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O trabalho sob a ótica do

Direito e da Sociologia: Pensar


o Trabalho como Direito
Fundamental à Dignidade da
Pessoa Humana
www.lumenjuris.com.br

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João de Almeida
João Luiz da Silva Almeida

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fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário
Manuel Martín Pino Estrada

O trabalho sob a ótica do Direito


e da Sociologia: Pensar o Trabalho
como Direito Fundamental à
Dignidade da Pessoa Humana

editora Lumen Juris


Rio de Janeiro
2016
Copyright © 2016 by Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Categoria:

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Diagramação: Rosane Abel

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Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
________________________________________
Agradecimentos

Aos colegas de coordenação de obra, professor Mestre Ma-


nuel Martín Pino Estrada e professora Especialista Fabiana Savini
Bernardes Pires de Almeida Resende, pelo comprometido, resul-
tando na obra intitulada “O trabalho sob a ótica do Direito e da
Sociologia: Pensar o Trabalho como Direito Fundamental à
Dignidade da Pessoa Humana”.
Ao Juiz do Trabalho Dr. Wagson Lindolfo José Filho pelo
majestoso prefácio elaborado para a presente obra coletiva.
Aos autores/as e coautores/as da presente obra pela contri-
buição com seus capítulos que a compuseram.
Ao revisor da obra, professor Mestre Cláudio Roberto dos
Santos Kobayashi.
À professora Marise de Melo Lemes pela correção gramatical
da obra, assim como à professora Karolinne Pires Vital França pela
normatização da ABNT e ao bacharel Wagner Ferraz da Silva pela
formatação da mesma.

Goiânia, 13 de março de 2016.

Gloriete Marques Alves Hilário


Coordenadores e organizadores

Gloriete Marques Alves Hilário


Doutoranda em Sociologia - Relações de Trabalho, Desigual-
dades Sociais e Sindicalismo pela Faculdade de Economia da Uni-
versidade de Coimbra (FEUC)/Centro de Estudos Sociais (CES);
Mestrado e especialização na mesma área e IES; Mestrado revali-
dado pela Universidade de Brasília (UNB); Especialista em Direi-
to Civil e Processo Civil pela Faculdade de Ciências e Educação
de Rubiataba (FACER); Graduação em Direito pela Universidade
Salgado de Oliveira (UNIVERSO); Intercâmbio no âmbito da
graduação em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra (FDUC). Leciona na FACER, Faculdade Integrada de
Goiás (FIG) e Arctempos. É coordenadora de Iniciação Científica
e TCC do curso de Administração da FACER. É associada ao
Núcleo de Estudantes Luso-Brasileiros (NELB) da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Endereço para acessar
o Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/6320904558134619>.
E-mail: <glomalves@yahoo.com.br>.

Manuel Martín Pino Estrada


Formado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e
mestre em Direito Privado e Processual Privado pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutorando em Direito
na Faculdade Autônoma de Direito (FADISP).

Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende


Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Univer-
sidade Católica de Goiás (UCG), atual Pontifícia Universidade
Católica de Goiás (PUC-GO). Especialista em Direito Civil e Pro-
cesso Civil pela... Bacharel em Direito pela Universidade Católica
de Goiás (UCG). E-mail: <fabianasavini@yahoo.com.br>.
Sumário

Prefácio.................................................................................................. 1
Introdução............................................................................................. 7
Capítulo 1 - O infoproletariado, a informalidade e a nova
morfologia do trabalho......................................................................... 9
Ricardo Antunes................................................................................ 9
Capítulo 2 - A terceirização dos serviços nas esferas pública
e privada.............................................................................................. 29
Manuel Martín Pino Estrada............................................................ 29
Capítulo 3 - O Trabalho Feminino: A divisão sócio-sexual
do trabalho e da reprodução.............................................................. 43
Claudia Mazzei Nogueira.................................................................. 43
Capítulo 4 - O projeto de Lei nº 98/2003.........................................61
Maria Teresa Cauduro.......................................................................61
Capítulo 5 - A multidimensionalidade da identidade..................... 83
Geruza Silva de Oliveira Vieira........................................................ 83
Capítulo 6 - Assédio moral: Ofensa à honra, à imagem e à
dignidade do trabalhador..................................................................111
Erival de Araújo Lisboa Cesarino....................................................111
Jorlam Thiago Araújo de S. Ribeiro................................................111
Capítulo 7 - A audiência de conciliação prévia no processo
do trabalho.........................................................................................127
Irene Margarete Corrêa Soares Pino...............................................127
Capítulo 8 - O esvaziamento político dos direitos humanos a
partir da construção do conceito de humanidade..........................141
Andrey Borges Pimentel Ribeiro.....................................................141
Carlos Ugo Santander Joo...............................................................141
Capítulo 9 - O processo de exclusão e o processo de
inclusão-políticas públicas no Brasil................................................167
Gloriete Marques Alves Hilário.......................................................167
Marcelo Marques de Almeida Filho................................................167
Sonya Maria Brandão .....................................................................167
Capítulo 10 - Tecnologia, subjetividade e precariedade
do trabalho na era da globalização...................................................185
Pablo Almada..................................................................................185
Gloriete Marques Alves Hilário.......................................................185
Prefácio

Como já dizia Victor Hugo, “o trabalho não pode ser uma lei
sem que seja um direito”. Talvez esta seja a tônica da inestimável
obra, já que nos apresenta os debates mais pululantes e atuais da
seara justrabalhista, mormente no que diz respeito à autoafirma-
ção do trabalho digno frente ao ordenamento jurídico posto.
Logo após receber o honroso convite de prefaciá-la, bastante ávi-
do no intento, não me contive em ler esmiuçadamente os primorosos
artigos científicos catalogados neste livro. Um significativo diferencial
em relação a seus congêneres é a presença de um importante compo-
nente sociológico na análise do direito do trabalho contemporâneo.
Autores de escol convidados para abrilhantar este livro, cada qual em
determinado tema, obsequia-nos com multiplicidade de ideias para
entendermos melhor o conteúdo e o significado da noção de mínimos
existenciais no contexto da relação trabalhista.
O material aqui apresentado tem como finalidade precípua
servir como texto fundamental de estudo sobre o trabalho, em
suas diversas nuanças modernas, à luz da famigerada dignidade
da pessoa humana. Seu público-alvo é, portanto, o aluno de ciên-
cias humanas, sem se descurar, todavia, daqueles que pretendem
adquirir uma base sólida na preparação de concursos públicos, so-
bretudo para as carreiras trabalhistas.
Logo no prelúdio, temos a instigante contribuição de Ri-
cardo Antunes. Houve a ruptura da subordinação jurídica clás-
sica, surgindo o fenômeno atual da “deslocalização do trabalho”,
no qual há uma crescente flexibilização do local da prestação de
serviços com a utilização de mecanismos de controle telemáticos
e informatizados. A utilização do “cibertrabalho”, a despeito de

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Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

gerar redução de custos para as empresas, apresenta como des-


vantagem a possibilidade de deterioração das condições do traba-
lho, fazendo surgir, na feliz expressão de Ricardo Antunes, uma
nova classe operária, os chamados “infoproletários”. Essa força de
trabalho invisível está sujeita a uma maior ingerência empresarial
nos momentos destinados ao lazer, já que não é possível separar o
ócio do efetivo labor. O avanço tecnológico não poderá implicar
retrocesso social ou precarização da relação de emprego, devendo-
-se conferir a esses empregados o chamado direito à desconexão.
Avançando no segundo capítulo, a obra nos mostra o panora-
ma atual da terceirização nas esferas público e privada. Por se tratar
de uma relação triangular, tal processo consiste na transferência de
atividades para outras empresas, em uma espécie de desverticalização
empresarial, na qual ocorre a desvinculação entre a relação econômi-
ca e a relação de trabalho, contribuindo para a mitigação do chamado
“pleno emprego”. Essa contratação por meio de empresa interposta é
uma forma de flexibilização trabalhista, já que atenta contra o modelo
bilateral clássico que se funda a relação de emprego.
No terceiro capítulo, o leitor se deparará com tema muito
discutido atualmente, a divisão sócio sexual do trabalho e da re-
produção, tudo sob a ótica da chamada “Ontologia do Ser Social”
de Lukács. O empoderamento da mulher pressupõe mudança em
premissas de gênero arraigadas no contexto social, com o condão
de derruir a discriminação vertical existente nas relações de tra-
balho, também chamada de “glass ceiling”. Desse modo, prima-
-se por um viés interpretativo garantidor de práticas de igualdade
substancial e afirmação plena de direitos fundamentais.
A regulamentação dos profissionais do sexo é o tema do
quarto capítulo. Foi feita uma análise pormenorizada, principal-
mente no que diz respeito à função social de tal ramo, do Projeto
de Lei n° 98/2003, proposto pelo deputado Fernando Gabeira para
a regulamentação do ofício sexual. Tirante o preconceito que ain-

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O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

da circunda no meio social, o certo é que a regulamentação, mes-


mo com suas carências e laconismos, procura irradiar o princípio
da dignidade da pessoa humana nesse contexto profissional.
Avançando no quinto capítulo, a nobre articulista explora
o conceito de identidade com a proposta de sua análise a partir
de variadas dimensões, especialmente a dimensão profissional.
Extrai-se do texto que a identidade social é desenvolvida ao longo
das relações sociais do indivíduo, encontrando fundamento nos
eixos biográfico e estrutural. Esta identificação se faz pela articu-
lação entre as transações subjetiva e objetiva, o que pode ser ve-
rificado por meio das pesquisas feitas sobre o artesanato existente
na cidade de Goiânia-GO.
O sexto capítulo refere-se às perspectivas jurídicas do assédio
moral. Como uma espécie do gênero dano moral, o assédio moral
(mobbing, bullyng ou psicoterror) conceitua-se como um proces-
so sistemático de estigmatização no meio ambiente de trabalho,
expondo reiteradamente o trabalhador à situação humilhante e
constrangedora, com o fim de desestabilizar psicologicamente a
vítima no exercício de suas funções laborais.
O sétimo capítulo trata das alterações procedimentais advin-
das do Novo Código de Processo Civil, especificamente no que diz
respeito à conciliação. A justiça do trabalho, desde a sua criação,
possui forte viés conciliatório, o que pode ser percebido na leitu-
ra do artigo 764 da CLT. Entretanto, o acordo, justamente pelo
caráter subsistencial do crédito trabalhista, não deve servir para
chancelar a precarização de direitos, sob pena de se enaltecer a
ideia pejorativa de “justiça com desconto”, segundo o escólio de
John French. Assim, a heterointegração, tanto a subsidiária quan-
to a supletiva (art. 15 do Novo Código de Processo Civil), deve
perpassar necessariamente pela valorização da base principioló-
gica contida na própria CLT, sempre com o intuito de irradiar os
direitos fundamentais no díspar vínculo empregatício. Apesar de o

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Tribunal Superior do Trabalho, por meio da Instrução Normativa
n° 39 de 2016, fixar a inaplicabilidade do art. 334 do Novo Código
de Processo Civil ao Processo do Trabalho, tem-se que o presente
artigo servirá de baluarte para reflexões jurídicas profícuas.
O leitor se surpreenderá com a relevância do assunto ensaia-
do no oitavo capítulo: O contraponto existente entre o conceito
de humanidade e o esvaziamento político da meta dos direitos hu-
manos. Para tanto, é apresentado o conceito de humanidade e sua
construção moderna. Logo após, é tecida uma crítica filosófica
apoiada no escólio de Costas Douzinas.
Já no nono capítulo, somos levados a refletir sobre as políti-
cas públicas imediatistas de assistencialismo e o efeito reverso de
tais medidas na distribuição de renda e na desigualdade social.
Diferentemente de outros países, o direito do trabalho nacional,
sobretudo no que se refere à própria CLT, não foi resultado de
uma verdadeira conquista operária, mas sim de políticas populis-
tas implementadas na Era Vargas. Talvez o modelo atual de assis-
tencialismo e de pulverização da pobreza tenha tido influências
inquebrantáveis desta época. Apenas reflexões, caro leitor.
Por derradeiro, no décimo capítulo, temos uma análise inte-
ressante sobre o impacto na subjetividade do trabalhador feito pelo
chamado desenvolvimento tecnológico autonomizante, ou seja, de
tomar a tecnologia, aparentemente, com uma lógica própria e,
desvinculada de seu fundamento produtivo. Verifica-se, pois, uma
reflexão profunda sobre a proteção trabalhista diante das mudan-
ças que se apresentam no campo da atividade produtiva na era da
globalização, em especial no que tange à precarização do trabalho
em direção ao trabalho pós-humano.
Enfim, após a leitura crítica e percuciente da presente obra,
notaremos que o poder diretivo deve nortear-se nos estreitos limi-
tes constitucionais da disponibilidade da força de trabalho obreira,
justamente por incidir nas relações empregatícias a eficácia irra-
diante e horizontal conferida aos princípios da dignidade da pes-
soa humana e dos valores sociais do trabalho. O controle abusivo
de uma pessoa sobre outra é a antítese do trabalho digno, sendo
que o debate acadêmico interdisciplinar, ainda mais com articulis-
tas das mais diversas formações e experiências, consubstancia-se
em um poderoso mecanismo concretizador do Estado Democráti-
co e Constitucional de Direito.
Avante e tenha uma leitura proveitosa!

Wagson Lindolfo José Filho


Juiz do Trabalho

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Introdução

O presente livro traz temas de necessária discussão no âmbi-


to legislativo, na comunidade acadêmica e na sociedade em geral
devido aos temas que abrangem, como são os casos da terceiriza-
ção nos âmbito público e privado, da multidimensionalidade da
identidade onde aborda o conceito de identidade com a proposta
de sua análise a partir de variadas dimensões, especialmente a di-
mensão profissional; o trabalho feminino, tratando da divisão só-
cio-sexual do trabalho e da reprodução e a relação que tem para o
capital, com o intuito da manutenção da sua lógica de exploração/
opressão, com o objetivo de intensificar sua acumulação; o info-
proletariado, a informalidade e a nova morfologia do trabalho, en-
volvendo a redução do trabalho vivo e que não significa a perda de
centralidade do trabalho abstrato na criação do valor; o projeto de
Lei n° 98/2003 que trata sobre a regulamentação das profissionais
do sexo e do contexto da prostituição no Brasil, visando fomentar
a discussão sobre “a profissão mais antiga do mundo”; a subcon-
tratação e a terceirização, às quais são analisadas sob a perspec-
tiva de entender o interesse do (s) capitalista (s) e das eventuais
consequências aos trabalhadores que têm o arranjo de suas vidas
ditado a partir da lógica do acúmulo crescente de lucros; o assédio
moral, envolvendo a ofensa à honra, à imagem e à dignidade do
trabalhador; a audiência de conciliação prévia no processo do tra-
balho também serão analisados junto com os avanços e os desafios
da implantação da conciliação nas varas do trabalho, de forma a
tornar o processo mais célere e eficiente; o esvaziamento político
dos direitos humanos a partir da construção do conceito de hu-
manidade a partir do pensamento de Costas Douzinas; o processo

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Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

de exclusão e o processo de inclusão de políticas públicas no Brasil


onde se faz uma rápida passagem pelo mundo das políticas públi-
cas num período restrito, tentando mostrar o processo de evolu-
ção destas ações governamentais no combate à exclusão social no
Brasil; e ainda um interessante debate em torno da tecnologia,
subjetividade e precariedade no trabalho na era da globalização.
Pontua-se que em todos os textos, as ideias expressas são de
inteira responsabilidade de seus autores, assim como a fidelidade
de suas fontes de pesquisas.

Manuel Martín Pino Estrada


Rubiataba, 20 de julho de 2015.

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O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Capítulo 1
O infoproletariado, a informalidade
e a nova morfologia do trabalho

Ricardo Antunes1

Introdução
O mundo capitalista, particularmente, desde o amplo pro-
cesso de reestruturação do capital desencadeado em escala global,
nos inícios da década de 1970, teve profundas mudanças no pro-
cesso de produção e do trabalho, gerando a denominada empresa
enxuta, flexível, com suas novas denominações das quais os cola-
boradores, parceiros, consultores tornaram-se dominantes.
Em seu desenho mais geral, é possível afirmar que a empresa da
flexibilidade liofilizada articula um conjunto de elementos de
continuidade e de descontinuidade em relação ao empreendi-
mento tayloriano/fordista: sua organização do trabalho resulta da

1 Professor Titular do IFCH/UNICAMP. Autor de, entre outros livros, Os


Sentidos do Trabalho, Boitempo, 2013 (publicado também na Argentina, Itália,
EUA, Inglaterra/Holanda, Portugal e Índia) e de Adeus ao Trabalho?, Cortez,
2015 (edição especial de 20 anos, (publicado também na Argentina, Colômbia,
Venezuela, Espanha e Itália) e Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil, vol, III,
2014, Boitempo. Coordena as Coleções Mundo do Trabalho (Boitempo) e Trabalho
e Emancipação (Expressão Popular). Foi Visiting Research Fellow na Universidade
de SUSSEX, Inglaterra. Recebeu o Prêmio Zeferino Vaz da Unicamp (2003) e a
Cátedra Florestan Fernandes da CLACSO (20002). É pesquisador do CNPq
(Conselho Nacional de Pesquisa Científica).

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Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

implantação de técnicas de gestão da força de trabalho típicas da


era informacional, gerando uma estrutura produtiva mais flexível,
que se utiliza da terceirização, dentro e fora das empresas, do tra-
balho em equipe, das células de produção, dos times de traba-
lho, da deslocalização produtiva, além do envolvimento partici-
pativo que preserva, em seus traços essenciais, os condicionantes
que caracterizam a dominação capitalista. (Antunes, 2006).
Estrutura-se uma nova modalidade de organização do proces-
so de trabalho cuja finalidade maior é a intensificação do processo
laborativo, do qual a reengenharia, lean production, team work, a
eliminação de postos de trabalho, o aumento da produtividade, qua-
lidade total, metas, competências, parceiros, colaboradores, são
partes constitutivas da empresa capitalista moderna. Se no taylo-
rismo/fordismo a força da empresa expressava-se pelo número de
trabalhadores que empregava, pode-se dizer que a empresa da fle-
xibilidade liofilizada agrega menos de trabalho vivo e potencializa
ao máximo o trabalho morto corporificado no maquinário infor-
macional-digital, gerando maior produtividade para as empresas.
Estas metamorfoses trouxeram consequências profundas no
universo do trabalho: desregulamentação dos direitos sociais; pre-
carização e terceirização da força humana que trabalha, aumento da
fragmentação e heterogeneização no interior da classe trabalhadora;
enfraquecimento do sindicalismo de classe e incentivo à sua conver-
são em um sindicalismo mais negocial e de parceria, mais de cúpula
e menos de base, mais parceiro e colaborador e menos confronta-
cionista, como tem sido a prática recente do sindicalismo brasileiro
recente, ao contrário de sua atuação na gênese do que, nos fins de
1970 e início de 1980 se denominou como novo sindicalismo.
As novas engrenagens de racionalização do processo produti-
vo, o disciplinamento da força de trabalho, a implantação de novos
mecanismos de gestão de pessoas (que em verdade, buscam o en-
volvimento mais ativo, incitado, da dimensão cognitiva do trabalho

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O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

e de seu intelecto, tornaram-se pragmáticos presentes na liofiliza-


ção organizacional, processualidade onde o trabalho vivo é subs-
tituído pelo trabalho morto, pela maquinaria tecno-informacional-
-digital que hoje tipifica o processo de enxugamento ou liofilização
das empresas (Antunes, 2013). As células ou times de trabalho,
a transferência de responsabilidades anteriormente realizadas pela
gerência científica para o chão de fábrica, fundamentais na prática
do management by streess, completam a empresa liofilizada, que se
desenvolve com um reduzido contingente de trabalhadores dentro
das empresas matrizes, trabalhadores e trabalhadoras multifuncio-
nais, convertidos em colaboradores, sendo que o universo dos ter-
ceirizados, subcontratados e temporários, dentro e fora do espaço
produtivo da empresa vem se expandindo celeremente.
O resultado é evidente: de um lado, temos o trabalhado poli-
valente e multifuncional da era maquinal-informacional-digital,
exercitando seus atributos mais intelectuais. No outro polo da
pirâmide do trabalho presenciamos a expansão da massa de tra-
balhadores/as precarizados/as, terceirizado/as, flexibilizado/as, in-
formalizado/as, cujo exercício laborativo é prescrito e fortemente
manualizado. O trabalho part time, as formas e velhas formas da
divisão sexual do trabalho, a ampliação do trabalho dos imigran-
tes enfeixa essa nova estruturação do processo de trabalho polissê-
mico, redesenhando uma nova morfologia do trabalho.
Assim, a empresa tayloriano-fordista, dominante ao longo de
todo século XX, vem sendo bastante modificada em seu contorno
espacial e temporal, organizacional e tecnológico, em sua gestão e
controle do trabalho.
Aflora uma nova contradição: as divisórias desapareceram,
o trabalho é organizado em células, com suas metas, competên-
cias, adquirem uma aparência mais participativa mais envolvente
e (também aparentemente) menos despótica em relação à planta
fábrica taylorista, mas, em contraposição, ela desregulamentado

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Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
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mais intensamente, informaliza mais fortemente e intensifica mais


profundamente o trabalho, estruturando um complexo nexo entre
objetividade e subjetividade, procurando dilapidar todos os laços
de solidariedade e de ação coletiva.
Desse modo, ao contrário do sistema tayloriano-fordista que
externava relativo desprezo ao saber do trabalho, a pragmática da
empresa liofilizada, na melhor linhagem do toyotismo, apropria-se
o mais profundamente do intelecto do trabalho para potencializar
mais valor à produção, não importa se ela é predominantemente
material ou imaterial.
E, ao efetivar essa prática, as empresas desenvolvem novos
mecanismos de interiorização, de personificação incitada do tra-
balho, incentivando o exercício de uma subjetividade marcada
pela inautenticidade, visto que é voltada para os interesses das
empresas, do aumento do lucro e da produtividade. Como esse
exercício da subjetividade na lógica da empresa não pode aceitar,
por exemplo, a proposta de realização de uma greve para reivin-
dicar melhores condições de trabalho, ela acaba por assumir uma
feição anti coletiva, anti sindical e anti solidária.
Como procurei sintetizar em Os Sentidos do Trabalho: “Ain-
da que fenomenicamente minimizado pela” redução da separação
entre a elaboração e a execução, pela redução dos níveis hierárqui-
cos no interior das empresas, a subjetividade que emerge na fábri-
ca ou nas esferas produtivas contemporâneas é expressão de uma
existência inautêntica e estranhada. Contando com maior ‘par-
ticipação’ nos projetos que nascem das discussões dos círculos de
controle de qualidade, com maior ‘envolvimento’ dos trabalhadores,
a subjetividade que então se manifesta encontra-se estranhada em
relação ao que se produz e para quem se produz [...]. Mais com-
plexificada, a aparência de maior liberdade no espaço produtivo tem
como contrapartida o fato de que as personificações do trabalho
devem se converter ainda mais em personificações do capital. Se

12
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

assim não o fizerem, se não demonstrarem estas aptidões, (vontade,


disposição e desejo), são substituídos por outros trabalhadores ou
trabalhadoras que demonstrem ‘perfil’ e ‘atributos’ para aceitar estes
‘novos desafios’. (Antunes, 2013, p. 130).
Os resultados novamente se evidenciam: complexificam-se as
formas de coisificação e reificação, uma vez que a aparência de um
despotismo mais ameno se confunde com uma interiorização ainda
mais profunda, amplificando as formas modernas do estranhamento.
Portanto, se a empresa tayloriano-fordista exercia um des-
potismo mais explícito em seu desenho, conformando uma cons-
ciência mais coisificada e reificada, a empresa da flexibilidade
liofilizada, ainda que tenham a aparência de maior autonomia
e participação, desenvolveram novas técnicas de gestão de pes-
soas que procuram envolver as personificações do trabalho de
modo mais interiorizado, com muito maior intensidade subjetiva,
buscando convertê-los em uma espécie de déspotas de si mes-
mos (Antunes, 2015), praticantes de uma subjetividade eivada
de inautenticidade. (Lukács, 1981; Tertulian, 1993).
Mas, além dessas metamorfoses na esfera do trabalho e da
produção, o capitalismo vem trazendo também uma significativa
ampliação na esfera da lei do valor, em seus mecanismos de fun-
cionamento, que tem sido vital para seu desempenho. Vamos, no
item seguinte, indicar algumas de suas principais tendências.

1. A invisibilidade do trabalho, o
infoproletariado e a lei do valor
As formas atuais do capitalismo, ao mesmo tempo em que
expulsam da produção uma infinitude de trabalhadores que se
tornam sobrantes, descartáveis e desempregados, geram novos me-
canismos para a criação e potencialização do valor. Em plena eclo-

13
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

são da mais recente crise global que atinge centralmente os países


do Norte, esse quadro se amplia sobremaneira e nos faz presenciar
um desperdício enorme de força humana de trabalho, uma corro-
são ainda maior do trabalho contratado e regulamentado que foi
dominante ao longo do século XX, de matriz tayloriano-fordista.
Como vivenciamos uma processualidade multitendencial,
paralelamente à ampliação de grandes contingentes que se pre-
carizam intensamente ou perdem seu emprego, presenciamos
também a expansão de novos modos de extração do trabalho, ca-
pazes de articular um maquinário altamente avançado - de que
são exemplo as tecnologias de comunicação e informação - que
invadiram o mundo das mercadorias, cujas atividades são dotadas
de maiores qualificações e competências e são fornecedoras de
maior potencialidade intelectual (aqui entendida em seu restri-
to sentido dado pelo mercado), integrando-se ao trabalho social,
complexo e combinado que efetivamente agrega valor.
É como se todos os espaços existentes de trabalho fossem
potencialmente convertidos em geradores de mais-valor, desde
aqueles que ainda mantêm laços de formalidade e contratualida-
de, até aqueles que se pautam pela aberta informalidade, na franja
integrada ao sistema, não importando se as atividades realizadas
sejam predominantemente manuais ou mais acentuadamente in-
telectualizadas, dotadas de conhecimento.
Assim, neste universo caracterizado pela subsunção do traba-
lho ao mundo maquínico (seja pela vigência da máquina-ferramen-
ta autômata do século XX, seja pela máquina-informacional-digital
dos dias atuais), o trabalho estável, herdeiro da fase tayloriano-for-
dista, relativamente moldado pela contratação e regulamentação,
vem sendo substituído pelos mais distintos e diversificados modos
de informalidade, de que são exemplo: o trabalho atípico, os traba-
lhos terceirizados (com sua enorme gama e variedade), o cooperati-
vismo, o empreendedorismo, o trabalho voluntário etc.

14
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Esta nova morfologia do trabalho, ao mesmo tempo em que


abrange os mais distintos modos de ser da informalidade, vem am-
pliando o universo do trabalho invisibilizado, ao mesmo tempo em
que potencializa novos mecanismos geradores do valor, ainda que sob
a aparência do não valor, utilizando-se de novos e velhos mecanis-
mos de intensificação (quando não de auto exploração) do trabalho2.
Como o capital só pode reproduzir-se acentuando seu forte sen-
tido de desperdício, é importante enfatizar que é a própria “centrali-
dade do trabalho abstrato que produz a não centralidade do traba-
lho, presente na massa dos excluídos do trabalho vivo” que, uma vez
(des) socializados e (des) individualizados pela expulsão do trabalho,
“procuram desesperadamente, encontrar formas de individuação e de
socialização nas esferas isoladas do não trabalho (atividade de forma-
ção, de benevolência e de serviços)” (TOSEL, 1995, p. 210)
O que nos permite indicar outra hipótese que será apresen-
tada neste artigo: menos do que a propalada perda de validade do
valor, conforme propugnaram Habermas (1989, 1991 e 1992) e Gorz
(2003, 2005, 2005a), dentre tantos outros, nossa hipótese é que essa
aparente invisibilidade do trabalho é a expressão fenomênica que
encobre a real geração de mais-valor em praticamente todas as
esferas do mundo laborativo onde o mesmo possa ser realizado.
As diversas teses e formulações que defendiam o descentra-
mento do trabalho e sua perda de relevância enquanto elemento
societal estruturante, anunciada por GORZ (1982) e desenvolvida
por OFFE (1989), MÉDA (1987) e HABERMAS (1991 e 1992)
- fortalecida pela contextualidade de mudanças no mundo da pro-
dução no último quartel do século XX - propugnavam que o tra-
balho vivo tornava-se cada vez mais residual como fonte criadora

2 Nos livros Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil, vol. I (Boitempo, 2006) e


no Vol. II, (Boitempo, 2013) e vol. III (Boitempo, 2014), sob nossa coordenação,
oferecem amplo material empírico acerca do cenário brasileiro e sustentam as
caracterizações que seguem.

15
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

de valor, dado que estaríamos presenciando a emergência de novos


estratos sociais oriundos das atividades comunicativas, movidas
pelo avanço tecnocientífico e pelo advento da “sociedade da infor-
mação” (ANTUNES; BRAGA, 2009).
De certo modo, estas formulações recuperavam o argumen-
to na linhagem das sociedades pós-industriais (Bell, 1977) que
proclamava a superação do trabalho degradado, típico da fábrica
taylorista e fordista, pela “criatividade” presente nas atividades de
serviços, associadas às tarefas de concepção e planejamento de
processos produtivos, presentes nos trabalhos das chamadas tec-
nologias de informação e comunicação.
Mas estas teses não tiveram força duradoura. Decorridas
poucas décadas, inúmeras pesquisas recentes vêm problematizan-
do agudamente essas assertivas, demonstrando que o infoproleta-
riado (ou cybertariado), ao contrário do desenho acima esboça-
do, parece exprimir muito mais uma nova condição de assalaria-
mento no setor de serviços, um novo segmento do proletariado
não industrial, sujeito à exploração do seu trabalho, desprovido
do controle e da gestão do seu labor e que vêm crescendo de ma-
neira exponencial, desde que o capitalismo deslanchou a chamada
era das mutações tecno-informacional-digital.
No Brasil, por exemplo, desde o início do ciclo de privatiza-
ções pelo qual passou o setor de telecomunicações, na segunda
metade da década de 1990, estimava-se em 2005, que o número de
tele operadores atuando dentro e fora dos call center, as Centrais
de Tele atividades (CTAs), seria de aproximadamente 675 mil.
Em 2015 esse contingente ultrapassa se aproxima da casa de um
milhão e meio de trabalhadores/as (com forte predominância do
trabalho feminino), sendo que as tele operadoras/es representam
uma das maiores categorias de assalariados, em franco processo de
crescimento também em escala global.

16
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Como sabemos, a privatização das telecomunicações acarretou


um processo intensificado de terceirização do trabalho, comportando
múltiplas formas de precarização e de intensificação dos tempos e mo-
vimentos no ato laborativo. Desenvolvia-se, então, uma clara conflu-
ência entre a terceirização do trabalho e sua precarização, dentro da
lógica da mercadorização dos serviços que foram privatizados.
Castillo (2007) observou a evolução do trabalho em fábricas
de software e ofereceu pistas empíricas e analíticas sugestivas.E re-
ferindo ao trabalho de Michael Cusumano, afirmou que:

[...] produzir software não é como qualquer outro negócio,


como a fabricação de muitos outros bens ou serviços. Por-
que uma vez criado, tanto custa fazer uma cópia, como
um milhão. Porque é um tipo de empresa cujo lucro sobre
as vendas pode chegar a 99%. Porque é um negócio que
pode mudar, sem mais, de fabricar produtos a fabricar ser-
viços (CASTILLO, 2007, p. 37).
E acrescenta que:

Muitos pesquisadores têm chamado a atenção a esta riqueza


de figuras produtivas e de vivências e expectativas de traba-
lho, e inclusive para as repercussões na vida privada e na or-
ganização do tempo. Com uma ênfase especial, precisamen-
te, nos trabalhadores de software cujos postos de trabalho se
movem entre ‘a rotina e os postos de maior nível’ (Id. Ibid.).

Portanto, ao contrário do que foi propugnado pelas teses da


“sociedade pós-industrial” e do “trabalho criativo informacional”,
o labor no setor de telemarketing tem sido pautado por uma proces-
sualidade contraditória, uma vez que:

1) articula tecnologias do século XXI (tecnologias de infor-


mação e comunicação) em condições de trabalho herdei-
ras do século XX;

17
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

2) combina estratégias de intensa emulação dos tele opera-


dores/as, ao modo da flexibilidade toyotizada, com téc-
nicas gerenciais tayloristas de controle sobre o trabalho
predominantemente prescrito;

3) associa o trabalho em grupo com a individualização das


relações de trabalho, estimulando tanto a cooperação,
como a concorrência entre os trabalhadores, dentre
tantos outros elementos que conformam sua atividade.
(ANTUNES, BRAGA, 2009).

Mas, além das limitações das teses que não foram capazes
de compreender as condições concretas presentes no trabalho do
telemarketing, dos call centers e das indústrias de tecnologias de co-
municação e informação, há ainda uma indagação central: estas
atividades tidas como predominantemente imateriais têm ou
não conexões com os complexos mecanismos da lei do valor
hoje operantes em seu processo de valorização?
André Gorz, autor responsável por uma vasta e conhecida obra,
também se alinhou junto aos autores que defendem a “intangibilidade
do valor”, uma vez que, segundo ele, o trabalho de perfil predominan-
temente imaterial não mais poderia ser mensurável segundo padrões
e normas preestabelecidas e vigentes nas fases anteriores. (Gorz, 2005,
p. 18). Diferentemente do autômato – modalidade do trabalho na era
da maquinaria de matriz tayloriano-fordista, Gorz afirma que os

[...] trabalhadores pós-fordistas devem entrar no processo


de produção com toda a bagagem cultural que eles adqui-
riram nos jogos, nos esportes de equipe, nas lutas, dispu-
tas, nas atividades musicais, teatrais, etc. É nessas ativi-
dades fora do trabalho que são desenvolvidas sua vivaci-
dade, sua capacidade de improvisação, de cooperação. É

18
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

seu saber vernacular que a empresa pós-fordista põe para


trabalhar, e explora (Ibid., p. 19).

Assim, sempre segundo o autor, o saber tornou-se a mais im-


portante fonte de criação de valor, uma vez que está na base
da inovação, da comunicação e da auto-organização criativa e
continuamente renovada. Desse modo, o “trabalho do saber vivo
não produz nada materialmente palpável. Ele é, sobretudo na
economia da rede, o trabalho do sujeito cuja atividade é produzir
a si mesmo” (Ibid., p. 20, grifos meus). Como consequência, aflora
a tese da intangibilidade do valor-trabalho:

O conhecimento, diferentemente do trabalho social geral,


é impossível de traduzir e de mensurar em unidades abs-
tratas simples. Ele não é redutível a uma quantidade de
trabalho abstrato de que ele seria o equivalente, o resul-
tado ou o produto. Ele recobre e designa uma grande di-
versidade de capacidades heterogêneas, ou seja, sem medida
comum, entre as quais o julgamento, a intuição, o senso
estético, o nível de formação e de informação, a faculdade
de apreender e de se adaptar a situações imprevistas; ca-
pacidades elas mesmas operadas por atividades heterogê-
neas que vão do cálculo matemático à retórica e à arte, de
convencer o interlocutor; da pesquisa técnico-cientítica à
invenção de normas estéticas (Ibid., p. 29).

Sua defesa desta tese, então, torna-se clara:

A heterogeneidade das atividades de trabalho ditas ‘cogni-


tivas’, dos produtos imateriais que elas criam e das capaci-
dades e saberes que elas implicam, torna imensurável tanto
o valor das forças de trabalho, quanto o de seus produtos.
As escalas de avaliação do trabalho se tornam um tecido
de contradições. A impossibilidade de padronizar e estan-

19
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

dardizar todos os parâmetros das prestações demandadas


se traduz em vãs tentativas para quantificar sua dimensão
qualitativa, e pela definição de normas de rendimento cal-
culadas quase por segundo, que não dão conta da qualidade
“comunicacional” do serviço exigido por outrem (Id. Ibid.)

E, desse modo, indica sua conclusão, na mesma direção da-


queles que defendem a perda de referência da teoria do valor:

A crise da medição do tempo de trabalho engendra inevi-


tavelmente a crise da medição do valor. Quando o tempo
socialmente necessário a uma produção se torna incerto,
essa incerteza não pode deixar de repercutir sobre o va-
lor de troca do que é produzido. O caráter cada vez mais
qualitativo, cada vez mais menos mensurável do trabalho,
põe em crise a pertinência das noções de “sobretrabalho”
e de ‘sobrevalor’. A crise da medição do valor põe em crise
a definição da essência do valor. Ela põe em crise, por
consequência, o sistema de equivalências que regula as
trocas comerciais (Ibid., p. 29-30).

A desmedida do valor torna-se então, dominante, levando


ao enfraquecimento e exaustão da teoria do valor. Essa tese, vale
dizer, tem nítida confluência com a formulação habermasiana,
uma vez que, com o avanço da ciência, ocorreria uma inevitável
descompensação do valor que torna supérfluo o trabalho vivo. A
passagem abaixo explicita a tese de modo transparente:

Com a informatização e a automação, o trabalho deixou de ser


a principal força produtiva e os salários deixaram de ser o prin-
cipal custo de produção. A composição orgânica do capital
(isto é, a relação entre capital fixo e capital de giro) aumen-
tou rapidamente. O capital se tornou o fator de produção
preponderante. A remuneração, a reprodução, a inovação
técnica contínua do capital fixo material requerem meios

20
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

financeiros muito superiores ao custo do trabalho. Este úl-


timo é com frequência inferior, atualmente, a 15% do custo
total. A repartição entre capital e trabalho do ‘valor’ produ-
zido pelas empresas pende mais e mais fortemente em favor
do primeiro. [...] Os assalariados deviam ser constrangidos a
escolher entre a deterioração de suas condições de trabalho e
o desemprego (Gorz, 2005a, p. 27-28, grifos meus).

Se o valor não mais encontra possibilidade de medição e


a ciência informacional termina por substituir o trabalho vivo,
é inevitável a desmedida do valor, agora fortalecida pela tese da
imaterialidade do trabalho. (Antunes, 2013).
Ao contrário da propositura de André Gorz, nossa hipótese
é a que a sua analítica, ao converter o trabalho imaterial como do-
minante e mesmo determinante no capitalismo atual e desvincu-
lado da geração de valor, acabou por realizar um bloqueio que obs-
taculizou a possibilidade de compreender as novas modalidades e
formas de vigência dessa lei, modalidades estas que se encontram
presentes no novo proletariado de serviços (o cybertariado ou in-
foproletariado), que exercem atividades de perfil acentuadamente
imateriais, mas que é parte constitutiva da criação de valor e mais
ou menos imbricada com os trabalhos materiais.
Assim, nossa hipótese é que a tendência crescente (mas não
dominante) do trabalho imaterial expressa, na complexidade da
produção contemporânea, distintas modalidades de trabalho vivo
e, enquanto tal, partícipes em maior ou menor medida do processo
de valorização do valor.
E não é demais lembrar que as formulações que hiperdimen-
sionam o trabalho imaterial e o convertem em elemento dominan-
te, frequentemente desconsideram as tendências empíricas presen-
tes no mundo do trabalho no Sul do mundo, onde se encontram
países como China, Índia, Brasil, México, África do Sul etc., do-
tados de enorme contingente de força de trabalho.

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Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

No universo mais analítico, é preciso acrescentar que, como


ciência e trabalho mesclam-se ainda mais diretamente no mundo
da produção, a potência criadora do trabalho vivo assume tanto a
forma ainda dominante do trabalho material como a modalidade
tendencial do trabalho imaterial, uma vez que a própria criação do
maquinário informacional-digital avançado é resultado da intera-
ção ativa entre o saber intelectual e cognitivo do trabalho atuando
junto à máquina informatizada.
E, neste movimento relacional, o trabalho humano transfere
parte dos seus atributos subjetivos ao novo equipamento que re-
sultou deste processo, objetivando atividades subjetivas. (Lojkine,
1995 e 1995a). Na síntese de Marx, são “órgãos do cérebro huma-
no logrado pelas mãos humanas” (Marx, 1974a), o que acaba por
conferir, no capitalismo de nossos dias, novas dimensões e confi-
gurações à teoria do valor, uma vez que as respostas cognitivas do
trabalho, quando suscitadas pela produção, são partes constituti-
vas do trabalho social, complexo e combinado criador de valor.
Para usar uma conceitualização de J. M. Vincent (1993), a
imaterialidade tornou-se, então, expressão do trabalho intelectual
abstrato, que não leva à extinção do tempo socialmente médio de
trabalho para a configuração do valor, mas, ao contrário, insere os
crescentes coágulos de trabalho imaterial na lógica da acumula-
ção, inserindo-os no tempo social médio de um trabalho cada vez
mais complexo, assimilando-os à nova fase da produção do valor.

Uma nota conclusiva


Portanto, ao contrário da propalada descompensação ou per-
da de validade da lei do valor, a ampliação das atividades dotadas
de maior dimensão intelectual, tanto nas atividades industriais
mais informatizadas, quanto nas esferas compreendidas pelo se-

22
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

tor de serviços e/ou nas comunicações, configuram um elemento


novo e importante para uma efetiva compreensão dos novos me-
canismos do valor hoje3.
Assim, menos do que perda de relevância da teoria do valor,
estamos vivenciando a ampliação das suas formas, configurando
novos mecanismos de extração do sobre trabalho, conforme os
inúmeros exemplos que apresentamos no início deste artigo.
Portanto, a ampliação da produção imaterial ou “produção
não material” (MARX, 1994) no mundo atual, acaba por ser mais
precisamente definida como expressão da esfera informacional da
forma-mercadoria (VINCENT, 1993, 1995), ao contrário de sua
compreensão como intangível e, portanto, não geradora de valor4.
E, quando Gorz afirma que a deterioração das condições de
trabalho, bem como o desemprego seriam elementos conformado-
res da tese do definhamento do trabalho, talvez pudéssemos lem-
brar que esta tendência está presente desde a gênese do capitalis-
mo. No volume III de O Capital, dentre tantas outras partes em
que tratou da temática, ao discorrer sobre a economia no empre-
go e a utilização dos resíduos da produção, Marx pode indicar
essa tendência de modo premonitório:

O capital tem tendência a reduzir ao necessário o traba-


lho vivo diretamente empregado, a encurtar sempre o tra-
balho requerido para fabricar um produto – explorando as

3 Vale recordar que a Toyota, na sua unidade de Takaoka, estampava estes dizerem
na entrada da fábrica: “Yoi kangae, yoi shina” (bons pensamentos significam bons
produtos). Business Week, 18 nov. 2003.
4 Ver também TOSEL, 1995. O enorme avanço produtivo da China e da Índia,
especialmente nas últimas décadas, ancorado na monumental força sobrante de
trabalho e na incorporação das tecnologias informacionais, é mais um argumento
para recusar a tese da perda de relevo do trabalho vivo no mundo da produção de
valor, o que também fragiliza os defensores da imaterialidade do trabalho como
forma de superação ou inadequação ou descompensação da lei do valor.

