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Comentários à Lei de

Abuso de Autoridade
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Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Comentários à Lei de abuso de autoridade [livro eletrônico] : Lei no
13.869, de 5 de setembro de 2019 / coordenação Gustavo Henrique
Badaró, Juliano Breda. – 1. ed. – São Paulo : Thomson Reuters Brasil,
2020.
6 Mb; ePub
Vários autores.
Bibliografia
ISBN 978-65-5065-330-9
1. Abuso de autoridade 2. Abuso de poder - Leis e legislação - Brasil
3. Lei 13.869, de 2019 - Comentários I. Badaró, Gustavo Henrique. II.
Breda, Juliano.
20-34702 CDU-343.353(81)
Índices para catálogo sistemático:
1. Brasil : Abuso de autoridade : Crimes : Direito penal 343.353(81) Maria Alice Ferreira -
Bibliotecária - CRB-8/7964
COMENTÁRIOS À LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE
LEI No 13.869, DE 5 DE SETEMBRO DE 2019
Coordenadores
GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ
JULIANO BREDA Autores
ALBERTO ZACHARIAS TORON, ANTONIO SÉRGIO ALTIERI DE MORAES
PITOMBO, FÁBIO TOFIC SIMANTOB, GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ,
JULIANO BREDA, MARTA SAAD, PIERPAOLO CRUZ BOTTINI 1a edição

© desta edição [2020]


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JULIANA MAYUMI ONO
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Profissional Fechamento desta edição [09.03.2020]

ISBN 978-65-5065-330-9
SOBRE OS AUTORES

GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARÓ


Professor Titular de Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, pela qual também é Livre-docente (2011),
Doutor (2002) e Mestre (1999) e na qual obteve o grau de bacharel (1993).
Membro do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual (IIDP), Instituto
Brasileiro de Direito Processual (IBDP), Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais (IBCCrim), Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal
(IBRASPP) e Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Membro do
Conselho Científico do Centro de Estudos de Direito Penal e Processual
Penal Latino-Americano, do Instituto de Ciências Criminais, da Georg-
August de Göttingen Alemanha. Autor de vários livros, entre os quais:
Processo penal (7. ed., RT, 2019); Manual dos recursos penais (3. ed., RT,
2018); Juiz natural no processo penal (RT, 2014); Correlação entre
acusação e sentença (4. ed., RT, 2019); Ônus da prova no processo penal
(RT, 2003); Direito ao processo penal no prazo razoável, em coautoria com
Aury Lopes Júnior (2. ed., Lumen Juris, 2009); Lavagem de dinheiro:
aspectos penais e processuais penais, em coautoria com Pierpaolo Cruz
Bottini (4. ed., RT, 2019). Coordenador, junto com Antonio Magalhães
Gomes Filho e Alberto Zacharias Toron, da obra Código de Processo Penal
Comentado (2a ed., RT, 2019). Organizador da obra Direito penal e processo
penal (RT, 2015, Coleção Doutrinas Essenciais). Advogado Criminalista e
Consultor jurídico. Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil,
por São Paulo.

JULIANO BREDA
Advogado criminal. Pós-doutor em Direitos Fundamentais e Democracia pela
Universidade de Coimbra (2013). Mestre em Direito das Relações Sociais
pela Universidade Federal do Paraná (2000). Doutor em Direito pela
Universidade Federal do Paraná (2004). Presidente da Ordem dos Advogados
do Brasil - Paraná (2013-2015). Conselheiro Federal da OAB (2016 - 2018 e
2019 - 2021). Presidente da Comissão Especial de Garantia do Direito de
Defesa da Ordem dos Advogados do Brasil (2016 - 2018, 2019 - 2021).
Autor do livro Gestão Fraudulenta de Instituição Financeira e Dispositivos
Processuais da Lei 7.492/86. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, e de Crimes
contra o sistema financeiro nacional e contra o mercado de capitais. 3a. ed.
São Paulo: Saraiva, 2014, em coautoria com Cezar Roberto Bitencourt.

FÁBIO TOFIC SIMANTOB


Advogado. Mestre em Direito Penal pela USP. Especialista em Dogmática
Penal e Política Criminal pela Universidade de Salamanca. Ex-diretor do
IBCCRIM. Ex–presidente do IDDD.

ANTONIO SERGIO ALTIERI DE MORAES PITOMBO


Advogado. Mestre e Doutor em Direito Penal (Universidade de São Paulo).
Pós–doutor em Direitos Humanos e Democracia no Ius Gentium
Conimbrigae (Universidade de Coimbra).

PIERPAOLO CRUZ BOTTINI


Advogado. Professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito
da USP.

ALBERTO ZACHARIAS TORON


Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo
(USP). Professor de Processo Penal da Fundação Armando Álvares Penteado
(FAAP). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade de
Salamanca. Ex-presidente do IBCCRIM. Ex-diretor do Conselho Federal da
OAB.
MARTA SAAD
Professora Doutora de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. Doutora e Mestre em Direito Processual Penal
pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi Presidente do
IBCCRIM e Assessora de Ministro no STF. Presidente da Rede Ibero-
Americana de Advocacia Criminal. Advogada.
PREFÁCIO

Os ilustres advogados e professores GUSTAVO BADARÓ e JULIANO


BREDA organizam este livro de comentários à Lei de Abuso de Autoridade,
no qual coletam preciosas considerações sobre os dispositivos legais, de sua
própria autoria e também dos ilustres advogados ALBERTO ZACHARIAS
TORON, ANTÔNIO SÉRGIO PITOMBO, FÁBIO TOFIC SIMANTOB,
MARTA SAAD e PIERPAOLO BOTTINI. Os comentários vêm em boa
hora, a fim de dirimir dúvidas e incertezas acerca da caracterização, da
extensão e do conteúdo dos crimes de abuso de autoridade, que visam a
constituir um importante instrumento de contenção do poder autoritário do
Estado, que é exercido primordialmente com o emprego da norma penal.
A criminalização de condutas malversadas ou abusivas dos órgãos
encarregados da persecução penal e do julgamento das respectivas
imputações não constitui novidade na legislação brasileira. Sem pedir
emprestado a direito estrangeiro, que por certo tem influenciado
sobremaneira os doutrinadores brasileiros, nosso antigo e festejado Código
Criminal do Império, sugestionado pelo Código Penal francês de 1810, já
previa nos artigos 142, 144, 145, 159, 160, 161 e 162, no setor do crimes
contra a administração pública, uma série de infrações relacionadas ao abuso
de poder. Especificamente no que toca aos juízes, rezava o seguinte: “Art.
160. Julgar, ou proceder contra lei expressa. Pena: suspensão do emprego
por um a três anos” e “Art. 161. Se pelo julgamento em processo criminal,
impuser ao réu maior pena do que a expressa em lei. Pena: perda de
emprego e de prisão por um a seis anos.” Por seu turno, o Código Penal
francês de 1810 consignava em seu corpo, pelo menos, dois dispositivos
importantes que implicavam a criminalização do abuso de autoridade. Assim,
no art. 114, referente aos crimes contra a liberdade dos cidadãos: “Quando
um funcionário público, um agente ou preposto do governo ordenar ou
realizar qualquer ato arbitrário ou atentatório à liberdade individual, aos
direitos civis de um ou de vários cidadãos ou à constituição do império, será
condenado à pena de degradação civil.” Em complemento a esse dispositivo,
assim dispunha no art. 119: “Os funcionários públicos encarregados da
polícia administrativa ou judiciária, que tenham recusado ou negligenciado
de deferir uma reclamação legal destinada a constatar as detenções ilegais
ou arbitrárias, seja na casa de detenção ou em outro lugar, e não justifiquem
de as terem denunciado à autoridade superior, serão punidos com a
degradação civil, observando-se que os danos e interesses serão regrados de
conformidade com o art. 117.” Igualmente, nosso primeiro Código Penal
republicano, de 1890, previu como prevaricação diversos atos típicos de
abuso de autoridade. Assim, no art. 207, incisos 1o (Julgar, ou proceder
contra literal disposição de lei), 8o (Julgar causas em que a lei o declare
suspeito como juiz de direito, de fato, ou árbitro, ou em que as partes o
hajam legitimamente recusado ou suspeitado), 9o (Ordenar a prisão de
qualquer pessoa sem ter para isso causa ou competência legal, ou tendo-a,
conservar alguém incomunicável por mais de 48 horas, ou retê-lo em cárcere
privado ou em casa não destinada à prisão), 10o (Demorar o processo de réu
preso, ou afiançado, além dos prazos legais, ou faltar aos atos do seu
livramento), 11o (Recusar, ou retardar, a concessão de uma ordem de
habeas-corpus, regularmente requerida), 12o (Fazer remessa do preso a
outra autoridade; ocultá-lo ou transferi-lo da prisão em que estiver; não
apresentá-lo no lugar e no tempo determinado na ordem de habeas-corpus;
deixar de dar conta circunstanciada dos motivos da prisão, ou do não
cumprimento da ordem, iludindo por esses meios a concessão do habeas-
corpus), 13o (Tornar a prender, pela mesma causa, o que tiver sido solto em
provimento de habeas–corpus) e 14o (Executar a prisão de alguém sem
ordem legal escrita de autoridade legitima; ou receber, sem essa
formalidade, algum preso, salvo o caso de flagrante delito, ou de
impossibilidade absoluta da apresentação da ordem). Por sua vez, o vigente
Código Penal de 1940 reduziu o abuso de autoridade a dois casos: de
violência arbitrária (art. 322) e de exercício arbitrário ou abuso de poder (art.
350), depois revogados pela Lei no 4.898/65.
A repressão penal ao abuso de autoridade sempre esteve vinculada,
portanto, a preservar a liberdade dos cidadãos em face do poder autoritário do
Estado. Esta é uma velha reivindicação do sentido utilitarista da norma penal,
fruto do antigo liberalismo político, assentado no contrato social. A
professora norueguesa JANNE HAALAND MATLARY bem expressou esse
legado da democracia ocidental, na qual a proteção dos direitos individuais
não deriva de uma ordem divina, mas sim da necessidade de se conferir ao
Estado um papel protetivo, mas não destruidor da pessoa humana.1 Embora o
propósito inicial seja protetivo da pessoa, a criação de um órgão, como o
Estado, tomado em sentido neutro e desvinculado de qualquer outro
fundamento, salvo a decisão dos próprios cidadãos, não pode impedir que no
emprego prático de sua ação política passe a conferir um sentido utilitarista às
suas normas jurídicas criminalizadoras. Isso tem como efeito o
desvirtuamento dos propósitos iniciais e a relativização dos direitos
fundamentais. A grande questão que se propõe aos estudiosos do direito
penal, como o são todos os comentaristas deste livro, é a busca de diretrizes
que possam servir de limites à intervenção estatal.
Desde os primeiros enunciados da teoria do delito, a partir de TIBERIUS
DECIANUS (1593) e, depois, com FEUERBACH (1801) e os demais autores
positivistas ou hegelianos do século XIX, a doutrina sempre esteve submetida
aos movimentos pendulares da ação política, ora sob argumentos de
contenção, ora de justificação do poder. Esse movimento pendular ainda
impregna até hoje os argumentos jurídicos expressos nos comentários à
legislação vigente. É necessário reconhecer a dificuldade de se formularem
conceitos ou argumentos puramente de contenção, quando os próprios
doutrinadores se encontrem expostos a todos os aparelhos comunicativos
utilitaristas e até mesmo fundamentalistas. Atendendo a uma inicial proposta
de ZAFFARONI, é importante adiantar que os argumentos jurídicos de
contenção não podem ser vistos a partir dos interesses puramente estatais,
mas sim da própria pessoa humana. Isso conduz, por exemplo, a não tomar o
bem jurídico como objeto de proteção, mas sim como objeto de limitação da
norma criminalizadora. É fácil compreender o porquê dessa alteração de
rumos da dogmática penal. Se a norma penal, ainda que tomada no sentido
utilitarista, visa a fornecer ao cidadão os parâmetros ou pontos de referência
para sua própria conduta, como acentua HASSEMER,2 não pode ela
prescindir de um fundamento empírico, além, é claro, de seu conteúdo
valorativo. A norma penal não poderá servir de parâmetro orientador de
conduta se não demonstrar aos seus destinatários o significado real da
criminalização e seus efeitos concretos ou concretizáveis. Não basta,
portanto, para legitimar seu enunciado que ela expresse um significado
simbólico. Quando se afirma que a norma protege bem jurídico, ao
criminalizar uma conduta, sem a demonstração efetiva dessa proteção, estar-
se-á diante de um mero argumento simbólico. Os juristas, em geral, são muito
propensos a acolherem argumentos simbólicos, sem se darem conta de que
esses argumentos não servem para nada, senão para legitimar o poder
punitivo. Argumentar que a norma criminalizadora protege bem jurídico
justifica o poder de punir, na sua elaboração, e também auxilia o
desenvolvimento elegante dos comentários, mas não fornece àquele que quer
enfrentar a criminalização, como forma de defesa de direitos fundamentais,
um instrumento capaz de dar eficácia a essa defesa. Daí propor ZAFFARONI
uma inversão no modo de apreciar a função do bem jurídico na argumentação
jurídica: em vez de objeto de proteção, passar a tratá-lo como objeto de
limitação da norma criminalizadora.3 Uma vez que não se possa demonstrar
que a conduta incriminada implique uma lesão ou um perigo concreto de
lesão de bem jurídico, não haverá infração penal, nem será legítima a norma
que dispense essa demonstração. Essa postura de tomar o bem jurídico em
sua função negativa vem sendo hoje reconhecida inclusive na Alemanha.
Analisando criticamente as diversas formas de expressão do bem jurídico,
assinala WILFERT o seguinte: “ Em face das dificuldades de se encontrar
uma definição geral, hoje se reconhece que o bem jurídico se esgota em uma
função negativa e só pode se encontrar em um único enunciado, de que não
se pode punir jurídico-penalmente qualquer conduta quando ausente uma
lesão de bem jurídico”.4 Essa postura já havia sido incorporada por ROXIN,
o qual depois de afirmar, categoricamente, que “bens jurídicos da
coletividade só podem ser reconhecidos quando sirvam, finalmente, às
condições existenciais do indivíduo” conclui que, na verdade, o efeito
dogmático do conceito de bem jurídico “deve estar associado à teoria da
imputação objetiva”, de modo que a incriminação de uma conduta só terá
sentido se “a criação de um risco não autorizado” e sua “realização”
puderem ser imputadas ao agente.5 Dessa forma, não havendo a
demonstração de uma afetação de bem jurídico, não haverá infração
imputável. A lesão ou o perigo de lesão do bem jurídico constituem, assim,
pressuposto indeclinável da configuração típica de uma conduta.
Pode-se contra-argumentar, afirmando que a legislação penal prevê
crimes de perigo abstrato, sem a necessidade de demonstração de qualquer
fato concreto de lesão do bem jurídico. Sim, a legislação penal prevê crimes
de perigo abstrato, mas sua vigência, por si só, não os legitima, nem a
doutrina jurídica se vê impedida de proceder a uma interpretação restritiva do
respectivo tipo de delito. Se os crimes de perigo abstrato são uma realidade
da pós-modernidade, caberá à doutrina penal encontrar mecanismos para
limitar seu alcance, ou exigindo sua eliminação da ordem jurídica, ou
impondo uma restrição no seu emprego mediante a requisição de que a
conduta incriminada produza uma efetiva ou provável alteração da realidade.
Os destinatários da norma não podem por ela se orientar sem que estejam
inseridos em determinado contexto no qual possam sentir uma alteração do
mundo exterior. Nesse sentido, tinha razão a velha escola causal-naturalista
quando formulava o conceito de conduta, tal como fazia BELING, como
“movimento causal produtor de uma alteração do mundo exterior”. A
alteração do mundo exterior constitui um fundamento essencial para a
criminalização de condutas. Caso contrário, passa–se a legitimar
incriminações por mera infração de ordens ou regulamentos, com violação
flagrante do princípio da legalidade. A relação entre dados normativos e
dados empíricos, independentemente da filiação teórica causal-naturalista, é
uma constante nas discussões de política criminal e mesmo da própria
criminologia. Ao padecer da referência a dados empíricos, a ciência do
direito penal não pode tratar a conduta humana como seu objeto de estudo.
Justamente, percebendo essa constante metodológica, assinala HASSEMER,
em um de seus belos textos, o seguinte: “ A teoria da política criminal deve
conseguir que as proposições político-criminais sejam postas à prova. Ela
deve, pois, elaborar uma argumentação jurídico-penal, na qual os dados
empíricos possam ser distinguidos das proposições normativas e com sua
ajuda tornem, hoje, reconhecidos os limites do conhecimento empírico frente
a avaliações e prognósticos”.6 Portanto, somente com a identificação dos
limites empíricos das alterações da realidade será possível proceder a uma
avaliação correta do conteúdo e da extensão das normas criminalizadoras.
Uma vez que o bem jurídico seja tomado como objeto de lesão ou perigo
de lesão, ou seja, como expressão da alteração da realidade, torna-se também
questionável a assertiva, hoje muito difundida por diversos autores, alguns
dos quais de grande capacidade intelectual, de que na democracia moderna o
Estado deve se manter nos limites das proibições do excesso e da
insuficiência. A proibição da insuficiência nasceu, na verdade, de uma
interpretação estrita da célebre decisão da Corte Constitucional alemã acerca
da descriminalização do aborto. Em 1992, o Parlamento alemão procedeu a
uma modificação do § 218a do Código Penal, pela qual considerou não ser
antijurídica a interrupção da gravidez, efetuada por médico durante as
primeiras 12 semanas a contar da nidação, sob pedido da gestante e mediante
a apresentação de certificado de aconselhamento, emitido, pelo menos, 3 dias
antes da intervenção. A corte considerou o seguinte: a) o Estado deve
proteger a vida do nascituro; b) a proteção de sua vida não decorre da vida ou
do consentimento da mãe, mas sim dela mesma; c) o nascituro possui
dignidade; d) o Estado protege essa vida, ao proibir sua interrupção e impor à
gestante o dever de manter a gravidez e não pode considerar lícita essa
conduta; e) o Estado não pode dispensar a norma penal para efeitos protetivos
(proibição da insuficiência); f) o legislador pode considerar impunível a
interrupção da gravidez, desde que proceda às indicações necessárias a
caracterizar uma situação de inexigibilidade.7 A decisão da Corte mereceu
severas críticas, já a partir dos votos vencidos de MAHRENHOLZ,
SOMMER e BÖCKENFÖRDE. Principalmente, os dois primeiros ressaltam
a incorreção da Corte pelos seguintes motivos: a) não se pode confundir o
direito de punir do Estado com a proteção da autonomia da pessoa; b) embora
se lhe confira ao Estado o direito de regulamentar a proteção da vida do
nascituro, não pode usurpar a autonomia da pessoa de decidir como deva
conduzir sua própria vida; c) ao pensar apenas na proteção da vida do
nascituro, sem levar em conta a proteção dos próprios direitos da gestante, a
decisão afronta o sentido da Lei Fundamental, que exige também a proteção
da própria gestante; e) a proteção do nascituro e da própria gestante devem
guardar uma relação de proporcionalidade; f) qualquer decisão que vise a
reconhecer a proteção do nascituro deve ter em vista também a proteção da
dignidade da gestante; g) a situação de conflito gerada em uma gravidez, de
modo a justificar sua interrupção, se diferencia de qualquer outra forma de
perigo para a vida; h) no procedimento de interrupção da gravidez o nascituro
não se situa em uma relação de vítima, nem a mãe de autora, pois ambos
constituem uma unidade, o que leva a considerar perfeitamente uma situação
de conflito, não em face da vida do nascituro, mas sim das condições próprias
da mãe; i) à medida que se proíbe a interrupção da gravidez sem mais, como
expressão da proteção do nascituro, deve-se também permiti-la uma vez
tenha a gestante se submetido ao aconselhamento e atuado dentro dos prazos
prescritos, como expressão da proteção de sua própria autonomia. Também
FISCHER, que foi Presidente do Supremo Tribunal Federal da Alemanha,
tece suas críticas à decisão da Corte Constitucional. FISCHER entende
contraditória a decisão, porque ao mesmo tempo em que declara a proibição
de o legislador caracterizar como lícita a conduta da gestante, igualmente a
autoriza quando se demonstre a inexigibilidade de continuar a gravidez.8
Depois da decisão da Corte, o Parlamento alemão voltou a alterar o § 218a do
Código Penal, para considerar como atípica (embora ilícita) a conduta de
interromper a gravidez nas mesmas condições anteriores, ou seja, praticada
por médico sob pedido da gestante, dentro de 12 meses a contar da nidação, e
mediante a apresentação de certificado de aconselhamento 3 dias antes do
procedimento. A questão da proibição da proteção insuficiente veio
novamente à tona, depois dessa modificação. A Corte Constitucional, ao
apreciar regulamentação sobre a interrupção da gravidez promulgada no
Estado da Baviera, pacificou o entendimento acerca das atribuições do
Parlamento, ao afirmar a constitucionalidade da lei bávara em consonância
com a nova norma do Código Penal.9 Considerou, então, o Tribunal que o
legislador atua adequadamente à proibição de proteção insuficiente, à medida
que disponha de outros meios protetivos. Isso significa que a interpretação
acerca da proibição da proteção insuficiente não implica propriamente fundar
a obrigação de criminalizar qualquer conduta, mas sim de proceder a uma
distinção entre as causas de exclusão da tipicidade e da antijuridicidade. O
legislador é livre para tipificar ou não tipificar uma conduta como criminosa.
Não está ele, portanto, obrigado a criminalizar. O que se lhe exige é que só
exclua a antijuridicidade dessa conduta, quando presentes elementos que
demonstrem uma situação de conflito, exatamente como na decisão anterior
que fundava uma situação de inexigibilidade para autorizar a interrupção da
gravidez. Procedendo a uma limitação consequente do invocado princípio da
proibição da proteção insuficiente, acentua HASSEMER, que foi Vice-
Presidente da Corte Constitucional, que essa ideia não pode subsistir sem
uma vinculação direta à lesão de bem jurídico.10 Portanto, não pode esse
princípio ser invocado para justificar política de Estado. Ainda é de se
ressaltar que esse enfoque relativo à atribuição protetiva do Estado nada tem
a ver com o livre exercício do direito de graça, mas exclusivamente com as
finalidades das normas criminalizadoras. E nem poderia ter sentido obrigar o
Estado a impor a purgação das infrações mediante a emprego da pena. Tendo
em vista, inclusive, o princípio da intervenção mínima, a norma penal
criminalizadora deve ser sempre interpretada e aplicada na condição de
ultima ratio.
Geralmente, ao procederem a comentários dos crimes em espécie, os
autores procuram seguir uma certa cartilha, que foi muito bem estruturada no
Brasil a partir de NELSON HUNGRIA. Sob este aspecto, são comuns as
referências à classificação dos delitos em crimes formais ou materiais, bem
como às indagações acerca da tentativa e da consumação, bem como dos
elementos que compõem os tipos legais. Como o legislador mantém alguma
coerência na definição dos delitos, uma parcela da doutrina, na qual se
incluem, pioneiramente, o grande e saudoso penalista JAIR LEONARDO
LOPES e, recentemente, MARIÂNGELA GAMA DE MAGALHÃES
GOMES, pretende elaborar uma Teoria Geral da Parte Especial. Ainda que os
argumentos sejam sedutores, porque buscam elementos sistematizadores para
a análise dos diversos delitos,11 parece que a teoria geral da parte especial é a
própria parte geral do Código Penal. A identidade ou a semelhança de
redação dos elementos do tipo, como o conceito de violência ou grave
ameaça e outros, não é suficiente para fundar uma teoria própria da parte
especial. A fim de apenas trabalhar um pouco essa questão das classificações,
é bom esclarecer que a moderna dogmática penal, a partir de ROXIN, vem
sedimentando a conclusão de que não há crime sem resultado. Desde que se
conceba que não há delito sem lesão ou perigo de lesão de um bem jurídico, o
resultado já não pode ser visto como um simples acontecimento separável da
ação. Está claro que a doutrina, em geral, trabalha com esse conceito
naturalista de resultado e ele é ainda válido, mas insuficiente. Hoje, o
resultado do delito só poderá ser compreendido corretamente quando se
integre na lesão ou no perigo de lesão ao bem jurídico. Não fosse dessa
forma, o conceito de bem jurídico não valeria para nada, seria outro objeto
simbólico inútil, apenas usado com figura de linguagem. Portanto, todos os
crimes devem implicar uma lesão ou um perigo de lesão a um bem jurídico;
todos os crimes têm resultado. TIAGO JOFFILY, em excelente tese de
doutorado na UERJ, depois de demonstrar a evolução do conceito de
resultado, como elemento integrante da ação, no modelo causal-naturalista e
como efeito típico separável da ação, no modelo mais difundido depois da
ascensão do finalismo, conclui: “Partindo de uma concepção dualista
rigorosa do injusto e de um conceito de bem jurídico pessoal e passível de
afetação direta, só podemos conceber o resultado como a alteração do
mundo exterior, causada pela ação típica, consistente na própria afetação
danosa ou perigosa do bem jurídico”.12
Ademais, se o bem jurídico se compõe como o verdadeiro resultado de
um ação típica, é evidente que o dolo, como elemento condutor da atividade,
deve estar relacionado ao bem jurídico. O dolo não se resume, assim, a querer
o resultado naturalístico, mas sim a querer a lesão ou o perigo de lesão do
bem jurídico. Se o agente não atua, subjetivamente, na consecução da lesão
ou do perigo de lesão do bem jurídico, não atua dolosamente. Essa é talvez a
mais grandiosa contribuição de ROXIN para a ciência penal moderna. Se a
vontade deve estar dirigida à afetação do bem jurídico, deve o agente ter
consciência de que, com sua conduta, produz um risco relevante para essa
afetação. Acolhendo essa formulação, temos a lição de SAFFERLING: “A
fim de que se possa admitir o dolo, devem ter sido do conhecimento do
agente os fatores fundantes do risco, quer dizer, ele deve estar consciente de
que sua conduta conduz ou pode conduzir à lesão de um bem jurídico”.13
Em se tratando de dolo, convém observar, ademais, especificamente no
que toca à lei de abuso de autoridade, que vincula a atuação típica à
“finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a
terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal” (art. 1o, § 1o),
que os delitos ali previstos só podem ser realizados com dolo direto. Essa
conclusão decorre precisamente da incompatibilidade dos tipos com
elementos subjetivos especiais, os chamados tipos com intenção interna
transcendente, com o dolo eventual. É logicamente incompreensível que o
agente deva perseguir conscientemente uma determinada finalidade, mas sua
atuação seja pautada com base exclusivamente em juízos de probabilidade.
No dolo eventual, o agente tem consciência de que sua conduta é arriscada
para produzir a lesão de bem jurídico, mas não tem certeza de sua realização
e nem se orientou diretamente para que isso ocorresse. A incorporação da
realização desse resultado na vontade do agente segue uma custosa linha
argumentativa, mas de conformidade com o art. 18, do Código Penal, só pode
fundar-se na afirmação de que esse assumira o risco de sua produção.
Assumir o risco, por sua vez, não significa que o agente inclua esse resultado
em sua vontade, no plano naturalístico. Essa assunção do risco é uma
condição normativa, que só pode ser apreciada em termos de probabilidade.
Essa é a grande questão do dolo eventual, que no fundo constitui uma
modalidade mais grave de culpa. Independentemente dessa insubsistência do
dolo eventual, a falta de uma orientação direta à lesão de bem jurídico não
pode subsistir com a exigência legal de que o agente deva atuar imbuído de
um objetivo final, que é o de produzir dano a outrem, benefício próprio ou a
terceiro ou para satisfazer capricho ou sentimento pessoal.
Por outro lado, todos os crimes, em geral, admitem tentativa, com
exceção dos crimes omissivos próprios, dos crimes culposos e daqueles
delitos em que a relevância penal da atuação antijurídica só se edifica com a
repetição de atos, como ocorre nos crimes habituais. A admissão da tentativa
em alguns casos pode explicar, com alguma fluidez, situações de desistência
e arrependimento eficaz, as quais estariam desde logo descartadas, caso se
partisse da ideia de que a tentativa devesse ser apreciada em termos
mecânicos.
Feitas essas considerações, quero felicitar os organizadores e os
comentaristas pelos textos apresentados, os quais são de extrema valia para a
compreensão dos casos de abuso de autoridade. Este livro é, então, um guia
poderoso para a interpretação da Lei no 13.869, de 05 de setembro de 2019.
Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 2020.

JUAREZ TAVARES
Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Professor
Emérito da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
___________________
1. MATLARY, Janne Haaland. Derechos humanos depredados. Hacia uma ditadura del
relativismo. Madrid: Ediciones Cristiandad, 2008, p. 73.
2. HASSEMER, Winfried. Prefácio, in Juarez Tavares, Teoria dos crimes omissivos,
Madrid–Barcelona-Buenos Aires-São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 12.
3. ZAFFARONI/ALAGIA/SLOKAR. Derecho penal, parte general, 2a edição, Buenos
Aires: Ediar, 2002, p. 128.
4. WILFERT, Marei Verena. Strafe und Strafgesetzgebung im demokratischen
Verfassungsstaat, Tübingen: Mohr, 2017, pag. 127.
5. ROXIN, Claus. “Zur neueren Entwicklung der Rechtsgutslehre”, in Festschrift für
Winfried Hassemer, 2010, p. 573 e ss.
6. HASSEMER, Winfried. “Konstanten kriminalpolitischer Theorie”, in Festschrift für
Richard Lange, 1976, Nova Publicação, 2017, p. 513.
7. BVfGE 88, 203, de 28/05/1993.
8. FISCHER, Thomas. StGB Kommentar, München: Beck, 2016, p. 1519.
9. BVerfGE 98, 265, de 27/10/1998.
10. HASSEMER, Winfried. “Strafrechtlicher Güterschutz unter der Verfassung”, in
Festschrift für Androulakis, 2002, p. 222.
11. GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Teoria geral da parte especial do direito
penal, São Paulo: Atlas, 2014.
12. JOFFILY, Tiago. O resultado como fundamento do injusto penal, Florianópolis:
Empório do Direito, 2016, p. 220
13. SAFFERLING, Christoph J. M. Vorsatz und Schuld: subjektive Täterelemente im
deutschen und englischen Strafrecht, Tübingen: Mohr, 2008, p. 178.
SUMÁRIO

SOBRE OS AUTORES

PREFÁCIO

CAPÍTULO I – DISPOSIÇÕES GERAIS

GUSTAVO BADARÓ
Art. 1o

CAPÍTULO II – DOS SUJEITOS DO CRIME

GUSTAVO BADARÓ
Art. 2o

CAPÍTULO III – DA AÇÃO PENAL

GUSTAVO BADARÓ
Art. 3o

CAPÍTULO IV – DOS EFEITOS DA CONDENAÇÃO E DAS PENAS


RESTRITIVAS DE DIREITOS

GUSTAVO BADARÓ
Art. 4o
Art. 5o

CAPÍTULO V – DAS SANÇÕES DE NATUREZA CIVIL E ADMINISTRATIVA


GUSTAVO BADARÓ
Art. 6o
Art. 7o
Art. 8o

CAPÍTULO VI – DOS CRIMES E DAS PENAS

PIERPAOLO CRUZ BOTTINI


Art. 9o

JULIANO BREDA
Art. 10

GUSTAVO BADARÓ E JULIANO BREDA


Art. 11

PIERPAOLO CRUZ BOTTINI


Art. 12

PIERPAOLO CRUZ BOTTINI


Art. 13

GUSTAVO BADARÓ E JULIANO BREDA


Art. 14

GUSTAVO BADARÓ
Art. 15

GUSTAVO BADARÓ
Art. 16

GUSTAVO BADARÓ E JULIANO BREDA


Art. 17

FÁBIO TOFIC SIMANTOB


Art. 18
FÁBIO TOFIC SIMANTOB
Art. 19

JULIANO BREDA
Art. 20

ANTONIO SÉRGIO ALTIERI DE MORAES PITOMBO


Art. 21

ANTONIO SÉRGIO ALTIERI DE MORAES PITOMBO


Art. 22

ANTONIO SÉRGIO ALTIERI DE MORAES PITOMBO


Art. 23

ANTONIO SÉRGIO ALTIERI DE MORAES PITOMBO


Art. 24

JULIANO BREDA
Art. 25

GUSTAVO BADARÓ E JULIANO BREDA


Art. 26

ALBERTO ZACHARIAS TORON


Art. 27

ALBERTO ZACHARIAS TORON


Art. 28

ALBERTO ZACHARIAS TORON


Art. 29

ALBERTO ZACHARIAS TORON


Art. 30

ALBERTO ZACHARIAS TORON


Art. 31
JULIANO BREDA
Art. 32

FÁBIO TOFIC SIMANTOB


Art. 33

GUSTAVO BADARÓ E JULIANO BREDA


Art. 34

GUSTAVO BADARÓ E JULIANO BREDA


Art. 35

GUSTAVO BADARÓ
Art. 36

FÁBIO TOFIC SIMANTOB


Art. 37

FÁBIO TOFIC SIMANTOB


Art. 38

CAPÍTULO VII – DO PROCEDIMENTO

MARTA SAAD
Art. 39

CAPÍTULO VIII – DISPOSIÇÕES FINAIS

MARTA SAAD
Art. 40

JULIANO BREDA
Art. 41

GUSTAVO BADARÓ
Art. 42

JULIANO BREDA
Art. 43

MARTA SAAD
Art. 44

MARTA SAAD
Art. 45
Capítulo I
Disposições Gerais

GUSTAVO BADARÓ

Art. 1o Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade,


cometidos por agente público, servidor ou não, que, no
exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las,
abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
§ 1o As condutas descritas nesta Lei constituem crime de
abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a
finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a
si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou
satisfação pessoal.
§ 2o A divergência na interpretação de lei ou na avaliação
de fatos e provas não configura abuso de autoridade.

BIBLIOGRAFIA:
BADARÓ, Gustavo Henrique Epistemologia Judiciária e Prova Penal. São Paulo:
RT, 2019; BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Processo civil e processo penal: mão e
contramão? Temas de direito processual – sétima série. São Paulo: Saraiva, 2001;
BARBOSA, Rui Novum crimen: o crime de hermenêutica. In Obras Completas de Rui
Barbosa, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, v. XXVIII 1901, t. III, 1979,
p. 227-286; CALAMANDREI, Piero. Proceso y democracia. Trad. H. Fix Zamundio.
Buenos Aires: EJEA, 1960; CALAMANDREI, Piero. Processo e democrazia. Opere
Giuridiche. Napoli: Morano, 1965, v. I; CARRARA, Francesco. Programa de derecho
criminal. Trad. J. J. Ortega Torres e J. Guerrero Leconte. Bogotá: Temis, 1957. v. II;
CAVALLO, Vincenzo. La sentenza penale, Napoli: Jovene, 1936; COSTA, Edgard.
Os Grandes Julgamentos do Supremo Tribunal Federal, Rio de Janeiro: Ed.
Civilização Brasileira, 1964, v. I; ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Trad.
de Pérola de Carvalho. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004; FERRAJOLI, Luigi.
Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale. Roma: Laterza, 1998; FERRER
BELTRÁN, Jordi. La valoración racional de la prueba. Barcelona: Marcial Pons,
2007; FERRUA, Paolo Il ‘giusto processo’. 2. ed. Bologna: Zanichelli, 2012;
FERRUA, Paolo Il libero convincimento del giudice penale: i limiti legali. In. Il libero
convincimento del giudice penale. Vecchie e nuove esperienze. Milano: Giuffrè, 2004;
FLORIAN, Eugenio. Delle prove penali. Milano: Francesco Vallardi, 1921, v. I;
FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de. Abuso de Autoridade:
notas de legislação, doutrina e jurisprudência à Lei 4.898, de 09.12.1965. 9. ed. São
Paulo: RT, 2001; GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho: bases
argumentales de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 1999; GRECO, Rogério; CUNHA,
Rogério Sanches. Abuso de Autoridade. Lei 13.869/2019. Comentada Artigo por
Artigo. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019; HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento.
Trad. António Correia. 8. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1987; HORTA, Frederico.
Elementos normativos das leis penais e conteúdo intelectual do dolo. Da natureza do
erro sobre o dever extrapenal em branco. São Paulo: Marcial Pons, 2016;
IACOVIELLO, Francesco Mauro. I criteri di valutazione della prova. In: Mario
Bessone; Ricardo Guastini (Coords.). La regola del caso. Materiali sul ragionamento
giuridico. 5. Padova: Cedam, 1995; IACOVIELLO, Francesco Mauro. Motivazione
della sentenza penale. Enciclopedia del diritto. Aggiornamento. Milano: Giuffrè. v.
IV; ILLUMINATI, Giulio. La presunzione d’innocenza dell’imputato. Bologna:
Zanichelli, 1979; JESUS, Damásio E. de. Do abuso de autoridade. Justitia 59/48;
LARICCIA, Sergio. L’istituto della rimessione di procedimenti per gravi motivi di
ordine pubblico o per legittimo sospetto e la garanzia costituzionale del giudice
naturale precostituito per legge, in Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale,
1966; MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio. A motivação das decisões penais.
São Paulo: Ed. RT, 2001; NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais
Penais Comentadas. 6. ed. São Paulo: Ed. RT, 2012, v. I; PEDROSO, Fernando de
Almeida. Prova penal: doutrina e jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2005;
PERFECTO IBÁÑEZ, Andrés. A Argumentação Probatória e sua Expressão na
Sentença. Trad. Lédio Rosa de Andrade. In: Valoração da prova e sentença penal. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2006; REALE JR., Miguel. Instituições de Direito Penal.
Parte Geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012; REALE JR, Miguel. Parte geral do
Código Penal: nova interpretação. São Paulo: RT, 1988; ROMANÒ, Cristina.
Processo alla verità. In: Vincenzo Garofoli; Antonio Incampo, Verità e processo
penale. Milano: Giuffrè, 2012; ROMBOLI, Roberto; PANIZZA, Saulle verbete
“Ordinamento giudiziario”, Digesto delle Discipline Pubblicistiche. Torino: UTET, v.
X, 1995. SAMMARCO, Angelo Alessandro. Metodo probatorio e modelli di
ragionamento nel processo penale. Milano: Giuffrè, 2001; TARUFFO Michele.
Libero convincimento del giudice: I) diritto processuale civile. Enciclopedia Giuridica
Treccani. Roma: Treccani, v. XVIII, 1990; TARUFFO, Michele. La prova dei fatti
giuridici. Milano: Giuffrè, 1992. TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e
la costruzione dei fatti. Bari: Laterza, 2009; TAVARES, Juarez. Fundamentos de
Teoria do Delito, Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018; TUZET, Giovanni. Filosofia
della prova giuridica. 2. ed. Torino: G. Giappichelli Ed., 2016; UBERTIS, Giulio.
Profili di epistemologia giudiziaria. Milano: Giuffrè, 2015; VILELA, Alexandra.
Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual penal.
Coimbra: Coimbra Ed., 2000.

COMENTÁRIOS:
1. Noções Gerais. A Lei no 13.869, de 5 de setembro de 2019, dispôs
sobre os crimes de abuso de autoridade.
Além disso, alterou a Lei no 7.960, de 21 de dezembro de 1989, que
disciplina a prisão temporária; a Lei no 9.296, de 24 de julho de 1996, que
regulamenta a interceptação telefônica; a Lei no 8.069, de 13 de julho de
1990, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente; e a Lei no 8.906,
de 4 de julho de 1994 – Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados
do Brasil.
A Nova Lei de Abuso de Autoridade também revogou a Lei no 4.898, de
9 de dezembro de 1965. Também foram revogados o § 2o do artigo 150 e o
artigo 350, ambos dos do Código Penal.
Nos §§ 1o e 2o do artigo 1o da Lei no 13.869/2019 são estabelecidas duas
regras gerais fundamentais para limitar a caracterização dos crimes de abuso
de autoridade e, consequentemente, assegurar o livre exercício do poder
público por sua Autoridade e seus agentes. Sem tais salvaguardas, situações
de dúvida ou casos que se situam em zonas de penumbras poderiam fazer
com que agentes mais temerosos se sentissem impedidos de atuar, sob o
receio de vir a ser responsabilizados e, com isso, deixassem de agir
corretamente.
O § 1o do artigo 1o, ao estabelecer a necessidade de especiais elementos
subjetivos do injusto, representa uma importante salvaguarda positiva. Só na
presença de uma das cinco finalidades específicas de agir é que a conduta
poderá ser considerada abuso de autoridade.
Por outro lado, o § 2o do artigo 1o, ao estabelecer que não configura
crime de abuso de autoridade, de um lado, a mera divergência de
interpretação da lei, e de outro, a simples divergências de avaliação de fatos
e provas, traz duas importantes salvaguardas negativas aos agentes públicos.
2. Elementos subjetivo do injusto. Todos os tipos penais da Lei no
13.869/2019 são dolosos. Não há previsão de tipos culposos.
Além do dolo, enquanto elemento subjetivo exigido em qualquer crime
de abuso de autoridade, a Lei no 13.869/2019 agrega, alternativamente, cinco
elementos subjetivos do injusto. O § 1o do artigo 1o, estabelece que: “As
condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando
praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou
beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou
satisfação pessoal”.
Para a caracterização do crime de abuso de autoridade é necessário que,
além do dolo, o agente público esteja inspirado por um especial fim de agir.
O legislador prevê cincos escopos que deixam patente que a atuação do
agente público não decorreu de mero erro no cumprimento estrito da lei ou de
simples excesso no exercício de poder. Há um propósito deliberado de quem
age em abuso do poder, porque realiza o ato com a finalidade especial de:
“prejudicar outrem”; “beneficiar a si mesmo”, “beneficiar a terceiro”, “por
capricho” ou “para satisfação pessoal”. São elementos subjetivos do injusto
alternativos.
A previsão do § 1o do art. 1o da Lei no 13.869/2019, exigindo especiais
motivos, intenções, finalidade ou tendências anímicas, dá aos crimes de
abuso de autoridade a natureza de delitos de intenção interna transcendente,
“nos quais a intenção do legislador, ao descrever a conduta dolosa, impõe que
o agente busque um objetivo que se situa fora do tipo”, embora o delito se
consume com o resultado típico.1
Mesmo no regime da ab-rogada Lei de Abuso de Autoridade, que não
tinha regra específica equivalente ao § 1o do artigo 1o da Lei no 13.869/2019,
a doutrina já afirmava que o crime de abuso de autoridade reclamava “um
ânimo próprio, que é o elemento subjetivo do injusto: vontade de praticar as
condutas sabendo o agente que está exorbitando o poder”.2 Ou que “merecia
punição somente as hipóteses em que se constata que o agente agiu com o
propósito de vingança, perseguição ou capricho e não no interesse da defesa
social”.3
2.1 “Prejudicar outrem”. Uma das formas de o agente público praticar
deliberada injustiça ao exercer o poder público se manifesta no propósito de
prejudica outrem. O prejuízo pode ser de natureza patrimonial ou não
patrimonial. Poderá o agente visar a perda de bens, direitos ou valores do
particular prejudicado, ou qualquer outro modo de sua diminuição
patrimonial. Mas também poderá ter por finalidade macular a sua honra, ou
abalar o seu conceito profissional etc.
No tipo penal do artigo 29 da Lei no 13.869/2019, esse especial fim de
agir está expressamente presente, uma vez que tal figura de abuso de
autoridade consiste em: “Prestar informação falsa sobre procedimento
judicial, policial, fiscal ou administrativo com o fim de prejudicar interesse
de investigado”. Nessa hipótese, não se exigirá nenhum outro dos quatros fins
especiais de agir do § 1o do artigo 1o para caracterizar tais hipóteses de abuso
de autoridade.
Em outros casos, o prejuízo alheio integra o próprio tipo penal, como no
crime do artigo 28 da Lei de Abuso de Autoridade, em que ao divulgar
gravação ou trecho de gravação deve ferir “a honra ou a imagem do
investigado ou acusado”. O mesmo ocorre no artigo 31 da mesma Lei, em
que o crime consiste em “estender injustificadamente a investigação,
procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado”. Em ambos
casos de abuso de autoridade, o próprio dolo implicará a vontade de
prejudicar outrem, sendo desnecessário qualquer outro especial fim de agir do
artigo 1o, § 1o, para poder responsabilizar o agente por abuso de autoridade.
2.2 “Beneficiar a si próprio”. Assim com o prejuízo alheio, também no
caso do “benefício próprio”, este pode ser de qualquer natureza patrimonial
ou não.
Em alguns casos, esse especial fim de agir já está previsto no próprio tipo
penal de abuso de autoridade. O parágrafo único do artigo 33 considera
criminoso “quem se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição
de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem
ou privilégio indevido”. O tipo penal já prevê o especial fim de agir que, no
caso, caracteriza o chamado dolo específico, consistente na finalidade de
obtenção de um benéfico a si próprio. Logo, para a configuração de tal
espécie de crime de abuso de autoridade, não se exige qualquer outra
finalidade específica do § 1o do artigo 1o da Lei de Abuso de Autoridade.
2.3 “Beneficiar terceiro”. Assim como em relação ao “benefício
próprio”, também o benefício alheio, isto é, de terceira pessoa, pode ser de
natureza patrimonial ou não patrimonial. O terceiro, favorecido pelo ato
abusivo, não necessariamente será coautor ou partícipe do crime de abuso de
autoridade. Se não tiver ciência de que a vantagem recebida decorre de um
ato arbitrário do agente público, não poderá ser responsabilizado penalmente.
Diversa será a situação se souber de tal propósito e com ele anuir ou
concorrer para a prática do ato, situação em que será corresponsabilizado
criminalmente, sendo ele agente público (CP, art. 29, caput), ou mesmo que
se trate de particular (CP, art. 30).
2.4 “Capricho”. O ato de abuso de autoridade praticado por mero
capricho é aquele que decorre de uma vontade repentina, sem justificativa, ou
fruto de uma mudança súbita de pensamento. É algo com uma motivação fora
do comum, excêntrica ou extravagante.
2.5 “Satisfação pessoal”. O sentimento de satisfação pessoal é aquele
que gera contentamento no agente, por representar algo que se desejava ou
esperava. Podem ser variadas as razões de satisfação pessoal: a teimosia ou
obstinação, a veleidade, a maldade ou crueldade, o preconceito, o desejo de
humilhar etc.
O crime do art. 37 da Lei no 13.869/2019 tem no tipo penal um especial
fim de agir, que pode ser identificado como o elemento subjetivo do injusto
da satisfação de sentimento ou interesse pessoal. Justamente por isso, não
ensejará a responsabilização penal por abuso de autoridade a mera ou simples
demora “demasiada e injustificadamente no exame de processo de que tenha
requerido vista em órgão colegiado”. Esse estado de excessivo período
injustificado para o exame do processo e, consequentemente, a posterior
realização do julgamento, somente configurará crime de abuso de autoridade
se ocorrer “com o intuito de procrastinar seu andamento ou retardar o
julgamento”. Logo, será preciso demonstrar que há um escopo ou finalidade
específica de atrasar o andamento do processo ou de tornar mais distante no
tempo o julgamento do feito, como manter os efeitos provisórios de uma
liminar que foi concedida, ou aguardar uma mudança da composição da
turma julgadora, ou, ainda, esperar o início de vigência de uma lei que se
encontra em vacatio legis. Sendo necessária a existência dessa especial
motivação procrastinatória, já estará satisfeita e exigência de uma finalidade
de “satisfação pessoal”, sem a necessidade de qualquer outro objetivo do § 1o
do art. 1o da Lei no 13.869/2019.
3. Aptidão da denúncia e descrição do elemento subjetivo do injusto.
Do ponto de vista processual, a denúncia deverá explicitar ao menos uma
dessas finalidades específicas, para que seja apta. Evidente que não bastará
repetir as palavras da lei, mas identificar, concretamente, no que consistiu
esse especial fim de agir: qual foi o prejuízo alheio; em que se beneficiou o
agente público, que o sentimento pessoal o agente procurou atingir, v.g.,
vingança, teimosia ou maldade. Sem isso, a denúncia será inepta (CPP, art.
41), devendo ser liminarmente rejeitada (CPP, art. 395, I) 4. A prova do
elemento subjetivo do injusto. Árdua será a tarefa da acusação de
demonstrar o elemento subjetivo do injusto. A teoria geral da prova é
construía a partir da necessidade de demonstração de fatos passados, a partir
das provas. E uma afirmação fática é considerada prova quando o grau de
suporte probatório dado pelos elementos de prova permite ao juiz atingir um
grau de conhecimento que corresponda ao standard de prova exigido para o
caso, que para uma condenação penal, costuma ser identificada com a
expressão “além da dúvida razoável”.
O fato, enquanto conteúdo da proposição a ser provada, é um
acontecimento, um suceder histórico. É uma modificação do mundo exterior,
ou o acontecimento ocorrido.4 Esse conceito material do fato supõe que o
fato seja um acontecimento do mundo físico ou um comportamento que se
traduz em atos materiais.5 Contudo, existem muitos “fatos” juridicamente
relevantes que não podem ser qualificados como “materiais”, mas sim dizem
respeito à esfera psicológica, sentimental ou volitiva de uma pessoa,
consistindo em sentimentos, valorações, posicionamentos, intenções ou
vontades,6 como são as finalidades específicas do agir previstas no § 1o do
artigo 1o da Lei no 13.869/2019.
A tendência interna transcendente, ou o especial fim de agir que se exige
para a caracterização do crime de abuso de autoridade não é um fato, não
modifica o mundo exterior. Ao contrário, situa-se no mundo psíquico ou
interno do agente. Isso não afasta, contudo, a necessidade de se “provar” tal
elemento subjetivo.
A única forma de se admitir uma prova direta de tais “fatos” é
reconhecendo o valor probatório à “expressão” do fato psíquico por parte do
seu autor. As declarações do autor do fato são a única forma de se obter uma
prova direta de sua intenção, isto é, do “fato psíquico”.7 Se não houver tal
prova, que pode decorrer da confissão judicial, ou pode estar em um
documento, como uma carta escrita pelo acusado, o único caminho será uma
reconstrução indireta dos fatos, a partir de uma sucessão de inferências.
Não há, contudo, nessa exigência para a demonstração do elemento
subjetivo do injusto dos crimes de abuso de autoridade, nenhuma grande
novidade. Com relação à prova do dolo, essa é a situação mais comum. Na
investigação do dolo, o juiz baseia-se em fatos objetivos, em dados exteriores
do delito, que indicam a intenção do agente.8 São os fatos e, principalmente,
a forma pela qual o autor cometeu o delito,9 que indicam o elemento
subjetivo do agente.10 O elemento subjetivo do delito é inferido dos fatos
materiais, dos dados fáticos relacionados ao delito. Trata-se, pois, de uma
atividade inferencial,11 baseada em um raciocínio indutivo.12
O mesmo valerá, em tudo e por tudo, para a demonstração das finalidades
especiais de específica de “prejudicar outrem”, “beneficiar a si próprio”,
“beneficiar terceiro”, agir “por mero capricho” ou para uma “satisfação
pessoal”.
O juiz deverá se convencer da ocorrência do dolo e de uma dessas cinco
finalidades especiais, ainda que, para tanto, deva se basear em elementos
objetivos. Esses dados objetivos devem estar demonstrados com base em
meios de prova que convençam o julgador de sua ocorrência. A partir desse
fato demonstrado, valendo-se de uma máxima de experiências, que
funcionará com regra geral de cobertura, o juiz deverá realizar uma inferência
sobre a intenção do acusado. A inferência do elemento subjetivo, a partir de
dados fáticos objetivos, não significa que o dolo seja presumido.13
Admitir que o fato externo é que indica o elemento interno não implica
dizer que o dolo ou o elemento subjetivo do injusto possa ser presumido.14
Posicionamentos, teórico e jurisprudencial, no sentido de que há uma
“presunção de dolo”, representa flagrante violação da presunção de
inocência.15 Presumir a ocorrência do dolo é estabelecer uma presunção
contrária à presunção de inocência, o que não se pode admitir. Nem a lei nem
a jurisprudência podem alterar a regra de julgamento do processo penal
consubstanciada no in dubio pro reo. A presunção de dolo nada mais é do
que uma regra de julgamento no sentido de que, havendo dúvida sobre se o
acusado agiu ou não dolosamente, deverá ser condenado, pois incumbia a ele
provar que não agiu dolosamente. Em última análise, representa a adoção do
in dubio pro societate, que faz incidir sobre o acusado o ônus da prova de sua
inocência.
5. Da inocorrência do chamado crime de hermenêutica. Além da
exigência de uma das cinco finalidades especiais da ação, prevista no § 1o do
artigo 1o, como um especial fim de agir, que funciona como uma salvaguarda
positiva para o agente público, há também uma salvaguarda negativa a
proteger o agente público que age com a consciência de que o faz no correto
cumprimento da lei: o § 2o do artigo 1o da Lei no 13.869/2019 estabelece que
“A divergência na interpretação de lei ou na avaliação dos fatos não
configura abuso de autoridade”.
A norma é adequada. Em tipos penais nos quais se exige como elemento
normativo a violação da lei, qualificada com um advérbio de modo como
“violação manifesta”, a adoção de uma ou outra interpretação razoável ou
aceitável da lei, ainda que divergente da posição final que venha a ser adotada
pelos órgãos judiciários superiores que venham a julgar a causa, não
caracterizará crime de abuso de autoridade. A conduta não será típica.
Por exemplo, não será crime a autoridade judiciária, dentro de prazo
razoável, deixar de deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando
cabível, por ter intepretação diversa da lei, considerado que no caso não há
ilegalidade. Essa decisão poderá ser juridicamente equivocada e, por isso, é
passível de correção pela via jurisdicional, seja mediante agravo interno, seja
por nova impetração de habeas corpus perante instância superior.
Porém, no caso em que a concessão da liminar seja manifesta, porque,
por exemplo, o condenado já está preso há mais tempo do que determinado
na sentença condenatória, transitada em julgado para a acusação, não há
interpretação jurídica que justifique a manutenção do ilegal constrangimento
à sua liberdade de locomoção. Caso o juiz se recuse, em tal caso, a conceder
liminar em habeas corpus, haverá inegável abuso de autoridade.
Cabe observar que, mesmo que inexistisse a regra específica do § 2o do
art. 1o da Lei no 13.869/2019, o resultado seria o mesmo. O juiz que,
fundamentadamente, justificasse as suas razões de decidir, sobre o sentido
dado ao interpretar o texto legal, não estaria agindo com a vontade de violar a
lei. Ao contrário, acreditaria justificadamente que estaria a cumpri-la,
obedecendo-a ou a efetivando. Logo, haveria erro sobre elementos do tipo
escusável (CP, art. 20, caput, primeira parte), com a exclusão do dolo e,
consequentemente a atipicidade da conduta.
5.1 A história da expressão “crime de hermenêutica”. A expressão
“crime de hermenêutica”, cunhada por Rui Barbosa, é sempre lembrada, mas
pouco explicada. Não se trata de mero tributo histórico, mas de expor o
contexto e a razão de ser de tal crítica, para corretamente aplicá-la no
presente.
O então Juiz Municipal Alcides de Mendonça Lima se recusou a cumprir
a Lei no 10, de 16 de dezembro de 1895, do Rio Grande do Sul, editada por
Júlio de Castilhos, por reputá-la inconstitucional, em seus artigos 65 e 66. Por
ter assim decidido, foi o Juiz denunciado e condenado pelo art. 226 do
Código Penal de 1890 (“Exceder os limites das funções próprias do
emprego”) a pena de 9 meses de suspensão do emprego, grau médio do
referido artigo. Surge, então, o que Rui Barbosa denominou “crime de
hermenêutica”.
A defesa do acusado, no recurso para o Supremo Tribunal Federal, fora
patrocinada por Rui Barbosa. Mas não foi fácil o exercício do direito de
defesa. Informa Edgard Costa que as razões escritas do recurso foram
desentranhadas dos autos, por determinação do Ministro Lúcio de Mendonça,
porque não foram produzidas perante o juiz de primeiro grau.16 Por
felicidade, a peça processual de Rui, verdadeira monografia sobre o Júri, foi
impressa e distribuída aos ministros, sob o título “O Júri e a responsabilidade
penal dos juízes”, tendo grande repercussão nos meios forenses.17
É no item II das razões, denominado “ novum crimen e crime de
hermenêutica”, que Rui Barbosa defende a tese da autonomia intelectual do
juiz, para que não se converta em “um espelho inerte dos tribunais
superiores”. Diz textualmente: “Temos, pois, duas opiniões opostas a respeito
do assunto, no seio da hierarquia judicial: uma sustentada por um magistrado,
na primeira instância; a outra, na segunda, por dois. Para esta é
manifestamente constitucional o Júri rio-grandense; para aquela,
manifestamente inconstitucional. Ambas as maneiras dever são proferidas
com a mesma sinceridade. Ao menos a nenhuma delas, partes dissidentes, é
lícito insinuar outra coisa. O superior tribunal do Estado não tem por graça da
sua superioridade oficial esse direito. O de infalibilidade também não lhe
assiste. Um parecer subalterno pode ter razão contra julgados supremos; um
voto individual, contra muitos. A questão, em última análise, se reduz, pois, a
isso: um conflito intelectual de duas hermenêuticas, falíveis ambas e ambas
convencidas”. E, com base nessa premissa, continua: “Não há crime de
interpretação. Por interpretação injurídico só é responsável o juiz quando ela
ferir disposição literal, e ainda nesse caso, não é o erro, que se reprime; é o
dolo, a saber: a sentença dada por afeição, ódio, contemplação, ou para
promover interesse pessoal seu” (Cód. Penal, art. 207, 1.).
Julgado o recurso, o Supremo Tribunal Federal, em acórdão de 10 de
fevereiro de 1897, tendo por relator o Ministro Ribeiro de Almeida, à
unanimidade, absolveu o acusado. Não se pronunciou, contudo, sobre a
arguida inconstitucionalidade da lei rio-grandense.
O Juiz Mendonça Lima, então, em outras oportunidades, deixou de
aplicar a Lei do Rio Grande do Sul, mantendo sua convicção sobre ser ela
contrária à Constituição, o que lhe valeu um segundo processo, dessa feita,
pelo delito do art. 226 do Código Penal, que tipificava o crime de
desobediência. Novamente foi condenado a 9 meses de suspensão do cargo.
Recorreu uma segunda vez ao Supremo Tribunal Federal, que, embora tenha
considerado a lei gaúcha constitucional, reafirmou a inocência de Mendonça
Lima, absolvendo-o, em acórdão de 7 de outubro de 1899.18
Foi esse episódio e a genialidade de Rui Barbosa que legaram para a
cultura jurídica brasileira a expressão “crime de hermenêutica”, sempre
lembrada nos comentários do art. 2o da Lei no 13.869/2019.
5.2 Atividade interpretativa e a atribuição de sentidos. A normal
atividade hermenêutica, ainda que adote uma interpretação da lei que não seja
majoritária ou prevalecente, não caracteriza crime.
Não é possível aceitar acriticamente, nos dias de hoje, que in claris cessat
interpretatio. Toda lei – ou melhor, todo texto legal – precisa ser
interpretado, por mais claro que pareça.
Some-se a isso que a lei, até mesmo porque deve se adaptar à dinâmica da
vida social e econômica, cada vez mais está impregnada de conceitos
jurídicos indeterminados, com conteúdos amplos e genéricos, que exigem
cada vez mais um processo hermenêutico complexo, para não se dizer
complementar, à atividade legislativa. Também não há que se duvidar de que
a atividade interpretativa comporta uma função criativa, sendo perfeitamente
possível que se chegue a soluções diversas em casos nos quais se aplica a
mesma lei a análogas ou idênticas situações fáticas.19
A atividade de interpretar a norma, sempre e em alguma medida, envolve
não só a descoberta de um significado, mas também uma transferência de
sentido feita pelo intérprete. Todo juiz, no seu ato de dar o sentido à lei, traz
seus valores e sua história de vida. E interpretar a lei é dar o seu sentido da
norma. E, se os juízes carregam em seu ato de decidir e, portanto, na
atividade hermenêutica, seus valores, ideologias, crenças e história de vida, é
evidente que a interpretação da lei chegará a resultados distintos, conforme
realizada por um ou outro julgador.
Por isso, como adverte Calamandrei, “quando se diz que no sistema da
legalidade o juiz não é senão um intérprete da lei, isso não significa que ele
seja um “porta-voz inanimado e mecânico da lei, a ‘bouche de la loi’, como
queria Montesquieu: ao contrário, a lei, mesmo a mais precisa e a mais
minuciosa, deixa ao juiz, não só na reconstrução do fato, mas também na
pesquisa da relação entre o fato e o preceito jurídico, um certo âmbito de
movimento e de escolha, no qual o juiz não só pode, mas deve buscar a
resposta, mais que na lei, na sua consciência”.20
A interpretação, na passagem do momento legislativo para o momento de
sua aplicação da lei pelo juiz sempre envolve, em maior ou menor grau, um
caráter de relativa incerteza que caracteriza toda norma jurídica antes de sua
aplicação ao caso concreto.21 Qualquer norma, por se valer da linguagem, é,
em alguma medida, indeterminada, e supor que existam situações de
aplicação do direito que estejam protegidas contra algum tipo de subjetivismo
do intérprete é uma ingênua hermenêutica.
Umberto Eco alerta que: “ texto algum pode ser interpretado segundo a
utopia de um sentido autorizado fixo, original e definitivo. A linguagem
sempre diz algo mais do que seu inacessível sentido literal, o qual já se
perdeu a partir do início da emissão textual”.22 (destaquei) Isso não significa,
contudo, negar o significado garantista da legalidade. Ao contrário. A lei é
fator fundamental de segurança jurídica e, no caso do direito penal, de guia
orientador de condutas. O que se deve buscar, com o fim de conferir maior
segurança jurídica, seja ao aplicador do direito, seja ao acusado, é a
construção da norma a partir de conceitos que reduzam ao máximo esse grau
de indeterminação. Sé é impossível uma norma com um significado
petrificado e imutável, a necessidade de segurança jurídica implica procurar
restringir, na medida do praticamente possível, o grau de incerteza causado
pelo texto legal.
5.3 Limites da atividade interpretativa. Embora seja inegável a
existência de uma vagueza na atividade interpretativa, bem como não se
possa responsabilizar criminalmente o julgador, por abuso de autoridade, no
caso de divergência de interpretação, é preciso reconhecer que há limites cuja
transposição não é aceitável na atividade hermenêutica: decisões com efeito
vinculante; súmulas vinculantes e, até mesmo, interpretações aberrantes ou
teratológicas.
Nas ações de controle concentrado de constitucionalidade, decorrentes de
ADIN’s e ADCon, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal tem
força vinculante, inclusive para os demais órgãos do Poder Judiciário.23 O
resultado da atividade hermenêutica não será livre.24 Em tais hipóteses, se o
juiz der à norma já interpretada pelo Supremo Tribunal Federal uma
inteligência diferente daquela a que se atribuiu o efeito vinculante, a escusa
do § 2o do art. 1o da Lei no 13.869/2019 não se aplicará. Isto é, não lhe
socorrerá a vedação da caracterização do crime de hermenêutica para impedir
a ocorrência do crime de abuso de autoridade.25 O mesmo se diga em relação
ao conteúdo das súmulas vinculantes editadas pelo STF.26
Evidente que, no caso concreto, sem desconhecer e não desrespeitando o
precedente com efeito vinculante, ou a súmula vinculante, o julgador poderá
deixar de aplicá-lo, realizando fundamentadamente o devido
“distinguishing”, demonstrando a existência de distinção no caso em
julgamento e a hipótese em que se formou o precedente, como exige o inciso
VI do caput do art. 489 do CPC.
Por outro lado, mesmo no caso em que não há decisão com efeito
vinculante ou súmula vinculante, ainda assim será possível deixar de aplicar a
salvaguarda negativa do § 2o do artigo 1o da Lei no 13.869/2019, e ocorrer o
crime de abuso de autoridade, nos casos de interpretação manifestamente
contrária ao sentido da norma, ou de resultado interpretativo teratológico.27
Tais situações somente poderão ser analisadas caso a caso, mas se exige que
a interpretação se manifeste inaceitável, sem qualquer justificativa doutrinária
ou jurisprudencial.
5.4 Os elementos normativos do tipo e as dificuldades hermenêuticas.
Em muitos crimes da Lei no 13.869/2019 o legislador se valeu de elementos
normativos no tipo penal. Embora sejam conceitos bastante controvertidos na
doutrina, normalmente se distinguem os elementos objetivos do tipo penal
dos elementos normativos do tipo. Os elementos objetivos do tipo são
aqueles eminentemente descritivos, em relação aos quais a atividade do
intérprete é de natureza cognitiva, sendo realizada partir de um dado natural,
por meio de um “juízo de realidade”; nos elementos normativos do tipo, o
intérprete deve proceder a uma atividade axiológica, por meio de um “juízo
de valor”,28 que pode ser fundado em elementos sociais, culturais ou
jurídicos.29
Ao empregar um elemento normativo do tipo, o legislador se vale de
expressões por meio das quais qualifica axiologicamente uma ação (divulgar
alguém, sem justa causa…, do art. 153 do CP), um objeto (correspondência
confidencial, do mesmo artigo 153), um meio (trabalho excessivo ou
inadequado, do art. 136, caput, do CP) ou mesmo uma pessoa (mulher
honesta, na redação originária do art. 216 do CP, revogado crime de posse
sexual mediante fraude), antecipado um juízo de valor já no juízo de
adequação típica. Tais expressões têm a função de “alertar para uma exata
valoração do ato e de sua lesividade em confronto com um valor”.30
Logo, a presença de um elemento normativo do tipo penal, de um lado,
amplia a margem de interpretação do julgador, e, de outro lado, gera mais
insegurança no cidadão, já que o preceito incriminador terá reduzida a clareza
do campo de atuar proibido, dificultando a função da norma penal de ser uma
ordenadora de conduta.
Os tipos penais dos crimes de abuso de autoridade apresentam vários
elementos normativos do tipo. Todavia, com se demonstrará, em todos os
casos, o juízo de valor foi inserido para qualificar a conduta vedada, evitando
a criminalização dos casos de zona de penumbra. Logo, não é correta a crítica
generalizada da excessiva vagueza do tipo, na medida em que a função do
elemento normativo do tipo é, exatamente, permitir um juízo axiológico que
reforce a exigência de desvalor da conduta, para que haja adequação típica.
Assim, por exemplo, quando o artigo 9o, em seu caput, exige a manifesta
desconformidade da privação da liberdade, com as hipóteses legais, deixa
claro que não se trata de simples desrespeito à lei, ou mera inobservância de
qualquer exigência legal. Não se trata de simples desconformidade, mas de
desconformidade manifesta, isto é, a inconformidade patente, clara, evidente
ou inconteste. No caso, o elemento normativo antecipa um juízo de valor que
dificulta a adequação típica, em vez de facilitá-la.31
O mesmo se diga, por exemplo, em relação ao delito do art. 25, em que
não caracteriza crime proceder a obtenção de prova por meio ilícito, sendo
necessário que a ilicitude do meio de obtenção de prova seja “manifesta”! A
obtenção de um meio ilícito, mas cuja ilicitude possa gerar dúvidas ou
discussões, estando sujeita a interpretações divergentes, acarretará seu
desentranhamento do processo (CPP, art. 157, caput), mas o procedimento
para a sua obtenção não será considerado crime de abuso de autoridade, pois
este somente se verifica quando o meio seja manifestamente ilícito, como, p.
ex., uma interceptação telefônica sem ordem judicial.
As mesmas premissas valem em relação a outros crimes de abuso de
autoridade, em que o legislador se valeu de elementos normativos como:32
“manifestamente descabida” (art. 10), “injustificadamente” (art. 12, caput;
art. 19, caput, art. 31, caput e art. 37),33 “sem motivo justo e
excepcionalíssimo” (art. 12, par. ún., IV); “sem justa causa” (art. 20,
caput);34 “prazo razoável” (art. 20, par. ún.), “manifestamente ilícito” (art.
25, caput), “demasiada e injustificadamente” (art. 37). Em suma, tais
elementos normativos dificultam a caracterização dos tipos penais da Lei no
13.869/2019, não sendo qualquer desrespeito à lei, ou inobservância de
formalidade ou hipóteses legais que geram a responsabilização do agente
público por abuso de autoridade.
6. A divergência na valoração da prova: inexistência do “crime
epistemológico”. A mesma salvaguarda negativa que existe em relação à
interpretação da lei, isto é, quanto ao juízo de direito, também foi
estabelecida em relação à avaliação das provas. A Lei no 13.869/2019,
igualmente no § 2o do artigo 1o, estabelece que “A divergência na …
avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”. Se em
relação à intepretação das “questões de direito” não há crime de
hermenêutica, em relação à valoração das provas nas “questões de fato” não
existe o “crime epistemológico”.
Para tanto, é preciso compreender que o processo de valoração da prova
não é um processo livre de qualquer método. Para quem nega toda e qualquer
possibilidade de um conhecimento dos fatos, ancorado na realidade, ficará
difícil justificar essa salvaguarda negativa, que perderá todo o sentido.
Em sistemas que adotem um conceito de verdade como convencimento
subjetivo, íntima convicção ou qualquer outra variável meramente
subjetivista, nenhum juiz nunca errará na valoração da prova. Qualquer juiz
poderá decidir qualquer coisa como resultado da valoração da prova. O juiz
torna-se um sujeito privilegiado, e o resultado do processo quanto ao juízo de
fato decorre apenas de uma verdade intimamente atingida, quase que em um
ato de autorrevelação, o que caracteriza, segundo Carrara, uma “convicção
autocrática”.35 O juiz nunca terá errado, na medida em que “se convenceu”
da verdade do enunciado fático. Eventual julgamento e o provimento de
recurso contra essa sentença apenas indicará que os julgadores em segundo
grau “se convenceram” em sentido diverso. Ambos estarão, contudo,
subjetivamente corretos. Logo, o recurso deixará de ser um mecanismo de
controle, para ser apenas a possibilidade de um segundo convencimento,
igualmente correto, em sentido oposto. E o juízo de prova se resumirá a
convencer o julgador que, na hierarquia judiciária, seja o último a poder
realizar uma decisão sobre o juízo de fato.
Não sendo possível trabalhar com essas premissas, mesmo no âmbito
limitado desses comentários, é preciso estabelecer algumas noções gerais
sobre prova, conhecimento e verdade, para dar um sentido operacionalmente
válido ao § 2o do artigo 1o da Lei no 13.869/2019, que estabelece não
configurar crime de abuso de autoridade “a divergência na … avaliação de
fatos e provas”.
Não é necessário fazer um estudo filosófico aprofundado para se
constatar que, do ponto de vista prático, uma teoria cética não tem qualquer
utilidade no campo probatório.36 Um juiz cético se torna um não juiz!37
Isso não significa, por outro lado, que ao pressupor que o conhecimento é
possível se deva aceitá-lo como um homem ingênuo que abraça o
dogmatismo. É possível admitir o conhecimento da verdade, mas realizando
um exame crítico das bases do conhecimento humano, de seus pressupostos e
condições gerais.38
Parte-se da premissa de que verdade deve ser concebida segundo a teoria
da correspondência.39 Assim, o juízo de fato no processo penal implica uma
relação de correspondência entre linguagem e mundo, entre a proposição que
descreve o que ocorreu e a realidade sobre a qual essa se refere, isto é, o
“passado a ser reconstruído”.40 Ou seja, verificar se “é verdadeira a afirmação
de que o imputado praticou a conduta, enquanto essa corresponde a fatos da
realidade”.41
Para o processo, a realidade deve ser o critério de verdade. É necessário
que haja uma relação de correspondência entre uma entidade linguística (o
enunciado que contém o fato a ser provado) e uma entidade extralinguística
(o fato real objeto do julgamento). E ainda que esse fato do passado somente
seja acessível por meio inferencial, com diz Ferrua, “se o significado de ser
verdade para o enunciado histórico está na correspondência aos fatos, o
método de verificação, de acertamento da verdade, está na congruência da
proposição a ser provada com as premissas probatórias, rectius, com as
proposições que descrevem as provas legitimamente produzidas”.42
A realidade externa existe e constitui o padrão de medida, o critério de
referência que determina a verdade ou a falsidade dos enunciados,43 no caso,
da imputação feita no processo penal.
Não se pode, porém, confundir “verdade” com “conhecimento”. Como
explica Tuzet, é possível haver verdades sobre as quais nada sabemos, posto
que a verdade de algo não depende de nosso conhecimento. Que alguma
coisa seja verdadeira ou falsa não depende do que eu penso ou qualquer outra
pessoa pensa a respeito. O que importa é o que ocorreu, e o que ocorreu
independe do estado epistemológico do sujeito cognoscente.
De qualquer forma, mesmo diante da premissa epistemológica que aceita
um conceito de verdade como correspondência, é preciso ter a plena
consciência de que o conhecimento dessa identidade absoluta é inatingível. O
conhecimento da “verdade”, por meio do processo, até mesmo por força de
limitações legais decorrentes das regras sobre a admissão, produção e
valoração da prova, não permitirá que se obtenha uma certeza absoluta, ou o
conhecimento absoluto, pleno ou completo.
Ainda assim, a verdade traduz-se em um valor que legitima a atividade
jurisdicional, não se podendo considerar justa uma sentença que não tenha
sido precedida de um processo estruturado segundo regras que possibilitem
uma correta verificação dos fatos. Justiça e verdade são, portanto, noções
complementares e, se assim não fosse, seria melhor que o processo fosse
decidido pela sorte, jogando-se dados.
Diante da limitação do conhecimento da verdade, a relação entre verdade
e prova não é uma relação de identidade, mas uma relação teleológica.
Valemo-nos, nesse ponto, da explicação de Ferrer Beltrán sobre como deve
ser entendido o enunciado “p está provado”. Não significa nem que “p é
verdadeiro”, o que seria uma relação conceitual, nem que “p foi estabelecido
pelo juiz”. Neste último caso, sem dúvida o convencimento psicológico do
juiz é uma condição necessária, mas não suficiente, à qual deve se acrescentar
a aplicação, na formação do convencimento do juiz, de critérios de
racionalidade e regras da lógica.44 Assim, o enunciado “p está provado” deve
ser entendido como sinônimo de “há elementos de prova suficientes a favor
de p”. Isso não quer dizer que a proposição, porque está provada, seja
verdadeira. Uma hipótese fática pode resultar provada ainda que seja falsa.45
Assim, afirmar que “ p está provado” denota que este enunciado será
verdadeiro quando se dispuser de elementos de prova suficientes a favor de p,
e falso quando não se dispuser de elementos de prova a favor de p ou quando
eles forem insuficientes.46 Todavia, isso não exclui que o enunciado possa ser
considerado verdadeiro, porque confirmado por suficientes elementos de
prova, embora não corresponda, efetivamente, à realidade dos fatos.
Na dinâmica probatória, concluída a formação do material probatório que
que será valorado, no modelo do livre convencimento o juiz é livre para
decidir, mas essa liberdade não pode ser tomada como sinônimo de
arbitrariedade. Primeiro, o juiz deverá decidir levando em conta somente as
provas existentes no processo (quod non est in actis non est in mundus).
Além disso, deve valorar as provas de forma lógica e racional, confrontando
umas com as outras, segundo as regras de lógica e experiência. Todo o seu
convencimento deverá ser motivado (CR, art. 93, IX), razão pela qual
também é denominado sistema do livre convencimento motivado.
Nessa linha de buscar conter os abusos do livre convencimento e,
principalmente, para garantir o princípio do contraditório, enquanto elemento
formador da prova judicial, é que deve ser lido o caput do art. 155 do CPP,
que determina que o “ O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da
prova …”. Essa liberdade, contudo, não significa uma autorização para
decidir de acordo com uma convicção pessoal ou íntima.
Uma epistemologia garantista, como explica Ferrajoli, tem como uma das
suas condições de efetividade um cognitivismo processual na determinação
do fato criminoso, sendo assegurado um princípio de estrita
jurisdicionalidade que requer duas condições: verificabilidade ou
falsificabilidade das hipóteses acusatórias, em razão do seu caráter assertivo,
e a sua prova empírica, mediante um procedimento que permita que seja sua
verificação, sua refutação.47
Num modelo racional de valoração da prova, não é o legislador, mas a
epistemologia, que indicará o melhor método de valoração.48 O livre
convencimento judicial, enquanto princípio processual, necessita, nas
palavras de Taruffo, de uma heterointegração, que se dará por meio do
“emprego de princípios da teoria geral do conhecimento elaborados no plano
filosófico”.49 Com isso, além de se saber que o juiz decidirá livre do
tarifamento da prova legal, também se poderá saber como o juiz decidirá. O
problema é identificar essas regras epistemológicas de valoração, que se
encontram fora e além da disciplina dos códigos de processo penal.50
O juiz deverá analisar todas as provas produzidas para verificar se a
hipótese posta em julgamento com a formulação da acusação foi ou não
provada. Também deverá verificar se hipótese fáticas diversas ou contrárias,
geralmente alegadas pela defesa, encontram suporte na prova dos autos. Tal
operação consiste em julgar o apoio empírico que um conjunto de provas dá a
uma hipótese fática, de acordo com critérios gerais da lógica e da
racionalidade.51 Que a decisão deve ser racional, isto é, fundada em um juízo
da razão, é um princípio fundamental ético-jurídico do processo penal
moderno.52
Em suma, de acordo com o § 2o do artigo 1o da Lei no 13.869/2019, é
correto ao estabelecer que “a divergência na … avaliação de fatos e provas
não configura abuso de autoridade” somente tem sentido num modelo que
trabalhe com a possibilidade de se conhecer – ainda que com limitações – a
verdade dos fatos, a partir de uma perspectiva correspondentista. Mais do que
isso, desde que, para tanto, os meios de prova sejam o instrumento para essa
verificação da relação entre a proposição fática a ser provada e a realidade.
Por fim, exige-se que a prova seja valorada racionalmente, segundo padrões
aceitos e acessíveis a um padrão comum de conhecimento, que possa ser
intersubjetivamente controlável.
7. Limites da atividade de valoração da prova. A certeza judicial não
pode ser um mero “estado de ânimo”, formado a partir da impressão que cada
meio de prova produz no espírito do juiz, mas decorrer de uma atividade
racional, que permita ao juiz escolher, entre enunciados fáticos diversos, qual
é preferível a outro, com base no conjunto de provas que dê suporte a cada
um deles, e que tenham sido valorados a partir de regras racionais buscadas
na epistemologia. O resultado desse juízo fático, porque fundado na razão,
será controlável intersubjetivamente, especialmente pela fundamentação da
sentença, em que o julgador deverá justificar suas escolhas.
A motivação tem um valor fundamental como garantia cognitiva do
julgamento penal, que quanto ao juízo de fato assegura a vinculação do
julgamento à prova.53 A motivação é um verdadeiro limite à liberdade do juiz
e uma verdadeira garantia contra o arbítrio.54 Os métodos racionais de
decisão, enquanto acessíveis aos concidadãos, posto que fundados em
padrões de conhecimento compartilhados em uma sociedade, num
determinado período histórico, são os mais aptos a tal mister.55 Assim, a
motivação tem uma função de controle que se projeta na etapa anterior, de
valoração da prova, evitando que seja contaminada por “certezas subjetivas”
do juiz, pois essas não poderão ser, posteriormente, justificadas no contexto
seguinte.56 Em outras palavras, a necessidade de apresentar uma
argumentação racional para justificar a sua decisão obriga o juiz a decidir
segundo métodos racionais.57
Realizada a valoração da prova e proferida a decisão, a possibilidade de
recurso para o controle do juízo de fato faz com que o direito ao duplo grau
seja um potente mecanismo epistêmico que favorece um correto juízo de fato
como condição para a decisão justa. Será possível, portanto, uma verificação
a posteriore das escolhas racionais do juiz, quanto ao juízo de fato,
verificando se tais escolhas são ou não racionalmente aceitáveis. Será
possível, até mesmo, em casos difíceis, se considerar racionalmente
aceitáveis duas valorações que cheguem a resultados distintos.
Por outro lado, será perfeitamente possível constatar que houve
valorações que são aberrantes, racionalmente inaceitáveis, ou mesmo
fundadas em critérios irracionais, fruto de preconceitos ou estereótipos
injustificáveis. Essa atividade, inclusive, os tribunais estão acostumados a
realizar – e com maior dificuldade, por não disporem de fundamentação –
quando dão provimento a uma apelação, tirada contra uma sentença do
tribunal do júri, por considerar que a decisão do conselho de sentença foi
“manifestamente contrária à prova dos autos” (CPP, art. 593, III, d).
Ressalte-se que não se está a defender que toda em qualquer decisão em
que o resultado do juízo de fato seja considerado manifestamente contrário à
prova dos autos será, por si só, uma hipótese de crime de abuso de
autoridade. Primeiro, porque não há um crime geral de abuso de autoridade, o
que somente poderia se verificar, no plano da tipicidade, em relação a
algumas decisões específicas. Segundo porque, mesmo em tais casos, para
que se configure a adequação típica, mesmo que se possa afastar a hipótese
de salvaguarda negativa do § 2o do artigo 1o da Lei no 13.869/2019, será
necessário, também, superar a salvaguarda positiva, exigindo-se que tal erro
crasso esteja inspirado por uma das específicas finalidade de agir
estabelecidas no § 1o mesmo artigo.
Por exemplo, num caso em que que o álibi de um investigado esteja
cabalmente demonstrado, por provas documentais e testemunhais, se mesmo
assim um juiz, no juízo de admissibilidade da acusação, receber a denúncia
contra esse acusado, a decisão será insofismavelmente equivocada do ponto
de vista da valoração da prova quanto à justa causa para a ação penal. Será,
pois, quanto ao juízo de fato, uma decisão manifestamente contrária à prova
dos autos. Isso, porém, poderá ser apenas um erro passível de correção
judicial, por meio de habeas corpus. Por outro lado, se esse equívoco estiver
animado por uma especial finalidade de prejudicar outrem, porque o juiz, por
exemplo, quer destruir a imagem pública do acusado, por discordar de suas
posições político-ideológicas, estará configurado o crime do art. 30 da Lei no
13.869/2019.

