem principalmente para limitar e racionalizar o exercício
unilateral dos poderes de gestão da mão de obra. Nesse sentido,
a legislação laboral sobre remuneração, duração do trabalho,

6
Ver julgado STF-RE 466.343/SP, Rel.Min.Gilmar Mendes, 22/11/2006.
109
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
discriminação, privacidade, para citar apenas alguns aspectos,
é ainda mais necessária com a crescente utilização das ferra-
mentas tecnológicas (PAES, 2021).

Outra decisão judiciária internacional bastante divulgada nos últimos


tempos, um julgado da Suprema Corte do Reino Unido (UKSC), rejeitando
um recurso da Uber, estabeleceu exatamente que os prestadores de serviço
para esta plataforma não eram autônomos (como defendia a empresa)
mas trabalhadores (workers). Não lhes reconheceu, porém, a condição de
empregados (employees). A legislação inglesa admite as 3 variantes, em-
pregados, autônomos e trabalhadores (workers), denotando que a prestação
de serviços às plataformas digitais, embora com alguma subordinação, dife-
re do contrato de emprego tradicional (REINO UNIDO, 2021).
5 - CONCLUSÃO
O fundamental, pois, é asseverar que se há uma nova forma de
organizar e prestar o trabalho, com maior autonomia e menor subordinação
do trabalhador, isto não o transforma em empreendedor ou microempresário.
Ele é um trabalhador de novo tipo, com novos contratos, que devem ser
protegidos legalmente, como dito supra, com base na Constituição Federal e
na ordem jurídica internacional.

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

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112
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

COMO DESCONECTAR DO TRABALHO EM UM MUNDO ON-


LINE: O DIREITO À DESCONEXÃO COMO ELEMENTO OBRI-
GATÓRIO DOS CONTRATOS DE TRABALHO

Álvaro Klein1
Bruna Carolina de Oliveira2

RESUMO: O Direito à Desconexão está diretamente vinculado à preserva-


ção dos Direitos Humanos Fundamentais, favorecendo a conciliação entre as
atividades laborais e as pessoais e familiares. Ao direito a se “desconectar”
fora do horário de trabalho, está incluído o direito a “desconectar” do uso
de qualquer dispositivo tecnológico utilizado no desempenho do trabalho. A
revolução tecnológica, as novas ferramentas de informação e comunicação
(e-mails, laptops, celulares, tablets, smartphones, internet, aplicativos...)
constituem um desafio para o Direito do Trabalho, pois derrubam conceitos e
fronteiras, afetando as noções de entrega da capacidade física e mental, tempo
e espaço. A “permissão” de acesso a qualquer momento apresenta o efeito
de realocar a atividade laboral no tempo e geograficamente, obscurecendo
as fronteiras entre as esferas laboral e privada, interferindo no descanso
obrigatório e no direito à privacidade. É nessa perspectiva que será analisado o
tema, com uma abordagem sobre o tempo, o trabalho e o direito à desconexão.
Palavras-chaves: tecnologia; desconexão; pandemia.

1
Mestre em Diversidade Cultural e Inclusão Social pela Universidade Feevale (Novo Ham-
burgo/RS) e Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/
RS).
2
Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS).

113
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

1 - INTRODUÇÃO
Quando se aborda o tempo de trabalho, estamos tratando da alienação
de parte do tempo das pessoas que trabalham. Alienação, ou prestação de
serviços, efetivamente significa a disponibilização, pela parte trabalhadora,
de suas capacidades físicas e mentais por um período de tempo (jornada de
trabalho) que, por essa entrega, recebe uma contrapartida pecuniária. Esse
é o sinalagma do contrato de trabalho, tácito ou expresso, contornado pelas
complexas obrigações da parte trabalhadora, que entrega sua capacidade
física e mental durante a jornada de trabalho, que são contraprestadas pela
obrigação da parte empregadora, ou contratante, de pagar pelo tempo de
entrega das indigitadas capacidades física e mental.
Desse tempo tem-se: o período efetivo de trabalho, como sendo aquele
em que a pessoa empregada se obriga, assume a obrigação contratual de
prestar serviço ao empregador por um determinado número de horas por dia
ou por semana, sem avançar nos períodos de descanso, alimentação, repouso
e lazer, que não compõem a jornada contratada.
No entanto, os tempos de não trabalho estão sendo invadidos e compro-
metidos com o avanço das novas tecnologias, notadamente pelos aplicativos
de interação social, pelas plataformas de intermediação da contratação do
trabalho humano, e também pelos avanços das necessidades econômicas
e sanitárias (pandemia de COVID-19) de trabalho em home office e em
isolamento social.
O coreano Byunbg-Chul Han (2017) ilustra a sociedade como coativa,
referindo que, para a melhor aderência ao avanço da tecnologia, cada um
carrega seu campo de trabalho, pois explora e é explorado, é detento e
guarda do sistema de otimização de seu próprio melhoramento, tornando a
autoexploração método mais eficiente que a exploração por terceiros, pois é
permeada pelo sentimento de liberdade.
O direito à desconexão, ou a ruptura entre o tempo de trabalho e a
vida social, tempo de não trabalho, está inserido no rol dos direitos humanos
fundamentais (direito ao descanso, ao lazer e à privacidade) – direitos que
com o avanço da tecnologia – relações sociais e de trabalho em ambiente
virtual – estão sofrendo intensas interferências/ataques durante a pandemia
de COVID-19, em virtude da necessária imposição de distanciamento social
e realização de trabalho remoto (home office).
Nessa perspectiva, torna-se essencial o cuidado com o elastecimento
do tempo de trabalho no tempo de vida privada, sob pena de produzir uma
sociedade doente de cansaço físico e mental.

114
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

2 - O TEMPO E O TRABALHO
Lidar com o tema do tempo de trabalho e o tempo de não trabalho
tornou-se uma discussão central da sociedade. Isso é evidente não apenas na
abundância de literatura sociológica, psicológica, filosófica e econômica, mas
também na vida cotidiana e no uso da linguagem. O sentimento de não ter
tempo ou o desejo de usar o tempo efetivamente, se tornaram características
de nossa sociedade.
Durante a Revolução Industrial, a classe trabalhadora estava submeti-
da a condições de vida e de trabalho precários, sem higiene, sem segurança,
sem privacidade e sem dignidade. Na Europa, as longas jornadas de trabalho
(de 16 ou 18 horas diárias) - laboradas, inclusive, por mulheres e crianças
-, acidentes de trabalho, suicídios e uma expectativa de vida de 35 anos das
pessoas que trabalhavam, contribuíram consideravelmente para o início da
mortalidade populacional na segunda metade do século XVIII (OLIVEIRA,
2005, p. 65). Segundo Almeida (2005) e Delgado (2011), essa separação entre
tempo de trabalho e tempo de vida é um fenômeno da modernidade e vem
tornando as horas de trabalho cada vez mais flexíveis, ou seja, permite ao
trabalhador dispor de forma variável do tempo de trabalho.
Os modelos flexíveis de horário de trabalho relacionados à duração e
à localização servem para aperfeiçoar o uso de capital na sociedade 24 horas
por dia, sendo o horário de trabalho variável uma forma de minimizar a
quantidade de trabalho. No entanto, essa flexibilização do tempo de trabalho
perde o controle da sua limitação e passa a se integrar ao tempo de jornada de
trabalho (basta estar conectado através de smartphones, notebook e tablets),
fazendo com que o tempo de trabalho se sobreponha ao tempo de descanso,
destinado ao lazer (PATTERSON, 2020).
Para Vólia Cassar e Leonardo Borges (2017), a expressão flexibilidade
ou flexibilidade do tempo de trabalho atinge dois fenômenos diferentes,
quais sejam: o primeiro relaciona-se à flexibilidade do tempo de trabalho,
reconhecendo a existência de limites máximos inflexíveis ao tempo de tra-
balho; o outro se refere à flexibilidade como revogação de regras inflexíveis.
Tal flexibilidade invoca o renascimento da autonomia da vontade das partes,
ou seja, a possibilidade de o empregador e a pessoa que trabalha fixarem
livremente o tempo de trabalho (CASACA, 2013). Autonomia que integra
ideário liberal, e que de fato é uma ficção.
O tempo de trabalho divide-se em tempo efetivo de trabalho (artigo
58, da Consolidação das Leis do Trabalho), no qual a pessoa que trabalha
desempenha suas atividades laborais ou permanece a disposição para o

115
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

trabalho (artigo 4º, da CLT), e períodos equiparados ao tempo de trabalho,


como sendo aqueles intervalos e repousos (artigo 66 e seguintes, da CLT)
(AMADO, 2018). Para Maurício Godinho Delgado (2011 p. 812), o tempo à
disposição da pessoa que trabalha independe de ocorrer ou não a efetiva mão
de obra ou entrega das capacidades físicas e mentais, tendo em vista que este
tempo compõe a jornada laboral, agregando-se ao tempo de trabalho.
Destaca-se que o direito da classe trabalhadora é protegido em várias
esferas jurídicas, as quais podem decorrer das diretrizes internacionais, por
meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos que, inclusive, defende
o direito ao repouso, lazer e a limitação da jornada de trabalho, ou diretrizes
nacionais através da Constituição Federal de 1988, que visa garantir a digni-
dade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (SILVA, 2012).
Jack Nilles (1997) afirma que o objetivo principal da limitação da
jornada de trabalho é preservar a integridade física de quem trabalha,
evitando fadiga. Ele discorre sobre os efeitos indiretos da fadiga, tais como
acidentes de trabalho, rotatividade e licenças de trabalho. Da mesma forma,
aponta os fatores socioeconômicos, destacando que, se a pessoa que trabalha
estiver descansada, terá melhor desempenho e produção, além de disposição
e disponibilidade para a vivência em sociedade, o que permite a vida familiar
e os compromissos sociais.
Christiana Oliveira (2010) enfatizou o objetivo básico da limitação do
horário de trabalho como proteção da saúde psicofísica da classe, afirmando
também que esse fim não exclui outros de natureza econômica. Nesse mesmo
sentido, quanto à limitação da jornada de trabalho e uma sociedade saudável,
lecionam Severo e Almeida:
A limitação do tempo de trabalho e, portanto, sob a perspectiva
inversa, o respeito ao direito à desconexão, é garantia tanto para
quem trabalha, quanto para quem emprega a força de trabalho,
ou mesmo para a própria sociedade. Uma sociedade de homens
que trabalham em tempo integral e não conseguem ler, passear,
brincar, amar, é uma sociedade doente. É uma sociedade sem
perspectivas de verdadeira melhoria das condições sociais.
(ALMEIDA; SEVERO, 2016)

Ou seja, desligar-se do trabalho é não só um direito, mas também uma


necessidade da sociedade. Trabalhadores com seu tempo livre respeitado são
cidadãos capazes de agir socialmente e melhorar o entorno em que vivem.
O surgimento da internet, ao mesmo tempo em que impulsiona a
liberdade e a criatividade, flexibiliza o tempo do trabalho, convertendo-se
em instrumento opressivo de dominação e precarização de direitos (SAKO,
116
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

2017). O trabalho remoto representa maior disponibilidade de tempo para


a pessoa que trabalha, assim como a racionalização das suas atividades
profissionais. A classe trabalhadora poderá ver mitigados direitos trabalhistas:
a existência de relações autônomas ou de relações precárias de trabalho e
sua informalização, a criação de obstáculos para a fiscalização da legislação
trabalhista, a confusão das despesas do lar com as despesas para a realização
do trabalho, entre outros (CAVALCANTE, 2017).
A autoexploração travestida de liberdade encontra motivação no
componente instintivo da “sensação de cumprir uma missão e, de quebra, ser
recompensado por isso”, como se fosse um jogo – “gamificação” do trabalho
humano, assim definida por Carlos Juliano Barros:
[...] transformar qualquer atividade que não é propriamente um
jogo em uma espécie de gincana. Se a teoria ainda soa pouco
familiar, a prática já é velha conhecida. A gamificação está por
toda parte e vai muito além do trabalho - dos programas de
milhagem das companhias aéreas à contagem de curtidas nas
redes sociais. A receita é psicologia pura e mexe com nossos
instintos mais primitivos [...] (BARROS, 2021)

Deve-se preservar o tempo das pessoas fora das dependências da


empresa, ou fora do âmbito de seus contratos de trabalho, para a realização
de atividades de lazer, atendendo especialmente suas necessidades pessoais
e familiares a fim de garantir os direitos humanos fundamentais (FERNAN-
DES, 2018).
No tocante à mulher, o tempo de descanso se vê ainda mais abalado
em virtude da pandemia do Coronavírus. Com o home office forçado e
o fechamento das escolas/escolas de educação infantil, muitas mulheres
encontram-se submetidas a uma dupla jornada, ou até mesmo uma tripla
jornada, em face das obrigações laborais e o trabalho doméstico e informal
(aquele invisível e naturalizado mediante a divisão sexual do trabalho), gerando
um conflito entre a vida pessoal e a vida profissional e, consequentemente,
uma sobrecarga e exaustão (VALLE, 2020). Neste momento, o ambiente de
trabalho se confunde com o doméstico, gerando desgastes físicos e metais
ainda maiores nas mulheres, revelando-se de extrema importância o direito à
desconexão.
3 - O DIREITO À DESCONEXÃO
O direito à desconexão é um direito humano fundamental ao não
trabalho, ou seja, preservar o tempo das pessoas fora das dependências da

117
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

empresa para a realização de atividades de lazer, atendendo necessidades


pessoais e familiares, não relacionadas ao trabalho e, se possível, fisicamente
afastado dele. Tem-se, dessa forma, que desconectar-se seria não trabalhar
fora do horário de trabalho, não interromper os horários livres (FERNANDES,
2018).
Jorge Souto Maior (2003) entende que o direito à desconexão não deve
ser tratado apenas como uma questão filosófica relativa à futurologia, mas em
uma perspectiva técnico-jurídica, a fim de identificar a existência do bem da
vida, ou seja, o não trabalho. Embora o direito ao trabalho, contido no artigo
6º da Constituição Federal, tenha característica fundamental social, este
direito não pode se sobrepor ao direito de descanso, ao direito do convívio
familiar e ao lazer de quem trabalha – deve haver o período do não trabalho
(EDA; SEVERO, 2014).
A fronteira entre trabalho e vida privada diminuiu gradualmente
com a digitalização global. Isso resultou em pessoas trabalhando por meio
de dispositivos tecnológicos como smartphones e tablets, mantendo-as
“conectadas” para trabalhar além do horário contratual. Como resultado, surge
o debate sobre a necessidade de considerar a desconexão um direito humano
fundamental. Esse direito visa proporcionar uma desconexão do trabalho, ou
seja, uma recusa a tudo que esteja relacionado ao trabalho - como chamadas
e e-mails fora do horário contratual (JARDIM, 2003).
A utilização desses equipamentos e o constante avanço tecnológico têm
contribuído para o surgimento de barreiras que impossibilitam a fruição do
tempo de descanso. Neste sentido, Maurício Godinho Delgado acrescenta:
É o que se passa com a utilização, pelo empregado, fora do
horário de trabalho, de aparelhos de comunicação, como BIPs,
pagers ou telefones celulares - instrumentos que viabilizam seu
contato imediato com o empregador e consequente imediato
retorno ao trabalho. (DELGADO, 2011)

A tecnologia é uso de técnicas e de conhecimentos criados para facilitar


o trabalho, solucionar problemas e executar determinadas tarefas. O uso de
aparatos tecnológicos cresceu rapidamente nos modos de organização do
trabalho e estas inovações tecnológicas alteraram os modelos tradicionais,
evidenciando novas modalidades, tais como o teletrabalho e o home office
(TORRES, 2018). O empregador não precisa ter a pessoa que trabalha
vinculada diretamente à sua produção, basta que tenha em suas mãos algum
aparelho de comunicação para poder controlar o trabalho de qualquer lugar do
planeta (CARELLI, 2018). Esse controle exercido pelo empregador ameaça o
direito à limitação da jornada de trabalho.
118
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

O objetivo do direito à desconexão digital é encerrar a prática comercial


abusiva que mantém as pessoas que trabalham coladas em seus telefones
celulares ou contas de e-mail após o final da jornada de trabalho. Essas horas
não são remuneradas ou consideradas horas extras para fins de salário, bem
como violam o direito de descansar (MARTINS, 2004).
Muito se discute sobre a necessidade de se positivar um direito a
desconectar do trabalho, tendo em vista que ele nada mais é do que o direito
a descansar. No entanto, é necessário levar em consideração que novos
cenários exigem novas discussões e que o direito à desconexão do trabalho
não é associado apenas ao direito ao descanso, mas também ao direito de
privacidade, que ganha novas arestas para o uso da tecnologia da informação
e que se conecta ao objetivo do equilíbrio entre vida profissional e trabalho
decente na modernidade tecnológica (MARTINS; AMARAL, 2019).
Importa ainda questionar acerca da remuneração do tempo a disposição,
no caso das trabalhadoras e trabalhadores de aplicativos de transporte de
pessoas e mercadorias, que permanecem conectados em seus tempos de não
trabalho, à espera de uma chamado para um transporte ou uma entrega –
tempo à disposição que não compõe o preço do serviço e deixa de compor o
tempo de não trabalho, repouso, descanso ou alimentação.
Jorge Souto Maior refere que “[...] a tecnologia tem escravizado
o homem ao trabalho [...]”, (MAIOR, 2003, p.01) tendo em vista que as
pessoas estão sendo submetidas a jornadas diárias excessivas, permanecendo
conectadas por turnos ininterruptos devido a utilização de modernos meios de
comunicação, razão pela qual ao se falar em desconexão, automaticamente,
falar-se-á sobre tecnologia. Deve o Direito do Trabalho adequar-se à inserção
de novas tecnologias, sempre observando e preservando as garantias
fundamentais das pessoas que trabalham (SILVA, 2012).
O direito à desconexão não deve ser aplicado apenas a teletrabalhado-
res, mas a todos os contratos de trabalho, de forma geral, em que as pessoas
desempenham seus serviços em jornadas extenuantes e exaustivas, que ficam
conectados o dia inteiro e durante a semana toda, desrespeitando o direito ao
descanso. Não se está indo contra o avanço tecnológico, tampouco ao rápido
desenvolvimento da sociedade, mas deve-se observar o equilíbrio entre este
avanço tecnológico e os direitos sociais já adquiridos pela classe trabalhadora
(BRITO, 2018).
Necessária atenção à sutileza, não é o fato de estar fora das dependências
da empresa ou laborar mediante a utilização da tecnologia que disponibiliza o
tempo integral da vida da trabalhadora ou do trabalhador para o empregador

119
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

para trabalhar a todo e qualquer momento. Imperativo que os limites sejam


respeitados, que não se ultrapasse ou avance provocando confusão entre as
atividades laborais e o tempo de lazer, de vida pessoal e familiar. O direito
à desconexão deve garantir uma plena desvinculação do trabalho, ou seja,
garantir que não sejam convocadas a realizar tarefas laborais mediante
telefone, e-mails ou aplicativos enquanto estiverem fora do horário de
trabalho, em descanso (MOLINA, 2017).
Em virtude da pandemia do Coronavírus (COVID-19)3, a orientação
do distanciamento social e o estado de calamidade pública reconhecido pelo
Decreto Legislativo nº 6 de 20 de março de 2020 (BRASIL, 2020), está em
alta o teletrabalho, ou home office forçado. Os trabalhadores encaram uma
nova realidade, à qual não estão acostumados, em que precisam exercer suas
atividades profissionais de casa.
Uma recente entrevista realizada pelo jornalista Leonardo Sakamoto,
colunista do UOL, com ministros do Tribunal Superior do Trabalho
sobre os desafios do trabalho durante a pandemia, revelou uma “invasão
da vida profissional, apoderando-se dos espaços da vida pessoal”, com
jornadas cumpridas à meia noite ou nas madrugadas dos finais de semana
(SAKAMOTO, 2020).
As estatísticas têm demonstrado um aumento na produção do trabalho
em casa, o que demanda, na opinião dos ministros, uma regulamentação clara
e cuidadosa, especialmente para que não sejam exigidas metas exageradas
que levem a jornadas excessivas, bem como observar a dimensão de gênero,
tendo em vista que o trabalho em casa executado por um trabalhador e por
uma trabalhadora com responsabilidades familiares são totalmente diversas.
Em que pese seja um privilégio trabalhar de casa, as fronteiras entre o labor e
o descanso romperam-se, especialmente durante a pandemia do COVID-19,
pois as demandas atribuídas às pessoas que trabalham em home office estão
fora de controle (MELO, 2020).

3
A COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que apresenta um
quadro clínico que varia de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves. De acordo
com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a maioria dos pacientes com COVID-19 (cerca
de 80%) podem ser assintomáticos e cerca de 20% dos casos podem requerer atendimento
hospitalar por apresentarem dificuldade respiratória e desses casos aproximadamente
5% podem necessitar de suporte para o tratamento de insuficiência respiratória (suporte
ventilatório). Coronavírus é uma família de vírus que causam infecções respiratórias. O novo
agente do coronavírus foi descoberto em 31/12/19 após casos registrados na China. Provoca
a doença chamada de coronavírus (COVID-19).
120
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Nesse sentido, vale destacar as dificuldades da mulher trabalhadora,


que são muitas, e não podem ser ignoradas, pois o trabalho doméstico, a res-
ponsabilidade com os filhos e as tarefas profissionais podem levar a trabalha-
dora ao extremo cansaço e exaustão. Isso porque as atenções e atividades
de auxilio na educação dos filhos (aulas não presenciais em ambiente
virtual), serviços domésticos, atividades profissionais, sem alguma divisão
ou limite entre a vida pessoal e a vida profissional, sequer são observadas
nos regramentos dos trabalhos remotos (home office) das trabalhadoras e
trabalhadores.
Apesar dos desafios enfrentados durante este período de isolamento
social, especialmente considerando o home office, o momento exige resiliên-
cia e capacidade de reconhecer os próprios limites (ABREU; JUNQUEIRA,
2020). A mulher acaba envolvendo-se no trabalho doméstico e no trabalho
remoto, o que, sem dúvida, acaba gerando novas rotinas e uma conexão de
24 horas, ou seja, aquela sensação de que não se desliga. Neste contexto
tecnológico e em rede, empresas empregadoras públicas e privadas, exigem
produtividade, sem considerar o cuidado com demandas domésticas au-
mentadas durante a pandemia, sendo imprescindível o direito à desconexão.
O tempo para descanso e regeneração do ser humano trabalhador
é tido como muito caro, além de ser estruturalmente impossível para o
capitalismo contemporâneo (CRARY, 2014), o que impõe dificuldades para o
reconhecimento da desconexão como direito fundamental.
4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
A trabalhadora e o trabalhador, seres humanos, oferecem por suas
características e necessidade biológicas, grandes obstáculos e empecilhos
para o estabelecimento e manutenção de relações de trabalho que não definam
limites no tempo. O desenvolvimento e os avanços das novas tecnologias,
entre elas as que oportunizam o exercício do trabalho humano travestido
de liberdade e autodeterminação, encontram limites nas necessidades de
descanso, repouso, lazer, convívio social e familiar.
Pelo exposto, a questão posta em debate é de que a dependência da
tecnologia e a concentração de trabalho com labor aos sábados, domingos e
feriados, por exemplo, acentuam-se como dias comuns. Essa prática não se
restringe apenas a setores em que as atividades não são interrompidas, mas
sobre toda e qualquer atividade.
O trabalhador acaba sendo o algoz, o explorador do próprio trabalhador,
a possibilidade de consumir, faz com que os poucos momentos de lazer e

121
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

descanso sejam empregados no consumo. Sem sair de casa, a partir da janela


para consumo, os aplicativos representam autofagia da classe trabalhadora
– desorganização social - o trabalhador exige esforço e entrega de tempo da
vida de outro trabalhador. O lazer se transforma em consumo, ignorados os
limites, ninguém desconecta.
Na pandemia da Covid-19, o isolamento social é um potencializador
dessa exploração, o isolamento da trabalhadora acaba funcionando como
um escudo, isola e afasta as trabalhadoras da proteção essencial. Estão as
mulheres trabalhadoras sujeitas a violências sociais, morais e econômicas,
dedicando integralmente seus tempos de vida aos cuidados dos anseios e
necessidades de seus trabalhos, de suas famílias (maridos e filhos), além das
tradicionais tarefas domésticas.
Nesse momento, é preciso ter cuidado com a saúde mental dos
trabalhadores, em especial da mulher trabalhadora para não deixar que a
grande quantidade de obrigações de trabalho retire o conforto do espaço
domiciliar, e nem mesmo o necessário e inafastável direito ao descanso, como
forma de evitar ou suprimir a fadiga, não obstaculizando o convívio social e
familiar.
A humanidade demanda do Direito outra mirada, que cuidadosamente
ressignifique o Direito do Trabalho, atualizando os instrumentos de proteção
à trabalhadora e ao trabalhador, a partir dos aspectos modernos/eletrônicos/
tecnológicos que permeiam o exercício do trabalho humano remunerado
nos nossos dias, desimportando os aspectos formais do “velho” contrato de
trabalho.
O empreendedorismo é atividade de trabalho onde está inserido o
“animal laborns que explora a si mesmo” (HAN, 2017), que também necessi-
ta cuidar do tempo de trabalho como Direito Humano. O Controle da Jornada
de Trabalho e o consequente Direito à Desconexão devem integrar o rol dos
Direitos Humanos Fundamentais, e assim serem respeitados como forma de
evitar a barbárie social.

122
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

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125
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

126
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

EM UM CENÁRIO DA CLASSE TRABALHADORA À DERIVA, A


AÇÃO SINDICAL CONVERTE-SE EM ESPAÇO DE RESISTÊNCIA
E CONTRA OFENSIVA

Jaqueline Büttow Signorini1


Maria Emília Valli Büttow2
Rubens Soares Vellinho3

RESUMO: Em tempos de crise social e econômica, o sindicalismo sofre


diretamente com os ataques da ofensiva neoliberal e individualista. Grande
parte destes ataques vem do Estado, causando o enfraquecimento da ação sin-
dical, o que acaba por deixar os trabalhadores ainda mais vulneráveis à pre-
carização. Não obstante, é essencial que o sindicalismo consiga uma maior
articulação dos conflitos laborais com a dinâmica social, buscando uma rein-
venção para se manter ativo como espaço de resistência e de contra ofensiva
da classe trabalhadora. O agravamento da precarização das relações de traba-
lho traz consigo o aumento das desigualdades e injustiças sociais, tornando
ainda mais difícil a reação do sindicalismo e da luta coletiva. A pulverização
dos locais de trabalho e individualismo também se colocam como obstáculos
à atuação sindical, exigindo de seus dirigentes uma atuação estratégica, que
representa uma resistência significativa em prol da dignidade da classe traba-
lhadora.
Palavras-chaves: neoliberalismo; resistência; sindicalismo; trabalhadores.

1
Advogada e assessora sindical. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho
pela Faculdade de Ciências Sociais de Florianópolis. Mestra em Ciência Política pela Uni-
versidade Federal de Pelotas.
2
Advogada e assessora sindical. Especialista em Direitos Humanos e Transnacionais do Tra-
balho pela UCLM. Mestra em Sociologia pela Universidade Federal de Pelotas.
3
Advogado e assessor sindical. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pelotas
e Doutor em Política Social e Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pelotas.

127
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

1 - INTRODUÇÃO

As relações de trabalho e o movimento sindical passam por um mo-


mento de mudanças, que pode ser descrito como de grave crise. As maneiras
de enfrentamento destas transformações devem ser objeto de profundo estudo
pelos atores sociais, a fim de que se possa apresentar respostas eficazes contra
a precarização das relações de trabalho.
O movimento sindical é um dos principais atores na defesa das rela-
ções de trabalho em meio a transformações sociais e imposições da agenda
neoliberal e precarizante. Isto porque historicamente se coloca como o local
democrático de reunião e organização dos trabalhadores, devendo o sindica-
lismo se manter atento e atualizado sobre as demandas sociais em momentos
de crise social e econômica.
Com foco nesta reflexão, o presente artigo busca ponderar e entender
sobre o papel do sindicalismo e como este pode manter um posicionamento
assertivo e firme diante da ofensiva neoliberal e precarizante. Mesmo que
exista o entendimento, demonstrado a seguir, que o sindicato atua também
como um aparelho regulador a serviço do poder do Estado, deve manter seu
papel de resistência e contra ofensiva, com organização e debate intenso so-
bre a precarização do trabalho.
Nesta exposição se analisará a crise do sindicalismo e a importância da
resistência coletiva pela manutenção dos direitos dos trabalhadores duramen-
te atacados pelo setor privado e pelo Estado. A partir da análise  da reflexi-
vidade sindical em meio à crise atual, sua atuação como aparelho do Estado
e as mudanças necessárias para que possa ainda representar os anseios dos
trabalhadores, pretende a presente exposição trazer luz à atuação do sindicato
para que esta esteja alinhada às necessidades do mundo atual, a fim de que
se mantenha como local de resistência e contra ofensiva aos ataques sofridos
pelos trabalhadores.
2 - A REFLEXIVIDADE SINDICAL 
O movimento sindical vive um processo de reflexividade no seu mo-
delo de ação e representatividade. Há  uma clivagem entre a velha prática
sindical amparada na CLT e a nova prática agora calcada no combate à preca-
rização. De maneira que as demandas sindicais não podem ficar subsumidas
às demandas empresariais (por ex. empregabilidade, formação profissional,
etc.). Verifica-se que há demandas específicas em tempos de prosperidade e
de crise que não ficam cingidas a aspectos meramente econômicos. 

