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REVISTA FÓRUM DE CIÊNCIAS CRIMINAIS - RFCC

ano 6 . n. 12 . julho/dezembro 2019 - Publicação semestral


12
ISSN 2319-0795

Revista Fórum de
CIÊNCIAS CRIMINAIS

RFCC
DOUTRINA e JURISPRUDÊNCIA SELECIONADA
Coordenação
Marcos Alexandre Coelho Zilli
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ano 6 - n. 12 | julho/dezembro - 2019
Belo Horizonte | p. 1-210 | ISSN 2319-0795
R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC

Revista Fórum de
CIÊNCIAS CRIMINAIS

RFCC
REVISTA FÓRUM DE CIÊNCIAS CRIMINAIS – RFCC
Coordenação Acadêmica
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R454 Revista Fórum de Ciências Criminais – RFCC. – • RVBI (Rede Virtual de Bibliotecas – Congresso Nacional)
ano 1, n. 1, (jan./jun. 2014)- . – Belo Horizonte:
Fórum, 2014- Coordenação editorial: Leonardo Eustáquio Siqueira Araújo
Capa: Igor Jamur
Semestral Projeto gráfico: Walter Santos
ISSN 2319-0795
Ilustração: Isabela Palmer
1. Direito penal. 2. Ciência criminal. I. Fórum.

CDD: 341.5
CDU: 343
Sumário

Editorial ...................................................................................................................... 7

DOUTRINA NACIONAL
A criminologia da libertação de Lola Aniyar de Castro e as contribuições de
Ricœur e Dussel
Mauro Guilherme Messias dos Santos.......................................................................... 13
1 A teoria crítica do controle social...................................................................... 13
2 A hermenêutica da crítica das ideologias.......................................................... 17
2.1 Função geral da ideologia................................................................................ 18
2.2 Função de dominação..................................................................................... 19
2.3 Função de deformação.................................................................................... 20
2.4 As quatro proposições de Ricœur..................................................................... 22
3 A necessidade filosófica, e não apenas política, de se escolher um lado............. 23
4 Considerações finais....................................................................................... 28
Referências................................................................................................................. 29

Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes


antecedentes
Gabriel Silva Costa...................................................................................................... 33
1 Introdução...................................................................................................... 33
2 As gerações (ou modelos) de leis de repressão à lavagem de valores................. 34
3 Algumas opções legislativas estrangeiras e os paradigmas internacionais........... 38
4 O contexto brasileiro: do modelo misto à extinção do rol de crimes
antecedentes................................................................................................. 41
5 A (des)proporcionalidade da inclusão de crimes menos graves e contravenções
penais........................................................................................................... 45
6 Repercussões de ordem político-criminal.......................................................... 49
7 Algumas propostas......................................................................................... 52
8 Conclusões.................................................................................................... 55
Referências................................................................................................................. 57

O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais


estrangeiros
Hélio Peixoto Junior..................................................................................................... 61
1 Introdução...................................................................................................... 61
2 The preliminary hearing no processo penal estadunidense................................. 62
3 L’udienza preliminare no processo penal italiano............................................... 66
4 Da instrução no processo penal português........................................................ 70
5 The Pre-Trial Chamber no Tribunal Penal Internacional........................................ 75
6 O juízo de admissibilidade no Processo Penal brasileiro..................................... 79
7 Conclusão...................................................................................................... 81
Referências................................................................................................................. 82

A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase


instrutória e prova da pretensão cível
Carlos Eduardo de Moraes Domingos............................................................................ 85
1 Introdução...................................................................................................... 85
2 Múltipla incidência normativa........................................................................... 87
3 Movimento de aproximação, separação e reaproximação das responsabilidades
civil e penal.................................................................................................... 88
4 Modelos de coordenação de jurisdições especializadas..................................... 91
4.1 Natureza jurídica do valor indenizatório fixado na sentença penal condenatória.... 95
5 Garantia síntese do devido processo................................................................ 97
6 A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória
e prova da pretensão cível............................................................................... 101
6.1 Ausência de procedimentalização pelo legislador............................................... 101
6.2 Fase instrutória e prova da pretensão cível no processo penal............................ 103
7 Conclusões.................................................................................................... 108
Referências................................................................................................................. 111

DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES
Os impactos do compliance efetivo na responsabilidade administrativa
objetiva da pessoa jurídica na Lei Anticorrupção
Bruno Martins Torchia................................................................................................. 119
1 Introdução...................................................................................................... 119
2 Lei Anticorrupção............................................................................................ 123
3 Compliance.................................................................................................... 125
3.1 Considerações iniciais..................................................................................... 125
3.2 Compliance anticorrupção e criminal compliance............................................... 127
3.3 Procedimento de formulação, implantação e consolidação do programa de
compliance..................................................................................................... 129
3.4 Efetividade do compliance............................................................................... 136
4 A responsabilidade objetiva e os impactos do compliance efetivo na aplicação
das sanções da Lei Anticorrupção.................................................................... 139
5 Considerações finais....................................................................................... 144
Referências................................................................................................................. 145

Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação


aos estudos históricos
Rodrigo Medina Zagni, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro.......................................... 149
1 De “um crime sem nome” à convenção da ONU................................................ 151
2 Os debates acerca da aplicabilidade do conceito onusiano às Ciências Sociais... 156
3 Para além do Holocausto e do normativismo jurídico.......................................... 163
4 Um repasse teórico, uma visita às fontes e os novos rumos dos “genocide
studies”......................................................................................................... 167
Considerações finais.................................................................................................... 172
Referências................................................................................................................. 173

ATUALIDADES
O Caso Riocentro e a evolução do crime contra a humanidade no Direito
Internacional dos Direitos Humanos
Flávio de Leão Bastos Pereira...................................................................................... 179
1 Contextualização............................................................................................. 180
2 Atentados do Riocentro: ideias iniciais.............................................................. 182
3 Atentados do Riocentro: crimes contra a humanidade?...................................... 184
4 O Brasil reconhece os crimes contra a humanidade e sua imprescritibilidade?
O diálogo com o Direito Internacional................................................................ 189
Referências................................................................................................................. 196

PARECERES
Parecer – Projeto de Lei Anticrime e a execução da pena após condenação
em segundo grau de jurisdição
Ives Gandra da Silva Martins........................................................................................ 201
Consulta ..................................................................................................................... 201
Resposta..................................................................................................................... 201

Instruções para os autores........................................................................................... 209


Editorial

Ainda sobre a presunção de inocência


Enquanto a culpa não for legalmente demonstrada, prevalece a presunção
de inocência. É o que proclama o direito internacional dos direitos humanos sob
a roupagem da Convenção Americana. A proclamação, imperativa de um lado, é
aberta de outro. Aos ordenamentos nacionais vinculados ao sistema interamerica-
no cabe definir o ponto final de vigência da presunção. O modelo brasileiro, como
se sabe, elegeu o trânsito em julgado. É a fórmula consagrada no texto constitu-
cional e que, aliás, ocupa o patamar das cláusulas pétreas. A mensagem é clara.
A afirmação processual da culpa, realizada no julgamento, não tem o condão de
afastar a presunção. É necessário o trânsito em julgado da sentença condenató-
ria. O trânsito em julgado confere ao julgamento o predicativo da definitividade e a
incompatibilidade lógica da manutenção daquela presunção.
A presunção de inocência confere um manto protetivo em favor daqueles que
são o alvo da persecução. Por sua abrangência e importância suscita inúmeros
efeitos processuais.
No campo probatório, fixa o ônus processual ao acusador. A este recai o
ônus de demonstrar a veracidade da tese acusatória e, portanto, o esquadrinha-
mento da certeza positiva com relação aos termos da imputação. É uma certeza
quanto aos termos da narrativa fática e quanto a sua leitura jurídico-penal (tipi-
cidade, ilicitude e culpabilidade). Assim, a dúvida é indutora da absolvição, pois
escancara o insucesso da atividade processual acusatória a qual se mostrou in-
capaz de retirar o manto protetivo da presunção de inocência. É a consagração da
conhecida fórmula in dubio pro reo.
Ao longo da marcha processual há, contudo, juízos provisórios e progressi-
vos da imputação. A admissibilidade da acusação ou mesmo a decisão de pronún-
cia são os exemplos mais evidentes. Sobre estas também se projeta a presunção
de inocência. Não como impedimento, mas sim como diretriz decisória dialógica
com o momento processual. Não se exige, portanto, a certeza positiva. É um
quadro de probabilidade dos termos da imputação. Não há, portanto, espaço para
o que se convencionou denominar de in dubio pro societate. Até mesmo porque
a consagração constitucional é a da presunção de inocência com o seu marco
regulatório sobre o estado de dúvida. Havendo dúvida quando da admissibilidade
da acusação ou da pronúncia, não há justa causa. A probabilidade envolve um
juízo afirmativo que se manifesta no quadro da justa causa, que, por sua vez, não

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EDITORIAL

se confunde com a dúvida. O recebimento da denúncia ou da queixa e a decisão


de pronúncia são afirmações quanto à existência de elementos sustentadores do
juízo progressivo de culpabilidade. A falta destes elementos implica rejeição da
denúncia ou da queixa (art. 395, III) e impronúncia (art. 414), respectivamente.
Outro importante aspecto que provém da presunção de inocência envolve
a sua relação com a prisão. Por óbvio, o princípio-garantia não a impede. Tanto
é verdade que o legislador constitucional trata da possibilidade da prisão e no
contexto, igualmente, dos direitos e garantias fundamentais. A prisão é admis-
sível no cenário do flagrante delito ou quando proveniente de ordem escrita e
fundamentada da autoridade judiciária competente (art. 5º, LXI). A proclamação
caminha em direção à consagração dos espaços de liberdades, o que, aliás, não
poderia ser diferente no âmbito dos direitos e garantias fundamentais. Ou seja,
salvo a prisão em flagrante – e os casos de transgressão militar –, toda e qualquer
prisão depende de prévia ordem judicial amparada pelas luzes das garantias da
motivação e do juiz natural.
Que ordem judicial é esta? Qual o seu conteúdo?
As respostas passam pela identificação das modalidades de prisão no pro-
cesso penal. Aqui reina a dicotomia prisão-pena e prisão processual. A primeira
decorre da execução do comando condenatório. A segunda lhe é anterior. Não há
traumas entre a prisão-pena e a presunção de inocência. Se esta cede no ponto da
definitividade da decisão condenatória, nada mais resta a não ser o cumprimento
do comando condenatório. É, portanto, a segunda modalidade de prisão aquela
que suscita as relações mais sensíveis com a garantia da presunção de inocência.
Uma prisão processual não pode vir amparada, tão somente, na afirmação
da prática delituosa ou da probabilidade de sua ocorrência. Se assim o fosse,
haveria mera antecipação da sanção penal, o que, por consequência, afrontaria a
presunção de inocência. Assim, mais do que o enredo da probabilidade, a prisão
processual deve vir sustentada no cenário da necessidade. Uma necessidade pro-
cessualmente justificada. Enquanto a probabilidade traduz-se no fumus comissi
delicti, a necessidade preenche o rótulo do periculum libertatis. A ideia passa pelo
reconhecimento dos perigos emergentes da liberdade do acusado. A liberdade
do indiciado e do acusado traz riscos concretos à integridade do processo e ao
cumprimento de suas finalidades. Eis aqui os requisitos da cautelaridade. Assim,
a afirmação da natureza cautelar da prisão processual é a fórmula que assegura o
bom equilíbrio da equação prisão processual/presunção de inocência.
Mas até quando uma prisão tem natureza processual?
A pergunta já foi respondida. Em nosso sistema, até o trânsito em julgado.
Assim, enquanto a decisão final estiver pendente de reexame pela via recursal não
há julgamento definitivo e, portanto, a prisão terá natureza processual e, como

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EDITORIAL

tal, adstrita aos requisitos da cautelaridade. Não há como interpretar de forma


diferente o trânsito em julgado. O conceito é processual. Os recursos impedem o
engessamento da decisão. Canalizam o inconformismo e concretizam a garantia
do duplo grau de jurisdição. Os recursos mantêm viva a relação processual, proje-
tando para o futuro o ponto da definitividade da coisa julgada.
É absolutamente legítima a discussão sobre a operatividade de sistema
de justiça criminal que reconheça vários degraus e etapas prévias ao trânsito
em julgado. O prolongamento demasiado da relação processual, mediante o uso
de sucessivos recursos, impacta, diretamente, a sensação de efetividade da lei
penal. Abre flancos de incerteza quanto à capacidade do Estado em resguardar
os bens jurídicos de maior relevância social. Frustra, por fim, os anseios das
vítimas diretas e indiretas. É natural que estas guardem a expectativa por justiça.
A frustração mantém abertas as escaras do conflito penal, o que, a longo prazo,
é altamente pernicioso.
O atual debate, contudo, está contaminado por leituras políticas que dificul-
tam, senão impedem, um diagnóstico preciso sobre o problema. Não há como
conferir outra interpretação para o trânsito em julgado. Tampouco é possível fa-
lar-se em conteúdo do trânsito em julgado específico para o processo penal e,
portanto, diverso de outros campos. Retóricas tais que são permeadas por sub-
jetivismos e orientadas pelos impactos dos contextos. Quando os contextos se
alteram, a interpretação também se altera. Basta um olhar sobre as alterações de
rumo dadas pelo guardião da Constituição nos últimos anos. Em poucos anos, o
Supremo Tribunal Federal alterou o seu entendimento sobre a execução imediata
de condenação afirmada em segundo grau de jurisdição. Ao menos o último en-
tendimento fez as pazes com a Constituição. De qualquer modo, o que haveria de
ser o fator catalizador de segurança jurídica tornou-se fonte de incertezas. Pior. As
incertezas gravitam em torno da liberdade.
Da mesma forma, não é possível alterar o conteúdo do princípio-garantia
por reforma constitucional. O princípio integra o núcleo duro dos direitos e das
garantias fundamentais. Não pode ceder diante da volatilidade do humor político.
O legislador não é onisciente. Não há fórmulas mágicas. Problemas complexos
não comportam respostas fáceis.
É possível que uma das chaves de solução passe pelo reexame das es-
truturas recursais. Recursos, como se sabe, não se confundem com as ações
impugnativas de caráter rescisório. Estas pressupõem o trânsito em julgado e fun-
damentam-se em circunstâncias excepcionais de admissibilidade. Se de um lado
confere-se ao sistema maior efetividade, de outro não se elimina o acesso à justi-
ça, direito igualmente fundamental. A questão, note-se, veio à tona há oito anos,
quando da chamada Emenda Peluso, denominação alusiva à proposta de emenda

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EDITORIAL

constitucional capitaneada pelo então Presidente do Supremo Tribunal Federal


e do Conselho Nacional de Justiça, o Ministro Cezar Peluso. O projeto, contudo,
não sobreviveu aos retalhamentos do processo legislativo. Descaracterizado, foi,
então, descartado.
O debate, além de importante, é próprio dos ambientes democráticos. Dotar
o sistema persecutório de maior eficiência é meta que deve ser perseguida. Não
se pode, contudo, compactuar com a restrição dos direitos fundamentais que
estão em diálogo com o direito internacional dos direitos humanos. Propostas
mirabolantes são produto dos impulsos e, portanto, sujeitas ao descarte consti-
tucional. É necessário equilíbrio e profundidade nas análises. Afinal, como já nos
advertia Fuller: “quando a paixão entra pela porta da frente, a sensatez foge pela
porta dos fundos”.

Marcos Zilli

10 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 7-10, jul./dez. 2019
DOUTRINA NACIONAL
A criminologia da libertação de Lola
Aniyar de Castro e as contribuições de
Ricœur e Dussel

Mauro Guilherme Messias dos Santos


Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará, pela qual, igualmente, graduou-se.
Especialista em Direito Processual Penal pela Uniderp. Professor visitante de Direito
Penal e de Direito Processual Penal nas especializações da Unifamaz e da Unama.
Professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal na plataforma digital Qconcursos.
Associado à Associação Internacional de Criminologia de Língua Portuguesa. Promotor
de Justiça do Ministério Público do Estado do Pará, com atuação exclusiva na área
criminal. E-mail: mauromessias@mppa.mp.br.

Resumo: A teoria crítica do controle social elaborada por Castro tem como função principal desmascarar
a ideologia presente nos sistemas de dominação latino-americanos, sobretudo no Direito Penal.
Todavia, pode a teoria crítica ter a pretensão de combater a ideologia presente no discurso jurídico-
penal, sem a própria teoria vir a conter uma carga ideológica? O objetivo geral da pesquisa é debater
um alinhamento entre a teoria de Castro, a hermenêutica das ideologias de Ricœur e a filosofia da
libertação de Dussel. Por sua vez, os objetivos específicos são investigar se a teoria de Castro possui
carga ideológica, a partir das advertências de Ricœur, assim como cotejar as bases filosóficas da
teoria crítica de Castro e o pensamento de Dussel, perquirindo se a teoria crítica possui uma filosofia
genuinamente libertadora. A pesquisa se justifica pelos resultados insatisfatórios apresentados por
teorias criminológicas alegadamente assépticas, e, para a realização de seus objetivos, emprega o
método dedutivo, por meio da revisão bibliográfica das obras dos autores citados, a fim de realizar uma
releitura da criminologia da libertação de Castro. As hipóteses do trabalho são a presença de conteúdo
ideológico na teoria de Castro e de colonialismo na base filosófica da teoria crítica.
Palavras-chave: Teoria crítica. Ideologia. Hermenêutica. Criminologia da libertação. Colonialismo.

Sumário: 1 A teoria crítica do controle social – 2 A hermenêutica da crítica das ideologias – 3 A


necessidade filosófica, e não apenas política, de se escolher um lado – 4 Considerações
finais – Referências

1 A teoria crítica do controle social


Uma das estruturas que tem acompanhado a Modernidade desde o seu
nascimento, e, desde lá, produzido exclusão, dominação e violência, é a estrutura
oficial do controle social, ou seja, o sistema penal monopolizado pelo Estado (LEAL,
2017, p. 46). Contudo, na América Latina – que não constituiu a Modernidade, por
ser “inferior”, nas palavras de Hegel (DUSSEL, 1992, p. 15-17) –, o controle social
assumiu uma roupagem própria.

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Mauro Guilherme Messias dos Santos

Elaborada por Lola Aniyar de Castro (2005, p. 65), a teoria crítica do controle
social visa à quebra da ideologia que construiu uma falsa consciência do crime
e do criminoso, desvelando, sobretudo na realidade latino-americana, as formas
ocultas de dominação. Castro (2005, p. 49) aplica o termo ideologia não em sua
concepção de projeto político, mas na sua acepção de falsa consciência, ocultadora
da realidade.
A teoria consiste na crítica à ideologia do controle social, tendo como função
principal desmascarar todo tipo de legitimação ideológica presente nos sistemas
de dominação, sobretudo na dogmática penal. Afinal, sempre se soube que o
discurso jurídico-penal latino-americano é falso (ZAFFARONI, 2001, p. 14), serve de
instrumento para aprofundar as diferenças sociais e justifica a intervenção punitiva
oficial em auxílio a privilégios minoritários (CASTRO, 2005, p. 33).
A criminologia de Castro (2005, p. 58) deita raízes no materialismo histórico
de Marx, responsável por fazer uma interpretação materialista do desenvolvimento
histórico da humanidade, entendendo-o como o resultado do enfrentamento de
interesses contrários. Marx busca desvelar o caráter ideológico que apresenta a
engrenagem capitalista como invocação dos ideais burgueses, para mostrar que
essa sistemática somente funciona sob pressupostos de violência e dominação.
Especialmente na América Latina, Castro analisa em detalhes o controle
social exercido pela centralidade em desfavor da periferia do poder. As relações
de produção baseadas na exploração do homem e geradoras de analfabetismo,
mortalidade infantil e grandes massas de marginalizados, são, entre outros, os
meios úteis com que se mantém a submissão, se fortalece o poder de uma classe
e através do qual o capital transnacional obtém elevados lucros (CASTRO, 2005,
p. 33).
Os representantes da criminologia crítica partem de um enfoque materialista
e estão convencidos de que só uma análise dos mecanismos e das funções reais
do sistema penal, no capitalismo contemporâneo, pode permitir uma política
criminal das classes atualmente subordinadas (BARATTA, 2004, p. 209). Com uma
criminologia entendida e praticada dessa maneira, a teoria crítica do controle social
almeja proceder à denúncia da estrutura do controle social atual na América Latina,
desnudando o seu caráter legitimador e apresentando às classes subalternas um
discurso transparente que estimule a consciência de classe e uma compreensão
das verdadeiras condutas dissonantes (CASTRO, 2005, p. 64).
Baratta (2004, p. 210), o criminólogo europeu mais influente na criminologia
latino-americana de vanguarda (CASTRO, 2005, p. 38), isto é, entre os anos 70-80
do século XX, denunciou que mais de 80% (oitenta por cento) dos delitos perseguidos

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A criminologia da libertação de Lola Aniyar de Castro e as contribuições de Ricœur e Dussel

nos países de capitalismo avançado são delitos contra a propriedade. Para ele, é
natural que as classes desfavorecidas desse sistema de distribuição de riqueza
estejam mais particularmente expostas a esse processo de criminalização fundado
no dinheiro. A dogmática jurídico-penal é incapaz de visualizar tais desigualdades.
Muito em razão disso, Baratta (2006, p. 169) já falava de um direito desigual. A
crítica mostra que o Direito Penal não é menos desigual que qualquer outro ramo
do Direito burguês: em verdade, é o direito desigual por excelência (BARATTA,
2006, p. 169). A esse respeito, eis um atual dado estatístico brasileiro, em recente
levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2017, p. 14):

Imagem 1
Percentual de presos provisórios por tipo de crime praticado

A partir dos dados citados – os quais, é importante frisar, levam em consideração


apenas a taxonomia do Código Penal brasileiro (BRASIL, 1940) e da legislação
esparsa, ou seja, não abordam especificamente a realidade socioeconômica
envolvendo cada caso –, é correto concluir que, dentre os processos judiciais de
criminalização em andamento no país, aproximadamente 70% (setenta por cento)
são regidos por um enfoque eminentemente materialista (roubo, latrocínio, furto,
receptação, extorsão, estelionato e tráfico de drogas), encarcerando-se sobretudo
as classes economicamente subalternas.
Não é novidade alguma afirmar que o Direito Penal, especialmente no Brasil
ou na América Latina, serve de instrumento para justificar o controle social em
auxílio ou proteção não só a detentores de capital, mas, também, de poder político.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 13-32, jul./dez. 2019 15
Mauro Guilherme Messias dos Santos

Segundo Leal (2017, p. 46), o controle protagonizado pelo sistema penal assume
formas nitidamente políticas, por ser resultado das necessidades do modo de
produção da vida social moderna e burguesa.
Tamanha a força do capital transnacional e a sua proteção estatal no Brasil,
especialmente via processos de criminalização primária (legislativa), se uma pessoa
meramente vender a outrem um automóvel alienado fiduciariamente em garantia,1
ainda que a este comunique a existência de alienação fiduciária, ficará, em tese,
sujeita à pena de reclusão, de um a cinco anos, e multa, caso não obtenha a
anuência do banco garantidor do bem móvel. Trata-se do crime instituído pelo
artigo 55 da Lei Federal nº 10.931/2004 (BRASIL, 2004), que incluiu o artigo
66-B, §2º, na Lei Federal nº 4.728/1965 (BRASIL, 1965).2 Hoje, com o advento
da mencionada Lei Federal nº 10.931/2004, tal negócio jurídico conta com uma
proteção estatal tamanha que uma pessoa pode ser presa em flagrante delito por
vender a terceiro, sem o conhecimento da instituição financeira garantidora, um
veículo alienado fiduciariamente.3
Portanto, os processos de criminalização são o norte da teoria crítica do
controle social. Todavia, como afirma Lola Aniyar de Castro (2005, p. 64), não se
deve ficar na simples denúncia – embora, para Novoa Monreal (1985, p. 31), ao
sair da denúncia para propor soluções práticas, a criminologia possa ficar sem
um chão epistemológico. Castro (1986, p. 39) responde a Novoa Monreal no
artigo El jardín de al lado, afirmando, categoricamente, que todo conhecimento
é prático e deve regressar ao mundo da práxis, de modo que a ciência não pode
estar desvinculada da luta social. Para Castro (2005, p. 66), a teoria do controle
social deve, inclusive na prática, isto é, num nível político, desmascarar todo tipo

1
A alienação fiduciária surge em 1965 como um instrumento de garantia destinado a permitir a difusão do
crédito direto ao consumidor, podendo figurar como credor apenas as instituições financeiras registradas
perante o Banco Central do Brasil. A aplicação mais comum do negócio jurídico acima ocorre na venda e
compra de veículos, mercado interessante e lucrativo a um sem-número de grupos econômicos.
2
Eis a redação do dispositivo legal em comento: Art. 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no
âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários,
deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil,
a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e
encargos. [...] §2º O devedor que alienar, ou der em garantia a terceiros, coisa que já alienara fiduciaria-
mente em garantia, ficará sujeito à pena prevista no art. 171, §2º, I, do Código Penal.
3
Por força do artigo 33, §2º, do Código Penal brasileiro (BRASIL, 1940), eventual condenação criminal
pode levar essa pessoa a cumprir a sua reprimenda nas casas penais brasileiras. Pior: a sua liberdade
será constrangida antes do seu patrimônio, pois, no Brasil, a atual maioria dos ministros do Supremo
Tribunal Federal entende, desde 2016, após o julgamento do habeas corpus (HC) nº 126.292/SP (BRASIL,
2016b), que a pena privativa de liberdade pode ser executada antecipadamente, logo após condenação
ratificada em segunda instância, mesmo que sujeita a recurso – ao contrário da pena de multa (e também
da pena de prestação pecuniária), que depende do trânsito em julgado. A seletividade penal fundada no
dinheiro, no grande capital, no poder político (sobretudo pela criminalização primária), não poderia ser
mais evidente.

16 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 13-32, jul./dez. 2019
A criminologia da libertação de Lola Aniyar de Castro e as contribuições de Ricœur e Dussel

de legitimação ideológica presente na dogmática penal e conscientizar a classe


subalterna da opressão que pesa contra si. Daí a proposta de Lola Aniyar ser
conhecida também como “criminologia da libertação”.
Contudo, pode a teoria crítica de Castro ter a pretensão de combater a
legitimação ideológica de dominação presente no discurso jurídico-penal, sem a
própria teoria vir a conter também uma carga ideológica?

2 A hermenêutica da crítica das ideologias


O trabalho de P. Ricœur concentra-se no estudo da hermenêutica, isto é, da
extração e da interpretação do sentido, especialmente, a detecção da ilusão. O
filósofo francês propõe uma crítica hermenêutica dos discursos ideológicos, sempre
presentes em todo conhecimento, por mais científico que ele seja (RICŒUR, 1990,
p. 9).
É verdadeiro dizer que, de há muito, o positivismo científico logrou êxito em
afastar, do saber físico, químico e matemático, a cosmovisão ou ideologias reinantes.
Assim não ocorreu, entretanto, com as teorias sociais, que, por não possuírem o
estatuto da positividade, dotado de um critério explicativo associado à capacidade
de prova da falsificação, sempre estiveram longe de um isento poder de denúncia
ideológica (RICŒUR, 1990, p. 78-80). Castro acena no mesmo sentido, ao defender
que inexiste tal neutralidade (1986, p. 39).
O filósofo francês P. Ricœur elabora uma crítica à ideológica pretensão das
ciências humanas de atingir a matematicidade, sempre ocultando ou dissimulando
o exercício da dominação ou da violência. Segundo o autor, todo saber sobre nossa
posição na sociedade, numa classe social, numa tradição cultural, numa história,
é precedido por uma relação de pertença sobre a qual jamais poderemos refletir
inteiramente. Antes de qualquer distância crítica, pertencemos a uma história,
a uma classe, a uma nação, a uma cultura, a uma ou mais tradições (RICŒUR,
1990, p. 92). Portanto, para uma criminologia que assume um nível político, que
se autointitula libertadora, parece ser imprescindível tomar uma posição, escolher
um lado – e Castro o faz, inclusive.
O filósofo argentino E. Dussel, ex-aluno de P. Ricœur, absorve do projeto
hermenêutico deste um embasamento ético e político, sobretudo a partir da obra
“A simbólica do mal”, em que o ex-professor de Dussel adentra num pensamento
filosófico tanto reflexivo quanto fenomenológico, isto é, numa filosofia “concreta”,
mais atenta aos desejos e às liberdades dos seres humanos em geral. Ainda não
seria o suficiente para Dussel, mas marcou um importante contato entre o professor

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 13-32, jul./dez. 2019 17
Mauro Guilherme Messias dos Santos

e o aluno acerca da tarefa filosófica de um “educador político”.4 Castro também


assume um embasamento político, uma práxis no bojo de sua teoria criminológica.
Para a autora, a criminologia crítica assume um compromisso e apenas o faz de
maneira militante (CASTRO, 1986, p. 39). Aqui, no tocante à tarefa de educadores
políticos, Dussel e Castro possuem grande afinidade.
Contudo, ao contrário da base filosófica da criminologia de Castro, que reside
na teoria crítica da Escola de Frankfurt e no seu método histórico dialético (CASTRO,
2005, p. 66), a filosofia de Dussel, que adota o chamado método “analético”, defende
a posição do dominado, do oprimido, numa proposta de libertação latino-americana
mediante um compromisso de transformação social na própria região (LEAL, 2017,
p. 59). Daí se falar na “filosofia da libertação” de E. Dussel, que, frise-se, difere
sobremaneira do embasamento filosófico da teoria de Lola Aniyar de Castro.
Antes de abordar a diferença citada, cumpre aprofundar o conceito de ideologia
abordado neste trabalho.

2.1 Função geral da ideologia


Uma visada crítica das ideologias é fundamental para uma compreensão do que
seja uma concepção hegemônica e universalista de direitos humanos, responsável
por legitimar práticas absolutamente opressivas e que, desde a sua aparição histórica
no Iluminismo do século XVIII, na Revolução Francesa e na Revolução Americana,
foi usada em grande medida como discurso e arma política em contextos muito
distintos e com objetivos contraditórios (SANTOS; CHAUI, 2013, p. 47).
Apesar de corajosas, as raras pessoas que questionam as práticas e justifi-
cativas do sistema social histórico são tidas como bastante temerárias, e o grupo
hegemônico, etnocêntrico, universalista, com certeza se voltará contra elas e com
frequência as punirá como aberrações que não se podem tolerar (WALLERSTEIN,
2007, p. 73). No discurso ocidental e dominante dos direitos humanos, há cada vez
menos espaço para localismos e atitudes decoloniais,5 cujos atores logo passam
a ser reputados como verdadeiros inimigos, inclusive dos direitos humanos.

4
Dussel reconhece em Ricœur uma filosofia de embasamento ético e político, mas nela aponta uma incom-
pletude: sua inaplicabilidade para o enfrentamento assimétrico entre várias culturas, uma dominante e
outras dominadas, a exemplo da destruição do mundo ameríndio pela conquista em nome do cristianismo
(DUSSEL, 1993, p. 140).
5
A preferência pelo termo “decolonial”, e não “descolonial” – suprimindo, portanto, o “s” –, busca marcar
uma distinção com o significado clássico de “descolonizar”. Quer salientar que, ao invés de meramente
desfazer o “colonial” ou revertê-lo, a visada consiste em superar o momento colonial, a face oculta da
Modernidade, numa atitude pós-colonial, portanto. Tal marca distintiva, contudo, não é unânime no meio
acadêmico-científico, daí a necessidade do presente esclarecimento terminológico, que, de modo algum,

18 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 13-32, jul./dez. 2019
A criminologia da libertação de Lola Aniyar de Castro e as contribuições de Ricœur e Dussel

A ideologia opera atrás de nós, mais do que a possuímos como um tema diante
de nossos olhos, e é a partir dela que pensamos, mais do que podemos pensar
sobre ela (RICŒUR, 1990, p. 70). O que a hermenêutica trata de trazer à luz não é
inicialmente o sentido do texto, mas o esclarecimento crítico de um entendimento
que o precede, justamente porque não existe tabula rasa do entendimento, ou seja,
há algo que lhe é anterior (GRONDIN, 2012, p. 48-50).
Gadamer critica fortemente o positivismo científico imposto às ciências humanas,
a suposta capacidade destas de descobrir a verdade operando uma fantasiosa e
fictícia exclusão dos pré-juízos do entendimento, em nome de uma concepção
de objetividade, herdada das ciências exatas no contexto histórico da Ilustração
(GRONDIN, 2012, p. 48-50). O filósofo alemão enxerga nos pré-juízos sobretudo
condições de entendimento. Não na forma de uma abertura ao subjetivismo ou ao
preconceito. Em verdade, para o autor, a interpretação deve a todo instante realizar
um exame crítico de seus pré-juízos, por meio do chamado “processo de revisão
constante”, precavendo-se contra o arbitrário dos preconceitos, distinguindo-se,
assim, os pré-juízos legítimos, aqueles que tornam possível o entendimento, daqueles
que não são legítimos e que cabe à crítica superar (GRONDIN, 2012, p. 48-50).
A ideologia, contudo, não permite essa clareza e amplitude de visada. Ela é
responsável por operar um estreitamento do campo com referência às possibilidades
de interpretação (RICŒUR, 1990, p. 71), o que o filósofo francês chama de “cegueira
ideológica”, isto é, um enclausuramento do campo interpretativo. É por isso que,
segundo Ricœur, a ideologia se exprime preferencialmente por slogans, de forma
semelhante, inclusive, à estratégia dos meios de comunicação para atrair leitores
e telespectadores a consumirem as manipuladas notícias da criminalidade, o
chamado “jornalismo verdade” (GOMES, 2014, p. 85).

2.2 Função de dominação


O que a ideologia interpreta e justifica, por excelência, é a relação de dominação,
a busca das autoridades por legitimidade (RICŒUR, 1990, p. 71-72). Toda pretensão
à legitimidade é correlativa a uma crença, por parte dos indivíduos, nessa legitimidade,
porém, a relação entre a pretensão emitida pela autoridade e a crença que a ela
responde é essencialmente assimétrica, sempre havendo mais na pretensão que
vem da autoridade do que na crença que vai à autoridade (RICŒUR, 1990, p. 72).
Sobrevindo uma crise de legitimidade, capaz de ferir o narcisismo penal – isto é,

tenta sobrepujar ou estigmatizar a expressão “descolonial”, mas, apenas, explicitar o porquê da preferên-
cia pela gramática “decolonial”.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 13-32, jul./dez. 2019 19
Mauro Guilherme Messias dos Santos

nas palavras de Salo de Carvalho (2008, p. 52), a vaidosa e exagerada convicção


do sistema criminal em sua eficiência e racionalidade –, tal relação se torna ainda
mais assimétrica, levando ruidosa preocupação ao poder punitivo e seus agentes.
Já se desvelou que o poder das agências judiciais é bastante limitado, o que
lesiona o narcisismo penal. Para inflá-lo, abriu-se a porta do fenômeno mais comum
no exercício do poder punitivo: a produção de emergências. Com elas, sustenta-se
que os mais sérios problemas sociais são resolvidos pelo poder punitivo, quando,
em verdade, a ameaça nuclear, a corrupção, a dependência de tóxicos, a destruição
ecológica, etc., ou não foram resolvidas, ou foram solucionadas por outros meios
(ZAFFARONI et al., 2003, p. 68).
Para garantir importância absoluta e dominação, o narcisismo penal não se
contenta com a factível diminuição da marginalização ou com o real combate à
corrupção: ele precisa erradicá-los, torná-los um zero, como se isso fosse sequer
possível ou já tivesse acontecido em algum lugar do mundo. São frases de efeito,
slogans, como o objetivo da República Federativa do Brasil consistente em erradicar
a marginalização (BRASIL, 1988), ou a promessa das Nações Unidas de erradicar a
corrupção (BRASIL, 2006a). O importante, aqui, para o narcisismo penal, é dominar
(função de dominação), apelar ao formalismo e ao dogma do Direito, ainda que
suas promessas sejam impossíveis de serem cumpridas.
Daí a relevância da advertência de Wolkmer (2015, p. 97), para quem a
constituição de uma cultura jurídica antiformalista e antidogmática, fundada nos
valores do poder comunitário e pluralista, está necessariamente vinculada aos
critérios também de uma nova legitimidade, de uma legitimidade desde baixo.

2.3 Função de deformação


Ricœur (1990, p. 73) empresta a ideia de inversão de que Feuerbach falou ao
se referir à cosmovisão não como um exemplo de ideologia, mas a ideologia por
excelência, operando a inversão entre o céu e a terra e fazendo com que as pessoas
andassem de cabeça para baixo. Segundo a metáfora, por meio da ideologia, o
processo de vida real deixa de constituir a base, para ser substituído por aquilo
que se diz, imagina, representa. A ideologia é esse menosprezo que faz tomar a
imagem pelo real, o reflexo pelo original (RICŒUR, 1990, p. 73).
Tamanha a profundidade e largueza da função deformadora da ideologia, que
mulheres, crianças e adolescentes, jovens negros, habitantes de assentamentos
urbanos informais, pessoas pobres consumidoras de estupefacientes não enxergam
o processo de criminalização que pesa contra elas próprias, não veem o fenômeno

20 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 13-32, jul./dez. 2019
A criminologia da libertação de Lola Aniyar de Castro e as contribuições de Ricœur e Dussel

da seletividade penal. Há um aceite geral, quase um acordo tácito acerca da


dominação, do discurso, da seletividade. “As coisas são assim porque elas são”,
pensam. Na verdade, as imagens são assim porque as coisas em si mesmas foram
deformadas por um poder, um grupo hegemônico, um interesse colonial.
A hermenêutica filosófica de Ricœur, então, propugna uma inversão da
inversão, uma crítica das produções ideológicas que procedem do real em direção
ao imaginário, do potencial criador de ilusões e fantasmagorias.
A esquizofrenia da sociedade atual a fez egoísta e delirante, uma sociedade
em que se teme não se sabe exatamente o quê, e na qual é preciso eleger um
bode expiatório, alguém que possa ser responsabilizado pelo sentimento de
insegurança coletiva. Surgem, então, inimigos, que são transformados em alvo de
uma política criminal desprovida de qualquer epistemologia, que se faz no dia a dia
sem método e sem vinculação aos valores democráticos de liberdade e igualdade
(GOMES, 2015, p. 279).
Um bom exemplo é o artigo 312 do Código de Processo Penal brasileiro (BRASIL,
1941), utilizado muito frequentemente como forma de antecipação da pena e discurso
do medo e do risco ao estilo jakobsiano. Num perfil eminentemente securitarista,
de tolerância zero e desconfiança sistemática, muitos agentes públicos tendem
a prender cautelarmente pessoas pelo fato de elas não oferecerem a chamada
“garantia cognitiva suficiente de um comportamento” (pressuposto filosófico do
Direito Penal do Inimigo),6 ou seja, tais autoridades identificam inimigos, sujeitos
“ruins”, e aplicam a estes a prisão preventiva com fundamento no impreciso
conceito de ordem pública.
Bauman (2009, p. 15-16) já desacreditou a chamada “garantia cognitiva
suficiente de um comportamento”, ao desvelar que a insegurança nas sociedades
pós-modernas (não solidárias e securitaristas) é caracterizada pelo medo dos
crimes e criminosos, efeito colateral da falsa crença de que seria possível obter
uma segurança completa – o que Todorov (2012, p. 63) denomina de “impulso
messiânico para a perfeição” –, devendo, para afastar-se o medo, sempre existir
um culpado ou, até mesmo, uma mera intenção criminosa.

6
Jakobs refundou o conceito de inimigo, aportando sobretudo nos filósofos Platão, Hobbes, Rousseau e
Fichte. Para o jusfilósofo de Bonn, só seria pessoa quem oferecesse uma “garantia cognitiva suficiente
de um comportamento”, ou seja, o indivíduo capaz de transparecer um modo de vida seguro, ideal, sem
riscos para a sociedade. De forma oposta, seria inimigo o indivíduo que, por meio de seu comporta-
mento, sua ocupação profissional ou, principalmente, mediante sua vinculação a determinados grupos,
descumprisse o seu papel no contrato social, abandonasse definitivamente o Direito, causando medo e
insegurança.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 13-32, jul./dez. 2019 21
Mauro Guilherme Messias dos Santos

A insegurança social passou a ser uma enorme demanda da opinião pública,


exageradamente inflada pelos meios de comunicação de massa, que enxergam no
medo e na exploração midiática da delinquência um produto altamente vendável
(GOMES, 2014, p. 97). A própria opinião pública é confundida com a opinião
publicada, uma dicotomia já denunciada por Maffesoli (2010, p. 20). Para o
autor, ao contrário da opinião pública, que é versátil e dotada de humanidade e
fragilidade, a opinião publicada é aquela que “continua a repetir exaustivamente
algumas ideias convencionais, lugares-comuns e outras verborragias [...], fácil de
engolir e, portanto, muito conveniente para a midiacracia que se acomoda numa
mediocridade generalizada”.
Bauman, portanto, revelou a maior parte da fama da base filosófica de Jakobs:
a exploração do medo. Medo de usuários de entorpecentes, de profissionais do sexo,
de habitantes de assentamentos urbanos informais, de “subversivos” defensores
de direitos humanos, de indígenas “antropófagos”.
Graças à função de deformação, de que trata este subcapítulo, o sujeito
moderno nem sequer está consciente da irracionalidade em que está imerso, ou
seja, está alienado de sua própria alienação (CASTRO, 2005, p. 60-61), agindo
mimeticamente e incorrendo numa flagrante esquizofrenia.

2.4 As quatro proposições de Ricœur


A partir das funções expostas alhures, Ricœur elabora quatro proposições
que evidenciam a natureza ideológica de toda e qualquer ciência social, apontando
as dificuldades propriamente epistemológicas encontradas pelas ciências sociais
em buscar uma matematicidade ou neutralidade. Tais dificuldades são devidas à
estrutura mesma de um “ser” que não se encontra jamais na posição de separar
de si mesmo a totalidade de seus condicionamentos, da sua pré-compreensão,
cuja estrutura precede e comanda.
Na primeira proposição de Ricœur, todo saber sobre nossa posição na
sociedade, numa classe social, numa tradição cultural, numa história, é precedido
por uma relação de pertença sobre a qual jamais poderemos refletir inteiramente.
Antes de qualquer distância crítica, pertencemos a uma história, a uma classe, a
uma nação, a uma cultura, a uma ou mais tradições. Ao assumir essa pertença
que nos precede, constata-se o primeiro papel da ideologia: a representação que
temos da coisa (RICŒUR, 1990, p. 92).
Em segundo lugar, para Ricœur, o distanciamento é a condição de possibilidade
de uma crítica das ideologias. Na esteira do pensamento de Gadamer, o intérprete

22 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 13-32, jul./dez. 2019
A criminologia da libertação de Lola Aniyar de Castro e as contribuições de Ricœur e Dussel

nunca está fixo no tempo, como as ciências matemáticas concebem. Existe uma
distância temporal entre o intérprete e o texto, um distanciamento histórico repleto
de efeitos da ação da história, uma verdadeira herança de acontecimentos, uma
tradição, viabilizados por um constante diálogo entre o passado e o presente,
capaz de distinguir os pré-juízos legítimos dos ilegítimos. Segundo o autor, todo
mundo conhece essa peculiar impotência de se julgar onde não dispomos de uma
distância temporal que nos forneça critérios seguros (GADAMER, 2012, p. 393).
Por terceiro, a ciência social jamais rompe seus vínculos, e insiste em cair
na ilusão de uma teoria crítica elevada ao nível de saber absoluto. É preciso notar
que esse interesse totalizante das teorias sociais funciona como uma ideologia,
buscando dominação material, manipulação aplicada às pessoas ou apropriação
de heranças culturais.
A quarta e última proposição de Ricœur consiste na meditação de que o
saber teórico-social está sempre em vias de se arrebatar à ideologia. Existe uma
pré-compreensão na qual a pessoa está lançada, e qualquer pretensão crítica será
apenas parcial, sem uma completa isenção do fundo ideológico.
Embora a teoria crítica do controle social proponha, política e epistemologi-
camente, mostrar um caminho criminológico viável para sinalizar à dogmática a
existência de ideologias na aplicação da lei penal, é preciso ressaltar, com apoio
na hermenêutica de Ricœur: a própria teoria crítica de Castro possui uma carga
ideológica, apropriando-se de pressupostos teóricos coloniais e eurocêntricos,
sobretudo, durante os processos de “importação cultural” na base do desenvolvi-
mento da criminologia crítica na América Latina nos anos 80 (SOZZO, 2002, p. 398).

3 A necessidade filosófica, e não apenas política, de se


escolher um lado
De fato, a pura denúncia não parece ser o melhor lugar para a criminologia. É
preciso escolher um lado, e a criminologia de Castro o faz – tal como Dussel, em
sua “filosofia da libertação”.
E. Dussel é tido como um filósofo contemporâneo que trabalha uma filosofia
ética e politicamente insatisfeita com a realidade de opressão sobre o povo
latino-americano.
A filosofia de E. Dussel propõe uma tomada de posição, a tarefa de assumir
uma ética e uma política no interior de uma filosofia latino-americana em favor
do dominado. Embora a Modernidade (o império do ego cogito, do eurocentrismo
cartesiano) não tenha incluído em sua gênese a América Latina, que era “inferior”,

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 13-32, jul./dez. 2019 23
Mauro Guilherme Messias dos Santos

na visão de Hegel (DUSSEL, 1992, p. 15-17), o filósofo argentino afirma o contrário:


o povo latino-americano, conquistado e massacrado, constituiu, sim, a Modernidade.
Em oposição a Hegel, Dussel (1992, p. 21) formula a hipótese de que a América
Latina, desde 1492, é, sim, um momento constitutivo da Modernidade, é a “outra
face”, a alteridade essencial da Modernidade, que não consiste apenas no ego cogito
(“eu penso”), no império da razão moderna, mas, também, e até mesmo antes, no
ego conquiro (“eu conquisto”), no império da violência contra mulheres acusadas
de serem bruxas, do índio como vítima sacrifical do europeu, a “bestialidade” a
ser ou evangelizada ou morta.
Para o filósofo argentino, o “Outro” não chegou a ser reconhecido como o
“Outro” pelo europeu. Esse “Outro” sequer pôde ser ele próprio. Na verdade,
esclarece Dussel, o “ameríndio” foi encoberto como o “Mesmo”, aquilo que os
europeus já eram desde sempre. Em outras palavras, o “Outro”, com a chegada do
europeu, nunca pôde ser ele próprio, logo, não foi descoberto, e sim, encoberto.
As Américas não foram propriamente descobertas, pois não permaneceram
distintas, não apareceram como “Outro”, e sim, transformaram-se no objeto em
que o “Mesmo” se projetou e encobriu. Para Dussel (1992, p. 35), o verdadeiro
significado de descobrir as Américas seria constatar a existência de territórios
continentais habitados por pessoas ao oeste do Atlântico, até então totalmente
desconhecidos pelos europeus, o que exigiria do intérprete o gesto de abrir o seu
horizonte de compreensão do mundo. Em outras palavras, descobrir consiste em
reconhecer o “Outro” como o “Outro”, sem “mesmificá-lo”, ou seja, reconhecer o
índio como o índio, sem “europeizá-lo”.
O discurso colonial como aparato de poder se apoiou, desde o princípio, no
repúdio das diferenças raciais, culturais e históricas, demonstrando toda a sua
agressividade quanto aos diferentes, assumindo uma forma de governabilidade que
passou a se apropriar, a dirigir e a dominar o “Outro”, isto é, o diferente do “Mesmo”
(DERRIDA, 2013, p. 123-125). Um colonialismo que gera passividade perante o
discurso de dominação. Como o escravo que, quando se revolta, fala a língua do
senhor, pois já é um conquistado, ou a mulher, que, quando se liberta, exprime-se
dentro da ideologia machista, pois já é uma dominada (DUSSEL, 1977, p. 7).
Para uma atitude decolonial, não basta falar apenas na luta entre detentores
de capital e negados, no interior da totalidade europeia. A América Latina possui
um longo episódio colonial, mais ocultador do que a negação da massa europeia.
Aqui reside a diferença entre a filosofia de Dussel e o embasamento filosófico da
“criminologia da libertação”. O nível epistemológico da teoria crítica do controle
social de Lola Aniyar de Castro elegeu o método histórico dialético fundado em

24 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 13-32, jul./dez. 2019
A criminologia da libertação de Lola Aniyar de Castro e as contribuições de Ricœur e Dussel

Hegel e na Escola de Frankfurt, ao passo que Dussel incorporou um método para


pensar a América Latina sob uma perspectiva libertadora, consistente numa visada
a partir do “Outro”, daquele que está fora da totalidade social, método que o autor
denomina “analético”.
Enquanto o pressuposto filosófico abordado por Lola Aniyar de Castro limita-se
à dialética negativa, isto é, negar o negado dentro de uma totalidade social, rejeitar
a opressão do grande capital sobre as massas europeias, Dussel trabalha um
conceito absolutamente estranho ao método histórico dialético: a “exterioridade”,
um campo além da dialética negativa, esta que é limitada à totalidade social (a
exemplo da totalidade europeia), que não compreende outras realidades, como
a do jovem negro latino-americano absolutamente ocultado, que luta contra uma
histórica segregação racial, mas sequer consegue se fazer enxergar na sociedade,
sequer faz parte da totalidade social. Esse jovem não habita a totalidade social:
ele habita algo mais oculto, a “exterioridade”.
A “exterioridade” representa, pois, a alteridade existente fora da totalidade
social, tendo em vista que o latino-americano sequer fez parte do processo de
construção do conhecimento eurocêntrico, e tampouco sua realidade foi objeto de
análise (LEAL, 2017, p. 57). Daí assumir-se que o pressuposto filosófico eleito
por Castro em sua teoria crítica é eurocêntrico, embora o seu nível político almeje
a libertação latino-americana.
Ainda que a teoria crítica de base materialista histórica proponha estar do lado
dos oprimidos, os oprimidos aos quais ela se coloca do lado não são os mesmos da
filosofia da libertação, não são os latino-americanos, na medida em que ainda não
eram conhecidos, e sobre os quais, portanto, repousava uma absoluta obscuridade
(LEAL, 2017, p. 57).
Portanto, para o filósofo argentino, o “Outro”, aquele que reside na “exterio-
ridade” de determinada totalidade social, não é apenas a pessoa que tenha fome,
integrante do público preferencial da seletividade penal patrimonialista, principal
objeto da repetida e genérica crítica do materialismo histórico copiada na América
Latina, como alertado por Máximo Sozzo (2002, p. 399). É, também, o indígena
massacrado, a mulher objeto sexual nas mãos do colonizador, o negro escravo, o
asiático da guerra do ópio, o judeu nos campos de concentração (DUSSEL, 1993,
p. 141). Têm-se, assim, claras diferenças entre o fundamento filosófico adotado
por Castro e aquele sustentado por Dussel.
A fim de exemplificar a diferença trabalhada anteriormente, veja-se a proble-
mática contemporânea do excessivo encarceramento feminino – que, até onde se
pode ver, não se encontra ligada à crítica econômica marxista nascida no século

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 13-32, jul./dez. 2019 25
Mauro Guilherme Messias dos Santos

XIX. Ao que parece, a organização social de gênero, absolutamente hierarquizante,


representa um instrumento de dominação social universal mais antigo do que os
elementos de classe.
A mulher latino-americana jovem, encarcerada, negra, mãe, não se encontra
meramente negada pela totalidade social, como ao estilo eurocêntrico do método
histórico dialético (adotado por Castro em sua teoria crítica). Essa mulher parece
se encontrar num âmbito ainda mais obscuro, mais além do método dialético, fora
da totalidade social, isto é, na exterioridade dusseliana.
Segundo o Levantamento de Informações Penitenciárias (INFOPEN, 2014, p.
5), vinculado ao Ministério da Justiça, em geral, as mulheres submetidas ao cárcere
são jovens, têm filhos, são as responsáveis pela provisão do sustento familiar,
possuem baixa escolaridade, são oriundas de extratos sociais desfavorecidos
economicamente e exerciam atividades de trabalho informal em período anterior
ao aprisionamento. Bem ainda, a maioria dessas mulheres ocupa uma posição
coadjuvante no crime, realizando serviços de transporte de drogas e pequeno
comércio; muitas são usuárias, sendo poucas as que exercem atividades de gerência
do tráfico (INFOPEN, 2014, p. 5).
Não obstante a expressiva participação de homens no contingente total de
pessoas privadas de liberdade no país, a população absoluta de mulheres encar-
ceradas no sistema penitenciário cresceu 567% (quinhentos e sessenta e sete por
cento) entre os anos 2000 e 2014, conforme a imagem a seguir (INFOPEN, 2014,
p. 10) – enquanto a população de homens encarcerados subiu 220% (duzentos
e vinte por cento) no mesmo período, seguindo a tendência geral de aumento do
encarceramento no Brasil:

Imagem 2
Evolução da população de mulheres no sistema penitenciário (Infopen)

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A criminologia da libertação de Lola Aniyar de Castro e as contribuições de Ricœur e Dussel

O quadro apenas suavizou após uma análise criminológica sobre a prisionização


feminina. Em 2016, no julgamento do HC nº 118.533/MS (BRASIL, 2016a), o
Supremo Tribunal Federal decidiu que o chamado tráfico privilegiado de drogas
não possui natureza hedionda. A consequência foi a libertação imediata de 45%
(quarenta e cinco por cento) das mulheres presas à época.
Por ocasião dos votos, a ministra Cármen Lúcia destacou que a Nova Lei
de Tóxicos (BRASIL, 2006b) impulsionou fortemente o crescimento da população
carcerária feminina. No período de 2005 a 2014, a quantidade de pessoas presas
condenadas por tráfico de drogas cresceu 340% (trezentos e quarenta por cento).
Quando se fez o recorte de gênero, percebeu-se que, no mesmo período, o número de
mulheres presas condenadas por tráfico de drogas aumentou em aproximadamente
600% (seiscentos por cento). Além disso, os dados mais recentes apontavam que,
à época, 68% (sessenta e oito por cento) das mulheres encarceradas no Brasil
estavam detidas por delitos de drogas, número proporcionalmente três vezes maior
que o de homens detidos pelos mesmos delitos (IBCCRIM et al., 2016, p. 8).
É de Bordieu (2012, p. 110) a lição de que a igualdade formal entre os
homens e as mulheres tende a ser dissimuladora. Segundo as informações e dados
estatísticos, as mulheres brasileiras, especialmente as jovens, mães e pobres, são
identificadas como receptivas ou prediletas às forças repressivas. Sim, o sujeito
moderno não difere grande coisa de seu antepassado medieval, a não ser no que
se refere à eleição de suas vítimas (HORKHEIMER, 1973, p. 126). O lugar das
bruxas, dos feiticeiros e dos hereges é ocupado agora por mulheres (sobretudo
jovens negras), pessoas pobres que consomem entorpecentes, habitantes de
assentamentos urbanos informais ou profissionais do sexo.
A igualdade formal, prevista, inclusive, na Constituição da República Federativa
do Brasil, ilude a muitos. Segundo o seu art. 5º, caput, “Todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]” (BRASIL, 1988), numa redação
inspirada sobretudo na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que foi
antecedida pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Ora, a mulher
fazia parte do “homem” referido nas declarações?
Hunt (2009, p. 17) duvida que Lafayette, aristocrata e militar francês com
ampla atuação na Revolução Francesa e incumbido de rascunhar a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e T. Jefferson, um senhor de escravos
incumbido de redigir a Declaração da Independência dos Estados Unidos, tenham
chegado a imaginar qualquer igualdade relativamente à mulher – ou ao escravo,
ou ao indígena. Convém referir que o principal autor da Declaração Universal
dos Direitos do Homem, René Cassin, um jurista francês laureado com o Nobel

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Mauro Guilherme Messias dos Santos

da Paz em 1968 pelas suas contribuições ao referido documento internacional,


deliberadamente retirou do artigo 12 de seu rascunho declaração à proscrição a
“trabalhos forçados”, mantendo apenas a vedação à “escravidão”, numa atitude
marcadamente colonial (CLAVERO, 2014, p. 36).
A igualdade formal referida nas Declarações aplicava-se a todos, inclusive a
mulheres? Para Douzinas (2000, p. 187) não: ela era de valor limitado para os não
propriamente “homens” (ou seja, homens sem propriedade), mais limitado ainda
para mulheres e completamente negado para aqueles definidos como não humanos
(colonizados, escravos e estrangeiros). Em Douzinas, fica claro que, mesmo no nível
formal, há uma ideologia hierarquizante de pessoas, uma estratificação que não
se resume à lei do dinheiro (valor limitado) e que pode atingir mais penosamente
a mulher (valor mais limitado ainda) e, pior, a mulher latino-americana (valor
completamente negado).
O problema contemporâneo do encarceramento massivo de mulheres no
país não está ligado à crítica econômica marxista nascida no século XIX. A mulher
latino-americana jovem, encarcerada, negra, mãe, não se encontra meramente
negada pela totalidade social (como ao estilo eurocêntrico enxergado pelo método
histórico dialético): ela parece se encontrar num âmbito ainda mais esquecido,
isto é, na “exterioridade” dusseliana ou no valor completamente negado de que
fala Douzinas.

4 Considerações finais
A teoria crítica do controle social de Lola Aniyar de Castro busca, acima de
tudo, analisar criticamente o funcionamento da estrutura de dominação oficial,
a saber, o sistema penal, revelando a carga ideológica presente no discurso
dogmático. Propostas aptas a mostrar à dogmática a existência de ideologias têm
a possibilidade de diminuir, em alguma medida, o recrudescimento da aplicação
da técnica jurídico-penal.
Contudo, a presente pesquisa considera que, na linha do pensamento de
P. Ricœur, as teorias sociais possuem, inarredavelmente, uma carga ideológica,
decorrente da impossibilidade de separar do pensador a totalidade de seus
condicionamentos, da sua pré-compreensão, cuja estrutura precede e comanda.
Assim, a pretensão da teoria crítica de Lola Aniyar em apontar ideologias na
dogmática penal carrega consigo, necessariamente, um conteúdo ideológico, pois
não há pensadores sem amarras, sem pertença, sem efeitos da história – Castro,
por exemplo, integrou movimentos sociais e exerceu cargos político-estatais por
vários anos.

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A criminologia da libertação de Lola Aniyar de Castro e as contribuições de Ricœur e Dussel

Bem ainda, note-se que o nível epistemológico da teoria crítica do controle


social de Lola Aniyar de Castro, fundado sobretudo em Hegel e na Escola de
Frankfurt, possui incongruências respectivamente à realidade latino-americana,
como a brasileira. A crítica do materialismo histórico incorporada por Baratta e
seus sucessores não deve ser “retalhada” e aplicada indiferentemente aos povos
latinos de forma “reestilizada” e descontextualizada. É preciso reinterpretar Marx
aos olhos latino-americanos, e não ao tempo das massas europeias (ZAFFARONI,
1988, p. 74-75).
Nesse passo, a partir da filosofia da libertação de E. Dussel, a pesquisa
conclui que a teoria crítica do Lola Aniyar pode receber as contribuições de um
método decolonial, como o método analético dusseliano, para, sem heranças
culturais eurocêntricas, assumir uma atitude ética e política compromissada com
a região latino-americana e com problemas sociais insuscetíveis de abordagem
pelo materialismo histórico marxista.

Lola Aniyar de Castro’s criminology of liberation and the contributions of Ricœur and Dussel
Abstract: The critical theory of social control elaborated by Castro has as main function to unmask
the ideology present in Latin American systems of domination, especially in criminal law. However, can
critical theory have the pretension of combating the ideology present in the criminal-legal discourse,
without the theory itself containing an ideological charge? The general objective of the research is to
discuss an alignment between Castro’s theory, Ricœur’s hermeneutics of ideologies and Dussel’s
philosophy of liberation. On the other hand, the specific objectives are to investigate if the theory of
Castro has ideological load, based on Ricœur’s warnings, as well as to compare the philosophical
bases of Castro’s critical theory and Dussel’s thinking, inquiring whether critical theory possesses a
genuinely liberating philosophy. The research is justified by the unsatisfactory results presented by
allegedly aseptic criminological theories and, in order to achieve its objectives, employs the deductive
method, through a bibliographical review of the authors works cited above, in order to re-read Castro’s
criminology of liberation. The hypotheses of the work are the presence of ideological content in Castro’s
theory and of colonialism on the philosophical basis of critical theory.

Keywords: Critical theory. Ideology. Hermeneutics. Criminology of liberation. Colonialism.

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Mauro Guilherme Messias dos Santos

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Recebido em: 21.06.2019


Aprovado em: 27.08.2019

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

SANTOS, Mauro Guilherme Messias dos. A criminologia da libertação de Lola


Aniyar de Castro e as contribuições de Ricœur e Dussel. Revista Fórum de
Ciências Criminais – RFCC, Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 13-32, jul./
dez. 2019.

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Lavagem de dinheiro: uma análise
crítica da extinção do rol de crimes
antecedentes

Gabriel Silva Costa


Mestre em Direito Penal (USP). Especialista em Direito Penal Econômico (Universidade
de Coimbra – IBCCRIM). Especialista em Direito Processual Penal (EPM). Graduado em
Direito (USP). Analista Judiciário – Oficial de Gabinete (JFSP-TRF3). E-mail: gabriel.silva.
costa@usp.br.