___________________
1. Juarez Tavares, Fundamentos de Teoria do Delito, Florianópolis: Tirant Lo Blanch,
2018, p. 308.
2. Damásio E. de Jesus, Do abuso de autoridade. Justitia 59/48. De modo semelhante, para
Guilherme de Souza Nucci (Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 6. ed. São
Paulo: RT, 2012, v. I, p. 34, n. 12), “exige-se o elemento subjetivo específico tácito,
consistente na vontade de abusar do poder que o agente detém em nome do Estado”.
3. Gilberto Passos de Freitas e Vladimir Passos de Freitas, Abuso de Autoridade: notas de
legislação, doutrina e jurisprudência à Lei 4.898, de 09.12.1965. 9. ed. São Paulo: RT,
2001, p. 30.
4. Vincenzo Cavallo, La sentenza penale, Napoli: Jovene, 1936, p. 296.
5. Michele Taruffo, La prova dei fatti giuridici. Milano: Giuffrè, 1992, p. 136.
6. Ibidem, p. 136.
7. Ibidem, p. 140.
8. Como explica Fernando de Almeida Pedroso (Prova penal: doutrina e jurisprudência. 2.
ed. São Paulo: Ed. RT, 2005, p. 103), ao destacar que, “não obstante árdua e escabrosa
que ressurge a exploratio mentis, certo é que o dolo que anima a ação do sujeito ativo
encontra elucidação e esclarecimento, via de regra, por circunstâncias e elementos
fáticos de índole objetiva. Dessa maneira, e de rigor, o elemento subjetivo do crime é
denotado pelas circunstâncias objetivas que circundam o envolver do episódio”.
9. Eugenio Florian, Delle prove penali. Milano: Francesco Vallardi, 1921, v. I, p. 382.
10. Como bem observa Miguel Reale Júnior (Parte geral do Código Penal: nova
interpretação. São Paulo: RT, 1988. p. 57), “o dolo se infere de todas as
circunstâncias objetivas conhecidas, com a passagem do extrínseco conhecido para o
intrínseco desconhecido”. Para Florian (Delle prove penali.., v. I, p. 382), “certamente
trattasi sempre di valutare fatti esterni, circostanze esteriori, modi di attività e di
comportamento”.
11. Taruffo, La prova…, p. 141.
12. Giulio Illuminati, La presunzione d’innocenza dell’imputato. Bologna: Zanichelli,
1979, p. 139, nota 146.
13. Na jurisprudência: “ainda que, na maioria da vezes, conforme dicção da doutrina, o
dolo venha a ser demonstrado com o auxílio do raciocínio, tal não se confunde com
mera presunção que possa excepcionar o disposto no art. 156 do CPP” (STJ, REsp
259.504, 5.a Turma, rel. Felix Fischer, j. 19.02.2002, v.u.).
14. Nesse sentido: Illuminati, La presunzione…, p. 139, nota 146; Florian, Delle prove
penali…, v. I, p. 380.
15. Cf. Alexandra Vilela, Considerações acerca da presunção de inocência em direito
processual penal. Coimbra: Coimbra Ed., 2000, p. 72.
16. Os Grandes Julgamentos do Supremo Tribunal Federal, Rio de Janeiro: Ed. Civilização
Brasileira, 1964, v. I, p. 69.
17. O arrazoado pode ser consultado em: Novum crimen: o crime de hermenêutica. In
Obras Completas de Rui Barbosa, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, v.
XXVIII 1901, t. III, 1979, p. 227-286, especialmente, p. 243.
18. Denunciado, condenado e depois inocentado, por duas vezes, percebeu a inviabilidade
de continuar na magistratura. Alcides de Mendonça Lima abandou a função de juiz de
direito e estabeleceu-se em uma banca de advocacia.
19. Roberto Romboli e Saulle Panizza, verbete “Ordinamento giudiziario”, Digesto delle
Discipline Pubblicistiche. Torino: UTET, v. X, 1995, p. 52.
20. Piero Calamandrei, Processo e democrazia. Opere Giuridiche. Napoli: Morano, 1965,
v. I., p. 606.
21. A advertência é de Sergio Lariccia, L’istituto della rimessione di procedimenti per
gravi motivi di ordine pubblico o per legittimo sospetto e la garanzia costituzionale
del giudice naturale precostituito per legge, in Rivista Italiana di Diritto e Procedura
Penale, 1966, p. 250.
22. Os limites da interpretação. Trad. de Pérola de Carvalho. 2. ed. São Paulo: Perspectiva,
2004, p. XIV.
23. O § 2o do art. 102 da Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional no
45/204, estabelece que: “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo
Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias
de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante,
relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta
e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”. O parágrafo único do art. 28 da
Lei n. 9.868/1999 estabelece que: “A declaração de constitucionalidade ou de
inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a
declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra
todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à
Administração Pública federal, estadual e municipal”.
24. Isso, evidentemente, não impede que o juiz tenha um ponto de vista pessoal diverso.
Que sua interpretação sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma
divirja da dada pelo STF e que, inclusive, assim o faça em sua decisão, mas não
poderá aplicá-la ao caso concreto. Caber-lhe-á ressalvar seu ponto de vista pessoal e
aplicar a norma segundo a interpretação vinculante dada pelo STF.
25. O caput do art. 2o da Lei no 11.417/2006 estabelece que: “O Supremo Tribunal Federal
poderá, de ofício ou por provocação, após reiteradas decisões sobre matéria
constitucional, editar enunciado de súmula que, a partir de sua publicação na
imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder
Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e
municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma prevista
nesta Lei”. Por sua vez, o § 1o do mesmo artigo dispõe que: “O enunciado da súmula
terá por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas,
acerca das quais haja, entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração
pública, controvérsia atual que acarrete grave insegurança jurídica e relevante
multiplicação de processos sobre idêntica questão”.
26. O art. 926 do CPC prevê que: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e
mantê-la estável, íntegra e coerente”. E, com base no artigo 927 será possível
considerar, até mesmo um limite mais amplo quanto aos casos de vinculação
interpretativa dos juízes: “Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I – as decisões
do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os
enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de
competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos
extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das súmulas do Supremo
Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em
matéria infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos
quais estiverem vinculados”. Nos incidentes de assunção de competência, a previsão
de vinculação para os órgãos fracionários consta do § 3o do art. 947 do CPC: “§ 3o O
acórdão proferido em assunção de competência vinculará todos os juízes e órgãos
fracionários, exceto se houver revisão de tese”. A vinculação do incidente de
resolução de demandas repetitivas consta do art. 985 do CPC: “Julgado o incidente, a
tese jurídica será aplicada: I – a todos os processos individuais ou coletivos que
versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do
respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do
respectivo Estado ou região; II – aos casos futuros que versem idêntica questão de
direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo revisão
na forma do art. 986”.
27. Com acerto, Rogério Greco e Rogério Sanches Cunha (Abuso de Autoridade. Lei
13.869/2019. Comentada Artigo por Artigo. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019, p. 17)
assim se manifestam: “Ponderamos, porém, que divergências de interpretação ou
avaliação, quando patentemente teratológicas, absolutamente anormais, absurdas,
assombrosas, não poderão socorrer a autoridade”.
28. Uma análise da evolução do conceito de elementos normativos do tipo pode ser
encontrada em: Frederico Horta, Elementos normativos das leis penais e conteúdo
intelectual do dolo. Da natureza do erro sobre o dever extrapenal em branco. São
Paulo: Marcial Pons, 2016, p. 27-83.
29. Tavares, Fundamentos de Teoria do Delito…, p. 182.
30. Miguel Reale Jr., Instituições de Direito Penal. Parte Geral. 4. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2012, p. 142.
31. O mesmo raciocínio vale em relação à figura equiparada do inciso I do parágrafo único
do artigo 9o, que considera crime deixar de relaxar prisão em flagrante
manifestamente ilegal. No caso, se houver divergência interpretativa sobre a
ilegalidade da prisão, o não relaxamento não configurará conduta típica.
32. O elemento normativo “exacerbadamente” e do crime do art. 36 será analisado nos
comentários ao respectivo artigo.
33. Tal elemento normativo já era utilizado pelo CP, ao tipificar figura equiparada ao
abandono material, o parágrafo único do art. 244 do CP: “Nas mesmas penas incide
quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono
injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente
acordada, fixada ou majorada”.
34. O elemento normativo “sem justa causa” aparece em inúmeros tipos do Código Penal:
divulgação de segredo, seja na figura da cabeça do artigo 153, seja na figura do § 1o-
A, do mesmo dispositivo, acrescido pela Lei 9.983/2000, que trata da violação de
segredo em dispositivo informático; violação de segredo profissional (CP, art. 154);
abandono material (CP, art. 244); abandono intelectual (CP, art. 246); induzimento a
fuga, entrega arbitrária ou sonegação de incapazes (CP, art. 248). Por outro lado, cabe
observar que no delito do art. 30 a expressão “justa causa fundamentada” tem sentido
diverso, não de puro juízo de valor, mas de elemento normativo consistente em
conceito jurídico, que remete ao requisito para a admissibilidade da denúncia ou
queixa, previsto no inciso III do art. 395 do CPP, normalmente identificado com a
presença de prova da existência do crime e indícios de autoria.
35. Francesco Carrara, Programa de derecho criminal. Trad. J. J. Ortega Torres e J.
Guerrero Leconte. Bogotá: Temis, 1957. v. II, p. 233
36. O ceticismo radical, como bem destaca José Carlos Barbosa Moreira (Processo civil e
processo penal: mão e contramão? Temas de direito processual – sétima série. São
Paulo: Saraiva, 2001, p. 206), com certa dose de ironia, “conduz à total
desvalorização da prova no processo e autoriza a conclusão de que, sendo inúteis
quaisquer esforços para reconstruir os acontecimentos, é absurdo desperdiçar nessa vã
empresa tempo, dinheiro e energias: mais vale decidir nos dados a sorte do pleito”.
Mesmo no caso do “realismo cético”, a convicção de que não é possível alcançar um
‘conhecimento certo da realidade” o torna imprestável para fins de uma análise de
epistemologia judiciária.
37. Cristina Romanò, Processo alla verità. In: Vincenzo Garofoli; Antonio Incampo, Verità
e processo penale. Milano: Giuffrè, 2012, p. 150.
38. Johannes Hessen, Teoria do conhecimento. Trad. António Correia. 8. ed. Coimbra:
Arménio Amado, 1987, p. 57.
39. Nesse sentido: Taruffo, La prova dei fatti giuridici…, p. 143; Giovanni Tuzet, Filosofia
della prova giuridica. 2. ed. Torino: G. Giappichelli Ed., 2016, p. 71; Jordi Ferrer
Beltrán, La valoración racional de la prueba. Barcelona: Marcial Pons, 2007, p. 30,
nota 12; Marina Gascón Abellán, Los hechos en el derecho: bases argumentales de la
prueba. Madrid: Marcial Pons, 1999, p. 121.
40. Paolo Ferrua, Il libero convincimento del giudice penale: i limiti legali. In. Il libero
convincimento del giudice penale. Vecchie e nuove esperienze. Milano: Giuffrè,
2004, p. 64. No mesmo sentido: Tuzet (Filosofia della prova giuridica…, p. 71)
afirma adotar uma interpretação correspondentista, que parece ser a mais adequada no
contexto processual, considerando a correspondência com uma relação entre
linguagem e mundo, entre enunciados (com entidade linguística) e fatos (como
entidade extralinguística): “Há verdade quando um enunciado corresponde ao fato
sobre o qual verte”.
41. Paolo Ferrua, Il ‘giusto processo’. 2. ed. Bologna: Zanichelli, 2012, p. 71.
42. Ferrua, Il ‘giusto processo’…, p. 71.
43. Michele Taruffo, La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Bari: Laterza,
2009, p. 78.
44. Ferrer Beltrán, Prova e verità…, p. 69.
45. Ferrer Beltrán, Prova e verità…, p. 39.
46. Ferrer Beltrán, Prova e verità…, p. 40.
47. Luigi Ferrajoli, Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale. Roma: Laterza, 1998,
p. 8.
48. Ferrer Beltrán, La valoración racional de la prueba…, p. 68.
49. Michele Taruffo Libero convincimento del giudice: I) diritto processuale civile.
Enciclopedia Giuridica Treccani. Roma: Treccani, v. XVIII, 1990, p. 2.
50. Para uma análise aprofundada do tema, cf.: Gustavo Henrique Badaró, Epistemologia
Judiciária e Prova Penal. São Paulo: RT, 2019, p. 224-227, em que se defende que o
método de valoração racional da prova deve ser fundado na probabilidade indutiva, de
tipo baconiano, como proposto por Jonatan Cohen.
51. Taruffo, La prova dei fatti giuridici…, p. 429.
52. Francesco Mauro Iacoviello, Motivazione della sentenza penale. Enciclopedia del
diritto. Aggiornamento. Milano: Giuffrè. v. IV. p. 750-751.
53. Nesse sentido: Ferrajoli, Diritto e ragione…, p. 640; Antonio Magalhães Gomes Filho,
A motivação das decisões penais. São Paulo: Ed. RT, 2001, p. 97.
54. Francesco Mauro Iacoviello, I criteri di valutazione della prova. In: Mario Bessone;
Ricardo Guastini (Coords.). La regola del caso. Materiali sul ragionamento giuridico.
5. Padova: Cedam, 1995, p. 396.
55. Angelo Alessandro Sammarco (Metodo probatorio e modelli di ragionamento nel
processo penale. Milano: Giuffrè, 2001, p. 15) observa que, como a lógica permite a
comunicação entre os seres humanos, as razões que justificam os provimentos
judiciais devem ser de natureza lógico-jurídica, de modo a se tornar compreensível a
todos os cidadãos. Se as decisões forem fundadas em razões objetiváveis, serão
suscetíveis, como afirma Andrés Perfecto Ibánez (A Argumentação Probatória e sua
Expressão na Sentença. Trad. Lédio Rosa de Andrade. In: Valoração da prova e
sentença penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 47) de “verbalização e dignas
de serem tidas como intersubjetivamente válidas”. Aliás, Piero Calamandrei (Proceso
y democracia. Trad. H. Fix Zamundio. Buenos Aires: EJEA, 1960, p. 115) já
destacava que “a motivação constitui o signo mais importante e típico da
‘racionalização’ da função judicial”.
56. Magalhães Gomes Filho, A motivação das decisões penais…, p. 148. No mesmo
sentido: Tuzet, Filosofia della prova giuridica…, p. 16; Iacoviello, I criteri di
valutazione della prova…, p. 396.
57. Nesse sentido: Magalhães Gomes Filho, A motivação das decisões penais…, p. 114-
115; Giulio Ubertis, Profili di epistemologia giudiziaria. Milano: Giuffrè, 2015, p. 27.
Capítulo II
Dos Sujeitos do Crime

GUSTAVO BADARÓ

Art. 2o É sujeito ativo do crime de abuso de autoridade


qualquer agente público, servidor ou não, da
administração direta, indireta ou fundacional de qualquer
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal,
dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não
se limitando a:
I – servidores públicos e militares ou pessoas a eles
equiparadas;
II – membros do Poder Legislativo;
III – membros do Poder Executivo;
IV – membros do Poder Judiciário;
V – membros do Ministério Público;
VI – membros dos tribunais ou conselhos de contas.
Parágrafo único. Reputa-se agente público, para os efeitos
desta Lei, todo aquele que exerce, ainda que
transitoriamente ou sem remuneração, por eleição,
nomeação, designação, contratação ou qualquer outra
forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego
ou função em órgão ou entidade abrangidos pelo
caputdeste artigo.

BIBLIOGRAFIA:
BECHARA, Fábio Ramazzini. Legislação Penal Especial. São Paulo: Saraiva, 2006;
CAPEZ, Fernando. Legislação Penal Especial, 6. ed. São Paulo: Ed. Damásio de
Jesus, 2007, v. 1; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 20. ed.
São Paulo: Atlas, 2014; FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de.
Abuso de Autoridade: notas de legislação, doutrina e jurisprudência à Lei 4.898, de
09.12.1965. 9. ed. São Paulo: RT, 2001; GRECO, Rogério; CUNHA, Rogério
Sanches. Abuso de Autoridade. Lei 13.869/2019. Comentada Artigo por Artigo.
Salvador: Ed. JusPodivm, 2019; MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno.
17. ed. São Paulo: Atlas, 2013; MEIRELES, Helly Lopes. Direito administrativo
brasileiro, 25. ed. São Paulo, Malheiros, 2000; MORAES, Alexandre de; SAMNIO,
Gianpaolo Poggio. Legislação Penal Especial. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2008;
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Leis Especiais. Aspectos Penais. 3. ed. São Paulo: EUD,
1992; NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 6.
ed. São Paulo: Ed. RT, 2012, v. I; PINHEIRO, Igor Pereira; CAVALCANTE, André
Clarck Nunes; BRANCO, Emerson Castelo. Nova Lei do Abuso de Autoridade.
Comentada artigo por artigo. Leme: JH Mizuno, 2020.

COMENTÁRIOS:
1. Noções Gerais. O caput do artigo 2o indica, genericamente, que os
crimes de abuso de autoridade podem ser cometidos por qualquer autoridade
ou seus agentes, sendo ele “servidor ou não, da administração direta, indireta
ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal, dos Municípios e de Território”. E, para que não paire qualquer
dúvida sobre se tratar de uma noção amplíssima, os incisos exemplificam
com: “I – servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas; II –
membros do Poder Legislativo; III – membros do Poder Executivo; IV –
membros do Poder Judiciário; V – membros do Ministério Público; VI –
membros dos tribunais ou conselhos de contas”.
Todavia, ao se analisar os tipos penais da Lei no 13.869/2019, o que se
observa é que há muitos crimes cujas condutas vedadas são passíveis de
serem praticadas, preponderantemente, por Magistrados, Membros do
Ministério Públicos, Autoridades Policiais, policiais militares e carcereiros.
Por outro lado, não há figuras criminais específicas a serem praticadas,
por exemplo, por membros dos Poderes Legislativos, como a propositura de
Projetos de Lei manifestamente inconstitucional; ou a proposição de emendas
em projetos de leis para atender a interesses próprios.
Também não há figuras criminais voltadas para membros do Poder
Executivo, com exceção daqueles que atuam nas funções de segurança
pública, investigação criminal ou penitenciária, como já destacado.
2. Agentes públicos. Agente público é toda pessoa física que presta
serviços ao Estado e às pessoas jurídicas da Administração Indireta, podendo
ser dividido em quatro categorias: (i) agentes políticos; (ii) servidores
públicos; (iii) militares; (iv) particulares em colaboração com o Poder
Público.1
A conceituação dos “agentes políticos” não é uniforme na doutrina
administrativista. Há uma concepção mais restrita. Celso Antônio Bandeira
de Mello assim os define: “Agentes políticos são os titulares dos cargos
estruturais à organização política do País, ou seja, ocupantes dos que
integram o arcabouço constitucional do Estado, o esquema fundamental do
Poder. Daí que se constituem nos formadores da vontade superior do Estado.
São agentes políticos apenas o Presidente da República, os Govenadores,
Prefeitos e respectivos vices, os auxiliares imediatos dos Chefes de
Executivo, isto é, Ministros e Secretários das diversas pastas, bem como
Senadores, Deputados federais e estaduais e os vereadores”.2 E acrescenta: “o
vínculo que tais agentes entretêm com o Estado não é de natureza
profissional, mas de natureza política”.3 Ou seja, o agente político liga-se ao
governo, no aspecto subjetivo, e à função política, no aspecto objetivo,
exercendo suas atividades por meio de mandato para o qual são eleitos, com
exceção dos ministros e secretários, que são de livre escolha do Chefe do
Poder Executivo, providos nos cargos mediante nomeação.4
Noutro sentido, trazendo definição mais ampla, Hely Lopes Meireles
considera que “os agentes políticos exercem funções governamentais,
judiciais e quase judiciais, elaborando normas legais, conduzindo os negócios
públicos, decidindo e atuando com independência nos assuntos de sua
competência. São as autoridades públicas supremas do Governo e da
Administração na área de sua atuação, pois não estão hierarquizadas,
sujeitando-se apenas aos graus e limites constitucionais e legais de
jurisdição”.5 E exemplifica: “Nesta categoria encontram-se os Chefes de
Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos) e seus
auxiliares imediatos (Ministros e Secretários de Estado e de Municípios); os
membros das Corporações Legislativas (Senadores, Deputados e
Vereadores); os membros do Poder Judiciário (Magistrados em geral); os
membros do Ministério Público (Procuradores da República e da Justiça,
Promotores e Curadores Públicos); os membros dos Tribunais de Contas
(Ministros e Conselheiros); os representantes diplomáticos e demais
autoridades que atuem com independência funcional no desempenho de
atribuições governamentais, judiciais ou quase-judiciais, estranhas aos
quadros dos serviços públicos”.6
De qualquer modo, numa ou noutra acepção, todas essas figuras estão
incluídas no rol dos incisos do caput do art. 2.o da Lei no 13.869/2019.
Os servidores públicos,7 em sentido amplo, compreendem as pessoas
físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração
indireta, com vínculo empregatício e remuneração paga pelos cofres públicos;
compreendem os servidores estatutários, os empregados públicos e os
servidores temporários.8 Os servidores públicos estatutários (anteriormente
denominados funcionários públicos) são os ocupantes de cargo público na
administração, nas autarquias e fundações, sujeitos ao regime estatutário. Os
empregados públicos são os ocupantes de emprego público, contratados sob o
regime da legislação trabalhista. Por fim, os servidores temporários são
contratados por tempo determinado, para atender a necessidades temporárias
de excepcional interesse público, e exercem função pública, embora não
estejam vinculados a cargo ou emprego público.
Os militares são as pessoas físicas que prestam serviços às Forças
Armadas – Marinha, Exército e Aeronáutica – (CR, art. 142, caput, e § 3o) e
às Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, Distrito
Federal e Territórios, com vínculo estatutário e sujeito a regime jurídico
próprio (art. 42) também estando incluídos entre os agentes que podem
cometer crime de abuso de autoridade (art. 2, caput, I).
Por fim, segundo Di Pietro, os particulares em colaboração com o Poder
Público são as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado, sem vínculo
empregatício, com ou sem remuneração, podendo fazer a título de delegação
do Poder Público, ou mediante requisição, nomeação ou designação para o
exercício de funções públicas relevantes e os gestores de negócios.9 Entre
estes, somente os particulares que exercem funções públicas por delegação,
mediante requisição, nomeação ou designação, como é o caso dos jurados, os
convocados para prestar serviço militar ou eleitoral obrigatório, poderão
cometer crimes de abuso de autoridade.
Numa outra acepção, é possível distinguir as autoridades públicas e os
agentes das autoridades ou, simplesmente, agentes públicos. “Autoridades”
são as pessoas físicas que detêm poder de mando ou de império,10 como um
Prefeito Municipal, ou Deputado Federal, um Juiz de Direito ou um Delegado
de Polícia. Têm, portanto, o poder de determinar, de subordinar e de fazer
obedecer.11 Por outro lado, os agentes de autoridade são aqueles que exercem
cargo ou função pública subordinados direta ou indiretamente a uma
autoridade. Agem, então, por determinação direta ou indireta da autoridade.
Razão pela qual são denominados “agentes públicos”.
Mais complexa é a questão de saber se uma autoridade ou agente público
pratica um ato tipificado como crime pela Lei no 13.869/2019, quando esteja
fora do exercício de suas funções, mas invocando tal condição para praticar o
ato, se seria possível configurar um de abuso de autoridade.12
Evidente que não basta ser autoridade ou agente público, sendo
necessário, também, para a caracterização do crime de abuso de autoridade,
que haja uma relação entre a atividade ou função por ela exercida e o ato que
represente um abuso de tal poder. Se o ato praticado não tiver qualquer
relação com a atividade por ela exercida, não haverá crime de abuso de
autoridade.
3. Rol exemplificativo. O dispositivo traz um rol exemplificativo, como
deixa claro o caput, na expressão: “mas não se limitando”. É possível
considerar, por exemplo, que os Defensores Públicos podem ser incluídos
entre os agentes públicos. Os jurados, integrantes do conselho de sentença do
Tribunal do Júri, também poderão ser incluídos no conceito amplo de agentes
públicos por exercerem, transitoriamente e sem remuneração, e investidos por
sorteio função jurisdicional.
4. Agente público, cargo e função. Segundo Hely Lopes Meirelles, os
agentes públicos são “todas as pessoas físicas incumbidas, definitiva ou
transitoriamente, do exercício de alguma função estatal. Os agentes
normalmente desempenham funções do órgão, distribuídas entre os cargos de
que são titulares, mas excepcionalmente podem exercer funções sem cargo. A
regra é atribuição de funções múltiplas e genéricas aos órgãos, aos quais são
repartidas especificamente entre os cargos, ou individualmente entre os
agentes de função sem cargos”.13
E prossegue o administrativista: “Os cargos … são apenas os lugares
criados nos órgãos para sem providos por agentes que exercerão suas funções
na forma legal. O cargo é lotado no órgão e o agente é investido no cargo …
As funções são os encargos atribuídos aos órgãos, cargos ou agentes. O órgão
normalmente recebe a função in genere e a repassa aos seus cargos in specie,
ou a transfere diretamente a agentes sem cargo, com a necessária parcela do
poder público para o seu exercício. Toda função é atribuída e delimitada por
norma legal. Essa atribuição e delimitação funcional configuram a
competência do órgão, do órgão e do agente, ou seja, a natureza da função e o
limite do poder para o seu desempenho. Daí porque, quando o agente
ultrapassa esse limite, atua com abuso ou excesso de poder”.14
5. Administração pública direta ou indireta. O caput do art. 2o da Lei
no 13.869/2019 prevê que o crime de abuso de autoridade pode ser cometido
por “qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta,
indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal, dos Municípios e de Território”. Necessário, pois, definir o
sentido em que se empregou a expressão “administração direita, indireta ou
fundacional”.
Em decorrência da estrutura Federativa do Estado Brasileiro, a
organização administrativa pode ser dividida em Administração Pública
Federal, Administração Pública Estadual, Administração Pública do Distrito
Federal e Administração Pública Municipal. Em cada uma dessas
Administrações, conforme o seu grau de complexidade e descentralização, é
possível dividi-la entre Administração Pública Direta e Administração
Pública Indireta.15
A administração pública direta é “o conjunto de órgãos integrados na
estrutura da chefia do Executivo e na estrutura dos órgãos auxiliares da chefia
do Executivo”.16 Já a administração indireta é o conjunto de atividades
personalizadas que executam, de modo descentralizado, serviços e atividades
de interesse público, sendo composta de autarquias, empresas públicas, as
sociedades de economia mista e as fundações públicas. Em relação a estas
últimas, para evitar discussões doutrinárias e divergências classificatórias, o
caput do art. 2o fez expressa referência a agentes da administração
“fundacional”.
6. Figuras equiparadas. O parágrafo único do art. 2o estabelece as
figuras equiparadas aos agentes públicos, que podem ser responsabilizados
no âmbito da Lei de Abuso de Autoridade: “Reputa-se agente público, para
os efeitos desta Lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou
sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou
qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou
função em órgão ou entidade abrangidos pelo caput deste artigo”. O
dispositivo se assemelha ao caput do artigo 327 do CP: “Art. 327 –
Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora
transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função
pública”. Por outro lado, no âmbito da Lei no 13.869/2019, não pode ser
considerado agente público quem exerce cargo, emprego ou função em
entidade paraestatal, ou quem trabalhe para empresa prestadora de serviço
contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da
Administração Pública.17
7. Agente público em férias ou licença. Os crimes de abuso de
autoridade estarão caracterizados mesmo que o fato tenha sido praticado pelo
agente público durante o gozo de férias ou de licença, pois em tal período não
se afasta o vínculo funcional.18 Isso se mostra ainda mais relevante, no caso
dos ocupantes de cargos ou que exerçam mandatos ou funções de maior
estatura. Por exemplo, uma situação em que um Delegado de Polícia que, em
férias ou durante licença médica, mas sendo o responsável por uma
investigação em curso, dê uma entrevista a uma rede de televisão – ou
mesmo publique um post em rede social – antes de terminar a investigação, já
atribuindo a culpa a um investigado específico, cometerá o crime do artigo 38
da Lei no 13.869/2019.
Diversa será a situação se o agente público for aposentado ou tiver sido
demitido, pois em tais situações não se poderá cogitar do exercício de cargo,
mandato ou função pública, não podendo, portanto, ser sujeito ativo do crime
de abuso de autoridade.19
8. Exercício de “munus” público. A condição para que se possa ser
sujeito ativo do crime de abuso de autoridade é ser Autoridade pública ou
agente público. Não pode ser caracterizado, por outro lado, como sujeito
ativo de tal gênero de delito quem apenas exerce “múnus” público, isto é, um
encargo em benefício da coletividade, mas que não é funcionário público e,
portanto, não está no exercício de poder estatal.20
A doutrina dá os seguintes exemplos de agentes que exercem múnus
público mas não podem ser considerados agentes públicos, para fins de
caracterização do crime de abuso de autoridade: tutores e curadores dativos,
inventariantes judiciais, administrador judicial em caso de recuperação
judicial ou falência, concessionários de serviços públicos, depositário
judicial, empregados de sociedade de economia mista e diretores de
sindicato.21
9. Reflexos da natureza do agente público na determinação de
competência. Ao prever que o agente público pode ser integrante dos Três
Poderes, “da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de
Território” (art. 2o, caput), tal regra poderá gerar reflexos na definição da
competência para processar e julgar os crimes de abuso de autoridade. No
caso de abuso de autoridade cometido por agente estatal de Municípios ou
dos Estados, a competência será da respectiva Justiça Estadual. Já no caso de
abuso de autoridade cometido por agentes da União, do Distrito Federal e dos
Territórios, a competência será da Justiça Federal, por se tratar de infração
que afete interesse da União (CR, art. 109, inc. IV).
Por outro lado, no caso de agentes públicos que gozem de foro por
prerrogativa de função, e pratiquem crimes de abuso de autoridade no
exercício do cargo ou mandato, a competência será originária do Tribunal a
quem competir processar e julgar tal agente. Ressalve-se que, no caso de
investigado com foro por prerrogativa de função, o STF, por seu Plenário, na
sessão do dia 3 de maio de 2018, na Questão de Ordem na Ação Penal no
937, procedeu à reinterpretação da Constituição Federal, considerando que há
prerrogativa de foro somente nos crimes cometidos durante o mandato e
relacionado a ele.
Assim, por exemplo, no caso de um juiz de direito que decrete uma prisão
em manifesta desconformidade com a lei, a competência para processá-lo e
julgá–lo será do Tribunal de Justiça do Estado (CR, art. 96, III), pelo crime
do art. 9o da Lei no 13.869/2019. Já no caso de um Procurador da República
que requisitar instauração de inquérito policial, em desfavor de alguém, sem
que haja qualquer indício da prática de crime, será processado e julgado pelo
crime do art. 27o da Lei no 13.869/2019, perante o Tribunal Regional Federal
da região em que atue (CR, art. 108, I, a).
9.1 Crimes de abuso de autoridade de competência da Justiça
Federal. Os crimes de abuso de autoridade praticados por funcionários
públicos da União, do Distrito Federal e dos Territórios, no exercício de suas
funções ou em razão dela, serão da competência da Justiça Federal, por se
tratar de infração que afete interesse da União (CR, art. 109, inc. IV). Mas
também será de competência da Justiça Federal os crimes de abuso de
autoridade de que forem vítimas funcionários públicos no exercício de suas
funções. Por exemplo, um agente público que pratique o crime do art. 24 da
Lei no 13.869/2019, constrangendo funcionário de instituição hospitalar
pública da União, a admitir para tratamento pessoa cujo óbito já tenha
ocorrido, com o fim de alterar o momento de crime, prejudicando sua
apuração.
Tal delito de abuso de autoridade será de competência da Justiça Federal,
pois afetará interesse e serviços da União (CR, art. 109, IV).22
Também será da competência da Justiça Federal os crimes de abuso de
autoridade “ cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a
competência da justiça militar” (CR, art. 109, IX), pouco importando se a
aeronave é pública ou privada, nacional ou estrangeira. Por ex., o delito do
art. 13 da Lei no 13.869/2019 pode ser praticado a bordo de aeronave, por
agente público, mesmo que de Estado membro da federação, que constranger
preso, mediante grave violência, exibindo-o a curiosidade dos demais
passageiros.
Serão igualmente de competência da Justiça Federal os crimes de abuso
de autoridade cometidos contra índios, que se insiram no contexto de disputa
por direitos indígenas (CR, art. 109, XI).23 Por exemplo, agentes públicos
atuando como força de segurança numa disputa por terras indígenas, entre
proprietários rurais e índios, que ao efetuar uma prisão em flagrante delito
deixem de se identificar na ocasião da captura de índio ou de fazendeiro,
cometendo o crime do artigo 16 da Lei de Abuso de Autoridade.
9.2 Crimes de abuso de autoridade de competência da Justiça
Militar. Os crimes de abuso de autoridade também poderão ser de
competência da Justiça Militar.
A Súmula no 172 do STJ tem enunciado em sentido contrário: “Compete
à Justiça Comum processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade,
ainda que praticado em serviço”. Importante, porém, contextualizar o
momento legislativo de sua edição. O enunciado sumular foi elaborado em
época em que o crime de abuso de autoridade em nenhuma hipótese poderia
ser caracterizado como crime militar.
Posteriormente, contudo, a Lei no 13.491/2017 alterou o artigo 9o do
Código Penal Militar, que define os crimes militares, e, no inciso II da cabeça
de tal artigo, passou a prever que “consideram-se crimes militares, em tempo
de paz: (…) II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação
penal, quando praticados (…)” em diversas situações, inclusive contra civis,
nas quais poderá ocorrer um crime de abuso de autoridade – porque previsto
em lei especial, no caso, a Lei no 13.869/2019.
Assim, poderá ocorrer que o militar, em situação de atividade ou
assemelhada, exija de civil que este preste informação ou que cumpra
determinada obrigação, sem expresso amparo legal, que caracterizará o crime
de abuso de autoridade do artigo 33, caput, da Lei no 13.869/2019, que nessa
hipótese será considerado crime militar em tempo de paz, nos termos do art.
9o, II, a, do CPM.
Nessa hipótese, se o crime for praticado por militar das Forças Armadas,
o crime de abuso de autoridade será de competência da Justiça Militar da
União (CR, art. 124, caput); se tiver sido praticado por policial militar, será
de competência dos juízes de direito do juízo militar ou dos Conselho de
Justiça Militar das Justiças dos Estados, nos termos do art. 125, § 5o, da CR.
Nas hipóteses de crimes de abuso de autoridade que sejam jugados
perante a Justiça Militar, em que caracterizem infração penal de menor
potencial ofensivo, não será cabível a transação penal. Também será
inaplicável, por expressa previsão do art. 90-A da Lei no 9.099/1995, a
suspensão condicional do processo.24
9.3 Crimes de abuso de autoridade e a competência da Justiça
Eleitoral. Os crimes de abuso de autoridade previstos na Lei no 13.869/2019
não são crimes eleitorais, razão pela qual não poderão ser julgados pela
Justiça Eleitoral, a qual compete julgar, no âmbito penal, os crimes eleitorais
definidos (CR, art. 121, caput, c.c. CE, art. 35, II).
Poderá ocorrer, contudo, que um crime eleitoral seja praticado em
conexão com um crime de abuso de autoridade, hipótese em que, nos termos
do posicionamento do STF,25 a competência para o julgamento de ambos será
da Justiça Eleitoral, que exercerá a vis atractiva, nos termos do citado art. 35,
II, do CE, bem como do art. 78, IV, do CPP. Há, inclusive, julgado
considerando tratar-se de competência absoluta e, como tal, matéria de ordem
pública, que pode ser conhecida mesmo sem alegação da parte.26

___________________
1. Maria Sylvia Zanella di Pietro, Direito Administrativo, 20. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p.
596.
2. Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo:
Malheiros, 1996, p. 135. No mesmo sentido: Di Pietro, Direito Administrativo…, p.
597.
3. Bandeira de Mello, Curso …, p. 136.
4. No mesmo sentido: Di Pietro, Direito Administrativo…, p. 597-598.
5. Direito administrativo brasileiro, 25. ed. São Paulo, Malheiros, 2000, p. 72, com
destaque no original.
6. Ibidem, p. 73, com destaque no original.
7. No caso, servidores públicos civis, em contraposição os militares.
8. Di Pietro, Direito Administrativo…, p. 597.
9. Di Pietro, Direito Administrativo…, p. 603-604.
10. Paulo Lúcio Nogueira, Leis Especiais. Aspectos Penais. 3. ed. São Paulo: EUD, 1992,
p. 77.
11. Freitas e Freitas, Abuso de Autoridade…, p. 94.
12. Na doutrina: Freitas e Freitas, Abuso de Autoridade…, p. 94-95. Alexandre de Moraes e
Gianpaolo Poggio Samnio, Legislação Penal Especial. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2008,
p. 4; Nucci, Leis Penais …, v. I, p. 56, n. 105; Greco e cunha. Abuso de Autoridade…,
p. 21. O STJ já decidiu pela caracterização do crime de abuso de autoridade:
Invocação da autoridade de promotor de justiça. Comete o delito o agente que, mesmo
não estando no exercício da função, age invocando a autoridade do cargo, com a
exibição de carteira funcional” (STJ, AgRg no AI no 5.749/SP, 6a T., rel. Min. José
Cândido, j. 04.12.90, v.u., RT 665/359.
13. Direito administrativo brasileiro…, p. 69-70.
14. Direito administrativo brasileiro…, p. 70.
15. Odete Medauar (Direito Administrativo Moderno. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 63)
observa que essa divisão, com tal terminologia, ingressou no ordenamento jurídico
brasileiro com o Decreto-Lei no 200, de 25.02.1967, que posteriormente sofreu várias
alterações, mas, mesmo assim, “as expressões Administração direta e Administração
indireta ficaram consolidadas no ordenamento brasileiro”.
16. Medauar, Direito Administrativo Moderno…, p. 73.
17. No âmbito do Código Penal, tais figuras são equiparadas a funcionário público, por
força do § 1o do art. 327, acrescido pela Lei no 9.983/2000, que dispõe: “§ 1o –
Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em
entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada
ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública”.
Todavia, o parágrafo único do art. 1o da Lei no 13.869/2019 não vai tão longe nas
figuras equiparadas e, por ser lei especial, deve prevalecer sobre a regra geral do CP.
18. Igor Pereira Pinheiro, André Clarck Nunes Cavalcante e Emerson Castelo Branco,
Nova Lei do Abuso de Autoridade. Comentada artigo por artigo. Leme: JH Mizuno,
2020, p. 42.
19. Nesse sentido: Fábio Ramazzini Bechara, Legislação Penal Especial. São Paulo:
Saraiva, 2006, p. 27; Greco e cunha. Abuso de Autoridade…, p. 26.
20. Nesse sentido: Becharra, Legislação Penal Especial…, p. 27; Nucci, Leis Penais …, v.
I, p. 57, n. 108.
21. Nesse sentido: Freitas e Freitas, Abuso de autoridade, p. 74; Fernando Capez,
Legislação Penal Especial, 6. Ed. São Paulo: Ed. Damásio de Jesus, 2007, v. 1, p.
159.
22. A Súmulas 147 do STJ estabelece que: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os
crimes praticados contra funcionário público federal, quando relacionados com o
exercício da função”. Na jurisprudência: STF, RT 611/439.
23. Todavia, se o abuso de autoridade for cometido contra indígena, mesmo dentro da
reserva indígena, mas não for motivado por disputa sobre direitos indígenas, a
competência será da Justiça Estadual. A Súmula 140 do STJ dispõe: “compete à
Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como
autor ou vítima”.
24. Art. 90-A. As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar.
25. STF, CC 7.033/SP, Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 02.10.1996, v.u; STF, Pet
6.820/ DF, – AgRg – ED, 2a T., rel. Min. Edson Fachin, rel. p/ ac. Min. Ricardo
Lewandowski, j. 06.02.2018, m.v.; STF, Pet 7.319/DF, 2a T., rel. Min. Edson Fachin,
rel. p/ ac. Min. Dias Toffoli, j. 27.03.2018, m.v.; STF, Pet 6.986/DF-AgRg, 2a T., rel.
Min. Edson Fachin, rel. p/ ac. Min. Dias Toffoli, j. 10.04.2018, m.v.; STF, EDc na Pet
7.319/DF, 2a T., rel. Min. Edson Fachin, rel. p/ ac. Min. Dias Toffoli, j. 07.08.2018,
m.v.; STF, Pet 6.986/DF-EDc no AgRg, 2a T., rel. Min. Min. Dias Toffoli, j.
28.08.2018, m.v.; STF, Pet 6.694/DF-AgRg no AgRg, 2a T., rel. Min. Edson Fachin,
rel. p/ ac. Min. Dias Toffoli, j. 03.04.2018, m.v.
26. STF, Pet 6.694/DF-AgRg no AgRg, 2a T., rel. Min. Edson Fachin, rel. p/ ac. Min. Dias
Toffoli, j. 03.04.2018, m.v.
Capítulo III
Da Ação Penal

GUSTAVO BADARÓ

Art. 3o Os crimes previstos nesta Lei são de ação penal


pública incondicionada.
§ 1o Será admitida ação privada se a ação penal pública
não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério
Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia
substitutiva, intervir em todos os termos do processo,
fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo
tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a
ação como parte principal.
§ 2o A ação privada subsidiária será exercida no prazo de
6 (seis) meses, contado da data em que se esgotar o prazo
para oferecimento da denúncia.

COMENTÁRIOS:
1. Noções gerais. O artigo 3o da Lei no 13.869/2019 é inteiramente
dispensável. As regras previstas na cabeça do artigo e as dos seus parágrafos
já constam do sistema penal brasileiro. Assim, no silêncio do legislador, o
regime legal aplicável seria exatamente o mesmo. O caput do art. 3o
corresponde ao caput e § 1o do art. 100 do Código Penal. O § 1o do art. 3o
equivale ao artigo 29 do Código de Processo Penal. Por fim, o § 2o do art. 3o
têm regra correspondente no art. 38 do Código de Processo Penal e no art.
103 do Código Penal.
Logo, nesse ponto, o veto presidencial era correto, sendo o art. 3o da Lei
13.869/2019 desnecessário. O veto, contudo, foi derrubado.
2. Natureza da ação penal e legitimidade ativa: Todos os crimes de
abuso de autoridade são, em regra, passíveis de persecução mediante ação
penal de iniciativa pública incondicionada.
O caput do artigo 3o da Lei no 13.869/2019 repete regra extraível do art.
100, caput, e § 1o, do Código Penal. O Código Penal, no caput do art. 100
dispõe que “A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a
declara privativa do ofendido”, e o § 1o do mesmo dispositivo estabelece que
“A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a
lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da
Justiça”. Ou seja, a regra é a ação penal ser pública incondicional. Assim, no
silêncio do legislador, a regra geral é a ação penal pública incondicionada.
Por outro lado, o dispositivo tem uma razão de ser, na medida em
representa uma opção do legislador de afastar a incidência da ação penal de
iniciativa exclusivamente privada, para os crimes de abuso de autoridade.
A opção de que a persecução penal se dê mediante ação penal pública
incondicionada não deixa de ser uma forma de buscar um meio de contenção
de excessos, principalmente, eventuais ofertas de queixas-crimes infundadas
ou temerárias, que poderiam ser promovidas por sedizentes vítimas de crimes
de abuso de autoridade. Ainda que descabidas, as queixas-crimes poderiam
ser um mecanismo de pressão a perturbar a normal atuação das autoridades.
Mediante ação penal de iniciativa pública, a persecução penal passará por
filtros de outras autoridades públicas, no caso: em primeiro plano, a
autoridade policial para instaurar o inquérito policial; num segundo
momento, será necessário que um representante do Ministério Público
conclua pela existência de justa causa para ação penal e oferte uma denúncia;
e, por último, e em um terceiro plano, um magistrado que considere a
denúncia correta mediante juízo de admissibilidade positivo.
3. A ação penal privada subsidiária da ação penal pública. O § 1o do
art. 3o da Lei no 13.869/2019 traz a previsão do cabimento da ação penal de
iniciativa privada subsidiária da pública, na hipótese em que no prazo legal
não haja o oferecimento da denúncia. O dispositivo reproduz a disciplina
legal da matéria. O dispositivo em comento reproduz o art. 29 do Código de
Processo Penal: “Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se
esta não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a
queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os
termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo
tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte
principal”. Aliás, a regra geral de cabimento da ação penal privada
subsidiária também está prevista no § 3o do art. 100 do Código Penal.1
3.1 Legitimidade para a ação penal privada subsidiária. A disciplina
da legitimidade da ação penal privada subsidiária da pública – assim como da
ação penal exclusivamente privada – está prevista no artigo 30 do CPP: “Ao
ofendido ou a quem tenha qualidade para representá-lo caberá intentar a ação
privada”. Desnecessária, igualmente, a prisão da regra na Lei no 13.869/2019.
Os crimes de abuso de autoridade são de dupla subjetividade passiva.
Assim, embora o Estado seja sempre sujeito passivo, por ter interesse no
correto e regular exercício do poder, por suas autoridades e agentes, também
será sujeito passivo o particular prejudicado com a conduta do agente
público, que lese direito fundamental de sua titularidade. Esse lesado terá
legitimidade para oferecer queixa subsidiária. Por exemplo, no crime de
decretação de prisão manifestamente ilegal (Lei no 13.869/2019, art. 9o), o
preso privado ilegalmente de sua liberdade poderá oferecer queixa
subsidiária.
3.2. Legitimação subsidiária da OAB, no crime de violação de
prerrogativas profissionais da advocacia. O crime do art. 7o-B da Lei
8.906/1994, acrescido pela Lei 13.869/2019, por se tratar de delito que
ofende não apenas o advogado prejudicado em seus direitos profissionais,
para defesa de seu cliente, mas de modo mais amplo toda a classe da
advocacia, considerada função essencial à administração da justiça (Lei
8.906/1994, art. 2o, caput), permite que a OAB, em legitimação concorrente
com o próprio advogado, proponha a ação penal privada subsidiária, nos
termos do art. 29 do CPP. Nesse sentido, o art. 49, caput, da Lei 8.906/1994,
confere aos Presidentes dos Conselhos e das Subseções da OAB, a
“legitimidade para agir, judicial e extrajudicialmente, contra qualquer pessoa
que infringir as disposições ou os fins” do Estatuto da Advocacia e da Ordem
dos Advogados do Brasil. Violado direitos da advocacia, a Ordem dos
Advogados do Brasil será lesada, e poderá propor ação penal privada
subsidiária, pois assim estará agindo em juízo contra quem infringiu
disposição da Lei 8.906/1994.
3.3 Prazo para propositura da ação penal privada subsidiária. O § 2o
do art. 3o da Lei no 13.869/2019 estabelece o prazo para a propositura da ação
privada subsidiária, que deverá ser “exercida no prazo de 6 (seis) meses,
contado da data em que se esgotar o prazo para oferecimento da denúncia”.
Uma vez mais, o dispositivo é dispensável. A previsão do prazo de 6
meses para a propositura da ação penal de iniciativa privada também já
consta do parágrafo único do art. 38 do Código de Processo Penal, bem como
da segunda parte do art. 103 do Código Penal.
O termo inicial do prazo será o dia em que se esgotar o prazo para
oferecimento de denúncia pelo o Ministério Público. Em regra, esse prazo
será de 5 dias se o investigado estiver preso, e de 15 dias, se estiver solto,
“contado da data em que o órgão do Ministério Público receber os autos do
inquérito policial” (CPP, art. 45, caput).
3.4 Consequência da não propositura da ação penal privada
subsidiária. Após o término de tal prazo, haverá a decadência do direito de
queixa subsidiária, o que não implicará, por certo, a extinção da punibilidade,
na medida em que o Ministério Público poderá, enquanto não ocorrida a
prescrição da pretensão punitiva, promover a denúncia.