128
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Conforme visto, há a necessidade de os sindicatos articularem a con-


flitualidade laboral com a dinâmica social. Neste cenário, o protagonismo do
movimento sindical servirá como forma de combater a perversidade ditada
pela rotatividade do mercado de trabalho e pela precarização.
Até porque as demandas a partir de então, precisam buscar uma sig-
nificação própria e distinta em acordo com o marco cultural que transforma
o trabalhador em um cidadão portador de direitos e dignidade. Por isso as
entidades sindicais necessitam refletir esse conjunto de modificações e trilhar
novas perspectivas, aliando estratégias de resistência e contraofensiva.
Pela simples razão de que o sindicato ainda é o locus privilegiado na
luta pela melhoria das condições de vida dos trabalhadores, além de exercer
um papel importante no diálogo social. Então, mesmo que o sindicalismo se
encontre numa encruzilhada, deve se reinventar, fazendo emergir uma nova
categoria de sindicalistas vinculados à reconversão do modo de agir. 
Ademais, temos que considerar que o direito da coletividade não é um
direito abstrato, tanto é assim que conforme as regras e princípios da Cons-
tituição há a preponderância do interesse coletivo.  Dessa forma, atribui-se
sentido a noção de normas de ordem pública, que elevam a cidadania e a dig-
nidade humana, não obstante a narrativa individualista faça valer a ideia de
uma trajetória individual do trabalhador, muito embora ele viva em sociedade
e pertença a uma classe. 
Enfim, a dissonância cognitiva do mercado para com a questão social é
evidente frente a preponderância da precarização das relações de trabalho e
das medidas de inviabilização da ação sindical, deixando a proteção social jo-
gada ao ostracismo. A insurreição do capitalismo e dos interesses do mercado
colocam abaixo os valores e princípios baseados na dignidade humana e bem-
-estar social, mediante a subsunção do trabalho aos interesses do mercado. 
3 - O SINDICATO COMO APARELHO DO ESTADO
Conforme Edelman (2016) o Direito do Trabalho deu formato jurídico
ao sindicato e a sua ação coletiva, e dessa forma, cerceou o exercício das
suas funções e da sua razão de ser. De modos que o “poder jurídico que a
classe operária conquistou” (EDELMAN, 2016, p. 19) significou muito mais
sua submissão ao que está colocado em lei e à intervenção institucional do
Estado. E dessa forma, o Estado se sente legitimado e com autoridade “reco-
nhecida” para regrar as questões mais caras relacionadas às relações coletivas
de trabalho. 

129
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

E, quando o Estado intervém, não o faz para assegurar direitos coletivos


ou a liberdade de ação aos sindicatos, mas sim para restringir, judicializar e
criminalizar a atuação sindical. Assim, canalizar e regrar os conflitos sociais
passou a ser uma preocupação do Estado Democrático de Direito, como for-
ma de assegurar a manutenção do status quo capitalista. Algo que dialoga
com a visão disseminada pela Igreja Católica na Encíclica Papal Rerum No-
varum, com a Carta Del Lavoro e com a criação e funcionamento da OIT. 
A regulação estatal considera a necessidade de estabelecer uma relação
de harmonia entre capital e trabalho, sem romper com a lógica capitalista. Ao
que EDELMAN (2016) denomina como a “legalização da classe operária”,
para LOPEZ (2001, p. 18), significa que a norma trabalhista tem como missão
solucionar os conflitos “impondo uma solução de equilíbrio ou compromisso
essencial”. 
Daí Lopez (2001) afirmar: 
A legislação operária responde, prima facie, a uma solução de-
fensiva do Estado burguês para, através de um quadro normativo
protector dos trabalhadores, prover à integração do conflito so-
cial em termos compatíveis com a viabilidade do sistema esta-
belecido, assegurando deste modo, a dominação das relações de
produção capitalistas (LOPEZ, 2001, p. 30)

Porém, Edelman (2016) ressalta que o conflito entre capital e trabalho é


de cunho estrutural e está na própria relação de trabalho assalariado. Por isso,
LÓPEZ (2001, p. 19) afirma que não há “diferença qualitativa entre conflito
laboral e conflito social (porque ambos) são sempre expressão das tensões
sociais e vice-versa”.
Nesse sentido, o Direito do Trabalho cumpre o papel de intervenção nas
relações individuais e coletivas de trabalho, como sendo uma “intervenção
defensiva do Estado na questão social” . Pode-se dizer que a relação entre o
movimento sindical e o Estado passou por três etapas: da proibição, da tole-
rância e a do reconhecimento jurídico (LOPEZ, 2001, p. 26-27).
ALTHUSSER (1985) afirma que a reprodução do poder e da força da
classe dominante decorre dos denominados “aparelhos ideológicos de Esta-
do”, de que nem o sindicato consegue se desvencilhar:
[...] a reprodução da força de trabalho não exige somente uma
reprodução da força de sua qualificação mas ao mesmo tempo
uma reprodução de sua submissão às normas da ordem vigente,
isto é, uma reprodução da submissão dos operários à ideologia
dominante por parte dos operários e uma reprodução da capaci-
dade de perfeito domínio da ideologia dominante por parte dos
130
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
agentes da exploração e repressão, de modo a que eles assegu-
rem também “pela palavra” o predomínio da classe dominante
(ALTHUSSER, 1985, p. 58)

Assim, mesmo como instituição privada, o sindicato acaba por repro-


duzir, em parte, aquilo que o Estado estabelece como de seu interesse, dentro
das limitações jurídicas pré-estabelecidas em lei. Um espectro da imposição
ideológica imposta pela classe dominante. Nesse sentido, instituições como o
sindicato, dentre outras (escolas, família, igrejas) podem se valer, na sua ação
institucional, de algum tipo de violência simbólica, atenuada ou dissimulada
(ALTHUSSER, 1985, p. 69-70). Ficando claro que a ideologia não se propa-
ga apenas por ideais, ela materializa-se por práticas, rituais e discursos. Daí
se falar no seu conteúdo simbólico.
O sindicato, ao se valer da contraposição contra o setor produtivo, não
o faz com a intenção de romper com a estrutura capitalista, mas tão somente
para mediar a exploração porventura exacerbada. De sorte que aqui está um
dos motivos que obstruem a luta sindical, a sua institucionalização e o seu
caráter moderador nas relações capital e trabalho (ALTHUSSER, 1985). 
De forma que traçada uma radiografia da atividade sindical em suas
idiossincrasias e dimensão histórica, verificar-se-á que os sindicatos preci-
sam mudar. Mas esta renovação (ressignificação) sugere uma nova forma de
atuação do sindicato perante o Estado, a sociedade e aos movimentos sociais.  
4 - A RESSIGNIFICAÇÃO SINDICAL
Considerando que os direitos sociais se agrupam sob o fundamento da
igualdade, da solidariedade e da dignidade humana, o Estado possui compro-
missos com o viés social. Nesta perspectiva, a livre iniciativa está submetida
aos princípios que sustentam a construção política deste Estado e o compro-
misso deste com os seus cidadãos. 
Isto é resultado do princípio de equilíbrio entre as cláusulas sociais e
econômicas que estão colocadas na Constituição. Daí o caráter coletivo dos
direitos trabalhistas, sua função pública e a sua indisponibilidade.
De tal maneira, que MORAES FILHO (1978) adverte que o interesse
individual está submetido ao interesse coletivo, o qual se converte em inte-
resse comum (modalidade de interesse de egoísmo coletivo patrocinado pelo
ente sindical. Isto, segundo o autor, justificaria a atribuição do sindicato como
grupo social que:
Agrupa, pois, o sindicato os indivíduos possuidores do mesmo
status profissional. Com isso, aviva-lhes a consciência de classe,

131
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
dá-lhes forma jurídica nos seus interesses comuns, organizando
a vida dispersa desses indivíduos que exercem, por força mesma
da necessidade de ganharem para o seu sustento, uma determi-
nada ocupação econômica. Daí também o objetivo moral e inte-
lectual do sindicato em relação à profissão. (MORAES FILHO,
1978, p. 68)

Então, o sindicato cumpre um papel importante neste processo median-


te o exercício do seu direito de resistir e contra-atacar qualquer ação que tenha
o intuito de trazer prejuízos e dificuldades sociais ou econômicas aos traba-
lhadores. Quando o sindicato exerce o seu direito de resistir, o Ius resistentiae
torna-se a contra face e barreira ao jus variandi do empregador (VIANA,
1996).
5 - A CRISE SINDICAL
Autores como BOLTANSKI, CHIAPELLO (2009), COSTA (2018),
ESTANQUE (2009, ET AL, 2015) E PASTORE (2005)  analisam as moti-
vações que levam o movimento sindical a ter severas dificuldades de levar a
cabo as suas funções de resistência e contraofensiva ao poder patronal e às
políticas neoliberais consubstanciadas sob a égide da globalização hegemôni-
ca e das medidas de austeridade.
Conforme ESTANQUE (2009, p. 313), a crise dos sindicatos é provo-
cada por fatores econômicos e sociais, quando diz textualmente que o traba-
lho “infraestrutura fundamental do sistema social e político das sociedades
industriais modernas”. Assim, o agravamento das condições de vida e traba-
lho promovem a multiplicação de desigualdades e injustiça social.
No mesmo sentido (ESTANQUE et al (2015) e COSTA (2013) partem
da centralidade ocupada pelo trabalho e o colapso do compromisso social por
parte do Estado. O que impõe ao movimento sindical uma árdua e delicada
articulação na busca de soluções viáveis, considerando o ambiente de medo e
de inércia no enfrentamento, diante de um cenário marcado pela franca dete-
rioração da interação sociopolítica entre o sindicato, a sociedade e o Estado. 
Esta situação conduz à ideia de crise (“do sindicalismo” ou “de sindica-
lismos”) a que está exposto o movimento sindical: 
Quando se problematiza a ideia de crise associada ao sindica-
lismo constata-se que, por um lado, faz mais sentido falar em
“crise de sindicalismos”, pois trata-se de distintos movimentos
e formas de organização sindical que, pelo mundo fora, estão
em perda enquanto instituições de representação sociopolítica.
Mas, por outro lado, é igualmente pertinente falar em “crises

132
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
de sindicalismo”, pois embora se tenha vulgarizado a ideia de
que existe crise, nem todas as crises atingiram o mesmo grau
de intensidade e muito menos caraterísticas totalmente comuns
(ESTANQUE; COSTA; DA SILVA, In FREIRE, 2015, p. 5)

Nessa linha, COSTA (2018) afirma que o “velho ator social” (o sin-
dicato) enfrenta uma crise que, aliás, não é nova e está relacionada a outros
tipos de crise: a) a crise da economia mundial; b) a crise da transição da fase
industrial para a sociedade de serviços; c) a crise desencadeada pela adoção
de políticas neoliberais; d) a crise dos projetos político ideológicos relacio-
nados a ideia de contra poder; e e) o declínio da forma como os partidos de
esquerda se relacionam com o movimento sindical principalmente quando
estão no poder, etc. 
Para PASTORE (2005), o estado letárgico do movimento sindical não
consegue canalizar as insatisfações dos trabalhadores com as mudanças an-
tissociais, de tal modo, que o sindicato perdeu sua força mobilizadora. No
momento em que o sindicalismo se fixou em lutas mais corporativistas vin-
culadas a questões setoriais da economia e da produção, o seu potencial de
combatividade perdeu vitalidade.
Mas não se pode perder de perspectiva de que o papel do sindicato é
de representar as forças que bloqueiam o avanço desenfreado do mercado e
da economia em detrimento dos direitos trabalhistas e sociais. Ditos retroces-
sos sociais estão reivindicando uma atuação audaz e unitária do movimento
sindical como forma de arregimentar simpatias e força capazes de oferecer
resistência e reação contra toda esta insanidade.
É fato que, neste novo cenário, o retrocesso social é nutrido pelo medo
do desemprego, tornando-se fator de docilidade dos trabalhadores que jun-
tamente com a falta de atuação sindical participam “em certa medida daqui-
lo que se poderia descrever como sua própria exploração” (BOLTANSKI;
CHIAPELLO, 2009, p. 284). Assim, a falta de unidade coletiva torna-se “am-
biguidade paralisante dos novos dispositivos” (BOLTANSKI; CHIAPELLO,
2009, p. 300) empresariais que afetam a atuação sindical. 
Daí a necessidade de o movimento sindical denunciar que a economia e
o mercado estão ocupando o espaço da política, da cidadania e da dignidade
da pessoa humana. Os sindicatos devem buscar sua unidade na luta como
forma de restringir a liberdade empresarial e proteger os trabalhadores contra
os riscos laborais, o desemprego e o estado de necessidade.
Conforme ESTANQUE (2009), a crise de representação e de legitimi-
dade exige dos sindicatos algumas tarefas como forma de recuperar o seu

133
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

espaço: 1) com o reforço da confiança nos sindicatos; 2) com a renovação


dos quadros dirigentes e sindicalizados, dando espaço aos jovens e mulhe-
res; 3) com a diminuição da burocratização interna. Sem estes elementos, o
movimento sindical experimentará a redução do seu poder de barganha e o
desconhecimento por parte do trabalhador sobre a sua capilaridade. 
Nesse sentido, é que os movimentos sociais e os sindicatos necessitam
dialogar e construir uma agenda unificada capaz de fazer frente às medidas
antissociais. Porém, há certo desencantamento e falta de identidade emocio-
nal do trabalhador com o movimento sindical porque o discurso articulado
por este perdeu força e convicção. Mas não significa que isto seja impossível
de ser revertido. 
6 - DO FUNDO DO POÇO AO SEU ALINHAMENTO
Apesar dos empecilhos institucionais e a crise de representatividade,
o movimento sindical ainda é um pilar para se conhecer a “cidadania ativa”
mobilizada e organizada, como forma de reivindicar uma viragem no sistema
social (ESTANQUE, In SANTOS, 2004, p. 357-401).
Nesse sentido, BAYLOS (1999, 2012, In PÉREZ, QUESADA, 2016) e
HYMAN (1996, 1997, 2015) debatem questões como a intervenção sindical
num cenário marcado por medidas de flexibilização dos direitos trabalhistas,
crise da representatividade sindical, o poder privado exacerbado do capitalis-
ta, a transnacionalização do mercado, da exploração econômica e da produ-
ção, dentre outras tantas questões relacionadas à intervenção sindical e sua
efetividade.
Mesmo assim, o sindicato tem um papel social a cumprir, ao representar
as forças que bloqueiam o avanço desenfreado do mercado e da economia,
coloca-se como um espaço que não pode ser desprezado. De tal maneira,
que uma das difíceis tarefas do movimento sindical é fortalecer a autonomia
da vontade coletiva sem que isso resulte na mercantilização dos direitos tra-
balhistas e que a negociação coletiva não se transforme num mecanismo de
desconstrução de direitos.
BAYLOS defende que o sindicato busque ampliar sua influência para
além da sua categoria como forma de influenciar demandas sociais, econô-
micas e políticas se constituindo “como um instrumento de canalização e
pacificação social” (BAYLOS, 1999, p. 82). Para tanto, o movimento sindical
necessita reivindicar que os assuntos relativos às relações de trabalho e aos
direitos sociais sejam tratados como uma questão de Estado. 

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

HYMAN (1996, 1997) sustenta que a crise enfrentada pelo sindicalis-


mo está relacionada ao exaurimento do uso dos repertórios de ações tradicio-
nais. Para o autor, os sindicatos necessitam imaginação estratégica para revi-
sitar práticas que surtiram efeito e adotar novas experiências transnacionais
de solidariedade. Porque, a razão de ser do sindicalismo, não se limita a de
ser mero observador do mercado do trabalho, mas também desempenhar um
protagonismo ativo.
Todavia, o turbilhão de problemas enfrentados pelos sindicatos é de
toda ordem, e o Estado tem ocupado o papel destacado de obstruir a ação
sindical quando ataca a sua liberdade e autonomia sindical e lhe dificulta
a sobrevivência financeira. Com a reforma trabalhista ocorrida em 2017 no
Brasil, a ação arbitrária do Estado tem obstruído as iniciativas dos sindicatos
de tornar real suas estratégias de resistência e contraofensiva.
7 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Atualmente em crise, o sindicato mostra dificuldade em compreender e
organizar as insatisfações dos trabalhadores e suas diárias dificuldades, per-
dendo assim sua representatividade. Além disso, sofre com ataques vindos do
Estado e da opinião pública, vendo sua vitalidade e importância diminuírem.
Ademais, fica ainda mais difícil canalizar as necessidades dos trabalha-
dores e interesse destes em manter uma luta coletiva por melhorias na socie-
dade. As crises, desemprego e pobreza trazem como efeito um trabalhador
mais dócil, que aceita com mais facilidade a precarização e a exploração em
troca da sobrevivência.
Diante do momento atual, o movimento sindical precisa superar as
fronteiras virtuais mediante o uso de ferramentas tecnológicas, trazendo para
o debate questões como o espaço de intervenção do Estado, uma vez que
a competitividade e a ação econômica transnacional se caracterizam como
elementos que refletem esta nova dinâmica do capitalismo. No entanto, não
se trata de uma tarefa fácil pois encontra como obstáculo a desagregação de
interesses por parte dos trabalhadores, acrescida pela ausência de lealdade e
solidariedade entre eles em uma sociedade brasileira ainda apegada ao indi-
vidualismo.
Cabe aos dirigentes sindicais não ficar alheios ao caos social que cir-
cunda o trabalhador. As lideranças sindicais necessitam partir da premissa
de que o discurso mobilizador do sindicato revela o único caminho transfor-
mador diante do temor compartilhado pelos trabalhadores contra o avanço
avassalador das condições de trabalho precárias.

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

138
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

INDÚSTRIA 4.0 E O TRABALHO DECENTE

Julio Guilherme Köhler1

RESUMO: Este trabalho apresenta, de forma suscinta, o que é a “Indús-


tria 4.0” e de que forma as tecnologias digitais impactam as relações de
trabalho. O que se observa é um contingente enorme de trabalhadores,
conectados a uma plataforma digital, e na maioria das vezes, sem qualquer
proteção social e de forma precarizada. Por conseguinte, é tratada a situa-
ção específica dos trabalhadores entregadores, conectados digitalmente a
uma plataforma digital, e a relação desigual entre estes e a empresa. Por
fim, é apresentada uma análise do relatório de 2019, emitido pela Comis-
são Global Sobre o Futuro do Trabalho da Organização Internacional do
Trabalho, combinado com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
da Organização das Nações Unidas, em especial, o número 8. Desta for-
ma, é possível verificar o quanto é importante proteger os trabalhadores
das transformações que estão acontecendo no mundo do trabalho.
Palavras-chaves: Indústria 4.0; Tecnologia; Trabalho; Precarização.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos - UNISINOS. Advogado.

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

1 - INTRODUÇÃO
Este trabalho propõe uma breve análise da “Indústria 4.0”, também
chamada de “A Quarta Revolução Industrial” ou “Revolução 4.0” e as
consequências no mundo do trabalho. As inovações tecnológicas fazem
parte da vida cotidiana das pessoas e provocam resultados em inúmeras
áreas diferentes. O mundo do trabalho não está imune, ao contrário, vem
sofrendo profundas alterações nos métodos de organização dos trabalha-
dores.
Nos últimos 20 anos observa-se que as novas tecnologias, de infor-
mação e comunicação, estão afetando os postos de trabalho, reduzindo a
privacidade dos trabalhadores e aumentando a vigilância e controle do
empregador sobre o empregado. A indústria emergente transformada pela
tecnologia, já não mais oferece os empregos necessários à ocupação da
mão de obra disponível. Assim, o grande desafio é combinar os avanços
tecnológicos com a melhoria do bem comum.
Nesse contexto, a modalidade de trabalho em plataformas digitais cres-
ce no mundo e no Brasil, de forma acelerada, principalmente no ambiente de
crise econômica em que se vive. A quantidade de trabalhadores entregadores
que se enxerga nas ruas, se deslocando de um lado para o outro, utilizando
uma bicicleta ou uma motocicleta e carregando nas costas uma caixa colori-
da, estampada com o logo de grandes empresas, é uma forma de trabalho e de
sobrevivência para um número expressivo de pessoas.
Este trabalho, conectado a uma plataforma digital, facilitado pelo uso
da tecnologia, implica em uma relação desigual e assimétrica que conduz a
precarização do trabalho. Dito isso, a questão social não pode ser deixada de
lado. É neste sentido que, em janeiro de 2019, a Comissão Global Sobre o Fu-
turo do Trabalho (2019), criada pela Organização Internacional do Trabalho,
produziu importante relatório, tendo em vista uma agenda para o futuro do
trabalho, que seja centrada no ser humano.
Nesse sentido, pretende-se contextualizar o conteúdo, produzido em
2019, pela Comissão Global Sobre o Futuro do Trabalho da Organização
Internacional do Trabalho com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável das Nações Unidas (2015).
2 - A INDÚSTRIA 4.0 E AS RELAÇÕES DE TRABALHO
As Três Revoluções Industriais, podem ser resumidas da seguinte
forma: a primeira, entre 1760 e 1840, ocorrida na Grã-Bretanha é marca-
da pela construção de ferrovias, invenção da máquina a vapor e produção
140
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

mecânica; a segunda, entre o final do século XIX e século XX, marcada


pelo advento da eletricidade e da linha de montagem, que propiciou a
produção em massa; e a terceira começou na década de 1960 e teve como
marca a revolução digital e o desenvolvimento marcante da internet. To-
das tiveram grande importância no desenvolvimento da humanidade.
As tecnologias digitais surgidas na terceira revolução tornaram pos-
sível a capacidade de armazenar, processar e transmitir informações em
formato digital. Esse rápido desenvolvimento tecnológico deu nova forma
a economia e, como não poderia ser diferente, no mundo do trabalho.
A virada do século XX para XXI é o início da “Quarta Revolução
Industrial” ou “Revolução 4.0”. Há nesta fase do desenvolvimento uma
série de inovações tecnológicas em curso, por exemplo: inteligência artifi-
cial, robótica, internet das coisas, veículos autônomos, impressão em 3D,
nanotecnologia, biotecnologia, armazenamento de energia e computação
quântica.
Também chamada de “Indústria 4.0”, esta se diferencia das outras
anteriores, pois na Quarta Revolução Industrial há “a fusão dessas tec-
nologias e a interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos”
(SCHWAB , 2016, p. 16). Também se diferencia no que tange a velocida-
de, amplitude, e profundidade. Ocorre que, as novas tecnologias da quarta
revolução se dimensionaram e estão se dimensionando rapidamente, eis
que foram construídas e difundidas por meio das redes digitais da terceira
revolução. A “Indústria 4.0”, termo criado na Alemanha, é explicada por
Schwab:
Na Alemanha, há discussões sobre a “indústria 4.0”, um ter-
mo cunhado em 2011 na feira de Hannover para descrever
como isso irá revolucionar a organização das cadeias globais
de valor. Ao permitir “fábricas inteligentes”, a quarta revo-
lução industrial cria um mundo onde os sistemas físicos e
virtuais de fabricação cooperam de forma global e flexível.
Isso permite a total personalização de produtos e a criação de
novos modelos operacionais. (SCHWAB , 2016, p. 16)

Portanto, a “Revolução 4.0” ou “Indústria 4.0” não é mais uma etapa


do desenvolvimento tecnológico, trata-se de uma mudança de paradigma.
De acordo com Abramovay (2017, p. 14) a “Indústria 4.0” traz consigo
uma tendência à digitalização e a automatização total das fábricas para
levar sua produção a uma total independência da obra humana. Diante dis-
so, a grande transformação do capitalismo do século XXI foi o surgimento
da empresa-plataforma.
141
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Ainda, conforme Abramovay (2017, p. 14) é possível citar, por


exemplo, as empresas de plataforma, Facebook, Google, Amazon e Netflix
como paradigmas da “Indústria 4.0”, nos quais os meios de produção são,
basicamente, a capacidade de processamento de informações.
Como consequência dessa veloz mudança, a partir das inovações
tecnológicas, há uma nova realidade no mundo do trabalho, com a criação
de plataformas de intermediação de trabalho humano e a utilização de
três componentes principais – Internet, Big Data e Smartphone. Toda essa
tecnologia disruptiva, sem dúvida, afetou e continua afetando o modo de
organização das empresas e dos trabalhadores.
O uso da tecnologia da informação, dados e internet, além das plata-
formas como infraestruturas que viabilizam negócios, organizam a produ-
ção e a prestação de serviços com enfoque na economia digital. Conforme
Zipperer:
As plataformas permitem a reorganização de atividades, a
fragmentação das tarefas facilita a prestação remota de ser-
viços, o deslocamento de custos, o aumento da concorrência.
Reduzem barreiras entre o trabalho e os ambientes domésti-
cos. Diluem fronteiras geográficas entre trabalhadores de di-
ferentes países, além de outras consequências. (ZIPPERER,
2019, p. 33).

Da mesma forma, alerta Antunes que:


Sem tergiversações: com a Indústria 4.0, teremos uma nova
fase da hegemonia informacional-digital, sob o comando do
capital financeiro, na qual celulares, tablets, smartphones e
assemelhados cada vez mais se converterão em importantes
instrumentos de controle, supervisão e comando nesta nova
etapa da ciberindústria do século XXI. (ANTUNES, 2020,
p. 15).

A extrema flexibilidade na utilização desta mão de obra e a trans-


ferência dos riscos do negócio ao prestador de serviços, tem se transfor-
mado em realidade para uma grande parte da força de trabalho. A relação
de trabalho que, por si só, já é desigual, com o excesso de flexibilidade
e o afastamento da intervenção do Estado, torna esta desigualdade ainda
maior, pois o proprietário da plataforma digital fixa as condições – em seu
benefício – e os trabalhadores devem aceitá-las, sob pena de não traba-
lharem.

142
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Enfrenta-se uma nova realidade no mundo do trabalho. Trata-se do


que se chama atualmente de um “trabalho sob demanda”. Conforme Lud-
mila Abílio:
O tempo de trabalho passa para o centro da análise. Precari-
zação do trabalho nas suas formas contemporâneas e consu-
mo produtivo têm um elo em comum: a indiscernibilidade ou
mesmo indistinção entre tempo de trabalho e tempo de não
trabalho – indistinção que pode significar que todo tempo se
torna potencial tempo de trabalho. (ABÍLIO, 2014, p. 173).

Numa escala mundial, milhões de trabalhadores já aderiram a novas


formas de contratação via plataformas digitais. Dentre as inúmeras formas
e relações de trabalho, surgidas recentemente, destaca-se, por exemplo, a
empresa UBER. Com os avanços das tecnologias da informação e comu-
nicação (TICs) aflora o trabalho digital.
Nesse contexto, se disseminou rapidamente e tem ganhado grande
repercussão a chamada “Economia do Compartilhamento”. Nas palavras
de Tom Slee:
A Economia do Compartilhamento é uma onda de novos ne-
gócios que usam a internet para conectar consumidores com
provedores de serviço para trocas no mundo físico, como
aluguéis imobiliários de curta duração, viagens de carro ou
tarefas domésticas. Na crista desta onda estão Uber e Airbnb,
cada um mostrando um crescimento vertiginoso para susten-
tar a alegação de que estão desbancando as indústrias tradi-
cionais de transporte e hotelaria. Essas duas são seguidas por
um batalhão de outras companhias, que competem para se
juntar a elas no topo do mundo da Economia de Comparti-
lhamento.
Seus defensores em algumas ocasiões descrevem a Economia
de Compartilhamento como um novo tipo de negócio. Em ou-
tras, como um movimento social. Seria uma mistura afetiva
de comércio e causa no mundo digital. (SLEE, 2017, p. 21)

O autor chama a atenção para o fato de que a Economia do Com-


partilhamento promete auxiliar os indivíduos a controlar suas vidas, es-
sencialmente aqueles que são mais vulneráveis, sendo uma “alternativa
sustentável para o comércio de grande circulação, ajudando-nos a fazer
um uso melhor de recursos subutilizados.” (SLEE, 2017, p. 22). Todavia,
Tom Slee alerta que:

143
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
Infelizmente, algo diferente e ao mesmo tempo mais som-
brio está acontecendo: a Economia do Compartilhamento
está propagando um livre mercado inóspito e desregulado
em áreas de nossas vidas que antes estavam protegidas. As
companhias dominantes do setor se tornaram forças grandes
e esmagadoras, e, para ganhar dinheiro e para manter suas
marcas, estão desempenhando um papel mais e mais invasi-
vo nas trocas que intermedeiam. À medida que a Economia
do Compartilhamento cresce, está remodelando cidades sem
considerar aquilo que as tornava habitáveis. Em vez de tra-
zer uma nova fase de abertura e confiança pessoal a nossas
interações, está criando uma nova forma de fiscalização, em
que os prestadores de serviço devem viver com medo de ser
delatados pelos clientes. (SLEE, 2017, p. 22-23).