Resumo: O presente artigo busca analisar a extinção do rol de crimes antecedentes à lavagem de valores,
levada a efeito pela Lei nº 12.683/12, percorrendo brevemente o contexto nacional e internacional
de seu surgimento, bem como as gerações ou modelos legislativos que a precederam, com o fim de
permitir um aporte crítico sobre a alegação de desproporcionalidade existente entre diversas hipóteses
de infrações penais prévias, com destaque para os crimes de menor potencial ofensivo e contravenções
penais, e a sanção cominada ao delito de branqueamento de capitais. Volta-se o estudo, igualmente, à
investigação de possíveis consequências de ordem político-criminais decorrentes da supressão da lista
de crimes antecedentes, tais como o óbice à suspensão condicional do processo ou à transação penal
em diversos delitos prévios, bem como a banalização do sistema de persecução penal, tanto em razão da
sobrecarga como pela perda do foco na grande criminalidade. Por fim, apontam-se algumas proposições
no sentido de evitar os referidos prognósticos e preservar a razoabilidade e a proporcionalidade entre o
apenamento aplicado ao delito prévio e à lavagem de dinheiro.
Palavras-chave: Lavagem de dinheiro. Rol de crimes antecedentes. Modelos legislativos. Bem jurídico.
Proporcionalidade

Sumário: 1 Introdução – 2 As gerações (ou modelos) de leis de repressão à lavagem de valores – 3


Algumas opções legislativas estrangeiras e os paradigmas internacionais – 4 O contexto brasileiro: do
modelo misto à extinção do rol de crimes antecedentes – 5 A (des)proporcionalidade da inclusão de
crimes menos graves e contravenções penais – 6 Repercussões de ordem político-criminal – 7 Algumas
propostas– 8 Conclusões – Referências

1 Introdução
Dentre as principais alterações trazidas pela Lei nº 12.683/12, uma das mais
relevantes e fundamentais foi, sem dúvida, a extinção do rol de crimes antecedentes
à lavagem de capitais, projetando a legislação brasileira à denominada terceira
geração de leis de combate ao branqueamento de valores, expressão que será
esclarecida ao longo da primeira parte deste trabalho.1

1
Como apontam Weber e Moraes (2013, p. 325), “a origem da expressão ‘lavagem de dinheiro’ remonta
às organizações mafiosas norte-americanas, que, na década de 1920, aplicavam em lavanderias e lava-

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019 33
Gabriel Silva Costa

Nessa toada, o presente artigo objetiva analisar, de forma um pouco mais detida,
essa opção legislativa e seus impactos sobre a justiça criminal, especialmente no
que tange à inclusão de contravenções penais e delitos de menor potencial ofensivo
dentre os passíveis de ensejar a lavagem de dinheiro.
Assim, com esse escopo em mente, serão investigadas a eventual violação
à proporcionalidade existente ao apenar de forma mais severa situações menos
graves, bem como as repercussões político-criminais dessa abertura, tais como a
ampliação da incidência de gravosas normas cautelares penais e o possível impacto
na perspectiva do desencarceramento promovido por alguns recentes dispositivos
processuais penais.
Não obstante, antes de iniciar o tema central deste estudo cabe percorrer,
ainda que brevemente, a construção histórica dos modelos de legislações voltados
à repressão do crime de lavagem de dinheiro e como tal evolução culminou na
extinção do rol de crimes antecedentes pela lei brasileira.2

2 As gerações (ou modelos) de leis de repressão à lavagem


de valores
Como observa Delgado, talvez uma das características mais peculiares do
crime de lavagem de dinheiro seja a exigência de que a ele se anteceda a prática
de um fato delitivo do qual se originem os valores a serem branqueados (2012,
p. 87). Nessa ordem de ideias, sequer há de se falar em lavagem de dinheiro se
antes não se constatar a origem espúria dos valores obtidos, tratando-se, em
síntese, do limite entre uma conduta que constitui ou não o delito de blanqueo de
capitales (DELGADO, 2012, p. 87).
Nesse sentido, apresenta-se como requisito imprescindível a existência de
nexo causal entre o objeto da lavagem e o delito prévio (CORDERO, 2014, p. 122),3

rápidos o capital obtido com atividades criminosas. Esses negócios movimentavam dinheiro rapidamente,
o que facilitava a mistura do capital legalmente ganho com o advindo de atividades ilícitas, promovendo
a desvinculação dos recursos provenientes das atividades criminosas. Em razão de caracterizar a trans-
formação do dinheiro sujo em dinheiro limpo, geralmente são utilizados termos que pressupõem limpeza:
Portugal utiliza o termo branqueamento de capitais; a Espanha adota blanqueo de capitales; a França
segue a expressão blanchiment d’argent; os Estados Unidos empregam money laundering; a Argentina
assume a denominação lavado de dinero; a Alemanha refere-se a Gelwäsche; a Suíça utiliza o termo blan-
chiment d’argent; a Itália segue a designação riciclaggio di denaro” (no mesmo sentido, BRAGUÊS, 2009,
p. 7). Para os fins deste estudo, as referidas expressões serão utilizadas alternativamente.
2
Para uma análise do combate à lavagem de valores como política pública, vide percuciente estudo elabo-
rado por Francisco de Assis Campos da Silva (2006) e, mais especificamente, como política criminal, a
obra organizada por Miguel Bajo Fernández e Silvina Bacigalupo (2009).
3
“Ha de existir, como requisito imprescindible, un nexo entre el objeto del lavado y un delito previo. Si no
está presente ese nexo o unión o si se rompe por alguna circunstancia, no existe objeto idóneo para el
delito de lavado de activos. Cuando existe dicha conexión se dice que los bienes están ‘contaminados’ o

34 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019
Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes

razão pela qual a doutrina aponta o delito de lavagem de dinheiro como um crime
acessório, derivado, parasitário ou referente (MENDRONI, 2013, p. 61; BALTAZAR
JÚNIOR, 2015, p. 1.091; PRADO, 2007, p 409). Em outras palavras, cuida-se de
uma infração penal que depende da ocorrência de outra figura típica para o seu
aperfeiçoamento (TEBET, 2012). “Em verdade, a infração penal subjacente será
tratada como um elemento normativo do delito de branqueamento de capitais”
(WEBER; MORAES, 2013, p. 326).
Postas essas balizas, surge a questão fundamental sobre quais crimes, ou
classes de delitos, são aptos a gerar bens suscetíveis de serem branqueados
(CORDERO, 2014, p. 122). De Carli, ao analisar o tema, afirma que a trajetória da
criminalização da lavagem de dinheiro é uma história de expansão em dois sentidos
(2014, p. 08). No primeiro eixo, que denomina de expansão horizontal, observa-se
a proliferação de legislações antilavagem similares por vários países do mundo
com o fim de criar um regime global de proibição (DE CARLI, 2014, p. 08).4 Por
sua vez, em uma segunda direção, ocorre, de acordo com a autora, uma expansão
vertical, que visa aprofundar o âmbito de aplicação das normas de repressão à
lavagem de capitais, originando as chamadas legislações de primeira, segunda e
terceira gerações (DE CARLI, 2014, p. 08).
Ante o interesse para a compreensão do objeto deste artigo, merece apreciação
mais detida a nominada expansão vertical e suas três gerações (ou modelos) de
lei de combate ao branqueamento de valores.
Como aponta Cordero, o crime de lavagem de ativos surge inicialmente no
âmbito dos delitos relativos a drogas, essencialmente em razão das vultosas
quantias movimentadas por esses ilícitos (2014, p. 122). Nas palavras de Conti:

Percebeu-se que setores do crime organizado, em especial aquele


voltado para o tráfico de drogas, expandiam seus mercados consu-
midores e ocultavam com facilidade nos sistemas econômico e fi-
nanceiro os bens e valores obtidos com o tráfico. [...] Notou-se que
o dinheiro é a alma da organização criminosa, de forma que o ras-
treamento e o confisco dos valores e bens obtidos de forma ilícita
tornaram-se imprescindíveis para desarticular e enfraquecer organiza-
ções criminosas. (2014, p. 51)

‘manchados’” (CORDERO, 2014, p. 122). Por outro lado, sobre a relevância da demonstração da prove-
niência, e não da simples precedência, dos valores lavados em relação ao delito antecedente, vide Knijnik
(2016).
4
“Em realidade, a repressão à lavagem de dinheiro revela um campo de harmonização penal. Por que é
importante que os países tenham legislações semelhantes? Para possibilitar a mais ampla cooperação
jurídica internacional, no caso dos crimes transnacionais, em razão da exigência da dupla incriminação”
(DE CARLI, 2014, p. 08).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019 35
Gabriel Silva Costa

Assim, o modelo legislativo que se pode dimensionar como de primeira


geração, originado nesse contexto e tendo a Lei Portuguesa de 1993 (Decreto-Lei
nº 15/93) por exemplo, apresenta como único delito antecedente o tráfico ilícito
de entorpecentes (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1.091).
É o que Luiz Regis Prado denomina de concepção original ou restritiva (2007,
p. 409), objeto de inúmeras críticas em razão de existirem outras atividades delitivas
graves, capazes de gerar grandes quantidades de dinheiro ilícito, que não eram
abrangidas pela norma penal, objeções essas que viriam a ocasionar uma progressiva
abertura a outros tipos de delitos prévios (CORDERO, 2014, p. 122-123).5
Nasce, dessa forma, a segunda geração de leis antilavagem, caracterizadas pela
ampliação do rol de condutas típicas antecedentes ao branqueamento de capitais,
porém mantendo-as dentro de um catálogo estrito disposto em lei (concepção mista
ou intermediária) (PRADO, 2007, p. 410). Nesse sentido, a referência à lei italiana
de 1978 (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1.091).
Para além das críticas de insuficiência repressiva e necessidade de uniformi-
zação no combate internacional à lavagem de valores, Cordero destaca que esse
modelo legislativo gera uma necessidade de constante revisão do catálogo de
crimes prévios para nele inserir novos tipos penais (2014, p. 123).6
É exatamente em respostas a essas demandas que surge, por fim, a terceira
geração de legislações, em que qualquer crime grave pode ser antecedente do
branqueamento de capitais, cujo exemplo marcante, no âmbito do Direito Penal
estrangeiro, constitui-se no Código Penal Espanhol (artigo 300,1) (BALTAZAR JÚNIOR,
2015, p. 1.091/1.092).7

5
Destaca Souto que “el énfasis excepcional puesto en los años ochenta sobre la cooperación internacional
en materia de estupefacientes hizo que durante tiempo existiese una correspondencia entre blanqueo de
dinero y tráfico de drogas sin que fuese posible escindir el uno de las otras. Sin embargo, tras la equiva-
lencia entre blanqueo y estupefacientes subyace una simplificación no fundada sobre el análisis científico
ni la investigación. Naturalmente, no cabe desconocer la importancia de los beneficios del narcotráfico
como fuente financiera del crimen organizado, pero sabido es que con ser ingentes estas ganancias no
suponen más que una parte del dinero sucio global y sería artificial separar los capitales del tráfico de
drogas de las otras fuentes de fondos delictivos. En este sentido no podemos olvidarnos del tráfico ilegal
de armas, la trata de blancas y de menores vinculada a la prostitución internacional, el tráfico de títulos
valores robados o falsificados, la falsificación de dinero y de marcas, las quiebras fraudulentas de grupos
industriales o bancarios y la corrupción” (2001, p. 71/72).
6
Nas palavras do autor, “[l]a crítica a este modelo es que se muestra insuficiente, puesto que existirán
otras actividades delictivas que generan también grandes ganancias que no se encontrarán incluidas en
el listado, por lo que el lavado de los beneficios va a quedar impunes. Ello podría hacer necesaria una
constante revisión del catálogo para incluir nuevos delitos. Esto ha ocurrido en Alemania, donde en el año
1992 se aprobó la norma penal que sanciona el lavado, y en 1994 se tuvo que realizar una modificación
para ampliar el catálogo de delitos previos” (CORDERO, 2014, p. 123).
7
Aponta Cordero que a menção a crimes graves não é imune a críticas, pois “van a existir delitos que sin
ser graves generan cuantiosos beneficios que no van a quedar abarcados por el tipo del delito de lavado”
(2014, p. 124)

36 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019
Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes

Trata-se da concepção extensiva ou ampla, que inclui “toda e qualquer


espécie de infração penal antecedente – em geral de natureza grave –, excluída a
contravenção” (PRADO, 2007, p. 410). Anota Prado que essa concepção “segue
a trilha da Convenção do Conselho da Europa, que instituiu um conceito abarcante
de lavagem de dinheiro como decorrente de ‘toda infração penal a partir da qual
os produtos são gerados’ (art. 1 e)” (2007, p. 410).
No ponto, afirma-se que a nova geração legislativa busca atender à
Recomendação do GAFI8 (item B.3 das Quarenta Recomendações) no sentido de
que “[o]s países deveriam aplicar o crime de lavagem de dinheiro a todos os crimes
graves, de maneira a incluir a maior quantidade possível de crimes antecedentes”
(BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1.092).
Por derradeiro, oportuna a menção, ainda que breve, à outra forma de
classificação, apresentada por Cordero, na qual se distinguem três modelos de
legislação acerca dos crimes antecedentes: i) o catálogo de delitos, em que se
forma uma lista de crimes aptos a gerar bens suscetíveis de branqueamento,
usualmente, delitos de tráfico ilícito de drogas ou de armas, de contrabando e de
extorsão, tendo como exemplo as legislações da Bolívia, Peru e Chile; ii) a categoria
específica de infrações, na qual se circunscreve uma classe, mais ou menos
ampla, de delitos, como os crimes graves, adotada pelas leis suíça e austríaca; e,
finalmente, iii) qualquer delito antecedente, hipótese em que não se restringe o rol
de crimes prévios, dado que a lavagem de valores, ao afetar a ordem econômica,
difere dos delitos dos quais proveem os bens, sendo essa a posição adotada pela
Convenção do Conselho da Europa de 1990, bem como pelas legislações italiana,
belga e espanhola (CORDERO, 2014, p. 123/124).

8
“Por recomendação do Grupo de Ação Financeira (GAFI), ‘único organismo internacional especializado
e centrado tão-somente na luta contra a lavagem de dinheiro’, ao contrário da Convenção de Viena,
amplia-se o conceito de lavagem, sendo admitido qualquer delito prévio de natureza grave” (PRADO, p.
407). Por sua vez, “[o] GAFI – Groupe d’Action Financière (chamado, em inglês, de FATF – Financial Action
Task Force) é um órgão intergovernamental de elaboração de políticas (policy-making body) que trabalha
intensamente para gerar a vontade política necessária à promoção de reformas legislativas e regulató-
rias no âmbito dos países. Criado em 1989 pelo G7 (grupo dos sete países mais ricos, à época), ele é
o centro do sistema internacional antilavagem de dinheiro. Atualmente são membros 34 países e duas
organizações regionais. Essa organização examina as técnicas e as tendências de lavagem de dinheiro,
revisa as medidas já tomadas em nível internacional e expõe as providências que ainda precisariam ser
adotadas para combater o delito. Em abril de 1990, o GAFI elaborou e publicou um relatório contendo um
conjunto de 40 Recomendações que fornecem um plano abrangente de ação, a ser adotado por todos
os países para enfrentar a lavagem de dinheiro. [...] As Recomendações são adotadas por mais de 180
países. A par disso – e o que reforça significativamente sua efetividade – foram reconhecidas pelo FMI e
pelo Banco Mundial como os Padrões Internacionais a serem seguidos, na repressão e na prevenção da
lavagem de dinheiro e do financiamento ao terrorismo. Por sua vez, a ONU, através da Resolução nº 1.617
do Conselho de Segurança, instou veementemente todos os Estados Membros a darem cumprimento às
normas internacionais consubstanciadas nas Recomendações do GAFI” (DE CARLI, 2013, p. 32/33).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019 37
Gabriel Silva Costa

3 Algumas opções legislativas estrangeiras e os paradigmas


internacionais
Neste ponto, antes de abordar a perspectiva brasileira, faz-se oportuno
apresentar algumas opções legislativas adotadas por outros países, a fim de
permitir a observação de certas confluências e discrepâncias com o que será
apresentado no capítulo seguinte. Porém, ante os limites estreitos deste artigo, a
análise proposta restringir-se-á, essencialmente, a três nações, a saber: Portugal,
Espanha e Argentina.
A legislação portuguesa adota o que se pode denominar de um sistema misto,
pois não obstante possua um rol taxativo de delitos prévios (lenocínio, abuso sexual
infantil, tráfico de entorpecentes, tráfico de armas, tráfico de espécies protegidas,
tráfico de órgãos ou tecidos humanos, fraude fiscal, tráfico de influência, corrupção,
crimes relativos à corrupção e criminalidade econômica e financeira previstos na Lei
nº 36/94, de 29 de setembro), aos quais se aplica independentemente da pena
cominada, estabelece que qualquer delito que tenha por pena mínima mais de seis
meses ou pena máxima acima de cinco anos é capaz de gerar produto objeto de
branqueamento de capitais (WEBER; MORAES, 2013, p. 327).9
Dessa forma, com a redação do artigo 368-A do Código Penal Português,
acaba-se por ter, efetivamente, um rol razoavelmente aberto de crimes antecedentes,
marcado pela gravidade da sanção imposta. De outra face, o mesmo dispositivo da
legislação penal portuguesa, reconhecendo a relação entre delito prévio e lavagem,
bem como fixando um limite de proporção entre suas sanções, estabelece que a
pena aplicada às hipóteses de branqueamento de capitais “não pode ser superior
ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os factos ilícitos
típicos de onde provêm as vantagens”.
Por sua vez, na Espanha o crime que precedia à lavagem de valores, em
princípio, deveria qualificar-se como grave, ou seja, ter cominada pena de prisão
superior a três anos. No entanto, anota Weber e Moraes que, desde 2010, a Ley
Orgânica 10/1995 (Código Penal Espanhol) restou modificada em seu artigo 301,
passando a constar que qualquer atividade ilícita poderá configurar crime antecedente
da lavagem de capitais (2013, p. 328).

9
Como anota Rodrigues, “[o] legislador nacional, na esteira das Dir. 2005/60/CE, do Parlamento Europeu
e do Conselho, de 26 de outubro e a Dir. 2006/70/CE, da Comissão, de 1 de agosto, fundamentou o
crime precedente com base em dois critérios: o primeiro determina que as vantagens sejam provenientes
de um crime classificado com uma certa gravidade; o segundo estabeleceu como condição no crime ante-
cedente a punição com pena de prisão mínima superior a seis meses” (2016, p. 182/183).

38 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019
Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes

Vale anotar, por outro lado, que existe uma elevação da pena nas hipóteses
em que o crime antecedente seja tráfico de drogas, praticado por organização
criminosa voltada para lavagem de dinheiro, entre outras situações previstas na lei
penal (WEBER; MORAES, 2013, p. 328), casos em que há, no entender da legislação
espanhola, uma maior gravidade dos delitos prévios à lavagem, justificando uma
ponderação diferente no que tange à sanção penal desta.10
Finalmente, voltando-se à realidade latino-americana, tem-se o exemplo
argentino. Inserido entre os delitos contra a ordem econômica e financeira, o tipo
de blanqueo de capitales estabelece que qualquer delito é passível de figurar como
antecedente da lavagem, havendo apenas o agravamento em algumas situações
especiais (WEBER; MORAES, 2013, p. 331). Contudo, merece destaque na
legislação argentina a disposição de uma relação entre a pena aplicada e a quantia
mínima branqueada, em uma única ou várias operações, o que não apenas limita a
incidência típica da norma penal como promove uma medida de proporcionalidade
entre os dois fatores.11
Concluindo esse breve escorço pelas legislações estrangeiras, cabe apenas
ressaltar alguns paradigmas da ordem internacional que, de uma forma ou de outra,
afetaram as opções legislativas brasileiras.

10
O artigo 301 do Código Penal Espanhol prevê que “1. El que adquiera, posea, utilice, convierta, o transmi-
ta bienes, sabiendo que éstos tienen su origen en una actividad delictiva, cometida por él o por cualquiera
terceras personas, o realice cualquier otro acto para ocultar o encubrir su origen ilícito, o para ayudar a
la persona que haya participado en la infracción o infracciones a eludir las consecuencias legales de sus
actos, será castigado con la pena de prisión de seis meses a seis años y multa del tanto al triplo del
valor de los bienes. […] La pena se impondrá en su mitad superior cuando los bienes tengan su origen en
alguno de los delitos relacionados con el tráfico de drogas tóxicas, estupefacientes o sustancias psicotró-
picas descritos en los artículos 368 a 372 de este Código. […] También se impondrá la pena en su mitad
superior cuando los bienes tengan su origen en alguno de los delitos comprendidos en los capítulos V, VI,
VII, VIII, IX y X del Título XIX o en alguno de los delitos del Capítulo I del Título XVI”.
11
De acordo com o artigo 303 do Código Penal Argentino: “1) Será reprimido con prisión de tres (3) a diez
(10) años y multa de dos (2) a diez (10) veces del monto de la operación, el que convirtiere, transfiriere,
administrare, vendiere, gravare, disimulare o de cualquier otro modo pusiere en circulación en el mercado,
bienes provenientes de un ilícito penal, con la consecuencia posible de que el origen de los bienes origina-
rios o los subrogantes adquieran la apariencia de un origen lícito, y siempre que su valor supere la suma
de pesos trescientos mil ($ 300.000), sea en un solo acto o por la reiteración de hechos diversos vincula-
dos entre sí. 2) La pena prevista en el inciso 1 será aumentada en un tercio del máximo y en la mitad del
mínimo, en los siguientes casos: a) Cuando el autor realizare el hecho con habitualidad o como miembro
de una asociación o banda formada para la comisión continuada de hechos de esta naturaleza; b) Cuando
el autor fuera funcionario público que hubiera cometido el hecho en ejercicio u ocasión de sus funciones.
En este caso, sufrirá además pena de inhabilitación especial de tres (3) a diez (10) años. La misma pena
sufrirá el que hubiere actuado en ejercicio de una profesión u oficio que requirieran habilitación especial.
3) El que recibiere dinero u otros bienes provenientes de un ilícito penal, con el fin de hacerlos aplicar en
una operación de las previstas en el inciso 1, que les dé la apariencia posible de un origen lícito, será
reprimido con la pena de prisión de seis (6) meses a tres (3) años. 4) Si el valor de los bienes no superare
la suma indicada en el inciso 1, el autor será reprimido con la pena de prisión de seis (6) meses a tres (3)
años”.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019 39
Gabriel Silva Costa

O primeiro instrumento internacional a prever o tipo penal lavagem de valores,


ainda que não usasse essa nomenclatura, foi a Convenção das Nações Unidas
contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, ou Convenção
de Viena de 1988,12 que, como seu nome faz antever, restringia a possibilidade de
branqueamento apenas aos valores originados daquela espécie de delito (WEBER;
MORAES, 2013, p. 332).
No âmbito europeu, por sua vez, surge, em 1990, a Convenção de Estrasburgo,
que amplia o rol de delitos antecedentes a quaisquer infrações penais que geram
proveito econômico, e não apenas o tráfico ilícito de entorpecentes, facultando aos
Estados-parte, no entanto, a delimitação em maior ou menor grau da lista de crimes
antecedentes, atendendo a suas necessidades internas (WEBER; MORAES, 2013,
p. 332/333).13 Porém, o referido diploma, como lembra Conti, “restou substituído
pela Convenção de Varsóvia (Conselho da Europa-2005), que prevê um rol de 20
crimes graves antecedentes em seu anexo” (2014, p. 56). Assim, o Estado que
não deseje adotar o rol em sua íntegra possuirá três alternativas: “limitar somente
às infrações penais com pena máxima superior a um ano ou pena mínima superior
a seis meses; propor um rol mais restritivo de infrações; ou utilizar uma categoria
de infrações graves previstas em seu direito interno” (CONTI, 2014, p. 56).14
Em 2002, por outro lado, foi celebrada a Convenção de Palermo,15 a qual
estabeleceu aos Estados-parte não somente a obrigação de criminalizar as
organizações criminosas, como também de considerar as atividades praticadas
pelo referido grupo delitivo como antecedentes do crime de lavagem de capitais,
somando-se aos delitos de corrupção, obstrução da justiça e demais crimes consi-
derados graves (apenados com a sanção máxima de quatro anos ou mais) (WEBER;
MORAES, 2013, p. 333). Houve, ademais, clara “recomendação aos Estados-parte
no sentido de que adotassem a mais ampla gama de delitos antecedentes; ao
menos os relacionados com grupos criminosos organizados”, recomendação que
seria repetida pela Convenção de Mérida16 (WEBER; MORAES, 2013, p. 333).

12
O Brasil ratificou seus termos através do Decreto nº 154, de 26 de junho de 1991.
13
Conforme o art. 6º, §4º, da Convenção de Estrasburgo: “Cada uma das partes pode, no momento da
assinatura ou no momento do depósito do seu instrumento de ratificação, de aceitação, de aprovação
ou de adesão, mediante declaração dirigida ao Secretário-Geral do Conselho da Europa, declarar que o
n. 1 do presente artigo apenas se aplica às infrações principais ou às categorias de infrações principais
especificadas nesta declaração”.
14
Sobre o tema, vide Souto (2001, p. 139/140).
15
A Convenção de Palermo restou incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro em 12 de março de 2004,
por força do Decreto nº 5.015/04.
16
Internalizada pelo Direito brasileiro em 2006, por meio do Decreto nº 5.687.

40 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019
Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes

Por derradeiro, oportuno mencionar a Convenção Internacional das Nações


Unidas para a Supressão do Financiamento do Terrorismo, assinada em 1999, que
ocasionou a promulgação no Brasil da Lei nº 10.701/2003, alterando a redação do
inciso II da Lei nº 9.613/98 para nele inserir o financiamento do terrorismo como
delito prévio à lavagem de dinheiro (WEBER; MORAES, 2013, p. 334).
Observa-se, nesse sentido, uma forte tendência internacional na direção da
abertura ou alargamento dos crimes antecedentes ao branqueamento de valores,
o que se coadunaria, para alguns autores, com a pretensão de uma repressão
mais eficaz e uma prevenção inteligente à lavagem de dinheiro (WEBER; MORAES,
2013, p. 334).

4 O contexto brasileiro: do modelo misto à extinção do rol


de crimes antecedentes
Em conformidade com o exposto nos capítulos antecedentes, pode-se afirmar
que a lei brasileira antilavagem (Lei nº 9.613/98), em sua redação original,
enquadrava-se no modelo de segunda geração,17 ou seja, apresentava um rol
de crimes antecedentes passíveis de ensejar a incidência típica da lavagem de
capitais.18 No ponto, retome-se o texto em sua versão primeva:

Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposi-


ção, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores pro-
venientes, direta ou indiretamente, de crime:
I - de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;
II - de terrorismo;
III - de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material desti-
nado à sua produção;
IV - de extorsão mediante sequestro;
V - contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou
para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como
condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos;
VI - contra o sistema financeiro nacional;

17
Anotam Callegari e Weber que não havia consenso quanto à classificação da lei original como de segunda
geração (2014, p. 83).
18
“A criminalização da lavagem de dinheiro no Brasil, estabelecida por meio da Lei 9.613/1998, apareceu
com atraso aproximadamente de uma década se comparada com as experiências jurídico-normativas de
outras nações. Não é estranho, contudo, que as preocupações originais a respeito do tema da lavagem
tenham surgido nos países centrais do capitalismo financeiro, notadamente na Europa e Estados Unidos,
repercutindo e impactando, apenas a posteriori, as regras jurídicas dos países periféricos” (SALVADOR
NETTO; COSTA; SARCEDO, 2013).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019 41
Gabriel Silva Costa

VII - praticado por organização criminosa.


Pena: reclusão de três a dez anos e multa.19

Nesse sentido, a exposição de motivos da lei antilavagem afirma que “o projeto


reserva o novo tipo penal a condutas relativas a bens, direitos ou valores oriundos,
direta ou indiretamente, de crimes graves e com características transnacionais”.20 O
que se tencionava evitar, dessa forma, era a massificação da criminalização, atingindo
crimes como o furto simples e de pequeno valor. Assim, como ressaltam Weber
e Moraes, a grande maioria dos ilícitos derivados de crimes contra o patrimônio,
portanto, restariam abarcados pelo artigo 180 do Código Penal Brasileiro, que
tipifica o delito de receptação (2013, p. 326).
Não é outra a percepção de Marco Antonio de Barros, para quem “[a]o adotar
a sistemática de se estabelecer um liame entre o crime de lavagem a determinados
delitos pretéritos, o legislador evitou a ampliação desmedida do rol de crimes que
levam à configuração da lavagem” (2002, p. 221). Impedia-se, dessa forma, a
banalização do novo tipo penal, voltado à ideia de combate à grande criminalidade
e não à persecução de pequenos ilícitos penais (CONTI, 2014, p. 58).21
Nessa esteira, Franco e Stoco afirmavam possuir o rol de condutas prévias
caráter taxativo, “sendo que somente será típica a lavagem quando derivada de
um dos crimes antecedentes” (2002, p. 2100). Entendimento esse perfilhado pelo
Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, no Habeas Corpus nº 94.965/SP (Rel.
Min. FELIX FISCHER, Quinta Turma, DJe 30.03.2009).22
Todavia, alerta Bottini que não obstante a disposição de um rol de crimes
antecedentes, não se tratava propriamente da adoção de um modelo fechado, haja

19
Anote-se que, com a edição da Lei nº 10.467/02 foi incluso o VIII ao dispositivo em comento, assim
redigido “praticado por particular contra a administração pública estrangeira (arts. 337-B, 337-C e 337-D
do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal)”. Especificamente sobre a inclusão
dessa nova modalidade delitiva, segundo Barros, “[f]ica evidenciado [...] um novo traçado de política
criminal, que se encontra em fase de constante evolução no mundo moderno, sendo possível destacar,
especificamente neste caso: de um lado se verifica o alargamento da competência da Justiça Penal,
permitindo suplantar os limites de jurisdição territorial do País; de outro, procura-se enfrentar e reprimir
os ilícitos praticados contra a administração pública estrangeira, sinal de que a reiteração destes crimes,
com suas graves consequências para a sociedade, têm provocado o incremento da persecutio criminis
junto a comunidade internacional” (2002, p. 221/223).
20
Tratava-se, de acordo com a Exposição de Motivos, “de implementar o clássico princípio da justiça penal
universal, mediante tratados e convenções, como estratégia de uma Política Criminal transnacional”.
21
No mesmo sentido, William Terra de Oliveira, ao afirmar que a característica fundamental desses delitos
era a macrolesividade, “pois atingem muitas vezes interesses sociais e quase sempre geram grande
quantidade de dinheiro ilícito” (1998, p. 332).
22
“De fato, o delito de lavagem de dinheiro pressupõe a existência de ao menos um dos crimes anteceden-
tes, previstos no rol taxativo do art. 1º da Lei 9.613/98, sendo por meio destas condutas que o agente
obtém os valores, bens ou direitos objetos de posterior ocultação ou dissimulação” (HC n. 94.965/SP,
Rel. Min. FELIX FISCHER, Quinta Turma, DJe 30.03.2009).

42 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019
Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes

vista a existência de norma de abertura referente a qualquer crime cometido por


meio de organização criminosa (2016, p. 99).23 Para Moreira o legislador penal
brasileiro acabou por realizar uma mescla entre a segunda e a terceira gerações de
leis antilavagem, pois se por um lado estabeleceu um rol de crimes antecedentes,
levando em consideração “a especial gravidade destes e sua relação direta com a
lavagem de dinheiro devido às grandes somas movimentadas”, por outro permitiu
que quaisquer delitos praticados por organização criminosa fossem hábeis a produzir
bens e valores branqueáveis (2006).
Não obstante essa abertura do sistema a outras práticas delitivas, várias foram
as críticas levantadas contra o rol estreito de crimes antecedentes da legislação
brasileira. Para Weber e Moraes, as objeções são fundamentalmente de dois tipos:
funcional e valorativa. Nas palavras das autoras:

Funcional devido à ineficácia de um sistema que exclui da possibilida-


de de figurarem como precedentes crimes aptos a gerarem vultosas
quantias de recursos a serem branqueados (crimes contra a eco-
nomia popular, estelionato); valorativa pelo problema da análise da
proporcionalidade entre os delitos constantes na lista legal e muitos
delitos excluídos (não estavam contemplados os delitos de tráfico
internacional de pessoas, de órgãos, crimes contra o meio ambiente)
(WEBER; MORAES, 2013, p. 349).

Assim, em que pese ter o legislador pátrio seguido a Recomendação nº 1 do


GAFI, a qual propõe que as leis de combate à lavagem de valores incluam como
crime antecedente, além do tráfico de drogas, os delitos considerados graves
pelo direito interno, “diversos crimes de natureza muito grave foram deixados de
lado quando da elaboração da Lei 9.613/98” (SAADI, 2007, p. 51/52). Uma das
omissões legislativas mais severamente criticadas foi a dos crimes tributários como
antecedentes da lavagem de valores.24

23
No ponto, Weber e Moraes alertam que o “reconhecimento nacional aos ditames da Convenção de
Palermo (Convenção contra o Crime Organizado Transnacional), devidamente internalizada em solo pátrio
por meio do Decreto 5814/2006, acabou por gerar grande controvérsia jurisprudencial acerca da defini-
ção e aplicação da expressão ‘crime organizado’” (2013, p. 327). À época, parte da doutrina entendia
“que este dispositivo seria inaplicável, por não haver em nosso ordenamento jurídico uma definição legal
ou um tipo penal que conceitue organização criminosa. Afastam, inclusive, a aplicação da Convenção de
Palermo, vez que ela traria um mandato de criminalização, não perfectibilizando um tipo penal específico,
nos moldes da legislação pátria” (2013, p. 344).
24
Ante os limites estreitos deste estudo, deixarão de ser abordadas, de forma mais aprofundada, as ques-
tões envolvendo os crimes tributários como antecedentes à lavagem de capitais, bem como a hipótese de
autolavagem, o concurso entre o delito prévio e o branqueamento de valores e a interface entre a lavagem
de valores e o exercício da advocacia. Todavia, remete-se o leitor aos estudos de Cordero (2011), Torrão
(2016), Godinho (2011) e Estellita (2016), respectivamente.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019 43
Gabriel Silva Costa

Por sua vez, contra um rol fixo de delitos antecedentes, Luiz Regis Prado
afirmava que a técnica de catalogação de um rol de tipos legais prévios ao crime
de branqueamento de capitais não era a melhor, haja vista a grande probabilidade
de ocasionar graves lacunas de punibilidade (2007, p. 415). Portanto, na visão do
autor, seria suficiente a origem delitiva, proveniente de qualquer injusto penal, do
bem, direito ou valor econômico branqueado, na trilha do Código Penal Espanhol
de 1995 (2007, p. 415).
Em resposta às alegadas insuficiências, com a sanção da Lei nº 12.683, em
9 de julho de 2012,25 o dispositivo inicial da lei brasileira de combate à lavagem
de valores passou a vigorar com a seguinte redação:

Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposi-


ção, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores pro-
venientes, direta ou indiretamente, de infração penal.
[...]
Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa.

Observe-se que, para além da supressão do rol taxativo de crimes antecedentes,


almejada por parte da doutrina, restou inclusa no caput do artigo 1º da Lei nº
9.613/98 a expressão “provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.
Como destacam Callegari e Weber (2014, p. 83), infração penal, na esteira do
sistema de bipartição adotado por países como Itália, Alemanha e Portugal, constitui
gênero do qual crime e contravenção penal são as espécies.26
Em outras palavras, não apenas se ampliou o rol de crimes antecedentes, mas
também se incluiu no referido tipo penal a hipótese de valores decorrentes da prática
de contravenção penal (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1.092). Longe de ser mero
acaso, a nova disposição buscava claramente abarcar hipóteses antes excluídas,
como a exploração de jogos de azar (artigo 50 do Decreto-Lei nº 3.688/1941) e do

25
O texto final decorre de um Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado nº
209/2003, de autoria do Deputado Federal Cândido Vaccarezza (PT-SP).
26
“A expressão infração penal, no sistema classificatório adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro,
engloba tanto o crime (sinônimo de delito) como a contravenção penal, espécies de injustos penais. Com
a postura ora acolhida, resta observada a necessária segurança jurídica, mas, para além, evitam-se even-
tuais e graves lacunas de punibilidade que maculavam a legislação anterior. Na atualidade, é bastante
a origem penalmente ilícita do bem, direito ou valor econômico que se procura introduzir no mercado
econômico legal, sob a falsa aparência de legitimidade. Isso vale dizer: é suficiente que o produto seja
proveniente de um injusto penal. Posicionamento mais restritivo é estatuído pelo Código Penal espanhol
de 2010, que exige tão somente a presença de delito anterior (art. 301 a 304), afastada a contravenção.
Em relação ao texto de 1995, que exigia delito grave, a crítica da doutrina acabou por surtir efeito. O im-
portante – verberava-se – é a origem delitiva do bem e não a gravidade do delito do qual procede” (PRADO,
2013, p. 12).

44 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019
Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes

denominado “jogo do bicho” (artigo 58 do Decreto-Lei nº 3.688/1941) (BALTAZAR


JÚNIOR, 2015, p. 1.092).27
O novo posicionamento legal, necessário apontar, é consentâneo com a
perspectiva de que o bem jurídico tutelado pela lavagem de dinheiro é diverso do
protegido pelo crime antecedente, seja ele a ordem econômico-financeira ou a
administração da Justiça (BOTTINI, 2016, p. 75 e 100). Nesse sentido, assevera
Bottini que “a nova lei é coerente com a ideia de proteção da administração da
Justiça, uma vez que o encobrimento do produto de qualquer crime é capaz de afetar
o bem jurídico tutelado, independente de sua gravidade ou extensão” (2016, p. 100).

5 A (des)proporcionalidade da inclusão de crimes menos


graves e contravenções penais
Antes mesmo da entrada em vigor da Lei nº 12.683/12, que veio a alterar a
redação do artigo 1º da Lei nº 9.613/98, extraindo-lhe o rol de crimes antecedentes,
diversas vozes na doutrina se manifestaram em detrimento da nova medida de
política criminal.28
Contudo, uma das mais reiteradas críticas foi, sem dúvida, a aparente falta
de proporcionalidade no sancionamento da lavagem de valores oriundos de crimes
menos graves, especialmente, de contravenções penais, a que se aplicam tão
somente as sanções de multa e prisão simples. É nesse contexto que exsurge a
necessidade de analisar a possível violação à proporcionalidade na nova redação
dada ao artigo primeiro do diploma de repressão ao branqueamento de capitais.
Como restou demonstrado na primeira parte deste estudo, o cenário nacional,
como reflexo do contexto internacional, é de “drástica expansão do campo de

27
De fato, a extensão atende à crítica ao rol anterior que excluía as contravenções penais. Nesse senti-
do, Weber e Moraes afirmam que “a impossibilidade das contravenções figurarem como ações típicas
precedentes excluía a contravenção do jogo do bicho e de jogos de azar (incluindo aqui a exploração das
conhecidas máquinas caça-níqueis e de vídeo-bingo) da condição de precedentes à lavagem de ativos. A
realidade social brasileira demonstra que tais práticas geram significativas quantias ilícitas que neces-
sitam ser e efetivamente são branqueadas. A possibilidade de enquadramento dos fatos à prática de
lavagem residia na eventual circunstância de restar caracterizado o contrabando ou descaminho de peças
das máquinas de jogos utilizadas” (2013, p. 348). Por sua vez, Odon afirmava que “[o] jogo do bicho, por
exemplo, uma das maiores chagas da criminalidade nacional, é uma contravenção penal e não um crime.
Assim, se um bicheiro introduz proventos do jogo no sistema financeiro para ocultar ou dissimular a ori-
gem, não estará praticando crime nenhum, por maior que seja o montante. [...] Atualmente proliferam-se
no Brasil as máquinas de caça-níqueis. Só no Distrito Federal (DF), onde a incidência não é tão alta quanto
em algumas cidades do Nordeste e Sudeste, estima-se que cada máquina arrecade R$ 3 mil por mês. É
um negócio que movimenta R$ 40 milhões por ano só no DF. É típico jogo de azar cujos proventos podem
ser injetados no sistema financeiro sem risco de incriminação, pois o jogo é mera contravenção penal”
(2003, p. 342/343).
28
Nesse sentido, vide Conjur (2012).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019 45
Gabriel Silva Costa

aplicação da lavagem de dinheiro no sentido de abarcar como antecedentes outros


crimes [...] ou até mesmo todos os crimes” (WEBER; MORAES, 2013, p. 350).
Em outras palavras, o branqueamento de capitais foi assumindo gradativamente o
“protagonismo no universo das criminalizações”, em razão de ser “um instrumento
poderoso para a repressão de diversos tipos de criminalidade” (SALVADOR NETTO;
COSTA; SARCEDO, 2013).29
Dessa forma, existem razões para a ampliação do rol de crimes prévios, o que
Weber e Morais, seguindo Stessens, adjetivam de fatores como a diversificação
das atividades das organizações criminosas, a sofisticação das novas técnicas de
branqueamento e a percepção de que outros crimes altamente lucrativos possuíam
um volume significativo de valores ilícitos internalizados na economia global (apud,
2013, p. 350/351).
A crítica, portanto, não ignorando a necessidade de um rol mais abrangente
de condutas prévias, como já cuidava Prado muito antes da reforma legislativa
(2007, p. 410), volta-se fundamentalmente à sua extensão desmesurada, para
além dos crimes graves ou que informem a denominada macrocriminalidade,30
abarcando condutas que sequer constituem delitos, em sua acepção estrita, como
as contravenções penais estabelecidas no Decreto-Lei nº 3.688/41.
No ponto, observa Conti que embora se indiquem as recentes alterações na
lei antilavagem como tentativas de adequá-la aos mais modernos instrumentos
internacionais de combate ao branqueamento de capitais, tal afirmativa conteria
em si um equívoco (2014, p. 56). Para o autor, inobstante os parlamentares que
elaboraram o projeto da Lei nº 12.683/2012 defendessem essa perspectiva, o
conteúdo normativo apresentado destoa dos compromissos internacionais assumidos
pelo Brasil, e isso porque

[d]entre as 40 Recomendações do GAFI, [...] reconhecidas em nível


mundial como padrão internacional antilavagem de dinheiro e segui-
das pelo Brasil, encontra-se a Recomendação nº 3, que prevê que

29
“Isto é, apercebeu-se que, por meio da tipificação da lavagem, o sistema criminal busca fechar o cerco
para a ocorrência de diversas outras práticas, impedindo o aproveitamento dos produtos de crimes, impe-
dindo o financiamento de organizações criminosas, em suma, aumentando demasiadamente os custos,
em amplo sentido, dos denominados delitos antecedentes. Esta suposta eficiência do delito de lavagem,
a qual político-criminalmente faz prevalecer a lógica da repressão em face das garantias individuais, refle-
te-se de muitas formas na legislação” (SALVADOR NETTO; COSTA; SARCEDO, 2013).
30
“[N]ão podemos deixar de reconhecer a relevância de muitas condutas ilícitas que não constavam no rol
taxativo de crimes precedentes à lavagem de ativos, como as atreladas ao tráfico de órgãos, de pessoas,
tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, crimes ambientais. Tais condutas, exemplificadamente
referidas, são responsáveis pela movimentação de vultosos recursos, no plano nacional e internacional,
incorporados posteriormente ao sistema econômico com vista à dissimulação de sua origem.” (WEBER;
MORAES, 2013, p. 351).

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Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes

‘os países deveriam criminalizar a lavagem de dinheiro com base na


Convenção de Viena e na Convenção de Palermo. Os países deveriam
aplicar o crime de lavagem de dinheiro a todos os crimes graves, de
maneira a incluir a maior quantidade possível de crimes anteceden-
tes’. Assim, apenas os ilícitos de categoria crime, e apenas aqueles
considerados graves, é que deveriam ser considerados infrações pré-
vias à lavagem, ainda que a sugestão seja incluir o maior número
possível desses crimes (CONTI, 2014, p. 56).

Nessa toada, esclarece Conti que a Convenção de Palermo estipula como


conceituação de crime grave aquele punível com pena privativa de liberdade superior
a quatro anos, restando, para o autor, clara a discrepância entre o paradigma
internacional que se alega seguir e a realidade da ampliação desmedida do rol de
crimes antecedentes à lavagem de valores no Brasil (2014, p. 56).
Como aponta Ascensão, o delito de lavagem de dinheiro, por mais usual que
tenha se tornado, ainda pressupõe “uma situação excepcional, à qual seja necessário
reagir com meios excepcionais” (2003, p. 42). Na visão do autor,

[a]largar o círculo, de maneira a fazer abranger crimes que não têm já


nada que ver com a preocupação que está na origem da incriminação
é confundir tudo, admitir reacções desproporcionadas e pôr em causa
os resultados que se pretendiam atingir (2003, p. 43).31

Nota-se que a pretensão de abarcar infrações penais como o “jogo do bicho”,32


acabou por gerar, como efeito colateral, a sobrepunição de outras contravenções
e delitos leves, essencialmente patrimoniais e de pequeno potencial ofensivo, em

31
Prossegue o autor: “Tenho observado, com uma boa dose de pessimismo, que o sistema repressivo tende
a deslocar-se dos culpados para os inocentes. Neste caso, em vez da tarefa, tão perigosa, de pesquisar
grandes potentados financeiros, a lei permite que se investiguem factos domésticos de cada um, criando
a insegurança generalizada e a dependência dos órgãos repressores. O empolamento dos objectivos é um
meio seguro de os não atingir. Assim nunca se chegará às grandes pistas. A lista das infracções principais
deve ser revista. Terá de se limitar às que criam a necessidade de reciclar dinheiro sujo” (ASCENSÃO,
2003, p. 42/43).
32
Como anota Rizzo, o “jogo foi criado em 1892 pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador e
proprietário do jardim zoológico do Rio de Janeiro. Na época, o barão decidiu estipular um prêmio em
dinheiro ao portador do bilhete de entrada numerado com o animal do dia, com a finalidade de aumentar
a frequência ao zoológico. Eram 25 bichos e cada um era representado por quatro números sequenciais
de 00 e 99 por ordem alfabética. Um animal era escolhido e seu nome passava o dia inteiro coberto por
um pano. Ao final do dia, o pano era retirado e o prêmio entregue àquele que tivesse o bilhete de entrada
premiado com o número do bicho do dia. O jogo do bicho está proibido desde a década de 1940 não
somente por sua condição de jogo de azar, que induz a população ao vício e à miséria, mas também por
seu lado extremamente violento, ligado a outros tipos de [ilícito], como tráfico de drogas, lavagem de
dinheiro e violência urbana. [...] A grande preocupação das autoridades não é com o jogo em si, mas com
a estrutura criminosa que se alimenta dele, juntamente com os subornos que facilitam sua existência”
(RIZZO, 2013, p. 39/40).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019 47
Gabriel Silva Costa

desmedida entre a conduta ilícita da qual se originam os valores e o seu encobrimento


ou reinserção no meio econômico lícito.33 34
Observa Conti que, se um dos objetivos do legislador era perseguir de
forma mais rigorosa a ocultação e dissimulação de proventos do “jogo do bicho”,
organizados e geridos por “grupos criminosos nefastos”, “melhor teria sido –
prestigiando-se a boa técnica – transformá-lo em crime e inseri-lo no rol de delitos
antecedentes”, o que viabilizaria inclusive a incidência dos tipos de associação
criminosa ou organização criminosa (2014, p. 60).35
Por outro lado, ainda que o magistrado possa se valer de recursos da dosimetria
penal, como as circunstâncias judiciais durante a fixação da pena base (cf. artigo 59
do Código Penal Brasileiro) (WEBER; MORAES, 2013, p. 350), fato é que dificilmente
haverá a equalização das penas aplicadas à lavagem e ao crime antecedente, dentro
das possibilidades jurídicas atuais do ordenamento brasileiro, sobremaneira se
considerada a diferença entre as sanções cominadas às contravenções penais e
ao branqueamento de ativos.
Nesse sentido, aponta Bottini que, por melhor que tenham sido os objetivos
almejados pelo legislador, a exclusão do rol de delitos prévios restou nitidamente
desproporcional, “pois punirá com a mesma pena mínima de três anos o traficante
de drogas que dissimula seu capital ilícito e o organizador de rifa ou bingo em
quermesse que oculta seus rendimentos” (2012). Conti, na mesma senda, destaca
ser injustificada a punição mais gravosa do delito de lavagem em relação ao crime
antecedente que se buscava coibir em primeiro lugar (2014, p. 59).
De outro giro, Odon, ao considerar a ordem econômico-financeira como o
bem jurídico tutelado pelas normas antilavagem, questiona se essas modalidades
infracionais são capazes de gerar um risco significativo a ponto de “alcançar o núcleo

33
Conforme destaca editorial do IBCCRIM de 2012, “a nova lei é mais uma manifestação do expansionis-
mo penal, que, com o escopo de combater a grande criminalidade, acaba por criar regras e dispositivos
que exageram a amplitude da norma punitiva, afetam com penas significativas atividades sem maior
gravidade, passam para o setor privado a política de prevenção à lavagem e turbam o normal exercício de
determinadas atividades. Errou na dose o legislador”.
34
No ponto, oportuno recordar a distinção entre o exaurimento do delito prévio e a prática do crime de bran-
queamento de capitais com o seguinte exemplo apresentado por Bottini: “Se alguém rouba um banco e
esconde o dinheiro para depois usá-lo para aquisição de bens de consumo pessoal, em seu próprio nome,
como carros ou imóveis, oculta o dinheiro do ponto de vista objetivo, mas não há tipicidade de lavagem
de dinheiro porque sua intenção não é a reciclagem do capital, mas apenas exaurir o crime antecedente.
O agente não busca conferir uma aparência lícita aos bens obtidos pelo crime, mas apenas aguardar o
melhor momento para usufruí-los” (2016, p. 68).
35
Para o autor “ideal mesmo, do ponto de vista político criminal, seria erigir à categoria de crime as condutas
consideradas graves, fazendo com que se amoldassem ao delito de lavagem de dinheiro, que aceitaria
apenas crimes graves como infração antecedente, num padrão de moldura penal ou rol fechado. O grau
de gravidade poderia ser aquele sugerido na Convenção de Palermo, com penas máximas iguais ou supe-
riores a 4 anos, ou ainda o critério interno das infrações de menor potencial ofensivo (crimes com penas
máximas acima de dois anos – art. 61 da Lei nº 9.099/95)” (CONTI, 2014, p. 61).

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Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes

de garantia e proteção da norma jurídica de lavagem de dinheiro”, pois somente


nesse caso se poderia falar, sob a égide da ofensividade, de um fato penalmente
relevante (2003, p. 342/344).
Entretanto, é exatamente neste passo que surge o talvez mais forte contra-
argumento à desproporcionalidade da extinção do rol de crimes antecedentes: a
afirmação de que o bem jurídico tutelado pela lei de lavagem é diverso do protegido
pela norma incriminadora do delito prévio.
De fato, como apontado anteriormente, seja o bem protegido a administração
da Justiça ou a ordem econômico-financeira, em ambos os casos se justificaria,
para diversos autores, a punição mais gravosa do branqueamento de capitais,
independentemente da infração que o antecedeu, pois dela se destaca como delito
autônomo.
Nesse sentido, Callegari e Weber apontam que a simples constatação de que
um delito considerado leve ou uma contravenção penal é capaz de movimentar
valores ilícitos na mesma proporção que grandes delitos, como o tráfico ilícito de
entorpecentes, já seria suficiente para justificar um apenamento do mesmo porte
no que tange à lavagem de dinheiro (2013, p. 84). Dessa forma, a pena atribuída
ao branqueamento de capitais está atrelada ao desvalor da conduta em face dos
bens jurídicos tutelados, não existindo desproporção, haja vista que em diversos
países se adotam penas ainda mais graves que as da legislação brasileira (2013,
p. 84/85).
Em que pese o entendimento dos autores e no sentido que apontam as
legislações portuguesa, espanhola e argentina, referidas supra, não parece razoável
afastar de todo a relação entre o branqueamento e o delito antecedente, sob pena de
que aquele perca boa parte do seu significado, qual seja, coibir, ainda que de forma
indireta, a prática do ilícito prévio, desincentivando a conduta, ante a dificuldade
de valer-se dos seus frutos na economia lícita, ou, ao menos, a inibindo em face
do “encarecimento” de sua prática.
Com efeito, não se afigura proporcional que com esse objetivo em mente
seja sancionado de forma consideravelmente discrepante o ilícito principal e a
lavagem dos bens dele decorrentes, inobstante a apregoada autonomia do tipo de
branqueamento de valores.

6 Repercussões de ordem político-criminal


Para além da desproporcionalidade indicada no item precedente, Pierpaolo
Bottini, refletindo sobre algumas possíveis repercussões da abertura demasiadamente
larga do rol de crimes antecedentes à lavagem de dinheiro, especialmente em relação

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Gabriel Silva Costa

aos crimes patrimoniais leves, apresenta ao menos três possíveis consequências


dessa escolha político-criminal (2016, p. 100).
A primeira refere-se à aplicação das medidas cautelares pessoais. Segundo o
autor, há severo risco de retrocesso na política de desencarceramento encampada
pela Lei nº 12.403/11 (BOTTINI, 2016, p. 100). Com efeito, a lei em comento
tornou defesa, via de regra, a prisão preventiva em crimes dolosos cuja pena de
prisão máxima seja inferior ou igual a quatro anos, hipóteses do furto simples e
do estelionato privilegiado; porém, em face da possibilidade de concurso desses
delitos leves com a lavagem de dinheiro, seria cabível a prisão preventiva, haja
vista que, com a cominação de dez anos de pena máxima à lavagem de capitais,
a pena resultante da acumulação material será muito superior ao patamar legal
mínimo de mais de quatro anos estabelecido para a severa medida cautelar pessoal
(BOTTINI, 2016, p. 100).
Mais grave, será possível que mesmo contravenções penais, antes excluídas
das hipóteses de prisão preventiva (CUNHA, 2011, p. 148), agora seguidas da
lavagem dos valores auferidos, passem a acarretar a segregação do investigado
ou acusado. Como destaca Conti, enquanto “a ideia geral é desafogar o sistema
prisional, já superlotado, a Lei nº 12.683/12 vem na contramão, contribuindo para
o aprisionamento de um contingente maior de acusados” (2014, p. 58).
No mesmo sentido, restaria prejudicada a possibilidade de suspensão
condicional do processo, estabelecida no artigo 89, da Lei nº 9.099/95 (BOTTINI,
2016, p. 100), tendo em vista que a pena mínima de até um ano insculpida no
referido dispositivo seria em muito excedida pela cumulação com o delito de lavagem
de valores, a teor do que dispõe a Súmula nº 243 do Superior Tribunal de Justiça:

O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às


infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal
ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo
somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de
um (01) ano.

Dessa forma, novamente se exclui a aplicação de medida voltada para a abertura


do sistema criminal, verdadeiro instituto despenalizador indireto (GRINOVER et al.,
2005, p. 259), em virtude da persecução da lavagem de valores.
Por fim, Bottini ainda traz a questão da impossibilidade da substituição da
pena de prisão por quaisquer das penas restritivas de direitos, considerando-se que
o artigo 44 do Código Penal Brasileiro impede sua incidência quando a condenação
ultrapassar quatro anos de prisão, o que invariavelmente ocorre no concurso material

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Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes

com o crime de lavagem, cuja pena mínima é de três anos (BOTTINI, 2016, p. 100).
Oportuno recordar que

[e]m compasso com o princípio da individualização da pena, bem as-


sim, com o Direito Penal propugnador da pena de prisão como ultima
ratio, destinada às infrações de maior gravidade, tem-se por apropria-
da a concessão da substituição de pena, a qual, mais que benefício,
consubstancia-se direito público subjetivo do apenado, se presentes
os requisitos para o seu deferimento (STJ – HC nº 158.842/SP, Rel.
Ministro OG FERNANDES, Sexta Turma, DJe 02/08/2010).

Há que se considerar, igualmente, a aplicação de normas mais gravosas


referentes ao combate à lavagem de ativos, próprios da Lei nº 9.613/98, tais como
as previsões sobre a inaplicabilidade do artigo 366, do Código de Processo Penal
Brasileiro, prosseguindo a ação penal com o réu citado apenas por edital (artigo
2º, §2º, da Lei nº 9.613/98), e de alienação antecipada de bens apreendidos (cf.
artigos 4º, §1º e 4ª-A da Lei nº 9.613/98).
De outra face, a ampliação do espectro de autuação da repressão à lavagem
de valores implica custos de variadas ordens e acentuado risco de ineficiência e
descrédito do sistema de persecução penal.
Assevera Conti que a extinção do rol de crimes anteriores possui o potencial de
trazer diversas consequências negativas para a persecução penal, como o aumento
significativo dos casos a serem investigados, processados e julgados, o que poderia,
na visão do autor, simplesmente “inviabilizar as varas judiciais especializadas em
lavagem de dinheiro”, que restariam inundadas de processos, considerando-se que
qualquer crime ou contravenção penal possui potencial de gerar ativos passíveis
de branqueamento (2014, p. 57). Como ressalta Bottini, “ou bem se aumenta a
estrutura e o número de juízes nesses setores, ou a falta de quadros resultará na
morosidade e na consequente impunidade pela prescrição” (2012).36
Dessa forma, a medida seria altamente prejudicial à atuação da Justiça,
atrasando a persecução penal e culminando, invariavelmente, na prescrição de
inúmeros casos e na banalização e descrédito do sistema criminal, na contramão
da pretendida sensação de combate ao crime aparentemente propalada pelos
responsáveis pela alteração legislativa (CONTI, 2014, p. 57/58).37

36
De acordo com pesquisa apurada por Mendes, “[e]fetivamente, há carências de toda sorte que conduzem
à impunidade. Desde as deficiências de recursos humanos e materiais até obstáculos de ordem proces-
sual e probatório para comprovação do ilícito” (2002, p. 115/116).
37
Como afirma o autor, “é preciso reconhecer que se trata apenas de direito penal simbólico, preocupado
apenas em trazer uma pseudoimpressão de segurança para a população através da edição de leis mais ri-

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Gabriel Silva Costa

Por outro lado, como observa Moro, se por um lado a supressão do rol de
delitos prévios apresenta a vantagem da criminalização e persecução de pessoas
que atuam profissionalmente na lavagem de dinheiro, não fazendo distinções
em função da origem dos ativos branqueados, por outro existe um “certo risco
de vulgarização”, com duas ordens de consequências: a incoerente punição à
lavagem de forma mais gravosa do que a estabelecida para o crime prévio, bem
como a dispersão dos recursos disponíveis à prevenção e à persecução penal,
antes focalizados no combate à criminalidade mais grave (MORO, 2010, p. 36).38
Enfim, na esteira do que aponta Bottini, constatada a desproporcionalidade da
extinção do rol de crimes antecedentes à lavagem de valores, que pode alcançar
“a ocultação do produto de qualquer delito ou contravenção penal, por menor que
seja”, bem como suas graves consequências de ordem político-criminal, restaria
aguardar, ao menos por ora,

que seus exageros sejam compensados com uma aplicação cautelo-


sa, pautada pela percepção de que o combate à lavagem de dinheiro
tem por objeto o grande crime organizado, e que sua banalização e
desvio de foco pode comprometer todos os avanços alcançados nos
últimos anos (2012).

Não obstante, a doutrina busca trazer algumas proposições a fim de conciliar


os objetivos repressores da lei de combate à lavagem de valores e os parâmetros
de proporcionalidade e razoabilidade, o que se passará a expor a seguir.

7 Algumas propostas
Postas as críticas, apresentam-se agora algumas tentativas de solução
potencialmente conciliadoras com a realidade do combate à lavagem de dinheiro
no Brasil.
A primeira delas colhe-se de Baltazar Júnior, que parte da perspectiva de
juiz federal que atuou durante anos em vara especializada em branqueamento de
capitais. O autor, percebendo que a nova tipificação do crime antecedente resultou
demasiadamente aberta, sugere como proposta a inclusão na descrição típica de
um valor mínimo para a incidência da norma penal, limitando, assim, sua aplicação,

gorosas, mas pouco atento às verdadeiras causas históricas, sociais e políticas da criminalidade” (CONTI,
2014, p. 58).
38
No mesmo sentido, Rios afirma que a alteração legislativa teria como repercussão imediata “a constata-
ção da perda da linha reitora que sempre primou por envidar esforços de prevenção e persecução dirigidos
aos delitos mais graves” (2012).

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Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes

haja vista que as penas aplicadas são altas e que, a levar-se em consideração
a possibilidade, defendida por alguns, de que qualquer tentativa de ocultação ou
dissimulação do proveito criminoso incorra no delito de branqueamento, resta a
conclusão de que este seria aplicável “à quase totalidade dos delitos que geram
proveito material” (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1.092).
No mesmo sentido, Massud e Sarcedo asseveram que a estipulação de
uma quantia mínima, por meio de uma norma penal em branco, para a incidência
do crime de branqueamento de valores poderia ser capaz de evitar ou mitigar a
desproporção ora apresentada (2009, p. 408/409).
A hipótese aventada, contudo, encontra algumas dificuldades. Em primeiro lugar
a indagação sobre qual seria o parâmetro a ser utilizado, ou mesmo se ele poderia
ter abrangência nacional, dado que a realidade brasileira é formada por inúmeros
contrastes. De toda sorte, novamente se voltaria à crítica sobre a necessidade de
atualização constante do valor mínimo estipulado pela lei ou outro ato normativo,
especialmente se o for em patamares muito baixos, facilmente superados pela
inflação e pela grande criminalidade.
Outra possibilidade seria a previsão de que apenas crimes graves seriam aptos
a gerar bens passíveis de lavagem de valores. Nesse sentido já se posicionou o
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), em editorial de 2012, in verbis:

Mais adequado seria estabelecer um parâmetro de gravidade do cri-


me antecedente, como um patamar de pena mínima a partir do qual
a infração seria considerada passível de gerar a lavagem de dinheiro,
como propõe a Convenção de Palermo, adotada como marco por di-
versos países (IBCCRIM, 2012).