___________________
1. CP, art. 100, § 3o: “A ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de ação
pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal”.
Capítulo IV
Dos Efeitos da Condenação e das Penas Restritivas
de Direitos

GUSTAVO BADARÓ
Seção I
Dos efeitos da condenação

Art. 4o São efeitos da condenação:


I – tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado
pelo crime, devendo o juiz, a requerimento do ofendido,
fixar na sentença o valor mínimo para reparação dos
danos causados pela infração, considerando os prejuízos
por ele sofridos;
II – a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou
função pública, pelo período de 1 (um) a 5 (cinco) anos;
III – a perda do cargo, do mandato ou da função pública.
Parágrafo único. Os efeitos previstos nos incisos II e III do
caputdeste artigo são condicionados à ocorrência de
reincidência em crime de abuso de autoridade e não são
automáticos, devendo ser declarados motivadamente na
sentença.

BIBLIOGRAFIA:
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Ed. RT, 2019;
JESUS, Damásio E. de. Código de Processo Penal anotado, 23. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 84; MACEDO, Alexander dos Santos. A eficácia preclusiva
panprocessual dos efeitos civis da sentença penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1989;
MARQUES, Gabriela; MARQUES, Ivan. A nova Lei de Abuso de Autoridade. Lei
13.869/2019 – Comentada artigo por artigo. São Paulo: RT, 2019; MARQUES, José
Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1962. v.
III.

COMENTÁRIOS:
1. Noções gerais. O artigo 4o da Lei de Abuso de Autoridade disciplina,
mediante regras especiais, os efeitos civis da sentença penal. Tais efeitos
somente incidirão no caso de sentença penal condenatória. Logo, não serão
cabíveis, ope legi, em razão de sentença absolutória imprópria; sentença de
extinção da punibilidade, mesmo que anteriormente tenha havido prévia
condenação; sentença homologatória de transação penal, de suspensão
condicional do processo e de acordo de não persecução penal.
2. Sentença absolutória imprópria. O art. 4a da Lei no 13.869/2019
disciplina os efeitos da sentença penal condenatória. Logo, tais efeitos não
incidirão no caso de sentença penal absolutória imprópria, em que haja
imposição de medida de segurança, em razão da inimputabilidade decorrente
de doença mental ou desenvolvimento mental retardado ou incompleto (CP,
art. 26, caput, c.c. CPP, art. 386, caput, VI, c.c. parágrafo único, inciso III).
Quanto à reparação do dano, o título executivo é a “sentença penal
condenatória transitada em julgado”, e não a sentença absolutória imprópria
que, mesmo impondo medida de segurança, por não ser condenatória, não
gera o dever de reparar o dano, nem consistirá em título executivo.1
Embora sancionatória, a sentença absolutória imprópria implica a
imposição de medida de segurança, de internação hospitalar ou de tratamento
ambulatória. Não será, por outro lado, título executivo para a imposição de
pena, privativa de liberdade, restritiva de direito ou de multa. Logo, em tal
situação, não incidirá o inciso II do art. 4o da Lei no 13.869/2019. Também
não será dela possível decorrer os efeitos específicos dos incisos II e III do
caput do art. 4o, de a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou
função pública, de um lado, e de perda do cargo, do mandato ou da função
pública, de outro. Isso não só porque se trata de efeitos da sentença penal
condenatória, com também em razão da regra especial do parágrafo único do
art. 4o, tais efeitos estão condicionados “à ocorrência de reincidência em
crime de abuso de autoridade e não são automáticos, devendo ser declarados
motivadamente na sentença”. Não se tratando de sentença condenatória, não
há que se cogitar de geração do efeito da reincidência, que exige sentença
condenatória anterior (CP, art. 63).
3. Sentença que homologa transação penal. Há controvérsia doutrinária
sobre a natureza da sentença que homologa a transação penal. Uns a
consideram de natureza condenatória, outros lhe negam tal atributo. Todavia,
independentemente de divergências sobre sua natureza jurídica, a questão dos
seus efeitos civis é expressamente resolvida pelo § 6o do art. 76 da Lei
9.099/1995, que dispõe: “[…] não terá efeitos civis, cabendo aos interessados
propor ação cabível no juízo cível”. Logo, no caso de transação penal, a
sentença homologatória não produzirá nenhum dos efeitos cíveis do caput do
art. 4o da Lei no 13.869/2019.
Por outro lado, a transação penal poderá implicar a aceitação de pena
restritiva de direito. Nesse caso, poderá ser acordada a pena de prestação
pecuniária, cujo valor se destinará à reparação do dano causado à vítima (CP,
art. 45, § 1o).2 Também será possível a proposta e aceitação da pena restritiva
de direitos na modalidade de interdição temporária de direitos, consistente em
“proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de
mandato eletivo” (CP, art. 47, I).
4. Suspensão condicional do processo. No caso de suspensão
condicional do processo, haverá uma primeira decisão homologatória de tal
ato consensual, após o oferecimento da denúncia, e, ao final, cumprido o
período de prova e as condições impostas, a sentença que declarará extinta a
punibilidade (Lei no 9.099/1995, art. 89, § 5o). Neste último caso, evidente
que a sentença que declara extinta a punibilidade, não sendo uma sentença
condenatória, não gerará os efeitos do art. 4o da Lei no 13.869/2019.
A decisão anterior, que homologa a suspensão condicional do processo
(Lei no 9.099/1995, art. 89, § 1o), também não é sentença condenatória. Logo,
inexistiram, igualmente, os efeitos extrapenais da sentença condenatória dos
crimes de abuso de autoridade, estabelecidos nos incisos da cabeça do art. 4o.
Por outro lado, homologada a suspensão condicional do processo, é
condição obrigatória a reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo
(Lei no 9.099/1995, art. 89, § 1o, I), sendo que, ao final do período do prova,
a suspensão será revogada se o beneficiário não efetuar, salvo motivo
justificado, a reparação do dano (Lei no 9.099/1995, art. 89, § 3o).
5. O acordo de não persecução penal. Anteriormente disciplinado na
Resolução no 181/2017 do CNMP (art. 18), o acordo de não persecução penal
foi introduzido no art. 28-A do Código de Processo Penal pela Lei no
13.964/2019.
Em tese, considerando a pena máxima cominada, todos os crimes da Lei
no 13.869/2019 admitem o acordo de não persecução penal, posto que
satisfazem o pressuposto da pena mínima ser inferior a 4 anos (CPP, art. 28-
A, caput). Eventualmente, não será cabível o acordo, por ter sido o crime
cometido com “violência ou grave ameaça”, como na hipótese do delito do
artigo 22, § 1o, I, ou no crime do artigo 24, ambos da Lei no 13.869/2019.
Sendo cabível e aceito o acordo, a decisão que o homologar não terá
natureza de sentença penal condenatória, dela não decorrendo, portanto, os
efeitos do artigo 4o da Lei n 13.869/2019. Porém, uma das condições que
poderá constar, alternativa ou cumulativamente do acordo é justamente a de
reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-
lo (CPP, art. 28-A, caput, I).
6. Inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública.
O inciso II do caput do artigo 4o da Lei no 13.869/2019 prevê, como efeito da
condenação penal, “a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou
função pública, pelo período de 1 (um) a 5 (cinco) anos”. Trata-se de efeito
que operará para o futuro. Não será possível ao agente condenado, como
reincidente específico, futuramente prestar concurso para cargo ou exercício
de função pública, ou assumi-los na condição de cargo de confiança, ou,
ainda, candidatar-se a qualquer mandato eletivo.
Justamente por isso, mesmo que não tenha sido aplicado ao agente o
efeito da condenação da “perda do cargo, do mandato ou da função pública”
(art. 4o III) e ele possa continuar a exercer a atividade pública por meio da
qual foi condenado, poderá ter contra si declarado o efeito da inabilitação
para o exercício de cargo, mandato ou função pública, que o impedirá de,
futuramente, assumir uma atividade pública diversa, no período da
inabilitação.
A inabilitação, como efeito interditivo do exercício de um direito futuro,
está sujeita a uma limitação temporal. Há previsão de um lapso variável, de 1
a 5 anos de inabilitação. A Lei não estabelece quais os parâmetros para que o
juiz fixe tal período. Embora não se trate de pena propriamente dita, mas de
efeito da condenação, para o estabelecimento do período de interdição
deverão ser consideradas as mesmas circunstâncias e causas de aumento e
diminuição utilizáveis para a fixação da pena, seguindo-se o processo
trifásico do artigo 68 do CP: primeiro serão consideradas as circunstâncias
judiciais (CP, art. 59); numa segunda etapa, as circunstâncias atenuantes (CP,
arts. 65 e 66) e agravantes (CP, arts. 61 a 64); por fim, eventuais causas de
diminuição e aumento de pena. De se observar que, diferentemente do que
ocorre com a pena privativa de liberdade, nesta última etapa, o período de
interdição não poderá ficar aquém do mínimo cominado de 1 ano, nem acima
do máximo de 5 anos.
7. Perda do cargo, mandato ou função pública. O artigo 4o da Lei no
13.869/2019 prevê, no inciso I, como efeito da condenação penal, “a perda do
cargo, do mandato ou da função pública”. Para a imposição desse efeito da
condenação exige-se, no momento da sentença, a “atualidade” do cargo,
mandato ou função com que o abuso foi praticado.
A perda do cargo, mandato ou função pública somente ocorrer no caso de
o agente público estar exercendo o mesmo cargo, mandato ou função pública
que exercia quando da prática do ato delitivo. Se, por qualquer motivo, já não
mais exercer tal atividade pública, ainda que no momento da condenação
esteja no exercício de outro cargo, mandato ou função, não poderá haver a
perda dele. Por exemplo, se um agente, na condição de delegado de polícia,
praticou o crime do art. 13 da Lei no 13.869/2019, abusando do seu poder de
autoridade policial e constrangendo o preso a submeter-se a situação
vexatória, mas depois vier a ser aprovado em concurso para juiz de direito,
pedir exoneração do antigo cargo e assumir a nova função na magistratura,
não poderá perder esse seu novo cargo no Poder Judiciário por um ato de
abuso de autoridade cometido quando integrava a Polícia civil ou federal.
8. Necessidade de reincidência em crime de abuso de autoridade. O
parágrafo único do artigo 4o prevê que para os efeitos civis consistentes em
na “inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública” (art.
4o, II) ou “perda do cargo, mandato ou função pública” (art. 4o, III) é
necessária a ocorrência de reincidência em crime de abuso de autoridade.
Não basta a simples reincidência, que se verifica no caso da prática de um
crime após ter havido condenação, por sentença penal transitada em julgado,
por crime anterior, qualquer que seja a espécie desse delito (CP, art. 63). É
necessária a reincidência específica, isto é, uma condenação prévia por crime
de abuso de autoridade, transitada em julgado e a prática posterior de um
novo crime de abuso do de autoridade. Não será necessário, contudo, que o
crime de abuso de autoridade seja da mesma espécie que o primeiro. Assim,
por exemplo, se o agente já foi condenado previamente pelo crime de não
comunicação de prisão em flagrante à autoridade judiciária, não será
necessário, para ser viável a imposição dos efeitos dos incisos II e III do art.
4o da Lei no 13.869/2019, uma nova prática do mesmo crime do art. 12 da Lei
de Abuso de Autoridade. A segunda condenação, por qualquer dos crimes
previstos nos artigos Capítulo VI da Lei no 13.869/2019, satisfará a condição
do parágrafo único do art. 4o.
Por outro lado, sendo exigida a reincidência específica para a imposição
do efeito do inciso II do caput do art. 4o, não será necessário que a primeira
condenação tenha ocorrido no mesmo cargo da segunda condenação.
Continuando no exemplo do item 7, se o agente público foi condenado pelo
crime do art. 13 da Lei no 13.869/2019, por abuso de poder na condição de
delegado de polícia, e, depois, assumir a função de magistrado, e, em tal
atividade, cometer o delito previsto no artigo 9o da mesma Lei, nessa segunda
condenação, por decretar prisão, em manifesta desconformidade com a lei,
poderá sofrer, como efeito da sentença condenatória, a perda do cargo de juiz
de direito.
A hipótese do parágrafo único do art. 4o não será satisfeita se tiver havido
prévia condenação transitada em julgado por crime de abuso de autoridade,
mas entre a data do cumprimento ou extinção da pena desse delito e a
infração posterior, igualmente por abuso de autoridade já tiver decorrido
período de tempo superior a 5 anos, nos termos do inciso I do art. 64 do CP.
9. Necessidade de motivação específica para inabilitação para o
exercício ou para perda do cargo, mandato ou função pública ou perda
do cargo. O parágrafo único do art. 4o, além de exigir a reincidência
específica, como condição dos efeitos da condenação previstos nos incisos II
e III, também prevê que tais efeitos não são automáticos e devem “ser
declarados motivadamente na sentença”. Não se tratando de efeitos
automáticos da condenação penal, para sua imposição deve estar presente a
hipótese legal de incidência de tal efeito, a ser verificado no caso concreto e,
uma vez considerado provado, justificadamente invocado na sentença penal.
A Lei no 13.869/2019 não estabelece quais requisitos legais, além da
necessidade de reincidência específica. Diante desse cenário, duas
interpretações são possíveis: A primeira, que basta a reincidência como único
requisito legal e, embora o efeito não seja automático, bastará o juiz declarar
na sentença que, tendo sido condenado o acusado, e em se tratando de
hipótese de reincidência específica em crime de abuso de autoridade, que se
impõe o efeito civil da condenação penal da inabilitação para o exercício de
cargo, mandato ou função pública, pelo período de 1 (um) a 5 (cinco) anos
(art. 4, II) ou da “perda do cargo, do mandato ou da função pública” (art. 4,
III).
A segunda interpretação, que se considera correta, é que, além da
reincidência específica, caberá ao juiz verificar a necessidade e adequação da
medida ao caso concreto. Por tal motivo o parágrafo único dispõe que tais
efeitos são condicionados: “à ocorrência de reincidência em crime de abuso
de autoridade e não são automáticos, devendo ser declarados motivadamente
na sentença”. Se bastasse a reincidência, não teria sentido a expressão “e não
são automáticos”. Como a reincidência é um estado claramente constatável,
bastaria que o dispositivo mencionasse que tais feitos ficam condicionados à
reincidência em crime de abuso de autoridade, devendo ser declarados
motivadamente na sentença, como, aliás, estabelece o parágrafo único do
Código Penal. Não havendo previsão de outro requisito legal, embora os
incisos II e III do art. 4o da Lei no 13.869/2019, não estabeleçam penas
restritivas ou interditivas de direitos, mas efeitos civis da condenação penal, é
adequado aplicar o art. 59, caput, do Código Penal. Assim, além da
reincidência em crime de abuso de autoridade, os efeitos da condenação dos
incisos II e III do art. 4o somente deverão ser aplicados quando,
motivadamente, e segundo as circunstâncias judiciais, o efeito civil “seja
necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”.
Consequentemente, mesmo no caso de condenação por crime de abuso de
autoridade, sendo o condenado reincidente em crime desse mesmo gênero,
poderá o juiz, fundamentadamente, deixar de aplicar os efeitos da condenação
dos incisos II e III do art. 4o da Lei no 13.869/2019.3

Seção II
Das Penas Restritivas de Direitos

Art. 5o As penas restritivas de direitos substitutivas das


privativas de liberdade previstas nesta Lei são:
I – prestação de serviços à comunidade ou a entidades
públicas;
II – suspensão do exercício do cargo, da função ou do
mandato, pelo prazo de 1 (um) a 6 (seis) meses, com a
perda dos vencimentos e das vantagens;
III – (VETADO).
Parágrafo único. As penas restritivas de direitos podem
ser aplicadas autônoma ou cumulativamente.

BIBLIOGRAFIA:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas penas alternativas, São Paulo: Saraiva, 1999;
GOMES, Luis Flávio. Penas e medidas alternativas à prisão. 1. ed., 2 tir. São Paulo:
RT, 1999; GRECO, Rogério; CUNHA, Rogério Sanches. Abuso de Autoridade. Lei
13.869/2019. Comentada Artigo por Artigo. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019;
MARQUES, Gabriela; MARQUES, Ivan. A nova Lei de Abuso de Autoridade. Lei
13.869/2019 – Comentada artigo por artigo. São Paulo: RT, 2019.

COMENTÁRIOS:
1. Noções Gerais. O artigo 5o da Lei de Abuso de Autoridade disciplina
as espécies de penas restritivas de direitos aplicáveis aos crimes de abuso de
autoridade.
As penas restritivas de direito foram introduzias como penas autônomas
com a Reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984. Até então, as
restrições de direitos decorrentes da condenação penal tinham o caráter de
penas acessórias.
Desnecessário, diante da declaração de um estado de coisa
inconstitucional do sistema prisional brasileiro, reconhecer que, entre nós, a
prisão faliu na missão de prevenção e reprovação do crime. Há uma
elevadíssima sobrepena, pela desumanidade do sistema. De outro lado, a
pena privativa de liberdade não reeduca. A contrário, deteriora. Não consegue
recuperar o condenado, mas muito provavelmente o corromperá ainda mais.
Perante todos os efeitos deletérios da prisão, a legislação penal moderna vem
buscando soluções alternativas para punir o condenado, sem ter que lhe tirar a
liberdade, submetendo-o a crueldade penitenciária. Por isso, todo incentivo
deve ser dado a penas restritivas de direitos que possam ser adequadas e
efetivas.
As penas restritivas de direito, no regime do Código Penal – e na
ausência de regra diversa, também na Lei no 13.869/2019 –, embora sejam
penas autônomas, têm caráter substitutivo (art. 44, caput). Não há nos
preceitos sancionadores da parte especial do Código Penal – nem nos da Lei
de Abuso de Autoridade – a cominação de penas restritivas de direito. Assim,
primeiro deverá ser imposta uma pena privativa de liberdade e, após tal
operação de fixação da pena privativa de liberdade, e, preenchidos os
requisitos objetivos e subjetivos do art. 44 do Código Penal, será possível sua
substituição pela pena restritiva de direito.4
Na Lei no 13.869/2019, os incisos I e II da cabeça do art. 5o estabelecem
quais são as penas restritivas de direitos aplicáveis a agente público que seja
condenado, afastando as penas restritivas de direito previstas no art. 44 do
Código Penal.5 O artigo 5o da Lei de Abuso de Autoridade é regra especial,
que prevalece sobre as regras gerais do Código Penal.
2. Prestação de serviços à comunidade ou entidade pública. O inciso I
do art. 5o trata da pena de prestação de serviços à comunidade. Não havendo
regras específicas, seu regime deve seguir as disposições do Código Penal.
A prestação de serviços à comunidade ou entidade pública consiste na
atribuição de tarefas gratuitas ao condenado (CP, art. 46, § 1o), junto a
entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos
congêneres, em programas comunitários ou públicos (CP, art. 46, § 2o).
Os serviços devem ser prestados segundo as aptidões do condenado. A
prestação de serviços à comunidade deve ser cumprida à razão de 1 hora de
tarefa por dia de condenação (art. 46, § 3o).6 Além disso, se a pena
substituída for superior a um ano, é facultado ao condenado cumpri-la em
menor tempo, nunca inferior a 6 meses (CP, art. 46, § 4o). Tal medida parece
injusta e contraditória. O condenado a pena maior – superior a 1 ano e
inferior a 4 anos – teria um benefício que o condenado a pena inferior –
superior a 6 meses e igual ou inferior a 1 ano – não dispõe. Nesse caso, por
medida de justiça, deve-se aceitar que este último pleiteie a aplicação
analógica do dispositivo, o que viria em seu benefício.7
A designação da entidade na qual será prestado o serviço, a designação de
dias e horários de cumprimento da pena e eventual alteração da forma de
execução ficam a cargo do juiz da execução (LEP, art. 149). Aliás, incumbe
ao juiz da execução, previamente, cadastrar as entidades que deverão receber
os condenados para prestação de serviços. Com a designação da entidade e o
início da prestação dos serviços, a entidade deverá encaminhar ao juiz da
execução, mensalmente, relatório circunstanciado das atividades do
condenado. Deverá, ainda, a qualquer tempo, comunicar sua ausência ou
faltas disciplinares (LEP, art. 150).
Por fim, o patronato público ou particular deveria orientar os condenados
à pena restritiva de direitos e fiscalizar o cumprimento da pena (LEP, art. 79,
incisos I e II). Infelizmente, contudo, este órgão da execução penal não existe
na grande maioria das comarcas.8
3. Suspensão do exercício do cargo, da função ou do mandato. O inciso II
do art. 5o prevê a pena restritiva de direitos, consistente na suspensão do
exercício do cargo, da função ou do mandato, pelo prazo de 1 (um) a 6 (seis)
meses, com a perda dos vencimentos e das vantagens. Trata-se de pena
específica da Lei de Abuso de Autoridade, que não encontra correspondente
no Código Penal.
A pena mostra-se extremamente severa, por não pelo período de
suspensão, de 1 a 6 meses, mas por sua consequência de que em tal período
haverá “a perda dos vencimentos e vantagem”. Com isso, ficará o agente
público desprovido de fonte de renda, para seu sustento ou de seus familiares.
Não havendo regra específica para a estipulação do prazo de suspensão
do exercício do cargo, da função ou do mandato, deverá seguir equitativa e
proporcionalmente o quantum de pena privativa de liberdade que fora
originariamente aplicado, antes da substituição por penas restritivas de
direito. Se pena detentiva foi fixada no mínimo legal, a suspensão deverá ser
de 1 mês; próxima do mínimo, em um período pouco superior em cerca de 2
meses; próxima o tempo médio, de 3 a 4 meses; próxima do máximo, em
cerca de 5 meses; no máximo, a suspensão será pelo período de 6 meses.
Indiretamente, pois, será regida pelos critérios trifásicos de dosimetria da
pena privativa (CP, art. 68, do CP) 4. Veto à “proibição de exercer funções
de natureza policial ou militar no Município em que tiver sido praticado
o crime e naquele em que residir ou trabalhar a vítima”.
O inciso III do caput do art. 5o previa a pena restritiva de direitos, de
“proibição de exercer funções de natureza policial ou militar no Município
em que tiver sido praticado o crime e naquele em que residir ou trabalhar a
vítima, pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) anos”.
O dispositivo foi vetado pelo Presidente da República, sob o seguinte
fundamento: “A propositura legislativa, ao prever a proibição apenas àqueles
que exercem atividades de natureza policial ou militar no município da
prática do crime e na residência ou trabalho da vítima, fere o princípio
constitucional da isonomia. Podendo, inclusive, prejudicar as forças de
segurança de determinada localidade, a exemplo do Distrito Federal, pela
proibição do exercício de natureza policial ou militar.”
As razões do veto não convencem. Parece ser muito mais tributária de um
saudoso espírito de corpo do Presidente da República, em proteger
indevidamente os agentes policiais, civis e militares, bem como os
integrantes das Forças Armadas, do que um problema efetivo. Isso porque, na
revogada Lei no 4.898/1965, havia previsão no mesmo sentido, no § 5o do
artigo 6o: “Quando o abuso for cometido por agente de autoridade policial,
civil ou militar, de qualquer categoria, poderá ser cominada a pena autônoma
ou acessória, de não poder o acusado exercer funções de natureza policial ou
militar no município da culpa, por prazo de 1 (um) a 5 (cinco) anos”.
5. Aplicação das penas restritivas de direitos. Já foi visto que as penas
restritivas de direitos aplicáveis aos crimes de abuso de autoridade são apenas
as previstas nos incisos I e II do art. 5o da Lei no 13.869/2019, que
estabelecem regras especiais para os agentes públicos. Por outro lado, não há
qualquer previsão específica sobre os critérios para a aplicação das penas
restritivas de direitos, sendo aplicáveis, subsidiariamente, as regras do
Código Penal, nos termos de seu artigo 12. Logo, as penas restritivas de
direitos são do artigo 5o da Lei no 13.869/2019, substitutivas das penas
privativas de liberdade. A substituição ocorre na própria sentença
condenatória (CP, art. 59, IV), segundo os critérios do art. 44 do CP.
Se o réu é condenado a uma pena privativa de liberdade, que seja fixada
em até quatro anos,9 e estando também presentes os requisitos subjetivos
(CP, art. 44), o juiz da condenação deverá substituir a pena privativa de
liberdade por restritiva de direitos. Na condenação igual ou inferior a um ano,
a substituição pode ser feita por multa ou por uma pena restritiva de direitos;
se superior a um ano, a pena privativa de liberdade pode ser substituída por
uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas restritivas de direito (art.
44, § 2o).
Se houve a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade
por restritiva de direito, é porque a pena de prisão não era superior a quatro
anos. Além disso, o condenado não era reincidente em crime doloso (CP, art.
44, inc. II). Por fim, a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a sua
personalidade, bem como os motivos e as circunstâncias do delito indicavam
ser a substituição suficiente (CP, art. 44, inc. III). Ora, esses requisitos são os
mesmos do art. 59 do CP.10 Contudo, como é possível que se aplique a pena
restritiva de direitos, havendo reincidência (art. 44, § 3o), poderia se imaginar
um caso em que, mesmo sendo a pena privativa de liberdade inferior a quatro
anos, o regime inicial não fosse o aberto, mas o semiaberto, por ser o
condenado reincidente.
6. Aplicação das penas restritivas de direitos autônoma ou
cumulativamente. No sistema do Código Penal, com a reforma de 1984, as
penas restritivas de direito passaram a ser penas substitutivas das penas
privativas de liberdade e, portanto, penas autônomas. Logo, não tem sentido a
expressão “autonomamente”. A pena privativa de liberdade, no regime geral
de penas, sempre será uma pena autônoma. Normalmente, aplicada em
substituição à pena privativa de liberdade.
Assim, a palavra “autônoma” deve ser interpretada no sentido de
“isolada”. Logo, de acordo com o parágrafo único do artigo 5o da Lei no
13.869/2019, as penas restritivas de direitos poderão ser aplicadas, isolada ou
cumulativamente. Isto é, em substituição à pena privativa de liberdade
originariamente aplicada, poderá ser imposta, isoladamente, só a pena de
prestação de serviços à comunidade (art. 5o, I) ou apenas a restritiva de
direitos de suspensão do exercício do cargo, da função ou do mandato (art.
5o, II). Mas também poderão ser impostas cumulativamente, sempre com a
devida fundamentação, ambas as penas restritivas de direitos dos incisos I e II
do art. 5o da Lei no 13.869/2019.11

___________________
1. Nesse sentido: José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal. Rio de
Janeiro: Forense, 1962. v. III, p. 107; Damásio E. de Jesus, Código de Processo Penal
anotado, 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 84; Alexander dos Santos Macedo, A
eficácia preclusiva panprocessual dos efeitos civis da sentença penal. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 1989, p. 35-36.
2. CP, art. 45, § 1o: “A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a
seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de
importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360
(trezentos e sessenta) salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de
eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários”.
3. Nesse sentido: Gabriela Marques e Ivan Marques, A nova Lei de Abuso de Autoridade.
Lei 13.869/2019 – Comentada artigo por artigo. São Paulo: RT, 2019, p. 45.
4. Há, contudo, regimes diversos. O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 78,
permite que a penas restritivas de direitos sejam impostas cumulativa ou
alternativamente com a pena privativa de liberdade. Também no Código de Trânsito
Brasileiro “a suspensão ou a proibição de se obter a permissão ou a habilitação para
dirigir veículo automotor pode ser imposta isolada ou cumulativamente com outras
penalidades” (art. 292). Além disso, para vários crimes (arts. 302, 303, 306, 307 e 308)
a pena de “suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para
dirigir veículo automotor” vem expressamente prevista no preceito sancionador. Nos
Juizados Especiais Criminais, as penas restritivas de direito podem ser impostas em
decorrência da transação penal (art. 76), nos casos de infrações penais de menor
potencial ofensivo (art. 61), ou ao final do processo, em decorrência de sentença penal
condenatória, cuja pena privativa de liberdade tenha sido substituída.
5. A Lei no 9.714/1998 ampliou o elenco de penas restritivas de direito do Código Penal,
cujo art. 43 do passou a prever as seguintes penas restritivas de direito: I – prestação
pecuniária; II – perdas de bens e valores; III – vetado; IV – prestação de serviços à
comunidade ou a entidades públicas; V – interdição temporária de direitos; VI –
limitação de fim de semana. Além disso, o art. 47 passou a prever uma nova subespécie
de restrição temporária de direito, a proibição de frequentar determinados lugares (inc.
IV). As novidades, portanto, são apenas três: a prestação pecuniária, a perda de bens ou
valores e a proibição de frequentar determinados lugares. Na disciplina da prestação
pecuniária há, ainda, a previsão da pena de “prestação de outra natureza” (CP, art. 45, §
2o) 6. Em razão disso, fica revogado o § 1o, do art. 149, da LEP.
7. Luis Flávio Gomes (Penas e medidas alternativas à prisão. 1. ed., 2 tir. São Paulo: RT,
1999, p. 144) critica a disposição: “Réu condenado a pena menor não contaria com o
direito de ‘encurtar’ a execução (duração); réu condenado à pena maior, sim. É uma
injustiça! Logo, para se fazer justiça, deve-se permitir a todos os condenados que,
querendo, ‘encurtem’ a duração da pena de prestação de serviços até a metade,
respeitando-se o patamar mínimo de seis meses”. No mesmo sentido, afirmando ser
possível invocar-se a analogia, Cezar Roberto Bitencourt, Novas penas alternativas,
São Paulo: Saraiva, 1999, p. 141. No mesmo sentido, especificamente em relação a
pena de prestação de serviços à comunidade por crime de abuso de autoridade: Greco e
Cunha, Abuso de Autoridade…, p. 48.
8. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: INFOPEN
Atualizado em junho de 2016 (Organização, Thandara Santos; colaboração Marlene
Inês da Rosa et al. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento
Penitenciário Nacional, 2017, p. 18), existem 1449 estabelecimentos penais no país.
Há, contudo, apenas 4 Patronatos!
9. Cabe relembrar que nenhum dos crimes da Lei no 13.869/2019 tem pena máxima
cominada superior a 4 anos de detenção.
10. Com exceção às “consequências do delito” e ao “comportamento da vítima”.
11. Com isso, no caso de penas restritivas de direitos por crime de abuso de autoridade,
perante a regra especial do parágrafo único do artigo 5o, não terá aplicação a regra
geral do § 2o do art. 44 do CP, que somente admite a aplicação de duas penas
restritivas de direitos no caso de a pena privativa de liberdade substituída ser superior
a um ano.
Capítulo V
Das Sanções de Natureza Civil e Administrativa

GUSTAVO BADARÓ

Art. 6o As penas previstas nesta Lei serão aplicadas


independentemente das sanções de natureza civil ou
administrativa cabíveis.
Parágrafo único. As notícias de crimes previstos nesta Lei
que descreverem falta funcional serão informadas à
autoridade competente com vistas à apuração.

COMENTÁRIOS:
1. Noções Gerais. O Capítulo V da Lei no 13.869/2019 é denominado
“Das sanções de natureza civil e administrativa”. Todavia, os artigos 6o a 8o
da Lei de Abuso de Autoridade disciplinam, em verdade, o relacionamento
entre a instância penal, de um lado, e as instâncias civil (jurisdicional) e
administrativa, de outro, por crime de abuso de autoridade.
Os artigos 7o e 8o da Lei no 13.869/2019, em substância, reproduzem as
regras gerais, existentes no Código Civil e no Código de Processo Penal,
sobre a denominada “ação civil ex delicto”.
2. Independência do processo penal em relação aos processos cível e
administrativo. O art. 5o trata da independência do processo penal, de um
lado, e dos processos civis (entendidos com o não-penais) e administrativos,
de outro. Ou, o que seria o verso da mesma medalha, a regra admite a
cumulatividade das sanções de natureza penal, de um lado, e de natureza civil
ou administrativa, de outro.
O dispositivo da Lei de Abuso de Autoridade reescreve o art. 125 da Lei
o
n 8.112/1990.
3. Relativização da independência das instâncias. A independência das
instâncias, como se verá, não é absoluta. O próprio artigo 7o, parte final, da
Lei no 13.869/2019 prevê exceções, no caso de absolvição penal. Por outro
lado, na hipótese de condenação penal, o art. 63, caput, do CPP, estabelece
que sentença penal condenatória transitada em julgado é título executivo
judicial. A mesma regra é estabelecida no artigo inciso VI do art. 515 do
CPC.
4. “Notícia do crime”. Para dar efetividade a tal regra de cumulatividade
de sistemas sancionatórios, o parágrafo único prevê a “notícia de crime”. A
expressão “notícia de crime” deve ser entendida no sentido de ser
comunicação da provável prática de um crime de abuso de autoridade que, no
caso, também caracterize, no plano administrativo, provável infração
disciplinar a ensejar a responsabilidade administrativa do agente pelo mesmo
fato. Deverá conter a exposição do fato caracterizador do abuso de
autoridade, que se considera o seu provável autor a menção de eventuais
provas existentes que permitam viabilizar a atuação administrativa.
A informação da prática de delito deve ser enviada para a “autoridade
competente com vistas à apuração”. Todavia, nem sempre será fácil para a
Autoridade policial, para o representante do Ministério Público, ou mesmo
para o magistrado, que tomarem contato com a notícia de crimes de abuso de
autoridade, que também constituam falta funcional, saber qual será a
autoridade “competente” para o processo administrativo por infração
disciplinar. Normalmente, há corregedorias nas diversas instituições a quem
compete as atividades correicional e disciplinar. Em tal caso, é suficiente que
a comunicação se faça ao corregedor, que depois encaminhará a notícia do
fato para “autoridade competente” para a apuração e processamento.

Art. 7o As responsabilidades civil e administrativa são


independentes da criminal, não se podendo mais
questionar sobre a existência ou a autoria do fato quando
essas questões tenham sido decididas no juízo criminal.

BIBLIOGRAFIA:
ASSIS, Araken de. Eficácia civil da sentença penal. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2000;
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 7. ed. São Paulo: RT, 2019;
GRINOVER, Ada Pellegrini. Eficácia e autoridade da sentença penal. São Paulo: Ed.
RT, 1978; LIEBMAN, Enrico Tulio. A eficácia da sentença penal no processo civil.
In: Eficácia e autoridade da sentença. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984;
SCARANCE FERNANDES, Antonio. O papel da vítima no processo criminal. São
Paulo: Malheiros, 1995; STOCO, Rui Tratado de responsabilidade civil. 5. ed. São
Paulo: Ed. RT, 2001.

COMENTÁRIOS:
1. Noções Gerais. O artigo 7o da Lei de Abuso de Autoridade disciplina a
independência das instâncias, isto é, a do processo penal, de um lado, e dos
processos civil e administrativo, de outro.
Com relação à responsabilidade civil, regra semelhante já está prevista no
art. 935 do CC. Por outro lado, a independência da instância administrativa,
em relação à seara criminal, estava disposta no art. 125 da Lei no 8.112/1990,
que estabelece: “Art. 125. As sanções civis, penais e administrativas poderão
cumular–se, sendo independentes entre si”. Tal independência, contudo, é
uma regra geral, mas que admite exceções.
2. A mitigação da independência das instâncias penal em relação à
civil e à administrativa. Embora o art. 6o da Lei no 13.869/2019 estabeleça a
independência das instâncias, civil e administrativa, de um lado, e penal, de
outro, esse isolamento não é absoluto.1
A regra geral da independência das instâncias e, no caso de condenação,
da responsabilidade civil e administrativa, de um lado, e da responsabilidade
penal, de outro, já prevista no art. 6o e repetida na parte inicial do art. 7o, é
excepcionada, em alguns casos de absolvição.
Em outras palavras, a parte final do art. 7o da Lei no 13.869/2019 prevê
casos em que a absolvição penal vinculará as instâncias civil e administrativa,
impedido a responsabilização do agente público. O mesmo fenômeno se
repete no art. 8o da mesma lei.
3. Efeitos civis da absolvição penal. A regra geral é a independência das
instâncias, que, prevista na primeira parte do art. 7o da Lei no 13.869/2019,
reproduz regra geral de independência da jurisdição civil e da penal (CC, art.
935, primeira parte, e CPP, art. 66, primeira parte). Assim, normalmente, a
absolvição penal não impede a propositura da ação civil ex delicto. O mesmo
se diga no caso de improcedência da imputação penal por abuso de
autoridade.
A regra geral da independência das instâncias se justifica porque no
processo penal vige a máxima in dubio pro reo incidindo sobre o acusador
todo o ônus da prova, que não é distribuído entre ambas as partes. Não há,
pois, que se cogitar de regras de distribuição do ônus da prova (CPC, art. 373,
caput) e, muito menos, de distribuição dinâmica do ônus da prova (CPC, art.
373, § 1o). Além disso, no processo penal há um standard probatório mais
elevado, somente se admitindo a condenação quando a culpa, em sentido lato,
estiver provada “além de qualquer dúvida razoável”. No processo civil, e
mesmo no processo administrativo sancionador, admitem-se níveis de
convencimento mais rebaixados, como a prova clara e convincente ou mesmo
a mera preponderância de provas. Portanto, um mesmo conjunto probatório,
que poderá significar um estado de dúvida no processo penal, poderá ser
suficiente para permitir que o fato fosse considerado provado no processo
civil ou no processo administrativo disciplinar. Em suma, normalmente, as
portas das esferas civil e administrativa não ficarão trancadas em razão de
uma absolvição criminal pelo mesmo fato.
Há, contudo, duas exceções, na parte final do artigo 7o da Lei no
13.869/2019: (i) se a sentença penal absolutória reconhecer que o fato não
existiu;2 (ii) se a sentença penal absolutória reconhecer que o réu não foi o
autor do crime.3
3.1 A inexistência do fato. A absolvição penal em que se decide
categoricamente, sobre a questão da existência do fato e aquela que
reconhece “a inexistência material do fato”, prevista no inciso I do caput do
art. 386 do CPP. A referência à inocorrência do fato trata do acontecimento
da natureza, isto é, sua inexistência no mundo fenomênico. Não tem relação
com a atipicidade do fato, que leva à absolvição com fundamento no inciso
III do mesmo artigo. Diversamente, nos casos de absolvição fundada na
dúvida, seja quanto à existência do fato (CPP, art. 386, caput, II), será
possível a propositura da ação cível.
3.2 Autoria do fato. A questão da autoria estará decidida na instância
penal, não mais se podendo questionar sobre a responsabilidade civil ou
administrativa, no caso de sentença absolutória por “estar provado que o réu
não concorreu para a infração penal” (CPP, art. 386, caput, IV). Em tal
hipótese, estará impossibilitada a propositura de ação civil ex delicto ou a
instauração de processo administrativo disciplinar pelo mesmo fato.
Já na hipótese de dúvida quanto à autoria delitiva, isto é, de “não existir
prova de ter o réu concorrido para a infração penal” (CPP, art. 386, caput, V),
como já analisado, por se tratar de uma aplicação do in dubio pro reo no que
se refere à autoria delitiva, não há vedação para a propositura da ação civil ex
delicto. A questão não se achará decidida, no sentido de “resolvida” ou
“definida” ou “acertada”, havendo apenas a absolvição pelo benefício da
dúvida.
4. Vinculação da absolvição e contraditório. O art. 7o da Lei no
13.869/2019, ao estabelecer uma vinculação da instância civil e
administrativa aos motivos do que tenha sido decidido no julgado penal,
amplia os limites objetivos da coisa julgada que, em regra, atingem apenas o
dispositivo da sentença em que se julga o pedido. No caso de uma sentença
absolutória, o dispositivo apenas julga improcedente a ação penal. Todavia,
adentrando no fundamento da absolvição, o dispositivo estabelece que, se tal
juízo de improcedência se deu por exclusão categórica da existência do fato,
a sentença penal absolutória excluirá a possibilidade de futura ação civil ex
delicto.
Tal regra ultrapassa os normais limites objetivos da coisa julgada, que
apenas atinge o dispositivo da sentença (CPC, art. 504).4 Como explica
Liebman, excepcionalmente nesse caso, há uma “eficácia anormal da
sentença penal”, isto é, “uma eficácia, vinculante para o juiz cível, da decisão
proferida pelo juiz penal, sobre algumas questões de fato e de direito, que são
comuns ao processo penal e ao conexo processo civil”.5
Aliás, tal situação ocorre não apenas no caso do art. art. 7o da Lei no
13.869/2019, mas também no caso do art. 8o da mesma Lei, que também
prevê a extensão da coisa julgada penal ao campo civil e administrativo, no
caso de excludentes de ilicitude. Trata-se, apenas, de uma técnica legislativa
diversa.6
Porém, seja mantendo os limites objetivos da sentença apenas quanto ao
dispositivo, seja os estendendo, anormalmente, para os fundamentos de fato e
de direito do julgado, a coisa julgada não pode atingir terceiros que não
foram parte no processo. Como projeção da garantia do contraditório, a coisa
julgada – mesmo quando tem “eficácia anormal” – somente poderá atingir
quem foi parte no processo (CPC, art. 506).
Fazer com que a sentença absolutória atinja, de forma imutável, quem
não foi parte no processo viola os limites subjetivos da coisa julgada. Por
tudo isso, o artigo 7o – e também o artigo 8o – da Lei n 13.869/2019, quando
estende a coisa julgada da sentença penal absolutória em relação à vítima do
delito, é incompatível com a garantia constitucional do contraditório. Em
outras palavras, se a vítima do delito não participou do contraditório
instituído no juízo penal, sendo-lhe impossível trazer seus argumentos,
produzir suas provas e, em última análise, influenciar no convencimento
judicial, não poderá ficar vinculada ao resultado do processo penal.7

Art. 8o Faz coisa julgada em âmbito cível, assim como no


administrativo-disciplinar, a sentença penal que
reconhecer ter sido o ato praticado em estado de
necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento
de dever legal ou no exercício regular de direito.

BIBLIOGRAFIA:
ASSIS, Araken de. Eficácia civil da sentença penal. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2000;
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 7. ed. São Paulo: RT, 2019; GRECO
FILHO, Manual de processo penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009; TORNAGHI,
Hélio. Curso de Processo Penal. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1

COMENTÁRIOS:
1. Noções Gerais. O art. 8o da Lei no 13.869/2019 é desnecessário, pois
se limita a reescrever a regra do art. 65 do CPP: “Faz coisa julgada no cível a
sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de
necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou
no exercício regular de direito”.
2. Transporte da coisa julgada penal para o civil e o administrativo.
No caso de sentença absolutória penal, em razão do reconhecimento de
excludente de ilicitude, o art. 8o da Lei no 13.869/2019 prevê que faz coisa
julgada, no âmbito civil e no administrativo, a sentença penal absolutória que
reconhecer que o fato foi praticado com excludente de ilicitude.
A correta compreensão do dispositivo exige que se parta da premissa de
que se trata de uma exceção à regra geral da independência da instância
penal, de um lado, e civil e administrativa, de outro, estabelecida no art. 6o,
caput, e na primeira parte do art. 7o, ambos da Lei no 13.869/2019. Se a regra
é a não influência do campo penal no civil e no administrativo, e vice-versa,
o art. 8o do CPP trata de uma situação oposta, em que, no caso de excludente
de ilicitude, a sentença penal absolutória projetará seus efeitos sobre o
processo civil ou administrativo.
3. Desnecessidade de reconhecimento categórico da excludente de
ilicitude. O art. 8o prevê que a sentença penal absolutória que reconhecer que
o fato foi praticado numa das hipóteses de excludente de ilicitude fará coisa
julgada no âmbito civil. Diversamente do que ocorre no art. 7o, segunda
parte, da mesma Lei, que somente prevê a influência da sentença penal
absolutória que reconhecer “categoricamente” a inexistência do fato ou a
negativa de autoria delitiva, no artigo 8o, em relação à excludente de ilicitude,
não há tal exigência. Assim, pouco importa se a absolvição se deu porque
restou demonstrada, de modo categórico, a excludente de ilicitude (CPP, art.
386, caput, inc. VI, primeira parte), ou porque houve “fundada dúvida sobre
sua existência” (CPP, art. 386, caput, inc. VI, segunda parte).
4. Hipóteses de absolvição por excludentes de ilicitude. O CP, no art.
23, considera excludente de ilicitude a legítima defesa, o estado de
necessidade, o exercício regular de um direito e o estrito cumprimento do
dever legal. Por sua vez, o art. 8o da Lei no 13.869/2019 estabelece que faz
coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato
praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito
cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
Já no campo cível, o CC, no art. 188, inciso I, dispõe que não constituem
atos ilícitos “os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um
direito reconhecido”. Já o inciso II e o parágrafo único do mesmo dispositivo,
embora sem mencionar expressamente, tratam do estado de necessidade.
4.1 Estado de necessidade. O estado de necessidade é causa de exclusão
de ilicitude no direito penal (CP, art. 23, I) e no direito civil (CC, art. 188, II).
Sendo a conduta lícita no âmbito criminal, e valendo a coisa julgada penal no
âmbito civil, em regra, a absolvição criminal impede a propositura da ação
civil (CPP, art. 66).
Contudo, também quanto ao estado de necessidade, há previsão legal de
reparação do dano mesmo para o fato lícito. O art. 929 do CC dispõe que: “Se
a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não
forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo
que sofreram”. Por sua vez, o art. 930, caput, determina que, “no caso do
inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá
o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido
ao lesado”.
Trata-se da situação em que alguém pratica um ato típico, em estado de
necessidade de outrem, sendo que a situação de perigo foi causada por uma
terceira pessoa. O autor do fato típico será absolvido no processo penal (CPP,
art. 386, caput, VI). Todavia, como quem sofreu o dano não foi quem causou
o estado de perigo, ela poderá promover ação cível em face do autor do dano,
mesmo este tendo agido em estado de necessidade e sendo lícita sua conduta.
Quem agiu em estado de necessidade terá que ressarcir o dano, ficando com
direito de regresso contra o causador do perigo (CC, art. 930, caput).
Poderia o legislador, em tal caso, estabelecer que a vítima do dano
poderia buscar seu ressarcimento diretamente contra quem causou a situação
de perigo, evitando a necessidade de dois processos. Seria, inclusive, mais
justo e evitaria a situação anômala de responsabilizar quem agiu licitamente.
Todavia, não foi essa a opção do Legislativo.
4.2 Legítima defesa. A legítima defesa é causa de licitude do ato tanto na
esfera civil (CC, art. 188, I) quanto na criminal (CP, art. 23, II). Além disso, a
sentença penal absolutória, que reconhece a legítima defesa, faz coisa julgada
no cível (CPP, art. 65). Sendo o ato lícito no âmbito penal e no civil, em
regra, não há que se cogitar de ação civil ex delicto.
Excepcionalmente, contudo, mesmo o ato sendo lícito, a lei civil prevê o
direito à reparação do dano. O art. 930, parágrafo único, do CC, prevê que,
no caso de legítima defesa, “se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra
este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver
ressarcido ao lesado”. Trata-se de hipótese de legítima defesa real com
aberratio ictus. Por exemplo: A agride injustamente B, que, em legítima
defesa, atira contra A (que é o causador do perigo ilícito). Todavia, por erro
na execução, o ato defensivo de B, que visava atingir A, acaba vitimando C.
Nesse caso, C ou seus herdeiros poderão pedir indenização a B, que, mesmo
tendo agido licitamente, terá o dever de reparar o dano, podendo depois, em
ação regressiva, voltar-se contra A.
4.3 Estrito cumprimento do dever legal. O art. 23, III, do Código Penal
arrola expressamente o estrito cumprimento do dever legal entre as
excludentes de ilicitude. Por outro lado, o art. 188 do CC de 2002 não
menciona o estrito cumprimento do dever legal como causa que torna o fato
lícito. Por sua vez, o art. 8o do CPP diz fazer coisa julgada no cível a sentença
absolutória que reconhecer o estrito cumprimento do dever legal.
Todavia, como explica Frederico Marques, “o próprio cumprimento do
dever legal, não explícito no art. 160, [equivale ao atual art. 188 do CC de
2002] nele está contido, porquanto atua no exercício regular de um direito
reconhecido aquele que pratica um ato no estrito cumprimento do dever
legal”.8 Portanto, a conduta praticada no estrito cumprimento do dever legal
será lícita, tanto no campo penal quanto na área cível, não se podendo exigir
a indenização do agente estatal que causou o dano.
Registre-se, porém, que há corrente doutrinária no sentido de que, mesmo
excluída a indenização em relação ao agente, no caso de estrito cumprimento
do dever legal, ao Estado permanece o dever de indenizar, nos termos do art.
37, § 6o, da CR.9 Discorda-se, na medida em que o dispositivo constitucional
prevê a responsabilidade objetiva do Estado, por atos de seus agentes, mas tal
responsabilidade pressupõe a ilicitude do ato. No caso de atos lícitos
praticados pelo agente estatal, não haverá dever de indenização por parte do
Estado.
4.4 Exercício regular de direito. O fato praticado no exercício regular
de um direito (CP, art. 23, III, c.c. CC, art. 188, I) faz coisa julgada no juízo
cível, quando reconhecido na sentença penal absolutória. O fato é penal e
civilmente lícito, não cabendo nova discussão no campo civil.

___________________
1. O art. 64, caput, do CPP prevê a possibilidade da tramitação da ação para o
ressarcimento do dano, em sentido lato, no âmbito civil, independentemente da
existência ou não de ação penal. O sistema adotado pelo CPP, portanto, também é o da
independência entre as instâncias penal e civil.
2. Essa mesma exceção é prevista no sistema geral do processo penal: CPP, art. 66,
segunda parte, c.c. art. 386, caput, I., bem como na parte final do art. 935 do CC.
3. A segunda exceção não está prevista no Código de Processo Penal, mas consta do
Código Civil, na parte final do art. 935, sendo aplicável na hipótese de absolvição penal
do inciso V do caput do art. 386 do CPP.
4. A interpretação é extraída, a contrario sensu. Todavia, o CPC de 2015 altera o regime
anterior, quanto à questão prejudicial, que também poderá ser atingida pela coisa
julgada, desde que satisfeitos os requisitos do §§ 1o e 2o do art. 503.
5. Enrico Tulio Liebman, A eficácia da sentença penal no processo civil. In: Eficácia e
autoridade da sentença. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 263-264.
6. As mesmas observações valem para as vinculações das absolvições criminais previstas
nos artigos 65 e 66 do CPP.
7. Nesse sentido: Ada Pellegrini Grinover, Eficácia e autoridade da sentença penal. São
Paulo: Ed. RT, 1978, p. 53-54; Araken de Assis, Eficácia civil da sentença penal. 2. ed.
São Paulo: Ed. RT, 2000, p. 103; Rui Stoco, Tratado de responsabilidade civil. 5. ed.
São Paulo: Ed. RT, 2001, p. 182. Para tanto, observa Antonio Scarance Fernandes (O
papel da vítima no processo criminal. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 176) que a vítima
e o responsável civil deveriam poder intervir no processo com possibilidade plena de
provar a existência ou a inexistência da responsabilidade civil.
8. José Frederico Elementos de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1962. v.
III, p. 305. Em sentido contrário, analisando a questão à luz do art. 160 do CC de 1916,
Hélio Tornaghi (Curso de Processo Penal. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. 88)
entendia que o estrito cumprimento do dever legal excluía a ilicitude penal, mas não a
responsabilidade civil, sendo justo e razoável que o dano fosse reparado ou ressarcido.
9. Nesse sentido: Vicente Greco Filho, Manual de processo penal. 7. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 149; Araken de Assis, Eficácia civil da sentença penal. 2. ed. São
Paulo: Ed. RT, 2000, p. 110.
Capítulo VI
Dos Crimes e das Penas

PIERPAOLO CRUZ BOTTINI

Art. 9o Decretar medida de privação da liberdade em


manifesta desconformidade com as hipóteses legais:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena a autoridade
judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:
I – relaxar a prisão manifestamente ilegal;
II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar
diversa ou de conceder liberdade provisória, quando
manifestamente cabível;
III – deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando
manifestamente cabível.

BIBLIOGRAFIA:
CAMPOS, Ricardo e LEITE, Alaor. Limites ao abuso de autoridade no direito
alemão, disponível em [www.conjur.com.br/2019-set-14/opiniao-limites-abuso-
autoridade-direito-alemao-parte], acessado em 15/12/2019; DALlARI, Dalmo de
Abreu. O Poder dos Juízes, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002; SOUZA, Braz Florentino
Henriques de. 1825-1870. Lições de Direito Criminal. Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2003.