Assim, a revolução tecnológica e o desenvolvimento da Economia


do Compartilhamento e das plataformas digitais, para a realização de ta-
refas, apesar de toda a inovação, demonstram, cada vez mais, que se está
indo na direção oposta aos interesses dos trabalhadores. Com efeito, não
é possível aceitar que o novo modelo produtivo esteja baseado em um
paradigma de exploração do trabalho.
3 - OS TRABALHADORES ENTREGADORES E A SUPEREXPLO-
RAÇÃO DO TRABALHO
Hoje, o trabalho executado está, cada vez mais, virtual, global e ter-
ceirizado. O panorama atual não é animador. A tecnologia já está modifi-
cando, completamente, a forma de muitas empresas atuarem no mercado,
tornando o trabalhador subordinado uma figura desnecessária. Aliado a
isto, cabe ressaltar o que ensina Antunes:
Uma análise do capitalismo atual nos obriga a compreender
que as formas vigentes de valorização do valor trazem embu-
tidos novos mecanismos geradores de trabalho excedente, ao
mesmo tempo em que expulsam da produção uma infinida-
de de trabalhadores, que se tornam sobrantes, descartáveis e
desempregados. Esse processo tem clara funcionalidade para
o capital, ao permitir a intensificação, em larga escala, do
bolsão de desempregados, o que reduz ainda mais a remu-
neração da força de trabalho em amplitude global, por meio
da retração salarial daqueles assalariados que se encontram
empregados. (ANTUNES, 2018, p. 66)

144
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

No Brasil, por exemplo, é crescente o número de trabalhadores que


realizam a atividade de entregadores de refeições, conectados a uma pla-
taforma digital, ou a mais de uma. Exercem o trabalho fazendo as entregas
com motocicletas ou bicicletas carregando uma enorme caixa térmica co-
lorida nas costas. São novas formas de trabalho oriundas da modernização
tecnológica. As empresas, tais como, iFood, Rappi, Uber Eats e Loggi,
mantém o discurso de que não são empregadoras, mas apenas empresas
de tecnologia.
Estas empresas alegam que aproximam os estabelecimentos comer-
ciais, os consumidores e os entregadores. Por outro lado, os entregadores
a elas conectados são tratados como autônomos, sem qualquer tipo de
vínculo. Nesse contexto, essa forma de relação laboral, com uso da tecno-
logia, estimula a precarização.
O momento impõe a discussão se esse novo modelo de trabalho real-
mente está relacionado com a liberdade e o ganho fácil, propalados pelas
empresas de plataforma, ou se apropria duma enorme massa de invisíveis,
tornando-os mera força de trabalho utilizada conforme a demanda.
O que se percebe é que nessas plataformas vários riscos do negócio
são repassados ao trabalhador, a exemplo do cancelamento de chamadas
e do tempo de espera não remunerado. Além disso, os trabalhadores das
plataformas enfrentam baixas remunerações com a consequente necessi-
dade de trabalhar muitas horas diárias, para cobrir custos, e em condições
perigosas. Também, ao ficarem doentes estão desamparados, sem proteção
social. Assim, com frequência, as plataformas ficam muito abaixo dos pa-
drões de trabalho decente.
Com o protagonismo da tecnologia, o trabalho subordinado clássico
está diminuindo, todavia, isso não quer dizer que estes novos trabalhado-
res, que aderem a uma plataforma digital, não necessitam de condições
dignas de trabalho. Necessário chamar a atenção que o trabalho humano,
conforme item I, “a” da Declaração de Filadélfia (1944), não é uma mer-
cadoria! Isso quer dizer que, o trabalho está centralizado na pessoa huma-
na e tem como objetivo a garantia fundamental da dignidade humana do
trabalhador, independentemente de sua posição social ou econômica.
Para corroborar, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em
1999 definiu o conceito de trabalho decente, ou seja, aquele que é remu-
nerado adequadamente, exercido em liberdade, seguro e capaz de garantir
uma vida digna. (OIT, 2021)

145
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Com o objetivo de pressionar as plataformas digitais por melho-


res condições de trabalho, a partir da noção de trabalho decente, previsto
pela Organização Internacional do Trabalho, existe o projeto denominado
Fairwork (DIGI LABOUR, 2020). Este é um projeto de pesquisa liderado
pela Universidade de Oxford e presente em 10 países, que reuniu plata-
formas, trabalhadores, sindicatos, reguladores e acadêmicos em reuniões
realizadas na OIT, a fim de estabelecer princípios globais para um traba-
lho mais justo nas plataformas digitais.
Os princípios desenvolvidos pelo FAIRWORK são:
1. Fair Pay
Workers, irrespective of their employment classification,
should earn a decent income in their home jurisdiction after
taking account of work-related costs and active hours worked.
They should be paid on time, and for all work completed.
2. Fair Conditions
Platforms should have policies in place to protect workers
from foundational risks arising from the processes of work,
and should take proactive measures to protect and promote
the health and safety of workers.
3. Fair Contracts
Terms and conditions should be transparent, concise, and al-
ways accessible to workers. The party contracting with the
worker must be subject to local law and must be identified in
the contract. Workers are notified of proposed changes in a
reasonable timeframe before changes come into effect. The
contract is free of clauses which unreasonably exclude lia-
bility on the part of the platform, and which prevent work-
ers from seeking redress for grievances. Contracts should
be consistent with the terms of workers’ engagement on the
platform.
4. Fair Management
There should be a documented due process for decisions
affecting workers. Workers must have the ability to appeal
decisions affecting them, such as disciplinary actions and
deactivation, and be informed of the reasons behind those
decisions. The use of algorithms is transparent and results
in equitable outcomes for workers. There should be an iden-
tifiable and documented policy that ensures equity in the way
workers are managed on a platform (for example, in the hir-
ing, disciplining, or firing of workers).
5. Fair Representation
Platforms should provide a documented process through
which worker voice can be expressed. Irrespective of their

146
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
employment classification, workers have the right to orga-
nise in collective bodies, and platforms should be prepared
to cooperate and negotiate with them.2 (FAIRWORK, 2020)

Esses cinco princípios são aplicáveis a todos os tipos de trabalho em


plataformas digitais. O trabalho humano é fundamental e principalmente
neste crescente de relações de trabalho conectadas a plataformas digitais,
devem ser, portanto, obervados os compromissos com a dignidade huma-
na e a promoção de justiça social.
Por exemplo, a relação desigual entre trabalhadores e entregadores
ficou ainda mais evidente durante a pandemia do novo coronavírus em
2020/2021. Os entregadores no Brasil passaram a trabalhar mais, ganhan-
do menos e correndo riscos para manter parte da sociedade em isolamento
social. Por isto, estas questões assumem uma importância urgente, no sen-
tido de desvelar o discurso hegemônico do empreendedorismo, diante de
uma flagrante superexploração do trabalho.
Atualmente, este contingente enorme de trabalhadores está captura-
do pela necessidade da sobrevivência e recebem a denominação de “pre-

2
Tradução livre. 1. Pagamento justo: Os trabalhadores, independentemente de sua classifi-
cação profissional, devem ganhar uma renda decente em sua jurisdição de origem, levando
em consideração os custos relacionados ao trabalho e as horas ativas trabalhadas. Eles de-
vem ser pagos em dia e por todo o trabalho concluído. 2. Condições justas: As plataformas
devem ter políticas para proteger os trabalhadores dos riscos fundamentais decorrentes dos
processos de trabalho e devem tomar medidas proativas para proteger e promover a saúde e
a segurança dos trabalhadores. 3. Contratos justos: Os termos e condições devem ser trans-
parentes, concisos e sempre acessíveis aos trabalhadores. A parte que contrata o trabalhador
deve estar sujeita à legislação local e deve ser identificada no contrato. Os trabalhadores são
notificados das mudanças propostas em um prazo razoável antes que as mudanças entrem em
vigor. O contrato está livre de cláusulas que excluem injustificadamente a responsabilidade
por parte da plataforma e que impedem os trabalhadores de buscarem reparação por quei-
xas. Os contratos devem ser consistentes com os termos de engajamento dos trabalhadores na
plataforma. 4. Gestão Justa: Deve haver um devido processo documentado para as decisões
que afetam os trabalhadores. Os trabalhadores devem ter a capacidade de apelar das decisões
que os afetam, como ações disciplinares e desativação, e ser informados das razões por trás
dessas decisões. O uso de algoritmos é transparente e resulta em resultados equitativos para
os trabalhadores. Deve haver uma política identificável e documentada que garanta equidade
na forma como os trabalhadores são gerenciados em uma plataforma (por exemplo, na con-
tratação, disciplina ou demissão de trabalhadores). 5. Representação Justa: As plataformas
devem fornecer um processo documentado por meio do qual a voz do trabalhador pode ser
expressa. Independentemente de sua classificação profissional, os trabalhadores têm o direito
de se organizar em órgãos coletivos e as plataformas devem estar preparadas para cooperar
e negociar com eles.
147
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

cariado”. Nas palavras de Standing:


Uma maneira de olhar para o precariado é perceber como as
pessoas passam a realizar formas inseguras de trabalho que
provavelmente não as ajudarão a construir uma identidade
desejável ou carreira cobiçada. Ser precarizado é ser sujeito
a pressões e experiências que levam a uma existência preca-
riada, de viver no presente, sem uma identidade segura ou um
senso de desenvolvimento alcançado por meio do trabalho e
do estilo de vida. (STANDING, 2017, p. 36-37).

Standing complementa:
As políticas que promovem a flexibilidade de emprego des-
gastam os processos de interação relacional e de pares que
são vitais para a reprodução de habilidades e atitudes cons-
trutivas no trabalho. Se você espera mudar o que está fazendo
durante quase todo o tempo, mudar de ‘empregador’ a curto
prazo, mudar os colegas e, acima de tudo, mudar a maneira
pela qual você chama a si mesmo, a ética do trabalho se tor-
na constantemente contestável e oportunista. (STANDING,
2017, p. 37)

Esse precariado está superexposto, desempregado e fragilizado, não


estando mais amparado pelas conquistas históricas que se traduzem em
segurança. Ele deve assumir os imprevistos de seu percurso profissional,
que se tornou descontínuo, bem como “ele é de alguma forma obrigado a
ser livre, intimado a ser bem-sucedido, sendo ao mesmo tempo totalmente
entregue a si mesmo”. (CASTEL, 2005, p. 46-47).
Nota-se que estes trabalhadores precarizados apontam para um efei-
to, bem concreto, do impacto da tecnologia no mundo do trabalho, qual
seja, a dependência e a precariedade caminham lado a lado. Portanto, urge
a necessidade de não se afastar da matriz constitucional brasileira, que
no art. 1º da Constituição Federal, têm como um dos seus fundamentos a
dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho.
Pois bem, diante desse avanço da tecnologia e suas repercussões no
trabalho, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), atenta para as
consequências geradas, reuniu uma Comissão Global Sobre o Futuro do
Trabalho, com o intuito de produzir um Relatório que retrate a urgência
das mudanças que o mundo do trabalho está enfrentando.

148
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

4 - A ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E A


AGENDA 2030 DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
Em atenção a essas transformações, que estão sendo vivenciadas no
mundo do trabalho, a Organização Internacional do Trabalho criou, em
outubro de 2017, a Comissão Global Sobre o Futuro do Trabalho (2019).
Esta referida Comissão, em janeiro de 2019, publicou o relatório intitu-
lado: Trabalho para um Futuro mais Brilhante, com o intuito de inspirar
mais discussões, no que tange as mudanças que o mundo do trabalho está
enfrentando. A Comissão está baseada em três eixos, que são: “Aproveitar
o Momento”, “Estabelecer o Contrato Social: uma agenda centrada no ser
humano” e “Assumir a Responsabilidade”.
O Relatório, elaborado pela Comissão (2019), aponta que é preciso
aproveitar o momento, fornecer respostas confiáveis às preocupações das
pessoas, e desvendar as inúmeras oportunidades que tais mudanças tra-
zem, bem como elaborar uma agenda de ações que melhorará a vida das
pessoas em todo o mundo. De acordo com a publicação, 344 milhões de
empregos precisam ser criados até 2030; 2 bilhões de pessoas ganham seu
sustento da economia informal e 36,1% da mão de obra mundial tem uma
jornada de trabalho excessivamente longa (mais de 48 horas por semana).
Menciona, também, o relatório, uma nova abordagem, de uma agen-
da centrada no ser humano visando o futuro do trabalho. Essa agenda se
concentra em três pilares de ação:
1. investir nas capacidades das pessoas, permitindo-lhes ad-
quirir e desenvolver competências, e apoiá-las através das
várias transições que irão enfrentar ao longo do curso da vida.
2. investir nas instituições de trabalho para garantir um futuro
de trabalho com liberdade, dignidade, segurança econômica
e igualdade.
3. investir em trabalho decente e sustentável e moldar regras
e incentivos para alinhar política econômica e social e prática
de negócios com essa agenda. (COMISSÃO GLOBAL SO-
BRE O FUTURO DO TRABALHO, 2019).

Portanto, a Comissão recomenda que a Organização Internacional


do Trabalho dê alta prioridade aos principais desafios da mudança do tra-
balho. Diante dessas mudanças fundamentais e disruptivas na vida dos
trabalhadores, torna-se ainda mais necessária a atuação dos países em es-
tabelecer uma agenda universal, que tenha como objetivo direcionar o
mundo para um caminho sustentável.

149
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Por isso, a importância de trazer para a discussão, a Agenda 2030


para o Desenvolvimento Sustentável (NAÇÕES UNIDAS BRASIL,
2021), criada pela Organização das Nações Unidas, que estabelece um
plano de ação e elenca 17 objetivos globais (17 Objetivos de Desenvol-
vimento Sustentável, com 169 metas), cujo escopo é o desenvolvimento
global. São estes, os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável:
1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em
todos os lugares;
2. Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e
melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentá-
vel;
3. Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar
para todos, em todas as idades;
4. Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qua-
lidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao
longo da vida para todos;
5. Alcançar à igualdade de gênero e empoderar todas as
mulheres e meninas;
6. Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da
água e saneamento para todos;
7. Assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a
preço acessível à energia para todos;
8. Promover o crescimento econômico sustentado, inclu-
sivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho
decente para todos;
9. Construir infraestruturas resilientes, promover a indus-
trialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação;
10. Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles;
11. Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclu-
sivos, seguros, resilientes e sustentáveis;
12. Assegurar padrões de produção e de consumo sus-
tentáveis;
13. Tomar medidas urgentes para combater a mudança do
clima e seus impactos;
14. Conservação e uso sustentável dos oceanos, dos ma-
res e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sus-
tentável;
15. Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos
ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as flo-
restas, combater a desertificação, deter e reverter a de-
gradação da terra e deter a perda de biodiversidade;
16. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o
desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à
justiça para todos e construir instituições eficazes, res-

150
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
ponsáveis e inclusivas em todos os níveis; e
17. Fortalecer os meios de implementação e revitalizar
a parceria global para o desenvolvimento sustentável.
(NAÇÕES UNIDAS BRASIL, 2021)

Tais objetivos são fruto de pesquisas e estudos que a ONU realiza há


décadas. O Brasil, como país-membro, teve participação no planejamen-
to, concordou com os mesmos e, por isso, tem a obrigação de adotar essa
agenda de longo prazo e internalizar os compromissos, com ações concre-
tas, que ajudem a transformar a realidade do país e do mundo.
Trata-se de documento fundamental para diversas matérias no âmbi-
to trabalhista, bem como está em harmonia com as preocupações aponta-
das no documento produzido pela Comissão Global sobre o Futuro do Tra-
balho. Entre os 17 Objetivos, merece destaque o de número 8, pois trata
especificamente da questão do crescimento econômico sustentado, aliado
a um trabalho decente para todos. Dispõe o Objetivo 8 e suas metas:
Objetivo 8. Promover o crescimento econômico sustentado,
inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho
decente para todos;
8.1 Sustentar o crescimento econômico per capita de acordo
com as circunstâncias nacionais e, em particular, um cres-
cimento anual de pelo menos 7% do produto interno bruto
[PIB] nos países menos desenvolvidos;
8.2 Atingir níveis mais elevados de produtividade das econo-
mias por meio da diversificação, modernização tecnológica e
inovação, inclusive por meio de um foco em setores de alto
valor agregado e dos setores intensivos em mão de obra;
8.3 Promover políticas orientadas para o desenvolvimento
que apoiem as atividades 26 produtivas, geração de emprego
decente, empreendedorismo, criatividade e inovação, e in-
centivar a formalização e o crescimento das micro, pequenas
e médias empresas, inclusive por meio do acesso a serviços
financeiros;
8.4 Melhorar progressivamente, até 2030, a eficiência dos
recursos globais no consumo e na produção, e empenhar-se
para dissociar o crescimento econômico da degradação am-
biental, de acordo com o Plano Decenal de Programas sobre
Produção e Consumo Sustentáveis, com os países desenvol-
vidos assumindo a liderança;
8.5 Até 2030, alcançar o emprego pleno e produtivo e traba-
lho decente todas as mulheres e homens, inclusive para os jo-
vens e as pessoas com deficiência, e remuneração igual para
trabalho de igual valor;

151
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
8.6 Até 2020, reduzir substancialmente a proporção de jovens
sem emprego, educação ou formação;
8.7 Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o tra-
balho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico
de pessoas, e assegurar a proibição e eliminação das piores
formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utili-
zação de crianças soldado, e até 2025 acabar com o trabalho
infantil em todas as suas formas;
8.8 Proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de
trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores, in-
cluindo os trabalhadores migrantes, em particular as mulhe-
res migrantes, e pessoas em empregos precários;
8.9 Até 2030, elaborar e implementar políticas para promover
o turismo sustentável, que gera empregos e promove a cultura
e os produtos locais;
8.10 Fortalecer a capacidade das instituições financeiras na-
cionais para incentivar a expansão do acesso aos serviços
bancários, de seguros e financeiros para todos;
8.a Aumentar o apoio da Iniciativa de Ajuda para o Comércio
[Aid for Trade] para os países em desenvolvimento, particu-
larmente os países menos desenvolvidos, inclusive por meio
do Quadro Integrado Reforçado para a Assistência Técnica
Relacionada com o Comércio para os países menos desen-
volvidos;
8.b Até 2020, desenvolver e operacionalizar uma estratégia
global para o emprego dos jovens e implementar o Pacto
Mundial para o Emprego da Organização Internacional do
Trabalho [OIT]. (NAÇÕES UNIDAS BRASIL, 2021).

Conforme transcrito, os Objetivos estão bem delimitados e reque-


rem empenho de todos (Estado e Sociedade) para o atingimento dos re-
sultados, que não são fáceis no contexto da realidade brasileira. Nesse
quadro, ensina o professor Rodriguez que:
Ora, em uma era de precarização do trabalho em que as pes-
soas são contratadas para realizar trabalhos mal pagos, de
curta duração e altamente instáveis e precisam sobreviver
sem o apoio de estados de bem-estar social, especialmente
em países periféricos como o Brasil, é cada vez mais difícil
prever o futuro, ao menos para quem vive exclusivamente do
seu trabalho. (RODRIGUEZ, 2019, p. 363).

Como já abordado nesse trabalho, a precarização nas condições de


trabalho, por exemplo, dos trabalhadores entregadores é uma realidade e
o trabalho em plataformas digitais assume abrangência global.

152
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Assim, cabe ressaltar e enfatizar que a preocupação com o trabalho


decente não pode ser descuidada e são muito bem-vindas as iniciativas
que visem a proteção desses trabalhadores, eis que o modelo produtivo
que avança está retirando rapidamente a “âncora” da estabilidade, tornan-
do os trabalhadores cada vez mais inseguros.
5 - CONCLUSÃO
Foi tratado, no início deste trabalho, que o surgimento de novas
tecnologias, está impactando velozmente e decisivamente as relações de
trabalho. Com o advento da “Indústria 4.0” o mundo do trabalho vem
enfrentando uma profunda e radical transformação que fica caracterizada
pela mudança paradigmática de implantação de novos modelos de organi-
zação do trabalho.
A chamada “economia do compartilhamento” veio para ficar e seu
modelo, baseado em plataformas digitais, atinge um número cada vez
maior de trabalhadores. A revolução tecnológica torna as mudanças ine-
vitáveis e irreversíveis, contudo, não se deve descuidar da proteção dos
trabalhadores, ou seja, o objetivo que sempre se deve perquirir é o do
trabalho decente e o combate a precarização.
O direito a uma renda adequada, proteção contra arbitrariedades,
segurança para exercer o trabalho, oportunidades de aperfeiçoamento e
liberdade de organização coletiva, são conquistas históricas dos trabalha-
dores, adquiridas mediante muito esforço e lutas ao longo das décadas.
Enfim, não são poucos os desafios, e é nesse sentido, que a Orga-
nização Internacional do Trabalho, vem desenvolvendo uma agenda cen-
trada no ser humano e que consiste em três pilares de ação, combinados
entre si: aumentar o investimento nas capacidades das pessoas, aumentar
o investimento nas instituições do trabalho e aumentar o investimento em
trabalho decente e sustentável.

153
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

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155
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

156
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

O DIREITO DO TRABALHO E O DIREITO AO TRABALHO: UMA


REFLEXÃO SOBRE O VALOR CONSTITUCIONAL DA ATIVIDADE
HUMANA

Ramiro Crochemore Castro1

RESUMO: O presente artigo é uma breve reflexão sobre o atual papel da


Justiça e do Direito do Trabalho e se estes devem se limitar apenas ao em-
prego formal. este estudo pretende identificar se esta formulação serve para
embasar a defesa da construção de um novo paradigma da proteção dos tra-
balhadores, a partir da justiça social e com uma abordagem Social e humana
do Trabalho. Para atingir tais fins, utilizou-se o método hipotético-dedutivo
e como técnica de pesquisa a revisão bibliográfica e jurisprudencial sobre o
tema.
Palavras-chaves: Competência; Constituição Federal; Justiça do Trabalho;
Vínculo de emprego.

1
Graduado em Direito pela PUCRS. Advogado Trabalhista. Especialista em Direito do Tra-
balho pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM) na Espanha e pós-graduando em
Direito e Processo do Trabalho e Seguridade Social na Fundação Escola da Magistratura do
Estado do Rio Grande do Sul (FEMARGS). Mestrando em Direito pela Fundação da Escola
Superior do Ministério Público (FMP-RS) e vinculado ao grupo de pesquisa Transparência,
Direito Fundamental de Acesso e Participação na Gestão da Coisa Pública coordenado pela
professora doutora Maren Guimarães Taborda. Endereço eletrônico: ramiro@copadvogados.
com.br

157
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

1 - INTRODUÇÃO
Se toma como verdade, e como pilar principiológico, epistemológico
e hermenêutico da normativa internacional do Trabalho que este não é mer-
cadoria, tal qual exposto na Declaração da Filadélfia (OIT, 1944). Há de se
questionar a razão pela qual, no Brasil e no mundo, cada vez mais formas
de trabalho se tornaram mercadorias puras e simples, tendo suas questões
dirimidas na justiça Comum e submetidas à toda forma de contratos draco-
nianos, que sequer obedecem o exposto no Código Civil. Ademais, diga-se
de passagem que o direito do trabalho e os Estados Nacionais não se impor-
taram durante o século XX em regular e conceder direitos para o trabalho
não-remunerado, mas fundamental para a manutenção do modo de produção
capitalista, como o cuidado com a casa, com os filhos, com os doentes e com
os idosos, atividades estas geralmente realizadas pelas mulheres.
Cabe aqui explorar brevemente a etimologia e significado do léxico.
Uma interpretação recorrente é a de que a palavra desde cedo esteve rela-
cionada com castigo e pena, por derivar do latim Tripalium, uma ferramenta
utilizada para a tortura. Há múltiplas significações para o termo, com varia-
ções culturais, políticas, ideológicas, históricas, como fenômeno complexo
que é. Para além do viés econômico, o trabalho possui impacto e sentidos nos
âmbitos psicológicos, sociais, fisiológicos, espirituais, religiosos, e caráter
coletivo e individual. É um fenômeno em constante construção, sempre passí-
vel de ressignificação e da criação de novos paradigmas (FINCATO, 2013). O
Trabalho, aqui entendido como atividade humana, sempre existiu e vai exis-
tir, pois é aquilo que realizamos e com nosso esforço modificamos a natureza
e/ou o estado de coisas e sistemas ao nosso redor. O trabalho é inerente ao ser
humano, é dotado de significado e traz realização, um senso de pertencimen-
to, de identidade, nos permite criar laços como seres relacionais que somos
e traz uma noção de solidariedade que se estende posteriormente a noção de
classe trabalhadora. Em suma, trabalho é diferente de emprego, e o trabalho
em si não é alienante ou precário por natureza, mas é estruturado desta forma
dentro do capitalismo objetivando a coisificação do mundo e do homem, que
afasta o homem do fruto de seu trabalho (MARX, 2004), pois confunde-se
em seu estágio atual com a noção de trabalho obrigatório, forçado, para a
subsistência e para existir enquanto cidadão e ser de direitos (mínimos) na
sociedade de produção capitalista.
O presente estudo pretende debater se o atual patamar da legislação
laboral brasileira faz jus ao papel preponderante que as disposições constitu-
cionais garantiram ao trabalho humano, como pilar que estrutura a sociedade

158
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

brasileira. Se esta legislação dá conta dos desafios do trabalho no Brasil e no


mundo e ainda se a atual compreensão da expressão “relações de trabalho”,
contida no art. 114 da Constituição Cidadã de 1988, com redação dada pela
Emenda Constitucional nº 45/2004, que ampliou a competência da Justiça do
Trabalho, de sinônimo de relação de emprego é mesmo a mais correta herme-
neuticamente.
Para atingir tais finalidades e responder o problema à que se propõe,
organizou-se o presente estudo de forma a elaborar primeiro um breve recor-
rido do exposto em nossa Constituição Federal e tratados internacionais dos
quais o Brasil é signatário em relação às relações de trabalho questionando-se
sua efetividade, para então adentrar na defesa da necessidade de uma nova
abordagem sobre a problemática. A metodologia utilizada foi o método hipo-
tético-dedutivo e o procedimento escolhido foi a pesquisa jurisprudencial e
bibliográfica sobre o tema, e as conclusões vão sendo expostas nos capítulos
e concatenadas ao final do artigo.
2 - O DIREITO DO TRABALHO E A EFETIVIDADE DOS DITA-
MES CONSTITUCIONAIS
Confinar o Direito do Trabalho ao vínculo empregatício é uma opção
político-jurídica feita pelo legislador (sobretudo o Executivo durante a Era
Vargas) décadas atrás e reiterada pelos intérpretes desde então. O chamado
paradigma do direito do trabalho clássico foi arquitetado como uma resposta
ao ascenso do movimento operário, criando um modelo sindical corporativis-
ta com função pública, no qual o Estado intermediava o conflito capital-traba-
lho, anulando as entidades ligados ao anarquismo e o comunismo em troca da
primazia de negociações e reajustes para os sindicatos de base única e orga-
nizando um modelo sindical que respondesse ao contexto socioeconômico da
época, de crise do capitalismo e a missão de industrialização do país tomada
por Vargas (BIAVASCHI, 2007). Este tipo específico de trabalho, remunerado
e contratualizado superou o trabalho de tipo servil e a escravidão e contrato
de trabalho foi a maneira encontrada para que ao mesmo tempo se protegesse
o ser humano, dadas as objeções contratuais do corpo humano, que não é dis-
ponível tal qual as coisas (e por isso a necessidade de uma ramo especializado
do Direito para protegê-lo) e ao mesmo tempo legitimasse a lógica burguesa
que enxerga tudo como propriedade, e como tal, a maioria do povo, desprovi-
da de propriedade, tinha como único bem sua própria força de trabalho.
Independente da natureza ou da existência de formalização de contrato
entre as partes, a proteção dos trabalhadores é obrigação que se impõe ao
Estado, e o Direito do trabalho do século XXI não pode mais tolerar uma

159
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

legislação do emprego, e não do trabalho, que exclui ativamente a maioria


da população brasileira e mundial, que (sobre)vivem do trabalho e, portanto,
é alvo de uma exploração desprotegida, citando-se aí o trabalho doméstico,
o trabalho independente, autônomo, por contra própria, os estagiários e mais
recentemente o fenômeno da plataformização. É possível portanto fazer uma
defesa do elastecimento do direito do trabalho e da necessidade de elaborar
políticas públicas para a proteção destas variadas formas de trabalho a partir
de uma leitura sistemática de nosso ordenamento jurídico, sobretudo o artigo
1º da Constituição Federal que preconiza como fundamentos da república
a dignidade da Pessoa Humana e o valor social do trabalho e refere que a
livre iniciativa também possui valor social, o artigo 3º que preconiza como
objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade justa e
solidária, combinada com a meta de erradicar a pobreza e a desigualdade e o
capítulo II, dos Direitos Sociais, especialmente o art. 7º que ao constitucio-
nalizar os direitos trabalhistas, protege não apenas a relação de emprego, mas
a relação de trabalho, garantindo textualmente igualdade de direitos entre os
trabalhadores com vínculo empregatício e os que não o possuem (BRASIL,
1988) e aduzindo ainda na atual redação do art. 114, a competência da Justiça
do Trabalho para julgar demandas oriundas das relações de trabalho (BRA-
SIL, 2004).
Portanto, extrai-se do próprio texto Constitucional as bases principio-
lógicas fundamentais para a elaboração de instrumentos normativos de prote-
ção social e de tutela dos trabalhadores vulneráveis, não limitando-se inclusi-
ve ao âmbito juslaboral mas visando equilibrar e minimizar os efeitos sociais
da livre iniciativa e da liberdade de empresa, instrumentos da ordem econô-
mica e que portanto devem equacionar-se com as finalidades desta e nunca
sobrepujá-los, quais sejam propiciar existência digna à todos, assegurando
e produzindo justiça social no país. Desta leitura da vontade do constituinte
extrai-se que as empresas não podem produzir efeitos sociais comprometedo-
res das finalidades da ordem econômica e dos objetivos da república, vedado
portanto que as empresas realizem dumping social, e a partir da reflexão sobre
a função social da propriedade e da empresa, deve o Estado intervir e regu-
lar determinada atividade ou iniciativa, ainda que esta esteja pretensamente
dentro da legalidade (PASQUALOTTO, 2019). Esta leitura constitucional da
atividade econômica é raramente aplicada no país, que nos últimos anos vêm
centrando os esforços de regulação econômica e trabalhista na proteção da
empresa e não do trabalhador, e deve ser utilizada para combater os efeitos
nocivos das lacunas jurídicas produzidas pela natureza transnacional da tec-
nologia de informação, cuja velocidade e fronteiras vão além da capacidade

160
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

de regulamentação dos Estados Nacionais, que torna-se refém voluntário de


empresas que extraem capital e exploram mão de obra sem o devido retorno
social.
Não há espaço, portanto, para o direito civil, o direito entre iguais, nas
relações de trabalho. Esta ideia abarca outros conceitos dentro do direito pri-
vado, como o que embasou a criação do Código de Defesa do Consumidor,
a partir do conceito de hipossuficiente e vulnerável, aqui entendido como
deficiência estrutural e crônica entre as partes, sejam elas disparidades econô-
micas, técnicas, de informação, dentre outras (BRASIL, 1990). Nesta mesma
linha, Tarso Genro (2018) aduz que “A presunção de que o “tomador de servi-
ços” e o “prestador de serviços” podem contratar livremente, em igualdade de
condições (com base na presunção da igualdade formal) é só uma ficção jurí-
dica.” Genro ainda afirma que estas novas formas de organização do trabalho
e de prestação de serviços a partir das novas tecnologias e das novas formas
de controle colocam o sistema protetivo e tutelar da CLT, estruturado ainda no
conceito do operariado fabril do século XX, hoje minoritário numa sociedade
de serviços, em cheque. Há a necessidade então de formular-se uma nova
doutrina do Direito do Trabalho, à luz dos pressupostos constitucionais e dos
direitos fundamentais mínimos, e de apresentar-se novas formas de proteção:
(...) propostas objetivas (e normativas) de reformas de novo tipo,
por exemplo, como a proposta de uma proteção, a partir de um
Fundo Público análogo ao FGTS,  garantidor de uma “renda
mínima do trabalho”. Fundo que seria destinado ao trabalhador
precário, terceirizado de baixa renda, intermitente, “meio-jor-
nadista”, “improdutivo” (cuidadores de velhos, crianças com
deficiência, recuperadores de áreas naturais degradadas,etc.) 
-tanto autônomos como formalmente contratados- retirando-os
da subalternidade a que serão ainda mais jogados, através da
modernização em curso.(GENRO, 2018, n.p).