Com ceticismo, Weber e Moraes ressaltam que a opção por tal parâmetro não
garantiria uma solução mais adequada ao problema, tendo em vista que a legislação
penal brasileira não “apresenta a sintonia desejada entre os tipos penais”, em outras
palavras, crimes com significativa gravidade, lesivos a bens jurídicos coletivos, como
crimes ambientais (Lei nº 9.605/98), acabam por receber penas mais brandas e
discrepantes de outras condutas menos lesivas, em razão do “período da edição da
lei, pressão política e popular a respeito de determinadas condutas e determinados
bens jurídicos, amadurecimento ainda incompleto acerca da relevância dos direitos
coletivos e difusos, dentre outras causas” (2013, p. 350/351).39

39
“Assim sendo, se é verdade que o rol restritivo de crimes antecedentes resulta criticável por sua óbvia
limitação de atender a realidade da lavagem de ativos no Brasil e pela incongruência de alguns delitos

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Gabriel Silva Costa

Por sua vez, Souto, constatando que a noção de “acto delictivo grave” não
possui significação penal própria, bem como dificulta a harmonização entre as
legislações internacionais antilavagem, entende que a escolha dos delitos prévios
não deve se ater unicamente à possível gravidade ínsita aos crimes antecedentes,
mas também à gravidade de sua relação com a lavagem de ativos, ou seja:

la capacidad de generar flujos financieros, la tipología internacional


de desarrollo, la vinculación frecuente con la delincuencia organizada
y la dificultad para averiguarlo o reprimirlo con técnicas ordinarias de
investigación (2001, p. 219/220).

Há quem proponha, igualmente, que a desproporcionalidade entre a punição


ao delito prévio e à lavagem de valores seja resolvida por meio da previsão de
“circunstâncias atenuantes, tipos privilegiados ou pela aplicação do princípio da
insignificância” (CASTILHO, 2004, p. 49). Não é outra a sugestão de Moro, para
quem deveriam existir mecanismos que garantissem a proporcionalidade entre a
pena aplicada ao crime antecedente e ao branqueamento de capitais, bem como que
viabilizassem “certa seletividade na prevenção e repressão do crime de lavagem”
(MORO, 2010, p. 36), na esteira do já indicado supra.
Vale aqui retomar a referência à legislação portuguesa sobre a matéria, na
qual existe disposição estabelecendo um limite à pena do delito de lavagem de
valores em referência ao crime antecedente. Cuida-se do dispositivo n. 10, do artigo
368-A, do Código Penal Português, para o qual a pena efetivamente aplicada ao
branqueamento não pode ser superior ao patamar máximo “da pena mais elevada
de entre as previstas para os factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens”.
Como Jorge Duarte vaticina que:

[...] esta norma mais não visa que [...] procurar alcançar um equilí-
brio entre a pena aplicável ao agente do crime de branqueamento e
a pena aplicável ao agente dos crimes subjacentes, atenta a relação
genética existente entre estes ilícitos, pois que, sem crime-base, não
pode, naturalmente, existir crime de branqueamento. (Apud MONTEI-
RO, 2012, p. 37)

Enfim, encerra-se este estudo com interessante proposta legislativa visando


alterar a redação do artigo 1º da Lei nº 9.613/98, apresentada por Salvador Netto,

escolhidos diante de outros de idêntica ou maior gravidade, dúvidas temos se melhor sorte assistiria a
uma escolha de categorias de delitos em função das penas previstas” (WEBER e MORAES, 2013, p. 351).

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Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes

Costa e Sarcedo por ocasião do 19º Seminário Internacional de Ciências Criminais


do IBCCRIM, que em boa parte sintetiza as preocupações desveladas neste artigo:

Art. 1.º...
§4º A pena será reduzida de um sexto a dois terços, se os crimes
definidos nesta Lei forem praticados em caráter isolado e o delito
antecedente tiver a cominação de pena menos grave que o crime
previsto neste artigo. A pena será aumentada de um a dois terços,
se os crimes definidos nesta Lei forem praticados de forma reiterada.
§6º Serão puníveis os delitos previstos neste artigo, ainda que des-
conhecido ou isento de pena o autor do crime de que provieram os
bens, direitos ou valores. No caso de o autor da lavagem ser o mes-
mo autor do crime antecedente, aquela apenas será punida se de-
monstrada sua relativa autonomia e estruturação em face do crime
anterior.
§7º A ocorrência dos crimes previstos neste artigo ficará dependente
do estabelecimento de valor econômico mínimo, a ser fixado pelo
Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).
Art. 14...
§4º O COAF, por meio de resolução, deverá determinar o valor mínimo
a ser apurado para a ocorrência dos delitos previstos no artigo 1º
desta Lei. (2013)

Como apontado anteriormente, algumas das disposições adotadas por essa


proposta legislativa poderão encontrar certos entraves em sua efetivação. Entretanto,
a medida é, sem dúvida, acentuadamente mais adequada, sob a perspectiva da
proporcionalidade, do que a atual redação da Lei nº 9.613/98, vigente após a Lei nº
12.683/12, que trata em um mesmo patamar repressivo situações materialmente
distintas.

8 Conclusões
Resta, neste capítulo, apresentar algumas ponderações finais sobre o tema
aqui tratado, não olvidando que inexistem respostas simples e definitivas em seara
tão complexa e intrincada como a da lavagem de valores.
Ainda que se possa falar em bens jurídicos diversos e na gravidade da lesão
à administração da Justiça ou à ordem econômico-financeira perpetrada com
a prática do branqueamento de capitais, afigura-se inegável a possibilidade de
desproporção entre as sanções previstas para a lavagem e para diversas infrações
penais antecedentes, com destaque para os crimes de menor potencial ofensivo
e para as contravenções penais.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019 55
Gabriel Silva Costa

Por sua vez, constatado o risco dessa severa desproporção entre as punições,
surgem alternativas ou meios de tornar mais racional e razoável a aplicação do direito
penal antilavagem, o que se verifica, fundamentalmente, em algumas vertentes,
apresentadas ao longo do texto.
A primeira é, sem dúvida, a previsão de que apenas crimes graves sejam
passíveis de ensejar a lavagem dos bens deles provenientes. Em que pese a
dificuldade de se circunscrever um conceito de gravidade que atenda a todos os
múltiplos fatores que podem ser colocados em jogo, a pena aplicada ainda se
apresenta como o melhor critério, sendo esse utilizado inclusive para a delimitação
de crimes de menor potencial ofensivo ou passíveis de suspensão condicional
do processo, transação penal ou prisão preventiva. Trata-se, portanto, de critério
já adotado, em certa medida, pelo ordenamento jurídico brasileiro, sugerido pela
Convenção de Palermo e utilizado, com algumas variações, por diversos países,
como Portugal e Alemanha.
Em segundo lugar, aponta-se a opção legislativa portuguesa no sentido de
limitar a força punitiva aplicada à lavagem ao máximo da pena cominada ao delito
antecedente, percebendo-se que, não obstante sejam delitos distintos, estão
umbilicalmente jungidos, não sendo razoável que a tentativa de proveito do fruto
ilícito seja mais grave que a prática que o gerou. Cuida-se de uma proposição que
se possa chamar de conciliatória, pois ainda mantém a abertura do rol de crimes
prévios, mas limita a aplicação da sanção penal, merecendo referência a salutar
proposta legislativa do IBCCRIM em sentido parecido.
De outra face, vale anotar, uma vez mais, que, no que tange ao denominado
“jogo do bicho”, há um deslocamento do problema central, que é sua tipificação
como contravenção penal. Se estão corretos os autores que discorrem sobre o
tema, afirmando a danosidade social desse tipo de loteria e reafirmando o desvalor
da conduta, mais adequado seria alçá-lo ao status de crime, como o faz o Projeto
de Novo Código Penal, do que, com o fim de capturar uma ou duas contravenções
penais “graves”, recolher todo um subsistema do Direito Penal brasileiro.

Money laundering: a critical analysis about extinction of the precedent crime list
Abstract: The present article seeks to analyze the extinction of the list of crimes prior to money
laundering, carried out by Act n. 12.683/12, briefly reviewing the national and international context of its
emergence, as well as the generations or legislative models that preceded it, in order to allow a critical
contribution on the allegation of disproportionality existing between several hypotheses of previous
criminal offenses, For crimes of lesser offensive potential and criminal offenses, and the sanction for
the offense of money laundering. The study also turns to the investigation of possible political and
criminal consequences resulting from the suppression of the list of antecedent crimes, such as the
obstacle to the conditional suspension of the process or the criminal transaction in several previous

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Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes

crimes, as well as the trivialization of the Criminal prosecution system, both because of the overload
and the loss of focus on Finally, some proposals are pointed out in order to avoid the aforementioned
prognoses and to preserve the reasonableness and proportionality between the apprehension applied
to the previous offense and the money laundering.

Keywords: Money laundering. Precedents crimes. Legislative models. Legal interest. Proportionality.

Resumen: El presente artículo busca analizar la extinción del rol de crímenes antecedentes al blanqueo
de capitales, llevada a cabo por la Ley n. 12.683/12, recorriendo brevemente el contexto nacional e
internacional de su surgimiento, así como las generaciones o modelos legislativos que la precedieron,
con el fin de permitir un aporte crítico sobre la alegación de desproporcionalidad existente entre diversas
hipótesis de infracciones penales previas, con destaque para los delitos de menor potencial ofensivo
y contravenciones penales, y la sanción con el delito de blanqueo de capitales. Se examina también
la investigación de posibles consecuencias de orden político-criminales derivadas de la supresión de
la lista de crímenes antecedentes, tales como el óbice a la suspensión condicional del proceso o a
la transacción penal en diversos delitos previos, así como la banalización del sistema de persecución
penal, tanto en razón de la sobrecarga como por la pérdida del foco en la gran criminalidad. Por último,
se señalan algunas proposiciones para evitar dichos pronósticos y preservar la razonabilidad y la
proporcionalidad entre el aplazamiento aplicado al delito previo y al blanqueo de capitales.

Palabras clave: Blanqueo de capitales. Rol de crímenes antecedentes. Modelos legislativos. Bien
jurídico. Proporcionalidad.

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Recebido em: 11.07.2019


Aprovado em: 30.09.2019

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

COSTA, Gabriel Silva. Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do


rol de crimes antecedentes. Revista Fórum de Ciências Criminais – RFCC, Belo
Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019.

60 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019
O juízo de admissibilidade da
acusação nos procedimentos penais
estrangeiros1

Hélio Peixoto Junior


Mestre em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Membro
do Corpo Editorial do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e
do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). E-mail: jrheliopeixoto@gmail.com.

Resumo: Reconhecido o impacto que um processo criminal tem na vida de um cidadão, o presente artigo
busca brevemente trazer lições de ordenamentos jurídicos estrangeiros – nacionais e supranacionais –
referentes ao momento de análise judicial da acusação formal a dar início a um procedimento de
apuração de responsabilidade subjetiva penal para propor bases de discussão com relação ao juízo de
admissibilidade da acusação no processo penal brasileiro tal qual vigente.
Palavras-chave: Juízo de admissibilidade. Acusação. Ampla defesa. Procedimento.

Sumário: 1 Introdução – 2 The preliminary hearing no processo penal estadunidense – 3 L’udienza


preliminare no processo penal italiano – 4 Da instrução no processo penal português – 5 The Pre-Trial
Chamber no Tribunal Penal Internacional – 6 O juízo de admissibilidade no Processo Penal brasileiro – 7
Conclusão – Referências

1 Introdução
O presente artigo advém de dissertação de mestrado apresentada no programa
de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo que
teve por objeto de análise o juízo de admissibilidade da acusação sob um viés
constitucionalista, com enfoque nos direitos fundamentais da ampla defesa e do
contraditório.
Nesse aspecto, diante da limitada participação da defesa no âmbito da
investigação criminal, há de se sobrevalorizar o juízo de admissibilidade da acusação,
uma vez que será neste momento que o juiz deverá verificar a imputação acusatória,
única e somente após a reação defensiva.

1
Artigo elaborado por autor convidado.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019 61
Hélio Peixoto Junior

Parte-se, portanto, da conceituação cunhada por Zilli2 para apontar o juízo


de admissibilidade da acusação como o momento processual bipartido em que o
juiz há de verificar os aspectos de existência e validade da relação processual e,
somente após a manifestação defensiva concretizar a dialética processual inicial,
poderá então asseverar e reconhecer, por meio de decisão judicial fundamentada,
a legalidade e legitimidade da acusação oferecida.
Medida efetiva de fortalecimento do instituto e de melhor concretização no
seio do procedimento penal, propõe-se uma leitura do juízo de admissibilidade da
acusação como garantia do acusado, pois será espaço de contenção de acusações
infundadas e sem qualquer lastro, impedindo então submeter o cidadão ao peso
de um processo criminal fadado ao fracasso.
Dentre os inúmeros aspectos para discutir o juízo de admissibilidade, tais como
delimitação do momento exato do nascimento do processo penal, dos critérios de
verificação dos pressupostos processuais e das condições da ação, neste espaço
buscar-se-á trazer experiências dos ordenamentos jurídicos estrangeiros, nacionais
e supranacionais, para suscitar confrontações com o modelo de processo penal
brasileiro.
Foram então elencados os sistemas estadunidense, italiano e português,
em razão da sensível e histórica relação dos referidos sistemas na construção
do Direito Processual Penal brasileiro e cada vez mais frequente propositura de
mudanças, como verificado ultimamente com os métodos consensuais de solução
no campo criminal.
Sendo assim, o presente trabalho se lança a elencar especificidades destes
três sistemas, buscando situá-los em perspectiva com a própria realidade brasileira.
Ao final, serão, ainda, delineadas sucintas questões relativas ao Tribunal Penal
Internacional, órgão supranacional que vem ganhando cada vez mais importância
na geopolítica mundial.

2 The preliminary hearing3 no processo penal estadunidense


Aponta-se que os países da common law, tal qual Estados Unidos da América
e Inglaterra, não inseriram em seus ordenamentos jurídicos a figura do juiz instrutor,
conforme há no sistema misto de processo penal. Nesse espeque, a instrução

2
Zilli conceitua o recebimento da acusação como a “declaração judicial de reconhecimento da convergência
dos mantos da legalidade e da legitimidade da tese acusatória e cujo selo somente pode ser estampado
após o movimento dialético processual inicial” (ZILLI, 2015, p. 5).
3
Lafave e Israel apontam que esta também é conhecida como “preliminary examination”; “probable cause
or bindover hearing” (LAFAVE; ISRAEL, 1993, p. 655).

62 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019
O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros

preliminar cabe ao Grande Júri, tendo este se transformado, posteriormente, em


órgão responsável pelo prévio controle da admissibilidade da acusação. Ocorre que
o Grande Júri teria desaparecido em 1937 do sistema britânico, permanecendo
apenas nos Estados Unidos da América (FERNANDES, 2005, p. 110).
Anderson (1970, p. 284) aponta que a preliminary hearing tem sua origem
em normativas elaboradas há mais de 400 anos, sendo suas funções históricas
a inquirição e prevenção frente à libertação indiscriminada de prisioneiros.
Inquirir testemunhas e vincular suspeitos a procedimentos criminais vindouros,
prendendo-os ou obrigando-os a pagar fiança. O suspeito era interrogado de forma
secreta, testemunhas da acusação não eram inquiridas em sua presença, não era
permitida assistência de um advogado e, além disso, o imputado não tinha ciência
dos elementos probatórios em seu desfavor. Dessa forma, o procedimento em sua
totalidade tinha por escopo beneficiar a acusação, tendo por único aspecto positivo
ao acusado ser posto em liberdade logo no seu início.
Fruto de uma evolução foram fixados requisitos, o principal deles o fato da
acusação apresentar elementos probatórios suficientes a demonstrar que um delito
fora cometido e que haveria probable cause de que fora o suspeito trazido perante
o juiz que o cometera.4 Nesse aspecto, a preliminary hearing desenvolveu-se como
uma fase de cunho probatório (evidentiary screen) a fim de eliminar acusações
infundadas (ANDERSON, 1970, p. 284).5 Dressler (1997, p. 8) aponta que esta é
a função primária da preliminary hearing. Destaca-se que esta tem lugar apenas
nos casos em que se julgam felonies (LAFAVE; ISRAEL, 1993, p. 655).6

4
George Jr. aduz que: “Nel corso dell’udienza preliminare l’imputato gode di tutte le garanzie costituzionali
che gli sono riconosciute nel dibattimento poiché la preliminary examination è considerata una vera e
propria fase processuale. Solo pochi Stati consentono ala pubblica accusa di presentare l’information di-
rettamente al Giudice del dibattimento, senza passare attraverso il filtro dell’udienza preliminare. In questi
casi è tuttavia pur sempre richiesta una udienza per stabilire l’esistenza di sufficienti indizi di colpevolezza
(probable cause) quando si deve decidere se sttoporre l’imputato a custodia cautelare ovvero concedergli
la libertà provvisoria in attesa del giudizio” (GEORGE JR., 1988, p.123).
5
Lafave e Israel apontam que: “Preliminary hearing screening is said to serve to prevent hasty, malicious,
improvident, and oppressive prosecutions, to protect the person charged form open and public accusa-
tions of crime, to avoid both for the defendant and the public the expense of a public trial, and to save the
defendant from the humiliation and anxiety involved in public prosecution, and to discover whether or not
there are substantial grounds upon which a prosecution may be based” (LAFAVE; ISRAEL, 1993, p. 656).
No mesmo sentido aponta Goldstein: “The preliminary hearing examination is an important institution,
both because of the protection it affords the accused and because of its strategic position in the criminal
justice system and intimate interrelation with other aspects of the process – arrest, bail, prosecutorial
discretion, the grand jury, and the trial” (GOLDSTEIN, 1974, p. 772-773).
6
A jurisdição norte-americana, de uma forma geral, divide os delitos em uma classificação bipartida: misde-
meanor e felony. A primeira categoria corresponde a condutas delituosas menos gravosas, cuja punição,
geralmente, é limitada a menos de um ano de privação de liberdade. Já a segunda categoria representa
condutas delituosas mais sérias, podendo ser violentas ou não violentas, em que o tempo de privação de
liberdade é no mínimo de um ano. Outro aspecto refere-se à instalação prisional podendo ser uma jail faci-

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019 63
Hélio Peixoto Junior

Objeto de grande discussão e intentos de reforma no sistema e doutrina


norte-americana, esta fase, não raro, é indicada como causa do atraso no
julgamento dos casos penais. Assim, há uma parcela dos atores do sistema penal
norte-americano que indicam ser a preliminary hearing perda de “tempo e esforço”,
bem como apontam esta como uma fase crítica do procedimento criminal.7
Após sugerir dois modelos de construção desta fase procedimental (the
foward-looking model e backward-looking model), Goldstein (1974, p. 802-803)8
destaca que a crítica acerca da redundância desta análise inicial do delito perante o
Grande Júri merece algumas ressalvas, tendo em vista que o Grande Júri se mostra
como mero referendo ao Ministério Público, de modo que não provém qualquer
proteção ao acusado, na maioria dos casos. Assim, para o autor, a preliminary
hearing e o grand jury devem ser vistos como institutos independentes que se
complementam, ao invés de fases duplicadas com a mesma função.
Aponta-se também como um dos escopos da preliminary hearing a determinação
do montante adequado a ser pago a título de fiança, de forma que o suspeito e
seu advogado apresentem provas e argumentos para o juiz e membro do Ministério
Público a fim de resultar em um montante favorável ao cidadão. Há um aspecto
adicional de permitir ao cidadão ser informado acerca de todos os detalhes da
acusação que pende sobre si. Assim, o delineamento da estratégia defensiva a
ser apresentada em julgamento ou até mesmo a busca por soluções consensuais
(plea bargaining) são mais efetivos (ANDERSON, 1970, p. 287).

lity ou prison facility. Aponta-se que a referida classificação pode variar de Estado para Estado (ROBERTS,
2011, p. 290).
7
Não obstante, o autor aponta que: “some autorithies argue that the preliminary hearing may now be so
rooted in the traditions and conscience of our people that there should be a constitutional right to the
hearing”. Em sequência indica que: “reformers argued that an adversary procceding would serve better to
protect the accused from illegal detention and also serve to protect him from the annoyance and costs of
having to defend himself at a public trial. It followed that the accused must be allowed the right to secure
counsel for hearing, and legislation has been considered in recent years to require appointment of counsel
for the indigent accused. It also followed that at an adversary hearing the accused should have the right
to make a statement in his own behalf, to produce witnesses in his defense, and to confront and cross-
examine witnesses for the prosecution. Model legislation was proposed and followed by many states that
sought to extend basic trial rights to preliminary hearings” (ANDERSON, 1970, p. 283-286). Em contra-
posição a ser a preliminary hearing um direito constitucional do cidadão, Lafave e Israel apontam que no
julgado Lem Woon v. Oregon a Suprema Corte, unanimemente, apontou-se que a ausência desta fase
procedimental não avilta a garantia do due process of law, entendimento confirmado em Gerstein v. Pugh,
apontando que esta não seria resultado direto da quarta emenda (LAFAVE; ISRAEL, 1993, p. 661-662).
8
E prossegue para apontar que: “The grand jury is designed in theory to provide an input for lay or commu-
nity views into the criminal process at a stage prior to trial, an input which both provides protection against
the arbitrary or oppressive utilization of power by a government official (i. e. the committing magistrate or
the prosecutor) and allow the grand jury to express its community judgement by exercising a power of nul-
lification to prevent a prosecution” (GOLDSTEIN, 1974, p. 803).

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O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros

Anderson (1970, p. 287-288)9 alerta que as partes não podem utilizar a


referida fase como oportunidade para o acesso de todos os fatos relevantes de
conhecimento do Estado, mas de alguma maneira a preliminary hearing serve como
uma forma limitada para a função de discovery.
A importância da preliminary hearing em grande medida depende se o Estado
adota uma jurisdição de acusação ou de informação. Dressler (1997, p. 9)10
explica que neste modelo de jurisdição, ao determinar que há prova suficiente
para vincular o cidadão submetido à persecução penal ao julgamento, o Ministério
Público apresenta um documento chamado information, que aponta as acusações
em desfavor do cidadão e os fatos essenciais relacionados à imputação. Caso o
juiz aponte que não há elementos probatórios suficientes para vincular o cidadão
ao julgamento, a acusação é refutada e o cidadão liberado. Já nas jurisdições de
acusação, a determinação do juiz acerca da probable cause pode ser suplantada
pelo Grande Júri.
Dessa forma, no modelo estadunidense a acusação é submetida inicialmente
a uma avaliação por um juiz em uma etapa denominada preliminary hearing, que, no
caso de ser a acusação aceita, é encaminhada ao Grande Júri,11 responsável por
reapreciar a acusação, determinando então o envio do processo para julgamento
perante o Pequeno Júri, concluindo a etapa precursora do julgamento (pre-trial).
Em teoria, o preliminary hearing tem relevância, pois viabiliza a defesa ter
acesso à parte dos elementos probatórios da acusação e preparar sua tese para o

9
O autor ainda aponta que: “Most courts take the historical view that it is not, but a few courts clearly have
attempted to expand the hearing into a mechanism of discovery. As the hearing becomes more adversary
in nature, other incidental functions related to discovery of evidence become more important. Effective
defense counsel can make good use of an early opportunity to cross-examine key prosecution witnesses
If a record of the testimony is kept, witness testimony will be frozen, since ‘depositions’ can be used to
impeach witnesses at trial to preserve favorable testimony of witnesses unavailable at the trial. After learn-
ing something about the strength of the state’s case, defense counsel will have a better basis for plea
negotiations with the prosecutor. If the state’s case appears weak, defense counsel will be in a much bet-
ter bargaining position. On the other hand, a strong case presented by the state may help defense counsel
convince his client that he should plead guilty.” (ANDERSON, 1970, p. 287-288).
10
Os autores exemplificam que: “In the federal system, which is an indictment jurisdiction, the prelimi-
nary examination is not held if the defendant is indicted before the date set for the preliminary hearing”
(DRESSLER, 1997, p. 9). La Fave e Israel apontam 15 aspectos que sustentam a enorme diferença de
2 a 30% de arquivamentos nas cortes norte-americanas. Não obstante os autores concluem que: “As for
some differences, such as differences in the extent of pre-hearing prosecutorial screening, their impact
might suggest that the disparate rates do not reflect significant differences in the effectiveness of prelimi-
nary hearing screening, but rather differences in the types of cases that reach the preliminary hearing. As
for other, such as caseload or institutional factors that promote efforts to sharply reduce the number of
cases that reach the felony trial courts, their impact might suggest that rate differentials are attributable
to one jurisdiction adopting a screening determination that goes substantially beyond assessment of the
technical sufficiency of the evidence” (LAFAVE; ISRAEL, 1993, p. 656-657).
11
Anderson chama o Grande Júri de “final evidentiary screen in the pretrial process” (ANDERSON, 1970, p.
286).

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Hélio Peixoto Junior

julgamento. Já a relevância da fase pré-julgamento se mostra ao permitir solucionar


antecipadamente questões processuais e permitir às partes transacionarem. Ocorre
que, na prática, ambas as fases supracitadas possuem aspectos inquisitoriais,
mantendo-se o matiz inquisitorial durante a instrução provisória, já que a defesa
não participa (FERNANDES, 2005, p. 110).12
Aponta-se que a possibilidade de soluções consensuais, a formação de regras
oriundas da jurisprudência e a grande aceitação do princípio da oportunidade
viabilizaram maior flexibilidade na tramitação dos processos criminais nos Estados
Unidos da América e na Inglaterra, restando à fase de julgamento diminuta parcela
dos casos investigados (FERNANDES, 2005, p. 111).
Nesse aspecto, o núcleo da fase procedimental pré-julgamento, teoricamente,
é submeter ao escrutínio judicial a discricionariedade dos órgãos de persecução
penal (Polícia e Ministério Público), de forma que o papel central ocupado pela
preliminary hearing deve ser mais reconhecido e desenvolvido no sistema criminal
federal norte-americano, a fim de construir um sistema penal mais justo e igualitário
(GOLDSTEIN, 1974, p. 805).

3 L’udienza preliminare no processo penal italiano


No Direito Processual Penal italiano verifica-se a existência da chamada
l’udienza preliminare, usualmente tripartida funcionalmente pela doutrina. Esta
teria, portanto, as funções de: i) ser um filtro frente às imputações arriscadas; ii)
espaço para manifestação do direito à prova; iii) contexto para escolha dos ritos
alternativos ao dibattimento (CASSIBA, 2007, p. 1).13
Prevista no Título IX do Código de Processo Penal italiano, os arts. 416 a 431
tratam das questões atinentes a esta fase processual e seus pontos correlatos.
Dessa forma, não verificada a possibilidade do arquivamento da investigação, opção

12
Scarance Fernandes aponta que: “Na fase perante o Grande Júri, com raríssimas exceções, não são aco-
lhidos os requerimentos feitos pelo Ministério Público, e a defesa, porque é conhecido o ‘extremo domínio
do Ministério Público’, dela não participa. O juiz leigo não rejeita a acusação, e, por isso, não há interesse
da defesa em mostrar as provas que pretende realizar. Quando a defesa requer inquirição de testemu-
nhas, ela o faz com o objetivo de melhor se preparar para o julgamento ou ganhar tempo para concluir um
acordo. O Ministério Público pode manter segredo quanto às testemunhas e aos relatórios policiais que
serão utilizados como prova no julgamento” (FERNANDES, 2005, p. 111).
13
Prossegue o autor para apontar que: “l’udienza preliminare assolve, oggi, a un compito ben più pregnante,
essendone stata fortemente rinvigorita la ‘vocazione selettiva’ (...) L’udienza preliminare è chiamata, oggi,
a svolgere la funzione di filtro in rapporto a imputazioni che possono essere non solo azzardate ma, perfi-
no, sorrette da elementi probatori insufficienti o contraddittori. Per quanto l’insufficienza o la contradditto-
rietà esprima l’inidoneità del materiale probatorio a sostenere l’accusa in giudizio (11), a rigore, è riduttivo
affermare che, in casi siffatti, l’imputazione possa qualificarsi come azzardata. Il riferimento lessicale vale
a connotare le imputazioni del tutto sguarnite di corredo probatorio: e tali sono solo le imputazioni ‘sicura-
mente infondate” (CASSIBA, 2007, p. 3-4).

66 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019
O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros

primordial conforme estabelece o próprio código e a doutrina reafirma, a acusação


mostra-se como uma alternativa. Nesse aspecto, o Ministério Público requer a
realização da audiência preliminar, a fim de obter o pronunciamento judicial de
envio do caso a julgamento (richiesta di rinvio a giudizio – art. 417).
Assim, a data da audiência preliminar é fixada após o ingresso do pedido de
envio a julgamento perante o juiz pelo Ministério Público.14 Seu agendamento tem
absoluta urgência, devendo ocorrer dentro de cinco dias do registro do protocolo
(DALIA; FERRAIOLI, 2016, p. 640).15 Dalia e Ferraioli (2016, p. 641) lecionam que o
juiz, ao determinar a audiência preliminar, há de ser diverso daquele que interveio no
decorrer das investigações (indagini preliminar), uma vez que há incompatibilidade
entre as duas funções.16
Com o recebimento do aviso, com antecedência mínima de dez dias da
audiência a ser realizada, as partes podem consultar os autos e protocolar memoriais
e documentos. Há também a possibilidade de juntada de documentação relativa
às investigações realizadas pela defesa, após o protocolo do pedido de envio a
julgamento realizado pelo Ministério Público, conforme estabelece o art. 419.
Sua principal função seria, portanto, garantir ao acusado que pela primeira
vez se defenda em contraditório perante um tribunal independente e imparcial. Para
tanto, indispensável o conhecimento preciso da imputação. Nesse aspecto, afirma-se
que a audiência preliminar satisfaz uma necessidade de economia processual,
evitando o julgamento. Seria assim l’udienza preliminare um filtro destinado a
bloquear acusações infundadas que deveriam ter sido arquivadas pelo Promotor,
se avaliados corretamente os resultados das investigações preliminares (PISANI

14
“L’elemento centrale della richiesta è l’imputazione nei due elementi fondamentali della persona dell’im-
putato, di cui vanno precisate le generalità, e dell’addebito che a lui viene ascritto, consistente nel fatto di
reato e nelle circonstanze aggravanti o che comportano l’applicazione di misure di sicurezza: il tutto con la
menzione dei relativi articoli di legge (art. 417 lett. a), b)” (PISANI et al., 2008, p. 395).
15
Prosseguem os autores apontando que: “Il decreto di fissazioni dell’udienza deve contenere l’indicazione
del giorno, dell’ora, e del luogo dell’udienza. Tra la data del deposito della richiesta e la data dell’udienza
non dovrebbe intercorrere un tempo superiore a trenta giorni, ma trattasi, ancora, di determine ordinato-
rio, dunque non sanzionato (art. 418). Tempi così contneuti danno conto, evidenemtente, dell’intento del
legislatore di dare continuità al procedimento penale e di evitare inutili ‘ristagni’ tra l’una fase e l’altra”
(DALIA; FERRAIOLI, 2016, p. 640).
16
Acerca deste aspecto, Cassiba aponta que: “Ciò si riverbere sul controllo circa la fondatezza dell’impu-
tazione perché a una cognizione ‘sommaria’ del giudice dell’udienza preliminare, sia sotto il profilo dello
sviluppo dei temi di prova sia sotto quello dell’affidabilità del risultato, si sostituisce una cognizione mag-
giormente articolata. Emerge, qui, il saldo legame fra la disciplina probatoria dell’udienza preliminare e la
ridisegnata regolamentazione dell’incompatibilità del giudice ex art. 34 comma 2-bis c.p.p. La fisionomia
dell’udienza preliminare implica che la decisione possa essere pregiudicata da precedenti decisioni assun-
te nel corso delle indagini preliminari e, a sua volta, pregiudicare la deliberazione in sede dibattimentale:
di talché, occorreva impedire il cumulo, nella stessa persona fisica, delle funzioni di giudice per le indagini
preliminari e dell’udienza preliminare” (CASSIBA, 2007, p. 5-6).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019 67
Hélio Peixoto Junior

et al., 2008, p. 393), evitando-se assim prosseguimento de processos à fase de


dibattimento que se mostrarão inúteis.
Cassiba demarca temporalmente os anos de 1964, 1978 e 1987/1988
para discutir o crescimento da audiência preliminar no Direito Processual Penal
italiano (CASSIBA, 2007, p. 34-50). Tais momentos coincidem com discussões
para aprovações de textos legislativos que resultaram em 1988 na introdução da
audiência preliminar como uma precisa escolha do legislador.17 Comparativamente,
remete-se a inspiração para fixação desta fase procedimental no ordenamento
jurídico italiano à dinâmica típica da preliminary hearing (CASSIBA, 2007, p. 57).
No tocante ao critério decisório para a instauração da fase de dibattimento,
aponta-se que há uma função de caráter processual no provimento que encerra esta
fase da audiência preliminar: encerra-se o processo com a sentenza di non luogo
a procedere caso se comprove a inutilidade da passagem para a etapa processual
seguinte; ou, se demonstrada a necessidade da realização da audiência pública,
profere-se um decreto che dispone il giudizio (DALIA; FERRAIOLI, 2016, p. 648).18
Caso verificada uma causa de extinção do crime, de improcedibilidade da ação
penal ou de inexistência de tipicidade do fato descrito, o juiz encerrará o processo
nesta fase inicial. Além disso, tal decisão é proferida quando se verifica que o
fato não ocorreu, que o acusado não o cometera, ou seja, inimputável por causa
legalmente prevista (DALIA; FERRAIOLI, 2016, p. 649).19
Quanto ao envio do processo a juízo, é proferido quando os elementos
probatórios fornecidos e reunidos pelo Ministério Público na audiência preliminar
suportam seu pedido inicial, de forma que a condenação na fase seguinte se
mostre previsível.20 Interessante observar que tal decisão não é motivada, pois o
intento do legislador fora evitar que o acusado fosse prejudicado pelo fato de um

17
O autor aponta que o fundamento constitucional da audiência preliminar remete ao arts. 24 comma 2 e
27 comma 2, ambos da Constituição italiana, sendo a primeira tutela ao direito de defesa em sede pro-
cessual, além de reafirmar a presunção de inocência (CASSIBA, 2007, p. 53).
18
No mesmo sentido: TONINI, 2006, p. 421.
19
Apontam em sequência os autores: “I poteri decisori del giudice corrispondono, dunque, a quelli del
giudice del dibattimento, perché formule terminative del giudizio dibattimentale, in virtu delle quali l’asso-
luzione viene disposta sia perché sono emerse prove a discarico sia perché mancano, sono insufficienti o
contraddittorie le prova a carico, sono applicabili anche in questa fase” (DALIA; FERRAIOLI, 2016, p. 649).
20
Tonini assim leciona expressamente: “il giudice emette il decreto che dispone il giudizio quando gli ele-
menti forniti dal pubblico ministero a sostegno della richiesta e le prove eventualmente raccolte nell’udien-
za preliminare fanno ritenere prevedibile una condanna in dibattimento” (TONINI, 2006, p. 424). O autor
aponta que o art. 429 não traz expressamente o quantum de prova é necessário, sendo este compreendi-
do pela interpretação a contrario do critério previsto para proferimento da sentenza di non luogo procedere.

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O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros

juiz afirmar, em momento anterior ao dibattimento, detalhadamente a confiabilidade


dos elementos probatórios trazidos (TONINI, 2006, p. 424).21
Quanto ao segundo aspecto relativo à manifestação do direito à prova, verifica-se
que a garantia a tal aspecto se mostra de extrema importância para efetivar o
contraditório na formação da decisão de envio à próxima fase ou encerramento
do processo nesta fase inicial. Semelhante ao discovery do Direito anglo-saxão,
neste momento processual a defesa terá acesso ao que foi coletado pelo Estado
na investigação preliminar.
Há também um debate perante o juiz da audiência preliminar, manifestando-se
inicialmente o Promotor para então a defesa ter a palavra, podendo haver inclusive
o interrogatório do acusado nos moldes que ocorre na fase do dibattimento. Além
disso, o legislador previu a possibilidade de as partes buscarem esclarecer questões
lacunosas oriundas da investigação preliminar, conforme se verifica no art. 421,
do CPP italiano (LOZZI, 2012, p. 429), através de uma atividade suplementar à
investigação preliminar, havendo também a possibilidade de o juiz coletar provas
ex officio, a fim de poder encerrar a referida fase.
Cassiba22 alerta para a necessidade de incorrer no mal-entendido de considerar
que a audiência preliminar exige um standard probatório baixo para justificar a
acusação. Aponta-se que a atuação do juiz se dará no sentido de verificar se os
elementos probatórios apresentados não se mostram insuficientes ou contraditórios
ao fim do envio do processo à fase do dibattimento.
A suficiência probatória para fins do decreto para abertura da fase processual
seguinte se mostra quando verificado que o quadro probatório seja suscetível de
ser esclarecido em sede de dibattimento. Seria, portanto, a aplicação da teoria da
utilità del dibattimento elaborada pela Corte Constitucional em 1991.23

21
Assim, Tonini aponta que a decisão deve conter: “‘l’enunciazione in forma chiara e precisa del fatto’ e
dell circostanze, con l’indicazione dei relativi articoli di legge (art. 429, comma 1, lett. c, mod dalla legge
n. 479 del 1999); ‘l’indicazione sommaria delle fonti di prova e dei fatti cui esse si riferiscono’ (art. 429,
comma 1, lett d). Si tratta di informazioni che probabilmente la difesa già conosce perché sono inserite
nella richista di rinvio a giudizio (art. 417, comma 1, lett. b e c) o perché sono emerse nel corso dell’udien-
za preliminare” (TONINI, 2006, p. 424). Também apontando os requisitos de tal decisão.
22
O autor aponta que: “Come sottolineato anche dalla giurisprudenza costituzionale, la ‘quantità e [la]
qualità’ del materiale probatorio che può ‘trovare ingresso’ in sede di udienza preliminare incidono in
profondità sui connotati dell’accertamento qui compiuto; all ‘‘incremento’ degli elementi probatori ‘corri-
sponde – quanto alla determinazione conclusiva – un apprezzamento di merito ormai privo di quei caratteri
di ‘sommarieta’ che prima della riforma erano tipici di una delibazione tendenzialmente circoscritta allo
stato degli atti” (CASSIBA, 2007, p. 91).
23
Cassiba leciona que: “Il giudice dell’udienza preliminare deve disporre il rinvio a giudizio quando reputi
che l’istruzione dibattimentale conduca a ‘soluzioni aperte’ o, specularmente, la sentenza di non luogo
‘nele sole ipotesi in cui è fondato prevedere che l’eventuale istruzione dibattimentale non possa fornire
utili apporti per superare il quadro di insufficienza o di contraddittorietà probatoria’. E prossegue para
afirmar: “il legislatore ha reso esplicito che l’insufficienza e la contradditorietà della prova impongono qui

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Nesses moldes, proferida a decisão determinando o prosseguimento do


processo penal, o juiz que preside a audiência preliminar há de formar dois autos: o
fascicolo per il dibattimento e o fascicolo del pubblico ministero (art. 431). A distinção
entre esses dois fascículos é apontada como um dos pontos nodais do Código
de Processo Penal italiano, pois há de se reservar à fase seguinte a formação da
prova, bem como evitar que haja qualquer conhecimento ou presença dos elementos
reunidos em sede de investigação, momento que não houve contraditório entre as
partes (TONINI, 2006, 425). O fascículo do Ministério Público tem um conteúdo
residual, aglutinando a documentação reunida pela Polícia e pelo próprio Ministério
Público. Destaca-se que este não será do conhecimento do juiz oficiante em sede
de dibattimento.
Em relação ao contexto de escolha de ritos alternativos ao dibattimento, após
a reforma pela Lei nº 479 de 1999, determinou-se que a audiência preliminar é
o momento para se efetuar, sob pena de decadência,24 o pedido de conclusão
antecipada do processo.25 Assim, há a possibilidade de o acusado requerer a
aplicação do rito imediato ou abreviado, neste havendo a determinação do mérito
do processo, conforme estabelece o art. 438, do CPP italiano. Há a possibilidade de
o juiz da audiência preliminar negar o referido pedido de alteração do procedimento
diante de uma lacuna da investigação preliminar que necessite ser afastada (LOZZI,
2012, p. 440).

4 Da instrução no processo penal português


No sistema processual penal português há o regramento da fase de instrução
que se mostra como etapa facultativa26 no procedimento comum e não tem

il proscioglimento dell’imputato, sebbene il vaglio giurisdizionale non intervenga ‘sul merito’ del giudizio,
perché non implica l’accertamento della colpevolezza, ma concerne, unicamente, la verifica della sostenili-
tà dell’accusa, sia pure effettuata secondo canoni di maggiore completezza rispetto al passato” (CASSIBA,
2007, p. 92-93).
24
Por óbvio que nas hipóteses em que houver indeferimento irregular do pedido de aplicação de sentença,
nos moldes do art. 444 do CPP italiano, ou de rito abreviado, o referido pedido poderá ser reapresentado
ao juiz competente para o dibattimento (CASSIBA, 2007, p. 8).
25
Tratando sobre alternativas incidentes sobre as fases do procedimento, Scarance Fernandes ensina que:
“O atual procedimento imediato italiano não tem mais relação com o de 1930, o qual era destinado a
processos para os crimes cometidos em audiência (art. 435). O procedimento imediato do Código de
1988, disciplinado pelos arts. 419, 5, e 453, 3, é outro, bem diverso, sendo a sua ‘peculiaridade mais
evidente (...) representada pela ausência de audiência preliminar’ e, nesse ponto, se aproxima do procedi-
mento diretíssimo. Contudo, diferentemente desse, pressupõe a existência de uma fase de investigação
preliminar, ainda que sucinta, não derivando de prisão em flagrante. A adoção do procedimento imediato
pode resultar de iniciativa do Ministério Público, de requerimento da pessoa investigada, no início da
audiência preliminar, ou em virtude de oposição ao decreto de condenação no procedimento monitório”
(FERNANDES, 2005, p. 218).
26
Scarance Fernandes leciona que em homenagem à eficiência e celeridade com garantismo é de se
aplaudir a facultatividade da instrução no processo penal português. Em sequência o autor indica que:
“Cuida-se de audiência da tradição do sistema anglo-americano conhecida como preliminary examination,

70 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019
O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros

aplicabilidade nas formas especiais de processo (sumário, abreviado e sumaríssimo)


(ANTUNES, 2016, p. 95-97). Sua aplicação decorre de requerimento direto das partes,
conforme se observa no art. 287, 1, do Código de Processo Penal português. Tal
pedido deve conter as razões de fato e de direito do requerente, frente à decisão
do Ministério Público em acusar ou não o arguido. Do mesmo modo, deve indicar os
atos de instrução de desejo da parte para que o juiz leve a cabo, além dos meios
de prova não considerados durante a investigação e, por fim, dos fatos que intenta
a parte comprovar nesta fase do processo.
Scarance Fernandes (2005, 113-114) leciona que, em Portugal, tal como
ocorrido na Itália e na Alemanha, com a adoção do sistema acusatório em abandono
do sistema misto, a finalidade da fase intermediária fora alterada. Assim, esta
não se destina mais à apuração dos fatos pela figura do juiz instrutor, mas sim a
proporcionar ao arguido a oportunidade de se defender e apontar meios de prova.
A finalidade da fase de instrução refere-se à comprovação judicial da decisão
de deduzir acusação ou de arquivamento do inquérito para submeter ou não a
causa a julgamento, não sendo esta um suplemento autônomo da investigação,
mas sim um suplemento de investigação autônomo (ANTUNES, 2016, p. 98).27
Sousa Mendes (2014, p. 84) equipara o requerimento de abertura da instrução às
funções de um recurso, inexistente neste caso específico frente ao despacho de
acusação ou arquivamento do inquérito.
Além disso, teria esta fase a função complementar de reformulação do objeto
do processo, pois este será constituído do resultado desta fase, quando realizada.
Assim, haveria, portanto, uma função garantidora dos direitos de defesa, sabendo
este exatamente de quais fatos terá que se defender, caso prossiga o procedimento
para julgamento (MENDES, 2014, p. 85). Com isso, caso na decisão que encerra
a fase de instrução constar fatos não anteriormente incluídos pelo Ministério

preliminary hearing ou examination trial, que influenciou o debate instrutório do Código de Processo Penal
de Portugal e a audiência preliminar do Código de Processo Penal italiano (Livro V, Título IX, arts. 416-433)
(FERNANDES, 2005, p. 114).
27
A autora aponta que: “A instrução não é um ‘instrumento de sindicância da atuação do ministério público
ao longo do inquérito, mas antes e tão-só uma fase destinada a comprovar o acerto da decisão de acusar
ou de arquivar tomada pelo ministério público”. Posteriormente aponta-se que houve reformas no direito
processual português que acabaram por desfigurar ligeiramente o aspecto desta fase ser apenas uma
fase de controle judicial da tomada de decisão em acusar ou arquivar a investigação. Assim aponta a pu-
blicidade da investigação como regra (art. 86, nº 1); a contraditoriedade dos atos de instrução (art. 289,
nº 2) e a equiparação do regime de alteração da qualificação jurídica dos fatos descritos na acusação e
o requerimento para abertura de instrução ao regime da fase de julgamento (arts 303, nº 5 e 358, nº 3)
seriam exemplos desta constatação.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019 71
Hélio Peixoto Junior

Público, haverá alteração substancial do objeto do processo, de forma que será o


despacho nulo.28
Nesse aspecto, a instrução não tem por escopo analisar a responsabilidade do
arguido, fixando-se apenas sobre a admissibilidade de sua sujeição a julgamento.
A figura do juiz de instrução desempenha um duplo controle acerca dos direitos
fundamentais, tendo por vantagem ao cidadão uma segunda análise de quem não
participou do inquérito policial (DA VEIGA, 2004, p. 192).
Observa-se que o juiz é o sujeito processual responsável por comandar esta
fase, podendo praticar os atos necessários à comprovação da decisão promovida
pelo Ministério Público. Aponta-se que o juiz investiga autonomamente o caso
submetido a sua análise, atento às limitações do requerimento feito pelas partes
para a abertura desta, no intento de realizar a justiça e descobrir a verdade material
(ANTUNES, 2016, p. 102). Há a plena possibilidade de auxílio pelos órgãos policiais,
os quais podem realizar diligências e investigações apontadas pelo juiz, menos o
interrogatório do arguido e inquirição das testemunhas, além de atos legalmente
atribuídos exclusivamente ao juiz, conforme especificado nos arts. 268, nº 1, e
270, nº 2, do Código de Processo Penal português.
Há obrigatoriamente um debate instrutório das partes frente ao juiz da instrução,
conforme fixado no art. 289, do CPP português. Sua finalidade é viabilizar uma
discussão perante o juiz, de forma oral e contraditória, sobre se os pontos relativos
ao inquérito e à instrução resultariam em indícios fáticos e elementares jurídicas a
justificar a submissão do arguido à fase seguinte de julgamento. Aponta-se apenas
que os atos de instrução não são submetidos ao contraditório, somente o debate
interpartes que afirma o referido princípio (CARVALHO, 2013, p. 314). O debate
instrutório há de ser contínuo, sem qualquer interrupção ou adiamento até seu
encerramento, em razão do princípio da concentração temporal. Entretanto, são
admissíveis interrupções necessárias.
Nesses moldes, encerrada a discussão contraditória, o juiz de instrução deve
proferir o despacho de pronúncia ou não pronúncia.29 Na doutrina lusitana, há uma
parcela que aponta a instrução como uma fase perversa do processo penal, já que,
ao invés de desenvolver uma defesa dos direitos fundamentais do arguido, seria
então prejudicial àquele, além de ser uma fase inútil (DA VEIGA, 2004, p. 194).

28
Sobre este ponto especificamente, Mendes aponta que: “O despacho de pronúncia nulo não é recorrível, é
antes reclamável. A reclamação é para a própria entidade que proferiu a decisão. A entidade que proferiu
o despacho pode deferir ou indeferir a reclamação. Se tivermos um despacho de indeferimento da recla-
mação de nulidade, este sim, é um despacho recorrível, com base no art. 310, nº 3” (MENDES, 2014, p.
89).
29
Carvalho destaca também a possibilidade de o juiz determinar o arquivamento em caso de dispensa da
pena ou de suspensão provisória do processo, conforme preveem os arts. 280, nº 2, e 74, ambos do
Código Penal, e 307, nº 2, e 281, do Código de Processo Penal (CARVALHO, 2013, p. 304).

72 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019
O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros

De forma crítica, Brandão (2008, p. 232) aponta que a realidade concreta


da fase de instrução na prática forense não respeitou os intentos do legislador,
comprovando uma instrução sacrificada a ritos processuais inúteis, expedientes
processuais dilatórios e abusivos, se mostrando única e exclusivamente um
simulacro do julgamento. O autor indica que em um regime processual como é
o lusitano, o arguido teria oportunidade de desde a fase preliminar exercer uma
defesa minimamente informada, mesmo que o inquérito tramite em segredo. Assim,
perderia sentido aguardar o controle judicial da acusação para então somente assim
exercer sua defesa requerendo produção probatória na fase de instrução perante
o juiz (BRANDÃO, 2008, p. 235).
O Tribunal Constitucional português, convocado a se pronunciar reiteradas
vezes sobre a constitucionalidade da instrução, decidiu que a ponderação da
constitucionalidade necessitaria sopesar a tramitação processual em um aspecto
global, superando o teste de conformidade constitucional sob os pontos de vista
do princípio da igualdade, da garantia da tutela jurisdicional efetiva, da restrição
excessiva do direito à ampla defesa, da presunção de inocência, do contraditório,
do princípio acusatório e do direito ao recurso (BRANDÃO, 2008, p. 232-233).30
Sousa Mendes (2014, p. 93),31 a defender a instrução, aponta que esta é
indispensável ao arguido, de modo que este possa requerer a realização de diligências
probatórias a contestar uma investigação eventualmente deficiente. Também tem
importância ao assistente no intuito de ampliar o objeto do processo, incluindo fatos
que não foram delineados em sede de investigação. Dessa forma, na opinião do
autor, a instrução seria inútil se transformada apenas em mero debate instrutório.

30
O autor aponta os julgados elencados em questão: TC nºs 31/87, 265/94, 474/94, 610/96, 468/97,
45/98, 156/98, 238/98, 266/98, 299/98, 300/98, 551/98, 216/99, 387/99, 459/00, 350/02,
463/02, 481/03, 79/05 e 242/05.
31
Também defensor da instrução, Da Veiga leciona que: “Em face de um despacho de arquivamento, o que
está em causa é o direito de o ofendido, com as vestes de assistente, pode deduzir um libelo acusatório
próprio, com indicação de meios de prova e possibilidade de requerer meios de obtenção de prova, para
além de poder analisar criticamente, à luz da lei, os pressupostos do despacho de arquivamento, tudo de
modo a tentar persuadir o Juiz de instrução a pronunciar o arguido. (...) também em face de um despacho
de acusação é manifestamente útil para o arguido tentar evitar a sua submissão a julgamento, através de
requerimento de abertura de instrução, deduzindo logo toda a defesa possível no sentido da não sujeição
a julgamento. É, desde logo, de salientar que o arguido acusado, que considera que o foi injustamente,
tem direito a tentar evitar uma submissão a julgamento socialmente estigmatizante e atentatória da sua
consideração social. É efetivamente inegável que o próprio julgamento implica restrições a direitos funda-
mentais (como ataques ao direito à imagem, à honra e consideração, bem como restrições do direito à
liberdade e até ao exercício de profissão), que são consideravelmente comprimidos (sobretudo em julga-
mentos de casos complexos e midiáticos, que envolvem muitas pessoas, designadamente testemunhas,
e que são muito demorados, tendo os arguidos de estar sempre presentes, seja por determinação do
Tribunal para o apuramento da verdade material, seja no próprio interesse da sua defesa). É, pois, legí-
timo que o acusado tenha o direito de tentar evitar tudo isso, a bem da preservação dos seus legítimos
interesses” (DA VEIGA, 2004, p. 195).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019 73
Hélio Peixoto Junior

Como argumento decisivo a favor da instrução há de se considerar esta como


a possibilidade de o arguido evitar o julgamento e ser a única via para a obtenção
de uma decisão judicial de que não deve ser então submetido à fase seguinte.
Aponta-se em adição que com a instrução o juiz a proferir o despacho de pronúncia
é outro juiz que não o competente para julgamento, pois na ausência desta fase
quem o fará será então o juiz do julgamento através do despacho equivalente ou
alternativo, responsável por designar o dia da audiência, levando consigo o pré-juízo
de ter considerado a acusação como não manifestamente infundada (DA VEIGA,
2004, p. 197).
Assim, a título de reformas ao regime jurídico da instrução, Da Veiga (2004,
204-220) apontava como tópicos: i) previsão expressa do direito de contestação
do requerimento de abertura de instrução nos casos de acusação material do
assistente, pois aquele contra quem se requer abertura de instrução deve poder
não somente requerer diligências probatórias, mas também deduzir suas razões,
fáticas e jurídicas, pelas quais não deve ser submetido a julgamento; ii) não
bilaterização do direito à contestação do requerimento de abertura de instrução,
afastando a possibilidade de contestação pelo Ministério Público e ou assistente
quando advir requerimento de abertura de instrução pelo arguido; iii) reintrodução
da recorribilidade do despacho que indefere as diligências instrutórias requeridas
pelas partes; iv) retorno à natureza contraditória de toda a instrução e não somente
do debate das partes; e, por fim, v) a solução do problema da irrecorribilidade do
despacho de pronúncia inteiramente concordante com o despacho de acusação,
afastando-se os argumentos da inexistência de prejuízo ao arguido, já que poderá
se defender na fase de julgamento.
Diante disso, Brandão (2008, p. 237-239) aponta que ocorrera uma revisão do
CPP português em 2007, ocasião em que alterados diversos pequenos pontos dos
arts. 120, nº 2, e 310, nº 1, resultando em: i) insuficiência da instrução se não forem
praticados atos obrigatórios fixados por lei; ii) estabelecimento da irrecorribilidade
da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos fatos constantes da acusação
do Ministério Público. Não obstante, aponta-se que seu resultado prático é reduzido,
pois são de difícil ou até mesmo impossível conciliação com o intento primevo da
fase de instrução, chamado nas palavras do autor seu código genético.
Ademais, aponta-se que a instrução se tornou então irreconhecível diante da
consagração da publicidade da instrução sem quaisquer exceções; da introdução
da regra do contraditório nos atos de instrução; e da proibição da devolução do
processo à fase de investigação se houver alteração substancial dos fatos descritos
na acusação (BRANDÃO, 2008, p. 239-240).32

32
O autor em sequência explica cada uma das razões que julga serem prejudiciais a tais alterações.

74 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019
O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros

Brandão (2008, p. 255)33 aponta que a mimetização antecipatória do julgamento


na instrução é indesejável de todas as maneiras, transformando o julgamento
em um déjà vu, de modo a reduzir em demasiado o papel central que este há de
desempenhar na concretização de um modelo processual penal. Assim, as alterações
foram ruins ao processo penal enquanto sistema, pois concretizadas tendências
antinômicas que vilipendiam o equilíbrio interno desta fase processual específica.
Figueiredo Dias (2008, p. 376) sustenta que um dia a instrução como fase
autônoma será eliminada do processo penal. O autor aponta que melhor seria se
a instrução fosse substituída por uma simples decisão do tribunal de julgamento
de abrir a audiência ou determinar o arquivamento, tal como ocorre no sistema
germânico.34
Assim, além dos três sistemas apontados, com suas questões mais sensíveis
à discussão que se apresenta, passar-se-á a uma breve análise do Tribunal Penal
Internacional, tendo em vista possuir aspectos distintivos frente ao ordenamento
jurídico brasileiro.