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Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

forças produtivas sociais do trabalho – e, portanto, a eco-


nomizar o mais possível o trabalho vivo diretamente apli-
cado. Se, observamos de perto a produção capitalista [...]
verificamos que procede de maneira extremamente parci-
moniosa com o trabalho efetuado, corporificado em mer-
cadorias. Entretanto, mais do que qualquer outro modo
de produção, esbanja seres humanos, desperdiça carne e
sangue, dilapida nervos e cérebro [...] Todas as parcimô-
nias de que estamos tratando decorrem do caráter social
do trabalho, e é de fato esse caráter diretamente social do
trabalho a causa geradora desse desperdício de vida e da
saúde dos trabalhadores (MARX, 1974, p. 97 e 99).

Portanto, se a “economia do emprego” é algo presente na pró-


pria lógica do sistema de metabolismo social do capital (Mészá-
ros, 1995), a redução do trabalho vivo não significa perda de cen-
tralidade do trabalho abstrato na criação do valor, que há muito
deixou de ser resultado de uma agregação individual de trabalho
para se converter em trabalho social, complexo e combinado e,
que, com o avanço tecno-informacional-digital, não para de se
complexificar e de se potencializar.

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27
Capítulo 2
A terceirização dos serviços nas
esferas pública e privada

Manuel Martín Pino Estrada5

Introdução
A ânsia pelos ganhos econômicos de empregadores no de-
correr das últimas décadas fez que fossem criadas novas formas
de obter mais lucro, e o Direito do Trabalho do Brasil começou a
fazer esforços para enquadrá-las para proteger o trabalhador, tanto
no âmbito público como no privado, para que desta forma, ele não
seja privado dos seus direitos trabalhistas, tarefa que os Tribunais
Regionais do Trabalho e o próprio Tribunal Superior do Trabalho
estão realizando muito bem.

1. Conceito de terceirização
Segundo Maurício Godinho Delgado, a terceirização é o fe-
nômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da
relação justrabalhista que lhe seria correspondente. Por tal fenô-
meno insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador

5 Formado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutorando em Direito pela
Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP).

29
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

de serviços sem que se estendam a este os laços justrabalhistas,


que se preservam fixados com uma entidade interveniente. A ter-
ceirização provoca uma relação trilateral em face da contratação
de força de trabalho no mercado capitalista: o obreiro, prestador
de serviços, que realiza suas atividades materiais e intelectuais
junto à empresa tomadora de serviços; a empresa terceirizante,
que contrata este obreiro, firmando com ele os vínculos jurídicos
trabalhistas pertinentes; a empresa tomadora de serviços, que re-
cebe a prestação de labor, mas não assume a posição clássica de
empregadora desse trabalhador envolvido (DELGADO, 2009).
A terceirização é um fenômeno relativamente novo no Direi-
to do Trabalho do Brasil. A CLT fez menção a apenas duas figuras
delimitadas de subcontratação de mão-de-obra: a empreitada e su-
bempreitada (art. 455), englobando também a figura da pequena
empreitada (art. 652, a, III). À época de elaboração, na década de
1940, a terceirização não constituía algo com abrangência assu-
mida nos últimos trinta anos do século XX (DELGADO, 2009).
Conforme Alice Monteiro de Barros, o fenômeno da terceiriza-
ção consiste em transferir para outrem atividade considerada secun-
dária, ou seja, de suporte, atendo-se a empresa à sua atividade princi-
pal. Assim, a empresa se concentra na sua atividade-fim, transferindo
as atividades meio. Afirma também, que não é possível acreditar que
a terceirização constitua uma solução para todos os problemas empre-
sariais. Esta requer cautela do ponto de vista econômico, pois implica
planejamento de produtividade, qualidade e custos. Os cuidados de-
vem ser redobrados do ponto de vista jurídico, porquanto a adoção
de mão de obra terceirizada poderá implicar reconhecimento direto
de vínculo empregatício com a tomadora dos serviços, na hipótese de
fraude, ou responsabilidade subsidiária dessa última, quando inadim-
plente a prestadora de serviços (BARROS, 2010).
Com a terceirização, a empresa passa a atribuir parte de suas
atividades para outras empresas. Transferem-se a realização das

30
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

atividades iniciais e secundárias (atividades meio), sendo mantidas


as atividades principais. Como atividade principal ou fim entenda-
-se aquela cujo objetivo é essencial à consecução do objetivo social
da própria empresa. O objetivo da terceirização é a diminuição
de custos, além da melhora quanto à qualidade do produto ou do
serviço. Na busca de melhores resultados empresarial, os traba-
lhadores estão perdendo a vinculação jurídica com as empresas,
principalmente pela intermediação que está ocorrendo, com o au-
mento crescente das empresas prestadoras de serviço.
Denota-se o elevado número de contratos por prazo deter-
minado, o que, em essência, colide com a gênese do Direito do
Trabalho. Pelo princípio da continuidade das relações jurídicas la-
borais, torna-se importante a fixação indeterminada dos contratos
de trabalho, respeitando-se os direitos mínimos previstos em lei e
os mais benéficos decorrentes do contrato de trabalho ou de ins-
trumentos normativos. Neste particular, a terceirização é incon-
gruente com o Direito do Trabalho. A integração do trabalhador
à empresa é uma forma de conservação da sua fonte de trabalho,
dando-lhe garantias quanto ao emprego e à percepção de salários.
É fator de segurança econômica. As empresas modernas, em sua
maioria, possuem em seu interior diversos tipos de trabalhadores
que não seus empregados, e sim das empresas prestadoras (loca-
doras de mão-de-obra ou de serviços temporários). O trabalhador
perde o seu referencial dentro da empresa (JORGE NETO, 2010).
No Projeto de Lei nº 1621 de 2007 da autoria do Deputado
Federal Vicentinho do PT/SP conceitua-se no Inciso I do seu art.
2º que a terceirização é a transferência da execução de serviços de
uma pessoa jurídica de direito privado ou sociedade de economia
mista para outra pessoa jurídica de direito privado. No inciso II
dá-se uma definição de tomadora de serviços como a pessoa jurí-
dica de direito privado ou sociedade de economia mista que con-
trata serviços de outra pessoa jurídica prestadora. Em seu inciso

31
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

III, define-se prestadora como a pessoa jurídica de direito privado


que exerce atividade especializada e que, assumindo o risco da
atividade econômica, contrata, assalaria e comanda a prestação
de serviços para uma tomadora.
O Projeto de Lei em questão, também frisa em seu artigo
3º que é proibida a terceirização da atividade-fim da empre-
sa. Neste artigo, o seu criador coloca vários conceitos como a de
atividade fim, sendo o conjunto de operações, diretas e indiretas
que guardam estreita relação com a finalidade central em torno
da qual a empresa foi constituída, está estruturada e se organiza
em termos de processo de trabalho e núcleo de negócios e que
na atividade fim da empresa não será permitida a contratação de
pessoa jurídica, devendo tais atividades ser realizadas somente por
trabalhadores diretamente contratados com vínculo de emprego,
além de que a empresa que pretenda terceirizar serviços informará
ao sindicato respectivo da sua categoria profissional, com no míni-
mo seis meses de antecedência, sobre os projetos de terceirização6.

2. A súmula 331 do TST e a terceirização nas


esferas pública e privada
A Súmula 331 do TST dispõe:

I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta


é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o toma-
dor dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário
(Lei nº 6.019, de 03.01.1974).
II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empre-
sa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da

6 Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?id


Proposicao=359983>. Acesso em: 24 jul. 2011.

32
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

administração pública direta, indireta ou fundacional (art.


37, II, da CF/1988). (Revisão do Enunciado nº 256 - TST)
III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a con-
tratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20-06-
1983), de conservação e limpeza, bem como a de serviços
especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde
que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por
parte do empregador, implica a responsabilidade subsidi-
ária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações,
inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das
autarquias, das fundações públicas, das empresas públi-
cas e das sociedades de economia mista, desde que ha-
jam participado da relação processual e constem também
do título executivo judicial (art. 71 da Lei nº 8.666, de
21.06.1993). (Alterado pela Res. 96/2000, DJ 18.09.2000).
Com a intenção de equacionar a fiscalização administrativa,
o Ministério do Trabalho e Emprego emitiu a Instrução Normati-
va 3 de 27 de dezembro de 1989, posteriormente revogada pela de
nº 7 de 21 de fevereiro de 1990, a qual foi revogada pela de nº 3 de
29 de agosto de 1997. A terceirização ganha fôlego com o art. 129
da Lei 11.196/05 que prevê que para fins fiscais e previdenciários, a
prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científi-
ca, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou
sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados
da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se
sujeita tão somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem
prejuízo da observância do disposto no art. 50 do Código Civil.
A Instrução Normativa 3 de 1997, dispõe sobre a fiscalização
do trabalho nas empresas de prestação de serviços a terceiros e
empresas de trabalho temporário, adotando as inovações intro-
duzidas pela Súmula 331. Na terceirização, há a intermediação da
mão de obra pelas empresas prestadoras de serviços. De um lado,

33
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

tem-se a empresa tomadora e, de outro, a prestadora. Os trabalha-


dores são subordinados diretamente à empresa prestadora e não à
tomadora. A relação jurídica é triangular, existindo entre a em-
presa tomadora e a prestadora um contrato regido pelas leis do
direito civil, de evidente prestação de serviços. Já entre a empresa
prestadora e o trabalhador há um contrato de trabalho que corres-
ponde à relação jurídica.
Segundo o art. 2º da Instrução Normativa 3 do MTE, a empre-
sa prestadora de serviços é a pessoa jurídica de direito privado, legal-
mente constituída, de natureza comercial e que se presta a realizar
determinado e específico serviço a outra empresa fora do âmbito das
atividades-fim e normais para que se constituiu esta última. Em seu
art. 2º há várias características, dentre elas: “a) as relações entre a
empresa de prestação de serviços a terceiros e a empresa contratante
são regidas pela lei civil (§ 1º); b) as relações de trabalho entre a
empresa de prestação de serviços a terceiros e seus empregados são
disciplinados pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (§ 2º);
e c) em se tratando de empresa de vigilância e de transportes de va-
lores, as relações de trabalho estão reguladas pela Lei nº 7.102/83 e,
subsidiariamente, pela CLT (§ 3º);” d) dependendo da natureza dos
serviços contratados, a prestação dos mesmos poderá se desenvolver
nas instalações físicas da empresa contratante ou em outro local
por ela determinado (§ 4º); e) a empresa de prestação de serviços a
terceiros contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus
empregados (§ 5º) e f) Os empregados da empresa de prestação de
serviços a terceiros não estão subordinadas ao poder diretivo, técni-
co e disciplinar da empresa contratante (§ 6º).
Empresa tomadora ou contratante, a pessoa física ou jurídica
de direito público ou privado que celebrar contrato com empresas
de prestação de serviços a terceiros com a finalidade de contra-
tar serviços (art. 3º da IN nº 3 de 1997). As características desta
relação jurídica são: a) a contratante e a empresa prestadora de

34
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

serviços a terceiros devem desenvolver atividades diferentes e ter


finalidades distintas (§ 1º); b) contratante não pode manter tra-
balhador em atividade diversa daquela para o qual o mesmo fora
contratado pela empresa de prestação de serviços a terceiros (§
2º); c) em se tratando de empresas do mesmo grupo econômico,
onde a prestação de serviços se dê junto a uma delas, o víncu-
lo empregatício se estabelece entre a contratante e o trabalhador
colocado a sua disposição, nos termos do art. 2º da CLT (§ 3º) e
d) o contrato de prestação de serviços a terceiros pode abranger o
fornecimento de serviços, materiais e equipamentos (§ 4º).
Segundo o art. 4º desta norma, o contrato celebrado entre
a empresa prestadora de serviços de terceiros e pessoa jurídica de
direito público, é tipicamente administrativo, com direitos civis,
na conformidade do § 7º, art. 10 do Decreto-Lei nº 200/67 e da
Lei nº 8.666/93 e em seu parágrafo único afirma-se que “não gera
vínculo de emprego com os órgãos de Administração Pública Di-
reta, Indireta ou Fundacional, a contratação irregular de trabalha-
dor mediante empresa interposta, de acordo com o Enunciado nº
331 do Tribunal Superior do Trabalho – TST”7.
Nos casos em que a contratação é feita com intuito fraudu-
lento, objetivando prejudicar direitos trabalhistas, o vínculo se dá
diretamente com o tomador dos serviços, exceto aqueles casos de
trabalho temporário (Lei 6019/74), de serviços de vigilância (Lei
7.102/83), de conservação e limpeza, além dos serviços especiali-
zados ligados a atividade-meio do tomador, desde que inexistentes
a pessoalidade e a subordinação direta (Súmula 331, I e III do
TST). A terceirização não é possível na atividade-fim da empresa
tomadora, logo, se assim, ocorrer, também haverá a imposição do
vínculo de emprego com o tomador dos serviços (Súmula 331, III).

7 Disponível em: <http://portal.mte.gov.br/legislacao/strucao-normativa-n-03-


de-01-09-1997.htm>. Acesso em: 23 jul. 2015.

35
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Diferentemente do que ocorre na iniciativa privada, a contra-


tação irregular (terceirização fraudulenta ou terceirização impossí-
vel) de trabalhador mediante empresa interposta não gera vínculo
de emprego diretamente com a administração pública (art. 4º, pará-
grafo único, IN nº 3; Súmula 331, II), isso porque a contratação de
trabalhador sem concurso público pela administração pública direta
e indireta é nula (art. 37, II, § 2º da CF; Súmula 363 do TST e Sú-
mula 685 do STF). Apesar da contratação irregular de trabalhador,
mediante empresa interposta, não implicar a geração de vínculo de
emprego com ente da administração pública, pela aplicação do prin-
cípio da isonomia, tem-se o direito dos empregados terceirizados às
mesmas verbas trabalhistas legais e normativas asseguradas àqueles
contratados pelo tomador dos serviços, desde que presente a igual-
dade de funções. É um desdobramento da aplicação analógica do
art. 12, a, da Lei 6019/74 (OJ 383, SDI – I).
A terceirização não pode ser um instrumento de diminuição de
salários e direitos sociais dos trabalhadores, a igualdade salarial no se-
tor público, até por conta de suas peculiaridades, não tem sido admi-
tida dentro da administração pública (art. 37, XII da CF; Súmula 339
do STF e OJ 297 da SDI – I, tanto que o Enunciado 16 da 1ª Jornada
de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho menciona):

I - SALÁRIO. PRINCÍPIO DA ISONOMIA. Os estreitos


limites das condições para a obtenção da igualdade salarial
estipulados pelo art. 461 da CLT e Súmula n. 6 do Colendo
TST não esgotam as hipóteses de correção das desigualdades
salariais, devendo o intérprete proceder à sua aplicação na
conformidade dos artigos 5º, caput, e 7º, inc. XXX, da Cons-
tituição da República e das Convenções 100 e 111 da OIT.
II - TERCEIRIZAÇÃO. SALÁRIO EQUITATIVO.
PRINCÍPIO DA NÃO DISCRIMINAÇÃO. Os empre-
gados da empresa prestadora de serviços, em caso de ter-
ceirização lícita ou ilícita, terão direito ao mesmo salário

36
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

dos empregados vinculados à empresa tomadora que exer-


cerem função similar8.

A questão está em saber se não havendo vínculo com a ad-


ministração pública, haveria alguma responsabilidade pelo pa-
gamento dos direitos trabalhistas não cumpridos pelas empresas
prestadoras de serviços. A lei 8.666/93, que disciplina o processo
licitatório, em seu art. 71, § 1º, exclui qualquer responsabilidade da
administração por encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não
quitados pelas empresas prestadoras de serviços.
Por outro lado, o § 2º do art. 71 atribui à administração a res-
ponsabilidade solidária pelos encargos previdenciários resultantes
do contrato de acordo com o art. 31 da Lei 8.212/91. Ressalvados
os casos especificados na legislação própria, a Carta Magna de-
termina que: as obras, os serviços, as compras e as alienações so-
mente serão contratadas mediante processo de licitação pública, a
qual tem como pressuposto basilar a igualdade de condições entre
todos os concorrentes (art. 37, XXI).
Desta forma, invocando o princípio da estrita legalidade,
entender-se-ia que a administração não pode ser tida como res-
ponsável por nenhum ato praticado pela empresa vencedora do
processo licitatório. Até porque a atribuição de fiscalização do
cumprimento das normas trabalhistas é de competência dos ór-
gãos integrantes do Ministério do Trabalho e Emprego, como as
delegacias regionais do trabalho e do Ministério Público do Tra-
balho. Acrescente-se a isso que nem poderia a administração, se
quisesse, criar regras no processo licitatório sobre fiscalização das
normas trabalhistas, por ser da União, apenas, a competência para
legislar sobre direito do trabalho (art. 22, I da CF).

8 Disponível em: <http://www.tst.gov.br/ASCS/Noticias/2007/enunciados_jornada.


pdf>. Acesso em: 23 jul. 2015.

37
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Pensar que eventuais cláusulas contratuais possuem caráter pri-


vado, sendo facultado às partes dispor de forma ampla e irrestrita, des-
de que não atentem contra restrições legais, é um equívoco, porque
a administração está adstrita à legalidade em todos os seus atos e os
contratos celebrados com a administração são regidos pelos princípios
e normas de direito público e não privado, como ocorre na iniciativa
privada. Ademais, poder-se-ia lembrar que a maior parte dos municí-
pios e mesmo dos órgãos da administração pública não possui quadro
técnico suficiente ou com competência técnica para supervisionar to-
dos os serviços terceirizados, de maneira que obrigaria o administra-
dor a promover outro processo licitatório, agora para contratar uma
empresa fiscalizadora/auditora, o que seria complicado do ponto de
vista administrativo, burocrático e do custo operacional.
O TST, inicialmente apenas atribuía a responsabilidade
subsidiária do tomador dos serviços pelo inadimplemento das
obrigações trabalhistas quando tivesse participado da relação
processual e constasse também do título executivo judicial (Sú-
mula 331, IV). Com a resolução 96, de 11 de setembro de 2000,
o item IV da Súmula 331 sofreu alteração, passando a atribuir
expressamente responsabilidade subsidiária para a administra-
ção pública, apesar do previsto no art. 71 da Lei 8666/93. Neste
ponto, dois podem ser os posicionamentos: a) inconstitucionali-
dade do art. 71, § 1º, da Lei 8666/93, na medida em que estaria
violando o princípio constitucional da igualdade (art. 5º, caput) e
os preceitos de que o trabalho é um dos fundamentos do Estado
democrático (art. 6º), a ordem econômica deve estar fundada na
valorização do trabalho (art. 193) e b) inaplicabilidade do art.
71, § 1º, nas questões de terceirização trabalhista, já que há o
sistema positivo a atribuir responsabilidade àquele que age com
culpa in vigilando e in eligendo, além de possibilitar a fraude a
direitos trabalhistas (princípio protetor, art. 9º da CLT) e violar
os preceitos constitucionais mencionados.

38
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

O Ministro Ayres Britto salienta que a terceirização não tem


previsão constitucional, logo, diante da inadimplência de obriga-
ções trabalhistas, o poder público há de ser responsabilizado. A
decretação da constitucionalidade do art. 71 pelo STF não impli-
ca na afirmação inexorável de que a Administração Pública está
imune à responsabilidade subsidiária diante do não pagamento
dos direitos trabalhistas dos empregados da empresa prestadora
(JORGE NETO; CAVALCANTE, 2011).
Em outras palavras, a responsabilidade será decretada se,
pelo exame minucioso de cada demanda, houver a culpa do ente
público contratante quanto ao inadimplemento dos direitos tra-
balhistas por parte da prestadora em relação aos seus empregados.
Não se pode esquecer que a Administração Pública responde pelos
danos que seus agentes causarem a terceiros, assegurado o direito
de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa (art.
37, § 6º, CF) (JORGE NETO; Ferreira; CAVALCANTE, 2011).
Segundo o Ministro do TST, Maurício Godinho Delgado, nos Em-
bargos de Declaração em Agravo de Instrumento em Recurso de
Revista n° TST-A-ED-AIRR-15840-32.2006.5.03.0034:

A não responsabilização do tomador de serviços mantém-se


preservada apenas na hipótese do artigo 455 da CLT, ou seja,
quando se tratar de empreitada ou prestação de serviços con-
tratada a terceiros por pessoa física (reforma de residência,
por exemplo) ou mesmo por pessoa jurídica que, de modo
comprovadamente eventual e esporádico, pactuasse especí-
fica obra ou prestação enfocada. Apenas nessas delimitadas
situações é que o dono da obra (ou tomador de serviços) não
responde pelas verbas empregatícias devidas pela empresa
encarregada de realizar a prestação de serviços9.

9 Disponível em: <http://aplicacao5.tst.jus.br/consultaunificada2/>. Acesso em: 23


jul. 2015.

39
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

O entendimento acima está em consonância com a OJ 191


SDI-1 do TST, afirmando que diante da inexistência de previsão
legal, o contrato de empreitada entre o dono da obra e o empreitei-
ro não enseja responsabilidade solidária ou subsidiária nas obriga-
ções trabalhistas contraídas pelo empreiteiro, salvo sendo o dono
da obra uma empresa construtora ou incorporadora.
O Ministro Aloysio Veiga afirma em Recurso de Revista
110/2006-009-08-00 publicado em 31/08/2007, menciona que o:

Inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do


empregador, implica a responsabilidade subsidiária do to-
mador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive
quanto aos órgãos da Administração Pública Direta. A
celebração de convênio de prestação de serviços na área
de saúde, em razão de interesse comum às partes, implica,
assim, a responsabilidade da Administração Pública pelas
consequências jurídicas dele decorrentes, devendo, pois, o
Município responder subsidiariamente pelos direitos tra-
balhistas reconhecidos, não se admitindo possa eximir-se
da responsabilidade decorrente dos serviços a ele prestados
por trabalhadores, cujos créditos não venham a ser adimpli-
dos pelos reais empregadores por ele contratados, na medi-
da em que tal dano decorre da atuação pública, incorrendo
o tomador dos serviços, para além de sua responsabilidade
objetiva, em culpa in eligendo e in vigilando, nos exatos ter-
mos do entendimento consagrado pela Súmula nº 331, IV,
do TST. Recurso de revista conhecido e provido”10.

Conclusão
Para o trabalhador terceirizado no âmbito privado, se a
empresa terceirizadora não cumprir com as suas obrigações tra-

10 Disponível em: <http://aplicacao5.tst.jus.br/consultaunificada2/. Acesso em: 24 jul. 2015.

40
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

balhistas legais, quem terá que fazê-las é a empresa que está se


beneficiando da prestação dos serviços e no caso de trabalhador
terceirizado no âmbito público, se a empresa terceirizadora não
cumprir com as suas obrigações trabalhistas legais, o órgão público
será o encarregado de cumpri-las, por causa da culpa in eligendo e
in vigilando, entendimento já consolidado na Súmula 331 do TST.

Referências

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 6.


ed. São Paulo: Ltr, 2010.

BRASIL. Projeto de lei nº 1.621 de 12 de julho de 2007. Dispõe


sobre as relações de trabalho em atos de terceirização e na pres-
tação de serviços a terceiros no setor privado e nas sociedades
de economia mista. In: Diário Oficial da República Federativa
do Brasil, Brasília, DF, 22 abr. 2007. Disponível em: <http://
www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposi
cao=359983. Acesso em: 24 jul. 2011.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho.


8. ed. São Paulo: Ltr, 2009.

JORGE NETO, Francisco Ferreira; CAVALCANTE, Jouberto


de Quadros Pessoa. A terceirização na administração pública e
a constitucionalidade do art. 71 da Lei 8666/93, declarada pelo
STF (novembro de 2010). Revista Bonijuris, Curitiba, n. 571, a.
XXIII, jun. 2011.

JORGE NETO, Francisco Ferreira; CAVALCANTE, Jouberto


de Quadros Pessoa. Direito do Trabalho, Tomo I, 5. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010.

41
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Ministério do Trabalho e Emprego. Disponível em: <http://por-


tal.mte.gov.br/legislacao/strucao-normativa-n-03-de-01-09-1997.
htm>. Acesso em 23 jul. 2015.

Tribunal Superior do Trabalho. Disponível em: <http://www.tst.


gov.br>. Acesso em 23 jul. 2015.

42
Capítulo 3
O Trabalho Feminino: A divisão sócio-
sexual do trabalho e da reprodução.11

Claudia Mazzei Nogueira12

Introdução
O trabalho, ao longo do processo histórico, apresenta-se de
inúmeras formas, atendendo às necessidades de cada momento.
No entanto, ele se mantém sempre como um momento de efetiva-
ção de relações sociais, visando à produção social e a reprodução
da humanidade. O que nos permite afirmar que o trabalho é um
pôr teleológico do ser social, que o capacita como um ser cons-
ciente. Não é por outro motivo que Lukács afirma que Marx tinha
razão ao especificar que:

O trabalho, como formador de valores de uso, como traba-


lho útil, é uma condição de existência do homem, indepen-
dente de quaisquer formas de sociedade, é uma necessidade

11 Este texto foi publicado anteriormente, com pequenas alterações, na Revista


Herramienta (Buenos Aires).
12 Professora Doutora do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de São
Paulo – UNIFESP-BS e do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciência
da Saúde. É autora dos livros A Feminização no Mundo do Trabalho – Editora
Autores Associados – (2004) e O Trabalho Duplicado – Editora Expressão Popular
– (2011). É também pesquisadora do CNPq.

43
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

natural eterna que tem a função de mediar o intercâmbio


entre o homem e a natureza, isto é, a vida dos homens.

E acrescenta:

Até que não tenha entrado numa relação reflexiva com o


valor de troca, o que somente pode acontecer num estágio
relativamente muito elevado, o valor de uso nada mais de-
signa do que um produto do trabalho que o homem pode
usar apropriadamente para a reprodução da sua própria
existência. No trabalho estão gravadas in nuce todas as
determinações que, [...], constituem a essência de tudo
que é novo no ser social. (Lukács, 1981, p. 4).13

Por sua vez, Engels nos traz uma rica contribuição, ao analisar o
papel do trabalho na transformação do macaco em homem, ou seja,
discorre sobre o papel do trabalho na humanização do ser social. A
própria condição biológica humana, enquanto constituinte da onto-
logia do ser social, tem como base e fundamento o trabalho humano.
Inicialmente (e em grande medida até os dias de hoje), as mãos dos
homens são responsáveis pela produção de objetos, de mercadorias.
Isto porque, segundo constatação ontológica fundamental de
Marx, ao referir-se ao trabalho, demonstrou que ele é o resultado de

[...] um processo entre o homem e a Natureza, um processo


em que o homem, por sua própria ação, media, regula e con-
trola seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defron-
ta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe
em movimento as forças naturais pertencentes à sua corpo-
ralidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se

13 Todas as citações de Lukács, sobre a questão do trabalho, extraídas de A Ontologia


do Ser Social, que aparecem neste capítulo, foram utilizadas a partir da tradução
realizada por Ivo Tonet, op. cit. (s/d). As páginas citadas referem-se, portanto,
sempre à referida tradução.

44
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

da matéria natural numa forma útil para sua própria vida.


Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza ex-
terna a ele e ao modificá-la, ele modifica ao mesmo tempo,
sua própria natureza. Ele desenvolve as potencias nela ador-
mecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu próprio domínio.
Não se trata aqui das primeiras formas instintivas, animais,
de trabalho. (Marx, 1988, vol I, p. 142).

Sendo a expressão de uma atividade essencialmente humana,


o trabalho, ao mesmo tempo em que responde as necessidades e
carências do ser social, auto transforma a própria natureza humana.
Posto, desta maneira, podemos pensar a relação homem-na-
tureza como uma relação especificamente social, uma vez que dife-
renciamos o animal em relação ao homem através do trabalho, que
tem por objetivo responder às necessidades inerentes do próprio ser.
Portanto, a categoria trabalho apresenta-se como a primeira
forma, ou nos termos de Lukács, protoforma do agir humano,
sendo que a essência do trabalho é a expressão da ação teleológica
existente em toda a práxis humana. (Lukács, 1981, p. 6). 14
Aqui, Lukács parte da conhecida indicação de Marx:

Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence ex-


clusivamente ao homem. Uma aranha executa operações
semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais
de um arquiteto humano com a construção dos favos de
suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior
arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em
sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do pro-
cesso de trabalho obtém-se um resultado que já no início
deste existiu na imaginação do trabalhador e, portanto,

14 Lukács argumentou, muitas vezes, que alguns atos humanos não podem ser reduzidos
a atos de trabalho, em que pese o fato de o trabalho ser a forma originária e fundante
ontologicamente das diferentes formas de práxis social. (Lukács, 1981, vol. II, p. 610).

45
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da


forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na
matéria natural, seu objetivo, que ele sabe que determina,
como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual
tem de subordinar a sua vontade. (Marx, 1988, p. 42-143).

Assim, ao tomarmos o trabalho como um processo que dá ori-


gem a uma nova objetividade, como produtor de valores de uso,
confirmou a existência da relação metabólica entre o ser social e a
própria natureza. É justamente esta relação de transformação direta
entre ser social e a natureza que podemos atribuir o significado de
posição teleológica primária, ou seja, o próprio sentido originário
do trabalho que tem como atributo o estatuto ontológico fundante.
Conforme Antunes afirma, o trabalho, no plano mais ge-
nérico e abstrato, conforme o fez Marx, como expressão exclusi-
vamente do ato laborativo, toma a matéria bruta (natural) com o
intuito único de transformá-la em coisas úteis. Mais adiante, com
a práxis social mais desenvolvida, com o desenvolvimento da so-
ciedade e sua complexificação, juntamente com a relação homem-
-natureza, ampliam-se as inter-relações com outros seres sociais,
ainda com o mesmo objetivo de produção de valores de uso. No
entanto, neste patamar mais avançado, encontramos a práxis so-
cial interativa, que tem como objetivo o convencimento dos ou-
tros seres sociais a realizar determinado ato teleológico. Isso
ocorre porque a base das “posições teleológicas intersubjetivas”
tem como fim “a ação entre seres sociais”. (Antunes, 1999, p. 139).
Conforme a síntese de Lukács:

Este problema aparece logo que o trabalho se torna so-


cial, no sentido de que depende da cooperação de mais
pessoas, e independente do fato de que já esteja presente
o problema do valor de troca ou que a cooperação tenha
apenas como objetivo os valores de uso. Por isso, esta se-

46
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

gunda forma de posição teleológica, na qual o fim posto é


imediatamente finalidade de outras pessoas, já pode exis-
tir em estágios muito iniciais. (Lukács, s/d, p. 40/41).

Essa segunda forma de posição teleológica, que se encontra


em uma relação interativa com outros seres sociais e se desenvolve
no curso do avanço da sociedade humana, aparece, entretanto, des-
de os momentos históricos mais rudimentares, de que é exemplo o
convencimento da opção pela caça ao invés da pesca com o intuito
de sobrevivência. Para a realização do ato da caça, considerando o
perigo que alguns animais representam, foi necessária à interação,
a cooperação entre um dado grupo de homens, incluindo neste ato
uma divisão social do trabalho. Será justamente baseando-se nesta
divisão social do trabalho que Lukács irá afirmar que:

As posições teleológicas que aqui se verificam têm, na


realidade, um peso secundário em relação ao trabalho
imediato; deve ter havido uma posição teleológica ante-
rior que determinou o caráter, o papel, a função, etc. das
posições singulares concretas e reais cujo objetivo é um
objeto natural”. Assim, o mote desse fim secundário não é
mais um elemento próprio da natureza, mas ‘a consciência
de um grupo humano’. A finalidade já não tem mais como
intenção a transformação direta do objeto natural, mas,
ao contrário, a posição teleológica agora tem como objeti-
vo ‘alguns objetos naturais; da mesma maneira, os meios
já não são intervenções imediatas sobre objetos naturais,
mas pretendem provocar estas intervenções por parte de
outras pessoas’. (Lukács, s/d, p. 41).

Essas posições teleológicas secundárias estão muito mais liga-


das a práxis social nos níveis mais evoluídos do que o próprio traba-
lho no sentido que aqui o tomamos. Para o ser social primitivo ou
contemporâneo, o desenvolvimento do planejamento que antecede

47
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

e orienta o agir, é denominado por Lukács como “prévia-ideação”,


isto porque os fatos decorridos da ação são idealizados subjetiva-
mente na consciência antes de se concretizarem. (Idem, s/d, p. 42).
Este momento de subjetividade não significa que não seja
real, mas, ao contrário, exprime uma influência material, direta nas
ações humanas, nas práxis social. Além do mais, é neste momento
que os seres sociais podem ter contato concomitantemente com o
passado, com o presente e o futuro, idealizando o seu por vir, a suas
práxis. No entanto, não podemos deixar de lembrar que a prévia-
-ideação só existe se ela se concretizar através das práxis humanas.
Também para Marx, a práxis humana é a única forma onde se
consegue fazer uma demonstração ontologicamente verdadeira de um
por teleológico “como momento efetivo da realidade material”. Esta ca-
racterística teleológica fundamenta o entendimento de que qualquer
trabalho seria impossível se ele não fosse precedido de tal porque deter-
mina o processo em todas as suas fases. (Lukács, s/d, p. 11).
No entanto, ao assumir uma posição teleológica, é necessário
ter uma especial atenção à totalidade dos atos e “suas inter-relações
recíprocas em uma determinada sociedade” e não unicamente ao
“ato singular de uma precisa posição teleológica”. Será na totalidade
que inevitavelmente se encontrarão os fatos análogos tendenciais,
as confluências, etc., e o peso de tais tendências para a convergên-
cia ou para a divergência no âmago desta totalidade é que definira,
em grande medida, o espaço concreto das posições teleológicas.
Portanto, o trabalho como posição teleológica primária, tem
em sua origem e até mesmo em seu transcorrer, uma intenciona-
lidade voltada para o desenvolvimento da condição humana do
homem, em seu sentido mais abrangente e profundo. Já quando
enfocamos as relações sociais, no sentido da interação entre os se-
res, na intencionalidade do convencimento contemplando as diver-
sas dimensões, como se explicita na arte, na política, na religião,
na ética, etc., considerando-as como sendo uma posição teleológi-

48
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

ca secundária. É por essa razão que Antunes, ao recordar Lukács,


afirma que as posições teleológicas primárias “remetem diretamente
ao trabalho e à interação com a natureza” e as posições teleológi-
cas secundárias, mais complexificadas e desenvolvidas que os seus
antecedentes, “supõem a interação entre seres sociais, como práxis
interativa e intersubjetiva, mas que se constituem como complexos
que ocorrem a partir do trabalho”. (Antunes, 1999, p. 146).
Isso quer dizer que o trabalho, enquanto expressão da posi-
ção teleológica primária, já tem presente, ainda que de forma ger-
minal, elementos da posição teleológica secundária, ou seja, não
se pode estabelecer uma separação binária e dual entre essas duas
posições15. Isto por que:

[...] a busca de uma vida cheia de sentido, dotada de autenti-


cidade, encontra no trabalho seu lócus primeiro de realização.
A própria busca de uma vida cheia de sentido é socialmente
empreendida pelos seres sociais para a sua autorrealização e
coletiva. É uma categoria genuinamente humana, que não
se apresenta na natureza. [...]. Dizer que uma vida cheia de
sentido encontra na esfera do trabalho seu primeiro momento
de realização é totalmente diferente de dizer que uma vida cheia
de sentido se resume exclusivamente ao trabalho, o que seria um
completo absurdo”. (Antunes, 1999, p. 143).

Nesse caso, estamos indo em direção contrária à própria lógi-


ca capitalista. Que apreende o trabalhador até a sua exaustão, não
permitindo, em grande medida, que haja algum sentido na vida, seja
dentro ou fora do trabalho. Pois, uma vez que o valor de uso entra
em uma relação reflexiva com o valor de troca (o que somente pode
ocorrer, como já dissemos, em um estágio relativamente muito ele-

15 Separação que parece ser realizada por Habermas ao criticar o paradigma do


trabalho. Ver sobre este assunto a discussão que Antunes (1999).

49
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

vado), ele não mais designa um produto do trabalho que o ser social
pode se utilizar para a reprodução da sua própria existência.
Lukács, ao tomar na sua forma mais geral aquilo que Marx
denominou como a metamorfose das mercadorias, a simples
compra e venda das mercadorias, lembra que para existir as rela-
ções mercantis na base do valor de troca e do dinheiro, tem que
existir na sociedade uma divisão do trabalho. E esta divisão social
do trabalho, ainda se baseando nas palavras de Marx, torna o seu
trabalho (do proprietário das mercadorias) tão unilateral quan-
to tornaram variadas as suas necessidades. Fazendo com que essa
consequência elementar e contraditória da divisão do trabalho
crie uma situação tal em que os atos objetivamente solidários, a
compra e venda, na prática se separem, tornando-se mutuamente
autônomos, casuais, um em relação ao outro. Ninguém é obrigado
a comprar imediatamente, pelo simples fato de se ter uma merca-
doria à venda. (Lukács, s/d, p. 69).
A divisão do trabalho, mediada e posta em ação pelo valor
de troca, produz o princípio do controle do tempo através de uma
melhor otimização dele. Lembrando Marx, a isto se reduz, enfim,
toda a economia. Da mesma maneira que a sociedade deve re-
partir de forma planejada o seu tempo a fim de conseguir uma
produção adequada ao conjunto das suas necessidades, também o
indivíduo deve dividir corretamente o seu tempo com o objetivo
de procurar os conhecimentos necessários e ou de satisfazer as di-
versas exigências da sua atividade. Para Marx (In Lukács, 1981, p.
70) a “Economia de tempo e divisão planificada do tempo de tra-
balho nos diversos ramos da produção permanece, pois, a primeira
lei econômica baseada na produção social”. Portanto, economia de
tempo e divisão do trabalho, significa relação de valor.
Cabe destacar que o espaço produtivo, com a introdução da
maquinaria, no bojo da Revolução Industrial ocorrida na Ingla-
terra entre 1770 e 1830, permitiu a intensificação da inserção da

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O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

força de trabalho feminina, além de enorme exploração da força


de trabalho infantil. O capitalismo, ao necessitar da expansão da
extração de mais-valia, ampliou seu campo produtivo de explo-
ração, incorporando amplamente as mulheres e as crianças para
este espaço, intensificando ainda mais a precarização de toda a
classe trabalhadora. Não só ocorre, neste momento, uma redução
salarial para o trabalhador, como também foi ampliado, conforme
demonstrou Marx, o exército industrial de reserva.
Desse modo:

O exército industrial de reserva pressiona durante os perí-


odos de estagnação e prosperidade média o exército ativo
de trabalhadores e contém suas pretensões durante o pe-
ríodo de superprodução e paroxismo. A superpopulação
relativa é, portanto, o pano de fundo sobre o qual a lei da
oferta e da procura de força de trabalho se movimenta.
Ela reduz o raio de ação dessa lei a limites absolutamente
condizentes com a avidez de explorar e a paixão por do-
minar do capital. (1988 – vol. II, p. 196).

Este fato acaba por garantir, por um lado, a expansão capi-


talista e, por outro, a intensificação da exploração e da miséria da
classe trabalhadora, uma vez que os salários, de certa forma são
determinados justamente por esta relação entre os trabalhadores
ativos e os da reserva, gerando uma competição ininterrupta pelo
excedente constante de trabalhadores.
Com a inserção da mulher no mundo do trabalho produtivo,
ela transforma-se em trabalhadora assalariada, fazendo parte das
engrenagens de um processo que substitui trabalhadores qualifi-
cados por não qualificados (já que as mulheres e as crianças eram
consideradas trabalhadores não qualificados), ou seja, substituíam
adultos por crianças e homens por mulheres. Dessa maneira, a
desqualificação do trabalhador que é consequência do advento da

51
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

grande indústria e do fim da manufatura, ampliou significativa-


mente a inserção da mulher no espaço produtivo16.
Assim, as mulheres trabalhadoras nas fábricas ficaram à mer-
cê, juntamente com os trabalhadores, dos extenuantes mecanis-
mos de exploração e opressão que pertenciam ao regulamento da
produção industrial taylorista/fordista, isto é, intensa produtivida-
de, rigidez disciplinar, baixos salários, etc. Sendo, no caso da força
de trabalho feminina, que historicamente era pouco valorizada, a
intensificação da precarização era enorme, ou seja, as trabalhado-
ras recebiam salários aviltantes, ocupavam os cargos mais baixos
da hierarquia produtiva, etc.
Deste modo, além de serem mais exploradas no mundo do
trabalho, somavam às cansativas e longas jornadas de trabalho do
espaço produtivo com as intermináveis tarefas do espaço reprodu-
tivo. Configurava-se então, uma divisão sócio sexual do trabalho
que além de precarizar ao máximo a força de trabalho feminino,
ainda lhe reservava as tarefas do espaço reprodutivo e aos homens
cabia a responsabilidade da subsistência da família lhes reservan-
do, consequentemente, o espaço produtivo.