É preciso garantir que estes trabalhadores participem da rede de pro-


teção social do Estado Brasileiro, com o Poder Público garantindo sua vin-
culação aos sistemas de seguridade social, assegurando patamares mínimos
de remuneração, saúde e segurança no Trabalho, resguardando a integridade
física e psicológica destes Trabalhadores e combatendo a exploração. Parece
cristalino que cada vez mais a vinculação do trabalho não será realizada nos
moldes do direito do trabalho clássico, seja pela vontade do legislador de
criar novos subterfúgios e novos contratos precários, seja pela incapacidade
de nosso modelo doutrinário atual de compreender em toda sua dimensão o
complexo fenômeno da plataformização e gestão algorítmica do trabalho e de

161
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

ir além do paradigma da subordinação clássica. Portanto, a formulação de um


novo paradigma da proteção deve garantir a proteção dos trabalhadores e ao
mesmo tempo evitar que continue o aumento da “Pejotização”, atualmente a
forma mais promissora de formalização no país partir da figura do Microem-
preendedor Individual (MEIs), hoje já em mais de 10 milhões de CNPJs.
Sobre este novo paradigma a ser construído, ainda Tarso Genro et al (2018b):
[...]nós temos que opor a esse processo reformista liberal não
a visão social-democrata tradicional, mas uma nova visão so-
cial-democrata, inspirada em uma ideia socialista. Temos que
reorganizar a repartição da renda do trabalho, dentro da massa
salarial disponível, e temos que taxar os ricos e os grandes capi-
talistas, para que eles contribuam para um fundo de equalização
da remuneração do trabalho, que será cada vez mais realizado
fora dos parâmetros da CLT.(GENRO et al., 2018)

Advoga-se, pois, por uma nova leitura do art.114 da Constituição Fe-


deral e da locução “relações de trabalho”, visando ampliação da competência
da Justiça do Trabalho, e do alcance do Direito do Trabalho para dirimir os
conflitos advindos das diversas formas de relação de trabalho, novas ou não,
colocando a proteção social do art. 7º para todos, sob manto do conceito de
isonomia e equidade, e portanto de equivalência de direitos e de proteção,
ainda que não necessariamente exatamente os mesmos regramentos aplicá-
veis, uma vez que a Justiça especializada possui melhores condições para
efetivar essa proteção por ser o lugar de fala da classe trabalhadora, rompendo
com a tradição histórica do trabalho sem direitos no país. Tal esforço deve
ser combinado com a produção legislativa de novas normativas de proteções
de trabalho que ofereçam instrumentos capazes de fazer frente à ofensiva
de parte do capital privado de não conceder validade material aos direitos
fundamentais trabalhistas, não necessariamente emprego, uma vez sendo a
relação de emprego espécie da relação de trabalho.Inteligência e aplicabilida-
de do exposto no §2 do art.5º da Constituição Federal2, disposição que já foi
utilizada em diversos julgamentos pelo STF para garantir uma interpretação
ampla e de acordo com os valores substantivos da Constituição, como no caso
do casamento homoafetivo na ADPF 132, por exemplo. Neste interessante
julgamento, os ministros entenderam que a referência constitucional expressa
apenas ao homem e a mulher não excluía sobremaneira o reconhecimento dos
direitos aos casais homoafetivos como entidade familiar, mas apenas prote-
ção especial desta última (STF, 2011).
2
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes
do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte.(BRASIL, 1988)
162
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Isto acontece pois o trabalhador subordinado típico, o empregado, fruto


da relação clássica de subordinação e o contrato individual de trabalho por
tempo indeterminado são filhos da II revolução industrial e pilares do arqué-
tipo juslaboral positivado nos anos 1930 e 1940 no Brasil que apresenta limi-
tações e profunda incapacidade de responder sozinho aos processos paralelos
de enfraquecimento deste arquétipo (CASTRO, 2006), por um lado criando
novas espécies de contratos precários e por outro estimulando a criação de
zonas gris como no caso do capitalismo de plataforma, e ao mesmo tempo
continuamente ignorando a massa de milhões de trabalhadores que não pos-
suem vínculo formal.
3 - A NECESSIDADE DE UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DA EX-
PRESSÃO “RELAÇÃO DE TRABALHO”
Em 2004 foi aprovada a Emenda Constitucional nº 45 que até hoje
gera debates e reflexões, e que ampliou sobremaneira a competência da Jus-
tiça do Trabalho em um momento em que a Justiça especializada passada por
intensas transformações, como o fim das Juntas de Conciliação e Julgamento
apenas uns anos antes, em 2001.A leitura do referido texto da norma consubs-
tancia uma visão de que não apenas as ações oriundas do vínculo de emprego
stricto sensu deveriam ser julgadas na justiça do trabalho, mas todas aquelas
fruto do trabalho humano, interpretando o artigo de acordo com texto Consti-
tucional como um todo, e o papel essencial que o trabalho possui:
 Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:  (Re-
dação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)   (Vide
ADIN 3392) (Vide ADIN 3432)
I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes
de direito público externo e da administração pública direta e
indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Muni-
cípios; (BRASIL, 2004)

Recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF) na discussão do tema


550 da Repercussão Geral, que analisou o RE 606.003, cuja lide versava so-
bre o pagamento de comissões para um representante comercial, vencido o
relator Ministro Marco Aurélio de Mello, extraindo hermeneuticamente uma
equivalência entre as expressões emprego e trabalho:
Preenchidos os requisitos dispostos na Lei 4.886/65, compete à
Justiça Comum o julgamento de processos envolvendo relação
jurídica entre representante e representada comerciais, uma vez
que não há relação de trabalho entre as partes.(STF, 2020)

163
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Destaca-se trecho do voto do Eminente Ministro, ainda que derrotado


pela divergência do Ministro Barroso, que deixa claro a intenção da Emenda
Constitucional nº 45 de superar o entendimento de Justiça dos empregados,
consoante o signo da inclusão que é a marca da Carta Magna Cidadã (STF,
2020):
O que houve em decorrência da Emenda Constitucional nº
45/2004?
A ampliação marcante – talvez considerados os novos ares da
Justiça do Trabalho, com a anterior exclusão dos leigos – da
competência. Impôs-se adoção de óptica diversa, abandonan-
do-se o critério de relação de emprego e adotando-se a rela-
ção de trabalho como base maior, muito mais abrangente e
genérica, congregando inúmeros vínculos de trabalho. (...)
Assim, controvérsias decorrentes, mesmo que de maneira in-
direta, da relação de trabalho devem ser julgadas pela Justiça
especializada, como é o caso das envolvendo representantes co-
merciais. (grifos nossos)

A interpretação restritiva do STF infelizmente não limita-se apenas a


este julgado, e é ilustrativa de um posicionamento claro que a Corte vem
tomando nos últimos anos pró-mercado e supervalorizando a Liberdade Eco-
nômica em detrimento dos direitos dos trabalhadores, como recentemente de-
cidido em favor das pessoas jurídicas na ADC 66 e sobretudo após a edição da
Lei 13.874/2019. Por certo que não se advoga pela ampliação demasiada da
competência da Justiça do Trabalho e do alcance material do Direito do Tra-
balho, que continuam sendo ramo especializado- e não-ordinário- do Direito,
mas a interpretação majoritária dada à redação da EC 45/2004 respondia a um
mundo do trabalho e uma organização produtiva que vinha batendo recordes
de formalização do emprego (DIEESE, 2012). Neste sentido, uma alternati-
va a ser elaborada poderia ser uma maior atribuição ao juízo (ope judicis), a
partir dos argumentos das partes e da verificação do caso concreto, superando
paradigmas ope legis e contratatualistas que engessam o direito ao acesso à
justiça e ao ir de encontro aos primados do direito do trabalho, como a pri-
mazia da realidade à frente de construções jurídico-formais impedem uma
resposta célere e eficaz do Estado Brasileiro, bem como uma maior expansão
do conceito de subordinação para que compreenda as novas organizações do
trabalho, que vão além da subordinação clássica fordista, como a subordina-
ção algorítmica, a subordinação estrutural e resgatando elementos advindos
dos conceitos de subordinação técnica, econômica e social.
Diversas instituições, dentre elas a Organização Internacional do Tra-
balho (OIT) vêm se preocupando com a questão social e multidimensional
164
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

do trabalho, considerando insuficiente a preocupação apenas com a proteção


do trabalhador formalizado frente à crescente fragmentação e precarização do
mundo do trabalho. Um dos pilares desta tentativa de formulação de novos
elementos tuitivos é o projeto Fair Work (Trabalho Justo) que defende a ado-
ção de princípios globais básicos para a plataformização do trabalho. Destes
primeiros estudos realizados na África do Sul, Alemanha e índia, emergi-
ram cinco princípios essenciais: 1) Pagamento justo 2) Condições justas 3)
Contratos justos 4) Gestão justa e 5) Representação justa (OIT, OXFORD,
2020). Estes cinco princípios estipulam questões mínimas fundamentais para
a garantia da dignidade humana destes trabalhadores, e para amenizar a su-
perexploração deste novo tipo de trabalhador que emerge fruto da batalha
ideológica do empreendedor-de-si-mesmo e da gestão algorítmica do traba-
lho, e tenta resgatar laços de identificação e solidariedade de classe, ao ter
como primordial a obrigação de realizar negociação coletiva por parte das
empresas-plataforma e de reconhecer os sujeitos coletivos destes trabalhado-
res, independentemente do vínculo ou da forma, bem como a necessidade de
transparência e accountability dos algoritmos utilizados, proibindo discrimi-
nações e perseguições e a previsão das empresas preverem mecanismos de re-
cursos administrativos internos para sanções disciplinares, proibindo os ainda
muito comuns desligamentos arbitrários e mudanças repentinas de cláusulas
de forma unilateral. Os recentes entendimentos do Supremo Tribunal Federal
também se distanciam dos debates realizados por juristas em todo o mundo,
e em especial as discussões feitas de forma tripartite, como o relatório da
Comissão mundial sobre o Futuro do Trabalho que em 2019, a pedido da
Organização Internacional do Trabalho, publicou um documento síntese de-
nominado “Trabalhar para um futuro melhor”, no qual se propõe que, diante
das mudanças na organização do trabalho, seja estabelecida uma “garantia
laboral universal” que compreenda salário vital adequado, limites de jornada
e garantia de saúde e segurança no trabalho a todos os trabalhadores, indepen-
dentemente da conformação jurídica do trabalho (OIT, 2019).
Já como uma resposta ao chamado capitalismo de plataforma, diversos
autores vêm sustentando que se revisite o papel da dependência econômica
dentro do direito do trabalho, para além da subordinação jurídica clássica
(KALIL, 2020). Autores como Supiot defendem também que a obediência
ao patrão, o poder diretivo clássico baseado no modelo fordista não é mais
suficiente no atual estágio de produção que permite certa autonomia do tra-
balhador, sobretudo no que se refere ao controle de jornada e o local de tra-
balho, ainda que na prática o que se observa não é uma diminuição da carga
horária, mas pelo contrário, a “flexibilidade” do trabalho on-demand obriga

165
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

o trabalhador à arcar com ainda mais horas de trabalho. Portanto, Supiot é


um defensor de uma reforma no direito do trabalho que insira a dependência
econômica no centro do debate (SUPIOT, 2017). O conceito de dependên-
cia econômica, de forma interdisciplinar, permite incluir uma gama maior de
trabalhadores, e autores como Murilo Carvalho Sampaio Oliveira defendem
que a resposta já está no art. 3º da CLT e pugna por uma reinterpretação do
sentido dado à expressão “sob a dependência deste”. A legislação Espanhola
introduziu em 2007 a partir do Estatuto del Trabajador autónomo o conceito
do trabalhador autônomo economicamente dependente3 e o conceito de pa-
rassubordinação Italiano, surgido da ampliação das cortes laborais do país
para julgar os casos em que a subordinação clássica não se apresentaria, são
exemplos de esforços doutrinários para reduzirem as zonas gris. Nas palavras
de Souto Maior (2008):
O supersubordinado, portanto, por definição, é o trabalhador,
ser humano, reduzido à condição de força de trabalho, já que
desrespeitados, deliberadamente e como estratégia econômica,
seus direitos fundamentais. O supersubordinado não é um tipo
específico de trabalhador. É a designação do trabalhador, em
qualquer relação de emprego, que tenha tido a sua cidadania ne-
gada pelo desrespeito deliberado e inescusável aos seus direitos
constitucionalmente consagrados. Aquele a quem se denomina
parassubordinado é, na verdade, quase sempre, um supersubor-
dinado.(SOUTO MAIOR, 2008, p.29)

Portanto, há a necessidade de continuar desenvolvendo o conceito de


subordinação e de dependência para que ele responda às necessidades do
modelo produtivo vigente e não fique estagnado em premissas que já não
correspondem à realidade fática de uma sociedade que vem excepcionando o
direito do trabalho, retirando deste sua capacidade de mediar os conflitos ca-
pital-trabalho, ao criar cada vez mais, via jurisprudência e por via legislativa,
obstáculos para a proteção do hipossuficiente. As respostas insuficientes de
nossos hermeneutas à terceirização, a plataformização do trabalho e a vonta-
de do legislador de criar empregos sub-formais (legislação de emprego e não

3
1. Los trabajadores autónomos económicamente dependientes a los que se refiere el artícu-
lo 1.2.d) de la presente Ley son aquéllos que realizan una actividad económica o profesional
a título lucrativo y de forma habitual, personal, directa y predominante para una persona
física o jurídica, denominada cliente, del que dependen económicamente por percibir de él,
al menos, el 75 por ciento de sus ingresos por rendimientos de trabajo y de actividades eco-
nómicas o profesionales.(ESPANHA, 2007)

166
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

de trabalho) a partir da Carteira Verde Amarela e outros subterfúgios demons-


tram que a doutrina trabalhista Brasileira em sua maioria está ou encastelada
ou acuada.
4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
É particularmente importante refletir sobre a importância de se for-
mular uma nova dogmática constitucional, convencional e internacional do
trabalho neste momento em que apenas 39 milhões de brasileiros possuem
CTPS assinada, minoria perto daqueles que trabalham informalmente e do
tamanho de nossa força de trabalho atual, estimada em mais de 106 milhões
(CAGED, 2020) e agravado por um aumento da “formalização precarizante”
decorrente dos vínculos temporários, parciais, intermitentes e da terceiriza-
ção irrestrita. Há de se refletir também sobre a responsabilidade do Estado
pelo desemprego, que apesar das reformas liberalizantes dos últimos anos
continua em nível alarmante (IBGE, 2019, 2020) e se a imensa tolerância de
nossa legislação laboral e social com este quadro é compatível com os câno-
nes Constitucionais. Neste sentido, o debate da Renda Básica de Cidadania,
e seu teste maior no país com o auxílio-emergencial abre as condições para
que se debate programas de garantia de emprego, que ofertam à população
uma garantia de renda mais alta do que o auxílio/ Bolsa-Família e tem como
contrapartida ao aumento da liquidez uma maior oferta de bens e serviços
que não pressione o ciclo inflacionário, funcionando como um estabilizador
social. Tal proposição para a erradicação da miséria (objetivo da República
Federativa do Brasil) pode ser vista na defesa de Hyman Minsky e outros
Keynesianos do “Jobs Guarantee”, na lógica inversa do exército industrial
de reserva (2013). O Estado como “empregador de última instância”, como
garantidor de empregos já é utilizado em programa na Índia4, reconhecido
pelo Banco Mundial, com um estoque de empregos públicos temporários que
serve de política contracíclica e ao mesmo tempo garante os serviços públicos
de qualidade. No Brasil, o Projeto de Lei 5.491/2019 que institui o Fundo
Nacional de Garantia de Emprego dialoga com esta ideia a partir da Moderna
Teoria Econômica (MMT), assim como o PL nº 4.943/2020, apresentado pela
Bancada do PT na Câmara dos Deputados, que institui o Programa “Trabalho
e Renda Para Todos” .
Cabe aos juslaboralistas, portanto, formular um novo paradigma do di-
reito do trabalho e do direito social que tenha como objetivo principal a ex-
pansão do âmbito subjetivo de aplicação do Direito do Trabalho e, também
da competência material da Justiça Especializada para analisar e julgar tais
4
Mahatma Gandhi National Rural Employment Guarantee Act 2005.
167
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

conflitos. Isso parte de uma compreensão hermenêutica em relação ao status


das normas constitucionais denominadas “de cunho programático”, notada-
mente os direitos sociais e laborais, dotando-as de eficácia, pois mesmo a
redação mais genérica que lhe são características contém normas que definem
finalidades e objetivos a serem cumpridos pelo Estado (SARLET, 2012), que
no mínimo, não pode contribuir para agravar a situação ou ir de encontro com
a garantia destes direitos e, naquilo que necessite de regulamentação por meio
de legislação infra-constitucional, o legislador está vinculado a concretizar
estes fins, ainda que com certo grau de discricionariedade. Sarlet ainda refere
que:
[...] todas as normas consagradoras de direitos funda-
mentais são dotadas de eficácia e, em certa medida, dire-
tamente aplicáveis já ao nível da Constituição e indepen-
dentemente de intermediação legislativa . Em verdade,
todas as normas de direitos fundamentais são direta (ime-
diatamente) aplicáveis na medida de sua eficácia.(SAR-
LET, 2012,p.260)

Portanto, uma vez consagrado o trabalho como um direito social no


art.6º de nossa Constituição Cidadã de 1988, tal como a educação, saúde, e
tantos outros direitos que em realidade são condições sine qua non para a vida
em sociedade, sobretudo no modelo capitalista que foi escolhido e moldado
pelo legislador constituinte, urge que pensemos no âmbito da legislação e de
políticas públicas proposições que protejam a atividade humana e o trabalho,
pois na dicotomia entre a liberdade formal e a liberdade material, precariza-se
o trabalho e cada vez mais excluímos modalidades da proteção legislativa e
judicial, sendo que sua proteção- e mais além, sua garantia- é compromisso
assumido do Estado para com seu povo. Da vontade do texto Magno, e a
partir da força normativa da Constituição (HESSE, 1991) o trabalhador deve
ser protegido não em razão da natureza do contrato firmado, mas sim porque
é seu direito fundamental como cidadão e como trabalhador, que têm direito
a trabalhar, não apenas no sentido de não ser impedido, mas de exigir que o
Estado lhe dê garantias mínimas de trabalho e renda, e que este seja protegi-
do, inclusive da precarização causada pelas plataformas digitais (numa inter-
pretação ampliativa do art. 7º, XXVII, proteção contra a automação) de onde
retira sua subsistência e da família e que este trabalho seja protegido e digno.

168
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

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172
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

O TRABALHADOR NA SOCIEDADE GLOBALIZADA, O TRABA-


LHO PRECÁRIO E A RAZÃO DO DIREITO TO TRABALHO

Renata Gabert de Souza1 

RESUMO: A sociedade globalizada e o capitalismo financeirizado geram


trabalhadores autônomos e precarizados. Há um comum e o individualismo,
ideias contrapostas que se amalgamam no funcionamento das sociedades. As
desigualdades aumentam quanto mais o capital acumula e com ela a exclusão.
O Direito do Trabalho, com a capacidade de congregar todos os demais com o
fito de olhar para o homem em sua inteireza desempenha um papel fundamen-
tal de assegurar condição de vida para o trabalhador. O Direito do Trabalho é
o Direito Social por excelência. Refletimos sobre sua função e permanência
nas novas relações de trabalho.
Palavras-chaves: Direito do trabalho. Capitalismo. Sociedade globalizada.
Trabalho por Plataformas digitais. Precarização. 

1
Advogada, bacharelada em Estudos Jurídicos e Sociais na UNISINOS em 1987, com espe-
cialização e Direito e Processo do Trabalho, pós-graduada em Filosofia Contemporânea pelo
IMED 2018.

173
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
Ôôôô
Liberdade, Senhor
Passava a noite, vinha dia
O sangue do negro corria dia a dia
De lamento em lamento
De agonia em agonia
Ele pedia o fim da tirania

1 - INTRODUÇÃO
A globalização, o capitalismo financeiro, a produção de bens e as rela-
ções daí decorrentes, em especial no que diz respeito ao trabalho vêm sofren-
do transformações importantes e em muitos casos, irreversíveis. É crescente
a robótica substituindo a força de trabalho humano. O desenvolvimento de
tecnologias nos leva a uma série de novos serviços que não mais dependerão
do trabalho humano, a exemplo de automóveis inteligentes que dispensarão o
condutor ou motorista. Cresce significativamente o trabalho através de plata-
formas que convencionamos denominar ‘uberização’ do trabalho.
Economistas, juristas, sociólogos, filósofos têm se dedicado ao estudo
e discussões das relações que surgem dos “tempos modernos’. A atenção nes-
te artigo está voltada às relações de trabalho e emprego.
Em 2015 os Juízes do Trabalho do TRT4 em comemoração aos 50 anos
da AMATRA IV  lançaram a CLT COMENTADA, em cujo ‘Comentários à
Exposição de Motivos’ apresentado por Magda Barros Biavaschi, refere que
em 2013 a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, havia completado 70
anos, a sobreposição desta à criação da Justiça do Trabalho no Brasil, referin-
do, ainda, o que no momento é condição significativa: a existência ou não da
Justiça do Trabalho e da Legislação Trabalhista, se a rigidez de suas normas
são ou não compatíveis com os “tempos modernos” à razão de incremento
da produtividade ou sua flexibilização que proporciona competitividade dos
bens produzidos no Brasil em relação ao demais produtores . Contextualiza a
“criação da CLT”. 
A contemporaneidade impõe a importância dessa discussão, não só para
as relações de trabalho e emprego, mas para a sociedade brasileira muito além
de sua economia.
2 - CAPITAL, TRABALHO E TRABALHADOR
A obra máxima de Karl Marx O CAPITAL assim denominada e vulgar-
mente conhecida, é uma crítica. O título original da obra é “Value, Price and
Profit. Das kapital – Kritik der Politischen Ökonomie” (Valor, Preço e Lucro.