5 The Pre-Trial Chamber35 no Tribunal Penal Internacional


A jurisdição do TPI – considerada a questão das questões36 – é objeto de
intenso debate pelos Estados nacionais. O TPI é competente para julgar os crimes

33
E conclui o autor que: “Num tal contexto de irritação entre a lei escrita e a lei em acção, uma revisão
legal que projecta sinais contraditórios é reveladora de uma desorientação legislativa que naturalmente se
reflectirá numa desorientação na sua aplicação, com óbvio prejuízo para a boa realização do direito e para
o cumprimento das finalidades últimas do processo penal”.
34
Tratando do procedimento intermédio (Zwischenverfahren) do processo penal alemão, previsto nos dispo-
sitivos §§199/211 da StPO, Roxin leciona que: “La importancia principal del procedimiento intermedio
reside en su función de control negativa: discutiendo la admisibilidad y la necesidad de una persecución
penal posterior por un juez independiente o por un tribunal colegiado en una sesión a puertas cerradas,
se pretende proporcionar otra posibilidad de evitar el juicio oral, que siempre es discriminatorio para el
afectado. (...) Por otra parte, la importancia del procedimiento intermedio reside en que, una vez comuni-
cada la acusación, el imputado recibe nuevamente la posibilidad de influir en la apertura del procedimiento
principal a través de requerimientos de pruebas y objeciones” (ROXIN, 2003, p. 347). Seguindo, o autor
aponta que: “El tribunal está obligado a abrir el procedimiento principal (a través del ‘auto de apertura”)
cuando, según el resultado del procedimiento preliminar, el procesado es ‘suficientemente sospechoso’
de haber cometido una acción punible (§203), es decir, cuando es de esperar su condena, con una fuerte
probabilidad. (...) la sospecha ‘suficiente’ sólo alcanza para la cuestión referida a la comisión del hecho; el
tribunal tiene que estar convencido de la existencia de los presupuestos procesales y de la punibilidad de
la acción imputada” (ROXIN, 2003, p. 349). Entretanto, Volk critica o referido procedimiento intermedio:
“la demanda de crear un ‘tribunal de apertura’ separado es ciertamente simpática, pero ilusoria, pues
resulta costosa, retrasa considerablemente el proceso (¡cuestiones de detención!) y también fracasa por
el hecho de que los jueces conversan entre sí sobre sus juicios. Menos del uno por ciento de los casos
con acusación non son abiertos. Aun cuando se considere que el procedimiento intermedio no es efectivo,
mantiene sin embargo su alto valor simbólico” (VOLK, 2016, p. 233).
35
Apesar do presente trabalho apontar a Pre-Trial Chamber como a Sala de Questões Preliminares, tal
qual faz Zilli nos seus estudos, há parcela da doutrina que a indica como a “Câmara de Pré-Julgamento”
(FERNANDES, 2005, p. 129) e como a “Câmara Preliminar”, conforme Moisés Moreira Vieira traduziu os
escritos de TRENDAFILOVA, 2016, p. 871-899.
36
Japiassu aponta que: “Na Conferência de Roma, de 15 de junho a 17 de julho de 1998, quando foi apro-
vado o Estatuto que constitui o Tribunal Penal Internacional Permanente, o Brasil foi um dos 120 votos a
favor, sendo que também houve 7 contrários (Estados Unidos, Filipinas, China, Índia, Israel, Sri Lanka e

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019 75
Hélio Peixoto Junior

de genocídio, de lesa humanidade e de guerra, quando o Conselho de Segurança da


Organização das Nações Unidas (ONU) apontar a ocorrência de delitos de competência
daquela, cujo cometimento se deu em larga escala. Independentemente do Estado
envolvido na notícia da ONU ser ou não signatário do Estatuto, tal competência
estará firmada, conforme dispõe o art. 13b (KAUL, 2000, p. 111).
Sua atuação é condicionada ao reconhecimento da omissão ou à comprovação
do implemento de subterfúgios processuais pelo Estado nacional, atuando assim de
modo a assegurar a impunidade dos responsáveis, assim se colocando a questão
da complementaridade (ZILLI, 2013, p. 166).
Cabe destacar que há uma condição à manifestação do princípio da comple-
mentariedade, qual seja, o Estado onde o crime fora perpetrado ou o Estado cujo
suspeito faça parte deve ser signatário do Estatuto (art. 12).37 Não sendo o Estado
integrante do Estatuto, é possível a permissão ad hoc para delitos desde que
exista uma declaração específica para tanto. Desta forma, a competência do TPI
se subdivide em quatro grupos: material; territorial; temporal e pessoal.
O modelo procedimental configurado para o TPI é sui generis, transpassando
um movimento de harmonização de vários sistemas a levar um resultado final
afirmador das diversas unidades componentes da jurisdição internacional (ZILLI,
2013, p. 180).
Para tanto, as investigações são conduzidas pela Procuradoria, que também
é responsável pela realização de todas as investigações, já que não há um órgão
policial internacional previsto, podendo aquela firmar acordos com Estados e
organismos internacionais com o escopo de obter provas relativas aos fatos sob
investigação (ZILLI, 2013, p. 180).38

Turquia, além de 21 abstenções, dentre os 162 Estados-Membros das Nações Unidas que la se fizeram
reapresentar. O Brasil assinou o tratado em 7 de fevereiro de 2000 e depositou o instrumento de ratifica-
ção em 20 de junho de 2002, tendo o Presidente da República promulgado o Estatuo de Roma, por força
do Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002” (JAPIASSU, 2005, p. 199-200).
37
Há uma exceção a tal regra denominada previsão transitória, prevista no art. 124. Acerca deste ponto,
Kaul leciona que: “é aplicável especificamente aos crimes de guerra, pela qual os Estados signatários
podem deixar de processar os crimes de guerra cometidos em seu território, ou por seus cidadãos,
num período de sete anos a partir da adesão ao Estatuto. No entanto, enquanto parcial derrogação do
Estatuto – pois é disso que se trata – pode ela ser reiterada apenas dentro de estreitos limites, na medida
em que esta previsão transitória está vinculada a outras atinentes à emenda do Estatuto” (KAUL, 2000, p.
110). Zilli aponta que: “ainda que a vinculação à jurisdição do TPI seja voluntária e consensual, a adesão
ao seu regime jurídico implica imediata e completa vinculação do Estado Parte a todos os dispositivos que
compõem a base normativa do ER. Ou seja, a adesão do Estado não está sujeita a reservas e condições.
Impõe ela o dever de cooperação e que se manifesta em várias frentes, dentre as quais, o auxílio na col-
heita e obtenção de elementos probatórios. Trata-se de importante solução que procura conferir eficiência
e efetividade ao Tribunal, já que não dispõe ele de qualquer força policial própria que lhe possa assegurar
a obediência no cumprimento de suas determinações” (ZILLI, 2013, p. 166).
38
Prossegue o autor para apontar que a investigação pode se iniciar por: i) requerimento de um Estado-parte
ao Procurador, devendo apresentar indícios suficientes da prática dos delitos correspondentes à compe-

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O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros

Concluídas as investigações, a Procuradoria tem autonomia para promover o


arquivamento do inquérito quando verificar a inexistência de elementos suficientes
(probatórios ou jurídicos) para o requerimento de expedição de mandado de detenção
ou de notificação para comparecimento do suspeito perante a Corte ou dos elementos
e requisitos de admissibilidade previstos no art. 17 do Estatuto de Roma. Além
disso, se comprovado que o processo penal não teria condições de atender os
interesses da justiça penal internacional, também pode o inquérito ser arquivado,
evidenciando aqui a vigência do princípio da oportunidade no regime do TPI, todas
estas escolhas se submetem ao controle da Sala de Questões Preliminares (Pre-trial
Chamber) (ZILLI, 2013, p. 183).
Caso a Procuradoria decida por oferecer uma acusação formal, esta deverá
ser confirmada em uma audiência para esta finalidade, a qual ocorre apenas com a
apresentação do acusado, seja em razão do cumprimento do mandado de detenção
ou da apresentação voluntária daquele. A garantia do contraditório e da ampla defesa
tem plena vigência, já que o acusado comparece e apresenta sua impugnação,
podendo contestar as provas apresentadas pela Procuradoria, produzindo as que
julgar necessárias a sua defesa.
Tal qual nos ordenamentos jurídicos nacionais discutidos, seu fundamento
jurídico é proteger o acusado contra investigações infundadas, vezes arbitrárias,
além do aspecto macro e extraprocessual de evitar gastos não justificados de
tempo e orçamento do TPI.39

tência do TPI; ii) provocação do Conselho de Segurança, para que este então apresente à Procuradoria
uma notícia da prática dos referidos crimes internacionais; iii) instauração pelo próprio Procurador (proprio
motu investigations) de um inquérito lastreado em informações obtidas em outras fontes. Zilli destaca
que através de uma interpretação sistemática do Estatuto de Roma “somente na terceira hipótese está o
Procurador obrigado a obter uma autorização prévia da Sala de Questões Preliminares (Pre-trial Chamber)
para a instauração formal do inquérito”. Também tratando das investigações conforme prevê o Estatuto
de Roma: FERNANDES, 2005, p. 102-103. Destaca Scarance Fernandes que o “relevante papel destinado
ao Ministério Público na fase de investigação representa concreção de ponto de convergência entre o
modelo dos Estados Unidos e o de alguns países da Europa continental. O promotor norte americano tem
forte atuação na fase de investigação, coordenando os trabalhos desenvolvidos pela polícia e decidindo
sobre o seguimento a ser dado. Com as reformas na Alemanha, Itália, Portugal e, em parte, na Espanha,
o Ministério Público assume, nos Códigos, a missão de supervisionar a investigação”.
39
Caianiello, diferenciando a Audiência de Confirmação da Acusação na Sala de Questões Preliminares
com a Audiência Preliminar do direito processual penal italiano, aponta que: “L’udienza di convalida degli
addebiti, che há luogo uma volta formulata l’imputazioane, non è tropo dissimile dalla mostra udienza
preliminare. Si tratta infatti di um procedimento in contraddittorio, nel quale all’imputato è consentito
intervenire, presentare prove ed esporre le propie ragioni difensive. Il Prosecutor non sembra tenuto ad
operare uma completa discovery di tutta l’attività investigativa svolta, ma, ai sensi del 3º comma lett. b)
della norma citata, soltanto delle prove sulla base delle quali intende ottenere la conferma delle accusse
formulate con l’indictment. Qualora la Camera ritenga sussistente um probable cause, ossia che allo stato
gli eleemnti prodotti inducano a considerare ‘sostanzialmente’ fondata’ l’imputazione, questa viene confer-
mata e ne segue il rinvio a giudizio; in caso contrario, il non luogo a procedere (dismissal) non impedisce
al Prosecutor di ripresentare un nuovo atto d’imputazione, fondato sui medesimi fatti contestati in quello
precedente, purché sulla base di nuovi elementi probatori” (CAIANIELLO, 2001, p. 212).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019 77
Hélio Peixoto Junior

Interessante observar que há um regramento específico acerca das Regras


de Procedimento e Prova (RPE), onde há inclusive o delineamento da ordem do
procedimento de divulgação das provas, conforme se observa da Regra 121. Além
disso, determina-se a divulgação pelo Procurador da defesa das provas que sirvam
tanto à sustentação da acusação quanto à demonstração da inocência do acusado
ou mitigar sua responsabilidade pelos atos investigados, tal qual estabelece o art.
67(2).40
Mesmo sem adentar na discussão verticalizada acerca do standard probatório
a ser alcançado para confirmação das acusações oferecidas pelo Procurador,
nota-se que o ER estabelece um padrão singular que merece destaque: substantial
grounds to believe. Dessa forma, a Sala de Questões Preliminares há de avaliar as
provas para apontar se tal patamar fora atingindo, de forma a “estabelecer motivos
substanciais para acreditar que a pessoa cometeu o crime que lhe é imputado”
(TRENDAFILOVA, 2016, p. 889).41
De acordo com o art. 61 do ER, o juízo de admissibilidade da acusação é
exercido pela Sala de Questões Preliminares (Pre-trial Chamber) ao término da
supracitada audiência. Esta confirmará a acusação e submeterá o caso a julgamento
da Câmara de Julgamento se as provas apresentadas forem suficientes a supor
que o acusado tenha cometido o delito noticiado (FERNANDES, 2005, p. 129).42

40
Acerca da “disclosure” na Audiência de Confirmação da acusação, Miraglia aponta que esta: “in vista
della confirmation hearing assume um significato ancora più fondamentale per il ‘giusto processo’ rispetto
a quello rivestito in molti ordinamenti nazionali, a causa delle caratteristiche peculiari dei procedimenti
di competenza della Corte penale internazionale. Il procedimento prede avvio con un’indagine su una ‘si-
tuazione’, all’interno della quale la difesa ha spazi assolutamente limitati ed evanescenti. (...) Ci si trova
di fronte, quindi, ad um Procuratore che per mesi ha svolto indagini, dovendo, secondo il dettato dell’art.
54, ricercare ‘equalli’ anche elementi a discarico, che ha piena conoscenza del quadro probatorio – se
pur provvisorio – non solo relativo all’indagato, ma anche relativo a tutta la situazione all’interno della
quale sono stati commessi singoli fatti constituenti le fattispecie di reato che si contestano allo specifico
indagato, ed ad un difensore che ha a dispozione termini ristretti per la ricerca delle prove a discarico in
vista della confirmation hearing (senza contare le difficoltà oggettive che può incontrare nella raccolta di tali
prove. Gli oneri di discovery che gravano sull’accusa risultano, quindi, essenziali, e ci si deve domandare
se anche sufficienti, per consentire all’imputato di difendersi nell’ottica della parità delle parti; infatti,
soprattutto durante la confirmation hearing, tale difesa si base precipuamente sulle prove raccolte dal
Procuratore e comunicate dallo stesso” (MIRAGLIA, 2007, p. 114-116).
41
Aponta-se que: “O Estatuto de Roma prevê três patamares probatórios para as três fases de um caso – a
expedição de ordem de prisão (o patamar de ‘motivos razoáveis para crer’ ou reasonable grounds to be-
lieve), a confirmação das acusações (patamar de ‘motivos substanciais para crer’ ou substantial grounds
to believe) e a decisão de mérito (o patamar de ‘motivos para crer, além de qualquer dúvida razoável’
ou beyond reasonable doubt). Estes patamares são construídos levando-se em consideração a natureza
específica das diferentes fases dos procedimentos, e são organizados ‘hierarquicamente’, de forma que
cada patamar sucessivo impõe requerimentos mais elevados ao Procurador. Os patamares são consisten-
tes com o previsível impacto das decisões relevantes sobre os direitos humanos fundamentais da pessoa,
tornando-se cada vez mais rígidos e elevados de acordo com o aumento do impacto sobre o direito da
liberdade da pessoa em julgamento” (TRENDAFILOVA, 2016, p. 889).
42
Zilli aponta ainda a possibilidade do adiamento da audiência, pedindo que a Procuradoria avalie a viabili-
dade de apresentar novas provas, instaurar novo inquérito ou alterar parte da acusação (ZILLI, 2013, p.
184).

78 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019
O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros

Acerca do escopo da referida fase, em uma de suas decisões como juíza singular
no caso Katanga/Ngudjolo, Trendafilova (2016, p. 872),43 apontou que a audiência
de confirmação “tem uma abrangência limitada e de nenhuma forma pode ser vista
como um fim em si mesma, mas (...) como um meio de distinguir aqueles casos
que devem ser submetidos a julgamento daqueles que não devem”.
A audiência de confirmação é a culminação ou ápice dos procedimentos
prévios ao julgamento, reunindo os esforços de todos os agentes envolvidos. Esta
tem um impacto considerável na fase de julgamento, já que a decisão que confirma
a acusação fixa o framework, os contornos do objeto que será discutido na fase
de julgamento. Logo, a acusação do Procurador será edificada sob os pontos
que a decisão de confirmação da acusação abordou. A natureza da audiência de
confirmação é evidentemente basilar ao procedimento do TPI (TRENDAFILOVA,
2016, p. 872-873).44
Entendendo não estarem reunidas provas suficientes para o processamento
da acusação, haverá uma espécie de reconhecimento da ausência da justa causa,
não sendo tal decisão dotada de efeitos de coisa julgada material, podendo a
Procuradoria reunir novos elementos probatórios e apresentar nova acusação sobre
os mesmos fatos (ZILLI, 2013, p. 184).

6 O juízo de admissibilidade no Processo Penal brasileiro


Em relação ao juízo de admissibilidade da acusação no Direito Processual
Penal brasileiro, cabe ressaltar que em 1998 nas XI Jornadas Ibero-americanas de
Direito Processual foi apresentado o projeto final do Código Modelo de Processo
Penal para a Ibero-América.
Muito ligada aos modelos brevemente analisados anteriormente, havia a
proposição de um processo público e oral, em contraditório, com a estruturação do
procedimento ordinário dotado de uma etapa intermediária com fins de controle da
acusação, efetivando as garantias estruturantes do devido processo legal.

43
Aponta-se que outras Salas de Questões Preliminares do TPI também confirmam tal posição acerca da
Audiência de Confirmação, de modo que esta não é nem um julgamento antes do julgamento ou um mi-
nijulgamento, nem um juízo de primeira instância, não devendo se decidir acerca da culpa do acusado. A
obra em questão aponta diversos julgados, tais quais Caso Lubanga; Caso Bemba; Caso Abu Garda; Caso
Mbarushimana.
44
Prossegue a autora para ressaltar que “a Audiência de Confirmação não deve ser um procedimento profor-
ma ou uma aprovação automática dos termos da acusação do Procurador. Em vez disso, ela deve ‘filtrar’
os casos que não satisfizeram os requisitos probatórios do art. 61 (7) do Estatuto e, dessa forma, finalizar
os procedimentos desses casos nesse estágio”.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019 79
Hélio Peixoto Junior

Tal proposta exerceu grande impacto na América Latina, visto que reformas
globais foram estruturadas em países como Chile, Paraguai e Costa Rica, refundando
as bases do processo penal nesses países. Enquanto isso no Brasil, mesmo com
o intento de uma reforma global, foi possível promover apenas alterações pontuais
no Código de Processo Penal promulgado na década de 40.
A etapa intermédia, disposta nos arts. 267 a 281, previa audiência pública, com
possibilidade de produção probatória e alegações. Assim, brevemente confrontado o
projeto apresentado e finalmente aprovado no Brasil para reforma do procedimento
ordinário, com ampla participação de Ada Pellegrini Grinover, também membro central
do Código de Processo Penal Modelo para a Ibero-América, verifica-se que em 2008
estruturou-se algo muito diverso do desenhado pela Comissão de Especialistas e
consequentemente verificado nos modelos estrangeiros.
No Projeto de Lei nº 4.207 de 2007 nos parágrafos do art. 395, além da
indispensável manifestação defensiva se dar em momento anterior à conclusão do
juízo de admissibilidade da acusação, estabelecia-se uma fase independente com
possibilidade de alegações de ambas as partes, bem como de produção probatória,
mesmo que parcial.
Contudo, isso fora abandonado e afastado pelo Poder Legislativo, resultando
na edição do art. 396 do Código de Processo Penal com o vocábulo “recebê-la-á”,
responsável direto por toda a discussão acerca da sua inconstitucionalidade, pois
abre espaço para que acusações sejam recebidas sem a participação efetiva do
principal interessado na solução do caso penal, o acusado.
Nesse aspecto, vige hoje quanto ao procedimento comum ordinário, tomando
por base os arts. 396 a 399 do Código de Processo Penal, o seguinte modelo:
1) oferecimento da acusação; 2) análise judicial para rejeição ou recebimento
da acusação, determinando-se a citação do acusado; 3) efetiva comunicação do
acusado; 4) oferecimento de resposta à acusação e 5) rejeição tardia ou novo
recebimento da acusação e possibilidade de absolvição sumária.45
Com isso, mesmo com a reforma efetivada, resultando na promulgação da Lei
nº 11.719 de 2008, houve um menoscabo de um dos momentos mais importantes
do processo penal: o juízo de admissibilidade da acusação. Não somente fora
impedido o intento de estabelecer uma fase manifestamente independente para

45
Aponta-se esquematicamente tal formato com base na posição doutrinaria e jurisprudencial majoritária.

80 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019
O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros

admissão da acusação, como se estruturou um procedimento ordinário confuso e


alheio às garantias constitucionais previstas na Carta de 1988.46

7 Conclusão
Tomando por base o exposto quanto aos ordenamentos jurídicos estrangeiros
analisados e ao Tribunal Penal Internacional, verifica-se uma constante: a fase
de admissibilidade da acusação é manifestamente um filtro contra acusações
infundadas, sendo então um espaço de garantia do contraditório e da ampla defesa,
além de importante critério de gestão do sistema de justiça criminal.
Assim, confrontado o modelo em vigência no Brasil, nota-se um déficit
importante frente ao disposto nos ordenamentos jurídicos estrangeiros.
De início, sequer há um alinhamento do texto infraconstitucional com o disposto
na Constituição da República de 1988. Assim, nem mesmo é premissa unânime
para a doutrina e jurisprudência a obrigatoriedade da reação defensiva inicial em
momento automaticamente posterior ao oferecimento da acusação e anterior ao
juízo de admissibilidade pela autoridade judicial.
Trazer lições estrangeiras para a análise do sistema processual brasileiro
tem por escopo justamente demonstrar o atraso em um modelo de procedimento
comum ordinário que ignora as benesses em se partir do juízo da admissibilidade
da acusação tanto como uma garantia para o acusado como um divisor de águas
a possibilitar a construção de um sistema de justiça criminal mais eficiente.
Dedicar mais atenção à análise inicial das acusações oferecidas, recusando
ab initio acusações temerárias e infundadas, evitando o trâmite tortuoso de
ações penais natimortas, tem resultado direto na gestão e julgamento dos casos
verdadeiramente robustos e merecedores da atuação estatal.
Frente ao sistema já existente, basta que haja um intento de constitucionalizar
o processo penal, promovendo assim uma interpretação adequada dos arts. 395 e
399, perfazendo um procedimento que oferecida a acusação seja o acusado citado
para apresentar sua defesa e apenas somente seu ingresso nos autos é que se
decidirá sobre a legitimidade da acusação.47

46
Na dissertação defendida, inclusive, se sustenta a inconstitucionalidade do art. 396 do Código de Processo
Penal, já que há contrariedade ao disposto no art. 5º, caput, inc. LV, da Constituição da República, possi-
bilitando que no momento inicial do processo criminal inexista contrariedade efetiva a viabilizar a reação
defensiva inicial logo após o oferecimento da acusação e em momento anterior ao juízo de admissibilidade
daquela.
47
Após uma análise histórica do processo penal brasileiro e dos procedimentos penais já vigentes, tal como
dos crimes de responsabilidade de funcionários públicos, dos crimes de drogas, dos crimes de imprensa
e de competência originária dos Tribunais Superiores, por exemplo, na dissertação “Fase de admissibili-

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019 81
Hélio Peixoto Junior

Firmada tal premissa, então haverá espaço para que, de lege ferenda, possa
se discutir a criação de uma etapa intermédia,48 calcada sob o vetor da oralidade
e com produção probatória, além do estabelecimento de medidas processuais
a determinar ritos alternativos, como verificado em ordenamentos jurídicos
estrangeiros – processo penal italiano, v.g.
O principal critério norteador há de ser a defesa e o império inafastável
do contraditório e da ampla defesa desde o início do processo penal, visto que
tais garantias têm robustez e tradição histórica no processo penal brasileiro e
representam, não exclusivamente, as vigas mestras de um processo penal justo.

The accusation’s admissibility in foreign criminal procedures


Abstract: Recognized the impact of a criminal procedure on a citizen’s life, this paper briefly seeks to
bring lessons from foreign legal systems – national and supranational – concerning the very moment of
judicial analisys of the formal charge to prosecute in basis of the criminal subjetive liabilty to propose
grounds for discussion regarding the accusation’s admissibility in Brazilian’s criminal procedure as in
force nowadays.

Keywords: Accusation’s admissibility. Accusation. Adversarial principle. Full defense principle.


Procedure.

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Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo promoveu-se uma análise
mais vertical e propositiva para solução da problemática relativa ao juízo de admissibilidade da acusação
frente à legislação infra e constitucional vigente.
48
Nunes da Silveira propõe que: “a adoção da etapa intermediária e da teoria do caso são passos ne-
cessários para a refundação do processo penal brasileiro, desde que reunidas determinadas condições
essenciais. Basicamente, a proposta é que a delimitação do objeto do juízo ocorra, inclusive para fins
probatórios, na etapa intermediária entre a investigação preliminar e a fase processual. Em linhas muito
gerais, esta etapa intermediária consistiria em audiência prévia ao juízo de mérito, com múltiplas finalida-
des, que tem por pressupostos a oralidade, a lealdade processual, a boa-fé e a ausência de surpresa, a
construção participativa da reconstituição do fato submetido a juízo e a valorização do contraditório e da
natureza dialógica (entre as partes) da instrução processual. Muitas destas ideias presidiram a recente
reforma do Código de Processo Civil.” (DA SILVEIRA, 2018, p. 375).

82 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

PEIXOTO JUNIOR, Hélio. O juízo de admissibilidade da acusação nos


procedimentos penais estrangeiros. Revista Fórum de Ciências Criminais –
RFCC, Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019.

84 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019
A fixação do valor indenizatório na
sentença penal condenatória: fase
instrutória e prova da pretensão cível1

Carlos Eduardo de Moraes Domingos


Mestre em Direito Processual pela USP. E-mail: ceduardomd@gmail.com.

Resumo: A reforma processual promovida pela 11.719/08 introduziu no sistema processual penal
a ampla possibilidade de fixação de valor indenizatório mínimo na sentença penal condenatória.
Trata-se do ponto de chegada de um movimento de aproximação, separação e reaproximação entre
responsabilidades civil e penal. Em nosso ordenamento jurídico, representa a crescente preocupação
com uma política que integre um julgamento justo para vítimas e imputados. Contudo, a elencar tal
possibilidade no Código de Processo Penal vigente, o legislador deixou de confeccionar qualquer
disposição legal acerca de sua operacionalização. A regra traz insegurança jurídica quanto à forma de
sua aplicação. Este artigo limita-se à análise da fase instrutória e prova da pretensão cível.
Palavras-chave: Sentença condenatória penal. Fixação de valor mínimo indenizatório. Devido processo.
Processo penal.

Sumário: 1 Introdução – 2 Múltipla incidência normativa – 3 Movimento de aproximação, separação


e reaproximação das responsabilidades civil e penal – 4 Modelos de coordenação de jurisdições
especializadas – 5 Garantia síntese do devido processo – 6 A fixação do valor indenizatório na sentença
penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível – 7 Conclusões – Referências

1 Introdução
O presente artigo tem origem na dissertação de mestrado “A Fixação do Valor
Indenizatório na Sentença Condenatória Penal à Luz do Devido Processo” apresentada
no programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da USP, sob orientação do
Prof. Dr. Marcos Alexandre Coelho Zilli. Naquela pesquisa, a problemática central
consistiu na ausência de procedimentalização para a fixação de valor indenizatório
na sentença penal condenatória, possibilidade introduzida no sistema processual
penal pela Lei nº 11.719/08.
A reforma promovida pelo referido diploma legal é o ponto de chegada de um
movimento de aproximação, separação e reaproximação entre responsabilidades civil
e penal. Em nosso ordenamento jurídico, representa a crescente preocupação com

1
Artigo elaborado por autor convidado.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019 85
Carlos Eduardo de Moraes Domingos

uma política que integre um julgamento justo para vítimas e imputados. Contudo,
ao elencar tal possibilidade no Código de Processo Penal vigente, o legislador
deixou de apresentar qualquer disposição legal acerca de sua operacionalização.
A regra traz insegurança jurídica quanto à forma de sua aplicação, pendendo
questões tais como a necessidade de prévio requerimento para sua fixação pelo
julgador, quem deteria legitimidade e interesse para a formulação do pedido
ressarcitório, qual o momento e o modo de sua dedução, potenciais reflexos na
instrução processual, no sistema recursal, dentre outros. O tema traz, portanto,
como grande preocupação, o modo de realização do valor indenizatório dentro do
processo penal, muito mais do que seu conteúdo ou sua eventual repercussão no
processo civil.
Evidentemente, e até por limitação espacial, este artigo é um recorte da
pesquisa original, conquanto construído sobre as mesmas bases. Se naquela
buscou-se delimitar um possível modo de concretização da norma, a partir do
desenho processual já determinado pelo legislador, tendo como paradigma a
garantia síntese do devido processo, neste abordar-se-ão tão somente os impactos
da previsão legislativa na fase instrutória e na prova da pretensão cível no curso
do processo penal.
Para tanto, este estudo se inicia pela análise dos fenômenos da múltipla
incidência normativa, em parte decorrente do próprio movimento de confusão,
separação e reaproximação das esferas cível e penal. Posteriormente, serão
apreciados os modelos e mecanismos de coordenação de jurisdição especializadas,2
contexto no qual se insere a inovação legislativa introduzida pela Lei nº 11.719/08.
Compreendidos tais pressupostos, o desenho da procedimentalização da
fixação de valor mínimo indenizatório, não revelado pelo legislador, somente pode
ser construído a partir da garantia síntese do devido processo penal. Essa garantia
processual, de força constitucional, desdobra-se em uma série de outras garantias
que exercem a função de filtragem e orientação de como o arbitramento do valor
reparatório pode ser concretizado dentro do processo penal, sem a violação de
seu sentido de unidade, de suas diretrizes básicas e mesmo sem a mácula de
sua principal finalidade.
Examinados tais pressupostos teóricos, buscar-se-á solucionar as incertezas em
relação à fase instrutória, no curso do processo penal, resultantes da possibilidade

2
Em que pese sua unidade e indivisibilidade, por razões de comodidade lexical, usualmente emprega-se
o vocábulo “jurisdição” para expressar a variedade de órgãos encarregados do exercício da jurisdição em
suas diversas manifestações (MONTERO AROCA, 1976, p. 28/29). Fala-se, desse modo, em jurisdição
civil e jurisdição penal, autônomas e infungíveis entre si (LEONE, 1963, p. 276).

86 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019
A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível

de fixação de valor indenizatório mínimo na sentença penal condenatória, diante


do silêncio do legislador.

2 Múltipla incidência normativa


O ordenamento jurídico é um todo unitário e sistematizado. No entanto,
a ciência do direito propõe sua divisão metodológica em ramos. Trata-se de
compartimentação de ordem estrutural e funcional. Por meio desta, permite-se “uma
abordagem das especificidades de conteúdo ínsitas a cada ramificação” (ANGELIN,
2012, p. 17), o que auxilia em seu estudo e aplicação. Consequência direta desta
opção metodológica é a múltipla incidência de normas de ramos diversos. Assim,
um mesmo fato pode ser valorado por setores diversos do ordenamento jurídico e
ajustar-se ao suporte fático de uma ou mais normas.3
Retomado o conceito de ato ilícito enquanto fato social relevante, a múltipla
incidência normativa permite a repercussão desse ato em distintas esferas. Assim,
um mesmo fato histórico pode implicar responsabilidade penal, apurada em um
oportuno processo penal, como também pode acarretar responsabilidade civil, ou
mesmo a responsabilidade administrativa, todas formas distintas e independentes
de valoração jurídica (GAVIRIA LONDOÑO, 2005, p. 33).4 E isto, pois um único fato
concreto pode representar um ilícito penal e, simultaneamente, um ilícito civil e
um ilícito administrativo, punível nas três esferas. Conquanto tenham coincidente
origem histórica, há no plano abstrato uma distinção quanto à causa jurídica de
cada responsabilidade (ACERO, 1956, p. 60).
Nas hipóteses em que há a prática de ato ilícito tipificado como infração penal
e que, ao mesmo tempo, representa repercussão lesiva no patrimônio moral e
material da vítima, há a possibilidade de intervenções judiciais distintas, considerada
a pluralidade de espécies de ilicitudes em que se enquadram os fatos (JIMÉNEZ
DE ASÚA, 1956, p. 87).5 A eventualidade de simultânea responsabilização penal
e civil acarreta um problema de coordenação de jurisdições.
Quanto a essa sincrônica responsabilização, deve-se fazer uma ressalva. Em
regra, o direito à reparação surgirá ao sujeito passivo da infração penal. Esse será

3
Nesse sentido: “Um mesmo e único fato ou comportamento humano pode surtir efeitos vários no mundo
do direito. Basta, para tanto, que mais de uma regra jurídica o preveja como suporte de sua incidência,
ou como elemento desse suporte” (BARBOSA MOREIRA, 1988. p. 96). Igualmente: ASSIS, 2000. p. 17.
PONTES DE MIRANDA, 1966. p. 27.
4
Igualmente: PALOMO HERRERO, 2008, p. 295; TUNC, 1989, p. 48; CARVALHO, 1995, p. 75; ASSIS,
2000, p. 29.
5
No mesmo sentido: ASSIS, 2000, p. 28.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019 87
Carlos Eduardo de Moraes Domingos

o titular de um direito de crédito em face do agente infrator, ocupando aquele a


posição de sujeito ativo e esse a posição de sujeito passivo na relação obrigacional.
Entretanto, também é possível a hipótese em que a pessoa alheia ao crime e não
atingida diretamente atribua-se a condição de credor na relação civil estabelecida.
É o que ocorre, v.g., no homicídio consumado, em que os herdeiros da vítima serão
titulares do direito de crédito pela reparação em face do agente infrator (BARBOSA
MOREIRA, 1988, p. 103).
Diante do quadro em que um mesmo fato é analisado por juízos distintos
concomitantemente, é conveniente o estabelecimento de mecanismos de interação
entre esses (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p. 159).6 Nesse sentido,
são exemplos de mecanismos de interação: a faculdade concedida ao juiz de
suspender o processo civil, pelo prazo legal, até a solução do processo criminal
(art. 64 do Código de Processo Penal e art. 313, V e §4º do Código de Processo
Civil); a autoridade da coisa julgada da sentença penal condenatória no processo
civil em determinados casos (art. 63 do Código de Processo Penal e art. 515, VI,
do Código de Processo Civil) (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p. 159-162);
bem como a fixação de valor indenizatório civil na sentença penal condenatória (art.
387, IV, do Código de Processo Penal).

3 Movimento de aproximação, separação e reaproximação


das responsabilidades civil e penal
A responsabilidade penal e a responsabilidade civil constroem-se sobre
bases distintas. Essa pressupõe a concretização de um dano que enseja medidas
coativas para sua compensação. Aquela se edifica sobre a conceituação analítica
de crime (fato típico, antijurídico e culpável) (BITTENCOURT, 2016, p. 278),7 ao
qual se aplica uma sanção penal com finalidades retributiva e preventiva (CREUS,
1995, p. 11-12).
A responsabilidade civil define-se pela obrigação de reparar um dano decorrente
do descumprimento de um primeiro dever jurídico. Em face da teoria da unidade da

6
Ainda, “a afirmação, propugnada por Mortara, da unidade e da identidade da jurisdição, como função e
manifestação da soberania do Estado, pareceu uma importante conquista; salientou-se a necessidade de
evitar interferências, duplicidades e contradições nas atividades dos juízes penais e civis; e na hipótese
em que uns e outros fossem chamados para conhecer o mesmo fato, sustentou-se o conceito da preva-
lência da jurisdição penal, como sendo aquela que se exerce no interesse da coletividade e que por isso
também abarca o interesse do indivíduo lesado pelo fato delituoso” (LIEBMAN; GRINOVER, 2000, p. 754).
7
Ressalva-se que no sistema funcionalista teleológico a noção de culpabilidade é ampliada. Soma-se a
necessidade preventiva especial ou geral da sanção penal à noção de culpabilidade enquanto juízo de
reprovação. A essa adição dá-se o nome de responsabilidade penal, desencadeadora da aplicação da
sanção penal. Conferir: ROXIN, 1997, p. 204 e p. 791.

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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível

responsabilidade civil, essa pode ser contratual, isto é, decorrente do inadimplemento


de uma obrigação negocial ou ex lege, ou extracontratual, decorrente de um ato ilícito,
seja este infração penal ou não (GOMES, 2011, p. 84). Para os fins deste estudo,
é relevante a responsabilidade civil decorrente de um ato ilícito não contratual.
A responsabilidade penal, por sua vez, consiste na consequência da prática
de um injusto penal, somada ao juízo de reprovação pessoal (culpabilidade) e pela
presença das condições de punibilidade da conduta praticada (JIMÉNEZ DE ASÚA,
1956, p. 88). Todos estes caracteres são cumulativos e necessários para que
nasça a responsabilidade penal (JIMÉNEZ DE ASÚA, 1956, p. 88). Sua concretização
ocorre por meio da aplicação de uma pena e se extingue pelo cumprimento desta
ou por qualquer das causas extintivas da punibilidade arroladas no art. 107 do
Código Penal (PITOMBO, 2017).
O ponto de contato e fundamento comum de ambas as formas de responsa-
bilização jurídica encontra-se no cometimento de um ato ilícito (AMARAL, 2005,
p. 215).8 Esse ocorre quando existente uma conduta humana contrária à norma
jurídica, imputável a alguém, que viole interesse ou prejudique outrem (ASSIS, 2000,
p. 24). Em sentido estrito, a fim de se distinguir de um ilícito contratual, exige-se
que produza, por si só, originariamente, a responsabilidade em razão da lesão à
esfera jurídica de outrem (PONTES DE MIRANDA, 1966, p. 97).
Trata-se de um conceito genérico de ato ilícito. Para a diferenciação entre a
responsabilidade civil e a responsabilidade penal é necessária a discriminação
entre o ato ilícito civil e o ato ilícito penal. Entre si, apresentam traços coincidentes.
Consistem em fato humano imputável, doloso ou culposo e contrário à norma
jurídica.9 Todavia, não há distinção ontológica entre o ato ilícito civil e o ato ilícito
penal.10 A separação entre as modalidades de ilícito não é um pressuposto, mas
uma construção histórica. A definição de qual ato consubstancia um ilícito civil ou
um ilícito penal faz-se conforme critérios de oportunidade pelo legislador (MEIRA,
1981, p. 173-174). Trata-se, em seu íntimo, de uma escolha política (QUEIROZ,
2012. p. 67).

8
Não se ignora, evidentemente, a responsabilidade civil por atos lícitos, v.g., norma do art. 929 do Código
Civil.
9
“No que têm de fundamental, coincidem o delito civil e o delito penal. Um e outro são uma rebeldia contra
a ordem jurídica. Consistem ambos num fato exterior do homem, antijurídico, imputável a titulo de dolo ou
culpa” (HUNGRIA, 1958, p. 27). “A diferença é mais extrínseca do que intrínseca, pois existe em ambas
uma característica essencial comum: a existência de um fato contrário ao direito” (GUERRA FILHO, 1985,
p. 263).
10
“Basta lembrar que o ilícito penal não difere em substância do ilícito civil, sendo diferente apenas a
sanção que os caracteriza (...).” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p. 159). Igualmente: HUNGRIA,
1958, p. 26.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019 89
Carlos Eduardo de Moraes Domingos

Assim, na História, a separação entre o ilícito civil e o ilícito penal fez-se


progressivamente (MEIRA, 1981, p. 160). A própria distinção entre ato ilícito civil e
ato ilícito penal é uma ideia dos tempos modernos.11 A noção de responsabilidade
civil somente se desenvolve entre o séc. XVI e XIX (GILISSEN, 2008. p. 750) e,
apenas quando se dissociou da responsabilidade penal, a função indenizatória da
responsabilidade civil teve destaque (PÜSCHEL, 2005, p. 93).
O Direito Penal é, por sua vez, no século XVIII, edificado como ciência
independente. Trata-se de consequência imediata dos trabalhos dos pensadores
iluministas no desenvolvimento sobre os fundamentos, os objetos, as medidas
típicas e as penas atinentes apenas ao Direito Penal (KELLY, 2010, p. 386).12 A
persecução de infrações consolida-se como atividade vinculada ao interesse público
e exerce-se no âmbito de nascente instrumento estatal, qual seja, o Direito Penal.
Nesse contexto, a reparação privada da vítima é definitivamente relegada ao plano
do direito civil (FERRANTE, 1995, p. 100).
Atualmente, entretanto, é possível observar novos movimentos de reaproximação
entre as duas esferas, reforçando os pontos de contato entre a responsabilidade
penal e a responsabilidade civil. O desenvolvimento gradativo de aspectos de
contiguidade representa verdadeira crise paradigmática aos tradicionais critérios
distintivos estudados.
Tal reaproximação explica-se, primordialmente, por dois fatores. No âmbito
penal, a crescente preocupação com as vítimas, sua participação no processo e
na solução da questão penal conduzem a reflexões e discussões sobre temas
de conciliação e reparação dos danos dentro do processo penal.13 Nessa linha,

11
Nesse sentido: “A ideia de que a infração penal ofende contemporaneamente normas e interesses di-
versos, isto é, públicos de um lado e privados do outro, é uma ideia dos tempos modernos. No direito
antigo, por muito tempo, a pena e a reparação, quando previstas para um só fato ilícito, eram confundi-
dos e davam margem a uma única ação em favor do ofendido (dirigida conjuntamente ao ressarcimento
e à pena), que podia ser exercida unicamente sob forma de acusação perante o juiz penal” (LIEBMAN;
GRINOVER, 2000, p. 753). “(...) la distinction de la responsabilité civile et de la responsabilité pénale est
probablement la plus claire. La distinction, cependant, a été inconnue ou au moins obscure pendant des
siêcles. (...). Après des siècles, la distinction apparaît, sous une forme ou sous une autre, entre les actions
orientées vers la punition et celles qui tendent vers I’indemnisation de la victime. La distinction. bien entendu,
n’a pas été brutalernent conçue avec clarté. Elle a été ressentie, en quelque sorte, longtemps avant d’être
rationalisée. De plus, pendant une longue péríode, la punition et l’indemnisation, même quand elles étaient
distinguées, étaient administtées par le même tribunal, parfoís au cours de la mêrne action” (TUNC, 1989,
p. 47). Também, cf. LEAL, 1930. p. 21-22.
12
Marcelo Ferrante explica, neste sentido, que a reforma iluminista, ainda que dentro de um movimento de
humanização, consolida conceitos sobre os quais se apoia o direito penal estatal, quais sejam, interesse
público na aplicação da lei penal, persecução oficial e objetividade dos mecanismos de produção de ver-
dade. Cf. FERRANTE, 1995, p. 100-101.
13
“A antiga alocação da reparação exclusivamente no campo do Direito civil vem sendo relativizada, na me-
dida em que ela vem sendo introduzida no sistema penal seja por meio da atenuação de parcela da pena
ensejada pela reparação do dano pelo autor, seja por meio de acordos reparatórios, causas de extinção
da punibilidade e até mesmo como sanção autônoma” (PÜSCHEL; MACHADO, 2006).

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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível

mecanismos conciliatórios e reparatórios têm se desenvolvido, em especial,


com finalidade de superar os insucessos da ressocialização ou reinserção dos
condenados à sociedade pelo cumprimento de pena carcerária (CASTRO OSPINA,
1995/1996, p. 25).14
Por outro lado, na área do Direito Civil, tem se resgatado um caráter preventivo
à responsabilidade civil (PÜSCHEL; MACHADO, 2006), e não apenas reparatório.
Não por outras razões, a criminologia crítica tem considerado determinadas
características e mecanismos do Direito Civil adequados à solução do caso penal
(MACHADO, 2007, p. 327-328). Somado a isto, observa-se a crescente tendência
em se atribuir um caráter repressivo à responsabilidade civil (MACHADO, 2007, p.
327-328), como no caso da chamada responsabilidade civil punitiva.
Assim, a consolidação do ato ilícito civil e do ato ilícito penal, enquanto
categorias jurídicas distintas, permite a responsabilização concomitante do agente em
ambas as esferas. Trata-se da múltipla incidência normativa. Contudo, considerando
que a classificação de um ato humano como ilícito penal ou ilícito civil decorre de
mutável conveniência política, bem como os fatores apontados como indicativos
da reaproximação entre essas categorias, mais complexa se torna a questão da
responsabilização simultânea. Diversos mecanismos são desenvolvidos para
sua compatibilização, tratando-se de tema diretamente associado aos chamados
modelos de coordenação de jurisdições.

4 Modelos de coordenação de jurisdições especializadas


O objeto do processo penal é a pretensão processual penal cujo conteúdo é
um fato crime descrito pela imputação. É possível, todavia, que em determinados
sistemas a jurisdição penal se estenda a situações de reparação civil.15 Nessas
ocasiões, a pretensão de natureza cível será objeto eventual do processo penal,

14
Igualmente: “Nos últimos anos, tal visão, associada ao claro desejo de modernização da Justiça Penal,
levou a significativas mudanças que foram materializadas com o aprimoramento dos mecanismos alter-
nativos de solução do conflito. São exemplos a composição civil e a suspensão condicional do proces-
so. Ambas, contudo, ainda focam a vítima sob uma perspectiva preponderantemente patrimonial. Mais
recentemente, esta dimensão atingiu o seu clímax com a possibilidade de fixação, na própria sentença
condenatória, de um valor mínimo a título de reparação civil. Todos estes fenômenos, note-se, refletem
o anseio por uma maior eficiência da Justiça mediante a redução das distâncias entre as esferas civil e
penal” (ZILLI, 2011).
15
Cabe aqui ressalvar que, neste estudo, o vocábulo “reparação” tem sido e continuará sendo utilizado em
sentido amplo, a fim de indicar qualquer forma de prestação devida àquele que sofrer os danos decorren-
tes de uma infração penal. Tecnicamente, a doutrina distingue os termos “restituição”, “ressarcimento”,
“reparação” e “indenização”. Conferir: BARBOSA MOREIRA, 1988, p. 101.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019 91
Carlos Eduardo de Moraes Domingos

cujo cúmulo com a imputação se justifica pela relação entre ambos (CORDERO,
1971. p. 109).
A indenização do dano causado pela infração penal é matéria cível destinada
à apreciação do juízo cível no processo em que exerce sua jurisdição (ESPÍNOLA
FILHO, 1945. p. 26). Contudo, o nascimento simultâneo de pretensões – uma de
conteúdo acusatório e outra de conteúdo reparatório – originárias de um mesmo
fato implica sua coexistência (VITU, 1957, p. 144). Decorre, assim, uma rede de
interações entre a jurisdição penal e a jurisdição civil que, por vezes, entrecruzam-se.16
O regime jurídico próprio de cada uma dessas atividades jurisdicionais
especializadas impõe a sistematização de seu relacionamento e o desenvolvimento
de mecanismos destinados à compatibilização e prevenção de decisões conflitivas.17
Destarte, na lição de Araken de Assis, “nenhum ordenamento se mostra infenso
a grau mínimo de coordenação penal e civil, que, outrossim, graças a tendência
igualmente comum, se submete ao crivo de órgãos jurisdicionais distintos” (ASSIS,
2000, p. 46).
Não se trata, aqui, da elaboração de diferentes metodologias de reparação
de danos decorrentes da infração penal.18 O que se tem em vista é a conciliação
de decisões judiciais potencialmente conflitantes e a regulamentação da teia de
relações e pontos de contato entre jurisdição penal e civil. Os modelos para tanto

16
Nesse sentido: “Las mencionadas jurisdicciones se entrecruzan a veces. Así, la jurisdicción penal se suele
extender al conocimiento de un proceso (accesorio) de naturaleza civil: el de resarcimiento originado por el
hecho punible; por su parte, el previo pronunciamiento de la jurisdicción civil (o de la administrativa y aun
de la eclesiástica en los Estados que reconozcan eficacia a sus fallos) es en ocasiones necesario para
dejar expedito el camino a la jurisdicción penal (cuestiones prejudiciales); o bien, el órgano que ejerce la
jurisdicción constitucional es a la par tribunal penal de altas responsabilidades” (ZAMORA Y CASTILLO;
LEVENE HIJO, 1945, p. 201).
17
Nesse sentido: ESPÍNOLA FILHO, 1945, p. 36.
18
E, assim, até porque os sistemas de reparação de danos decorrentes da infração penal têm paradigma
diverso do estudo da coordenação de jurisdições. Embora não dispensem o estudo de mecanismos re-
tratados pelos sistemas de coordenação, os sistemas de reparação têm como ponto de partida a própria
satisfação do dano. Os sistemas de coordenação, diferentemente, estabelecem as relações de caráter
processual entre as pretensões que nascem do cometimento de uma mesma infração penal (CYRILLO,
1939, p. 24). O efeito prático e a diferença da classificação são claros. Exemplificativamente, cite-se o sis-
tema de indenização estatal e a criação de fundos de indenização. Esses partem da ideia de que a comu-
nidade é corresponsável pelos crimes, de modo que ela própria deve ser corresponsabilizada, conquanto
seja-lhe permitido o regresso contra o delinquente. A responsabilização do Estado seria somente provi-
sória, prestando de imediato uma indenização à vítima da infração penal (cf. DIAS, 1974, p. 573/574;
FERNANDES, 1995, p. 181). O sistema de indenização estatal diz respeito, diretamente, à reparação de
danos, pois se constrói sobre normativa destinada ao ressarcimento daquele que é lesado pelo delito.
Entretanto, a solução que apresenta pouca importância tem em relação ao estudo da coordenação das
atividades jurisdicionais civil e penal e seus respectivos regimes jurídicos. Não é demais lembrar, neste
ponto, que o art. 245 de nossa Constituição Federal de 1988 estatui, em seu art. 245, que “a lei disporá
sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes
carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilíci-
to”. Trata-se de nítida indicação de sistema de reparação do dano a ser promovida pelo erário. Todavia,
mesmo após tantos anos de vigência, não houve edição de lei que lhe conferisse efetividade.

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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível

desenvolvidos consubstanciam-se, assim, em verdadeiros esquemas de coordenação


entre a atividade jurisdicional civil e a atividade jurisdicional penal. Seu fundamento
está na própria unidade de jurisdição e consequente necessidade de coesão dos
provimentos emanados pelo Poder Judiciário.
Os modelos de coordenação de jurisdição revelam-se como tipos ideais, não
encontrados na realidade em estado de absoluta pureza. Trata-se de classificação
que opera a partir das grandes linhas. E não poderia ser diferente. A legislação
de cada país possui minúcias e exceções que, se consideradas, inviabilizariam
qualquer classificação doutrinária. Por isso, é comum que se afirme que determinado
ordenamento adota esse ou aquele sistema de forma temperada ou mitigada
(TORNAGHI, 1959, p. 432).19
Os sistemas de coordenação de jurisdição são agrupados, sem a rigidez
inexistente fora do plano acadêmico, com fundamento na separação ou na união
do exercício das pretensões processuais decorrentes da prática de ato definido
como infração penal. Concebem-se, desse modo, quatro diferentes sistemas, quais
sejam, o da confusão, o da solidariedade ou cumulação de instâncias, o da livre
escolha ou cumulação facultativa e o da separação de instâncias ou independência
(TOURINHO FILHO, 2013. p. 31). A adoção deste ou daquele sistema implicará
efeitos quanto à própria estrutura processual, uma vez que repercutirá em questões
tais como o exercício da defesa, ônus de prova, poderes das partes, intervenção
de terceiros, “standard” probatório, procedimentalização, entre outros.
Em favor dos sistemas de união argumenta-se que: a) melhor atendem ao
princípio de economia processual, uma vez que desnecessária a repetição da
instrução e de atos processuais; b) favorecem o interesse do lesado, pois esse
terá rapidamente atendida a sua pretensão ressarcitória; c) excluem o risco de
decisões contraditórias, uma vez que uma mesma decisão abarcará a pretensão
cível e penal e será prolatada por um mesmo juízo; d) a atuação da parte lesada
implicará colaboração com o órgão de acusação e com a formação de convicção pelo
julgador, tornando mais eficiente a repressão penal; e) a imposição de indenização
civil em desfavor do condenado presta-se como reforço da sanção criminal (BARBOSA
MOREIRA, 1988, p. 105).
Em defesa dos sistemas de separação assevera-se que: a) as responsabilidades
penais e civis têm fundamentos diferentes; b) há necessidade de especialização dos
órgãos jurisdicionais diante da diversidade da natureza dos conflitos examinados;
c) são muito diferentes as categorias e estruturas do processo civil e do processo

19
Igualmente: CREUS, 1995. p. 18.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019 93
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penal, de modo que inadequadas para análise de objeto que lhes é estranho; d)
fundir em um só processo a discussão de causas diversas provocará perturbação
no andamento do feito; e) os critérios para a apuração da responsabilidade penal
e da responsabilidade civil são diversos; f) a discussão de matéria de natureza
privada causará prejuízos na apuração da infração penal de interesse público; g) a
colaboração de parte civil para a prova da infração penal e do consequente prejuízo
acarretará desequilíbrio entre as partes, eis que o imputado ver-se-á atacado por
um órgão estatal e por um agente privado, tendo de se defender de pretensões
heterogêneas simultaneamente (BARBOSA MOREIRA, 1988, p. 105).
Qualquer que seja o sistema adotado, notam-se pontos de tensão aliviados
por normas que excepcionam o sistema e flexibilizam a concepção teórica pura. A
razão da mitigação da pureza dos modelos estudados é axiomática. Todos buscam
realizar interesses legítimos diretamente conectados aos escopos da jurisdição.
Essa deve se esmerar na busca de soluções não contraditórias no reconhecimento
das responsabilidades civil e penal decorrentes de uma origem fática comum,
prezar pela economia processual e, até mesmo, garantir a participação da vítima
na solução penal. Entretanto, da mesma forma deve atender ao interesse público
na precisão e justiça dos provimentos criminais, em um processo com duração
razoável e procedimentalmente coerente e adequado para tanto.
A sobriedade dessa constatação conduz à fixação de duas premissas
essenciais. Primeiramente, compreende-se que os diversos modelos de coordenação
não encontram existência pura no plano fático. Cada ordenamento jurídico nacional
desenvolve mecanismos próprios para atenuar seus rigores e contemplar a função
jurisdicional em sua totalidade.
Não há um pêndulo que permaneça em um dos polos extremos da estrita
separação ou da total cumulação, mas, em verdade, entre eles deve transitar.
A própria fixação de valor indenizatório mínimo na sentença penal condenatória,
recentemente inserida no art. 387, IV, do Código de Processo Penal brasileiro,
objeto de estudo deste trabalho, é um exemplo de mecanismo fundamentado em
um princípio de união que se insere em um sistema de separação de instâncias
adotado pelo nosso ordenamento.
A segunda proposição indica que, qualquer que seja o modelo adotado, os
princípios e garantias processuais decorrentes do devido processo deverão ser
observados tanto pelo legislador, quando da criação do desenho procedimental,
quanto pelo órgão judiciário diante de um caso concreto. Por essa razão, o implemento
de modelos, ou mesmo de mecanismos tendentes à união de objetos, terá como
efeito a incidência de princípios e regras processuais penais, ao lado de normas civis

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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível

e processuais civis, quando da apuração de eventual compensação civil decorrente


de infração penal, respeitada sua natureza jurídica.

4.1 Natureza jurídica do valor indenizatório fixado na


sentença penal condenatória
Consequência direta da possibilidade de fixação de valor indenizatório na
sentença penal condenatória e, portanto, dentro do processo penal, a necessidade
de definição de sua natureza jurídica tem relevância na medida em que indicará
quais normas devem reger o instituto. Há entre o processo civil e o processo penal
verdadeira heterogeneidade (NUCCI, 2009, p. 399). Assentar que a reparação
veiculada no processo penal inspira-se em princípios de processo civil ou de
processo penal tem efeito prático imediato. Não só são diferentes a dinâmica e
exigência probatória no processo civil e penal, como também diferem suas categorias
fundamentais e princípios informadores.
Na doutrina nacional, o debate sobre a natureza jurídica da reparação de
danos civis arbitrada no processo penal é recente, somente adquirindo espaço
após a reforma promovida pela Lei nº 11.719/08. Fundamentados na nossa
própria experiência jurídica, alguns autores sustentam que a indenização fixada em
sentença penal é um efeito extrapenal da condenação, ao lado do previsto no art.
91, I, do Código Penal (GONÇALVES, 2010, p. 353).20 Entretanto, a discussão tem
maior consolidação na doutrina estrangeira, que há muito se depara com sistemas
e mecanismos de cumulação.
Majoritariamente entende-se que a reparação de danos mantém sua natureza
civil, ainda que enxertada no processo penal.21 O conflito de interesse entre vítima
e réu é distinto da causa penal. As matérias são inconfundíveis e apenas têm
como traço de união o fato de que se originam do mesmo fato histórico (BARBOSA
MOREIRA, 1988, p. 104). O valor ressarcitório atende à pretensão de natureza cível,
e não à pretensão de natureza penal. Não por outra justificativa sua execução e
eventual liquidação, quando necessárias, procedem-se perante o juízo cível.
Dada a sua natureza jurídica cível, a reparação dos danos no processo
penal rege-se, por coerência lógica, por regras e princípios do direito e processo

20
GONÇALVES, Tiago Figueiredo. Sobre o dever imposto ao juiz do crime de fixar valor mínimo de reparação
dos danos civis causados pela infração quando da prolatação da sentença penal condenatória: implica-
ções da Lei 11.719/2008 no âmbito do processo civil e do processo penal. Ciências Penais, São Paulo,
v. 12 p. 353, jan./jun. 2010.
21
Nesse sentido: GONÇALVES, 2009, p. 241. DÍAZ Y GARCÍA CONLLEDO, 1995/1996, p. 29. SÁNCHEZ,
2004, p. 21. RANIERI, 1957, p. 127. ALMEIDA, 2016, p. 53. ALEXANDRE, 1991, p. 35.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019 95
Carlos Eduardo de Moraes Domingos

civil (ZAMORA Y CASTILLO; LEVENE HIJO, 1945, p. 94).22 Ainda que exercida
cumulativamente com a pretensão penal, a pretensão civil mantém sua natureza
e não se submete aos princípios da obrigatoriedade e oficialidade, característicos
do processo penal. Permanece na esfera de disponibilidade do lesado, que deve
sempre ter a possibilidade de renunciar a tal direito (LEONE, 1963, p. 478).23
Entretanto, é certo que a inserção da ação civil no processo penal não pode
ocorrer pura e simplesmente, considerado o interesse público que o permeia.
O potencial prejuízo à persecução penal é intuitivo. O contexto processual em
que é tratada a pretensão reparatória, embora mantenha sua natureza, implica
alterações nos princípios gerais de direito e processo civil que a orientam (PALOMO
HERRERO, 2008, p. 299).24 Sua disciplina deve então ser adaptada às exigências
e ao desenvolvimento do processo penal, de modo que não represente obstáculo
à concretização da jurisdição penal (LEONE, 1963, p. 479).
Assim, o exercício da ação civil no processo penal submete-se a duas regras
implícitas. A primeira delas indica que a pretensão civil é acessória quando cumulada
com a pretensão penal. A segunda determina que, embora mantenha sua natureza,
a ação civil está sujeita à regulamentação pelo processo penal (TONINI, 2010, p.
152). Desse modo, a pretensão reparatória tem como norte os princípios gerais
correspondentes à sua natureza, todavia, tendo em vista os interesses discutidos
no processo penal, inúmeras são as derrogações que lhes são feitas pela normativa
penal e processual penal.
Como resultado da prevalência do processo penal e da acessoriedade da
pretensão civil quando nesse deduzida, tem-se que a relação processual civil
desenvolve-se com uma configuração resultante da combinação de princípios e
regras de processo civil e de princípios de processo penal (LEONE, 1963, p. 481).
À pretensão civil aplicam-se as normas de processo civil, mas, necessariamente,
a questão também deve se submeter às normas de processo penal, considerando
que essas coordenam todo o procedimento e o objetivo principal do processo.25

22
Igualmente: SÁNCHEZ, 2004, p. 95. DÍAZ Y GARCÍA CONLLEDO, 1995/1996, p. 29. PALOMO HERRERO,
2008, p. 298-299.
23
Igualmente, conferir: ZAMORA Y CASTILLO; LEVENE HIJO, 1945, p. 95. VITU, 1957, p. 146.
24
Igualmente: HORTAL IBARRA, 2014, p. 9-10.
25
“En alguna medida se puede decir que el Derecho procesal penal tiene también por meta (accesoria o
secundaria) realizar el Derecho civil ex delito y, efectivamente, cuando se ejerce la acción civil reparatoria
se aplica por esta vía normas del Derecho civil y consecuencias jurídico-civiles, por más que las reglas
relativas a ello deban ser calificadas, en purismo, como normas de Derecho procesal civil injertadas en la
ley procesal penal. No obstante esta aclaración, las exposiciones de Derecho procesal penal se ocupan
de ellas necesariamente, porque forman parte de las que configuran el proceso penal y su desarrollo, y
debido a la coordinación imprescindible con las reglas puras de Derecho procesal penal que atienden a la
meta principal del procedimiento” (MAIER, 1989, p. 211).

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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível

Neste ponto, portanto, imprescindível a análise da garantia síntese do devido


processo, destacadas as particularidades da garantia aplicada ao processo penal.

5 Garantia síntese do devido processo


Na experiência constitucional brasileira, o devido processo legal sempre foi
tratado como princípio implícito pela doutrina, até a promulgação da Constituição
Federal de 1988 (LIMA, 1999, p. 165-166). Nesse diploma, foi expressamente
elencado pelo art. 5º, LIV, que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens
sem o devido processo legal”. O referido princípio pode ainda ser extraído do art. 5º,
XXXV, do diploma constitucional, na medida em que o direito à tutela jurisdicional
adequada pressupõe a existência de um processo devido (NERY JR., 2017, p. 121).
Enquanto garantia constitucional, a eficácia da garantia do devido processo
“penetra sobre o processo codificado por força da supremacia das normas constitu-
cionais, afastando quaisquer disposições com elas incompatíveis” (GRECO, 2006,
p. 371). Trata-se do reconhecimento do direito constitucional processual, “método
consistente em examinar o sistema processual e os institutos do processo à luz
da Constituição e das relações mantidas com ela” (DINAMARCO, 2017, p. 316),
amplamente propalado sob os influxos da compreensão pós-positivista do direito.
No entanto, a conceituação de devido processo legal não é tarefa fácil.26 Não
basta a mera referência a uma norma para que seja naturalmente assimilada pelo
intérprete.27 Isto porque seu conteúdo não é estático, mas dinâmico. Trata-se de
um construído histórico. Chega aos dias de hoje superando barreiras temporais,
ideológicas e geográficas, pois tem desempenhado importante papel no controle
de poder estatal, preocupação comum a qualquer sociedade humana.28 Contudo,
os elementos que compõem a cláusula do devido processo legal têm se agrupado
e alterado na história conforme exigência de circunstâncias variáveis (McGEHEE,
2015, p. 49).

26
A própria tradução do termo due process of law é de difícil realização, “vista a ambiguidade de sua
definição (...). Podemos, no entanto, tentar entendê-la sob a forma de ‘um procedimento justo, equitativo,
sob a boa e devida forma de lei’ ou segundo as regras do direito” (ARNAUD et al., 1999, p. 290).
27
“A noção do devido processo legal não é facilmente reduzida a nenhuma fórmula, pois seu conteúdo não
pode ser determinado pela referência a uma simples e qualquer norma” (PARIZ, 2009, p. 119).
28
“(...) muito embora o princípio do devido processo legal vá encontrar suas raízes na Magna Carta de 1215,
em cujo período serviu para regular o poder real, ele ultrapassou não só as barreiras geográficas, mas
também temporais e ideológicas, para compor na atualidade o ordenamento jurídico-constitucional brasi-
leiro. (...) Os anos passam, as nações se separam, ou se aglutinam, as bases geográficas se modificam,
mas persiste sempre a preocupação de impor limites, controlar a atividade daqueles que encabeçam o
processo político e promovem qualquer tipo de dominação sobre a sociedade” (LIMA, 1999, p. 184).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019 97
Carlos Eduardo de Moraes Domingos

Assim, se em um primeiro momento a cláusula representava muito mais


uma garantia de legalidade, vinculada a procedimentos de natureza penal, sua
compreensão foi alargada não só quanto ao seu âmbito de incidência, mas também
para espelhar um processo justo, noção mais ampla do que a mera legalidade.29 A
ampliação de tal noção acompanha a própria expansão da jurisdição, que passou
de uma atividade burocrática, durante a consolidação do Estado liberal, para uma
função criativa.
Atualmente, a cláusula do devido processo legal pode ser conceituada como

garantia constitucional pela qual ficam assegurados aos sujeitos pro-


cessuais parciais o estabelecimento e o respeito a um processo ju-
dicial instituído legitimamente por lei e conduzido por um juiz natural,
independente e imparcial, resguardando-se o contraditório, a ampla
defesa, a publicidade dos atos e a motivação das decisões judiciais
(ZILLI, 2003, p. 132)30

Compreende, assim, um conjunto de garantias constitucionais que asseguram


às partes o efetivo exercício de seus direitos e poderes processuais, ao passo que
são também essenciais ao adequado exercício da jurisdição.31
Em seu aspecto processual, o devido processo legal se apresenta como
“um princípio síntese, que engloba os demais princípios e garantias processuais
assegurados constitucionalmente” (BADARÓ, 2016, p. 86).32 Isto significa que o
devido processo legal contém em si as demais garantias processuais de índole
constitucional. Por isso, são comuns afirmações na doutrina de que “bastaria a
norma constitucional haver adotado o princípio do due process of law para que daí
decorressem todas as consequências processuais que garantiriam aos litigantes
o direito a um processo e a uma sentença justa” (NERY JR., 2017, p. 110).
O devido processo legal evidencia-se, assim, como verdadeiro catálogo de
garantias processuais fundamentais, tendo no sistema processual constitucional

29
Nesse sentido: “Inicialmente, estas expressões – by the law of the land e due processo f law – estavam
relacionadas apenas a questões procedimentais, com significado nitidamente processual (‘direito a um
processo ordenado – ordely proceedings’), que foi, posteriormente, ampliado para acolher outros senti-
dos, como o da citação para a demanda, direito de defesa e o direito de não ser preso sem a evidencia de
uma justa causa (este derivado da Petition of Rights).” (PARIZ, 2009, p. 82). No mesmo sentido, conferir:
VIGORITI, 1970, p. 34-40.
30
É traço comum nas atuais conceituações da cláusula do devido processo legal o catálogo de garantias
processuais essenciais à noção de processo justo e método de exercício da função jurisdicional. Nesse
sentido, conferir: TONINI, 2010, p. 71; BADARÓ, 2016, p. 86.
31
Nesse sentido: “Entende-se, com essa fórmula, o conjunto de garantais constitucionais que, de um lado,
asseguram às partes o exercício de seus direitos, faculdade e poderes processuais e, do outro, são indis-
pensáveis ao correto exercício da jurisdição” (GRINOVER, 2013, p. 6).
32
Igualmente: DINAMARCO, 2017, p. 294-295; PARIZ, 2009, p. 75.