1. A divisão sócio-sexual da reprodução


Por sua vez, a categoria da reprodução é um fenômeno pre-
sente no indivíduo como no gênero humano. Tanto o indivíduo
tenta se reproduzir a si mesmo, reprodução individual, como o gê-
nero humano também necessita se reproduzir.
A reprodução humana é tanto individual quanto coletiva e isso
é ao mesmo tempo fundamental e contraditório. Por exemplo: o bur-
guês tem uma visão específica da propriedade privada que o outro, o

16 Uma exposição mais detalhada sobre esse tema ver Nogueira, 2004.

52
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

proletário, pode não ter. Esta reprodução fundamental e contraditória


ocorre na tensão constante entre os objetivos genéricos e particulares.
Por isso, enquanto na vida orgânica o predomínio de preserva-
ção da espécie, além da de si mesmo, são as reproduções em sentido
strictun, ou seja, são reproduções biológicas de um ser vivo, no ser
social a reprodução implica em mudanças internas e externas. Por-
tanto, a substância social é “a síntese dos atos singulares em totali-
dade social e em individualidades” e esta é a questão básica na aná-
lise da reprodução social: como se dão esses dois processos sintéticos
reflexivamente fundamentais e contraditórios. (Lessa, 1996, p. 94).
É nesta tensão que a moral, o costume, a tradição, o direito,
a política, a ética, dentre outros, tem um papel importante. Cabe
a este conjunto de complexos sociais fazer a mediação no processo
de superação da contraposição individualidade/gênero humano,
transformando a individualidade em si em individualidade-para-
-si, ou seja, na individualidade tornada efetivamente humana e
social. (Lessa, 1996, p. 101; Antunes, 1999, p. 169).
Para Lukács, outros complexos de mediação também estão
presentes no processo reprodutivo do indivíduo e da sociedade
que articulam necessidades humano-coletivas e de individuação.
Como, por exemplo, a divisão do trabalho, a fala, a alimentação,
a sexualidade e a educação. Estes outros complexos, também são
fundamentais para a nossa pesquisa, na medida em que eles po-
dem fornecer elementos para facilitar o entendimento da situação
feminina dentro do espaço reprodutivo.
A divisão do trabalho, segundo o filósofo húngaro, fixa-se
sobre a diferenciação biológica dos seres humanos. O recuo da
barreira natural como consequência do ser social surge, inicial-
mente, no fato de que essa diferenciação biológica, assume em si
espaços de sociabilidade cada vez maiores, que passam agora a ser
determinantes na divisão do trabalho. Isto fica claro quando pen-
samos no papel que têm os sexos na divisão social do trabalho.

53
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Engels destaca que o lugar da mulher na vida social (matriarcado,


patriarcado, etc.) está diretamente relacionado ao fato de que o
acúmulo da riqueza é atribuído às funções econômicas masculinas
e não femininas. Ou seja, “as formas de uma relação biológica tão
elementar como aquela sexual são, em última análise, determi-
nadas pela estrutura social que se tem no respectivo estágio da
reprodução”17. (Lukács, s/d, p. 5).
Nas sociedades pré-capitalistas, o sistema de metabolismo so-
cial se desenvolve através das mediações primárias que, segundo
Antunes, ao citar Mészáros, tem como finalidade a preservação
das funções vitais da reprodução do indivíduo e da sociedade, ou
seja, “os seres humanos são parte da natureza, devendo realizar
suas necessidades elementares por meio do constante intercâmbio
com a própria natureza”. (Antunes, 1999: 19).
E complementa dizendo que os seres humanos “são constitu-
ídos de tal modo que não podem sobreviver como indivíduos da
espécie à qual pertencem [...] baseados em um intercâmbio sem
mediações com a natureza”, regrados de forma instintiva vincula-
da à natureza, “por mais complexo que esse comportamento ins-
tintivo possa ser”. (Antunes, 1999, p. 20).
Conforme Mészáros, o ser humano ao partir dessas condi-
ções ontológicas, atende às sempre presentes exigências materiais
e culturais de sua sobrevivência. Isto significa garantir “as con-
dições objetivas de sua reprodução [...]” sob a influência de sua

17 Outras determinações estão ligadas à questão da divisão do trabalho, entre elas


a sua divisão técnica, como, por exemplo, quando as ocupações singulares se
autonomizam em profissões e principalmente quando se inicia o período ao qual
Marx denomina como o da Grande Indústria, que traz com a maquinaria a concreta
divisão do trabalho determinada pela tecnologia e com ela a real relação mercantil.
No entanto, aqui não iremos discorrer sobre o desenvolvimento da divisão técnica
do trabalho, já que este tema não é central para este livro.

54
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

própria intervenção através da ontologia exclusivamente humana


do trabalho. (Mészáros, 2002, p. 212).
No início do capitalismo, a principal tarefa que existia no es-
paço reprodutivo era o de “produzir” um grande número de filhos. A
inserção da maquinaria no espaço produtivo industrial exigia uma
quantidade acentuada de trabalhadores e, segundo Marx, “o pro-
cesso de acumulação em si mesmo não é mais do que um momento
imanente do processo capitalista da produção”. Isto é, necessita de
uma constante geração de assalariados, para a realização e o de-
senvolvimento do capital existente, porque inclui nele parcelas da
população ainda não abrangida pela produção capitalista, como as
crianças e as mulheres, porque, com o crescimento da população,
está garantida uma massa de novos operários. (Marx, s/d, p. 134).
Ainda, conforme Marx, “[...] o capital regula esta produ-
ção da própria força de trabalho, a produção de massa humana
que há de explorar, em conformidade com suas necessidades de
exploração. O capital não produz, portanto apenas capital; produz
também uma massa operária crescente [...]”. (Marx, s/d, p. 134).
Já no capitalismo contemporâneo, a indústria não necessita
mais de uma grande quantidade de operários, muito pelo contrá-
rio ocorre uma liofilização dos trabalhadores, termo este utiliza-
do por Antunes; o que se exige é um número menor da força de
trabalho, mais qualificada e que permita a intensificação do seu
trabalho. Portanto, a família, em sua maioria, acaba por adaptar-
-se a essa nova realidade do mundo do trabalho. Segundo Peggy
Morton (apud Mitchell, 1977, p. 170):
Os lucros dependem cada vez mais da organização efi-
ciente do trabalho e da autodisciplina dos trabalhado-
res, do que da aceleração simples e outras formas diretas
utilizadas para aumentar a exploração dos trabalhadores.
[...]. A família deve criar filhos que assimilem as relações
sociais hierarquizadas, se autodisciplinem e trabalhem de

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Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

maneira eficiente sem a necessidade de uma supervisão


constante [...]. A mulher é a responsável de levar a cabo a
maior parte deste tipo de socialização.

Podemos entender, portanto, que o espaço reprodutivo é uma


espécie de imitação caricata do mundo produtivo. O trabalho do-
méstico compreende uma enorme porção da produção socialmente
necessária. Isto é, no processo de acumulação de capital, o quantum
de mercadoria força de trabalho é imprescindível, uma vez que é
através da exploração do dispêndio de energia socialmente neces-
sária para a produção de mercadoria que se gera a mais valia. Por-
tanto, o espaço doméstico familiar é fundamental para que o capital
garanta a reprodução e a manutenção da classe trabalhadora.
Não podemos esquecer que não existe a força de trabalho sem
a existência do trabalhador/a, o qual foi gerado e mantido18 por uma
mulher. Portanto, a venda da força de trabalho do proletário/a é
garantida pelas atividades domésticas realizadas, na grande maioria
das vezes, pela mulher, quer ela seja uma trabalhadora produtiva ou
não. Ou seja, o trabalho realizado diariamente pelas mulheres no
espaço reprodutivo possibilita ao capitalista a segurança da repro-
dução e perpetuação da força de trabalho e desta maneira garante
também a reprodução e manutenção da própria lógica do capital.
Podemos entender, então, que essa garantia do capital é uma
das principais razões para que o capitalismo mantenha acesa a for-
ma de união da família patriarcal como parte de seus interesses. O
casamento com seu “contrato de dependência” da mulher para com
o homem facilita o controle do capitalismo em relação à participação
feminina no mundo do trabalho produtivo, confirmando a importân-
cia das atividades domésticas e maternas. (Toledo, 2001, p. 44).

18 Estamos usando neste texto a expressão mantido no sentido dos cuidados


domésticos como alimentar, vestir, banhar, etc.

56
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

À guisa de conclusão
Portanto, a família patriarcal, para a sociedade capitalis-
ta, é uma importante aliada para a sua dinâmica. Os afazeres
domésticos, ou seja, o “cuidar” da família é uma atividade re-
produtiva fundamental. Ainda, nos termos de Marx, o trabalho
doméstico não objetiva a criação de mercadorias, mas a criação
de bens úteis indispensáveis para a sobrevivência da família. E
essa é uma das diferenças essenciais entre o trabalho assalaria-
do e trabalho doméstico, pois enquanto um está vinculado ao
espaço produtivo, ou seja, criando mercadorias e consequen-
temente gerando valores de troca, o outro está relacionado na
produção de bens úteis necessários para a reprodução dos pró-
prios componentes da família, permitindo, em grande medida,
que o capital também se aproprie, mesmo que indiretamente,
da esfera da reprodução.
Isso ocorre porque o capital necessita constantemente dimi-
nuir o gasto com a reprodução da força de trabalho, o que acaba
acarretando a diminuição dos valores dos salários de toda a classe
trabalhadora. E, em particular, esse processo é ainda mais acentu-
ado na força de trabalho feminina, que de certa forma já se encon-
tra depreciada pelas relações de poder existentes entre os sexos,
principalmente no seio da família patriarcal.
Neste processo, a mulher se transforma em uma espécie de
“exército de reserva” de força de trabalho sub-remunerada, per-
mitindo que o modo de produção capitalista tenha “argumentos”
suficientes para continuar, em grande medida, seu processo de
precarização do proletariado em geral, e da mulher trabalhadora
em particular.
Esse interesse de preservação da família patriarcal pela lógica
capitalista sustenta, de certa forma, a relação de uma desigual divi-
são sócio sexual do trabalho. O que leva Mészáros a afirmar que:

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Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Seria um milagre se o ‘microcosmo’ do sistema do capital


fosse ordenado segundo o princípio da igualdade real. Em
seu conjunto, este sistema não pode se manter sem repro-
duzir de maneira correta e constante as relações de poder
historicamente específicas pelas quais as personificações
do capital separam radicalmente a função do controle da
força de trabalho, [...] e impostas a estas de maneira auto-
ritária”. (Mészáros, 2002, p. 268).

Desta maneira, esse debate assume importância vital para a


compreensão da divisão sócio sexual do trabalho e da reprodução,
uma vez que é através dessa divisão, que o capital mantém a sua lógica
da exploração/opressão e consequentemente a sua perpetuação.

Referências

ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo


Editorial, 1999.

______. Adeus ao Trabalho?. São Paulo: Editora Cortez, 2015.

LESSA, S. A ontologia de Lukács. Maceió: Edufal. 1996

LUKÁCS, G. Per una ontologia dell’ essere sociale. Roma: Riu-


niti. 1976.

­_ _____. Per una ontologia dell’ essere sociale, vol. II. Roma:
Riuniti. Tonet, Ivo (trad.); Lessa, Sérgio (mimeo, s.d.), 1981.

Marx, Karl. O Capital. São Paulo: Moraes, 2015.

­­_ _____. O Capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Edi-


torial, 2002.

58
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

MITCHELL, J. La condición de la mujer. Barcelona: Editorial


Anagrama, 1977.

MORTON, Peggy. A woman’s work is never done. In:


MITCHELL, J. La condición de la mujer. Barcelona: Editorial
Anagrama, 1977.

NOGUEIRA, C.M. A feminização no mundo do trabalho.


Campinas: Autores Associados, 2004.

______. O Trabalho Duplicado. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

TOLEDO, C. Mulheres. O gênero nos une, a classe nos divide.


São Paulo: Xamã, 2010.

TONET, I.; Lukács, G. O trabalho como posição teleológica. In:


A ontologia do ser social, vol. II, mimeo.

59
Capítulo 4
O projeto de Lei nº 98/2003

Maria Teresa Cauduro19

Introdução
Esse texto partiu da curiosidade acadêmica e social em exa-
minar o Projeto de Lei n° 98/200320 que trata da Regulamentação
da profissão das “Profissionais do Sexo”. Nesse sentido, para situar
o leitor e subsidiar a discussão optei por apresentar um breve pa-
norama histórico e a contextualização da prostituição no Brasil.
Seguindo apresento a função social das prostitutas embasada
nos pressupostos sociais e pesquisas sobre o tema.
Na continuidade introduzo, para ampliar a reflexão, o prin-
cípio constitucional da dignidade humana, utilizando a Constitui-
ção Federal de 1988; e dados de conquistas sociais e sigo falando
sobre a legislação trabalhista.

19 Bacharel em Direito pela Universidade Feevale (2009), Mestrado em Pedagogia pela


Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUC (1991) e Doutorado em
Filosofia y Ciencias de la Educación - Universitat de Barcelona- UB (1999). Atualmente
é pesquisadora do Observatório de Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos,
UNISINOS/RS. Membro da Comissão de Especialista do Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais, INEP, Brasil como avaliadora de cursos e institucional. Pós-
doutoranda em Educação na área da Educação, História e Políticas.
20 Projeto de Lei n° 98/2003, proposto pelo deputado Fernando Gabeira para a
Regulamentação da profissão das profissionais do sexo.

61
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

O objetivo é o de fomentar a discussão sobre a “profissão


mais antiga do mundo” dentro de parâmetros do lícito ou ilícito,
dos direitos humanos, dignidade e com isto espero contribuir com
esse tema tão instigante.

1. Contexto da prostituição no Brasil


A história da prostituição no Brasil, portanto, apresenta dis-
cursos sobrepostos à esfera do sanitarismo e da inclusão social, dis-
cursos da ordem trabalhista, institucional, cultural e, sobretudo,
econômica, sobre os quais discorro a seguir.
A história oficial brasileira conta, segundo Barbosa (2008),
que a prostituição é uma constante desde o Brasil colônia. Apare-
ce como objeto das Ciências Sociais nos trabalhos a partir da se-
gunda metade do século XIX, nos grandes centros, como Salvador,
Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte.
O processo de organização das profissionais do sexo tem
como referência inicial a violência policial em 1979, em São Paulo,
onde houve inclusive mortes. Resultante deste ocorrido, em 1987,
surgiu o primeiro encontro nacional de prostitutas, reunindo oito
capitais brasileiras. (BARBOSA, 2008). A história veio atrelada a
imaginários, comportamentos de época e de regionalismos.
Essas características são muito bem elucidadas no estudo de
Rago (1985) sobre a domesticação da mulher no período de 1890
a 1930 quanto a questões do mito da mulher na sociedade como
“mulher do lar” e a “mulher do trabalho” (operária) e quanto ao
ideário da fábrica determinou a sexualidade das mulheres nessa
época. Como mulher do lar, ela passou a ser assexuada, santa, sub-
missa, dependente do marido/pai, ordeira e higiênica. Esse era o
ideário das mulheres abastadas, burguesas.
A mulher pobre e miserável tinha a opção de ir às fábricas,
escritórios comerciais, serviços em lojas e outros serviços de baixa
remuneração para buscar sua subsistência.

62
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Os estudos apontados por Rago (1985) mostram que a grande


maioria de prostitutas no Brasil provém das camadas mais pobres
da população, especialmente as não casadas das classes proletárias.
Entretanto, Barbosa (2008) corrobora dizendo que, em 1958,
o Brasil aderiu à Convenção de Lake Sucess – 1950 - contra as
atitudes discriminatórias em relação às meretrizes. Ao ser avaliado
pelo governo fluminense, o regime de escravidão e os altos lucros
concentrados nas mãos de estrangeiros, administradores de prostí-
bulos; foi proibida a cafetinagem; e foi organizada a “República do
Mangue” cujo cargo de gerente passou a ser exercido pela própria
prostituta, em caráter rotativo. Criou-se o cafetismo oficial. As
meretrizes trabalhavam em bordéis sob a gerência de uma prosti-
tuta de confiança da polícia.
Na década de 20, no Brasil, já se faziam críticas ao sistema
regulamentista /abolicionistas no controle da prostituição. Eram
os médicos defensores dessas filosofias. (BARBOSA, 2008).
Assim, expõe Rago (1985), que a mais vigorosa crítica dos
abolicionistas aos regulamentaristas era que o registro legal das
prostitutas prendia-as e impedia sua possível recuperação. Trans-
formava as putas ocasionais em putas eternas. Elas ficavam prisio-
neiras perpétuas da polícia. Ao contrário dos regulamentistas, os
abolicionistas recusavam a legalização da prostituição, pois viam
nesse ato uma medida de repressão e de controle sobre as mulheres
públicas. No pensamento abolicionista, a administração pública
deve oferecer tratamento gratuito às meretrizes pela saúde pública,
pois considera a prostituição necessária.
Em 1997, houve uma tentativa de incorporar-se a perspecti-
va regulamentaristas à legislação brasileira, conforme Rodrigues
(2004). Foi um Projeto de Lei apresentado pelo deputado federal
Wigberto Tartucce, do PTB/ Distrito Federal, período de 1994-
1998. A proposta era baseada no princípio moralista de que a
prostituição era um “mal necessário”. Esse projeto foi arquivado

63
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

sem sequer ser discutido por alguma das Comissões da Câmara


Federal. (RODRIGUES, 2004).
Atualmente, observa-se, no Brasil, prostitutas que se desta-
cam na mídia, ao escrever livros, criar sites pagos e lançar grifes
de moda erótica. Um considerável número de prostitutas brasileiras
participa de associações, redes nacionais e internacionais, realizam
encontros, simpósios, congressos e movimentos do centro ao norte
do país. Porém, a grande maioria ainda está nas ruas, nas batalhas.
A compreensão das representações sobre o tema presente
não se esgota aqui, mostra o sentido da existência e da função que
a prostituição tem exercido durante anos, e este sentido é que a fez
ser considerada a mais antiga das profissões.

2. A função social das “prostitutas”


Na sociedade brasileira, ainda está longe o dia em que a venda
do sexo não seja entendida como ato feio, sujo, profano, pecador,
imoral, mundano e danoso à ordem social. Esse é o imaginário.
O corpo é sempre uma representação da sociedade, segundo
Rodrigues (2006). Como parte do comportamento social humano,
o corpo é um fato social. É parte de um fato social total, em que
cada parte depende da totalidade para construir o seu sentido. O
autor explica que, no corpo, a ordem fisiológica material se une à
ordem ideológica moral, como signos nos quais se encontram e se
reúnem o sensível e o inteligível, o significante e o significado. O
corpo significa ao mesmo tempo a vida e a morte, o normal e o
patológico, o sagrado e o profano, o puro e o impuro.
Os tabus atravessam a fronteira da história. Se, por um lado,
a virgindade foi valorizada (nasce a mulher direita), por outro,
restam as mulheres perdidas, de baixo valor social e passíveis de
compra por homens desejosos por serviços sexuais.

64
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Na análise que se deve fazer sobre a prostituição, deverão ser


levados em consideração inúmeros fatores e não apenas aqueles do
senso comum de ganho fácil e rápido.
Cabe aqui colocar um comentário colhido em “O Cliente: o
outro lado da prostituição”, uma pesquisa de Sousa, que confirma
o que se está tratando:

Sempre achei muito fascinante o poder que prostitutas


exercem sobre os homens, por elas casamentos findam,
doenças se contraem, novos amores se encontram, são
pessoas de definição única a meu ver, ao mesmo tem-
po levam uma vida dura (sem trocadilhos) e ao mesmo
tempo levam uma vida que é muitas vezes sem rumo.
Algumas constroem riquezas, outras destroem suas vi-
das e quando não raro, destroem outras vidas e casais.
Para muitos, elas são a fuga de casamentos falidos, de
casamentos sem diálogo. Para a prostituta escuta e não
reprime, não grita, não censura, não exige, não cobra o
papel de marido e pai. (RODRIGUES, 2006).

O resultado dessa pesquisa publicada em 1998 permitiu, a


partir das vivências relatadas, concluir algumas funções da prosti-
tuta. Também foi possível concluir que muitas funções perduram
através das histórias, outras surgem de acordo com as leis de oferta
do mercado, ou seja, conforme a demanda, novas prestações de
serviços (SOUSA, 1998).
Ainda segundo Sousa (1998), “o importante a ressaltar nessas
funções é a perspectiva de perpetuação de um comportamento so-
cial/sexual considerado desviante, anormal e, portanto, diferente”.
As funções são: socializar adolescentes; aliviar as tensões sexu-
ais dos solteiros, adolescentes, viúvos, desquitados; assistir sexualmen-
te os impotentes; aliviar a monotonia conjugal; substituir a esposa
nas ausências e impedimentos como doenças, hospitalizações; assistir

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Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

sexualmente os hemiplégicos, paralíticos, tetraplégicos cujas espo-


sas não aceitam o papel de enfermeiras sexuais; aliviar a escravidão
sexual (homens que querem sexo mais de uma vez por dia); atuar
como fator anti-homossexual nos garimpos, acampamentos militares
ou aglomerados de homens; aliviar os sexopatas de todas as espécies;
acompanhar homens que se encontram de viagens, a negócio ou pas-
seio; escutar queixas e desabafos de clientes sobre problemas deles;
participar de jogos sexuais com casais (SOUSA, 1998).

3. O princípio constitucional da dignidade


humana e a profissional do sexo
A Constituição Federal de 1988 foi a primeira do constitu-
cionalismo brasileiro a estabelecer um título próprio aos Princípios
Fundamentais, tendo sido também a primeira a elevar a dignidade
humana em nível de princípio fundamental. Tais princípios estão
prescritos no Título I da Magna Carta e catalogados em quatro
artigos. Assim diz o seu art. 1º:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolú-


vel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político (BRASIL, 1988).

Crisafulli, citado por Bonavides (1995), define princípio:

Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto


considerada como determinante de uma ou de outras
subordinadas, que a pressupõem, devolvendo e especifi-

66
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

cando ulteriormente o preceito em direções mais particu-


lares (menos gerais), das quais determinam, e, portanto,
resumem, potencialmente, o conteúdo: sejam, pois, efeti-
vamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do
respectivo princípio geral que as contém.

Em nossa Constituição Federal, o caput do art. 5° diz que:

Todos somos iguais perante a lei, sem distinção de qual-


quer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estran-
geiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade
[...]. (BRASIL, 1988).

Conforme o caput do art. 6°, são direitos sociais:

A educação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a


previdência social, a proteção à maternidade e a infância,
a assistência aos desamparados na forma da Constituição.
(BRASIL, 1988).

No art. 7°, XX, consta “proteção do mercado de trabalho da


mulher, nos termos fixados em lei”. (BRASIL, 1988).
Mesmo havendo esse princípio norteador, sabe-se que a so-
ciedade é regida por padrões morais. Esses padrões, complexos,
determinam, muitas vezes, as ações dos governistas e das políti-
cas públicas, sendo expostos explícita ou implicitamente. Cabe
aqui uma reflexão: o que fazer com a mulher profissional do sexo
em trabalho irregular ou autônomo? São perguntas que este en-
saio busca esclarecer.
Vejam-se os entendimentos de Foucault (2003) sobre moral.
Por moral, entende-se um conjunto de valores e regras de ação
propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos
diversos como: a família, as instituições educativas, as igrejas etc.

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Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Entretanto ele complementa, também, que esses valores e


essas normas podem ser transmitidos de maneira difusa e, longe
de formarem um conjunto sistemático, constituem-se em um jogo
complexo de elementos que se compensam, se corrigem, se anu-
lam em certos pontos, permitindo, dessa forma, compromissos ou
escapatórias (FOUCALT, 2003).
Assim, entende-se o comportamento real dos indivíduos em rela-
ção às regras e aos valores que lhe são propostos das seguintes formas:

A maneira pela qual eles se submetem mais ou menos


completamente a um princípio de conduta;
A maneira pela qual eles obedecem ou resistem a uma
interdição ou a uma prescrição;
A maneira pela qual eles respeitam ou negligenciam um
conjunto de valores. (FOUCALT, 2003, p. 26).

A esses tipos de comportamentos ele chama de moralidade


de comportamentos.
Sabe-se que cada cultura visualiza formas de administrar
essas condutas humanas, entretanto, em todas elas, na conduta
masculina é permitido tudo. Há sempre um entendimento dife-
renciado para a interpretação do comportamento masculino, sua
sexualidade, seu conduzir-se.
A Organização das Nações Unidas, mediante reivindicações
do movimento de mulheres mundiais, vem reconhecendo e formu-
lando tratados internacionais como os Direitos Sexuais e Repro-
dutivos considerados como Direitos essenciais a uma vida digna e
cidadã (REDE MULHER DE EDUCAÇÃO, 2009). Assim, surgiu
a discussão dos Direitos Coletivos e Difusos como uma necessida-
de à plena cidadania. Os Direitos Humanos, no Brasil, têm força
constitucional, assim como foram ratificados tratados internacio-
nais sobre os Direitos Humanos em nosso país.

68
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Entretanto, apenas com o cumprimento dos conceitos cons-


titucionais, poder-se-ia dizer que as brasileiras estão protegidas
pela Lei para exercerem plenamente a cidadania. Mas não se pode
dizer que nossa Legislação combina com nossa realidade.
Sabe-se que, para que houvesse realmente o exercício pleno
da cidadania, seria necessário que todas as pessoas vivessem seu
dia a dia desfrutando plenamente seus direitos e deveres, com dig-
nidade, o que já é difícil para as pessoas não marginalizadas.
O que se observa diariamente é que as limitações impostas
pelo preconceito, a incompreensão e a intolerância determinam a
exclusão social de grande parte da população brasileira, que trava
uma luta diária para sobreviver minimamente.
O Brasil ainda carece de avanços como a superação de pre-
conceitos e a cultura de cidadania. Tem-se observado que alguns
movimentos sociais têm conseguido pequenos avanços, como no
caso das mulheres com a Lei Maria da Penha. Entretanto, resta
saber como está sendo encaminhada a questão da regulamentação
das profissionais do sexo.
Quanto à dignidade humana, volto à doutrina de Delgado
et al (2007). Dizem eles que o que se deve questionar, em termos
jurídicos, é se a prostituição permite o direito à vida digna, eis
que a dignidade é considerada referência maior pela Constituição
Federal de 1988, que a insere como fundamento necessário para
todo e qualquer direito fundamental do ser humano.
Levantadas essas premissas breves, mas importantes, sigo
construindo o embasamento teórico para a reflexão em pauta.

4. A legislação trabalhista
Cabe aqui uma breve introdução sobre a origem do direito do
trabalho. O direito do trabalho nasceu com a sociedade industrial
e com o trabalho assalariado. Ele foi resultante de um conjunto de

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Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

razões econômicas, políticas, jurídicas e sociais através da história


das sociedades. (SANTOS, 2006).
O Direito do Trabalho surgiu como medida de justiça social, insu-
flado pelos movimentos dos trabalhadores, ideologias socialistas e com
valores acolhidos pela classe média, intelectuais e igreja. O Direito do
trabalho surge, portanto, da consequência da desigualdade, a decor-
rente inferioridade econômica do trabalhador (CATHARINO, 1982).
Franco (2009) escreve sobre a história do Direito do Traba-
lho em uma perspectiva mais sociológica, na medida em que ela
concebe o Direito como resultado de pressões sociais e se funda-
menta nas palavras de Nascimento (2003), o qual diz que é “re-
sultado das pressões de fatos sociais que, apreciados segundo os
valores, resultam em normas jurídicas”. Sobre o ordenamento nor-
mativo ela expõe, segundo sua visão, que não há uma separação
de conteúdo entre uma proposição normativa e fato ou entre texto
normativo e mundo da vida.
Franco (2009), ainda aponta que as sociedades industriais pas-
saram por três fases: a primeira dos séculos XVII a XVIII, considera-
da a luta pela conquista dos direitos civis (liberdade), a segunda dos
séculos XVIII a XIX, considerada a luta pela conquista dos direitos
políticos e coletivos (direito a voto, à organização, à greve) e a ter-
ceira, dos séculos XIX a XX, que foi a luta pelos direitos sociais.
Isso favoreceu o surgimento de duas ideias principais e con-
flitantes de Estado que se tem até hoje: a primeira liberal, em que
o Estado deveria ter pouco poder e, dessa maneira, poderia estar
assegurando o máximo de liberdade (econômica religiosa e civil)
aos indivíduos. A segunda ideia é a democrática, segundo a qual o
Estado deveria ter bastante poder de modo a distribuí-lo e, assim,
atenuar as desigualdades sociais (FRANCO, 2009).
Essa antítese entre Estado Liberal/Estado Social refletiu outra
mais profunda, segundo a autora, a antítese entre liberdade e igual-
dade, sendo que, tomadas apenas no sentido jurídico ou formal, não

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O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

haveria colisão de ideias de igualdade e liberdade e a própria demo-


cracia pode ser considerada como prosseguimento do liberalismo,
mas se tomadas num sentido mais substancial (igualdade como justa
distribuição de riqueza), a contradição se faz presente (FRANCO,
2009). Não se pode realizar plenamente um, sem limitar fortemente
o outro, conforme Bobbio, citado por Franco (2009).
Segue a autora, afirmando que o Estado Contemporâneo en-
frenta maiores desafios que o Estado Moderno. O Estado Contem-
porâneo deve garantir, ao mesmo tempo, liberdade e igualdade,
deve equilibrar os interesses entre capital e trabalho, para isso, tor-
na-se cada vez mais intervencionista, o que o faz passar por duas
crises: a de legitimação (dessa intervenção) e a fiscal (diferença
crescente entre as saídas necessárias e as entradas insuficientes à
distribuição de recursos). (FRANCO, 2009).
Nascimento (2003) apresenta o conceito contemporâneo de
direito do trabalho numa perspectiva mais complexa. Chama a
atenção dos operadores do direito que, para analisar o direito do
trabalho, isso não poderá ser realizado sem levar em consideração
o plano transcendental ou filosófico, próprio da filosofia do direi-
to, da sociologia jurídica e da política do direito.
Ele dá o exemplo de que o direito é o resultado da pressão de
fatos sociais que, apreciados segundo os valores, resulta em nor-
mas jurídicas e que o direito do trabalho se coloca na mesma pers-
pectiva. A expressão usada por ele é que “o direito do trabalho tem
sido mais vivido do que conceituado”. (NASCIMENTO, 2003).
Nesse raciocínio, ele continua afirmando que a tendência con-
temporânea mostra uma diversidade de formas de trabalho criadas
em decorrência da superação do contrato – típico padronizado do
início da sociedade industrial e que não corresponde mais a todas as
necessidades do mundo moderno. (NASCIMENTO, 2003).
O profissional autônomo é aquele que trabalha por conta
própria, sem ser empregado. É aquele que exerce, habitualmente e

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Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

por conta própria, atividade profissional remunerada, explorando


em proveito próprio a própria força de trabalho. Está amparado
pela Previdência Social.
Nascimento (2003) define trabalhador autônomo como aque-
le que exerce atividade profissional detendo os meios de produção
porque são de sua propriedade. O que assume riscos na atividade
que exerce. O que tem o poder de direção sobre sua própria ati-
vidade, autodisciplinando segundo seus critérios pessoais. O que
tem o resultado primeiro sobre a remuneração e fica com o que
produz. Portanto, autônomo é aquele que se distingue pelo modo
de como o trabalho é prestado.
Aproxima, portanto, o discurso da profissão mais antiga do
mundo com a possibilidade da regulamentação da profissão.
Uma reflexão que cabe aqui é a questão dos contratos. Agre-
gados à doutrina do Código Civil de 2002, surgem outros para-
digmas considerando os estudos da pós-modernidade baseados e
fundamentados na dignidade humana e na vida privada.
Introduzo, para pensar, o Paradigma da Essencialidade de
Negreiro (2006) que divide em bens essenciais, úteis e supérflu-
os, visando a dignidade humana. Aproximo também o Diálogo
das Fontes21 balizados por Marques (2002) e Tartuce (2007), que
apontam a complexidade das fontes jurídicas (sendo usados no
Tribunal de Justiça para conflitos de leis e onde há vácuo na legis-
lação), ressalvando o retorno dos sentimentos como fio condutor
nas decisões à proteção da pessoa humana nos contratos buscando
o diálogo por analogias para a análise dos bens úteis e essenciais.

21 A tese do diálogo das fontes foi desenvolvida na Alemanha por Erik Jaime. No
Brasil, seu estudo e sua divulgação podem ser atribuídos a Claudia Lima Marques,
principalmente pelas tentativas de diálogos entre Código Civil e o Código de
Defesa do Consumidor, no que tange aos contratos e à responsabilidade civil, ainda
várias tentativas de diálogos entre o Direito Civil e o Direito Processual Civil.
(TARTUCE; TARTUCE, 2007).

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O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

O direito do trabalho também possui princípios para garantir


condições mínimas de proteção ao trabalhador. O rol dos princí-
pios é: o princípio protetor, o da primazia da realidade, o princípio
da irrenunciabilidade de direitos e o princípio da continuidade da
relação de emprego (NASCIMENTO, 2003).
Se for feita uma reflexão acerca do princípio da primazia da
realidade, levando em consideração o que Nascimento (2003) apon-
ta - a pressão dos fatos sociais, verifica-se a relação objetiva eviden-
ciada pelos fatos, na prática, na realidade, que concretiza verdadeira
relação jurídica estipulada entre a profissional do sexo e seu cliente
(partes contratantes). Novamente há o estreitamento entre teoria e
prática, fruto para a análise dos operadores do direito.
Assim, refere o Direito do Trabalho, na CLT (Consolidação
das Leis do Trabalho), nos artigos 2º e 3º: a relação de empre-
go constitui espécie do gênero relação de trabalho e resulta da
reunião de certos “pressupostos” ou “elementos fático-jurídicos”,
identificados nos artigos da CLT. São eles: trabalho prestado por
pessoa física, pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e su-
bordinação. (BRASIL, 1943).
Seguindo a doutrina, Delgado (2007) menciona que, para
que a relação de emprego produza efeitos jurídicos válidos, é ne-
cessário que o contrato de emprego, que a formaliza, cumpra os
‘requisitos’ ou ‘elementos jurídico-formais’ dos negócios jurídicos
em geral e dos contratos em espécie, conforme previsão do art.
104 do Código Civil Brasileiro. São eles: agente capaz, objeto
lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita
ou não defesa em lei. Além desses elementos, é também requisi-
to essencial de qualquer negociação jurídica a manifestação de
vontade das partes contratantes.
Para o caso das profissionais do sexo, não havendo regula-
mentação trabalhista no momento, os magistrados encontram al-
gumas determinações para o caso da lacuna existente na lei.

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A CLT diz:

Artigo 8º - As Autoridades Administrativas e a Justiça


do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais
decidirão, conforme o caso, pela Jurisprudência, por ana-
logia, por equidade, e outros princípios e normas gerais de
Direito, principalmente do Direito do Trabalho e ainda de
acordo com os usos e os costumes, o Direito Comparado,
mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe
ou particular prevaleça sobre o interesse público. Pará-
grafo Único – O Direito Comum será fonte subsidiária
do Direito do Trabalho, naquilo em que for incompatível
com os princípios fundamentais deste. (BRASIL, 1943).

Como o tema em tela é o trabalho de prostitutas, e atual-


mente ilícito, o que deve prevalecer é o interesse público e não
o interesse privado de uma ou de ambas as partes contratantes.
Nessa hipótese, aplica-se a teoria civilista das nulidades, o que
inviabiliza a produção de qualquer efeito trabalhista em razão do
trabalho prestado (efeitos ex tunc), segundo Gonçalves (1993).
Na realidade, o que se pretende com a aplicação da teoria civilista
das nulidades no caso de vício de objeto na contratação empregatícia
é, em outra medida, promover o bem público e ampliar a consciência
axiológica do intérprete do Direito, para se proteger juridicamente
apenas e tão-somente os trabalhos que possam dignificar o ser hu-
mano como trabalhador, diz o doutrinador. (GONÇALVES, 1993).
Entretanto, de fato, a prostituição é, em sua essência, um contrato
de prestação de serviço, em que ambas as partes têm um dever jurídico
informal. Sabe-se culturalmente que, legalizando ou não, esses contra-
tos informais continuarão existindo. A diferença é que, com a legaliza-
ção, esses profissionais passariam a ter um respaldo jurídico, acompa-
nhamento de sua atividade pelo Estado, benefícios empregatícios, como
salário, horas extras, férias, aposentadoria e seguro desemprego. Além

74
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

de dar maior seguridade ao usuário do sistema, que passaria a ter acesso


a algo legal e não mais delituoso, no submundo, como fazia antes. É
válido salientar que este continuaria a fazer uso dos serviços desses pro-
fissionais, mesmo se continuasse ilegal. “Portanto, por que não legalizar
e dar um pouco de dignidade aos que optaram ou foram empurrados
para esse segmento?”. (GONÇALVES, 1993).

Considerações finais
Barros (2005), em sua investigação intitulada Mariposas que
Trabalham, no capítulo Um trabalho como outro qualquer, diz
que as relações sexuais que resultam em pagamento; troca de ser-
viços e controle de tempo, podem ser entendidas como relação de
trabalho. Mas afirma também que, no Direito do Trabalho, a CLT
não descreve essas práticas como trabalho. Entretanto, ele leva à
reflexão sobre as considerações apontadas no estudo:
Um pequeno esforço permite delinear a situação laboral.
O corpo é o instrumento de trabalho. A prática sexual é a
relação de trabalho propriamente dita. É por ela que as mu-
lheres recebem o dinheiro. Podemos chamar essa relação
de processo de trabalho, pois é nele que encontramos as
formas, regras e maneiras de satisfação do cliente. O quar-
to, a cama, é o posto de trabalho. A rua, a boate, a zona, ou
mesmo o espaço público ou privado, utilizado para esse fim,
são os locais de trabalho. (BARROS, 2005, p. 1).

Continua o doutrinador afirmando que é como qualquer


atividade laboral, tem-se o início e o fim da relação. Com a pros-
tituta, o cliente teve o que pagou, o prazer sexual. Em tais circuns-
tâncias, as práticas sexuais fornecidas pelo corpo manifestaram-se
como força de trabalho e mercadoria, vendida e negociada como
uma relação de mercado. (BARROS, 2005).

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Nessa visão de mercado, está se tratando do corpo-objeto,


mercadorizado, com a possibilidade de compra temporária. É uma
relação de oferta e demanda, relação de troca onde aparece a de-
sumanização do corpo. O dinheiro é o garantizador das relações
de mercado. O consumidor, ao satisfazer suas fantasias e necessi-
dades, entende que o serviço foi prestado. (BARROS, 2005).
O Direito não é uma ciência exata e carece ser flexível às mu-
danças na sociedade ao longo dos tempos. O Direito não deve moldar
os costumes e as tradições, mas, sim, o contrário. A prostituição está
enraizada no âmago de todas as sociedades e em todos os tempos,
sejam elas ricas ou pobres, a prostituição lá estará da mesma maneira,
atendendo a ricos e pobres. Assim, cabe a reflexão realizada antes
sobre o Paradigma da Essencialidade e o Diálogo das Fontes.
O problema aparece quando a relação de trabalho está imbri-
cada com a moral, a cultura e os costumes dominantes. Entretanto,
sabe-se que há diferença entre o que é de fato e o que é de direito.
Cabe à sociedade cobrar o que é legitimado pelos costumes e
pelas tradições, embora se saiba que o Estado brasileiro é incom-
petente, muitas vezes, até para questões legais.
Obviamente que essa solução reflete um inevitável conflito
de valores: ao mesmo tempo em que promove o princípio da prote-
ção, vez que assegura direitos básicos de cidadania, por outro lado,
tolera o desenvolvimento de uma atividade considerada ilícita pelo
sistema, abrandando, de certa forma, o rigor da norma jurídica.
Delgado et al (2007) aponta que, diante das peculiaridades e
circunstâncias apresentadas pelos casos concretos, denotam-se varia-
das posturas doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema em debate.
Alguns juristas têm entendido que, caso seja possível desvin-
cular a atividade de trabalho lícita da ilícita, é possível reconhecer-
-se o vínculo de emprego. (DELGADO, 2007).
É importante esclarecer que o Direito do Trabalho não re-
conhece a ilicitude direta. O que existe é uma corrente amparada

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O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

por parte da doutrina e da jurisprudência, que apresenta nítida


tendência protecionista, já que procura aproveitar os atos lícitos
existentes praticados pelo trabalhador de boa-fé.
Um fato que vem a corroborar para a regulamentação das
profissionais do sexo nesse contexto é o amparo que o Regime da
Previdência Social deu para as atividades das prostitutas. É que
a legislação previdenciária, por força da Lei n°. 8212/91, incluiu
as prostitutas entre os filiados obrigatórios da Previdência Social,
como contribuintes individuais, inclusive, assegurando-lhes código
próprio de contribuição, com o número 1007. (DELGADO, 2007).
Agregaria, nesse contexto, o Ministério da Saúde com suas
políticas, impulsionadas pelos trabalhadores da saúde devido à pre-
ocupação com a Saúde Coletiva, dada a epidemia de HIV/AIDS.
Nos direitos sociais da Constituição Federal de 1988, prati-
camente é inexistente qualquer direito em relação à prostituição.
Como não são trabalhadoras reconhecidas, as prostitutas não têm
carteira de trabalho (CTPS), férias, 13° salário, invalidez e outros
direitos associados à questão de gênero, segundo Barros (2007).
A conclusão, portanto, da análise do Projeto de Lei n°
98/2003, o qual serviu de alavanca para o estudo, é que se trata de
um projeto falho, incompleto e carente de fundamentação.
Concluo que houve alguns avanços significativos sim duran-
te o processo da discussão do Projeto de Lei n° 98/2003. O debate
aberto, as concepções divergentes, a movimentação do segmen-
to das profissionais do sexo, embora ainda muito tênue, enfim, a
atenção da sociedade.

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81
Capítulo 5
A multidimensionalidade da identidade

Geruza Silva de Oliveira Vieira22

Introdução
O objetivo desse artigo é discutir a partir de modelos teórico-
-metodológicos a identidade em dimensão cultural, social e pro-
fissional, para compreender as relações construídas por artesãos e
artesãs trabalhadores. Assim, a análise incidirá sobre a constru-
ção Identidade dos artesãos e artesãs em relação à cultura local,
regional, nacional ou global, em relação ao meio social, ao seu fa-
zer técnico (fazeres que identifiquem que o artesanato ao artesão é
um tipo de trabalho), além de suas subjetividades e elementos ex-
ternos. Inicialmente, é possível entender a identidade como uma
categoria que possui várias dimensões a serem estudadas em sua
construção, sendo vista sob os vários aspectos do indivíduo, seu
relacionamento consigo mesmo e com os outros, como podemos
verificar na posição de Dubar (2005, p. 136):

A identidade nada mais é que, o resultado a um só tem-


po estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e
objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de

22 Doutora e Mestre em Sociologia. Graduada em Ciências Scoiais. Linhas de


Pesquisa: Sociologia Urbana e Sociologia do Trabalho. Email: <gsocienciasociais@
gmail.com>.

83
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

socialização que, conjuntamente, constroem os indivídu-


os e definem as instituições.