174
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

O Capital – Crítica à Economia Política), crítica na legítima acepção da pala-


vra: “atividade de examinar e avaliar minuciosamente uma produção artística,
literária ou científica, bem como costumes e comportamentos” e, portanto, a
obra – um marco na história humana – se atém a estudar, minuciosamente,
todo o movimento do capital, que é constituído, por assim dizer, de valor,
preço e lucro. Como ele (capital) se estabelece, como se desenvolve, quais os
objetivos, como age nas empresas, nas sociedades, nos Estados.
Fato é que na atividade e no desenvolvimento de uma sociedade é im-
portante observar a perspectiva econômica. Também é fato que o poder se
estabelece, historicamente nas sociedades humanas, envolvendo a capacida-
de econômica. Os Faraós tinham poder governamental e riqueza, e com ela,
sustentavam a força que lhes mantinha no poder. A Grécia, em seu apogeu,
detinha poderio militar, cultural e econômico. Em Roma a organização e o
poder militar permitiam a aquisição de riquezas que aumentava seu Império,
propiciando o crescimento do Estado-nação. Na Idade Média os feudos ( e
após reinados ou impérios) ricos desenvolveram-se, cresceram. Os pobres
necessitavam de outras habilidades para manterem-se no poder ou eram de-
postos.
A economia está tão intimamente ligada ao desenvolvimento das socie-
dades que podemos exemplificar com a famosa separação e intervenção da
Igreja no Estado real, Henrique VIII, muito antes de romper definitivamente
com a Igreja Romana, por ser um reino economicamente falido e abrigar bis-
pos católicos milionários, às custas dos mesmos súditos, confiscou todos os
bens da Igreja e a separou do Estado (estado laico).
Não podemos analisar, avaliar, criticar, propor mudanças em qualquer
sociedade se não soubermos entender, da forma mais ampla possível, a eco-
nomia que lhe dá sustentação. Daí a importância cada vez maior da obra de
Marx e dos conceitos por ele propostos.
Só podemos entender as crises econômicas que experimentamos na
contemporaneidade se compreendermos o movimento do capital, sua voca-
ção natural para a concentração, como reflexo, a concentração de renda na
mão de poucos e a maioria sem capital, gerando sociedades com profundas
desigualdades. Desde as Revoluções Francesa, Industrial, as populares na
Franca, o socialismo francês, que as sociedades e os Estados estão às voltas
com as consecutivas crises do capital. A última contemporânea foi em 2008.
Com a sindemia do COVID-19 desenha-se outra, que desde já deixa claro a
radiografia das entranhas das desigualdades e miséria que acomete a maioria
das populações em oposição a um pequeno número de afortunados que cada
vez mais concentram lucros. 
175
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Desde o início da Revolução Industrial, no Séc. XIX, o trabalhador


vende sua força de trabalho mediante pagamento de salário. “A utilização da
força de trabalho é o próprio trabalho. O comprador da força de trabalho a
consome fazendo com que seu vendedor trabalhe”.
De acordo com Marx, não importam as distinções do trabalho, se qua-
lificado ou não. O que vale é a “força de trabalho”, que a grande maioria dos
homens possui de forma semelhante. É a força de trabalho que é comprada
e vendida no mercado. As relações sociais se dão a partir do trabalho do ho-
mem, como identificação, ele é o que ele trabalha, o empregado e a sua força
de trabalho.
Hannah Arendt em “A condição Humana” afirma que todos os homens
não só acompanham as descobertas da ciência, mas que, por intermédio de
suas capacidades de sonhar e imaginar, projetam-se à sua frente, o que nos
permite pensar na situação atual que os tempos contemporâneos nos apresen-
tam.
Relata ela que os cientistas afirmam que, em menos de século haveria
um homem do futuro, que pareceria estar imbuído em rebelar-se contra a
existência humana, na forma como ela nos tem sido gratuitamente dada, para
trocá-la por algo produzido pelo próprio homem. Não parece haver nenhum
motivo para duvidar dessa possibilidade, bem como, não há motivos para
duvidar da capacidade de destruição da vida orgânica na Terra. Sendo assim,
a efetivação desta capacidade de conhecimento não deve ser uma questão a
ser decidida de modo puramente científico, mas sim como uma questão po-
lítica de primeira grandeza “cuja decisão, portanto, não pode ser deixada a
cientistas profissionais ou a políticos profissionais”.
É no âmbito do discurso que as questões se tornam políticas por defi-
nição, ressaltando a importância dos homens, no plural, pois é na pluralidade
que se experimenta a significação de qualquer discurso. A discussão política
sobre a compreensão dos avanços da ciência e da técnica deve encarar um
desafio imenso perante o advento da tecnologia da automação, dado que ela
permite antever a extinção de vários postos de trabalho. Sendo o homem do
futuro liberado do fardo do trabalho, que ao longo do tempo alterou o concei-
to e a própria significação tornando-os mais igualitários em sua convivência,
não mais identifica-se uma classe ou categoria capaz de gerar o novo, mas
apenas intelectuais solitários capazes de ação, restando, então, uma sociedade
de trabalhadores sem trabalho. 
A partir da era moderna e do ponto de vista social – conceito que é
contemporâneo – entende Marx que todo o trabalho é produtivo dentro do sis-

176
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

tema que referencia, todas as coisas passam, então, a ser objeto de consumo,
e nesse ideal de Marx, a distinção entre trabalho e obra desapareceria, “toda
obra se tornaria trabalho, uma vez que todas as coisas seriam concebidas não
em sua qualidade objetiva, mundana, mas como resultados da força viva do
trabalho e como funções de processo vital”.
De acordo com Marx , não importam as distinções do trabalho, se qua-
lificado ou não. O que vale é a “força de trabalho”, que a grande maioria dos
homens possui de forma semelhante. É a força de trabalho que é comprada
e vendida no mercado. As relações sociais se dão a partir do trabalho do ho-
mem, como identificação, ele é o que ele trabalha, o empregado e a sua força
de trabalho.
Questões sociológicas importantes: o trabalho humano dá ao homem,
nas sociedades modernas, valor, personalidade, dignidade e oportunidade. A
partir do momento em que o trabalho humano passa a ser valor de dignida-
de, os embates por conquistas de respeito às necessidades e objetivos estão
presentes entre duas forças que se impõem, o empresariado capitalista de um
lado, os trabalhadores do outro. Neste processo surgem conquistas para os
trabalhadores, os sindicatos propiciam reconhecimento de categoria e forta-
lecimento. Iniciam os regramentos objetivando a solução de conflito entre as
categorias. Assim nascem direitos como a jornada de 8 horas, a regulamenta-
ção do trabalho da mulher, a idade mínima para o trabalho de crianças, para
recordarmos marcos históricos. Falamos do século XIX.
A Organização Internacional do Trabalho nasce com o pacto de Versa-
lhes, em 1919, século XX, nas negociações que findam a I Grande Guerra.
A OIT é marco definitivo da formação e reconhecimento internacional do
Direito Social, em cuja constituição solidifica o sentimento de justiça e huma-
nidade, a busca da paz social mundial e duradoura deve estar assentada sobre
a justiça social.
 Nas palavras de Magda Biavaschi:
“Tendo na dignidade humana o ponto de partida e acentuando
a condição humana do trabalhador como tema central de seus
fundamentos, o Direito do Trabalho marcou diferença ao unir o
elemento humano, pessoal, ao social, coletivo, imbricando-os,
situado na contramão de um liberalismo que não se poderia dar
conta da Questão Social. Talvez nenhum outro ramo do Direito
se apresente com tal fisionomia ao garantir direitos objetivos aos
homens que trabalham. Não à toa, esse Direito e as instituições
aptas a dizê-lo têm sofrido duros golpes em tempos de regresso
liberal.”

177
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

O fordismo propiciou avanços tecnológicos e sociais, houve industria-


lização, produção em massa, barateamento de mercadorias é criada a socie-
dade de consumo, mudando o comportamento da sociedade. A par disso, os
trabalhadores organizaram-se, conquistaram novos direitos. Há um momento
desse movimento em que as sociedades mais organizadas e industrializadas
e o estado se organizam de um modo menos liberal, o que conhecemos por
Welfare State. Um estado mais interventor, capaz de mediar conflitos entre
capital e trabalho, grande incentivador de desenvolvimento (na Europa por
herança da social-democracia, nos EUA, gera o progressismo do New Deal).
Podemos dizer que o trabalhador é elevado à categoria de Cidadão. Até 1929
com a quebra da bolsa americana a desigualdade do capitalismo é a marca
social dos temos modernos, com o fordismo, a desigualdade do capitalismo
arrefece.
No pós II Grande Guerra os EUA são fundamentais na reconstrução da
Europa e do Japão, fornecem empréstimos a estes e a alguns outros países,
inclusive da América Latina. (momento de promoção do capitalismo). Em ra-
zão deste fato, os EUA detêm o monopólio do meio de pagamento do mundo
capitalista, o dólar é a moeda do negócio internacional firmada. Até os anos
70 havia a correlação das moedas e o fundo-ouro e a moeda entra em situação
exclusivamente fiduciária (o cambio passa a ser flutuante). Nos anos 80 os
países vão paulatinamente desregulamentando o fluxo de capital. A computa-
ção e a internet vencem barreiras físicas e os negócios ao redor do mundo são
feitos em tempo real. Os mercados passam a funcionar vinte e quatro horas
diárias no mundo inteiro e as transferências do dinheiro em negócios finan-
ceiros são a tônica contemporânea. Eis a hegemonia do capitalismo atual, o
crédito, a financeirização.
A partir dos anos 80 inicia-se a desindustrialização. A máquina em
substituição do trabalho humano é crescente. A indústria fordista do trabalho
alienado dá lugar a uma indústria cada vez mais maquinizada, a máquina
se acopla à máquina, depois estas aos computadores, e o trabalhador fora
da máquina e da indústria, e assim foram dispensados uma enormidade de
trabalhadores. Não são mais empregados, são homens e mulheres ocupados,
ligados aos computadores e às redes e a sociedade que dê conta. O antigo
trabalhador hodiernamente é ocupado através de sistemas e redes de internet,
em programas e plataformas, em serviços uberizados. Cria-se a figura do
indivíduo-empresa.
O ano de 2020, em especial, com o evento sindemia COVID-19, de-
flagra a mudança generalizada das diferenças no trabalho e nas sociedades
e de maneira avassaladoramente rápida. Com a necessidade do isolamento,

178
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

o trabalhar em casa tornou-se a forma usual que, segundo informações em-


presariais, serão mantidas mesmo após a pandemia, a anotada diminuição de
custos é um substancioso determinante. O trabalho por plataformas, o que
convencionamos chamar de ‘uberização’, foi a salvação econômica que o
trabalhador, dispensado do trabalho original, sem renda para a sobrevivência
em isolamento improdutivo, teve para a manutenção individual e por vezes,
da família. 
Nada do que disse é novidade, exceto o fato de que a exceção se tornou
regra. É neste universo que vivemos as relações empresariais, de trabalho e
emprego.
3 - QUEM É O TRABALHADOR DO SÉCULO XXI?
A sociedade brasileira, em especial, vive um fortalecimento da econo-
mia liberal (com a diferença entre os países europeus e norte americanos de
que aqui não conquistamos a sociedade de bem estar social iniciada com a
revolução de 30 e a industrialização dos anos 50 do Século XX), com pro-
fundas diferenças entre os ricos e os pobres, e com a manutenção da chaga
miserável da escravidão.
Inicia a Nova República já em meio ao processo de desindustrialização.
Os percentuais de desempregados são altos desde antes do evento COVID, o
que obriga a percepção das profundas desigualdades que caracterizam a so-
ciedade brasileira. Para onde quer que se olhe há diferenças e vulnerabilidade.
O ex-bancário que trabalha na plataforma uberizada 12-14 horas diárias para
poder pagar as contas e dar conta da vida. o comerciário que passa a fazer
entregas através de uma plataforma semelhante, por um valor ínfimo, que o
obriga laborar horas à fio, com rapidez e presteza. Um sem número de mulhe-
res que, dispensadas do trabalho, viram-se obrigadas a desenvolver atividade
doméstica e assim, surgiram um cem número de novas empresárias disponi-
bilizando um cem número de serviços ( que também serão disponibilizados
por uma plataforma). Os diversos trabalhadores jogados em isolamento e ten-
do de criar um espaço físico de home-office em suas próprias casas, por sua
consta e risco, utilizando para isso, além do espaço físico e o tempo de labor, a
luz, a rede de dados, telefonia, dentre outros itens, todos custos anteriormente
suportados pela empresa tomadora do trabalho.
Ao longo deste tempo o capitalismo liberal, financeirizado, que funcio-
na em plataforma e em tempo real 24 horas/dia foi convencendo o trabalhador
que ele pode ser autônomo, que ele pode empreender, e empreendendo tem
condições de vencer. Estamos em tempos de liberdade, não mais empregados,
mas empreendedores de si mesmos. A questão que segue é: o trabalhador da
179
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

plataforma é empreendedor de si mesmo, ou pode ser considerado emprega-


do? Quem é o empregado da sociedade contemporânea?
É claro que, dentre muitos pequenos empreendedores há contratação
de mão de obra (a trabalhadora que perdeu posto de trabalho e montou um
negócio e que tem uma confeitaria especializada e concretiza vendas através
da plataforma pode contratar auxiliares), mas isso não tem capacidade de
empregar a massa trabalhadora.
Neste mercado financeiro e mesmo no mercado de empresa de serviços
as finanças determinam o movimento. A exemplificar, no mercado de serviços
o que se entrega é o uso do software, o uso da patente, o uso da plataforma
virtual. Todos os profissionais que, de alguma forma, estão ligados à platafor-
ma, o trabalho é uberizado.
Nessa perspectiva, todos trabalhamos, incessantemente, mas o traba-
lhador do século XXI não é o trabalhador do século XX, não é o trabalhador
do fordismo. 
“É subsumindo a própria vida que o capital, agora, cria processos
de extração da mais valia. Trata-se de uma mais valia social, di-
gamos assim. É uma mais valia gerada pelo trabalho contínuo
que a própria vida social impõe, e gerada pela produção propo-
sital de escassez que o capital insiste em querer fazer vigente: o
dinheiro que não se empresta e o software ou a patente da vacina
que não se cede de modo algum.
‘A mais valia relativa tirou o que pode tirar da fábrica ao maqui-
nizá-la, mas o capital queria mais. Ora, ali na fábrica, sem o ho-
mem, o processo de valorização estava fadado a ficar estancado.
Então, o capital foi para a sociedade. Além disso, não poderia
deixar de ir, a fim de criar empregos e dar salários para os que
foram despedidos das fábricas, englobando aí gerações. Caso
contrário, quem compraria o que ainda se faz nas fábricas? O se-
tor de crédito pessoal se desenvolveu muito nesse caso, criando
as dívidas pessoais de todo o tipo, a cada mês.
‘Esse homem é tido como “capital humano”, em uma acepção
tipicamente empresarial e vigente nas teorias neoliberais e de
administração. Na nossa terminologia, trata-se do homem do
trabalho precarizado, em termos de direitos, mais ainda exte-
nuado pelo ritmo psicológico e pelo tempo de trabalho. O preço
que se pagou para escapar do trabalho alienado foi o de entrar
em um tipo superior de alienação, mesmo sendo agora portador
de um saber que faz parte do saber difuso.”

Podemos afirmar, diante deste cenário que o trabalhador do século XXI


está em relação de trabalho sem o emprego formal, grande parte dos traba-
180
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

lhadores estão dentro do conceito de ‘empreendedores’, e, portanto, os víncu-


los são cada vez menores, tão pouco se associam, pelo menos não na forma
tradicional em sindicatos, que parecem desacreditados pela jovem sociedade
trabalhadora. Estamos tão contaminados pelo raciocínio do capitalismo libe-
ral que pouco nos apercebemos do quanto se perde em bem estar social e o
quanto estamos submissos a um sistema extenuante, pouco se raciocina fora
desta perspectiva.
A título de exemplos, constata-se que o trabalhador das plataformas,
trabalha por jornadas extensas, cumpre regras definidas pela empresa do soft-
ware em termos de comportamento, há um adestramento de obrigações, que
se não cumpridas sofrem punição do sistema, e assim são diversos os relatos
de motoristas vinculados às plataformas que “ficam no gancho”, ou seja, não
recebem chamadas, ficam sem clientes para atender, e não há discussão sobre
o fato.  A relação é precária.
No ano de 2020, com o isolamento necessário e o trabalho desenvolvi-
do em home office foi perceptível o aumento da jornada. Tanto o trabalhador
em uma ponta, como o consumidor, que por vezes é um trabalhador de outro
setor, trabalham na madrugada, nos domingos, não há mais a jornada formal
(o telefonema solicitando que o trabalhador providencie alguma tarefa, inde-
pendente do horário porque está em casa). A precarização e o esgarçamento
de regras e direitos conquistados vão se alterando.
4 - E O DIREITO DO TRABALHO
Já referimos que o Direito do Trabalho se firma como direito social por
excelência com a criação da OIT em 1919.
O Direito do Trabalho tem como princípio fundamental a Justiça So-
cial, assegurando que o trabalho é fonte de dignidade, não é mercadoria, que a
pobreza é uma ameaça á prosperidade de todos, e que todos os seres humanos
têm o direito de perseguir o seu bem estar material em condições de liberdade
e dignidade, segurança econômica e igualdade de oportunidades.
Américo Plá Rodrigues ensina que:
“o Direito do Trabalho necessita apoiar-se em princípios que su-
pram a estrutura conceitual, assentada em séculos de vigência
e experiência possuídas por outros ramos jurídicos. Por outro
lado, seu caráter fragmentário e sua tendência para o concreto
conduzem à proliferação de normas em contínuo processo de
modificação e aperfeiçoamento. Por isso se diz que o Direito do
trabalho é um direito em constante formação.”

181
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Dentro dessa perspectiva, e considerando as significativas mudanças


no mundo do trabalho ( desde o final do Século XX e nestas primeiras dé-
cadas do Século XXI), é preciso olhar com cuidado para o trabalhador e é
fundamental juristas dedicados ao Direito do Trabalho, conheçam os ramos
do direito e das ciências sociais. Se dispam de preconceito, utilizem os co-
nhecimentos ampliados e integrem os Princípios do Direito do Trabalho na
solução dos conflitos sociais. No mundo globalizado o diálogo entre todas as
fontes do Direito é fundamental.
A OIT na Convenção de Genebra em 2008, emite uma Declaração so-
bre a Justiça Social para uma Globalização Equitativa, declara:
“iv) respeitar, promover e aplicar os princípios e direitos fun-
damentais no trabalho, que são de particular importância, tanto
como direitos como condições necessárias para a plena realiza-
ção dos objetivos estratégicos, tendo em vista que: 
- que a liberdade de associação e liberdade sindical e o reco-
nhecimento efetivo do direito de negociação coletiva são par-
ticularmente importantes para alcançar esses quatro objetivos
estratégicos, e 
- que a violação dos princípios e direitos fundamentais no traba-
lho não pode ser invocada nem utilizada como legitima vanta-
gem comparativa e que as normas do trabalho não devem servir
aos fins comerciais protecionistas.”

É transparente que o Direito do Trabalho precisa enfrentar as novidades


sociais, tecnológicas, organizativas; e criar formas equitativas de soluções,
tendo sempre como norte o Princípio do Trabalho Digno. O Direito do
Trabalho é um direito social por excelência, a ocupação dele é a sociedade
humana, e como tal, é esta a proteção que lhe compete.
As alterações no mundo do trabalho nesta sociedade globalizada, com
crescente tendência à economia liberal tem forçado alterações significati-
vas nas relações de trabalho e no emprego. O que verifica é a supressão da
legislação regulamentadora (no Brasil desde antes da Reforma Trabalhista
de 2017 é possível verificar alterações legais que fragilizaram os Sindicatos,
suprimiram formas de controle, retiraram direitos, possibilitaram o aumento
de terceirizados e pejotizaram o trabalhador ). Tudo isso alegando que o
esgarçamento das regras propiciaria a abertura de postos de trabalho, o que
não se concretizou em momento algum (os números oficiais demonstram o
aumento significativo de desempregados e de trabalho informal, a diminuição
considerável da renda da classe trabalhadora, o aumento da desigualdade so-
cial e a vulnerabilidade de grande parcela da sociedade.)

182
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

“A Realidade é que o crescimento do trabalho informal é um problema


complexo e de difícil combater, mas não se soluciona simplesmente retirando
as normas trabalhistas.”
 No que diz respeito à retirada de direito dos trabalhadores brasileiros
tem sido uma constante que, em épocas é mais acirrada, em outras, pouco
menos, basta acompanhar e verificar a evolução do Direito do Trabalho e
as normas regulamentadoras que se percebe o forte embate que ela trava na
sociedade.
“A justiça do Trabalho, tal como a CLT, sofreu oposição ferrenha dos
setores mais conservadores da sociedade brasileira. Em meio a uma brava
luta de resistência, ela se foi solidificando, mas sempre aqui e ali ameaçada
em sua existência. Afinal, uma pedra no sapato dos que querem eliminar os
obstáculos ao livre trânsito de um capitalismo “sem peias”.
O Ano de 2020 foi profícuo no debate e nas tratativas de equalização
entre o interesse econômico da categoria empregadora e as necessidades da
classe trabalhadora. Fato que o isolamento imposto pela Sindemia da CO-
VID-19 deixou um número considerável de desempregados e sem renda.
O Direito do Trabalho deve buscar permanentemente eficácia na luta
contra a exclusão. É preciso responder à sociedade de forma a garantir que as
reformas vão combater de forma eficaz a chaga social da exclusão que conso-
me as sociedades pós-industriais. Os juristas não podem se deixar intimidar
pelas dificuldades, ao contrário, deve enfrentá-las de modo a encontrar solu-
ções que permitam ao cidadão trabalhador ocupar seu lugar nas sociedades
como sujeito de direitos. 
As regras para o teletrabalho ou home-office (uma das discussões acir-
radas entre representantes de trabalhadores e empregadores. A Reforma Tra-
balhista de 2017 acrescentou o inciso III ao artigo 62 da CLT: o controle
de jornada para o teletrabalho. A obrigação do trabalho remoto ou em siste-
ma remoto imposto para muitos trabalhadores em decorrência do isolamento
exigido por normas sanitárias para o enfrentamento do COVID-19, colocou
muitos deles em suas casas, em jornadas extenuantes, sem nenhum controle
ou respeito às normas de saúde e sem pagamento pela jornada extraordinária.
As reclamações foram tão numerosas que o Ministério Público do
Trabalho publicar nota regulamentando o trabalho remoto (home-office) lá
apontando uma série de normativas vigentes para o ambiente de trabalho que
devem ser respeitados, e salientando que a jornada contratada há de ser res-
peitada (entre março e maio a série de medidas provisórias que pretenderam
regulamentar o isolamento social e o mundo do trabalho pretenderam be-
neficiar, no primeiro momento, mais a categoria patronal que “dizia ter que
183
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

arcar com custos” que os direitos e à saúde do trabalhador que, continuava


laborando.
Valdete Souto Severo observa, em entrevista prestada à CTB sobre as
questões do teletrabalho, cujos problemas nas relações entre os empregado-
res e seus empregados chegavam em números importantes nos gabinetes dos
sindicatos, apresenta uma solução bastante óbvia e simples, que é o uso da
própria tecnologia em favor da regulamentação: “Não há dificuldade alguma
em impor limitação de horário. Se nós temos tecnologia suficiente para que
o trabalho seja exercido por meios virtuais, basta criar dispositivo que limite
a possibilidade de acesso a esse ambiente virtual em que o trabalho é reali-
zado”.
Outro tema de discussão permanente são os trabalhos através das pla-
taformas. 
Têm sido crescente o número de trabalhadores de diversos setores que
são jogados pelo movimento do mercado e das diretrizes econômicas do país
a trabalhos precários. Há categorias que, mesmo vinculadas a contrato formal
de trabalho estão sendo precarizadas.
A exemplo, uma categoria, ainda que com contrato formal que tem
apresentado precarização nas condições de trabalho são os professores. O
isolamento impôs a estes o trabalho através de plataformas e aulas pela rede
social, vídeos de diversas mídias. O professorado vem com baixos salários
de longas décadas, o que lhes impede, por falta de recursos, acompanhar o
avanço da tecnologia, que apresenta alto custo. Ainda assim, foi implantado,
à despeito das condições físicas e tecnológicas para isso ( disponibilidade de
aparelhos que suportem a mídia utilizada, contrato de dados de intenet, o en-
sino remoto). Do outro lado, alunos de redes públicas, de norte a sul, de leste
a oeste do país, sem possibilidade de acompanhar aulas através da rede de
dados. Quanto aos professores verifica-se a jornada de trabalho aumentada,
além de todo o trabalho extra para a organização de aulas virtuais, a frustra-
ção e o adoecimento. De regra, as jornadas estendidas não são devidamente
remuneradas, como não o são as aquisições ou aumento de despesa com o
material tecnológico.
A considerar o trabalhador sem vínculo formal e que se utiliza de pla-
taformas de serviços para auferir renda, o que convencionou-se chamar de
uberização, é uma espécie de trabalho onde inexiste jornada estipulada, o
trabalho é intermitente e o recebimento de valores se dá mediante a deman-
da. Portanto, o trabalhador não conta com uma renda fixa, não tem certeza
do quanto vai receber até o final do mês, para compensar essa incerteza, o

184
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

trabalhador irá disponibilizar-se ao trabalho por uma longa jornada a bem de


garantir a renda mínima.
Além disso, todo o custeio das condições de trabalho é do trabalhador
(motorista de Uber, ou qualquer outro sistema, paga o veículo, o combustível,
a lavagem e material de higienização; as gentis balas e água, revistas e todo
o mais que a empresa (UBER) recomenda para uma boa indicação, sem falar
de roupas limpas e passadas, cabelos, barba, unhas, feitas como manda o fi-
gurino). Além, há um sistema perverso de controle, disfarçado de pontuação
cliente/empresa, regrado por um algoritmo do programa que nenhuma das
partes tem efetivo acesso, nem o motorista, nem o usuário. Qualquer clicada
do usuário do sistema pode ser suficiente para deixar o trabalhador sem cha-
madas.
Em semelhante sistema, são as plataformas de entregas, IFOOD é o
nome comercial mais citado e propagandeado no período de isolamento. Uti-
liza semelhantes regras do transporte de pessoas. Houve muitas denúncias de
que a jornada superior á 12 horas não eram suficientes para que o trabalhador
ganhasse o valor de um lanche que entregava.
Parece bastante óbvio que todo o sistema de controle da empresa que
fornece a plataforma é um vínculo, que tem sido constantemente negado. O
empresariado entende que o trabalho é eventual, por conta própria, e por isso,
não o admite como empregado, não lhe dá nenhum benefício, seja qual for. 
Como absoluta novidade para este artigo, nos dias finais que o escrevo,
é noticiado nos grandes jornais e os especializados em economia que a UBER
perdeu uma batalha judicial que durou 5 anos. A Suprema Corte do Reino
Unido deliberou por unanimidade que os motoristas do aplicativo devem ser
considerados trabalhadores da companhia e não trabalhadores independentes.
Os trabalhadores que por cinco anos lutaram por direitos trabalhistas como
salário-mínimo, férias e feriados tiveram, por fim, o vínculo reconhecido.
Por evidente que, resolvida a questão trabalhista lá, a discussão sobre o
tema há de acirrar. O empresariado insistirá em dizer que, havendo vínculo,
não tem condições de operar, dado que essa é a linha de defesa. Economia e
Capital.
A sociedade é dinâmica, o Direito deve acompanhar seu movimento, o
Direito do Trabalho nasce e se perpetua com sua função primordial, o direito
social, voltado para o bem do homem na sociedade. Transformar as socieda-
des mais justas está na sua vocação.

185
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fato é que uma sociedade se constrói com pessoas, uma sociedade boa
para se viver é aquela onde as pessoas podem vislumbrar felicidade, para isso,
necessitam de condições básicas de habitação, alimentação, saúde, educação,
entretenimento. Cabe aos juristas uma parte importante dessa construção. A
escolha de comandarmos os algoritmos ou sermos comandados por eles, a
importância de ser, de querer ser, e escolher, liberdade, não a liberdade que
de há muito vem sendo imposta pelo sistema do capital, mas àquela que o
povo revolucionando em França pediu ventos novos de Liberdade, Igualdade
e Fraternidade.
O filósofo italiano Antônio Negri tem se dedicado a discussões na seara
social, entende ele que é preciso transformar os conceitos, clarear os signifi-
cados, e compreender que o empreendedorismo pode ser uma forma de asso-
ciação entre a multidão na produção social. O comum a ser compartilhado; o
trabalho transformado em prol do comum em sistemas cooperativados a título
de exemplo, mas deixa claro que o sistema capitalista vigente que apenas
aumenta a desigualdade e o empobrecimento de parcela importante da popu-
lação não há de permanecer.
O labor da e a vocação Advocacia, estão sintetizadas nos 10 Manda-
mentos deixados por Santo Ivo no Séc. XIII. Eduardo J. Couture dedicou aos
mandamentos ‘gotas de sabedoria’, onde nos deixou lições como:
“Son decálogos del deber, de la cortesía o de la alcurnia de la
professión. Aspiran a decir en pocas palabras la jerarquía del
ministerio del abogado. Ordenan y confortan al mismo tiempo;
mantienen alerta la conciencia del deber; procuran ajustar la
condición humana del abogado, dentro de la misión casi divina
de la defensa.
Pelo la abogacía y las forma de su ejercicio son experiencia his-
tórica. Sus necesidades, aun sus ideales, cambian en la medida
en que pasa el tiempo y nuevos requerimientos se van haciendo
sucesivamente presentes ante el espíritu del hombre. De tanto
en tanto es menester, pues, reconsiderar los mandamientos para
ajustarlos a cada nueva realidad.
Hoy y aquí, en este tiempo y en este lugar del mundo, las exi-
gencias de la libertad humana y los requerimientos de la justicia
social constituyen las notas dominantes de la abogacía, sin las
cuales el sentido docente de esta profesión puede considerarse
frustrado. Pero a su vez, la libertad y la justicia pertenecen a un
orden general, dentro del cual interfieren, chocan y luchan otros
valores.”

186
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

A humanidade, como diz Hannah Arendt, sempre encontrará uma for-


ma de recomeçar.
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187
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

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SOUZA, Rodrigo Trindade, coordenador Márcio Lima do Amaral, Rubens
Fernando Clamer dos Santos Júnior, Valdete Souto Severo, organizadores.
CLT COMENTADA. LTr ed. São Paulo, 2015.

188
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

SUSTENTAÇÃO FINANCEIRA DO MOVIMENTO SINDICAL

Denis Rodrigues Einloft1

RESUMO: Este artigo apresenta uma reflexão sobre a sustentação financeira


do sindicalismo no Brasil a partir da crise instaurada pela Reforma Trabalhista
e as políticas de governo vigentes desde o golpe de 2016. A implantação do
modelo neoliberal historicamente confirma o viés de supressão das instancias
coletivas e redução de direitos sociais, não sendo diferente no atual cenário do
sindicalismo. Em meio a essa crise o artigo procura soluções imediatas para
a reorganização sindical e financeira, a partir de consensos mais ou menos
consolidados no movimento sindical. O Fórum Nacional do Trabalho de
2004 é uma dessas instancias de síntese possível para um novo olhar sobre o
sindicalismo nacional.
Palavras-chaves: Sindicato; Sustentação financeira. Crise neoliberal.

1
Advogado. Sócio do escritório CCM ADVOGADOS. Mestre em Direito. Especialista em
Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Especialista em Direito Processual Civil. Es-
pecialista em Direito Previdenciário. Integrante da REDE LADO. Associado da ABRAT,
AGETRA e IARGS.