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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível

“a missão organizatória de assegurar a supremacia de tantos outros princípios


e garantias” (DINAMARCO, 2017, p. 23). Esse enfoque conjunto do modelo de
garantias constitucionais processuais indica que o direito ao processo justo não se
esgota em garantias particulares. Ao contrário, fundamenta-se na coordenação das
várias garantias concorrentes, de modo que não se somam e nem se justapõem,
mas se articulam, interpenetram-se, tal qual um sistema circular de interpretação e
aplicação. Forma-se um todo indivisível em que o descumprimento de uma garantia
fundamental processual acarreta a violação de todo o sistema de garantias.33
Ainda na senda evolutiva da cláusula do devido processo legal, nota-se que,
de início, houve a predominância de uma visão individualista, somente conectada
a direitos públicos subjetivos das partes. Durante a segunda parte do século XX,
essa perspectiva cedeu espaço a uma “ótica publicista, segundo a qual as regras do
devido processo legal são garantias, não direitos, das partes e do justo processo”
(FERNANDES, 2010, p. 43). Nesse enfoque, Ada Pellegrini Grinover assevera que
as garantias processuais “não servem apenas aos interesses das partes, como
direitos subjetivos públicos destas, mas que configuram, antes de mais nada,
a salvaguarda do próprio processo, objetivamente considerado, como fatores
legitimantes do exercício da jurisdição” (GRINOVER, 2013, p. 6).
Reconhece-se, portanto, que a finalidade do processo atende, ao mesmo tempo,
a interesses individuais, na solução do litígio, e a interesses públicos, mediante a
concretização do direito material (COUTURE, 1993, p. 146). Esse interesse público,
do qual se extrai o chamado princípio publicístico,34 possui natureza dúplice.
Especificamente quanto ao processo penal, reconhece-se que esse se destina não
só à aplicação das normas de Direito Penal, o que se justificaria pela necessidade
do processo penal, mas também para impedir sua aplicação ao imputado que não
tenha praticado a infração penal. O interesse público reside na efetiva justiça penal,
razão pela qual não gravita em torno da condenação e aplicação da sanção penal
(ZILLI, 2003, p. 112).

33
O devido processo legal, não só como princípio-síntese, mas também por se tratar de direito humano
fundamental, caracteriza-se pela indivisibilidade. Na dimensão dos direitos humanos e fundamentais,
André de Carvalho Ramos ensina que “a indivisibilidade consiste no reconhecimento de que todos os di-
reitos humanos possuem a mesma proteção jurídica, uma vez que são essenciais para uma vida digna. A
indivisibilidade possui duas facetas. A primeira implica reconhecer que o direito protegido apresenta uma
unidade incindível em si. A segunda faceta, mais conhecida, assegura que não é possível proteger apenas
alguns dos direitos humanos reconhecidos” (RAMOS, 2015, p. 91).
34
Neste ponto, oportuna a advertência formulada por Jorge de Figueiredo Dias: “A decantada natureza ‘pu-
blicística’ do processo penal em nada se opõe a um sistema acusatório, nem este é, necessariamente,
o reino do formal, do privatístico, do arremedo, em suma, da estrutura tradicional do processo civil; o
sistema basicamente acusatório é só expressão de uma concepção personalista do Direito e de uma
concepção democrática do Estado” (DIAS, 1974, p. 71).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019 99
Carlos Eduardo de Moraes Domingos

O processo, portanto, deve ser o ponto de convergência entre as atividades


do Estado-jurisdição e das partes. Não há de se ter predominância da jurisdição,
sob pena de intervencionismo estatal, nem de se prestigiar a posição de qualquer
das partes sobre a outra, sob risco de desigualdade. O destaque às garantias do
devido processo legal é reflexo dessa concepção (FERNANDES, 2010, p. 33).
Em qualquer de suas facetas, o devido processo, enquanto princípio e
garantia-síntese, fundamenta-se não só como regra ética e epistemológica, mas
porque em um processo penal está em risco a honra, a reputação, a família, o
patrimônio, a integridade pessoal, a liberdade e até mesmo a vida do imputado. Por
essas razões, dirige-se ao Poder Público como um todo (LIMA, 1999, p. 215-216).
Em sua feição processual, o devido processo legal comporta diferentes
intensidades e enfoques conforme a natureza do direito material tutelado (LEONEL,
2016, p. 132). Dada a incontestável heterogeneidade entre direito e processo civil
e penal, “a natureza da ação (civil ou criminal) é que vai determinar o alcance do
postulado no processo, pois tanto o processo civil como o penal têm seus próprios
padrões de como incidiria o due process” (NERY JR., 2017, p. 117).
Particularizada a área de atuação processual da garantia, fala-se em devido
processo penal (TUCCI, 2011, p. 65). A especificação não visa apenas atingir
critérios mais rigorosos de denominação. O processo penal é regido por princípios
fundamentais nem sempre coincidentes com os princípios do Direito Processual
Civil. Traduz-se pelo equilíbrio entre o garantismo processual e a eficiência da
repressão penal.35
No processo penal deve haver maior rigor, maior expressividade, quanto à
aplicação dos princípios e garantias constitucionais do processo, pois está em risco
a liberdade e o estigma social do imputado (LEONEL, 2016, p. 133). É resultado
natural da exigência de que qualquer intromissão na esfera dos direitos do cidadão
no curso do processo demanda regulamentação legal, preservada a efetividade do
núcleo essencial dos direitos do cidadão conferidos pela Constituição Federal (DIAS,
1974, p. 74-75). E, tanto mais violenta a intervenção estatal, mais acentuada a
proteção e mais amplo seu núcleo essencial.
No entanto, sua natureza garantística não deve obstaculizar a viabilidade
do sistema penal e do sistema processual penal, tendo em vista seu dever de
eficiência. O axioma do devido processo penal e a aplicação da lei penal devem ser
acomodados e harmonizados (HARDING, 2004. p. 7). Conforme Antonio Scarance

35
É nesse sentido que Juan Emilio Coquibus afirma que o direito processual alcança seu maior grau de per-
feição com um regime político que consiga conciliar o interesse individual, caracterizado pelas garantias
em favor do imputado, com o interesse social, traduzido pela eficiência da repressão penal (COQUIBUS,
1951, p. 18).

100 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019
A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível

Fernandes, “em uma visão moderna, esses dois vetores não se opõem, pois não
se concebe um processo eficiente sem garantismo” (FERNANDES, 2010, p. 19).
Há natural dificuldade em se identificar e sistematizar todas as garantias que
compõem o devido processo penal, dado o seu caráter histórico e evolutivo. Sem
prejuízo de outras catalogações doutrinárias, Rogerio Lauria Tucci especifica garantias
que entende compor o devido processo particularizado no contexto processual penal:

a) de acesso à Justiça Penal; b) do juiz natural em matéria penal; c)


de tratamento paritário dos sujeitos parciais do processo penal; d)
da plenitude de defesa do indiciado, acusado, ou condenado, com
todos os meios e recursos a ela inerentes; e) da publicidade dos atos
processuais penais; f) da motivação dos atos decisórios penais; g)
da fixação de prazo razoável de duração do processo penal; e, h) da
legalidade da execução penal (TUCCI, 2011, p. 66).36

É, pois, a partir de tal construído histórico que o desenho da procedimentalização


da fixação de valor mínimo indenizatório deve ser construído pelo intérprete. A garantia
do devido processo e, por consequência, as garantias processuais decorrentes
exercem a função de filtragem e orientação de como a norma introduzida pela Lei
nº 11.719/08 pode ser concretizada, sem a violação do sentido de unidade do
processo penal, de suas diretrizes básicas e mesmo sem a mácula de sua principal
finalidade.

6 A fixação do valor indenizatório na sentença penal


condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível
6.1 Ausência de procedimentalização pelo legislador
A fixação de valor indenizatório na sentença penal condenatória é o ponto
de chegada de um movimento de aproximação, separação e reaproximação entre

36
Na jurisprudência, quando do julgamento do Habeas Corpus nº 96.905, o Supremo Tribunal Federal ar-
rolou, de igual modo, inventário de garantias que lhe parece compor a cláusula do devido processo penal.
Assim, listou as seguintes prerrogativas; “(a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário);
(b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e
célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e
à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis “ex post facto”; (f) direito
à igualdade entre as partes (paridade de armas e de tratamento processual); (g) direito de não ser inves-
tigado, acusado processado ou condenado com fundamento exclusivo em provas revestidas de ilicitude,
quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude derivada; (h) direito ao benefício da gratui-
dade; (i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito de não se autoincriminar nem de ser
constrangido a produzir provas contra si próprio; (l) direito de ser presumido inocente e, em consequência,
de não ser tratado, pelos agentes do Estado, como se culpado fosse, antes do trânsito em julgado de
eventual sentença penal condenatória; e (m) direito à prova”.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019 101
Carlos Eduardo de Moraes Domingos

responsabilidades civil e penal no Direito Processual Penal brasileiro. Trata-se de


oportunidade para a satisfação dos interesses civis do lesado para além das já
existentes providências de restituição de coisa apreendida e medidas cautelares
reais de arresto, sequestro e hipoteca legal. Sua admissão pela Lei nº 11.719/08
representa a crescente preocupação com uma política que integre um julgamento
justo para vítimas e imputados.
A par das críticas comuns a qualquer sistema ou mecanismo de cumulação
de pretensões de natureza civil e penal, a inovação tem como grande entrave a
ausência de procedimentalização.37 A questão essencial que envolve a fixação de
valor indenizatório na sentença penal condenatória diz respeito ao seu modo de
realização, e não ao seu conteúdo ou à sua repercussão no processo civil. Inexistente
qualquer disposição legal acerca de sua operacionalização, a regra traz incertezas
quanto à forma de sua aplicação.38
Veja-se que o impasse não se refere aos efeitos civis da sentença penal
condenatória, à possibilidade ou não de sua posterior discussão perante o juízo
cível, ou mesmo à modalidade de dano passível de avaliação pelo juiz criminal.
Antes de tudo, a problemática pertence ao “como fixar” um valor indenizatório em
favor da vítima na sentença penal condenatória, dado que a Lei nº 11.719/08 não
disciplinou sua instrumentalização.
O Direito Processual é moldado por duas diferentes exigências, quais
sejam, precisão formal e justiça substancial (TUCCI; CRUZ E TUCCI, 1989, p. 3).
Reconhece-se o direito a um procedimento certo enquanto razão de segurança
jurídica, ao passo que esse mesmo procedimento deve permitir a efetivação de
garantias e a atuação eficaz dos órgãos de persecução (FERNANDES, 2005, p. 303).
No caso da reforma introduzida pela Lei nº 11.719/08, não há exatidão formal.
Sem a previsão de uma solução legislativa próxima, o procedimento de fixação
de valor mínimo indenizatório deve ser construído pela prática judiciária, observadas
as garantias constitucionais do processo. É certo que não é permitido ao intérprete
legislar. A fixação de valor mínimo indenizatório na sentença penal condenatória
somente pode ser desenhada a partir das regras procedimentais já existentes no

37
Nesse sentido: “Nada dispõe sobre como esse valor é alcançado, se deve haver prévia manifestação da
vítima a esse respeito, inclusive para indicar parâmetros para a estipulação desse quantum, e, tampouco,
se deve haver alguma menção expressa do Ministério Público quando a persecução for de legitimação
pública” (CHOUKR, 2017, p. 863).
38
Fauzi Hassan Choukr adverte que: “é no fato de que não havendo previsão expressa de pedido sem que
haja, portanto, a exposição de fatos referentes à indenização de forma particularizar e individualizada,
de modo que possa gerar o cabível contraditório sobre o tema, que parecem residir os maiores entraves
para que se admita a plena compatibilidade do presente artigo com a estrutura constitucional” (CHOUKR,
2017, p. 863).

102 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019
A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível

processo penal (NUCCI, 2009, p. 404). A partir destas, por meio do recurso aos
diferentes métodos interpretativos e integrativos do Direito, é que se pode atingir
sua concretização.
A ideia que deve servir-lhe de inspiração é a de que há a necessidade de se
integrar um conceito de julgamento justo para vítimas e acusados (SANDERS, 2004,
p. 193-194). Sempre a partir da filtragem da tutela constitucional, representada pela
garantia-síntese do devido processo legal, sua procedimentalização deve atender
à instrumentalidade finalística e metodológica do processo. Isto significa que sua
estruturação deve se prestar à tutela jurisdicional adequada. No caso, que contemple
a satisfação dos interesses da vítima e o direito de defesa efetiva do imputado.

6.2 Fase instrutória e prova da pretensão cível no processo


penal
A lógica dialética, e não consensual, da pretensão civil deduzida no processo
penal, relaciona-a diretamente ao direito à prova, ponto em que igualmente omisso o
legislador. Necessariamente apresentado na forma de pedido, uma vez definido que
tal mantém sua natureza jurídica de interesse cível, às partes deve-se oportunizar
a prova e contraprova do valor indenizatório.39 E não poderia ser diferente, uma
vez que “a quantificação do valor mínimo indenizatório depende da existência de
provas nos autos que permitam ao juiz aferir a extensão do dano ou ao menos ter
algum parâmetro para tanto” (CABRAL, 2016, p. 409).
É, pois, a própria noção de processo enquanto procedimento em contraditório
que impede a equiparação da quantificação do interesse cível ao previsto no art.
91, I, do Código Penal, isto é, que seja considerada simples efeito da sentença
condenatória. Ademais, a certeza da obrigação, prevista no referido dispositivo,
parte da indiscutibilidade da autoria e materialidade, não coincidentes com a prova
do dano, sua modalidade e extensão, discussão essa que deve ser submetida
ao controle argumentativo e probatório das partes interessadas,40 sob risco de
desrespeitado o contraditório, em especial, o direito à prova.

39
Não é demais lembrar que “dentre as atividades necessárias à tutela dos interesses postulados pelas par-
tes, sobressai, sem dúvida, a probatória, pois a prova é indiscutivelmente o momento central do processo,
no qual são reconstituídos os fatos que dão suporte às pretensões deduzidas. Assim, o direito à prova con-
stitui aspecto fundamental do contraditório, pois sua inobservância representa negação da própria ação e da
defesa” (GRINOVER, 2013, p. 306).
40
Há até mesmo certa dificuldade em afirmar que a sentença penal condenatória seja, de fato, por si só, um
título executivo: “A sentença penal condenatória acerta a existência do ato ensejador de responsabilidade
civil e o elemento subjetivo (doloso ou culposo) do ofensor. Com base nessa decisão, a vítima ou seus
sucessores podem iniciar liquidação civil pelo procedimento comum (art. 509, II, do CPC de 2015), na
qual se desenvolve amplo contraditório destinado à demonstração da existência de dano, que pode resul-

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Carlos Eduardo de Moraes Domingos

Corolário da garantia do contraditório, “o ‘direito à prova’ é uma expressão


sintética que compreende o direito de todas as partes de buscar as fontes de prova,
requerer a admissão do respectivo meio, participar de sua produção e apresentar
uma valoração no momento das conclusões” (TONINI, 2010, p. 83).
É sabido que os fatos e os atos jurídicos são objetos de afirmação ou negação
em um processo. Em sentido processual, a prova é um meio de verificação das
proposições formuladas pelas partes em juízo (COUTURE, 1993, p. 217). Assim,
a atividade probatória tem como finalidade dar conhecimento dos fatos que
sustentam suas pretensões ao julgador. As fases de seu procedimento consistem
na proposição das provas, sua admissão, produção e, por fim, sua valoração pelo
juízo, todas compreendidas pelo direito à prova (GRINOVER, 2013, p. 310-311).
O resultado probatório decorrerá da atividade de instrução, portanto, resultado
da atividade probatória. Trata-se do elemento de prova valorado pelo juiz. Sendo
certo que, via de regra, não há apenas um meio de prova produzido no processo,
mas diversos, os resultados probatórios relativos devem ser valorados pelo juiz
e cotejados com o objetivo de reconstituir o fato alegado a ser provado (TONINI,
2010, p. 63-64).
A estrutura particular da pretensão civil deduzida no processo penal, não
obstante, exigiria uma regulamentação especial em matéria de prova, tanto quanto
à oportunidade de seu exercício quanto ao seu oferecimento, valoração e concreta
produção (MORAS MOM, 1996, p. 143). Ausente tal regramento, ao intérprete
caberá a conciliação das regras probatórias características do processo civil com
as limitações inerentes ao processo penal democrático de cariz acusatório.
Não apenas há divergência quanto à forma e limitação da produção de provas
entre o processo civil e o processo penal, como também ao ônus de prova e, por
conseguinte, diversos são os critérios de julgamento.41 Segundo Paolo Tonini, a
quantidade de provas necessárias para convencer o juiz é diferente no processo
civil e no penal.42 Não por outra razão, a atividade probatória do requerido naquele

tar em uma sentença de procedência ou de improcedência. Diante desse contexto, é difícil até mesmo
afirmar que a sentença penal condenatória seria, por si só, um título executivo, pois lhe falta mais do que
simples liquidez, mas sim a própria certeza objetiva e subjetiva. A única diferença para uma pura e simples
ação ex delicto está no fato de o processo se iniciar informado pela indiscutibilidade dessas questões
resolvidas na fundamentação da sentença penal condenatória” (SICA, 2016, p. 135).
41
No mesmo sentido: “Não há como negar que as instâncias penal e civil analisam os diversos aspectos
da causa segundo disciplinas normativas específicas, inclusive em termos de ônus da prova, com uma
necessidade de maior certeza para a imputação de natureza penal” (GOMES JR., 2015, p. 806).
42
Prosseguindo em seu raciocínio, o autor afirma que “no primeiro [processo civil], o quantum de prova é
idêntico para o requerente e para o requerido. O requerente deve provar os fatos constitutivos do seu direi-
to para eliminar a dúvida do juiz (art. 2697, inciso I, do Código Civil). A insuficiência ou a contraditoriedade
da prova por ele fornecida (por exemplo, sobre a existência de um crédito), é equiparada à inexistência

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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível

é mais intensa (LEONEL, 2016, p. 132), enquanto que nesse a liberdade defensiva
é mais extensa.
Como consequência, quanto à prova e contraprova da fixação de valor
indenizatório no processo penal, levanta-se uma primeira questão. Se mais intensa
é a atividade probatória do réu em relação ao pedido cível, tendo em conta as regras
de ônus de prova e o critério de julgamento próprios do processo civil, sua defesa
criminal estará relegada a um segundo plano ou haverá de renunciar a uma defesa
cível efetiva em favor de uma adequada defesa penal. Mais além, o que fazer se
a prova de sua defesa implicar a exasperação da indenização civil?43 O respeito e
a consonância da ampla defesa tanto em relação à imputação penal quanto em
relação à pretensão ressarcitória são o primeiro desafio a ser enfrentado.
Soma-se a isto o próprio risco de desvirtuamento do processo penal, em si
mesmo considerado, para a apuração de questão cível, em prejuízo ao interesse
público envolvido na sua solução. Prolongar a discussão indenizatória em detrimento
da discussão penal representa a distorção do processo penal para benefício de
questão predominantemente privada.
Por tais razões, a solução, conquanto casuística, parece residir na complexidade
da prova referente à pretensão ressarcitória, de modo que “não poderá o juízo
criminal ampliar demais a atividade probatória a respeito do dano civil para não
causar desvios procedimentais ou subverter a correta condução do processo para
a solução da pretensão punitiva” (CABRAL, 2016, p. 409). Isso significa que,
considerada a inconveniência de uma instrução probatória detalhada do valor
reparatório, deve-se privilegiar a produção de prova pré-constituída. Ao prudente
arbítrio do juízo, se a prova requerida por qualquer das partes for complexa e, desde
que pertinente e relevante ao feito, a decisão final não poderá comportar a fixação
de valor indenizatório mínimo.44
A fim de garantir o direito à prova, sem que o processo penal tenha pervertida
sua finalidade principal ou maculada qualquer garantia processual do imputado, o
julgador deverá deixar de fixar valor mínimo indenizatório no caso de complexidade
da instrução da questão cível. Ao imputado tem-se assegurada a garantia da ampla

de prova e faz com que o juiz indefira o pedido. Da mesma forma ocorre quando o ônus da prova com-
pete ao requerido (...). Em contrapartida, no processo penal, o órgão acusador tem o ônus de provas a
responsabilidade do acusado de modo a eliminar a dúvida. Quando restar dúvida (o que a jurisprudência
anglo-americana define como ‘razoável’), o acusado deve ser absolvido” (TONINI, 2010, p. 68-69).
43
O problema é identificado por: SUÁREZ SÁNCHEZ, 1998, p. 91.
44
Essa foi a solução encontrada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Penal nº 470. Cf.:
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 470. Relator(a): Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado
em 17.12.2012, acórdão eletrônico dje-074 divulg. 19.04.2013 public. 22.04.2013 rtj vol-00225-01
pp-00011.

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Carlos Eduardo de Moraes Domingos

defesa criminal efetiva. Se afirmado que a prova defensiva referente à pretensão


ressarcitória for complexa, a fim de salvaguardar sua defesa criminal, a discussão
do dano civil deverá ser relegada ao juízo cível. Idêntica solução se impõe no caso
de a prova de sua defesa criminal implicar a exasperação da indenização civil.
No caso de prova complexa requerida pelo acusador ou pelo ofendido legitimado
para tanto, no intuito de preservar a correta aplicação da lei penal pelo necessário
processo penal, da mesma forma deverá o juízo criminal deixar de fixar o valor
indenizatório mínimo pedido.
A complexidade como parâmetro de controle judicial da instrução da pretensão
cível, outrossim, importa também à garantia da duração razoável do processo. Isso
porque demandará atividade processual probatória que, por sua vez, consumirá
tempo para a sua concretização. A produção de prova enquanto atividade somente
poderá prolongar o processo.
Nessa medida, o controle da fase instrutória torna-se ainda mais crítico, não
sendo poucas as vozes na doutrina que alertam para o risco de indevida prorrogação
do feito.45 A perspectiva de violação à duração razoável do processo é ainda mais
grave se considerada a possibilidade de existência de medida cautelar, pessoal ou
real, o que faz ainda mais severos os prejuízos da demora ao imputado.46 Nesse
caso, é de todo inadmissível a dilação probatória cível, prolongando o processo,
quando já encerrada a instrução criminal.
A par do controle da instrução do dano civil pela complexidade, outros pontos
merecem considerações, em razão da imbricação das regras de prova no processo
civil e no processo especial. Em especial, tem-se o direito ao silêncio do acusado
e o valor do depoimento do ofendido que se beneficia do pedido reparatório dentro
do processo penal.

45
Nesse sentido: “Pensamos que o ingresso da vítima no processo penal para postular apenas a satisfação
do dano pode causar tumulto e arrastar o processo por mais tempo” (TOURINHO FILHO, 2013, p. 36). “É
mais um entrave à resposta da jurisdição criminal dentro do tempo razoável. Por isso, são inadmissíveis
os meios de prova e a metodologia de busca desta, quando objetivarem a reparação cível” (GIACOMOLLI,
2015, p. 110). Igualmente, já na década de 80, José Carlos Barbosa Moreira alertava quanto à incompa-
tibilidade entre celeridade processual e intervenção da parte civil e dilação instrutória no processo penal
(conferir: BARBOSA MOREIRA, 1988, p. 114).
46
Não é demais lembrar que “a eventual indisponibilidade patrimonial do réu, que por si só é gravíssima,
mas que, se for conjugada com uma prisão cautelar, conduz à inexorável bancarrota do imputado e de
seus familiares. A prisão (mesmo cautelar) não apenas gera pobreza, senão que a exporta, a ponto de
a ‘intranscendência da pena’ não passar de romantismo do Direito Penal” (LOPES JR., 2014. p. 184).
Do mesmo modo, “porque autorizado o seu encarceramento antecipado, deverão todos os partícipes da
persecução empreender o máximo de celeridade a fim de se chegar à solução final, para dar uma res-
posta definitiva à situação indesejada de prisão provisória. O julgamento final no menor tempo possível,
respeitando-se as demais garantias processuais é, portanto, uma forma de se atribuir maior efetividade e
respeito à presunção de inocência” (MORAES, 2010. p. 351).

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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível

É certo que o direito à não autoincriminação e o direito ao silêncio47 são


corolários do devido processo penal (TUCCI, 2011, p. 73). Todavia, trata-se de
direito que se aplica de forma diversa na dinâmica probatória do processo civil.48
Na defesa cível dentro do processo penal, se aplicada a lógica daquele, isto é, o
critério de preponderância de prova, o direito ao silêncio poderá ser afetado pela
necessidade de produzir prova cível. Isso é, para desincumbir-se de seu ônus de
prova quanto ao pedido cível, o acusado poderia ter violado seu direito ao silêncio.
Por essa razão, defende-se que, ao menos nesse ponto, o regime processual
civil deverá apartar-se de suas regras próprias e adaptar-se às que impõe o regime
processual repressivo (MORAS MOM, 1996, p. 144). Há, de alguma forma, a
incidência indireta do critério de julgamento in dubio pro reo na pretensão civil
formulada no processo penal (SÁNCHEZ, 2004, p. 112). Exercido o direito ao silêncio,
o critério de julgamento quanto ao valor mínimo indenizatório fixado na sentença
penal condenatória deverá coincidir com o do próprio sistema penal.
Quanto ao depoimento do ofendido, tradicionalmente entende-se que “tendo
em vista seu natural interesse no feito, seu depoimento não tem o mesmo valor
que o depoimento de uma testemunha” (DEZEM, 2018. p. 636). Isso porque tem
congênita parcialidade no processo que o impede que seja considerado da mesma
forma que uma testemunha.49
Entretanto, tanto mais questionável o valor epistemológico de seu depoimento
se vier a exercer sua pretensão ressarcitória no processo penal (DOMINIONI, 1974,
p. 36-37). Há o evidente risco de parcialidade em suas declarações, de modo a

47
O direito ao silêncio tem origem no ius commune europeu, no início do século XVII. Conforme Albert
Alschuler, “the roots of the privilege in the early seventeenth century (and earlier) art to be found not in
the common law of England, but in the ius commune – the law applied throughout the European continent
and in the English prerogative and ecclesiastical courts. When seventeenth-century common law restricted
the power of the High Commission to ask incriminating questions of suspected religious dissenters, these
courts were, for the most part, requiring the commission to adhere to the law it purported to observe.
Several maxims of the ius commune expressed its most important limitation on interrogation. In addition to
the familiar Nemo tenetur maxim, given above, the ius commune made use of two more: Nemo punitur sine
accusatore (‘No one is punished in the absence of na accuser’) and Nemo tenetur detegere turpitudinem
suam (‘No one is bound to reveal his own shame’).” (ALSCHULER, 1997, p. 185). Por certo, tal direito
assumiu diferentes contornos em seu desenvolvimento histórico, de modo que posteriormente passou
a referir-se não apenas à instauração do procedimento criminal ou a uma acusação inicial, mas também
a toda condução do processo penal, independentemente da prova já colhida, desembocando no direito
ao silêncio e de não contribuir ativamente à construção e confirmação da tese acusatória (ALSCHULER,
1997, p. 185-201).
48
No processo civil, o direito ao silêncio restringe-se ao depoimento pessoal, nas hipóteses do artigo 388
do Código de Processo Civil. Contudo, seu exercício terá efeito direto quanto ao seu ônus de prova, uma
vez que segue lógica diferente àquela do processo penal.
49
“Sin necesidad de hacer el paralelo entre el lesionado en el proceso civil y el lesionado en el penal, basta
con que observemos que el impulso que mueve a este último es, como a aquél, un considerable interés
personal; además, parece que no está en armonía con los principios fundamentales del moderno proceso
que sea a un tiempo sujeto procesal y testigo” (FLORIAN, 1934, p. 241).

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Carlos Eduardo de Moraes Domingos

produzir um depoimento distorcido, porque interessado, e criar, eventualmente,


uma reparação de todo indevida. Evidente, contudo, que não por isso se deve
submeter o depoimento do ofendido a uma regra de exclusão probatória, mas
que lhe seja redimensionada a contribuição probatória, tal qual o interrogatório do
próprio acusado (DOMINIONI, 1974, p. 148).50
Em conclusão, não se deve esquecer que a pretensão civil é marcada pela
acessoriedade quando discutida no processo penal. Isto é, não pode protagonizar
a instrução processual (PALOMO HERRERO, 2008, p. 299). Ausente regulamen-
tação legal quanto à oportunidade de seu oferecimento, valoração e produção, a
complexidade da prova cível deve servir como parâmetro concreto para seu controle.
Entretanto, no caso de imprescindibilidade de produção de prova complexa ou de
confronto com as garantias processuais do imputado, o valor indenizatório não
deverá ser fixado sequer em patamar mínimo. Não é demais também ressaltar
que, na hipótese de risco ao interesse público ou a direito do acusado, o regime
processual civil deverá apartar-se de suas regras próprias e adaptar-se aos limites
decorrentes do regime processual penal, tal como para a preservação do direito
ao silêncio.
Por fim, ainda dentro da relação entre o direito à prova e a fixação do valor
indenizatório na sentença penal condenatória, cabe destacar que, recentemente,
o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de incidente de recurso repetitivo,
fixou o Tema nº 983. Por esse, entende-se que, nos casos de infrações penais que
envolvam violência doméstica, é possível o arbitramento de dano moral, dispensada
a instrução, uma vez que se trata de dano in re ipsa.51

7 Conclusões
Dado que a ciência do Direito propõe sua divisão metodológica em ramos,
tem-se como resultado a possibilidade de múltipla incidência jurídica. Tal fenômeno
explica como um mesmo fato pode ser valorado por setores diversos do ordenamento
jurídico e ajustar-se ao suporte fático de uma ou mais normas. O que indicará qual a

50
Em sentido contrário, ao analisar a figura do assistente de acusação, Gustavo Badaró afirma que o sujeito
“não poderá ser assistente de acusação e prestar declaração como ofendido, nos termos do art. 201 do
CPP. Há uma incompatibilidade ontológica entre tais posições. Uma delas é parte, sujeito processual, a
outra é fonte de prova” (BADARÓ, 2016, p. 306-307).
51
Tema nº 983: “Nos casos de violência contra a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é pos-
sível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da
acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de instrução
probatória”.

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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível

natureza jurídica da responsabilidade imputada é a natureza do ato ilícito praticado


e sua regulamentação por determinado setor do Direito.
Ao longo da história diversos critérios foram apresentados, admitidos e
contestados para definir com exatidão a diferença entre os atos ilícitos civis e
penais. Todavia, o que se pode perceber é que não divergem em sua essência. Em
última análise, sua distinção exprime a diferença de seleção de valores, condutas,
finalidades e mecanismos de funcionamento entre o sistema jurídico penal e o
sistema jurídico civil em um determinado contexto histórico.
A agravar a crise de paradigmas para definição entre ato ilícito civil e ato ilícito
penal, é perceptível, nesse movimento de confusão e progressiva separação de
seus conceitos, também um recente desenho de reaproximação, não obstante o
atual estágio de cientificidade do Direito não permita mais sua fusão. Se é possível
falar em uma consolidação da distinção entre o ato ilícito civil e o ato ilícito penal,
como produto de um processo histórico iniciado no século XVIII e concluído no
século XIX, atualmente, observam-se novos movimentos de reaproximação entre
as duas esferas, reforçando seus pontos de contato.
Esse movimento torna ainda mais complexa a questão da responsabilização
simultânea. Novos fatores entram em jogo quando a apuração das responsabilidades
jurídicas respectivas não se confina em compartimentos estanques. Considerado
que usualmente cada responsabilidade é apurada por meio do processo respectivo,
a concomitante responsabilização demanda o desenvolvimento de mecanismos
processuais para sua compatibilização, o que se concretiza dentro de modelos de
coordenação de jurisdições.
O implemento de modelos, ou mesmo de mecanismos tendentes à união de
objetos, terá como efeito a incidência de princípios e regras processuais penais,
ao lado de normas materiais e processuais civis, quando da apuração de eventual
compensação civil decorrente de infração penal, respeitada sua natureza jurídica.
É exatamente essa constatação que elege, necessariamente, a garantia-síntese do
devido processo legal como parâmetro de estudo da fixação do valor indenizatório
no processo penal, assim como o seria para qualquer outro mecanismo inserido
no contexto de coordenação de atividades jurisdicionais.
Enquanto garantia-síntese, o devido processo legal traduz valores constitucionais
superiores, com certa carga de abstração e que conferem uma feição política e um
compromisso ético ao processo. Presta-se não apenas à integração de lacunas,
como se limitavam os antigos princípios gerais de Direito, mas dá congruência,
equilíbrio e legitimidade ao sistema jurídico processual, inspirando a solução de
problemas concretos mediante técnicas de incidência distintas das regras.

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Insegurança e dúvida surgem na medida em que a Lei nº 11.719/08 concede


ao juízo penal o poder de determinar o valor reparatório civil na sentença penal
condenatória, sem, contudo, definir qualquer forma de fazê-lo. A questão essencial
que envolve a fixação de valor indenizatório na sentença penal condenatória diz
respeito ao seu modo de realização. Não sendo permitido ao intérprete legislar,
a fixação de valor mínimo indenizatório na sentença penal condenatória somente
pode ser desenhada a partir das regras procedimentais já existentes no processo
penal, à luz crítica da garantia-síntese do devido processo.
Relativamente à instrução do pedido ressarcitório, objeto deste estudo, o
que deve se ter em conta, qualquer que seja a interpretação da norma, é que a
fixação de valor indenizatório dentro do processo penal atende a uma pretensão
cível, impossível de ser apartada do direito à prova. Devem ser afastadas soluções
que permitam ao juízo fixar o montante ressarcitório a partir do que entender
cabalmente provado nos autos, tolhendo às partes as atividades probatórias e
argumentativas. Tal equivaleria a uma decisão decorrente de um não processo,
pois contrária à própria lógica dialética processual. É certo, assim, que o contexto
processual democrático impede que assim se realize.
Todavia, não se deve esquecer que a pretensão civil é marcada pela
acessoriedade quando discutida no processo penal. Isto é, não pode protagonizar
a instrução processual. Ausente regulamentação legal quanto à oportunidade de
seu oferecimento, valoração e produção, a complexidade da prova cível deve servir
como parâmetro concreto para seu controle. No caso de imprescindibilidade de
produção de prova complexa ou de confronto com as garantias processuais do
imputado, o valor indenizatório não deverá ser fixado sequer em patamar mínimo.
Ainda, na hipótese de risco ao interesse público ou a direito do acusado, o
regime processual civil deverá apartar-se de suas regras próprias e adaptar-se aos
limites decorrentes do regime processual penal, tal como para a preservação do
direito ao silêncio.

Setting damages in criminal sentencing: instructional phase and proof of civil claim
Abstract: The procedural reform set forth in Act 11.719/08 introduced into the criminal procedure
system the distinct possibility of setting minimum damages in criminal sentencing. This is the
culmination of a movement of convergence, divergence and reconvergence of civil and criminal liability.
In our legal system, it represents the growing concern for a policy that incorporates a fair trial for the
victims and the accused. However, when the lawmaker established this possibility in the current Code
of Criminal Procedure, no provisions were made with regard to its application. There is legal uncertainty
as to how the rule should be applied. This article is limited to the analysis of the instrumental phase
and proof of the civil claim.

Keywords: Criminal sentencing. Setting minimum damages. Due process. Criminal procedure.

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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível

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114 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019
A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

DOMINGOS, Carlos Eduardo de Moraes. A fixação do valor indenizatório na


sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível.
Revista Fórum de Ciências Criminais – RFCC, Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p.
85-115, jul./dez. 2019.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019 115
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES
Os impactos do compliance efetivo
na responsabilidade administrativa
objetiva da pessoa jurídica na Lei
Anticorrupção

Bruno Martins Torchia


Sócio-fundador do Bruno Torchia Advogados. Mestre em Direito Público (FUMEC),
especialista em Prevenção e Repressão à Corrupção (Estácio de Sá) com capacitação
internacional em Combate ao Crime Organizado (Università degli Studi di Roma – Tor
Vergata). Professor de cursos de graduação e pós-graduação. Autor de artigos científicos.
Palestrante. E-mail: bruno@brunotorchia.com.br.

Resumo: A Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, denominada Lei Anticorrupção, inaugurou no


ordenamento jurídico brasileiro uma esfera de responsabilização administrativa direcionada a pessoa
jurídica, de forma objetiva, conforme seu artigo 5º, embora com nítido caráter penal. Na ocasião da
aplicação dessas sanções os programas de integridade (compliance) podem reduzir as penalidades,
mas se forem efetivos e constituídos de acordo com os parâmetros e diretrizes legais. Diante disso
resta perquirir quais devem ser os requisitos de um programa efetivo de compliance. Concluiu-se que
a existência do compliance é um fator que, além de poder mitigar a penalidade pecuniária, reduzindo a
penalidade na razão de 4% (quatro por cento) sobre o valor da multa, pode repercutir positivamente na
análise das outras circunstâncias atenuantes e agravantes dispostas no Decreto nº 8.420/2015, na
ocasião do julgamento do Processo Administrativo de Responsabilização (PAR) e em eventual processo
criminal contra os dirigentes da pessoa jurídica, pois o modelo da responsabilidade objetiva não se
compatibiliza com o processo penal. O trabalho foi baseado em pesquisa bibliográfica e normativa,
utilizando-se a Lei Anticorrupção e o Decreto nº 8.420, de 18 de março de 2015, bem como normativos
dos órgãos oficiais do poder público responsáveis por editar normas sobre corrupção.
Palavras-chave: Lei Anticorrupção. Compliance efetivo. Responsabilidade objetiva da pessoa jurídica.
Responsabilidade penal.

Sumário: 1 Introdução – 2 Lei Anticorrupção – 3 Compliance – 4 A responsabilidade objetiva e os


impactos do compliance efetivo na aplicação das sanções da Lei Anticorrupção – 5 Considerações
finais – Referências

1 Introdução
A Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, denominada Lei Anticorrupção (LAC),1
inaugurou, no ordenamento jurídico brasileiro, a responsabilidade administrativa da

1
A Lei Anticorrupção é também chamada de “Lei de Improbidade Empresarial”, “Lei da Empresa Limpa”,
“Lei da Integridade das Pessoas Jurídicas” ou “Legislação de compliance”.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 119-148, jul./dez. 2019 119
Bruno Martins Torchia

pessoa jurídica, desta vez de forma objetiva, pela prática de atos lesivos, os quais
estão descritos em rol numerus clausulus, no seu artigo 5º.2
A mens legis da LAC é responsabilizar a pessoa jurídica por atos de corrupção
praticados em face da administração pública nacional ou estrangeira, sem olvidar
da responsabilidade subjetiva de seus dirigentes, administradores ou de qualquer
pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito.
Modesto Carvalhosa doutrina que a referida lei possui natureza e substância
penal, haja vista que suas condutas ilícitas tipificadas e efeitos se justapõem na
esfera penal (CARVALHOSA, 2015).
As disposições da Lei Anticorrupção são extremamente severas e demonstram
que o legislador tem procurado agir com austeridade no combate à corrupção,
máxime porque tanto a Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº
8.666/1993)3 quanto a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992),
principais diplomas nacionais que até então previam sanções em licitações e
contratações públicas, não estavam se mostrando eficazes, por não direcionarem,
mais diretamente, às pessoas jurídicas.4 5

2
Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei,
todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1º, que atentem
contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra
os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos: I - prometer, oferecer ou dar,
direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada; II
- comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos
ilícitos previstos nesta Lei; III - comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para
ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados; IV - no
tocante a licitações e contratos: a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro
expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público; b) impedir, perturbar ou fraudar a
realização de qualquer ato de procedimento licitatório público; c) afastar ou procurar afastar licitante, por
meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo; d) fraudar licitação pública ou contrato dela
decorrente; e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública
ou celebrar contrato administrativo; f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de
modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em
lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou g) manipular
ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública; V -
dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir
em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema
financeiro nacional (BRASIL, 2016a).
3
Convém ressaltar que a Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos, além de sanções administra-
tivas, tipifica uma série de condutas criminosas, a partir do seu artigo 89.
4
Embora já existam normas legais definindo crimes, atos de improbidade e infrações administrativas pra-
ticados contra a Administração Pública, o legislador houve por bem disciplinar especificamente os ilícitos
praticados por pessoas jurídicas contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira. (DI PIETRO,
2014, p. 928).
5
Veja-se, a título de exemplo, a Convenção Interamericana de Combate contra a Corrupção (CICC), da
Organização dos Estados Americanos (OEA), realizada em 29 de março de 1996, em Caracas, Venezuela,
na qual se definiu a necessidade de responsabilizar pessoas jurídicas pela prática de atos de corrupção.
Nesse sentido é a redação do art. 3º, item 2: “Caso a responsabilidade criminal, sob o sistema jurídico
da Parte, não se aplique a pessoas jurídicas, a Parte deverá assegurar que as pessoas jurídicas estarão
sujeitas a sanções não-criminais efetivas, proporcionais e dissuasivas contra a corrupção de funcionário

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OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...

Quanto às sanções a serem aplicadas à pessoa jurídica, dispõe a Lei


Anticorrupção que elas consistem: (i) na esfera administrativa em multa e publicação
da decisão condenatória em meios de grande circulação (art. 6º);6 (ii) na esfera
judicial no perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem
ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração; suspensão ou interdição
parcial das atividades; dissolução compulsória da pessoa jurídica e proibição de
receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou
entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder
público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos (art. 19);7 e (iii)
divulgação das sanções em cadastro público (CARVALHOSA, 2015).
Na ocasião da aplicação da sanção, o artigo 7º da Lei Anticorrupção faz constar
inúmeras circunstâncias que devem ser levadas em conta pelo julgador no intuito
de avaliar a culpabilidade do infrator.8

público estrangeiro, inclusive sanções financeiras”. Referida convenção foi integrada ao ordenamento
jurídico brasileiro após aprovação do Decreto Legislativo nº 152, de 25 de junho de 2002, e Decreto nº
4.410, de 7 de outubro de 2002 (BRASIL, 2017).
6
Art. 6º Na esfera administrativa, serão aplicadas às pessoas jurídicas consideradas responsáveis pelos
atos lesivos previstos nesta Lei as seguintes sanções: I - multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento)
a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo
administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível
sua estimação; e II - publicação extraordinária da decisão condenatória. §1º As sanções serão aplicadas
fundamentadamente, isolada ou cumulativamente, de acordo com as peculiaridades do caso concreto e
com a gravidade e natureza das infrações. §2º A aplicação das sanções previstas neste artigo será prece-
dida da manifestação jurídica elaborada pela Advocacia Pública ou pelo órgão de assistência jurídica, ou
equivalente, do ente público. §3º A aplicação das sanções previstas neste artigo não exclui, em qualquer
hipótese, a obrigação da reparação integral do dano causado. §4º Na hipótese do inciso I do caput, caso
não seja possível utilizar o critério do valor do faturamento bruto da pessoa jurídica, a multa será de R$
6.000,00 (seis mil reais) a R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais). §5º A publicação extraordi-
nária da decisão condenatória ocorrerá na forma de extrato de sentença, a expensas da pessoa jurídica,
em meios de comunicação de grande circulação na área da prática da infração e de atuação da pessoa
jurídica ou, na sua falta, em publicação de circulação nacional, bem como por meio de afixação de edital,
pelo prazo mínimo de 30 (trinta) dias, no próprio estabelecimento ou no local de exercício da atividade, de
modo visível ao público, e no sítio eletrônico na rede mundial de computadores. (BRASIL, 2016a).
7
Art. 19. Em razão da prática de atos previstos no art. 5o desta Lei, a União, os Estados, o Distrito Federal
e os Municípios, por meio das respectivas Advocacias Públicas ou órgãos de representação judicial, ou
equivalentes, e o Ministério Público, poderão ajuizar ação com vistas à aplicação das seguintes sanções
às pessoas jurídicas infratoras: I - perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem
ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de
boa-fé; II - suspensão ou interdição parcial de suas atividades; III - dissolução compulsória da pessoa
jurídica; IV - proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos
ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo
mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos. §1º A dissolução compulsória da pessoa jurídica será de-
terminada quando comprovado: I - ter sido a personalidade jurídica utilizada de forma habitual para facilitar
ou promover a prática de atos ilícitos; ou II - ter sido constituída para ocultar ou dissimular interesses
ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados. §2º (VETADO). §3º As sanções poderão ser
aplicadas de forma isolada ou cumulativa. (BRASIL, 2016a).
8
Art. 7º Serão levados em consideração na aplicação das sanções: I - a gravidade da infração; II - a van-
tagem auferida ou pretendida pelo infrator; III - a consumação ou não da infração; IV - o grau de lesão ou
perigo de lesão; V - o efeito negativo produzido pela infração; VI - a situação econômica do infrator; VII - a
cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações; VIII - a existência de mecanismos e proce-

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Bruno Martins Torchia

Uma dessas circunstâncias é a existência de programas de integridade


(compliance),9 que é fator que pode e deve mitigar a responsabilização da pessoa
jurídica, conforme se verifica no artigo 7º, inciso VIII, da Lei Anticorrupção.
É sabido que o compliance, conforme definição exposta na norma do próprio
artigo 41, do Decreto nº 8.420, de 18 de março de 2015, se constitui, em síntese,
no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e
incentivo à denúncia com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades
e atos ilícitos praticados contra a administração pública.10
A regulamentação dos parâmetros de avaliação de mecanismos e procedimentos
do compliance, de igual forma, está prevista no referido decreto, que cunha, no
seu art. 18, inciso V, a possibilidade de diminuição do valor da multa aplicada no
Processo Administrativo de Responsabilização (PAR), no patamar de 1% (um por
cento) a 4% (quatro por cento).11
Referida redução, entretanto, apenas será deferida pela autoridade julgadora
se for demonstrado que a pessoa jurídica possuía um programa de compliance
efetivo, conforme se infere da leitura do artigo 5º, parágrafo 4º, do Decreto nº
8.420/2015.12
Nesse contexto, alguns problemas emergem para a pessoa jurídica que buscará
adotar o compliance na sua gestão, quais sejam, o que viria a ser um compliance
efetivo e, se efetivo, se seria possível não somente diminuir a multa aplicada, mas
também excluir eventuais sanções impostas com base na Lei Anticorrupção, já que

dimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva


de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica; IX - o valor dos contratos mantidos pela
pessoa jurídica com o órgão ou entidade pública lesados; e X - (VETADO). (BRASIL, 2016a).
9
Frise-se que muito embora a LAC e o Decreto nº 8.420/2015 não mencionem a expressão compliance, e
sim programas de integridade, trata-se, em verdade, do mesmo instituto.
10
Art. 41. Para fins do disposto neste Decreto, programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa
jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à
denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes
com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a admi-
nistração pública, nacional ou estrangeira. Parágrafo Único. O programa de integridade deve ser estrutura-
do, aplicado e atualizado de acordo com as características e riscos atuais das atividades de cada pessoa
jurídica, a qual por sua vez deve garantir o constante aprimoramento e adaptação do referido programa,
visando garantir sua efetividade (BRASIL, 2016b).
11
Art. 18. Do resultado da soma dos fatores do art. 17 serão subtraídos os valores correspondentes aos
seguintes percentuais do faturamento bruto da pessoa jurídica do último exercício anterior ao da instaura-
ção do PAR, excluídos os tributos: [...] V - um por cento a quatro por cento para comprovação de a pessoa
jurídica possuir e aplicar um programa de integridade, conforme os parâmetros estabelecidos no Capítulo
IV. (BRASIL, 2016b) (grifo nosso).
12
Art. 5º No ato de instauração do PAR, a autoridade designará comissão, composta por dois ou mais
servidores estáveis, que avaliará fatos e circunstâncias conhecidos e intimará a pessoa jurídica para, no
prazo de trinta dias, apresentar defesa escrita e especificar eventuais provas que pretende produzir. [...]
§4º Caso a pessoa jurídica apresente em sua defesa informações e documentos referentes à existência
e ao funcionamento de programa de integridade, a comissão processante deverá examiná-lo segundo os
parâmetros indicados no Capítulo IV, para a dosimetria das sanções a serem aplicadas (BRASIL, 2016b).

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OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...

o mencionado artigo 18 é expresso ao mencionar o PAR, se restringindo, assim,


por opção legislativa, à esfera administrativa.
A discussão é importante na medida em que países como os Estados Unidos13 e
o Reino Unido14 possuem um ordenamento jurídico que permite a exclusão completa
de penalidades aplicadas à pessoa jurídica, caso demonstrado que esta envidou
esforços para instituir compliance eficaz.
É objetivo geral deste trabalho compreender o que é programa de integridade
e quais os parâmetros e diretrizes que deve se assentar para ser considerado
efetivo, na esteira do que dispõe o Decreto nº 8.420/2015. Especificamente
busca-se compreender quais são os efeitos concedidos pela LAC a um programa de
compliance efetivo, ou seja, sua aptidão para mitigar ou excluir a responsabilização
da pessoa jurídica não somente na esfera administrativa, como previsto no decreto
regulamentador, mas também na esfera judicial.
O estudo foi desenvolvido a partir da pesquisa bibliográfica e legislativa. Foi
analisada especialmente a Lei Anticorrupção e seu decreto regulamentador, assim
como livros e artigos científicos que cuidam do assunto.

2 Lei Anticorrupção
A Lei Anticorrupção, norma de natureza cível administrativa, disciplina a
responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas pela prática de atos que ela
considera lesivos, sem prejuízo da responsabilização (subjetiva) individual dos
seus dirigentes, administradores ou qualquer pessoa natural, autora, coautora ou
partícipe do ilícito.15
Modesto Carvalhosa entende que o diploma objetiva estabelecer normas de
conformidade visando o combate à prática da corrupção junto ao Poder Público. A lei,
porém, na visão do autor, constitui a transposição para o Direito Penal-Administrativo

13
Esse é o escólio de Carlos Henrique da Silva Ayres: “O benefício que as empresas sujeitas à legislação
norte-americana podem ter por conta de apresentarem um programa de compliance robusto é significativo,
reduzindo penalidades ou até mesmo eximindo-as de sanções em determinados casos, além de outras
consequências favoráveis” (AYRES, 2014, p. 44).
14
Marco Vinicio Petrelluzzi e Rezek Junior aduzem: “[...] o UK Bribery Act contempla que, na hipótese de
a sociedade comprovar a presença de procedimentos adequados no sentido de prevenção da corrupção
(programas de compliance), sua conduta poderá não sofrer qualquer sanção, o que vem estimulando
sobremaneira a adoção, por empresas com atuação no âmbito da União Europeia [sic], de programas de
compliance” (PETRELLUZZI; RIZEK JUNIOR, 2014, p. 27).
15
Humberto Barrionuevo Fabretti leciona: “Porém, é preciso atentar-se para o fato de que a Lei 12.846/2013
prevê̂ apenas a possibilidade de responsabilidade das pessoas jurídicas, sendo que a responsabilização
das pessoas físicas vai depender de outros diplomas legais, que deverão prever as condutas das pessoas
físicas que pretende punir, como, por exemplo, o Código Penal, a Lei de Improbidade Administrativa, a Lei
de Licitações, o Estatuto do Funcionário Público Federal etc.” (FABRETTI, 2014, p. 4).

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Bruno Martins Torchia

da teoria da imputação objetiva, que representa o instrumento moderno de julgamento


e condenação por parte do juiz criminal, não mais fundado na causalidade tipo-dolo,
mas na causalidade conduta-benefício procurado ou obtido pela pessoa jurídica
corrupta (CARVALHOSA, 2015).
As sanções são aplicadas tanto na esfera administrativa quanto na judicial.
Na esfera judicial, frise-se, a autoridade competente poderá requerer a condenação
da pessoa jurídica nas penalidades administrativas previstas não aplicadas, em
conformidade com o previsto no artigo 20, da LAC.16
A divulgação das sanções aplicadas, para fins de publicidade no CNEP (Cadastro
Nacional de Empresas Punidas) e também no CEIS (Cadastro Nacional de Empresas
Inidôneas), é também considerada uma sanção (CARVALHOSA, 2015).
Em qualquer caso, há que se distinguir a aplicação da punição com a obrigação
de reparar o dano causado, que subsistirá em qualquer hipótese, conforme previsões
dos artigos 6º e 13 da citada lei.17
A adoção de responsabilização penal-administrativa de pessoas jurídicas na
Lei Anticorrupção dá natureza objetiva aos tipos lesivos que enumera, confirma
tendência na nossa legislação, porém há que interpretá-la com os princípios gerais
do Direito (CARVALHOSA, 2015).
Ademais, embora a aplicação de sanções administrativas e penais decorra
de um mesmo poder punitivo estatal, deve-se garantir a observância de todos os
princípios constitucionais, quais sejam, do devido processo legal, contraditório,
legalidade, tipicidade e culpabilidade (TORCHIA; DIAS, 2018, p. 226).
Certo é que, não havendo vontade psicológica ou ação da pessoa jurídica, a
responsabilidade objetiva prevista na Lei Anticorrupção exclui a necessidade de
perquirir culpa ou dolo no lesivo, bem como se o ato foi praticado ou não no seu
interesse.18

16
Art. 20. Nas ações ajuizadas pelo Ministério Público, poderão ser aplicadas as sanções previstas no art.
6º, sem prejuízo daquelas previstas neste Capítulo, desde que constatada a omissão das autoridades
competentes para promover a responsabilização administrativa (BRASIL, 2016a).
17
Art. 6º. [...] §3º A aplicação das sanções previstas neste artigo não exclui, em qualquer hipótese, a
obrigação da reparação integral do dano causado. [...] Art. 13. A instauração de processo administrativo
específico de reparação integral do dano não prejudica a aplicação imediata das sanções estabelecidas
nesta Lei. (BRASIL, 2016a).
18
Tramita perante o Supremo Tribunal Federal Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.261/DF
que visa discutir a responsabilização objetiva prevista na Lei Anticorrupção, ajuizada pelo Partido Social
Liberal (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 5.261/DF. Petição inicial. Reqte.: Partido Social Liberal
(PSL). Intdos: Presidente da República, Congresso Nacional, CONACI (Conselho Nacional de Controle
Interno). 11 mar. 2015. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do-
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OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...

Todavia, a responsabilidade objetiva não pode ser um mecanismo utilizado


para mitigação das garantias fundamentais do acusado (ZARDO, 2014, p. 58).
Apresentadas as principais considerações acerca da LAC, passa-se ao estudo
do compliance e os efeitos que ele pode proporcionar na eventual ocasião de
responsabilização da pessoa jurídica praticante de um ato lesivo.

3 Compliance
3.1 Considerações iniciais
Compliance é um termo anglo-saxão que deriva da expressão to comply e
significa obedecer, executar e realizar o que foi imposto.
Segundo José Anacleto Abduch Santos et al. (2015, p. 233-234) pode ser
compreendido como o dever de cumprir e fazer cumprir normas legais, códigos de
ética concorrencial e normas internas que regem determinada atividade econômica,
demonstrando diligência e o cumprimento do dever de cuidado inerente à prudência
no trato dos negócios e atividades empresariais.
Para Vicente Greco Filho (2015, p. 69), compliance “consiste na prática de
obedecer a regras ou requisições/mandamentos emanados de autoridades. Também
pode ser encarado como prática para assegurar total obediência à lei”.
Para Rodrigo Sánchez Rios e Caio Antonietto o compliance está ligado a três
vertentes: adoção de controles internos com o fim de prevenir modalidades delitivas;
limitação do abuso de poder através de governança corporativa; e compromissos de
luta contra a corrupção materializados em seus Códigos de Ética (RIOS; ANTONIETTO,
2015, p. 5-6).
O compliance visa reagir contra as infrações e fraudes cometidas no âmbito
da pessoa jurídica, possuindo, portanto, objetivos preventivos e reativos.
O compliance não é instituto novo e antes mesmo da edição da Lei Anticorrupção
várias organizações já tinham implantando este mecanismo, inclusive com suporte
em legislação estrangeira (OLIVEIRA, 2017, p. 24).
Sua primeira aparição histórica no plano internacional data de mais ou menos
15 anos. Nilson Lautennchleger Junior, citado por Flávio Rezende Dematté (2015, p.
129), destaca que normas mais sólidas de compliance ganharam maior relevância
nos Estados Unidos com a edição da Sarbanes-Oxley-Act, em 23 de janeiro de
2002, que seria uma resposta do governo americano ao caso Enron,19 envolvendo

19
Flavio Rezende Dematté nos ensina que o caso Enron, em 2001, foi um acontecimento de grande relevân-
cia porque ilustra bem a hipótese na qual a sobreposição de interesses privados dos membros diretores

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Bruno Martins Torchia

uso indevido de técnicas contábeis e emprego de auditorias fraudulentas com o


fim de aumentar lucratividade das empresas.
Já para Vicente Greco Filho (2015, p. 71), a atividade organizada de compliance
teria surgido nas instituições financeiras com a criação do Banco Central, em 1913.
A adoção do compliance é uma tendência e provoca a proliferação da cultura
da integridade nas entidades públicas ou privadas.20
E mais, observa-se, após a edição da Lei Anticorrupção, a privatização da luta
contra a corrupção, isso porque o Estado, mesmo sem renunciar às competências,
atribuições e ferramentas que possui, convida o particular a lhe auxiliar no combate
às fraudes, seja considerando irregulares certos comportamentos ou concedendo
benefícios àqueles que estejam agindo na estreita conformidade com a legalidade.
A incapacidade do Estado de alcançar uma regulação direta faz com que se recorra
a um novo polo do espectro regulatório (BONACCORSI, 2017, p. 202).
Embora os programas de compliance sejam alvos de críticas, ao fundamento
de que a pessoa jurídica não estaria fazendo nada além da sua obrigação, qual
seja, de cumprir a lei, há que se ressaltar que a noção imposta hoje é muito mais
no sentido de se promover um comportamento ético empresarial. Por isso o “setor
de compliance” possui atribuições distintas das auditorias, departamentos jurídicos
e dos controles internos, porquanto pode ir além apenas da aferição da legalidade.
Nesse sentido, Pierpaolo Cruz Bottini e Igor Sant’Anna Tamasauskas (2014, p.
126,127) esclarecem:

Nesse ponto, o legislador apenas dá sequência a uma política ado-


tada há tempos: a transferência compulsória de parte do controle
e prevenção de atos ilícitos para a iniciativa privada. Ao se dar con-
ta da incapacidade estrutural do Poder Público de fiscalizar os atos
suspeitos de ilicitude e de tomar as providências adequadas para
a prevenção e repressão de certos delitos, as autoridades brasilei-
ras – seguindo experiências internacionais – optaram por repartir tais
atribuições com particulares, em uma espécie de colaboração cogen-
te. [...] Como aventado, o Poder Público, de certa forma, delega à
empresa uma parte da tarefa de prevenir e coibir ilícitos. Note-se que
o legislador não se contenta em proibir que a instituição pratique a
corrupção. Vai além. Quer sua atuação para evitar que seus parcei-
ros ou empregados o façam, e, quando o fizerem, que colabore com

da empresa se faz presente com relação aos acionistas, uma vez que aqueles, durante anos, manipula-
ram relatórios de auditorias internas e externas para esconder uma dívida de aproximadamente 25 bilhões
de dólares (DEMATTÉ, 2015, p. 71).
20
Vicente Greco Filho disserta que o comprometimento empresarial pela anticorrupção traz uma série de
benefícios para a corporação, seja por contar com uma boa reputação, tornar-se mais atrativa para as ins-
tituições financeiras, bem como ser uma opção interessante de compra, fusão, incorporação etc. (GRECO
FILHO, 2015, p. 68-69).

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os trabalhos de investigação. Desloca-se a atribuição de fiscalizar e


mesmo de apurar o ilícito para o particular.