1. Reflexões sociológicas
A socialização é essencial para que a identidade se desenvol-
va. Constitui um meio, um caminho pelo qual o indivíduo irá cons-
truir, desconstruir ou reconstruir sua identidade a partir das várias
esferas de atividades que desenvolverá durante sua vida. Existe,
nesse caso, a perspectiva teórica de que, assim agindo, construirá
sua identidade frente a si mesmo e aos outros, ou seja, teremos
nesse indivíduo dois eixos de identificação: “um eixo sincrônico,
ligado a um contexto de ação e a uma definição de situação, um
espaço dado, culturalmente marcado, e um eixo diacrônico, ligado
a uma trajetória subjetiva e uma interpretação da história pessoal,
socialmente construída” (DUBAR, 2005, p. XX). A identidade é
pensada e compreendida nesses termos e deve ser analisada e in-
serida em processos históricos e contextos simbólicos.
A socialização traz a possibilidade de proporcionar no indiví-
duo as formas identitárias23, construções sociais partilhadas com
todos aqueles que possuem trajetórias subjetivas e definições de
atores homólogas, especialmente no campo profissional. Esta refe-
rência, leva-nos a pensar na construção da identidade profissional
a partir de experiências conjuntas e similares que podem se desen-
volver entre profissionais do mesmo ramo de atividade, por exem-
plo. Esses profissionais poderão compartilhar ideias e experiências,
as quais, nas relações sociais serão elementos de construção das

23 Formas de identificação socialmente pertinentes em uma esfera de ação


determinada. (DUBAR, 2005, p. XX).

84
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

suas identidades, dos seus modos de se verem enquanto pessoas e


enquanto profissionais, bem como de se verem pelos outros.
Os processos identitários irão se desenvolver num contexto de
transformações, as quais relativizam as identidades nacionais, expon-
do outro processo na construção das identidades, seja ela qual for. O
processo que nos referimos é o da hibridização que de acordo com
Canclini (2003, p. XIX) é definida como processos socioculturais nos
quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada,
se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.
Dada à fundamentação inicial de identidade no indivíduo e a
crença teórica para essa tese, de que, este conceito não se faz ape-
nas pela dimensão subjetiva, ou apenas pela dimensão cultural ou
pela dimensão profissional, mas por todas elas inseridas num con-
texto histórico e simbólico, passa-se a compreender essa identida-
de, já entendida, nos indivíduos trabalhadores artesãos brasileiros
e goianos, fruto de uma pesquisa com artesãos e artesãs realizada
em Goiânia e regiões brasileiras.
Desde já, é possível falar dos artesãos como atores sociais
que, agem combinando vários papéis: o de proletários, ou de su-
bordinados, ou de clientes, tendo que atuar como competidores
para sua sobrevivência. É possível identificar, especificamente em
produtos artesanais a presença de uma cultura híbrida do mundo,
a qual decorre na América Latina da mestiçagem e sincretismos
e nas “sociedades contemporâneas através das interações entre o
tradicional e o moderno, entre o popular e o culto, o subalterno e
o hegemônico”. (CANCLINI, 2008, p. 206) O popular se consti-
tui de processos híbridos e complexos, com signos de identificação
fundamentados em elementos procedentes de diversas classes e
nações. Estes processos relativizam a noção de identidade cultural.
Há na produção artesanal brasileira características marcantes
regionais, como também, produtos deslocados de seus contextos
regionais e misturados a partir de vários elementos de várias loca-

85
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

lidades, expressando o processo de hibridização nesses produtos e


na produção. Muitos elementos tradicionais se misturam a elemen-
tos modernos complementando a ideia de que o tradicional vem se
transformando, junto à modernidade, a qual não a suprimiu. Diante
dessa realidade, não se pode pensar apenas num tipo de identidade
fomentada apenas pelo social, mas a identidade cultural do próprio
artesanato, ou seja, sua relação com uma cultura regional ou nacio-
nal, com o que é típico, com o que identifica uma região, e poste-
riormente com que é preferido pela população local. A compreensão
que se tem da identidade do artesanato brasileiro e da cidade de
Goiânia é de que seja tanto influenciado pelas tradições familiares,
quanto por elementos culturais locais e regionais, e também por ele-
mentos culturais nacionais e globais. Encontra-se tanto artesanato
característico da região, quanto artesanato que carrega em si vários
elementos de várias regiões, entrelaçando características de vários
territórios: é um artesanato multicultural.
É fato que, a cultura pode constituir um dos elementos de
explicação das diferenças de produção dos artesãos e artesãs tra-
balhadoras brasileiras e da cidade de Goiânia, das várias formas
de se comportarem enquanto trabalhadores artesãos e artesãs
em determinados locais de trabalho, da utilização de diversos
materiais no trabalho, dos comportamentos frente aos possíveis
clientes, no que diz respeito às suas vendas. Dependendo da ten-
dência cultural local, regional ou nacional, o trabalhador artesão
ou artesã terá que se guiar, além da sua vocação natural, por
estas forças para que, a sua criação se realize, terá que, possuir
a sensibilidade para que, a sua produção não se frustre, ou seja,
fique totalmente perdida frente ao mercado e ao seu desejo de
que as pessoas levem suas obras.
Outra questão é que, a identidade cultural desse tipo de tra-
balho está inserida e construída num processo de informalidade,
pelo fato de não apresentar-se nas condições da CLT e estar em

86
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

relações de trabalho frágeis e instáveis, também dependente de


outras culturas para se formar. Segundo Strauss (1999, p. 29):

a identidade está associada às avaliações decisivas feitas


por nós mesmos – por nós mesmos ou pelos outros. Toda
pessoa se apresenta aos outros e a si mesma, e se vê nos
espelhos dos julgamentos que elas fazem dela. As más-
caras que ela exibe então e depois ao mundo e aos seus
habitantes são moldadas de acordo com que ela consegue
antecipar desses julgamentos [...].

Nesse sentido, o artesão tende a produzir seus produtos, a


se comportar frente ao outro – que pode ser seu cliente ou não,
conforme os moldes e padrões que o mercado já instituiu. Frente a
esse contexto perguntamos: quem é o artesão que trabalha como
artesão hoje? Como ele se apresenta enquanto artesão e profissio-
nal frente à sociedade?
Em muitas situações, verificou-se nas falas de artesãos e arte-
sãs, a caracterização do artesanato relacionado ao fazer manual, à
criatividade do criador, a um aprendizado vindo de seus antepas-
sados e uma percepção de que produzem arte de fato. A maioria
destes artesãos entrevistados acredita que as peças que produzem
são obras de arte, com exceção de um trabalhador de nome Pedro,
em 2012, disse que: “artesão é uma coisa, artesão faz obras repetidas,
em série, as artes plásticas é só pintura e escultura, não importa se é
de mármore ou de ferro, ele é um artista plástico. Lá é um artesão,
ali na frente é um artesão, ali é artesão, esse senhor é um artesão”.
Frente a esse contexto apresentado na pesquisa empírica,
faz-se importante uma discussão do que seja arte e do que seja
artesanato. Canclini (2003, p. 242) traz a análise da distinção
estabelecida pela estética moderna entre arte e artesanato. Con-
cebe-se a “arte como movimento simbólico desinteressado, um
conjunto de bens espirituais nos quais a forma predomina sobre

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Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

a função e o belo sobre o útil” e o artesanato como “o reino dos


objetos que nunca poderiam dissociar-se de seu sentido prático”;
a arte como produto de pessoas solitárias e singulares e o artesa-
nato produzido por pessoas anônimas e coletivas; a arte com pe-
ças únicas, irrepetíveis e o artesanato com peças produzidas em
série. Esta referência teórica, coloca-nos frente a uma separação
entre o espiritual e o material prático e útil, ou seja, o artesana-
to mesmo trabalhado com criatividade e singularidade por cada
artesão seria planejado para seu fim útil.
Na tentativa de compreender essa distinção na prática social
dos artesãos da cidade de Goiânia e do Brasil, perguntou-se a eles
o que seria artesanato. Muitos acreditam serem artistas e artesãos,
mas a centralidade de percepções esteve na ideia de que fazem um
trabalho que se caracteriza especialmente pela liberdade em fazê-lo.
Como se pode ver na fala desta artesã, quando se refere ao artesanato
como um trabalho bem autônomo, diferente de outros tipos de prá-
ticas laborais, concebendo o artesanato como um fazer livre, porém,
compromissado com sua vontade de fazer exercitando a criatividade:

[Perguntou-se se o trabalho com o artesanato teria alguma


característica diferenciada de outros trabalhos] É uma dife-
rença muito grande porque artesanato você trabalha com
suas mãos e suas ideias, sua cabeça. Você trabalha tranqui-
lo tem a oportunidade de criar, jogar com você o que tem
dentro pra as pessoas. Aí você coloca sua ideia no produto.
Então é uma coisa bem diferenciada. Bem diferente, porque
você trabalha com as mãos. (MARIA, 2014).
[Perguntou-se o que seria o artesanato para ela] O quê
que seria? Criações, você saber criar, você saber aprovei-
tar ideias, eu acho que artesanato envolve isso criar ideias
novas, mostrar o que você sente, porque eu acho que você
representa muita coisa de você na peça eu acho que arte-
sanato é isso. (RAFAELA, 2012).

88
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Na composição das subjetividades, de como eles se olham


enquanto artesãos e na constituição das objetividades, de como
são olhados pelos outros, há elementos adjetivos que categorizam
o artesanato brasileiro e da cidade de Goiânia como: peças de arte,
úteis ao público que as adquire, algumas peças únicas que possuem
o registro do nome artístico do artesão, algumas peças produzidas
em série (aquelas que mais vendem), peças com técnicas criativas
e desenvolvidas pela família ou pelo próprio artesão, peças criadas
com crenças de energização positiva colocada pelo artesão. Produ-
tos encomendados como forma de garantir a venda e a fidelização,
trabalhos com materiais recicláveis e que não seriam mais utiliza-
dos, peças produzidas em horários não padronizados.
As descrições mostram que o artesão constrói sua rotina de
trabalho, livrando-se da imposição de uma rotina industrializada
com pontos e horários certos para marcar, uma rotina solitária.
Percebe-se assim, uma coincidência entre o que é a arte e o que
é artesanal. Tanto o processo de produção da arte, quanto do ar-
tesanato está incluído na circulação das pessoas predomina-se a
noção de que o artesanato e a arte são formas que envolvem a
vocação e não são totalmente separadas entre os artesãos. Na fala
dessa artesã, o artesanato é um dom: “Artesão é um dom, uma
coisa boa dentro da gente; a gente vai criando peças cada dia e
melhora mais, e se você não praticar você nunca vai saber se você
faz uma coisa boa”. (REGINA, 2012).
Para essa outra artesã, o trabalho que ela realiza como flores é
arte: “eu mexo com flores em tecidos, peso de portas. Minha arte é
essa aí só em tecidos” (MATILDE, 2012). Percebe-se que o artesanato
na cidade de Goiânia e nas regiões brasileiras é exposto ao público,
nas calçadas, em lugares abertos como feiras, um tipo de prática po-
pular vivida pelo artesão e ao mesmo tempo pelos daquela localidade,
no espaço e no tempo. O artesanato é percebido pelas pessoas que

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Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

vão a seu encontro e mesmo aquelas que não planejam este encontro
o encontram por acaso, como em vitrines abertas e públicas.
Por vários momentos, durante o trabalho de campo em feiras
de artesanato em Goiânia, pode-se notar a interação das pessoas
que olhavam os produtos expostos e procurava saber suas histó-
rias, como as peças eram feitas, de que material, por meio de qual
técnica. Mesmo não comprando a peça naquele momento, algu-
mas pessoas apenas paravam ao redor das bancas para conversar,
desenvolver ideias junto ao artesão. Em meio aos populares, os ar-
tesanatos contavam suas histórias, sejam expressas verbalmente
pelo próprio artesão ou expressas pelos imaginários que os obser-
vam ao verificar que, cada peça, fosse ela artística ou artesanal
apresenta a cada pessoa, dependendo da peça, uma representação
mental diferenciada de outras pessoas. Podemos compreender essa
questão a partir de um artesão que cria peças a partir de restos de
matérias e às vezes a peça que ele criou não condiz com o que o
cliente olha e observa, muitas vezes o cliente imagina outra figura,
diferente do que o próprio artesão imaginou. Essa situação não
pode ser aplicada como uma análise para todo o artesanato da ci-
dade de Goiânia ou Brasileiro, mas, é uma modalidade de análise
válida para determinadas obras e determinados artesãos. Depen-
dendo do artesanato, a obra feita será óbvia, ou seja, tanto para o
cliente, quanto para o artesão, a representação será a mesma.
Segundo Canclini, “hoje, a identidade, mesmo em amplos
setores populares, é poliglota, multitécnica, migrante, feita com
elementos mesclados de várias culturas” (CANCLINI, 2008, p.
131). O autor faz esta consideração a partir de realidades sociais
desenvolvidas na cidade do México. Porém, pode-se verificar esta
problemática em outros contextos sociais, especialmente brasileiros.
Verifica-se que, o artesanato brasileiro em geral e, no caso especí-
fico da cidade de Goiânia, é produzido pelos traços culturais regio-
nais, locais e nacionais, em diálogo com as inovações tecnológicas e

90
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

outras tradições modernas. Alguns artesãos, por exemplo, utilizam


de ideias e peças tradicionais, vindas de família, ensinadas pelas
famílias, mas, com a preocupação primeira de ter para suas peças
um mercado local, regional e até mesmo nacional, logo, de produzir
peças que agradem aos futuros clientes, observando tanto aquelas
peças que mais vendem quanto aquelas que são encomendadas com
antecedência e devem ser produzidas ao gosto do cliente.
Uma questão nuclear nesses escritos é como os artesãos de
Goiânia e do Brasil estão conservando e resgatando tradições su-
postamente inalteradas e como estão interagindo com as forças
sociais da modernidade? O que se tem percebido nas pesquisas é
que esses trabalhadores produzem artesanato por gosto, por voca-
ção, por ofício, mas, dentro do atual contexto de modernidade, o
fazem também com a preocupação de sobrevivência, de ganhos,
de criação de fidelização aos seus clientes, mesmo que, alguns te-
nham outras ocupações. Existe entre estes artesãos a preocupação
com a situação dos produtos industrializados quanto ao preço e à
aceitação pelo mercado.
Nessa construção, práticas sociais são desenvolvidas pela mo-
tivação e pelo sentido de ir a uma feira de artesanato. As pessoas
transitam entre os corredores de calçadas, entre uma e outras, pa-
ram em bancas, olham, conversam, cumprimentam conhecidos ou
não, sentam para lanchar, apreciam-se uns aos outros, apreciam os
produtos, obtêm conhecimentos sobre as peças produzidas. É uma
dinâmica construída pelo artesanato que é exposto em um deter-
minado espaço e tempo. Revela uma construção cotidiana espe-
cialmente ao ar livre, nas calçadas, e em alguns casos na rua, ou
seja, em espaços públicos. Existe o desenvolvimento de uma cultura
do trabalho de rua como traço identitário dos trabalhadores arte-
sãos da cidade de Goiânia e do Brasil a partir das relações travadas.
O encontro de vários sentidos, de várias subjetividades, é produto
da possibilidade de culturação desenvolvida nesses espaços, como

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Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

salienta Fontaine (2011, p. 280): “une constellation de sens et d’


usages du travail de rue comme produit de sa culturation”24. Produz-
-se uma Cultura do trabalho de rua cotidianamente como no diz
Fontaine: “La culture du travail de rue: une construction quotidiene”.
A cultura do trabalho faz-se traço constitutivo do artesanato laboral
especialmente verificado entre os artesãos de Goiânia.
Além da identidade cultural refletida por Canclini, tem-se
a compreensão do artesanato à luz da sociedade atual que requer
pensá-lo no interior de uma produção que está inserida em redes
de mercado que se interligam e possibilitam a abertura para co-
mercialização dos produtos artesanais, bem como a visualização
dos mesmos por meios tecnológicos também interligados.
Giddens (1991, p. 69) refere-se a esse contexto como fruto
da globalização, e o define como um “processo de alongamento,
na medida em que as modalidades de conexão entre diferentes
regiões ou contextos sociais se enredaram através da superfície da
terra como um todo”. A globalização é um processo presente nas
relações de trabalho do artesanato contemporâneo, principalmen-
te relacionado à divulgação e distribuição dos seus produtos.
Nesse processo de globalização, os indivíduos deslocam-se do
seu lugar no mundo social e no mundo cultural, logo, de si mes-
mos, através da aproximação do que está distante, realizada por
pessoas de diferentes localidades. Emergem sujeitos desintegrados,
que não possuem mais referências, modelos sólidos a seguir. Nes-
se sentido, Hall (2006) analisa que as mudanças estruturais que
ocorrem na sociedade têm refletido em mudanças na identidade
pessoal do indivíduo, o que nos faz pensar que a identidade pessoal
é influenciada pela identidade social.

24 Uma constelação do sentido e do uso do trabalho de rua como produto de sua


cultura. (Tradução da autora, 2014).

92
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

As mudanças ocorridas socialmente, segundo Keller (2011)


alteram a identidade do trabalho artesanal, de forma que, o pro-
duto artesanal visto contemporaneamente, faz-se imbuído de uma
dimensão econômica e uma dimensão cultural, ou seja, o artesão
não pode se preocupar em produzir uma peça apenas pelo seu estilo,
pela sua habilidade em fazer o produto, mas também, deve pensar
nesta peça inserida numa possibilidade de aceitação no mercado.
O design do artesanato deve estar adequado aos tempos
contemporâneos, que requerem sempre a transformação das suas
formas, sempre uma novidade na criação. Assim, além da produ-
ção manual, do fazer que o artesão desenvolva, temos a criação
orientada pela tendência, seja ela cultural social ou econômica.
Há, portanto, a criação de uma rede de relações com o mercado,
com órgãos governamentais e agências de fomento, com objetivo
de criar espaços para os produtos artesanais. Muitos produtos já
são comercializados via internet, o que concretiza a ideia do arte-
são que se modela e se adéqua às novas formas de sociabilidades.
O trabalho artesanal se diferencia do trabalho industrial es-
pecialmente pela sua produção, pelos materiais utilizados, pelas
formas desenhadas e dispostas, pelas motivações do produtor do
trabalho e pela caracterização de cada produto que se faz único
daquele artesão. Estas condições não eximem do trabalho artesa-
nal sua articulação com as mudanças na economia e na sociedade
capitalista, o que tem demandado do artesão cada vez mais além
de suas habilidades e capacidades específicas consideradas cria-
tivas e manuais, a habilidade de situar seu produto no mercado
como forma de garantir sua sobrevivência.
No produto artesanal, encontra-se uma mistura de valores
culturais e do prestígio identitário do artesão, ou seja, o produto
artesanal se faz pelo trabalho criativo associado à valorização que
a sociedade local, regional, nacional e internacional oferece ao
produto. Esses valores agregados provocam a construção da identi-

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dade do artesão em seu trabalho. A forma como a socialização do


artesão se realiza poderá interferir em sua identidade profissional.
O artesanato atual encontra-se numa escala mundial e ho-
mogênea de desenvolvimento de seus produtos. Considera-se que
muitos produtos artesanais podem estar presentes em diferentes
localidades do globo a partir das possibilidades que a globalização
oferece independentemente; em muitos casos da cultura desenvol-
vida em cada região ou país. Muitos produtos artesanais podem
existir em regiões que não interferem na sua produção, mas pelo
fato de possuírem uma demanda de mercado que pode ser influen-
ciada pelas relações sociais globais.
O trabalho com o artesanato não obedece a um rigor de horá-
rio determinado, mas sim, aos horários com ritmos que dependem
do ofício desenvolvido. Tito (2004) discute o trabalho do artesão
como um trabalho que raramente é solitário, pois, para a autora, en-
quanto os artesãos trabalham podem conversar e às vezes até can-
tar. Quanto à organização do trabalho com o artesanato é possível
pensar numa forma democrática e hierárquica de atuação, pois seu
funcionamento está fundado não no poder de mando, mas sim na
forma de realização do conhecimento sobre o fazer artesão, onde,
neste fazer, está em jogo a criatividade com que cada artesão faz seus
objetos. Tudo isso constitui o fazer do artesão.
Os artesãos, para Cardini (2004), são produtores culturais
e o artesanato produzido é um produto cultural. Nesse sentido, a
identidade do artesão e a do artesanato estão como interligadas às
relações sociais, com intervenções das formas de produção, circu-
lação e consumo. Os processos identitários desenvolvidos entre os
artesãos na produção do seu artesanato são considerados por Tito
e Cardini como componentes de suas personalidades.
A construção da identidade do trabalhador é compreen-
dida em Dubar (2006, p. 85) como um processo que ao longo
do seu desenvolvimento sofre a interferência da sociedade: “as

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O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

identidades profissionais são maneiras socialmente reconhe-


cidas para os indivíduos se identificarem uns aos outros, no
campo do trabalho e do emprego”. Ao pensar a identidade dos
artesãos como uma identidade social, toma-se o artesão como
um profissional que produz seus produtos, não apenas influen-
ciado pelas expressões culturais de uma determinada região,
mas, também, pelo reconhecimento dado e construído a partir
de sua habilidade em ser um artesão, que produz singularmente
suas peças, com relativa autonomia da cultura predominante
no momento da sua produção.
A construção da identidade pessoal e da identidade de cria-
tividade social passa pela interação travada entre as relações com
os outros, sendo estas partes da motivação desta identidade. Para
Dubar (2005, p. XXV),

a identidade humana não é dada, de uma vez por todas,


no nascimento: ela é construída na infância e, a partir
de então, deve ser reconstruída no decorrer da vida. O
indivíduo nunca a constrói sozinho: ele depende tanto
dos juízos dos outros quando de suas próprias orienta-
ções e auto definições.

A conceituação desenvolvida em Dubar (2005) de identida-


de não distingue a identidade individual da identidade coletiva. A
identidade trabalhada por este autor refere-se à identidade social,
uma junção e interação entre a transação interna ao indivíduo e a
transação externa que, ocorre entre o indivíduo e as instituições com
as quais interage. A identidade individual está em constante diálogo
com o meio externo ligado aos processos culturais, às estratégias de
ordem econômica. A identidade social do indivíduo, portanto, sem-
pre estará em construção e deverá ser constantemente reconstruída
em uma incerteza maior ou menor e mais ou menos duradoura. Há a
ideia das relações internas se relacionando com as relações externas,

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Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

expressas numa socialização25, que é um conceito referencial para o


entendimento da construção da identidade entre os trabalhadores ar-
tesãos em Goiás e no Brasil, como uma das formas de compreensão
do processo e organização deste tipo de trabalho.
Dubar (2005) considera a dimensão profissional como uma das
dimensões mais importantes da identidade dos indivíduos. Esta di-
mensão que é social, portanto, intervém nas dinâmicas identitárias
dos indivíduos ao longo de seu processo de socialização. Outra rela-
ção teórica importante na construção do referencial que orienta esta
análise se refere à socialização como incorporação dos habitus, da qual
Dubar (2005, p. 80) se apropria a partir de duas interpretações: consi-
dera-se o habitus como uma “cultura de origem, incorporado à perso-
nalidade, importando seus esquemas a todas as situações anteriores e
provocando inadaptações cada vez que essas situações se afastam de-
mais das situações da infância”; e também como “uma orientação da
descendência, a identificação antecipada a um grupo de referências
cujas condições sociais não são as da família ou do grupo de origem”.
Dessa forma, o habitus pode ser pensado como uma forma de
socialização de saberes passados que serão internalizados pelos indi-
víduos no presente e no futuro, bem como de saberes que podem ao
longo de seu desenvolvimento ser reformulados, ou adquiridos fora
da socialização de origem. O ofício como uma habilidade do tra-
balhador artesão, pode ser repassado, em muitos casos, de pai para
filho, reproduzindo técnicas de produção, ou o trabalhador artesão
pode adquirir este ofício por outras motivações que não sejam as da
própria família de constituição. A reprodução acontece por meio de
“saberes profissional” (DUBAR, 2005, p. 122) que se constituem a
partir da socialização secundária. A análise da produção da iden-

25 Dubar (2005, p. XXVI) se refere ao termo socialização a partir de várias conotações


como: “inculcação das crianças, doutrinamento dos indivíduos, imposição de
normas socais, coerções exercidas por poderes tão ameaçador quanto anônimos...”.

96
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

tidade profissional do trabalhador artesanal deve ser pensada pela


forma como se constroem os processos de socialização de um mun-
do vivido, relativo a um contexto social e a uma época histórica.
Segundo Dubar (2006, p. XXI), as identidades coletivas e pessoais
“são consideradas em processos históricos e contextos simbólicos”.
Uma das dimensões enfatizadas no conceito da identidade é
o da subjetividade no cerne dos processos sociais. Dubar (2006, p.
XXI) reflete as formas identitárias como “construções sociais par-
tilhadas com todos os que têm trajetórias subjetivas e definições de
atores homólogos, principalmente no campo profissional”. O fato,
por exemplo, de o trabalhador ser reconhecido em seu trabalho pela
atividade que desenvolve e de poder se empenhar na mesma são
elementos construtores da identidade pessoal desse trabalhador.
O indivíduo depende tanto dos juízos dos outros quanto de
suas próprias orientações e auto definições. A identidade pensada
nesta pesquisa – identidade cultural e identidade profissional do
trabalhador artesão – se faz a partir da vertente da socialização
como sua principal forma de construção. (DUBAR, 2006). A di-
mensão profissional se faz como um elemento essencial na forma-
ção da identidade pessoal do indivíduo, quando se observa que, o
trabalho acaba obrigando o trabalhador a se aderir às transforma-
ções identitárias vindas das mudanças que o próprio trabalho ofe-
rece. O emprego em si, condiciona a construção das identidades
sociais e pessoais. Assim, segundo Dubar (2006, p. 150):

A identidade profissional para si, mesmo reconhecida por


um empregador, tem cada vez mais chances de não ser de-
finitiva. É regularmente confrontada com as transforma-
ções tecnológicas, organizacionais e de gestão de emprego
das empresas e da administração pública.

Ao verificar no trabalho do artesão um tipo de individuali-


dade produzida para cada produto que constrói, orientada por in-

97
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

fluências, saberes e comportamentos de outros, pode-se entender


este trabalho ainda, ancorado na teorização weberiana de ação so-
cial, assim definida: “uma ação que, quanto ao seu sentido visado
pelo agente ou os agentes, se refere ao comportamento de outros,
orientando-se por este em seu curso”. (WEBER, 2004, p. 3).
Em entrevistas já realizadas, verificou-se que o processo de pro-
dução do trabalho do artesão pode ser mediado por sua identificação
com o que se está produzindo. Há um sentido em sua ação subjetiva-
mente realizada e com perspectiva no outro. O artesão, ao trabalhar
com o material escolhido, o faz tanto expressando o que se quer a
partir deste material, como também leva em conta a viabilidade eco-
nômica do produto que irá produzir e a consciência sobre a susten-
tabilidade do meio ambiente – dependendo da criação e do material
utilizado. A realização do trabalho do artesão, segundo a entrevistada
que trabalha com madeira e expõe na Feira do Cerrado, em Goiânia
está relacionada à motivação interna que a artesã possuía:

O fundo de tudo é, o se conhecer e o se perceber no mun-


do, né, e aí, a partir disso, uma vez que você está presente
aqui né, vamos dizer no mundo, vivendo, observando, você
acha em todo lugar, é numa música, é num gesto, é no pró-
prio material, na própria textura. (MORGANA, 2010).

O material participa do processo de produção do trabalho e é


transformado a partir da expressão colocada pelo artesão, que o faz
pensando em sua finalização como peça de arte. Nesse processo de
produção, alguma parte tem a possibilidade de não ser criada, mas
de vir pronta, por questões de adequação do material, porém, sua
essência está na criação a partir dessas partes pelo artesão. Nesse
contexto é possível pensar na formação de redes profissionais que
fazem parte do processo para produção do artesanato, quando o ar-
tesão necessita conforme a necessidade da sua criação, de se interli-
gar com outras profissionais para a composição da sua obra.

98
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Keller (2011) trabalha com a ideia da formação da cadeia de


valor do artesanato considerada como um conjunto das atividades
econômicas interligadas que compõem a cadeia do produto, desde
o design, passando pela manufatura, o marketing e a comercializa-
ção, até o consumo final.
Segundo Tito (2004), o objeto artesanal é feito pelas mãos, não
só pelo que podemos ver, mas, pelo que se pode sentir, de modo que
existe uma espécie de tabu religioso como encontrado nos santos
que, não se permite tocá-lo de qualquer forma. Neste objeto artesa-
nal, encontra-se uma utilidade relacionada à necessidade do objeto,
porém não se resume a ela e não se reduz a um ideal matemático
que padroniza o design industrial, por exemplo. A autora refere-se
ao design industrial constituído de uma beleza de ordem conceitual,
a partir do momento que se expressa com justeza de uma fórmula e
possui uma racionalidade que se encerra numa alternativa: serve ou
não serve e para o segundo caso há que se jogar no lixo.

2. Formas identitárias
Ao refletir sobre a formação da identidade nos indivíduos,
Dubar (2006) analisa três grandes processos identitários como
formas de compreender como a sociologia interpreta a identidade
dos indivíduos. Designa esses processos como configurações: pro-
cesso da civilização de Norbert Elias, o processo de racionalização
de Max Weber e o processo de libertação de Karl Marx e Engels.
Dubar considera estes modelos como formas identitárias do eu
social. Nenhum deles será de fato predominante sobre o outro, ou
seja, nenhuma destas três visões sociológicas de identidade originou
uma única forma de identidade universalmente dominante, portan-
to nenhuma delas se colocou como eixo duma nova configuração
histórica. Nessa perspectiva, o autor (2006) sustenta que, as iden-
tidades dos indivíduos estariam em crise: “nenhuma configuração

99
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

das formas identitárias me parece ter adquirido legitimidade univer-


sal nem mesmo reconhecimento consensual” (DUBAR, 2006, p.
21). A partir da sociologia de Norbert Elias, considera que,

Não há identidade do Eu sem identidade do Nós, geran-


do a identidade Nós-Eu, onde, Elias tenta “interpretar o
processo histórico a que ele chama processo de civilização
e de que uma das interpretações mais frequentes da sua
obra é a seguinte: a transformação do equilíbrio Nós-Eu,
ao longo da história, no sentido duma primazia da identi-
dade do Eu sobre a identidade do Nós.

O autor cita o exemplo do povo samo, o qual baseia sua iden-


tidade na definição comunitária do Eu. Entre eles o indivíduo só
possui a identidade ditada pela vontade coletiva do grupo que atri-
bui a ele o seu lugar. Caso este indivíduo infrinja as regras deve
suicidar-se ou se exilar voluntariamente.
Em Weber, Dubar (2006) identifica outro tipo construção so-
ciológica da identidade, a racionalização. Weber não utiliza a pala-
vra identidade, mas fala da análise compreensiva da ação humana
a partir do seu significado subjetivo. A partir das grandes religiões
universais tem-se o “momento essencial da racionalização religiosa”
(p, 33). Para Weber, o que irá caracterizar em “grande parte as pri-
meiras formas comunitárias da história humana será o domínio do
pensamento mágico” (p. 31). A ideia é a de que as “formas comu-
nitárias designam as relações sociais fundadas sobre o sentimento
subjetivo de pertença a uma mesma coletividade” (p. 31).
Junto a esse processo de racionalização tem-se a ideia da for-
ma reflexiva – um jeito de “identificação que consiste em investi-
gar, argumentar, discutir, propor definições de si próprio fundados
na introspecção e na procura dum ideal moral” (p, 34). Esta forma
reflexiva nasce das formas comunitárias. O processo de raciona-
lização a que Weber se refere está no significado que o indivíduo

100
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

atribui às suas ações orientadas por um motivo, por um sentido.


A religião torna-se cada vez mais a orientação das pessoas como
uma moral de conduta a ser seguida em suas vidas cotidianas que
as guiam para uma racionalização de comportamentos.
Em Weber temos uma figura identitária resultado da fase fi-
nal deste processo de racionalização religiosa: o empresário capita-
lista puritano, no qual, conforme Dubar (2006, p. 35):

Existe uma afinidade estrutural, uma correspondência sim-


bólica entre a ética puritana dos calvinistas que, acreditam
na predestinação, pregando a face do crente individual e do
seu Deus, gerando uma incerteza angustiada pelo compro-
misso no mundo, ligando profissão e vocação e o espírito
capitalista que implica uma conduta de investimento orien-
tada para o futuro, uma acumulação primitiva implicando
não consumir o seu lucro, mas sim reinvesti-lo sem cessar.

A emergência do capitalismo moderno junto à racionalização


religiosa gera o tipo social do puritano Calvino, um sujeito que
quer atingir a salvação eterna pelo êxito da sua empresa. Para Du-
bar (2006), a dominação como exploração econômica e a exclusão
societária irão emergenciar a luta de classes e gerar uma nova for-
ma de identidade inédita.
O que Marx e Engels concebem como forma identitária do in-
divíduo é a “associação consciente de indivíduos livres” (p, 42), com a
ideia de que o capitalismo e a sociedade burguesa societária destruíram
os laços vitais constitutivos da condução humana e a revolução política
sob uma forma voluntária e associativa restituiria estes laços. Para Du-
bar (2006, p. 50), nenhuma dessas três configurações apresentadas
coloca-se de fato, como forma identitária predominante, ou seja:

Nem a identidade de corte, caracterizada dos Estados


burocráticos modernos, nem a identidade do empresário

101
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

racional, impondo num mercado uma lógica racional eco-


nômica capitalista, nem o militante revolucionário, fun-
dindo com a sua causa comunista e o aparelho que pre-
tende encarná-la, podem servir de pólo de identificação
comum, universalmente legítimo e desejável.
Além das configurações históricas que delineiam as identida-
des, Dubar (2006) analisa as formas de construção da identidade. A
primeira forma identitária é a forma comunitária do Nós, que mo-
dela totalmente o eu através da sua genealogia e através da cultura.
Outra é a forma societária que une o “Nós contingentes e depen-
dentes das identificações estratégicas a Eus perseguindo os seus ob-
jetivos de sucesso econômico, e de realização pessoal (à qual chamei
forma narrativa)” (p, 49). A terceira forma é a reflexiva, onde o Nós
comunitário juntamente com o Eu íntimo é voltado para o interior.
Na quarta forma, a estatutária, prevalece o nós societário do tipo
estatal, burocrático, institucional em conjunto com a estrutura do
eu de tipo estratégico orientado para o exterior.
A partir destas quatro apelações, Dubar (2006) desenvol-
ve o entendimento das transações relacionais e as transações
biográficas no desenvolvimento das formas identitárias. Tem-se,
portanto, primeiramente a forma de identidade biográfica para
outrem do tipo comunitário, onde o indivíduo pertence a um
grupo local e à sua cultura herdada. É predominante enquanto
perdurar simultaneamente o poder do Nós sobre o Eu, as crenças,
magias sobre as formas racionais e as formas pré-capitalistas de
produção. A segunda forma é a de identidade relacional para ou-
trem, que implica um eu socializado pelo desempenho de papéis.
O indivíduo deve ligar-se às diversas instituições como forma de
integração. Dubar (2006) a designa também como identidade
estatutária. A terceira é a forma relacional para si, que se origi-
na da consciência reflexiva, ou seja, o indivíduo desenvolve um
tipo de identidade por desenvolver um sentido subjetivo, uma

102
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

interpretação de suas atividades. A última forma de identidade


é a biográfica para si, também chamada de identidade narrativa,
onde, o indivíduo desenvolve o seu si narrativo, o si que cada
um tem necessidade de ver reconhecido, não só pelos outros sig-
nificativos, mas também, pelos outros generalizados. Nesse pro-
cesso, questiona-se “as identidades atribuídas e um projeto de
vida com longevidade” (DUBAR, p. 52).
A identidade para si e a identidade para o outro são ao mes-
mo tempo inseparáveis, pois, o eu se forma a partir do conceito
que o outro lhe atribui e são ligadas de maneira problemática, pelo
fato do eu não saber totalmente o que o outro pensa e como o
outro irá reagir frente ao eu:

Todas as nossas comunicações com os outros são marca-


das pela incerteza: posso tentar me colocar no lugar dos
outros, tentar adivinhar o que pensam de mim, até mes-
mo imaginar o que eles acham que penso deles, etc. Não
posso estar na pele deles. Eu nunca posso ter certeza de
que minha identidade para mim mesmo coincide com a
identidade para o Outro. (DUBAR, 2005, p.135).

A Identidade social é construída nos processos de socializa-


ção que o indivíduo desenvolve ao longo de suas relações sociais
e fundamentadas nos eixos biográfico e estrutural. Esta identida-
de se faz pela articulação entre as transações subjetiva e objetiva,
ou seja, entre os atos de atribuição dados pelas percepções do
outro frente ao seu eu e os atos de pertencimento, aqueles que
exprimem que tipo de homem ou mulher você quer realmen-
te ser, uma identidade para si que, deve ser legitimada subjeti-
vamente pelo eu. Disso resulta uma tentativa de relação entre
as duas identidades, chamada por Dubar (2005) de estratégias
identitárias, produzidas pelos indivíduos para reduzir a distância
entre as duas identidades:

103
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Elas podem assumir duas formas: ou a de transações externas


entre o indivíduo e os outros significativos, visando a ten-
tar acomodar a identidade para si à identidade para o outro
(transação denominada objetiva) ou a de transações internas
ao indivíduo, entre a necessidade de salvaguardar uma parte
de suas identificações anteriores (identidades herdadas) e o
desejo de construir novas identidades no futuro (identidades
visadas), com vistas a tentar assimilar a identidade-para-o-
-outro à identidade-para-si. (DUBAR, p. 140).

As configurações identitárias se fazem pelas formas relativa-


mente estáveis, sempre evolutivas, de compromisso entre os resul-
tados dessas duas transações. Os outros constroem categorizações
sobre o eu, e é principalmente na escola com os professores e colegas
que, a criança, por exemplo, a experiência de sua primeira identi-
dade social, a qual não é escolhida, mas atribuída pelas instituições
sociais, pelas relações sociais, pela cultura pertencente, étnica, polí-
tica, religiosa, profissional, dos pais respectivos, e também pelo seu
desempenho escolar, ou seja, sua vivência no cotidiano da escola.
A identidade social do indivíduo se configura pela identida-
de que o outro lhe dá, pela identidade construída para si e pela
identidade herdada pelos antepassados e aquela adquirida pelo
sistema escolar. É nesta configuração que há a produção das es-
tratégias identitárias, como forma de equilibrar todas elas em um
único eu. Quando este indivíduo deixa o sistema escolar e entra
no mercado de trabalho, começa a construção de uma identidade
autônoma que se fará pelo constante confrontamento entre estas
duas experiências, processo que, fundamentará a construção da
identidade profissional básica. Dubar (2005, p. 156) reconhece
esta identidade como sendo:

Transmitida por uma geração à seguinte, cada geração a


constrói, com base em categorias e nas posições herdadas da

104
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

geração precedente, mas também através das estratégias iden-


titárias desenvolvidas nas instituições pelas quais os indivíduos
passam e que eles contribuem para transformar realmente.

A identidade básica constituirá a identidade no trabalho e


uma projeção de si no futuro, já constituindo a trajetória ocupacio-
nal e a elaboração de uma lógica de aprendizagem, ou seja, a forma-
ção da profissão. A realização da identidade profissional e social se
dá primeiramente pela identidade biográfica para si, logo, deve se
desenvolver pela sua participação de alguma forma em atividades
coletivas nas organizações. A experiência nas relações de trabalho
forma no indivíduo que, já possui a identidade para si, relações dura-
douras que irão se mantiver pela dependendo da aceitação do outro
na relação de trabalho. A identidade profissional se faz pela recipro-
cidade de identificação durante as relações laborais.
O indivíduo através da socialização cotidiana internaliza
valores, normas e disposições que fazem dele um ser socialmente
identificável, desenvolvendo elementos de identificação social e
profissional especialmente, formando suas formas identitárias. Esta
socialização se faz pelo processo de reprodução, de conformação à
cultura do grupo, com também, pelo confrontamento dessa repro-
dução criando novos elementos. A sua identidade social passa por
esta socialização que, absorve, confronta, recria elementos e se faz
ser reconhecida pelos outros. O indivíduo constrói sua identidade e
a desenvolve, a partir do reconhecimento dos seus outros, levando
às identidades sociais e à estruturação dos sistemas sociais. A iden-
tidade do eu, portanto, é a identidade do universal e do singular.
Quando Dubar (2006) constrói estes conceitos das formas
de identidade sob os eixos biográfico e relacional, tem a intenção
de demonstrar que, as formas de identidade desenvolvidas nos in-
divíduos, são inseparáveis das relações sociais que são formas de
alteridade, as quais são constituídas de relações entre si e entre

105
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

os outros. O autor analisa as identidades profissionais e as chama


de formas identitárias no sentido definido como, “configurações
eu-nós detectadas no campo das atividades de trabalho remune-
radas” (DUBAR, p. 85). Podem ser tanto “relacionais (identidades
de atores num sistema de ação) e também biográficas (trajetórias
ao longo da vida de trabalho)” (DUBAR, p. 85).
O artífice, tal como categorizado por Sennett (2009) está
nos percursos identitários como uma forma de identidade desen-
volvida por aquele que, se ocupa em seu espaço de trabalho do
fazer e do pensar dos materiais determinados. Está numa socializa-
ção e em configurações identitárias especificamente medieval. A
autoridade que o artífice se fundamenta é institucionalizada pelo
fato de ele ser um cristão. A religião acolhe esta figura do artífice,
pelo fato de existir neste processo de trabalho uma frente contra-
ditória à autodestruição humana com a ideia de ser uma atividade
laboral pacífica e produtiva e a convicção da Roma pagã de que o
trabalho com as mãos pode revelar muito sobre a alma. Há inclu-
sive, o surgimento na idade média dos chamados artífices-santos
e em “termos doutrinários, o artífice representa a manifestação de
Cristo para a humanidade, mas não o seu ser” (DUBAR, p. 70).
O artífice medieval cristão vivente em mosteiros como o de Saint-
-Gall, na atual Suíça, além de cumprirem suas obrigações religio-
sas como orar, se refugiar,

Cultivavam jardins, praticavam a carpintaria e prepara-


vam medicamentos fitoterápicos. [...] num convento das
proximidades, as freiras, apesar de viverem em reclusão,
dedicavam-se durante boa parte do dia às atividades prá-
ticas da tecelagem e da costura. [...] As oficinas da Saint-
-Gall seguiam os preceitos de autoridade do cânone dual
da fé: o Espírito Santo pode manifestar-se a homens e mu-
lheres sob essas condições; mas o Espírito não está conti-
do por trás das paredes. (SENNETT, 2009, p. 70).