COMENTÁRIOS:
Ao tratar do abuso de autoridade, BRAZ FLORENTINO ensinava que “
a ordem pública recebe então um golpe tanto mais profundo, quando ele
provém daqueles mesmos que eram especialmente encarregados de mantê-
la; é um mal em si mesmo grave, e talvez ainda mais grave pelas funestas
consequências do exemplo”1.
O abuso por parte do agente público é grave porque, para além do mal
praticado e sofrido, constitui em exemplo, em inspiração para outros,
desestabilizando um regime de garantias e direitos que constitui a coluna
vertebral de nosso sistema constitucional.
Os exageros e excessos, pontuais ou sistemáticos, por parte de agentes de
Estado não são novidade no Brasil, em especial contra segmentos sociais
menos favorecidos, que sofreram e sofrem a violência e a arbitrariedade
policial e de outros representantes do Poder Público. Por isso, o legislador
brasileiro já previa em dispositivos do Código Penal (CP, art. 350 e outros) e
em lei específica (Lei 4.898/65) a punição de atos abusivos por parte de
agentes públicos.
Mas, talvez pelo recrudescimento de tais condutas, talvez pelo fato de
parte delas ter se expandido e atingido estratos sociais diferentes, cujos
apelos soam com mais força perante o Congresso Nacional, o legislador
entendeu por bem ampliar e regulamentar de forma mais sistemática o rol de
delitos de abuso de autoridade.
Aprovou-se, nesse contexto, a Lei 13.869/19.
A nova regulamentação do abuso de autoridade é importante porque trata
de condutas que afetam o funcionamento adequado dos mecanismos estatais
de exercício de poder. A inibição de prisões ilegais, postergações de atos
essenciais, exibições públicas de investigados parece relevante em um país
em que arbitrariedades dessa ordem fazem parte do cotidiano.
Por outro lado, a norma peca pela falta de técnica em certos dispositivos,
em especial pelo uso de adjetivos desnecessários e termos imprecisos que
exigirão do intérprete um esforço para fixar parâmetros racionais e razoáveis
para sua aplicação, evitando excessos que afetem o exercício legítimo das
atribuições dos agentes públicos.
Em especial nos tipos penais que tratam da atuação de magistrados, o
intérprete deverá cuidar para aplicar a lei sem adentrar nos espaços de
independência de entendimento judicial, sem afetar a liberdade de decisão e
criminalizar a hermenêutica. O juiz, no exercício de suas funções, deve se
manter dentro da legalidade, e qualquer excesso doloso deve ser inibido. Por
outro lado, há um espaço legítimo de interpretação que deve ser preservado.
Ainda que decisões sejam minoritárias ou criticáveis, não apresentam – e não
podem apresentar – dignidade penal se mantidas nos contornos do texto
legal. A definição desses parâmetros e limites, essencial para garantir a
independência judicial, será a tarefa dos intérpretes do direito, que, no
cotidiano, e diante de situações concretas, fixarão balizas e critérios em
precedentes que pautarão interpretações posteriores.
Feitas as considerações introdutórias, passemos à análise dos tipos penais
específicos.
O art. 9o da lei trata da decretação ilegal de restrição de liberdade.
O tipo penal em análise não chega a ser inovador, uma vez que o ora
revogado art. 350 do Código Penal tratava de questão similar. O dispositivo
caracterizava como crime o ato de “ordenar ou executar medida privativa de
liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”.
No mesmo sentido, a alínea a do art. 4o da Lei 4.898/65 dispunha como
abuso de autoridade o ato de “ordenar ou executar medida privativa de
liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”.
O tipo penal em comento é mais restrito porque limitado àquele que
ordena a prisão, ao contrário dos dispositivos mencionados que estendem a
norma a quem executa a ordem. Por outro lado, a pena é mais severa,
passando de um mês a um ano de prisão para de um a quatro anos e multa.
O tipo penal em comento é próprio e tem como destinatário aquele com
atribuição para a decretação da prisão, ou seja, o agente com poder ou dever
de restringir a liberdade de outrem. A depender da modalidade da restrição
de liberdade, o rol de sujeitos ativos será mais ou menos amplo, mas desde
logo estão fora do âmbito de abrangência da norma as autoridades que
requerem ou recomendam medidas privativas de liberdade, como
promotores, delegados ou mesmo o particular nas hipóteses em que seja
titular da ação penal. Ainda que a pretensão exceda as hipóteses legais, seja
absolutamente teratológica, não será aplicável a norma ora analisada, porque
tais autoridades não têm atribuição para decretar tais medidas, exceto nos
casos de flagrante delito, como a seguir exposto.
O art. 283 do CPP prevê que ninguém poderá ser preso senão em
flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária
competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação
criminal transitada em julgado.
Assim, a prisão será cautelar ou definitiva.
No âmbito cautelar, as modalidades de prisão são: (i) prisão em
flagrante; (ii) prisão temporária; (iii) prisão preventiva.
A prisão em flagrante ocorre quando alguém é surpreendido cometendo
ou tendo acabado de cometer uma infração penal, é perseguido ou
encontrado logo após a ocorrência, em situação que faça presumir ser ele o
autor do delito (CPP, art. 302).
Essa modalidade de prisão pode ser decretada por qualquer pessoa (CPP,
art. 301). Porém, como a lei em comento tem por sujeito ativo apenas agentes
públicos (art. 1o, caput), não incidirá sobre o particular que decretar prisão
em flagrante em desconformidade com as hipóteses legais, a não ser em casos
de concurso com os destinatários da norma, na forma do art. 30 do CP.
Haverá abuso de autoridade quando a prisão for decretada fora das
situações descritas no art. 302 do CPP, como em casos de flagrante
preparado ou provocado em que o agente público induz outrem à prática de
delito com o escopo de efetuar sua prisão. Como se trata de crime impossível,
não há hipótese legal para a restrição de liberdade (Súmula STF 145). O
mesmo não ocorre em casos de flagrante esperado nos quais a autoridade
aguarda o início da execução de crime para proceder à prisão. Nesse caso,
não há provocação à prática do crime, mas apenas o acompanhamento de ato
próprio e espontâneo do agente.
A prisão temporária é prevista na Lei 7.960/89 e pode ser decretada
quando imprescindível ao inquérito policial, quando o indiciado não tiver
residência fixa ou não fornecer elementos para esclarecer sua identidade,
sempre que houver fundadas razões de autoria e participação nos crimes
previstos no inciso III do art. 1o da lei mencionada.
A prisão temporária só pode ser decretada pelo juiz, sendo esta
autoridade a única capaz de cometer o delito de abuso de autoridade nessa
modalidade2. Haverá tipicidade, por exemplo, quando o magistrado decreta a
temporária de ofício, sem provocação, uma vez que a Lei 7.960/89 prevê a
representação da autoridades policial ou o requerimento do Ministério
Público para sua determinação, ou quando ordena a prisão quando não exista
suspeita de autoria ou participação em um dos crimes fixados no inciso III do
art. 1o da lei mencionada.
A prisão preventiva, por fim, é decretada para garantir a ordem pública, a
ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a
aplicação da lei penal quando houver prova da existência do crime e indício
suficiente de autoria (CPP, art. 312). Também será admissível quando houver
dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer
elementos suficientes para esclarecê-la (parágrafo único do mesmo
dispositivo) ou diante do descumprimento de medida cautelar alternativa à
prisão, nos casos em que seja imprescindível (CPP, art. 282, § 4o).
Essa modalidade de prisão é vedada a todos os crimes culposos e para
dolosos punidos com pena de prisão inferior a quatro anos (CPP, art. 313).
Da mesma forma, não se admite contra mulher gestante ou mãe ou
responsável por crianças ou pessoas com deficiências, caso em que a
restrição de liberdade deverá ocorrer na forma domiciliar (CPP, art. 318-A),
nem nos casos em que o juiz verificar que o fato foi praticado com excludente
de antijuridicidade (CPP, art. 314).
Descumpridos tais preceitos, haverá abuso de autoridade. Assim, se o
juiz decretar prisão preventiva para crimes culposos, ou como mera
antecipação da pena, sem fundamento ou motivação nos elementos
constantes do art. 312 do CPP incidirá o crime em tela .
Da mesma forma que a prisão temporária, essa modalidade de prisão só
pode ser decretada pelo magistrado – de primeiro grau ou por
Desembargador ou Ministro em casos de prerrogativa de foro. Trata-se de
crime próprio restrito a tais autoridades.
Fora do âmbito das cautelares, tem-se a prisão como execução da pena. A
prisão para início da execução penal ocorre com a sentença penal
condenatória transitada em julgado, como aponta o art. 5o, LVII da
Constituição Federal e o art. 283 do CPP. Nesse momento, o juiz ordenará a
expedição de guia de recolhimento para a execução, sem a qual ninguém
pode ser cerceado de sua liberdade para cumprimento de pena (LEP, art.
105).
Por algum tempo, o STF entendeu possível a prisão como execução da
pena após a condenação em segundo grau de jurisdição, mas tal postura foi
revista quando do julgamento das ADCs 433, 444 e 545, quando a Corte
reconheceu a constitucionalidade do art. 283 do CPP, que prevê o trânsito em
julgado como requisito da prisão definitiva.
Como se trata de decisão tomada em sede de controle concentrado, seus
efeitos são vinculantes e erga omnes, de forma que todos os magistrados
devem acompanhar a orientação e determinar o início da execução da pena
apenas com o exaurimento de todos os recursos. A decretação de prisão antes
desse momento está fora das hipóteses legais e sua decretação caracterizará
abuso de autoridade.
Ao lado da prisão como início da execução penal existem as hipóteses de
prisão como incidente da execução, que ocorrem nos casos de
descumprimento de condições impostas para substituir a prisão por sanções
menos agressivas, ou a prática de delitos ou faltas incompatíveis com o
benefício, como previsto nas regras de regressão de regime (LEP, art. 118),
de revogação do livramento condicional (CP, arts. 86/87) ou do sursis (CP,
art. 81) e em casos similares. A decretação da prisão nesses casos, sem
respaldo legal, também caracterizará abuso de autoridade.
Por fim, há a prisão civil por dívida, admitida apenas para o responsável
pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia (CF,
art. 5o, LXVII). Nesses casos, a hipótese legal está regulada no art. 528 do
CPC, que admite a prisão por alimentos diante do débito de até 3 prestações
anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do
processo (§ 7o). Nesses casos, a prisão será cabível se em até 3 dias após
intimação pessoal o devedor não efetuar o pagamento, salvo se demonstrada
a impossibilidade demonstrada de fazê-lo.
Na execução da pena de prisão ou na reclusão por dívida de alimentos, o
crime só pode ser praticado pelo magistrado, única autoridade à qual se
atribui o poder de decretar tais atos.
O tipo penal em comento ocorre não apenas quando se decreta prisão
sem observância dos pressupostos legais, mas também quando se determina
qualquer outra forma de restrição da liberdade sem expressa autorização em
lei, como o recolhimento domiciliar ou a condução coercitiva, embora neste
último caso seja aplicável – pela especialidade – o art. 10 da lei em comento.
O tipo penal em estudo foi vetado pelo Presidente da República pelos
seguintes motivos: “A propositura legislativa, ao dispor que se constitui
crime ‘decretar medida de privação da liberdade em manifesta
desconformidade com as hipóteses legais’, gera insegurança jurídica por se
tratar de tipo penal aberto e que comportam interpretação, o que poderia
comprometer a independência do magistrado ao proferir a decisão pelo
receio de criminalização da sua conduta.”.
O veto foi derrubado pelo Congresso Nacional, por entender o legislador
que contornos restritivos do tipo penal limitam sua incidência a casos
excepcionais, quando presente o dolo e a finalidade específica prevista no §
1o do art. 1o da lei em comento. O abuso de autoridade ocorrerá apenas
quando a decretação da prisão estiver em expressa desconformidade com a
lei, a apontar que a discrepância entre a ordem e as hipóteses legais deve ser
evidente, deve saltar aos olhos, ser manifesta.
O próprio § 2o da lei em comento dispõe que “A divergência na
interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso
de autoridade”, em consonância com o art. 41 da LC 35/79, que veda a
punição de magistrado pelo teor das decisões que proferir salvo em casos de
impropriedade ou excesso de linguagem (casos em que será cabível a sanção
disciplinar, mas não a penal, por ausência de dispositivo nesse sentido).
Descabida a aplicação do tipo penal à decretação de prisão com base em
interpretações minoritárias ou mesmo exclusivas do texto legal, desde que
comportem sua literalidade. Aquele com atribuições para determinar a
restrição de liberdade, em especial o juiz, tem liberdade para encontrar,
dentro dos limites da norma, o contexto fático ou jurídico que julga mais
condizente com a justiça e a boa aplicação do direito. Ainda que a
jurisprudência, doutrina ou órgãos judiciais superiores apresentem orientação
diversa, ou mesmo entendam inadequada certa forma de decidir, não existirá
crime se a decisão encontra espaço no sentido literal da norma que
regulamenta a restrição de liberdade.
Criminalizar determinada forma de interpretação, quando lastreada em
lei, afeta a independência judicial, um dos pilares do Estado de Direito.
Como ensina DALMO DALLARI: “A magistratura deve ser independente
para que se possa orientar no sentido da justiça, decidindo com equidade os
conflitos de interesses. O juiz não pode sofrer qualquer espécie de violência,
de ameaça ou de constrangimento material, moral ou psicológico. Ele
necessita da independência para poder desempenhar plenamente suas
funções, decidindo com serenidade e imparcialidade, cumprindo a
verdadeira missão no interesse da sociedade. Assim, pois, segundo essa visão
ideal de juiz, mais do que este, individualmente, é a sociedade quem precisa
dessa independência, o que, em última análise, faz o próprio magistrado
incluir-se entre os que devem zelar pela existência da magistratura
independente.” (“O Poder dos Juízes”, Ed. Saraiva 2a edição. 2002, p. 48-49)
Tal questão já foi objeto de debates na Alemanha. RICARDO CAMPOS e
ALAOR LEITE informam que no direito penal tedesco existe o delito de
“violação ou torsão do Direito” (§ 339 StGB), “que proíbe a conduta do
magistrado ou membro do Ministério Público que, na condução ou decisão
de uma questão jurídica, “viole ou vergue” o Direito ou as regras legais – a
tal “Beugung des Rechts” – em favor ou desfavor de uma das partes”.
Trata-se de dispositivo mais amplo que o ora em comento, e mesmo
assim, foi aplicado em poucas situações e apenas a casos extremos, de
distanciamento gravíssimo do direito e das leis, sendo rechaçada naquele país
a criminalização de uma “qualquer aplicação equivocada do direito”6 .
Assim, a tipicidade do crime em comento só existirá quando a decisão
contrariar frontalmente o texto legal, quando se distanciar de maneira grave
do sentido literal, e quando houver dolo.
Uma questão que merece análise é a natureza jurídica da decretação de
prisão em desconformidade com súmula vinculante ou com decisão judicial
com efeitos erga omnes.
A súmula vinculante é a orientação do STF sobre determinada matéria
que deve ser seguida por todos os órgãos do Poder Judiciário e da
Administração Pública direta ou indireta, em todas as esferas (CF, art. 103-
A). Ainda que tenha efeitos vinculantes, a súmula não é lei, não passou pelo
processo legislativo, de forma que a decretação de prisão que contrarie tal
postulado é estranha ao tipo penal em comento. A inadmissibilidade de
analogia na seara penal impede que se estenda o conceito de hipótese legal
aos preceitos sumulares. A autoridade determina prisão fora das hipóteses
previstas em súmula vinculante pode responder na seara disciplinar, quando
cabível a responsabilidade, e de sua decisão caberá reclamação ao STF (CF,
art. 103-A, § 3o), mas inexistirá tipicidade penal.
O mesmo ocorre com outras decisões judiciais com efeitos erga omnes.
Não se trata de hipótese legal, de forma que seu descumprimento legitima
medidas de correção imediata, como a reclamação, mas não implica
tipicidade, com exceção dos casos em que a Suprema Corte reconhece a
constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de normas ou atos
normativos.
Nesta última hipótese, o STF vai além de fixar uma interpretação, mas
altera o quadro legal, afastando dispositivos ou reconhecendo sua pertinência
à ordem constitucional. Nesse caso, se a Suprema Corte entender
inconstitucional um dispositivo autorizador de prisão, ela deixa de existir no
mundo jurídico, de forma que a decretação de prisão nela fundada estará fora
das hipóteses legais e caracterizará o abuso de autoridade.
Um exemplo é o caso da condução coercitiva, adiante analisada por
constar de tipo penal específico na lei em comento. A Suprema Corte
entendeu como inconstitucional a parte do art. 260 do CPP que autorizava a
condução forçada do acusado para interrogatório (ADPFs 3957 e 4448), de
forma que essa hipótese legal deixou de existir e a decretação da constrição
será considerada abuso de autoridade. Da mesma forma, existirá o crime em
comento quando o magistrado decretar o início da execução da pena antes do
trânsito em julgado, uma vez que o STF definiu a constitucionalidade do art.
283 do CPP e sua desconsideração implicará prisão fora das hipóteses legais.
Vale ainda destacar que o tipo penal em comento se limita a medidas
restritivas de liberdade e não se estende a outras que limitem direitos
distintos, como a proibição de contato com pessoas específicas ou a
suspensão do exercício de função pública. Por outro lado, haverá abuso de
autoridade na decretação de medidas diversas da prisão que impliquem
restrição de liberdade, como o recolhimento noturno domiciliar.
O crime em tela é doloso e exige o elemento subjetivo especial de ter a
finalidade específica de prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou a
terceiro ou o mero capricho ou satisfação pessoal (art. 1o, §1o). Não é
necessário o alcance da pretensão por se tratar de mero exaurimento do tipo
penal, mas é indispensável a identificação do escopo específico que direciona
a conduta de decretação ilegal da prisão.
A pena de 1 a 4 anos admite a suspensão condicional do processo (Lei
9.099/95, art. 89) e a substituição da prisão por restrição de direitos se
presentes os requisitos do art. 44 do Código Penal.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena a autoridade


judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:
I – relaxar a prisão manifestamente ilegal;
II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar
diversa ou de conceder liberdade provisória, quando
manifestamente cabível;
III – deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando
manifestamente cabível.’
As condutas típicas previstas nos incisos do art. 9o são próprias e só
podem ser praticadas por autoridade judicial. Ademais, são omissivas, de
forma que haverá tipicidade sempre que presentes as circunstâncias descritas
em cada dispositivo e que constatada a possibilidade da conduta conforme a
norma. A incapacidade de ação por motivos físicos ou por desconhecimento
do contexto fático afasta a tipicidade, enquanto o desconhecimento da norma
que impõe a atividade é apreciada no âmbito da culpabilidade.
O inciso I trata do relaxamento da prisão. A Constituição Federal dispõe
que a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária
(CF, art. 5o, LXV). O art. 310 do CPP prevê o relaxamento da prisão quando
constatada a ilegalidade do flagrante (CPP, art. 310, I), nos casos em que
ausentes seus pressupostos ou do descumprimento de formalidades essenciais
ao ato. Trata-se de ato judicial que deve ser praticado pelo juiz quando do
recebimento do auto de prisão em flagrante ou quando da realização da
audiência de custódia, que deve ser instaurada em até 24 horas da
comunicação do flagrante (CNJ Res. 213/15) O inciso II tem por objeto a
substituição da prisão por cautelar diversa, que deve ocorrer quando o juiz
constatar a ilegalidade ou a desproporcionalidade da medida, se subsistirem
motivos suficientes para a restrição de outros direitos (CPP, art. 282). A
substituição deve ser imediata quando constatadas as situações descritas, seja
no recebimento do auto do flagrante (CPP, art. 310), seja durante a audiência
de custódia (Res. CNJ 213/15), seja em qualquer outro momento em que
identificada a insubsistência da prisão. Vale destacar que a substituição é
exigível também pela passagem do tempo, quando deixem de existir os
motivos que autorizaram a decretação original da medida de restrição da
liberdade (CPP, art. 282, §5o).
Já o inciso III trata do deferimento de liminar ou ordem de habeas
corpus, cabível sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer
violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de
punição disciplinar (CP, art. 647). As hipóteses de coação ilegal estão
descritas no art. 648 do CPP: (i) ausência de justa causa; (ii) prisão por mais
tempo do que o determinado em lei; (iii) coação decretada por agente
incompetente; (iv) cessação do motivo autorizador da coação; (v) denegação
de prestação de fiança nos casos em que a lei a autoriza; (vi) coação em
decorrência de processo manifestamente nulo; (vii) coação quando extinta a
punibilidade.
A omissão somente será típica em casos de manifesta ilegalidade (inciso
I) ou de cabimento manifesto (incisos II e III). Manifesto é algo evidente, que
salta aos olhos, que se mostra com toda a clareza. Isso significa que a prisão
que se deixa de relaxar, substituir ou de revogar por habeas corpus deve ser
obviamente contrária à lei. Não deve existir qualquer espaço, no sentido
literal possível, para sua manutenção. Se houver divergência jurisprudencial,
discussão sobre a apreciação da prova, ou mesmo posição minoritária ou
exclusiva da autoridade, desde que apoiada em lei, não existirá crime.
Por fim, integra o tipo penal a expressão prazo razoável, a indicar que a
conduta será típica apenas quando decorrido certo período entre a situação
que exige o comportamento da autoridade e a omissão subsequente. Em
regra, quando se trata de prisão, a legislação processual indica um prazo de
24 horas para providências. Nesse período deve ser encaminhado ao juiz o
auto de prisão em flagrante (CPP, art. 306, § 1o), e no mesmo prazo deve o
juiz decidir sobre o pedido de habeas corpus após apresentado e interrogado
o paciente (CPP, art. 660).
Assim, entendemos que o prazo razoável será de 24 horas a partir da
ciência da ilegalidade, a não ser que exista motivo justificado para um lapso
maior que impossibilite a conduta conforme a norma e exclua o dolo da
omissão – que deve ser específico, como já exposto nos comentários ao
caput.
Por se tratar da mesma pena do caput, também aqui admissível a
suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95, art. 89) e a substituição da
prisão por restrição de direitos se presentes os requisitos do art. 44 do
Código Penal.

JULIANO BREDA

Art. 10. Decretar a condução coercitiva de testemunha ou


investigado manifestamente descabida ou sem prévia
intimação de comparecimento ao juízo:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. O tipo penal é pluriofensivo, tutelando
basicamente o direito fundamental à liberdade de locomoção, ainda que
indiretamente a proteção diga respeito também aos direitos individuais
decorrentes da garantia do devido processo legal.
Trata-se de norma que concretiza a proteção das garantias individuais
asseguradas pelo art. 5o da Constituição Federal, incriminando o
constrangimento imposto ao cidadão com uma medida coercitiva decretada
com violação das regras processuais sobre a matéria.
Com efeito, o Código de Processo Penal regulamenta o instituto da
condução coercitiva em seu artigo 260, restringindo sua adoção às situações
expressamente mencionadas9.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar as ADPFs 395 e 44410, declarou
não recepcionada pela Constituição de 1988 a expressão “para o
interrogatório”, sob o entendimento de que a condução de investigado para o
interrogatório, ato eminentemente de concretização do direito de defesa,
violaria a garantia constitucional de não produzir prova contra si mesmo.
Além disso, no voto condutor do acórdão, o Ministro Gilmar Mendes
argumentou que a condução coercitiva de investigado para a realização de
interrogatório afetaria os seguintes direitos fundamentais: presunção de não
culpabilidade (art. 5o, LVII, da CF), dignidade da pessoa humana (art. 1o,
III), liberdade de locomoção (art. 5o, caput, combinado com os arts. 5o, LIV.
e 5o, LXI, LXV, LXVI, LXVII e LXVIII), direito à não autoincriminação,
direito à ampla defesa (art. 5o, LV).
2. Sujeito ativo. Os crimes previstos na Lei de Abuso de Autoridade
exigem, de acordo com artigo 1o, que a conduta seja praticada por agente
público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de
exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. De acordo ainda com
o artigo 2o:
“Art. 2o É sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente
público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de
qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos
Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a: I –
servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas;
II – membros do Poder Legislativo;
III – membros do Poder Executivo;
IV – membros do Poder Judiciário;
V – membros do Ministério Público;
VI – membros dos tribunais ou conselhos de contas.
Parágrafo único. Reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo
aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por
eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de
investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou
entidade abrangidos pelo caput deste artigo.
Em regra, o crime pode ser praticado por autoridade jurisdicional, no
exercício de sua função, em inquérito policial ou durante a instrução do
processo criminal. É possível, também, que a decretação ilegal da condução
seja determinada por membro do Ministério Público, autoridade policial11,
membro de Comissão Parlamentar de Inquérito ou servidor público em
procedimentos administrativos.
3. Sujeito passivo. Qualquer pessoa, condição de investigado ou
testemunha, conduzida ilegalmente, de maneira descabida, ou sem ter sido
previamente intimada para o ato processual.
4. Tipo objetivo. O núcleo verbal do tipo é decretar, que em sentido
jurídico significa proferir decisão, determinar o cumprimento da referida
medida. A condução coercitiva é medida de força que restringe a liberdade do
cidadão, determinando-se sua condução à delegacia de polícia, à sede do
Ministério Público ou do Poder Judiciário para prestar depoimento ou
participar de ato processual ou de investigação.
O termo testemunha deve ser entendido em seu sentido mais comum,
podendo compreender todos aqueles convocados a prestar esclarecimentos
em procedimento judicial ou de investigação, tenham ou não conhecimento
do fato investigado, inclusive informantes.
Investigado é o cidadão em face do qual existe a suspeita da prática de
qualquer modalidade de infração penal (crime ou contravenção),
independentemente de sua efetiva responsabilidade.
“Manifestamente descabida” ou “sem prévia intimação” são elementos
normativos do tipo, que se caracterizam mediante a análise combinada das
regras referentes à condução coercitiva.
Será manifestamente descabida a decisão que descumpre a decisão
proferida pelo Plenário do STF no julgamento conjunto das ADPFs 395 e
444, em razão de seu efeito vinculante, ou seja, a decretação de condução
coercitiva de investigado para a realização de seu interrogatório, perante a
autoridade policial ou em juízo.
A decretação abusiva de condução coercitiva “sem prévia intimação”
caracteriza o tipo penal, na medida em que a recalcitrância da testemunha ou
mesmo de investigado a participar de ato para o qual foi legal e previamente
convocado é elemento imprescindível para a decretação da condução
coercitiva, nos termos do artigo 260 do Código de Processo Penal.
Em outras palavras, a prévia intimação e seu descumprimento são eventos
prévios imprescindíveis para a legalidade da decisão de condução coercitiva.
Nesse sentido, a condução coercitiva direta ou originária, com o
descumprimento das formalidades legais, revela abusividade na decisão.
Por essas razões, a expressão “em juízo”, utilizada no tipo penal de
maneira tecnicamente imprecisa, não limita a criminalização às conduções
decretadas para audiências ou atos processuais judiciais.
As conduções ilegais decretadas para audiências ou atos realizados pelas
autoridades de investigação (reconhecimentos e exames) também serão
típicas se o ato descumprir os pressupostos legais para sua adoção, pois
nessas hipóteses a tipicidade ocorrerá em face da primeira parte do preceito,
ou seja, da decretação de condução coercitiva “manifestamente descabida”.
5. Tipo subjetivo. O crime é doloso, caracterizado pela vontade livre e
consciente de decretar a condução coercitiva manifestamente descabida ou
em descumprimento de prévia intimação. É necessário que o autor
compreenda a natureza ilegal da medida (em se tratando de autoridade
judicial, pressupõe-se exercer a função com conhecimento das regras
jurídicas), bem como de que não houve prévia intimação da testemunha ou do
investigado.
É possível, no entanto, que o autor pratique o fato em erro de tipo,
acreditando que a testemunha tenha descumprido anterior intimação, por
equívoco em informação, por exemplo. Nesse caso, o crime não se
configurará por ausência de dolo.
A Lei de Abuso de Autoridade criou, no artigo 1o, § 1o, um especial fim
de agir comum a todos os tipos penais: “as condutas descritas nesta Lei
constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com
a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a
terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”.
O tipo subjetivo, portanto, exigirá a demonstração dessa especial intenção
do agente público. A decretação de condução coercitiva em descumprimento
das regras do Código de Processo Penal, embora dificilmente ostente a
intenção de satisfazer mero capricho ou satisfação pessoal, prejudicará os
direitos fundamentais tutelados pela norma.
6. Consumação e tentativa. O crime é de mera conduta, de perigo
abstrato, e se consuma no momento da formalização da decisão judicial, ou
seja, de sua assinatura e validação, a depender do modelo de procedimento.
Nos processos físicos, no momento em que a decisão é proferida, aferível por
certificação de serventuário da justiça, ou no momento em que a decisão é
inserida nos sistemas informatizados pelo próprio magistrado, em caso de
processo eletrônico ou virtual.
O crime é formal e independe de efetivação do resultado, ou seja, da
concretização da condução coercitiva ilegal. Por essa razão, não há
possibilidade de configuração do crime em sua modalidade tentada. No
entanto, se houver imediata reconsideração da decisão, sem expedição sequer
de ofício para cumprimento da decisão, não haverá lesão ao bem jurídico
tutelado, e nesse caso a hipótese é de atipicidade da conduta.
7. Pena. Detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, sendo cabível à
espécie o benefício da suspensão condicional do processo. Admissível,
também, o acordo de não persecução penal, introduzido pela Lei no
13.964/2019.

GUSTAVO BADARÓ E JULIANO BREDA

Art. 11. Executar a captura, prisão ou busca e apreensão


de pessoa que não esteja em situação de flagrante delito
ou sem ordem escrita de autoridade judiciária, salvo nos
casos de transgressão militar ou crime propriamente
militar, definidos em lei, ou de condenado ou internado
fugitivo:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
COMENTÁRIOS:
O crime do artigo 11 da Lei no 13.869/2019 foi vetado pelo Presidente da
República.
As razões do veto foram as seguintes: “A propositura legislativa, ao
dispor sobre a criminalização de execução de captura, prisão ou busca e
apreensão de pessoa que não esteja em situação de flagrante delito gera
insegurança jurídica, notadamente aos agentes da segurança pública, tendo
em vista que há situações que a flagrância pode se alongar no tempo e
depende de análise do caso concreto. Ademais, a propositura viola o princípio
da proporcionalidade entre o tipo penal descrito e a pena cominada.”

PIERPAOLO CRUZ BOTTINI

Art. 12. Deixar injustificadamente de comunicar prisão em


flagrante à autoridade judiciária no prazo legal:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e
multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem:
I – deixa de comunicar, imediatamente, a execução de
prisão temporária ou preventiva à autoridade judiciária
que a decretou;
II – deixa de comunicar, imediatamente, a prisão de
qualquer pessoa e o local onde se encontra à sua família
ou à pessoa por ela indicada;
III – deixa de entregar ao preso, no prazo de 24 (vinte e
quatro) horas, a nota de culpa, assinada pela autoridade,
com o motivo da prisão e os nomes do condutor e das
testemunhas;
IV – prolonga a execução de pena privativa de liberdade,
de prisão temporária, de prisão preventiva, de medida de
segurança ou de internação, deixando, sem motivo justo e
excepcionalíssimo, de executar o alvará de soltura
imediatamente após recebido ou de promover a soltura do
preso quando esgotado o prazo judicial ou legal.
BIBLIOGRAFIA:
ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos de la estrutura
de la teoria del delito. Madrid: Civitas, 1997.

COMENTÁRIOS:
O caput do art. 306 do CPP dispõe que “a prisão de qualquer pessoa e o
local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente,
ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada”.
Trata-se de concretização do previsto no inciso LXII, 2a parte, do art. 5o da
CF e do art. 7o, 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(incorporada pelo Decreto 678/92). Tal ato é distinto do encaminhamento dos
autos para o juiz competente para apreciação da medida, que deverá ocorrer
em 24 horas, nos termos do § 1o do mesmo. No mesmo prazo, cópia dos
autos será encaminhada ao advogado do preso ou à Defensoria Pública.
Diferente do disposto na antiga Lei 4.898/65, que dispunha como abuso
de autoridade a omissão de comunicação de qualquer prisão ou detenção
(art. 4o, c),o caput trata apenas da prisão em flagrante, não alcançada
qualquer outra medida restritiva de direitos ou de liberdade na forma do
caput. No entanto, os incisos estendem a abrangência do tipo penal a outras
situações, como adiante exposto.
A passagem do lapso temporal para a comunicação só afasta a tipicidade
quando for justificada, comprovando-se a impossibilidade de agir conforme a
norma. Por evidente, apenas situações excepcionais e fora do controle do
agente afastam a incidência do tipo penal em análise.
Como se trata de condutas omissivas, não haverá tipicidade quando
impossível ao agente cumprir a determinação legal. Nesses casos, a
justificativa não exclui a antijuridicidade, mas a própria tipicidade, uma vez
que o elemento normativo em questão está previsto no tipo penal. Segundo
ROXIN, “ali onde a palavra antijuridicamente caracterize de modo mais
preciso um elemento concreto do tipo, os pressupostos do juízo de
antijuridicidade são componentes da classe do injusto e pertencem ao tipo”12
.
Trata-se de crime doloso, sendo inadmissível a forma culposa. A
finalidade específica de prejudicar outrem, beneficiar a sim mesmo ou a
terceiro ou o mero capricho ou satisfação pessoal é exigida em todos os
crimes previstos na Lei 13.869/19.
A pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa admite a
transação penal (Lei 9.099/85, art. 76). Como se trata de crime omissivo, não
há violência ou grave ameaça, de forma que também cabível a substituição
da pena por restritivas de direitos caso preenchidos os requisitos do art. 44 do
Código Penal.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem:


I – deixa de comunicar, imediatamente, a execução de
prisão temporária ou preventiva à autoridade judiciária
que a decretou;
II – deixa de comunicar, imediatamente, a prisão de
qualquer pessoa e o local onde se encontra à sua família
ou à pessoa por ela indicada;
III – deixa de entregar ao preso, no prazo de 24 (vinte e
quatro) horas, a nota de culpa, assinada pela autoridade,
com o motivo da prisão e os nomes do condutor e das
testemunhas;
IV – prolonga a execução de pena privativa de liberdade,
de prisão temporária, de prisão preventiva, de medida de
segurança ou de internação, deixando, sem motivo justo e
excepcionalíssimo, de executar o alvará de soltura
imediatamente após recebido ou de promover a soltura do
preso quando esgotado o prazo judicial ou legal.

O cumprimento da prisão temporária ou preventiva deve ser comunicado


imediatamente à autoridade que a decretou, para fins de controle de sua
aplicação e para computo futuro da detração, se necessário. A omissão faz
incidir o inciso I do parágrafo único do dispositivo em comento. Aplicam-se
também aqui as considerações previstas no caput sobre a possibilidade de
justificativa para o não cumprimento da norma.
O inciso I é aplicável apenas nos casos de prisão temporária ou
preventiva, sendo atípica a omissão diante de outras medidas cautelares ou de
prisão definitiva.
O inciso II trata da omissão de comunicação da prisão à sua família ou à
pessoa por ela indicada. A Constituição Federal e o CPP dispõem que a
prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados
imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso
ou à pessoa por ele indicada (CF, art. 5o, LXII, CPP, art. 306). A omissão ou
o retardamento da medida caracteriza abuso de autoridade, porque, em
última análise, impede o exercício do contraditório e da ampla defesa,
sonegado ao preso o direito à assistência de familiares e de advogados de
confiança.
O inciso III trata da nota de culpa. O art. 7o, 4, da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos (incorporada pelo Decreto 678/92) prevê que “toda
pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da sua detenção e
notificada, sem demora, da acusação ou acusações formuladas contra ela”.
A nota de culpa é a concretização desse direito e da garantia constitucional
de ter identificados os responsáveis pela prisão (CF, art. 5o, LXIV) Trata-se
do documento que registra os motivos da prisão, o nome do condutor e das
testemunhas, ou seja, que possibilita ao preso ter ciência das razões da
medida, permitindo seu enfrentamento nos termos da lei (CPP, art. 306, § 2o).
O prazo previsto no tipo penal é de 24 horas, para além do qual a omissão
caracteriza abuso de autoridade.
O inciso IV trata da omissão de soltura. Não se trata de inovação, uma
vez que o inciso II do parágrafo único do ora revogado art. 350 do Código
Penal já definia como crime o ato de “prolonga a execução de pena ou de
medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de
executar imediatamente a ordem de liberdade”. Da mesma forma, a alínea i
do art. 4o da Lei 4.898/65 – também revogada – trata como abuso de
autoridade o ato de “prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou
de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de
cumprir imediatamente ordem de liberdade”.
O tipo penal em tela, em verdade, é menos abrangente que os anteriores,
porque trata apenas daquele que não executa o alvará de soltura, excluindo da
norma aquele que não o expede.
A conduta será típica quando a autoridade responsável pela custódia do
preso ou do internado deixar de cumprir o alvará de soltura expedido ou de
promover a soltura quando esgotado o prazo legal ou judicial. Assim, uma
vez determinada a liberdade – com a subsequente expedição do alvará – ou
exaurido o prazo da prisão, deve aquele responsável pelo cumprimento da
medida executá-la imediatamente.
O art. 109 da Lei de Execuções Penais prevê que “ cumprida ou extinta a
pena, o condenado será posto em liberdade, mediante alvará do Juiz, se por
outro motivo não estiver preso”. No mesmo sentido o art. 685 do CPP. Da
mesma forma, será expedido o alvará quando revogada a prisão cautelar de
qualquer espécie.
Para além dos casos de descumprimento da ordem de soltura, incorre em
abuso de autoridade aquele que mantém a prisão para além do prazo legal ou
judicial.
É o caso de quem prorroga a prisão temporária por mais de cinco dias –
ou de trinta dias nos casos de crimes hediondos – exceto quando houver
ordem judicial de prorrogação pelo mesmo tempo em situação de extrema e
comprovada necessidade. Vale destacar que na prisão temporária o mandado
deve conter o período de duração da medida, bem como o dia em que o preso
deverá ser libertado, de forma que fique claro o momento da soltura, que
deve ocorrer de imediato exceto se houver outro título de prisão em vigor
(Lei 7.960/89, art. 2o, § 4o – A). Vale destacar que o decurso do prazo fixado
no mandado de prisão impõe a soltura do preso pela autoridade responsável
pela custódia, independentemente de nova ordem ou manifestação judicial,
exceto no caso de prorrogação da temporária ou decretação de prisão
preventiva (Lei 7.960/89, art. 2o, §7o).
Assim, findo o prazo, deve o responsável pela custódia colocar o preso
em liberdade, mesmo sem ordem judicial. Caso contrário, responderá pelo
crime em comento.
A prisão preventiva não tem prazo definido em lei, de forma que o tipo
penal em questão se aplicará apenas nos casos em que a autoridade judicial
revogar ou suspender a cautelar e aquele com atribuições de executar a ordem
deixar de proceder à soltura do beneficiário.
Em qualquer das hipóteses, a ordem judicial de soltura deve ser cumprida
imediatamente, com exceção de casos excepcionalíssimos. Desnecessária a
menção à exceção, uma vez que situações não usuais que impeçam o
cumprimento da norma já seriam abarcadas pela ausência de dolo, pelas
causas de justificação ou mesmo pela inexigibilidade de conduta diversa. O
termo “excepcionalíssimo” não parece de rigor técnico e poderia ser
dispensado .
As diligências a cumprir antes da soltura não podem ser caracterizadas
como postergação da liberdade, como a consulta a cadastros para identificar
outras ordens de prisão ou o exame de integridade corporal, mas devem ter
início imediato com o recebimento do alvará e não podem ser suspensas até o
cumprimento da decisão. Falhas de sistemas ou problemas estruturais da
administração penitenciária não justificam a procrastinação da soltura. Não é
admissível que o Estado faça recair sobre a liberdade de alguém sua carência
de estrutura material ou humana.
Em se tratando da mesma pena prevista no caput, também cabe a
transação penal (Lei 9.099/85, art. 76) e a substituição da pena por restritivas
de direitos caso preenchidos os requisitos do art. 44 do Código Penal.

PIERPAOLO CRUZ BOTTINI

Art. 13. Constranger o preso ou o detento, mediante


violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de
resistência, a:
I – exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à
curiosidade pública;
II – submeter-se a situação vexatória ou a
constrangimento não autorizado em lei;
III – produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, sem
prejuízo da pena cominada à violência.

BIBLIOGRAFIA:
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 17. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2017.

COMENTÁRIOS:
O tipo penal tem o escopo de proteger o preso ou detento da exposição,
do vexame público. A perda da liberdade não implica a perda da dignidade e
do direito à privacidade e à intimidade, uma vez que “ao condenado e ao
internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou
pela lei” (Lei 7.210/84, art. 3o caput).
Não se trata de dispositivo inovador, uma vez que o inciso II do ora
revogado art. 350 do Código Penal já tipificava o ato de submeter pessoa que
está sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não
autorizado em lei. No mesmo sentido, a alínea b do art. 4o da Lei 4.898/65,
que dispunha como abuso de autoridade o ato de “submeter pessoa sob sua
guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei”.
Trata-se de crime comissivo próprio, que pode ser praticado por
autoridade pública nos termos do art. 2o da lei em comento, ou por particular
em concurso de agentes, ao qual se comunicará a circunstância objetiva, nos
termos do art. 30 do Código Penal. Assim, a autoridade que expõe o preso
algemado ao público, a câmeras de televisão ou às redes sociais, sem o seu
consentimento livre, pratica o crime em questão, que não se estende àquele
que assiste ao escárnio ou divulga as imagens, exceto se houver prévio ajuste,
determinação, instigação ou auxílio.
Pratica, ainda, o crime aquele que comunica ao público e à imprensa a
data e o local do cumprimento de medidas cautelares de prisão, com o
escopo de garantir a filmagem e a divulgação de imagens da prisão e da
condução do réu ou investigado ao local de constrição de liberdade. NUCCI
cita ainda como exemplo do delito em tela “o caso do diretor da cadeia que
não permite a higiene pessoal do preso ou invade-lhe a intimidade,
remexendo em suas coisas particulares, com o fito exclusivo de demonstrar
força”13 .
O tipo penal, por outro lado, não se estende à divulgação do cumprimento
de outras medidas cautelares, como busca e apreensão e similares, porque
estranhas ao tipo penal em comento.
O inciso II se refere a qualquer situação vexatória não autorizada por lei.
É o caso da imposição do uso de algemas em desacordo com as regras
vigentes. A Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) remete a decreto federal a
regulação do emprego de algemas, matéria tratada pelo Decreto 8.858/16 que
restringe seu uso a casos de resistência e de fundado receio de fuga ou perigo
à integridade física própria ou alheia, justificada a excepcionalidade por
escrito. Tal situação já era regrada pela Súmula Vinculante 11 do STF.
Para além disso, o parágrafo único do art. 292 do CPP veda o uso de
algemas em mulheres grávidas durante os atos médico-hospitalares
preparatórios para a realização do parto e durante o trabalho de parto, bem
como em mulheres durante o período de puerpério imediato, e o § 3o do art.
474 do mesmo diploma legal proíbe o uso de algemas no acusado durante o
período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente
necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia
da integridade física dos presentes.
O uso de algemas em circunstância distinta daquelas autorizadas em lei –
ou nos regulamentos aos quais a norma remete expressamente – caracteriza o
abuso de autoridade na forma do inciso em comento.
A norma em discussão ainda dispõe no inciso III sobre o constrangimento
do preso a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiros. Ao garantir ao
réu o direito ao silêncio, a Constituição Federal (art. 5o, LXIII) e o CPP (art.
186) indicam que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo ou
contra terceiros.
Nesse contexto, a submissão do preso ou detento a produzir elementos
probatórios contra quem quer que seja será abuso de autoridade.
Note-se que a lei não proíbe ou criminaliza a obtenção de confissões,
colaborações, depoimentos ou diligências voluntarias, com o consentimento
do preso, como ocorre na colaboração premiada ou nos acordos de não
persecução. O tipo penal veda o constrangimento, a obtenção forçada de
provas, contra a vontade do preso, como a ameaça de endurecimento de
medidas cautelares ou da situação carcerária em caso de recursa à delação ou
à confissão.
Não incide o tipo penal sobre constrangimento de réus, investigados ou
outras pessoas que não estejam presas ou detidas, por falta de previsão legal.
O ato de forçar alguém não submetido à restrição de liberdade a realizar o
teste do bafômetro, exames de sangue, confessar crimes ou a colaborar com a
Justiça não caracteriza o delito em tela, ainda que possa fazer incidir outras
normas penais ou disciplinares, como o constrangimento ilegal (CP, art. 146).
O inciso III do art. 13 foi vetado pelo Presidente da República com os
seguintes argumentos: “A propositura legislativa gera insegurança jurídica,
pois o princípio da não produção de prova contra si mesmo não é absoluto
como nos casos em que se demanda apenas uma cooperação meramente
passiva do investigado. Neste sentido, o dispositivo proposto contraria o
sistema jurídico nacional ao criminalizar condutas legítimas, como a
identificação criminal por datiloscopia, biometria e submissão obrigatória
de perfil genético (DNA) de condenados, nos termos da Lei no 12.037, de
2009.”
O veto foi derrubado pelo Congresso Nacional, em decisão acertada. O
veto aponta que o dispositivo criminalizaria condutas legítimas como a
identificação criminal por datiloscopia, biometria e a submissão obrigatória
de perfil genético nos termos da Lei no 12.037/09. Ocorre que tal lei não
autoriza a violência ou a grave ameaça ou a redução da capacidade da
resistência. Ao contrário, o art. 4o do mesmo diploma legal prevê que
“quando houver necessidade de identificação criminal, a autoridade
encarregada tomará as providências necessárias para evitar o
constrangimento do identificado”.
Portanto, o uso da violência ou do constrangimento não são práticas
legítimas para obtenção de qualquer prova ou cooperação de investigados ou
réus e sua utilização caracteriza o abuso de autoridade.
A pena admite a suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95, art.
89) mas dificilmente será possível a substituição da prisão por restrição de
direitos por se tratar de delito com violência ou grave ameaça.

GUSTAVO BADARÓ E JULIANO BREDA

Art. 14. Fotografar ou filmar, permitir que fotografem ou


filmem, divulgar ou publicar fotografia ou filmagem de
preso, internado, investigado, indiciado ou vítima, sem
seu consentimento ou com autorização obtida mediante
constrangimento ilegal, com o intuito de expor a pessoa a
vexame ou execração pública:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e
multa.
Parágrafo único. Não haverá crime se o intuito da
fotografia ou filmagem for o de produzir prova em
investigação criminal ou processo penal ou o de
documentar as condições de estabelecimento penal.

COMENTÁRIOS:
O crime do artigo 14 da Lei no 13.869/2019 foi vetado pelo Presidente da
República.
As razões do veto foram as seguintes: “A propositura legislativa, ao
prever como elemento do tipo ‘com o intuito de expor a pessoa a vexame ou
execração pública’, gera insegurança jurídica por se tratar de tipo penal
aberto e que comporta interpretação, notadamente aos agentes da segurança
pública, tendo em vista que não se mostra possível o controle absoluto sobre
a captação de imagens de indiciados, presos e detentos e sua divulgação ao
público por parte de particulares ou mesma da imprensa, cuja
responsabilidade criminal recairia sobre os agentes públicos. Por fim, o
registro e a captação da imagem do preso, internado, investigado ou indiciado
poderá servir no caso concreto ao interesse da própria persecução criminal, o
que restaria prejudicado se subsistisse o dispositivo.”

GUSTAVO BADARÓ

Art. 15. Constranger a depor, sob ameaça de prisão,


pessoa que, em razão de função, ministério, ofício ou
profissão, deva guardar segredo ou resguardar sigilo:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem prossegue
com o interrogatório:
I – de pessoa que tenha decidido exercer o direito ao
silêncio; ou
II – de pessoa que tenha optado por ser assistida por
advogado ou defensor público, sem a presença de seu
patrono.

BIBLIOGRAFIA:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial. 11. ed. São
Paulo: RT, 2011, v. 2; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Comentários ao Código
Penal. Parte Especial, São Paulo: Saraiva, 1988, v. 2; GRECO, Rogério; CUNHA,
Rogério Sanches. Abuso de Autoridade. Lei 13.869/2019. Comentada Artigo por
Artigo. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de
direito penal. Parte Especial. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, v. I; GARCIA,
Basileu. Violação de segredo, Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São
Paulo, v. 44, p. 51-67, 1949; HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio
de Janeiro: Forense, v. V, 1945; MARQUES, Gabriela; MARQUES, Ivan. A nova Lei
de Abuso de Autoridade. Lei 13.869/2019 – Comentada artigo por artigo. São Paulo:
RT, 2019; PINHEIRO, Igor Pereira; CAVALCANTE, André Clarck Nunes;
BRANCO, Emerson Castelo. Nova Lei do Abuso de Autoridade – Comentada artigo
por artigo. Leme: JH Mizuno, 2020; REALE JÚNIOR, Miguel. Comentários ao Art.
154, in Miguel Reale Júnior (Coord.), Código Penal comentado. São Paulo: Saraiva,
2017.

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. O crime do caput do art. 15 da Lei no
13.869/2019, tal qual a generalidade dos crimes de abuso de autoridade, é
delito de dupla objetividade jurídica.
Dois são os bens jurídicos penalmente tutelados. Na infração penal da
cabeça do art. 15 da Lei no 13.869/2019, protege-se, primariamente, a
liberdade moral do sujeito que tenha dever legal de guardar sigilo. Em
segundo lugar, tutela o normal funcionamento da função pública e a lisura no
exercício da autoridade estatal que, no caso do art. 15, se identifica com o
correto funcionamento da investigação criminal e dos processos criminais.
2. Sujeito ativo. Trata-se de crime próprio, na medida em que somente
pode ser praticado por agente público.
Embora a tomada de depoimento, no caso do caput do art. 15 da Lei no
13.869/2019, seja ato que, no inquérito policial, é realizado pela autoridade
policial, e, em juízo, é realizado pelo juiz de direito, não são somente estes
possíveis os sujeitos ativos do delito. O tipo penal é “constranger a depor” e
não “tomar depoimento mediante constrangimento”. Logo, é possível que
quem exerça constrangimento indevido, mediante ameaça de prisão, não seja
quem é o responsável pelo ato de tomada do depoimento.14 Assim sendo,
qualquer agente público, por exemplo, um investigado de polícia, um policial
militar ou um oficial de justiça, pode realizar o constrangimento para que a
testemunha deponha – perante uma autoridade policial ou judiciária –
revelando segredo que, por lei, não deveria ser dado ao conhecimento de
terceiros.
3. Sujeito passivo. Trata-se de delito de dupla subjetividade passiva. O
sujeito passivo imediato ou primário é a pessoa atingida pela conduta do
agente, no caso, aquele que tinha o dever de sigilo e, por lei, não estava
obrigado a depor, mas foi indevidamente constrangido a fazê-lo. O sujeito
passivo secundário ou mediato é o Estado, em nome de quem a atividade
investigativa e jurisdicional deve ser exercida de forma correta e justa.
4. Tipo objetivo. Na figura do caput do art. 15 da Lei no 13.869/2019, o
verbo tipo é constranger. Constranger significa forçar alguém a fazer ou não
fazer algo. Sujeitar alguém ou subjugá-lo. Trata-se de conduta comissiva em
que, por meio de ameaça de prisão, se suprime a vontade do detentor do
segredo profissional.
No caso, trata-se de crime de conduta vinculada, tendo em vista que o
legislador especificou o modo de realizar o constrangimento: “sob ameaça de
prisão”. Outras formas de ameaça, ainda que grave, como agressões ou maus-
tratos físicos, não caracterizarão essa modalidade de abuso de autoridade.
4.1 Função, ministério, ofício ou profissão. Os elementos normativos
“função, ministério, ofício ou profissão” são os mesmos que já se encontram
previstos no crime do artigo 154 do Código Penal.15
A função é “todo encargo que cabe a uma pessoa por força de lei, decisão
judicial ou convenção, seja ou não remunerado”, como: o tutor, o curador, o
depositário necessário, o diretor de banco, o diretor de hospital particular.16 O
ministério, segundo Hungria, é “o encargo que pressupõe um estado ou
condição individual de fato (não já de direito)”,17 relaciona-se com o
exercício de uma atividade religiosa, p. ex.: padres, pastores, monges etc.18 O
ofício é uma atividade laboral manual ou mecânica, que normalmente não
exige uma formação acadêmica nem caracteriza uma profissão regulamentada
por lei, como o mecânico de automóveis, a costureira, etc. Por fim, profissão
é toda e qualquer forma de atividade habitual, pública ou particular, exercida
com a finalidade de lucro.19 Não há necessidade de que se trate de profissões
que caracterizam uma atividade especializada, que exija preparo e formação,
como é o caso de médicos, advogados, engenheiros etc.
No caso, contudo, é necessário que o exercício da função, ministério,
ofício ou profissão tenha relação causal com a obtenção do conhecimento de
fatos que devam permanecer sobre sigilo.
Muitas funções públicas implicam o dever de guardar sigilo. Assim é, por
exemplo, com os funcionários públicos que atuam nas Fazendas Públicas20,
ou em instituições financeiras,21 mas também os juízes e membros do
Ministério Público, em relação aos fatos de investigações ou processos que
tramitam sob o chamado “segredo de justiça”.
Os exercícios de ministérios normalmente implicam o conhecimento de
fatos sigilosos, nas hipóteses em que há confissão dos fiéis perante os
sacerdotes, padres, freiras etc.22
Entre as profissões, diversas delas, em seus códigos de ética ou legislação
equivalente, têm previsão de dever de guardar o sigilo profissional, como no
caso de advogados,23 médicos,24 psicólogos25 ou dentistas.26 No caso do
jornalista, é assegurado o sigilo da fonte jornalística, não podendo o mesmo
ser compelido, em depoimento judicial, a revelá-la.27
Os ofícios normalmente são atividades que não têm previsão legal de
sigilo. Há casos, contudo, que pela natureza da atividade desenvolvida,
haverá o dever de guardar sigilo, como na hipótese de pessoas que trabalhem
como operadores de caixas de instituições financeiras.
4.2 Segredo. Como esclarece Basileu Garcia, “visto que a lei não diz o
que seja segredo, para fixar o alcance da proteção penal, devemo-nos basear
no significado usual da expressão. Por mais íntimo que seja um fato, não se
poderá pretender que constitua segredo, se for notório. Às vezes, são notórios
fatos íntimos. Podemos conceituar segredo como sendo o informe, referente a
um acontecimento, que não deve, pela sua natureza ou efeito de manifestação
da vontade do depositante, ser transmitido a outras pessoas. Dar-se-á as vezes
que tem conhecimento do segredo um restrito número de pessoas, o que não
será suficiente para considerar-se o fato notório. Haverá então segredo
passível de proteção penal”.28
O modo como alguém passa a ter conhecimento de um segredo pode
decorrer de vontade do próprio interessando ou envolvido no fato, ou em
razão da natureza da atividade desenvolvida. Na primeira hipótese, há uma
simples relação de confiança, que pode ser de natureza meramente moral, por
exemplo, quando um amigo narra a outro amigo um fato que é desconhecido
de terceiras pessoas (p. ex.: informa-lhe que usou substância proibida em uma
competição esportiva). No segundo caso, há atividades que, por sua própria
natureza, envolvem a revelação de segredos. São os casos dos “confidentes
necessários”, como sacerdotes, médicos ou advogados.
Também é irrelevante se a obtenção do segredo se deu por comunicação
direta do interessado (p. ex.: na conversa durante a consulta do médico com o
paciente) ou pela leitura de papéis transmitidos para exame, mesmo que o
fato seja ignorado pelo interessado ou envolvido (p. ex.: quando o advogado
lê o conteúdo de documentos enviados pelo cliente).29
4.3 Dever de guardar o segredo como testemunha. Em regra, toda
pessoa pode servir como testemunha (CPP, art. 202) e tem o dever de depor
(CPP, art. 206, primeira parte).
Há pessoas, contudo, que, nos termos do art. 207 do CPP, estão proibidas
de depor sobre fatos que tenham conhecimento em razão de função,
ministério, ofício ou profissão, e que devam guardar segredo (CPP, art. 207,
primeira parte). Embora o dispositivo não o diga, a proibição de depor
somente será oponível se decorrente de previsão legal do dever de guardar
segredo.
Todavia, mesmo estas pessoas poderão vir a depor, se a parte interessada
no segredo (por exemplo, o paciente) desobriga a pessoa que tem
conhecimento do segredo (por exemplo, o médico). Mesmo assim, o detentor
do segredo somente prestará seu depoimento, se assim quiser, podendo
preferir não depor. Em suma, se não estiver desobrigado, haverá vedação ao
depoimento que, se desrespeitado, caracterizará crime de violação de segredo
profissional (CP, art. 154).30 Uma vez desobrigado do segredo, a testemunha
terá a faculdade de depor, não podendo o juiz lhe impor o testemunho.
Evidente que essa faculdade de depor, para ser validamente exercida,
pressupõe um ato voluntário livre, e não decorrente de um constrangimento
de indevida ameaça de prisão.
Ressalte-se que, como destaca Hungria, “não somente o exercente da
função, ministério, ofício ou profissão está adstrito a sigilo, senão também os
seus auxiliares, desde que estes participem da atividade própria daquele”,31
como o digitador de um escritório de advocacia, ou a secretária que organiza
as fichas clínicas dos pacientes de um médico.
4.4 “Resguardar sigilo”. A expressão “resguardar sigilo” foi utilizada
erroneamente.
Não se desconhece que, atualmente, se utilize a palavra “sigilo” como
sinônimo de “segredo” ou de algo que deve permanecer oculto; se a
expressão foi utilizada nesse sentido, é desnecessária, pois o tipo já prevê que
se trate de pessoa que deva “guardar segredo”.
Há, porém, outro significado para a palavra sigilo. O significado
etimologicamente correto de sigilo é o de “sinete ou carimbo utilizado para
autenticar documentos”. Mais do que a autenticação, em verdade, o sigilo era
o selo que tornava inviolável o conteúdo da correspondência. Sigilo vem do
latim sigillum, que significa “marca pequena ou figura entalhada”. Sigillum,
por outro lado, é diminutivo de signum, que tem por sentido marca ou sinal.
O sigilo era o selo ou lacre das correspondências reais, feitos com mel de
abelha quente ou cera, sob as quais, ainda moldáveis, os reis apunham ou seu
sinete ou marca em alto-relevo do anel real.32
Portanto, desde os primórdios, o sigilo era o que tornava o conteúdo
inviolável. Por conseguinte, resguardar o sigilo, nesse senso, seria o mesmo
que proteger o continente, não o conteúdo. Quebrado o sigilo, acessa-se o
conteúdo por ele protegido. E os dados de tal conteúdo, no caso, são as
informações que a testemunha teve acesso, em razão da função, ministério,
ofício ou profissão que exerce tornam-se conhecidos.
Logo, no caso do crime do art. 15 da Lei no 13.869/219, o
constrangimento para uma testemunha depor, sob indevida ameaça de prisão,
romperia o “sigilo” no sentido figurado, quando a testemunha cede à ilegal
ameaça e, por estar subjugada, revela o segredo que tinha o dever de não
revelar. É evidente que o objeto de tutela penal é o segredo em si – isto é, o
conteúdo – e não o sigilo – no caso, o mero continente que protege o
conteúdo.
5. Tipo subjetivo. Todos os tipos penais da Lei no 13.869/2019 são
dolosos. No tipo penal do caput do art. 15 não é possível o dolo eventual, se o
sujeito que devia guardar sigilo foi constrangido mediante ameaça de prisão.
O dolo, como consciência e vontade de realizar os elementos do tipo,
deve ser considerado como a vontade livre em constranger, mediante ameaça
de prisão, pessoa que tinha conhecimento de fatos cobertos pelo sigilo legal
e, consequentemente, não tem o dever de prestar depoimento.
Conforme já exposto nos comentários ao § 1o do art. 1o, todos os tipos
penais da Lei no 13.869/2019 exigem, ainda, um especial fim de agir, isto é,
uma tendência interna que transcende ao tipo penal, identificada com uma das
cinco finalidades que caracterizam o abuso do poder público conferido à
autoridade ou a seu agente.
6. Consumação e tentativa. O crime do caput do art. 15 da Lei no
13.869/2019 é crime formal que se consuma quando há o efetivo
constrangimento, mediante ameaça da prisão. Não é necessário, porém, que o
depoimento ocorra e o segredo seja revelado.33 Se a testemunha ceder ao
constrangimento e concordar em depor, já estará consumado o crime.
7. Pena. O crime do caput do art. 15 é punido com pena de detenção, de
1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Como é elemento do tipo do caput do art. 15 a “grave ameaça”, a pena
privativa de liberdade não poderá ser substituída por pena restritiva de
direitos, nos termos do art. 44 do CP. Pela mesma razão, não será admissível
o acordo de não persecução penal (CPP, art. 28-A, caput).
De outro lado, sendo a pena mínima de um ano, é cabível, em princípio a
suspensão condicional do processo (Lei no 9.099/1995, art. 89).

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem prossegue


com o interrogatório:
I – de pessoa que tenha decidido exercer o direito ao
silêncio; ou
II – de pessoa que tenha optado por ser assistida por
advogado ou defensor público, sem a presença de seu
patrono.

BIBLIOGRAFIA:
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 7. ed. São Paulo: RT, 2019;
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal brasileiro anotado. 6. ed.
Rio de Janeiro: Borsoi, 1965, v. 3; GRECO, Rogério; CUNHA, Rogério Sanches.
Abuso de Autoridade. Lei 13.869/2019. Comentada Artigo por Artigo. Salvador: Ed.
JusPodivm, 2019.

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. As infrações penais do parágrafo único do art.
15 da Lei no 13.869/2019 são de dupla objetividade jurídica.
De modo mediato, tutela a correta atividade de persecução penal. De
outro lado, e imediatamente, protege, na figura do inciso I do parágrafo único
do art. 15, o direito ao silêncio do investigado ou acusado, assegurado
constitucionalmente no inciso LXIII do caput do art. 5o da Constituição;
enquanto, no delito do inciso II do mesmo parágrafo único, protege-se o
direito à ampla defesa, garantido no inciso LV do mesmo dispositivo
constitucional, na sua modalidade de defesa técnica.
2. Sujeito ativo. Trata-se de crime próprio, na medida em que somente
pode ser praticado por agente público responsável pela realização do
interrogatório. Se realizado no curso do inquérito policial, o sujeito ativo será
a Autoridade Policial; sendo realizado durante o processo, o sujeito ativo será
o juiz de direito que realizar o ato.
3. Sujeito passivo. O delito do parágrafo único do artigo 15 da Lei no
13.869/2019 apresenta dupla subjetividade passiva.
O sujeito passivo imediato ou primário é a pessoa que está sendo
interrogada. Convém destacar que, embora Constituição assegure o direito ao
silêncio ao preso (art. 5o, caput, inc. LXIII), também poderá permanecer
calado o imputado solto, seja na fase de investigação preliminar, seja na fase
processual. O Supremo Tribunal Federal entende que a expressão assegura:
“um direito aplicável não apenas no momento da prisão, mas permeia todo o
processo penal”.34 Em suma, trata-se de direito aplicável à pessoa
substancialmente passível de ser investigada ou processada penalmente.
O sujeito passivo secundário ou mediato é o Estado, em nome de quem a
atividade investigativa e jurisdicional deve ser exercida de forma correta e
justa.
4. Tipo objetivo. Na figura do parágrafo único do art. 15 da Lei no
13.869/2019 o verbo tipo é prosseguir, que no caso significa dar seguimento,
continuar ou levar adiante. No caso, implica prosseguir ou continuar o
interrogatório. Trata-se de conduta comissiva.
4.1 O conteúdo do interrogatório. O interrogatório é ato tipicamente
judicial, pois somente o juiz pode interrogar o acusado. Durante o inquérito
policial, o investigado ou indiciado é “ouvido” e não “interrogado”, conforme
previsto no art. 6.o, inc. V, do CPP. Todavia, em tal “oitiva”, devem ser
aplicadas, no que couber, as regras do interrogatório35 e, especialmente, o
direito ao silêncio. Justamente por isso, embora se referindo ao interrogatório,
o crime do inciso I do parágrafo único do art. 15 pode ser também praticado
no momento do “interrogatório policial” (rectius: oitiva do investigado).
O interrogatório é composto de duas partes (art. 187, caput): o
“interrogatório de qualificação”, sobre a pessoa do acusado (art. 187, § 1.o),36
e o “interrogatório de mérito”, sobre os fatos imputados e sua autoria (CPP,
art. 187, § 2.o).37 Tem prevalecido o entendimento de que o direito ao
silêncio somente tem aplicação na segunda fase do interrogatório, pois, no
que diz respeito aos dados de qualificação do interrogando, este tem a
obrigação de declará-los corretamente, sem mentiras ou omissões.
No sistema brasileiro, o direito ao silêncio pode ser exercido no todo ou
em parte, isto é, o imputado pode permanecer calado em todo o
interrogatório, manifestando seu desejo de não responder à nenhuma
pergunta, ou poderá responder algumas perguntas e optar por se calar em
relação a outras. Essa diferença é de grande importância no que diz respeito
ao momento de consumação do crime.
Sendo o interrogatório um momento para o exercício do direito à
autodefesa, na modalidade de direito de audiência, nenhuma pergunta deveria
ser feita ao acusado. O interrogatório deveria ser o momento para ele,
livremente, expor a sua versão defensiva dos fatos. Todavia, o CPP prevê um
rol de perguntas que devem ser feitas ao acusado. Obviamente, essas
indagações – e outras que o juiz entenda relevante formular – somente
deverão ser formuladas se o acusado não tiver manifestado sua vontade de
permanecer calado em relação a todas as perguntas que lhe serão feitas. Se o
interrogando, ao ser informado de seu direito ao silêncio, asseverar que não
irá responder à nenhuma pergunta, haverá indevido prosseguimento do
interrogatório, se, mesmo assim, o juiz formular, uma a uma, as perguntas
que não serão respondidas. Tal prática tem o único propósito de tentar
constranger o acusado, provocando-o para que se veja compelido a abrir mão
de seu direito constitucional ao silêncio, podendo caracterizar abuso de
autoridade.38
De qualquer modo, mesmo quando o acusado opta por responder às
perguntas que lhe são formuladas, o interrogatório não pode ser uma
armadilha para o interrogando, com indagações capciosas e ardilosas. E, mais
do que isso, sendo o momento para o exercício da autodefesa, na modalidade
do direito de audiência, como advertia Espínola Filho, “ao magistrado
cumpre, sem impaciência, ouvir quanto queira ele referir”.39
4.2 O direito à defesa técnica no interrogatório. O interrogando tem o
direito de ser assistido por defensor em seu interrogatório, seja ele realizado
em sede policial, seja durante o processo. No primeiro caso, a presença de
defensor é facultativa; no segundo, obrigatória.
No chamado interrogatório policial, o investigado pode estar assistido por
advogado. A ampla defesa, que também se aplica na fase de investigação,
inclui o direito à defesa técnica. Não há, contudo, obrigatoriedade de defesa
técnica na fase do inquérito policial e, consequentemente, no interrogatório
do investigado, ainda que em situação de prisão.40 Justamente por isso, o
investigado poderá manifestar o seu desejo de que o interrogatório não seja
realizado, se não estiver assistido por defensor, constituído ou público.
Já no caso do interrogatório propriamente dito, como se trata de ato do
processo, não é possível a sua realização sem a presença de advogado, pois
nenhum acusado poderá ser processado sem defensor (CPP, art. 261, caput).
O acusado tem o direito de constituir um defensor de sua confiança. Se não o
fizer, o juiz deverá lhe nomear um defensor, ainda que o acusado não o
queira ou se oponha a tal nomeação e, até mesmo, caso deseje se defender
por si mesmo, sem advogado. A defesa técnica é indisponível e obrigatória.
Se o defensor constituído ou dativo não comparecer, caberá ao juiz lhe
nomear defensor ad hoc, nos termos do art. 265, § 2.o, do CPP.
5. Tipo subjetivo. As figuras do parágrafo único do art. 15 da Lei de
Abuso de Autoridade são dolosas.
O dolo consistirá na vontade de prosseguir com o interrogatório, mesmo
tendo o interrogando manifestado a vontade de permanecer calado (inciso I),
ou fazê-lo, mesmo não estando o interrogando acompanhado de defensor,
tendo ele manifestado o desejo de não ser interrogado sem a presença de
advogado (inciso II).
Além disso, será exigido como em todo crime de abuso de autoridade um
especial fim de agir, do § 1o do art. 1o da Lei de Abuso de Autoridade.
6. Consumação e tentativa. O crime do caput do art. 15 da Lei no
13.869/2019 é crime material que se consuma quando há o prosseguimento
do interrogatório, mesmo depois de a pessoa ter decidido exercer o direito ao
silêncio (na figura do inciso I), ou tenha optado por não ser interrogada sem a
assistência de advogado ou defensor público (na hipótese do inciso II).
No caso do inciso I, é importante destacar o conteúdo da opção do direito
ao silêncio feita pelo imputado. Tendo optado por não responder à nenhuma
pergunta, tão logo concluído o interrogatório de qualificação, nenhuma outra
pergunta deverá lhe ser feita, apenas constando do termo que o investigado
ou acusado optou por exercer o seu direito de permanecer calado. Bastará o
interrogatório continuar, com uma única pergunta, para que crime se
consume. Não será necessário, sequer, que a pergunta seja respondida.
De outro lado, caso o interrogando não manifeste o desejo de permanecer
calado, as perguntas poderão ser feitas. Contudo, a qualquer momento, o
interrogando poderá optar por não responder a uma específica pergunta que
lhe seja formulada. Nesse caso, não haverá crime na continuação do
interrogatório, por ter sido a negativa pontual. Por cuidado, deverá a
autoridade indagá-lo, na sequência, se deseja permanecer em silêncio em
relação a todas as demais perguntas, ou se poderá responder sobre outros
pontos, indicando apenas o que não desejará responder.
Quanto à modalidade do inciso II, no caso do chamado interrogatório
policial, não sendo obrigatória a presença do defensor, se desde o início o
investigado manifestar o desejo de ter a presença de um defensor, a
continuação do interrogatório, sem um advogado, já caracterizará o delito,
bastando uma única pergunta. Por outro lado, é possível que o interrogatório
se inicie sem que o interrogando esteja assistido por advogado, por não ter
manifestado o desejo prévio de ser assistido por defensor, mas, a partir de um
determinado momento, manifeste o desejo de estar na presença de um. A
partir de tal instante, qualquer pergunta que lhe for formulada caracterizará o
delito do inciso II do par. ún. do art. 15 da Lei de Abuso de Autoridade.
7. Pena. O crime do parágrafo único do art. 15 é punido com pena de
detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Nas modalidades do parágrafo único, não há violência ou grave ameaça,
sendo possível a substituição da pena privativa de liberdade por pena
restritiva de direitos, nos termos do art. 44 do CP.
Sendo a pena mínima de um ano, é cabível, em princípio, a suspensão
condicional do processo (Lei no 9.099/1995, art. 89), bem como o acordo de
não persecução penal (CPP, art. 28-A, caput).

GUSTAVO BADARÓ

Art. 16. Deixar de identificar-se ou identificar-se


falsamente ao preso por ocasião de sua captura ou
quando deva fazê-lo durante sua detenção ou prisão:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e
multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, como
responsável por interrogatório em sede de procedimento
investigatório de infração penal, deixa de identificar-se ao
preso ou atribui a si mesmo falsa identidade, cargo ou
função.