189
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

1 - INTRODUÇÃO
O movimento sindical representa a força social organizada dos
trabalhadores para avanços e resistência sobre as forças do capital as quais,
por seu turno, pretendem fragmentar, suprimir e/ou reduzir conquistas no
campo dos Direitos Sociais. As raízes do sindicalismo no associativismo de
proteção ao longo dos anos ganha uma envergadura política de instituição
representativa classista com espaço nos demais Poderes.
A formação embrionária, ainda com senso de mutuo auxílio, evolui para
um movimento organizado de luta pela cidadania social e assistencialista/
cultural2 nos primórdios do século XX3, especialmente no Brasil, em que
as deficiências ou limitações do Estado eram complementadas pela ação
sindical. São do período os serviços de saúde, sistemas de aposentadoria
e financiamentos sociais para construção, por exemplo. Nesse passo, a
conjugação política traz para o movimento a ideia de financiamento Estatal
como elemento de sustentação financeira do modelo sindical.
A CLT positiva a sustentação financeira obrigatória com participação
do trabalhador na manutenção da estrutura do sindicalismo pelo imposto
sindical4 sendo a tônica que se mantém vigente como alternativa e pilar de
estruturação da grande maioria das entidades sindicais até novembro de 2017
quando a Lei 13.467 prometendo a modernização do movimento sindical5
2
Em que pese comum subestimar o movimento operário do início do século dando conota-
ção meramente assistencialista, Luna Ramacciotti, refere que o movimento dos trabalhadores
antes de 1930 foi essencial para a materialização das normas trabalhistas subsequentes.
RAMACCIOTTI, Luna. Crises e desafios do sindicalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen
juris, 2020, p. 9.
3
FAUSTO. Boris. Trabalho Urbano e Conflito Social. 2ª ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016, p. 205.
4
José Carlos Arouca traça crítica contumaz sobre o modelo de sustentação implantado à
época quando afirma: "Na verdade, o imposto prestou-se para manter os diretores "oficialis-
tas" e "pelegos" em seus postos, cobrindo as despesas de manutenção da sede e naturalmente
seus salários e vantagens, dispensados, assim, de estimular a filiação, de representar a classe,
mobilizando-a e comandando os movimentos reivindicatórios." AROUCA, Jose Carlos.
Comentários à Legislação Sindical. São Paulo: LTR, 2018, p. 146.
5
A justificativa do Projeto de Lei 6787/2016 (Acessível em: https://www.camara.leg.br/
proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=E4EF23B721956937B7093DB8A575007
2.proposicoesWebExterno1?codteor=1520055&filename=PL+6787/2016) que se transfor-
mou na Lei Ordinária 13.467/2017 é um arauto das aparentes boas intenções com o
Sindicalismo, em que expressamente busca a valorização da negociação coletiva e ação
sindical como elemento de essencial na relação capital trabalho. Entretanto, não passou de
escárnio, eis que a leitura do texto legal claramente demonstra o intento de supressão do

190
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

ceifa as fontes de sustento. A malsinada Lei 13.467/17 também implode


os pilares de manutenção do sistema sindical nacional, sem uma regra de
transição para a manutenção da estrutura sindical para o pretenso novo
modelo alinhado com a meritocracia. Até este momento vale observar que
as discussões e debates públicos se davam sobre a ótica da regulamentação
da terceirização, negociado sobre o legislado e flexibilização de direitos6,
sem qualquer ataque, como feito na sequência, sobre o custeio da atividade
sindical.
O ideário de Sindicato como entidade associativa complementando as
ausências do Estado em prol da classe trabalhadora, permite a formação de
um senso coletivo e unidade de propósitos para enfrentamento do capital. Por
seu turno o conceito de categoria profissional é consolidado ao longo dos anos
congregando a similitude de atividades profissionais7; o sindicato é visto não
somente para a prestação de serviços, mas, como campo necessário de luta e
resistência contra a força do capital e as tentativas reinantes de precarização
das condições de trabalho8.
A redemocratização com a Constituição de 1988 e a queda do muro
de Berlim com a ideia de aparente triunfo do capitalismo deu espaço para
o razoável desenvolvimento das políticas neoliberais – que encontram no
coletivo sindical ponto de reflexão e resistência – as quais historicamente
rondavam a América Latina e fizeram suas primeiras incursões no Chile9.
sindicato das negociações, valorizando, em verdade, a negociação individual do trabalhador.
Todo o movimento político e ideológico que permeou a malsinada legislação veio consolidada
no documento "Uma Ponte para o Futuro" (Acessível em: https://www.fundacaoulysses.
org.br/wp-content/uploads/2016/11/UMA-PONTE-PARA-O-FUTURO.pdf), pós golpe que
derrubou Dilma Rousseff, que ajusta os compromissos com o capital no sentido de implantar
e concluir a política neoliberal que permeou o período de Governo Fernando Henrique
Cardoso.
6
Acesso em 15/09/2020 às 20:30 https://www.oabrs.org.br/noticias/em-audiencia-publica-
oabrs-debate-projeto-lei-reforma-trabalhista/24198.
7
Art. 511 da CLT.
8
Ricardo Antunes sustenta o papel ainda necessário do Sindicato para enfrentamento dos
ataques do capital, não sem propor um correto realinhamento de fundamento do movimento
sindical, dentre os quais incorporar os contingentes do novo proletariado de serviços,
rompendo com a burocratização e institucionalização, resgatando o sentido de classe, dentre
outras pautas sociais e ambientais. ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão. O novo
proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 295-297
9
Sobre o tema " As Veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano; e mais recente,
Fabio Luis Barbosa dos Santos, que expressa: "O mundo do trabalho destroçado pela
combinação entre terrorismo e desindustrialização, teve seu marco legal completamente
remodelado. Em 1978 a ditadura derrogou a lei que proibia a demissão sem justa causa.

191
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Com toda certeza as principais normas coletivas regulando condições de


trabalho e remuneração têm origem nessas lutas históricas do final dos anos
1970 e início de 1990. A resistência contra as privatizações e melhoria salarial
eram as principais pautas que motivavam grandes movimentos da sociedade,
são do período registros de greves históricas10.
O sindicalismo autêntico lastreado pelo imposto sindical consegue
impor grandes avanços na tutela da classe trabalhadora e para as categorias
representadas; entretanto as crises cíclicas do capital e o avanço tecnológico
com a promessa de modernização, agindo diretamente sobre a forma de
realização do trabalho, a ideia de terceirização e substituição ou supressão
de postos de trabalho por uma tecnologia desencadeou os primeiros choques
de um novo momento para a organização sindical, especialmente com os
ataques do neoliberalismo à organização classista11 no final dos anos 1990 e,
recentemente, em 2017.
As fontes de sustentação para além da contribuição compulsória
eram apenas programas nas estruturas do sindicalismo. O início do século
XXI com o rápido incremento das tecnologias e, mais recentemente, pelos
conceitos de informatização da produção impactaram diretamente nos postos
de trabalho e com isso a redução da participação da classe trabalhadora
orgânica no movimento sindical. As categorias profissionais se fragmentam

Também foram autorizados contratos temporários de trabalho e flexibilização das jornadas,


segundo a conveniência do empregador. No ano seguinte, promulgou-se um Plan Laboral
que refundou a legislação sindical e consagrou a desregulamentação do mercado de trabalho.
Foram proibidas a negociação coletiva e a greve em serviços públicos, permitiu-se a
contratação de trabalhadores para substituir grevistas, interditou-se a formação de sindicatos
por categoria (somente por empresa, incentivou-se a negociação individual e acabou-se com a
justiça do trabalho (...).SANTOS, Fábio Luis Barbosa dos. Uma história da onda progressista
sul-americana (1998-2016). São Paulo: Elefante, 2018. p. 381.
10
Greve dos Bancários de 1979 acessível em https://www.sindbancarios.org.br/index.php/
greve-historica-de-1979-ganha-programa-especial-e-debate-da-radio-guaiba/ e greve de
1985 acessível em: http://bancariosirece.com.br/site/ultimas-noticias/308-greve-historica-
dos-bancarios-completa-30-anos#:~:text=Em%20setembro%20de%201985%2C%20
o,banc%C3%A1rios%2C%20que%20completa%2030%20anos.&text=Em%2028%20
de%20agosto%2C%20Dia,foram%20%C3%A0s%20ruas%20para%20protestar;greve
dos Petroleiros de 1995 acessível em https://www.cut.org.br/noticias/greve-historica-dos-
petroleiros-completa-15-anos-3b60 .
11
O fascismo exige que os indivíduos em uma sociedade sejam atomizados, isto é, devem
perder a conexão mutua entre as suas diferenças. Os sindicatos criam laços mútuos ao longo
de linhas de classe e não de raça ou religião, essa é a razão fundamental pela qual os sindicatos
estão na mira da ideologia fascista. AREND. 1951 apud STANLEY, Jason. Como funciona o
fascismo: a política do "nós" e "eles". Porto Alegre: L&PM, 2020. p.166.

192
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

não mais em um conceito uno, sólido de uma profissão; o neoliberalismo e


as crises do capital se aproveitam do desemprego e da falta de esperança dos
trabalhadores12 para a oferta de trabalhos temporários, precários, com ganhos
cíclicos aliados a um senso comum de aparente vanguarda e modernidade,
ambiente natural e propicio para o ataque às estruturas de luta coletiva.
Nesse novo espaço o uso da linguagem e a propaganda do sistema
capitalista encanta como uma alternativa ou como uma nova profissão o
exercício de atividades vinculadas com a tecnologia, como as plataformas
digitais de prestação de serviço ou o trabalho intermitente.
As novas gerações de trabalhadores e trabalhadoras, formadas num
ambiente tecnológico de pouca socialização, de valores fragmentários e
individualistas, valorizando o ganho pessoal, a meritocracia como elemento
de realização, aliado com as crises de emprego, econômica e a inserção do
mercado de consumo, como elemento de realização, sem dúvida alguma
contribuíram para a crise do sistema sindical e o desinteresse de participação
coletiva.
O senso comum advindo com a Lei 13.467/17 é no sentido da superação
do sindicalismo e que as forças produtivas devem se estabelecer com base
nas pretensões do indivíduo supostamente habilitado e capaz de negociar as
suas condições de trabalho, o que, efetivamente, se mostra duvidoso, como o
regime de banco de horas:
A Lei 13.467/2017 ameaça o restante da classe trabalhadora que
estava protegida do banco de horas por não haver negociação
coletiva que o autorizasse. Essa ameaça é feita por meio
da inserção na CLT dos §§5º e 6º do art. 59, contrariando
frontalmente a jurisprudência do TST, consolidada no item
V da Súmula 85. Tal medida devolve o conjunto da classe
trabalhadora a um estágio primitivo na luta pela limitação da
jornada de trabalho13.

A Reforma Sindical (Lei 13.467) elaborada sem qualquer dialogo social


efetivo, tergiversando sobre um aparente debate nacional sobre tema na sua
justificativa, suprimiu o custeio da estrutura sindical. O movimento legislativo

12
Ricardo Antunes propõe identificar quem seja a classe trabalhadora nesse novo momento
(ANTUNES, Ricardo. Op. Cit. . p. 87-94) que se mostra mais “ampla, heterógena, complexa
e fragmentada do que o proletário industrial do século XIX e do início do século XX."
13
OLIVEIRA, Thiago Barison de. A estrutura sindical de estado e a reforma trabalhista. In
Reformas Institucionais de Austeridade, Democracia e Relações de Trabalho. São Paulo: Ltr,
2018. p. 160.

193
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

em questão veio no embalo de um golpe neoliberal desferido para aprofundar


o modelo econômico de desigualdades, buscando suplantar o ideal de co-
letividade por um de individualidade. Assim é que as negociações coletivas
foram colocadas de lado autorizando a negociação individual; a desvalorização
da Previdência Social e a redução de direitos com a justificativa de criação de
novos postos de trabalho aliadas ao enfraquecimento do sindicato, é a força
motriz ideológica que pretende suprimir toda e qualquer base de resistência.
Nesse ambiente a crise do movimento sindical não pode ser fundamento
para sua supressão, pelo contrário, as imperfeições sustentam a necessidade
de correção de rumos, eis que somente no ambiente coletivo que podemos
encontrar espaço de resistência e senso comum para enfrentamento das
tendências de supressão dos Direitos Sociais.
Em que pese os limites do tema posto - A sustentação financeira
do movimento sindical – sem dúvida nenhuma temos que compreender o
ambiente complexo em que a discussão está posta: Os valores pregados pelas
mídias dominantes, pelo mercado financeiro e pela promessa tecnológica
de realização, sucesso e riqueza material. Promessas de liberdades, de
rendimentos e autonomias que escondem a precarização dos postos de trabalho,
achatamento da renda e manutenção do tecido social de desigualdade como
elemento necessário para desenvolvimento do capital. A roupagem moderna,
informatizada, dinâmica e tecnológica é, a nova apresentação da exploração
do trabalho humano.
Perpassa por isso a estrutura sindical nacional criticada por sua fonte
de custeio, mas que ao longo dos anos conseguiu ser um ponto de resistência
e amparo para a classe trabalhadora. A aferição empírica evidencia um
êxito aparente da narrativa de superação do trabalho e do trabalhador para a
narrativa de empreendedor, empresário, ainda que as condições e o resultado
econômico do trabalho sejam muito mais precárias que o emprego assalaria-
do.
Esse novo ambiente torna necessária a disputa de narrativa, rea-
proximando o trabalhador e a trabalhadora – isolados e atomizados – para
um centro comum de debate sobre a sua condição e sua perspectiva diante
da tecnologia, rentismo, visão de mundo e condição social são pontos que o
sindicalismo se depara nesse início de século.
2 - OS GRANDES MOVIMENTOS NACIONAIS SOBRE REFORMA
SINDICAL
Antes de aprofundar o estudo no problema de sustentação financeira
e na construção de alternativas para o enfrentamento do capital financeiro-
194
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

tecnológico organizado merecem registros dois grandes movimentos de


reflexão sobre o sindicalismo.
O primeiro deles o Fórum Nacional do Trabalho14 que discutia, num
ambiente democrático e preocupado com a valorização da classe trabalhado-
ra, alternativas e novos olhares para o Direito do Trabalho e a organização
sindical. São do período algumas considerações críticas com viés construtivo
de aperfeiçoamento e valorização, efetiva, do campo coletivo como espaço de
diálogo e apaziguamento das disputas capital e trabalho. Não havia qualquer
sinalização para a desidratação do sindicalismo, se debatia a negociação
coletiva como solução, num palco verdadeiramente democrático com espaço
hegemônico dos valores sociais e da dignidade humana como alicerce
primordial.
O relatório final do Fórum expressa:
C) Sustentação financeira da organização sindical
As entidades sindicais, de qualquer âmbito e nível de
representação, têm a prerrogativa de cobrança das:
1. contribuição associativa, cujo valor deve ser fixado em
Assembléia ou Conselho, segundo o princípio da razoabilidade;
e
2. contribuição de negociação coletiva, de periodicidade
anual, vinculada à negociação coletiva, devida por todos os
trabalhadores beneficiados por instrumento normativo, in-
dependentemente de filiação sindical.
Essa modalidade de contribuição será obrigatoriamente aprova-
da em Assembléia dos trabalhadores da base de representação
do sindicato e os valores a serem pagos pelos trabalhadores,
a título de Contribuição de Negociação Coletiva, não poderão
ultrapassar 1% do valor da remuneração líquida recebida
no ano anterior, que será paga em, no mínimo, três parcelas
mensais, a partir do mês de abril. Essa contribuição só poderá
ser recolhida pelas entidades sindicais que comprovarem sua
representatividade. O valor total pago pelo não-sócio à entidade
sindical não poderá exceder o valor total pago pelo sócio (valor
da Contribuição Associativa mais o valor da Contribuição de
Negociação Coletiva). O direito de oposição à Contribuição de
Negociação Coletiva se dará exclusivamente nas Assembléias
amplamente convocadas pelos Sindicatos para a definição do
14
Instância triparite de negociação sobre a reforma trabalhista e sindical implementada
pelo Decreto 4.796 de julho de 2003 que buscava promover o entendimento entre os
representantes dos trabalhadores e empregadores e do governo federal na busca de consensos
sobre a legislação sindical e trabalhista para seu aperfeiçoamento a serem enviadas pelo
governo ao Congresso Nacional.

195
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
valor da Contribuição de Negociação Coletiva. Os percentuais
de repasse dos valores referentes à Contribuição de Negociação
Coletiva para as entidades sindicais e para o Fundo Solidário de
Promoção Sindical são: centrais sindicais: 10%; confederações,
5%; federações, 10%; sindicatos, 70%; e fundo solidário, 5%.
Devem ser extintas, de forma gradativa e ao longo de três
anos, a contribuição sindical obrigatória (imposto sindical) e as
contribuições confederativa e assistencial15.

Esse espaço coletivo possuía uma razoável unidade sistêmica, com


participação da sociedade num espaço amplo e verdadeiramente democrático.
O segundo grande movimento veio na esteira neoliberal de supressão do
espaço coletivo, entendido como empecilho para o livre trânsito do capital e do
recrudescimento da exploração do trabalho. Esse movimento toma a narrativa
na busca de superação do sindicalismo para implantar a via da livre (e direta)
negociação sobre as condições de trabalho. O sindicato posto como entrave é
posto em debate num ambiente de duvidosa democracia e sob os auspícios de
um movimento puramente econômico, sem qualquer comprometimento social
prático, senão restrito a uma linguagem de justificação para os trabalhadores
atomizados.
Neste sentido:
Já apontamos os aspectos quanto a antidemocraticidade da
norma que permitia a contribuição compulsória. Contudo,
desvelamos que a real intenção do proponente da reforma,
pelo próprio conjunto da obra, não era a de preservar a livre
associação, mas a de prejudicar os sindicatos com o corte abruto
das referidas verbas16.

As evidentes contradições do movimento que sustenta a Reforma


Sindical e ataca o movimento sindical consubstanciado pela Lei 13.467/17
desnuda o interesse do capital, agora rentista-tecnológico, em tentar superar
as formas de organização da classe trabalhadora por melhores condições e
renda.

15
OSTROWSKI. Antonio et al. Reforma Sindical - Reflexões sobre o relatório final do
Fórum Nacional do Trabalho. Textos para discussão 10. Acessível em https://www12.
senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-
10-reforma-sindical-reflexoes-sobre-o-relatorio-final-do-forum-nacional-do-trabalho.
16
RAMACCIOTTI, Luna. Crises e desafios do sindicalismo brasileiro. Rio de Janeiro:
Lumen juris, 2020, p. 91.

196
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

3 - CONSTRUÇÃO DE ALTERNATIVAS PARA A SUSTENTAÇÃO


FINANCEIRA DO MOVIMENTO SINDICAL:
Renovar e apreender a linguagem e desejo da classe trabalhadora que
é sugada pelos meios telemáticos para dentro de uma bolha tecnológica de
aparente empreendedorismo e promessa de sucesso e realização financeira
é outro grande desafio do movimento sindical. Para muitos desempregados
e trabalhadores assalariados as plataformas digitais são uma alternativa
profissional efetiva, não somente de sobrevivência, mas de aumento dos
rendimentos.
Qual a narrativa de classe?
A questão de identidade é encontrada nos grupos que hoje se organizam
como os primeiros movimentos sindicais do século XIX, pelo associativismo
e busca de apoio mutuo para o enfrentamento das agruras do trabalho em vias
digitais17. Dialogar nos novos espaços da tela de celular e do computador em
contrapondo ao espaço físico da sede do sindicato é um dos mais recentes
desafios. Mostrar que o capital continua com o mesmo papel de maximizar
lucro e reduzir custo, com a exploração do trabalho, apenas com nova
roupagem tecnológica e com linguagem própria são os desafios que apresenta
para o novo sindicalismo e, por consequência, para o seu financiamento.
Inserir e demonstrar que o espaço físico do sindicato pode ser o ponto
de reencontro e identificação da categoria, ou das categorias de trabalhadores,
talvez mais do que nunca dando força para a expressão de “similitude de
condições de vida” do §2º do art. 511 da CLT; possivelmente não é mais
a condição de empregado na empresa, mas a forma e sistemática como o
trabalho é realizado em prol da empresa que desvele o ponto de unidade
da classe trabalhadora em torno do sindicato profissional, abarcando não
somente o trabalhador contratado com carteira assinada, mas o terceirizado,
o com vínculo de emprego aparentemente fraudado e aquele realizado por
plataformas digitais.
Tal como as forças do capital se reinventam, se moldam com a lingua-
gem e, como a realização do trabalho se digitaliza, o movimento sindical de-

17
Identificamos algumas organizações embrionárias de defesa dos interesses dos trabalha-
dores em plataformas digitais como: SeliganaLiga – www.seliganaliga.com.br -; AMPARS
(www.ampars.org); AMPRITEC – facebook.com/ampritec e o mais atuante ALMA-RS
Associação Liga dos Motoristas de Aplicativos do Rio Grande do Sul que, a despeito da
nomenclatura, expressa o mais claro movimento sindical organizado desde a formação
de consciência de classe até a oferta de serviços. De igual sorte, também, a fundação do
Sindicato dos Motoristas de Transporte Privado Individual de Passageiros Por Aplicativos do
Rio Grande do Sul - Simtrapili – Rs com apoio da estrutura sindical da CUT/RS.
197
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

ve ampliar seus conceitos de categoria e classe trabalhadora, com isso,


diretamente avançando sobre trabalhadores que os limites do Estatuto Social
da entidade não atenderiam, ou que, marginalizados pela precarização do
posto de trabalho, são intermitentes, terceirizados, pejotizados, mas que
tem na similitude de condição de vida o ponto de encontro na realização do
trabalho.
Um juízo crítico pode ser feito sobre os Sindicatos de Taxistas
adequando as suas bases de diálogo e ação sobre os trabalhadores em
aplicativos de transporte, e, com isso, quiçá renovando a linguagem, trazendo
como Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras no Ramo de Transporte,
oferecendo serviços de alimentação, repouso e higiene. Enfim, uma proposta
reflexiva que já indica os caminhos de adequação do movimento sindical
para a dita nova roupagem dada para a velha e sempre presente relação de
emprego.
A construção dessa nova representação autoriza, evidentemente, a
participação colaborativa por valores fixos ou mesmo por contribuições
associativas, mensalidade, ou, ainda, pela renda de serviços. A construção
do financiamento passa, então, pela compreensão do atual estágio evolutivo
da classe trabalhadora e da forma de apreensão do trabalhador pelo discurso
neoliberal.
4 - O FINANCIAMENTO DO MOVIMENTO SINDICAL PARA OS
PRÓXIMOS ANOS
As hipóteses de construção de um modelo de financiamento perpassam
por compreender essa nova realidade da organização do trabalho, atomizado e
disperso no espaço da realidade e da virtualidade de conexões. A diversidade
social e desigualdade material que atravessa o Brasil talvez não é mais
adequado para um modelo vertical de regulamentação, o que não importa na
ausência de leis ou livre negociação, mas de ações pontuais de cada sindicato,
como referido no item anterior, e, na sequência, de uma ação política e jurídica.
E com razão, o movimento sindical é o ponto de encontro para a classe
trabalhadora, como leciona Jason Stanley18:
Um obstáculo para o tipo de divisões entre nós/eles descrito
acima é a unidade e a empatia intraclasses exemplificada nos
sindicatos. Nos sindicatos em funcionamento, os cidadãos
brancos da classe trabalhadora se identificam com os cidadãos
negros da classe trabalhadora em vez de se ressentirem deles.
18
STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do "nós" e "eles". Porto Alegre:
L&PM, 2020. p.165.
198
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
Os políticos fascistas entendem a eficácia que essa solidariedade
tem em resistir às políticas de divisão e, portanto, procuram
desarticular os sindicatos. (...) O sindicato é o principal meca-
nismo que as sociedades descobriram para vincular pessoas que
diferem em vários outros aspectos. Os sindicatos são fontes
de cooperação e de comunidade e de igualdade salarial, bem
como os mecanismos para fornecer proteções às vicissitudes do
mercado global.

As forças devem se equacionar para projetos de lei demonstrando a


necessidade de validação da fonte de custeio e, de outro lado, o Poder Judi-
ciário, com sua estrutura conservadora e por vezes refratárias a mudanças,
deve compreender a necessidade de valorização da negociação coletiva, numa
construção da solução dos conflitos sociais que hoje não está previsto no texto
da lei, sendo construído na sentença, mediante uma valoração criativa do juiz,
balizada nos limites da Constituição19. O papel de agente transformador da
realidade, estudado e debatido no início dos anos 1990, deve ser retomado, os
valores progressistas de desenvolvimento e construção do direito.
19
Propõe-se o estudo a partir da constatação que é no processo que o juiz constrói uma
decisão juridicamente válida, motivada e fundamentada " art. 93 da CF/88, monismo.
Candido Dinamarco (DINAMARCO, Candido. Instituições de direito processual civil.
v. I, 5 ed. São Paulo: Melhoramentos, 2005.) em defesa da teoria dualista a distingue da
monista e com base nas ideias de Carnelutti e Chiovenda: "A função criadora do processo,
nessa perspectiva, consistiria no que Carnelutti denominou de justa composição da lide.
Tal é uma colocação puramente jurídica, dado que se limita, tanto quanto a de Chiovenda,
a examinar o fenômeno processo como algo preordenado exclusivamente à vida do direito
material. A grande diferença entre as duas teorias residia em que, enquanto para uma a norma
do caso concreto receberia da sentença o seu acabamento final e antes dessa, os direitos
inexistiriam (Carnelutti); para a outra, o ordenamento jurídico é composto de dois planos
distintos (teoria dualista, Chiovenda) e os direitos e obrigações preexistem à sentença, sendo
por ela revelados com vista à concreta realização pratica determinada pela norma também
preexistente." (Ibidem, p. 145). De outro lado, com aportes promissores, Mauro Cappelletti,
citando Lord Radcliffe: "o juiz bem pode se empenhar na mais estrita adesão ao princípio
de respeitar rigorosamente os precedentes; bem pode concluir toda tarde sua própria jornada
de trabalho na convicção de nada haver dito nem decidido senão em perfeita concordância
com o que os seus predecessores disseram ou decidiram antes dele. Mas ainda assim, quando
repete as mesmas palavras de seus predecessores, assumem elas na sua boca significado
materialmente diverso, pelo simples fato de que o homem do século XX não tem o poder de
falar com o mesmo tom e inflexão do homem do século XVII, XVIII ou XIX. O contexto é
diverso; a situação referencial é diversa; e seja qual for a intenção do juiz, as sacras palavras
da autoridade tomam, quando repetidas na sua linguagem, moedas de nova cunhagem. Neste
sentido limitado, bem se pode dizer que o tempo nos usa a nós todos como instrumentos de
inovação". (CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Trad. Carlos Alberto Álvaro de
Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 23)

199
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

O resgate dos debates do Fórum Nacional do Trabalho demonstra um


ponto de convergência das várias forças do sindicalismo, tendo precedido
amplo debate democrático com a totalidade da sociedade. A consolidação
de representação, o reconhecimento do movimento sindical como voz para
a classe trabalhadora e a necessidade de sustentação financeira com base
na representatividade são elementos que permitem um desenvolvimento
econômico e social sustentáveis e equilibrados. Aferição dos níveis de
representação com critérios legais e proporcionais ditam os rumos do
movimento e servem como parâmetro para num ambiente de liberdade
sindical permitir a efetiva e real independência do movimento, como agente
de negociação ou resistência do sindicato.
Neste sentido, as proposições sintetizadas por Wilson Ramos Filho20:
a) A primeira e, mais importante, reside na questão da atri-
buição de representatividade sindical. Como se sabe, desde a
reforma sindical de 1930/31, com o golpe de Estado getulista,
estabeleceu-se o “reconhecimento sindical” por parte do Estado
desvinculado de qualquer necessidade de comprovação da
real representatividade da entidade reconhecida. Esse fato,
com tudo o que dele decorre, conduziu à proliferação de
entidades sindicais com baixa representatividade real, ao baixo
nível de sindicalização, a um alto grau de burocratização das
entidades sindicais e a um distanciamento crescente entre
as bases e as representações sindicais, de trabalhadores e de
empregadores. O novo sistema prevê critérios de aferição da
efetiva representatividade das entidades sindicais, de duas
formas: por representatividade comprovada (pelo percentual
de sindicalizados em relação ao conjunto dos representados)
ou por representatividade derivada (das instâncias superiores às
quais o sindicato de base for vinculado) inserindo-se aí critérios
de aferição de representatividade efetiva das federações,
confederações e centrais sindicais.
b) A segunda grande novidade sistêmica é a substituição da noção
de categoria profissional pela noção de ramo de atividade como
núcleo organizativo fundante do sistema.4 A lógica do sistema
atual é a organização dos sindicatos por categoria profissional
(definida pela atividade econômica preponderante na empresa),
com os sindicatos se organizando verticalmente em federações
(com votos indiretos, um voto por sindicato independentemente
do número de seus sindicalizados) e confederações (um voto por

20
RAMOS FILHO, Wilson. O fórum nacional do trabalho e o sistema sindical brasileiro:
algumas críticas sobre o modelo de conflitos coletivos. Acessível em https://www.migalhas.
com.br/arquivo_artigo/forum_nacional_do_trabalho_e_o_s.htm.