O compliance é termo que vem sendo cada vez mais dotado de generalidade,
de forma a ser utilizado como mecanismo de prevenção e reação por qualquer
pessoa jurídica, e em vários segmentos, sendo comum sua classificação se dar de
acordo com o ramo do Direito ou problema específico ao qual se relacione, já que é
uma construção que foi importada para o Direito brasileiro muito antes da LAC.21 22

3.2 Compliance anticorrupção e criminal compliance


Denomina-se de compliance anticorrupção o mecanismo talhado para prevenir,
detectar e remediar os atos lesivos previstos especificamente na Lei Anticorrupção,
os quais estão muito voltados (mas não somente) às licitações e contratações
públicas. Sua regulamentação encontra-se, como já referido, no artigo 7º, inciso
VIII, da LAC, e artigos 41 e 42, do Decreto nº 8.420//2015.
O fenômeno da corrupção é extremamente amplo e extenso, não sendo objeto
desse trabalho perquirir sua conceituação, consequências ou causas.23
Os programas de integridade são ferramentas construídas sob a moldura da
governança corporativa e destinam-se, em verdade, à prevenção da responsabilidade
das empresas.24
Esses programas devem se ocupar dos riscos que recaem, igualmente,
sobre as pessoas físicas, dirigentes da empresa, sendo um conjunto de medidas
tendentes a garantir que todos e cada um dos membros de uma empresa, desde
o presidente do Conselho de Administração até o último empregado, cumpram
com os mandados e as proibições e que, em caso de infração, seja possível a sua
descoberta e adequada sanção. Por isso, quanto mais eficiente for o compliance,

21
Tais como compliance trabalhista, bancário, ambiental, tributário, concorrencial, criminal etc.
22
Lorraine S. Evangelista “sustentou que a definição de compliance cuidava de um ‘fenômeno’ um tanto
quanto complicado em razão das diferentes perspectivas tomadas por diversas disciplinas” (EVANGELISTA
apud GRECO FILHO, 2015, p. 70).
23
Acerca do fenômeno da corrupção remetemos o leitor a TORCHIA, Bruno Martins; MACHADO, Tacianny
Mayara Silva. Os reflexos sociais da corrupção no direito ao trabalho. XXV Encontro Nacional do Conpedi –
Brasília/DF. Florianópolis: CONPEDI, 2016. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/publicacoes/
y0ii48h0/6ghn3t0o/IXr7F879eTgC4EAc.pdf. Acesso em: 17 nov. 2016 (TORCHIA; MACHADO, 2016).
24
Governança corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monito-
radas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria,
órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas. As boas práticas de governança corpora-
tiva convertem princípios básicos em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade de
preservar e otimizar o valor econômico de longo prazo da organização, facilitando seu acesso a recursos
e contribuindo para a qualidade da gestão da organização, sua longevidade e o bem comum (INSTITUTO
BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA, 2015, p. 20).

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Bruno Martins Torchia

mais provável será que infrações venham a ser expostas para as autoridades e
para eventuais litigantes privados, aumentando, em consequência, a potencial
responsabilidade da empresa.
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves e Caroline da Rosa Pinheiro (2016,
p. 6) assinalam que, não obstante haja confusão ordinária entre o compliance e a
governança corporativa, não são institutos iguais, visto que a governança corporativa
se refere à existência de regras para a boa gestão da sociedade e o compliance
possui escopo mais restrito e diz respeito ao fiel cumprimento das normas legais,
que, num determinado contexto, têm força cogente.
Os autores prosseguem para dizer que existem teorias que buscam explicar o
embasamento do compliance, sendo elas a teoria da dissuasão (deterrence theory),
segundo a qual a maior probabilidade de sanção, seguida de uma eficiente fiscali-
zação, leva a um maior índice de compliance; a teoria da decisão comportamental
(behavioral decision theory), que assevera que os conceitos prévios cognitivos podem
influenciar na escolha racional; e a teoria normativista, que defende estratégias
de disseminação de informações, assistência tecnológica e inspeções, em prol de
maior cooperação entre os envolvidos (ALVES; PINHEIRO, 2016, p. 6-7).
Já o criminal compliance surgiu no cenário através qual empresários e
dirigentes possuem dificuldade em se adequar às regulamentações a que estão
sujeitos, devendo se prevenir de tais riscos, oriundos também de regulamentações
extrapenais (RIOS; ANTONIETTO, 2015, p. 8).
A origem do criminal compliance surge com a Lei nº 12.683/2012, que
modificou a Lei de Lavagem de Dinheiro, que impôs a obrigatoriedade de várias
pessoas físicas e jurídicas comunicar às autoridades responsáveis certas operações
de ativos, sob pena de responsabilização administrativa ou de presunção de origem
ilícita dos bens e valores (BONACCORSI, 2017, p. 208-211).
Há que se distinguir, porém, o compliance das normas relacionadas à prevenção
à lavagem de dinheiro e o compliance aplicável à Lei Anticorrupção. No primeiro
caso o mecanismo é obrigatório, ensejando aplicação de sanções administrativas
às pessoas físicas e jurídicas. E no segundo, facultativo, pois a ausência do
programa representará, tão somente, impossibilidade de mitigação da pena de
multa administrativa (VERÍSSIMO, 2017, p. 17).
Segundo Renato Mello Jorge da Silveira, a análise da Lei nº 12.683/2012,
da Lei Anticorrupção e do entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal
no julgamento do mensalão (AP 470) permite-nos concluir haver um reforço penal
na lavagem de capitais, de modo que as não correspondências aos programas de

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OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...

compliance se constituem em verdadeira infração de dever, tornando possível a


estipulação de responsabilidades penais a vários acusados (SILVEIRA, 2015, p. 28).
Com a edição da Lei Anticorrupção, inspirada em diplomas internacionais (FCPA
e UKBA), o tema ressurge, haja vista a necessidade de coibir condutas lesivas de
funcionários que poderão fazer recair responsabilidade sobre a pessoa jurídica. A
lógica penal do instituto é vista tanto na repercussão penal pelo crime de corrupção
ativa e passiva (BONNACORSI, 2017, p. 221-222).
O alvorecer da constatação de prevenção, onde o dano cede lugar ao perigo
nas formulações típicas, o cumprimento normativo e a adoção de preceitos éticos
são assumidos pelas empresas (SILVEIRA, 2015, p. 26).
Nos tempos atuais, nos quais a moralidade e a eticidade ganham contornos
cada vez mais evidentes, o compliance é capaz de promover uma cultura positiva na
empresa, construindo a marca, aumentando os lucros e o orgulho dos empregados.
Esse ambiente gera reflexos externos, pois constrói a confiança dos
consumidores, fornecedores, mídia e do mercado, aumentando a atratividade para
investimentos, especialmente se a empresa tiver ações em bolsa. A reputação e a
imagem da pessoa jurídica são ativos que promovem o comportamento ético dos
altos executivos, dos gerentes e dos empregados. A reboque, previne-se a prática
de crimes no ambiente corporativo, respaldando dirigentes e pessoas jurídicas
(SAAVEDRA, 2011, p. 11).

3.3 Procedimento de formulação, implantação e


consolidação do programa de compliance
Carla Veríssimo ensina que um programa de compliance, seguindo a metodologia
proposta por Engelhart, divide-se em três colunas, quais sejam, formulação,
implementação e consolidação e aperfeiçoamento (VERÍSSIMO, 2017, p. 276-277).
O Decreto nº 8.420/2015, com base no que dispôs a Lei Anticorrupção,
ficou responsável por regulamentar os parâmetros de avaliação e mecanismos do
programa de integridade. 25

25
Art. 41. Para fins do disposto neste Decreto, programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa
jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à
denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes
com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a admi-
nistração pública, nacional ou estrangeira. Parágrafo Único. O programa de integridade deve ser estrutura-
do, aplicado e atualizado de acordo com as características e riscos atuais das atividades de cada pessoa
jurídica, a qual por sua vez deve garantir o constante aprimoramento e adaptação do referido programa,
visando garantir sua efetividade (BRASIL, 2016b).
Art. 42. Para fins do disposto no §4º do art. 5º, o programa de integridade será avaliado, quanto a sua
existência e aplicação, de acordo com os seguintes parâmetros: I - comprometimento da alta direção da

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Bruno Martins Torchia

O texto normativo citado é capaz de nortear a pessoa jurídica quanto aos


aspectos do compliance.
Contudo, dada a complexidade do tema, a Controladoria-Geral da União
(CGU), que a partir de 2 de junho de 2016 tornou-se o Ministério da Transparência,
Fiscalização e Controladoria-Geral da União, publicou cartilhas orientativas para a
implantação do programa, já que é o órgão do governo federal responsável, entre
outras atribuições, por formular, coordenar e fomentar programas, ações e normas
voltadas à prevenção da corrupção na administração pública e na sua relação com
o setor privado, no intuito de orientar os setores público e privado.
O programa de integridade, portanto, deve ser customizado para cada pessoa
jurídica (taylor made) e se baseia em 5 (cinco) pilares, sendo eles: o comprometimento

pessoa jurídica, incluídos os conselhos, evidenciado pelo apoio visível e inequívoco ao programa; II - pa-
drões de conduta, código de ética, políticas e procedimentos de integridade, aplicáveis a todos os em-
pregados e administradores, independentemente de cargo ou função exercidos; III - padrões de conduta,
código de ética e políticas de integridade estendidas, quando necessário, a terceiros, tais como, fornece-
dores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados; IV - treinamentos periódicos sobre
o programa de integridade; V - análise periódica de riscos para realizar adaptações necessárias ao pro-
grama de integridade; VI - registros contábeis que reflitam de forma completa e precisa as transações da
pessoa jurídica; VII - controles internos que assegurem a pronta elaboração e confiabilidade de relatórios
e demonstrações financeiros da pessoa jurídica; VIII - procedimentos específicos para prevenir fraudes e
ilícitos no âmbito de processos licitatórios, na execução de contratos administrativos ou em qualquer inte-
ração com o setor público, ainda que intermediada por terceiros, tal como pagamento de tributos, sujeição
a fiscalizações, ou obtenção de autorizações, licenças, permissões e certidões; IX - independência, estru-
tura e autoridade da instância interna responsável pela aplicação do programa de integridade e fiscaliza-
ção de seu cumprimento; X - canais de denúncia de irregularidades, abertos e amplamente divulgados a
funcionários e terceiros, e de mecanismos destinados à proteção de denunciantes de boa-fé; XI - medidas
disciplinares em caso de violação do programa de integridade; XII - procedimentos que assegurem a pronta
interrupção de irregularidades ou infrações detectadas e a tempestiva remediação dos danos gerados;
XIII - diligências apropriadas para contratação e, conforme o caso, supervisão, de terceiros, tais como,
fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados; XIV - verificação, durante os
processos de fusões, aquisições e reestruturações societárias, do cometimento de irregularidades ou
ilícitos ou da existência de vulnerabilidades nas pessoas jurídicas envolvidas; XV - monitoramento contínuo
do programa de integridade visando seu aperfeiçoamento na prevenção, detecção e combate à ocorrência
dos atos lesivos previstos no art. 5º da Lei nº 12.846, de 2013; e XVI - transparência da pessoa jurídica
quanto a doações para candidatos e partidos políticos. §1º Na avaliação dos parâmetros de que trata
este artigo, serão considerados o porte e especificidades da pessoa jurídica, tais como: I - a quantidade
de funcionários, empregados e colaboradores; II - a complexidade da hierarquia interna e a quantidade
de departamentos, diretorias ou setores; III - a utilização de agentes intermediários como consultores ou
representantes comerciais; IV - o setor do mercado em que atua; V - os países em que atua, direta ou
indiretamente; VI - o grau de interação com o setor público e a importância de autorizações, licenças e per-
missões governamentais em suas operações; VII - a quantidade e a localização das pessoas jurídicas que
integram o grupo econômico; e VIII - o fato de ser qualificada como microempresa ou empresa de pequeno
porte. §2º A efetividade do programa de integridade em relação ao ato lesivo objeto de apuração será con-
siderada para fins da avaliação de que trata o caput. §3º Na avaliação de microempresas e empresas de
pequeno porte, serão reduzidas as formalidades dos parâmetros previstos neste artigo, não se exigindo,
especificamente, os incisos III, V, IX, X, XIII, XIV e XV do caput. §4º Caberá ao Ministro de Estado Chefe
da Controladoria-Geral da União expedir orientações, normas e procedimentos complementares referen-
tes à avaliação do programa de integridade de que trata este Capítulo. §5º A redução dos parâmetros de
avaliação para as microempresas e empresas de pequeno porte de que trata o §3º poderá ser objeto de
regulamentação por ato conjunto do Ministro de Estado Chefe da Secretaria da Micro e Pequena Empresa
e do Ministro de Estado Chefe da Controladoria-Geral da União (BRASIL, 2016b).

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e apoio da alta direção, instância responsável, análise de perfil e riscos, estruturação


das regras e instrumentos e estratégias de monitoramento contínuos.
Carlos Henrique da Silva Ayres (2014, p. 6) afirmou que o Reino Unido publicou
o UKBA Guidance (REINO UNIDO, 2016) através do qual enumera seis princípios
necessários para um programa de compliance e que os Estados Unidos publicaram
o FCPA Guidance (ESTADOS UNIDOS, 2016), o qual teria 11 elementos para um
programa de compliance efetivo.
Embora cada diploma tenha suas particularidades, as orientações emanadas no
Reino Unido,26 Estados Unidos27 e no Brasil, pela CGU, apresentam-se semelhantes,
dada às características comuns de todo e qualquer compliance.
A seguir, com base no que a antiga CGU expôs na sua cartilha (BRASIL, 2015),
apresentam-se os pilares imprescindíveis ao programa de compliance, sendo eles
o apoio da alta direção, instância responsável, análise de perfil e riscos, regras e
instrumentos e monitoramento contínuo.
Frise-se, porém, que referido rol pode ser completamente ampliado, visto
que decorre dos 16 parâmetros e diretrizes descritos no artigo 42, do Decreto nº
8.420/2105, cabendo ao intérprete realizar a divisão conforme entender melhor.
O primeiro pilar é o comprometimento e apoio da alta direção, que deve contribuir
e participar de todas as etapas da instituição do compliance. A alta direção deve
ter conhecimento dos valores éticos, missão e objetivos da companhia, bem como

26
1º Princípio – Procedimentos proporcionais: os procedimentos a adotar deverão ser proporcionais aos
riscos de corrupção sentidos e à natureza, escala e complexidade da atividade prosseguida pela pessoa
coletiva. Deverão, além do mais, ser os referidos procedimentos claros, práticos, acessíveis, efetivos,
implementados e executados pela entidade. 2º Princípio – Compromisso da hierarquia superior: os órgãos
superiores de gestão da entidade deverão comprometer-se com as medidas de combate à corrupção e
adotar uma cultura de coletividade segundo a qual a corrupção seja considerada inaceitável. Este com-
promisso deverá incluir formas de comunicação desta política anticorrupção no seio da organização e o
envolvimento das próprias instâncias superiores de gestão no desenvolvimento dos procedimentos de
combate à corrupção. 3º Princípio – Avaliação do risco: deverá existir uma avaliação – periódica, infor-
mada e documentada – da natureza e extensão da exposição da entidade a potenciais riscos, internos e
externos, à corrupção. Os riscos externos mais comuns são categorizados em cinco grupos: risco do país,
risco do setor, risco da transação, risco da oportunidade do negócio e risco de parcerias de negócios.
4º Princípio – Due Diligence: due diligences, proporcionais ao risco e orientadas por esse mesmo risco,
deverão ser realizadas junto das contrapartes negociais. 5.º Princípio – Comunicação (incluindo formação):
através de medidas, internas e externas, de comunicação e formação, a política anticorrupção deverá
ser acolhida pela organização, em medida proporcional aos riscos que a mesma enfrenta. 6º Princípio –
Monitorização e avaliação: os procedimentos destinados a combater a corrupção deverão ser monitori-
zados e avaliados e os necessários ajustamentos deverão ser implementados sempre que necessário
(GESTAO TRANSPARENTE, 2016).
27
Vicente Greco Filho diz que o FCPA é composto do seguinte: “i) Compromisso e envolvimento da Alta
Administração – Tone of the top; ii) Aplicação de políticas anticorrupção claramente articuladas; iii) Código
de Ética/Conduta; iv) Política e Procedimentos de Compliance; v) Fiscalização, Autonomia e Recursos
para o Compliance Officer; vi) Risk Assessment – Análise de Riscos do Compliance; (vii) Due diligence de
Terceiro e de Pagamentos; viii) Due Diligence anticorrupção em Fusões e Aquisições; ix) Treinamento e
Aconselhamento Contínuos; x) Canal confidencial – hotline – e investigações internas; xi) Monitoramentos
e revisões e testes periódicos” (GRECO FILHO, 2015, p. 75).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 119-148, jul./dez. 2019 131
Bruno Martins Torchia

realizar reuniões e empenhar-se na consecução deste objetivo, disponibilizando


recursos financeiros e humanos. Não pode ela manter comportamento ou condutas
antiéticas, pois isso comprometerá os valores da pessoa jurídica e todo o programa.
Os americanos se referem a este pilar como tone of the top (VERÍSSIMO, 2017,
p. 285).
O segundo pilar consiste no estabelecimento de uma instância responsável
pelo desenvolvimento, aplicação e monitoramento do compliance, que seja imparcial
e possua recursos humanos e financeiros para a consecução do seu objetivo. Eles
devem ter autoridade e confiança da alta gestão para implementar mudanças, bem
como para sugerir punições efetivas a membros que cometam algum ato infracional,
inclusive a membros hierarquicamente superiores, devendo estar vinculados à mais
alta instância da companhia (FERNANDES, 2017, p. 75). Os compliance officers, como
são chamados, devem possuir proteção contra dispensas ou punições arbitrárias,
no intuito de garantir a máxima eficácia do mecanismo objeto desse pilar.
O terceiro pilar é a análise de perfil e riscos. O setor responsável deve emitir um
relatório de avaliação da pessoa jurídica antes de implementar quaisquer medidas
de integridade.28 Há que se ter um retrato anterior da corporação, informações
estas obtidas com análise de documentos e entrevistas com funcionários dos mais
variados setores, no intuito de identificar, previamente, as áreas de exposição, as
pessoas físicas e jurídicas com as quais relaciona, os contratos que possui etc.,
tal como mencionado na Portaria nº 909/2015, Editada pela Controladoria-Geral da
União.29 Tratando-se de criminal compliance, trata-se de evitar crimes relacionados
à atividade empresarial (ILANA, 2018, p. 122).
A análise periódica de riscos é o principal alicerce dos profissionais de
compliance, pois sem conhecimento dos riscos não será possível definir as

28
Art. 2º Para que seu programa de integridade seja avaliado, a pessoa jurídica deverá apresentar: I - relató-
rio de perfil; (CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO, 2016a).
29
Art. 3º No relatório de perfil, a pessoa jurídica deverá: I - indicar os setores do mercado em que atua
em território nacional e, se for o caso, no exterior; II - apresentar sua estrutura organizacional, descre-
vendo a hierarquia interna, o processo decisório e as principais competências de conselhos, diretorias,
departamentos ou setores; III - informar o quantitativo de empregados, funcionários e colaboradores; IV
- especificar e contextualizar as interações estabelecidas com a administração pública nacional ou estran-
geira, destacando: a) importância da obtenção de autorizações, licenças e permissões governamentais
em suas atividades; b) o quantitativo e os valores de contratos celebrados ou vigentes com entidades e
órgãos públicos nos últimos três anos e a participação destes no faturamento anual da pessoa jurídica;
c) frequência e a relevância da utilização de agentes intermediários, como procuradores, despachantes,
consultores ou representantes comerciais, nas interações com o setor público; V - descrever as partici-
pações societárias que envolvam a pessoa jurídica na condição de controladora, controlada, coligada ou
consorciada; e VI - informar sua qualificação, se for o caso, como microempresa ou empresa de pequeno
porte. (BRASIL, 2016a).

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políticas, treinamentos e monitoramentos para garantir a efetividade do programa


(FERNANDES, 2017, p. 66).
O quarto pilar consiste na estruturação das regras e instrumentos do programa
de integridade. É nesse momento que se dará a elaboração códigos, políticas,
manuais, mecanismos de alerta, canais de denúncia, previsão das medidas
disciplinares e as ações de remediação, bem como comunicação e treinamento
das políticas aos funcionários da pessoa jurídica ou de parceiros comerciais (DIAS;
TORCHIA, 2018, p. 437-438).
Esses normativos devem abarcar: elaboração de Código de Conduta (regras)
e Código de Ética (moral); missão, visão e valores da corporação; mecanismos
de punição por desvios e corrupção; regramento para fornecedores, com critérios
transparentes de seleção e de acesso de servidores; regras ou orientações voltadas
a questões regulatórias, obtenção de licenças, autorizações ou permissões;
normas para contratação de diretores, funcionários e colaboradores que tenham
parentesco com agentes públicos imbuídos de poder decisório no âmbito de
negócios e operações com órgãos e entidades do governo; regras visando elidir
o conflito de interesses quando houver a contratação (permanente ou eventual)
de ex-servidores ou empregados públicos; rotina de verificação de fornecedores
contratados no intuito de atestar se receberam punição pela Administração
Pública ou Tribunais, bem como se possuem programa de integridade; cláusulas
anticorrupção nos instrumentos contratuais, exigindo que os fornecedores se
comprometam a instituir mecanismos de integridade; previsão de possibilidade de
rescisão do contrato caso seja praticado ato lesivo e pagamento de indenização em
caso de responsabilização da empresa contratante por ato do contratado; previsão
de treinamentos periódicos; criação de canais de comunicação eficientes ligados
a alta direção; criação de comissão de ética; criação de canais de denúncias
efetivos (escritórios de integridade / antifraude / antissuborno); cominação de
medidas disciplinares para colaboradores; mecanismos de investigação interna;
política de brindes e hospitalidades razoáveis, dentro dos costumes e que não
poderão servir como burlas de propinas; regulamento de estrutura organizacional
estabelecendo atribuições e responsabilidades, podendo-se exigir comprovação
de comportamento íntegro destas pessoas; normas evitando favorecimento na
contratação tanto de funcionários como de fornecedores; segregação de funções;30

30
O princípio da segregação de funções é um controle preventivo interessante e se fundamenta na repar-
tição do poder de decisão no âmbito de uma organização, implicando na redução de possibilidades de
violação à integridade. Exemplos: limitação de tempo para certa função; separação de funções de auto-

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Bruno Martins Torchia

progressão de funcionários por desempenho e mérito; disseminação de política


de conduta ética; previsão de auditorias de compliance / monitoramento contínuo
de exposição a riscos de compliance; implantação de comitês de resolução de
conflitos de poder, intra e interdepartamentos; implantação de política de gestão,
segurança e controle de informações; identificação de riscos de imagem e de riscos
de relacionamento com clientes, fornecedores, sindicatos, órgãos de classe, entes
de governo, entidades do terceiro setor; níveis de aprovação para determinados
procedimentos (validação pela instância responsável do compliance); rotatividade
de funcionários que lidam com agentes públicos e licitações; no aspecto contábil
indicar um responsável pelo monitoramento de registro de situações que envolvam
maiores riscos à integridade; etc.31
Embora, em princípio, essa etapa pareça ser simples, não é o que demonstram
as pesquisas, já que as empresas pecam pela sua atualização. O Departamento de
Justiça dos Estados Unidos publicou um guia – Evaluation of Corporate Compliance
Programs – dividido em 11 tópicos e 46 perguntas para auxiliar seus próprios
agentes na avaliação da efetividade de determinado programa de compliance
durante o processo de investigações corporativas (FERNANDES, 2017, p. 68-69).
O quinto e último pilar consiste no monitoramento contínuo do programa de
integridade. O compliance só poderá ser efetivo se os colaboradores receberem
potencial treinamento do funcionamento das medidas, as quais devem prever
situações práticas e cotidianas, estudos de caso e orientações sobre como resolver
eventual dilema. Como meio de avaliar a efetividade pode-se simular situações no
intuito de “testar” se os funcionários estão cientes das políticas e das medidas
de integridade.32
O plano de monitoramento e auditoria permite à organização medir a eficiência,
a eficácia e a consistência dos controles colocados em prática pelo departamento
de compliance e, em última medida, avaliar se os principais riscos da organização
estão sendo tratados de forma adequada ou não (FERNANDES, 2017, p. 73).
Infelizmente, a KPMG observou que 42% das empresas não possuem sistemas
para monitorar a efetividade do programa de compliance (KPMG, 2016).

rização e aprovação de operações, controle e contabilização, sem que as pessoas possuam atribuições
sobrepostas, etc.
31
As medidas poderão variar em função da pessoa jurídica e, em todo caso, os normativos devem ser cla-
ros, concisos e disponibilizados ao público interno e externo.
32
Como forma de robustecer o programa, a pessoa jurídica pode instituir certificação de qualidade, que tem
por fito comprovar a aplicação das regras. Cite-se a ISO 37001, norma editada pela ABNT denominada
Sistema de Gestão Antissuborno (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2016).

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OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...

Todas as etapas devem ser rigorosamente documentadas, com fotos, listas


de presença, registros funcionais, entre outros e, ao final da implantação, a pessoa
jurídica deverá emitir seu relatório de conformidade, na esteira do que prevê a
Portaria nº 909/2015, da CGU.33
Esses pilares do compliance devem ser instrumentalizados, em etapas
que podem ser denominadas de formulação, implementação e consolidação e
aperfeiçoamento.
Em pesquisa realizada pela Delloite em 2014 constatou-se que os cinco
maiores desafios enfrentados pelas empresas no Brasil são: (i) a complexidade do
ambiente regulatório; (ii) assegurar que a área de compliance se torne parte das
decisões estratégicas; (iii) garantir a independência da área de compliance; (iv) uma
gestão de conformidade organizada e atuante; e (v) o envolvimento da função de
conformidade na estratégia e tomada de decisões (DELLOITE, 2014);
A formulação é a primeira etapa, na qual o programa é pensado e se subdivide
em: (i) identificação: identificar e valorar os riscos aos quais a pessoa jurídica
está sujeita, devendo, inclusive, averiguar a quais normas a pessoa jurídica está
submetida; (ii) definição: definir os seus valores e as medidas de prevenção,
detecção e comunicação dos ilícitos, tais como auditorias internas, canais de
denúncias (whistleblower)34 etc.; (iii) estruturação: criação de uma estrutura que
variará em função do tamanho da empresa, com clara previsão de competências e
atribuições. A criação de um sistema interno de prevenção de delitos efetivo pode

33
Art. 2º Para que seu programa de integridade seja avaliado, a pessoa jurídica deverá apresentar: [...] II -
relatório de conformidade do programa. [...] Art. 4º No relatório de conformidade do programa, a pessoa
jurídica deverá: I - informar a estrutura do programa de integridade, com: a) indicação de quais parâmetros
previstos nos incisos do caput do art. 42 do Decreto nº 8.420, de 2015, foram implementados; b) descri-
ção de como os parâmetros previstos na alínea “a” deste inciso foram implementados; c) explicação da
importância da implementação de cada um dos parâmetros previstos na alínea “a” deste inciso, frente
às especificidades da pessoa jurídica, para a mitigação de risco de ocorrência de atos lesivos constantes
do art. 5º da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013; II - demonstrar o funcionamento do programa de
integridade na rotina da pessoa jurídica, com histórico de dados, estatísticas e casos concretos; e III - de-
monstrar a atuação do programa de integridade na prevenção, detecção e remediação do ato lesivo objeto
da apuração. §1º A pessoa jurídica deverá comprovar suas alegações, devendo zelar pela completude,
clareza e organização das informações prestadas. §2º A comprovação pode abranger documentos oficiais,
correios eletrônicos, cartas, declarações, correspondências, memorandos, atas de reunião, relatórios,
manuais, imagens capturadas da tela de computador, gravações audiovisuais e sonoras, fotografias,
ordens de compra, notas fiscais, registros contábeis ou outros documentos, preferencialmente em meio
digital. (BRASIL, 2016c).
34
A legislação whistleblowing cria um instituto de política criminal para a descoberta de atos ilícitos. A ideia bá-
sica é transformar cidadãos em informantes (denunciantes) em favor do Estado. O instituto não se confunde
com a chamada delação premiada, prevista em diversas leis brasileiras. A delação premiada é a incriminação
de terceiro, realizada por um suspeito, indiciado ou réu, no bojo de seu interrogatório ou em outro ato pro-
cessual. Diz-se premiada por ser incentivada pelo legislador, que concede ao delator diferentes benefícios, a
exemplo da redução da pena ou da extinção da punibilidade. Ao contrário do delator, o agente whistleblower
não está envolvido na organização criminosa. É um terceiro sabedor de informações relevantes, seja por
decorrência do exercício direto do seu trabalho, seja por razões eventuais (OLIVEIRA, 2015, p. 6).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 119-148, jul./dez. 2019 135
Bruno Martins Torchia

ser valorada juridicamente como prova de que o empresário cumpriu com seus
deveres de controle e vigilância.
A implementação é uma fase do compliance que é constante, porquanto cada
fragilidade descoberta fará com que se criem novos mecanismos, sendo subdivida
em: (i) informação: comunicação e detalhamento das funções do compliance,
visualizando esse processo como progressivo e contínuo, em várias instâncias da
organização; (ii) incentivo: concessão de incentivos pela observância do compliance,
seja por informação aos denunciantes seja como critério na contratação ou promoção
de funcionário; (iii) organização: previsão de medidas organizacionais para criação
de processos de compliance permitindo a descoberta de fatos que impliquem a
violação dessas normas baseadas em função do risco da atividade ou da função
exercida (princípio do custo benefício).
A última etapa consiste na consolidação e aperfeiçoamento do compliance,
tornando-o parte da cultura da organização, subdividindo-o em: (i) reação: quando
descoberto um ato infracional ou ilícito, a pessoa jurídica deverá lançar mão dos
mecanismos de investigação interna para apurar a irregularidade, ou ilícito, a qual
será devidamente documentada, pois provavelmente será utilizada posteriormente
para comunicar as autoridades persecutórias oficiais ou em eventual processo
trabalhista; (ii) sancionar: aplicação de sanções quando apuradas violações ao
compliance, as quais já devem estar estabelecidas previamente e se basear sempre
na proporcionalidade conforme a gradação de culpa; (iii) aperfeiçoamento: tanto
de forma contínua quanto periódica, especialmente após a ocorrência de violações
(non compliance).35 Aprender com erros e problemas do passado e adotar medidas
corretivas faz com que o programa seja melhor no futuro. A edição de novas normas
ou regulamentos estatais poderá trazer a necessidade de revisão e adaptação do
programa. Os treinamentos periódicos são também imprescindíveis.

3.4 Efetividade do compliance


A aferição da efetividade do compliance perpassa por várias esferas e não é
tarefa simples. Há elementos comuns nos programas de prevenção à lavagem de
dinheiro e à corrupção, e singularidades em cada um deles. Contudo, as empresas
adotam apenas um programa (VERÍSSIMO, 2017, p. 311).

35
Non compliance é termo que vem sendo utilizado desmedidamente, correspondendo tanto à situação na
qual a pessoa jurídica não adota o programa quanto para aqueles atos e infrações que não são descober-
tos pelo programa.

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OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...

Em primeiro lugar, há que se verificar se foram observadas pelas pessoas


jurídicas as diretrizes e os parâmetros mencionados nos artigos 41 e 42, do Decreto
nº 8420/2015, que tratam do compliance, conforme exposto no item 3.3.
Após, há que se avaliar se foram confeccionados os relatórios de perfil e
de conformidade exigidos pela Portaria nº 909/2015 (BRASIL, 2016c), os quais
demandam descrição completa de várias informações por parte da pessoa jurídica.
Tais exigências, mais relacionadas ao aspecto formal, devem também estar
em consonância com os pilares do compliance.36
A efetividade do compliance está ligada ao aspecto de medir corrupção, ou
seja, de ser capaz de detectar e agir contra os ilícitos praticados. Um programa que
não emite qualquer sinal de alerta durante longo período não pode ser considerado
eficaz, ao passo que aquele que detecta um ilícito, mas não se aprimora, também o é.
Uma simples deficiência pode ser o bastante para justificar um grau de non
compliance, assim como a ocorrência de um ato lesivo concreto não necessariamente
leva à conclusão de que o programa é ineficaz.
Importante firmar a posição de que a exigência de perfeição é inatingível e em
nada contribui para estimular um ambiente corporativo ético e comprometido com o
cumprimento normativo, o que deve ser feito pautando-se sempre na razoabilidade.
O envolvimento da alta direção nos ilícitos contamina completamente o programa
de compliance, dada a ausência do seu primeiro pilar, qual seja, o comprometimento
da alta gestão. Esse fato irá demonstrar que o esforço de compliance não era sério
e sim meramente formal, ou seja, um programa de papel, para funcionar como um
“seguro” contra uma responsabilização.
Por outro lado, quando o ato houver sido praticado por um empregado, agente
ou terceiro, com o descumprimento dos deveres de compliance, por uma ocorrência
isolada, e com adoção de medidas que remediaram esse problema, entende-se que
a efetividade do programa não deverá ser afetada. A atitude tomada pela empresa

36
Art. 5º A avaliação do programa de integridade, para a definição do percentual de redução que trata o inci-
so V do art. 18 do Decreto nº 8.420, de 2015, deverá levar em consideração as informações prestadas,
e sua comprovação, nos relatórios de perfil e de conformidade do programa. §1º A definição do percentual
de redução considerará o grau de adequação do programa de integridade ao perfil da empresa e de sua
efetividade. §2º O programa de integridade meramente formal e que se mostre absolutamente ineficaz
para mitigar o risco de ocorrência de atos lesivos da Lei nº 12.846, de 2013, não será considerado para
fins de aplicação do percentual de redução de que trata o caput. §3º A concessão do percentual máximo
de redução fica condicionada ao atendimento pleno dos incisos do caput do art. 4º. §4º Caso o programa
de integridade avaliado tenha sido criado após a ocorrência do ato lesivo objeto da apuração, o inciso III
do art. 4º será considerado automaticamente não atendido. §5º A autoridade responsável poderá realizar
entrevistas e solicitar novos documentos para fins da avaliação de que trata o caput deste artigo. Art.
6º Para fins do disposto no inciso IV do art. 37 do Decreto nº 8.420, de 2015, serão consideradas as
informações prestadas, e sua comprovação, nos relatórios de perfil e de conformidade do programa de
integridade (BRASIL, 2016c).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 119-148, jul./dez. 2019 137
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após a descoberta da conduta lesiva (apuração, imposição de sanção, comunicação


espontânea às autoridades e reparação do dano causado) poderá demonstrar a
efetividade do compliance.
Esse é escólio de Reiff, Portella e Ribas (2014, p. 91), para quem:

[...] é preciso confirmar que o programa de integridade é efetivo e que


os códigos de ética e conduta são cumpridos com rigor.
Assim, os registros da condução de investigações internas passa-
rão a exercer um papel de grande relevância e serão cruciais para
a produção de provas capazes de demonstrar, administrativamente,
em juízo, ou no curso de auditorias, a efetividade do programa de
compliance da organização. Além disso, a investigação interna pode
ser útil às empresas para habilitá-las a reportar eventuais violações
às autoridades públicas e requerer acordo de leniência.

Nesse contexto de efetividade do compliance deve-se dar especial destaque


aos mecanismos de apuração interna da pessoa jurídica, pois é por meio dele
que se irá, de fato, averiguar o que aconteceu e colher elementos probatórios que
poderão ser utilizados na reparação de eventuais danos, celebração de acordo de
leniência, colaboração com autoridades responsáveis, bem como para adoção de
medidas internas (demissão, alteração de fluxos, aperfeiçoamento do programa
de compliance etc.).
As fontes para investigação podem ser externas ou internas. As fontes externas
consubstanciam na divulgação pública de denúncias de corrupção na organização,
bem como através do recebimento de alguma intimação, notificação, ofício ou ato
de infração enviada por alguma autoridade pública, seja fiscal, ambiental, trabalhista
ou Tribunais de Contas. As fontes internas são aquelas denúncias recebidas pelos
canais internos de comunicação ou obtidas durante os procedimentos de auditoria
interna (REIFF, PORTELLA; RIBAS, 2014, p. 93).
Ao tomar ciência de um ato ilícito, recomenda-se que as pessoas jurídicas
adotem as seguintes medidas, de forma imediata: (i) proteger provas existentes,
sejam testemunhas, documentos, arquivos de computador. etc.; (ii) avaliar o
problema, sempre se preparando para o pior cenário; (iii) comunicar imediatamente
as autoridades responsáveis; (iv) contribuir com as apurações das autoridades; (iv)
documentar tudo o que seja relevante; (v) compartilhar com consultores externos.
Em caso de acordo com o Judiciário (delações) é preciso cessar completamente o
envolvimento e fornecer todas as informações que possuir. Caso sejam negadas
informações, pode-se perder o benefício da delação. É preciso saber responder
à imprensa, porque problemas externam tanto uma exposição jurídica quanto
econômica.

138 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 119-148, jul./dez. 2019
OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...

E mais, ao instaurar uma investigação interna, é preciso definir quem,


onde e como. É preciso eleger um responsável interno na organização, definir a
abordagem, proteger (segregar) as testemunhas potenciais e providenciar diálogo
entre advogados civis e criminais.
Caso se opte por comunicar às autoridades públicas, deve-se investigar e adotar
providências corretivas, documentando o processo, sendo importante responsabilizar
aquele que cometeu atos irregulares, além de aprimorar o compliance.
Um programa de compliance efetivo é aquele que identifica e avalia adequa-
damente os riscos da prática de delitos, conseguindo preveni-los e/ou evitá-los,
em grande medida. Um programa de compliance genuíno promove a comunicação
espontânea às autoridades sobre os fatos que caracterizam infrações a normas
legais, colaborando amplamente com eventual investigação pública que venha a
ocorrer.

4 A responsabilidade objetiva e os impactos do compliance


efetivo na aplicação das sanções da Lei Anticorrupção
Parcela da comunidade jurídica37 não tem aceitado a ideia de responsabilidade
objetiva da Lei Anticorrupção no que se refere às sanções aplicadas, uma vez que
esse tipo de responsabilização estaria adequado apenas à reparação do dano, tanto
é que este é um aspecto questionado pela Ação Direta de Inconstitucionalidade
ajuizada pelo Partido Social Liberal.
Quais os efeitos do compliance efetivo na aplicação das sanções da Lei
Anticorrupção já que não se buscará avaliar culpa? Essa é uma questão que se
mostra extremamente relevante, já que as pessoas jurídicas irão avaliar se o
benefício se mostra superior aos custos da implementação.
Quanto aos efeitos do compliance efetivo na aplicação das sanções da Lei
Anticorrupção, o artigo 7º da Lei Anticorrupção estabelece circunstâncias a serem
avaliadas pela autoridade julgadora, na aplicação da sanção, para efeitos de
dosimetria da pena, seja na esfera administrativa ou judicial, sendo elas a gravidade
da infração; a vantagem auferida ou pretendida pelo infrator; a consumação ou não
da infração; o grau de lesão ou perigo de lesão; o efeito negativo produzido pela

37
Sendo assim, como conclui Heinen, o regime de responsabilidade em casos de aplicação de penalida-
des administrativas é, em regra, de natureza subjetiva, verdade essa que não pode ser transportada ao
sistema de reparação de prejuízos, em que há casos em que se dispensa a prova do dolo ou da culpa. É
importante destacar que esses dois regimes devem ser bem diferenciados, porque o sistema de repara-
ção de prejuízos não se confunde com o sistema de direito administrativo sancionador (HEINEN, 2015, p.
83).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 119-148, jul./dez. 2019 139
Bruno Martins Torchia

infração; a situação econômica do infrator; a cooperação da pessoa jurídica para


a apuração das infrações; a existência de mecanismos e procedimentos internos
de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação
efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica; o valor dos
contratos mantidos pela pessoa jurídica com o órgão ou entidade pública lesados.38
Essas circunstâncias, dentre as quais figura o compliance, seriam objeto de
apreciação apenas pela autoridade administrativa para aplicação da penalidade de
multa, em razão de expressa previsão do Decreto nº 8.420/2015.
A norma é expressa ao mencionar PAR e multa, o que restringe a concessão
da atenuante apenas à esfera administrativa, já que não repercutirá na mitigação
da penalidade de publicação extraordinária da decisão condenatória.39
A multa, diga-se de passagem, será balizada entre o valor mínimo de 0,1%
(um décimo por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da
instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, ou da vantagem
auferida (quando 0,1% do faturamento bruto for inferior à vantagem auferida), ou R$
6.000,00 (seis mil reais), quando não for possível utilizar o faturamento bruto, até
o valor máximo de 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício

38
Sobre o artigo 7º, José Anacleto Abduch Santos leciona: “A localização topológica da norma no Capítulo
III, destinado à responsabilização administrativa, não deve induzir o intérprete à conclusão de que inapli-
cáveis para a responsabilização judicial, devendo ser considerados como parâmetro objetivo para a impo-
sição das sanções previstas no art. 19” (SANTOS, 2015, p.225).
39
Art. 17. O cálculo da multa se inicia com a soma dos valores correspondentes aos seguintes percentuais
do faturamento bruto da pessoa jurídica do último exercício anterior ao da instauração do PAR, excluídos
os tributos:
I - um por cento a dois e meio por cento havendo continuidade dos atos lesivos no tempo; II - um por cento
a dois e meio por cento para tolerância ou ciência de pessoas do corpo diretivo ou gerencial da pessoa
jurídica; III - um por cento a quatro por cento no caso de interrupção no fornecimento de serviço público
ou na execução de obra contratada; IV - um por cento para a situação econômica do infrator com base na
apresentação de índice de Solvência Geral – SG e de Liquidez Geral – LG superiores a um e de lucro líquido
no último exercício anterior ao da ocorrência do ato lesivo; V - cinco por cento no caso de reincidência,
assim definida a ocorrência de nova infração, idêntica ou não à anterior, tipificada como ato lesivo pelo
art. 5º da Lei nº 12.846, de 2013, em menos de cinco anos, contados da publicação do julgamento da
infração anterior; e VI - no caso de os contratos mantidos ou pretendidos com o órgão ou entidade lesado,
serão considerados, na data da prática do ato lesivo, os seguintes percentuais: a) um por cento em contra-
tos acima de R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais); b) dois por cento em contratos acima
de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais); c) três por cento em contratos acima de R$ 50.000.000,00
(cinquenta milhões de reais); d) quatro por cento em contratos acima de R$ 250.000.000,00 (duzentos
e cinquenta milhões de reais); e e) cinco por cento em contratos acima de R$ 1.000.000.000,00 (um
bilhão de reais). Art. 18. Do resultado da soma dos fatores do art. 17 serão subtraídos os valores corres-
pondentes aos seguintes percentuais do faturamento bruto da pessoa jurídica do último exercício anterior
ao da instauração do PAR, excluídos os tributos: I - um por cento no caso de não consumação da infração;
II - um e meio por cento no caso de comprovação de ressarcimento pela pessoa jurídica dos danos a que
tenha dado causa; III - um por cento a um e meio por cento para o grau de colaboração da pessoa jurídica
com a investigação ou a apuração do ato lesivo, independentemente do acordo de leniência; IV - dois por
cento no caso de comunicação espontânea pela pessoa jurídica antes da instauração do PAR acerca da
ocorrência do ato lesivo; e V - um por cento a quatro por cento para comprovação de a pessoa jurídica pos-
suir e aplicar um programa de integridade, conforme os parâmetros estabelecidos no Capítulo IV. (BRASIL,
2016b).

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OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...

anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, ou


R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais), quando não for possível utilizar
o faturamento bruto.40
Saliente-se que, consoante a Portaria nº 1.970 do Ministério da Transparência
e Controladoria-Geral da União, o programa de compliance, para minorar a pena
administrativa da Lei Anticorrupção, deve ser apresentado até o prazo de defesa
escrita, do PAR (BRASIL, 2018).
O compliance não terá nenhum efeito na aplicação das sanções no âmbito do
processo judicial levado a efeito com base na legislação processual civil e cujas
penas são, em conformidade com o artigo 19 da lei: o perdimento dos bens, direitos
ou valores que representem vantagem ou proveito, suspensão ou interdição parcial
das atividades, dissolução compulsória da pessoa jurídica e proibição de receber
incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades
públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público.
Considerando o arcabouço legal descrito, as pessoas jurídicas certamente
avaliarão se compensa investir tempo e recursos em um programa que não irá
eximi-las da sanção de publicação extraordinária da decisão condenatória e todas
aquelas outras aplicadas na esfera judicial.
Além disso, observa-se a desproporcionalidade dessa regra se comparada ao
acordo de leniência, previsto no artigo 16, da Lei Anticorrupção, pois, nesse caso,
a pessoa jurídica que confessa a culpa teria isenção da sanção de publicação
extraordinária da decisão condenatória e redução da multa em até 2/3 (dois terços),
ou seja, uma vantagem ainda maior do que aquela que se empenha em implantar
um complexo programa de integridade para que esses ilícitos sejam evitados e
sequer ocorram.
Entretanto, na ocasião de a pessoa jurídica detectar a irregularidade e
remediá-la, mereceria a remissão completa das penalidades, caso não tivesse
deliberado por ela. Pois:

A lei em comento, como dito, prevê a responsabilidade objetiva da


empresa. Assim, mesmo que a instituição não tenha deliberado co-
meter atos ilícitos, que apresente um efetivo sistema de prevenção e
investigação de irregularidades e que funcione dentro de estritos pa-
drões éticos, será punida caso seja beneficiada pelo comportamento
de funcionários ou de terceiros contrário à norma. Note-se: ainda que

40
Art. 6. [...] §4º Na hipótese do inciso I do caput, caso não seja possível utilizar o critério do valor do fa-
turamento bruto da pessoa jurídica, a multa será de R$ 6.000,00 (seis mil reais) a R$ 60.000.000,00
(sessenta milhões de reais). (BRASIL, 2016a).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 119-148, jul./dez. 2019 141
Bruno Martins Torchia

a corrupção tenha sido detectada e investigada pela própria corpora-


ção, e comunicada por ela aos órgãos públicos, será aplicada a pena
(embora com uma atenuante, nos termos do art. 7º da lei, ou mesmo
uma causa de diminuição caso firmada e cumprida a leniência, como
disposto no art. 16).
Assim, imaginemos uma empresa cujo setor de compliance detecta
um funcionário que oferece vantagens a servidores públicos para ob-
ter contratos, ampliando seu bônus em vendas com tal prática. Em
seguida, a instituição apura os fatos, junta documentos e comunica
a prática às autoridades do ente afetado. É justo e correto que os
danos eventualmente causados sejam suportados pela empresa, que
foi beneficiada. Também que o funcionário envolvido responda pelo
crime praticado. Mas não parece adequado que a pessoa jurídica,
que não decidiu pelo ato, e que não foi imprudente – ao contrário,
dispunha de um sistema de integridade que detectou o ato – seja
castigada com as sanções previstas nos arts. 6º e ou 19 do diplo-
ma. (BOTTINI; TAMASAUSKAS, 2014, p. 128; grifos do original)

Nos Estados Unidos e no Reino Unido, países nos quais a cultura de compliance
é pioneira, há previsão expressa de que a pessoa jurídica que adota programa
efetivo de compliance possa ter exclusão completa das penalidades. Conforme
Carlos Henrique da Silva Ayres (2014, p. 44) preconiza:

O benefício que as empresas sujeitas à legislação norte-americana


podem ter por conta de apresentarem um programa de compliance
robusto é significativo, reduzindo penalidades ou até mesmo eximin-
do-as de sanções em determinados casos, além de outras consequ-
ências favoráveis.
O caso envolvendo o banco Morgan Stanley é ilustrativo, pois de-
monstra que, apesar de um diretor do banco estar envolvido em um
esquema de corrupção que poderia gerar responsabilidade para a
instituição financeira por violações ao FCPA, o Department of Justice
e a U.S. Securities and Exchange Commission optaram por não iniciar
um processo contra o banco, mas apenas contra o diretor envolvido.
Em seus press releases sobre o caso, as autoridades deixaram claro
que, ao optar por não tomarem medidas contra o banco, levaram em
consideração a existência de um programa de compliance robusto na
instituição financeira.
Mais especificamente, entre 2002 e 2008, época dos fatos, o diretor
recebeu sete treinamentos sobre FCPA e, em outras 35 ocasiões,
recebeu instruções de que deveria cumprir com as regras do FCPA.
Além disso, as autoridades também levaram em consideração os
controles internos existentes à época, reporte voluntário do banco,
sua cooperação com as investigações e a tomada de medidas cor-
retivas.
No Reino Unido, o UKBA foi além, criminalizando a conduta de pes-
soas jurídicas que falharem na prevenção de atos de corrupção. Por

142 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 119-148, jul./dez. 2019
OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...

outro lado, a referida lei reconhece expressamente como defesa ab-


soluta, capaz de eximir a responsabilidade da pessoa jurídica, a exis-
tência de programas de compliance anteriores à prática do ato ilícito
para prevenir corrupção.

Marco Vinicio Petrelluzzi e Rubens Naman Rizek Junior (2014, p. 27) também
tratam da possibilidade de remissão completa das sanções previstas, ao afirmarem:

[...] UK Bribery Act contempla que, na hipótese de a sociedade com-


provar a presença de procedimentos adequados no sentido de pre-
venção da corrupção (programas de compliance), sua conduta poderá
não sofrer qualquer sanção, o que vem estimulando sobremaneira a
adoção, por empresas com atuação no âmbito da União Européia, de
programas de compliance.

Embora a norma brasileira não adote o mesmo sistema americano e inglês,


estar no compliance é muito mais benéfico do que não estar no compliance (non
compliance), porque mesmo que, a princípio, a redução de até 4% (quatro por cento)
da multa aplicada não seja, à primeira vista, tão atrativa, o compliance poderá ser
fator que repercutirá na análise das outras circunstâncias atenuantes e agravantes,
tais como continuidade dos atos lesivos; ciência ou tolerância do corpo diretivo
ou gerencial da pessoa jurídica; consumação ou não da infração; colaboração da
pessoa jurídica com a investigação do ato lesivo, independentemente de acordo
de leniência e comunicação espontânea às autoridades antes da instauração do
PAR. O compliance representa, assim, uma suavização da responsabilidade da
pessoa jurídica.
Não estar no compliance pode acarretar, além da impossibilidade de se
realizar acordo de leniência, a perda de licenças administrativas, danos à imagem
da organização, litígios na área cível, criminal, trabalhista, fiscal, previdenciária ou
ambiental e danos à reputação, causando prejuízos imensos, de ordem moral e
patrimonial.
Embora não haja possibilidade de se discutir no seio de um processo judicial a
ausência de dolo ou culpa da pessoa jurídica na prática do ato pela pessoa jurídica,
o compliance poderá ser utilizado em eventual processo criminal,41 pois este não
se compatibiliza com o modelo da responsabilidade objetiva, exigindo-se prova
suficiente da culpa com observância de todas as garantias do devido processo legal.

41
Muitos atos lesivos previstos na Lei Anticorrupção são tipificados como crimes no Código Penal ou na Lei
de Licitações.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 119-148, jul./dez. 2019 143
Bruno Martins Torchia

Eventualmente, o empresário ou dirigente que estiver respondendo por crime


de “corrupção” poderia demonstrar que se desincumbiu desse dever ao criar e
implementar uma estrutura e um programa de compliance efetivos.
Ou seja, mesmo sem previsão legal o compliance poderá ser utilizado na
defesa das pessoas físicas.
Outrossim, o programa de compliance poderá ser muito importante para
a definição precisa da autoria de um crime porque irá estabelecer claramente
as atribuições de cada cargo, detalhando o processo decisório, o que facilita a
identificação dos reais autores das condutas delitivas, permitindo a demonstração
da culpa e dolo, caso reste demonstrado que os agentes tenham descumprido as
normas do programa de compliance.

5 Considerações finais
Foi visto que o compliance consiste na instituição de mecanismo de prevenção,
mitigação e repressão de irregularidades e fraudes, possuindo, portanto, objetivos
preventivos e reativos.
A adoção do compliance é uma tendência e provoca a proliferação da cultura
da integridade nas entidades públicas ou privadas, pois constrói a confiança dos
consumidores, fornecedores, mídia e do mercado, aumentando a atratividade para
investimentos, especialmente se a empresa tiver ações em bolsa. A reputação e
a imagem da pessoa jurídica é um ativo que promove o comportamento ético dos
altos executivos, dos gerentes e dos empregados.
O programa de integridade se baseia em cinco pilares, sendo eles o
comprometimento e apoio da alta direção, instância responsável, análise de perfil
e riscos, estruturação das regras e instrumentos e estratégias de monitoramento
contínuos, e são instrumentalizados em etapas que podem ser denominadas de
formulação, implementação e consolidação e aperfeiçoamento.
A aferição da efetividade do compliance está ligada ao aspecto de medir
corrupção, ou seja, de ser capaz de detectar e agir contra os ilícitos praticados.
A Lei Anticorrupção, norma de natureza cível administrativa, disciplina a
responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas pela prática de atos que ela
considera lesivos e exclui a necessidade de perquirir culpa ou dolo da pessoa
jurídica na prática do ato lesivo.
Foi visto que apesar de o compliance ser fator que serve apenas para mitigar
a penalidade de multa, na razão de 1% (um por cento) a 4% (quatro por cento)
sobre a multa aplicada, em razão de expressa previsão do Decreto nº 8.420/2015,

144 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 119-148, jul./dez. 2019
OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...

concluiu-se que é muito mais benéfico possuir o programa do que não possuí-lo,
já que é fator que repercutirá na análise das outras circunstâncias atenuantes e
agravantes.
Não estar no compliance pode acarretar a impossibilidade de obter requisitos
para celebrar acordo de leniência; perder licenças administrativas; danos à imagem
da organização, litígios na área cível, criminal, trabalhista, fiscal, previdenciária ou
ambiental e à reputação, causando prejuízos imensos, de ordem moral e patrimonial.
Embora não haja possibilidade de se discutir no seio de um processo judicial a
ausência de dolo ou culpa da pessoa jurídica na prática do ato pela pessoa jurídica, o
compliance poderá ser fator a ser utilizado em eventual processo criminal, pois este
não se compatibiliza com o modelo da responsabilidade objetiva, exigindo-se prova
suficiente da culpa com observância de todas as garantias do devido processo legal.

Effective compliance outcome on the objective administrative liability of the legal person in the
anticorruption law
Abstract: Law n. 12,846 of August 1, 2013, known as the Anti-Corruption Law, inaugurated in the
Brazilian legal system a sphere of administrative accountability directed to a legal entity, in an objective
manner, according to its Article 5, although with clear criminal characteristics. At the time of applying
these sanctions, compliance programs may reduce penalties, but if they are effective and constituted
in accordance with legal parameters and guidelines. In light of this, it remains to investigate what the
requirements of an effective compliance program should be. It was concluded that the existence of
compliance is a factor that, in addition to being able to mitigate the pecuniary penalty, reducing the
penalty by 4% (four percent) of the fine, may have a positive impact on the analysis of other attenuating
circumstances and aggravating circumstances set forth in Decree no. 8,420 / 2015, on the occasion
of the trial in the Administrative Process of Accountability (PAR) and in a possible criminal case against
the directors of the legal entity, since the model of objective liability is not compatible with criminal
proceedings. The work was based on bibliographical and normative research, using the Anti-Corruption
Law and Decree nº 8,420, of March 18, 2015, as well as normative of the official organs of the public
power responsible for editing laws on corruption.

Keywords: Anticorruption Law. Effective compliance. Objective responsibility of the legal entity. Criminal
liability.

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Recebido em: 04.10.2019


Aprovado em: 28.10.2019

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

TORCHIA, Bruno Martins. Os impactos do compliance efetivo na responsabilidade


administrativa objetiva da pessoa jurídica na Lei Anticorrupção. Revista Fórum
de Ciências Criminais – RFCC, Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 119-148,
jul./dez. 2019.

148 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 119-148, jul./dez. 2019
Artífices de conceitos: a invenção do
conceito de genocídio e sua aplicação
aos estudos históricos1

Rodrigo Medina Zagni


Docente do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp), Campus Osasco, coordenador do curso de pós-graduação em “Conflitos
internacionais e globalização” (Unifesp), coordenador do grupo de pesquisa “Conflitos
Armados, Massacres e Genocídios na Era Contemporânea” (Unifesp), doutor em Práticas
Políticas e Relações Internacionais pelo programa de pós-graduação em Integração da
América Latina (PROLAM) da Universidade de São Paulo. E-mail: rodrigo.medina.unifesp@
gmail.com.

Heitor de Andrade Carvalho Loureiro


Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), professor de Relações
Internacionais das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e vice-coordenador do grupo
de pesquisa “Conflitos Armados, Massacres e Genocídios na Era Contemporânea”
(Unifesp). E-mail: heitorloureiro@hotmail.com.

Resumo: Do conceito de genocídio cunhado por Raphael Lemkin, no decurso da Segunda Guerra
Mundial, àquele apresentado ao mundo pela Convenção Internacional sobre Prevenção e Repressão
do Crime de Genocídio, adotada pela Organização das Nações Unidas aos 9 de dezembro de 1948,
interesses como norte-americanos e soviéticos expurgaram-no de critérios elementares – como
o político, por exemplo – esvaziando gravemente seus sentidos e significados e inviabilizando sua
aplicação para uma gama considerável de casos. Para além da seara jurídica, o problema se apresenta
nas Ciências Humanas e Sociais quando o conceito é tomado de forma intocada, proveniente das
Ciências Jurídicas, para a análise de processos históricos. Por interferência do Direito sobre a História,
a Sociologia e a Antropologia, estas se veem impedidas de operá-lo desvelando a ausência de
referenciais sócio-históricos para a análise de processos genocidários. Este trabalho analisa o longo
processo de constituição e de disputa deste conceito, tentando avaliar em que medida se pode já dizer
de uma elaboração conceitual própria à natureza das Ciências Humanas e Sociais, para muito além
das Ciências Jurídicas e de sua estreita dimensão normativa.
Palavras-chave: Genocídio. Morticínios. Raphael Lemkin. Processos genocidários. Debate teórico-
conceitual.

Sumário: 1 De “um crime sem nome” à convenção da ONU – 2 Os debates acerca da aplicabilidade
do conceito onusiano às Ciências Sociais – 3 Para além do Holocausto e do normativismo jurídico – 4
Um repasse teórico, uma visita às fontes e os novos rumos dos “genocide studies” – Considerações
finais – Referências

Nós, que sobrevivemos aos Campos, não somos verdadeiras teste-


munhas. Esta é uma ideia incômoda que passei aos poucos a aceitar,

1
Artigo elaborado por autores convidados.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 149-176, jul./dez. 2019 149
Rodrigo Medina Zagni, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro

ao ler o que outros sobreviventes escreveram – inclusive eu mesmo,


quando releio meus textos após alguns anos. Nós, sobreviventes, so-
mos uma minoria não só minúscula, como também anômala. Somos
aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, jamais tocaram o
fundo. Os que tocaram, e que viram a face das Górgonas, não volta-
ram, ou voltaram sem palavras.
Primo Levi

Em conto intitulado Deutsches Requiem, o célebre escritor argentino Jorge


Luis Borges nos apresenta Otto Dietrich zur Linde, alemão de nobre estirpe, cuja
paixão pela metafísica e música contrasta com a sua condição de réu confesso,
condenado por tortura e assassinato e, por isso, aguarda seu fuzilamento,
conforme veredicto dado por um tribunal alemão. A minutos de sua execução,
Linde recapitula sua vida, desfraldando sua erudição, que vai de Shakespeare a
Schopenhauer, esse último responsável por afastá-lo da Teologia e da fé cristã.
Foi também o filósofo seu principal companheiro no leito do hospital quando foi
ferido a balas em um distúrbio na sinagoga de Tilsit, que lhe custou uma das
pernas. Impossibilitado de permanecer em ação, foi nomeado subdiretor de um
campo de concentração, onde precisou evitar “a piedade pelo homem superior
(...) último pecado de Zarathustra” (BORGES, 2005, p. 109), quando recebeu o
poeta David Jerusalem, de cuja obra Linde era admirador. O reconhecimento ao
trabalho do poeta não impediu que o alemão o torturasse até que esse perdesse
a razão e morresse poucos meses depois.
Nem a morte de seu irmão no front do Egito ou a completa destruição de sua
cidade natal por um bombardeio fizeram com que Linde desistisse da guerra e da
violência como forma de construir o progresso. Teorizava o oficial alemão à beira
da morte:

Muitas coisas há que destruir para edificar a nova ordem; agora sa-
bemos que a Alemanha era uma dessas coisas. Demos algo mais
que nossa vida, demos o destino de nosso querido país. Que outros
maldigam e outros chorem; a mim me alegra que nosso dom seja
orbicular e perfeito. [...] Ameaça agora o mundo uma época implacá-
vel. Nós a forjamos, nós que já somos sua vítima. Que importa que a
Inglaterra seja o martelo e nós a bigorna? O importante é que reine a
violência, não as servis timidezes cristãs. Se a vitória e a injustiça e
a felicidade não são para a Alemanha, que sejam para outras nações.
Que o céu exista, mesmo que nosso lugar seja o inferno (BORGES,
2005, p. 113).

Em oito páginas, Borges nos fornece elementos que podem ser úteis para
compreendermos uma série de acontecimentos que tiveram lugar no século XX

150 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 149-176, jul./dez. 2019
Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos

e permanecem ocorrendo no XXI. Primeiro, conforme sugere Bauman (1998), a


necessidade de romper com a ideia de que genocídios e massacres são hiatos na
modernidade, causados por figuras desumanas que desejam arrancar do outro a
humanidade. Afinal, Otto Dietrich zur Linde mostrava grande erudição e conhecimento,
inclusive da cultura judaica, a qual ele estava empenhado em destruir. Segundo, o
entendimento da guerra como continuação da política por outros meios (CLAUSEWITZ,
1979), engendrada por altos círculos políticos que arremessam nações aos campos
de batalha, pouco importando o custo em vidas humanas e em destruição material
que isso possa implicar.
Para Adam Jones (2011, p. 4) “humanity has always natured conceptions of
social difference that generate a sense of in-group versus out-group, as well as
hierarchies of good and evil, superior and inferior, diserable and undesirable”, mas
o quadro da modernidade, para as fundações do mundo contemporâneo, carregou
nas tintas da violência. Segundo Hobsbawm (2003), o século XX foi marcado por
“duas guerras mundiais, por dois períodos globais de revoluções após cada guerra,
pela descolonização generalizada e em parte revolucionária, por duas expulsões
em massa de povos que culminaram em genocídio”. Foi justamente a partir da
Grande Guerra que palavras como apátridas e genocídio foram criadas e passaram a
compor o dicionário de diversas línguas por todo o globo, ajustando o léxico à nova
realidade da destruição e dispersão em massa que a Era da Guerra Total revelara.
O objetivo deste texto é historicizar o conceito de genocídio, apresentando os
marcos teóricos em torno da sua consecução, bem como das disputas políticas
travadas no âmbito da Organização das Nações Unidas à época da aprovação da
Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio,2 em 9 de dezembro
de 1948. Em seguida, apresentaremos diferentes visões acerca do conceito, para
além da definição onusiana, considerada por acadêmicos como insuficiente para
ser utilizada nas análises de ciências sociais.
Faz parte deste esforço compreender os debates políticos que por vezes
permeiam o entendimento de acadêmicos acerca, por exemplo, de entender
assassinatos em massa, de cariz político, como genocídio ou não.