BIBLIOGRAFIA:
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal. Parte Especial, São
Paulo: Saraiva, 1988, v. 3; DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado. 9. ed.
São Paulo: Saraiva, 2016; GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Comentários ao
Art. 307, in Miguel Reale Júnior (Coord.), Código Penal comentado. São Paulo:
Saraiva, 2017; GRECO, Rogério; CUNHA, Rogério Sanches. Abuso de Autoridade.
Lei 13.869/2019. Comentada Artigo por Artigo. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019;
FARIA, Bento de. Código Penal Brasileiro Comentado. 2. ed. Rio de Janeiro: Record,
1959, v. VII; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Parte Especial. 3.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, v. II; GARCIA, Basileu. Violação de segredo,
Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 44, p. 51-67, 1949;
MARQUES, Gabriela; MARQUES, Ivan. A nova Lei de Abuso de Autoridade. Lei
13.869/2019 – Comentada artigo por artigo. São Paulo: RT, 2019; PINHEIRO, Igor
Pereira; CAVALCANTE, André Clarck Nunes; BRANCO, Emerson Castelo. Nova
Lei do Abuso de Autoridade – Comentada artigo por artigo. Leme: JH Mizuno, 2020;
PRADO, Luiz Regis, Tratado de Direito Penal. Parte Especial. São Paulo: RT, 2014,
v. 6.

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. O crime do art. 16 da Lei no 13.869/2019
protege o direito constitucional de toda pessoa presa conhecer a identidade do
responsável por sua prisão ou interrogatório.
O inciso LXIV do caput do artigo 5o da Constituição assegura: “o preso
tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu
interrogatório policial”. O tipo penal da cabeça do art. 16 refere-se à
identificação dos responsáveis pela prisão. Já no caso da figura do parágrafo
único, a lei penal protege o direito de saber quem é o responsável pelo
interrogatório policial.
No mais, como em todos os crimes de abuso de autoridade, há
duplicidade de bens penalmente tutelados. Na infração penal do caput do art.
16 da Lei no 13.869/2019 protege-se, em caráter secundário, o correto
funcionamento da atividade de persecução penal estatal, no que diz respeito à
legalidade e correção das realizações de prisões e dos interrogatórios
policiais.
2. Sujeito ativo. Trata-se de crime próprio, na medida em que somente
pode ser praticado por agente público.
A prisão em flagrante delito em regra é realizada por agentes de
segurança, integrantes das polícias militares, que poderão ser os sujeitos
ativos de tal delito. Todavia, particulares também poderão realizar a prisão de
quem se encontre em flagrante delito (CPP, art. 301). Mais especificamente,
realizarão a prisão-captura e encaminharão o conduzido para a autoridade
policial que lavrará o auto de prisão em flagrante. Se, no momento da prisão-
captura, ou se, posteriormente, quando da identificação como condutor, na
lavratura do auto de prisão em flagrante, o particular se identificar
falsamente, não cometerá o crime do art. 16, caput, da Lei no 13.869/2019,
por não ser agente público, nos termos do art. 2o da mesma lei.41 Poderá
responder, contudo, pelo crime de falsa identidade do art. 307 do Código
Penal, caso o faça para obter vantagem ou causar prejuízo alheio.
Na modalidade do parágrafo único do art. 16, somente poderá ser sujeito
ativo a autoridade responsável pelo interrogatório do preso, em procedimento
investigatório penal. Normalmente, o responsável pelo interrogatório policial
é o Delegado de Polícia.
3. Sujeito passivo. Há dupla subjetividade passiva no crime do art. 16,
caput: o sujeito passivo imediato ou primário é a pessoa atingida pela
conduta do agente; no caso, aquele que foi capturado ou preso, bem como o
preso que seja interrogado. O sujeito passivo secundário ou mediato é o
Estado, interessado no correto exercício da atividade pública.
4. Tipo objetivo. Na figura do caput do art. 16 da Lei no 13.869/2019, há
dois verbos tipo: um que indica conduta ativa e outro passiva.
Constranger significa forçar alguém a fazer ou não fazer algo. Sujeitar
alguém ou subjugá-lo. Trata-se de conduta comissiva, “deixar de se
identificar” é negar–se a fornecer elementos de identificação. Trata-se de
crime omissivo próprio. Já “identificar-se falsamente” é conduta comissiva,
consistente em fornecer elementos de identificação que não sejam corretos.
4.1 “Captura, detenção ou prisão”. Os elementos normativos “captura”,
“detenção” ou “prisão” não implicam definições de conceitos ou situações
absolutamente distintas e apartadas. O legislador pretendeu deixar claro que,
em qualquer ato de privação de liberdade, é necessária a identificação do
responsável. A captura liga-se mais ao ato de capturar, tomar ou prender
alguém. Na prisão em flagrante, a “prisão-captura” representa o momento em
que o indivíduo é apanhado por quem o detém quando pratica o crime.42 A
detenção, por sua vez, é uma das modalidades de pena privativa de liberdade.
Mas também é considerada como o ato de deter ou prender alguém. Por fim,
pode-se dizer que a prisão, no sentido do texto, pode ser tanto a prisão para o
cumprimento de pena privativa de liberdade quanto a prisão para
cumprimento de medida cautelar. Seu sentido é mais próximo do efetivo
encarceramento.
4.2 Falsa identidade. Na figura do caput do art. 16, exige-se a falsa
identidade, na modalidade comissiva.
Identidade é o conjunto de dados ou atributos que identificam uma
pessoa, distinguindo-a das demais, normalmente sendo composta dos
seguintes elementos: prenome e nome, nacionalidade, estado civil, filiação,
sexo, indicação do número de Registro Geral de Identidade, data de
nascimento e profissão. Além disso, de um modo geral, a doutrina tem
inserido entre os elementos de identidade também a condição social,
incluindo a profissão ou qualidade pessoal.43 Não há, contudo, uma definição
legal do conjunto específico dos elementos de identificação.
No crime de abuso de autoridade do art. 16, caput, da Lei no 13.869/2019,
é necessário que a atribuição do elemento de identificação falso impeça ou
dificulte a identificação do responsável pela prisão. Bastará que o responsável
pela prisão informe um nome falso, mesmo que seja apenas o chamado
“nome de guerra”, ou que indique um número de matrícula falso, ou até
mesmo que utilize em seu uniforme um nome de identificação falso.44
Haverá identificação falsa, tanto na hipótese em que o agente público
impute a si elementos de identificação que são verdadeiros, mas pertencentes
a outra pessoa, quanto no caso em que lhe atribua elementos de identificação
falsos, por não pertencerem a alguém especificamente.45
Na modalidade do caput do art. 16, há referência somente a “identificar-
se” falsamente, enquanto, na figura do parágrafo único, além da falsa
identidade, há também referência à atribuição falsa de “cargo ou função”. Em
princípio, a diferença dos tipos penais parece indicar que, no caso da cabeça
do artigo, se o responsável pela prisão se identificar corretamente pelo seu
nome, mas indicar um cargo ou função diferente do que realmente exerce,
não estará caracterizado do delito.
A solução do problema, contudo, não é tão simples, na medida em que o
elemento constante do caput do art. 16, no caso, a identificação, não é um
conceito fechado. Assim, a resposta deve ser guiada por uma interpretação
finalística da exigência de identificação. Se o cargo ou função exercido pelo
agente público, em determinada circunstância, for um dado relevante para
identificá-lo, atribuir a si, falsamente, um cargo ou função, poderá
caracterizar o crime do art. 16, caput, da Lei no 13.869/2019. Em relação aos
policiais militares, os oficiais normalmente são identificados por seus posto e
pelo nome de guerra; as praças, por suas graduações, além do “nome de
guerra”. Nesse contexto, identificar-se como “SD PM Souza” ou “CB PM
Souza”, a graduação faz grande diferença. Logo, será considerada
identificação falsa a indicação de uma graduação ou de um posto diverso do
ocupado pelo responsável da captura ou detenção.46 Já se, no auto de prisão
em flagrante, um delegado de polícia identificar-se corretamente, informando
seu nome completo, mas qualificar-se como Delegado de Polícia de “classe
especial”, quando em verdade é delegado de polícia “1a classe”, o dado não
verídico não será relevante para a identificação correta do responsável pela
prisão.
4.3 Procedimento investigatório de infração penal. Na figura do
parágrafo único do art. 16, o que se pune é a falsa identificação do
responsável por interrogatório de investigado preso, “em sede de
procedimento investigatório de infração penal”. Logo, somente os casos de
interrogatórios em investigações realizadas para fins criminais, podem
caracterizar o crime de abuso de autoridade.
A forma mais comum de procedimento investigatório penal é o inquérito
policial, no qual o responsável pelo interrogatório é o delegado de polícia.
Mas também poderá ser o caso dos procedimentos investigatórios criminais
(PICs), por meio dos quais membros do Ministério Público realizam
investigações penais. Nesta hipótese, se houver falsa identificação do
responsável pelo interrogatório, normalmente um promotor de justiça, ou
procurador da república, poderá se caracterizar o crime do art. 16, parágrafo
único, da Lei no 13.869/2019.
Por outro lado, não haverá crime de abuso de autoridade, na hipótese de
identificação falsa pelo responsável por interrogatórios em processos
administrativos disciplinares, inquéritos civis, procedimentos investigatórios
conduzidos pelo Ministério Público do Trabalho ou qualquer outro
procedimento que não tenha por objeto a apuração de infração penal.47
5. Tipo subjetivo. O tipo penal é doloso. No caso da figura do art. 16 da
Lei no 13.869/2019, não é possível o dolo eventual, pois não há como o
agente desconhecer os seus dados de identificação e atribuir a si um elemento
distintivo que, não sabendo se é verdadeiro ou falso, prefere informá-lo, ao
invés de nada dizer.
O dolo, como consciência e vontade de realizar os elementos do tipo,
deve ser considerado como a vontade livre em constranger, mediante ameaça
de prisão, pessoa que tinha conhecimento de fatos cobertos pelo sigilo legal
e, consequentemente, não tem o dever de prestar depoimento.
Como em relação a todos os tipos penais da Lei no 13.869/2019, não
basta o dolo, sendo necessário, também, um dos elementos subjetivos do
injusto do § 1o do art. 1o. Todavia, embora seja necessária a ocorrência de,
pelo menos uma das cinco finalidades que caracterizam o abuso do poder
público conferido à autoridade ou a seu agente, especialmente no caso de
prisões ilegais, normalmente, a omissão de identificação ou a utilização de
identificação falsa terá com finalidade “prejudicar outrem”, no caso, o
próprio preso, que terá maiores obstáculos para demonstrar o real autor de
sua prisão, ou mesmo para que este possa “beneficiar a si mesmo”, pois, não
sendo identificado, dificultará a sua responsabilização por ato ilegal.
6. Consumação e tentativa. O crime do art. 16 da Lei no 13.869/2019 é
crime formal, que se consuma quando há a atribuição falsa da identidade do
responsável pela prisão, no caso da figura do caput, ou do responsável pelo
interrogatório, no crime do parágrafo único.
Embora de difícil ocorrência, a tentativa é possível nos casos em que se
utiliza a modalidade escrita, como ocorre com a identificação do responsável
pela prisão, no mandado de prisão.48 Por exemplo, se o responsável já se
atribuiu a identidade falsa que constou da nota de culpa, mas antes de ela ser
entregue ao preso, a identificação mendaz é identificada e corrigida.
Já na modalidade omissiva, o delito estará consumado no momento em
que, tendo o agente público o dever de fornecer a sua identidade para o preso,
deixa de fazê-lo. Evidente que, no momento da perseguição, de eventual luta
corporal, ou mesmo durante a tomada de atitudes necessárias para conter a
pessoa capturada ou detida, não há que se exigir tal providência. Porém, uma
vez efetivamente capturado ou detida a pessoa, terá ela o direito à
identificação do responsável por sua prisão.
No caso de mandado de prisão, o executor da prisão entregará ao preso,
“logo depois da prisão”, uma cópia do mandado de prisão, “com declaração
do dia, hora e lugar da diligência”, estando naturalmente identificado, por
escrito, o seu responsável (CPP, art. 286).49 Se houver recusa de se
identificar, no mandado de prisão, estará consumado o delito. Por outro lado,
no caso de prisão em flagrante delito, constará do auto de prisão em flagrante
quem foi o responsável pela captura e quem conduziu o preso até a
autoridade policial (CPP, art. 304, caput). Se o condutor, sendo agente
público, deixar de se identificar, também estará consumado o crime.50
7. Pena. O crime do caput do art. 16 é punido com pena de detenção, de
6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
É possível a substituição da pena privativa de liberdade por pena
restritiva de direitos, nos termos do art. 44 do CP.
Por se tratar de infração penal de menor potencial ofensivo, são possíveis
a transação penal (Lei no 9.099/1995, art. 76) e a suspensão condicional do
processo (Lei no 9.099/1995, art. 89).
Embora a pena mínima seja inferior a 4 anos, não será admissível o
acordo de não persecução penal, por ser cabível a transação penal (CPP, art.
28-A, § 2o, I).

GUSTAVO BADARÓ E JULIANO BREDA

Art. 17. Submeter o preso, internado ou apreendido ao uso


de algemas ou de qualquer outro objeto que lhe restrinja o
movimento dos membros, quando manifestamente não
houver resistência à prisão, internação ou apreensão,
ameaça de fuga ou risco à integridade física do próprio
preso, internado ou apreendido, da autoridade ou de
terceiro:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e
multa. Parágrafo único. A pena é aplicada em dobro se:
I – o internado tem menos de 18 (dezoito) anos de idade;
II – a presa, internada ou apreendida estiver grávida no
momento da prisão, internação ou apreensão, com
gravidez demonstrada por evidência ou informação;
III – o fato ocorrer em penitenciária.
COMENTÁRIOS:
O crime do artigo 17 da Lei no 13.869/2019 foi vetado pelo Presidente da
República.
As razões do veto foram as seguintes: “A propositura legislativa, ao tratar
de forma genérica sobre a matéria, gera insegurança jurídica por encerrar tipo
penal aberto e que comporta interpretação. Ademais, há ofensa ao princípio
da intervenção mínima, para o qual o Direito Penal só deve ser aplicado
quando estritamente necessário, além do fato de que o uso de algemas já se
encontra devidamente tratado pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos da
Súmula Vinculante no 11, que estabelece parâmetros e a eventual
responsabilização do agente público que o descumprir.”

FÁBIO TOFIC SIMANTOB

Art. 18. Submeter o preso a interrogatório policial durante


período de repouso noturno, salvo se capturado em
flagrante delito ou se ele, devidamente assistido, consentir
em prestar declarações.
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e
multa.

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. A proteção da dignidade do preso e seu direito
à ampla defesa e à não autoincriminação.
2. Sujeito ativo. Trata-se de crime próprio, no qual o autor é a autoridade
policial competente para proceder ao interrogatório (que nem sempre se
confunde com a autoridade que mantém o preso sob custódia). Admite,
porém, participação de outros estranhos inclusive aos quadros da
administração.
3. Sujeito passivo. Qualquer pessoa presa, mesmo que em prisão
domiciliar ou inclusive adolescente cumprindo medida socioeducativa, ou
internado em hospital de custódia para tratamento psiquiátrico.
4. Tipo objetivo. A conduta prevista no tipo ofende a dignidade da
pessoa humana, o direito à ampla defesa e o direito ao silêncio, pois a
conduta típica impede que o preso exerça de forma livre e desimpedida sua
vontade, uma vez que durante o período do repouso noturno sua capacidade
de raciocínio e de tomada de decisões fica prejudicada pelo sono e pelo
cansaço.
A definição do que é “descanso noturno” precisa ser buscada no próprio
ordenamento jurídico. A própria lei de abuso de autoridade prevê no artigo 22
que as buscas e apreensões não poderão ser realizadas antes das cinco da
manhã e nem depois das nove da noite, o que parece prevalecer sobre a
previsão mais genérica do Código de Processo Civil que, no seu artigo 212,
estabelece que “os atos processuais serão praticados em dias úteis, das 6
(seis) às 20 (vinte) horas”. A teor do CPC, repouso noturno incluiria finais de
semana e feriados, ao mencionar “dias úteis”, muito embora, em casos de
prisão temporária, esta restrição seja de todo inapropriada, dado que o prazo
da custódia corre também nestes dias, de modo que não seria razoável que se
impedisse de realizar interrogatórios de preso nestas datas. Para efeito,
portanto, do artigo 18, o período do repouso noturno é aquele previsto no
artigo 22 da própria lei.
O legislador criou uma via de escape, estabelecendo que, mesmo durante
o período do repouso noturno, se estiver devidamente assistido, esta
capacidade diminuída será compensada pela assistência do advogado. E,
neste caso, o consentimento do preso em se submeter ao interrogatório é
considerado válido.
A expressão “devidamente assistido” não é em vão. Quisesse o legislador
se contentar com qualquer forma de assistência diria apenas “assistido”. O
“devidamente” previsto no tipo significa que o ato só é válido se o preso
estiver representado por defensor da sua confiança. A presença de um
defensor ad hoc designado pela autoridade não afasta o crime, ainda que o
preso consinta em ser interrogado.
Outra ressalva que o tipo faz é a do interrogatório realizado com preso em
flagrante delito. Este interrogatório pode ocorrer no período noturno e sem a
presença de advogado (é bastante questionável se submeter o preso a
interrogatório sem a presença do advogado de sua confiança seria
constitucional, mas, do ponto de vista da estrita legalidade do tipo penal em
comento, não é possível alargar a hipótese de incidência da norma).
A autoridade policial, porém, somente está autorizada a fazer o
interrogatório como ato necessário para a formalização do flagrante, logo
depois da prisão. Assim, a autoridade policial que, mesmo depois de
realizado o interrogatório e formalizado o flagrante, continua submetendo o
preso a novos interrogatórios no período noturno, incorre nas penas
cominadas ao crime.
Da mesma forma, a autoridade que aproveita a prisão em flagrante
decorrente de um fato determinado para submeter o preso a interrogatório por
outros fatos, não objeto do flagrante, poderá incorrer no crime.
A submissão do preso à oitiva em declarações ou assentada, sobre fatos
acerca dos quais não é investigado, mas testemunha, não configura o crime,
pois o termo interrogatório na lei brasileira designa apenas o ato pelo qual o
acusado ou investigado exerce sua autodefesa.
5. Tipo subjetivo. Embora o elemento subjetivo seja aquele previsto no
artigo 1o, § 1o, é de se observar que neste caso o dolo qualificado previsto na
lei de abuso de autoridade estará configurado pela simples prática da conduta
típica, pois o prejuízo ao preso é ínsito à conduta, que sempre será
considerada abusiva e atentatória à dignidade da pessoa humana, salvo nas
hipóteses ressalvadas no próprio tipo. Não há como dissociar a conduta da
finalidade de prejudicar interesse de terceiros, a dignidade do preso, a menos
que fique demonstrada a finalidade de produzir prova em favor do próprio
preso ou facilitar sua libertação.
6. Consumação e tentativa. A mera preparação do interrogatório, como
designação de data e hora, retirada do preso da cela, configura ato
preparatório impunível.
Basta, porém, que o preso responda à alguma pergunta que o crime estará
consumado. O crime se consuma ainda que o preso expresse o desejo de
permanecer em silêncio.
Embora de difícil configuração, a tentativa é possível na hipótese, por
exemplo, de o interrogatório se iniciar com a formulação de indagações, mas
ser interrompido por razões alheias à vontade da autoridade, antes de o preso
manifestar se deseja falar ou permanecer em silêncio. Se a própria autoridade
voltar atrás, será hipótese de desistência voluntária.
Trata-se de crime de menor potencial ofensivo, ao qual são cabíveis a
transação penal e a suspensão condicional do processo, ambas da Lei n.
9.099/95.

FÁBIO TOFIC SIMANTOB


Art. 19. Impedir ou retardar, injustificadamente, o envio de
pleito de preso à autoridade judiciária competente para a
apreciação da legalidade de sua prisão ou das
circunstâncias de sua custódia
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa
Parágrafo único. Incorre na mesma pena o magistrado
que, ciente do impedimento ou da demora, deixa de tomar
providências tendentes a saná-lo, ou, não sendo
competente para decidir sobre a prisão, deixa de enviar o
pedido à autoridade judiciária que o seja.

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. Direto do preso à petição e de se corresponder
com o mundo exterior, em especial, com a autoridade judiciária responsável
pela sua prisão.
2. Sujeito ativo. Qualquer autoridade ou agente público (artigo 2o da
Lei), menos o juiz de direito responsável pela prisão.
3. Sujeito passivo. É a pessoa presa ou que, por algum motivo, esteja
cerceada na sua liberdade de ir e vir por decisão estatal, incluindo-se o preso
domiciliar, o adolescente em medida socioeducativa ou o interno de hospital
de custódia.
4. Tipo objetivo. Um dos direitos fundamentais do preso é ter acesso ao
mundo exterior por meio de correspondência. A Lei de Execuções Penais, no
seu artigo 41, prevê o direito do preso à representação e petição (XIV) e de
comunicação com o mundo exterior (XV).
O legislador houve por bem, no entanto, proteger o bem jurídico apenas
quando a correspondência obstruída dissesse respeito a pleito dirigido à
autoridade judiciária versando sobre a legalidade da prisão ou circunstâncias
da custódia.
O verbo impedir constitui conduta comissiva e admite a forma tentada se,
por exemplo, o diretor do presídio determina a eliminação da
correspondência, mas o agente penitenciário que recebe a ordem, consciente
da gravidade da determinação, decide ainda assim encaminhá-la ao juiz. Ou
se mesmo impedindo o envio do pleito, o preso consegue por outros meios
que a postulação chegue ao conhecimento da autoridade.
Eventual conduta omissiva será analisada à luz do artigo 13, § 2o, do CP.
O crime se consuma quando o pleito do preso deixa de chegar ao
conhecimento da autoridade em tempo razoável para que a ilegalidade ou
providência seja adotada ou, em razão da demora em enviar o pleito, haja o
perecimento de algum direito, ou seja, se o pleito não chega ao juiz, mas por
outro meio, a ilegalidade acaba sendo debelada, não há falar-se em
consumação.
Questão bastante tormentosa é se a conduta de impedir o pleito
totalmente destituído de fundamento também configura o crime. Não parece
razoável que se delegue à autoridade prisional o poder de filtrar os pleitos,
decidindo o que deve e o que não deve ser enviado à autoridade judiciária.
Por outro lado, parece excessivo punir o diretor do presídio pelo não envio de
um pleito que, ao chegar ao conhecimento do juiz, é considerado totalmente
estapafúrdio ou até ininteligível.
É por isto que o tipo previu a expressão “injustificadamente”, de modo
que o tipo excepciona a hipótese em que há justa causa para não ter sido
enviado o pleito.
Na forma retardar, o tipo é mais amplo e a conduta é também comissiva.
Poderá ser praticada por omissão na forma do artigo 13, § 2o (omissão
imprópria), retardar é procrastinar, causar demora, atrasar. A conduta de
impedir pressupõe o resultado naturalístico – o não envio do pleito –, ao
passo que na modalidade retardar este resultado não é necessário para a
configuração do crime.
Nesta modalidade típica, o crime se configura ainda que o pleito chegue
ao conhecimento da autoridade. A consumação se dá com a mera demora,
mesmo que sem resultado. A demora deve ser relevante e duradoura e não
própria dos trâmites burocráticos. Por ser crime unissubsistente, não admite
tentativa.
5. Tipo subjetivo. O elemento subjetivo do tipo é o dolo qualificado
previsto na lei e, neste caso, o crime só estará configurado se da conduta se
depreender vontade deliberada de prejudicar o direito do preso de ver seu
pleito apreciado, ou vontade de impedir que chegue à autoridade denúncias
relevantes sobre sua própria conduta irregular.
O parágrafo único oferece algumas dificuldades, pois não é possível
compreender a hipótese fática que o legislador pretendeu incriminar.
Nesta hipótese, o tipo tem duas partes.
A primeira penaliza o magistrado que, ciente do impedimento, ou da
demora, deixa de tomar providências tendentes a saná-lo. A segunda
criminaliza o magistrado que, não sendo competente para decidir sobre a
prisão, deixa de enviar o pleito à autoridade judiciária competente.
O sujeito ativo nestes casos é o magistrado a quem compete decidir sobre
a prisão e as circunstâncias da prisão.
Trata-se de crime omissivo próprio, sendo a conduta omissiva consistente
em deixar de “tomar providências”, na primeira parte, ou de “encaminhar ao
juiz competente”, na segunda parte. O tipo previsto na primeira parte parece
muito difícil de se caracterizar, porque é aparentemente contraditório tomar
conhecimento de que foi obstaculizado o envio de pleito ou da demora em
fazê-lo, sem que automaticamente já tome conhecimento do próprio objeto do
pleito.
Soa desproporcional por outro lado que a lei penal puna o magistrado por
não tomar providências para sanar a demora causada por outra autoridade,
mas não seja responsabilizado penalmente pela demora em proferir decisão
sobre o próprio mérito do pleito ou até mesmo por se recusar a fazê-lo.
Há ainda dúvida de difícil solução na segunda parte do parágrafo único,
“não sendo competente para decidir sobre a prisão, deixa de enviar o pedido à
autoridade judiciária que o seja”. Tal previsão aplica-se a todo e qualquer
pleito de liberdade ou apenas àqueles que tenham sido alvo da demora ou do
impedimento de que tratam o caput e a primeira parte do parágrafo? Se
aplicável apenas na hipótese do caput, a pena então se mostra como mero
capricho do legislador, pois não faz sentido em hipótese tão específica prever
crime de abuso de autoridade e em outras tantas não, como nas diversas
outras situações em que o juiz, ao se ver incompetente, nem examina o
pedido de liberdade, nem tampouco remete-o à autoridade que o seja. Por que
a omissão judicial é crime num caso e não em tantos outros semelhantes?
A redação deficiente neste caso é causa de profunda insegurança jurídica
e torna, a nosso ver, o artigo inconstitucional.
O crime não admite transação penal, mas admite suspensão condicional
do processo.

JULIANO BREDA
Art. 20. Impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e
reservada do preso com seu advogado:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e
multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem impede o
preso, o réu solto ou o investigado de entrevistar-se
pessoal e reservadamentecom seu advogado ou defensor,
por prazo razoável, antes de audiência judicial, e de
sentar-se ao seu lado e com ele comunicar–se durante a
audiência, salvo no curso de interrogatório ou no caso de
audiência realizada por videoconferência.

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. Assim como nos crimes contra as prerrogativas
profissionais dos advogados, entende-se que a conduta tipificada infringe a
administração da justiça, em decorrência da previsão do art. 133 da
Constituição Federal (Art. 133. O advogado é indispensável à administração
da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da
profissão, nos limites da lei).
A entrevista pessoal e reservada é expressamente prevista como uma
importante garantia judicial do indivíduo, assegurada pela Convenção
Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica, da qual
o Brasil é signatário, em seu artigo 8o, 2, ‘d’ (direito do acusado de defender-
se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de
comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor).
Da mesma forma, a Lei 8.906/1994 – Estatuto da Advocacia e da Ordem
dos Advogados do Brasil estabelece em seu art. 7o, III, o direito do advogado
“comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem
procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em
estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis”.
Trata-se não apenas de uma prerrogativa profissional do advogado, mas
de um direito instituído em favor do indivíduo, como decorrência lógica do
direito à ampla defesa, que pressupõe a livre e sigilosa comunicação entre o
defensor e o cidadão, para o fim de garantir uma adequada orientação jurídica
sem a indevida interferência do estado.
2. Sujeito ativo. Os crimes previstos na lei exigem, de acordo com artigo
1o, que a conduta seja praticada por agente público, servidor ou não, que, no
exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe
tenha sido atribuído.
O crime pode ser praticado por qualquer agente que impeça a livre
comunicação entre advogado e cliente preso, mas em regra será cometido por
funcionários de estabelecimentos prisionais (agentes de segurança em
presídios, delegados de polícia ou mesmo por servidores públicos em espaços
destinados à detenção temporária dos presos em unidades do poder
judiciário).
É possível, no entanto, que a determinação abusiva seja de autoria de
magistrado, em especial, no crime do parágrafo único, ou por membro do
Ministério Público.
3. Sujeito passivo. O indivíduo preso e o advogado são vítimas da
conduta, em face da lesão pluriofensiva da ação incriminada, que atinge o
direito de defesa em sua dupla acepção constitucional, ou seja, viola-se o
direito de livre e pessoal comunicação do indivíduo preso e o direito ao livre
exercício da advocacia.
4. Tipo objetivo. O núcleo verbal impedir significa obstar, impossibilitar,
frustrar, de qualquer modo, a entrevista pessoal e reservada. O impedimento
pode ocorrer ao negar-se a entrevista em local específico, ou seja, não
reservado (por exemplo, em cela com outros presos), ou sob a vigilância de
terceiros, funcionários públicos ou não.
O tipo penal exige que o impedimento seja executado “sem justa causa”,
elemento normativo conhecido na legislação penal, que se traduz na ausência
de fundamentos razoáveis a justificar objetiva e subjetivamente determinada
ação. O conteúdo da expressão “justa causa” não se erige com fundamento
em juízos morais, mas a partir dos pressupostos e dos limites dados pelo
ordenamento jurídico.
Nesse passo, apenas será possível cogitar de justa causa para eventual
impedimento de entrevista pessoal e reservada se razões foram fundadas em
regras jurídicas aplicáveis ao caso concreto. Justa causa é compreendida
como causa secundum jus, ou seja, é justa a ação que tem amparo em lei No
entanto, difícil será a demonstração concreta da alegada justa causa, eis que
não há no ordenamento jurídico regras permissivas ou de justificação para
negar-se ao cidadão preso o direito de entrevistar-se pessoal e reservadamente
com seu advogado, garantia assegurada, sem relativizações, no Estatuto da
Advocacia e em tratados internacionais.
Entrevista pessoal e reservada significa a reunião particular, sem o
controle e vigilância de terceiros, entre cliente e advogado, que nesse caso
poderá ser privado ou defensor público51.
O tipo penal do caput menciona especificamente o cidadão preso, ou seja,
em custódia pelo Estado, em decorrência de prisão temporária ou preventiva
e ainda no curso de prisão em flagrante e de prisão decorrente de sentença
condenatória, no curso da execução penal. Assim, nessa modalidade, não
haverá tipicidade objetiva se o cidadão estiver em liberdade.
O impedimento típico não se confunde com a regulamentação das
entrevistas, comuns nas unidades prisionais. É possível, e por vezes
necessário, que as delegacias e presídios estabeleçam regras para a execução
das entrevistas entre clientes e advogados, designando a forma de realização
desse contato, datas, horários, duração e local, sem que isso caracterize a
infração penal.
Contudo, esse tipo de regramento não pode atingir o núcleo de tutela do
direito de defesa, ou seja, não pode desnaturar o conteúdo da garantia, de
modo que qualquer limitação não poderá descaracterizar o direito à entrevista
pessoal e reservada. Por exemplo, não se admitirá que eventual exigência de
agendamento prévio de reunião frustre uma necessidade urgente do direito de
defesa, como a entrevista para a audiência de custódia ou para o
interrogatório, posteriormente à prisão do indivíduo, para que a defesa possa
obter informações necessárias à tutela imediata do direito de liberdade.
Isso significa que a reunião entre preso e advogado pode ser realizada em
parlatório mediante o uso de interfones, desde que não exista controle ou
interferência de terceiros.
A esse respeito, existem hoje decisões judiciais permitindo a captação do
áudio das conversas mantidas entre advogado e cliente no ambiente dos
parlatórios. A gravação genérica da comunicação é indiscutivelmente
inconstitucional, independentemente do local em que realizada ou da
gravidade do crime praticado pelo preso.
A única hipótese legítima de quebra da confidencialidade dessa
comunicação vem expressamente prevista no art. 7o, § 6o, do Estatuto da
Advocacia e da OAB52, ou seja, diante de indícios claros e inequívocos de
prática de infração penal pelo advogado, exigindo-se que a decisão judicial
demonstre a imprescindibilidade da gravação da comunicação entre e ele e o
preso para a investigação.
Sem essa demonstração, mediante decisão judicial motivada, a prova
obtida com a interceptação da conversa em parlatório será processualmente
inadmissível e o crime em estudo estará consumado.
5. Tipo subjetivo. É o dolo específico, caracterizado pela vontade livre e
consciente de impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do
preso com seu advogado, com a finalidade de prejudicar outrem ou beneficiar
a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”,
na forma do especial fim de agir genérico previsto no artigo 1o, § 1o, da Lei.
A inexistência de causa jurídica legítima para o impedimento da entrevista
pessoal e reservada também deve ser conhecida pelo agente.
6. Consumação e tentativa. O crime é material, consumando-se com o
efetivo impedimento de reunião entre cliente e advogado, de forma pessoal e
reservada. O impedimento indica, ainda, a natureza permanente da infração
penal, cuja violação ao direito tutelado protrai-se no tempo enquanto
configurados os elementos típicos. É possível, em tese, a ocorrência da
modalidade tentada.
7. Pena. A sanção penal é de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos,
e multa, comportando, portanto, o rito previsto na Lei n. 9.099/95, com a
possibilidade de transação penal, em razão da pena máxima cominada ao
crime.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem impede o


preso, o réu solto ou o investigado de entrevistar-se
pessoal e reservadamente com seu advogado ou
defensor, por prazo razoável, antes de audiência judicial, e
de sentar-se ao seu lado e com ele comunicar–se durante
a audiência, salvo no curso de interrogatório ou no caso
de audiência realizada por videoconferência.

COMENTÁRIOS:
A modalidade do parágrafo único reforça o direito à ampla defesa
previsto no artigo 185, § 5o53, do Código de Processo Penal, que pressupõe a
orientação jurídica do defensor a seu cliente, em especial nos atos em que se
materializa com maior densidade o direito de defesa, abrangendo também o
direito à entrevista de réu solto ou de réu preso, no curso de audiências
perante o Poder Judiciário.
As exceções criadas pelo tipo penal (salvo no curso de interrogatório ou
no caso de audiência por videoconferência) são incompreensíveis, pois não é
lícito impedir que o advogado oriente, por exemplo, seu cliente a exercer o
direito ao silêncio em face de alguma questão formulada pelo Juiz, Ministério
Público, assistente da acusação ou mesmo pela defesa de corréu. Seria uma
vedação inconstitucional pela infração à garantia constitucional da ampla
defesa.
De outro lado, não se justifica a restrição da orientação do defensor ao
seu cliente em caso de videoconferência ou do impedimento do advogado
sentar-se ao lado do réu no interrogatório, inseridos na lei sem qualquer
motivação razoável.
Aliás, antes da audiência por videoconferência, deve sempre ser
permitido que o advogado possa se entrevistar de modo reservado com seu
cliente também por este meio tecnológico.
De todo modo, em face do princípio da taxatividade, o crime não se
configurará nessas hipóteses equivocadamente excepcionadas pelo tipo.
Os elementos típicos fundamentais (tipo objetivo e subjetivo) são os
mesmos do caput e devem ser interpretados na forma supra descrita, assim
como o momento consumativo do crime.

ANTONIO SÉRGIO ALTIERI DE MORAES PITOMBO

Art. 21. Manter presos de ambos os sexos na mesma cela


ou espaço de confinamento:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem mantém,
na mesma cela, criança ou adolescente na companhia de
maior de idade ou em ambiente inadequado, observado o
disposto na Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto
da Criança e do Adolescente).

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. Trata-se de tipo pluriofensivo, o qual se
alicerça na dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, da CR). Protegem-se a
intimidade e a vida privada (artigo 5o, X, da CR), bem assim a liberdade (art.
5o, caput e II, da CR). O indivíduo, ainda que preso por ordem judicial, legal
e devidamente motivada (art. 5o, LXI, da CR), não perde a intimidade, nem o
respeito à integridade física e moral (art. 5o, XLIX, da CR). Daí, se exigir
que se observe o estabelecimento adequado, consoante o sexo do apenado
(art. 5o, XLVIII, da CR), ou preso cautelar. Homem ou mulher, se presos, não
estão obrigados a permanecer no mesmo lugar (cela ou espaço de
confinamento) com pessoa do outro sexo, nem pode a limitação ao ir e vir
permitir que se crie risco à autodeterminação sexual de qualquer um deles. A
igualdade jurídica entre homens e mulheres (art. 5o, I, da CR) não significa o
Estado não ter o dever de protegê-las, com maior atenção, no tocante à
liberdade e à integridade física e moral, bem como de evitar quaisquer
eventuais formas de discriminação (Convenção sobre a eliminação de todas
as formas de discriminação contra a mulher da ONU e Convenção
Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher).
Especial tutela jurídica merecem as crianças e os adolescentes (art. 227,
caput, da CR), os quais não podem sofrer abuso, violência ou exploração
sexual (art. 227, § 4o, da CR).
2. Sujeito ativo. O agente público consoante descrito no artigo 2o da Lei
13.869/19, observada a extensão do conceito do parágrafo único, do mesmo
artigo. Prepondera aqui a especialidade desta norma jurídica à prevista no
artigo 327 do Código Penal. Qualquer agente público que mantiver duas
pessoas presas, de sexo diferente, na mesma cela ou espaço de confinamento,
pratica a conduta típica. Agentes públicos que exerçam atividade na polícia
judiciária e no serviço penitenciário, pelo contato direto com os presos,
podem ser autores imediatos da infração penal, mas outros agentes públicos,
se cientes da restrição à liberdade de locomoção de duas ou mais pessoas, na
forma proibida pelo tipo incriminador, podem ser responsabilizados (e.g.,
Juiz de Direito, Promotor de Justiça, entre outros) (art. 13, § 2o, do CP).
Aliás, a presença de mulheres em ambiente de homens presos – e vice-versa
– exsurge causa para o Poder Judiciário determinar a interdição de
estabelecimento prisional (STF. RE 592.581/RS; STJ. RMS 45.212/MG). O
particular que realiza a prisão em flagrante não perpetua o crime (art. 301 do
CPP), mas é dever do agente público que chegar ao local aonde se deu o
flagrante, desde logo, separar as pessoas presas, de sexo distinto, ou as
crianças e adolescentes dos maiores.
3. Sujeito passivo. Qualquer pessoa maior, do sexo masculino ou
feminino, presa na mesma cela, ou local de confinamento, com outra do sexo
oposto, bem assim a criança ou adolescente, mantida presa com maior de
idade ou em ambiente inadequado. Não apenas mulheres, crianças e
adolescentes se mostram vítimas do crime, também o homem submetido à
manutenção da prisão com pessoa do sexo feminino padece com a conduta
típica (art. 5o, I, da CR). Embora vedada a interpretação extensiva, dada a
ideia de legalidade estrita, cabe observar o anacronismo do legislador que
perdeu a oportunidade de ampliar a proteção jurídica do tipo legal às
desigualdades de gênero, não tão somente de sexo, com vistas ao maior
espectro de proteção jurídica à dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, da
CR). O comportamento proibido fere o Estado, por óbvio.
4. Tipo objetivo. A conduta típica caracteriza-se por se fazerem duas ou
mais pessoas de sexo distinto permanecerem na mesma cela, lugar próprio
para restrição à liberdade em prédio público (v.g., delegacias de polícia,
penitenciárias, presídios e estabelecimentos afins), ou espaço de
confinamento, local voltado ao isolamento dos presos. Na forma do parágrafo
único, configura-se com a ausência de separação entre a criança, ou
adolescente, e o maior de idade, ou com manutenção da criança, ou
adolescente, em ambiente inadequado (art. 123 da Lei 8.069/90). O núcleo do
tipo exige que a conservação dos presos no mesmo espaço se protraia no
tempo, sendo evidente que a postergação da separação das pessoas torna-se
típica quando incrementado o risco de se violarem os bens jurídicos
tutelados. Isso não significa que se possa enxergar atipicidade a contar de
desculpas atreladas ao tempo cronológico, da espécie “foram poucos minutos,
poucas horas”. A valoração jurídica do comportamento depende de se
analisar a possibilidade imediata de se apartarem as pessoas de diferentes
idades ou sexo, bem assim o quanto a demora em si acarretou violação a
direitos daquelas pessoas na situação concreta. Pouquíssimos minutos podem
se transformar em horror pela mistura indevida de indivíduos, no mesmo
ambiente de limitação à liberdade de locomoção, pouco importa homens e
mulheres, maiores e crianças, ou adolescentes. Se a manutenção do convívio
inapropriado dos presos destinar-se à perpetração de outras infrações penais,
pode-se verificar a ocorrência do concurso de crimes (art. 69 e seguintes do
CP). E, algumas situações factuais concretas podem exigir a pesquisa quanto
a formas de participação criminal (art. 29 do CP) dos agentes públicos nos
crimes ocorridos em virtude dessa manutenção indevida dos presos no
mesmo local.
5. Tipo subjetivo. Tipo doloso que exige a vontade livre e consciente de
manter presos de ambos os sexos na mesma cela, ou no mesmo espaço de
confinamento. É necessário que o agente público reconheça que as pessoas
presas se apresentam de sexo distinto e as mantenha no lugar. Hipótese de
erro de tipo pode se dar se o agente público se equivocar com a identificação
civil do preso ou não reconhecer qual sexo do preso (art. 20 do CP). No
parágrafo único, o agente identifica a diferença de idades entre o maior e a
criança, ou adolescente, e, apesar disso, de forma intencional, deixa-os
recolhidos juntos. Ainda, tipifica-se o dolo quando o autor observa tratar-se
de criança, ou adolescente, e ostenta a vontade de mantê-lo em ambiente
inadequado. Como se nota, no tocante ao parágrafo único, é essencial à
configuração típica a cognição quanto às idades do maior, da criança e do
adolescente. O tipo subjetivo pode não se aperfeiçoar, ou constituir
circunstância atenuante (art. 65, III, “a”, do CP), caso o agente público tenha
mantido os presos juntos com o fim de proteger outros valores jurídicos,
sociais ou morais relevantes, tal como na manutenção da mãe, ou do pai, com
o filho menor em isolamento, ou dos irmãos de idades diferentes, como
maneira de lhes resguardar a integridade física e psicológica.
6. Consumação e tentativa. O crime se consuma com a permanência do
aprisionamento de duas ou mais pessoas de ambos os sexos na mesma cela,
ou sala de confinamento. De imediato, reconhecida a diferença entre o sexo
dos presos – ou a divergência de idades –, cabe separá-los. A demora
propositada ou a omissão em apartar tais pessoas conduz ao resultado típico
do crime. Enquanto se mantiverem tais indivíduos juntos no mesmo lugar, ou
em ambiente impróprio, prolongar-se–á o momento de consumação. Cuida-
se, pois, de crime permanente. O legislador pune pela demora na proteção
dos direitos dos presos, das crianças e adolescentes com medida
socioeducativa. Logo, a violação ao bem jurídico remanesce no tempo e o
iter criminis se encerra apenas com a separação das pessoas. Não se admite a
tentativa na forma omissiva da manutenção, porém, pode se tipificar na
modalidade comissiva.
7. Pena. Cominou-se a detenção de um a quatro anos, e multa. Permite-
se, portanto, a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95 c/c
art. 77 do CP). Provável substituição por penas restritivas de direitos, se
preenchidos requisitos legais e assim entender suficiente o juiz penal (art. 44
do CP). Reitera-se a ocorrência do concurso de crimes (art. 69 e seguintes do
CP), caso a manutenção criminosa venha ser seguida de outras infrações
penais, cuja responsabilidade seja do mesmo agente público que a deu causa
por ação ou omissão (art. 13 c/c art. 29 do CP).

ANTONIO SÉRGIO ALTIERI DE MORAES PITOMBO

Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou


astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante,
imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer
nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora
das condições estabelecidas em lei:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa
§ 1o Incorre na mesma pena, na forma prevista no
caputdeste artigo, quem:
I – coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a
franquear–lhe o acesso a imóvel ou suas dependências;
II – (VETADO)
III – cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar
após às 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco
horas).
§ 2o Não haverá crime se o ingresso for para prestar
socorro, ou quando houver fundados indícios que
indiquem a necessidade do ingresso em razão de situação
de flagrante delito ou de desastre.

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. O legislador constituinte foi preciso, ao
assentar no artigo 5o, inciso XI, que: “a casa é asilo inviolável do indivíduo,
ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em
caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o
dia, por determinação judicial”. Tal dispositivo da Lei Maior combina a
proteção à vida privada e intimidade (art. 5o, X, da CR) com a tutela
subsidiária ao direito de propriedade (art. 5o, caput, XXII, e art. 170, II,
todos da CR). Conforme a correta expressão do Ministro Celso de Mello, a
noção de casa (art. 150 do CP) apresenta sentido largo, afinal compreende:
(i) qualquer compartimento habitado, (ii) qualquer aposento ocupado de
habitação coletiva e (iii) qualquer comportamento privado não aberto ao
público, onde alguém exerce profissão ou atividade (STF. RHC 90.376-2/RJ).
Daí este artigo em comento ter usado a expressão “imóvel alheio ou suas
dependências” com o objetivo de resguardar o bem jurídico constitucional
em toda a sua extensão. Por derradeiro, protege–se o devido processo penal e
a defesa (art. 5o, LIV e LV, da CR), pois, como afirma a Quarta Emenda à
Constituição Norte-Americana, adotada em 1792, há o direito de as pessoas
estarem seguras em suas casas, contra as buscas e as apreensões não
razoáveis e mandados sem justa causa e limites estreitos (STF. RE
603.616/RO).
2. Sujeito ativo. O agente público consoante descrito no artigo 2o da Lei
13.869/19, observada a extensão do conceito do parágrafo único, do mesmo
artigo. Prepondera aqui a especialidade desta norma jurídica à prevista no
artigo 327 do Código Penal. Qualquer agente público que invadir, adentrar,
permanecer em imóvel alheio ou suas dependências, sem concordância do
ocupante, sem autorização judicial e fora das hipóteses excepcionais previstas
em lei (flagrante delito, desastre, entre outras). Agentes públicos que exerçam
atividade na polícia (em especial, na polícia judiciária) devem atentar às
situações factuais específicas que lhes autorizam a entrada na casa alheia,
bem como aos limites da lei e das ordens judiciais, para penetrarem em
domicílios. Nesse sentido, agentes públicos perpetuam o crime, se coagem
alguém a lhes permitir indevido acesso ao imóvel ou dependência, ou se
cumprem mandados de busca e de apreensão antes das 5 horas da manhã, ou
depois das 21 horas. Por derradeiro, observa-se que a característica do autor
ser e agir na qualidade de agente público importa na tipicidade deste tipo
legal, de modo especial, em relação à invasão de domicílio, prevista no artigo
150 do Código Penal.
3. Sujeito passivo. O modelo legal utiliza-se da palavra ocupante, com o
fim evidente de ampliar a tutela de proteção do tipo penal. Dada a natureza
dos direitos em jogo e do relevo do resguardo da intimidade e da vida
privada (art. 5o, X, da CR), não importa a vítima ser proprietário, locatário,
comodatário, usuário do imóvel. Interessa estar o indivíduo a ocupar o imóvel
ou dependência, para se ver reconhecida a qualidade jurídica de ofendido.
Aquele que trabalha em escritório profissional, utiliza aposento de hotel, ou é
paciente em tratamento em quarto hospitalar, pode ser sujeito passivo do
crime sob exame. Padece com a conduta, por razão de princípio, o Estado.
4. Tipo objetivo. Invadir ou adentrar de forma clandestina ou astuciosa
constituem as duas condutas proibidas, detalhadas pelo caput. A conduta
típica se configura se o agente público penetra em determinado lugar pela
força, às escondidas, por meio ardiloso, fora da legalidade. Agentes públicos
atuam consoante a lei estrita (art. 37 da CR), logo, só lhes é autorizado
entrar, ou permanecer, em imóvel alheio ou dependência, se o fazem
consoante a lei, ou com autorização do ocupante, ou para prestar socorro, ou
em situações de desastre, ou flagrante-delito (art. 302 do CPP), ou, por fim,
mediante ordem judicial escrita (art. 93, IX, da CR c/c art. 241 do CPP). O
parágrafo 2o repete em certa medida o comando constitucional (art. 5o, XI, da
CR). O uso da coação, mediante violência ou grave ameaça, para ter
franqueado o acesso a imóvel ou dependência, configura o crime descrito no
inciso I. Claro o intuito de se evitar a brutalidade das operações policiais (em
casas de pessoas mais pobres, em bairros afastados e favelas, v.g.). Ressalta-
se que o acesso ao imóvel ou dependência não se faz necessário para a
tipificação desta modalidade da infração penal, pois basta dar-se a coação
contra o ocupante, ou mesmo terceiro que possa conferir o acesso ao autor do
delito. Cuida-se aqui de crime formal, do qual independe de resultado
ulterior. O tipo incriminador do inciso III reforça a importância da forma
legal no cumprimento de ordem judicial da busca cautelar. Isso fica claro na
tipificação da execução do mandado de busca em horário diverso do período
das cinco horas da manhã às vinte e uma horas, o que, por conseguinte,
criminalizou o desatendimento à regra processual do artigo 245, primeira
parte, do Código de Processo Penal. Em síntese, não se executam a busca e a
apreensão no repouso noturno, antes do dia (5 horas da manhã) e tarde da
noite (depois das 21 horas). Poder-se-ia criticar a fixação da hora de execução
do mandado, porque, no inverno, em alguns estados da federação, o dia não
amanhece nesse horário, ou, ainda, porque, em determinadas áreas rurais, as
pessoas dormem muito antes das nove horas da noite. Quis, ao que tudo
indica, o legislador penal dizer, de modo taxativo, o que entendeu ser o dia
para entrar em casa, ou domicílio de alguém, para cumprir ordem judicial. A
autorização do ocupante posterior à perpetração da conduta típica não a
desconfigura, nem sequer na hipótese do adentrar à revelia da vontade do
ocupante, preceituada pelo caput.
5. Tipo subjetivo. Trata-se de tipo doloso. O sentido do verbo invadir
facilita a interpretação de qual fim ínsito a essa conduta típica. O adentrar
necessita que o autor aja, consciente de estar a se movimentar de forma
clandestina ou astuciosa – comportamento incompatível com o padrão
esperado de agente público. Também, não se pode querer adentrar nesses
lugares, se se possui ciência anterior ou concomitante da ausência de
autorização do ocupante para a entrada no imóvel ou dependências. A
caracterização da violência e a manifestação da grave ameaça evidenciam o
tipo subjetivo dessa espécie de coação. O agente almeja que o coagido lhe
franqueie o acesso ao local, a contar do emprego desses meios ilícitos. O dolo
no ilegal cumprimento do mandado judicial depende da consciência e da
vontade de executar a ordem legítima em horário proibido. A falta de
correspondência precisa entre a regra quanto ao dia no artigo 245 da lei
processual penal e a descrição do período entre cinco e vinte e uma horas,
tipificado pelo crime em comento, podem gerar situações de erro de
proibição (art. 21 do CP).
6. Consumação e tentativa. Em todas as hipóteses do tipo legal, com
exceção do inciso I, o crime se perfaz com a movimentação física do agente
público que invade ou adentra no imóvel alheio ou suas dependências,
conforme as formas típicas vedadas. Caso entre no lugar de maneira lícita,
mas lá remanesça, de forma clandestina, astuciosa ou à revelia da vontade do
ocupante, perpetua a infração criminal. O modelo legal da coação a dar
entrada forçada a agente público consuma-se com o simples agir, mediante a
violência ou grave ameaça, dada a natureza formal do crime. Pode-se dar a
tentativa do crime se o sujeito inicia o comportamento de entrar no lugar
proibido, mas é impedido por alguém, ou por ofendículos (grades, cão de
guarda, equipamentos de segurança, entre outros). Note-se que, se o agente
público acredita agir autorizado pelo § 2o (socorro, desastre, ou flagrante
delito), pode incidir a tipicidade da descriminante putativa (art. 20, § 1o, do
CP). Todavia, como bem assentou o Ministro Gilmar Mendes, a flagrância
deve se mostrar perceptível em fundadas razões, pois não se autoriza o agente
público realizar busca domiciliar com o propósito de averiguar a ocorrência,
ou não, do flagrante (STF. RE 1.125.594/SP).
7. Pena. Pena de detenção de um a quatro anos, e multa. Como cediço,
cabe a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95 c/c art. 77
do CP). Pode o magistrado determinar a sanção vir a ser cumprida por meio
de penas restritivas de direitos, se presentes os requisitos legais (art. 44 do
CP).

ANTONIO SÉRGIO ALTIERI DE MORAES PITOMBO

Art. 23. Inovar artificiosamente, no curso de diligência, de


investigação ou de processo, o estado de lugar, de coisa
ou de pessoa, como fim de eximir-se de responsabilidade
ou de responsabilizar criminalmente alguém ou agravar-
lhe a responsabilidade:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem pratica a
conduta com o intuito de:
I – eximir-se de responsabilidade civil ou administrativa
por excesso praticado no curso de diligência;
II – omitir dados ou informações ou divulgar dados ou
informações incompletos para desviar o curso da
investigação, da diligência ou do processo.

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. Agentes públicos apresentam como norte de
comportamento a lei. Agem sob a legalidade estrita (art. 37 da CR). Quando
atuam em procedimentos administrativos, ou judiciais, mediante diligências,
investigações ou atos processuais, vinculam-se à lei e à verdade. Precisam
respeitar uma sequência legítima e concatenada de atos para garantir o devido
processo legal e o direito à ampla defesa (art. 5o, LIV e LV, da CR).
Portanto, v.g., não podem trazer aos autos as provas obtidas por meios ilícitos
(art. 5o, LVI, da CR). Não lhes é permitido torturar (art. 5o, III, da CR),
violar a privacidade (art. 5o, X, da CR), penetrar ilegalmente nas casas (art.
5o, XI, da CR), ou mesmo violar o sigilo de correspondência, ou
comunicações (art. 5o, XII, da CR). Protege-se o interesse público no correto
funcionamento das instituições (judiciário, ministério público, polícia
judiciária, receita federal, autarquias, e.g.), quando da apuração de fatos em
procedimentos administrativos e judiciais, com vistas à tutela dos direitos do
indivíduo perante o Estado.
2. Sujeito ativo. O agente público consoante descrito no artigo 2o da Lei
13.869/19, observada a extensão do conceito do parágrafo único, do mesmo
artigo. Prepondera aqui a especialidade desta norma jurídica à prevista no
artigo 327 do Código Penal. Podem perpetrar a infração penal quaisquer
agentes públicos com atuação em procedimentos administrativos ou judiciais,
os quais possam levar à atribuição de responsabilidade jurídica. Note-se que a
previsão legal quanto à autoria delitiva apresenta um espectro maior do que o
conjunto de agentes públicos que agem na persecução penal. O tipo
incriminador abarca o funcionário público, por exemplo, que fiscaliza
impostos, dá andamento a procedimento administrativo-sancionador, atua em
comissão parlamentar de inquérito.
3. Sujeito passivo. Podem ser considerados ofendidos pelo crime sub
examinem pessoas físicas e jurídicas com interesse em procedimento
administrativo, ou judicial. Mas, também, podem ser afetados o Estado e os
demais funcionários públicos com atuação na diligência, investigação ou
processo, nos quais ocorreu a inovação artificiosa do estado de lugar, coisa
ou pessoa. Particulares que, por qualquer razão, tenham sido envolvidos no
procedimento, ou processo em que se viu a inovação criminosa (testemunhas,
v.g.), surgem como potenciais vítimas a depender da conduta típica.
4. Tipo objetivo. O núcleo do tipo constitui-se do ato de inovar.
Incrimina–se a modificação, realizada de modo ardiloso, fraudulento, enfim
artificial, do estado de lugar, de coisa, ou de pessoa. Quem investiga,
diligência ou pratica atos processuais deve conservar os dados objetivos que
encontra na sua originalidade, reportando-os em descrições fiéis, escritas,
documentadas. O agente público tem o dever de preservar a verdade, a mais
próxima possível do que aconteceu na realidade fenomênica. Pense-se na
preservação do local do crime (art. 6o e art. 158 do CPP). Alterar elementos
objetivos que podem influir no resultado de uma decisão administrativa, ou
judicial, surge fato grave, pois se desvirtua o papel estatal (de perquirir sobre
os crimes, de proteger o inocente, de dirimir conflitos, v.g.) e se prejudicam
os indivíduos que confiaram na legalidade e na veracidade dos atos públicos
atinentes aos procedimentos, ou processos, nos quais têm interesse. A
eventual simples solução de repetir atos, porque eivados de nulidade,
significa desperdício de dinheiro e dilação indevida para as pessoas
interessadas, bem como para o Estado. Quer dizer, acarreta danos (art. 5o,
LXXVIII, da CR) e não tem o condão de apagar o caráter ilícito desse
comportamento reprovável do agente público.
5. Tipo subjetivo. A configuração do tipo subjetivo demanda a vontade
de inovar, de maneira artificiosa, o estado de lugar, coisa ou pessoa. Porém, a
estrutura do tipo exigiu, ainda, o dolo específico. A inovação, realizada de
forma ardilosa, do estado de lugar, coisa ou pessoa, deve ser voltada ao
objetivo de: (i) eximir-se o agente público de responsabilidade; (ii)
responsabilizar criminalmente alguém; (iii) agravar a responsabilidade penal
deste alguém; (iv) eximir o agente de responsabilidade civil ou administrativa
por excesso praticado no curso de diligência; ou (v) omitir dados ou
informações ou divulgar dados ou informações incompletos para desviar o
curso da investigação, da diligência ou do processo. É manifesta a
perspectiva do legislador de proteger o defendente no processo
administrativo, assim como o investigado, o indiciado, o acusado na
persecução penal. Acreditou que indicar no tipo legal o rol de fins específicos
seria importante para a compreensão do que almejava proteger. As hipóteses
em que o agente público busca eximir-se de responsabilidade não entram em
confronto com o direito de não produzir prova contra si mesmo (nemo
tenetur se detegere) (art. 5o, LXIII, da CR c/c art. 8o, 2, g, do Pacto de San
José da Costa Rica), pois: cuida-se de agente público com dever de atuar
consoante a lei apenas, o qual não pode alterar dados da realidade, nem
falsear diligência, investigação ou ato processual e que não integra processo,
ou procedimento, contra si quando perpetua a conduta típica.
6. Consumação e tentativa. O crime mostra-se material. A inovação
típica deve alterar o estado de lugar, coisa ou pessoa, para se ver consumada.
Transforma-se a realidade fenomênica. A maneira artificiosa há de ser
evidenciada. Deixam-se vestígios (art. 158 do CPP). Possível, portanto, a
tentativa (art. 14 do CP). A inovação precisa ser apta a levar a erro quem
acusa, se defende, litiga, pericia ou julga o caso (art. 17 do CP). Os fins
especiais, apontados no tipo delitivo, importam à compreensão do sentido da
conduta, bem assim da tipicidade. A dissociação didática entre tipo
objetivo/subjetivo não resiste à realidade e daí a importância de se enxergar o
comportamento no todo para se encontrar o significado desse agir típico.
7. Pena. O legislador mostrou-se um pouco tarifário na repetição da
mesma pena, ao sancionar condutas de valor jurídico tão diferente nesta Lei.
Deveria ter sido mais duro diante da gravidade de algumas delas. De qualquer
modo, repetiu a pena de detenção de um a quatro anos, e multa. Outra vez,
cabível a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95 c/c art.
77 do CP). Por conseguinte, preenchidos requisitos legais, a sentença penal
condenatória pode substituir a pena privativa de liberdade por penas
restritivas de direitos (art. 44 do CP).

ANTONIO SÉRGIO ALTIERI DE MORAES PITOMBO

Art. 24. Constranger, sob violência ou grave ameaça,


funcionário ou empregado de instituição hospitalar
pública ou privada a admitir para tratamento pessoa cujo
óbito já tenha ocorrido, com o fim de alterar local ou
momento do crime, prejudicando sua apuração:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa,
além da pena correspondente à violência.

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. O processo penal vincula-se à verdade.
Agentes públicos, como se observou alhures, precisam recolher o máximo de
informações, dados e coisas para recompor o fato, o qual pode vir a constituir
infração penal. Devem se aproximar do ocorrido, mediante atos que
preservem o conjunto probatório tocante ao acontecimento, à autoria e à
tipicidade penal (art. 6o do CPP). Cabe a eles preservar o local do crime, bem
assim o corpo da vítima de homicídio (art. 121 do CP) para que médicos
legistas observem e reportem a causalidade da morte (art. 13 do CP),
mediante o exame do corpo do delito (art. 158 do CPP). Outra vez, assenta-
se: se os agentes públicos, em gênero, agem sob a luz da legalidade estrita
(art. 37 da CR), aqueles que atuam na persecução penal devem fazê-lo,
também, com foco na busca da verdade e na preservação da liberdade
jurídica dos indivíduos (art. 5o, II, da CR). Veem-se, portanto, sempre sob o
dever jurídico de resguardar o devido processo legal e o direito à ampla
defesa (art. 5o, LIV e LV, da CR). E só laboram com provas obtidas por
meios ilícitos (art. 5o, LVI, da CR). Não podem obrigar outros agentes
públicos (art. 37 da CR), ou particulares (art. 5o, II, da CR), a se omitirem do
dever de reconhecer a morte da pessoa, cujo óbito puderam observar de
imediato.
2. Sujeito ativo. O agente público consoante descrito no artigo 2o da Lei
13.869/19, observada a extensão do conceito do parágrafo único, do mesmo
artigo. Prepondera aqui a especialidade desta norma jurídica à prevista no
artigo 327 do Código Penal. Todavia, em especial, neste modelo legal, os
funcionários públicos que atuam na primeira fase da persecução penal
(inquérito policial), ou nas polícias civil, militar, federal, rodoviária federal,
ferroviária federal, corpo de bombeiros, ou ainda na guarda metropolitana
(art. 144 da CR). Em suma, todo agente público que tenha contato com óbito
que almeje, por essa forma típica de coação, alterar o local ou momento do
crime.
3. Sujeito passivo. Exibem-se vítimas do crime o funcionário ou
empregado de instituição hospitalar pública, ou privada. Ainda, emergem
ofendidos indiretos o cônjuge, os filhos, os ascendentes e os familiares do
morto, que possuem o direito de saber a verdade sobre a morte do de cujus,
assim como detêm o legítimo interesse de pleitear indenização em face do
poder público, ou de particulares, em virtude da causa ilícita da morte,
geradora de danos (art. 5o, V e XXXV, da CR). Por fim, o Estado vê-se
atingido pela conduta típica, diante da impossibilidade de exercer de forma
adequada o poder-dever de punir.
4. Tipo objetivo. Configura-se a infração penal ao se afetar a
autodeterminação do funcionário de hospital público ou privado, mediante o
uso da violência, ou grave ameaça, a admitir o morto, como se vivo fosse e
apto a tratamento, com o propósito de alterar o local ou momento do crime e,
assim, prejudicar a apuração da morte e pertinente crime (homicídio;
induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio; infanticídio) (art. 121 e
seguintes do CP). Usa-se da força física, ou violência moral, para tal
desiderato. Em apertada síntese, o agente público coage o funcionário de
hospital a internar o morto e descumprir o dever de reconhecer de plano o
óbito. Constitui-se comportamento que se tornou conhecido pela divulgação
da mídia de acontecimentos em grandes centros urbanos (Rio de Janeiro,
v.g.), onde a polícia praticava tais atos ilícitos com o objetivo de evitar a
perquirição quanto ao homicídio e respectiva autoria delitiva. As propaladas
execuções de pessoas por policiais militares, cuja prova de materialidade e
indícios de autoria não eram alcançados, graças a esse expediente espúrio de
agentes públicos violentos, depois da perpetração dos crimes contra a vida.
5. Tipo subjetivo. O tipo subjetivo é composto pelo dolo. Os dados
indiciários devem apontar para a vontade livre e consciente de coagir, por
meio da violência física ou moral, a vítima a admitir para tratamento em
hospital pessoa morta, com o fim de alterar o momento e local do crime, em
prejuízo da persecutio criminis. O elemento cognitivo depende da certeza da
morte. Quer-se impedir a perquirição da verdade sobre as causas e
responsabilidade pela morte, por meio da falsa internação do morto. Logo, o
elemento volitivo evidencia-se pela violência ou grave ameaça contra o
empregado de nosocômio, destinadas a forçá-lo a receber o falecido, como se
estivesse com vida. Observe-se o fim específico de alterar o local, ou
momento do crime, o que, via de consequência, embaraça o resultado da
apuração da morte.
6. Consumação e tentativa. Está-se diante de crime material. Consuma-
se com a coação, mediante ato violento ou manifestação de ameaça grave
contra o funcionário, ou empregado de hospital, que lhe retira a possibilidade
de se autodeterminar e de cumprir seus deveres. Suplanta-se a capacidade de
resistência do ofendido, em razão dessa violência material ou moral, com
objetivo específico de alterar o momento e o lugar do crime. Caso a vítima
não se sinta constrangida a fazer, ou a se omitir, apesar da violência ou grave
ameaça, este tipo penal não se perfaz (art. 17 do CP). Possível, nessa
perspectiva, a tentativa (art. 14 do CP). Eventualmente, a depender do iter
criminis, pode-se punir pelo cometimento de outra infração penal.
7. Pena. Impôs-se à espécie de crime a pena de detenção de um a quatro
anos, e multa. Tal como nos tipos anteriores, o juiz criminal pode aplicar o
instituto da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95 c/c
art. 77 do CP). Ainda, o magistrado, quando do decreto condenatório, tem a
faculdade de substituir a pena privativa de liberdade por penas restritivas de
direitos (art. 44 do CP), motivando quanto ao preenchimento dos requisitos
legais pelo imputado. Se a violência produzir outros resultados jurídicos,
como a lesão corporal dolosa (art. 129 do CP), a pena desta será adicionada,
no cômputo final da sanção criminal, depois do devido processo e do
julgamento de ambas as infrações penais.
JULIANO BREDA

Art. 25. Proceder à obtenção de prova, em procedimento


de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente
ilícito:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem faz uso de
prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, com
prévio conhecimento de sua ilicitude.