200
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
federação independentemente do número de representados ou
de sindicatos a ela vinculados). O eixo das negociações (e das
formas institucionalizadas de solução de conflitos) no modelo
atual está centrado nas negociações conduzidas pelos sindicatos
de base com a contraparte patronal (sindicato de empresas ou
empresas). O novo sistema, ao prever a organização nacional por
setores e por ramos de atividade desloca esse eixo possibilitando
negociações coletivas de âmbito nacional cujos resultados
haverão de se aplicar a todos os empregados naquele ramo, em
todo o território nacional, como se verá mais adiante.
c) A terceira modificação paradigmática, decorrente das
anteriores, por ser sistêmica, é o reconhecimento das Centrais
Sindicais como interlocutores privilegiados não apenas da
concertação social que possibilitará a implantação do novo
sistema, mas de todo o mencionado tripé que estrutura o direito
sindical brasileiro.
d) A quarta modificação paradigmática é que resta abandonada a
noção de necessária unicidade sindical característica do modelo
sindical brasileiro desde os anos trinta. Os consensos obtidos
no âmbito do Fórum Nacional do Trabalho possibilitaram a
construção de um novo sistema com pluralidade nas instâncias
superiores com a possibilidade de unicidade ou pluralidade
de representação nos sindicatos de base, segundo deliberação
dos próprios trabalhadores, e segundo alguns requisitos e pres-
supostos que serão oportunamente analisados.
e) A quinta modificação significativa é que o novo modelo
não prevê a necessidade de simetria entre a representação dos
trabalhadores e a representação dos empregadores.5
f) A sexta inovação paradigmática se refere ao novo modelo
de negociação coletiva que se engendrou, possibilitando
negociações articuladas desde os níveis mais gerais aos mais
específicos (nas empresas);
g) A sétima grande novidade paradigmática é a que, incluindo
parâmetros para a negociação coletiva, avança para a con-
figuração dos chamados atos antisíndicas (no sentido de fo-
mentar as negociações) e a uma reconfiguração do direito de
greve6, com significativas mudanças quanto à sua compreensão
como fenômeno social;
h) Por fim, a derradeira grande alteração no paradigma até
hoje vigente localiza-se na valorização dos chamados meios
alternativos de solução de conflitos coletivos, com a eleição da
arbitragem compulsória destes por parte da Justiça do trabalho,
em substituição ao Poder Normativo, segundo os princípios
gerais da arbitragem, o que será objeto de crítica parcial neste
trabalho.

201
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta retoma a necessidade de um espaço associativo e coletivo
que atenda às necessidades imediatas da classe trabalhadora precarizada,
assumindo um papel de articulação e apoio, buscando a conscientização de
seu papel e organizando a atividade sindical de luta por melhores condições
de trabalho.
Com isso as propostas de uma sustentação por contribuição associativa
e outra negocial, a partir das demandas coletivas como classe trabalhadora
organizada em ramos de atividade identificadas por pontos de similaridade.
Antes de formalizar medidas alternativas concretas de incremento da
receita, há que se compreender a extensão das mudanças sociais que per-
passam o mundo do Trabalho e o intento das últimas reformas que visam
a supressão completa do sindicato como agente interlocutor de voz da
coletividade de classe trabalhadora.
Os valores da meritocracia, individualidade, tecnologia e oportunidade
para um segmento de trabalhadores, aliado a falta de interlocução e linguagem
própria do atual sindicato com o atual trabalhador são elementos necessários
de revisão para, então, repensar as formas de sustentação financeira que
dialoguem com o atual cenário de ataques aos direitos sociais.
Apreender a linguagem e as necessidades da classe trabalhadora é
elemento essencial que precede a compreensão das formas de sustentação
financeira do movimento sindical. O desconto na remuneração, puro e simples
pode não traduzir o espaço de legitimação para a manutenção do sindicalismo,
deve, nos tempos atuais buscar compreender os anseios e necessidades para
então se apresentar como um espaço de construção e defesa dos interesses.
Exemplos ainda incipientes estão sendo experimentados com os
trabalhadores de aplicativos de transporte, com centros de convivência e
oferta de serviços como lanche, higiene e repouso. Em mesmo sentido, alguns
sindicatos superam os aspectos formais de representação para um exercício
de identificação dos trabalhadores em condição precária, terceirizados,
autônomos ou sem vínculo formal algum, buscando a conscientização e a
melhoria da sua condição de trabalho e, por consequência de vida, sem que
isso passe necessariamente pela discussão inicial do vínculo de emprego, mas
de melhoria da condição efetiva de trabalho.
Resultado desse movimento é a possibilidade da cobrança de um valor
por serviço, um valor por associativismo e a clássica remuneração decorrente
das negociações de classe, sejam por acordos / convenções coletivas ou pelo
exercício da negociação em prol de um grupo de trabalhadores.
202
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”.
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203
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

TELETRABALHO E O FORNECIMENTO DE TECNOLOGIA DE


INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO – QUEM PAGA ESTA CONTA?

Caroline Ferreira Anversa 1

RESUMO: O artigo analisa o teletrabalho, sob o prisma das alterações


legislativas da Consolidação das Leis do Trabalho e a necessidade de análise
ampla do texto da lei trabalhista no que se refere a responsabilidade da empresa
em suportar todas as despesas decorrentes do uso de sistemas telemáticos de
informação e comunicação.
Palavras-chaves: Home Office. Teletrabalho. Reforma Trabalhista.

1
Diretora da Associação Gaúcha da Advocacia Trabalhista, sócia do Escritório Direito
Social, especialista em Direito e Processo do Trabalho, formada pela PUCRS/RS.

205
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

1 - INTRODUÇÃO
As alterações abruptas nas rotinas e formas de trabalho apresentaram a
uma parcela dos trabalhadores os mecanismos e facilidades do denominado
home office. Sistema onde com a subordinação do trabalho e o desempenho
das funções com coordenação do empregador, as atividades que antes eram
assumidas pelo empregado e desempenhadas na sede da empresa, passam a
ser realizadas no ambiente de trabalho.
Consolidada esta alteração regulamentada pela inclusão de um artigo na
Consolidação das Leis do Trabalho - inserido com o contexto de viabilidade
econômica e supressão dos direitos sociais da alteração legislativa denomina-
da reforma trabalhista – está caracterizada a adequação de um conceito de
realidade laboral cada vez mais dissociada das garantias constitucionais de
dignidade do trabalhador.
Inobstante a grave expansão desta modalidade, impelidos pela urgên-
cia efetiva do isolamento social, estamos diante de novas discussões, que
exigem novos parâmetros, mas que sigam mantendo os alicerces das garantias
do trabalho e dos princípios estruturais dos direitos elencados na legislação
trabalhista.
A utilização de mecanismos disponíveis para o desempenho das fun-
ções laborais e os sistemas necessários compõe um dos muitos recortes
essenciais do estudo e da compreensão das alterações da rotina de trabalho
e impacto na relação de emprego dentro do contexto atual de trabalho e dos
avanços tecnológicos já existentes.
Essencial que se aprofunde o conceito de aplicação sistemática e
interpretativa da legislação que regulamenta o teletrabalho, considerando que
o novo sistema de emprego, distante da sede das empresas, para que este não
corresponda a uma alternativa econômica de transferência de responsabilida-
des de forma absoluta ao trabalhador, incluída a responsabilidade de arcar
com despesas de manutenção e estrutura física para que os sistemas telemá-
ticos sejam implementados.
2 - O CONCEITO DE TELETRABALHO
Conceitualmente, o teletrabalho surge no contexto de novas formas de
trabalho diante das metamorfoses e fragilidades das relações de trabalho e
da globalização neoliberal, culminando com a produção crescente de meios
tecnológicos que possibilitam a inserção no contexto mundial atual.

206
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Diante da tecnologia em crescente expansão e apropriação de novos


significados de sistemas telemáticos e de comunicação, o teletrabalho volta a
aproximar o trabalho dos lares. Segundo Lacombe (2011), essa modalidade
de trabalho consiste em levar o trabalho onde estiverem os trabalhadores,
em vez de levá-los ao trabalho. É nesta sistemática que o trabalho pode ser
desenvolvido em casa, ou em um escritório próximo a mesma, mas longe da
organização para a qual se trabalha.
Para a Organização Internacional do Trabalho (2011), o teletrabalho
deve ser conceituado como uma forma de atividade laboral desempenhada à
distância, realizada, desta forma, em lugar diverso da sede de empresa e com
a necessidade da utilização de uma nova tecnologia, a ser utilizada com o
intuito de facilitar a comunicação entre o empregador e o empregado.
Teletrabalho significa a possibilidade de trabalhar fora do local
de trabalho por um determinado período. As condições em que
acontece variam: enquanto algumas pessoas trabalham sempre
em suas residências, outras alternam, regularmente, o trabalho em
casa e na organização ou adotam esse esquema quando ocorrem
emergências familiares ou outras situações extraordinárias.
Graças ao rápido desenvolvimento das tecnologias da informação
e da comunicação, o teletrabalho cresceu consideravelmente nos
últimos anos. O teletrabalho permite que os custos da locomoção
ao trabalho sejam eliminados tanto em termos financeiros como
de tempo. Além disso, ele permite a adaptação de horários de
trabalho a tarefas domésticas e responsabilidades familiares.
Para as empresas, o teletrabalho pode reduzir custos de espaço de
escritório. No entanto, o teletrabalho sustentado no tempo pode
levar ao isolamento e a jornadas de trabalho muito longas devido
à ausência de uma separação clara entre o tempo de trabalho e
o tempo livre. O trabalho realizado no domicílio é, em grande
parte, pago por unidade de produção, o que gera a intensificação
e o alongamento da jornada de trabalho para aumentar a renda
gerada. No entanto, ele pode ser uma alternativa para que de-
mandas familiares possam ser atendidas sem a necessidade de
se parar de trabalhar (OIT, 2011).

O trabalho realizado no domicílio do empregado, não pode ser


diferenciado do trabalho realizado no estabelecimento do empregador, ou do
executado a distância. Neste sentido é o teor do artigo sexto da Consolidação
das Leis do Trabalho, com redação alterada pela lei 12.551 de quinze de
dezembro de 2011.2
2
Art. 6o Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador,
o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam
caracterizados os pressupostos da relação de emprego.
207
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

O parágrafo único3 deste mesmo artigo estabelece o sentido absoluto do


espírito do princípio à proteção do trabalho, definindo que os meios telemáti-
cos e informatizados de controle se equiparam, para fins de subordinação
jurídica aos meios pessoais e direitos deste mesmo comando, controle e
supervisão. O que significa dizer, que independentemente do local da presta-
ção de serviços, e mesmo naquele trabalho desempenhado em regime de home
office, estão presentes os requisitos da existência do vínculo de emprego e
contrato de trabalho.
A pessoalidade, na figura do trabalhador contratado para o desempenho
do labor, a onerosidade decorrente do pagamento de contraprestação salarial
pelo desempenho da atividade laboral, a não eventualidade que condiciona
a existência de jornada preestabelecida e a habitualidade que diz respeito a
uma rotina de trabalho. Segundo Bezerra Leite, a subordinação jurídica no
teletrabalho é mais tênue e é efetivada por meio de câmeras, sistema de logon
e logoff, computadores, relatórios, bem como ligações por celulares, rádios
etc. (LEITE, 2020).
Por certo, estas garantias respaldadas no que se refere a identidade de
tratamento da relação de trabalho, independente do local de desempenho da
atividade, tal como estabelecida pela Consolidação das Leis do Trabalho
conceituaram de forma clara e precisa que as relações de trabalho não
prescindem a presença do trabalhador na sede do empregador, para que se
reconheçam os requisitos do contrato e os deveres e garantias do contratante
e contratado.
Nesta medida, superada controvérsia relativa ao debate arca da existên-
cia ou não da relação de emprego no tocante às situações de teletrabalho, no
que diz respeito à falta de subordinação jurídica. Conforme Delgado (2002)
a redação é determinante ao corroborar com a linha interpretativa que, por
intermédio da teoria de subordinação estrutural, enxergava a presença de
subordinação jurídica em distintas situações de teletrabalho.
A simplicidade desta conclusão não expressa a complexidade desta
construção, considerando existência de uma infinidade de atividades
correlatas e da prestação de serviços cada vez mais próxima de um contrato
convencional de trabalho. A habitualidade com que se exige o desempenho das
mesmas atividades laborais, com a utilização da figura da empresa individual
prestadora de serviços, à primeira vista, era a fonte originária desta garantia
e definição.
3
Parágrafo único.  Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão
se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando,
controle e supervisão do trabalho alheio.
208
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Os desafios das novas formas de contratação e a precarização do


trabalho, permeiam a informalidade dos serviços e o conceito de uberização
das atividades laborais, dissociando em larga escala a estrutura social
condicionada pela força de trabalho das garantias advindas das relações de
trabalho.
Este enfoque de equiparação das atividades, mesmo com a diversidade
do local de sua efetiva prestação, protege o trabalhador e estrutura o conceito
de home office, que apesar de iniciada a sua prática antes da necessidade do
isolamento social decorrente da pandemia, passa a tomar forma e habituali-
dade diante do que se denomina “o novo normal”.
3 - A REGULAÇÃO DO TELETRABALHO PELA REFORMA TRA-
BALHISTA
A lei 13.467/20174, denominada “reforma trabalhista”, insere na CLT
um conjunto de dispositivos regulatórios do teletrabalho, por meio do capítu-
lo II-A denominado “Do Teletrabalho”. O novo Capítulo é composto pelos
artigos 75-A até o 75-E e se refere à circunstância de atividade laborativa
realizada por meios telemáticos e informatizados de comando, controle e
supervisão, equivalente, assim, ao trabalho subordinado.
Art. 75-A. A prestação de serviços pelo empregado em regime
de teletrabalho observará o disposto neste Capítulo. (Incluído
pela Lei nº 13.467, de 2017)
Art. 75-B. Considera-se teletrabalho a prestação de serviços
preponderantemente fora das dependências do empregador, com
a utilização de tecnologias de informação e de comunicação
que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo.
(Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
Parágrafo único. O comparecimento às dependências do
empregador para a realização de atividades específicas que
exijam a presença do empregado no estabelecimento não des-
caracteriza o regime de teletrabalho. (Incluído pela Lei nº
13.467, de 2017) (Vigência)
Art. 75-C. A prestação de serviços na modalidade de teletraba-
lho deverá constar expressamente do contrato individual de tra-
balho, que especificará as atividades que serão realizadas pelo
empregado. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017) (Vigência)
§ 1o  Poderá ser realizada a alteração entre regime presencial
e de teletrabalho desde que haja mútuo acordo entre as partes,
registrado em aditivo contratual. (Incluído pela Lei nº 13.467,
de 2017) (Vigência)
§ 2o Poderá ser realizada a alteração do regime de teletrabalho
para o presencial por determinação do empregador, garantido
prazo de transição mínimo de quinze dias, com correspondente
209
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
registro em aditivo contratual. (Incluído pela Lei nº 13.467, de
2017)
Art. 75-D. As disposições relativas à responsabilidade pela
aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tec-
nológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação
do trabalho remoto, bem como ao reembolso de despesas
arcadas pelo empregado, serão previstas em contrato escrito.
(Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
Parágrafo único. As utilidades mencionadas no caput deste
artigo não integram a remuneração do empregado. (Incluído
pela Lei nº 13.467, de 2017)
Art. 75- E. O empregador deverá instruir os empregados, de
maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a
fim de evitar doenças e acidentes de trabalho. (Incluído pela Lei
nº 13.467, de 2017)
Parágrafo único. O empregado deverá assinar termo de res-
ponsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções forneci-
das pelo empregador. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)5
(BRASIL, 2017)

O teletrabalho, pela definição da lei, é a prestação de serviços pelo


empregado, desempenhada preponderantemente fora das dependências do
empregador, com a utilização de tecnologias tanto de informação como
de comunicação, que não se constituam em trabalho externo. É a forma
de desempenhar as mesmas atividades com os mesmos sistemas, tal como
ocorreria dentro das dependências da empregadora. Inobstante o local
da prestação de serviços, o teletrabalho possui as mesmas características
inerentes as relações laborais, termos em que conceitua Bezerra Leite:
O teletrabalho é uma espécie de trabalho a distância, e não de
trabalho em domicílio. A razão é simples: o teletrabalho não se
limita ao domicílio, podendo ser prestado em qualquer lugar. Na
verdade, o teletrabalho ocorre em ambiente virtual e, como tal,
é situado no espaço, não se alterando, portanto, a definição de
localidade que, no Direito do Trabalho, é estabelecida segundo a
eficácia da lei trabalhista no espaço (LEITE, 2020)

As atividades desempenhadas em regime de teletrabalho não podem se


distanciar daquelas que deveriam ser desempenhadas no local de trabalho,
com a determinação de que as tecnologias utilizadas devem ser de idêntica

5
BRASIL.  Consolidação das Leis do Trabalho. Decreto-Lei nº 5.442, de 01.mai.1943.
Disponível em:. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm) Acesso em:
03.03.2021

210
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

capacidade e funcionalidade. Significa, em sentido amplo, não impedir ou


dificultar a capacidade de elaboração com mesma capacidade e perfeição
técnica, inobstante o labor me regime de home office. Esta incumbência
transcende o simples oferecimento de mesmo sistema, o conceito de tecnolo-
gia é amplo, abrangendo todos os elementos essenciais de uso compatíveis
com a estrutura empresária construída.
Inobstante a definição da necessidade da utilização de tecnologias,
encontramos uma sequência de eixos que se distancia sobremaneira o es-
tabelecido no conceito de teletrabalho e suas garantias tecnológicas. Dentre
estas, a disposição de que a responsabilidade pela aquisição, manutenção ou
fornecimento de equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e
adequada à prestação de trabalho remoto, bem como o reembolso de despesas
arcadas pelo empregado, serão previstas em contrato escrito, disposto pelo
artigo 75-D.
O novel art. 75-D da CLT prevê a possibilidade de “contrato
escrito” para transferência para o empregado dos gastos
necessários à aquisição de equipamentos e material de trabalho
implicará, na prática, a transferência dos ricos da atividade
econômica para o trabalhador, contrariando, assim, toda a lógica
do modo capitalista de produção e consagrada no art. 2º da
CLT, que define o empregador como aquele que na relação de
emprego assume a responsabilidade da atividade econômica.
Ademais, nos momentos de crise e de desemprego estrutural,
o empregador acabará invocando o art. 75-D da CLT como
condição para contratação de empregado, o que não deixa de
ser algo manifestamente injusto e contrário aos princípios
fundamentais da valorização do trabalho e da própria livre
iniciativa (CF, art. 1º, IV) (LEITE, 2020)

A lei oportunamente deixa uma margem para que as despesas para


o desempenho do teletrabalho sejam suportadas pelo trabalhador, o que
possibilitaria um contrato individual com cláusula estabelecendo quais as
despesas serão do empregador, e quais despesas serão do empregado.
Este tipo de formatação se assemelha a prestação de serviços, onde as
partes contratantes estabelecem em comum acordo qual o objeto do contrato,
e quais responsabilidades devem ser suportadas. Entretanto, a análise da CLT
como um sistema, impede que se construa o entendimento de que cabe ao
trabalhador assumir economicamente as despesas advindas do teletrabalho
em regime de home office, sob pena de que os requisitos da reação de trabalho
sejam violados no cerne central – seu espírito sinalagmático.

211
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

4 - OS SISTEMAS INFORMATIZADOS NO TELETRABALHO E O


ÔNUS DA ATIVIDADE ECONÔMICA
É ponto comum a toda as relações de trabalho um conjunto de trocas
objetivamente descrito como o tempo e execução de atividades, com a
contraprestação de salário. Assim está distante do contrato de trabalho e dos
fundamentos estruturais das leis trabalhistas a diretriz de que o custo para o
desempenho e execução das atividades decorrentes do vínculo de emprego
devem ser assumidos seja total ou parcialmente, pelo empregado.
Esta conclusão tem parte essencial de sua estrutura, no conceito
insculpido no artigo segundo da CLT, quando estabelece expressamente ser do
empregador os riscos da atividade econômica. É indiscutivelmente preceito
trabalhista, caber ao empregador, seja a empresa individual ou coletiva, os
riscos da atividade econômica.
O ambiente laboral de teletrabalho está intimamente ligado ao uso
de tecnologias, este é próprio conceito inerente a esta atividade, o que traz
sentido efetivo ao custeio de equipamentos. Neste sentido, o entendimento
predominante na II Jornada Nacional de Direito Material e Processual do
Trabalho da Anamatra-2017, nos termos do Enunciado 706:
70. TELETRABALHO: CUSTEIO DE EQUIPAMENTOS. O
teletrabalho deve dispor sobre a estrutura e sobre a forma de
reembolso de despesas do teletrabalho, mas não pode transferir
para o empregado seus custos, que devem ser suportados
exclusivamente pelo empregador. Interpretação sistemática dos
artigos 75-D e 2º da CLT à luz dos artigos 1º, IV, 5, XIII e 170
da Constituição da República e do artigo 21 Convenção n, 155
as OIT. (ANAMATRA, 2017)

Qualquer outra determinação, encaminha a conclusão descrita por


Vecchi:
Verifica-se que medidas legislativas de âmbito nacional e
internacional caminharam para o lado da flexibilização das
relações de trabalho, sobretudo no que tange aos critérios de
admissão, pagamento do salário, compensação de jornada e ainda
os de alteração, suspensão e rescisão do contrato de trabalho. A
flexibilização, tal como é apregoada hoje, é um primeiro passo
na trajetória de total desregulamentação do direito do trabalho
(...) (VECCHI, 2016)
6
Enunciado 70, aprovado na II Jornada Nacional de Direito Material e Processual do
Trabalho, promovida pela Anamatra entre os dias 09 e 10 de outubro de 2017 em: https://
www.anamatra.org.br/attachments/article/27175/livreto_RT_Jornada_19_Conamat_site.pdf.
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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Segundo Delgado (2002), não há outra forma de entendimento, que não


a interpretação do artigo 75-D em harmonia com a regra do artigo 2º, caput,
da mesma CLT, colocando sob ônus do empregador, esses custos inerentes ao
teletrabalho.
A determinação de que se estabeleçam acordos entre empregadores
e empregados, com a possibilidade de transferência do risco da atividade
econômica ao trabalhador nos exige revisitar o alcance do pilar “respeitar”
no que se refere às empresas e os princípios norteadores das relações de
emprego, essencial para que se estruture as relações de trabalho, sejam
desempenhadas na sede da empresa, seja em regime de teletrabalho, com as
mesmas garantias e direitos.
5 - CONCLUSÃO
O teletrabalho, conceito que abrange o uso de sistemas telemáticos para
o desempenho das funções atribuídas ao trabalhador, deve ter sua estrutura
sopesada diante das análises conjunta dos artigos da CLT e da construção
efetiva de preceitos que visem preservar o sistema de relação de emprego
digno e que permita a todos os trabalhadores a estrutura adequada para o seu
desempenho, sem que isto signifique dispor de sua renda para a manutenção
de sua estrutura de trabalho.
O conceito de home office, considerando as peculiaridades do te-
letrabalho, consiste na estrutura de condições de trabalho adequadas e
semelhantes, que não podem ser transacionadas mediante acordo entre as
partes, sob pena, inclusive, de termos uma miríade de contratos individuais
com as mais diversas condições, e que isso possibilite preterir trabalhadores
que não disponham ou que não possam arcar com as despesas combinadas.
Não bastasse, tal postura condiciona a relação de emprego a uma
proximidade dos contratos de prestação de serviços, o que viabiliza a
precarização do trabalho com o aval interpretativo e restritivo, sem sopesar a
estrutura e a razão da existência social de regulação das atividades laborais e
da figura do trabalhador hipossuficiente, que não possui condições de negociar
livremente diante da necessidade de subsistência pela venda da sua força de
trabalho.
Assim, o teletrabalho, surge como uma estrutura de funcionamento
aplicável, porém em um contexto mais profundo, requer atenção quanto
aos critérios estruturais e as formas de implementação, decorrente da sua
aplicabilidade habitual e decorrente da necessidade atual de isolamento so-
cial.

213
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Ainda que se entenda viável e aplicável os conceitos de teletrabalho,


antes mesmo da reforma trabalhista com estrutura e conceitos anteriores
a própria legislação regulamentadora, é imperioso que se pondere a
modificação abrupta da rotina de trabalho e a necessidade de distanciamento
social que apressou um sistema que ainda não era aplicado plenamente e com
habitualidade.
A imediatidade de uma resposta a manutenção de atividades telemáti-
cas que podem plenamente ser desempenhadas longe da estrutura física da
empresa alterou relações de trabalho em regime de urgência e com uma
objetividade que se pensou tem tempo determinado.
A caracterização de alongamento das necessárias medidas atinentes
ao estado de calamidade e a total falta de sistemas de organização que
possibilitem a previsibilidade de redução das medidas restritivas, traz limites
ao conceito do teletrabalho, como método e forma de relação de emprego da
modernidade.
Entretanto, este formato de prestação de serviços, tem sido uma alter-
nativa segura e, por outro lado, um formato que muito atende as exigências
econômicas empresariais, quando afasta os trabalhadores de um sentimento
de coletividade e lhes atribuem todas as responsabilidades de estrutura e
funcionamento, valendo-se da preocupação de manutenção da renda e do
contrato de trabalho, por parte de quem presta serviço sob o regime celetista
em um momento de acentuadas incertezas e adversidades.
É desta forma que a questão pertinente ao fornecimento de equipamen-
tos e sistemas essenciais para a manutenção do teletrabalho deve ter a análise
exata de sua extensão, não permitindo que a objetividade da interpretação
literal da lei torne-se caminho permissivo para que se abstraia a efetiva
responsabilidade do empregador e nem que as condições sociais atuais,
permitam a flexibilidade de garantias já estruturadas conceitualmente como
proteção dos trabalhadores.

214
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI: UMA HISTÓRIA PARA MUITO ALÉM


DO ALGORÍTMO: A DIFERENCIAL DISTRIBUIÇÃO DA PRECA-
RIEDADE NO MUNDO DO TRABALHO E NA VIDA DE TRABA-
LHADORES E TRABALHADORAS DE APLICATIVOS

Luciana Alves Dombkowitsch1

RESUMO: Este capítulo busca problematizar a subalternidade e a diferen-


cial distribuição da precariedade no mundo do trabalho e na vida de homens
e mulheres trabalhadoras de aplicativos. Tendo como ponto de partida o filme
Você Não Estava Aqui, o qual conta a história de Ricky, que desempregado,
aceita trabalhar em uma empresa de entrega de encomendas, no entanto, tal
relação de trabalho se dá de forma autônoma, sem qualquer espécie de prote-
ção. No entanto, ao contrário das falsas promessas envolvendo a dita autono-
mia, o trabalhador se depara com uma realidade na qual acaba suportando to-
dos os riscos do negócio, além de se encontrar submetido a todas as formas de
controle, vigilância e direção de seu trabalho. Tal realidade traduz narrativas
de vida de milhares de trabalhadores e trabalhadoras por aplicativos, que par-
tem em busca de sonhos profissionais em detrimento de seus afetos e desejos,
em negação a sua própria autonomia. Propõe abordar questões absolutamente
contemporâneas ao mundo do trabalho no século XXI e as consequências
sobre as vidas dos trabalhadores, marcadas pela subordinação, dependência e
desigualdade nas relações laborais.
Palavras-chaves: Algarítimo; Precarização; Mundo do Trabalho; Aplicati-
vos.

1
Professora, advogada trabalhista, especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Uni-
versidade Castelo Branco, mestre em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do
Rio Grande – Furg, doutoranda no programa de pós-graduação em Politica Social e Direitos
Humanos da Universidade Católica de Pelotas – UCpel, diretora de interior da Associação
Gaúcha da Advocacia Trabalhista - Agetra nas gestões 2017-2019 e 2019-2021.

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Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

1 - INTRODUÇÃO
Este capítulo tem como objetivo problematizar a subalternidade e a di-
ferencial distribuição da precariedade no mundo do trabalho e na vida de
homens e de mulheres trabalhadoras de aplicativos, tendo como ponto de
partida o longa-metragem do Reino Unido-Bélgica-França Você Não Estava
Aqui2, filme que conta a história de Ricky e sua família, que na busca desespe-
rada por uma vaga de trabalho, acaba aceitando uma proposta que o tornaria
empresário. Há muito tempo desempregado e morando de aluguel, Ricky vai
trabalhar em uma empresa de entrega de encomendas, no entanto, tal relação
de trabalho se dá de forma autônoma, sem qualquer espécie de proteção tra-
balhista.
Ricky precisa então, adquirir o veículo para o transporte das merca-
dorias, assinado o contrato, que o gerente da empresa chama de “franquia”,
Ricky recebe uma rota e uma maquineta, uma espécie de pager com o qual,
tanto a transportadora, quanto os clientes conseguem controlar Ricky em tem-
po real, chegando a acionar um bip, caso o motorista fique mais de duas horas
fora do veículo. Para a aquisição do veículo, Abby, esposa de Ricky teve que
vender o seu carro, veículo que utilizava para se locomover entre as diversas
casas de pessoas idosas, já que trabalha como home care, potencializando as
péssimas condições de trabalho que enfrenta.
Ricky e Abby trabalham em torno de 12/14 horas por dia, seis vezes
por semana, deixando suas vidas e a de seus filhos em uma condição cada vez
mais frágil, potencializando o adoecimento coletivo da família. Ricky aceita
o trabalho na empresa entregadora, com a falsa promessa de que estaria se
tornando um empresário, com total liberdade e flexibilidade na execução das
tarefas.
No entanto, a realidade se mostra completamente diferente e a dita li-
berdade serve apenas para fundamentar o fato de que Ricky acaba suportando
todos os riscos do negócio, já que é responsável pelo veículo, pelo combus-
tível, pela sua manutenção, suportando inclusive os prejuízos em relação às
mercadorias e ao computador de mão pelo qual “franquia” controla a produ-
tividade do trabalhador.
A obra traduz histórias e narrativas de vida de milhares de trabalha-
dores e trabalhadoras por aplicativos, que partem em busca de seus sonhos
profissionais em detrimento de seus afetos e desejos, em negação a sua pró-

2
Longa metragem do Reino Unido-Bélgica-França, dirigido por Ken Loach, lançado em
2018. Principais personagens: Ricky, Abby, Liza Jane e Sebastian.