106
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Esta autoridade do artífice fundamentada numa Instituição


religiosa significava a ocupação de um lugar de honra na sociedade
e também na qualidade de suas habilidades. Assim, a ética do artí-
fice era inseparável de suas práticas artesãs. Há neste processo o de-
senvolvimento da forma identitária relacional para outrem, ou seja,
o artífice medieval em sua forma embrionária de ser esteve ligado ao
cristianismo medieval. Desenvolve o papel social frente à sociedade
resguardado pela leitura social de um artesão, mas que, é considera-
do como tal, reforçado pela ideia da santidade. O artífice visto dessa
forma está amparado por instituições sociais religiosas, relaciona-se
com elas de forma legítima, tanto é que, possui a autoridade.
Dubar analisa as relações entre a crise da modernidade e a crise
das identidades. Reflete que, a crise das identidades é inseparável da
crise da modernidade, a qual desvalorizou “as formas comunitárias
de inserção social sem conseguir impor novas formas societárias: as
antigas formas identitárias (nominais e estatutárias) desagregaram-se
ou foram estigmatizadas, mas as novas formas (reflexivas e narrativas)
não conseguem substitui-las” (DUBAR, 2006, prefácio).
Dubar considera que as instituições sociais, com a moderni-
dade, se desestruturaram e, portanto, desestabilizaram as identi-
dades pessoais. Nesse sentido, as identidades pessoais não seriam
construídas apenas por essas instituições, que entraram em crise,
mas também produzida pelos próprios indivíduos no decorrer de
suas trajetórias e de suas interações.
Conforme Dubar (2006), a identidade se desenvolve a partir
de vários domínios da vida social: nos espaços do trabalho, do em-
prego, da formação, das identidades sexuais e simbólicas. A iden-
tidade se compõe então, de configurações, presentes nas identida-
des pessoais. Por configurações identitárias, cada indivíduo “pode
ser identificado e identificar-se de uma forma múltipla: a partir de
sua aparência física, da sua linguagem, da sua maneira de vestir,
das suas atividades, do seu nome [...]”. (DUBAR, 2006, prefácio).

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Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Quando Dubar analisa a identidade pessoal investiga outras


formas de interferência e preocupa-se em compreender os elemen-
tos subjetivos do indivíduo como fonte de construção para a iden-
tidade pessoal. Analisa, por exemplo, que uma crise moral pode
interferir na imagem de si, na estima de si, na própria definição
que a pessoa dava de si a si próprio (2006).
A análise sociológica construída em Dubar (2006) parte do
reconhecimento de que os modelos sociológicos antigos não deram
conta de compreender o processo identitário dos indivíduos, mas
apenas partes deste processo. A tentativa é a de expor que existem
outros elementos, os quais enfatizam que podem também ser com-
preendidos na existência dos indivíduos como nas “relações amo-
rosas, laços com o trabalho, crenças político-religiosas” (p. 187).
Nesse sentido, a identidade é pensada a partir das transformações
que os indivíduos recebem entre os sexos, entre as classes, entre as
gerações, nas instituições, enfim, é compreendida tendo em vista
elementos originados dos indivíduos que em modelos clássicos da
sociologia até então não eram analisados.
A identidade do sujeito de acordo com Hall (2006, p. 13)
“é definida historicamente, e não biologicamente”. Nesse sentido,
o indivíduo possui e legitima identidades em diferentes momen-
tos, portanto, não unificadas e absolutas, mas, mutáveis ao redor
do seu eu. O processo de construção da identidade passa pelas
transformações naturais, culturais, do trabalho e da sociedade e
constantemente estão sendo questionadas e mudadas pelo sujeito:

À medida em que os sistemas de significação e representa-


ção cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades
possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identi-
ficar – ao menos temporariamente” (HALL, 2006, p. 13).

108
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Pensar na identidade dos artesãos brasileiros para esse texto


tem se revelado pelas pesquisas empíricas a referencia do conceito
de identidade através das concepções de uma identidade construí-
da a partir de vários elementos. O produto artesanal é obra do ar-
tesão, mas passa pelas intervenções do que chamamos do público,
do popular, em suas produções artísticas.

Referências

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Ciudad de Buenos Aires, 2004.

WEBER, Max. Economia e Sociedade. São Paulo: UnB, 2004.

ENTREVISTADOS

Entrevistada Morgana. Entrevista concedida. Goiânia, 2010.

Entrevistado Pedro. Entrevista concedida. Goiânia, 2012.

Entrevistada Rafaela. Entrevista concedida. Goiânia, 2012.

Entrevistada Regina. Entrevista concedida. Goiânia, 2012.

Entrevistada Matilde. Entrevista concedida. Goiânia, 2012.

Entrevistada Maria. Entrevista concedida. Goiânia, 2014

110
Capítulo 6
Assédio moral: Ofensa à honra, à
imagem e à dignidade do trabalhador

Erival de Araújo Lisboa Cesarino26


Jorlam Thiago Araújo de S. Ribeiro27

Introdução
O assédio moral no trabalho é um tema novo, apesar do reco-
nhecimento de que o problema é tão antigo como o trabalho. Mas,
somente no final do século passado, com as pressões por melhores
condições de trabalho, é que tem início o debate público sobre o
assunto; e, logo, surgem as publicações, doutrinas e legislações.
No Brasil, já foram promulgadas várias leis, sejam elas esta-
duais e municipais que tipificam o assédio moral de forma delitu-
osa mas, somente em outubro de 2002, saiu a primeira decisão de
condenação por assédio moral. Trata-se do Acórdão nº 7660/2002,
de autoria da Relatora Juíza do Tribunal Regional do Trabalho da
17ª Região, Dra. Sônia das Dores Dionísio, nos autos do Recur-
so Ordinário TRT-RO-1315.2000.00.l7.00-1. De lá para cá outras

26 Procuradora do Estado (aposentada). Mestre em Direito das Relações Econômico


Empresarial pela Universidade de Franca/SP. Professora de Direito Empresarial do
Curso de Graduação em Direito e Pós-graduação da Facer/GO. Doutoranda em
Direito Constitucional junto à Fadisp/SP e Advogada militante no Estado de Goiás.
27 Pós-graduado em Direito Privado. Mestrando em Direito Constitucional na
Faculdade Autônoma de Direito - Fadisp/SP. Docente Universitário e Advogado
militante no Estado de Goiás.

111
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

decisões foram tomadas e vários artigos foram publicados sobre o


tema, conforme veremos no presente trabalho.
As consequências adversas da perda de mercado e da dimi-
nuição de lucros acarretam perdas inaceitáveis no sistema capita-
lista globalizatório, levando as empresas a pressionar os ocupantes
de cargos hierarquicamente superiores, os quais extravasam essa
pressão em seus subordinados.
Tais condutas, na maioria das vezes equivocada como “cobran-
ças de metas”, introduz no ambiente de trabalho um clima inamis-
toso, minando a possibilidade de convivência pacífica entre todos os
envolvidos, o que acarreta consequências desastrosas e irreparáveis
não somente para a empresa, como organismo econômico vivo e
útil para a sociedade como um todo, mas também e especialmente,
para aquele que se torna refém dessa pressão, considerado vítima da
competitividade desse processo de globalização que vivemos.
O objetivo deste trabalho é mostrar esse novo instituto, sua
origem, caracterização, identificar os sujeitos ativos (agressores) e
passivos (vítimas), demonstrando a possibilidade de a vítima que
sofreu o dano buscar reparação através do Poder Judiciário.
Para tanto, far-se-á uma revisão bibliográfica da matéria
destacando as obras de Marie-France Hirigoyen e Márcia Nova-
es Guedes; artigos de periódicos especializados e jurisprudências
publicadas pelos nossos Tribunais pátrios.

1. Noções gerais sobre o assédio moral


Assédio moral, bullying ou terror psicológico, no âmbito da
relação de trabalho consiste na conduta abusiva do empregador
ao exercer o seu poder diretivo ou disciplinar, atentando contra
a dignidade ou integridade física ou psíquica de um empregado,
ameaçando o seu emprego ou degradando o ambiente de trabalho,
expondo o trabalhador a situações humilhantes e constrangedo-

112
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

ras. Assim, estará configurado pela repetição de condutas tenden-


tes a expor a vítima a situações incômodas ou humilhantes, com
a finalidade específica de ocasionar um dano psíquico e social a
vítima, marginalizando-a em seu ambiente de trabalho.
O Assédio Moral é uma prática lesiva que cada vez mais ga-
nha maior expressão nas cortes trabalhistas. Isso ocorre quando
o trabalhador é exposto a situações humilhantes ou constrange-
doras no seu ambiente de trabalho. Registra a doutrina especiali-
zada, segundo escreve Marie-France Hirigoyen (2002, p. 17) que,
para a caracterização do assédio moral, o abuso deve ser marcado
pela repetição ou sistematização de modo a revelar uma perse-
guição psicológica que atente contra a dignidade do trabalhador.
Anota ainda a autora:
Por assédio moral, no ambiente laboral, temos que compreender
que se trata de toda e qualquer conduta abusiva, que se mani-
festa, sobretudo, por ações ou omissões, por comportamentos,
palavras, gestos, escritos, que possam trazer dano aos direitos
da personalidade, à dignidade, à honra, ou à integridade física
ou psíquica de uma pessoa, colocando em perigo seu emprego
ou degradando o ambiente de trabalho. Para a identificação
do assédio moral, nas relações de trabalho, torna-se necessário
que a dignidade do trabalhador, em seus múltiplos aspectos, seja
violada por condutas abusivas, omissivas ou comissivas, desen-
volvidas dentro do ambiente profissional, durante a jornada de
trabalho e no exercício de suas funções. (Hirigoyen, 2002, p. 22).

Conceitualmente, podemos dizer que o assédio moral caracte-


riza-se, via de regra, quando um empregado sofre algum tipo de per-
seguição no ambiente de trabalho, o que acaba por provocar uma es-
pécie de psico-terror na vítima, desestruturando-a psicologicamente.
Obviamente que o assédio moral pode se caracterizar de várias formas
dentro do ambiente de trabalho, até mesmo entre colegas do mesmo
nível. Todavia, o terrorismo psicológico mais frequente no ambiente

113
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

de trabalho é aquele denominado de assédio descendente ou vertical,


que se tipifica pelo abuso do poder empregatício, diretamente ou por
superior hierárquico. Por se tratar de um instituto novo, com a sua
completa tipificação ainda em aberto, inúmeras variações de com-
portamento do sujeito ativo podem se enquadrar na figura do assédio.
Infelizmente, o ordenamento jurídico brasileiro ainda não
dispõe de uma lei, voltada a coibir a perseguição no ambiente de
trabalho, de uma maneira geral, sendo certo que, se tal diploma
legislativo existisse, auxiliaria a identificação de hipóteses mais
frequentes de assédio moral, bem como regular de maneira mais
efetiva, tanto os seus pressupostos quanto os seus efeitos.
Essa omissão do Legislador ordinário, todavia, não é óbice
para a repressão do assédio moral, porquanto a doutrina reconhe-
ce que a proteção contra essa ocorrência encontra supedâneo di-
reto no princípio da dignidade humana (CF/88, art. 1, II) e na
tutela constitucional do direito à honra (CF, art. 5º., X) e do
direito à saúde (CF, art. 6º.) (HASSON, 2008, p. 1.357).
Impende registrar que, o assédio moral não se restringe ape-
nas a humilhações mais visíveis; pode também, manifestar-se de
modo mais sutil, a exemplo da sistemática atribuição das chama-
das tarefas menores ou repetição diária de piadas e galhofas que
minam a autoestima do empregado.
Não se pode olvidar, entretanto, que o cotidiano de um am-
biente de trabalho muitas vezes, reveste-se de conflitos de inte-
resses, de estresse, de gestão por injúria e até mesmo de agressões
ocasionais, comportamentos esses que não caracterizam, neces-
sariamente, o assédio moral. As divergências entre empregado e
empregador, entre subordinado e superior hierárquico; quando
travadas dentro de um clima de respeito mútuo, sem a presença da
perversidade, é algo normal e até construtivo. Porém, o que não
pode ocorrer, por detrás de divergências profissionais, é a violên-
cia, o desrespeito e a perseguição.

114
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

2. Caracterização
A caracterização do assédio moral é subjetiva. Enfatiza-se
que o assédio moral é caracterizado por uma conduta abusiva, seja
do empregador que se utiliza de sua superioridade hierárquica para
constranger seus subalternos, ou seja, dos empregados entre si com
a finalidade de excluir alguém indesejado do grupo, o que pode
se dar, aliás muito comumente, por motivos de competição ou de
discriminação pura e simples.
O assédio moral pode ser identificado de acordo com sua origem
como assédio moral vertical descendente, horizontal ou vertical as-
cendente. O assédio moral oriundo do superior hierárquico da vítima
é denominado assédio vertical descendente. O assédio vertical ascen-
dente, que é mais raro, traduz aqueles realizados pelos subordinados
contra um superior hierárquico. Em geral, essas modalidades se ma-
nifestam de forma combinada, configurando o assédio moral misto.
Assim, o que se verifica no assédio vertical (que é mais co-
mum) é a utilização do poder de chefia para fins de verdadeiro
abuso de direito do poder diretivo e disciplinar, bem como para
esquivar-se de consequências trabalhistas. Tal é o exemplo do
empregador que, para não ter que arcar com as despesas de uma
dispensa imotivada de empregado, tenta convencê-lo a demitir-
-se ou cria situações constrangedoras, como retirar sua autonomia
no departamento, transferir todas suas atividades a outras pesso-
as, isolá-lo do ambiente, para que o empregado sinta-se de algum
modo culpado pela situação, pedindo sua demissão.
Entretanto, a melhor doutrina trabalhista destaca que:

Embora a fonte do assédio moral seja normalmente um


superior hierárquico (assédio moral vertical), nada impede
que tenha origem em colegas de trabalho ou companheiros
de equipe (assédio moral horizontal), registrando, contudo,

115
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

que não raro, o assedio moral na forma horizontal tem ori-


gem vertical, isto é, o panorama desfavorável se descortina
a partir de um superior hierárquico que, com sugestões sutis
ou mensagens, quase subliminares, surge como eminência
parda de todo esse processo. (HASSON, 2008, p. 1.356).

Esse fenômeno costuma ser percebido entre os próprios cole-


gas de trabalho que, motivados pela inveja do trabalho muito apre-
ciado do outro colega, o qual pode vir a receber uma promoção,
ou ainda pela mera discriminação motivada por fatores raciais,
políticos, religiosos, etc., submetem o sujeito incômodo a situações
de humilhação perante comentários ofensivos, boatos sobre sua
vida pessoal, acusações que podem denegrir sua imagem perante
a empresa, buscando sabotar em tudo os seus planos de trabalho.
O assédio moral pode, ainda, assumir conotação coletiva, ou
não, se dirige a um ou alguns empregados em particular, mas re-
presenta verdadeira prática empresarial, totalmente direcionada a
aumentar os níveis de produtividade. Casos semelhantes são pas-
síveis de ações judiciais coletivas, a exemplo do ocorrido no Rio
Grande do Norte, onde o Ministério Público do Trabalho moveu
ação contra uma Companhia de bebidas, que constrangia os em-
pregados que não atingiam as cotas de vendas estabelecidas pela
empresa a dançar na boquinha da garrafa, assistir a reunião em
pé, desenhar caricaturas num quadro, fantasiar-se e submeter-se a
outras prendas. A sentença, confirmada pelo Tribunal Regional
do Trabalho da 21º Região, condenou a Companhia de bebidas a
arcar com a indenização de um milhão de reais.28
Em linhas alhures falamos sobre o assédio moral vertical, hori-
zontal e coletivo, todavia a doutrina trata, ainda, de outra modalidade
denominada assédio moral omissivo, assim entendido aquele que de-

28 Recurso Ordinário – 1034 – 2005 – 001-21-00-6, Juíza Relatora Joseane Dantas dos
Santos, 21ª TRT – 15.08.2006.

116
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

corre da silenciosa recusa em atribuir ao empregado qualquer tarefa,


relegando-o à margem do que acontece no ambiente de trabalho.
No Agravo de Instrumento29 impetrado pelo reclamante pe-
rante o TST, ficou demonstrado que o banco determinou o seu
afastamento e se omitiu quanto a sua situação funcional, deixan-
do-o, por longo período, em situação de incerteza quanto ao local
de trabalho e funções, causando-lhe humilhação e constrangi-
mento perante a comunidade local. Assentou a decisão, tratar-se
de procedimento em que está embutida a desqualificação profis-
sional do trabalhador com o esvaziamento de suas atividades, o
que constitui assédio moral, com o dano consistente na afronta à
dignidade do trabalhador, em seu valor como ser humano, segun-
do o paradigma da vida concreta, cuja condição da possibilidade
de existência reside na própria vida humana. A decisão finalizou
pela condenação do reclamado, registrando o seguinte:

Ementa: RECURSO ORDINÁRIO DA RECLAMA-


DA. DANO MORAL. CONDUTA OMISSIVA DO
EMPREGADOR. A conduta que origina o dever de inde-
nizar pode ser comissiva, consubstanciada numa ação que
se materializa no plano concreto, através de um facere, e
omissiva, que se revela num non facere, ou seja, numa con-
duta contraproducente que demonstre ser relevante para
o ordenamento jurídico, atingindo bem juridicamente tu-
telado. In casu, o ponto nodal da controvérsia situa-se na
conduta omissiva da reclamada. Agiu contrariamente ao
direito, por non facere, ao abster-se do dever de garantir
um meio ambiente de trabalho seguro. Recurso Ordinário
da reclamada conhecido e parcialmente provido.

29 TST - AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA AIRR


1881407320025080107 188140-73.2002.5.08.0107.

117
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Por derradeiro, independente de classificação, segundo Ma-


rie-France Hirigoeyen o assédio moral é qualquer conduta abusi-
va, como gesto, palavra, comportamento e atitude que atente, por
sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade
psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou de-
gradando o clima de trabalho. (HIRIGOEYEN, 2002, p. 30).
Segundo Claudio Roberto Carneiro de Castro, o assédio mo-
ral pode ser praticado até mesmo por terceiro não vinculado à
hierarquia empresarial (CASTRO, 2012, p. 140).

3. Sujeitos da relação
São sujeitos do assédio moral no trabalho, de modo geral, o
agressor e a vítima.
Na sua forma mais frequente: o agressor, geralmente é o che-
fe, que, abusando do poder disciplinar e de direção, passa a asse-
diar a vítima por meio de atos, gestos, palavras, condutas negativas
e antiéticas; a vítima, comumente, é um empregado subordinado,
de boa índole, com baixa estima e bons princípios, o qual, com
medo de perder seu meio de sustento, tenta tolerar tal situação.
Existe também na relação, a figura dos espectadores, ou seja,
do grupo que assiste ao processo de destruição da vítima e nada faz,
por medo de sofrer alguma punição, por concordar com o agressor,
ou ainda por achar que obterá algum tipo de vantagem com isso.
Para Márcia Novais Guedes (2003, p. 63):

A vítima do terror psicológico no trabalho não é o empre-


gado desidioso, negligente. Ao contrário, os pesquisado-
res encontraram como vítimas justamente os empregados
com um senso de responsabilidade quase patológico, são
ingênuos no sentido de que acreditam, nos outros e na-
quilo que fazem, são geralmente pessoas bem-educadas e
possuidoras de valiosas qualidades profissionais e morais.

118
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

De um modo geral, a vítima é escolhida justamente por


ter algo mais. E é esse algo mais que o perverso busca
roubar. As manobras perversas reduzem a autoestima,
confundem e levam a vítima a desacreditar de si mesma e
a se culpar. Fragilizada emocionalmente, acaba por ado-
tar comportamentos induzidos pelo agressor. Seduzido e
fascinado pelo perverso o grupo não crê na inocência da
vítima e acredita que ela haja consentido e, consciente
ou inconscientemente, seja cúmplice da própria agressão.

A vítima em potencial é aquela que leva o agressor a sentir-se


ameaçado, seja no cargo ou na posição perante o grupo. A vítima
é, normalmente, dotada de responsabilidade acima da média, com
um nível de conhecimento superior aos demais, com uma auto-
estima grande e, mais importante, acredita piamente nas pessoas
que a cercam. Tais qualidades juntas em uma única pessoa leva o
agressor a usar de todos os meios legais ou não com o objetivo de
reduzir-lhe a autoestima, o senso de justiça, levando a sua destrui-
ção profissional e psicológica.
Normalmente, a vítima pode ser uma pessoa sozinha no gru-
po, por exemplo uma única mulher no escritório, um único médi-
co de um corpo clínico feminino, ou uma pessoa que se comporte
diferente dos demais, seja usando uma roupa diferente, opinando
mais que a maioria. Ou alguém que faz sucesso, recebe elogios
dos clientes e ganha promoção causando certa inveja no agressor
e até mesmo ciúme dos colegas. Ou, ainda, uma pessoa nova no
cargo antes ocupado por outra mais popular, que tenha alguma
qualidade a mais do que a maioria, provocando um mal estar e
insegurança aos demais do grupo.
Sebastião Vieira Caixeta30 alerta para dados concretos acerca
do assédio moral no Brasil:

30 CAIXETA, Sebastião Vieira. Assédio Moral. Correio Brasiliense, 25/07/2005.

119
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Estima-se que, no Brasil, pelo menos 40% dos trabalhadores


sofrem violência moral. Muitos são os exemplos de assédio
moral nas relações de trabalho. São comuns as instruções
confusas e imprecisas, a exigência de trabalhos urgentes sem
necessidade, as críticas em público, a transferência de setor
com o intuito de humilhar, a privação de trabalho, a depre-
ciação das tarefas feitas, a marcação de tempo e de vezes
para ir ao banheiro, a exigência de desempenho acima da
qualificação, a submissão a tarefas inferiores à função desem-
penhada, a exigência de trabalhos complexos em tempo in-
suficiente, o desrespeito ou a imposição de crenças religiosas,
filosóficas ou políticas. Esse quadro é totalmente contrário
ao direito. O ordenamento jurídico brasileiro funda-se na
dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do traba-
lho, que são fundamentos da República Federativa do Brasil.
Constitui-se objetivo fundamental do país a promoção do
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Muitas são as causas citadas pelos doutrinadores, que levam


à prática do assédio moral, desde os motivos pessoais do assedia-
dor, até motivos extrínsecos, a exemplo de um empregado que deva
ser reabilitado em virtude de um acidente de trabalho. A exposi-
ção de trabalhador a situações vexatórias e humilhantes, além do
constrangimento imotivado e desproporcional em repreensões, de-
sumanidade no modo de tratamento destinado aos subordinados,
perseguição direcionada a um ou a todos os empregados. Tudo isto
faz parte de um cenário inadmissível frente aos direitos humanos.
Para João Oreste Dalazen,31 o assédio moral se caracteriza:

31 DALAZEN, João Oreste. Matéria Especial do TST: Assédio Moral na Justiça


do Trabalho. Tribunal Superior do Trabalho. Disponível em: <www.tst.gov.br/
destaques/destaqueassediomoral.pdf>. Acesso em: 01 set. 2015.

120
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

[...] pela violência psicológica extrema à qual uma pessoa


é submetida por um chefe ou mesmo por um colega de
trabalho. [...] É preciso haver uma perseguição sistemáti-
ca. A maioria dos casos é de reclamações contra assédios
morais impostos por chefes hierárquicos a subordinados,
aos quais submetem a situações de violência psicológica.

Francisco Meton Marques de Lima32 aduz que as principais


vítimas do assédio moral são os empregados que desfrutam de al-
gum tipo de estabilidade, a exemplo dos representantes sindicais,
empregadas gestantes, membros da Comissão Interna de Preven-
ção de Acidentes – CIPA, empregados que sofreram acidente de
trabalho ou foram acometidos de doença ocupacional. Este tipo de
empregado, por não poder ser demitido sem justa causa e gozar de
estabilidade, ainda que de forma provisória, geralmente é alvo de
ataques morais e que visam desestabilizá-lo emocionalmente, úni-
ca forma eficaz de fazê-lo desistir do trabalho, desejando retirar-se
do emprego o mais rápido possível.
A nossa legislação, apesar de não conter dispositivo específico
e destinado a coibir o assédio moral, possibilita a interpretação prin-
cipiológica protetiva ao empregado e a utilização das motivações
previstas para a rescisão indireta do contrato de trabalho como for-
ma de desvencilhar o obreiro do ambiente de trabalho que prejudica
seu bem-estar. Mas, ainda há muito que avançar, principalmente na
utilização de tutelas inibitórias e ações coletivas.
Mara Vidigal Darcanchy33 bem concluiu que:

32 LIMA, Francisco Meton Marques de. Direitos Humanos Fundamentais do


Trabalho: Dano Moral. Jornal do 11º Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho,
promovido pela Editora LTr. Dias 25 e 26 de março/2003.
33 DARCANCHY, Mara Vidigal. Assédio moral no meio ambiente do trabalho. Jus
Navigandi, Teresina, n. 913, a. 10, 2 jan. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.
br/doutrina/texto.asp?id=7765>. Acesso em: 01 set. 2015.

121
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

O assédio moral é nocivo à saúde do trabalhador e, con-


sequentemente, à da sociedade. É como uma doença que
se alastra e que se precisa combater e a arma é a Justiça,
que também precisa da solidariedade das pessoas para que
possa agir. Testemunhas são necessárias para que algum
fato seja dado como verdade. A eficácia jurídica depende
da sociedade, precisa de denúncias e de comprometimento.

4. Responsabilização: dever de indenizar


Apesar da legislação brasileira ainda não contemplar explicita-
mente a questão, nossos magistrados não se esquivam do problema
e buscam fundamentação na Constituição da República Federativa
do Brasil em seu art. 5º, inciso V e X, na Lei nº 9.029 e nos arts. 461
e 483 da Consolidação das Leis do Trabalho, para responsabilizar
aqueles que praticam assédio moral na relação de trabalho. Prova
disto são os acórdãos apontados no capítulo 3º., onde os reclamados
são condenados a ressarcir as vítimas, pelos prejuízos causados.
A conduta que origina o dever de indenizar pode ser comissiva,
consubstanciada numa ação que se materializa no plano concreto,
através de um facere, e omissivo, que se revela num non facere, ou
seja, numa conduta contraproducente que demonstre ser relevante
para o ordenamento jurídico, atingindo bem juridicamente tutelado.
Todavia, para se imputar ao empregador o dever de reparar
o dano sofrido pelo empregado (que se caracteriza pelo próprio
evento), a conduta culposa ou dolosa deve ser comprovada, de for-
ma insofismável, pelo empregado (art. 186 do Código Civil).

Considerações finais
A pós-modernidade, além das características tecnológicas
relacionadas com a informação, assim como aqueles referentes ao

122
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

comportamento humano, tem sido marcada pela competitividade,


pela produtividade, pela superação constante de metas, pelos cír-
culos de qualidade, pela otimização de resultados e pela eficiência.
Todos esses fatores compelem a empresa a mudar sua estrutura
organizacional, sem a qual a sua permanência no mercado está
fadada ao fracasso. Na busca desse desiderato, as relações de tra-
balho sofrem desgastes diuturnos, facilitando a prática do assédio
moral entre as pessoas envolvidas, que se não tratada, leva às con-
sequências danosas e até mesmo irreversíveis.
Ora, é importante lembrar que cada pessoa é um ser único,
com seus acertos e seus desacertos, com suas vitórias e suas der-
rotas, com suas facilidades e suas dificuldades. Infelizmente, não
é essa a regra que vem sendo aplicada nas relações de trabalho
hodierna. Sendo assim, a prática do assédio moral, em qualquer
de suas modalidades, clama por uma atuação mais diligente dos
órgãos fiscalizadores do trabalho, dos nossos Tribunais e de todos
aqueles que transitam por essa seara.
Infelizmente na prática, o tema do rompimento do vínculo
empregatício dificulta a denúncia por parte da vítima e, na maio-
ria das vezes, impede o testemunho de colegas de trabalho. Por
conta desses entraves, emerge para o Magistrado uma dificuldade
imensa, vez que, se por um lado não pode reprimir o assédio mo-
ral, por outro não pode ceder à tentação de isolar o fato de seu
contexto originário, examinando-o à luz dos padrões comporta-
mentais inerentes aos meios frequentados por ele próprio.
Os apelidos, prendas, brincadeiras naturais em certos ambien-
tes, podem assumir conotações bem menos tolerável quando iso-
lados das circunstâncias que as autorizam ou transportados para
realidades mais solenes. A questão central, entretanto, está no fato
de que a honra do empregado deve ser protegida ao máximo, evi-
tando-se que a subordinação profissional transcenda os limites do
trabalho para subjugar a pessoa em suas manifestações existenciais.

123
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Existe, por conseguinte, um limite no exercício do poder empre-


gatício, que se esticado além do razoável atinge a dignidade do traba-
lhador, que não pode ser tratado como se fosse uma máquina progra-
mada para a produção, ou um fantoche para embalar seus devaneios.
Sem embargo de leis estaduais específicas para a questão do
assédio moral, a nossa legislação, Constituição e Consolidação das
Leis Trabalhistas, reúnem substrato principiológico apto a impor
limites ao direito ou poder do empregador de fiscalizar e contro-
lar o ambiente de trabalho, impondo ao mesmo o dever de zelar
pela dignidade da pessoa humana do obreiro e de seu bem-estar
físico, bem como psicológico. Tanto quanto deve fiscalizar o uso
dos equipamentos de proteção individual, deve o empregador fis-
calizar seus prepostos e impor limites às punições, perseguições e
retaliações no ambiente laboral, notadamente pelo não alcance de
metas, inibindo sua ocorrência.
É aconselhável que a empresa adote uma política de premiação
aos bons funcionários e aos mais produtivos, ao contrário de pena-
lizar ou humilhar aqueles que não se enquadram no perfil desejado
pela organização. Quanto a esses últimos, cabe a utilização do direi-
to potestativo da despedida imotivada, evitando o assédio moral e
adotando uma postura condizente com os direitos humano-sociais
fundamentais. Não foi dada ao empregador uma opção, somente
há um caminho caso se sinta insatisfeito, a despedida imotivada.
Ou então, a utilização do contrato de experiência para a sua real
finalidade, experimentar o obreiro no exercício efetivo da função.

Referências bibliográficas

CAIXETA, Sebastião Vieira. Assédio Moral. Brasil: Correio Bra-


siliense, 2005.

124
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

CASTRO, Claudio Roberto Carneiro de. O que você precisa saber


sobre assédio moral nas relações de emprego. São Paulo: LTr, 2012.

DALAZEN, João Oreste. Matéria Especial do TST: Assédio


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Disponível em: <www.tst.gov.br/destaques/destaqueassediomoral.
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DARCANCHY, Mara Vidigal. Assédio moral no meio ambiente


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HASSON, Roland. Proteção aos Direitos da Personalidade: Assé-


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HIRIGOYEN, Marie–France. Assédio Moral: A Violência Per-


versa o Cotidiano. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2002.

______. Mal-estar no Trabalho: redefinindo o assédio moral.


Rio de Janeiro: Bertrand, 2002.

LIMA, Francisco Meton Marques de. Direitos Humanos Funda-


mentais do Trabalho: Dano Moral. Jornal do 11º Congresso Bra-
sileiro de Direito do Trabalho, promovido pela Editora LTr. Dias
25 e 26 de março/2003.

125
Capítulo 7
A audiência de conciliação prévia
no processo do trabalho

Irene Margarete Corrêa Soares Pino34

Introdução
O presente trabalho busca analisar as audiências de conciliação
realizadas antes do julgamento do processo do trabalho, conforme a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o Novo Código de Pro-
cesso Civil, com aplicação subsidiaria no processo do trabalho, que
reafirma a obrigatoriedade da prévia audiência de conciliação, antes
da audiência de instrução e julgamento, sendo papel do juiz designar
a audiência de conciliação e mandar citar o réu com antecedência.
Cabe observar, também, o papel dos Tribunais de Justiça que
criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, res-
ponsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação
e mediação, e pelo desenvolvimento de programas destinados a
auxiliar, orientar e estimular a autocomposição.
Percebe-se que a finalidade do direito processual do trabalho
é a pacificação dos conflitos trabalhistas, decorrentes do vínculo
jurídico empregatício e das relações de trabalho, pois, a gênese da

34 Advogada e professora. Especialista em Processo Civil pela Universidade Federal da


Bahia (UFBA). Formada em Direito na União Metropolitana para Desenvolvimento
da Educação e Cultura (UNIME).

127
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Justiça Trabalhista se desenvolve no decorrer do tempo, através de


novos conceitos e instituições que foram surgindo, de acordo com
o avançar histórico-cultural das classes trabalhadoras.
Nesse sentido, a conciliação desde as Juntas de Conciliação e
Julgamento, compostas de um juiz presidente e dois vogais, sendo um
representando os trabalhadores e outro representando o empregador,
até o momento atual, quando o instituto da conciliação passa a ser
obrigatório em momento prévio à audiência de instrução e julgamen-
to, com conciliadores preparados e concursados. Da mesma sorte,
abre a possibilidade para a utilização do meio eletrônico, o que pro-
mete ao cidadão o acesso à justiça de maneira representativa e célere.
Assim, serão analisados os avanços e os desafios da implantação
da conciliação nas Varas do trabalho, de forma a tornar o processo
mais célere e eficiente com garantia de segurança jurídica, em virtude
da necessidade do trabalhador receber o mais rápido possível os salá-
rios sonegados pois estes têm função alimentícia. Conforme o estabe-
lecido no artigo 334, parágrafos de 1º a 12, da Lei nº 13.105, Jurídicos
de 16 de março de 2015 (Novo Código de Processo Civil).

1. A aplicação subsidiária da audiência de


conciliação no processo do trabalho
A conciliação é informada pelos princípios da independên-
cia, da imparcialidade, da autonomia da vontade, da confiden-
cialidade, da oralidade, da informalidade e da decisão informada,
conforme o artigo 166, do Novo Código de Processo Civil.
Desta forma, torna-se necessário analisar as vantagens da
conciliação, como a celeridade processual, visto que as próprias
partes se ajustam para solucionar o conflito em momento prévio
da audiência de instrução e julgamento. Sendo eleito um concilia-
dor, que é responsável pela condução da conciliação, na tentativa
de que as partes: autor e réu cheguem a um acordo.

128
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Neste sentido, o artigo 334 da Lei nº 13.105, de 2015, o Novo


Código de Processo Civil estabelece a prévia audiência de conci-
liação. Vejamos:

Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos


essenciais e não for o caso de improcedência liminar do
pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de
mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias,
devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias
de antecedência.

No caso de litisconsórcio, ou pluralidade de partes, todos de-


vem manifestar desinteresse. Pois, caso uma das partes manifestar
vontade, a audiência deverá ocorrer.
A falta injustificada do autor ou do réu à audiência de concilia-
ção constitui ato atentatório a dignidade da justiça e será sancionada
com multa de até 2% da vantagem econômica pretendida ou do valor
da causa, revertida em favor da União Federal ou do Estado, confor-
me o parágrafo 8º do artigo 334 do Novo Código do Processo Civil.
Assim, haverá conciliação se houver vínculo anterior entre
as partes, ou seja, no caso da ceara trabalhista, o empregado com
contrato de trabalho e carteira assinada.
Para Sérgio Pinto Martins, o Direito Processual do Trabalho
é o conjunto de princípios, regras e instituições destinados a regu-
lar a atividade dos órgãos jurisdicionais na solução dos dissídios,
individuais ou coletivos, pertinentes à relação de trabalho (MAR-
TINS, 2010, p. 18).
Em primeiro lugar, deve-se lembrar que a finalidade do Direito
Processual do Trabalho é a pacificação dos conflitos trabalhistas, de-
correntes do vínculo jurídico empregatício e das relações de trabalho.
Em segundo, que há uma independência total do processo do
trabalho em relação ao direito processual civil; da mesma forma
existe a possibilidade de aplicação a subsidiaria das normas aplicá-

129
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

veis do Processo Civil, ou seja, havendo omissão na Consolidação


das Leis do Trabalho (CLT), aplica-se o Código de Processo Civil
(CPC), conforme o artigo, 769 da CLT.
Sendo que o Código de Processo Civil tem aplicação subsi-
diária no Processo do Trabalho, a conciliação, estabelecida na Lei
em comento é compatível com os ideais do Processo do Trabalho.
Cabe lembrar que o instituto da conciliação nasceu da justiça la-
borativa, conforme a sua evolução histórica e passa a ser reafir-
mada pelo Novo Código, devido a sua importância para que haja
maior colaboração das partes e celeridade processual.

1.1. O papel dos tribunais


Para que a conciliação seja efetivada, estabelece o Novo Código,
em seu artigo 165, que os tribunais criarão centros judiciários de solu-
ção consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e
audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de pro-
gramas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição.
Desta forma, obtida a autocomposição, esta será reduzida a
termo e homologada por sentença, segundo o parágrafo 11, do ar-
tigo 344 do Novo Código de Processo Civil.
Caso não haja a possibilidade de conciliação com a interfe-
rência do conciliador, segue-se a audiência de instrução e julga-
mento que deverá ser marcada com 30 (trinta) dias de antece-
dência, conforme o artigo 358 do Novo Código de Processo Civil.
Mesmo assim, na audiência de instrução e julgamento, a 1ª tenta-
tiva é de conciliação que admite a autocomposição, onde as partes
podem decidir e o juiz homologar, nos termos do artigo 359 do
Novo Código de Processo Civil.
Deferida que seja a petição inicial, determinará o juiz a cita-
ção do demandado para comparecer a uma audiência, chamada
pelo CPC de audiência de conciliação (art.277), embora também

130
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

aqui tenha a doutrina preferindo a terminologia audiência preli-


minar. Isto porque tal audiência (assim como a prevista no art. 331
do CPC para o procedimento ordinário) tem múltiplas finalidades,
com ela visando alcançar não só a conciliação das partes, mas
também (se o acordo não for obtido) a prática da maior parte dos
atos que compõem o procedimento sumário, como a apresentação
de resposta, sendo possível, até mesmo, que nessa audiência seja
proferida (CÂMARA, 2009, p. 363).
Não obstante, as audiências de conciliação, realizadas antes
do julgamento do processo, é um costume na Justiça do trabalho, e
as comissões de conciliação prévia possuem composição paritária,
com representantes dos empregados e dos empregadores; cuja atri-
buição é conciliar os conflitos individuais de trabalho conforme a
Consolidação das Leis do Trabalho, como dispõe no artigo, 625-
A, caput. Esta é uma determinação vigente atualmente nas Varas
Trabalhistas. Porém, no momento facultativo devido às fraudes.
O papel dos tribunais será de proporcionar ambientes pró-
prios para os centros judiciários de solução de conflitos para que
haja a realização das audiências de conciliação e sobretudo da pro-
fissionalização do conciliador e a regulamentação da remuneração
fixada pelos Tribunais, conforme parâmetros do Conselho Nacio-
nal de Justiça, de forma que sejam contidas as fraudes contra o
trabalhador, uma vez que a finalidade da conciliação no Direito
Processual do Trabalho é a pacificação dos conflitos trabalhistas,
decorrentes do vínculo jurídico empregatício e das relações de tra-
balho. Sem causar dano a nenhuma das partes.

1.2. A manifestação jurisprudencial


No momento, a conciliação prévia é facultativa na Justiça do
Trabalho e na maioria das vezes dispensada pelas partes, devido às
decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), o qual decidiu que

131
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

demandas trabalhistas podem ser submetidas à Justiça do Trabalho


antes que tenham sido analisadas por uma Comissão de Concilia-
ção Prévia (CCP). No entendimento dos ministros do Supremo, a
decisão preserva o direito universal dos cidadãos de acesso à Justiça.
As principais decisões são as Ações Diretas de Inconstitu-
cionalidade (ADIs 2139 e 2160) para dar interpretação conforme
a Constituição Federal ao artigo 625-D da CLT, que obrigava o
trabalhador, primeiro procurar a conciliação, no caso de a deman-
da trabalhista ocorrer em local que conte com uma comissão de
conciliação, seja na empresa ou no sindicato da categoria.
A Justiça do Trabalho já vinha reforçando o entendimento
firmado pelo Supremo, ao registrar que a exigência contida na lei
vinha causando uma grande possibilidade de fraude na quitação
das verbas do contrato de trabalho. Uma vez que, as empresas
simplesmente não pagavam os trabalhadores, exigiam que seus
empregados fossem às CCPs para lá, teoricamente, receberem
seus direitos, mas lá davam tudo por quitado e resolvido, sem
nenhuma controvérsia.
Para atenuar a desigualdade entre o trabalhador e o empregador,
deve-se observar: o in dúbio pro reo (indibio pro operário) na dúvida,
a interpretação é a favor do trabalhador, devendo verificar quem tem
o ônus da prova no caso concreto, segundo o artigo 333, do Código de
Processo Civil e artigo 818 da Consolidação das Leis do Trabalho. Tal
entendimento é amparado pela súmula nº 51 do TST.
Desta forma, as regras devem ser interpretadas mais favoravel-
mente ao empregado, pois, na relação trabalhista as normas jurídicas
são impregnadas de cunho protecionista na medida em que se deve
tratar de forma desigual os que são de fato desiguais. Este princípio,
justifica-se pela natural desigualdade em que se encontram os partí-
cipes da relação de emprego, de um lado o trabalhador, subordinado
e hipossuficiente, contratando com o empregador, normalmente de
maior poderio econômico e detentor do mando.

132
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Até o presente momento, as Ações Diretas de Inconstitucio-


nalidade (ADIs 2139 e 2160) para dar interpretação, conforme a
Constituição Federal ao artigo 625-D da CLT, tornaram a conci-
liação na Justiça do Trabalho facultativa devido ao prejuízo que
vinham causando ao trabalhador.
Observa-se aqui, o papel fundamental dos conciliadores, que
serão inscritos em cadastro nacional, com registro de profissionais
habilitados, com indicação de sua área profissional. Da mesma
sorte, estes devem ter capacitação mínima, por meio de curso re-
alizado por entidade credenciada, conforme parâmetro curricular
definido pelo Conselho Nacional de Justiça em conjunto com o
Ministério da Justiça, obtendo certificado, podendo requerer sua
inscrição no cadastro nacional e no cadastro de tribunal de justiça
ou de tribunal regional federal, sendo que o registro poderá ser
precedido de concurso público.
A remuneração dos conciliadores deverá ser fixada pelos Tri-
bunais e estabelecida pelo Conselho Nacional de Justiça, confor-
me o artigo 167, caput, parágrafos 1º e 2º e artigo 169 do Novo
Código de Processo Civil. Haverá a profissionalização do concilia-
dor de forma que sejam contidas as fraudes contra o trabalhador,
uma vez que a finalidade da conciliação no Direito Processual do
Trabalho é a pacificação dos conflitos trabalhistas decorrentes do
vínculo jurídico empregatício e das relações de trabalho.