COMENTÁRIOS:
Entre as garantias fundamentais descritas no art. 5o da Constituição da
República de 1988, está o direito à inadmissibilidade das provas obtidas por
meios ilícitos (LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por
meios ilícitos), regra decorrente do princípio do devido processo legal,
também lá assegurado.
As limitações em matéria probatória têm sua origem mais remota e
importante no conhecido artigo 3954 da Magna Carta de João Sem-Terra, do
ano de 1215. Posteriormente, em 1354, Eduardo III reeditou a Carta com o
uso expresso do “devido processo legal”. O artigo 7o da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,55 determinava que “ninguém
pode ser acusado, preso ou detido senão nos caos determinados pela Lei e de
acordo com as formas por esta prescritas”. Os Estados Unidos conheceram
oficialmente a expressão com a 5a Emenda do Bill of Rights, em 179156.
O alargamento do conteúdo do devido processo legal inicia-se de forma
praticamente paralela à expansão e consagração dos direitos fundamentais,
especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial.
A progressiva alteração das normas fundamentais de garantia, que foram
incorporando conteúdos eminentemente de proteção individual e de limitação
do exercício do poder, em especial, da limitação da persecução penal,
provocou uma radical alteração da compreensão do conceito e das finalidades
do processo penal no ordenamento jurídico. A partir dessa nova perspectiva,
gerada com especial força pelas exigências de humanização do pós-guerra, o
processo penal passa a ser compreendido como um instrumento de
reconstituição de um fato tido como delituoso e atribuído a alguém,
assegurando-se ao indivíduo suspeito o pleno exercício de um conjunto de
garantias contra a possibilidade da aplicação arbitrária da sanção penal.
Mais do que isso. Consolidou-se no pensamento acadêmico a associação
entre processo e garantias, que apenas esse novo processo penal passou a
assegurar ao indivíduo, a partir do momento no qual a civilização concluiu
que a resposta ao fenômeno do crime não pode ser realizada por meio de uma
repressão sem fronteiras éticas ou balizamentos morais, legalmente
estabelecidos .
Portanto, no processo penal de respeito aos direitos humanos, a resposta à
acusação da prática de um crime não é realizada sem a imposição de limites
expressos e claros à atividade do Estado.
Por tudo isso, a proteção dos direitos do indivíduo suspeito ganhou
dimensão jurídica, com a imposição de expressas limitações constitucionais à
atividade da persecução estatal.
A partir do reconhecimento dessas premissas, o tipo penal em análise tem
como finalidade a criminalização e punição da violação dolosa dos limites
jurídicos impostos à atividade probatória do estado na investigação e
persecução de fatos tido como criminosos. Em resumo, a norma procura
impedir a violação grave e dolosa da garantia individual de inadmissibilidade
do uso de provas ilícitas.
1. Objetividade jurídica. Os tipos penais do caput e parágrafo único
protegem o direito de liberdade do indivíduo e a dignidade do cidadão
suspeito, investigado ou fiscalizado. A norma também tutela diversas
garantias fundamentais de defesa do cidadão, em especial o direito
fundamental à licitude das provas no processo penal57, consequência direta e
irrenunciável no Estado de Direito do respeito à garantia do devido processo
legal58, e outros direitos individuais, como a intimidade e privacidade dos
cidadãos.
Embora a garantia da inadmissibilidade da prova seja historicamente
construída com maior conexão ao processo criminal, também é vedada
produção de prova com tais características em processos cíveis e
administrativos. O âmbito de incidência da norma em estudo a procedimentos
de natureza extrapenal será avaliado no tópico sobre o tipo objetivo.
2. Sujeito ativo. Podem ser sujeitos ativos, das modalidades previstas
nesse artigo, as autoridades públicas, no exercício de função administrativa
ou jurisdicional, que desempenham diferentes papéis processuais na
investigação e ao longo da tramitação dos procedimentos de fiscalização
(delegado de polícia e agentes de investigação, membros do Ministério
Público, magistrados, bem como funcionários públicos no exercício de
função relacionada a procedimento de investigação ou fiscalização).
3. Sujeito passivo. Será sujeito passivo desse crime o indivíduo
investigado ou fiscalizado, podendo, também, a ação criminosa atingir
interesse de pessoa jurídica e, mediatamente, o Estado.
4. Tipo objetivo. Na modalidade do caput, o núcleo típico utiliza a
expressão “proceder à obtenção de prova”, que se revela tecnicamente
confusa. Deveria o legislador, preferencialmente, usar o verbo “obter” ou
“produzir”, termos mais adequados à compreensão acadêmica do fenômeno
da atividade probatória em direito processual.
De todo modo, “proceder à obtenção” significa praticar atos de
investigação ou processuais com a finalidade de produzir ou obter um
elemento de prova, como resultado da utilização de determinando meio de
prova no procedimento de investigação ou de fiscalização.
A expressão “meio manifestamente ilícito” tem o sentido de destacar que
não é o resultado da atividade probatória o elemento decisivo para a
tipicidade da conduta, mas o modo de atuação do agente, ou seja, o crime
caracterizar-se-á somente se houver produção da prova com uso de “meio
manifestamente ilícito”.
Meio de prova é o instrumento utilizado pelos sujeitos processuais para
buscar, obter e produzir no processo elementos úteis à decisão judicial ou
administrativa.
O Código de Processo Penal, nas disposições gerais sobre a prova,
estabelece os meios de prova tradicionais: exame de corpo de delito e
perícias; confissão; perguntas ao ofendido; testemunhas; reconhecimento de
pessoas ou coisas; acareação; documentos; indícios; busca e apreensão. Essa
classificação não é objeto de unanimidade na doutrina, valendo mencionar
que a busca e apreensão é considerada meio de obtenção de prova. O
interrogatório do acusado, previsto no Código de Processo Penal na mesma
categoria, é modernamente compreendido como meio de defesa.
Além dos instrumentos tradicionalmente conhecidos, o ordenamento
jurídico incorporou novos meios de obtenção de prova, criados a partir do
avanço tecnológico, como a interceptação telefônica e telemática, a escuta
ambiental, além de novas figuras derivadas no enfrentamento do crime
organizado, como o agente infiltrado.
O tipo penal, no entanto, não utiliza a expressão “meio de prova
manifestamente ilícito”, o que poderia restringir significativamente o seu
alcance normativo, mas obter prova por “meio manifestamente ilícito”.
Como se sabe, na atuação das partes e do magistrado (ou do funcionário
público que preside o processo administrativo), inúmeros meios de prova
admitidos em direito são utilizados para a instrução do caso, mas o crime só
se configurará se houver manifesta ilicitude do uso do meio de prova, ou seja,
para além de qualquer dúvida ou polêmica doutrinária e jurisprudencial.
A falta de justa causa para a decretação da busca e apreensão e a violação
aos requisitos legais para a renovação de uma interceptação telefônica não
configuram o tipo penal do art. 25, seja em razão da ausência de dolo
específico, como se verá adiante, mas especialmente pela determinação do §
2o do art. 1o da Lei 13.869/2019 (§ 2o. A divergência na interpretação de lei
ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade).
Embora o crime não se configure simplesmente pela falta de motivação
idônea no uso de determinado meio de prova, será possível a caracterização
no uso manifestamente ilícito desses meios de prova legalmente admitidos, se
houver abuso consciente e deliberado, como na decretação de interpretação
telefônica para investigar mera contravenção ou crime punido com simples
detenção, pois o ordenamento jurídico impede o uso desse meio de prova
nessas condições.
De outro lado, são comuns o uso indevido desse tipo de meio de prova
nas hipóteses de inserção fraudulenta de endereço, telefone ou e-mail de uma
pessoa não diretamente investigada, ou no fraudulento prolongamento da
interceptação por período não admitido.
Há hipóteses de meios de prova não regulamentados pelo ordenamento
jurídico, mas admitidos como válidos pelos Tribunais, como a captação de
diálogo entre interlocutores ou a utilização de imagens de câmeras de
monitoramento público. A esses casos, evidentemente, o tipo penal não se
aplica.
O uso de meio manifestamente ilícito pode caracterizar crime ainda mais
grave, como o emprego de tortura no curso de depoimento59. Nesse caso, não
haverá concurso entre os tipos penais, aplicando-se o tipo penal mais grave
em detrimento do crime em exame, em razão do princípio da consunção.
Por fim, o tipo penal menciona procedimento de investigação ou
fiscalização, sem restringir o alcance normativo do preceito a processos de
natureza criminal ou disciplinar, ou seja, o crime poderá ocorrer no âmbito de
qualquer procedimento judicial ou administrativo, desde que presente a
finalidade investigatória ou de fiscalização. De outro lado, sem essa
característica processual, eventual produção de prova por meio
manifestamente ilícito não configurará o crime do art. 25 da Lei de Abuso de
Autoridade.
5. Tipo subjetivo. Para a configuração do crime, de acordo com a regra
geral ao art. 1o, § 1o, não basta o dolo genérico, exigindo-se, além da vontade
incondicionada dirigida à produção de prova por meio ilícito, a finalidade
específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou,
ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
6. Consumação e tentativa. O crime é de mera conduta e restará
consumado no momento que o agente emprega, utiliza meio manifestamente
ilícito para obter a prova em processo judicial ou de fiscalização, não se
exigindo sua efetiva juntada aos autos. Se o tipo objetivo utilizasse o verbo
obter, o crime seria de resultado, consumando-se apenas com a efetiva
produção do elemento probatório de maneira vedada.
7. Pena. A sanção prevista é de detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e
multa, admitindo-se, portanto, o acordo de não persecução ou o benefício da
suspensão condicional do processo.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem faz uso de


prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, com
prévio conhecimento de sua ilicitude.

COMENTÁRIOS:
O tipo penal do parágrafo único reclama a produção e o efetivo uso da
prova e não apenas o emprego de meio manifestamente ilícito para a sua
obtenção, como no caput. Esse tipo penal é dirigido ao agente público que,
ciente da ilicitude e, portanto, de sua inadmissibilidade, utiliza a prova
maculada em procedimento judicial ou administrativo.
Além disso, o crime exige que o uso da prova seja em desfavor de
investigado ou fiscalizado. Esse elemento típico, ao contrário do caput, exige
a demonstração de que a utilização da prova teve essa finalidade (especial fim
de agir como dolo específico) e, ainda, a demonstração da potencialidade
lesiva da prova ao investigado ou fiscalizado. Trata-se de uma obrigação
jurídica corretamente imposta aos agentes públicos, pois, nessas
circunstâncias, conhecendo a natureza inadmissível de determinada prova,
têm o dever de pedir (polícia e Ministério Público) ou determinar
(magistrados) seu desentranhamento dos autos. Por isso, plenamente
justificável a tipificação dessa grave conduta.
Não se exigirá, porém, a demonstração de prejuízo concreto ou efetivo ao
indivíduo.
Assim, como em relação ao caput, o preceito do parágrafo único faz
menção a investigado ou fiscalizado, sem restringir o alcance normativo do
tipo a procedimentos de natureza criminal ou disciplinar, ou seja, o crime
poderá ocorrer no âmbito de qualquer procedimento judicial ou
administrativo, desde que presente a finalidade investigatória ou de
fiscalização. De outro lado, sem essa característica processual, eventual
produção de prova por meio manifestamente ilícito não configurará o crime
do art. 25 da Lei de Abuso de Autoridade.
O tipo subjetivo exige, para além do dolo específico genérico do art. 1o, §
1o, consistente na vontade livre e consciente de usar prova ilícita para
prejudicar direito de outrem ou satisfazer interesse pessoal, a intenção de que
essa utilização da prova ilícita se opere em desfavor de investigado ou
fiscalizado.
Nessa modalidade, o crime é instantâneo e se consuma no momento que o
agente público faz uso da prova no processo, independentemente da
valoração por terceiros e do resultado do caso. A tentativa é inadmissível.
A pena prevista é a mesma do caput.

GUSTAVO BADARÓ E JULIANO BREDA

Art. 26. Induzir ou instigar pessoa a praticar infração penal


com o fim de capturá-la em flagrante delito, fora das
hipóteses previstas em lei:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (anos) anos, e
multa.
§ 1o Se a vítima é capturada em flagrante delito, a pena é
de detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 2o Não configuram crime as situações de flagrante
esperado, retardado, prorrogado ou diferido.

COMENTÁRIOS:
O crime do artigo 26 da Lei no 13.869/2019 foi vetado pelo Presidente da
República.
As razões do veto foram as seguintes: “A propositura legislativa gera
insegurança jurídica por indeterminação do tipo penal, e por ofensa ao
princípio da intervenção mínima, para o qual o Direito Penal só deve ser
aplicado quando estritamente necessário, tendo em vista que a criminalização
da conduta pode afetar negatividade a atividade investigativa, ante a potencial
incerteza de caracterização da conduta prevista no art. 26, pois não raras são
as vezes que a constatação da espécie de flagrante, dada a natureza e
circunstâncias do ilícito praticado, só é possível quando da análise do caso
propriamente dito, conforme se pode inferir da jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal (v.g. HC 105.929, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2a T. j.
24/05/2011).” (sic) ALBERTO ZACHARIAS TORON

Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento


investigatório de infração penal ou administrativa, em
desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática
de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e
multa.
Parágrafo único. Não há crime quando se tratar de
sindicância ou investigação preliminar sumária,
devidamente justificada.

BIBLIOGRAFIA:
PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. O indiciamento como ato de polícia judiciária,
in: “Obra em processo penal”. São Paulo: Singular, 2018; TOURINHO FILHO,
Fernando da Costa. Processo Penal. 31a ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v. I

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. Trata-se de previsão normativa nova, não
constante da revogada Lei n. 4.898/65, que tutela diretamente a correção do
funcionamento da Justiça e do Estado-Administração. Inexplicavelmente,
malgrado as sérias implicações da ação tipificada, a infração situa-se entre os
crimes de menor potencial ofensivo (Lei n. 9.099/95, art. 61). O dispositivo
em questão visa a coibir a conduta de agentes públicos que movimentam a
máquina estatal para investigar sem qualquer indício da prática de crime. A
conduta em questão, mais que atingir a economia estatal com a consecução
de procedimentos natimortos, prejudica a boa administração da Justiça
compreendida de forma ampla com a inclusão da polícia e do Ministério
Público. Afeta de forma mediata o status dignitatis, o bom nome, das pessoas
investigadas. Tutelar-se-á a dignidade do atingido pela instauração do
procedimento investigatório sem qualquer indício da prática de crime, ou
ilícito funcional, quando se tratar de procedimento administrativo.
Relativamente à investigação administrativa, também atinge o Estado-
Administração, por meio da ação de seus diferentes órgãos administrativos.
Embora excepcional, não se pode afastar as situações de má-fé na qual
agentes estatais buscam escancaradamente prejudicar alguém para favorecer
terceiros. Imagine-se o diretor de empresa investigado e que, por isso, vê-se
prejudicado num certame público ou mesmo privado diante das rígidas regras
de compliance que começam a ganhar corpo na experiência jurídica
brasileira. Idem em relação ao funcionário público preterido em uma
promoção por sofrer um procedimento investigatório. De outro lado, a regra
em exame coloca em questão o efeito secundário da decisão concessiva de
habeas corpus para trancar inquérito policial ou mesmo PIC por falta de justa
causa. Vale dizer, se o juiz ou o tribunal reconhecerem a inviabilidade do
procedimento investigatório por falta de indícios, tal decisão pode ter
consequências outras para a autoridade apontada como coatora, desde, é
claro, que se demonstre a ação dolosa do agente. Note-se que o dispositivo
legal em comento referiu unicamente a “falta de indício da prática de crime”
como critério para incriminar quem instaura ou requisita procedimento
investigatório contra alguém. Ficou de fora da zona de incriminação a
hipótese de fato atípico que, por vezes, enseja o trancamento desses
procedimentos. São, muitas vezes, questões cíveis às quais se empresta um
colorido criminal para forçar composições com a utilização do braço armado
do Estado. De qualquer modo, em respeito ao princípio da legalidade, se a
autoridade instaurar procedimento investigatório manifestamente atípico não
poderá sofrer qualquer consequência nos termos desta lei. É uma
irrazoabilidade que deve ser objeto de futura alteração legislativa. Mesmo
porque, nos termos do art. 30 desta lei, se a autoridade der início à persecução
penal, que se inicia na fase investigatória, sem justa causa, vale dizer, sem
indícios da autoria ou por fato atípico, estará praticando um ilícito mais
grave, ainda que passível de suspensão processual. Um verdadeiro nonsense.
2. Sujeitos do crime. Trata-se de crime próprio passível de ser praticado
apenas pelo agente público que pode requisitar investigações, como
magistrados, membros do Ministério Público (CPP, arts. 5o, II, e 40) e o
ministro da Justiça (CP, art. 145, parágrafo único e LSN, art. 31, IV), além
dos que podem diretamente determinar a instauração de procedimentos
investigatórios, como Delegados de Polícia estaduais e federais. Idem os
membros dos Ministérios Públicos dos estados e o federal em relação ao
Procedimento de Investigação Criminal—PIC (CPP, art. 5o, I, LOMP, art. 26,
incs. III e IV, e Resoluções do CNMP ns. 174/2017 e 181/2017). Também no
âmbito das administrações municipais, estaduais e federais pelo agente
público com atribuição para instaurar procedimento administrativo. É
perfeitamente possível a participação de terceiros na prática do crime.
3. Análise das condutas descritas no tipo. O crime em exame pode-se
perfazer mediante a requisição ou a instauração de procedimento
investigatório relativo à infração penal, ou administrativa, sem nenhum
indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa.
Por óbvio, abrange os procedimentos administrativos, ainda que sem
conotação penal. Malgrado as controvérsias, requisição é ato de natureza
administrativa pelo qual a autoridade com atribuição, ou competência, ordena
a instauração de procedimento investigatório com vistas à apuração de crime
ou mera contravenção ou de procedimento para apuração de infração
administrativa. Nada tem a ver com a hierarquia entre os agentes públicos. A
ideia de ordenar traz consigo a da imperatividade do comando emanado da
autoridade requisitante o que distingue a requisição do mero requerimento.
TOURINHO FILHO lembra que “requisitar é exigir legalmente”.60 Daí o
entendimento de que a autoridade que cumpre a requisição, salvo os casos de
manifesta ilegalidade e, ainda assim, com a demonstração do dolo no
cumprimento da ordem, não pode ser responsabilizada pelo abuso, mas, sim,
a requisitante. A instauração de procedimento investigatório de ofício ou
mediante requerimento atina com o ato formal de dar início ou declarar
formalmente aberto o inquérito, PIC ou procedimento criminal diverso para
se apurar infração penal. Igualmente vale para a instauração de procedimento
investigatório de natureza administrativa. Em “ desfavor de alguém” deve ser
entendido como contra alguém, tal como o legislador dispôs no art. 30 deste
mesmo diploma. Embora se possa dizer que o procedimento investigatório
vise à apuração de fatos, não é menos verdade que sempre há um ou mais
sujeitos envolvidos como investigados e que são diretamente atingidos.
Melhor seria que o legislador tivesse utilizado a expressão “contra” para
escoimar dúvidas. À falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito
funcional ou de infração administrativa. Nos termos do art. 239 do CPP:
“Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação
com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras
circunstâncias”. Indício, portanto, não se confunde com a mera suspeita, a
qual se relaciona com a intuição ou juízo desfavorável a respeito de alguém.
SÉRGIO PITOMBO, com propriedade, dizia que “as suspeitas, por si sós, não
são mais que sombras”61. O indício, pelo contrário, apresenta um fato
provado relacionado com o crime e este é que, validamente, autoriza a
instauração do procedimento investigativo. Para exemplificar: fulano
comprou um revólver calibre 38 e a vítima, com quem vivia às turras, foi
encontrada morta com um tiro de arma deste mesmo calibre. Neste caso,
temos um indício, ainda que não definitivo, pois é preciso a prova pericial
para um confronto balístico e a prova da autoria, mas o suficiente para a
instauração de um inquérito que, muito menos que uma ação penal, não
reclama prova completa do fato (STF, Pleno, Inq. n. 2.588, rel. Min. LUIZ
FUX, DJe 17/5/2013). Não é disso que cuida o dispositivo em questão. A
espécie normativa atina com a instauração ou requisição arbitrária de
procedimento investigatório, isto é, sem o menor indício. Vale dizer, sem a
mais tênue prova da participação de determinada pessoa no crime. A lei fala
em indícios como modo de estremar as situações de prova completa, de um
lado e, de outro, o vazio probatório. O dever jurídico de a autoridade
instaurar o inquérito policial só se revelará criminoso quando houver um
vazio probatório que indique a ação dolosa de perseguir ou qualquer outro
motivo incompatível com os princípios que norteiam o Estado democrático
de direito. Entendimento contrário, comprometeria a atividade repressiva
estatal. O mesmo raciocínio, vale para o caso de procedimento administrativo
instaurado sem qualquer indício contra o funcionário público.
4. Elemento subjetivo. O crime previsto neste artigo só se pune a título
de dolo. Se o agente público requisita ou determina a instauração de
procedimento investigatório de forma imprudente ou negligente, isto é, sem
verificar cuidadosa e criteriosamente os elementos fáticos, não há crime a
punir. Se, porém, analisando as informações e tendo verificado a mais
completa ausência de indícios para a instauração/requisição do procedimento
investigatório, o crime se perfaz tenha o agente más intenções, ou não. O tipo
penal contenta-se com a instauração/requisição de procedimento
investigatório “à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito
funcional ou de infração administrativa”. Portanto, malgrado a disposição
constante do art. 1o, § 1o, desta lei, não se exige um fim especial no agir do
agente para a caracterização do crime. O dolo do agente se perfaz com
tomada de decisão a respeito da instauração do inquérito ou requisição. A se
pensar diferentemente, o dispositivo em exame viraria letra morta.
5. Consumação e tentativa. Trata-se de crime material que se consuma
com a efetiva requisição ou instauração do procedimento referido na lei.
Admite, portanto, tentativa. Mas é pouco provável que a instauração ou a
requisição do procedimento investigatório deixe de ocorrer por circunstâncias
alheias à vontade do agente. O posterior trancamento do procedimento
investigatório não afasta o caráter consumado do crime.
6. Classificação doutrinária. Cuida-se de crime de menor potencial
ofensivo nos termos do art. 61 da Lei n. 9.099/95. É próprio, pois só pode ser
praticado por agente público, ainda que admita a participação de terceiros.
Unissubjetivo, uma vez que pode ser cometido por uma única pessoa;
comissivo, pois reclama uma ação; material, na medida em que implica na
produção de um resultado (procedimento investigatório mediante inquérito,
PIC, sindicância ou procedimento disciplinar) e instantâneo, pois se esgota
com o resultado.
7. Exclusão da tipicidade. Não haverá crime quando se tratar de
sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada.
Sabiamente, para não comprometer a eficácia repressiva ou mesmo a
segurança pública como um todo, o legislador, com absoluta correção,
salvaguardou os casos de “investigação preliminar sumária” na qual a
autoridade não chega a instaurar o procedimento investigatório, mas toma
providências de caráter informal para averiguar a ocorrência de um crime.
Igualmente vale no que atina com a instauração de sindicância para se apurar
infração funcional. Por óbvio, a exclusão da tipicidade em foco não abrange a
conduta de requisitar, uma vez que não há espaço para se requisitar
“investigação preliminar sumária” ou mesmo “sindicância”.
8. Confronto com a denunciação caluniosa (CP, art. 339). O art. 27 da
nova Lei de Abuso de Autoridade comina pena de 06 (seis) meses a 02 (dois)
anos de detenção e multa àquela autoridade que “Requisitar instauração ou
instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa,
em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de
ilícito funcional ou de infração administrativa”. Diferentemente da
denunciação caluniosa, aqui o agente não sabe da inocência do atingido pela
investigação, mas atua em seu desfavor à míngua de indícios da prática do
crime. O crime previsto no CP é mais grave e, obviamente, absorve o
constante da Lei especial.
9. Confronto com o art. 30 desta mesma lei. Como dissemos
anteriormente, nos termos do art. 30 deste diploma, se a autoridade der início
à persecução penal, que começa na fase investigatória, sem justa causa, vale
dizer, sem indícios da autoria ou por fato atípico, estará praticando um ilícito
mais grave, ainda que passível de suspensão processual. Com palavras
diferentes, o legislador acabou incriminando as mesmas condutas, porém, de
forma diferenciada. A nosso juízo, malgrado a gravidade das condutas, deve
prevalecer a solução punitiva menos grave. É o caso de se realizar, tal qual o
STF fez quando da edição da Lei dos Crimes Hediondos (8.072/90), uma
interpretação corretiva, mantendo-se o texto de ambos os artigos, mas com a
pena do disposto no art. 27 (cf. HC n. 68.793, rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ
06/6/1992).

ALBERTO ZACHARIAS TORON

Art. 28. Divulgar gravação ou trecho de gravação sem


relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a
intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a
imagem do investigado ou acusado:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
BIBLIOGRAFIA:
MOCCIA, Sergio. Emergência e defesa dos direitos fundamentais, In. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, n. 25, p. 58-91, jan./mar., 1999.

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. Protege-se a intimidade e a privacidade do
investigado ou acusado. A raiz legitimadora dessa proteção aparece no art. 5o,
X, da Constituição Federal, que, entre outros direitos fundamentais, assegura
a inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da honra das pessoas.
Intimidade tem o sentido de interior, representa o círculo mais fechado da
vida do indivíduo e de exclusão da vida social. Já o conceito de vida privada
situa-se numa esfera um pouco mais ampla da vida do indivíduo, podendo
abarcar algo da vida social, a critério da própria pessoa. Assim, por exemplo,
os familiares ou mesmo os amigos que frequentam a casa de alguém e
compõem a sua vida privada. Secundariamente, o Estado é atingido pela ação
do agente criminoso que viola a proteção de que gozam investigados e
acusados. Cabe a suspensão condicional do processo nos termos do art. 89 da
Lei n. 9.099/95.
2. Sujeitos do crime. É crime próprio nos termos do art. 2o desta lei, mas
é fácil perceber que qualquer pessoa e não apenas a autoridade e seus agentes
podem praticar o crime em questão em concurso. Autonomamente, o
particular não responde pela prática nos termos desta lei, mas pode responder
por crime contra a honra previsto no Código Penal. Todavia, em se tratando
de gravação, ou trecho dela, protegido pelo sigilo de que trata a Lei n.
9.296/96, de Interceptações Telefônicas, a violação será a do art. 10, inclusive
para a autoridade estatal referida pelo art. 2o (vide infra, confronto com o art.
10 da Lei 9.296/96).
3. Análise das condutas descritas no tipo. Estamos aqui diante daquilo
que se convencionou chamar de vazamento, mas com uma diferença:
enquanto nos vazamentos propriamente ditos busca-se criar o que o jurista
italiano SERGIO MOCCIA chama de “consenso extraprocessual”62 para
legitimar perante a população investigações que nem sempre seguem o
devido processo legal ou mesmo sustentar prisões cautelares, neste caso,
considerando-se que o tipo expressamente alude à divulgação de “gravação
ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir”
para atingir a vida privada ou a intimidade de investigado ou acusado,
estamos diante de uma situação em que o alvo é a dignidade e a honra do
atingido com a divulgação da gravação. Suponha-se uma investigação pela
prática de corrupção e de outro lado a divulgação de conversa do investigado
com sua amante. Divulgar é dar a conhecer a terceiros. Basta que chegue ao
conhecimento de apenas uma outra pessoa para o crime se configurar, mas é
essencial que o fato diga respeito à intimidade ou à vida privada do atingido
ou tenha caráter detrimentoso ou ofensivo à sua honra. Assim, não haverá
crime se se trata de fato público, de conhecimento geral, e, tampouco, se não
ferir a honra ou a imagem do investigado ou acusado. A gravação referida no
tipo penal compreende a fonética e a visual. Assim, mídias de audiovisual
ficam alcançadas pelo tipo penal. Interpretação contrária, conduziria ao
absurdo de, na era dos vídeos produzidos por simples celulares, punir-se
apenas as gravações de áudio, quando as primeiras são tão ou mais ofensivas
que estas. É inexplicável que a conduta de divulgar gravação relacionada com
a prova dos autos fique impune nos termos desta lei.
4. Elemento subjetivo. É o dolo do agente, isto é, a vontade deliberada
do agente de divulgar gravação ou trecho dela com o objetivo de ferir a honra
ou a imagem do investigado ou acusado. Não se pune a conduta a título de
culpa em sentido estrito. A negligência na preservação de gravação torna o
fato atípico, mas não pode servir de escusa quando se comprovar que
cuidados mínimos, básicos, foram propositalmente desprezados ou se
descumpriram protocolos básicos na guarda do material auditivo ou visual.
5. Consumação e tentativa. O tipo é comissivo e material; produz
resultado naturalístico. Portanto, admite a tentativa naqueles casos em que o
projeto de divulgação do agente se vê frustrado por circunstâncias alheias à
sua vontade. Assim, se o agente criminoso pretendia divulgar a gravação por
meio da TV, emissora de rádio ou grupos de WhatsApp e estes se recusam a
veicular o material temos, para exemplificar, uma modalidade de tentativa
criminosa.
6. Classificação doutrinária. É crime próprio, pois só pode ser praticado
por agente público, ainda que admita a participação de terceiros.
Unissubjetivo, uma vez que pode ser cometido por uma única pessoa;
comissivo, pois reclama uma ação; material, na medida em que implica na
produção de um resultado (divulgação de gravação ofensiva à intimidade ou
vida privada do investigado ou acusado) e instantâneo, pois se esgota com o
resultado.
7. Confronto com o art. 10 da Lei 9.296/96. O dispositivo do art. 10 da
lei de interceptação telefônica, com a alteração determinada por esta lei,
pune, alternativamente, quem interceptar comunicações telefônicas, de
informática ou telemática, promover escuta ambiental e, sem autorização
judicial, quebrar o segredo da justiça ou com objetivos não autorizados em
lei. Portanto, se houver divulgação de gravação protegida pelo sigilo judicial
o crime a se identificar, haja ou não ofensa à honra, tenha ou não a ver com a
prova a ser produzida nos autos, não será o da lei de abuso de autoridade,
mas, sim, o do art. 10 da lei de interceptação telefônica. O mesmo vale para a
hipótese de gravação ambiental nos termos do art. 10-A com a modificação
introduzida pela Lei n. 13.964/19. Assim, excetuada a gravação por um dos
interlocutores, tratando-se de realização de escuta ambiental sem autorização
judicial a hipótese não será abarcada pela lei de abuso de autoridade, mas sim
pela lei de interceptações.

ALBERTO ZACHARIAS TORON

Art. 29. Prestar informação falsa sobre procedimento


judicial, policial, fiscal ou administrativo com o fim de
prejudicar interesse de investigado:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e
multa.
Parágrafo único. (VETADO).

COMENTÁRIOS:
Nos termos do art. 61 da Lei n. 9.099/95, trata-se, inexplicavelmente, de
crime de menor potencial ofensivo. Em verdade, quando se cuidar de
informação falsa prestada por escrito, estaremos diante de uma modalidade
de falsidade ideológica, mas punida com menor rigor quando praticada por
agente público listado no art. 2o desta lei e, o que é pior, em detrimento do
interesse do investigado, ou seja, o que deveria merecer maior
reprovabilidade por envolver a conduta criminosa de agente público e, mais
grave, ofensivo ao direito de defesa, que ostenta interesse público, ou mesmo
à dignidade do investigado, transformou-se em crime de menor potencial
ofensivo. Há, claramente, ofensa ao princípio da proporcionalidade quando
cotejado com o crime previsto no art. 299 do Código Penal. A informação
oral falsa também é punida nos termos desta lei, embora não se identifique
com a falsidade ideológica que pressupõe a existência de um documento
público ou privado.
1. Objetividade jurídica. Tutela-se a fé pública e, concomitantemente, o
direito de defesa no que diz com a correção das informações a serem
prestadas e a dignidade do investigado. Compreendem-se entre as
informações, as falsamente oferecidas em habeas corpus, mandados de
segurança ou mesmo a órgãos de imprensa, como, lamentavelmente, tem sido
comum nos últimos anos.
2. Sujeitos do crime. O crime é próprio e só pode ser praticado por
agente público referido no art. 2o desta lei. Sujeito passivo é aquele
investigado, indiciado ou não, em relação ao qual tenha sido prestada
informação falsa de modo a prejudicar o interesse de sua defesa. Questão
interessante, que trataremos no tópico a seguir, é a de se saber se o acusado
em ação penal pode ser sujeito passivo deste crime. Pensamos que sim.
3. Análise das condutas descritas no tipo. Prestar informação falsa
significa apresentar, dar ou oferecer dados e fatos inexatos, enganosos ou
mentirosos, por escrito ou mesmo verbalmente, a respeito de procedimento
judicial, policial, fiscal ou administrativo com o fim de prejudicar interesse
do investigado, ou seja, não haverá crime se não estiver presente o fim
especial no agir do agente que é prejudicar o interesse do investigado.
Tecnicamente, investigado não é sinônimo de acusado. Este é quem ocupa o
polo passivo de uma ação penal instaurada. Aquele, como o próprio nome
sugere, é o que sofre a investigação, que se dá em momento anterior à ação
penal, pré-processual. A se fazer uma interpretação literal da regra em exame,
chegaríamos à conclusão de que este crime só ocorreria na fase investigatória.
Todavia, o próprio dispositivo menciona o “procedimento judicial”, donde se
segue que, embora sem técnica, o legislador tenha referido o investigado, em
verdade, quis abranger também aquele que ocupa o polo passivo da ação
penal. Outra compreensão levaria ao absurdo de que é crime prestar falsa
informação na fase do inquérito, mas não na judicial.
4. Elemento subjetivo. O crime em apreço só é passível de ser praticado
com dolo e reclama um fim especial no agir do agente, isto é, “prejudicar
interesse de investigado”, sem o que não se pode dizê-lo configurado. Assim,
sob pena de inépcia, a denúncia, com dados do processo, deve descrever no
que consistiu o interesse do agente.
5. Consumação e tentativa. O crime é comissivo e formal, vale dizer,
não reclama a ocorrência de um resultado para a sua consumação. Basta
prestar informação falsa sobre o procedimento com o fim de prejudicar
interesse do investigado. Portanto, não admite tentativa.
6. Classificação doutrinária. É crime próprio, uma vez que só pode ser
praticado por agente público, ainda que admita a participação de terceiros.
Unissubjetivo, uma vez que pode ser cometido por uma única pessoa;
comissivo, pois reclama uma ação; formal, na medida em que não reclama a
produção de um resultado e é doloso tendo um fim especial no agir do agente
consistente em prejudicar o investigado ALBERTO ZACHARIAS TORON

Art. 30. Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou


administrativa sem justa causa fundamentada ou contra
quem sabe inocente:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

BIBLIOGRAFIA:
ABREU, Florêncio. Comentários ao Código de Processo Penal. Rio de Janeiro:
Forense, 1945, v. V; ALENCAR, Luiz Carlos Fontes de. Liberdade: teorias e lutas,
Brasília: ed. Brasília Jurídica, 2000; BADARÓ, Gustavo Henrique, Processo Penal. 3a
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015; MARIONI, Luiz Guilherme;
ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil
Comentado. 5a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019; MENDONÇA, Andrey
Borges de. Comentários ao art. 395. In: FILHO, Antonio Magalhaes Gomes; TORON,
Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique (Coords.). Código de Processo
Penal Comentado. 2a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019; MOURA, Maria
Thereza Rocha de Assis. Justa causa para a ação penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001.

COMENTÁRIOS:
O tipo penal em questão, na sua primeira parte, relativa a dar início ou
proceder à persecução penal sem justa causa fundamentada, se não for
interpretado restritivamente, isto é, de modo a compreender só o ‘dar início à
persecução sem que se fundamente a existência da justa causa’, revelar-se-ia
inconstitucional por permitir a incriminação da liberdade de convencimento
do magistrado, do membro do Ministério Público, do delegado de polícia, ou
mesmo a da autoridade administrativa em matéria permeada por razoável
dose de subjetividade. Abriria espaço para os famigerados “crimes de
hermenêutica” de que falava Rui Barbosa63 sempre, por exemplo, que se
recebesse uma denúncia sem justa causa. Em verdade, faltou, de forma clara,
a inclusão de um elemento normativo do tipo para limitar sua incidência a
aqueles casos em que o juiz ou a autoridade administrativa, sem
fundamentação e com o intuito de prejudicar o perseguido judicial ou
administrativamente procede ou dá início à persecução destituída de justa
causa. Mesmo as ressalvas constantes dos parágrafos 1o e 2o do art. 1o desta
lei64 são insuficientes para afastar interpretações inadequadas. Por uma
questão de clareza, o tipo penal é que deve conter sua zona de limitação para
se evitarem confusões, distorções e arbitrariedades, ainda que, obviamente, se
possa recorrer à interpretação sistemática. O ponto é que, afastados os casos
frisantes, patentes e indiscutíveis, nem sempre frequentes na vivência forense,
a aferição da justa causa envolve uma subjetividade na sua percepção, que
diferencia juízes e tribunais de diferentes graus de acordo com as
experiências de vida de cada um, suas crenças e ideologias. Pode se dar,
como tantas vezes se vê, que o Tribunal, com uma visão mais ampla e
distanciada que a do juiz da causa, conceda a ordem de habeas corpus para
trancar uma ação penal sem que isso signifique que o juiz apontado como
coator tenha agido com abuso de autoridade. Idem, quando o membro do MP
oferece uma denúncia e o juiz venha a rejeitá-la liminarmente por falta de
justa causa (CPP, art. 395, III). A se pensar diferentemente, toda vez que um
tribunal conceder ordem de habeas corpus para trancar uma ação penal, ou
mesmo rejeitar uma denúncia por entendê-la despida de justa causa, haveria
ensejo para, ao menos indiciariamente, uma denúncia por abuso de
autoridade de quem a ofereceu e de quem a recebeu. O raciocínio revela-se
profundamente equivocado e, a prevalecer, interferiria na liberdade de
convicção de certos atores do processo penal, como juízes e promotores, e, na
fase pré-processual, em relação a delegados de polícia. Mais delicada é a
situação de uma denúncia que, em ação penal originária, venha a ser recebida
por maioria de votos e o STJ ou STF venha a trancá-la. Os desembargadores
que entenderam dessa ou daquela forma deveriam ser incriminados? E o
membro do MP de segundo grau que ofereceu a denúncia? Soa absurdo! Daí
a necessidade de se interpretar o dispositivo como dar início ou proceder à
persecução penal sem fundamentar a justa causa. No caso do delegado de
polícia, há um outro aspecto a se considerar. Vimos que o art. 27 incrimina a
instauração de procedimento investigatório sem qualquer indício da prática
de crime. Ora, tal prática pode ser lida como “dar início ou proceder à
persecução penal sem justa causa”, de que trata o art. 30 da mesma lei e é
punido mais severamente. Sim, porque por um lado a justa causa abrange a
existência de indícios e, de outro lado, a persecução penal, como aclara
GUSTAVO BADARÓ, desenvolve-se, ordinariamente, em duas fases: a
investigatória, que se dá por meio de um inquérito policial e, outra, a do
processo judicial65 . O mesmo pode ser dito em relação ao membro do MP,
federal ou estadual, que venha a requisitar a instauração de inquérito sem
justa causa, ou sem nenhum indício, portanto, dando início, a uma
investigação, leia-se persecução penal. Se prevalecer a regra do art. 27, o
crime é de menor potencial ofensivo; do contrário, sendo a do art. 30, tem-se
a possibilidade da suspensão processual nos termos do art. 89 da Lei n.
9.099/95. No processo civil, teríamos a figura do autor da ação civil pública e
a do juiz que manda citar o demandado. Igualmente vale para os
procedimentos administrativos. Caso os membros da OAB pudessem ser
sujeitos ativos dos crimes desta lei, imaginem-se procedimentos disciplinares
conduzidos no âmbito da OAB ou de autarquias administrativas. Se o juiz ou
o tribunal vier a trancá-los por falta de justa causa, teríamos,
automaticamente, a incriminação por abuso de autoridade dos conselheiros da
OAB? Se a primeira parte do dispositivo examinado causa enorme
perplexidade, a segunda é ainda pior. Deve ser declarada inconstitucional por
falta de proteção jurídica suficiente ao bem jurídico tutelado, a Administração
da Justiça e a dignidade do que vem a ser investigado ou processado, mesmo
sabendo-se de sua inocência. Como advertiu o ministro ROBERTO BARROSO
em decisão monocrática no conhecido caso do indulto natalino do presidente
Temer: “Para assegurar que a atuação estatal na garantia de valores
constitucionais se dê em justa medida, o mandamento da proporcionalidade
comporta, além de uma vertente de proibição do excesso, que paralisa a
eficácia de restrições irrazoáveis a direitos fundamentais, uma dimensão de
vedação à proteção insuficiente. De acordo com essa ideia, as normas
jurídicas que deixem de estabelecer patamares adequados de proteção a
valores resguardados pela Constituição são inválidas. Em tais casos, o poder
público descumpre o dever de adotar as ações necessárias à defesa de
valores de estatura constitucional, justificando-se, portanto, a atuação
corretiva do Supremo Tribunal Federal” (ADI n. 5.874MC, DJe
14/3/2018)66. É que dar início à persecução, recebendo a denúncia, ou
proceder à persecução, oferecendo denúncia contra quem se saiba inocente,
não é outra coisa senão a conhecida prática da denunciação caluniosa (CP,
art. 339). A prevalecer o tipo penal da nova lei de Abuso de Autoridade,
teremos o disparate de a conduta do particular que der causa a uma simples
investigação contra quem saiba inocente vir a ser punida mais severamente
do que a praticada por agente público que oferece uma denúncia ou mesmo a
do juiz, quando dá início ao processo determinando a citação do réu. Um
nonsense que ofende o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade e,
por isso, também deve ser declarado inconstitucional. O substantive due
process of law não tolera tal iniquidade. Cabe suspensão condicional do
processo nos termos do art. 89 da Lei n. 9.099/95.
1. Objetividade jurídica. Tutela-se a correção da Administração da
Justiça quando se trata dos processos penal e civil e a do Estado-
Administração no que diz com os procedimentos administrativos. A
dignidade do atingido pela persecução penal ou instauração do procedimento
administrativo também é protegida. Portanto, além do Estado, temos o
indivíduo contra o qual se promoveu ou se instaurou a persecução ou o
procedimento administrativo como vítimas que poderão se habilitar como
Assistentes do Ministério Público em eventual ação por abuso de autoridade.
Idem, no caso de procedimento instaurado contra quem se saiba, de antemão,
inocente.
2. Sujeitos do crime. O delegado de polícia dos Estados ou o federal, o
membro do MP federal ou estadual que promoveram a persecução penal.
Idem, o juiz que levou adiante (procedeu) a persecução penal sem a devida
fundamentação quanto à justa causa. Na hipótese de ação civil, o autor e o
juiz que instaurou a respectiva ação. Em se tratando de procedimento
administrativo, a autoridade administrativa que o promoveu e/ou o instaurou.
Pode o advogado que patrocina os interesses da parte vir a ser incluído como
partícipe do crime, mas excepcionalmente e desde que prove o conluio entre
este e o cliente. O advogado, embora deva ter o mínimo de cautela antes de
propor uma ação cível ou penal, cercando-se da obtenção de um mínimo de
provas que viabilizem a pretensão que pretende deduzir em juízo, não é
investigador e nem fiscal do cliente, não devendo se substituir ao juiz da
causa, a quem cabe avaliar, de forma aprofundada, a viabilidade da ação
proposta. Pensamento diverso funcionaria como uma espécie de censura
prévia na atividade da advocacia, incompatível com o dever de vocalizar os
interesses do cidadão e poderia represar muitas demandas posteriormente
avaliadas como justas.
3. Análise das condutas descritas no tipo. Trata-se de tipo misto ou
alternativo com duas condutas distintas. i. Dar início ou proceder à
persecução sem justa causa fundamentada ou ii. Contra quem se sabe
inocente. Dar início ou proceder à persecução é começar, levar a efeito,
realizar, ou, mais precisamente, abrir, instaurar inquérito policial, ou
Procedimento Investigativo Criminal, propor ação penal, civil ou
procedimento administrativo. Instaurar persecução significa também receber
a ação penal, civil ou aceitar a proposta de processo administrativo contra
alguém. O ato de receber a denúncia no processo penal ou mandar citar o réu
ou demandado é o que dá ensejo à caracterização da instauração da ação civil.
Já o ato que determina a notificação do agente público para responder ao
procedimento administrativo é o que o instaura. O conceito de justa causa no
processo penal é por demais amplo como assinalam a doutrina e a
jurisprudência. No dizer de FLORÊNCIO DE ABREU, “é tão amplo que não se
pode estabelecer a priori”67. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, em
monografia específica, também sustenta a impossibilidade de se traçar uma
definição de justa causa68. Tanto faz a denúncia narrar fato atípico como
descrever fato que não guarde ressonância com a prova colhida. “Em ambos
os casos haverá ilicitude e, mais do que isso, imoralidade. E tanto a doutrina
como a jurisprudência entendem que faltará, na hipótese, justa causa para a
ação penal”69. Grosso modo, pode ser entendido como o conjunto de
elementos que viabilizam a ação penal, ou seja, base empírica, entendida
como o conjunto mínimo de indícios de autoria, materialidade e tipicidade da
conduta. Daí o tipo penal referir “justa causa fundamentada, como a exigir a
fundamentação da presença deste elemento para deflagrar a persecução. A
ausência desta fundamentação é que enseja a caracterização do crime e não o
erro de interpretação. A ideia da justa causa é de difícil aplicação no campo
do processo civil. É que este se contenta com o interesse e a legitimidade para
postular em juízo (CPC, art. 17), “ in status assertionis, isto é, à vista das
afirmações do demandante, sem tomar em conta as provas produzidas no
processo”70. Tais conceitos não se confundem com o de justa causa corrente
no processo penal. Aliás, o CPC, ao falar de justa causa no art. 223, § 1o,
cuida da perda do prazo justificada pelo “evento alheio à vontade da parte e
que a impediu de praticar o ato”. O direito administrativo de caráter punitivo
trabalha sim com o conceito de justa causa como o processo penal, isto é,
com o conjunto de elementos mínimos que permitem à autoridade
competente iniciar um procedimento administrativo contra um funcionário. A
segunda parte do tipo penal tem a ver com a conhecida figura da denunciação
caluniosa (CP, art. 339) assim redigida: “Dar causa à instauração de
investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação
administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra
alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente”: (Redação dada pela
Lei no 10.028, de 2000) No Código Penal, de forma mais abrangente,
utilizou-se a expressão “dar causa”, enquanto no dispositivo em comento, de
forma mais específica, a ação incriminada fica restrita às hipóteses em que o
agente “dá início” ou “procede” à persecução contra quem sabe inocente. Na
Lei de Abuso de Autoridade, não há espaço para o dolo eventual como
naquela conhecida situação em que o agente espalha à boca pequena uma
calúnia e que depois dá ensejo a uma investigação por conta do boato. Saber
inocente envolve um estado de certeza que revela o dolo e a torpeza do
agente no agir, fabricando, urdindo, uma situação de modo a colocar no polo
passivo de uma ação pessoa sem culpa, situação da qual se sabe de antemão.
Por outro lado, é fácil perceber que o art. 30 da lei em comento é mais amplo
do que a disposição do art. 339 do CP, uma vez que, diferentemente, não
exige a imputação de crime, mas obviamente a compreende. Vale dizer,
qualquer tipo imputação é válido para a caracterização do abuso de abuso de
autoridade. É que, em técnica duvidosa, o tipo penal procurou abarcar
conjuntamente as hipóteses administrativa e civil. O ponto é que, na parte
criminal, a extensão da incriminação, por expressa disposição legal, trata da
persecução penal e, neste caso, só faz sentido se se tratar da imputação de
crime. Do contrário, não haverá persecução penal alguma. Portanto, a única
conclusão que se pode extrair é que o art. 30, se não for declarado
inconstitucional pelos motivos anteriormente expostos, revogou o disposto no
art. 339 do CP. Afinal, a conduta do agente público, evidentemente, ostenta
um maior desvalor e, portanto, não pode ser tratada de forma mais branda que
a do particular que pratica a mesma conduta. Aqui é preciso fazer uma
interpretação ab-rogante, eliminando-se a regra mais antiga ou punindo-se o
particular que der causa a uma investigação quando saiba da inocência de
alguém, com a pena deste artigo para se evitar a desproporção e iniquidade na
forma do tratamento punitivo.
4. Elemento subjetivo. A primeira e a segunda parte do tipo penal só
podem ser praticadas mediante dolo direto do agente. O estado de dúvida,
seja na promoção da ação cível ou criminal e mesmo sua instauração, falam a
favor dos agentes das ações previstas no tipo, uma vez que tanto para propor
a ação como para dar início ao processo, além de não se exigir prova
completa, como anota com precisão ANDREY BORGES DE MENDONÇA ao
citar expressivo julgado do Pleno do STF, relatado pelo ministro LUIZ FUX71
(STF, Inq. n. 2.588, DJe 17/5/2013), a dúvida milita em favor de quem
propõe a ação ou mesmo do juiz que a recebe. Deve-se destacar que na
segunda parte do dispositivo, que se identifica com a denunciação caluniosa,
com maior razão de ser, só se configura com o dolo direto do agente no que
diz com o conhecimento da inocência. O estado de dúvida, como dito alhures,
afasta o crime.
5. Consumação e tentativa. A doutrina, em uníssono, afirma ser possível
a ocorrência da tentativa, pois o crime em apreço é material na medida em
que o resultado da instauração de investigação policial, processo judicial,
investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade
administrativa é exigido. Na segunda parte do dispositivo, quando se dá
início à persecução penal contra quem se saiba inocente, a retratação do
agente público, quando for possível, não afasta o crime, mas pode implicar na
redução prevista no art. 16 (arrependimento posterior).
5.1. Cronologia para a apuração da conduta de dar início ou
proceder à persecução contra quem sabe inocente (denunciação). Pode a
apuração da denunciação caluniosa preceder o encerramento da apuração
do crime investigado? Em tese, sim, pois estamos diante de um crime
instantâneo. Todavia, admitida a concomitância de ações, mais que o perigo
de decisões antinômicas (imagine-se aquele sobre o qual recaiu a suposta
denunciação caluniosa venha a ser condenado pela prática do crime imputado
e que, teoricamente, seria falso e, de outro lado, o acusado de tê-la promovido
venha, igualmente, a ser condenado). Afinal, a imputação de crime era falsa?
A Justiça errou quando? Ao condenar o primeiro ou o segundo? Para evitar
decisões contraditórias, no caso excludente, o caminho é aguardar-se a
apuração do crime imputado para, só depois do arquivamento desta ação ou
inquérito, iniciar-se a perseguição da denunciação. Mas não é apenas por uma
questão de lógica que se deve proceder desta maneira. A elementar típica
relativa ao conhecimento da inocência só aflorará com clareza mediante a
evolução do processo. Portanto, antes da conclusão deste, não há justa causa
para a ação penal que vise a apurar o crime de denunciação caluniosa previsto
nesta lei. Se se tratar de denúncia ou ação cível cuja inicial foi rejeitada pelo
juiz, com o trânsito em julgado da decisão, torna-se viável perseguir-se o
crime em exame.
6. Classificação doutrinária. Trata-se de crime próprio; unissubjetivo,
pois pode ser cometido por uma única pessoa; comissivo, pois reclama uma
ação; material à medida que implica na produção de um resultado
(proposição da ação; processo judicial etc.); plurissubsistente, pois a ação
criminosa pode ser fracionada e instantânea, pois se esgota com o resultado.
7. Confronto com a denunciação caluniosa. Vide supra no item 3.

ALBERTO ZACHARIAS TORON

Art. 31. Estender injustificadamente a investigação,


procrastinando–a em prejuízo do investigado ou
fiscalizado:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e
multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem,
inexistindo prazo para execução ou conclusão de
procedimento, o estende de forma imotivada,
procrastinando-o em prejuízo do investigado ou do
fiscalizado.

COMENTÁRIOS:
Trata-se, como a prevaricação (CP, art. 319), de crime de menor potencial
ofensivo (art. 61 da Lei n. 9.099/95), mas simbolicamente punido com um
pouco mais de rigor do que no Código Penal (vide adiante, no item dedicado
ao confronto dos dispositivos). É que a conduta retratada no tipo penal em
exame, se não for fruto de corrupção do agente público, ficando nesse caso
absorvida pelo crime mais grave, representa uma modalidade específica de
prevaricação na qual o agente público retarda ou deixa de cumprir com seus
deveres com o intuito de prejudicar o investigado ou fiscalizado (seu
interesse pessoal). Com o fim do fluxo do prazo prescricional intercorrente
entre o fato criminoso e a denúncia, vigorando na fase pré-processual
unicamente a prescrição pelo máximo da pena em abstrato, tornou-se mais
comum o prolongamento dos inquéritos policiais em prejuízo da dignidade
do investigado, que fica numa espécie de limbo e com seu nome sob suspeita,
tisnado. Aliás, o STF, em mais de um julgamento, trancou inquéritos nos
quais o Ministério Público Federal se limitava a concordar com a dilação de
prazo requerida pela autoridade policial ou requerer diligências inúteis que
protelavam a conclusão do procedimento investigatório. Assim, v.g., o Min.
Alexandre de Moraes no Inq. n. 4.429/DF, 1a T., DJe 13/06/2018; Inq. n.
4.391/DF, 2a T., Rel. Min. Dias Toffoli, decisão de 29/06/2018; Inq. n.
4.393/DF, 2a T., Rel. Min. Gilmar Mendes, decisão de 29/06/2018 e, entre
outros, Inq. n. 4.442/DF, Min. Roberto Barroso, DJe 13/6/2018). É direito do
investigado (e da vítima) que a investigação não se prolongue sem
justificativa razoável, ou seja, que, como o processo propriamente dito, tenha
duração por prazo razoável. É taxativo, no ponto, o comando do art. 5o, inc.
LXXVIII, da Constituição Federal: “a todos, no âmbito judicial e
administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios
que garantam aceleridade de sua tramitação”. Esse dispositivo não é apenas
corolário dos princípios da eficiência, da moralidade e da razoabilidade. É
também, no caso da investigação criminal, seja por meio do inquérito
policial, seja dos denominados PICs (procedimentos de investigação
criminal) conduzidos por membros do Ministério Público, uma exigência do
respeito à dignidade humana, pois ninguém é obrigado a ficar na berlinda,
com uma espada de Dâmocles sobre a cabeça, sofrendo, angustiado, com
uma investigação que se eterniza, colocando a pessoa, na feliz expressão de
Umberto Eco, como uma espécie de “cera mole” nas mãos da autoridade. Por
fim, é importante sublinhar que o crime em foco só se caracteriza quando
houver delonga indevida, isto é, verdadeira procrastinação. Não se pode
perder de vista que há casos complexos que demandam as mais variadas
perícias e oitiva de muitas testemunhas, e nem sempre o Instituto de
Criminalística dos Estados, e mesmo o da Polícia Federal, atende as
requisições com a prontidão desejada. Por outro lado, problemas estruturais
das polícias (falta de pessoal e material) dificultam a celeridade na apuração.
Tudo isso deve ser levado em conta quando se trata de entender delongas
nem sempre injustificadas. Daí o tipo penal aludir à demora injustificada. Só
mesmo a ação comprovadamente dolosa da autoridade policial, ou do
Ministério Público, com o intuito de retardar, ou procrastinar, a apuração, é
que estará sujeita à punição. Tudo o que se disse quanto ao investigado, vale,
sem tirar nem pôr, para o fiscalizado por agentes da Receita ou das
Secretarias estaduais da Fazenda quando se trata da apuração de infrações
fiscais. Idem para fiscalizações ambientais. A disposição do parágrafo único
reforça a do caput, mas a amplia para os casos em que o procedimento
investigatório ou fiscalizatório não tenha prazo legal definido para ser
concluído.
1. Objetividade jurídica. A regra em exame, quando trata do
investigado, tutela a correção da Administração da Justiça e, mais
especificamente, no que diz com a razoabilidade do prazo de duração da
investigação como etapa da resolução do caso penal. Secundariamente, tem
por objeto a dignidade do investigado no que diz com o direito à
razoabilidade do prazo para a investigação. Embora o tipo penal esteja
voltado para o prejuízo ocasionado ao investigado, por via reflexa, temos o
direito da vítima e da sociedade protegido com a exigência da duração
razoável de uma investigação e fiscalização. Quando cuida do fiscalizado, a
regra tutela a correção do funcionamento do Estado-Administração e da
dignidade daquele com relação ao seu direito à razoabilidade do prazo para
conclusão da fiscalização, valendo as mesmas considerações lançadas quanto
ao investigado.
2. Sujeitos do crime. Trata-se de crime próprio passível de ser praticado
apenas pelos agentes públicos enumerados no art. 2o desta lei e, mais
especificamente, o Delegado de Polícia, federal ou estadual e membros dos
diferentes ministérios públicos dos Estados e da União. É possível a
participação de terceiros. Sujeito passivo do crime é o Estado e o fiscalizado
e o investigado, ainda que este não tenha sido indiciado.
3. Análise das condutas descritas no tipo. Pode-se estender ou
prolongar injustificadamente a investigação, quer com condutas comissivas,
isto é, propondo a execução de diligências expletivas, inócuas ou de
impossível consecução, quer, no polo oposto, com conduta omissiva
representada pelo deixar de fazer. Em ambos os casos, estamos diante do
crime de abuso de autoridade, mas é preciso atentar, como dito anteriormente,
que só mesmo quando a tramitação demorada for injustificada é que haverá o
crime em foco. Caso haja oferecimento/recebimento de vantagem indevida,
de corrupção (CP, art. 317 e/ou 333) ou mesmo concussão (CP, art. 316).
Esses crimes, por serem mais graves, absorvem o de abuso de autoridade e
atinam com a razão de ser do agente público. Da mesma forma que não pode
haver prevaricação em concurso com a concussão (STF, HC n. 80.814/AM,
rel. Min. Ellen Gracie, DJ 22/02/2002), não pode entre o abuso de autoridade
e a corrupção ou concussão. A existência de prazo certo, fixado em lei, para a
conclusão da investigação ou fiscalização é irrelevante nos termos do
disposto pelo parágrafo único do dispositivo em estudo.
4. Elemento subjetivo. Só se pune o crime em apreço por conduta dolosa
na qual a autoridade ou seu agente provoque delonga injustificada na
consecução da investigação com o intuito de prejudicar o investigado ou o
fiscalizado. Esse fim especial do agir do agente deve estar devidamente
demonstrado na denúncia, sob pena de inépcia.
5. Consumação e tentativa. Trata-se crime material que depende de
resultado naturalístico (prolongamento da investigação/fiscalização), de
modo a causar prejuízo para os que sofrem a investigação ou a fiscalização. A
intervenção do Ministério Público ou mesmo do juiz pode impedir a
procrastinação indevida. Admite-se, portanto, a tentativa, mas só na forma
comissiva. Quando ser trata de procrastinação injustificada mediante
omissão, é muito difícil pensar-se na tentativa, mas pode ocorrer com a
intervenção do MP ou do próprio juiz impedindo, por razões alheias à
vontade do agente, a consumação do resultado.
6. Classificação doutrinária. É crime próprio, uma vez que só pode ser
praticado por agente público, ainda que admita a participação de terceiros.
Unissubjetivo, uma vez que pode ser cometido por uma única pessoa;
comissivo ou omissivo, pois pode ser praticado mediante ação ou omissão;
material, na medida em que reclama a produção de um resultado e é doloso,
tendo um fim especial no agir do agente consistente em prejudicar o
investigado ou o fiscalizado.
7. Confronto com a prevaricação. O art. 319 do CP pune com pena de
detenção de três meses a um ano e multa o agente público que “retardar ou
deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra
disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”.
Já o art. 31 da lei em exame pune com pena maior quem “Estender
injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do
investigado ou fiscalizado”. Esta última tipificação é mais específica que a
prevaricação prevista no CP e, portanto, pela regra da especialidade, aplica-se
em detrimento da regra geral da prevaricação.
8. Confronto com a corrupção. É perfeitamente possível que o agente
público retarde, prolongue ou procrastine uma investigação, ainda que com a
aparência de prejudicar o investigado, mas porque recebeu vantagem deste
ou, noutra hipótese, de um inimigo seu para, de fato, prejudicá-lo. É evidente
que, nesse caso, a corrupção, crime mais grave, absorve o crime previsto no
art. 31 desta lei, posto que a vantagem ou promessa dela é exatamente para
praticar ou deixar de praticar atos do seu ofício ou infringir deveres
funcionais como os da eficiência, moralidade e celeridade (cf. a corrupção
majorada no CP, art. 317, §1o). Haveria verdadeiro bis in idem se houvesse
dupla punição a título de corrupção e abuso de autoridade pelo mesmo fato.

JULIANO BREDA

Art. 32. Negar ao interessado, seu defensor ou advogado


acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo
circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro
procedimento investigatório de infração penal, civil ou
administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias,
ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em
curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras,
cujo sigilo seja imprescindível:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e
multa.