1 De “um crime sem nome” à convenção da ONU


O termo genocídio foi criado em 1943 pelo advogado e linguista judeu-polonês
Raphael Lemkin, posteriormente professor em Yale, tendo sido apresentado ao mundo

2
Daqui por diante referida como CIPRCG.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 149-176, jul./dez. 2019 151
Rodrigo Medina Zagni, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro

no ano seguinte, nas linhas de Axis Rule in Occupied Europe: Laws of Occupation –
Analysis of Government – Proposals for Redress,3 obra em que dedicou um capítulo
inteiro à apresentação deste novo conceito (2009, p. 153-174), elaborado portanto
durante a Segunda Guerra Mundial e com as atrocidades nazistas ainda em curso.
É notável que Lemkin, distante do palco da destruição humana e material da
guerra, não dispunha de informações precisas a respeito do que ocorria; mas ainda
assim teria percebido os usos de uma violência de novo tipo.
O novíssimo termo se referia a uma antiga prática na história da humanidade,
cujas raízes estariam ainda perdidas até que uma arqueologia dos genocídios
pudesse ser empreendida (JONES, 2011, p. 3).
O que sabemos da Pré-História à Antiguidade, por meio dos parcos documentos
que nos chegam ao presente, é que morticínios foram perpetrados não apenas
para dar cabo de povos inteiros, mas também para a incorporação e exploração
de parte do grupo-alvo. Tais procedimentos caracterizaram, junto dos assassinatos
em massa, as guerras antigas; é o que podemos dizer, por exemplo, da expansão
do Império Assírio durante a primeira metade do primeiro milênio que antecedeu a
Era Cristã; ou do extermínio dos Melos pelas forças atenienses durante a Guerra
do Peloponeso, no século I a.C. (Cf.: CHALK; JONASSOHN, 2010, p. 62-63). No
mesmo sentido, o historiador Ben Kiernan (2004, p. 27-39), ao debruçar-se sobre
o cerco e a investida romana sobre Cartago durante a Terceira Guerra Púnica (de
146 a 46 a.C.), caracterizou o evento como o primeiro genocídio de que se teria
notícia e que, dada a sua violência,4 teria ecoado pelos séculos subsequentes na
história ocidental, demarcando muitos de seus destinos. À violência do Império
Romano teria se seguido aquela ultimada em razão da fé cristã: primeiro vitimando
cristãos que, proscritos pelo império, foram perseguidos e chacinados, inclusive
em espetáculos públicos; depois, adotando a autoridade romana o Cristianismo
como fé oficial, levando a cabo a perseguição às heresias e paganismo que, ainda
com o fim do império, adentrara à Era Medieval baseada no centralismo do poder
político da Igreja, mais incisivamente entre os séculos IX e XIV, e inscrevendo, com
isso, os movimentos cruzadísticos e suas investidas contra infiéis na França, onde
moveu-se contra a heresia cátara; na Alemanha, contra os judeus; e no Oriente
Médio, contra os muçulmanos (Cf.: BELL-FIAKOFF, 1999, p. 13). Ainda no século
XIII, também é como se pode caracterizar a expansão do Império Mongol a partir

3
Publicado em 1944 em Washington pela Carnegie.
4
Kiernan, com base nos dados dispostos pelo Senador Cato, fala da redução de uma população de 2 mi-
lhões e 400 mil para apenas 150 mil indivíduos.

152 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 149-176, jul./dez. 2019
Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos

do Leste asiático em direção à Europa e, como narrou Eric S. Margolis (2001, p.


155), deixando para trás “nothing but rubble, fallow helds, and bones”.
A Era Moderna, parida no século XV com o advento do capitalismo histórico (Cf.
ARRIGHI, 1996, p. 87-130), da Civilização do Renascimento (Cf.: BURKE, 2000, p.
72-177; DELUMEAU, 1994, p. 217-246), da expansão ultramarina e da colonização
(BRAUDEL, 2009, p. 359-397; LOVE, 2006, p. 9-54), culminou, com a chegada ao
Hemisfério Ocidental e o estabelecimento de novas rotas marítimas com as Índias
Orientais, na conquista da América com o cômputo de em torno de 70 milhões de
mortos (TODOROV, 2003, p. 123-141) e na montagem do Antigo Sistema Colonial
(Cf.: NOVAIS, 1979, p. 32-56), sob a égide do Mercantilismo e que submeteu povos
na periferia do sistema-mundial ao violento julgo metropolitano europeu.
Como escreveu o sociólogo Leo Kuper (1981, p. 9) em texto canônico, “the
world is new, the concept is ancient”, ou seja, a prática requeria nova conceituação
em função de uma nova concepção: os massacres, por quão antigos fossem, desde
a aurora do século XX (dada em 1914 com o advento da Grande Guerra), passavam
a ser ultimados com modernos instrumentos e uma novíssima racionalidade,
anunciando a chegada de elementos da Revolução Industrial do século XIX à
indústria bélico-armamentista e, sua lógica, à produção em escala industrial dos
meios de morte.
Genocídio, de acordo com o criador do termo (LEMKIN, 2009, p. 153),
significaria:

[…] La destrucción de una nación o un grupo étnico. Esta nueva


palabra, acuñada por el autor para denotar una antigua costumbre
en su expresión moderna, surge de la antigua palabra griega genos
(raza, tribu) ya de la latina cide (matar), y así se corresponde, en su
formación, a palabras tales como tiranicidio, homicidio, infanticidio,
etc. Hablando en términos generales, el genocidio no significa en
rigor la destrucción inmediata de una nación, excepto cuando se la
lleva a cabo a través del asesinato masivo de todos los miembros de
un país. Debiera más bien comprenderse como un plan coordenado
de diferentes acciones cuyo objetivo es la destrucción de las bases
esenciales de la vida de grupos de ciudadanos, con el propósito de
aniquilar a los grupos mismos. Los objetivos de un plan semejante
serían la desintegración de las instituciones políticas y sociales, de la
cultura, del lenguaje, de los sentimientos de patriotismo, de la religi-
ón y de la existencia económica de grupos nacionales y la destrucción
de la seguridad, libertad, salud y dignidad personales e incluso de las
vidas de los individuos que pertenecen a dichos grupos. El genocidio
se dirige contra el grupo nacional como una entidad, y las acciones
involucradas se dirigen contra los individuos, no en su capacidad de
individuos, sino como miembros del grupo nacional.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 149-176, jul./dez. 2019 153
Rodrigo Medina Zagni, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro

Com isso, temos, para além de práticas imediatas de aniquilamento de todo um


grupo nacional, o foco sobre ações coordenadas de destruição de suas condições de
vida. Logo, não se trata apenas da destruição física, mas dos elementos das bases
materiais e imateriais de sua existência, dos meios diretamente garantidores de
suas condições de vida a suas redes de sociabilidade, suas instituições e práticas
políticas e patrimônios culturais a partir dos quais são edificadas suas identidades
projetivo-sociais, negadas no decurso do genocídio. Implica aniquilar o indivíduo na
alma, com uso de estratégias não letais que atentem contra a liberdade, a dignidade
e as condições de segurança do grupo oprimido.
Ainda que as ações genocidas fossem dirigidas contra os indivíduos, o
objetivo do genocídio seria a destruição do grupo nacional, entidade na qual
estariam circunscritos pela partilha de signos e significados. Ao referir-se às
vítimas do genocídio recorrendo ao termo grupo nacional, estão inseridos no que
sociologicamente compreende-se como sistema-social também critérios biotípicos
e culturais, como o religioso, por exemplo, bem como quaisquer outros signos
identitários partilhados no seio do grupo.
Lemkin (2009, p. 154) identificou, na mesma obra, a ocorrência de duas etapas
constitutivas dos genocídios: a destruição do padrão nacional do grupo oprimido e
a imposição do padrão nacional do opressor. A destruição de um padrão nacional,
até então, havia sido referida como desnacionalização, o que não seria de todo
correto uma vez que o termo não comportaria o fenômeno da aniquilação biológica
do grupo, não compreenderia a imposição do padrão nacional do opressor depois
de subjugado ou aniquilado o oprimido e seu uso viu-se restrito, na maior parte
dos casos, à mera privação do exercício de cidadania.
A invenção do conceito de genocídio ocorreu ao tempo da Segunda Guerra
Mundial exatamente porque se tratava de uma prática das forças ocupantes
nazistas que teriam preparado, perpetrado e continuado não apenas uma guerra
de expansão contra Estados e suas Forças Armadas, mas uma guerra contra os
povos, a começar pelos limites do Estado alemão e estendendo-se depois pela
Europa ocupada, guerra essa possibilitada por sua vez pela guerra mundial. Durante
o processo de ocupação nazista da Europa, para Lemkin, o genocídio foi a técnica
utilizada para que, ainda que a Alemanha viesse a perder a guerra, os inimigos de
seu projeto civilizatório sucumbissem.
Mesmo que essa interpretação pudesse ser auferida da leitura de Lemkim,
para Frank Chalk e Kurt Jonassohn (2010, p. 31) suas primeiras obras versavam
sobre o genocídio como um fenômeno próprio das relações internacionais, inserido
na modalidade convencional das guerras interestatais; sem a ênfase devida,

154 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 149-176, jul./dez. 2019
Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos

como violência de novo tipo e que caracterizaria todo o século XX, à guerra dos
Estados contra suas próprias populações, quando consideradas párias sociais,
primordialmente por motivos rácicos, religiosos ou políticos.
A insistência de Lemkin, no entanto, levou à aprovação, em 1946, de uma
resolução da Organização das Nações Unidas, por meio de sua Assembleia Geral,
que teria se dado nos seguintes termos:

Genocide is a denial of the right of existence of entire human


groups, as homicide is the denial of the right to live of individual
human beings; such denial of the right of existence shocks the
conscience of mankind, results in great losses to humanity in the
form of cultural and other contributions represented by these human
groups, and is contrary to moral law and to the spirit and aims of
the United Nations. Many instances of such crimes of genocide have
occurred when racial, religious, political and other groups have been
destroyed, entirely or in part. The punishment of the crime of genocide
is a matter of international concern. The General Assembly, therefore
affirms that genocide is a crime under international law which the
civilized world condemns, and for the commission of witch principals
and accomplices – whether private individuals, public officials or
statesmen, and whether the crime is committed on religious, racial,
political or any other grounds – are punishable.

Seu primeiro contorno proveniente de uma organização internacional já reduz


gravemente o conceito proposto por Lemkin na medida em que as práticas de
etnocídio, definidas como atos de destruição de uma cultura, ainda que não se tente
diretamente o aniquilamento físico de seu portador, acabaram desconsideradas
como componentes do genocídio. Em termos de avanço, a resolução inseria o
critério político dentre os elementos que possibilitariam identificar os grupos
perseguidos, tanto quanto qualificar o genocídio. Contudo, a objeção apresentada
pelos delegados soviéticos e orientais à inserção dos grupos políticos para a
caracterização do genocídio anunciaria a criação de um intenso lobby para que o
conceito de genocídio, que dali por diante estaria sob intensa disputa, de nenhuma
forma pudesse implicar as grandes potências assentadas nas recém-nascidas
organizações internacionais.
Apenas quatro anos depois de criado o conceito, aos 9 de dezembro de 1948
era votada pela assembleia da ONU, reunida em Paris, a CIPRCG, um dia antes de
a mesma assembleia aprovar a Declaração Universal dos Direitos Humanos. No
tocante aos critérios utilizados para a elaboração do conceito de genocídio com o
qual a sociedade internacional deveria operar, o documento assumia a seguinte
definição:

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 149-176, jul./dez. 2019 155
Rodrigo Medina Zagni, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro

In the present Convention, genocide means any of the following acts


committed with intent to destroy, in whole or in part, a national,
ethnical, racial or religious group, as such: (a) Killing members of
the group; (b) Causing serious bodily or mental harm to members
of the group; (c) Deliberately inflicting on the group conditions of life
calculated to bring about its physical destruction in whole or in part;
(d) Imposing measures intended to prevent births within the group; (e)
Forcibly transferring children of the group to another group.

Conforme sustenta Daniel Feierstein (2015, p. 137-138), a definição resultou


de uma manobra cujo escopo era o de omitir grupos políticos do rol de tipos-alvo de
processos genocidários, capitaneada sobretudo por URSS, Polônia, África do Sul e
Grã-Bretanha. Após uma primeira votação, aos 15 de outubro de 1948, que aprovou
a permanência de grupos políticos ao lado de grupos nacionais, raciais, étnicos
e religiosos, Uruguai, Egito e Irã apresentaram moção para que a matéria fosse
novamente submetida à votação, o que ocorreu em sessão esvaziada na madrugada
de 29 de novembro de 1948. Com isso, omitia-se, na definição onusiana – a única
reconhecida internacionalmente, o morticínio deliberado tanto de grupos políticos
quanto de classes sociais.

2 Os debates acerca da aplicabilidade do conceito onusiano


às Ciências Sociais
Alijadas desses índices, a imprecisão e a falta de rigor desta definição, de
acordo com Chalk e Jonnahson (2010, p. 33), são responsáveis, em grande parte,
pela confusão que se estabeleceu em seguida nos estudos acadêmicos debruçados
sobre ocorrências genocidárias, prescindindo da emancipação das Ciências Humanas
e Sociais em relação ao Direito e do próprio jogo da política internacional, no qual
muitas das práticas jurídico-políticas são determinadas.
O precursor dos estudos sobre genocídios, Leo Kuper, apesar de defender
a importância da convenção, já a criticava em seu artigo II em razão da ausência
de referências a grupos políticos. Os próprios Chalk e Jonnahson, junto de Israel
Charny, Helen Fein e Vahakn Dadrian, que compuseram a primeira geração dos
Genocide Scholars, ocuparam-se da crítica à estreiteza da convenção onusiana; no
limite, ainda de acordo com Feierstein (2015, p. 138-139), o que havia em comum
entre esses autores era o fato de que haveria motivações políticas evidentes em
quaisquer que fossem os genocídios modernos.
Do interlúdio entre a criação do conceito por Lemkin e a aprovação da CIPRCG,
em maio de 1945 os Aliados Ocidentais e a URSS sagraram-se vitoriosos no conflito
mundial, pondo não apenas fim à guerra mas termo ao próprio regime nazista.

156 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 149-176, jul./dez. 2019
Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos

À sombra do Holocausto, que exterminou em torno de 6 milhões de judeus – de


uma população mundial de 11 milhões – bem como do sistemático chacinamento
de outras minorias sociais, tanto raciais quanto políticas, em novembro de 1945
e em maio de 1946 foram realizados os tribunais internacionais de Nuremberg e
de Tóquio, sob os auspícios dos Estados vencedores da Segunda Guerra Mundial
e que recuperaram, frente a um crime sem nome,5 o conceito de crime contra a
humanidade,6 buscando-se apurar as responsabilidades tanto de alemães quanto
de japoneses em massacres de civis. A iniciativa teria despertado o interesse de
acadêmicos e, sobretudo, de historiadores sobre a história das atrocidades cometidas
contra populações civis, evidenciando a carência de estudos acadêmicos que se
lançassem à compreensão dos morticínios na história.
A projeção internacional dada aos documentos que atestavam os horrores
nos campos nazistas de extermínio, trabalho forçado e concentração, moveu parte
da intelectualidade nas principais universidades europeias e norte-americanas a
tentar identificar seus motivadores causais, modus operandi e desdobramentos.
Maureen Hiebert (2013, p. 16) esclarece que os genocide studies, que nasceram
a partir da difusão dessas imagens, concentraram gerações de pesquisadores
pós-Holocausto comprometidos com a tarefa de que nunca mais eventos de tal forma
destruidores voltariam a ocorrer. Seja por meio do estudo de casos particulares,
seja pondo-os sob o prisma comparativo, desde sua primeira geração os esforços
foram dados para que se identificassem as razões pelas quais grupos inteiros
acabariam alvejados pela força destruidora dos genocídios, tarefa primordial para
que fossem evitados no futuro.
Apresenta-se desde suas origens, contudo, o problema da densa carga política
atribuída ao conceito, o que para Chalk e Jonassohn (2010, p. 23) pode ter eclipsado
seu significado original, impondo uma dificuldade crescente de se verificar, nos
seus usos, a persistência dos sentidos atribuídos ao conceito por seu criador.
Para Jacques Sémelin (2009, p. 424), o fato de não apenas o termo, mas
também o conceito de genocídio terem sido impostos à sociedade internacional,
ainda que paralelamente à noção de crime contra a humanidade, se explicaria
pela tomada de consciência ocorrida já no imediato pós-Segunda Guerra Mundial
em relação à natureza da violência praticada pelos nazistas e seus aliados contra
populações inteiras, sobretudo de judeus nos limites da Europa ocupada. De acordo

5
Expressão utilizada por Winston Churchill para se referir ao morticínio de judeus perpetrado pelos nazistas.
6
O conceito já havia sido utilizado por França, Grã-Bretanha e Império Russo, em 1915, para definir o mas-
sacre de armênios em curso no Império Otomano.

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Rodrigo Medina Zagni, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro

com Hiebert (2013, p. 16) a consciência foi partilhada por acadêmicos de diversas
áreas, além de artistas, jornalistas e humanitaristas.
Isso porque o termo não se impôs apenas no universo acadêmico e jurídi-
co-político; rapidamente a palavra genocídio ganhou o senso comum adentrando
o vocabulário de jornalistas, políticos e militantes, passando a se referir a toda
sorte de violências que tenham culminado na morte quantitativamente expressiva
de populações civis e impondo-se a eventos que teriam ocorrido ao longo de todo
o século XX.

Jornalistas, militantes, universitários, todos, sucessivamente, fala-


ram de “genocídio” em quase todos os conflitos da segunda metade
do século XX, que por ventura apresentassem um número importante
de vítimas civis: do Camboja à Tchetchênia, passando por Burundi,
Ruanda, Guatemala, Colômbia, Iraque, Bósnia, Sudão etc. (SÉMELIN,
2009, p. 424)

Associado a significados políticos essencialmente negativos, no seu uso


vernacular o termo teve função condenatória de práticas que nem sempre se
referiam à destruição física de um determinado grupo; mas que por sua natureza
negativa se quisesse repudiar.

En poco tiempo, se le comenzó a utilizar, en términos generales, en


referencia a otros actos o ideas repudiados, incluso cuando éstos no
involucraban ni buscaban muertes. Algunos autores han utilizado la
palabra genocida para referirse a fenómenos tan diversos como la
planificación familiar, el aborto, la investigación médica, normativas
escolares relacionadas con el idioma y la creación de reservas indí-
genas, entre otros. Al utilizarlo de esta forma, el término se vuelve
vacío de todo contenido cognitivo y no transmite más que el repudio
del autor. (CHALK; JONASSOHN, 2010, p. 24)

Apesar de a convenção, em seu preâmbulo, reconhecer que em todos os


períodos da história o genocídio causou grandes perdas à humanidade, no Direito
Penal Internacional inscreve-se o princípio da reserva legal, ou seja, que não há
crime sem lei anterior que o defina e, com isso, o entendimento de que não havia
ainda sido estabelecido o conceito jurídico de genocídio, quando de práticas que
coubessem neste conceito, ele não poderia ser aplicado. Ocorre que nem para as
Ciências Humanas e Sociais e nem para o senso comum cabem equivalências ao
princípio da irretroatividade da lei penal e, desconsiderando esses caracteres, em
seu uso social e como parte já do vocabulário político, o termo genocídio serviu a
nominar processos morticidas anteriores à convenção, como aqueles que vitimaram

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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos

populações indígenas durante o período colonial, sobretudo nos Estados Unidos,


armênios mortos pelo governo otomano a partir de 1915, populações deportadas
pelo regime stalinista na URSS, judeus e outras minorias raciais e políticas mortos
pelos nazistas etc.
Transitando já entre o discurso cotidiano e o discurso científico, houve
rapidamente a apropriação do termo por parte de estudiosos que, a partir de áreas
distintas, debruçaram-se sobre os estudos das guerras e dos grandes massacres
de populações civis na era contemporânea. Trata-se do caminho pelo qual o termo
genocídio chegou à História, à Política, à Sociologia, à Antropologia e à Filosofia,
resultando na criação de centros de estudos sobre genocídios em uma série de
universidades.
Neste novo campo de investigações, a Filosofia e as Ciências Humanas e
Sociais passavam a contar com a reticência das Ciências Jurídicas e Sociais quanto
aos usos comumente dados ao termo genocídio, à revelia dos contornos jurídicos
atribuídos a esta figura legal. Mesmo porque adentram a disputa pelo conceito os
sobreviventes de massacres e genocídios que passaram a reivindicar a punição
de perpetradores, bem como reparações pelas perdas materiais que sofreram, o
que no mais das vezes leva a insolúveis questões territoriais se considerarmos os
gigantescos deslocamentos populacionais que ocorreram no decurso de muitos
desses atos (é o caso de populações armênias, de russos, de judeus, entre outros).
Mas as demandas daqueles que sobreviveram à violência genocida não podem ser
atendidas todas pelo Direito (por meio de punições e compensações materiais);
a necessidade de justiça prescinde do processamento da experiência vivida, por
quão dolorosa tenha sido, bem como da guarda e da difusão da memória que, por
mais violenta que seja, deve ser franqueada às futuras gerações para que se tente
deter a liberação de tamanha força destrutiva no futuro e, com isso, para que se
preservem coletividades humanas fragilizadas de novas ações genocidas. A tarefa
está para muito além do que pode fazer o Direito; ela cabe à História.
As graves limitações que têm o Direito, para lidar com tamanhos objetivos,
foram assim sintetizadas por Larry Langer (1995, p. 171) ao tempo de dois dos mais
dramáticos genocídios de nossa história recente, os de Ruanda e de Srebrenica:
“the logic of law will never make sense of the illogic of genocide”.
Considerem-se ainda as forças ligadas direta ou indiretamente aos grupos
que perpetraram genocídios e a quem interessa negar sua participação, seja pelo
silêncio que intenciona o esquecimento, seja produzindo acusações de que relatos
de sobreviventes e de testemunhas seriam falsos. Não se pretende, com isso,
escapar apenas ao juízo do Direito e privar-se de reparações materiais, dentre as

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Rodrigo Medina Zagni, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro

quais complexas questões territoriais; pretende-se escapar ao juízo da história,


dirigindo a disputa para o campo da memória e desenvolvendo-se, sobretudo, na
seara historiográfica (casos paradigmáticos, neste sentido, são os negacionismos
turco e alemão).
E da confusão produzida pelo normativismo jurídico, pelo discurso jornalístico,
pelo vocabulário político e pelos nascentes estudos acadêmicos que passavam a
refletir sobre uma gama bastante heterogênea de ocorrências, um denso debate
passou a povoar este nascente campo de estudos, produzindo novas e diversas
significações do termo, segundo Sémelin (2009, p. 424) pouco precisas, mas nas
quais ganhava clareza seu objeto: a destruição de populações civis, fenômeno
que teria sido generalizado durante o séc. XX. A problemática inscreve o debate
clássico entre Israel Charny e Stephen Katz: enquanto para Charny o conceito de
genocídio seria aplicável a uma gama bastante diversa de acontecimentos no século
XX – incluindo até mesmo o desastre nuclear em Chernobyl –, Katz considerava
apenas o Holocausto como, puramente, um genocídio (Cf.: LOUREIRO, 2015, p. 8).
No campo da pesquisa histórica, os primeiros estudos datam do final da década
de 1970, originários do capítulo dedicado por Lemkin ao conceito de genocídio em
sua obra mater e envolvendo os esforços da chamada primeira geração, supracitada.
Destacando-se já como uma seara de investigações dotada de objeto próprio e seus
primeiros esboços teórico-conceituais, durante os anos 1980 esse pequeno grupo
de historiadores, sociólogos e antropólogos ensejou procedimentos comparativos a
fim de identificar, em um número restrito de genocídios ocorridos no corrente século
XX, motivadores causais e processualidades que fossem recorrentes. Tomando
o Holocausto como tipo ideal de ocorrência genocidária, já os primeiros estudos
comparados contaram com a oposição tanto de acadêmicos, que pesquisavam o
genocídio de judeus como um evento único, quanto de sobreviventes que alegavam
não ser possível comparar a dor, as situações de degradação a que foram submetidos
e as tentativas de destruição de todo o seu povo com quaisquer outros casos. Para
eles, também, o Holocausto teria sido único.
Evidentemente o Holocausto, como qualquer outro fato histórico, é único;
mas como processo histórico, inscrito fenomenologicamente no denso e povoado
mosaico de extermínios que marcam a sangue a trajetória das civilizações humanas,
seria possível identificar a aparição de alguns de seus caracteres e elementos
configuracionais em outros massacres no período moderno, ainda que o Holocausto
possa ter sido o ponto culminante desta processualidades, uma vez ter sido concebido
cientificamente e perpetrado em escala industrial, com magnitude e intensidade
notáveis para todo o séc. XX. Ao referir-se ao problema, Hiebert (2013, p. 17)

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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos

sustenta que, para a primeira geração de estudos comparados, “the recognition of


the Holocaust as one of several cases of genocide did not dispense with Holocaust
uniqueness in genocide studies”.
Tamanha a magnitude desta ocorrência, de alguma forma, os primeiros
procedimentos comparativos nesta seara consistiram, em sua grande maioria, em
colher casos de morticínios de populações civis e colocá-los sob o fundo reluzente
do Holocausto, que, por sua vez, subsidiava a investigação de variáveis como a
composição étnica, a estratificação social, o regime de governo – sendo recorrente
o uso do binômio: autoritarismo/democracia –, bem como o regime ideológico
vigentes nas sociedades que sediaram os massacres.
Dos estudos sobre o Holocausto desdobraram-se ainda análises acerca
dos processos de desumanização dos grupos-alvos da ação genocida e como
pré-condição para que o extermínio fosse perpetrado, o que informa a redução
de suas identidades complexas a estereótipos, a conversão de seus nomes em
números, sua indumentária em uniforme, o apagamento sistemático de traços de
sua individualidade – como cabelos raspados, por exemplo – e sua associação, por
meio de um regime de propaganda de massa, a formas inumanas como insetos
ou animais peçonhentos.
Sobre este aspecto, Helen Fein (1993, p. 26) esclarece que o fenômeno não
é tão recente quanto nos parece, desde o advento de

religious traditions of contempt and collective defamation, stereotypes,


and derogatory metaphor indicating the victim is inferior, sub-
human (animals, insects, germs, viroses) or super-human (Satanic,
omnipotent) (...) pre-defined as alien... subhuman or dehumanized,
or the enemy,

motivos pelos quais deveriam ser eliminados. No entanto, é preciso


compreender que, com o advento dos modernos veículos de comunicação de massa,
as estratégias de demonização de grupos inteiros passaram a ser difundidas com
maior rapidez e amplitude, e com eficiência sem precedentes.
A dessubjetivação – o apagamento da subjetividade – impediria tanto a
empatia quanto a alteridade por parte do perpetrador, que é também submetido a
procedimentos de desumanização para que seja visto por seus pares desprovido
de sua subjetividade, seja como um número, e não como indivíduo pleno. Ainda que
esses estudos tenham se desenvolvido a partir da Psicologia Social e dissociados
por muito tempo dos estudos comparados, é notável que o procedimento possa
ser verificado em muitos dos genocídios do século XX.

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Rodrigo Medina Zagni, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro

A este respeito, Matha Minow (1998, p. 1) asseverou que:

A most appalling goal of the genocides, the massacres, systematic


rapes, and tortures has been the destruction of the remembrance
of individuals as well as of their lives and dignity: this is what joins
the Holocaust and Final Solution, the Rape of Nanking, the mass
killings of Cambodians, the genocide of Armenians during the Turkish
Revolution, the massacre of Ibos in Nigeria, the killing of the Hutus,
the Gulag, the tortures of “leftists” in Chile, the students in Argentina,
the victims of apartheid.

Ainda que outras categorias subsequentes tivessem sido criadas, como as


de etnocídio,7 de politicídio (Cf.: GURR; HARFF, 1988, p. 369-381), de democídio
(Cf.: RUMMEL, 1994) e, mais recentemente, de indigenocídio (Cf.: EVANS, 2008,
p. 133-147) e de generocídio (Cf.: LINDNER, 2002, p. 137-155), todas, de alguma
forma, acabaram subordinadas a uma unidade cognoscível maior inscrita nos usos
da palavra genocídio, utilizada primordialmente para caracterizar o século XX.
Mas por que este período teria ganhado a pecha de o século dos genocídios
(Cf.: PARSONS; TOTTEN, 1997)? Para autores de uma tradição crítica como os da
História Social Britânica, a Grande Guerra deflagrada em 1914 inaugurou um novo
período na história da humanidade. Hobsbawm (1995, p. 11-28) refere-se ao evento
como demarcador do início de um breve século XX, que teria se estendido até 1991,
com o fim da Guerra Fria, caracterizando o período como uma era dos extremos;
não apenas isso, o ano de 1914 seria ainda o marco do início de uma primeira
porção dessa era, desdobrando-se até 1945 com o término do que designou como
uma guerra mundial de 31 anos, período tanto de uma era da catástrofe quanto
de uma era da guerra total. O sentido catastrófico presente nessa periodização
informa ter sido partilhada a percepção de que se tratava de uma catástrofe que
se abatia sobre a civilização: a guerra mundial era vista como o prenúncio do fim
do mundo exatamente por conta do elevadíssimo grau de letalidade que decorreu
do uso industrial da guerra e da industrialização dos processos de morte, elevando
exponencialmente o número de mortos, incluindo gravemente a população civil
europeia, a cifras até então nunca vistas.
Cobrindo um período que se estende até o fim de outra guerra, esta que impôs
ao mundo reais possibilidades de destruição civilizacional (Cf.: THOMPSON; WOLFE
et al., 1985), fomentando o morticínio de populações civis perpetrado por regimes

7
Proveniente de uma tradição francesa, o termo foi criado no pós-Segunda Guerra Mundial para referir-se
aos atos de destruição de uma determinada cultura ainda que não levassem à morte de seus portadores.

162 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 149-176, jul./dez. 2019
Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos

autoritários e mesmo aqueles tipificados como democráticos (Cf.: RUSSELL, 1967),


tem-se a percepção de que o século XX teria sido mesmo um século de genocídios
(Cf.: BRUNETEAU, 2004).

3 Para além do Holocausto e do normativismo jurídico


E por que o século XX é recordado, recorrentemente, como o tempo dos
genocídios? A pergunta elaborada por Minow (1998, p. 1) é seguida pela sistema-
tização de uma série de violências que marcaram o período, como o massacre de
armênios, perpetrado pelo governo otomano no decurso da Grande Guerra e após
seu desfecho; o estupro de Nanquim entre 1937 e 1938; o Holocausto havido
durante a Segunda Guerra Mundial; os Processos de Moscou durante o Grande
Expurgo e o Holodomor sob o estalinismo; o massacre dos Igbos na Nigéria, em
1966; o massacre de M'Lai e demais crimes de guerra praticados por tropas
norte-americanas na Guerra no Vietnã; a Guerra Suja movida pela ditadura militar
argentina contra a subversão, entre os anos de 1960 e 1970, mesmo período em
que o ciclo de ditaduras militares de segurança nacional se estendeu para países
como Brasil e Uruguai, nos quais a tortura e execuções sumárias foram instrumentos
de uso generalizado no combate aos inimigos desses regimes; repressão análoga
que também assaltou países do Leste Europeu e realidades balcânicas, como a
Grécia; os campos de morte no Camboja, na segunda metade dos anos 1970;
o terror imposto à dissidência política pela ditadura militar no Chile; o apartheid
na África do Sul, que se estendeu até a primeira metade da década de 1990; os
massacres na Romênia, nos anos 1940 e, depois, na década de 1990; a repressão
à dissidência política na Alemanha Oriental; o massacre perpetrado pelo Lord’s
Resistance Army, em Uganda, no início dos anos 1990; a violência de Estado na
Etiópia, no mesmo período; o extermínio de tutsis durante o genocídio em Ruanda,
em 1994; entre outros tantos eventos morticidas que teriam criado a percepção
de que se trata de um século de genocídios.
É preciso problematizar essa sentença. Para Minow (1998, p. 1), apesar de
cada um dos eventos que dotou o século XX dessas funestas qualidades ser único
e, para ela, incomparável, não se trata do único período em que os assassinatos
em massa, os estupros sistemáticos, a tortura e a submissão de contingentes
humanos a regimes de violência institucionalizada vigoraram. Para a autora, trata-se
de uma caracterização elaborada às luzes de esperanças de que avanços legais
pudessem efetivamente responsabilizar perpetradores de tais violências, bem como
evitar que novas violências, de tamanha envergadura, pudessem voltar a ocorrer.

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Rodrigo Medina Zagni, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro

A caracterização de um século de genocídios provém do entendimento de que a


implementação de sistemas jurídicos internacionais e de legislações locais não foi
capaz de cumprir, de forma exitosa, nenhuma dessas atribuições.
Apesar de o novo século ter dado a luz a meios industriais para a consecução
de antigos objetivos, o aniquilamento de povos foi um recurso recorrente, no século
XIX, no decurso do colonialismo que submeteu o norte da África e o Sul-Sudeste
da Ásia ao mando metropolitano e imperialista europeu, podendo-se dizer recente
a incorporação dos muitos massacres coloniais aos estudos sobre processos
genocidários na literatura debruçada sobre o tema.
E apesar de únicos, é preciso discordar de Minow (1998, p. 1), para quem
esses eventos seriam incomparáveis. Isso porque o método comparativo não
seria apenas possível, em termos de rigor teórico-metodológico e de coerência
epistemológica; para autores identificados com os comparative studies, o esforço
é imprescindível, tanto quanto, nessas iniciativas, é imperativo evitar posturas
deterministas ou fixadoras de tipos ideais, dentre os quais ocupou primazia, no
mais das vezes, o Holocausto.
Os estudos subsequentes à fundação dos genocide studies, da segunda
geração (Cf.: STRAUS, 2007, p. 476-501) até os enfoques mais recentes, foram
gradativamente se libertando do determinismo comparativo com o Holocausto,
enquanto dirigiram suas atenções para eventos anteriores ao séc. XX, consideran-
do-se genocídios pré-modernos e coloniais, junto de casos paradigmáticos. Com
isso, abriu-se o campo para a pesquisa dos processos de formação dos Estados
Nacionais, do próprio sistema-mundo capitalista e, consequentemente, da formação e
deformação dos impérios formais (russo, otomano, Habsburgo etc.) frente a ascensão
dos nacionalismos e, em contrachoque, dos nacionalismos oficiais (ANDERSON,
2008, p. 107-162). Não que o Holocausto tenha deixado de importar; mas posto
em perspectiva crítica frente a inúmeros casos de violência genocida, tendem a
ganhar cada vez mais a atenção dos pesquisadores processos históricos que até
então seguiam subtraídos das narrativas históricas tradicionais.
O espectro também se abriu, do normativismo jurídico e do positivismo
sociológico para as teorias de sistema-mundo, a teoria crítica e, mais recentemente,
para a crítica pós-colonial. Deslocou-se também o eixo epistêmico, do centro do
sistema-mundo capitalista para sua periferia, com destaque para a produção
de autores latino-americanos e africanos, por exemplo, bem como, nos centros
tradicionais, autores da diáspora globalizada.
Há um sentido tanto geográfico quanto cronológico na ampliação significativa de
seu espectro de análise. Enquanto o eixo se deslocou, geograficamente, do ambiente

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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos

centro-europeu, nuclear no sistema-mundo capitalista, para a América Latina,


África e Oriente – periferia e semiperiferia do sistema mundial; cronologicamente
recuou-se para antes do século XX, buscando recuperar a violência tanto do antigo
(século XV ao XVIII) quanto do novo sistema colonial (século XIX) e os inúmeros
massacres patrocinados pelas potências metropolitanas, justificados pela convicção
de superioridade civilizacional do elemento colonizador europeu e, no século XIX,
pela ideologia do fardo do homem branco, apoiada pela recém-nascida subárea
da eugenia, ramo aplicado da genética, que buscava validá-la cientificamente e
que serviria de suporte epistemológico, décadas depois, para o racismo científico
reivindicado pelo nazismo (Cf.: ZAGNI, 2013).
Outra fronteira ampliada substancialmente pelos estudos comparados foi a
política, em especial aquela em que se atribuía a regimes autocráticos e totalitários
uma inclinação indelével à punição genocida de toda e qualquer dissidência;
enquanto as democracias seriam bastiões de liberdade e justiça para com seus
súditos, incapazes de atos genocidários. Massacres indígenas perpetrados pelos
EUA durante o processo de expansão para o Oeste, tanto quanto as atrocidades
inglesas praticadas na Índia e a repressão sanguinária francesa ultimada na Argélia
embotaram esse discurso, permitindo-se verificar que regimes autointitulados
democráticos são capazes de intentar violências genocidas contra populações
indefesas e em nome da própria democracia, em defesa de um povo, de um ideal
de nação e manipulando, para isso, maiorias (Cf.: LEVENE, 2005; MOSES, 2008;
MOSES; STONE, 2007).
Dentre as searas abertas nesta nova etapa, os estudos de Markusen (1987,
p. 97-123; 1995) apontam ainda para a identificação do genocídio como tipo
específico de violência e que não pode ser confundido com a violência da guerra,
apesar de suas íntimas conexões. Não que o genocídio prescinda da guerra para
ocorrer; mas a guerra fornece aos grupos interessados no empreendimento genocida
o ocultamento em sua névoa, as justificativas quanto à necessidade de livrarem-se
de inimigos internos em razão do inimigo externo, eventualmente acusando aqueles
que devem sucumbir de traição; e, por fim, a própria organização estrutural do
Estado para a guerra e os efetivos e materiais mobilizados com este propósito.
Sobre o atual estágio dos estudos comparados sobre genocídios, esclarece
Hiebert (2013, p. 19-20) que o campo, ao contrário dos que afirmam seus críticos
(Cf.: WEISS-WENDT, 2010, p. 42-70), não estaria em crise, mas se constituiria
como um campo diverso.
As fronteiras disciplinares vêm sendo transpostas dando lugar a análises
intercruzadas em três níveis essenciais: individual, nacional e sistêmico. No primeiro

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Rodrigo Medina Zagni, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro

nível, a unidade de análise seria composta pelos perpetradores, quadros militares e


governamentais, civis envoltos na trama genocida bem como espectadores de toda
sorte, atados às estruturas institucionais que planejam e viabilizam a consecução
dos assassinatos. O segundo nível não envolve apenas as estruturas políticas
estatais ou instituições não estatais, mas estruturas sociais que determinam
estratificações diversas como a étnico-racial, os cortes de classe, raça e gênero,
estruturas ideológicas e a ordem cultural vigente. No último nível, o sistêmico, a
análise abre o escopo para além do Estado nacional enfocando os processos de
mundialização do capital, a globalização econômico-financeira e seus diversos
ciclos, desde o advento do capitalismo histórico e a edificação do Antigo Sistema
Colonial, passando pela consolidação da civilização material capitalista e do mundo
burguês, para a expansão do capitalismo verdadeiramente existente pela via do
imperialismo, seja territorial, seja econômico e já como empreendimento global.
A ideologia apensa à expansão, justificadora, na superestrutura ideológica, das
relações de exploração vigentes na infraestrutura econômica, como a modernidade,
também serve de unidade analítica deste nível.
Junto de outros morticínios que vêm sendo incorporados ao repertório temático
dos estudos sobre genocídios, temas sensíveis como as violências perpetradas
pelas ditaduras militares latino-americanas, o extermínio da dissidência política na
Indonésia, o flagelo do povo palestino ou a violência policial contra a juventude negra
em realidades como a brasileira, entre outros, vêm sendo alvo de severas críticas e
reticências as mais diversas, provenientes não apenas da seara jurídica, mas das
próprias Ciências Humanas e Sociais, por sua desconformidade em relação aos
contornos que, tecnicamente, definiram o conceito em sua dimensão normativa.
Isso porque, desde o seu nascedouro, os estudos sobre genocídios vêm padecendo
do mesmo mal, ou seja,

se desenvolveram, sobretudo, na encruzilhada do direito com as ci-


ências sociais. Essa imbricação constitutiva, entre o normativismo
do Direito Internacional e a análise sócio-histórica, engendrou dificul-
dades conceituais que se tornaram fonte de múltiplas controvérsias
(SÉMELIN, 2009, p. 425).

Algo nessa controvérsia se mostra incabível em termos epistemológicos


dadas a natureza e as funções sociais distintas das Ciências Jurídicas em relação
às Ciências Humanas e Sociais. Desdobrando-se a Teoria do Direito em doutrina,
fundamentalmente no que se refere à aplicação das normas jurídicas; apenas na
modalidade das Ciências Sociais Aplicadas, como nos casos da Economia e da
Ciência Política, é que as teorias econômicas e políticas alimentam o universo
da técnica. Inseridos os conceitos nos corpos teóricos, quando estes servem à

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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos

dimensão da aplicação técnica – no caso do Direito, enquanto doutrina –, é preciso


identificar a priori que função social é dada à técnica, ou seja, que objetivos tem
ela a cumprir quando aplicada à vida social. Mudando brutalmente sua função
social, de acordo com a apropriação que as sociedades humanas fazem das
ciências e de seus referenciais, bem como os enfoques distintos das ciências
sobre as sociedades, altera-se em natureza o campo teórico onde estão inseridos
os conceitos, mudando-os essencialmente. Com isso, resultam grosseiramente
inadequados os usos dados ao conceito de genocídio, quando colhido do Direito,
para análise de processos sócio-históricos.
Sémelin (2009, p. 425-426), ao tratar do problema, defendeu tacitamente
a necessidade de as pesquisas sobre os genocídios se emanciparem do direito
para que possam alcançar sua maturidade nas Ciências Humanas e Sociais,
pré-condição para a análise dos usos políticos dos massacres e genocídios no séc.
XX e, com isso, para a redefinição do conceito de genocídio a partir da noção que
nele habita, do episódico fato-acontecimento8 (Cf.: LANGLOIS; SIGNOBOS, 1946,
p. 15-31,148-161) para a concepção de processualidade histórica, o que permitiria
por sua vez edificar o conceito de processo genocida ou de processo genocidário.
Com isso, o imperativo é o de analisar o processo de construção de novos
referenciais teóricos nas Ciências Humanas e Sociais para o estudo de processos
genocidários que comumente escapam à definição normativa. Implica construir
um conceito de genocídio que não seja normativo, mas aplicável à análise de
processualidades históricas e, assim, compatível com a História Social e, sendo
o caso, com a História das Relações Internacionais.
A tarefa passa inexoravelmente pela análise dos casos considerados
paradigmáticos de genocídios – armênios, judeus, bósnios e tutsis – a fim de
compreender por que são notoriamente considerados genocídios pela comunidade
internacional e pela academia; bem como pela análise dos massacres e extermínios
em massa – como, por exemplo, os da Ucrânia, Camboja e Indonésia – em torno
dos quais há disputas pelo uso do conceito em compreender as razões da contenda.

4 Um repasse teórico, uma visita às fontes e os novos


rumos dos “genocide studies”
Cabe ainda aqui uma importante indagação: que valia teria, para as sociedades
humanas, uma clara definição conceitual do genocídio a partir das Ciências Humanas
e Sociais, desvencilhada do ranço normativo que lhe dera o Direito?

8
O fato-acontecimento, ou evenementiele, foi atacado ferozmente pela primeira geração da Ecole des
Annales, cujos precursores alterariam definitivamente a concepção de História (Cf.: BLOCH, 1965, p. 95-
106; BRAUDEL, 1972, p. 7-70; FEBVRE, 1989, p. 59-71).

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Rodrigo Medina Zagni, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro

Para além das já evidenciadas justificativas acadêmicas, em termos sociais,


Chalk e Jonassohn (2010, p. 25) defendem que um enfoque histórico, numa
perspectiva comparativa, poderia servir para a identificação de situações e de
determinadas condições sociais, além de parâmetros e padrões recorrentes,
que permitiriam prevenir futuros genocídios, ao passo que a instrumentalização
político-jurídica do conceito apresentado à comunidade internacional pela CIPRCG
flagrantemente fracassou nesse intento, ou seja, não deu conta de impedir que
novos genocídios ocorressem.
A tarefa é sobretudo inter e multidisciplinar. Diferentes olhares devem
possibilitar compreensões mais abrangentes acerca de processos complexos e
que refundam as sociedades humanas a partir da destruição e da reconstrução de
suas teias de sociabilidade.
Com este escopo, o repertório temático dos genocide studies envolve, desde
o advento da teoria crítica, questionamentos acerca de uma gama variada de
fronteiras, como: a epistemológica, a de seu campo de definição, a geográfica, a
temporal, a política (enfocando primordialmente o regime de governo), a natureza
da violência perpetrada e as fronteiras do próprio Estado-nação (Cf.: HIEBERT,
2013, p. 17-19). Também importa a dimensão teórico-conceitual do que consiste o
genocídio frente a outras categorias de definição, como: massacres, assassinatos
em massa, limpeza étnica, violações de direitos humanos, etc.
E, por fim, os mais dramáticos eventos que marcaram o final do séc. XIX, o
séc. XX e o recém-nascido séc. XXI: massacres indígenas; os massacres coloniais
durante a era dos impérios (de 1880 a 1914); o genocídio armênio (de 1915 a 1923);
o Holocausto e o morticínio de outras minorias sociais perpetrado pelos nazistas
(de 1938 a 1945); o massacre de Nankim (em 1938); o massacre de Katyn (em
1940); as bombas de Hiroshima e Nagasaki (em 1945); o genocídio na Indonésia
(entre 1965 e 1966); o massacre cambojano perpetrado pelo Khmer Vermelho (de
1975 a 1979); os massacres no Timor Leste (em 1975); os massacres de Sabra
e Chatila (em 1982) e o conflito israelo-palestino; o massacre de curdos, praticado
pelo regime de Saddam Hussein, no Iraque (em 1988); o genocídio em Ruanda (em
1994), o massacre de Srebrenica (em 1995); o genocídio de Darfur (em 2003) e
as atrocidades cometidas pelo chamado Estado Islâmico na atual guerra civil na
Síria, entre outros processos.
Trabalhando com a pedra bruta da memória, tanto de vítimas quanto de
perpetradores, fica evidenciado que ao transformar a memória em narrativa histórica,
seja na forma textual, monumental ou em novos suportes, tem-se potencializado

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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos

seu caráter didático, o que possibilitaria aquilo que Josep Fontana (1998) chamou
de história-instrumento, dotada do potencial de alterar a realidade social.
A pesquisa recente cada vez mais envereda pela perspectiva da análise
comparativa, desvelando-se a necessidade da investigação de casos tomados como
clássicos de genocídio vis-à-vis àqueles numericamente tão mortíferos quanto os
clássicos, mas que por diversos motivos foram relegados a uma espécie de gueto
historiográfico. Contudo, não podemos cair na armadilha de classificar os massacres
menos conhecidos como genocídios esquecidos, como faz René Lemarchand em
obra editada por ele e intitulada Forgotten Genocides: oblivion, denial, and memory
(2013), por uma série de motivos: primeiro, tal abordagem incorre no risco de
classificar um morticínio como sendo maior ou mais importante do que o outro
e, por isso, uns seriam lembrados e outros esquecidos (sic); segundo, não há
genocídio esquecido para o grupo-alvo da violência em massa e seus descendentes,
ainda que este não seja alvo de frequentes análises pela academia. O trauma e a
memória permanecem, mesmo em casos que já estão temporalmente distantes,
como, por exemplo, o massacre da população circassiana do Cáucaso Ocidental
pelo Império Russo nos anos 1850-60 (Cf.: KREITEN, 2009); terceiro, chamar
alguns genocídios de esquecidos oblitera o fato de que poucos genocídios são, de
fato, profundamente conhecidos, o que inclui os processos genocidas durante a
Segunda Guerra Mundial, cuja dimensão judaica é relativamente bem analisada, mas
não se pode dizer o mesmo dos demais grupos-alvo da política nazista (BLOXHAM,
2005, p. 6), como ciganos, eslavos, testemunhas de Jeová, comunistas, maçons,
homossexuais etc. Assim, ao invés de tratarmos de genocídios esquecidos, como
faz Lemarchand e seus autores, devemos pensar em hidden genocides, conforme
formulam Alex Hinton (HINTON; LA POINTE; IRVIN-ERICKSON, 2013) e outros, pois
foram política, social, cultural ou historicamente escondidos, de acordo com um
sistema mais amplo de poder social e político.
Evidentemente, tal estratégia analítica tende a reduzir o alcance da investigação
possível e necessária de diferentes morticínios, não permitindo generalizações
ambiciosas. Por outro lado, sempre haverá espaço para o debate em torno da
indicação dos casos que deveriam ser tratados como efetivamente paradigmáticos.
Entretanto, entendemos que a análise comparativa pode colaborar para a elucidação
de determinadas condições que favorecem a definição das escolhas políticas,
sociais, culturais e históricas para a categorização do que é – e, sobretudo, do
que não é – genocídio.
Essa abordagem é fundamental para a cunhagem de um arcabouço conceitual
próprio das Ciências Humanas e Sociais, especificamente, para os estudos

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Rodrigo Medina Zagni, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro

históricos, na medida em que ao fazer a análise dos casos já consagrados e aceitos


de genocídio e contrapô-los a casos menos estudados, sob disputa, poderemos
compreender os mecanismos acionados por analistas e tomadores de decisão para
acatar os pedidos de reconhecimento de um determinado morticínio em esferas
governamentais, intergovernamentais ou nos fóruns científicos e acadêmicos. Feito
isso, teremos condições de entender as limitações do conceito onusiano e em que
medida suas dimensões normativas alcançam as Ciências Humanas e Sociais.
Tanto o caráter do objeto quanto o problema de pesquisa apontam para duas
naturezas distintas de base informativa para os estudos de processos genocidários:
as resoluções que deram forma à definição onusiana de genocídio e aquelas que
propuseram sua revisão e atualização; bem como a literatura engajada no debate
teórico-conceitual que tende a ampliar o escopo deste referencial e reelaborá-lo a
partir das Ciências Humanas e Sociais.
Na primeira chave, inscrevem-se como fontes imprescindíveis para o investigador
a General Assembly Resolution 96 (I), da Organização das Nações Unidas, de
dezembro de 1946; a Convention on the Prevention and Punishment of the Crime
of Genocide, adotada por meio da Resolução 260 (III) da Assembleia Geral da ONU
aos 9 de dezembro de 1948; a Convention on the Prevention and Punishment of
the Crime of Genocide, da mesma assembleia, de 1951; o julgamento de Adolf
Otto Eichmann, em Jerusalém, no ano de 1968; o Revised and updated report on
the question of the prevention and punishment of the crime of genocide, elaborado
por Benjamin Whitaker para a ONU entre os anos de 1985 e 1986; o processo
Prosecutor v. Krstic, de 2004 e que versou sobre a ocorrência do genocídio, em 1995,
em Srebrenica; o Report of the International Commission of Inquiry on Darfur to the
United Nations Secretary-General, de acordo com a resolução 1564, do Conselho
de Segurança da ONU, de 18 de setembro de 2004; e, por fim, a Declaration on
Prevention of Genocide, elaborada pelo Committee for the Elimination of Racial
Discrimination, de 2005.
Com relação à literatura especializada, qualquer estudo que pretenda revisitar
o conceito de genocídio em perspectiva crítica deve ter início na análise da obra de
seu criador, em especial daquela na qual o conceito de genocídio é, pela primeira
vez, cunhado, tratando-se do livro de Raphael Lemkin, Axis Rule in Occupied Europe,
de 1944, bem como seus artigos e ensaios anteriores e posteriores à sua obra
mater e que aos poucos têm sido publicados e organizados por pesquisadores que
se debruçam sobre os arquivos do jurista.
Sobre a transposição do conceito elaborado por Lemkin para a seara jurídica,
como figura do Direito Internacional, temos como marco a obra de William A. Schabas,

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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos

Genocide in International Law: The crime of crimes, de 2009; consensualmente a


obra mais importante já publicada com este propósito. Em seguida, temos uma
gama bastante heterogênea de autores que, em distintos momentos, revisitaram
o conceito de Lemkin, desde uma perspectiva crítica, abordando a dimensão
teórico-conceitual e desdobrando-a na análise de casos concretos, podendo-se
dizer de obras que conjugam elementos teóricos com a análise empírica. Nesse
sentido, é indispensável começar a investigação pela chamada primeira geração de
genocide scholars, cujos questionamentos das limitações da convenção da ONU e
sua aplicabilidade às Ciências Humanas e Sociais deram origem a uma nova área
de estudos. A primeira obra seminal é Genocide: its political use in the Twentieth
Century, do sociólogo Leo Kuper, publicada em 1981, na qual o pesquisador elenca
as limitações da Convenção, ainda que defenda a sua manutenção como referência
para os genocide studies uma vez que ela é a única definição internacionalmente
reconhecida e que poderia gerar bases para ações efetivas no tocante à prevenção
do genocídio. Contemporâneos a Kuper, os pesquisadores Vahakn Dadrian, Helen
Fein, Frank Chalk, Kurt Jonassohn, Israel Charny e outros também se preocuparam
em ressignificar o conceito onusiano, apontando suas limitações aos casos de
massacres, sobretudo em uma época – anos 1980-90 – em que a Convenção ainda
não havia sido aplicada legalmente, não obstante a reincidência de morticínios
desde 1945 até os tribunais penais internacionais para a ex-Iugoslávia e Ruanda.
As reflexões dessa geração levaram juristas e tomadores de decisão a entenderem
que o documento era falho e necessitava ser ajustado de acordo com as críticas
postas. Nasceu assim o relatório de Benjamin Whitaker, consultor nomeado pela
ONU a fim de apontar as brechas da convenção em casos como os massacres do
Camboja, onde um quarto da população havia sido morta por seu próprio governo,
num genocídio notadamente marcado pela perseguição ao inimigo político. Embora
o relatório tenha alertado, seguindo os apontamentos acadêmicos, para a falha
da convenção ao omitir o elemento político do rol de alvos da ação genocida, as
prescrições de Whitaker nunca foram apreciadas pela Assembleia Geral e a convenção
permanece da forma que foi aprovada em 1945 (FEIERSTEIN, 2015, p. 140).
Também a chamada segunda geração de genocide scholars é de importância
fulcral para o empreendimento, na medida em que seus investigadores puderam
se dedicar às análises comparativas e causais de genocídios e massacres. Assim,
Robert Melson, Jacques Sémelin, Alison Forges, Ben Kiernan, Carol Rittner, John K.
Roth, James M. Smith, Alex Hinton, dentre outros, escreveram centenas de páginas
sobre os casos armênio, judeu, cambojano, ruandês e bósnio, em diálogo constante
com os problemas apresentados pelos acadêmicos críticos da convenção onusiana.

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Rodrigo Medina Zagni, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro

Atualmente, os genocide studies ainda comportam discussões teóricas sobre


as limitações da Convenção de 1945, bem como análises de causas de genocídios
e massacres por meio do estudo de novas fontes e abordagens que têm surgido até
mesmo em casos já bem conhecidos e pesquisados. Ainda, podemos perceber a
emergência de um grande volume de pesquisas sobre ocorrências pouco discutidas,
como o massacre de circassianos no Império Russo, assírios e gregos no Império
Otomano, hereros na atual Namíbia, chineses e comunistas na Indonésia, etc., além
de eventos amplamente conhecidos, mas que até então não eram tratados através
do prisma dos genocide studies, como a escravidão de africanos nas Américas,
o extermínio de populações aborígenes e as transferências de crianças desses
grupos para famílias brancas na Austrália e Nova Zelândia, bem como a morte e
o desaparecimento da dissidência política na América Latina durante os regimes
autoritários entre os anos 1960-80.

Considerações finais
O desafio para todo genocide scholar é, em primeiro lugar, estabelecer em
sua pesquisa qual conceito de genocídio está em tela e quão próximo ou distante
ele está daquele definido pela ONU em 1948, já descaracterizado das formulações
iniciais de Raphael Lemkin. O sociólogo britânico Martin Shaw é um dos acadêmicos
que defende um retorno às ideias de Lemkin, recuperando o caráter explicativo do
conceito de genocídio, evitando seu esvaziamento em conceitos paralelos como
etnocídio, limpeza étnica, dentre outros, que foram utilizados ao longo dos anos
devido à natureza demasiadamente restritiva do conceito onusiano. Esse movimento
“propõe restaurar o conceito de genocídio como uma categoria geral, capaz de
servir como um marco para a interpretação da ação violenta contra populações
civis”, na medida em que o foco muda da intenção de destruir um grupo no todo ou
em parte – como prevê o conceito onusiano – para “um tipo geral de ação social,
caracterizado pela combinação de objetivos destrutivo-sociais e modalidades
violentas e coercitivas, que estabelece um tipo especial de conflito social violento”
(SHAW, 2013, p. 248).
Os acadêmicos teriam um compromisso moral ao estudar genocídios, isto é,
o de tomar partido a partir de análises fundamentadas e éticas: “os estudiosos
devem apresentar testemunho, mostrar solidariedade com as vítimas e colocar-se
inequivocamente de um lado do processo histórico” (SHAW, 2013, p. 19); sob o
risco de relativizar acontecimentos em busca de uma suposta isenção, muitas
vezes baseada em argumentações jurídicas, que evitam chamar o caso cambojano

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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos

ou indonésio, por exemplo, de genocídio, por se tratar predominantemente de


massacres políticos e, portanto, fora do escopo da convenção da ONU.
Tais trabalhos nos instigam a retomar a crítica dos conceitos de genocídio –
tanto o onusiano quanto as formulações alternativas feitas pela primeira geração
de scholars – e da sua aplicabilidade, sobretudo em um tempo em que conflitos em
curso na Síria e no Iraque dizimam e provocam o êxodo de populações minoritárias,
colocando em xeque não só vidas e patrimônios históricos, mas também todo o
campo epistêmico dos genocide studies, na medida em que não obstante os 70
anos do fim do Holocausto, da criação da Convenção e das reflexões acadêmicas
que deles originaram, ainda não conseguimos prevenir e punir genocídios, o que
nos impõe um grave questionamento: conseguimos compreendê-los?

Wordsmiths: the invention of the genocide concept and its application to historical studies
Abstract: From the concept of genocide coined by Raphael Lemkin during World War II to that presented
to the world by the International Convention on the Prevention and Suppression of Genocide Crime,
adopted by the United Nations on December 9, 1948, interests as North-Americans and Soviets
expunged it from elementary criteria – such as the political, for example –, severely emptying its senses
and meanings and making its application unfeasible for a considerable range of cases. Beyond the
legal field, the problem presents itself in the Humanities and Social Sciences when the concept is
taken in an untouched form, from the Legal Sciences, for the analysis of historical processes. Due to
the interference of the Law on History, Sociology and Anthropology, they are prevented from operating
it, revealing the absence of socio-historical references for the analysis of genocidal processes. This
paper analyzes the long process of constitution and dispute of this concept, trying to evaluate to what
extent it can already be said of a conceptual elaboration specific to the nature of the Human and Social
Sciences, beyond the Legal Sciences and its narrow normative dimension.

Keywords: Genocide. Killings. Raphael Lemkin. Genocidal processes. Theoretical-conceptual debate.

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ZAGNI, Rodrigo Medina; LOUREIRO, Heitor de Andrade Carvalho. Artífices de


conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos
históricos. Revista Fórum de Ciências Criminais – RFCC, Belo Horizonte, ano
6, n. 12, p. 149-176, jul./dez. 2019.

176 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 149-176, jul./dez. 2019
ATUALIDADES
O Caso Riocentro e a evolução do
crime contra a humanidade no Direito
Internacional dos Direitos Humanos1

Flávio de Leão Bastos Pereira


Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Coordenador Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Professor de Direitos Humanos e de Direito Constitucional da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de
Coimbra (Instituto Ius Gentium Conimbrigae/IGC) e IBCCRIM. Egresso do International
Institute for Genocide and Human Rights Studies; (Zoryan Institute), University of Toronto
(Canada), turma de 2014. Cofundador do Observatório Constitucional Latino-Americano
(OCLA). Membro do rol de especialistas da Academia Internacional dos Princípios de
Nuremberg/Alemanha. Associado à International Association of Genocide Scholars
(IAGS). Conselheiro componente do Conselho Editorial da Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo (desde janeiro de 2019). Colaborador do Departamento de História, IFCH/
Unicamp, desde 2018, sob supervisão de Pedro Paulo A. Funari. Coordenador do Núcleo
Temático de Direitos Humanos da Escola Superior da Advocacia (ESA) da Ordem dos
Advogados do Brasil – Secção São Paulo (a partir de 2019). Professor-pesquisador
convidado do Mestrado Profissional da Universidade Santa Cecília (UNISANTA). Professor
convidado da Escola Judiciária Militar do Estado de São Paulo. Professor convidado da
Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (2019).