2. Evolução da conciliação na justiça do trabalho


Ao examinarmos o Direito processual do Trabalho há ne-
cessidade de lembrar de sua gênese e de seu desenvolvimento no
decorrer do tempo, através de novos conceitos e instituições que
foram surgindo na realidade histórico-cultural da sociedade.
Os primeiros órgãos que surgiram no Brasil, para a solução
de conflitos trabalhistas, foram os Conselhos Permanentes de

133
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Conciliação e Arbitragem em 1907. Previstos pela Lei nº 1.637,


de 5-11-1907, que sequer foram implantados, mas destinavam-se a
solucionar todas as divergências entre o capital e o trabalho.
Em 1932, o Governo Provisório de Getúlio Vargas criou
as Comissões Mistas De Conciliação (decreto nº 21.396, de
12/5/1932) para os conflitos coletivos, sem competência para jul-
gar, atuando como órgão de conciliação; as Juntas de Conciliação
e Julgamento (Decreto nº 22.132, de 25/11/1932) com competên-
cia para resolver os dissídios individuais. Compostas de um juiz
presidente, estranho aos interesses das partes, sendo de preferência
um advogado e dois vogais. Um representando os trabalhadores e
outro representando o empregador e dois suplentes.
O Decreto-lei nº 1.237, de 2-5-39, regulamentado pelo De-
creto nº 6.596, de 12-12-40, organizou a Justiça do Trabalho, que
passou a ser órgão autônomo. Havia três instâncias: As Juntas de
Conciliação e Julgamento ou Juízes de Direito; os Conselhos Re-
gionais do Trabalho, órgãos de segundo grau, tendo competência
par julgar os recursos das Juntas, estes substituíram as Comissões
Mistas de Conciliação para apreciar em competência originária os
dissídios coletivos; o Conselho Nacional do Trabalho.
A Constituição Federal de 1946, institui a Justiça do Traba-
lho dentro do Poder Judiciário da União (art. 122 e 123) com os
seguintes órgãos: Tribunal Superior do Trabalho, Tribunais Regio-
nais do Trabalho e as Juntas de Conciliação e Julgamento.
A Constituição Federal de 1967, estabelece a paridade de re-
presentação de empregadores e trabalhadores.
A Constituição Federal de 1988, tratou da Justiça do Traba-
lho nos arts. 111 à 117.
A Emenda Constitucional nº 24, de 9-12-99, extinguiu a
representação classista em todas as instâncias, transformando as
Juntas da Conciliação e Julgamento em Varas do Trabalho.

134
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

A Lei nº 9.958/00 estabelece que os empregados devem pas-


sar pelas Comissões de Conciliação Prévia, antes de ajuizar a re-
clamação trabalhista.

3. A Conciliação e a celeridade processual na


justiça do trabalho
Toda ciência, funda-se em princípios, e o processo trabalhis-
ta não foge a essa regra, pois estes são mandamento nuclear de um
sistema. Desta forma, admite-se falar em princípios orientadores
da conciliação.
Assim, cada sistema processual calca-se em alguns princí-
pios que se estendem a todos os ordenamentos e em outros que
lhe são próprios e específicos (CINTRA; GRINOVER; DINA-
MARCO; 2014, p. 69).
O princípio do Acesso à Justiça previsto no art. 5º, inciso
xxxv, da Constituição Federal, chamado de direito de ação ou da
inafastabilidade do controle jurisdicional, estabelece o direito fun-
damental de todo o cidadão ao acesso ao Poder Judiciário para que
nenhuma lesão ou ameaça de lesão fique desprotegida da tutela
jurisdicional. Este princípio é uma garantia de cidadania.
O instituto da conciliação em momento prévio da audiência
de instrução e julgamento garante ao cidadão o acesso à justiça de
maneira célere e de maneira em que as partes possam decidir os
seus interesses.
Cândido Rangel Dinamarco afirma: a celeridade processual
que tem por objetivo a solução do conflito em tempo razoável, daí
porque haver no processo a preclusão e a coisa julgada e de outro
a qualidade dos julgamentos trazendo segurança jurídica às partes
e justiça social. É exatamente esse equilíbrio que torna a balança
o símbolo da justiça (DINAMARCO, 2009, p. 141).

135
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

A razoável duração do processo é direito fundamental, con-


forme o artigo 5º, inciso LXXVIII da Constituição Federal de
1988. Da mesma sorte, a celeridade significa rapidez e agilidade
devendo assegurar a todos, no âmbito judicial, a razoável duração
do processo. Neste sentido, o artigo 765 da CLT, permite ao juiz
aplicar medidas para célere tramitação do processo e garantia do
rápido andamento das causas.
O princípio da celeridade tem efeito mais intenso no proces-
so laboral, da Justiça do Trabalho, em virtude da necessidade de o
trabalhador receber o mais rápido possível os salários que lhe foram
sonegados, pois estes têm função alimentícia e desta maneira a con-
ciliação prévia entre as partes vem contribuir para a efetividade do
objetivo constitucional maior: a implantação do estado democrático
de direito, já que estará ampliando a participação da cidadania no
processo, tornando este mais colaborativo e especificamente na de-
cisão do trabalhador em suas próprias controvérsias.

3.1. A celeridade e a implantação do processo


eletrônico
Seguindo as novas tendências de celeridade e efetividade o
Novo Código de Processo Civil, no seu artigo 334, parágrafo 7º es-
tabelece que a audiência de conciliação pode realizar-se por meio
eletrônico, nos termos da lei.
O aumento da população, a conscientização por parte dos ci-
dadãos de seus direitos, a ênfase que se deu na Constituição Brasi-
leira de 1988 sobre os direitos das pessoas, concorreu para a procura
da justiça em escala, sem precedentes no Brasil, ocasionando o in-
chaço de processos nos fóruns e tribunais, gerando uma crescente
demora na prestação jurisdicional, inclusive na Justiça Trabalhista.
Devido a esses fatos, o Brasil é pioneiro na prática do pro-
cesso por via eletrônica e serve como modelo e inspiração de um

136
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Judiciário mais célere e eficiente para o mundo, pois nas demandas


os juízes do trabalho têm conseguido resolver rapidamente os pro-
cessos sob sua responsabilidade devido a implantação do processo
eletrônico que trouxe mais celeridade.
Dalmo de Abreu Dallari, em sua obra O Poder dos Juízes,
comenta que:

Em muitos lugares há juízes trabalhando em condições


incompatíveis com a responsabilidade social da magistra-
tura. A deficiência material vai desde as instalações físi-
cas precárias até as obsoletas organizações dos feitos: o
arcaico papelório dos autos, os fichários datilografados ou
até manuscritos, os inúmeros vaivéns dos autos, numa in-
findável prática burocrática de acúmulo de documentos.
Os recursos humanos vêm em seguida no rol dos proble-
mas da Justiça Brasileira. Número insuficiente de juízes,
funcionários e auxiliares de juízes para dar vazão ao fluxo
crescente (DALLARI, 1996, p. 156-157).

Ao analisar estes princípios basilares e a opinião doutriná-


ria sobre a necessidade de celeridade e efetividade na prestação
jurisdicional, percebe-se que o funcionamento das audiências de
conciliação prévia, principalmente por via eletrônica, é de fato
promovedor da almejada celeridade nas varas virtuais da Justiça
do trabalho, desde que haja uma preparação de ambiente por par-
te do judiciário e os conciliadores estejam efetivamente preparados
para conduzir a audiência.
Juízes, advogados, procuradores, professores, estudantes, ser-
ventuários e demais auxiliares estão sendo convocados, pela e em
conjunto com a sociedade pós-moderna, para a realização de uma
mudança de paradigma – a implantação de uma Justiça Virtual,
que se acredita seja mais virtuosa do que a atual (RENAULT apud
CHAVES JUNIOR, 2010, p. 13).

137
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Observa-se que a doutrina aponta uma série de benefícios


inerentes à informatização do processo judicial, os quais foram
recepcionados pelos tribunais brasileiros tais como celeridade
processual, economia, melhor direcionamento das atividades au-
xiliares da magistratura que se utilizados nos centros judiciais de
solução de conflitos durante a conciliação facilitarão o exercício
do acesso à Justiça, resultando na efetividade da prestação jurisdi-
cional uma vez que alguns destes processos não chegarão a serem
instaurados, pois será decidido pelas próprias partes na concilia-
ção, o que causará verdadeira economia e celeridade processual.
O princípio da celeridade tem efeito mais intenso no processo
laboral, da Justiça do Trabalho, em virtude da necessidade de o
trabalhador receber o mais rápido possível os salários que lhe fo-
ram sonegados, pois este tem função alimentícia e desta maneira a
conciliação prévia entre as partes vem contribuir para a efetivida-
de da prestação jurisdicional.

Conclusão
Na justiça do Trabalho, o princípio da celeridade processual
ganha especial relevo, em face de a natureza alimentar dos crédi-
tos trabalhistas. A grande maioria daqueles que ajuizaram uma
ação quer o mais breve possível a solução dos litígios.
O Código de Processo Civil tem aplicação subsidiária no Pro-
cesso do Trabalho, logo a conciliação, estabelecida na Lei em co-
mento é compatível com os ideais do Processo do Trabalho. Infere-
-se que o instituto da conciliação nasceu da justiça laborativa, e
passa a ser reafirmada pelo Novo Código devido a sua importância
para que haja maior colaboração das partes e celeridade processual.
A principal vantagem da conciliação é a celeridade proces-
sual, visto que as próprias partes se ajustam para solucionar seus

138
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

conflitos em momento prévio da audiência de instrução e julga-


mento, sendo conduzidos pelo conciliador, que é responsável pela
tentativa de que as partes cheguem a um acordo.
O papel dos Tribunais para a efetividade da conciliação será
de proporcionar ambientes próprios para os centros judiciários de
solução de conflitos para que haja a realização das audiências de
conciliação e sobretudo da profissionalização do conciliador e a
regulamentação da remuneração fixada pelos Tribunais, conforme
parâmetros do Conselho Nacional de Justiça.
O princípio da celeridade tem efeito mais intenso no processo
laboral, da Justiça do Trabalho, em virtude da necessidade de o traba-
lhador receber o mais rápido possível os salários que lhe foram sone-
gados, pois estes tem função alimentícia e desta maneira a conciliação
prévia entre as partes vem contribuir para a efetividade processual, já
que estará ampliando a participação da cidadania no processo, tor-
nando este mais colaborativo, célere e especificamente com a partici-
pação do trabalhador na solução de suas próprias controvérsias.
O funcionamento das audiências de conciliação prévia prin-
cipalmente por via eletrônica será de fato promovedor da almejada
celeridade nas varas virtuais da Justiça do trabalho, desde que haja
uma preparação de ambiente virtuais nos centros de solução de
conflitos, por parte do judiciário e os conciliadores estejam efeti-
vamente preparados para conduzir a audiência pela via eletrônica.

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São Paulo: Saraiva, 2011.

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140
Capítulo 8
O esvaziamento político dos direitos
humanos a partir da construção
do conceito de humanidade

Andrey Borges Pimentel Ribeiro35


Carlos Ugo Santander Joo36

Introdução
O direito contemporâneo é resultado da tradição filosófica
moderna e seus aportes teoréticos, e os direitos humanos refor-
çam essa relação umbilical com a modernidade. Aliás, os direitos
humanos se confundem com o próprio direito contemporâneo,
tendo em vista que há uma expectativa de resolver os problemas
do mundo, como o estabelecimento da paz, a preservação da natu-
reza, as garantias fundamentais, enfim, não têm existido um limite
para o escopo normativo do (s) objeto (s) dos direitos humanos, e
nesse viés, todo o direito passa a ser direito humano.
O problema do trabalho consiste na ineficácia dos direitos hu-
manos a partir do conceito de humanidade, sendo que a hipótese é

35 Professor na Facer/Rubiataba. Professor na Fasam/Goiânia. Mestre em Ciência


Política pela UFG. Especialista em Direito Constitucional pela UFG. Pós-graduado
em Direito Administrativo e Processo Administrativo pela UCAM. Licenciado em
História pela UEG. Bacharel em Direito pela UFG.
36 Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFG e Professor
do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFG.

141
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

que a construção moderna de tal conceito expandiu o objeto do direi-


to esvaziando o escopo político de resistência dos direitos humanos.
O objetivo deste artigo é analisar o efeito político do conceito
de humanidade nos direitos humanos. Para tanto, é apresentado
o conceito de humanidade e sua construção na modernidade. Em
seguida, é tecida uma crítica filosófica apoiada em Costas Dou-
zinas a tal conceito. Assim, é possível situar a acepção dupla dos
direitos e dos direitos humanos e seus efeitos jurídicos e políticos,
sendo que o principal efeito político é o esvaziamento da meta dos
direitos humanos de compor a resistência. Por fim, são apresenta-
das a conclusão e as referências no presente artigo.

1. A construção do conceito moderno de


humanidade
A noção do que seja a pessoa37 não é uma percepção natural.
Pelo contrário, ao longo da história o entendimento sobre o que
seja a pessoa tem sido modificado, portanto, é algo construído,
tratando-se de um conceito abstrato dinâmico que tem diversas
facetas de acordo com o tempo e a localidade. Quando Aristóte-
les38 (2012, p. 18) refere-se à pessoa, ele a evidencia como um ser
social, mas que se torna específico a partir da possibilidade de en-
tendimento pela linguagem. Esta convivência social mediada pela

37 Utilizamos a nomenclatura pessoa como a mais genérica possível, pois no escopo


do trabalho humano, indivíduo e homem têm indicadores conceituais específicos
histórica e filosoficamente.
38 Obviamente que a filosofia antiga é assaz variada e abriga séculos de discussões
teóricas. Nesse sentido, a opção por Aristóteles reduz e muito o pensamento
clássico, mesmo o grego; todavia, em razão da abrangência e influência aristotélica,
o artigo o assume como um filósofo representativo para se reconstruir uma noção de
como era percebida a pessoa.

142
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

fala caracteriza a pessoa em sua essência que a torna política por


excelência, disto decorre o zoon politikon39 aristotélico.
Mas, nem todas as pessoas eram iguais na perspectiva grega,
sobretudo nos escritos de Aristóteles. Aliás, o filósofo de Estagira
ressaltava a condição da pessoa em termos mais pormenorizados,
ao detalhar a economia doméstica de composição da família pelas
relações “senhor e o escravo, o marido e a mulher, os pais e os filhos”
(ARISTÓTELES, 2012, p. 19). Dependendo do tipo de relação, fai-
xa etária e sexo, a pessoa tem um tipo de atribuição desde a família
como a pessoa ser mulher ou a pessoa ser escravo, condições estas
que faziam com que a pessoa pudesse variar em grau de possibilida-
de social materializada na participação política reservada a pessoa
ser homem. Ou seja, o animal político aristotélico consistente na
pessoa completa é uma pessoa do sexo masculino.
O pertencimento territorial é outro atributo que qualifica a
pessoa na tradição filosófica clássica, identificado pela língua e
demais elementos culturais que permitiam discernir o natural de
uma localidade em relação à outra. Esta distinção muito utiliza-
da fazia com que os gregos – e em momento posterior, os roma-
nos – se diferenciassem dos bárbaros (DOUZINAS, 2009, p. 196).
Então, a “pessoa completa” grega/romana era (1) natural de uma
Cidade-Estado grega/romana – na qual ela podia praticar política;
e, (2) do sexo masculino40. Neste contexto, mulheres, escravos e
estrangeiros eram pessoas, mas não totalmente aptas a ser um ani-

39 Do grego, significa animal político.


40 Existiam outros requisitos para estar autorizado a ser um cidadão em Atenas, como
maioridade ou mesmo ter cumprido o serviço militar entre outros. Especialmente à
época da democracia, os requisitos eram mais estreitos, pois o campo participativo
fora estendido com o legislador Clístenes. Seja como for, o artigo parte do pressuposto
de que havia uma condição de pessoa que se diferenciava da outra, e quanto mais
requisitos se exigisse para a participação política que é o elemento diferencial de
pessoa, maior se torna a força do argumento aqui exposto.

143
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

mal político no sentido aristotélico. Em outras palavras, a “pessoa


completa” se fazia pela dimensão política medida pelo sexo e per-
tencimento territorial.
Especificamente, a terminologia humanidade acompanhou
esse processo iniciado na antiguidade. De origem latina, a palavra
humanitas traduzia o termo grego paideia que significa educação.
Conforme visto, a educação remete a cultura específica de uma lo-
calidade que era identificável através da língua distinguindo o grego
de um bárbaro. O romano continuou esta tradição helênica com o
humanitas41: “O primeiro humanismo foi o resultado do encontro
entre a civilização grega e a romana” (DOUZINAS, 2009, p. 196).
Com a consagração do cristianismo no período medieval,
parte da tradição clássica se manteve com Santo Agostinho e
Santo Tomás de Aquino, adeptos, respectivamente, de Platão e de
Aristóteles (RUSSEL, 2004). Todavia, durante o medievalismo,
os dogmas estabelecidos por Paulo de Tarso em suas epístolas de
cunho evangelizador permearam o pensamento cristão em uma
ideia inédita de acepção da pessoa em função da igualdade: “Uma
concepção diferente de humanitas surgiu na teologia cristã”, po-
rém “esse universalismo espiritual foi acompanhado de uma rígida
hierarquia política e social” (DOUZINAS, 2009, p. 196). Com o
medievalismo se evidencia a humanidade abstrata em uma pre-
sunção de igualdade também abstrata, mas que em todo caso, per-
mitia uma classificação da pessoa a partir de sua religiosidade42.

41 Importa destacar que o grego não utilizava a ideia de humano como critério
diferencial de pessoa, tanto que a “palavra humanitas apareceu pela primeira vez na
República Romana” (DOUZINAS, 2009, p. 196).
42 Por isto, judeus e mouros eram menos pessoas e não gozavam da igualdade plena
na alma. O judeu conseguia ser pessoa à medida que abandonava sua crença e se
tornava um “cristão novo”. Na época das Cruzadas isto se fez ainda mais evidente, e
os cruzados europeus mataram indistintamente qualquer outra pessoa que não fosse
da religião católica, incluindo os cristãos que viviam sob o catolicismo ortodoxo
ou os cristãos que viviam no território palestino. Vale consignar que o período

144
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

A condição de pessoa e de humanidade era dada pela aceita-


ção religiosa e sua pretensão de igualdade que jamais se materia-
liza, por isto inerente à abstração e associada à alma. A teologia
cristã meditou sobre estas questões pelo nominalismo, que “vai
reduzir a realidade a substâncias individuais” (VILLEY, 2007, p.
123). O surgimento do indivíduo remete ao nominalismo francis-
cano cujos expoentes são Duns Scotus e Guilherme de Ockham,
sendo que, nessa base filosófica “a expressão máxima da criação é
a individualidade” (DOUZINAS, 2009, p. 75).
O individualismo é a planta da concepção da pessoa na mo-
dernidade. Considerado o primeiro filósofo moderno (RUSSEL,
2004), René Descartes (1991, p. 46) é o arquiteto desta planta a
partir de sua principiologia filosófica: “eu penso, logo existo, era tão
firme e tão certa que [...] julguei que podia aceitá-la, sem escrú-
pulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava”. Tal
princípio condensa e deriva a filosofia cartesiana em função da
pessoa, a qual é protagonista do mundo pelo ato de pensar43. O
escritor francês estipula que a pessoa é estabelecida pelo pensar e
é sua própria essência que a permite “ser [...]. De sorte que esse eu,
isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do
corpo” (DESCARTES, 1991, p. 47). Em outras palavras, ao preci-
sar a existência da pessoa pela sua racionalidade em um espectro
amplo denominado alma, Descartes ponderou que todas as pesso-
as são racionais. Ao estabelecer a alma como o eu, o ser, a pessoa
e alijá-la do corpo, da matéria, o que ele fez foi separar a pessoa do
mundo a sua volta, quer dizer, separou sujeito de objeto.

medieval é marcado pela ausência de uma estrutura política que unifique a Europa
Ocidental, então, a religião acaba fazendo este papel.
43 Interessante a diferença entre Descartes e Aristóteles, diferença esta que evidencia
a mudança na concepção da pessoa na antiguidade e na modernidade. Enquanto
Aristóteles atribuía à capacidade política a condição de pessoa, esta, para Descartes,
se faz pela capacidade racional.

145
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Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

A ideia medieval de que a pessoa se faz pela alma está presen-


te em Descartes. Da mesma maneira, o indivíduo imaginado pela
doutrina nominalista também compõe sua forma de pensar. As-
sim, Descartes “não apenas estabeleceu a certeza e a centralidade
do sujeito, mas também transformou o mundo em um objeto, esta-
belecido a priori do sujeito como alvo de representação, cognição
e intervenção” (DOUZINAS, 2009, p. 198). Com o isolamento do
sujeito em relação ao objeto, a pessoa começa a se definir contra-
posta à natureza, nisto, não só o aspecto racional transparece nas
relações entre sujeito e objeto, pois o sujeito, para além de sua ra-
cionalidade, é dotado também de pretensões individuais: o “poder
da vontade é único; [...] obedece aos desejos e interesses do sujeito.
Descartes o descreveu como o mesmo em nós e em Deus. A vonta-
de moderna não conhece limites teóricos, mas apenas empíricos”
(DOUZINAS, 2009, p. 200).
A cisão entre o sujeito e o objeto é o fundamento do paradig-
ma filosófico que permite separar sujeito de objeto em um método
científico de escopo objetivo. Todo conhecimento de mundo válido
é inspirado nessa filosofia doutrinária cartesiana. “Após Descartes,
a filosofia tornou-se uma meditação sobre o sujeito e sua relação
com seu oposto, o objeto. [...] O mundo estava, assim, reduzido à
sua representação [...] e o homem o centro de tudo o que existe”
(DOUZINAS, 2009, p. 198-199). A epistemologia cartesiana do ser
reflete o quadro moderno e a subelevação da racionalidade enquan-
to característica diferencial humana44. A ideia de humanidade passa
a configurar como uma vertente da razão. Razão humana é o termo
que redunda a condição da pessoa desde a modernidade.

44 Ao cunhar o termo homo sapiens – do latim, significa homem sábio – no século


XVIII, o botânico sueco Carl Linnaues ratifica em sua taxonomia moderna a ideia já
aceita a seu tempo de que a pessoa se diferencia dos outros seres pela racionalidade.

146
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Muito embora, o Renascimento italiano em seu nascedouro, te-


nha preservado parte do humanismo antigo, “como um retorno aos
protótipos grego e romano e era voltado ao barbarismo da escolástica
medieval e do norte gótico” (DOUZINAS, 2009, p. 196), o desenvol-
vimento da modernidade rompeu com esse resgate da percepção gre-
co-romana, motivado, sobretudo, pela filosofia política liberal. Mas,
os filósofos liberais não romperam apenas com a perspectiva antiga
de pessoa, como também com a humanidade religiosa, sendo que “a
igualdade foi redefinida como política, em um processo que fortale-
ceu a tendência intelectual e a determinação popular de reconhecer a
centralidade do indivíduo” (DOUZINAS, 2009, p. 196).
Hobbes (1974, p. 78) atesta a igualdade humana desde a na-
tureza baseada na essência do indivíduo em tal estado. Não por
acaso, Douzinas (2009, p. 87) afirma que a “antropologia natural
de Hobbes é uma afirmação concisa da modernidade. [...] O sujei-
to é entronizado como um agente livre, como a origem imediata
da atividade e da causa das ações que dele emanam”. Ao estabele-
cer uma igualdade política desde a condição de natureza e forma-
tar a sociedade a partir disto, Hobbes inverte não só o mecanismo
social aristotélico vigente até então de se conceber a pessoa em
comunidade, como também afirma a igualdade na esfera civil de
convivência, algo inédito politicamente. Ademais, Hobbes (1974)
inaugura a definição de direito do homem45 no capítulo XIV de
Leviatã como a liberdade de cada homem de usar seu poder. Villey
(2007, p. 142) destaca não saber se Hobbes foi o inventor do termo

45 Não é objeto de este trabalho identificar, pormenorizadamente, a ideia de pessoa


completa, humanidade e humano com a figura do homem, sexo masculino. Para
uma crítica contundente sobre a fundamentação societal desde os contratualistas e
seu comprometimento com a perspectiva masculina e solidificação do patriarcado
liberal, ver Carole Pateman (1993). O artigo considera as críticas de Pateman no
sentido de que a composição do conceito de humanidade parte da figura masculina
a qual arroga para si o título de humano em detrimento da condição da mulher.

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direito do homem, porém “em sua obra aparecem em plena luz


suas fontes, seu conteúdo e sua função original”.
Ao firmar a condição da pessoa de acordo com a individua-
lidade em contraposição a dimensão social, Hobbes afirma os di-
reitos fundamentados desde o indivíduo: “impregnado da lógica
de Guilherme de Ockham, partidário do nominalismo, nela só
encontrará indivíduos, mas providos de uma natureza comum;
naturalmente iguais e livres, subtraídos a qualquer hierarquia”
(VILLEY, 2007, p. 145). O humano hobbesiano partilha dos di-
reitos do homem, inaugurando as premissas de direitos humanos.
Mas, o humano de Hobbes é um ser isolado cujo artifício é se
legitimar juridicamente a partir de si próprio contrapondo-se ao
mundo, inclusive à própria sociedade, isto é, o direito humano em
Hobbes nasce em detrimento da comunidade. A única limitação
do direito humano de Hobbes é o “limite do interior, da Razão
subjetiva do indivíduo. Toda liberdade é, por essência, indetermi-
nada, infinita. Esse é o direito que Hobbes reconhece pertencer a
todos os homens” (VILLEY, 2007, p. 147).
Os escritos de Hobbes viabilizam a ideia de indivíduo no âma-
go político-jurídico. Conforme preceitua Bobbio (1998), o liberalismo
não teria surgido sem o individualismo. É nesse sentido que Douzinas
(2013) elege Hobbes como o primeiro liberal. Deste modo, Locke não
representa uma ruptura com o modelo antropológico hobbesiano e
seu entendimento sobre a pessoa. Aliás, Locke aproveita sua metodo-
logia sociológica para averiguar estado de natureza, pacto e formação
da sociedade política. A diferença fundamental é quanto à base jurí-
dica aportada em Locke (1983, p. 45) na propriedade: “cada homem
tem uma propriedade em sua própria pessoa; a este ninguém tem
qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra
de suas mãos, pode dizer-se, são propriamente dele”.
A propriedade em Locke é vista como um direito do homem,
e, nesse viés, um direito correlato à humanidade. A extensão des-

148
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

se direito é medida pelo trabalho e a capacidade de usufruir dos


frutos do mesmo. Mas, com o dinheiro, o homem pôde converter
seu trabalho em termos monetários e ampliar suas propriedades
(LOCKE, 1983, p. 46-54). Locke substitui o direito à liberdade
total e ilimitada do estado de natureza por propriedades: proprie-
dade, no sentido lato, inclui todo direito individual. Ela é o que é
meu e como tal deve ser-me atribuído (suum cuique tribuendem46)
como coisa particular em relação aos outros, e do que os outros
estão excluídos. Sinônimo de direito” (VILLEY, 2007, p. 152-153).
Com a supremacia da filosofia liberal e a ampla aceitação de
Locke, sua teoria dos direitos do homem se torna a base jurídica
exemplar e “conheceu um imenso sucesso histórico” (VILLEY,
2007, p. 154). Por isto, todos os direitos posteriores derivam do direi-
to de propriedade (DOUZINAS, 2013, p. 85). Neste ponto, volta-
mos a Descartes em sua operação sujeito e objeto, sendo que, por in-
termédio de Locke, o direito se tornou uma relação exclusivamente
entre sujeito (indivíduo) e objeto (propriedade). O direito humano
reproduz esse cenário a partir de um humano que se tornou sujeito
dos objetos com o advento da modernidade. Mas, é em Kant que se
sacramenta a ideia de humanidade moderna presente nos direitos
humanos contemporâneos, pois se trata da “mais avançada e ainda
insuperada defesa inicial da centralidade do sujeito e da normativi-
dade da humanidade” (DOUZINAS, 2009, p. 193).
A teoria kantiana reflete a época do século das luzes. A pers-
pectiva de progresso infinito tendo em vista a racionalidade huma-
na chega ao seu apogeu ao final do século XVIII, sendo que “o con-
ceito de ‘homem’ havia se tornado o valor absoluto e inalienável em
torno do qual o mundo todo girava” (DOUZINAS, 2009, p. 196).
O Iluminismo adentrou o século XIX como uma forma influente
de disseminar valores e tendências, especialmente no campo cien-

46 Do latim, significa dar a cada um o que é seu.

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tífico (GRAY, 2004). Aliás, Kant faz uma resenha do que seja a
Ilustração – palavra que corresponde ao Iluminismo – em termos
de racionalidade, como se fosse um amadurecimento da pessoa, do
homem. Atribui à preguiça e covardia a permanência em um es-
tado irracional, como se fosse uma menoridade. Kant vai além ao
afirmar que passar à maioridade é algo difícil não só para a maior
parte da humanidade, mas também para todo o belo sexo. No eixo
kantiano, a Ilustração é o esclarecimento humano pela razão, sendo
que o requisito é a liberdade, “a saber: a de fazer uso público de sua
razão em todas as questões” (KANT, 2005, p. 65).
Porém, é na “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”,
escrito em 1785, que Immanuel Kant vai detalhar as questões re-
lativas ao sujeito em uma acepção autonômica. A autonomia47 e a
liberdade perfazem uma conjuntura que alia completamente racio-
nalidade e vontade: “todo o ser racional deve considerar-se como
legislador universal por todas as máximas da sua vontade para, deste
ponto de vista, se julgar a si mesmo e às suas ações” (KANT, 2007,
p. 75). O resultado deste diagnóstico kantiano representa o ápice
do controle do sujeito sobre o objeto, sendo que a “consciência e
a vontade modernas tornam-se legislativas: sujeitos agora podem
examinar as regras por si próprias e podem rejeitá-las e substituí-
-las” (DOUZINAS, 2009, p. 200-201). A ausência de limitação ao
indivíduo passa a conferir o desenho atômico48 da autonomia que

47 Em contraposição à autonomia, Kant trabalha com o conceito de heteronomia,


que ética e filosoficamente está enraizado na ideia de submissão. No primeiro caso,
os princípios racionais derivam da perfeição e do conceito de racionalidade sendo
o próprio imperativo moral ou categórico na perspectiva em que a vontade busca
a lei a partir de sua máxima intrínseca. Por outro lado, os princípios empíricos
derivam da felicidade provêm da dimensão física, sendo o imperativo categórico que
é condicionado. Neste último caso, “um objeto da vontade tem de ser posto como
fundamento para prescrever a essa vontade” (KANT, 2007, p. 90).
48 Hegel projeta sua crítica radical a Kant motivado, em parte, pela ideia de sujeito
atômico e os desdobramentos sociais desta visão. Este ainda é um dos grandes debates

150
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

desemboca na moralidade, a qual “é pois a relação das ações com a


autonomia da vontade, isto é, com a legislação universal possível por
meio das suas máximas” (KANT, 2007, p. 84).
O que une o sujeito ao objeto é a razão (DOUZINAS, 2009,
p. 201). Todavia, a razão é o diferencial do sujeito, constituído a
partir de si mesmo, ou seja, o objeto passa a ser o que o sujei-
to deseja que seja. Nessa “revolução epistemológica de Kant”, a
“verdade origina-se e existe no homem e, como consequência de
sua revolução cognitiva, a completa compreensão e o domínio do
mundo tornam-se possíveis” (DOUZINAS, 2009, p. 199). O ar-
ranjo kantiano da razão inverte a perspectiva de mundo, o qual
se faz a partir do ser e sua convicção, sendo que uma lei universal
abstrata a partir da racionalidade é engendrada assepticamente à
realidade as noções prévias de bem e de mal. É a própria fórmula
do imperativo categórico: “Age segundo a máxima que possa
simultaneamente fazer-se a si mesma lei universal” (KANT,
2007, p. 80). Esta operação “lógico-filosófica” inverte o local da lei,
a qual antecede o mundo e a experiência sensível do sujeito, é a
“lei moral que define o bem e o mal” (DOUZINAS, 2009, p. 202).
O objetivo deste tópico é demonstrar que o conceito de hu-
manidade o qual legitima os direitos humanos não é atemporal49,
possuindo cargas axiológicas a partir de si mesmo que justifique a
proclamação da dignidade humana como fundamento jurídico su-
premo. A própria ideia de natureza e a relação da pessoa com esta
foi profundamente alterada na modernidade, e é isto que permi-
tiu uma percepção inovadora da pessoa: “Para Hobbes ou Locke,

da teoria social contemporânea, evidenciada em dicotomias tais como “agência x


estrutura”, “indivíduo x instituição”, “subjetividade x intersubjetividade”, entre outras.
49 Sobre isto, Douzinas (2009, p. 250) destaca que o “humanismo jurídico postulou
o homem como o autor e o fim da lei e culminou na ideia dos direitos humanos.
Mas, quando os direitos humanos minam a distinção entre o real e o ideal, eles se
transformam no alicerce do historicismo moderno”.

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Descartes ou Voltaire, os homens compartilham uma humanidade


comum que confere a todos os homens empíricos as mesmas ne-
cessidades e características essenciais, muito embora seu conteúdo
específico difira de acordo com o teórico” (DOUZINAS, 2009, p.
206). Esta humanidade comum está na supremacia do sujeito em re-
lação ao objeto, na presunção de que o humano controla a natureza.
A natureza em diversas culturas e sociedades é algo muito
além da pessoa e qualquer imaginação de controle ou domínio so-
bre a mesma50. O posicionamento do humano acima da natureza
retira de si a própria natureza humana enquanto algo natural para
inventá-la desde si em um processo metafísico que “cria mundo
ideais, unificados e logicamente harmoniosos e denomina-os rea-
lidade” (DOUZINAS, 2009, p. 212). Esta realidade abstrata e fictí-
cia se compõe em um axioma, um ponto hermético que produz seu
próprio funcionamento, por isto Douzinas (2009, p. 206) ressalta
que a “pessoa é uma aplicação individual do homem universal; a
essência humana vem antes da existência”.
O resultado é a divergência humana da realidade fática
apoiada no parecer moral kantiano que dita o ritmo das supostas
verdades universais. Quer dizer que a humanidade se liberta de
qualquer elemento que a possa condicionar, seja de ordem históri-
ca, cultural, política ou social. De acordo com Douzinas (2009, p.
208-209), isto estabelece o nada51 da natureza humana. A filosofia
dos direitos humanos segue essa linha desde Kant e seu prognósti-

50 Sobre esta questão, os gregos atribuem à tentativa de a pessoa controlar a natureza


através da técnica, mas esta é sempre incontrolável (DOUZINAS, 2013). A própria
tragédia de Antígona escrita por Sófocles representa alegoricamente este debate entre
a natureza e a pessoa. Culturas orientais como hinduísmo, budismo e confucionismo
pregam, antes de tudo, equilíbrio entre pessoa e o mundo que lhe cerca que é a
natureza. Religiões de matrizes africanas como o candomblé partem desse mesmo
pressuposto harmônico. A modernidade rompeu com toda esta tradição filosófica.
51 Douzinas (2009, p. 205-201) aponta Sartre como o precursor desta crítica niilista
à natureza humana presente em Descartes e Kant. Ademais, o autor grego arrola

152
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

co de humano enquanto sujeito dotado de autonomia para estabe-


lecer a lei moral universal do mundo. Mas, isto tem consequências
políticas e jurídicas profundas que serão exploradas na sequência.
Antes, contudo, segue uma crítica à modernidade kantiana.

2. Qual modernidade?
A modernidade não é um conceito pleno e acabado, pelo
contrário, trata-se de um conceito em aberto e mais, em dispu-
ta52. O conceito de modernidade na perspectiva majoritária guar-
da uma promessa de emancipação que será conquistada à medida
que a modernidade for completada enquanto projeto. Esta visão é
contemporânea e encontra Habermas (2011) como adepto.
Conforme pontua Habermas (apud DUSSEL, 1993, p. 23):
“os acontecimentos históricos-chave para a implantação do prin-
cípio da subjetividade são a Reforma, a Ilustração e a Revolução
Francesa”. A constatação habermasiana sobre a modernidade evi-
dencia uma construção a partir de eventos exclusivamente euro-
peus e constitui o mainstream analítico da ciência social estabele-
cido em uma visão eurocêntrica adotada pelos Estados Unidos da
América, endossando um discurso hegemônico de modernidade
etnocêntrica, a qual afirma e reproduz uma modernidade de sen-
tido unilateral. Obviamente que a modernidade de Habermas re-
mete a uma filosofia mais antiga de escopo eurocêntrico.

Burke e Marx como críticos pioneiros dos direitos humanos em suas vertentes
abstratas, universalistas e sem determinação.
52 Em termos didáticos, a modernidade é classificada como um fenômeno da Idade
Moderna iniciada em 1453 com a Queda de Constantinopla. Autores europeus como
Kant e Hegel estipulam a modernidade como um movimento exclusivamente europeu.
Dussel (1993) questiona essa posição ao inserir a América Latina no processo.

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O eurocentrismo é “uma perspectiva de conhecimento cuja


elaboração sistemática começou na Europa Ocidental antes de
mediados do século XVII” (QUIJANO, 2005, p. 236). É uma pro-
dução de verdade que tem relação direta na consolidação do poder
sobre o ser53. Apesar de suas origens anteriores ao século XVII, o
eurocentrismo tem sua fundamentação mais rebuscada construída
sob a orientação iluminista, muito presente em Kant, mas com
requintes de sofisticação em Hegel.
A Ilustração kantiana “é a saída por si mesma da humanida-
de de um estado de imaturidade culpável” (KANT apud DUSSEL,
1993, p. 17). Desde essa assertiva, Dussel questiona se os povos sub-
jugados pela modernidade são os responsáveis por sua condição de
oprimidos. É a filosofia da história hegeliana54 que tem a resposta
para o questionamento de Dussel quanto à responsabilidade desses
povos não modernos, imaturos: “A história universal representa [...]
o desenvolvimento da consciência que o Espírito tem de sua liber-
dade e também a evolução da realização que esta obtém por meio de
tal consciência” (HEGEL apud DUSSEL, 1993, p. 18).
O desenvolvimento é a peça chave para compreender essa
responsabilidade, sendo uma lógica dialeticamente linear em uma
direção no espaço: “A história universal vai do Oriente para o
Ocidente. A Europa é absolutamente o fim da história. A Ásia é
o começo” (HEGEL apud DUSSEL, 1993, p. 18). Para constituir
sua evolução histórica, Hegel precisou eliminar de sua história
universal a América Latina e a África. Sobre a América (Latina),
o filósofo de Stuttgart a projeta para o futuro ao dizer que o local
não terminou sua formação e conclui que não cabe à filosofia fazer

53 Este efeito é similar às análises de Foucault (2005), porém “o que Foucault não
conseguiu capturar em sua denúncia foi o eurocentrismo e o colonialismo”
(BALLESTRIN, 2013, p. 103).
54 Apesar de Hegel se contrapor filosoficamente a Kant, em termos de Iluminismo,
suas abordagens coincidem.

154
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

profecias. Quanto à África, a sentença hegeliana é de que se trata


de um lugar fechado em que a consciência não foi despertada para
nenhuma objetividade; seu diagnóstico final sobre a África é que
“é algo isolado e sem história, sumido ainda por completo no espí-
rito natural” (HEGEL apud DUSSEL, 1993, p. 19-20).
A modernidade em Hegel assume seu eurocentrismo cabal
no mundo germânico e se inicia na Reforma Luterana, se desen-
volvendo no Iluminismo e na Revolução Francesa até culminar na
missão civilizatória inglesa: “os ingleses decidiram se transformar
nos missionários da civilização em todo o mundo” (HEGEL apud
DUSSEL, 1993, p. 22). Os detentores da modernidade nessa pre-
ceituação eurocêntrica são a Alemanha e a Inglaterra, ou seja, a
Europa hegeliana: o povo do Norte que “tem assim um ‘direito
absoluto’ por ser o ‘portador’ do Espírito neste ‘momento de seu
Desenvolvimento’. Diante de cujo povo todo outro-povo ‘não tem
direito’” (DUSSEL, 1993, p. 22).
A – e o direito à – colonização adquire uma função de superar
as contradições da sociedade civil absorvendo o vestígio negativo do
capitalismo: “a ‘periferia’ da Europa serve assim de ‘espaço livre’ para
que os pobres, fruto do capitalismo, possam se tornar proprietários,
capitalistas nas colônias” (DUSSEL, 1993, p. 23). Hegel é o paladi-
no da superioridade europeia em sua caracterização mais acentuada,
conferindo as armas ideológicas à Europa Ocidental e estabelecendo
a modernidade como um processo eurocêntrico em uma postura et-
nocêntrica. Os Estados Unidos da América assimilaram esse pensa-
mento manipulando-o aos seus objetivos em uma proeminência do
Atlântico Norte compartilhado entre os países desse eixo.
Assim, a colonização é o processo etnocêntrico em que o euro-
peu busca diferenciar-se como “raça” superior ou no último estágio
da “civilização” (DUSSEL, 1993, p. 22). Desta forma, a missão do
europeu a partir da modernidade é “civilizatória”, e para tal missão
qualquer ato é justificável. Os habitantes originários das Américas

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foram “inventados” (DUSSEL, 1993, p. 32) pelo europeu como ín-


dio, como “ser asiático”. Em seguida, o europeu percebeu que não
se tratava de um “ser conhecido”, mas um “novo ser” em um “Novo
Mundo”: eis o “descobrimento” da América. Da “descoberta” pas-
sou-se a “conquista” em atos de guerra e, finalmente, a “colonização”
(DUSSEL, 1993, p. 34-50). Esta última se desdobrou em “conquista
espiritual” traduzindo o “mito civilizador” (DUSSEL, 1993, p. 58-
60), sendo que todo o processo racionalizado de violência caracte-
rístico da colonização passou a ser mitigado pela expectativa de um
“encontro” de dois mundos (DUSSEL, 1993, p. 64).
As relações entre americanos e europeus não foram um “en-
contro de culturas” (DUSSEL, 1993, p. 65), mas sim, o “encobri-
mento do outro”; no caso, o europeu impôs de forma assimétrica
suas verdades, concepções, doutrinas e dogmas concebidos sob o
argumento da “civilização”. O “outro” no contexto da América La-
tina é todo ser humano não europeu. Todo aquele que não tem o
atestado de humanidade europeia é considerado aquém da cultura,
como “incivilizado”. O “encobrimento” típico da colonização euro-
peia foi extenso: a desestruturação do “aparato cultural e simbólico
das populações autóctones da América, advindo entre elas um senti-
mento de desreferencialização do mundo” (DUSSEL, 1993, p. 67).
O “encobrimento”, portanto, é uma destruição cultural pro-
funda das referências basilares dos povos originários da América.
Este fenômeno do “encobrimento” no processo de colonização “é
um processo de racionalização próprio da modernidade: elabora um
mito de sua bondade (‘mito civilizador’) com o qual justifica a vio-
lência e se declara inocente pelo assassinato do Outro” (DUSSEL,
1993, p. 58-59). Eis a resposta de Hegel a indagação de Dussel quanto
à responsabilidade dos povos subjugados estabelecida por Kant: uma
transferência da culpa pelo seu próprio atraso que justifica qualquer
ato em nome da razão moderna europeia. Essa é a modernidade que
ainda vigora na teoria e na filosofia dos direitos humanos.