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. O tipo penal tutela diretamente a garantia
fundamental do direito à ampla defesa, por intermédio da proteção do pleno
exercício da advocacia, consagrada como função indispensável à
administração da justiça, de acordo com o artigo 133 da Constituição Federal,
bem jurídico, portanto, também atingido sempre que há vulneração dos
pressupostos de atuação do advogado no curso de investigação penal, civil ou
administrativa.
Trata-se de norma que reconhece o direito de acesso aos elementos
colhidos em procedimentos investigatórios como condição irrenunciável para
a elaboração e orientação da defesa dos cidadãos. Nesse exato sentido,
destaca-se a edição pelo Supremo Tribunal Federal da Súmula Vinculante no
14: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos
elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório
realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao
exercício do direito de defesa”.
A prerrogativa de acesso à integra dos autos de inquérito, previamente ao
depoimento do investigado, é assegurada, inclusive, na Lei das Organizações
Criminosas (Lei 12.850/2013): “Art. 23. O sigilo da investigação poderá ser
decretado pela autoridade judicial competente, para garantia da celeridade e
da eficácia das diligências investigatórias, assegurando-se ao defensor, no
interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam
respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de
autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento.
Parágrafo único. Determinado o depoimento do investigado, seu defensor
terá assegurada a prévia vista dos autos, ainda que classificados como
sigilosos, no prazo mínimo de 3 (três) dias que antecedem ao ato, podendo
ser ampliado, a critério da autoridade responsável pela investigação”.
Trata-se de regra que concretiza de modo efetivo o direito de defesa, na
medida em que, não apenas garante o acesso aos autos, mas também
estabelece um prazo adequado para a orientação do advogado ao cliente
investigado.
2. Tipo objetivo. O núcleo típico da conduta utiliza o verbo negar, que
significa recusar, não conceder o pedido de acesso aos autos de investigação.
É comum, por parte da autoridade, a exigência de requerimento formal. Nessa
hipótese, não é possível equiparar tal condição à recusa, desde que a
exigência de formalização do pedido não frustre o exercício do direito de
defesa, como nos casos de urgência de acesso aos elementos colhidos na
investigação para a tutela imediata do direito da parte, especialmente em
situações de prisão ou fluência de prazo para a elaboração de manifestação.
No entanto, a omissão em apreciar o requerimento em prazo razoável pode
configurar o tipo penal em ato comissivo por omissão.
Também não será típica a conduta de negar acesso a elementos cuja
revelação possa frustrar a natureza da medida, como é o caso de
interceptações telefônicas e telemáticas em andamento ou de mandado de
busca e apreensão ainda sem cumprimento, como excepciona, inclusive, o
próprio Estatuto da Advocacia e da OAB72. A juntada aos autos do resultado
de interceptações telefônicas segue regras específicas previstas na Lei no
9.296/96. No entanto, deixando de subsistir as razões de sigilo do
procedimento, o crime se consumará se houver a recusa de acesso.
Interessado é todo aquele que puder ser afetado juridicamente em face do
resultado do procedimento de investigação, devendo ser interpretado de
forma a incluir nesse conceito não apenas o autor do fato, mas também a
vítima, e abrange pessoas físicas e jurídicas potencialmente atingidas.
Exige-se que a negativa seja dirigida ao próprio interessado, a defensor
público73 ou advogado privado constituído para a defesa dos interesses do
investigado. A esse respeito, o tipo objetivo deve ser lido em combinação
com o inciso do art. 7o do Estatuto da Advocacia e da OAB, que assegura a
prerrogativa profissional do advogado ao exame de procedimento judicial e
administrativo mesmo sem procuração, quando não estejam sujeitos a sigilo.
Portanto, se o procedimento é sigiloso, exige-se que o advogado esteja
legalmente habilitado como procurador do interessado74. A negativa, nesse
caso, justificada por outra regra em vigor, torna a conduta atípica.
O legislador procurou de forma clara incluir no tipo objetivo todos os
procedimentos investigatórios, independentemente de sua natureza jurídica.
Ao fazer menção à investigação preliminar, inquérito ou qualquer outro
procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, como
objetos materiais da ação incriminada, a norma ampliou sua incidência a
todos os procedimentos administrativos e judiciários, compreendo
investigações e inquéritos da polícia judiciária, do Ministério Público (cíveis
e criminais) e dos órgãos integrantes da administração pública, direta e
indireta, como os procedimentos administrativos–fiscais da Receita Federal,
do Banco Central da Comissão de Valores Mobiliários, e procedimentos
administrativos de responsabilização.
O termo circunstanciado, mencionado no tipo, é a portaria lavrada pela
autoridade policial nos procedimentos regidos pela Lei no 9.099/95, de
competência dos Juizados Especiais.
3. Tipo subjetivo. O crime exige o dolo específico, pois a Lei de Abuso
de Autoridade criou no artigo 1o, § 1o, um especial fim de agir comum a
todos os tipos penais: “as condutas descritas nesta Lei constituem crime de
abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade
específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou,
ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”.
Essa intenção deve estar presente na ação do agente público, ao lado da
vontade livre, consciente e incondicionada de negar acesso aos autos dos
mencionados procedimentos de investigação a interessado ou a seu
procurador.
4. Sujeito ativo. O funcionário público, membro do Ministério Público
ou magistrado com competência para conhecer e decidir a respeito do pedido
de acesso.
5. Sujeito passivo. O interessado, pessoa física ou jurídica, cujo direito
de defesa é atingido pela recusa ao acesso e seu defensor ou advogado, pela
ofensa ao legítimo exercício da profissão.
6. Consumação e tentativa. Trata-se de crime de mera conduta, que se
consuma com a simples recusa de acesso aos autos e independe da ocorrência
de prejuízo, que potencialmente se presume. O crime é permanente, e a
consumação se protrai no tempo enquanto não assegurado o acesso aos autos.
Como destacado, a exigência de prévio requerimento formal ou da
apresentação de procuração em caso de tramitação sigilosa do procedimento
não caracteriza a infração penal. A tentativa é inadmissível.
7. Pena. A sanção prevista é de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois)
anos, e multa, comportando, portanto, o instituto da transação penal, nos
termos da Lei no 9.099/95.

FÁBIO TOFIC SIMANTOB

Art. 33. Exigir informação ou cumprimento de obrigação,


inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso
amparo legal:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e
multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem se utiliza
de cargo ou função pública ou invoca a condição de
agente público para se eximir de obrigação legal ou para
obter vantagem ou privilégio indevido.

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. A liberdade de não ser obrigado a fazer ou
deixar de fazer nada senão em virtude de lei (artigo 5o, II da CF) e a
moralidade administrativa no crime do parágrafo.
2. Sujeito ativo. Qualquer autoridade ou agente público.
3. Sujeito passivo. Qualquer pessoa, física ou jurídica.
4. Tipo objetivo. Exigir é determinar, obrigar, ordenar. Trata-se de crime
formal, que se consuma com a mera exigência, ainda que a pessoa exigida
não a atenda, e que só se consuma no momento em que a pessoa destinatária
da exigência dela toma conhecimento. Por se tratar de crime unissubsistente,
não admite tentativa.
Para a configuração do crime é necessário que a exigência seja uma
ordem dotada de caráter coercitivo, do contrário, será mera solicitação e não
exigência. Se a exigência for feita mediante o uso de violência ou grave
ameaça, o crime será o de constrangimento ilegal ou até tortura (artigo 1o, I,
da Lei n. 9.455/97).
A teor do artigo 1o, § 2o, “a divergência na interpretação de lei ou na
avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”. Como então
definir para efeito do crime do caput o que é uma exigência sem amparo
legal? Eis um dos temas mais tormentosos da lei, questão que foi objeto de
acalorados debates legislativos, e que mesmo após sua promulgação continua
a criar muita dúvida.
A forma de melhor harmonizar a figura prevista no tipo com a ressalva do
artigo 1o, § 2o, é considerar que o verbo exigir contido no tipo consiste em
exigir informação ou impor cumprimento de obrigação de forma imediata, de
modo a não dar chance de a ordem ser desacatada, não, ao menos, sem o
receio ou a cisma de que algo de mau poderá lhe acontecer, ainda que não
seja explicitada nenhuma ameaça. Se a ameaça for explícita, o crime será
mais grave, como já visto. A concessão de prazo razoável para o
fornecimento da informação ou cumprimento da obrigação descaracteriza, a
nosso ver, o crime.
Assim, um delegado de polícia que expede intimação ao investigado
exigindo que entregue em 48 (quarenta e oito) horas o seu extrato bancário,
embora esteja emitindo uma ordem ilegal, a ordem é passível de impugnação
e, portanto, não sujeita a incorrer no crime. Diferente, porém, se o delegado
ingressa em uma instituição financeira e, sem qualquer autorização judicial,
obriga o gerente do banco a lhe fornecer a senha de acesso a determinadas
contas bancárias. Nesse caso, estará caracterizado o crime.
5. Tipo subjetivo. o elemento subjetivo exigido pelo tipo é aquele do
artigo 1o, § 1o, da Lei, finalidade específica de prejudicar outrem ou
beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou
satisfação pessoal.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem se utiliza


de cargo ou função pública ou invoca a condição de
agente público para se eximir de obrigação legal ou para
obter vantagem ou privilégio indevido.

1. Objetividade jurídica. É a defesa da moralidade público e


administrativa.
2. Sujeito ativo. Toda e qualquer autoridade ou agente público.
3. Sujeito passivo. Qualquer pessoa física ou jurídica.
4. Tipo objetivo. O crime do parágrafo, por sua vez, prevê duas
condutas: utilizar cargo ou função pública para obter vantagem e invocar a
condição de agente público com o mesmo fim.
Utilizar o cargo ou a função é o crime de desvio de função pública, é
praticar ato no exercício da função, mas com o fim de satisfazer interesse
próprio, pessoal. É o caso, por exemplo, do agente público que expede ofício
com timbre da repartição solicitando ingressos para assistir a determinado
espetáculo (vantagem), ou para uma unidade do exército solicitando a
dispensa do filho do serviço militar (eximir-se de obrigação).
Já a conduta de invocar prescinde de qualquer ato revestido de caráter
oficial, é a mera “carteirada”. É o sujeito que apresenta a carteira de
magistrado para furar fila na entrada do teatro.
Ambas são condutas comissivas, que se consumam no momento em que
o agente público faz chegar ao conhecimento da outra pessoa sua condição de
funcionário público.
São espécies de crimes formais, bastando que o agente público faça uso
da função ou a invoque para que o crime esteja consumado, ainda que a
vantagem não seja obtida.
O cargo ou função no caso do tipo do artigo 33 deve ser invocado de
forma genérica sem vinculação com algum ato próprio da função, do
contrário, o crime será de corrupção, ou concussão, este, se houver o
emprego de grave ameaça.
A “carteirada” deve ser usada para eximir-se de obrigação legal. Não
pratica o crime o agente público que, para se eximir de dívida de jogo ou de
promessa de doação a entidade filantrópica, invoca o cargo ou a função para
fazer cessar a cobrança.
Da mesma forma, não incorre nas penas cominadas ao delito aquele que,
ao cobrar cumprimento de obrigação que lhe é devida, invoca sua condição
de agente público, pois o tipo exige que a vantagem ou o privilégio sejam
indevidos. Se, no entanto, a alusão à condição de agente público visa amaçar
ou coagir o devedor, poderá responder por exercício arbitrário das próprias
razões (artigo 345 do CP).
5. Tipo subjetivo. O tipo prevê um dolo específico de obter vantagem ou
privilégio indevido, ou, ainda, a vontade de se eximir de obrigação legal. Se o
sujeito age apenas com o intento de amedrontar ou se gabar, não configura o
crime. Apesar de o tipo prever apenas obtenção de vantagem ou privilégio
para si, e não para outrem, complementa a norma penal o conteúdo do artigo
1o, § 1o, da Lei, que se aplica de forma geral a todos os tipos penais nela
previstos. Logo, a finalidade de beneficiar a terceiros também configura o
crime.
Tanto o crime do caput quanto do parágrafo são de menor potencial
ofensivo e admitem transação penal e suspensão condicional do processo.

GUSTAVO BADARÓ E JULIANO BREDA

Art. 34. Deixar de corrigir, de ofício ou mediante


provocação, com competência para fazê-lo, erro relevante
que sabe existir em processo ou procedimento:
Pena – detenção, de 3 (três) a 6 (seis) meses, e multa.

COMENTÁRIOS:
O crime do artigo 34 da Lei no 13.869/2019 foi vetado pelo Presidente da
República.
As razões do veto foram as seguintes: “A propositura legislativa, ao
dispor que ‘erro relevante’ constitui requisito como condição da própria
tipicidade, gera insegurança jurídica por encerrar tipo penal aberto e que
comporta interpretação. Ademais, o dispositivo proposto contraria o interesse
público ao disciplinar hipótese análoga ao crime de prevaricação, já previsto
no art. 319 do Código Penal, ao qual é cominado pena de três meses a um
ano, e multa, em ofensa ao inciso III do art. 7o da Lei Complementar no 95 de
1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação
das leis, em razão do inadequado tratamento do mesmo assunto em mais de
um diploma legislativo.”

GUSTAVO BADARÓ E JULIANO BREDA

Art. 35. Coibir, dificultar ou impedir, por qualquer meio,


sem justa causa, a reunião, a associação ou o
agrupamento pacífico de pessoas para fim legítimo:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.

COMENTÁRIOS:
O crime do artigo 35 da Lei no 13.869/2019 foi vetado pelo Presidente da
República.
As razões do veto foram as seguintes: “A propositura legislativa gera
insegurança jurídica, tendo em vista a generalidade do dispositivo, que já
encontra proteção no art. 5o, XVI, da Constituição da República, e que não se
traduz em uma salvaguarda ilimitada do seu exercício, nos termos da
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cujo entendimento é no sentido
de que o direito à liberdade de se reunir não se confunde com incitação à
prática de delito nem se identifica com apologia de fato criminoso.”

GUSTAVO BADARÓ

Art. 36. Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade


de ativos financeiros em quantia que extrapole
exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da
dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da
excessividade da medida, deixar de corrigi-la:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
BIBLIOGRAFIA:
BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos Recursos Penais. 3 ed. São Paulo: RT,
2018; ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Trad. de Diego-Manuel Luzón
Peña, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Madrid: Civitas,
2008.

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. Como na generalidade dos crimes de abuso de
autoridade, o crime do art. 36 da Lei no 13.869/2019 é delito de dupla
objetividade jurídica.
Dois são os bens jurídicos penalmente tutelados. O crime do art. 36 da
Lei no 13.869/2019 protege, primariamente, o direito de propriedade
assegurado no caput do art. 5o da Constituição e, eventualmente a posse,
daquele que teve seus ativos financeiros excessivamente atingidos. Em
segundo lugar, tutela o normal funcionamento da função pública e a lisura no
exercício da autoridade estatal, que, no caso do art. 36, identifica-se com o
correto funcionamento do Poder Judiciário.
2. Sujeito ativo. Trata-se de crime próprio, na medida em que somente
pode ser praticado por autoridade judiciária, pois são os únicos agentes
públicos que têm poder legal para decretar a “indisponibilidade de ativos
financeiros” em processos judiciais.
O delito pode ser praticado por qualquer magistrado, inclusive em órgãos
colegiados. No caso de órgãos colegiados, se houver divergência de votos,
somente poderá ser imputada a prática delitiva ao magistrado que, tendo
previamente votado pela decretação da medida de indisponibilidade de ativos
financeiros, posteriormente, tenha votado contrariamente à correção do valor
que tenha extrapolado exacerbadamente o quantum da dívida cujo pagamento
se buscava garantir.
3. Sujeito passivo. Trata-se de delito de dupla subjetividade passiva. O
sujeito passivo imediato ou primário é o titular do bem jurídico atingido pela
conduta do agente. No caso, a pessoa proprietária ou possuidora do bem
sobre o qual incidiu a constrição judicial, pode ser pessoa física ou jurídica,
nacional ou estrangeira. O sujeito passivo secundário ou mediato é o Estado,
em nome de quem a atividade jurisdicional deve ser exercida de forma
correta a justa.
4. Tipo objetivo. Há dois verbos tipos: decretar e “deixar de corrigir”.
Decretar é uma conduta comissiva, consistente em ordenar, determinar ou
mandar. Deixar de corrigir é conduta omissiva, significa abster-se de dar o
conteúdo correto, não dar algo que está errado o conteúdo correto, ou ainda,
não retificar.
A expressão “processo judicial” deve ser entendida em sentido estrito. O
processo judicial pode ser de qualquer natureza, considerando-se iniciado o
processo com o exercício do direito de ação e findando-se com o trânsito em
julgado.
Nesse ponto, a lei é criticável por ser excessivamente restritiva. Deveria
abranger, também, medidas constritivas patrimoniais que fossem decretadas
na fase pré-processual, durante o inquérito policial, procedimentos
investigatórios do Ministério Público, inquéritos civis etc. No caso do
processo penal, o crime não abarca medidas cautelares patrimoniais de
arrestos prévios (CPP, art. 136 e 137), que visam assegurar a reparação do
dano e só podem ser decretadas na fase de inquérito policial ou investigação
preliminar. Também não será possível tipificar o crime de abuso de
autoridade se a medida tiver sido decretada e não corrigida na fase de
inquérito civil. Essa interpretação é reforçada pelo fato de que o tipo penal
exige que a não correção se dê “ante a demonstração, pela parte, da
excessividade da medida”. Não há partes nas investigações preliminares.
No CPC, a indisponibilidade de bens é meio de assegurar que se tornem
indisponíveis, para efetivação futura da penhora, dinheiro em depósito ou
aplicações financeiras.75 Efetuada a indisponibilidade pela instituição
financeira que recebeu a ordem, e tornados indisponíveis os ativos
financeiros, o executado será intimado e terá prazo de cinco dias para
impugnar a indisponibilidade, inclusive por ser seu valor excessivo. No CPP,
não há uma medida cautelar patrimonial específica de bloqueio de ativos
financeiros, mas esse meio tem sido utilizado para efetivar as medidas
cautelares patrimoniais de sequestro de bens móveis (CPP, art. 125 a 132) e
arresto subsidiário de bens móveis (CPP, art. 137).
Um ativo financeiro é um ativo líquido não físico (intangível), cujo valor
tem por fundamento uma relação contratual, representada por certificados ou
documentos que o representam, e pode ser negociado nos mercados
financeiros. São exemplos de ativos financeiros: títulos públicos ou privados,
ações, moedas estrangeiras e câmbios, certificados de depósitos bancários
(CDBs) e debêntures. Não se incluem no conceito de ativos financeiro os
ativos tangíveis, como commodities ou imóveis. O mais comum é que seja
decretado o bloqueio de ativos financeiros, relativamente a valores
depositados em conta-corrente em instituições financeiras, por meio do
sistema BACENJUD.
Para a caracterização do crime de abuso de autoridade do artigo 36, a
decisão judicial que decretou a medida de indisponibilidade deve ter
“extrapolado excessivamente” o valor estimado para a satisfação da dívida.
Extrapolar tem o sentido de exceder, de estender o valor da indisponibilidade
além dos limites corretos. Mas não basta a simples extrapolação. É necessário
que tenha excedido o valor “excessivamente”. O advérbio de modo
“excessivamente” indica a condição de algo que é excessivo. Embora
excessivo tenha o sentido de “que excede” ou, “que sobra”, no tipo penal do
art. 36 da Lei no 13.869/2019 seu significado é de algo que é exagerado ou
desmedido. Em suma, extrapolar excessivamente tem o sentido de “exceder
demasiadamente” o valor. Seria o caso de decretação da indisponibilidade em
valor que signifique o dobro, ou triplo ou outro fator multiplicador ainda
maior.
A finalidade da medida assecuratória apta a caracterizar o crime deve ser
a “satisfação da dívida da parte”. Nesse ponto, embora o tipo penal seja
adequado ao processo civil, mostra-se excessivamente restritivo em relação
ao processo penal, por não abranger medidas de sequestro de bens móveis
(CPP, art. 125 a 131), que visa assegurar o efeito civil da condenação penal
da perda do produto ou proveito do crime (CP, artigo 91, caput, inc. II, b),
bem como o sequestro subsidiário de bens lícitos, em valores equivalentes ao
produto do crime (CP, art. 91, §§ 1o e 2o).
Por outro lado, para quem considera em vigor a medida cautelar de
sequestro do Decreto-lei 3.240, de 08.05.1941, cabível no caso de crime de
que resulte prejuízo para a Fazenda Pública (art. 1.o), tendo por finalidade
assegurar o ressarcimento do prejuízo causado à Fazenda Pública (art. 9.o), se
para implementar tal sequestro for decretado pelo juiz criminal o bloqueio de
ativos financeiros, excedendo exacerbadamente o valor dívida para com a
Fazenda Pública, é viável a ocorrência do crime de abuso de autoridade do
art. 36 da Lei no 13.869/2019.
Por fim, o legislador exige, para a caracterização do delito, que haja pela
parte prejudicada pela medida de indisponibilidade de bens, a demonstração
da excessividade da medida. Não basta a mera alegação da excessividade do
valor constrito, é necessário que haja atividade argumentativa e probatória
demonstrando o valor atingido e excessivamente exacerbado em relação ao
valor da dívida cuja satisfação se pretende assegurar.
5. Tipo subjetivo. Todos os tipos penais da Lei no 13.869/2019 são
dolosos. No caso do tipo penal não é possível do dolo eventual. Se o juiz for
instado pela parte a corrigir o valor da indisponibilidade, por ter sido esse
excessivo.
O dolo, como consciência e vontade de realizar os elementos do tipo,
deve ser considerado como a vontade livre e consciente de deixar de corrigir
o valor da indisponibilidade de bens que foi anteriormente decretada em
valores que excedem demasiadamente o valor da dívida, mesmo após a
demonstração da parte desse excesso.
Como visto, todos os tipos penais da Lei no 13.869/2019 exigem, ainda,
um especial fim de agir, isto é, uma tendência interna que transcende ao tipo
penal e está identificada em uma das cinco finalidades que caracterizam o
abuso do poder público conferido a autoridade ou seu agente.
6. Consumação e tentativa. O crime do art. 36 é um “crime de vários
atos”, isto é, um crime que se compõe de vários atos, sendo que ao primeiro
ato deverá se seguir outros atos, havendo uma separação clara entre os
diversos atos que compõem o delito.76 No caso, o primeiro ato é a decretação
da medida judicial excessiva; o segundo ato é a demonstração, pela parte, da
excessividade da medida e, por último, o terceiro ato é a atitude omissiva do
juiz, de deixar de corrigi o excesso da medida constritiva.
O crime do artigo 36 da Lei no 13.869/2013 se consuma quando, já tendo
havido a prévia de decretação de medida judicial da indisponibilidade de
bens, em valor excessivo, e tendo ocorrido a demonstração pela parte de que
o valor da constrição se deu em valor excessivamente exacerbado, o juiz
deixa de o corrigir, reduzindo o valor.
No caso de atos do juiz monocrático, se a medida for no âmbito não
penal, o prazo para decisão interlocutória destinada a correção do excesso
será de 10 dias, segundo a regra geral do art. 226, inciso II, do Código de
Processo Civil.
Já no caso de processo penal, para a prática de decisões o prazo para
decisão interlocutória destinada a correção do excesso será de 5 dias, segundo
a regra geral do art. 800, inciso II, do CPP, por se tratar de decisão
interlocutória simples.77
Embora seja composto de vários atos destacados no tempo, o crime do
artigo 36 da Lei no 13.869/2019 não admite a forma tentada, posto que o ato
final, por meio do qual se consuma o delito, é de natureza omissiva. Assim,
se após ter sido decretada a indisponibilidade de ativos financeiros em
quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da
dívida, e alertado pela parte que demostre tal excesso, o juiz corrigir a
medida, não haverá crime, consumado ou tentado. Por outro lado, depois de
decretar a medida excessiva e sendo alertado pela parte, durante o prazo
legal, o juiz poderá corrigi-la. Por outro lado, superado tal prazo, a omissão
do dever de correção implicará a consumação delitiva.
7. Pena. O crime do art. 36 é punido com pena de detenção, de 1 (um) a 4
(quatro) anos, e multa.
Não se tratando de tipo penal que tenha como elementos a violência e a
grave ameaça, é possível, em tese, a substituição da pena privativa de
liberdade por pena restritiva de direitos, nos termos do art. 44 do CP.
Sendo a pena mínima de um ano, é cabível, em princípio, a suspensão
condicional do processo (Lei no 9.099/1995, art. 89). Por outro lado, sendo a
pena mínima inferior a 4 anos, admite-se o acordo de não persecução penal
(CPP, art. 28-A, caput).

FÁBIO TOFIC SIMANTOB

Art. 37. Demorar demasiada e injustificadamente no exame


de processo de que tenha requerido vista em órgão
colegiado, com o intuito de procrastinar seu andamento
ou retardar o julgamento:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. A moralidade e a eficiência administrativas.
2. Sujeito ativo. Todo e qualquer agente público integrante de órgão
colegiado seja de qualquer um dos Poderes, Executivo, Legislativo ou
Judiciário, ou ainda de empresa pública, autarquia ou sociedade de economia
mista.
3. Sujeito passivo. O Estado e a pessoa prejudicada pela demora.
4. Tipo objetivo. Trata-se de uma espécie de prevaricação, pois o agente
público deixa de fazer alguma coisa, levar o feito a julgamento, com o fim
específico de procrastinar o feito. É curioso que o legislador só tenha se
preocupado com pedido de vista, e não com outros tantos atos capazes de
impor demora ou procrastinar o andamento de um processo. Criou, assim,
situações inexplicáveis, pois o relator de um habeas corpus que demora anos
para levar o feito a julgamento não pratica o crime, mas aquele que pediu
vista e demora para trazer de volta incorre nas penas cominadas ao tipo.
Demorar é conduta omissiva que significa não fazer alguma coisa no
tempo exigido ou esperado. É crime formal que se consuma com a mera
ocorrência da demora, independentemente se essa demora causou ou não
algum prejuízo ou efeito jurídico. Não existe na forma tentada.
O tipo contém expressões abertas, como “demasiada” e
“injustificadamente”, o que não impede, contudo, sua aplicação, tendo em
vista exigir um especial fim de agir no próprio tipo – “com o objetivo de
procrastinar seu andamento ou retardar o julgamento” – que deve ser
cumulado com aqueles previstos de forma geral no artigo 1o, § 1o da Lei.
O crime foi tipificado com o intuito de proibir que, valendo-se do poder
de suspender um julgamento, o membro de um colegiado acabe fazendo
perecer direitos ou impedindo a aplicação da justiça apenas pelo recurso da
demora.
Assim, incorre nas penas cominadas ao crime o juiz que pede vista de
habeas corpus impetrado contra decreto de prisão temporária de cinco dias,
sabendo que na sessão seguinte já estará prejudicado, ou que pede vista de
habeas corpus de inépcia com o fim permitir que o feito sentenciado e haja a
perda do objeto. Da mesma forma, incorrerá no crime o desembargador ou
Ministro de tribunal que, com o intuito de levar o feito à prescrição, pede
vista dos autos, adiando o julgamento.
Embora o tipo tenha a estrutura dos crimes formais, que a rigor não exige
a ocorrência de um resultado, bastando que a conduta seja praticada com o
fim de procrastinar ou atrasar o feito, a ideia de demasia é vaga e aberta, e só
permite interpretação restritiva, de modo que a conduta típica deve ser
entendida como demora de forma a pretender ocasionar prejuízo ou vantagem
a alguém, do contrário, a demora não é considerada demasiada do ponto de
vista jurídico, e a conduta é atípica.
O crime se consuma com a mera demora, ainda que o prejuízo ou a
vantagem pretendidos a terceiros não se implemente. Apesar de o tipo prever
um especial fim de agir, há algo de pleonástico em dizer que é crime demorar
com o fim de procrastinar. O que salva o tipo da obscuridade é o elemento
subjetivo previsto no artigo 1o, § 1o, da Lei, que podemos definir como dolo
qualificado, ou seja, a conduta só será típica se a demora tiver o intento de
prejudicar ou satisfazer interesses próprios ou de terceiros.

FÁBIO TOFIC SIMANTOB

Art. 38. Antecipar o responsável pelas investigações, por


meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de
culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a
acusação.
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. A publicidade opressiva do processo, em
especial, do processo penal.
2. Sujeito ativo. É crime de mão própria que só pode praticado pelo
agente público de alguma forma envolvido nas investigações, incluídos os
superiores hierárquicos, como Procuradores-Gerais de Justiça, Procurador-
Geral da República e Diretores de Polícia Civil e Federal, assim como
também o magistrado responsável pelas medidas da fase de investigação.
Parece-nos difícil.
3. Sujeito passivo. O investigado em inquérito policial ou em
investigação de qualquer natureza.
4. Tipo objetivo. O tipo visa criminalizar a conduta do agente público
que se vale dos meios de comunicação para fazer proselitismo contra o
investigado, antipatizando-o diante da opinião pública, antes de formalizada a
acusação, seja por meio de entrevistas coletivas, notas à imprensa, seja por
mensagens em redes sociais.
Trata-se de crime comissivo, que se consuma quando terceiro não
envolvido na investigação toma conhecimento do juízo de valor negativo
emitido pelo agente público a respeito da situação do investigado no caso.
Não existe a forma tentada, pois, mesmo que se inicie alguma mensagem
escrita, sem alcançar terceiros, a conduta não terá ultrapassado a mera fase da
preparação.
Se já houver sido formalizada a acusação com o oferecimento de
denúncia, queixa ou ação civil pública, a conduta é atípica.
Não caracteriza o crime o acesso de terceiras pessoas, inclusive da
imprensa, a elementos dos autos ou peças nas quais a autoridade antecipa
juízos negativos quanto à culpa do réu.
A menos que, correndo a investigação sob sigilo, a autoridade promova o
vazamento de peça com o intuito de levar ao conhecimento de terceiros
argumentos que pesam em desfavor do investigado. Nesse caso, estará
configurado o crime.
Vale observar que o funcionário ou editor de veículo de comunicação
social que faz publicar as declarações antecipatórias de culpabilidade do
investigado dadas pelo agente público não comete, evidentemente, crime
algum. Isso porque a lei, como um todo, reprime a conduta abusiva da
autoridade pública, e não de pessoas privadas, que apenas excepcionalmente
podem figurar como partícipes do crime. No caso dos editores, jornalistas, ou
agentes de comunicação em geral, a criminalização encontra óbice no livre
exercício da liberdade de informação, tutelada constitucionalmente. A mera
conduta de emitir opinião desfavorável à situação do investigado, perante
terceiros, não envolvidos de alguma forma com a investigação, já configura o
crime, não exigindo o tipo que a comunicação alcance maior número de
pessoas.
O tipo não distingue a forma de comunicação, mencionando a rede social
apenas como exemplo. A conduta típica pode ser praticada por qualquer meio
de comunicação, verbal ou escrito, por carta, telefone, telégrafo, e-mail,
enfim, por qualquer meio de comunicação.
A conduta típica é de atribuir culpa, entendida “culpa” aqui como atributo
de culpado lato sensu, no sentido de dizer que determinada pessoa merece
responder criminalmente pelo fato sob apuração.
Formalizada a acuação, a comunicação só deixa de ser crime se referente
a uma das pessoas denunciadas. Pessoas em relação às quais a investigação
ainda prossegue permanecem protegidas pela proibição contida no tipo
incriminador.
5. Tipo subjetivo. O elemento subjetivo é o dolo, mais especificamente,
o especial fim de agir previsto no artigo 1o, § 1o da Lei. Assim, a
comunicação informal com amigos e familiares, verbal, escrita ou eletrônica,
não configura o dolo, se não houver o intento especial de promover a
acusação ou fazer proselitismo dela.
Trata-se de crime que admite transação penal e suspensão condicional do
processo.

___________________
1. SOUZA, Braz Florentino Henriques de. 1825-1870. Lições de Direito Criminal. Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, p. 93.
2. Nas hipóteses de prisão temporária militar, na qual o indiciado pode ficar detido,
durante as investigações policiais, até 30 dias, prorrogável por mais 20 dias caso
necessário, a autoridade competente para a declaração da prisão será o oficial
encarregado do inquérito a decretação da prisão, e sua prorrogada será autorizada pelo
comandante responsável, sempre com comunicado ao magistrado atuante no feito
(CPPM, art. 18).
3. (ADC 43, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em
07/11/2019, PROCESSO ELETRÔNICO, Ata de Julgamento DJe-245 DIVULG 08-
11-2019) 4. ADC 44, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado
em 07/11/2019, PROCESSO ELETRÔNICO, Ata de Julgamento DJe-245 DIVULG
08-11-2019) 5. ADC 54, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado
em 07/11/2019, PROCESSO ELETRÔNICO, Ata de Julgamento DJe-245 DIVULG
08-11-2019) 6. CAMPOS, Ricardo e LEITE, Alaor. Limites ao abuso de autoridade no
direito alemão, disponível em [www.conjur.com.br/2019-set-14/opiniao-limites-abuso-
autoridade-direito-alemao-parte], acessado em 15/12/2019.
7. (ADPF 395, Relator(a) Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em
14/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-119 DIVULG 14/06/2018 PUBLIC
15/06/2018) 8. (ADPF 444, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno,
julgado em 14/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-107 DIVULG 21-05-2019
PUBLIC 22-05-2019) 9. Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o
interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser
realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença. (Vide ADPF 395)
(Vide ADPF 444) Parágrafo único. O mandado conterá, além da ordem de condução,
os requisitos mencionados no art. 352, no que lhe for aplicável.
10. 1. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Constitucional. Processo
Penal. Direito à não autoincriminação. Direito ao tempo necessário à preparação da
defesa. Direito à liberdade de locomoção. Direito à presunção de não culpabilidade. 2.
Agravo Regimental contra decisão liminar. Apresentação da decisão, de imediato,
para referendo pelo Tribunal. Cognição completa da causa com a inclusão em pauta.
Agravo prejudicado. 3. Cabimento da ADPF. Objeto: ato normativo pré-
constitucional e conjunto de decisões judiciais. Princípio da subsidiariedade (art. 4o,
§1o, da Lei no 9.882/99): ausência de instrumento de controle objetivo de
constitucionalidade apto a tutelar a situação. Alegação de falta de documento
indispensável à propositura da ação, tendo em vista que a petição inicial não se fez
acompanhar de cópia do dispositivo impugnado do Código de Processo Penal. Art. 3o,
parágrafo único, da Lei 9.882/99. Precedentes desta Corte no sentido de dispensar a
prova do direito, quando “transcrito literalmente o texto legal impugnado” e não
houver dúvida relevante quanto ao seu teor ou vigência – ADI 1.991, Rel. Min. Eros
Grau, julgada em 3.11.2004. A lei da ADPF deve ser lida em conjunto com o art. 376
do CPC, que confere ao alegante o ônus de provar o direito municipal, estadual,
estrangeiro ou consuetudinário, se o juiz determinar. Contrario sensu, se impugnada
lei federal, a prova do direito é desnecessária. Preliminar rejeitada. Ação conhecida. 4.
Presunção de não culpabilidade. A condução coercitiva representa restrição
temporária da liberdade de locomoção mediante condução sob custódia por forças
policiais, em vias públicas, não sendo tratamento normalmente aplicado a pessoas
inocentes. Violação. 5. Dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, da CF/88). O
indivíduo deve ser reconhecido como um membro da sociedade dotado de valor
intrínseco, em condições de igualdade e com direitos iguais. Tornar o ser humano
mero objeto no Estado, consequentemente, contraria a dignidade humana (NETO,
João Costa. Dignidade Humana: São Paulo, Saraiva, 2014. p. 84). Na condução
coercitiva, resta evidente que o investigado é conduzido para demonstrar sua
submissão à força, o que desrespeita a dignidade da pessoa humana. 6. Liberdade de
locomoção. A condução coercitiva representa uma supressão absoluta, ainda que
temporária, da liberdade de locomoção. Há uma clara interferência na liberdade de
locomoção, ainda que por período breve. 7. Potencial violação ao direito à não
autoincriminação, na modalidade direito ao silêncio. Direito consistente na
prerrogativa do implicado a recursar-se a depor em investigações ou ações penais
contra si movimentadas, sem que o silêncio seja interpretado como admissão de
responsabilidade. Art. 5o, LXIII, combinado com os arts. 1o, III; 5o, LIV, LV e LVII.
O direito ao silêncio e o direito a ser advertido quanto ao seu exercício são previstos
na legislação e aplicáveis à ação penal e ao interrogatório policial, tanto ao indivíduo
preso quanto ao solto – art. 6o, V, e art. 186 do CPP. O conduzido é assistido pelo
direito ao silêncio e pelo direito à respectiva advertência. Também é assistido pelo
direito a fazer-se aconselhar por seu advogado. 8. Potencial violação à presunção de
não culpabilidade. Aspecto relevante ao caso é a vedação de tratar pessoas não
condenadas como culpadas – art. 5o, LVII. A restrição temporária da liberdade e a
condução sob custódia por forças policiais em vias públicas não são tratamentos que
normalmente possam ser aplicados a pessoas inocentes. O investigado é claramente
tratado como culpado. 9. A legislação prevê o direito de ausência do investigado ou
acusado ao interrogatório. O direito de ausência, por sua vez, afasta a possibilidade de
condução coercitiva. 10. Arguição julgada procedente, para declarar a
incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados
ou de réus para interrogatório, tendo em vista que o imputado não é legalmente
obrigado a participar do ato, e pronunciar a não recepção da expressão “para o
interrogatório”, constante do art. 260 do CPP.
(ADPF 444, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em
14/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-107 DIVULG 21-05-2019 PUBLIC
22-05-2019) 11. Informativo STF 639: “A 1a Turma denegou, por maioria, habeas
corpus impetrado em favor de paciente que fora conduzido à presença de autoridade
policial, para ser inquirido sobre fato criminoso, sem ordem judicial escrita ou
situação de flagrância, e mantido custodiado em dependência policial até a decretação
de sua prisão temporária por autoridade competente. A impetração argumentava que
houvera constrangimento ilegal na fase inquisitiva, bem como nulidades no curso da
ação penal. Em consequência, requeria o trancamento desta. Verificou-se, da leitura
dos autos, que esposa de vítima de latrocínio marcara encontro com o paciente, o qual
estaria na posse de cheque que desaparecera do escritório da vítima no dia do crime.
A viúva, então, solicitara a presença de policial para acompanhar a conversa e, dessa
forma, eventualmente, chegar-se à autoria do crime investigado. Ante as divergências
entre as versões apresentadas por aquela e pelo paciente, durante o diálogo, todos
foram conduzidos à delegacia para prestar esclarecimentos. Neste momento, fora
confessado o delito. Assentou-se que a própria Constituição asseguraria, em seu art.
144, § 4o, às polícias civis, dirigidas por delegados de carreira, as funções de polícia
judiciária e a apuração de infrações penais. O art. 6o, II a VI, do CPP, por sua vez,
estabeleceria as providências a serem tomadas pelas autoridades referidas quando
tivessem conhecimento da ocorrência de um delito. Assim, asseverou-se ser possível à
polícia, autonomamente, buscar a elucidação de crime, sobretudo nas circunstâncias
descritas. Enfatizou-se, ainda, que os agentes policiais, sob o comando de autoridade
competente (CPP, art. 4o), possuiriam legitimidade para tomar todas as providências
necessárias, incluindo-se aí a condução de pessoas para prestar esclarecimentos,
resguardadas as garantias legais e constitucionais dos conduzidos. Observou-se que
seria desnecessária a invocação da teoria dos poderes implícitos”.
HC 107644/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 6.9.2011. (HC-107644) 12. ROXIN,
Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos de la estrutura de la
teoria del delito. Madrid: Civitas, 1997. p. 291, Tradução livre para o português.
13. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 17. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2017, p. 1.574
14. Discorda-se, portanto, da posição de Gabriela Marques e Ivan Marques (A nova Lei de
Abuso de Autoridade. Lei 13.869/2019 – Comentada artigo por artigo. São Paulo: RT,
2019, p. 91) que consideram que “o crime somente pode ser praticado por agente
público responsável pela colheita do depoimento de pessoa que deve resguardar
sigilo”.
15. O CP, ao tipificar o crime de violação de segredo profissional, prevê: “Art. 154 –
Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função,
ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”.
16. Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, v. V, 1945, p.
244.
17. Hungria, Comentários…, v. V, p. 244.
18. Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal. Parte Especial. 8. ed., Rio de Janeiro:
Forense, 1986, v. I, p. 245) explica que, no tipo do art. 154 do CP, “a inclusão, na
definição legal, da palavra ‘ministério’ (que não havia no código anterior), visou
espancar as dúvidas sobre o segredo do confessionário”.
19. Hungria, Comentários…, v. V, p. 245.
20. O dever de sigilo fiscal é previsto no Código Tributário Nacional, no art. 198, caput,
alterado pela Lei Complementar no 104/2001, que vedada a divulgação, por parte da
Fazenda Pública, de informações fiscais dos contribuintes: “Art. 198. Sem prejuízo do
disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública
ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação
econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o
estado de seus negócios ou atividades”. (destaquei) 21. Com relação ao chamado
“sigilo bancário”, têm o dever de preservá-lo as instituições bancárias em sentido
estrito, as instituições financeiras, públicas e privadas, em geral, bem como outras
entidades que se subordinam à regulamentação legal do Sistema Financeiro Nacional.
A Lei Complementar n.o 105/2001, que dispôs sobre o sigilo das operações de
instituições financeiras, prevê, em seu art. 1o, caput, que: “As instituições financeiras
conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados”.
(destaquei) 22. O Código de Direito Canônico, que regula a atividade da Igreja
Católica Romana, ao disciplinar o ministro no sacramento da penitência, no cânon
983, § 1o, estabelece que: “O sigilo sacramental é inviolável; pelo que o confessor não
pode denunciar o penitente nem por palavras nem por qualquer outro modo nem por
causa alguma” (destaquei). E, o parágrafo § 2o prevê a seguinte norma de extensão: “§
2o. Estão também obrigados a guardar segredo o intérprete, se o houver, e todos os
outros a quem tiver chegado, por qualquer modo, o conhecimento dos pecados
manifestados em confissão”.
23. A Lei no 8.906/1994 – Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil –,
no art. 7o, inciso XIX, prevê, entre os direitos do advogado: “XIX – recusar-se a
depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre
fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado
ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional”
(destaquei). Por sua vez, o Código de Ética e Disciplina da OAB, em seu art. 26,
estabelece que “ o advogado deve guardar sigilo, mesmo em depoimento judicial,
sobre o que saiba em razão de seu ofício, cabendo-lhe recusar-se a depor como
testemunha, (…) mesmo que autorizado ou solicitado pelo constituinte”. (destaquei)
24 O Código de Ética Médica, aprovado pela Resolução CFM no 1931/2009,
disciplina o sigilo profissional no Capítulo IX e estabelece, no art. 73, que é vedado
ao médico “Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua
profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do
paciente” (destaquei). E o parágrafo único do citado dispositivo estabelece que:
“Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de
conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento
como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e
declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará
impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.
25 O Código de Ética Profissional do Psicólogo, aprovado pela Resolução CFP no 010/05,
estabelece o dever de sigilo no art. 9o: “ É dever do psicólogo respeitar o sigilo
profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das
pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional”.
(destaquei) 26 O Código de Ética Odontológico, aprovado pela Resolução CFO
118/2012, no art. 5o, inc. II, estabelece que constitui direito fundamental dos
profissionais de odontologia, “guardar sigilo a respeito das informações adquiridas
no desempenho de suas funções” (destaquei). E o art. 9o, inc. VIII, prevê que:
“Constituem deveres fundamentais dos inscritos e sua violação caracteriza infração
ética: … resguardar o sigilo profissional” (destaquei) 27. A Constituição, no art. 5o,
caput, inc. XIV, prevê que: “é assegurado a todos o acesso à informação e
resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. E no § 1o
do art. 220, estabelece que: “§ 1o Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir
embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de
comunicação social, observado o disposto no art. 5o, IV, V, X, XIII e XIV”. Por sua
vez, o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, no artigo 5o, estabelece que “Art.
5o. É direito do jornalista resguardar o sigilo da fonte”. (destaquei) 28. Basileu
Garcia, Violação de segredo, Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São
Paulo, v. 44, 1949, p. 51-67. p. 56.
29. Hungria, Comentários…, v. V, p. 245. No mesmo sentido: Fragoso, Lições de direito
penal. Parte Especial…, v. I, p. 244; Bitencourt, Tratado de Direito Penal. Parte
Especial…, v. 2, p. 492; Costa Júnior, Comentários…, v. 2, p. 122.
30. O CP, ao tipificar o crime de violação de segredo profissional, prevê: “Art. 154 –
Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função,
ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”.
31. Hungria, Comentários…, v. V, p. 245. No mesmo sentido: Fragoso, Lições de direito
penal. Parte Especial…., v. I, p. 245; Bitencourt, Tratado de Direito Penal. Parte
Especial…, v. 2, p. 492; Paulo José da Costa Júnior, Comentários ao Código Penal.
Parte Especial, São Paulo: Saraiva, 1988, v. 2, p. 122; Miguel Reale Júnior, Coment.
Art. 154, in Miguel Reale Júnior (Coord.), Código Penal comentado. São Paulo:
Saraiva, 2017, p. 465.
32. No Antigo Testamento, no Livro de Ester (capítulo 8, versículo 10), lê-se: “Escreveu-se
em nome do Rei Assuero e se selou com o anel do rei; as cartas foram enviadas por
intermediários dos correios montados em ginetes”. Pelo mesmo motivo, além dos reis,
cada Papa tem o seu “Anulus Piscatoris”, cuja primeira referência é do século XIII,
tendo sido utilizada pelo Papa Clemente IV, em uma carta que escreveu a seu
sobrinho. Cada Papa tem um Anel do Pescador diferente dos demais, feito de ouro
maciço, e que era usado como selo. Mesmo atualmente sendo pouco utilizado para
tanto, quando o Sumo Pontífice falece, o Camerlengo declara: “Vere Papa mortuus
est”, retira-lhe o anel, o destrói e encaminha seus pedaços para a fundição do anel do
novo Papa.
33. Nesse sentido: Igor Pereira Pinheiro; André Clarck Nunes Cavalcante; Emerson Castelo
Branco. Nova Lei do Abuso de Autoridade – Comentada artigo por artigo. Leme: JH
Mizuno, 2020, p. 100.
34. STF, RHC n. 122.279/RJ, 2a Turma, relator Ministro Gilmar Mendes, j. 12.08.2014, v.
u.
35. Gustavo Henrique Badaró, Processo Penal, 7. ed. São Paulo: RT, 2019, p. 454.
36. No interrogatório de qualificação, o acusado será perguntado sobre: (1) a residência; (2)
meios de vida ou profissão; (3) oportunidades sociais; (4) lugar onde exerce a sua
atividade; (5) vida pregressa, notadamente se foi preso ou processado alguma vez e,
em caso afirmativo, qual o juízo do processo; (6) se houve suspensão condicional ou
condenação, qual a pena imposta, se a cumpriu; (7) outros dados familiares e sociais.
37. No interrogatório de mérito, o acusado será indagado sobre: “I – ser verdadeira a
acusação que lhe é feita; II – não sendo verdadeira a acusação, se tem algum motivo
particular a que atribuí-la, se conhece a pessoa ou pessoas a quem deva ser imputada a
prática do crime, e quais sejam, e se com elas esteve antes da prática da infração ou
depois dela; III – onde estava ao tempo em que foi cometida a infração e se teve
notícia desta; IV – as provas já apuradas; V – se conhece as vítimas e testemunhas já
inquiridas ou por inquirir, e desde quando, e se tem o que alegar contra elas; VI – se
conhece o instrumento com que foi praticada a infração, ou qualquer objeto que com
esta se relacione e tenha sido apreendido; VII – todos os demais fatos e pormenores
que conduzam à elucidação dos antecedentes e circunstâncias da infração; VIII – se
tem algo mais a alegar em sua defesa.” Obviamente, não são estas as únicas perguntas
que podem ser feitas pelo juiz, que poderá formular ao acusado quaisquer perguntas
que considere relevantes para a busca da verdade.
38. Rogério Greco; Rogério Sanches Cunha, Abuso de Autoridade. Lei 13.869/2019.
Comentada Artigo por Artigo. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019, p. 145.
39. Eduardo Espínola Filho, Código de Processo Penal brasileiro anotado. 6. ed. Rio de
Janeiro: Borsoi, 1965, v. 3, p. 28.
40. De se ressaltar, contudo, que, no caso de prisão em flagrante, se o investigado não
comunicar à autoridade policial que possui defensor, dentro de 24 horas deverá ser
remetida à Defensoria Pública uma cópia integral do auto de prisão em flagrante
(CPP, art. 306, § 1.o, do CPP). A Lei 11.449/2007, que alterou a redação ao citado
dispositivo, foi a primeira a impor a defesa técnica desde o inquérito policial, ainda
que limitada ao caso em que a persecução penal se inicie por prisão em flagrante.
41. Se a falsa identidade se referir à condição de funcionário público, poderá responder
pela contravenção penal prevista no art. 45 ou no art. 46, conforme o caso.
42. O CPP usa o termo “captura” como o ato de deter a pessoa, depois d a expedição do
mandado de prisão: “Art. 299. A captura poderá ser requisitada, à vista de mandado
judicial, por qualquer meio de comunicação…”
43. Para Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal. Parte Especial. 3. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1981, v. II, p. 38) “Constituem identidade todos os elementos de
identificação civil da pessoa, ou seja, o seu estado civil (idade, filiação, matrimônio,
nacionalidade, etc.) e seu estado social (profissão ou qualidade pessoal)” (destaques
no original). No mesmo sentido: Edgard Magalhães Noronha, Direito Penal. 17. ed.
São Paulo: Saraiva, 1986, v. 4, p. 184. Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito
Penal. Parte Especial. 5. ed. São Paulo: RT, 2011, v. 4, p. 481; Luiz Regis Prado,
Tratado de Direito Penal. Parte Especial. São Paulo: RT. 2014, v. 6, p. 465. Em
sentido mais restrito, considerando somente os elementos referentes ao estado civil:
Celso Delmanto et al. Código Penal Comentado, 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p.
912.
44. Igor Pereira Pinheiro; André Clarck Nunes Cavalcante; Emerson Castelo Branco, Nova
Lei do Abuso de Autoridade – Comentada artigo por artigo. Leme: JH Mizuno, 2020,
p. 102.
45. No mesmo sentido, em relação ao crime do art. 307 do CP: Prado, Tratado…, v. 6, p.
465; Mariângela Gama de Magalhães Gomes, Comentários ao Art. 307, in Miguel
Reale Júnior (Coord.), Código Penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 895.
46. Nesse sentido: Rogério Greco; Rogério Sanches Cunha, Abuso de Autoridade. Lei
13.869/2019. Comentada Artigo por Artigo. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019, p. 154.
No mesmo sentido, parece ser o posicionamento de Igor Pereira Pinheiro; André
Clarck Nunes Cavalcante; Emerson Castelo Branco (Nova Lei do Abuso de
Autoridade – Comentada artigo por artigo. Leme: JH Mizuno, 2020, p. 102) afirmam
que haverá identificação falsa caso o responsável pela prisão “utilize indevidamente
distintivo ou insígnia de força policial a que não pertence”. Em relação ao crime de
falsa identidade do art. 307 do CP, Paulo José da Costa Júnior (Comentários ao
Código Penal. Parte Especial, São Paulo: Saraiva, 1988, v. 3, p. 418) afirma que há
dois tipos de sinais pessoais: os de identidade e “os de qualidade” nos quais inclui “o
título profissional” ou as “emblemáticas” como divisas, distintivos e condecorações. E
dá como exemplo de falsa identidade: “aquele que se intitula falsamente oficial do
exército, com o intuito de influir no espírito do guarda que o multava por infração de
trânsito”. Também para Bento de Faria (Código Penal Brasileiro Comentado. 2. ed.,
Rio de Janeiro: Record, 1959, v. VII, p. 73) “arrogar-se qualidade funcional que já
não tem, constitui crime de falsa identidade, quando é invocada para obter vantagem”.
47. Pinheiro; Cavalcante; Branco, Nova Lei do Abuso de Autoridade…, p. 102.
48. No sentido de ser possível a tentativa, “somente na execução por escrito”, cf.: Greco;
Cunha, Abuso de Autoridade…, p. 155.
49. Se a autoridade tiver dúvidas sobre a identidade do executor da prisão, “poderão pôr em
custódia o réu, até que fique esclarecida a dúvida” (CPP, art. 289-A, § 5o, c.c. art. 290,
§ 2o).
50. O § 2o do art. 306 prevê que, no prazo de 24 horas, depois d a realização da prisão,
“será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade,
com o motivo da prisão, o nome do condutor e os das testemunhas”. Na nota de culpa,
consta a identificação do condutor, responsável pela captura do flagranciado. Todavia,
a elaboração da nota de culpa não depende de fornecimento específico de dados de
identificação, o que já terá ocorrido, previamente, quando da lavratura do auto de
prisão em flagrante, com a qualificação do condutor.
51. A Lei Complementar no 80/94 estabelece as garantias e prerrogativas dos Defensores
Públicos em seu artigo 44, assegurando no inciso VII o direito de “comunicar-se,
pessoal e reservadamente, com seus assistidos, ainda quando esses se acharem presos
ou detidos, mesmo incomunicáveis, tendo livre ingresso em estabelecimentos
policiais, prisionais e de internação coletiva, independentemente de prévio
agendamento.” (Redação dada pela Lei Complementar no 132, de 2009) 52. Art. 7o, §
6o. Presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de
advogado, a autoridade judiciária competente poderá decretar a quebra da
inviolabilidade de que trata o inciso II do caput deste artigo, em decisão motivada,
expedindo mandado de busca e apreensão, específico e pormenorizado, a ser
cumprido na presença de representante da OAB, sendo, em qualquer hipótese, vedada
a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do
advogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham
informações sobre clientes.
53. Art. 185, § 5o Em qualquer modalidade de interrogatório, o juiz garantirá ao réu o
direito de entrevista prévia e reservada com o seu defensor; se realizado por
videoconferência, fica também garantido o acesso a canais telefônicos reservados para
comunicação entre o defensor que esteja no presídio e o advogado presente na sala de
audiência do Fórum, e entre este e o preso.
54. “No freemen shall be taken or imprisoned or disseised or exiled or in any way
destroyed, nor will we go upon him nor send upon him, except by the lawful judgment
of his peers or by the law of the land”.
55. “Artigo 7o – Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados
pela Lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem,
executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser castigados; mas
qualquer cidadão convocado ou detido em virtude da Lei deve obedecer
imediatamente, senão torna-se culpado de resistência.”
56. “Amendment V
No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless
on a presentment or indictment of a Grand Jury, except in cases arising in the land or
naval forces, or in the Militia, when in actual service in time of War or public danger;
nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life
or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself,
nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall
private property be taken for public use, without just compensation”.
57. CF, art. 5o, LVI: são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.
58. CF, art. 5o, LIV: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal.
59. Lei no 9.455/97, art. 1o. Constitui crime de tortura: I – constranger alguém com
emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental.
[…] Pena – reclusão, de dois a oito anos.
60. Processo Penal. 31a ed. São Paulo: Saraiva, 2009, I/230.
61. O indiciamento como ato de polícia judiciária, in: “Obra em processo penal”. São
Paulo: Singular, 2018, p. 163.
62. Emergência e defesa dos direitos fundamentais, em Revista Brasileira de Ciências
Criminais, n. 25, jan./mar. 1999, p. 69/70.
63. Apud: Luiz Carlos Fontes de Alencar, “Liberdade: teorias e lutas”, Brasília, ed. Brasília
Jurídica, 2000, p. 57.
64. § 1o. As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando
praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar
a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. § 2o. A
divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura
abuso de autoridade.
65. Processo Penal. 3a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 112.
66. Sobre o tema da proteção insuficiente e proibição de excesso, vide o RE 763.667/CE-
AgRg, rel. Min. Celso de Mello; DJe 13/12/2013.
67. Comentários ao Código de Processo Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1945, V, p. 567.
68. Justa causa para a ação penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 19.
69. Maria Thereza de Assis Moura, Justa causa para a ação penal …, p. 222.
70. Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero. Código de
Processo Civil Comentado. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 194.
71. Código de Processo Penal Comentado, Coord. Antonio Magalhães Gomes Filho,
Alberto Zacharias Toron e Gustavo Henrique Badaró. 2a ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2019, p. 732.
72. Art. 7o, § 11: “No caso previsto no inciso XIV, a autoridade competente poderá
delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em
andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de
comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências”.
73. Art. 44. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública da União: VIII –
examinar, em qualquer repartição pública, autos de flagrantes, inquéritos e processos,
assegurada a obtenção de cópias e podendo tomar apontamentos (Redação dada pela
Lei Complementar no 132, de 2009).
74. Nesse sentido, a previsão do art. 7o, § 10, da Lei no 8.906/94: “Nos autos sujeitos a
sigilo, deve o advogado apresentar procuração para o exercício dos direitos de que
trata o inciso XIV”.
75. Art. 854. Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou em aplicação
financeira, o juiz, a requerimento do exequente, sem dar ciência prévia do ato ao
executado, determinará às instituições financeiras, por meio de sistema eletrônico
gerido pela autoridade supervisora do sistema financeiro nacional, que torne
indisponíveis ativos financeiros existentes em nome do executado, limitando-se a
indisponibilidade ao valor indicado na execução. § 1o No prazo de 24 (vinte e quatro)
horas a contar da resposta, de ofício, o juiz determinará o cancelamento de eventual
indisponibilidade excessiva, o que deverá ser cumprido pela instituição financeira em
igual prazo. § 2o Tornados indisponíveis os ativos financeiros do executado, este será
intimado na pessoa de seu advogado ou, não o tendo, pessoalmente. § 3o Incumbe ao
executado, no prazo de 5 (cinco) dias, comprovar que: I – as quantias tornadas
indisponíveis são impenhoráveis; II – ainda remanesce indisponibilidade excessiva de
ativos financeiros. § 4o Acolhida qualquer das arguições dos incisos I e II do § 3o, o
juiz determinará o cancelamento de eventual indisponibilidade irregular ou excessiva,
a ser cumprido pela instituição financeira em 24 (vinte e quatro) horas. § 5o Rejeitada
ou não apresentada a manifestação do executado, converter-se-á a indisponibilidade
em penhora, sem necessidade de lavratura de termo, devendo o juiz da execução
determinar à instituição financeira depositária que, no prazo de 24 (vinte e quatro)
horas, transfira o montante indisponível para conta vinculada ao juízo da execução. §
6o Realizado o pagamento da dívida por outro meio, o juiz determinará,
imediatamente, por sistema eletrônico gerido pela autoridade supervisora do sistema
financeiro nacional, a notificação da instituição financeira para que, em até 24 (vinte e
quatro) horas, cancele a indisponibilidade. § 7o As transmissões das ordens de
indisponibilidade, de seu cancelamento e de determinação de penhora previstas neste
artigo far-se-ão por meio de sistema eletrônico gerido pela autoridade supervisora do
sistema financeiro nacional.
76. Claus Roxin, Derecho Penal. Parte General. Trad. De Diego-Manuel Luzón Peña,
Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Madrid: Civitas, 2008,
p. 333, n. 126.
77. Caso se considere que se trata de decisão definitiva ou com força de definitiva, o prazo
será de 10 dias (CPP, art. 800, caput, I). Para uma análise do conceito de decisões
definitivas ou com força de definitivas, cf.: Gustavo Henrique Badaró, Manual dos
Recursos Penais. 3 ed. São Paulo: RT, 2018, p. 245-248.
Capítulo VII
Do procedimento

MARTA SAAD

Art. 39. Aplicam-se ao processo e ao julgamento dos


delitos previstos nesta Lei, no que couber, as disposições
do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código
de Processo Penal), e da Lei no 9.099, de 26 de setembro
de 1995.