218
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

pria autonomia. O filme aborda questões absolutamente contemporâneas ao


mundo do trabalho no século XXI e as consequências sobre as vidas dos
trabalhadores, marcadas pela subordinação, dependência e desigualdade nas
relações laborais.
Mas, sobretudo, o filme expõe a face mais perversa de um modelo de
sociedade neoliberal, que agravada pelos conflitos de classe, gênero, raça e
sexualidade, precariza vidas de trabalhadores e trabalhadoras em espaços ur-
banos violentos, segregando-os e subalternizando-os em modelos de espolia-
ção laboral-corporal.
Propõe-se, como estrutura desta investigação, descrever a obra cinema-
tográfica, e a partir das percepções por ela causadas, pensar como se chegou
a um modelo de trabalho tão desumanizado, apontando a forma como o neo-
liberalismo cria a falsa ideia de liberdade de autogoverno e impõe uma forma
de governo de si, a partir de estratégias digitais de controle, supervisão e co-
mando, o que alguns autores, como Woodcock3, têm denominado de “panóp-
tico eletrônico” (WOODCOCK, 2020, p. 28), como símbolo de mensuração,
vigilância e controle dos trabalhadores através do algoritmo, impondo-lhes
uma verdadeira escravidão digital.
Pretende ainda, problematizar a noção de empreendedorismo, constituí-
do a partir de uma ideia de individualismo exacerbado, pelo qual o capitalis-
mo, desde sua nova e atual racionalidade, o neoliberalismo, incutem na mente
da classe trabalhadora que seu sucesso depende exclusivamente dele. Para
finalizar, discute-se o trabalho, dando-se ênfase às relações de subalternidade
e de precarização no mundo do trabalho em plataformas digitais.
Espera-se que os diálogos aqui apresentados, sirvam como elementos
potencializadores e de desvelamento das urgentes demandas que se encon-
tram nos corpos, nas vidas e narrativas de milhares de trabalhadores, cuja
invisibilidade e o silêncio se perpetuam histórica e socialmente através do
mecanismo perverso que se esconde por trás das relações contemporâneas de
trabalho.

3
Woodcock, Jamie; O panóptico algorítmico da Deliveroo: mensuração, precariedade e ilu-
são do controle. In Antunes, Ricardo. (org.) Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. 1ª
ed. – São Paulo: Boitempo, 2020.

219
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

2 - INTER-RELAÇÕES ENTRE DIREITO, FILOSOFIA E CINE-


MA: VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI

“Tenho sonhos terríveis, estamos na areia movediça


e as crianças tentam nos puxar com um galho.
Parece que quanto mais trabalhamos mais nós
afundamos num buraco enorme. É recorrente.”4

O filme Você Não Estava Aqui, traz a potencialidade de (re)pensar as


novas formas criadas pelo neoliberalismo para exploração do trabalho huma-
no. As análises aqui propostas se utilizam do cinema e da filosofia como ins-
trumentos de análise crítica da sociedade e em especial do mundo do trabalho.
O cinema possibilita a percepção daquilo que na maioria das vezes não se vê
ou não se pretende enxergar.
A partir da narrativa lançada pelo diretor Ken Loach se pode perceber o
quanto a história ali descrita está tão próxima da realidade brasileira, a qual, a
partir da reforma trabalhista de 20175, viu o incremento da precariedade nos
corpos e na vida de milhares de trabalhadores, já que enfatiza questões como
o trabalho autônomo e suas falsas promessas. Demonstra ainda, a forma como
o trabalho por aplicativos transforma os trabalhadores em escravos de si e do
capitalismo em sua nova razão neoliberal.
A partir da obra cinematográfica analisada, é possível refletir a relação
entre direito e cinema, já que o Direito constrói discursivamente os mais di-
versos campos sociais, neste caso mais específico, o das relações de trabalho
e o cinema, que por sua vez, é capaz de desvelar os conflitos sociais, desnu-
dando as desumanidades e as subalternidades que produz, especialmente no
que se refere, no caso em análise, das relações de trabalho por plataformas
digitais, onde podemos ver acentuada a precariedade na vida dos trabalhado-
res e trabalhadoras.
A arte possui uma função social, pois permite a experimenta-
ção de sensações e situações não imaginadas pelo indivíduo.
Ela recria a história e os anseios humanos. Ela é uma forma de
expressar estilos, expressões verbais de pensamento e encontrar
prazer, além de também poder evidenciar sinais da evolução so-
cial. (MARCONDES, 2013, p. 32)

Você não estava aqui, apresenta uma crítica ao direito e à forma como
a sociedade tem se organizado para explorar o trabalho humano. O mundo do
4
Trecho de um diálogo entre os protagonistas do filme Você não estava aqui.
5
Lei 13.467/2017.
220
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

trabalho vem, desde a década de 90, passando por processos de transforma-


ção, a serviço do neoliberalismo, onde se percebe avivada a informalidade,
a precarização e o desemprego. No Brasil, as formas de precarização das
relações de trabalho tem se intensificado com a terceirização irrestrita, com o
contrato de trabalho a tempo parcial, com a jornada de trabalho intermitente
e com a chamada pejotização.
Os filmes, cuidem eles de assuntos explicitamente jurídicos ou
não, retratam em toda a sua magnitude os dramas pessoais dian-
te das inquietudes da vida, emulam sonhos, abrem as portas para
o fantástico, são uma inesgotável fonte imaginativa que tocam
diretamente o lado sensível das pessoas, despertando-as para a
face poética do mundo. As narrativas em imagens criam com
uma força sem igual um elo entre nós, espectadores, e as per-
sonagens, incitando-nos a um constante exercício de alteridade,
a uma vivência de experiências alheias, as quais não obstante
compartilhadas, em termos cronológicos, por aproximadamente
duas horas, muitas vezes acabam por nos acompanhar ao longo
de toda a vida. (MARTINEZ, 2015, p. 72)

Ricky e sua companheira não conseguem colocação no mercado formal


de trabalho. Abby trabalha como cuidadora em domicílio, o chamado Home
Care, sendo remunerada pelo número de casas que atende, ganhando exclusi-
vamente pelo tempo que fica dentro de cada residência, não recebendo nada
pelos períodos em que se encontrava em deslocamento6. Importante ainda
destacar, o quanto o papel de cuidadora de Abby se estende para dentro da sua
família, já que no filma fica bem claro o fato de ela ser a pessoa responsável
pela organização familiar.
De outro lado, Ricky se vê entorpecido pela possibilidade de ser seu
próprio patrão, trabalhando com flexibilidade e autonomia e com a promessa
de ganhar um bom dinheiro. No entanto, as promessas não se cumprem e
Ricky passa a trabalhar mais de doze horas por dia, sem qualquer resquício
de autonomia, já que não escolhe suas rotas, não dispõe da possibilidade de
se ausentar do trabalho sem que tenha que colocar um substituto, o qual é por
sua conta e risco. A pressão imposta pelo aplicativo, faz com que Ricky fique
cada vez mais adoecido, potencializando os conflitos familiares, uma vez que
os filhos passam a maior parte de seu tempo convivendo com a ausência dos
pais.

6
Sinopse do filme extraída do site adoro cinema, acessado em 01/03/2021 em http://www.
adorocinema.com/filmes/filme-264872/criticas-adorocinema/.

221
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Este filme traduz essas representações sociais, alias, o cinema propor-


ciona que o contexto social e político dialogue com milhares de pessoas e
que, a partir dessa fala, possa-se implementar mudanças sociais e, consequen-
temente, no direito. Já que de acordo com Dias
os estudos do campo visual representam, atualmente, uma po-
tente possibilidade que desloca para o centro o olhar sobre a
visualidade. De cunho eminente interdisciplinar, os estudos
através das imagens rompem com os recortes epistêmicos e
e com decisões compartimentadas, produzem-se, assim, infinitas
combinações e desdobramentos (DIAS, 2015, p. 477)

Podemos dizer, conforme Marcondes (2013), que o cinema gera espaço


de construção da ciência jurídica, constituindo-se num campo de discussão e
de problematização das questões sociais.
A análise iconográfica trata de imagens, estórias e representa-
ções ao invés de motivos, desta forma, ela pressupõe muito mais
que a familiaridade com objetos e fatos que se adquirem a partir
de uma experiência vivida (PANOFSKY, 1986), por outro lado a
análise iconológica necessita escavar quais os símbolos percor-
reram o autor da imagem. (DIAS, 2016, p. 269).

3 - O MUNDO DO TRABALHO E A CLASSE-QUE-VIVE-DO-TRA-


BALHO
O mundo do trabalho é um dos campos sociais que expõe e maximiza a
precariedade na vida das pessoas, neste sentido, se faz essencial, falar do tra-
balho através da obra da autora Hannah Arendt (2015), A Condição Humana,
na qual ela entende, que dentre as atividades do homem, o trabalho significa a
manutenção da vida, ou seja, compreende o trabalho como parte do processo
biológico do próprio corpo.
Segundo Arendt (2015), a condição humana do trabalho corresponde à
própria vida, já que além de garantir a sobrevivência dos indivíduos, assegura
a vida da própria espécie:
O trabalho é a atividade que corresponde ao processo biológico
do corpo humano, cujos crescimento espontâneo, metabolismo
e resultante declínio estão ligados às necessidades vitais produ-
zidas e fornecidas ao processo vital pelo trabalho. A condição
humana do trabalho é a própria vida. (ARENDT, 2015, p. 09)

222
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Ricardo Antunes, na obra Os Sentidos do Trabalho, traz um olhar con-


temporâneo, em relação a teoria marxista, acerca do ser social que trabalha,
para caracterizá-lo como a classe-que-vive-do-trabalho:
[...] ao contrário dos autores que defendem o fim das classes
sociais, o fim da classe trabalhadora, ou até mesmo o fim do
trabalho, a expressão classe-que-vive-do-trabalho pretende dar
contemporaneidade e amplitude ao ser social que trabalha, à
classe trabalhadora hoje, apreender sua efetividade sua proces-
sualidade e concretude. (ANTUNES, 2009, p. 101)

O autor problematiza a validade conceitual das classes sociais hoje,


partindo de uma premissa de que classe trabalhadora não se restringe mais
apenas àqueles trabalhadores produtivos, segundo o conceito marxiano, quais
sejam, os que produzem a mais-valia. Podemos dizer que os trabalhadores
improdutivos seriam os trabalhadores em serviços, setor em ampla expansão.
Para o autor, há, atualmente, um crescente entrelaçamento entre tra-
balho produtivo e improdutivo, fato que caracteriza contemporaneamente o
capitalismo, diante disso, a noção ampliada da classe é indispensável para que
se compreenda a classe trabalhadora na atualidade, em especial do que o autor
chama de o “[...] novo proletariado fabril e de serviços, que se traduz pelo
impressionante crescimento, em escala mundial, do que a vertente crítica tem
denominado trabalho precarizado [...]”. (ANTUNES, 2009, p. 104)
Trata-se claramente, dos trabalhadores terceirizados, subcontratados, a
tempo parcial, em jornada intermitente e dos trabalhadores chamados de “[...]
contratantes independentes autônomos [...]” (WOODCOCK, 2020, p.23). A
uberização acabou por fabricar estes ditos contratantes independentes autô-
nomos, facilitando a intensificação de processos nos quais as relações de tra-
balho se transformam em ações totalmente individualizadas e invisibilizadas,
adquirindo “[...] a aparência de “prestação de serviços” e obliterando as re-
lações de assalariamento e de exploração do trabalho.” (ANTUNES, 2020,
p.11)
Antunes afirma que o capitalismo “[...] vêm impondo sua trípode destru-
tiva do trabalho. A terceirização, a informalidade e a flexibilidade.” (ANTU-
NES, 2020, p.11). A reforma trabalhista de 2017 ultimada com a Lei 13.467,
introduziu na legislação trabalhista brasileira um elemento ainda mais des-
truidor, qual seja, a jornada de trabalho intermitente, sem falar na alteração
sofrida na lei 6.019/74 introduzida pela Lei 13.429/17 que possibilitou a ter-
ceirização irrestrita.

223
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

4 - O TRABALHO EM PLATAFORMAS DIGITAIS E A UBERIZA-


ÇÃO DA VIDA
Estando o trabalho diretamente relacionado com a própria existência
do ser humano, já que a partir da premissa de Arendt (2015) o trabalho cor-
responde ao processo biológico do próprio corpo humano, sem dúvida, o tra-
balho também constitui as subjetividades do ser humano. Marx atribui ao
trabalho a importância para a emancipação humana, atribuindo a ele um valor
moral e produtor de direitos.
Antunes (2009, p.165), afirma, “[...] que a importância da categoria tra-
balho está em que ela se constitui como fonte originária, primária, da reali-
zação do ser social, protoforma da atividade humana, fundamento ontológico
básico da omnilateralidade humana.” Dessa forma, qualquer forma de preca-
rização do trabalho, atinge diretamente a constituição do sujeito trabalhador,
medido exclusivamente pela sua capacidade de produção.
A problematização dessa nova realidade do mundo do trabalho e de
quem vive dele a partir do filme Você não estava aqui, traz muitas potencia-
lidades de reflexões. Para o diretor Ken Loach, este modo de funcionamento
está falido no século XXI, que especialmente a partir da crise do capitalismo
de 2008, vem impondo um mecanismo cada vez mais perverso nas relações
contemporâneas de trabalho.
O longa-metragem aborda o discurso do chamado milagre do empreen-
dedorismo, retórica esta, empregada para defender o ímpeto de ser seu pró-
prio patrão, ter liberdade de horários, começar seu negócio e condicionar o
retorno financeiro exclusivamente à capacidade pessoal do trabalhador. Ricky
Turner dialoga com o proprietário de uma franquia de entregas sobre a sua
contratação. A partir daí, o telespectador passará a testemunhar a verdadeira
uberização do trabalho, que por consequência se configura na uberização da
própria vida.
A uberização do trabalho fica claramente demonstrada no filme, já que
a relação entre Ricky e a empresa de entregas se camufla de um contrato
de franquia, em tese, protegida pela autonomia, flexibilidade e liberdade, no
entanto, o que efetivamente se observa, é que esta forma de trabalho exige
jornadas longuíssimas, não permite descanso, não fornece garantias em caso
de doença ou problema familiar. Ricky torna-se escravo deste sistema de total
degradação da vida, seu trabalho se torna cada vez pior, mais exaustivo, mais
desagregador da família, mais desumano, além de fisicamente e psicologica-
mente perigoso.

224
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
A ideia de liberdade e flexibilidade (trabalhar quando e onde
quiser) propagada pelas empresas constitui, na verdade, a trans-
ferência deliberada de riscos, para aumentar o controle sobre os/
as trabalhadores/as, pois essa liberdade significa ausência de sa-
lário garantido e incremento de custos fixos, que se convertem
em responsabilidade dos/as trabalhadore/as. (FILGUEIRAS e
ANTUNES, 2020, p.66)

No entanto, o discurso de liberdade, propagado pelo trabalhado a partir


de plataformas digitais, é claramente um discurso enganoso, haja vista que a
realidade fática, ou seja, a realidade cotidiana desses trabalhadores coloca por
terra a falsa promessa de liberdade, flexibilidade e autonomia. A dita flexibi-
lidade é apenas aparente, já que são obrigados a trabalhar mais e mais para
garantir sua sobrevivência.
Filgueiras e Antunes (2020) elencam um rol de condutas das platafor-
mas e aplicativos que demonstram o que se está dizendo. Dentre suas práticas
está o alto grau de exigências para a contratação; a delimitação inflexível
das tarefas, definindo qual e como cada trabalho será realizado; a estipulação
de prazo para a realização de cada tarefa; definição unilateral do valor a ser
pago por cada tarefa; a forma de comunicação do trabalhadores com suas
gerências; a pressão para que os trabalhadores sejam assíduas e não recusem
serviço, assim como para que fiquem cada vez mais tempo a disposição das
plataformas, sob pena de serem bloqueados ou até mesmo cancelados.
Todas essas medidas de controle mantêm os/as trabalhadores/
as em completa instabilidade, convertendo o regramento acima
descrito em poderoso instrumento de gestão e controle da força
de trabalho. (...) O controle e a subordinação são exacerbados
pela transferência dos riscos aos/às trabalhadores/as, o que in-
clui a assunção de custos, como aquisição de carros, celulares,
computadores, bem como sua manutenção. As empresas conse-
guem, então, transformar instrumentos de trabalho em capital
constante, sem nenhum risco e sem necessidade de terem sua
propriedade formal. (FILGUEIRAS e ANTUNES, 2020, p.67-
68)

As tecnologias da informação tem sido então, o grande vetor de trans-


formação dos diversos mecanismos de acumulação criados pelo capitalismo
globalizado de nosso tempo. Tais tecnologias proporcionaram a criação de
um proletariado digital, o qual atua no ramo de serviços a partir de plata-
formas digitais, também chamados de trabalhadores por aplicativos. Através
de plataformas digitais e dos aplicativos, estas ferramentas digitais gerem a

225
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

produção e o trabalho humano.


Os assim chamados aplicativos (ou apps) e plataformas digitais
impõem aos/às trabalhadores/as, quase sempre, o rótulo de autô-
nomos/as, sendo que são remunerados por tarefas ou lapsos tem-
porais mínimos (como horas), sem qualquer garantia de jornada
e de remuneração, o que acarreta implicações importantes na di-
nâmica da gestão e controle da força de trabalho (dada a ausên-
cia de compromisso explícito de continuidade). (FILGUEIRAS
e ANTUNES, 2020, p.64)

Concomitantemente a disseminação das novas tecnologias de informa-


ção e de comunicação, especialmente por meio das plataformas digitais, as
quais, sem dúvida, ampliaram os processos de precarização das relações de
trabalho, constata-se a corrosão das legislações protetivas do trabalho, o que
pode ser confirmado pelo conjunto de leis elaboras, aprovadas e promulgadas
no ano de 2017 pelo governo golpista de Michel Temer, em especial a Lei
13.467/2017, que introduziu a jornada de trabalho intermitente7, a ampliação
das possibilidades de trabalho a tempo parcial8, a desproteção do trabalho
do empregado de nível superior9, o trabalho autônomo10, assim como da Lei
13.429/2017 que possibilitou a terceirização irrestrita.
Assim, em meio ao desemprego e aos baixos salários, vê-se, que um
exército excedente de força de trabalho encontra nas plataformas digitais sua
única fonte de subsistência. Essa nova dinâmica imposta pela nova razão do
capitalismo globalizado, o neoliberalismo, amplia de forma significativa o
cotidiano do trabalho precarizado, subalternizado e humilhante. Segundo
Praun e Antunes (2020) a UBER é um exemplo disso:
Trabalhadores e trabalhadoras com seus instrumentos de traba-
lho (autos) arcam com suas despesas de seguro, manutenção,
alimentação etc. enquanto isso, o “aplicativo”, em verdade, uma
corporação global, praticante do trabalho ocasional e intermi-
tente, se apropria do sobretrabalho gerado pelos serviços dos
motoristas, sem preocupação em relação aos direitos trabalhis-
tas. (PRAUN e ANTUNES, 2020, p. 180)

Assim, a ampliação sem precedentes da informalidade no mundo digi-


tal, configura o que Antunes (2020) denomina de “escravidão digital”, a ube-
rização da vida, já que o trabalhador se reconhece como um empreendedor de
si, “[...] se imagina como proprietário de si mesmo, um quase-burguês, mas
frequentemente se converte em um proletário de si próprio, que autoexplora
seu trabalho.” (ANTUNES, 2020, p. 16).

226
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

5 - ESTRATÉGIAS DIGITAIS DE CONTROLE E A EXPLORA-


ÇÃO DA LIBERDADE COMO INSTRUMENTO DO NEOLIBE-
RALISMO
São inúmeras as plataformas digitais com compõem o conglomerado
do que se denominou “gig economy”. Segundo Woodcock (2020), as plata-
formas digitais, como UBER e Delivery, tem se utilizado do algoritmo para
controlar e supervisionar o trabalho dos chamados “contratantes independen-
tes autônomos”. A dita liberdade propagada para o convencimento dos traba-
lhadores se vê totalmente desmentida, haja vista, que através dos algoritmos,
os conglomerados globais que atuam através de plataformas digitais, exercem
a mensuração, a vigilância e o controle do trabalho realizado. O trabalho
[...] é evidentemente cronometrado e mensurado de forma pre-
cisa. (...) Cada ação que o trabalhador realiza é meticulosamente
registrada e comparada por meio da plataforma de software, ou-
tro exemplo do que Carl Cederström e Peter Fleming chamaram
de “capitalismo de exposição”, no qual “tudo sobre né é repen-
tinamente exposto – para ser observado e julgado”. Algoritmos
têm sido usados em outros contextos para “seduzir, coagir, dis-
ciplinar, regular e controlar: para orientar e remoldar o modo
como as pessoas, os animais e os objetos interagem entre si e
passam por diversos sistemas”. (WOODCOCK, 2020, p. 41)

Woodcoch (2020), a partir da metáfora elaborada por Fernie e Met-


calf, o “panóptico eletrônico”, aplicado aos call-centers, elabora a expres-
são panóptico algorítmico, para demonstrar que o algorítmico atua como o
imaginário supervisor, que ninguém vê, nem sabe como é, mas que atua na
mensuração, vigilância e controle dos trabalhadores em plataformas digitais.
Como resultado desse controle, o disciplinamento é feito através das chama-
das desativações. Assim, “A aparência de uma onipresença, bem como o mé-
todo automático de supervisão e disciplinamento dos trabalhadores, faz parte
de um recurso de controle com ótimo custo-benefício, [...].” (WOODCOCH,
2020, p. 45)
A liberdade e a comunicação ilimitadas se transformaram em
monitoramento e controle total. Cada vez mais as mídias sociais
se assemelham a panópticos digitais que observam e exploram
impiedosamente o social. Mal nos livramos do panóptico disci-
plinar e já encontramos um novo e ainda mais eficiente. (HAN,
2018, p.19)

227
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

Os trabalhadores se submetem as mais diversas formas de controle e


vigilância realizada pelas plataformas digitais através do algorítmico, acre-
ditando que o trabalho por aplicativo lhes garantirá a tão almeja liberdade, a
qual se apresenta como promessa de flexibilidade e de altos ganhos financei-
ro. Esse discurso se incorporou a subjetividade dos trabalhadores, passando
a construção do “eu” como projeto de construção do sujeito. No entanto, se-
gundo Han (2018), a liberdade também é um modo de coerção, dessa forma,
a submissão sucede à libertação.
Hoje, acreditamos que não somos sujeitos submissos, mas pro-
jetos livres, que se esboçam e se reinventam incessantemente. A
passagem do sujeito ao projeto é acompanhada pelo sentimento
de liberdade. E esse mesmo projeto já não se mostra tanto como
uma figura de coerção, mas sim como uma forma mais eficiente
de subjetivação e sujeição. O “eu” como projeto, que acreditava
ter se libertado de coerções externas e das restrições impostas
por outros, submete-se agora a coações internas, na forma de
obrigações de desempenho e otimização. (HAN, 2018, p.9)

Para o filósofo sul-coreano, a liberdade seria o contrário da coerção,


no entanto, o sujeito do desempenho, embora se julgue livre, é na verdade
um servo, na medida em que explora voluntariamente o seu próprio trabalho,
trabalho que não o liberta, ao contrário, o mantém como escravo. Afirma, que
“O sujeito neoliberal como empreendedor de si mesmo é incapaz de se rela-
cionar livre de qualquer propósito.”(HAN, 2018, p.11) Segue
O neoliberalismo, como mutação do capitalismo, torna o traba-
lhador um empreendedor. Não é a revolução comunista, e sim
o neoliberalismo que elimina a exploração alheia da classe tra-
balhadora. Hoje, cada um é um trabalhador que explora a si
mesmo para a sua própria empresa. Cada um é senhor e servo
em uma única pessoa. (HAN, 2018, p.14)

Para Han (2018), o neoliberalismo é uma mutação do capitalismo, para


Dardot e Laval (2016) o neoliberalismo é a nova racionalidade do capitalis-
mo. No entanto, não se posicional de forma antagônica, pelo contrário, dia-
logam entre si. Na obra, A Nova Razão do Mundo, Dardot e Laval defende a
tese de que
[...] o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma prá-
tica econômica, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma
racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não
apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos

228
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI
governados. A racionalidade neoliberal tem como característica
principal a generalização da concorrência como norma de con-
duta e da empresa como modelo de subjetivação. (DARDOT e
LAVAL, 2016, p.17)

A liberdade passa a ser tema fundamental dos autores, para análise da


racionalidade neoliberal. O neoliberalismo como um conjunto de dispositi-
vos, discursos e práticas, se pauta em uma política governamental para con-
duzir a conduta dos sujeitos, no entanto, essa condução requer liberdade. O
conceito de governamentalidade de Foucault, é utilizado por Dardot e Laval,
para afirmar que este governo é feito pela liberdade, convencendo os sujeitos
a se conformarem dentro dessa lógica, pois,
[...] trata-se de compreender, mais especificamente, como a go-
vernamentalidade neoliberal escora-se num quadro normativo
global que, em nome da liberdade e apoiando-se nas margens
de manobra concedidas aos indivíduos, orienta de maneira nova
as condutas, as escolhas e as práticas desses indivíduos. (DAR-
DOT e LAVAL, 2016, p.21)

6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS OU A DIFERENCIAL DISTRIBUI-


ÇÃO DA PRECARIEDADE NA VIDA DOS TRABALHADORES E
TRABALHADORAS POR APLICATIVO
O filme Você não estava aqui, problematiza, a diferencial distribuição
da precariedade na vida dos trabalhadores e trabalhadoras por aplicativos.
Judith Butler, que tem pensado tanto na questão da responsabilidade ética e
o quanto o conceito de interdependência pode nos aproximar de algumas res-
postas importantes acerca das “novas” relações de trabalho, tão esvaziadas e
corroídas a partir da reforma trabalhista de 2017 levada a efeito pelo governo
golpista de Michel Temer.
Para Butler, a vulnerabilidade, que implica a dependência entre os su-
jeitos, não é uma condição do sujeito individualmente considerado, mas uma
característica da própria vida, o que significa dizer, que o sujeito é vulnerável
à vida social da qual depende, portanto, se essa estrutura social falhar, a pes-
soa fica exposta a uma condição de precariedade maximizada. Dessa forma,
as obrigações que nos ligam uns aos outros decorre da condição de interde-
pendência, a qual torna nossas vidas possíveis.
Ainda, segundo Butler (2015), para que o sujeito seja reconhecido
como sujeito, este deve ter sido constituído por normas que facilitem este
reconhecimento, caso contrário teremos sujeitos que não serão reconhecíveis

229
Muito Além do Algorítmo: O Direito do Trabalho no Séc. XXI

como sujeitos e provavelmente nunca serão reconhecidas como vidas. Dessa


maneira, a capacidade de apreender uma vida depende em muito, daquilo que
já foi dito, de que o sujeito tenha sido constituído de acordo com as normas
que a caracterizam como uma vida, produzindo ainda, um problema ético
no que se refere a capacidade de definir o que será reconhecido e o que será,
consequentemente passível de ser protegido contra a violência.
A conclusão de que não há vida como não precária, poderia nos levar
a pensar que essa condição compartilhada de precariedade conduziria a um
reconhecimento recíproco desta condição, produzindo um sentimento de so-
lidariedade, no entanto, o resultado decorrente desta condição é justamente
o contrário, qual seja, a de “uma exploração específica de populações-alvo,
de vidas que não são exatamente vidas, que são consideradas “destrutíveis” e
“não passíveis de luto”. (BUTLER, 2015, p. 53)
Portanto, dizer que a vida é precária nos traz como compromisso a ma-
nutenção dessa vida, o que somente será possível com a implementação de
condições sociais e políticas que garantam a existência dessa vida, posto que,
“[...] não pode haver nenhuma persistência na vida sem pelo menos algumas
condições que tornem uma vida vivível.” (BUTLER, 2015, p. 40).
Para concluir, segundo Butler (2015), devemos ter responsabilidade
moral e ética para trabalharmos na construção de uma crítica social que bus-
que a criação de condições sociais e econômicas pautadas em sentimentos de
afetividade, os quais possibilitarão desenvolver sentimentos de comoção pe-
rante a vulnerabilidade e as mais diversas formas de violação da vida. Quando
o outro se comove com o sofrimento e com a condição maximizada da pre-
cariedade da vida do outro, este sujeito passa a reconhecido como uma vida a
ser vivida de forma a minimizar a sua precariedade.

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