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O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

O conceito moderno de humanidade que fundamenta os di-


reitos humanos é uma abstração que se pretende universal de uma
pessoa do sexo masculino, branca, de cultura europeia ocidental,
dotada de uma razão unilateral. Ser humano requer se adaptar a
estes atributos conceituais. O dogma da racionalidade como critério
diferencial da pessoa inaugurado por Descartes perpassa por toda a
modernidade encontrando Kant seu maior exponencial filosófico.
A partir de Kant, a razão passa a ser o arcabouço de toda a moderni-
dade. Os autores destacados no bojo do artigo compartilham desta
tradição filosófica, a qual permanece em Weber e Habermas, dois
autores adeptos da doutrina liberal kantiana. A racionalidade é uma
exigência para a modernidade, e todo aquele que não se encontra
na plena razão iluminista é algo menos que o humano do tipo ideal,
e seus direitos, inclusive os direitos humanos, estão condicionados à
aceitação da modernidade baseada na racionalidade.

3. O esvaziamento político dos direitos humanos


na dupla acepção do sujeito
Ao pressupor a pessoa em uma máxima atômica projetada
no sentido unilateral do sujeito, a “autonomia kantiana torna o
homem moderno o sujeito da lei em um duplo sentido: ele é o le-
gislador, o sujeito que provê a lei, e o sujeito jurídico, sujeitado à
lei na condição de que participou de sua legislação” (DOUZINAS,
2009, p. 203). A posição do humano perante o mundo o torna,
ficticiamente, senhor deste mundo, mas, por outro lado, cria suas
próprias barreiras que significam sujeição, e nesta ambiguidade
essencial se constrói e se reconstrói o sujeito jurídico, o mesmo
sujeito dos direitos humanos (DOUZINAS, 2009, p. 225).
Etimologicamente, a palavra sujeito provém de duas pala-
vras de origem latina cujos significados são contrários: subjectum

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e subjectus. Enquanto subjectum configura no polo ativo da faceta


humana, o subjectus está no polo passivo desta. De certa forma,
isto condiz com a sociedade moderna em suas pretensões políticas
e teóricas de condicionar a liberdade do agente humano (DOU-
ZINAS, 2009, p. 226). Esta inovação jurídica dicotômica está pre-
sente no direito contemporâneo desde a Revolução Francesa55, a
qual é considerada um marco histórico56 para os direitos humanos.
A Revolução Francesa, aliás, propugnou-se como um ato de
resistência ao poder político de então baseado no absolutismo. Os
fundamentos teóricos revolucionários pressupunham o direito de
resistir tendo em vista a liberdade e igualdade humanas. Mas, anco-
rados no idealismo alemão kantiano, os desdobramentos da Revolu-
ção Francesa excluíram de seus quadros normativos qualquer ideia
de resistência que pudesse colocar em risco a ordem estabelecida
(DOUZINAS, 2013, p. 82-83). Mais do que isto, abandonaram a
resistência em preferência a uma liberdade/igualdade vazia e for-
mal, que evidenciava toda a carga abstrata de uma humanidade
universal, sobretudo quando se contrapunha ao próprio desfecho da
Revolução Francesa que não garantia sequer a igualdade formal às
mulheres e aos que não eram brancos (DOUZINAS, 2009, p. 229).
Os direitos humanos partem da hipótese de um humano li-
vre e igual para reivindicar sua própria dignidade. Por tratar o hu-
mano como hipótese dada e aceita, os direitos humanos formulam
condições jurídicas imaginárias e impraticáveis, afetando qualquer
perspectiva de realização e efetivação. Epistemologicamente, a

55 A Revolução Francesa é um divisor de águas na História Contemporânea, e


a influência da mesma para o mundo ocidental é enorme. Nesse sentido, Eric
Hobsbawn destaca que a “ideologia do mundo moderno [...] foi obra da Revolução
Francesa” (1977, p. 84), portanto, é natural atrelar a história dos direitos humanos à
Revolução de 1789 em França.
56 Sobre toda a trajetória evolutiva do desenvolvimento do sujeito no conceito de
humanidade, ver Douzinas (2009, p. 227-229).

158
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

dignidade se estranha entre objeto e sujeito, não se definindo poli-


ticamente, para ao final se tornar o fundamento do direito presu-
mido do humano. Isto acontece porque o sujeito em sua dimensão
sujeitada é, na realidade, objeto jurídico, todavia, após os trâmites
da Revolução Francesa, “o subjectus tornou-se cidadão e deu início
à sua jornada em direção a tornar-se o sujeito moderno livre e au-
tônomo” (DOUZINAS, 2009, p. 230). A parte ativa do sujeito, o
subjetum revolucionário que resistiu ao absolutismo, foi alijada da
política e desalojada do resguardo jurídico dado seu risco potencial
à nova ordem que se estabelecia.
A política atual contemporiza a sujeição em direitos, como
se estes fossem além do poder, o qual “tornou-se o objeto de um
discurso jurídico, que colocava os direitos humanos, com o frá-
gil conceito de homem, no seu centro e segundo o qual o poder
deve agora justificar o seu exercício” (DOUZINAS, 2009, p. 230).
Assim, as democracias contemporâneas abrigam a humanidade
alicerçada na igualdade formal e jurídica não como ponto de che-
gada, mas como ponto de partida e condição para a realização
democrática. Nesta esteira, os direitos humanos configuram como
garantes de uma humanidade estanque que não tem relações polí-
ticas, mas apenas uma normatividade ideal que pretende resolver
por si mesma os problemas sociais, desde os mais rasos até os mais
graves, daqueles locais aos mundiais.
Os direitos humanos estabelecidos como norma universal apli-
cável a todo o mundo são o resultado do processo histórico e filosófico
da construção do conceito moderno de humanidade e seus desdobra-
mentos teoréticos. A prática jurídica do humano que desenvolveu o
sujeito do direito na dupla acepção, descrita anteriormente, demons-
tra que não há um limite para o que pode ser contemplado pelo di-
reito, nem a título de sujeito, nem a título de objeto. Desta maneira,
não há qualquer limitação para a pretensão universal do tratamento
humano dado ao mundo e à natureza, em que o critério para se tornar

159
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

direito humano, seja sujeito, seja objeto, é a própria perspectiva de


humanidade a partir de si mesmo, por esta razão Douzinas (2009, p.
253) afirma que “os direitos humanos tornaram-se a expressão má-
xima da moralidade da lei, da política governamental e das decisões
internacionais”. Em uma assertiva trivial: tudo se transformou e se
transforma em direitos humanos. O paradigma que se estabelece a
partir disto é a totalização dos direitos humanos, em que tudo pode se
tornar sujeito de direito – e objeto.
Para além de uma pessoa, animais e natureza também têm
sido reconhecidos como sujeitos de direitos. No mesmo diapasão,
empresas e demais pessoas jurídicas idem. Aliás, a própria defini-
ção de pessoa jurídica é parte deste conceito abstrato de sujeito
reflexo da humanidade. Por outro lado, as pessoas também podem
virar objetos das relações jurídicas, a serem tutelados, cuidados,
vigiados, a depender da área jurídica, pois o “potencial criativo da
linguagem e da retórica permite aos direitos originais do ‘homem’
fragmentarem-se e proliferarem nos direitos dos vários tipos de
sujeito” (DOUZINAS, 2009, p. 262). A conquista de um direito
ajuda a incrementar a lógica de expansão jurídica. Ao lutar pelo
reconhecimento57 de uma determinada reivindicação e tê-la nor-
matizada, o horizonte do direito se expande. Concomitantemente,
abre-se espaço para novas pretensões. À medida que se atende
novas pretensões, o escopo jurídico vai sendo ampliado. Por óbvio
que esta dilatação sem precedentes tem tido sua repercussão polí-
tica ao não efetivar o direito, pois sua meta subjetiva não encontra
limites além da própria subjetividade que se manifesta como a le-
galização do desejo (DOUZINAS, 2009, p. 268).

57 Axel Honneth (2003) é um dos expoentes da teoria do reconhecimento


contemporâneo em que um dos pontos centrais é o alargamento do escopo jurídico
pela ética societal. Douzinas (2009, p. 279-286) tece duras críticas a esta visão
normativa de sociedade exposta por Honneth.

160
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Histórica e filosoficamente, porém, o direito não é percebido


como uma entidade totalizante. Pelo contrário, o direito tem uma
função bastante específica no sentido de compor conflitos. A máxi-
ma romana ubi societa ibi ius58 reafirma a missão precípua do direito
em termos práticos de estar presente em sociedade. Mais do que
isso, desde o brocardo romano o direito é percebido como algo so-
cial e não uma abstração a partir do indivíduo, quanto menos uma
pretensão geral e universal de humano total a partir do jurídico.
Considerando o conflito como parte da sociedade59, em uma pers-
pectiva genérica, é razoável conceber o direito como uma técnica
para resolver o mesmo. O problema é que o direito moderno na sua
evolução para direitos humanos, tendo em vista o sujeito humano
que tudo regulamenta a partir de si, tende a estipular as normas do
conflito, o que acentua tal fenômeno e não o resolve: “a apresenta-
ção do conflito em termos de direitos não ajuda e poderia retardar
ainda mais a sua resolução” (DOUZINAS, 2009, p. 258).
Além disso, ao enquadrar o conflito social como norma, os
direitos humanos o reduzem a um escopo constituído dotado de
ideais e ideias prévias, juízos de valor e cargas axiológicas que nem
sempre correspondem à situação fática do conflito. A isto se agre-
ga a operação jurídica baseada no direito de propriedade em que
apenas um polo da relação tem sua pretensão satisfeita, em um
resultado que jamais atinge um mínimo de equilíbrio. O tudo con-
tra o nada da lógica jurídica faz com que o conflito seja descarac-
terizado. Ademais, o processamento do litígio se faz por narrativas
recheadas de estigmas interpretativos que escancaram um discur-
so vazio, “devido, em parte, à sua linguagem, que se tornou tão

58 Do latim, significa que onde está a sociedade, está o direito.


59 Honneth (2003) estabelece uma teoria social de teor normativo a partir de Hegel e
sua categoria de reconhecimento que pressupõe o conflito. No caso, Hegel resgata
a intersubjetividade nas relações sociais inspirado nos gregos, em especial Heráclito
(RUSSEL, 2004), o qual enxergava o conflito desde a natureza.

161
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

ampla, abstrata e engloba tudo, a ponto de poder ser empregada


em todos os tipos de conflitos políticos e sociais para proporcionar
legitimidade moral a qualquer interesse e reivindicação, do mais
sério ao mais trivial” (DOUZINAS, 2009, p. 259).
O que permitiu o conceito moderno de humanidade, con-
forme visto, foi o critério da razão. Mas a razão não pode ser um
critério universal para oferecer todas as respostas aos problemas,
quanto mais àqueles decorrentes da sociedade que se materializam
em conflitos políticos. Ademais, a formatação da razão teve uma
historicidade ligada à modernidade europeia e etnocêntrica que
excluiu os demais humanos do mundo, pois a humanidade mo-
derna kantiana tem forma e se apega a esta, desdobrando-a em
detrimento da realidade. Neste sentido, “as principais oposições
da jurisprudência da modernidade foram inauguradas por Kant:
legalidade e moralidade, forma e conteúdo, validade e valor, nor-
ma e fato” (DOUZINAS, 2009, p. 204). Todavia, como a verdade
universal baseia-se no entendimento humano e sua vontade vin-
culada à autonomia, moralidade, conteúdo, valor e fato, ou seja,
todos os requisitos que se pretendem materiais transitam do objeto
para a subjetividade do sujeito, tornando todo o direito uma ques-
tão de forma, por isto o formalismo jurídico se afirma perante a
matéria, inclusive nos direitos humanos.
Douzinas (2011, p. 3) estabelece que “o objetivo dos direitos
humanos é de resistir à dominação e à opressão pública e privada”.
Ao refletir sobre a crise atual na Grécia, o autor grego restabelece
a resistência filosoficamente como um direito que fora alijado pela
doutrina kantiana após a Revolução Francesa e que isto reflete
nos tratados internacionais contemporâneos de direitos humanos
(2013, p. 83). Especialmente nas relações públicas, em que o Es-
tado consubstancia-se legitimado em uma ordem imposta, é que
os direitos humanos na categoria de resistência se fazem mais evi-
dentes e importantes, sobretudo nas situações relacionais assimé-

162
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

tricas (SANTANDER, 2011, p. 2). Na seara dos direitos humanos


consignados pelo humanismo jurídico, o esvaziamento do sentido
político atinge seu apogeu oficial, pois quando o “Estado reconhe-
ce os direitos humanos e os sistematizam através do direito (tipifi-
cação), inverte-se o polo de legitimidade da ação. A ação legítima
passa a ser a do Estado, e não mais a das pessoas negligenciadas. A
normatividade trabalha em detrimento da parte hipossuficiente”
(SANTANDER; RIBEIRO, 2014, p. 279).
O direito em sua manifestação normativa não é um fenômeno
desvinculado da política e de seus efeitos. Pelo contrário, continuam
tendo um poder inexorável sobre as relações sociais. Não por acaso,
Douzinas (2009, p. 268) afirma que os “direitos são ficções extrema-
mente poderosas cujo efeito sobre as pessoas e as coisas é profundo:
eles fazem as pessoas sacrificarem sua vida ou sua liberdade, eles le-
vam as pessoas a matar ou mutilar em seu nome, eles inspiram as
pessoas a protestar, a se rebelar e a mudar o mundo”. O esvaziamento
político dos direitos humanos tem sido uma prova cabal deste efeito
do excesso de normatividade a partir do conceito moderno de huma-
nidade em sua proposição ambígua da pessoa sujeito e sujeitado.

Conclusão
O artigo buscou resgatar os efeitos políticos do conceito mo-
derno de humanidade, mais especificamente relacionando com o
esvaziamento político dos direitos humanos em sua ideia básica de
resistência. Não se trata de um ataque vazio aos direitos humanos,
os quais são uma conquista, uma meta e uma importante ferramen-
ta contemporânea na defesa da pessoa. Todavia, o que se pretende
com esta crítica é contemporizar o caráter inacabado dos direitos, os
quais sempre precisam ser revistos e redimensionados para que seu
tato com a realidade não seja perdido, pois a busca por efetividade e
eficácia ainda é a luta fundamental dos direitos humanos.

163
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

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166
Capítulo 9
O processo de exclusão e o processo de
inclusão-políticas públicas no Brasil

Gloriete Marques Alves Hilário60


Marcelo Marques de Almeida Filho61
Sonya Maria Brandão62

60 Doutoranda em Sociologia - Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo


pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC)/Centro de Estudos
Sociais (CES); Mestrado e especialização na mesma área e IES; Mestrado revalidado
pela Universidade de Brasília (UNB); Especialista em Direito Civil e Processo Civil
pela Faculdade de Ciências e Educação de Rubiataba (FACER); Graduação em
Direito pela Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO); Intercâmbio no âmbito
da graduação em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
(FDUC). Leciona na FACER, Faculdade Integrada de Goiás (FIG) e Arctempos. É
coordenadora de Iniciação Científica e TCC do curso de Administração da FACER.
É associada ao Núcleo de Estudantes Luso-Brasileiros (NELB) da Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa (FDUL). Endereço para acessar o Currículo Lattes: <http://
lattes.cnpq.br/6320904558134619>. E-mail: <glomalves@yahoo.com.br>.
61 Mestre em Ciência Política pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade
Federal de Goiás (PPGCP-FCS/UFG). Professor da Faculdade de Ciência e Educação
de Rubiataba (FACER-Unidade Rubiataba). Link para acessar o Currículo Lattes:
<http://lattes.cnpq.br/8980416917332456>. E -mail: <mma_filho@hotmail.com>.
62 Graduação em Direito pela Universidade Federal do Piauí. Auditora Fiscal do Ministério
do Trabalho e Emprego, aposentada. Advogada. Mestre em Sociologia pela Universidade
de Coimbra e Doutoranda em Sociologia em Relações do Trabalho, Desigualdades
Sociais e Sindicalismo na mesma instituição. Doutoranda em Sociologia–Relações
de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismos pela Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra (FEUC) e Centro de Estudos Sociais (CES). Copartícipe
dos livros intitulados: “Temas de Discriminação e Inclusão” pela Editora Lumen Juris/
Direito e da obra “Ensaios de Direitos e de Sociologia a partir do Brasil e de Portugal”
pelo Instituto Memória. E-mail: <sonyampb4@hotmail.com>.

167
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Introdução
Este capítulo faz uma rápida passagem pelo mundo das polí-
ticas publicas num período restrito, tentando mostrar o processo
de evolução destas ações governamentais no combate à exclusão
social no Brasil. Contata-se que foi muito lenta esta evolução e que
as estruturas sociais do Brasil não permitem grandes voos, apesar de
nos últimos tempos constatar-se umas melhorias nos dados sociais.
Outro aspecto abordado é a constatação de que as interven-
ções do Estado na área social acarretam uma dependência dos
Beneficiários, devido às perspectivas assistencialistas e a falta, em
médio prazo, de um programa de desenvolvimento das capacida-
des de superação. A necessidade de desenvolver outros programas
para superar estas incapacidades atrasa a solução desta problemá-
tica. É uma verdadeira rede de ações paralelas. Em suma, é apenas
um resumo sobre a consistência teórica da intervenção do Estado
neste fenômeno complicado da exclusão social. Fatores históricos;
e tentativas outras são citadas.

1. Reflexões sobre exclusão


A exclusão social é um processo tão antigo quanto à huma-
nidade, às vezes apresenta-se estigmatizada como nas questões
religiosas vivenciadas nas Índias ou mesmo nos povos Árabes; ou-
tras, como medida de proteção na área da saúde pública, como os
antigos hansenianos ou pelos portadores de AIDS na contempo-
raneidade. Outras vezes, a exclusão social apresenta-se nos pro-
cessos políticos como o ostracismo na Grécia Antiga ou nos casos
dos exilados ou expatriados, situação bastante sentida nos dias de
hoje. Pode-se assegurar que a exclusão sempre existiu desde que os
homens e as mulheres começaram a perceber a vida de forma co-

168
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

letiva e ambicionaram viver em comunidade. Mas observa-se uma


evolução nos estudos dessas formas de exclusão, tanto no tocante
aos seus conceitos e concepções quanto as suas características de-
corrente das suas múltiplas faces e diferenças variáveis em cada
povo de uma região ou paises.
A exclusão caracteriza-se especialmente como um processo
acumulativo e com múltiplas dimensões que gera entre as pessoas,
nos grupos e nas comunidades, rupturas contínuas nos seus valo-
res principais, incluindo neste processo os recursos e o acesso ao
centro de poder. A história como ciência é um bom recurso para
explicar as razões que leva um indivíduo, uma família, um grupo,
um território à exclusão, exigindo assim, um estudo mais abran-
gente onde os olhares diversificados e sem condicionamentos cul-
turais avaliem esta realidade tão gritante no nosso país.
Um dos fenômenos a ser reconhecido como partícipe des-
te processo é a desigualdade social entre homens e mulheres que
ainda não foi acolhida como uma forma integrante do processo de
exclusão da mulher. A não concessão dos direitos civis da mulher
como o direito de votar e de ser votada; o direito de exercer o co-
mércio, o direito a propriedade rural - quando da titulação da terra
nos processos da reforma agrária , consolidadaram a exclusão por
gênero , mas não eram vistos como modos atuantes por serem acei-
tos moralmente e estarem incluidos nos costumes, nas formulações
das leis e dos dogmas das religiões vigentes. As mulheres estiveram
subjugadas a estas circunstâncias durante séculos e hoje ainda cons-
tatamos exclusão na area das relações do trabalho principalmente
,no acesso aos postos de gerencias bem como, na diferença salarial
entre homens e mulheres.Esta realidade é quase que universal, e é
responsavel pela reprodução das desigualdades e contribui inclu-
sive no processo de desenvolvimento econômico dos países onde a
força deste fenômeno é imperialista (ESTIVILL, 2003, p. 5).

169
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Dando um rápido olhar sobre o conceito de exclusão, cons-


tata-se que a tradição britânica trouxe um conceito intimamente
ligado aos aspectos financeiros ou distributivos que a distingue da
escola francesa. Na Inglaterra, a maneira de situar o fenómeno
está atrelado aos salários e ao mercado de trabalho em si, enquan-
to a visão francesa se preocupa mais com os aspectos pautados no
conjunto de deveres e obrigações recíprocas. Uma boa parte da
literatura europeia insistiu na problemática do desemprego prolon-
gado como um dos fatores para melhor entender a exclusão. A li-
teratura oriunda da Africa e América Latina apega-se ás questões
da propriedade da terra como fator mais importante do processo
de exclusão. Assim sendo, constata-se que os fatores variam con-
forme o meio ambiente, os hábitos culturais e os modos de subsis-
tência a tal ponto que é sempre difícil comparar a pobreza entre
sociedades que não atingiram o mesmo nível de desenvolvimento
econômico ou cultural. (PAUGAM, 2003, p. 49).
Diante desta avalição, admiti-se que a origem do conceito
de exclusão como fenômeno social está fincada na Europa, devido
às transformações socioeconômicas sofridas na década de seten-
ta, influenciando os demais continentes e carregando no seu bojo
uma confusão de interpretações com as suas multiformas princi-
palmente, as situações de marginalização oriunda da pobreza e da
precariedade. O crescimento do número de desempregado carac-
terizado como residual pelos economistas e em consequência o
seu empobrecimento agrava as desigualdades na pirâmide social,
levando a uma reflexão sobre o processo de exclusão e em conse-
quência um avanço das políticas sociais de inclusão.
Após o lançamento do Primeiro Programa Europeu de Luta
contra a Pobreza, o Conselho Europeu abraçou esta definição de
exclusão: “Entende-se por pessoas pobres, as famílias e os grupos de
pessoas, cujos recursos materiais, culturais e sociais são tão escas-
sos que se encontram excluídos das formas de vida minimamente

170
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

aceitáveis no estado-membro em que vivem.” Para se ter ideia , no


II Programa Europeu de Luta Contra a Pobreza (1985-1989), no-
venta e hum projetos foram financiados e as ações foram voltadas
para grupos específicos. A Espanha e Portugal foram incluídos neste
periodo no III Programa, denominado de Programa Comunitário
para a Integração Económica e Social dos Grupos Menos Favo-
recidos foi criado um Observatório Europeu sobre a Luta contra a
Exclusão Social (1991-1994). ( ESTIVILL, 2003, p. 34).
A palavra exclusão começou a fazer parte dos discursos po-
líticos do Brasil após a Constituição Federal de 1988, contendo
vários sentidos e interpretações outras que nem sempre revelam
o que realmente deveria ser entendido. Um exemplo clássico está
contido no pensamento de que a exclusão social restringe-se à
pobreza sem perceber que além da noção de pobreza abrange tam-
bém situações que acarretam rupturas a nível das relações sociais.
Diante desta realidade, seria importante acatar como fator
preponderante os princípios básicos de cidadania que provocam
a existência de uma conjunção de referências da qual se faz parte
ou não. Estes princípios geram nas pessoas o sentimento de per-
tencer a um sistema básico como o social, (família, vizinhos, ami-
gos companheiros de trabalho) o institucional, (acesso à saúde,
educação justiça) o econômico (mecanismos geradores de recursos
como os salários). Outra referência importante é a localidade ou
região onde está inserido, como moradores de bairros ou favelas
socialmente aceitos pelo outros moradores como desassociados das
cidades ou demais regiões, caracterizando a exclusão territorial.
Respeita a todo um conjunto de perdas que o excluído sofre,
e que se agrava com a permanência na situação de exclu-
são, no campo das referências: perdas de identidade social,
de autoestima, de autoconfiança, de perspectivas de futuro,
de capacidade, de iniciativa, de motivações, de do sentido de
pertença à sociedade, etc. (COSTA, 2007, p. 14-15).

171
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Este novo conceito de exclusão possibilitou fazer uma rein-


terpretação, apontando de forma mais evidente as características
estruturais em várias dimenssões e sua forma dinâmica, tornando-
-se mais explicativa as consequências da crise da década de se-
tenta, e uma consciência da necessidade de incorporar conceitos,
como pobreza, periferia, fratura, estigmatização, apartação. Esse
conceito foi firmado para além da realidade francesa e europeia
baseado no respeito aos direitos do homem e exige a participação
da sociedade civil, num amplo diálogo entre as partes.

2. A inclusão na exclusão
No Brasil, em tempos de colônia, a assistência social era ideali-
zada e implementada nas próprias fazendas, como foi bem observada
por Ribeiro (2007, p. 81) A proteção social relacionava-se diretamente
com a inserção do homem no mercado de trabalho e a assistência
social pelas instituições de caridades ou filantrópicas para aqueles que
estavam fora do processo produtivo, como bem disse Ribeiro:

O sistema de ajuda era realizado, nos primeiros séculos


de colonização, pela Igreja Católica – com o mandato do
Estado – encarregava da assistência social, do ensino e
da saúde. O catolicismo colonial, permeado de tradições
medievais e mesclado com devoções populares, foi um
campo fértil onde o indivíduo encontraria as associações
voluntárias, como as irmandades e confrarias, através das
quais teria acesso aos serviços sociais, ao lazer e ao con-
vívio social. Entre 1989 e em meados de 1930, o Estado
começou a tratar a assistência social como uma política
social, que tinha uma proposta liberal de combate à mi-
séria e a pobreza. As primeiras regulamentações assisten-
ciais se deram com a Consolidação das Leis Trabalhistas,
promulgada em 1943, onde estavam sistematizados muitos

172
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

decretos e regulamentos elaborados anteriormente. (Ri-


beiro, 2007, p. 81).

Os trabalhadores de ambos os sexos, com nacionalidades di-


versas, compunham a classe trabalhadora no Brasil. Os direitos tra-
balhistas eram mínimos e as poucas ingerências do Estado, através
de determinações legais, não eram cumpridas pelos empresários,
inclusive a antiga lei que regulamentava o trabalho infantil nas fá-
bricas e as leis sanitárias de 1911 e de 1917. O sentimento de que os
excluídos da força de trabalho representavam uma classe perigosa,
termo usado na Inglaterra e na França, no Brasil, trazia embutido o
sentimento de classe pobre. À época o trabalho só era visto e senti-
do nas atividades industriais e atividades assalariadas desenvolvida
na zona urbana. Considerava pobre, aqueles que não trabalhassem,
denominados também de “vadio”. (Valladares, 1991, p. 86).
Nos meados dos anos trinta, o Estado brasileiro começou a
pensar a assistência social como uma política de interesse social,
fundamentada numa proposta de combate à pobreza através das
relações do trabalho. As condições políticas da transição da socie-
dade brasileira para o capitalismo e principalmente as mudanças
para uma sociedade mais urbana e industrializada pressionou o
governo para contrapor com novas regulamentações as relações
entre capital e trabalho. A repressão policial para as manifestações
de descontentamentos da classe operária já não era aceita, assim
os governantes buscaram novas configurações na solução da ques-
tão social, principalmente da pobreza e das desigualdades sociais,
um tanto concentrada na área urbana.
Constata-se que os trabalhadores se beneficiavam com as
novas disposições do Estado na área social, representava tam-
bém a possibilidade de garantir a conquista de direitos sociais e
trabalhistas pelos quais lutavam no período. A política governa-
mental apresentava uma tentativa de harmonização dos interesses

173
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

dos atores sociais e uma estratégia de cooptação dos interesses de


seus dirigentes. Eram valorizados os empregados que conseguis-
sem negociar as suas relações de trabalho e os direitos de proteção
social eram garantidos através do contrato de trabalho. Algumas
concessões foram feitas aos trabalhadores. O cunho regulatório e
assistencialista vai se estendendo, a partir dessa lógica corporati-
va, fragmentada e seletiva, e com esse formato, estes direitos são
incorporados à Constituição de 1937 e na Consolidação das Leis
Trabalhistas (CLT) de 1943.
Esse modelo de proteção enfrentou muitas dificuldades e nos
anos 70 devido o desemprego estrutural e de massa, a instabilidade
e precarização das relações de trabalho provocadas pela crise do sis-
tema capitalista mundial chegou ao ápice da problemática. Na busca
de soluções desta realidade social, foram promovidos vários debates
tentando encontrar alternativas para o enfrentamento ao desempre-
go e à exclusão. As medidas continham políticas sociais de inserção,
políticas da cidade, políticas de emprego, assistência aos mais carentes
e ações políticas contra a exclusão (CASTEL, 2005, p. 71).
Numa tentativa de compreender a proteção social a partir do
contexto histórico geral, seria importante conceituá-la como uma
política pública, estatal, associada à noção de segurança e risco
social. Estes riscos sociais seriam as doenças, a velhice, desempre-
go, morte, enfrentamento à pobreza e às desigualdades sociais, a
equalização de oportunidades e melhoria das condições sociais da
população (JACCOUD, 2009, p. 58-60).
Numa ligeira leitura sobre as políticas públicas sociais do go-
verno brasileiro, constata-se que alargaram o seus limites e aban-
donaram o carater protetivo de suas ações, absorvendo um novo
padrão de políticas sociais de caráter mais amplo com suas diretri-
zes centralizadas na esfera federal e nas capacidades institucionais
locais dos estados e municípios principalmente nas ações como
saúde, educação, assistência social e trabalho. O reconhecimento

174
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

como um direito do cidadão somado aos avanços na garantia da


universalização destes direitos trouxe uma maior participação da
sociedade civil e conscientização. (Sampaio, 2010, p. 258).
Na Constituição Federal do Brasil, no art. 194, está definido
que: “a seguridade social compreende um conjunto integrado de
ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinado
a assegurar os direitos relativos à saúde, previdência e à assistência
social”. Apenas um princípio, mas capaz de marcar a mudança de
pensamento pois em 1993 com a publicação da Lei Orgânica da
Assistência Social (LOAS) a seguridade social conquistou sua for-
ça como política publica de Estado, conforme preceitua o Capítulo
I, artigo 1º, in verbis:

Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever


do Estado, é Política de Seguridade Social não contribu-
tiva, que provê os mínimos sociais, realizadas através de
um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da
sociedade, para garantir o atendimento às necessidades
básicas. (BRASIL, 1988).

As ações mais efetivas de combate à pobreza e às desigualda-


des sociais no Brasil ocorreram a partir da década de 1990, com
o movimento Ação da Cidadania Contra a Fome, Miséria e
a Vida, liderado pelo sociólogo Betinho. De acordo com Ribeiro
(2007), esse movimento fortaleceu a criação do Conselho Nacio-
nal de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) em 1994.
Tinha como objetivos o combate à fome, a miséria, a geração de
emprego e a produção de renda, a democratização da terra e o
assentamento dos produtores rurais, o combate à desnutrição ma-
terno-infantil bem como a criação de uma Política de Segurança
Alimentar e Nutricional para o Brasil.
Em 1995, esta Política de Segurança Alimentar e Nutricional
foi substituído pelo Programa Comunidade Solidária, que tinha

175
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

como objetivo melhorar a qualidade de vida da população mar-


ginalizada em decorrência dos males da pobreza. A partir do ano
de 2000, com o fortalecimento do mercado interno começaram a
trabalhar e incrementar a Ação da Cidadania contra a Fome, a
Miséria e pela Vida, e novas políticas públicas foram desfraldadas
com base num projeto de transferência condicionada de renda.
Em 2001, a uma nova forma de gestão descentralizada por
iniciativa do Governo Federal, foi apresentada uma grande ex-
pansão do Programa de Garantia de Renda Mínima para toda
criança na escola (PGRM), de 1997, que foi substituído pelo Pro-
grama Nacional de Renda Mínima vinculada à Educação – Bolsa
Escola. Foi criado também o Programa Bolsa Alimentação, o Bol-
sa Renda, o Vale Gás, dentre outros, além de expandidas as ações
do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil o PETI, criado
em 1996, em conjunto com o Benefício de Prestação Continuada.
Neste período, o destaque vai para o PETI, que veio substi-
tuir o Programa denominado de Bom Menino. A princípio ficou
restrito às áreas rurais, estendido posteriormente às regiões metro-
politanas, com mais de 250 mil habitantes. Seu objetivo era aten-
der às crianças e aos adolescentes na faixa etária de 07 a 15 anos,
envolvidas em atividades de trabalho consideradas insalubres, pe-
nosas, perigosas ou degradantes. Os beneficiários eram detectados
pela fiscalização do trabalho e eram oriundas de famílias com ren-
da mensal per capita de até ½ salário mínimo. Contemplava três
medidas: a) repasse financeiro às famílias, (Bolsa Escola) b) oferta
de atividades socioeducativas às crianças, denominada de Jornada
Ampliada compreendendo o lazer, esporte, cultura, reforço esco-
lar, em horário complementar ao da escola; c) Profissionalização
de um adulto da família do beneficiário, d) frequência mínima na
escola de 75% da jornada mensal. (Ferreira, 2010, p. 59-74).
Em 2003, mesmo com a continuidade dos Programas basea-
dos na transferência de benefício para as famílias carentes, foram

176
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

alteradas as exigências para receber os benefícios. A constatação


da situação de precariedade passou a ser feita através do cálculo da
renda média da família que deveria ser inferior a ½ salário míni-
mo, tendo sido descaracterizado a constatação dos agentes públi-
cos da situação de precariedade das famílias e do trabalho infantil.
O Programa Bolsa Família foi criado pela Medida Provisória nº.
132 de 20 de outubro de 2003, transformado na Lei nº. 10836 de 09
de janeiro de 2004 e regulamentado pelo Decreto nº. 5209 de 17 de
setembro de 2004. Representa à união dos procedimentos de gestão e
execução dos Programas Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Vale Gás
e Vale Alimentação, e o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil). A transferência de renda apontado no Programa é direta e
mensal. O Programa Bolsa Família prevê a construção de parcerias
na área de capacitação de geração de emprego e renda destinados às
famílias para que estas possam desenvolver atividades produtivas e
participar de políticas nas áreas da saúde e educação.
A Gestão do Programa Bolsa Família é descentralizada, e
as instituições estaduais e municipais assumem a dinâmica dos
trabalhos. A adesão dos municípios passa pela exigência da desig-
nação de um Gestor municipal com tarefas administrativas e da
criação da Instância de Controle Social (ICS) como conselho ou
comitê para realizar o acompanhamento do Programa. (GM/MDS
nº. 246 de 20 de maio de 2006).
Apesar dos relatórios contendo críticas ao sistema de ga-
rantia da Renda Mínima, principalmente a falta de uma gerência
central, a fragmentação das políticas públicas e principalmente a
argumentação de que favorecem as práticas de clientelismo e assis-
tencialismo que sempre caracterizou a história da cultura política
brasileira, a unificação dos programas federais de transferência de
renda, não foi empecilho à criação do Programa Bolsa Família.
Com a integração, permanece a modalidade de transferência de
benefício financeiro às famílias carentes em proteção social do

177
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

Estado. Um dado importante do programa é a exigência da titu-


laridade do cartão do benefício para a mulher, considerada pelos
agentes estatais a principal responsável pela família. O caráter
temporário do Programa Bolsa Família vem cercado de garantias
para não gerar direitos futuros, mas a administração central não
definiu o período de inclusão no Programa e nem provou uma mo-
desta autonomia para sobreviverem com seus próprios recursos. É
certo que falta uma análise mais crítica sobre o Programa.

Conclusão
Nestes tempos que vivemos numa busca incessante por mu-
danças, a pobreza brasileira detém o centro das atenções e mesmo
de inquietações diante da tomada de consciência de que no mun-
do globalizado e num mercado em tempo de acelaração econômi-
ca, dificilmente alcançará as regras de civilidade dentro dos seus
padrões societários.O mercado descarta empregados que não con-
seguem acompanhar a modernidade desejada dentro da competi-
vdade econômica e neste processo de modernização o emprego
não está na meta principal dos Governos.
Este é o grande universo da pobreza brasileira, milhares de
pessoas afastadas do mundo do trabalho, das garantias das rela-
ções do trabalho e entregue ao mundo da filantropia ou nos tem-
pos atuais nas políticas públicas e distribuição de rendas. Muito
mais do que retórica política ou palavras escritas, a Constituição
Federal de 1988 trouxe para o mundo das discurssões políticas e
suas ações a realidade da exclusão social no Brasil. A Lei Or-
gânica da Assistencia Social (LOAS) e a criação des Conselhos
de Assistência Social trouxeram muitos debates de como o Es-
tado deveria interferir neste fenômeno enraizado no Brasil o da
exclusão principalmente da questão do Rendimento Mínimo de
sobrevivência.O quanto seria este mínimo? Quem deve perceber e

178
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

qual o período ? Foram discurssões que motivou toda a sociedade


envolvida neste processo.
Hoje foi resolvido o empasse da renda mínima, a princípio
ficou definido que o beneficiário só teria direito se a sua renda não
superasse um quarto do salário mínimo. Quem está acima deste
valor per capita está excluído do contigente dos pobres brasileiros.
Assim, apesar da paisagem das cidades, as estatísticas anunciam
redução do contingente. É possivel que num tempo qualquer a
política de renda mínima do Bolsa Familia possa interferir no di-
reito à educação, mas sem uma mudança radical nas estruturas da
sociedade, e um combate acirrado às desigualdades sociais nada se
modificará a longo prazo. Isso não quer dizer que o Programa Bol-
sa Familia, deva ser abandonado; constata-se uma alteração po-
sitiva no processo de inclusão e uma melhoria no acesso à escola
e mesmo na permanência da criança e do adolecente nas escolas
públicas. Uma realidade constatada.
Observando o Programa, constata-se que é muito difícil e com-
plicado enfrentar um problema tão complexo e de muitas dimensões
como a pobreza, outro pormenor importante é a necessidade de uma
integração muito forte entre todos os níveis e setores governamentais
e suas ações específicas. Para enfrentar esta situação, requer ao longo
das implantações dos programas, ajustes dentro da realidade, princi-
palmente com os arranjos com as novas políticas públicas. Assim, é
possível afirmar, que há um caminho a ser percorrido pelo Programa
Bolsa Família e é claro, não existe uma fórmula pronta que irá abraçar
e resolver, de imediato, todos os problemas.

Referências

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183
Capítulo 10
Tecnologia, subjetividade e precariedade
do trabalho na era da globalização

Pablo Almada63
Gloriete Marques Alves Hilário64

Introdução
As crescentes relações entre a consolidação de um novo para-
digma tecnológico produtivo e a precarização do trabalho, geradas a
partir da era da globalização é o tema do presente artigo. Assim, a

63 Doutor em Democracia no Século XXI, pelo Centro de Estudos Sociais da


Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (CES-FEUC); Mestre em
Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo pela Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra (FEUC). Especialista em Estudos Literários e
Culturais (Estudos Alemães) pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
(FLUC). Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Professor do Departamento de Ciências Sociais, área de Sociologia, da
Universidade Estadual de Londrina (UEL). Contato: pabloera@gmail.com.
64 Doutoranda em Sociologia - Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo
pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC)/Centro de Estudos
Sociais (CES); Mestrado e especialização na mesma área e IES; Mestrado revalidado
pela Universidade de Brasília (UNB); Especialista em Direito Civil e Processo Civil
pela Faculdade de Ciências e Educação de Rubiataba (FACER); Graduação em
Direito pela Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO); Intercâmbio no âmbito
da graduação em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
(FDUC). Leciona na FACER, Faculdade Integrada de Goiás (FIG) e Arctempos. É
coordenadora de Iniciação Científica e TCC do curso de Administração da FACER.
É associada ao Núcleo de Estudantes Luso-Brasileiros (NELB) da Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa (FDUL). Endereço para acessar o Currículo Lattes: <http://
lattes.cnpq.br/6320904558134619>. E-mail: <glomalves@yahoo.com.br>.

185
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

hipótese de trabalho refere-se a como os aspectos sociais, políticos,


econômicos e culturais impulsionaram o uso crescente das Tecno-
logias de Informação e Comunicação (TIC´s), gerando importantes
consequências na subjetividade do trabalhador, o que tem resultado
na precariedade estrutural do trabalho. A tecnologia, associada, so-
bretudo ao uso da informática e posteriormente a tecnologia em rede,
aparece como principal elemento para a recolocação dos lucros pro-
dutivos, redefinindo os aspectos das relações de trabalho na globaliza-
ção. Portanto, a relação entre teletrabalho e precarização apresenta-se
como efetividade real do contraditório processo de acumulação de
capital, sistematizado na tecnologia enquanto mercadoria.