BIBLIOGRAFIA:
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 7. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2019; GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães;
SCARANCE FERNANDES, Antonio; GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais
Criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. 3 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999; SCARANCE FERNANDES, Antonio. Teoria geral do procedimento
e o procedimento no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

COMENTÁRIOS:
1. Noções introdutórias. A revogada Lei n. 4.898/65 estabelecia
procedimento especial para o processo de responsabilidade penal em caso de
abuso de autoridade. Já a Lei n. 13.869/2019, no Capítulo VII, intitulado “Do
procedimento”, não prevê procedimento especial para o processamento e
julgamento dos crimes de abuso de autoridade, mas remete a regras
procedimentais conhecidas: estabelece, no artigo 39, que se aplicam ao
processo e julgamento de tais delitos, no que couber, as disposições do
Código de Processo Penal e da Lei n. 9.099/95.
No processo penal brasileiro, a ação penal de conhecimento de natureza
condenatória pode ser processada mediante procedimentos distintos,
previstos no Código de Processo Penal e em leis especiais em razão da
quantidade de pena cominada, do crime a ser apurado ou do sujeito
investigado.
O Código de Processo Penal estabelece, no artigo 394, caput, que o
procedimento será comum ou especial. Prevê que o procedimento comum
poderá ser ordinário, sumário ou sumaríssimo (artigo 394, § 1o). Aplica-se o
procedimento comum ordinário para os crimes cuja sanção máxima cominada
for igual ou superior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade (artigo
394, § 1o, inciso I); sumário, quando tiver por objeto crime cuja sanção
máxima cominada seja inferior a 4 (quatro) anos de pena privativa de
liberdade (artigo 394, § 1o, inciso II) e sumaríssimo, para as infrações penais
de menor potencial ofensivo (artigo 394, § 1o, inciso III), ou seja, crimes ou
contravenções cuja pena máxima cominada seja igual ou inferior a 2 (dois)
anos, sendo o procedimento sumaríssimo disciplinado na Lei n. 9.099/95.
Entre os procedimentos especiais, o Código de Processo Penal prevê, nos
artigos 513 a 518, procedimento especial dos crimes de responsabilidade dos
funcionários públicos.
Cabe, assim, verificar a qual (ou quais) procedimentos o art. 39 da Lei n.
13.869/2019 remete para o processamento e julgamento dos crimes de abuso
de autoridade, à luz da disciplina do Código de Processo Penal e da Lei n.
9.099/95, verificando a pena cominada e a especificidade dos delitos.
Em relação à pena privativa de liberdade prevista em lei, critério
norteador do procedimento comum, os crimes da Lei n. 13.869/2019
apresentam punição de duas ordens distintas: (i) crimes cuja sanção máxima
cominada não excede 2 (dois) anos, previstos nos artigos 12, 16, 18, 20, 27,
29, 31, 32, 33, 37, 38 e 43 da Lei; e (ii) crimes cuja sanção máxima cominada
é de 4 (quatro) anos, previstos nos artigos 9o, 10, 13, 15, 19, 21, 22, 23, 24,
25, 28, 30, 36 e 41 da Lei n. 13.869/2019.
Para os crimes cuja pena máxima não excede 2 (dois) anos, o
procedimento aplicável é o sumaríssimo (artigo 394, § 1o, inciso III, do
Código de Processo Penal), disciplinado na Lei n. 9.099/95.
Para os demais crimes, cuja pena máxima é de 4 (quatro) anos, poderia
haver dúvida sobre a aplicação do procedimento comum ordinário, em razão
da pena cominada, ou a incidência do procedimento especial previsto no
artigo 513 e seguintes do Código de Processo Penal, por se tratar de crimes
funcionais.
Na vigência da Lei n. 4.898/65, a jurisprudência entendia que não se
aplicava a disciplina do procedimento de crimes funcionais previsto no
Código de Processo Penal para o processamento dos casos de abuso de
autoridade – mas unicamente porque a Lei n. 4.898/65, reguladora de tais
delitos, previa procedimento específico a ser observado (STJ, RHC n. 9.885,
Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ de 17.09.2001; TRF4, ACR n.
2000.04.01.114717-9, Rel. Des. Élcio Pinheiro de Castro, DJ de 22.04.2002).
Agora, a nova Lei de Abuso de Autoridade não prevê procedimento
específico e manda observar o Código de Processo Penal e a Lei n. 9.099/95,
no que couber. Delitos de abuso de autoridade somente podem ser cometidos
por funcionários públicos no exercício da função. Prevendo o Código, nos
artigos 513 a 518, procedimento especial vinculado ao exercício de função
pública pelo autor, deve-se entendê-lo aplicável, pelo critério de
especialidade da norma, aos delitos de abuso de autoridade. Por tal razão,
para os delitos não abrangidos pela Lei n. 9.099/95, deve ser aplicado o
procedimento próprio dos delitos funcionais, previsto nos artigos 513 a 518
do Código de Processo Penal.
2. Procedimento sumaríssimo nos juizados especiais criminais. Os
delitos previstos nos artigos 12, 16, 18, 20, 27, 29, 31, 32, 33, 37, 38 e 43 da
Lei n. 13.869/2019 têm pena máxima cominada que não excede 2 (dois) anos.
Aplica-se ao seu processamento e julgamento, portanto, o procedimento
sumaríssimo, por se tratar de infração de menor potencial ofensivo.
O processo perante o Juizado Especial é orientado pelos critérios da
oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade.
Objetiva, sempre que possível, a reparação do dano causado à vítima e
aplicação consensual de pena não privativa de liberdade, segundo o que
estabelece o artigo 62 da Lei n. 9.099/95.
Na fase preliminar, a Lei n. 9.099/95 estabelece que, ocorrendo infração
de menor potencial ofensivo, é lavrado termo circunstanciado pela autoridade
policial (artigo 69, caput, da Lei n. 9.099/95). Prevê a Lei n. 9.099/95 que a
autoridade encaminhará imediatamente o termo circunstanciado ao Juizado,
com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames
periciais necessários. Tal encaminhamento é raro e, na prática, as partes são
liberadas pela autoridade e depois intimadas para comparecimento à
audiência preliminar.
Em caso de infração de menor potencial ofensivo, não se lavra auto de
prisão em flagrante nem se exige fiança se o autor do fato for imediatamente
encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer
(artigo 69, parágrafo único, da Lei n. 9.099/95).
Nos termos do artigo 72 da Lei n. 9.099/95, a audiência preliminar, com a
presença da vítima e autor do fato, inicia-se com a tentativa de composição
civil entre o autor do fato e a vítima e, se possível, o responsável civil,
acompanhados por seus advogados.
Nos casos de ação penal de iniciativa pública ou de iniciativa privada
dependente de representação, celebrada composição civil, homologada pelo
Juízo, haverá renúncia tácita ao direito de queixa e representação (artigo 74,
parágrafo único, da Lei n. 9.099/95), sendo declarada extinta a punibilidade
do autor do fato (artigo 107, inciso V, do Código Penal) e encerrada a
audiência.
Nos casos de ação penal de iniciativa pública condicionada, se não
houver composição civil, abre-se a oportunidade para que a vítima ofereça
representação contra o autor do fato (artigo 75, caput, da Lei n. 9.099/95). É
possível que a vítima já tenha ofertado a representação anteriormente ou que
deixe de oferecer a representação em audiência, podendo fazê-lo
posteriormente, dentro do prazo decadencial de 6 (seis) meses (artigo 75,
parágrafo único, da Lei n. 9.099/95).
Se a vítima, porém, renunciar ao direito de representação, será declarada
extinta a punibilidade e encerrada a audiência.
Assim, em caso de ação penal de iniciativa pública condicionada, se não
houver composição civil e se tiver sido oferecida representação, o Ministério
Público oferecerá proposta de transação penal. Em caso de ação penal de
iniciativa pública, havendo ou não composição civil, o Ministério Público
deverá fazer proposta de transação penal.
Em ambos os casos, porém, a proposta de transação somente deverá ser
oferecida se houver elementos para o oferecimento de denúncia. Se não
houver elementos para oferecimento de denúncia, o Ministério Público, em
vez de oferecer transação penal, deverá pedir o arquivamento do termo
circunstanciado (artigo 76 da Lei n. 9.099/95).
Se a proposta de transação penal for aceita, será submetida à apreciação
do Juiz (artigo 76, § 3o, da Lei n. 9.099/95), que aplicará a pena restritiva de
direitos ou multa (artigo 76, § 4o, da Lei n. 9.099/95).
Se a proposta de transação penal não for aceita, o Ministério Público
deverá oferecer denúncia, oralmente, na própria audiência (artigo 77 da Lei n.
9.099/95). Poderá, porém, deixar de oferecer denúncia oral se a
complexidade ou circunstâncias do caso não permitirem a formulação da
denúncia (artigo 77, § 2o, da Lei n. 9.099/95), hipóteses em que os autos
serão encaminhados para o juízo comum.
Oferecida a denúncia por crime de menor potencial ofensivo, o Ministério
Público deverá também formular proposta oral de suspensão condicional do
processo, nos termos do artigo 89 da Lei n. 9.099/95.
Se o autor do fato tiver comparecido à audiência preliminar, será citado
na própria audiência (artigo 78, caput, da Lei n. 9.099/95). Não tendo
participado da audiência preliminar, será citado no Juizado ou por mandado
(artigo 78, § 1o e artigos 66 a 68 da Lei n. 9.099/95), para comparecer à
audiência de instrução e julgamento.
Na audiência de instrução e julgamento, se não tiver sido possível a
tentativa de conciliação e transação anteriormente, o juiz deverá fazer nova
tentativa no início da audiência (artigo 79 da Lei n. 9.099/95).
Aberta a audiência, a defesa será apresentada oralmente e o juízo
proferirá decisão de recebimento ou rejeição da denúncia. Recebida a
denúncia, serão ouvidas vítima e as testemunhas de acusação e de defesa e o
acusado interrogado ao fim (artigo 81, caput, da Lei n. 9.099/95).
Haverá debates orais, dando-se a palavra inicialmente ao Ministério
Público e, depois, ao defensor do acusado. Depois dos debates, o juiz deverá
proferir sentença oralmente, na própria audiência (artigo 81, caput, da Lei n.
9.099/95). A sentença não precisa de relatório, mas deverá mencionar os
elementos de convicção do Juiz (artigo 81, § 3o, da Lei n. 9.099/95).
3. Procedimento especial dos crimes praticados por funcionários
públicos. Os delitos previstos nos artigos 9o, 10, 13, 15, 19, 21, 22, 23, 24,
25, 28, 30, 36 e 41 da Lei n. 13.869/2019 têm pena máxima de 4 (quatro)
anos e, assim, estão fora da disciplina da Lei n. 9.099/95.
Aplica-se a eles, então, o procedimento especial para processamento de
crimes de responsabilidade dos funcionários públicos, previsto nos artigos
513 a 518 do Código de Processo Penal.
A particularidade desse procedimento, rotulado de especial, é a existência
de contraditório prévio ao recebimento da denúncia, previsto exatamente para
resguardar o acusado – agente público – contra acusações injustas,
infundadas e até caluniosas a que poderia ficar exposto em razão do cargo
que ocupa.
Por isso, prevê o artigo 514 do Código de Processo Penal que, “nos
crimes afiançáveis, estando a denúncia ou queixa em devida forma, o juiz
mandará autuá-la e ordenará a notificação do acusado, para responder por
escrito, dentro do prazo de 15 (quinze) dias”.
A denúncia, segundo o disposto no artigo 513, deverá estar acompanhada
de documentos e justificações que façam presumir a existência do delito.
Firmou-se entendimento jurisprudencial no sentido de que, se a acusação
estiver embasada em inquérito policial, não há necessidade de notificação do
acusado para apresentação de resposta. Esse entendimento acabou
cristalizado no verbete da Súmula n. 330 do Superior Tribunal de Justiça: “é
desnecessária a resposta preliminar de que trata o art. 514 do Código de
Processo Penal na ação penal instruída por inquérito policial”.
A premissa para tal entendimento é que, precedida por inquérito policial,
a denúncia não estaria instruída com documentos e justificações e, assim, a
resposta do acusado seria desnecessária ao devido processo de formação da
culpa, em tal momento processual. Mas o Supremo Tribunal Federal, mesmo
depois da edição da Súmula 330 do Superior Tribunal de Justiça, reconheceu
que a defesa preliminar é imprescindível, como forma de manifestação do
direito de defesa, mesmo nos casos de denúncia fundada em inquérito policial
(STF, HC n.o 85.799, Redatora para acórdão Min. Cármen Lúcia, DJe de
28.06.2007), sujeito o reconhecimento da nulidade, porém, à comprovação do
prejuízo (STF, HC n.o 111.711, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 04.12.2012;
HC n.o 120.582, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 11.03.2014; RHC n.o 122.131,
Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 16.06.2014). O Superior Tribunal de Justiça,
todavia, continua se posicionando pela desnecessidade de resposta escrita
quando a denúncia seja fundada em inquérito policial (STJ, HC n. 424.331,
Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe de 23.08.2019; HC 469.387, Rel. Min.
Reynaldo Soares da Fonseca, DJe de 13.12.2018; AgIn no AREsp 475098,
Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, Dje de 17.09.2018).
Estabelece o Código de Processo Penal que a resposta do acusado só tem
cabimento nos casos de crimes afiançáveis. Todos os crimes previstos na Lei
n. 13.869/2019 são afiançáveis.
A resposta escrita, que traduz contraditório prévio ao recebimento da
denúncia, constitui a nota da especialidade e peculiaridade desse
procedimento. Notifica–se o acusado para oferecer resposta escrita, no prazo
de 15 (quinze) dias, sendo que esse prazo poderá ser dilatado pelo juiz caso o
acusado justifique a necessidade de maior prazo para a produção de prova de
sua inocência.
Diz o Código que o acusado é notificado para apresentar resposta. Ele
somente será citado se houver posterior recebimento da denúncia, nos termos
do artigo 517 do Código de Processo Penal.
O parágrafo único do artigo 514 do Código de Processo Penal afasta a
necessidade de notificação do acusado para apresentação de resposta escrita
em duas situações: se o acusado não foi localizado ou se reside em outra
comarca, sendo–lhe então nomeado defensor a quem caberá a apresentação
de resposta à acusação. Porém, no caso de acusado residente em outra
comarca, o respeito às garantias constitucionais do contraditório e da ampla
defesa demandariam que fosse expedida carta precatória para notificação do
acusado.
A ausência de notificação do acusado para que apresente resposta escrita
constitui nulidade, mas há divergência entre tratar-se de nulidade relativa ou
absoluta. Se, porém, o acusado, devidamente notificado, deixar de apresentar
resposta escrita, o processo seguirá normalmente.
O artigo 515, caput, do Código de Processo Penal estabelece que, durante
o prazo concedido para a resposta, os autos permanecerão em cartório, onde
poderão ser examinados pelo acusado ou por seu defensor. A Lei n. 8.906/94
– Estatuto da Advocacia –, porém, confere ao advogado, nos termos do artigo
7o, inciso XV, a prerrogativa de vista dos autos fora do cartório, podendo
retirar os autos pelos prazos legais.
Na resposta escrita o acusado pode juntar documentos e justificações que
comprovem a inexistência do crime ou a improcedência da acusação. O artigo
516 do Código de Processo Penal estabelece que o juiz rejeitará a denúncia se
convencido da inexistência do crime ou da improcedência da acusação.
Caso a denúncia seja recebida, o acusado deverá então ser citado, nos
termos do artigo 517 do Código de Processo Penal. E, citado o acusado,
segue-se a partir de então o rito do procedimento comum ordinário, de acordo
com previsão expressa do artigo 518 do Código de Processo Penal.
Assim, caso recebida a denúncia, o juiz deverá então citar o acusado para
apresentar a resposta do artigo 396-A do Código de Processo Penal, ocasião
em que o acusado poderá oferecer exceções, arrolar testemunhas e requerer
diligências. Mesclam-se assim dois procedimentos, com duplicidade de atos
defensivos: em um mesmo procedimento haverá a resposta escrita do artigo
514 do Código de Processo Penal e, depois, se recebida a denúncia, a
resposta do artigo 396-A. Segue–se a partir de então o rito do procedimento
comum ordinário.
4. Procedimento especial dos crimes praticados por pessoas
detentoras de foro por prerrogativa de função. De acordo com o artigo
513 do Código de Processo Penal, o procedimento especial dos crimes
praticados por funcionários públicos será cabível para crimes “cujo processo
e julgamento competirão aos juízes de direito”.
Assim, se o acusado de cometer crime de abuso de autoridade gozar de
foro por prerrogativa de função, não se aplica o procedimento especial dos
artigos 513 e seguintes do Código de Processo Penal, mas sim o
procedimento previsto na Lei n. 8.038/1990 para os crimes de competência
originária dos Tribunais.
Segundo o assentado pelo Supremo Tribunal Federal, o foro por
prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes (i) cometidos durante o
exercício do cargo e (ii) relacionados às funções desempenhadas e, após o
final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação
para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar
ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar
outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo (STF,
AP 937 QO, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe de 11.12.2018).
Em relação ao procedimento previsto na Lei n. 8.038/1990, apresentada
a denúncia ou queixa, o acusado será notificado para apresentar resposta à
acusação no prazo de 15 (quinze) dias (artigo 4o, caput).
Se, com a resposta, forem apresentados novos documentos, será intimada
a parte contrária para sobre eles se manifestar, no prazo de 5 (cinco) dias
(artigo 5o).
A seguir, o relator pedirá dia para que o Tribunal delibere sobre o
recebimento, a rejeição da denúncia ou da queixa, ou a improcedência da
acusação, se a decisão não depender de outras provas (artigo 6o, caput).
No julgamento, será facultada sustentação oral pelo prazo de 15 (quinze)
dias, primeiro à acusação, depois à defesa (artigo 6o, § 1o).
A Lei n. 8.038/90 prevê, no artigo 7o, que, recebida a denúncia ou a
queixa, o relator designaria dia e hora para o interrogatório do acusado,
mandando-o citar e, a partir do interrogatório, o acusado teria o prazo de 5
(cinco) dias para apresentação de defesa prévia.
A Lei n. 11.719/2008, porém, alterou o Código de Processo Penal, para
prever no artigo 400 que o interrogatório é o último ato de instrução
processual, como garantia do direito de falar por último, integrante do direito
de defesa. Assim, tem-se entendido que a previsão do interrogatório como
último ato da instrução, por ser mais benéfica à defesa, deve ser aplicada às
ações penais originárias, em detrimento do disposto no artigo 7.o da Lei
8.038/1990 (STF, AP 528 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de
08.06.2011; STJ, HC n. 257.068, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura,
DJe de 30.04.2013).
Depois, a Lei n. 8.038/1990 estabelece que a instrução obedecerá, no que
couber, ao procedimento comum do Código de Processo Penal.
Finda a instrução, o Tribunal procederá ao julgamento, na forma
determinada pelo Regimento Interno, observando-se que as partes, acusação e
defesa, terão, sucessivamente nessa ordem, prazo de uma hora para
sustentação oral, assegurado ao assistente um quarto do tempo da acusação.
E, encerrados os debates, o Tribunal passará a proferir o julgamento (artigo
12).
Cumpre consignar que, para infrações de menor potencial ofensivo
imputadas a pessoas detentoras de foro por prerrogativa de função (artigos
previstos nos artigos 12, 16, 18, 20, 27, 29, 31, 32, 33, 37, 38 e 43 da Lei n.
13.869/2019), cabíveis os institutos despenalizadores da Lei n. 9.099/95,
ainda que a infração seja processada e julgada perante Tribunais (STJ, AP n.
290, Rel. Min. Felix Fischer, DJe de 26.09.2005).
Por fim, vale mencionar que, se o funcionário público cometeu o crime
no exercício da função e depois deixou o cargo, não mais gozará de foro por
prerrogativa de função e, então, o procedimento a ser aplicado, no juízo de
primeiro grau, será o procedimento especial do Código de Processo Penal.
Capítulo VIII
Disposições Finais

MARTA SAAD

Art. 40. O art. 2o da Lei no 7.960, de 21 de dezembro de


1989, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 2o
§ 4o-A O mandado de prisão conterá necessariamente o
período de duração da prisão temporária estabelecido no
caput deste artigo, bem como o dia em que o preso deverá
ser libertado.
§ 7o Decorrido o prazo contido no mandado de prisão, a
autoridade responsável pela custódia deverá,
independentemente de nova ordem da autoridade judicial,
pôr imediatamente o preso em liberdade, salvo se já tiver
sido comunicada da prorrogação da prisão temporária ou
da decretação da prisão preventiva.
§ 8o Inclui-se o dia do cumprimento do mandado de prisão
no cômputo do prazo de prisão temporária.”

BIBLIOGRAFIA:
ANDRÉ, Patrícia dos Santos. Prisão temporária: medida cautelar para crimes leves?
Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 691, maio 1993; BADARÓ, Gustavo Henrique.
Processo penal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019; FREITAS, Jayme
Walmer. Prisão temporária. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009; KAUFFMANN, Carlos.
Prisão temporária. São Paulo: Quartier Latin, 2006; LANFREDI, Luís Geraldo
Sant’Ana. Prisão temporária: análise e perspectivas de uma releitura garantista da Lei
n. 9.279, de 21 de dezembro de 1989. São Paulo: Quartier Latin, 2009; RAMOS, João
Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte:
Del Rey, 1996.
COMENTÁRIOS:
1. Noções introdutórias. A prisão temporária, prevista na Lei n.
7.960/1989, é modalidade de prisão processual, cautelar, de duração limitada
no tempo, destinada a ser utilizada na fase de investigação e evitar que o
investigado, em liberdade, possa dificultar a coleta de elementos de
informação durante a apuração de determinados crimes de maior gravidade.
A Lei n. 7.960/1989 traz as hipóteses de cabimento da prisão temporária.
Estabelece o artigo 1o que caberá prisão temporária: (i) quando
imprescindível para as investigações do inquérito policial (inciso I); (ii)
quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos
necessários ao esclarecimento de sua identidade (inciso II) e (iii) quando
houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na
legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos delitos
elencados, todos de especial gravidade (inciso III).
Em razão da excepcionalidade da prisão temporária diante da presunção
de inocência, o disposto no artigo 1o da Lei n. 7.960/1989 deve ser
interpretado restritivamente. Por isso, entende-se que a presença isolada de
qualquer dos incisos do artigo 1o da Lei n. 7.960/1989 não autoriza, por si, a
prisão temporária. A presença de um dos crimes previstos no inciso III, que
representam o fumus commissi delicti, deve estar conjugada com a hipótese
de periculum libertatis prevista no inciso I (quando a medida seja
imprescindível para as investigações do inquérito policial) ou com a hipótese
prevista no inciso II do artigo 1o (quando o indiciado não apresentar
residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de
sua identidade), a fim de permitir a prisão temporária de maneira legítima.
A prisão temporária somente pode ser decretada por ordem judicial, em
face de representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério
Público, durante a fase de investigações, na fase preliminar da persecução
penal (artigo 2o).
A Lei n. 7.960/1989 prevê, no artigo 2o, caput, que a prisão temporária
terá o prazo de 5 (cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de
extrema e comprovada necessidade. A Lei n. 8.072/1990 ampliou tais prazos
para os crimes hediondos e a eles equiparados, para 30 (trinta) dias,
prorrogáveis por mais 30 (trinta) dias. Esses são os prazos máximos de
duração da medida, nada impedindo que o juiz decrete a prisão temporária
por prazo inferior ao limite legal.
Decretada a prisão temporária, será expedido mandado de prisão, em
duas vias, uma das quais será entregue ao indiciado e servirá como nota de
culpa (artigo 2, § 4o, da Lei n. 7.960/1989).
As mudanças promovidas pela Lei de Abuso de Autoridade dizem com a
questão do prazo da prisão temporária: maiores exigências na expedição do
mandado de prisão, esgotamento do prazo e soltura e contagem do prazo de
prisão temporária.
2. Exigências do mandado de prisão. A Lei n. 13.869/2019 acrescenta o
§ 4o-A ao artigo 2o da Lei n. 7.960/89, incluindo a exigência de que o
mandado de prisão temporária contenha necessariamente o período de
duração da prisão temporária e o dia em que o preso deverá ser libertado.
A prisão temporária terá duração máxima de 5 (cinco) dias, mas nada
impede que o magistrado decrete a prisão preventiva por prazo inferior ao
fixado na lei.
A Lei de Abuso de Autoridade acrescentou a exigência de que conste do
mandado o dia em que o preso deverá ser libertado. Trata-se de regra de
difícil aplicação, porque o prazo de duração da medida só começa a fluir a
partir do momento em que há a captura do sujeito investigado, fato que, no
momento da expedição do mandado, é de ocorrência futura e incerta.
Ademais, é possível que, durante o período de vigência da prisão,
constante do mandado, a autoridade policial entenda que a prisão se tornou
desnecessária. Nesse caso, a autoridade deverá representar ao juiz que
decretou a prisão, para que revogue a prisão temporária que se tornou
desnecessária.
3. Esgotamento do prazo e soltura. A Lei n. 13.869/2019 estabelece que
decorrido o prazo contido no mandado de prisão, a autoridade responsável
pela custódia deverá, independentemente de nova ordem da autoridade
judicial, pôr imediatamente o preso em liberdade, salvo se já tiver sido
comunicada da prorrogação da prisão temporária ou da decretação da prisão
preventiva.
Expedido o mandado nos moldes do artigo 2o, § 4o-A, da Lei n. 7.960/89,
a autoridade policial não precisa aguardar nova ordem da autoridade judicial
para colocar o preso em liberdade, se já decorrido o prazo contido no
mandado. O preso deve ser colocado imediatamente em liberdade, não sendo
necessário alvará de soltura.
O sujeito apenas permanecerá preso em razão de novo título: prorrogação
da prisão temporária ou decretação de prisão preventiva.
A propósito, constitui crime de abuso de autoridade, previsto no artigo
12, parágrafo único, inciso IV, o prolongamento da execução de prisão
temporária, deixando de promover a soltura do preso quando esgotado o
prazo judicial ou legal.
4. Contagem do prazo. A Lei n. 13.869/2019 esclarece, incluindo § 8o
ao artigo 2o da Lei n. 7.960/1996, que o dia do cumprimento do mandado de
prisão é incluído no cômputo do prazo de prisão temporária.
Com efeito, o cômputo do prazo deve se dar de acordo com a regra do
artigo 10 do Código Penal, que estabelece que o dia do começo se inclui no
cômputo do prazo, contando-se os dias, meses e anos pelo calendário comum.
Assim, o prazo da prisão temporária começa a fluir do dia em que se deu
o encarceramento do investigado, encerrando-se no último minuto do quinto
dia.

JULIANO BREDA

Art. 41. O art. 10 da Lei no 9.296, de 24 de julho de 1996,


passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de
comunicações telefônicas, de informática ou telemática,
promover escuta ambiental ou quebrar segredo da
Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não
autorizados em lei:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena a autoridade
judicial que determina a execução de conduta prevista no
caput deste artigo com objetivo não autorizado em lei.”

COMENTÁRIOS:
1. Objetividade jurídica. A Lei de Abuso de Autoridade conferiu nova
redação ao crime previsto na lei que regula as interceptações telefônicas e
telemáticas e que tipifica como crime a seguinte conduta: “Art. 10. Constitui
crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou
telemática, promover escuta ambiental ou quebrar segredo da Justiça, sem
autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.”
Esse novo tipo penal, na primeira modalidade, tutela a garantia
constitucional da intimidade e privacidade dos indivíduos1, mais
especialmente o sigilo das comunicações. Na modalidade de quebra do sigilo,
o crime atenta contra administração da justiça e, também, contra a intimidade
e privacidades das pessoas interceptadas.
O Art. 5o, inc. LVI, dispõe serem “inadmissíveis, no processo, as provas
obtidas por meios ilícitos”. Por sua vez, o inciso XII da Constituição Federal
de 1988 consagrou o direito fundamental ao sigilo das comunicações
telefônicas, apenas ressalvando, em nome da relatividade de todos os direitos
fundamentais, a possibilidade de restrição de tal sigilo quando decretada a
interceptação telefônica, por ordem judicial e no âmbito de procedimento
criminal, com base no disposto em lei2.
Essa garantia constitucional conjuga-se com outro direito fundamental,
descrito no art. 5o, X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra
e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação. Até 1996, predominou o
entendimento jurisprudencial de que as interceptações telefônicas, mesmo
que decretadas por ordem judicial, eram nulas, visto que inexistia, até então,
lei específica regulando a matéria3.
Após 1996, contudo, a validade das interceptações começou a ser aceita
pelos tribunais, e isso porque o legislador, cumprindo o comando
regulamentador enunciado no inc. XII do art. 5o da Constituição Federal,
editou a Lei no 9.296/96, que estabeleceu o procedimento para a quebra dos
sigilos telefônico e telemático.
As interceptações telefônicas, telemáticas e a escuta ambiental são meios
de obtenção de prova, mas, como a utilização desses meios colide
diretamente com a privacidade do cidadão, a lei estabeleceu uma série de
requisitos para a decretação. Trata-se em verdade da concepção moderna de
que a busca da verdade, no processo penal, não pode ser obtida a qualquer
preço, mas encontra diversos limites legalmente previstos. A constituição
consagra o direito à privacidade do cidadão, assim como sua liberdade, seu
patrimônio, sua honra e tantos outros direitos individuais. Não são direitos
absolutos, pois podem ser cerceados ou restringidos, em determinadas
circunstâncias, por intermédio do devido processo legal.
Houve, portanto, com a nova redação trazida pela LAA simplesmente o
acréscimo da escuta ambiental como novo elemento modal para a realização
do crime, equiparando tal conduta à realização de interceptação telefônica ou
telemática sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Nesse aspecto, importante destacar que a Lei 13.964/19 também alterou a
Lei 9.296/96 para incluir as escutas ambientais sob sua regulamentação4.
2. Sujeito ativo. Ao contrário da regra geral dos crimes de abuso de
autoridade, essa infração penal pode ser praticada por qualquer pessoa, na
modalidade de realização de interceptações ou escuta ambiental, sem
autorização judicial, não se exigindo qualquer qualidade especial do sujeito
ativo. O crime é comum.
Em relação à quebra de sigilo de justiça, o crime é próprio, sendo
necessário que o agente tenha obtido a informação em decorrência de uma
especial relação de cargo, profissão ou função com o procedimento (inquérito
policial ou processo judicial), em que os dados sigilosos foram obtidos, seja
na qualidade de parte, procurador, agente público, seja na de funcionário de
empresa de telecomunicações, por exemplo.
Também será próprio o crime de realização de interceptação ou escuta
com objetivos não autorizados em lei, respondendo nesse caso o juiz que a
decreta ou membro do ministério público ou delegado de polícia se o
requerimento for formulado com essa intenção. É nesse exato sentido o
parágrafo único, com a redação dada pela LAA: Parágrafo único. Incorre na
mesma pena a autoridade judicial que determina a execução de conduta
prevista no caput deste artigo com objetivo não autorizado em lei.”
3. Sujeito passivo. Na primeira modalidade, a pessoa contra a qual se
dirige a interceptação ou escuta ambiental ilegal, bem como os demais
interlocutores nas comunicações.
Na modalidade de quebra do sigilo, o crime atinge a administração da
justiça, sendo o Estado o sujeito passivo e mediatamente os interlocutores das
comunicações violadas.
4. Tipo objetivo. O verbo realizar, aqui compreendido de modo global
com a ação incriminada, significa promover indevidamente a captação de
comunicações de terceiros, telefônicas, de informática ou telemática, em
regra mediante o uso de equipamento ou recurso tecnológico especialmente
destinado a esse fim. Exige a interferência de um agente estranho, que não é
participante da comunicação interceptada.
Não há dúvidas maiores a respeito do conceito de comunicações
telefônicas. A expressão “comunicações telemáticas” compreende os dados
oriundos da fusão entre instrumentos de telecomunicação e informática.
Inclui, por isso, a correspondência eletrônica, ou seja, e-mails, transmissão de
dados por computador, seja a comunicação escrita (via sistema de
transmissão de mensagens) ou oral (via sistema de áudio ou
videoconferência), seja pelas chamadas mensagens de texto via celular.
O núcleo típico promover, relacionado à escuta ambiental, tem a mesma
compreensão que o verbo realizar, significando a implementação ou
utilização de equipamento destinado à captação de áudio entre interlocutores.
Nas duas situações, se a captação é feita pelo próprio interlocutor, o
crime não se caracteriza, pois é pacífico o entendimento da jurisprudência da
desnecessidade de controle jurisdicional prévio nesse caso.
O verbo “quebrar” tem o sentido de violar, transgredir a regra do art. 1o
da Lei no 9.296/96,5 que impõe segredo de justiça a todo procedimento em
que se utilizam os meios de obtenção de prova, em razão da proteção da
intimidade dos indivíduos, revelando a terceiros ou publicamente o conteúdo
confidencial das comunicações interceptadas.
A expressão “sem autorização judicial” refere-se à exigência de reserva
de jurisdição, imposta pela Constituição, em seu art. 5o, inciso XII, bem
como pelas regras expressas da lei de interceptação telefônica e telemática.
O crime pode ser cometido, ainda, se os meios obtenção de prova forem
utilizados “com objetivos não autorizados em lei”, ou seja, em
descumprimento às finalidades descritas na Lei no 9.296/966.
5. Tipo subjetivo. O crime é doloso (genérico ou mesmo eventual), não
se exigindo qualquer especial fim de agir na conduta. Não há possibilidade de
configuração da infração penal na modalidade culposa.
6. Consumação e tentativa. Na realização de interceptação telefônica ou
escuta ambiental sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados,
o crime é instantâneo e se consuma no momento em que implementada a
captação indevida da comunicação de terceiros. Não se exige que as
comunicações sejam relevantes ou relacionadas a fatos investigados. A
interferência ilegal sobre a livre comunicação dos indivíduos é suficiente para
a consumação do crime, independentemente da natureza dos diálogos ou
mensagens obtidas.
No crime de quebra de segredo de justiça, o crime se consuma com a
revelação pública ou a terceiros das comunicações confidenciais.
7. Pena. Não houve alteração na pena prevista pela Lei no 9.296/96. A
sanção penal é de reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, admitindo-
se, portanto, o novo benefício do acordo de não persecução penal.

GUSTAVO BADARÓ

Art. 42. A Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da


Criança e do Adolescente), passa a vigorar acrescida do
seguinte art. 227-A:
“Art. 227-A Os efeitos da condenação prevista no inciso I
do caput do art. 92 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 (Código Penal), para os crimes
previstos nesta Lei, praticados por servidores públicos
com abuso de autoridade, são condicionados à ocorrência
de reincidência.
Parágrafo único. A perda do cargo, do mandato ou da
função, nesse caso, independerá da pena aplicada na
reincidência.”

COMENTÁRIOS:
A Lei no 13.869/2019 estabeleceu regras especiais, no artigo 4o, quanto
aos efeitos civis da condenação penal. Com isso, apartou-se das disposições
gerais do inciso I do caput do art. 92 do Código Penal.
No regime do Código Penal, o efeito civil da perda do cargo, função
pública ou mandato eletivo, não está condicionado à reincidência do agente.
Além disso, sua incidência dependerá da pena aplicada: se crime foi praticado
com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública,
desde que a pena aplicada privativa de liberdade seja igual ou superior a 1
ano (art. 92, caput, inc. I, a); ou nos demais casos, se for superior a 4 anos
(art. 92, caput, inc. I, b). Já na Lei de Abuso de Autoridade, o efeito civil da
perda do cargo, do mandato ou da função pública, está condicionado à
ocorrência de reincidência (art. 4o, caput, inc. III, c.c. parágrafo único).
Acontece que, no Estatuto da Criança e do Adolescente, há infrações
penais praticadas contra a criança ou o adolescente que implicam a prática de
atos com abuso de poder por agente público, como o delito do art. 232,
consistente em “Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda
ou vigilância a vexame ou a constrangimento”.
Assim, a regra do art. 227-A do Estatuto da Criança e do Adolescente,
acrescida pelo art. 42 da Lei no 13.869/2019, tem por objetivo uniformizar os
regimes de perda do cargo, mandato ou função pública de quem pratica crime
com abuso de autoridade, seja o delito cometido contra maiores, seja
praticado contra crianças ou adolescentes.

JULIANO BREDA

Art. 43. A Lei no 8.906, de 4 de julho de 1994, passa a


vigorar acrescida do seguinte art. 7o-B:
“Art. 7o-B. Constitui crime violar direito ou prerrogativa de
advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do
art. 7o desta Lei:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.”

COMENTÁRIO:
1. Objetividade jurídica. O artigo 43 da Lei no 13.869/2019 acrescenta
regra ao Estatuto da Advocacia e da OAB, criando o crime de violação de
direito ou prerrogativa profissional do advogado. Trata-se de norma penal em
branco, cujo preceito é complementado pelas regras previstas no Estatuto da
Advocacia e da OAB, que enumera, em seu artigo 7o, os direitos e
prerrogativas relativas ao exercício da profissão.
Essas regras não traduzem mero privilégio de uma categoria profissional,
mas se estruturam como condições imprescindíveis para o desempenho livre,
independente e pleno de uma função de interesse público, relevância social e
imprescindível à administração da Justiça, nos termos do art. 133 da
Constituição Federal. O reconhecimento e a afirmação concreta dos direitos
inerentes e imprescindíveis à atuação profissional dos advogados constituem-
se, portanto, na decorrência lógica da magnitude da missão outorgada pelo
constituinte a essa atividade.
Os direitos previstos no artigo 7o da Lei no 8.906/94 asseguram ao
advogado os poderes necessários para o exercício da representação da parte
na tutela dos direitos e garantias individuais ou coletivas.
A advocacia, no Estado Democrático de Direito, exerce relevante função
pública, atuando desde a elaboração dos mais básicos instrumentos jurídicos
contratuais até as ações constitucionais de proteção dos princípios
fundamentais da República.
São essas as razões pelas quais o crime de violação de direito ou
prerrogativa do advogado atenta contra a administração da justiça, valor de
fundamental importância para a preservação dos fundamentos democráticos e
republicanos do país. A objetividade jurídica do crime, portanto, ostenta
inegável dignidade constitucional.
Os incisos do art. 7o da Lei no 8.906/94 enunciam direitos decorrentes da
dimensão constitucional da importância do exercício livre da profissão, com
especial reconhecimento da matéria conexa ao direito de defesa do cidadão.
O crime, em suas quatro modalidades, é pluriofensivo e atinge a
administração da justiça, os direitos de livre exercício da profissão de
advogado, com particular incidência do direito de defesa.
2. Sujeito ativo. Ao contrário dos crimes específicos de abuso de
autoridade, a violação de direito ou prerrogativa profissional de advogado é
crime comum, não se exigindo qualquer qualidade especial do sujeito, muito
embora, em regra, as condutas serão praticadas pelos agentes públicos
mencionados no art. 2o da Lei 13.869/2019.
3. Sujeito passivo. O sujeito passivo imediato é o advogado,
regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, vítima do ilegal
cerceamento do legítimo exercício de sua profissão. Como as prerrogativas
profissionais são direitos que transcendem o interesse do advogado e são
instituídas especialmente em benefício das partes que o advogado representa,
elas também serão, mediatamente, atingidas pela conduta. Os defensores
públicos têm suas garantias e prerrogativas disciplinadas em lei própria (Lei
Complementar no 80/94), por isso o tipo penal, em face do princípio da
taxatividade, não pode ser ampliado para abrangê-los, pois a criminalização é
específica em relação aos direitos previstos na Lei 8.906/94.
4. Tipo objetivo. O núcleo verbal é violar, que significa infringir,
transgredir, descumprir ou negar “direito ou prerrogativa de advogado”.
Direito e prerrogativa são expressões compreendidas como as garantias
previstas como indispensáveis ao exercício da advocacia, expressamente
previstas no estatuto que regulamenta a profissão, a Lei no 8.906/94.
O tipo objetivo, no entanto, não criminaliza a conduta de violação
genérica a todos os direitos e prerrogativas profissionais enumerados e
descritos ao longo dos vinte e um incisos do artigo 7o do Estatuto da
Advocacia e da OAB, restringindo a intervenção penal às hipóteses de maior
gravidade de ofensa ao exercício da advocacia, especialmente relacionados ao
núcleo essencial de tutela do direito de defesa.
O primeiro inciso mencionado é o II do art. 7o, que assegura ao advogado
o direito à “inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como
de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica,
telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.
Esse direito é decorrente do princípio constitucional da ampla defesa.
Não é concebível em um estado democrático que para a imposição de uma
sanção ao cidadão ou para a supressão de um bem ou direito não lhe seja
assegurado o devido processo legal, que tem na ampla defesa um de seus
mais importantes corolários.
A ampla defesa é dividida em defesa técnica e autodefesa. A defesa
técnica compreende não apenas as manifestações judiciais do advogado, mas
todo e qualquer aconselhamento, consulta, sugestão e, obviamente, toda e
qualquer comunicação ou relação mantida entre advogado e cliente em face
de uma questão jurídica.
O inciso II proclama como inviolável o escritório ou local de trabalho do
advogado. Vale sublinhar: inviolável o escritório ou local de trabalho do
advogado, ou seja, se o advogado trabalha em casa ou dentro da empresa para
a qual presta serviços profissionais, o espaço em que labora goza de idêntica
proteção.
A inviolabilidade não é absoluta, pois o próprio Estatuto prevê a
excepcional hipótese de uma medida cautelar de busca e apreensão em
escritório de advocacia ou local de trabalho, no § 6o deste artigo: “ Presentes
indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de
advogado, a autoridade judiciária competente poderá decretar a quebra da
inviolabilidade de que trata o inciso II do caput deste artigo, em decisão
motivada, expedindo mandado de busca e apreensão, específico e
pormenorizado, a ser cumprido na presença de representante da OAB,
sendo, em qualquer hipótese, vedada a utilização dos documentos, das
mídias e dos objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem
como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre
clientes. (Incluído pela Lei no 11.767, de 2008)”
O respeito às prerrogativas profissionais do advogado não se restringe às
manifestações judiciais, às petições, às audiências, sustentações orais, mas
deve, obviamente, incluir toda atividade profissional. Se “a casa é asilo
inviolável do indivíduo”, como estabelece a garantia constitucional do art. 5o,
inciso XI, a do advogado é seu escritório ou o local em que exerce a
profissão. Mas o escritório de advocacia merece proteção distinta da casa do
cidadão. A proteção não é do advogado, mas da dignidade da advocacia, do
exercício pleno e efetivo de uma função indispensável à administração da
justiça.
A inviolabilidade não cria uma imunidade legal absoluta ao escritório de
advocacia ou local de trabalho que poderia, de acordo com uma leitura
equivocada, abrigar práticas criminosas ou esconder corpo de delito de
infração penal. A ocultação do proveito do crime é conduta penalmente
proibida no art. 349 do CP. A guarda e ocultação de instrumentos do crime
(como a arma utilizada no homicídio) não se inserem no contexto da ampla
defesa, portanto, não gozam do privilégio legal, uma vez que tal atitude não
pode ser considerada como “relativa ao exercício da advocacia”.
Se o advogado praticar ou for coautor de infração penal, pode-se decretar
a quebra da inviolabilidade, para fins probatórios, como dispõe o § 6o do art.
7o do Estatuto.
O inciso II assegura a inviolabilidade “de seus instrumentos de trabalho,
de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que
relativas ao exercício da advocacia;”.
Por instrumentos de trabalho devemos entender todos os meios e recursos
necessários para a elaboração dos serviços profissionais da advocacia,
consultiva, preventiva, litigiosa, pública ou privada. Computadores,
relatórios, documentos, pareceres, petições, enfim, tudo aquilo que diz
respeito à relação do advogado com seu cliente.
Tutela-se especificamente a correspondência escrita, que inclui todas as
formas de transmissão de informações escritas entre advogado e cliente sobre
o objeto da prestação dos serviços profissionais. Correspondência telemática
compreende os dados oriundos da fusão entre instrumentos de
telecomunicação e informática. Inclui, por isso, a correspondência eletrônica.
E-mails, transmissão de dados por computador, seja a comunicação escrita
(via sistema de transmissão de mensagens), seja a oral (via skype e VOIP), ou
pelas chamadas mensagens SMS, mensagens de texto. É claro que a
mensagem, os dados, ou seja, a informação transmitida entre
cliente/advogado, ou, obviamente, advogado/cliente deve ter caráter pessoal,
reservado. Se for transmitida em meio de acesso público (redes sociais, por
exemplo) a informação perde sua natureza sigilosa.
A vedação à inviolabilidade das comunicações telefônicas dos advogados
é, como as demais, absoluta, sem relativizações, mas quotidianamente são
verificados inúmeros casos de ofensas à garantia.
Há registros diários de interceptações de diálogos mantidos entre clientes
e advogados e interceptações telefônicas de ramais escritórios de advocacia, o
que, na prática, acaba atingindo todos os clientes do profissional,
relacionados ou não com o objeto da investigação. Mas, e se for interceptada
uma comunicação do cliente com o advogado, em que é confessada a prática
de um crime, seria possível utilizar esse diálogo como prova?
Obviamente não. A advocacia – indispensável à administração da justiça
– só pode ser concebida mediante uma relação de absoluta confiança entre o
cidadão e o defensor. Não é possível imaginar a sobrevivência da advocacia
(no plano ético, moral) e, em consequência, a preservação da ampla defesa,
por exemplo, se o advogado pudesse revelar em juízo as informações
recebidas a título profissional. Uma compreensão inversa da norma
prestigiaria a desestruturação completa da ampla defesa e do devido processo
legal. A garantia, que aparentemente pode beneficiar o cliente, na verdade,
como se vê, tem o seu verdadeiro fundamento no Estado Democrático de
Direito, impensável sem a existência de um devido processo legal de
garantias objetivamente asseguradas.
A garantia de inviolabilidade das comunicações não é, portanto, apenas
um direito do advogado, mas decorrência lógica e incindível da garantia
constitucional da ampla defesa.
Trata-se, na verdade, de um desdobramento do próprio sigilo profissional.
O estatuto da OAB disciplina a matéria, em seu art. 7o, inciso XIX: é direito
do advogado recusar-se a depor como testemunha em processo no qual
funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem
seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo
constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional. Comina-
se, ainda, no Art. 34, inciso VII, sanção disciplinar ao profissional que violar,
sem justa causa, sigilo profissional. Também o Código de Ética, nos arts. 18,
19, 25, 26 e 27, impõe ao advogado o respeito ao sigilo profissional, salvo em
casos de “grave ameaça ao direito à vida, à honra, ou quando o advogado se
veja afrontado pelo próprio cliente e, em defesa própria”. Por fim, a violação
do segredo profissional constitui crime tipificado no art. 154 do Código
Penal7.
Enfim, todo esse quadro serve para demonstrar a importância da
preservação do sigilo da relação cliente/advogado, como garantia para o
exercício pleno da ampla defesa. Se o advogado não pode revelar as
informações que recebe do cliente, sob pena de infringir diversas disposições
legais, esse obstáculo deve ser imposto também à atividade probatória do
Estado.
A comunicação deve ser relativa ao exercício da advocacia. O advogado
não tem imunidade absoluta em suas comunicações. Suas conversas ganham
proteção legal em face da natureza do conteúdo, não propriamente dos
interlocutores. Se o advogado se corresponde com pessoa que não seja cliente
e tais conversas não se inserem no objeto do exercício profissional, os dados
não se submetem à regra do sigilo. De outro lado, é possível que o advogado
mantenha comunicação sobre dados sigilosos relativos ao exercício da
profissão não apenas com seu cliente, mas com terceiras pessoas, como
peritos, assistentes, outros advogados, enfim, com qualquer interlocutor.
Na verdade, é preciso interpretar extensivamente a regra, considerando o
escritório profissional como o espaço inviolável do advogado e de seu
cliente, concluindo-se também pela proteção de toda a comunicação que
envolva escritório/cliente, tutelando, assim, também correspondências
mantidas entre funcionários e estagiários e cliente, simplesmente pelo fato de
desempenharem atribuição complementar ao advogado. Permitir a apreensão
de documentos e informações com esse teor equipara-se à intromissão no
espaço insondável do relacionamento privado do advogado com seu cliente.
Outra importante garantia do exercício profissional, cuja violação agora é
tipificada como crime de abuso de autoridade, vem demarcada no inciso IV
do art. 7o: “IV – ter a presença de representante da OAB, quando preso em
flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do
auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação
expressa à seccional da OAB”. E o parágrafo 3o do mesmo artigo 7o dispõe
que: “O advogado somente poderá ser preso em flagrante, por motivo de
exercício da profissão, em caso de crime inafiançável, observado o disposto
no inciso IV deste artigo”.
A primeira parte do inciso IV prescreve que, se o advogado for preso em
flagrante por motivo ligado ao exercício da profissão, terá direito a um
representante da Ordem para acompanhá-lo durante a lavratura do auto de
flagrante, sob pena de nulidade do ato. Então, para que haja a prerrogativa da
presença de representante da Ordem, é preciso: 1 – que a prisão seja em
flagrante delito; vale dizer, enquanto perdurar o estado de flagrância (no
momento em que se pratica o crime ou logo após praticá-lo). E deste modo,
portanto, esta prerrogativa não vale para outros tipos de prisão, como a
preventiva, que será cumprida sem necessidade de presença de representante
da Ordem.
2 – que o motivo do crime seja ligado ao exercício da advocacia.
Quando a prisão, então, for em flagrante delito e o crime for cometido por
razões ligadas ao exercício profissional, haverá duas condições para que o
flagrante se formalize: primeiro, que o crime seja inafiançável (o que
preconiza o parágrafo terceiro); segundo, que representante da Ordem
acompanhe a lavratura do auto de prisão em flagrante, sob pena de nulidade.
A segunda parte do inciso IV estabelece como direito “ter a presença de
representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao
exercício da advocacia, para a lavratura do auto respectivo, sob pena de
nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à Seccional da OAB”.
A expressão “enos demais casos” se refere não só às prisões em flagrante por
motivos não ligados ao exercício profissional como também aos casos de
outros tipos de prisão provisória: preventiva, temporária, decorrente de
sentença condenatória recorrível e de pronúncia.
Em todos os casos de prisões processuais decretadas judicialmente, e,
também, nos casos de prisão em flagrante por motivos não ligados à
profissão, não se exige a presença de representante da Ordem, mas é
prerrogativa profissional que a prisão seja comunicada expressamente à
Seccional.
A infração a essas regras caracterizará o crime de violação das
prerrogativas, consumando-se no momento em que a autoridade negar o
direito da presença de representante da OAB ou, de forma omissiva, deixar
de comunicar o fato à instituição.
Garante-se também ao advogado, no art. 7o, inciso V, “não ser recolhido
preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado
Maior, com instalações e comodidades condignas e, na sua falta, em prisão
domiciliar”. Tal benefício refere-se às prisões de natureza cautelar,
provisórias, e não à prisão definitiva para cumprimento de pena.
Ou seja, enquanto não houver trânsito em julgado de sentença penal
condenatória, o advogado, se preso, tem direito a um tratamento diferenciado,
em razão de sua função. No entanto, caso seja condenado em definitivo,
cumprirá a sua pena sem distinção de tratamento com os outros condenados.
Na verdade, os juízes costumam analisar os pedidos de prisão especial
após o encarceramento do advogado. Em regra, os juízes conhecem essa
circunstância no momento da prisão e deveriam determinar na decisão o
respeito à regra. Trata-se de inegável abuso de autoridade prender o advogado
em cela comum, conhecendo a sua especial condição.
O crime se consumará no momento em que o agente público recolher o
advogado em local diverso daquele assegurado no artigo 7o, inciso V.
O crime de violação do artigo 7o, inciso III8, tipifica conduta semelhante
à do caput do artigo 20 da Lei de Abuso de Autoridade (Impedir, sem justa
causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado),
revelando uma superposição desnecessária de tipos penais, criada pela
aprovação conjunta de projetos de lei distintos que tramitavam no Congresso
Nacional.
A respeito desse tipo penal, vejam-se os comentários ao artigo 20, de
inteira aplicação. Como a sanção penal prevista no artigo 43 é menor que a
do artigo 20, entendemos que aquela deve ser aplicada.
Destaca-se, porém, que o parágrafo único do artigo 209 tipifica conduta
que não está abrangida pelo inciso III do artigo 7o, devendo, portanto, este
artigo ser aplicado em detrimento da regra do art. 43.
5. Tipo subjetivo. Ao contrário do da regra geral do artigo 1o, § 1o, da
Lei 13.869/19, que exige o especial fim de agir nos crimes de abuso de
autoridade, nesse caso basta o dolo genérico, caracterizado pela vontade livre,
incondicionada e consciente de violar direito ou prerrogativa profissional de
advogado, sem especificar qualquer motivo, intenção ou tendência na
conduta do agente.
6. Consumação e tentativa. O crime consuma-se no momento da
concreta violação aos direitos e prerrogativas profissionais enumerados nos
incisos II, III. IV e V do art. 7o da Lei no 8.906/94, ou seja, quando o agente
público: a) infringir a inviolabilidade de escritório ou local de trabalho de
advogado, de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita,
eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da
advocacia; b) impedir a comunicação pessoal e reservada de advogado com
seu cliente; c) negar a presença de representante da OAB, quando o advogado
for preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para
lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos,
quando deixar de comunicar a prisão à seccional da OAB; d) negar o direito
ao advogado de não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em
julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades
condignas, e, na sua falta, em prisão domiciliar.
A tentativa é admissível.
7. Pena. A pena é de detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa,
aplicando–se o procedimento dos Juizados Especiais Criminais e admitindo a
transação penal.

MARTA SAAD

Art. 44. Revogam-se a Lei no 4.898, de 9 de dezembro de


1965, e o § 2o do art. 150 e o art. 350, ambos do Decreto-
Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal)

BIBLIOGRAFIA:
BITTENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 25a. ed. São
Paulo: Saraiva, 2019. v. 1; DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal: Parte Geral.
6a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018; SOUZA, Luciano Anderson de. Direito
penal: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. v. 1.
COMENTÁRIOS:
1. Noções introdutórias. A Lei n. 13.869/2019 revogou expressamente a
antiga lei de abuso de autoridade, Lei n. 4.898/65, o § 2o do art. 150 e o art.
350, ambos do Código Penal.
Em relação à eficácia da lei penal no tempo, o artigo 2o do Código Penal
estabelece que ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de
considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da
sentença condenatória.
Também o parágrafo único do artigo 2o do Código Penal estabelece que a
lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos
anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em
julgado.
Assim, em regra, aplica-se a lei penal vigente no momento em que o fato
criminoso foi praticado – tempus regit actum –, resguardando a anterioridade
da lei penal. Excepcionalmente, porém, admite-se a extra-atividade da lei
penal, tanto a ultratividade como a retroatividade, buscando o direito penal
intertemporal solucionar conflitos da lei penal no tempo. É o que estabelece o
artigo 5o, inciso XL, da Constituição da República, quando prevê que a lei
penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.
Pela retroatividade, aplica-se a lei revogadora aos fatos praticados antes
de sua vigência, desde que ela seja mais benéfica ao acusado do que a lei
revogada.
Pela ultratividade, aplica-se a lei anterior revogada aos fatos praticados ao
tempo de sua vigência, desde que ela seja mais benéfica ao acusado do que a
lei posterior, revogadora.
Assim, é possível, em termos de conflito de lei penal no tempo, que haja
(i) abolitio criminis, (ii) novatio legis incriminadora, (iii) novatio legis in
mellius e (iv) novatio legis in pejus.
Há abolitio criminis quando a lei posterior deixa de considerar infração
penal uma conduta que, na vigência da lei anterior, era típica. Trata-se de
uma causa de extinção da punibilidade, prevista no artigo 107, inciso III, do
Código Penal. Alcança a execução e os efeitos penais da sentença
condenatória.
A mera revogação formal do tipo não gera abolitio criminis, pois o
comportamento pode ser abrangido por outro tipo penal.
Ocorre novatio legis incriminadora quando a lei posterior cria infração
penal até então inexistente. Comportamentos até então irrelevantes para o
direito penal passam a ser considerados crimes. De acordo com o artigo 5o,
inciso XL, da Constituição da República, a nova lei incriminadora só poderá
ser aplicada às condutas praticadas depois de sua vigência e não retroagirá,
vale dizer, só tem eficácia para o futuro, nunca para o passado.
Há novatio legis in mellius quando a lei posterior se mostre mais benéfica
em comparação com a lei anterior revogada. É a chamada lex mitior. Na
sucessão de leis, o fato criminoso é praticado antes da nova lei, mas esta é
mais benéfica ao acusado. Nesse caso, será aplicada a lei que, no caso
concreto, resultar em mais vantagens ao agente, retroagindo.
Ocorre novatio legis in pejus quando a lei posterior contenha preceitos
mais rígidos se comparada à lei anterior.
Assim, considerando que a aplicação da lei penal no tempo possui uma
regra geral e diversas exceções, que ocorrem quando há sucessão de leis no
tempo que disciplinem total ou parcial a mesma matéria, convém avaliar os
crimes de abuso de autoridade previstos na Lei n. 4.898/1965, revogada,
comparando-a com as novas previsões da Lei n. 13.869/2019, para
verificação da lei aplicável à infração penal praticada durante a vigência da
lei anterior revogada.
Em relação às figuras previstas no artigo 150, § 2o, e artigo 350 do
Código Penal, já se entendia que haviam sido revogados, ainda que
tacitamente, pela antiga lei de abuso de autoridade, Lei n. 4.898/1965, porque
norma especial e superveniente.
2. Continuidade normativa típica. A mera revogação formal do tipo
não gera abolitio criminis, pois o comportamento pode ser abrangido por
outro tipo penal. Algumas condutas previstas nos artigos 3o e 4o da Lei n.
4.898/65 não encontram correspondência exata na Lei n. 13.869/2019, mas a
conduta é contemplada em outros dispositivos legais.
Assim, a previsão do artigo 3o, “c”, da Lei n. 4.898/1965 não possui
previsão legal na nova Lei de Abuso de Autoridade. Isso não significa que
tenha havido abolitio criminis, porque a conduta revogada era norma especial
em relação ao crime previsto no artigo 40 da Lei n. 6.538/1978, que
permanece em vigor.
O disposto no artigo 3o, “d” e “e”, da Lei n. 4.898/1965, foi objeto de
abolitio criminis, por falta de previsão equivalente na nova Lei de Abuso de
Autoridade. Todavia, se houver especial finalidade de escarnecer alguém
publicamente por motivo de crença ou função religiosa, a conduta pode se
subsumir ao disposto no artigo 208 do Código Penal, crime contra o
sentimento religioso.
A previsão do artigo 3o, “f”, da Lei n. 4.898/1965 não possui equivalente
na nova Lei de Abuso de Autoridade. Mas a conduta revogada era norma
especial em relação ao crime previsto no artigo 199 do Código Penal,
atentado contra a liberdade de associação, que permanece em vigor.
Da mesma forma, a previsão do artigo 3o, “g”, da Lei n. 4.898/1965 não
tem equivalente legal na nova Lei de Abuso de Autoridade. Isso não significa
que tenha havido abolitio criminis, porque a conduta revogada era norma
especial em relação ao crime previsto no artigo 297 do Código Eleitoral.
O disposto no artigo 3o, “h”, da Lei n. 4.898/1965 foi objeto de abolitio
criminis, por falta de previsão equivalente na nova Lei de Abuso de
Autoridade. Todavia, se a conduta for acompanhada de violência ou grave
ameaça, pode se subsumir ao tipo de constrangimento legal, previsto no
artigo 146 do Código Penal.
A previsão do artigo 3o, “i”, da Lei n. 4.898/1965 não possui equivalência
na nova Lei de Abuso de Autoridade. Isso não significa que tenha havido
abolitio criminis, porque a conduta revogada era norma especial em relação
ao crime previsto no artigo 129 do Código Penal.
O disposto no artigo 3o, “j”, da Lei n. 4.898/1965 foi objeto de abolitio
criminis, por falta de previsão equivalente na nova Lei de Abuso de
Autoridade. Todavia, se a conduta for acompanhada de violência ou grave
ameaça, pode se subsumir ao disposto no artigo 146 do Código Penal,
caracterizando constrangimento ilegal.
O disposto no artigo 4o, “f” e “g”, da Lei n. 4.898/1965 não era mais
aplicável, porque as receitas mencionadas no tipo não são mais previstas no
sistema legal pátrio. Todavia, se tais receitas forem exigidas, a conduta de
exigi-las pode caracterizar crime previsto nos artigos 158, 316 ou 317 do
Código Penal, a depender da situação.
A previsão do artigo 4o, “h”, da Lei n. 4.898/1965 não possui
correspondente na nova Lei de Abuso de Autoridade. Não houve abolitio
criminis, porque a conduta revogada era norma especial em relação aos
crimes contra a honra previstos no Código Penal, que permanecem aplicáveis
ao caso.
3. Novatio legis in pejus. Em outros pontos, a Lei n. 13.869/2019
mostra-se bem mais grave do que a anterior Lei n. 4.898/1965 e, nesse caso, a
lei nova, mais grave, não retroage para alcançar fatos pretéritos.
A antiga lei de abuso de autoridade estabelecia para os crimes previstos
naquela lei, no artigo 6o, § 3o, “b”, pena privativa de liberdade de detenção,
de 10 (dez) dias a 6 (seis) meses.
Assim, comparando-se o artigo 3o, “a”, da Lei n. 4.898/1965, com o
artigo 9o, caput, e 10, caput, da Lei n. 13.869/2019, que preveem pena
privativa de 1 (um) a 4 (quatro) anos de detenção, verifica-se que a lei nova é
mais grave e, dessa forma, não retroage para alcançar fatos pretéritos.
Da mesma forma, o artigo 3o, “b”, da Lei n. 4.898/1965, se comparado
com o artigo 22, caput e §1o, da Lei n. 4.898/1965, mostra que a lei nova é
mais grave e não retroage para fatos ocorridos no passado.
Em relação ao artigo 4o, “a”, “d” e “e”, da Lei n. 4.898/1965, se
comparado com o artigo 9o da Lei n. 13.869/2019, também se verifica que a
lei nova é mais grave e, portanto, não retroage para alcançar fatos pretéritos.
Da mesma forma, comparando-se o artigo 4o, “b”, da Lei n. 4.898/1965,
com o artigo 13 da Lei n. 13.869/2019, percebe-se que a lei nova é mais
grave e não retroage para alcançar fatos passados.
O artigo 4o, “c”, da Lei n. 4.898/1965, se comparado com o artigo 12,
caput, e parágrafo único da Lei n. 13.869/2019, mostra que a lei nova é mais
grave e, assim, não deve retroagir.

MARTA SAAD

Art. 45. Esta Lei entra em vigor após decorridos 120 (cento
e vinte) dias de sua publicação oficial.

BIBLIOGRAFIA:
DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
interpretada. 19a. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
COMENTÁRIOS:
O artigo 45 da Lei n. 13.869/2019 prevê que a lei entra em vigor após
decorridos 120 (cento e vinte) dias de sua publicação oficial, prazo especial
se comparado à regra geral do artigo 1o, caput, da Lei de Introdução às
Normas do Direito Brasileiro.
De acordo com o artigo 8, § 1o, da Lei Complementar n. 95/1998, que
dispõe sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis, a
contagem do prazo para a entrada em vigor das leis que estabeleçam período
de vacância deve ser feita com a inclusão da data da publicação e do último
dia do prazo, entrando em vigor no dia subsequente à sua consumação
integral.
Assim, considerando-se a que a Lei n. 13.869/2019 foi publicada em 05
de setembro de 2019, a vacatio se encerra em 02 de janeiro de 2020, entrando
a lei em vigor no dia 03 de janeiro.

___________________
1. Art. 5o, X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de
sua violação; 2. Art. 5o, XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das
comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último
caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de
investigação criminal ou instrução processual penal”.
3. Nessa linha, por exemplo, STF, HC 75.545/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE:
“Prova ilícita: interceptação inválida, não obstante a autorização judicial, antes, porém,
da Lei 9.296/96, que a disciplina, conforme exigência do art. 5o, XII, da Constituição
(cf. HC 69.912, Plen., 16.12.93, Pertence, RTJ 155/508): contaminação das demais
provas – a partir da prisão em flagrante e da apreensão do tóxico transportado por um
dos co-réus – porque todas contaminadas pela ilicitude da interceptação telefônica, que
as propiciou (fruits of the poisonous tree): precedentes (HHCC 69.912, cit; 70.277, 1a
T., 14.12.93, RTJ 154/58; HC 73.351, Plen., 9.5.96, Galvão; HC 72.588, Plen., 12.6.96,
Corrêa; HC 73.510, 2a T., M. Aurélio, DJ 12.12.97; Inf. STF, 96, clipping): habeas
corpus deferido por falta de justa causa para a condenação, com extensão aos co-réus.”
4. Art. 7o. A Lei no 9.296, de 24 de julho de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes
arts. 8o-A e 10-A:
“Art. 8o-A. Para investigação ou instrução criminal, poderá ser autorizada pelo juiz, a
requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público, a captação ambiental de
sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, quando:
I – a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis e igualmente eficazes; e
II – houver elementos probatórios razoáveis de autoria e participação em infrações
criminais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos ou em infrações
penais conexas.
§ 1o O requerimento deverá descrever circunstanciadamente o local e a forma de
instalação do dispositivo de captação ambiental.
§ 2o (VETADO).
§ 3o A captação ambiental não poderá exceder o prazo de 15 (quinze) dias, renovável
por decisão judicial por iguais períodos, se comprovada a indispensabilidade do meio
de prova e quando presente atividade criminal permanente, habitual ou continuada.
§ 4o (VETADO).
§ 5o Aplicam-se subsidiariamente à captação ambiental as regras previstas na legislação
específica para a interceptação telefônica e telemática.”
“Art. 10-A. Realizar captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou
acústicos para investigação ou instrução criminal sem autorização judicial, quando esta
for exigida:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 1o Não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores.
§ 2o A pena será aplicada em dobro ao funcionário público que descumprir
determinação de sigilo das investigações que envolvam a captação ambiental ou revelar
o conteúdo das gravações enquanto mantido o sigilo judicial.”
5. Art. 1o A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova
em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta
Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.
Parágrafo único. O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de
comunicações em sistemas de informática e telemática.
6. Art. 1o A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova
em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta
Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.
Parágrafo único. O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de
comunicações em sistemas de informática e telemática.
Art. 2o Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer
qualquer das seguintes hipóteses:
I – não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal;
II – a prova puder ser feita por outros meios disponíveis;
III – o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de
detenção.
7. Art. 154 – Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de
função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.
8. Art. 7o, III – Comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem
procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em
estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis.
9. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem impede o preso, o réu solto ou o
investigado de entrevistar-se pessoal e reservadamente com seu advogado ou defensor,
por prazo razoável, antes de audiência judicial, e de sentar-se ao seu lado e com ele
comunicar-se durante a audiência, salvo no curso de interrogatório ou no caso de
audiência realizada por videoconferência.
Diagramação eletrônica:
Linotec Fotocomposição e Fotolito Ltda., CNPJ 60.442.175/0001-80

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