1. A globalização e o paradigma produtivo


Inicialmente, partimos por construir uma análise da globa-
lização enquanto fenômeno mundial atual, reconfigurando a so-
ciedade enquanto uma nova composição estruturante, que afeta,
desde uma mudança nos modos de produção às dimensões cultu-
rais mais amplas. Dessa forma, as concepções de Giddens (1990)
e Santos (2001) sobre esses fenômenos apresentam o debate sobre
os aspectos centrais das transformações relacionadas à produção,
bem como relacionando-os aos impulsos culturais, sociais e políti-
cos que permeiam a complexidade desse fenômeno.
Anthony Giddens, em The Consequences of Modernity, ini-
cia sua análise ao afirmar que “Modernity is inherently globalizing”
(GIDDENS, 1990, p. 63). Essa afirmação implica em deslocar o
foco central para esse fenômeno, de forma a não apenas atribuí-lo
meramente como uma conseqüência do desenvolvimento da so-
ciedade capitalista, mas também, se remeter à uma nova perspec-
tiva de análise que teria que considerar inúmeras especificidades
acerca desse novo desenvolvimento da sociedade. Na proposta de

186
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Giddens, a sociedade se articula de uma forma global, é preciso


partir da relação de tempo e espaço, que ordena a vida humana
dentro da sociedade. Essa alteração na relação de espaço e tempo
é percebida conforme se complexificam relações entre participa-
ções locais e interações através de distâncias. Nesse sentido, as re-
lações da modernidade assumem uma dinâmica maior (stratched)
entre o local e o global. Isso implica em pensar que esse novo mo-
delo de sociedade, global, se pauta em modelos de conexão entre
o local e o global, entre diferentes contextos sociais e regionais,
interligados, de diversas maneiras, por toda a superfície terrestre.
Esse modelo de globalização, também pode ser entendido como
uma intensificação das redes de relação, ligando diversas distân-
cias mundiais, cujo local é afetado com acontecimentos ocorridos
a distancia. Os estreitamentos das relações tempo e espaço, da-
das anteriormente de uma forma cartesiana, tempos referentes ao
deslocamento dentro de um certo espaço é rompida, de forma a
causar uma possibilidade de um acontecimento em tempo real ser
vivido tanto no local onde ele está acontecendo como em diversos
lugares ao mesmo tempo. Os laços econômicos seriam os primei-
ros a se expandirem, influenciando inúmeras regiões ao mesmo
tempo e da mesma forma, a romper com a idéia de que a economia
estaria limitada a um laço estatal rígido, mas que se autonomiza,
de forma a criar laços e influências por toda a parte do globo.
Giddens irá propor quatro dimensões de análise para a globa-
lização, política, econômica, militar e produtivista, revelando que,
a dimensão do Estado-nação, apresentado pelas teorias expostas
anteriormente, é apenas uma das vertentes existentes da globa-
lização e que nenhuma dimensão pode ser explicada em termo
de outra. A globalização, para Giddens possui quatro principais
dimensões, nomeadamente, dimensão política (Sistema do Esta-
do-nação), dimensão econômica (economia capitalista mundial),

187
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

dimensão militar (ordem militar mundial), dimensão produtivista


(divisão internacional do trabalho).
O que primeiro se pode notar nesse processo da globalização
estaria na capacidade que as empresas possuem para além do con-
trole dos Estados, ou seja, a dimensão econômica. Isso implica
que o poder político acaba se subordinando ao poder econômico,
na capacidade que as empresas ganham em controle de relações
políticas, não apenas em seus países, mas em outras regiões. Disso
resulta que os Estados-nações, que outrora eram “atores princi-
pais” na ordem política global, acabam por estar subordinados às
empresas, agentes dominantes da economia mundial.
Além disso, tomando que os Estados-nações se pautam na
economia capitalista para a geração de riqueza em seu interior, as
implicações dessa relação dos Estados-nação, na produção econômi-
ca, acaba por se refletir, na globalização, diretamente na relação da
soberania dos Estados, ou seja, a dimensão política da globalização.
Há, portanto, uma alteração da configuração existente dos limites
por fronteiras, que devem ser reconhecidas pelos outros Estados, a
fim de que haja uma inter-relação mais próxima entre eles. Por outro
lado, há também tendências contrapostas nessa lógica: centraliza-
ção dos sistemas de Estado e soberania do Estados particulares. Isso
quer dizer que, conforme uma ação concentrada de países reduz-se,
a soberania individual das nações pode, ao combinar seus poderes,
aumentar a influência sobre o sistema estatal. O exemplo do autor,
referente ao surgimento de novos Estados-nação, soberanos, princi-
palmente aqueles que outrora eram ainda colônias, se mostra como
um ganho da soberania dos Estados (em termos líquidos).
A ordem militar mundial é o próximo passo de análise, a ser
compreendido como a dimensão militar da globalização. Não seria
possível pensar a globalização sem relacioná-la com uma origem
militar global, da qual muitos países e principalmente, naquela
época, Estados Unidos e União Soviética, se militarizaram para

188
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

conseguir um aumento de alianças entre nações e por conseqüên-


cia, um aumento do poderio político. Dessa forma, conforme se
atinge uma globalização mais iminente, os países investem para
fortalecer suas capacidades militares. Por isso, a idéia da guerra
torna-se tão fundamental para o mundo globalizado, mais até do
que as guerras anteriores, justamente por operar uma disputa do
poderio e colocar em jogo não apenas questões políticas, a sobera-
nia do Estado-nação, mas também, a capacidade de produção da
industria e capacidade expansiva econômica.
Em quarto lugar, Giddens remete-se ao desenvolvimento in-
dustrial como dimensão da globalização. Isso implica considerar,
em primeiro lugar, que conforme expande-se a divisão do trabalho
social mundial, acaba por fundamentarem-se as diferenças entre as
industrializações entre as regiões do mundo. A perspectiva, após
a Segunda Guerra Mundial é de que torna-se cada vez mais difícil
para os países industrializados gerirem suas economias devido a
interdependência econômica global de acelerada. Com isso, passa-
-se a difundir mundialmente as tecnologias de desenvolvimento,
afetando aspectos da vida cotidiana e da interacção humana com
o ambiente material. Isso implica em alterações não apenas na for-
ma de produção, mas na relação homem-ambiente (sua forma de
alterar ou mudar o ambiente). Conforme essa lógica expande-se, é
possível compreender como se forma uma homogeneização mun-
dial em termos produtivos, com base no industrialismo, afetando
negativamente as relações pessoais e a ecologia do planeta, através
de alterações nas tecnologias de comunicação no planeta.
Giddens está, portanto, a perceber que esse aspecto socioló-
gico da globalização altera relações comunicativas globais, através
de uma descontinuidade nas capacidades antigas de comunicação.
Esse viés cultural, tendo os mass media como referencia, se pauta
na questão da difusão de informações por meios de comunicação
que podem interligar o mundo através de uma ruptura com as

189
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

percepções de tempo e espaço anteriormente dada. De fato, essa


capacidade cultural da globalização torna-se um fator de trans-
versalidade dentre as quatro dimensões da globalização referidas
anteriormente. A partilha de informações por indivíduos afasta-
dos das localidades dos acontecimentos, dá uma real dimensão de
homogeneidade global, a perder de vista, aquelas formas de espaço
e tempo que as comunicações seguiam até então.
Em suma, os aspectos relacionados por Giddens acerca da
globalização, nomeadamente, as dimensões política, econômica,
militar e produtivista, podem atribuir certa importância na veri-
ficação das atuais configurações globais. Nesse sentido, se podem
levantar inúmeras questões que deveriam ser melhor desenvolvi-
das. A primeira se remete a esse caráter cultural da globalização
como uma capacidade atribuída apenas aos “mass media”, igno-
rando outras formas de globalização cultural. Em segundo lugar,
ainda relacionada a questão primeira, a análise de Giddens im-
plica em pensar uma homogeneidade cultural que não se verifica
notavelmente em muitos âmbitos, ocorrendo por reduzir, ainda
que ampliando em grande parte a discussão sobre a globalização,
aspectos que implicariam em disjunturas sociais nocivas para a
fundamentação de identidades culturais ou mesmo de formas de
produção que não se colocam diretamente relacionadas com o ca-
pitalismo global e que, justamente por isso, acabam por entrar em
conflito com as formas vigentes da globalização. O que Giddens
ignora, de fato, é que esse movimento da globalização, apesar de
ser uma via fortemente construída, não é de mão única, ou seja, há
formas de resistência social que são geradas nos interstícios sociais,
com a intenção de reduzir os aspectos negativos da globalização.
É justamente através desses pontos que Santos (1994; 2001)
irá se remeter em sua análise. A apresentação teórica de Boaventu-
ra de Sousa Santos (2001) parte à entender o fenômeno da globali-
zação de uma forma um tanto mais complexa que a teorizada por

190
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Giddens, levando em conta, de forma geral, os mesmos elementos


mas apresentando uma perspectiva sólida e mais abrangente. San-
tos parte da idéia de que a globalização seria um fenômeno plural
(não há uma globalização, mas várias); de que sobre ela estão co-
locadas inúmeras falácias nas perspectivas práticas e vigentes; de
que ela engloba a relação entre práticas e instituições; e que, por
fim, ela implica em uma mudança nos modos de produção. De
modo geral, essas implicações iniciais podem ser elencadas devido
a capacidade de intensificação de fluxos sobre a superfície global:
fluxos de pessoas, econômicos, políticos e culturais; o que implica
em considerar que, mesmo dentro de uma perspectiva de ruptura
ou não das antigas configurações sociais, é certo que há uma nova
dimensão social, muito mais dinâmica e inter-relacionada, tendo a
idéia de fluxos, como central dentro desse processo.
Para Santos, a globalização pode ser entendida como um fenô-
meno “multifacetado, com dimensões políticas, culturais, religiosas,
jurídicas, interligadas de modo complexo” (SANTOS, 2001, p. 32).
Isso quer dizer que há uma combinação de fatores outrora entendi-
dos como separados, mas que tenderiam a uma homogeneização.
Na verdade, conforme se considera apenas esses elementos, não se
pode perceber que, haveria outros novos fatores a serem considera-
dos, como conseqüência ou mesmo, encadeados nesse processo mais
amplo. Portanto, Santos (2000, p. 32) entende que a globalização:

parece combinar a universalização e a eliminação das


fronteiras nacionais, por um lado, o particularismo, a di-
versidade local, a identidade étnica e o regresso ao co-
munitarismo, por outro. Alem disso, interage de modo
muito diversificado com outras transformações no sistema
mundial que lhe são concomitantes, tais como o aumen-
to dramático das desigualdades entre países ricos e países
pobres e, no interior de cada pais, entre ricos e pobres, a
sobrepopulação, a catástrofe ambiental, os conflitos étni-

191
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

cos, a migração internacional massiva, a emergência de


novos Estados e a falência ou implosão de outros, a proli-
feração de guerras civis, o crime globalmente organizado,
a democracia formal como condição política para a assis-
tência internacional, etc.

Para melhor entendimento, essa perspectiva pode ser des-


trinchada em dois pontos, uma perspectiva parcial e uma perspec-
tiva real da globalização. A perspectiva parcial levaria apenas em
consideração que a globalização promoveria uma universalização e
eliminação das fronteiras nacionais, criando uma possibilidade de
fluxos de integração social por todo o globo. Entretanto, conforme
se pode perceber, há também uma negatividade nesse processo, o
que estaria presente no que chamo de dimensão real, pois, tendo
em vista os aspectos da dimensão parcial, estes estariam por mas-
carar outros aspectos que carregam uma negatividade, relacionados
principalmente com o aumento das disparidades sociais, conflitos
étnicos, guerras civis, aparência de democracia global. Sobre essas
duas dimensões é que se pode compreender como podem ser produ-
zidas falácias sobre a globalização, apoiando-se sobre argumentos de
processo linear e consensual. A perspectiva parcial se apóia no que
o autor entende como uma forma consensual e, portanto, falaciosa
sobre a globalização. Dentro dessa dimensão, se pode elencar duas
perspectivas: a primeira, de que a globalização seria um processo es-
pontâneo, natural; a segunda, de que, essa possível homogeneização
resultaria em um desaparecimento das disparidades sócias, princi-
palmente entre os países do Sul. Essas duas falácias foram definidas
como consenso neoliberal ou consenso de Washington, estipu-
lando uma visão hegemônica da globalização, desconsiderando ele-
mentos contraditórios em seu interior.
Nesse sentido, Santos parte para uma análise das quatro glo-
balizações existentes (fenômeno plural), globalização econômica,

192
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

globalização social, globalização política e globalização cultural,


sobre as quais pretendo expor os principais argumentos.
A globalização econômica, para Santos, possui como traços
principais uma economia dominada pelo sistema financeiro com
investimentos em escala global; processos de produção flexíveis e
com distribuição horizontal; baixos custos em transportes; revolu-
ção em tecnologias de informação e comunicação, desregulação
de economias nacionais; preponderância das agendas financeiras
mundiais, com emergência do capitalismo transnacional em 3
frentes – norte-americano, japonês e europeu, e seus respectivos
países influenciados. Essa perspectiva econômica mundial gera
transformações nas perspectivas econômicas nacionais, desestru-
turando-as em beneficio de uma economia mundial. Os princi-
pais aspectos são relacionados à: abertura da economia ao merca-
do internacional; prioridade à exportações; redução de inflação
e dívidas públicas, orientadas pelo políticas monetárias e fiscais;
proteção a propriedade privada; privatização do setor empresarial
do Estado; redução da regulação estatal da economia; redução de
políticas sociais no tesouro do Estado, tornando-as medidas com-
pensatórias. O conflito que se coloca nessa perspectiva “consen-
sual” é de que haveria restrições externas a regulação estatal na
economia; direitos de propriedade internacional para investidores
estrangeiros; subordinação dos Estados- nacionais à organizações
econômicas multilaterais, como FMI, Banco Mundial ou OMC.
Isso tem uma implicação drática para os países periféricos, tendo
em vista que, necessitam de entrar em um jogo muito maior que
sua economia nacional pode agüentar e portanto, correm sérios
riscos de desestruturação econômica, aumento de disparidade e
ajustamentos estruturais constantes.
A outra forma de globalização ocorrente é a globalização social,
que possibilita a emergência de uma classe capitalista transnacional,
ultrapassando as classes nacionais de trabalhadores, os Estados na-

193
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

cionais da periferia e da semi-periféria. Essa nova classe tem como


fundamento as empresas multinacionais, que acabam por dominar
grande parte da produção mundial. Da mesma forma que emerge
uma nova classe, também aprofundaram-se disparidades sociais en-
tre a população mundial e principalmente os países do sul, percebida
na desigualdade entre os produtos brutos mundiais dos países, dis-
tribuição de rendimentos, concentração da riqueza, globalização da
pobreza, aumento de doenças e ineficácia de controle, principalmente
nos países do Sul. Isso revela a falta de cooperação presente, principal-
mente na distribuição de rendas dos países do Norte.
A Terceira forma existente de globalização seria a globalização
política, que tem como principal implicação a perda da centralidade
do Estado-nação, tornando-o subordinado à interesses econômicos
de multinacionais e transnacionais, ou seja, opera um impacto sobre
a capacidade regulatória do Estado. Isso implica que, as funções ou-
trora cumpridas pelo Estado, regulações econômicas e sociais, além
de regulação nos sistemas previdenciários, mercado de trabalho,
serviços sociais, entre outros setores, acabam por ser dissociadas do
estado. Como resume o autor, “o Estado tem de intervir para dei-
xar de intervir, ou seja, tem de regular a sua própria desregulaçao”
(SANTOS, 2001, p. 45). O exemplo apresentado pelo autor, sobre
os sistemas de telecomunicação reflete a perda de capacidade do
Estado em conseguir regular as demandas internas, sendo subme-
tidas às articulações internacionais de regulação. De forma geral,
isso implica na substituição do princípio do Estado pelo princípio
do mercado quanto a forma de regulação. O consenso hegemônico
implica em três componentes principais para os Estados em geral:
Estado fraco, ou Estado mínimo, reduzindo seu impacto sobre a so-
ciedade civil; consenso da democracia liberal, como apoio formal
e legal ao Estado fraco; e consenso da primazia do direito sobre o
sistema judicial, implicado num novo quadro legal para liberalização
do Estado. Além disso, há também a o crescente papel das formas

194
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

de governo supraestatal, sustentada pelas agencias políticas, econô-


micas e financiadoras, como o Banco Mundial, OMC e FMI.
A quarta forma de globalização seria a globalização cultural
que se pauta na homogeneização cultural, implicando na difusão
global de símbolos, meios de comunicação, ideologias, entre outros
aspectos. O primeiro ponto a ser relevado é a questão da imagi-
nação, que tanto pode criar um controle massivo do Estado, mer-
cado e interesses dominantes, como criar “sistemas coletivos de
dissidência e novos grafismos da vida colectiva” (SANTOS, 2000,
p. 51 apud APPADURAI 1999, p. 230). Também outra discus-
são levantada por Santos, remete-se à questão da cultura global, o
que implica discutir se haveria ou não, atualmente, uma cultura
global, enquanto um fator geral de veiculação cultural mundial.
Mesmo assim, pensar em uma cultura global remete-nos à uma
apreciação de pluralidade cultural dentro do sistema global num
processo de coexistência geral.

2. As tecnologias de informações e comunicações


e os impactos na subjetividade do trabalhador
A partir da globalização, o mundo do trabalho vivenciou
significativas mudanças e consequências nos processos produtivos
conforme se iniciou a crise estrutural do capital de meados do Sé-
culo XX. A tecnologia, associada, sobretudo ao uso da informática
e posteriormente a tecnologia em rede, apareceria como principal
elemento para a recolocação dos lucros produtivos, redefinindo os
aspectos globais das relações de trabalho.
A intensificação das relações entre Estados, bem como a
expansão das fronteiras geopolíticas e econômicas, conduziu aos
vários embates tecnológicos - em especial, desdobramentos da
competição da Guerra Fria, entre Estados Unidos e União Sovi-

195
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

ética que, já nos anos 1990, apontaria um efetivo protagonismo


aos chamados Tigres Asiáticos - abrindo caminhos para um ca-
pitalismo global, flexível e amplamente guiado pelo desenvolvi-
mento tecnológico-produtivo. Sua utilização e crescente interesse
conduziu a avanços inéditos na microeletrônica, na arquitetura de
redes e na robótica, além de alcançar níveis produtivos flexíveis
que pudessem desequilibrar a contratualidade fordista do “operá-
rio massa”, criando um ambiente de trabalho individualizado e
permanentemente mediado pela tecnologia avançada.
Tais desenvolvimentos foram quase sempre assegurados com
argumentos bastante otimistas, que passaram a estar presentes na
literatura sociológica da década de 1990, apontando o surgimento
de novos paradigmas sociais. O sociólogo espanhol Manuel Cas-
tells (2005), em sua obra intitulada A Sociedade em Rede foi
um dos primeiros a fazer tal referencia, ao considerar que o modo
informacional de desenvolvimento teria ganhado centralidade,
apontando para uma sociedade onde a revolução tecnológica do
informacionalismo configurou-se como a base do desenvolvimen-
to dessa sociedade. A chamada Revolução Tecnológica da Infor-
mação, ou seja, o uso de conhecimentos científicos para a repro-
dução, incluindo a microeletrônica, a computação, as telecomuni-
cações e radiodifusão, a optoeletrônica, e também a engenharia
genética, passaram a compor o escopo dessa revolução que, para
Castells, traria uma descontinuidade na economia, na sociedade e
na cultura, conforme esses componentes passam a ser extensões
da mente humana (CASTELLS, 2005, p. 51).
A finalidade dessas transformações significaria que a produ-
ção passaria a operar com baixos dispêndios, com boa qualidade
e utilização em larga escala de tecnologia, com intensificação da
competitividade global por uma corrida tecnológica e de gestão
entre as empresas e a possibilidade de criação de novas formas de
flexibilidade e de atuação em rede. Em termos gerais, essas foram

196
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

algumas das constatações que passaram a compor os discursos


de gestores e consultores, no sentido de valorizar o potencial das
novas tecnologias e a sua forma de utilização, bem como apon-
tar que a concorrência empresarial se faria no ramo da inovação
tecnológica. Não obstante ao objetivo concorrencial, algumas das
transformações para a evolução do nível de emprego passariam
a depender das decisões socialmente determinadas relativamente
aos usos das tecnologias, com a distribuição institucional do tem-
po de trabalho no ciclo de vida e do novo sistema de relações la-
borais. No âmbito do paradigma informacional, alterou-se a quan-
tidade e a qualidade do emprego, assim como a natureza, o tipo
de trabalho, a relação entre homens e mulheres e as condições de
trabalho. O novo sistema de produção passou a requerer uma nova
força de trabalho, em que os indivíduos incapazes de adquirir a
qualificação informacional poderão ser desvalorizados enquanto
profissionais ou excluídos do trabalho.
Neste sentido, Gisela Maria Bester e Gloriete Marques Alves
Hilário afirmam:

Muito mais do que factores excludentes, as TIC são usa-


das pelos próprios governos de muitos países com o argu-
mento da inclusão, enquanto instrumentos de reciclagem,
de formação e de treinamento aos trabalhadores, a fim
de que não sejam mais considerados infoanalfabetos. Se
isto depois acaba realmente inserindo ou reinserindo tais
trabalhadores nos mercados laborais já configura uma ou-
tra discussão, mas de falta de acesso às TIC essas pesso-
as, modo geral, não podem mais se queixar. E este novo
fenômeno insere-se nas chamadas políticas de activação
da economia doméstica, que a praticam tanto países de-
senvolvidos, tidos como ricos e com economias estabili-
zadas, mas agora em franca derrocada, como é o caso de
Portugal, quanto aqueles que por muito tempo pertence-

197
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

ram à classificação de países subdesenvolvidos, de terceiro


mundo, em vias de desenvolvimento, e agora tidos como
emergentes, detentores de economias aquecidas, como é
o exemplo do Brasil. Assim, antes de voltarmos a insistir
nesta situação paradoxal envolvendo as TIC, cabe um bre-
ve relato histórico panorâmico sobre o quadro econômico
de ambos os Países listados como exemplos antagônicos,
nele inserida a discussão sobre o mercado e as relações de
trabalho, o emprego, o desemprego, as flexibilizações [...].
(BESTER; HILÁRIO, 2014, p. 12).

No tocante aos aspectos mencionados acima, é preciso delimi-


tar então alguns processos produtivos que vieram a demarcar novas
características nas inter-relações entre tecnologia e produtividade
e, mais a frente, entre trabalho e subjetividade. O primeiro aspecto
diz respeito as alterações sociais promovidas pelas tecnologias de
informação e comunicação; o segundo, efetiva-se nos dispêndios da
divisão social do trabalho, conforme a subjetividade do trabalhador
passa a ser separada do produto final desse processo, especificando
e diferenciando determinadas atividades. A aplicação dos dois as-
pectos resulta numa maior polivalência do trabalhador, guiada pelas
noções de gestão inovadora da empresa enxuta, a chamada “liofi-
lização organizativa” (ANTUNES, 2003, p. 50). Por isso, já na dé-
cada de 2000, as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC)
passaram a ganhar maior destaque, trazendo às empresas a junção
entre a gestão e os processos produtivos internos, alcançando assim,
maior produtividade, redução do tempo de trabalho, seguidos pelo
aumento da intensificação do trabalho.
Convertidas em novo paradigma tecnológico-produtivo, as
TICs são redes informáticas e telemáticas que são aplicadas à pro-
dução, à gestão, finanças e serviços, com o sentido de integrar a
produção e a reprodução de mercadorias (ALVES, 2011). Essas
novas tecnologias de informação criam uma sociedade de aspecto

198
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

virtual e global, através de uma ampla circulação de informação.


O desenvolvimento das empresas empreendedoras dessa tecnolo-
gia permitiu com que os fatores tecnológicos e organizacionais se
combinassem de forma global, no sentido de compor a produtivi-
dade do capitalismo flexível.
A emergência das TIC´s se deu em um momento posterior
aos anos 1980, a partir da III Revolução Industrial, de caráter mi-
croeletrônico, onde a automatização adquiriu papel fundamental.
Com ela, foi introduzida a

Automação industrial e sua base microeletrônica, por meio


de maquinas-ferramentas de comando numérico, (MFCN),
sistemas CAD/CAM (Computer aided design/computer ai-
ded manufacturing), flexibilização da linha de montagem
com controladores lógicos e programáveis, robôs, sistemas
de máquinas transfer flexíveis, sistemas automatizados de
testes finais, sistemas de soldagem múltipla flexível, prensas
automáticas, etc. (ALVES, 2011, p. 70).

As redes informacionais é que seriam as bases de um novo


paradigma. A IV Revolução industrial se caracteriza basicamen-
te pelo uso de redes informacionais, da microeletrônica associada
à arquitetura das redes telemáticas. Nesse período, as máquinas
participam da produção e da reprodução de relações sociais, num
espaço próprio criado para essa relações virtuais, o ciberespaço.
Com isso, nesse período de revolução informacional, a mercadoria
passa a ser a mercadoria-informação, onde o insumo informa-
cional passa a ser produzido e reproduzido a partir da captura da
subjetividade do trabalho vivo.
Através da maior complexidade dessas redes exige novas re-
lações entre a técnica e sua organização. O novo modelo de má-
quina passa a criar a subjetividade do trabalho, criando e repro-
duzindo as habilidades cognitivas dos homens. Por isso, a relação

199
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

entre humanos começa a ser composta e mediada por máquinas


no ciberespaço. Nesse novo espaço, a virtualização passa a ser a
relação principal, da qual se pode observar no ciberespaço, crian-
do a metáfora da cooperação social, ou seja, a produção de situ-
ações e relações sociais entre os humanos, mas com determinados
distanciamentos sociais e sempre mediados pelas máquinas. Por
conta disso, reproduzem a sensação de um mundo pós-máquina
de sociabilidade. A forma de inteligência e racionalidade desses
processos tende a aprofundar um tipo de inteligência reflexiva, a
qual permite a concepção de objetos, reproduzindo as capacidades
humanas. Com isso, as alterações no processo de trabalho acabam
sendo fulcrais, já que as redes virtuais, onde circulam informações
e de constante comunicação passam a ser o local de trabalho, tan-
to direta como indiretamente.
O impacto das TIC no mundo do trabalho representou alte-
rações decisivas no processo de trabalho, incorporando diversos
elementos que determinam a capacidade de inovação, possibilitam
a correção de erros e a criação de efeitos de feedback, a nível da
execução, fornecem a infraestrutura para a flexibilidade e adap-
tabilidade através da gestão do processo produtivo (CASTELLS,
2005). A tecnologia de informação encontra-se redefinindo os
processos de trabalho, o emprego e a estrutura ocupacional. O
aumento das qualificações profissionais exigidas nos cargos requa-
lificados da estrutura ocupacional, segregaram mais ainda a força
de trabalho com base na educação, na medida em que correspon-
de a uma estrutura institucionalmente segregada. A mão-de-obra
desvalorizada (em particular nas posições iniciais de uma nova
geração de trabalhadores formada por mulheres, minorias étnicas,
imigrantes e jovens) está concentrada em actividades de baixa
qualificação e mal pagas, bem como no trabalho temporário e/ou
nos diversos serviços. A divisão resultante dos padrões de trabalho
e a polarização da mão-de-obra é socialmente determinada e for-

200
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

matada pela gestão do processo de reestruturação capitalista que


ocorre entre os níveis mais baixos da estrutura ocupacional.
Os avanços tecnológicos provocam mudanças extraordiná-
rias em nossa cultura, em nossos padrões de socialização, em nos-
sas instituições sociais e em nossas interacções sociais quotidianas.
Hoje em dia, com a globalização, a instabilidade marcante no mer-
cado de trabalho, a intensificação da flexibilização e o aumento
do risco de desemprego, tem sido factores constantes de perda do
poder de barganha das organizações sindicais, numa esfera global
(SANTOS, 2006). O desemprego atinge a classe trabalhadora dos
diversos países, e tem um impacto distinto entre jovens, mulhe-
res, mão-de-obra qualificada ou desqualificada. A flexibilização
do mercado de trabalho conduziu à ocorrência de novos estatutos
de trabalhadores dando lugar a uma diversidade de trabalhos pre-
cários; me parece que estes novos fomentos de flexibilização do
mercado de trabalho estão contribuindo para uma situação dura-
doura de formas precárias de actividade laboral. Com o uso destas
tecnologias torna-se possível trabalhar fora de um espaço físico
definido e delimitado, e a quilómetros de distância dos respectivos
colegas ou chefes (AMARO, 2008).

3. A precarização do trabalho em direção ao


trabalho “pós-humano”?
A temática das relações humanas e virtuais tem ganho, ao
longo dos últimos anos, importantes discussões relacionadas à so-
ciologia e ao direito. Base dessa relação está presente nas transfor-
mações socio-produtivas e na criação de marcos jurídicos que pos-
sam efetivamente regular tais dinâmicas. Embora haja uma cres-
cente tendência de se enfatizar o direito à propriedade (sobretudo
a intelectual), numa sociedade capitalista cada vez mais voltada à

201
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

garantia da segurança, a chamada sociedade do risco, é no mundo


do trabalho que se afunilam os crescentes problemas que isso pode
acarretar. Com isso, verifica-se que cada vez mais a relação entre
indivíduos e grupos sociais se dá pelas mediações proporcionadas
pelo uso da tecnologia, existentes nas mais distintas situações do co-
tidiano - seja desde a comunicação mais simples, cada vez mais en-
fatizado pelos grandes fluxos de informações globais e locais, até as
comunicações e armazenamentos de dados em macro-escala - o que
permite que a chamada sociedade da comunicação seja a nomen-
clatura mais adequada para identificar o conjunto desses processos.
Entretanto, essas conceituações se fazem limitadas conforme
se questiona a função, os meios, os agentes e as práticas do trabalho
na contemporaneidade. Em primeiro lugar, devido a ampla influ-
ência das teorias pós-industriais, se constituiu uma compreensão
de que a transição das sociedades industriais para sociedades pós-
-industriais - essas pautadas na interação comunicativa -, refletiriam
significativamente um momento de perda da importância do prole-
tariado industrial, de sua identidade e de participação no interior da
produção capitalista (GORZ, 1986; HABERMAS, 1989).
Tais perspectivas, em muito estiveram relacionadas aos pro-
cessos sociais referentes aos países centrais, onde a tecnologia
se constituiu um importante componente produtivo, mas não se
refere totalmente a periferia do capital, onde a produtividade in-
dustrial se demonstrou forte nas décadas seguintes, em especial
através de componentes de dependência tecnológica, efetivada
por uma economia de importações de bens tecnológicos e de
baixo investimento industrial nesses setores, o que favoreceu,
não apenas a constatação de que a classe trabalhadora não te-
ria perdido sua centralidadade no processo produtivo, mas que
a própria morfologia do trabalho estaria sendo alterada para um
modelo de maior precariedade estrutural (ANTUNES, 2003;
MARINI, 2000; POCHMANN, 2001).

202
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Em grande medida, a ênfase de processos geo-políticos de


escala global, trouxe a compreensão de facetas culturais, econômi-
cas, políticas e sociais, tais como a eliminação de fronteiras nacio-
nais, a emergência de um sistema financeiro global (dominado por
instituições como o FMI, Banco Mundial e OMC) - onde o Estado
para a interferir menos na economia nacional, deixando-se efeti-
var por políticas econômicas de estado mínimo, de privatizações
de empresas estatais e de amplo domínio do capital financeiro -,
além de opções culturais demarcadas pela homogeneização cultu-
ral e pela “aparência” de fim das desigualdades entre o Norte e o
Sul. Essas transformações contém, em seu interior, a construção
hegemônica de uma plataforma de economia política neoliberal
em seu interior, onde as desregulações do Estado se apoiam sobre-
maneira nas desregulações do trabalho - dos direitos conquistados
pela classe trabalhadora nas décadas de 1960/1970 - notoriamente
apoiados por conexões mais dinâmicas entre os mercados e pela
acumulação flexível do capital, apoiada em um modelo produtivo
de maior domínio dos mercados e seu conflito com os interesses
do Estado (HARVEY, 1989; CHESNAIS, 1996).
Sob a égide do neoliberalismo do final dos anos 1980 nos paí-
ses centrais e periférico-centrais, e no inicio da década seguinte na
América Latina e no Brasil, a classe trabalhadora foi diretamen-
te afetada em sua forma de ser, ou seja, sua morfologia, o que faz
com que haja ainda uma importante validade do conceito de classe
trabalhadora como proposto por Marx (ANTUNES, 2003, p. 101-
104). A noção de classe-que-vive-do-trabalho compreende que a
classe trabalhadora atual não seria apenas composta pelos trabalha-
dores manuais diretos: essa seria o núcleo duro do processo produti-
vo e da classe trabalhadora. A partir disso, os trabalhadores outrora
considerados como improdutivos (ou indiretamente produtivos) –
principalmente do setor de serviços, com relações com o público ou
com as empresas – passam também a fazer parte dessa designação,

203
Fabiana Savini Bernardes Pires de Almeida Resende
Gloriete Marques Alves Hilário/Manuel Martín Pino Estrada

apesar de não criarem diretamente valor, mas de estarem indispen-


savelmente subsumidos à totalidade do capital. Isso faz com que não
se possa considerar que todo trabalhador assalariado seria produti-
vo, pois os trabalhadores improdutivos também se relacionam com
a totalidade do capital. A partir dessa constatação, a ampliação da
noção de classe trabalhadora, a classe-que-vive-do-trabalho, passa
a incluir o proletariado industrial e rural, assalariados do setor de
serviços e o proletariado precarizado, o subproletariado, terceiri-
zados, trabalhadores da economia informal e desempregados. Mas
aqui não se incluiriam os gestores e funcionários do capital com
boas remunerações, ou especuladores financeiros, ou pequenos em-
presários ou a pequena burguesia proprietária.
A morfologia atual do trabalho criou também algumas conse-
quências, sobretudo, em termos de aumento do trabalho precário,
desregulamentado, excludente e de baixa remuneração, que pode
ser visualizado através dos seguintes pontos: (i) retração do binô-
mio fordismo/taylorismo, redução do proletariado industrial clássico
da era fordista; (ii) a emergência de um novo proletariado fabril e
de serviços, com formas precarizadas, terceirizadas, subcontratadas
e em part-time; (iii) o aumento significativo do trabalho feminino,
em part-time ou precarizado ou desregulamentado, com níveis de
remuneração mais baixos que os dos homens; (iv) expansão dos as-
salariados médios do setor de serviços, com crescente inter-relação
entre mundo produtivo e setor de serviços; (v) a crescente exclusão
dos jovens, que atingem a idade de ingresso no mercado de traba-
lho, mas que acabam por conseguir apenas trabalhos precários ou
ficam no desemprego; (vi) exclusão dos trabalhadores idosos, que
não conseguem reingresso no mercado de trabalho; (vii) expansão
do terceiro setor, por parte de empresas de trabalho voluntário e de
atividades consideradas “não-lucrativas”; (viii) expansão do traba-
lho em domicílio; (ix) a configuração transnacional do mundo do
trabalho (Antunes; Alves, 2004, p. 336-341).

204
O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

Efetivamente, a estrutura político-ideológica se transfigura sob


a aparência da racionalidade produtiva enquanto determinação da
lógica do capital. A ideologia desse processo constitui-se no controle
da subjetividade do trabalhador, pois, já sem as contrapartidas sa-
lariais e institucionais do fordismo, a nova configuração produtiva
advinda do toyotismo centrou-se nas contrapartidas do mercado (e
do Estado), criando um novo consentimento do trabalhador assa-
lariado (ALVES, 2011). Porém, a construção desse consentimen-
to depende inteiramente da disposição intelectual-afetiva que se
manifesta no trabalho do trabalhador e se concretiza na produção
de mercadorias (ALVES, 2011, p. 111-112). A exigência de qualifi-
cação, formação e de saberes torna-se o elemento diferencial para
que os trabalhadores consigam “intervir na produção [...] agregando
valor” (ALVES, 2011, p. 114), mas, consequentemente, não recaem
como benefícios subjetivos ao trabalhador em seu sentido emancipa-
tório. Ao se enunciar esse problema, verificam-se limites para além
da produção, nas lutas de classe da vida cotidiana, ou seja, nas rela-
ções político-econômico-ideológico-culturais.
Outra disposição que deve ser assinalada é a do trabalho
informacional (ANTUNES; BRAGA, 2009). O setor de telema-
rketing, que tem crescido significativamente ao longo dos últimos
anos de forma global, tendo grande impacto nas relações laborais
e na regulação do trabalho no Brasil. Configura-se, na maioria das
formas implementadas, como um espaço de crescente precarização
do trabalho, bem como revela que a atividade laboral do homem
cada vez mais se encontra subordinada ao maquinário tecnológico,
tornando-se “mero acessório vivo dessa maquinaria, meio de sua
ação” (p. 12). Assim, a qualificação profissional, que outrora passa-
ria a ser considerada como diferencial da estratificação social, em
sua generalidade, deixa de operar tal função aparente, cindindo a
antiga diferença entre trabalhadores qualificados e não qualificados
(ANTUNES; BRAGA, 2009). Por estas constatações se permite

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compreender que o conjunto da força de trabalho deve ser ampliada


para os mais diversos setores de assalariados, que vendem sua força
de trabalho, mas são desprovidos dos meios de produção. Isso leva
a ampliar a concepção de classe trabalhadora hoje, através de suas
fragmentações, heterogeneidades e complexidades.
Em meio a tensão entre Estado e Mercado, característica do
período neoliberal, a problemática do trabalho foi colocada em
segundo plano pela governabilidade neoliberal, ocasionando tan-
to a perda de referência do marco teórico dos estudos do traba-
lho. Além disso, fez-se com que as regulações jurídico-políticas
dos Estados se centrassem cada vez mais na resolução de conflitos
específicos, sem o reconhecimento da necessidade de garantia de
condições de trabalho propícias a garantia da subjetividade do tra-
balhador e de sua saúde física e mental, decorrendo, sobretudo, da
maior exploração e implementação de formas de trabalho guiadas
e subsumidas pelo mercado. Nesse contexto, o problema da pre-
carização do trabalho torna-se cada vez mais evidente, sobretudo
quando o confronto com a tecnologia, a informação e suas deri-
vações, como o teletrabalho, geram problemas concretos em seu
confronto com a a subjetividade do trabalhador (ALVES, 2011).
Na sociedade contemporânea, permeada de relações tecnológicas,
a canalização de sentimentos e expectativas no mundo virtual
conduzem a negação das relações concretas da vida humana, em
especial, quando vistas através de abordagens que enfatizam o uso
exacerbado da tecnologia, do desenvolvimento da inteligência ar-
tificial – mais apurada e racional que a inteligência humana – e
do convívio a partir de redes de relacionamento, as redes sociais,
compõem um cenário menos futurista do que o real.
Esse panorama propõe a necessidade de enfrentamento de
uma questão: quais os limites que a sociedade informatizada e
tecnológica impõe aos homens, em termos de relações sociais e
de direitos humanos? A centralidade do trabalho vivo, enquanto

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O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

escopo de sociabilidade e de relacionamento humano, é afetada


diretamente pela realidade tecnológica constituída do trabalho
morto, em sentido direcionado para o aumento da produtividade e
inversão do controle do homem sobre o maquinário. A efetividade
da organização laboral transcende as abordagens ficcionais como
a de Isaac Asimov e suas Três Leis da Robótica, que pretendiam
aprimorar a regulação da interpessoalidade de robôs e humanos.
Não obstante, as mudanças no processo produtivo criam realida-
des sutis, incorporadas pari passo no mundo do trabalho e que deli-
neiam a captura da subjetividade humana, através do aumento da
intensificação do trabalho justificado pela necessidade de desen-
volvimento tecnológico em sua forma de mercadoria, aumentando
a quantidade produtiva, mas amparada pela redução do contin-
gente de trabalhadores (ANTUNES, 2003; ALVES, 2011).
Dessa forma, a relação entre teletrabalho e precarização apre-
senta-se como efetividade real do contraditório processo de acumu-
lação de capital, sistematizado na tecnologia enquanto mercadoria.
Conforme a aceleração das estruturas históricas, impulsionada pela
constante substituição e pela inovação tecnológica, passa a ser o
mote organizativo e produtivo por excelência, a degradação do tra-
balho vivo é referencia nos processos de sociabilidades humanas.
Precisamente, foi a partir da década de 1970, perante a crise da acu-
mulação capitalista do fordismo/taylorismo, que as alterações imple-
mentadas na produtividade das empresas automobilísticas passou a
seguir essa lógica. A substituição do trabalhador por maquinas não
foi um processo isolado, mas uma constante que iria se expandir
para outros setores de capital produtivo, apresentando determina-
dos padrões de produtividade que seriam seguidos globalmente. A
crise estrutural do capital daquele momento promoveu alterações
que seriam desenvolvidas, ao longo dos anos, na negação do labor
humano e na afirmação do trabalho virtual e tecnológico, o qual,
passa a operar contundentes redimensionamentos na vida social.

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Um deles é a utopia do “pós-humano”, conforme o aparato robótico


passa a ser tratado de forma autônoma, como ocorre por parte do
Direito Robótico, enfatizando o princípio comunicativo e de sua re-
presentação humana pós-identitária.

Conclusão
As considerações finais a serem feitas, portanto, devem levar
em consideração que processo de globalização e sua relação com o
processo produtivo fomentou um desenvolvimento tecnológico au-
tonomizante, ou seja, de tomar a tecnologia, aparentemente, com
uma lógica própria e, desvinculada de seu fundamento produtivo.
Essa ideia encontra ressonância conforme a tendência produtiva
se afirma através da supressão do trabalho vivo e da valorização
do trabalho morto, ou seja, do trabalho alienado. Nesse sentido,
a historicidade atribuída à tecnologia implica em desconectar a
origem do fato, ou seja, de considerar a dinâmica de desenvol-
vimento tecnológico como um fenômeno positivo. Entretanto, é
necessário apontar que esse fenômeno não pode ser visto descon-
siderado dos desenvolvimentos contraditórios do capitalismo, ou
seja, de gerar, por um lado, a aparência da positividade sobre as
impossibilidades de realização e subordinação humana. A tecnolo-
gia, tomada como mercadoria, efetivamente é o ponto chave para
se compreender em que medida há uma necessidade imposta na
regulação de seus funcionamentos, sem reverter isso à preocupa-
ção humana, com o trabalhador - na medida em que a regulação
do patrimônio tecnológico acaba se tornando mais importante do
que a garantia de condições de trabalho que não sejam precárias.
Enquanto uma tendência mundial, a precarização do trabalho é
evidentemente o ponto chave de se entender como a garantia de
direitos aos trabalhadores está sendo reduzida a medida em que o

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O trabalho sob a ótica do Direito e da Sociologia

próprio estado Neoliberal se efetiva e entra em crise - de regula-


ção e autonomia dos mercados - criando um cenário catastrófico
para os direitos laborais. Assim sendo, novas emergências, como
o teletrabalho e o direito robótico devem ser refundados em uma
base humana e substancial, e não apenas como possibilidade de
regulação das (formas) mercadorias.

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