Resumo: O artigo analisa o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça – Recurso Especial nº
1.798.903-RJ –, de Relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz. A análise ora proposta perpassa os
argumentos apresentados pelo Ministro Relator, favoráveis e contrários ao entendimento dos fatos que
exsurgem das circunstâncias dos acontecimentos ocorridos no Rio de Janeiro no ano de 1981, ainda
durante a vigência do Estado de exceção que vigorou no país entre 1964 e 1985, e consistentes na
tentativa de realização de atentado a bombas por militares pertencentes às fileiras mais radicais dos
grupos que estavam no Poder e que eram contrários à abertura política que, à época, desenvolvia-se no
Brasil. As medidas adotadas pelo Ministério Público Federal, no sentido da persecução e punição dos
responsáveis pelas referidas ações, demandam o esclarecimento sobre a caracterização, ou não, dos
acontecimentos e condutas envolvidas no episódio, como crime lesa-humanidade. Nesse sentido, as
ponderações ora apresentadas enfrentam os estágios evolutivos verificados no Direito Internacional,
tanto em suas dimensões consuetudinárias quanto positivadas.
Palavras-chave: Caso Rio-Centro. Crimes contra a humanidade. Imprescritibilidade. Direito internacional
dos direitos humanos.

Sumário: 1 Contextualização – 2 Atentados do Riocentro: ideias iniciais – 3 Atentados do Riocentro:


crimes contra a humanidade? – 4 O Brasil reconhece os crimes contra a humanidade e sua
imprescritibilidade? O diálogo com o direito internacional – 5 Considerações finais – Referências

1
Artigo elaborado por autor convidado.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019 179
Flávio de Leão Bastos Pereira

Poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o


outro está ausente.
Hannah Arendt. “Sobre a Violência”

1 Contextualização
Os fatos que fornecem o pano de fundo da análise ora proposta, e também
submetidos ao crivo do Superior Tribunal de Justiça por meio do Recurso Especial
nº 1.798.903-RJ, remetem ao ano de 1981 e, mais especificamente, a aconte-
cimentos ocorridos durante o período do governo Ernesto Geisel (15 de março
de 1974 a 15 de março de 1979) e sob o qual se promovia gradativa abertura
política no país, elemento importante para a compreensão dos acontecimentos
centrais no contexto sob comento. O período mais crítico que marca o regime
de exceção instaurado por meio de um golpe a partir de 31 de março de 1964
é alcançado com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5) em 13 de dezembro de
1968. É a partir da supressão do espaço democrático para o diálogo político que
surgem os movimentos de resistência armada, suprimidos em poucos anos pelo
regime, especialmente por meio da ação das estruturas então estabelecidas e
que operacionalizaram as estratégias de combate aos referidos movimentos, não
restando limitadas tais ações e dinâmicas repressivas apenas em relação aos
movimentos de oposição armados, mas também com forte atuação investigativa
sobre intelectuais e professores, estudantes, operários, clérigos, militares, dentre
outras categorias. No intuito de imprimir eficiência às ações de monitoramento e
repressão aos movimentos contrários ao regime, mesmo aqueles que não aderiram
à luta armada, foi concebida e iniciada a denominada Operação Bandeirante (OBAN),
com o objetivo de colher informações junto a opositores feitos clandestinamente
prisioneiros. Com sede na rua Tutóia, na capital paulista, a OBAN logo viria a se
tornar o Departamento de Operações de Informação – Centro de Operações de
Defesa Interna (DOI-CODI), modelo de estrutura que passava então a atuar como
principal responsável pela inteligência e repressão do regime e que, diante do
êxito no cumprimento de seus objetivos, seria exportado para todo o Brasil no
combate às forças políticas e sociais consideradas subversivas. Com técnicas de
torturas, sequestros e desaparecimentos inspiradas pela experiência francesa na
guerra de libertação da Argélia ocorrida entre os anos de 1954 e 1962 (a conexão
francesa),2 o DOI-CODI constituiu engrenagem central no aparato repressor, atuando

2
Ocasião histórica na qual foram cometidos crimes de guerra contra milhares de vítimas argelinas por es-
quadrões da morte, especialmente comandados pelo General Paul Aussaresses, posteriormente acusado

180 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019
O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

de modo clandestino e financiado com recursos públicos,3 com milhares de


prisões e dezenas de mortes provocadas pelas torturas então cometidas de forma
sistemática contra cidadãos considerados opositores políticos, especialmente no
período do governo Médici (30 de outubro de 1969 a 15 de março de 1974), auge
da repressão. Foi durante o período do governo de Ernesto Geisel, já mencionado,
que um processo de abertura política lenta e gradual é iniciado. E é também o
referido processo de abertura que marca o recrudescimento da oposição interna
por parte chamada linha-dura do regime, contrária à citada dinâmica de abertura
politica. Frise-se que, quanto ao governo Geisel, a despeito do apontado processo
de abertura política, a repressão, embora tenha sofrido alterações em seu modus
operandi, com a cessação por exemplo de detenções clandestinas seguidas de
torturas e assassinatos (afinal, a reiteração de tais condutas seria considerada uma
contradição do regime que buscava instrumentalizar a citada abertura política), não
se revelava menos brutal quanto ao modo de lidar com seus supostos opositores.
A título de exemplo pode ser trazida à luz a descoberta, em 2018, de documentos
liberados pela norte-americana Central Intelligence Agency (CIA) e que comprovam
que o ex-presidente Ernesto Geisel conhecia e buscou controlar a execução de
oponentes ao regime e a partir do Palácio do Planalto, dando continuidade à política
de execuções já em curso desde o governo Médici, que o antecedera (PEREIRA,
2018), sem contar os constantes desaparecimentos de opositores.
Assim é que, exatamente diante do processo de abertura que se encontrava
em curso ao longo do governo Geisel, recrudesceu a oposição a partir de alas mais
radicais das forças armadas e que, com a adoção de métodos consistentes em
atentados mediante ataques com emprego de bombas e explosivos, foram responsá-
veis pela tentativa frustrada de ataques a bombas durante show de música popular
brasileira realizado em 30 de abril de 1981 no Centro de Convenções Riocentro
(Jacarepaguá - RJ), em homenagem ao dia do trabalho e com a presença de cerca
de vinte mil pessoas, jovens na sua maioria. Contudo, uma das bombas explodiu
no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário quando este se aproximava do
Riocentro; um segundo aparato explosivo foi lançado na subestação de eletricidade
do complexo, no intuito de cortar o fornecimento de energia no local. O grupo tinha

pela Justiça francesa por “apologia de crimes de guerra”; por comandar esquadrões da morte e pela
prática sistemática da tortura na referida guerra de independência da Argélia. Referidas técnicas foram ex-
portadas pelos franceses, especialmente ao Cone Sul durante o período das ditaduras a partir da década
de 60. Leia-se, a respeito Agência Estado (2001).
3
Para melhor detalhamento sobre a existência, modo de recrutamento e funcionamento do DOI-CODI, leia-
se A CASA DA VOVÓ – Uma Biografia do DOI-CODI (1969-1991), o Centro de Sequestro, Tortura e Morte
da Ditadura Militar, de Marcelo Godoy, Alameda Editora, 610 páginas, 2015.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019 181
Flávio de Leão Bastos Pereira

por escopo gerar o pânico e o terror; falsamente atribuir a autoria do atentado a


organizações de oposição ao regime ditatorial e, assim, impedir a continuidade do
processo de abertura política então em curso. Em 17 de fevereiro de 2014 o Ministério
Público Federal ajuizou a Ação Penal nº 0017766-09.2014.4.02.5101 em face do
coronel reformado Wilson Luiz Chaves Machado; do delegado aposentado Cláudio
Antonio Guerra e diante dos generais reformados Nilton de Albuquerque Cerqueira
e Newton Araújo de Oliveira e Cruz. Informa, ainda, o Ministério Público Federal:

O caso do atentado do Riocentro é emblemático porque revela a tor-


peza e os objetivos deste grupo de radicais, integrado por membros
das Forças Armadas, que estava disposto a detonar artefatos ex-
plosivos contra a própria população, num show com 20 mil jovens,
apenas para gerar um clima de pânico para justificar o endurecimento
da ditadura militar. (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2017, p. 159)

Neste sentido, outras medidas foram também promovidas pelo Ministério


Público Federal, não apenas em relação ao caso do Riocentro, mas, também, no
que tange a outros casos relacionados ao período ditatorial e que, à evidência,
conduzem à discussão ora proposta, vale dizer, definir se determinadas condutas
praticadas por agentes do Estado durante a ditadura civil-militar instaurada em 1964
configuram, ou não, crimes de lesa-humanidade, como na hipótese de sequestros
e desaparecimentos forçados; homicídios e ocultação de cadáveres; estupros;
atuação de legistas responsáveis pela falsificação de laudos necroscópicos, etc.
No caso específico sob comento, o Ministério Público Federal (MPF) interpôs agravo
diante de decisão que não admitiu seu Recurso Especial interposto em vista de
Acórdão exarado pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região no Habeas Corpus nº
0005684-20.2014.4.02.0000, com o objetivo de restabelecer a decisão proferida
pelo Juízo a quo no sentido de determinar o prosseguimento da persecução penal
em face dos mencionados recorridos. Em 6 de fevereiro de 2019 o Excelentíssimo
Sr. Ministro do Superior Tribunal de Justiça e Relator do Agravo, Rogério Schietti
Cruz, converteu o mencionado instrumento de agravo em Recurso Especial, afinal
julgado pela Terceira Seção, com fulcro no artigo 14, II, do Regimento Interno
do STJ e também em consideração aos precedentes da Corte Interamericana de
Direitos Humanos.

2 Atentados do Riocentro: ideias iniciais


[…] all those who were deported, executed or massacred, have none
but us to think of them. If we stopped thinking of them, we would

182 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019
O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

complete their extermination; they would bedefinitively annihilated...


Those who have vanished forever now exist on through us in the
devoted faithfulness of our memory; were we to forget them..., they
would simply cease to be. Should we even begin to forget the ghetto
fighters, they would be murdered a second time.4
Do filósofo francês Vladimir Jankélévitch em “L’imprescriptible.
Pardonner? Dans l’honneur et la dignité”

Elementos centrais na discussão levada ao conhecimento do Poder Judiciário


no caso dizem respeito, inicialmente, à inserção das condutas cometidas pelos
réus no rol dos crimes contra a humanidade segundo os parâmetros sedimentados
ao longo do processo evolutivo do direito consuetudinário internacional, bem como
na compreensão da ideia de jus cogens. Assim sendo, e por via de consequência,
acaso considerados os atos praticados no Riocentro em 1981 como crimes de
lesa-humanidade, também a imprescritibilidade que caracteriza tais espécies de
delitos deve ser reconhecida. Em relação à evolução histórica da noção sobre os
crimes contra a humanidade (e não necessariamente do ponto de vista normativo,
o que se verá mais adiante), alguns dos primeiros registros no uso da expressão
localizam-se no período da primeira guerra mundial, mais especificamente no ano de
1915, quando o genocídio cometido pelo Império Otomano contra minorias cristãs
provoca reação conjunta dos países aliados da Tríplice Entente (Rússia, França e
Grã-Bretanha) e que, ao protestar, expressamente avaliam os termos propostos pela
Rússia, quais sejam, crimes contra a cristandade e contra a civilização, alterando-o
em sua manifestação final para Crimes contra a Humanidade e contra a Civilização,
exatamente sob a preocupação de que a utilização dos termos originalmente
propostos poderia conduzir à intensificação da perseguição contra as minorias
cristãs, já em situação humanitária muito difícil, à época (JONES, 2011, p. 538).
No caso da ditadura brasileira e as dinâmicas repressivas cometidas
especialmente durante o período mais letal do regime, a característica comum
entre os casos mais significativos de crimes contra a humanidade, ou seja, ataques
sistemáticos às populações civis por motivações religiosas, políticas etc., exsurge de
modo cristalino. Logo, não há como evitar os debates que envolvem o conjunto de
condutas criminosas perpetradas pelos responsáveis, à época, atos tais revelados
por meio do homicídio qualificado tentado, fabrico, posse e transporte de explosivos,

4
[...] todos os que foram deportados, executados ou massacrados não têm senão a nós para por eles
pensar. Se assim não o fizéssemos, concluiríamos seu extermínio; e eles seriam novamente aniquilados
de modo definitivo... Aqueles que desapareceram para sempre hoje existem somente por meio de nós na
devoção fiel à nossa memória; se os esquecêssemos, eles simplesmente deixariam de existir. Se esque-
cêssemos os guetos, tais vítimas seriam assassinadas pela segunda vez. [...] (Livre tradução do autor).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019 183
Flávio de Leão Bastos Pereira

ao que se somam a associação criminosa, fraude processual e favorecimento


pessoal, expressamente reconhecidos pelo Ministro Relator. A subsunção de tais
condutas à tipificação de crimes contra a humanidade requer algumas considerações
analisadas de forma detalhada no voto ora comentado.
O crime contra a humanidade é atualmente classificado ao lado dos crimes de
genocídio, crimes de guerra e crime de agressão como um dos crimes internacionais
(core crimes) e, conforme artigo 1º da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos
Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade (1968),5 também imprescritível.
Os principais debates travados no âmbito do Poder Judiciário em relação ao
entendimento das condutas delituosas relacionadas ao período ditatorial (1964-
1985) que podem ser tipificadas como crimes contra a humanidade e, por via de
consequência, imprescritíveis, apresentam como principais aspectos enfrentados:
(i) a inserção de dada conduta criminosa no rol dos crimes de lesa-humanidade e,
assim, alcançada pela imprescritibilidade; (ii) incidência da Lei de Anistia (Lei nº
6.683/79), especialmente diante das decisões exaradas pelo Supremo Tribunal
Federal na ADPF nº 153 e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso
Gomes Lund vs. Brasil; (iii) obrigação dos Estados em investigar, processar e punir
perpetradores de crimes internacionais; (iv) comprometimento do Estado brasileiro
em reconhecer o crime contra a humanidade, ainda que não tenha formalmente
aderido e ratificado a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra
e dos Crimes contra a Humanidade de 1968.
O voto exarado pelo Ministro Relator no Recurso Especial nº 1.798.903-RJ
enfrentou referidos questionamentos com profundidade e sob importantes referenciais
jurisprudenciais, como se verá.

3 Atentados do Riocentro: crimes contra a humanidade?


A abordagem estabelecida no voto pelo Ministro Relator no sentido de enfrentar
a questão de enquadrar-se ou não nas condutas cometidas nos atentados de 1981
no Centro de Convenções do Riocentro traz à luz importante e recente decisão exarada
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 15 de março de 2018 no caso
Wladimir Herzog e Outros vs. Brasil. Referida decisão (CORTE INTERAMERICANA
DE DIREITOS HUMANOS, 2018) estabeleceu importante precedente ao determinar
a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela não investigação e

5
Adotada pela Resolução nº 2.391 da Assembleia Geral das Nações Unidas em 26 de novembro de 1968
e em vigor a partir de 11 de novembro de 1970 (UNITED NATIONS, 1968).

184 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019
O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

punição dos responsáveis pela tortura e morte de Wladimir Herzog, bem como por
violar o direito de sua família em conhecer a verdade, além da violação do direito
à integridade pessoal de seus familiares. A morte de Herzog, resultado da ação
das estruturas da repressão organizadas para o combate à oposição ao regime,
foi considerada crime contra a humanidade. O Estado brasileiro foi condenado a
investigar e punir os agentes responsáveis, bem como por ter-se eximido de tal
obrigação com fundamento na Lei de Anistia, devendo reconhecer a imprescritibilidade
decorrente da natureza de crime de lesa-humanidade reconhecida no caso Herzog, na
medida em que seu assassinato mediante tortura se deu no âmbito de um sistema
repressivo organizado e atuante contra parcela da população civil. Neste sentido, o
cotejo dos atos cometidos por setores resistentes e contrários à abertura política
no ano de 1981, com as balizas históricas e jurídicas internacionais que definem o
crime contra a humanidade, permite vislumbrar com certa clareza a gravidade das
condutas praticadas, tanto no caso Herzog quanto no caso Riocentro.
Os crimes contra a humanidade são previstos em sua origem pelo denominado
direito de Haia, ou seja, na Convenção de Haia de 1907; o final da Segunda Guerra
Mundial tem como uma de suas consequências a realização dos primeiros tribunais
criminais internacionais da história (considerando-se as frustradas tentativas após
o término da Primeira Guerra Mundial de realização de tribunais que julgassem os
criminosos de guerra atuantes naquele conflito – a chamada primeira onda dos
tribunais criminais internacionais6), ainda que contestados em relação a certos
aspectos. Assim, a Carta de Londres (UNITED NATIONS ORGANIZATION, 1945)
conferiu a base jurídica para a punição, pelo Tribunal Militar Internacional de
Nuremberg (INMT), dos crimes contra a humanidade perpetrados pelo regime cujos
réus representavam sua estrutura diretiva, em seu artigo 6º, alínea “c”. Também
o Tribunal Militar Internacional para o Extremo-Oriente (Tribunal de Tóquio), com
fundamento na Carta do Tribunal Internacional Militar para o Extremo Oriente (UNITED
NATIONS ORGANIZATION, 1946), define crimes contra a humanidade (artigo 5º, “c”).
Com a realização dos tribunais criminais internacionais ad hoc no período pós-guerra
fria, especialmente o Tribunal Criminal Internacional para Ruanda (Resolução nº

6
Os julgamentos de Leipzig e de Istambul consistiram nas primeiras tentativas de definir, processar e
julgar responsáveis pela prática de crimes contra a humanidade em conflitos internacionais. Com pe-
nas lenientes e anistias concedidas aos poucos condenados, não são reconhecidos atualmente como
tentativas bem-sucedidas, embora constituam do ponto de vista histórico certo avanço na mentalidade
e na cultura jurídica internacional. Sobre o tema, manifestou-se Hans Kelsen nos seguintes termos: [...]
Internationalisation of the legal procedure against war criminals would have the great advantage of making
the punishment, to a certain extent, uniform. If war criminals are subjected to various national courts, as
provided for in Article 229 of the Treaty of Versailles [of 1919], it is very likely that these courts will result
in conflicting decisions and varying penalties […] (CASSESSE, 1998).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019 185
Flávio de Leão Bastos Pereira

955/1994, do Conselho de Segurança das Nações Unidas) e o Tribunal Criminal


Internacional para a ex-Iugoslávia (Resolução nº 827 do Conselho de Segurança das
Nações Unidas, de 25 de maio de 1993), a tipificação internacional do crime contra
a humanidade se consolida com a aprovação do Estatuto de Roma em 17.7.1998
(INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 1998), especialmente por meio da tipificação
dos crimes contra a humanidade em seu artigo 7º passível de ser cometido sob
diversas condutas, dentre as quais o conjunto de ações componentes de ataques
generalizados ou sistemáticos voltados contra populações civis e consistentes em
condutas como homicídios, atos desumanos que dolosamente imponham grande
sofrimento a tais populações, bem como causem grave dano à sua integridade física
ou saúde física ou mental. Também a prática de atos múltiplos contra populações
civis decorrentes de políticas de Estado ou de organizações que assim atuem para
efetivar dada política de Estado. Portanto, tratamos aqui, de uma nova consciência
fruto do processo evolutivo moral e jurídico, consuetudinário e posteriormente
positivado, gerador de precioso cabedal de cultura jurídica a proteger a dignidade
humana tão profundamente violada por forças das infames dinâmicas das guerras.
Adam Jones explica tal processo de tomada de consciência, citando o fundador da
organização internacional da Cruz Vermelha Internacional, Henri Dunant:

[…] Leipzig, Constantinople, Nuremberg, Tokyo – the move towards


tribunals for war crimes and “crimes against humanity” reflected
the growing institutionalization and codification of humanitarian
instruments during the latter half of the nineteenth century. This was
evident in the formative efforts of Henri Dunant and his International
Committee of the Red Cross, founded in 1864. The Red Cross was a
pioneering institution in addressing suffering that offends the human
conscience. Leaders were also becoming aware of “crimes against
humanity” (JONES, 2011, p. 533).7

Tais condutas foram especificadas no voto do Ministro Relator quando


desenvolve de maneira solar a evolução do entendimento sobre os crimes contra
a humanidade a partir do Direito de Haia em 1907 e demonstrando o percurso
do direito internacional também consuetudinário no amadurecimento deste core
crime consubstanciado nos crimes contra a humanidade. É na raiz do Direito Penal

7
Em português: […] Leipzig, Constantinopla, Nuremberg, Tóquio – a visão sobre os tribunais por crimes de
guerra e “crimes contra a humanidade” refletia a crescente institucionalização e codificação de instrumen-
tos humanitários durante a segunda metade do século XIX. Isso ficou evidente nos esforços formativos de
Henri Dunant e seu Comitê Internacional da Cruz Vermelha, fundado em 1864. A Cruz Vermelha foi uma
instituição pioneira na abordagem do sofrimento que ofende a consciência humana. Os líderes também
estavam se conscientizando sobre os “crimes contra a humanidade” [...]. (livre tradução do autor).

186 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019
O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Internacional que podemos constatar a gênese de um fenômeno consistente


na assunção de um papel de violador da dignidade e das garantias humanas e
que potencializará o Direito Internacional dos Direitos Humanos; o Direito Penal
Internacional e, principalmente, a visão do jus cogens. Marcos Zilli, ao refletir
sobre o surgimento de uma justiça penal internacional, bem explica com clareza
tal fenômeno:

[...] A gravidade e a dimensão das violências praticadas não eram


captadas pelas formas jurídicas tradicionais e, portanto, não encon-
travam eco nos padrões morais usuais. Ademais, em muitos casos
as violências eram estimuladas, senão protagonizadas, pelo próprio
Estado que, para tanto, estabelecia um complexo aparato organizado
de poder. Alimentadas pela intolerância, estas estruturas executa-
vam políticas de perseguição, de aniquilamento e de extermínio. Esta
conjugação de fatores leva à construção de novas categorias jurídi-
cas que procuram dar conta dos novos acontecimentos. A construção
jurídico-penal do genocídio é o exemplo mais notório [...] (ZILLI, 2014,
p. 533)

Tanto no caso Wladimir Herzog, julgado pela Corte Interamericana quanto nos
fatos ocorridos por ocasião dos atentados de 1981 no Riocentro, as circunstâncias
mencionadas pelo Relator do Recurso Especial apresentado pelo Ministério Público
Federal ao Superior Tribunal de Justiça encontram-se presentes. Como se verá
adiante, argumentos contrários ao entendimento de se tratar de crimes contra a
humanidade foram considerados, mas não resistem a uma análise mais acurada.
Por exemplo, crítica veiculada no sentido de que os militares pertencentes à
corrente mais radicalizada do regime ditatorial e que desejavam minar o processo de
abertura política em curso à época não representavam o Estado e suas estruturas
oficiais. Tal argumentação, contudo, enfrentada também no voto sob comento,
não resiste a alguns contrapontos bem elencados no referido voto, v.g., ao se
considerar que: (i) a caracterização de crimes contra a humanidade prescinde da
exclusividade de um Estado organizado totalmente em suas políticas de ataques
sistemáticos contra populações civis por motivações políticas, religiosas, nacionais
etc.; (ii) ainda que se considere que o regime de exceção, durante os anos do
governo Geisel, buscasse implantar gradativamente a abertura política, o fato de
que parcela daqueles agentes (a chamada linda dura) que davam sustentação
operacional à repressão não aceitava referida visão (a abertura do regime) já seria
suficiente para fazer caracterizar a prática de crime de lesa-humanidade no caso
dos atentados do Riocentro. Neste sentido, o Relator menciona a ocorrência e
prática de cerca de 40 atentados a bombas cometidos pela citada linha radical

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019 187
Flávio de Leão Bastos Pereira

de pensamento, participante do regime ditatorial, contra a população civil, no


período de um ano; e, diga-se de passagem que tais atentados eram planejados e
cometidos na sequência de períodos nos quais era pública e notória a política de
prática sistemática de torturas e homicídios em relação aos dissidentes políticos, à
época. Assim, bem sedimentada a fundamentação pelo Ministro Relator, no sentido
da não descaracterização da prática de crimes contra a humanidade. Do ponto de
vista da melhor e mais autorizada doutrina, alguns parâmetros devem ser trazidos
à colação e bem esclarecem a solidez dos argumentos expendidos no sentido de
destacar os elementos presentes nos atentados do Riocentro, próprios dos crimes
contra a humanidade. Ditos parâmetros doutrinários, contudo, apresentam certo
consenso sobre os elementos que estabelecem o perfil deste crime internacional
e que, segundo a noção apresentada por Antonio Cassesse, constitui um conjunto
de ofensas particularmente odiosas, consistentes em sérios ataques à dignidade
humana e/ou grave humilhação ou degradação de um ou mais seres humanos.
Não se cuida de eventos isolados ou esporádicos, mas parte de uma política
governamental ou conjunto de atrocidades sistemáticas, massivas, consentidas e
toleradas por um governo ou autoridade de fato. Cuida-se de condutas proibidas e
punidas tanto em períodos de guerra como em tempos de paz. Apesar da exigência
de nexo com um conflito armado, em 1945, o direito costumeiro internacional não
mais atribui qualquer importância a tal requisito. Em relação às vítimas, devem
ser civis ou mesmo militares que não tenham participado de combates ou, ainda,
que não mais participem das hostilidades. Cassesse menciona, ainda, os inimigos
combatentes que, tampouco, participem das hostilidades (CASSESSE, 2003, p. 64).
Interessante abordagem é apresentada por William Schabas, ao chamar a
atenção para o fato de que a definição atual de crimes contra a humanidade nada
mais traduz do que certa expansão da definição do crime de genocídio, nos termos
seguintes:

The law applicable to atrocities that may not meet the strict definition
of genocide but that cry out for punishment has been significantly
strengthened. Such offences usually fit within the definition of ‘crimes
against humanity’, a broader concept that might be viewed as the
second tier of the pyramid. According to the most recent definition,
comprised within the Rome Statute of the International Criminal Court,
crimes against humanity include persecution against any identifiable
group or collectivity on political, racial, national, ethnic, cultural,
religious, gender or other grounds that are universally recognized as
impermissible under international law. This contemporary approach
to crimes against humanity is really no more than the ‘expanded’

188 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019
O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

definition of genocide that many have argued for over the years.
(SCHABAS, 2009, p. 11-12)8

De fato, a noção atual de crimes contra a humanidade, inclusive consagrada


pelo Estatuto de Roma, apresenta alguns pontos de contato com o também crime
de genocídio, como no caso das perseguições motivadas por raça, religião ou
nacionalidade. No caso do Riocentro, ressalte-se, o motivador predominante foi a
orientação política. Não sem razão, o Ministro Relator menciona a motivação dos
autores do atentado no sentido de responsabilizar os movimentos de esquerda,
à época já praticamente dizimados, para restaurar o recrudescimento do regime,
conforme se lê à página 10, em trecho destacado, nos termos seguintes:

Assere que o intuito dos acusados era “forjar um ‘ato terrorista sub-
versivo da esquerda armada’, atribuindo o atentado a bomba falsa-
mente a uma organização da militância contra o regime de exceção, e
assim justificar um novo endurecimento da ditadura militar brasileira
diante da ‘ameaça comunista’” (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
2019).

Restam claros, pois, no caso do Riocentro, os objetivos políticos buscados


pelos responsáveis pela concepção e execução malsucedida dos atentados e que,
para tanto, não titubearam em admitir a morte de milhares de vítimas, durante a
celebração do dia do trabalho, agentes que compunham as estruturas oficiais do
Estado brasileiro.

4 O Brasil reconhece os crimes contra a humanidade e sua


imprescritibilidade? O diálogo com o Direito Internacional
A questão posta envolve temática normalmente presente nos debates travados
entre internacionalistas, globalistas e soberanistas. A compreensão dos parâmetros
envolvidos neste ponto demanda repisar conceitos já há muito estratificados
pelo Direito Internacional e seu diálogo com a ordem jurídica pátria. À evidência,

8
Em português: [...] A lei aplicável às atrocidades que podem não atender à definição estrita de genocídio,
mas que clamam por punição, foi significativamente fortalecida. Tais ofensas geralmente se enquadram
na definição de ‘crimes contra a humanidade’, um conceito mais amplo que pode ser visto como ocupando
o segundo nível da pirâmide. De acordo com a definição mais recente, incluída no Estatuto de Roma do
Tribunal Penal Internacional, os crimes contra a humanidade incluem perseguição contra qualquer grupo
ou coletividade identificável por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos, de gê-
nero ou outros que sejam universalmente reconhecidos como inadmissível pelo direito internacional. Essa
abordagem contemporânea dos crimes contra a humanidade não é mais do que a definição “expandida”
de genocídio que muitos têm discutido ao longo dos anos. [...] (Livre tradução do autor).

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019 189
Flávio de Leão Bastos Pereira

exatamente por ser o Estado brasileiro soberano e assim reconhecido, sua aderência
a qualquer convenção ou tratado internacional, trate-se do sistema global ou do
sistema regional interamericano, além de sua participação nas organizações
internacionais, resultam especificamente de sua livre decisão. E, quando assim
decide, a própria Constituição da República de 5 de outubro de 1988, assim como
a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, estabelece vias de diálogo entre
as esferas jurídicas nacional e internacional. Aliás, diga-se de passagem, a Carta
Republicana de 1988 constitui sistema aberto e não encerrado em si próprio. Seu
§2º do artigo 5º, também adjetivado por juristas como a cláusula de abertura da
Constituição, se revela ao intérprete com cristalina transparência ao inserir no rol
de fontes das quais emanam os direitos humanos fundamentais não apenas os
direitos e garantias previstos em seu texto, mas também aqueles decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados e dos tratados internacionais aos quais
a República brasileira tenha aderido. E, reiterando a preservação da soberania do
Estado brasileiro, pode este se retirar a qualquer momento de tratado ou convenção
ao qual tenha eventualmente aderido por meio do instrumento da denúncia. Aliás,
o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se manifestar neste sentido:

Gostaria (...) de tecer algumas considerações sobre a Convenção da


Haia e a sua aplicação pelo Poder Judiciário brasileiro. (...) A primei-
ra observação a ser feita, portanto, é a de que estamos diante de
um documento produzido no contexto de negociações multilaterais
a que o País formalmente aderiu e ratificou. Tais documentos, em
que se incluem os tratados, as convenções e os acordos, pressu-
põem o cumprimento de boa-fé pelos Estados signatários. É o que
expressa o velho brocardo “Pacta sunt servanda”. A observância des-
sa prescrição é o que permite a coexistência e a cooperação entre
nações soberanas cujos interesses nem sempre são coincidentes.
Os tratados e outros acordos internacionais preveem em seu próprio
texto a possibilidade de retirada de uma das partes contratantes se
e quando não mais lhe convenha permanecer integrada no sistema
de reciprocidades ali estabelecido. É o que se chama de denúncia do
tratado, matéria que, em um de seus aspectos, o da necessidade de
integração de vontades entre o chefe de Estado e o Congresso Nacio-
nal, está sob o exame do Tribunal. (...) Atualmente (...) (STF, 2009).

Neste diapasão, indaga-se se o Estado brasileiro reconhece o crime contra a


humanidade, considerando-se que não vigora norma penal interna que tipifique tal
conduta, muito embora algumas proposições apresentadas ao Congresso Nacional
aguardem sua sequência, como por exemplo o PLS nº 236/2012, sobre o Projeto
de novo Código Penal, de relatoria do eminente jurista Luiz Carlos dos Santos

190 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019
O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Gonçalves e que tipifica o crime contra a humanidade (SENADO FEDERAL, 2012).


Assim, em não vigorando no território nacional qualquer disposição que tipifique
este importante core crime, cabe a averiguação sobre possível diálogo entre as
ordens jurídicas pátria e internacional, de modo a que se evite qualquer lacuna
no tratamento de casos que possam envolver o cometimento de crimes contra a
humanidade e que, como já demonstrado, é perfeitamente possível segundo a vigente
ordem constitucional. O voto exarado pelo Ministro Relator no caso ora sob comento
discorre com precisão sobre tal aspecto. Num primeiro momento de sua análise,
é de pronto mencionada a vigência da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos
Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade de 1968 e que, exatamente
por ter sido aprovada pela Resolução nº 2.391 (XXIII) da Assembleia Geral das
Nações Unidas durante o auge do período mais violento da ditadura civil-militar
instaurada a partir de 1964, a ela não aderiu o Estado brasileiro. O Relator, ao
abordar tal aspecto, tem por escopo tratar de eventual imprescritibilidade dos fatos
relacionados ao caso do Riocentro, se considerados crimes contra a humanidade.
Antes de tangenciarmos tal aspecto temporal extintivo do direito de punir,
cabe a reflexão sobre o reconhecimento, ou não, pelo Estado brasileiro, sobre
suposta vigência das leis internacionais em seu território, já que não tenha ocorrido
qualquer formal reconhecimento e adesão do Brasil a eventual convenção sobre
crimes contra a humanidade. E, sob tal ângulo, novamente ressalta a perspicácia
e a qualidade da opinio juris e dos argumentos expendidos e que demonstram
a adequada visão de integração entre o Direito pátrio e o internacional. Neste
sentido, observa o Ministro Relator, com razão, que o reconhecimento dos crimes
contra a humanidade e de sua imprescritibilidade decorrem do direito internacional
consuetudinário, vale dizer, constitui autêntico princípio de direito internacional,
incorporado aos costumes internacionais, uma vez demonstrada a presença de seus
dois inafastáveis elementos: a reiterada postura dos Estados em respeitar, observar
e atuar conforme o costume; e o reconhecimento e a crença dos Estados de que
tal costume constitui diretriz vinculante e não apenas um instrumento de soft law.
E, consolidando no plano internacional tal evolução da visão sobre os crimes contra
a humanidade, as Nações Unidas aprovaram duas resoluções: a primeira aprovada
pela Assembleia Geral da ONU, Res. nº 95 (1946), e que acolheu os princípios
de Direito Internacional consagrados pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg,
bem como aqueles decorrentes de suas sentenças. Ressalte-se, neste passo, a
definição de crimes contra a humanidade estabelecida pelo artigo 6º do referido
Estatuto de Nuremberg: constituem crimes contra a humanidade o assassinato,
extermínio, escravização, deportação e outros atos desumanos cometidos contra

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019 191
Flávio de Leão Bastos Pereira

qualquer população civil, antes ou durante a guerra; ou perseguições por motivos


políticos, raciais ou religiosos em execução ou em conexão com qualquer crime
dentro da jurisdição do Tribunal, violando ou não a lei doméstica do país em que
foram cometidos (YALE LAW SCHOOL, s.d.). A segunda resolução das Nações
Unidas mencionada pelo Relator é a Res. da Assembleia Geral da ONU nº 3.074
(XXVIII), de 3 de dezembro de 1973 (UNITED NATIONS ORGANIZATION, 1973), e
que expressamente estabelece que:

Os crimes de guerra e os crimes de lesa-humanidade, onde for ou


qualquer que seja a data em que tenham sido cometidos, serão ob-
jeto de uma investigação, e as pessoas contra as quais existam pro-
vas de culpabilidade na execução de tais crimes serão procuradas,
detidas, processadas e, em caso de serem consideradas culpadas,
castigadas.
[...]
Os Estados não adotarão disposições legislativas nem tomarão me-
didas de outra espécie que possam menosprezar as obrigações inter-
nacionais que tenham acordado no tocante à identificação, à prisão,
à extradição e ao castigo dos culpáveis de crimes de guerra ou de
crimes contra a humanidade.

Portanto, o sistema global protetivo dos direitos humanos, ao reconhecer as


diretrizes citadas, formaliza-as em resoluções da Assembleia Geral das Nações
Unidas, espanando qualquer dúvida acerca da imprescritibilidade dos crimes contra
a humanidade como verdadeiro costume internacional. Ademais, para além da ideia
de costume enquanto fonte do Direito Penal Internacional, o Ministro Relator é
preciso ao recorrer aos parâmetros do jus cogens para qualificar a imprescritibilidade
dos crimes contra a humanidade e a obrigação dos Estados em punir referido
crime internacional ao mencionar importante decisão da Corte Interamericana de
Direitos Humanos no caso Almonacid Arellano e Outros vs. Chile, e que diz respeito
à reconhecida responsabilidade do Estado chileno pela não investigação sobre
a execução extrajudicial do professor de ensino básico Luis Alfredo Almonacid
Arellano pelo regime ditatorial de Augusto Pinochet, bem como pela não punição
dos responsáveis pela mencionada execução e não ressarcimento aos respectivos
familiares (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2006). Referida
decisão pelo sistema interamericano estabeleceu a imprescritibilidade do crime
praticado contra Almonacid Arellano, posto reunir todos os elementos típicos de
crime de lesa-humanidade, bem como reconheceu a Corte Regional que o caso
apresenta autêntico exemplo de obrigação de investigação, punição e reparação
fundamentada em jus cogens, ou seja, em obrigação de Direito Internacional geral

192 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019
O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

fulcrada em norma peremptória do Direito Internacional. Significa afirmar que, para


além do próprio direito consuetudinário e também direito positivado, internacionais,
cuidou o caso decidido pela Corte em face do Estado chileno – e também é o caso
dos atentados do Riocentro – de obrigação inderrogável e imposta a todos os Estados.
Eis aqui o entendimento de norma internacional própria de jus cogens:
norma internacional impositiva, inderrogável por vontade dos Estados, conforme
determinado pela Convenção de Viena de 1969 em seu artigo 53. Somente nova
norma peremptória, de Direito Internacional, pode derrogar uma anterior. Jamais
o costume ou a norma positivada. Neste sentido, Antonio Gómez Robledo, citado
por Mazzuoli: “[...] somente uma norma de jus cogens posterior revoga outra de jus
cogens anterior, não havendo a possibilidade de normas sem esse status revogá-la
por qualquer meio [...]” (ROBLEDO apud MAZZUOLI, 2016, p. 184).
E o fundamento para tal grau de importância conferida às normas provenientes
do jus cogens repousa na importância dos valores protegidos e na gravidade de
sua violação, consistindo em verdadeira exceção à característica predominante na
horizontalidade do Direito Internacional. Neste caso, pode-se vislumbrar mesmo
um critério hierárquico a tutelar a importância das normas peremptórias de Direito
Internacional. Explica Jankov:

A racionalidade dessa categoria de obrigações segundo a Corte In-


ternacional de Justiça fundamenta-se na “noção da importância dos
direitos envolvidos, segundo a qual todos os Estados podem ser con-
siderados como portadores de interesse jurídico na sua proteção”.
(Barcelona Traction, Light & Power Co. [Bélgica v. Espanha], Corte
Internacional de Justiça – Judgment of Feb. 5,1970). Assim, como
as obrigações erga omnes, os crimes internacionais recebem essa
designação, pois os atos que sancionam são considerados de tal im-
portância para a comunidade internacional que, ao serem cometidos,
geram a responsabilidade individual (JANKOV, 2009, p. 53).

Mas cabe então aqui a seguinte indagação: o Brasil, para efeito de reco-
nhecimento dos atentados do caso Riocentro como crimes contra a humanidade,
reconhece tal costume? Neste sentido, o Estado brasileiro firmou em 1914 a
Convenção sobre Leis e Costumes de Guerra Terrestre (HAIA, 1907), pela qual
reconheceu o caráter normativo dos princípios do jus gentium consagrados pelo
Direito Internacional consuetudinário reconhecidos pelos Estados soberanos. Como
bem enfatiza no voto sob análise do Ministro Relator, o Brasil desde o início do
século XX reconhece a força normativa destes princípios.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019 193
Flávio de Leão Bastos Pereira

Em sentido contrário, foi impetrado Habeas Corpus perante o Tribunal Regional


Federal da 2ª Região em cujo bojo argumentou-se pela não aplicação de decisão de
tribunal alienígena como norma cogente. Referido argumento, a nosso ver, posição
também sufragada pelo Ministro Relator, não resiste diante do fato, já apontado
anteriormente, de que o Brasil adotou os princípios gerais de Direito Internacional,
incorporando-os às normas e ao sistema jurídico interno, ao firmar a Convenção de
Leis e Costumes de Guerra Terrestre, como já enfatizado, que também constitui
norma internacional de enfrentamento às violações e crimes contra a humanidade.
Referido movimento e intenção do Estado brasileiro é posteriormente confirmado e
consolidado quando adere ao Estatuto de Roma (1998), ratificado no ano de 2002
pelo Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002.
Os argumentos contrários apresentados ao longo do processamento do caso
ora analisado envolvem, resumidamente, os seguintes pontos: (i) o caso Riocentro já
havia sido objeto de arquivamento pelo Superior Tribunal Militar; (ii) a incidência da
Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79); (iii) a não internalização de normas internacionais,
especialmente a Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e
dos Crimes contra a Humanidade; e (iv) a não configuração dos fatos ocorridos
no caso do Riocentro, como crime contra a humanidade. Tais argumentos foram
afastados na medida em que: (i) o Estado brasileiro tem a obrigação de investigar
e punir os crimes contra a humanidade, inclusive aqueles praticados pelo regime
de exceção que vigorou entre 1964 e 1985; (ii) o Brasil formalmente reconheceu,
ainda, a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos quando ratificou
em 1998 a cláusula facultativa de jurisdição obrigatória prevista pelo artigo 62 do
Pacto Interamericano de Direitos Humanos (1969), o que o obriga a observar e
fazer cumprir as determinações exaradas pela Corte no caso Gomes Lund vs. Brasil
(guerrilha do Araguaia); (iii) a mesma Corte Interamericana de Direitos Humanos
decidiu, no caso Velásquez Rodrigues vs. Honduras (1987), que normas internas
que afastam a punibilidade por crimes de lesa-humanidade cometidos por ditaduras
são incompatíveis com as garantias consagradas pela Convenção Interamericana
de Direitos Humanos; (iv) as condutas verificadas no caso Riocentro constituem
crimes de lesa-humanidade e, portanto, são imprescritíveis, não sendo juridicamente
possível a incidência do instituto da extinção da punibilidade com fundamento no
artigo 107, IV, do Código Penal; (v) para que ocorra a caracterização de crime contra
a humanidade, não é imprescindível a existência de uma política oficial, sendo
suficiente a prática de atos de lesa-humanidade por “setores” do Estado; (vi) os
crimes de fraude processual e favorecimento pessoal, que também exsurgem da
análise dos fatos do caso Riocentro, são de natureza permanente; e, finalmente,

194 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019
O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

(vii) as tentativas em se evitar investigações, processamentos e eventuais punições


pelos responsáveis pelos atentados ocorridos em 1981 no centro de convenções
em Jacarepaguá (Riocentro) foram também encetadas por autoridades oficiais.
Marlon Alberto Weichert bem detalha a obrigação dos Estados em investigar
e punir perpetradores de crimes contra a humanidade, até por força de que tal
obrigação constitui jus cogens, nos termos seguintes:

O direito internacional dos direitos humanos assentou – ao menos


desde a aprovação dos princípios do Estatuto de Nüremberg na pri-
meira Assembleia Geral das Nações Unidas – a imprescindibilidade
da persecução penal de autores de graves violações aos direitos hu-
manos, sobretudo quando qualificados como crimes contra a huma-
nidade. Como consequência desse princípio geral, normas legais que
direta ou indiretamente sejam causa de impunidade em face desses
atos (leis de anistia, foros militares ou especiais, prazos prescricio-
nais etc.) são reputadas inválidas pela comunidade internacional,
com destaque para a jurisprudência da Corte Interamericana de Direi-
tos Humanos (WEICHERT, 2014, p. 245).

Finalmente, vem do Supremo Tribunal Federal, em diversas ocasiões nas


quais a temática da extradição foi analisada por seus Ministros, a sedimentação
do entendimento de que não existe um direito constitucional à prescrição, como
enfatizou o Ministro Edson Fachin nos autos do processo de Extradição nº 1.362/
DF, também lembrado pelo Ministro Rogério Schietti Cruz, do Superior Tribunal de
Justiça, posição reafirmada pelo Estado brasileiro quando reconheceu a jurisdição
do Tribunal Penal Internacional por meio da aprovação da Emenda Constitucional
nº 45/2004 e que inseriu tal disposição na Carta de 1988 (§4º do artigo 5º).
5 Considerações finais
O Recurso Especial ora analisado, ao cotejar argumentos favoráveis e contrários
ao entendimento do caso Riocentro como crime contra a humanidade, debruçou-se
de modo claro e detalhado sobre as causas que conduziram à sedimentação de um
Direito Penal Internacional, em franco diálogo com o direito internacional dos direitos
humanos na atualidade, especialmente em vista da insuficiência das ordens jurídicas
nacionais em lidar com violações que ofendem a consciência da humanidade de
forma flagrante e irreparável. A mensagem a ser considerada quando da atuação
das estruturas internacionais protetivas da dignidade humana, especialmente das
interpretações relacionadas à preponderância das normas internacionais próprias
de jus cogens, que não devem ceder diante de mecanismos normativos e políticos
que garantem a impunidade pelas violações dos direitos sagrados titularizados por

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019 195
Flávio de Leão Bastos Pereira

todos os seres humanos, é de que se trata de um caminho sem retorno, sob pena
do comprometimento da existência da própria humanidade.
O caso do Riocentro, dentre outros, apresenta significativa importância em
sua elucidação e punição dos responsáveis, para que o Estado brasileiro possa
construir um futuro melhor exatamente em razão de um passado adequadamente
conhecido, discutido e, principalmente, apreendido em suas lições.
Neste sentido, bem caminhou o Superior Tribunal de Justiça em sua funda-
mentação e decisão. Crimes de lesa-humanidade não podem ser esquecidos, sob
pena de perdermos a capacidade de projetar um futuro promissor e democrático.
Recorrendo à visão de George Orwell, recordamos que aquele que controla o passado
controla o futuro. Um controle que deve ser inspirado na justiça, na verdade e na
memória históricas.

The Riocentro Case and the Evolution of the Crime Against Humanity in the International Human
Rights Law
Abstract: The article analyzes the judgment of the Superior Court of Justice – Special Appeal n.
1.798.903-RJ – delivered by Justice Rogerio Schietti Cruz. The analysis now proposed goes beyond
the arguments presented by Justice Schietti, in favor and against the understanding of the facts that
emerge from the circumstances of the events that occurred in Rio de Janeiro in 1981, even during the
term of the State of exception that prevailed in the country between 1964 and 1985, and consistent
in the attempt to carry out bomb attacks by military personnel belonging to the most radical ranks of
the groups that were in power and that were against the redemocartization that was developing at the
time in Brazil. The measures adopted by the Federal Public Prosecution Service, in order to persecute
and punish those responsible for these actions, require clarification on the characterization, or not,
of the events and conduct involved in the episode, as a crime against humanity. In this sense, the
considerations presented here face the evolutionary stages verified in international law, both in its
customary and positive dimensions.

Keywords: Rio-Centro case. Crimes against humanity. Non statute of limitations. International human
rights law.

Referências
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2001. Disponível em: https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,franca-ensinou-tortura-
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196 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019
O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

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Flávio de Leão Bastos Pereira

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Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

PEREIRA, Flávio de Leão Bastos. O Caso Riocentro e a evolução do crime contra


a humanidade no Direito Internacional dos Direitos Humanos. Revista Fórum
de Ciências Criminais – RFCC, Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198,
jul./dez. 2019.

198 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 179-198, jul./dez. 2019
PARECERES
Parecer – Projeto de Lei Anticrime e a
execução da pena após condenação
em segundo grau de jurisdição

Ives Gandra da Silva Martins


Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFMU, do CIEE/O
ESTADO DE SÃO PAULO, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME),
da Escola Superior de Guerra (ESG) e da Escola de Magistratura do Tribunal Regional
Federal – 1ª Região. Professor Honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin
de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia). Doutor Honoris Causa da Universidade de
Craiova (Romênia) e das PUCs-Paraná e Rio Grande do Sul e Catedrático da Universidade
do Minho (Portugal). Presidente do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO – SP;
ex-Presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São
Paulo (IASP).

Sumário: Consulta – Resposta

Consulta
Consulta-me a eminente Deputada Carla Zambelli se os artigos 617-A e 637
do Projeto de Lei Anticrime apresentado pelo Ministério da Justiça e Segurança
Pública estariam em conflito com a decisão do Supremo Tribunal Federal, que,
nas Ações Declaratórias 43, 44 e 45, decidiu que, apenas após o esgotamento
de todas as possibilidades de recurso (trânsito em julgado), é possível o início do
cumprimento da pena.

Resposta
Em face da urgência do pedido, responderei à questão única formulada em
breve opinião legal.
Não pretendo, na presente resposta, firmar juízo de valor sobre as duas
correntes, que se digladiaram no referido julgamento, cujo acórdão ainda não foi
publicado, tendo a tese vencedora mencionada pela ilustre Deputada prevalecido
por 6 votos a 5.
Responderei, exclusivamente, a questão à luz do que disseram os preclaros
magistrados da última instância para, a partir de sua opinião, presumir o futuro
resultado.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 201-207, jul./dez. 2019 201
Ives Gandra da Silva Martins

Estão os referidos artigos citados na consulta assim redigidos:

Art. 617 Ao proferir acórdão condenatório, o tribunal determinará a


execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de
direitos ou pecuniárias, sem prejuízo do conhecimento de recursos
que vierem a ser interpostos.
§1º O tribunal poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a exe-
cução provisória das penas se houver uma questão constitucional ou
legal relevante, cuja resolução por Tribunal Superior possa plausivel-
mente levar à revisão da condenação
§2º Caberá ao relator comunicar o resultado ao juiz competente, sem-
pre que possível de forma eletrônica, com cópia do voto e expressa
menção à pena aplicada.
Art. 637 O recurso extraordinário e o recurso especial interpostos
contra acórdão condenatório não terão efeito suspensivo.
§1º Excepcionalmente, poderão o Supremo Tribunal Federal e o Su-
perior Tribunal de Justiça atribuir efeito suspensivo ao recurso extra-
ordinário e ao recurso especial, quando verificado cumulativamente
que o recurso:
não tem propósito meramente protelatório e
levanta uma questão de direito federal ou constitucional relevante,
com repercussão geral e que pode resultar em absolvição, anulação
da sentença, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva
de direitos ou alteração do regime de cumprimento da pena para o
aberto
§2º O pedido de concessão de efeito suspensivo poderá ser feito
incidentemente no recurso ou através de petição em separado, diri-
gida diretamente ao Relator do recurso no Tribunal Superior e deverá
conter cópias do acórdão impugnado, do recurso e de suas razões,
das contrarrazões da parte contrária, de prova de sua tempestividade
e das demais peças necessárias à compreensão da controvérsia.

Por outro lado, o site de comunicação da Suprema Corte noticiou o seguinte,


concluído o julgamento das referidas ações declaratórias:

STF decide que cumprimento da pena deve começar após esgotamen-


to de recursos
A decisão não afasta a possibilidade de prisão antes do trânsito em
julgado desde que sejam preenchidos os requisitos do Código de
Processo Penal para a prisão preventiva.
Por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que
é constitucional a regra do Código de Processo Penal (CPP) que prevê
o esgotamento de todas as possibilidades de recurso (trânsito em
julgado da condenação) para o início do cumprimento da pena. Nesta
quinta-feira (7), a Corte concluiu o julgamento das Ações Declarató-
rias de Constitucionalidade (ADC) 43, 44 e 54, que foram julgadas
procedentes.

202 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 201-207, jul./dez. 2019
Parecer – Projeto de Lei Anticrime e a execução da pena após condenação em segundo grau de jurisdição

Votaram a favor desse entendimento os ministros Marco Aurélio (re-


lator), Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de
Mello e Dias Toffoli, presidente do STF. Para a corrente vencedora,
o artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP), segundo o qual
“ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem
escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em de-
corrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no cur-
so da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária
ou prisão preventiva”, está de acordo com o princípio da presunção
de inocência, garantia prevista no artigo 5º, inciso LVII, da Consti-
tuição Federal. Ficaram vencidos os ministros Alexandre de Moraes,
Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia, que
entendiam que a execução da pena após a condenação em segunda
instância não viola o princípio da presunção de inocência.
A decisão não veda a prisão antes do esgotamento dos recursos,
mas estabelece a necessidade de que a situação do réu seja indivi-
dualizada, com a demonstração da existência dos requisitos para a
prisão preventiva previstos no artigo 312 do CPP – para a garantia da
ordem pública e econômica, por conveniência da instrução criminal
ou para assegurar a aplicação da lei penal.
O julgamento das ADCs foi iniciado em 17/10 com a leitura do rela-
tório do ministro Marco Aurélio e retomado em 23/10, com as ma-
nifestações das partes, o voto do relator e os votos dos ministros
Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Na ses-
são de 24/10, o julgamento prosseguiu com os votos dos ministros
Rosa Weber, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski. Na sessão de hoje,
proferiram seus votos a ministra Cármen Lúcia e os ministros Gilmar
Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli.
Ministra Cármen Lúcia
A ministra aderiu à divergência aberta na sessão de 23/10 pelo mi-
nistro Alexandre de Moraes, ao afirmar que a possibilidade da exe-
cução da pena com o encerramento do julgamento nas instâncias
ordinárias não atinge o princípio da presunção de inocência. Segundo
ela, o inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal deve ser in-
terpretado em harmonia com os demais dispositivos constitucionais
que tratam da prisão, como os incisos LIV (devido processo legal) e
LXI (prisão em flagrante delito ou por ordem escrita).
A eficácia do direito penal, na compreensão da ministra, se dá em ra-
zão da certeza do cumprimento das penas. Sem essa certeza, “o que
impera é a crença da impunidade”. A eficácia do sistema criminal, no
entanto, deve resguardar “a imprescindibilidade do devido processo
legal e a insuperável observância do princípio do contraditório e das
garantias da defesa”.
Ministro Gilmar Mendes
Em voto pela constitucionalidade do artigo 283 do CPP, o ministro
Gilmar Mendes afirmou que, após a decisão do STF, em 2016, que
passou a autorizar a execução da pena antes do trânsito em julgado,
os tribunais passaram a entender que o procedimento seria auto-
mático e obrigatório. Segundo o ministro, a decretação automática

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 201-207, jul./dez. 2019 203
Ives Gandra da Silva Martins

da prisão sem que haja a devida especificação e individualização do


caso concreto é uma distorção do que foi julgado pelo STF.
Para Mendes, a execução antecipada da pena sem a demonstração
dos requisitos para a prisão viola o princípio constitucional da não
culpabilidade. Ele salientou que, nos últimos anos, o Congresso Na-
cional aprovou alterações no CPP com o objetivo de adequar seu texto
aos princípios da Constituição de 1988, entre eles o da presunção
de inocência.
Ministro Celso de Mello
Ao acompanhar o relator, o ministro afirmou que nenhum juiz do STF
discorda da necessidade de repudiar e reprimir todas as modalidades
de crime praticadas por agentes públicos e empresários delinquen-
tes. Por isso, considera infundada a interpretação de que a defesa
do princípio da presunção de inocência pode obstruir as atividades
investigatórias e persecutórias do Estado. Segundo ele, a repressão
a crimes não pode desrespeitar e transgredir a ordem jurídica e os
direitos e garantias fundamentais dos investigados. O decano desta-
cou ainda que a Constituição não pode se submeter à vontade dos
poderes constituídos nem o Poder Judiciário embasar suas decisões
no clamor público.
O ministro ressaltou que sua posição em favor do trânsito em julgado
da sentença condenatória é a mesma há 30 anos, desde que passou
a integrar o STF. Ressaltou ainda que a exigência do trânsito em jul-
gado não impede a decretação da prisão cautelar em suas diversas
modalidades.
Leia a íntegra do voto do ministro Celso de Mello.
Ministro Dias Toffoli
Último a votar, o presidente do STF explicou que o julgamento diz
respeito a uma análise abstrata da constitucionalidade do artigo 283
do CPP, sem relação direta com nenhum caso concreto. Para Toffo-
li, a prisão com fundamento unicamente em condenação penal só
pode ser decretada após esgotadas todas as possibilidades de re-
curso. Esse entendimento, explicou, decorre da opção expressa do
legislador e se mostra compatível com o princípio constitucional da
presunção de inocência. Segundo ele, o Parlamento tem autonomia
para alterar esse dispositivo e definir o momento da prisão. (grifos
nossos)
Para o ministro, a única exceção é a sentença proferida pelo Tribunal
do Júri, que, de acordo com a Constituição, é soberano em suas de-
cisões. Toffoli ressaltou ainda que a exigência do trânsito em julgado
não levará à impunidade, pois o sistema judicial tem mecanismos
para coibir abusos nos recursos com a finalidade única de obter a
prescrição da pena.

Desta forma, o Supremo Tribunal Federal, por seis votos a cinco, ao decidir
que não poderia haver prisão, em execução de sentença, senão após o trânsito em
julgado, privilegiando o disposto no artigo 5º, inciso LVII, da Lei Suprema, teve, no

204 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 201-207, jul./dez. 2019
Parecer – Projeto de Lei Anticrime e a execução da pena após condenação em segundo grau de jurisdição

pronunciamento do Ministro Toffoli – que reiterou seus posicionamentos anteriores


a favor da tese vencedora –, o voto de desempate. Está o referido dispositivo
constitucional assim redigido:

Art. 5º ...
inciso LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória; ...

A meu ver, a justificação de S. Exa. levou tranquilidade ao Poder Legislativo


Federal, na medida em que declarou que o referido inciso do artigo 5º não é uma
cláusula pétrea, visto que o Código de Processo Penal, em seu artigo 283, permite
prisões independentemente de a decisão judicial ser de qualquer instância. Tem
o artigo 283 a seguinte dicção atual:

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por
ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente,
em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou,
no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão tem-
porária ou prisão preventiva.

Em sua fundamentação, fez questão de realçar que são inúmeras as prisões


sem trânsito em julgado permitidas, como preventiva, provisória, cautelar, civil e
até mesmo administrativa, sem intervenção do Judiciário, como é o caso daquelas
de membros das Forças Armadas.
A sinalização do Ministro Toffoli – em julgamento que foi acompanhado pela
esmagadora maioria da população brasileira – deve ser mantida nestes dois próximos
anos, pois que até a aposentadoria do Ministro Celso de Mello, prevista para fins
de 2020, a composição do Pretório Excelso será a mesma. Minha convicção de
que, dificilmente, qualquer dos Ministros alterará sua posição decorre do fato
de que as referidas ações de controle concentrado vinham sendo amplamente
discutidas em universidades, congressos, livros e artigos de juristas, levando cada
Ministro a um cuidadoso exame dos fundamentos de sua interpretação. Eu mesmo
coordenei livro intitulado “A importância do Direito de Defesa para a Democracia e
a Cidadania”, com Marcos da Costa, tendo a colaboração dos seguintes autores:
Marcos da Costa, Cláudio Lamachia, José Bernardo Cabral, Antonio Claudio Mariz
de Oliveira, René Dotti, Luiz Flávio Borges D’Urso, Arnoldo Wald, Américo Masset
Lacombe, Alberto Toron, Samantha Meyer-Pflug Marques, Ruy Altenfelder, Regina
Beatriz Tavares da Silva, Tales Castelo Branco, Kiyoshi Harada, Dirceo Torrecilhas,

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 201-207, jul./dez. 2019 205
Ives Gandra da Silva Martins

Marilene Talarico Martins Rodrigues, Lenio Streck, Angela Vidal da Silva Martins,
Ana Regina Campos de Sica, Maurício Prazak, Leonardo Garbin, Pierpaolo Bottini,
Marco Aurélio Florêncio Filho, Juliana Abrusio, Cristiano Maronna, Elias Assad,
Carmen Sílvia Valio, Fernanda Marinela, Tatiany Ramalho, Fábio Simantob, Roberta
Amorim Dutra, Ricardo Breier, Ricardo Luiz de Toledo Santos Filho e eu mesmo, em
que o tema foi amplamente debatido.
Ora, no momento em que o julgamento – o mais acompanhado da história
do Brasil – realizou-se, cada um dos supremos julgadores trouxe sua refletida e
definitiva opinião sobre a matéria, razão pela qual a possibilidade de alteração de
seu posicionamento é praticamente nenhuma.
Nada obstante o apaixonado debate entre doutrinadores e juízes a respeito
do tema, quero lembrar dois aspectos que me parecem de particular relevância.
O primeiro deles é que as duas teses jurídicas em questão são consistentes.
A primeira, de que o trânsito em julgado implica a presunção de inocência
até que esse evento ocorra, tem seus seguidores, à luz de um argumento, além
de outros, de fácil compreensão até por não operadores do Direito. Como alguém
inocente, enquanto não transita em julgado uma decisão condenatória, pode cumprir
a execução de pena nesta condição? Como um inocente pode ser preso, como
culpado, sendo ainda inocente?
A tese contrária também se justifica à luz de três fundamentos, entre outros,
igualmente de fácil compreensão para leigos, ou seja: 1) a possibilidade de recorrer-se
a quatro instâncias (1ª, 2ª, STJ e STF) leva muitos processos à prescrição da pena
pela lentidão da justiça; 2) nas duas primeiras instâncias é que se discute toda
a matéria fática; 3) os tribunais superiores (STJ e STF) só reexaminam questões
jurídicas e não mais matéria de fato, salvo fatos novos, relacionada aos processos,
com o que o reexame não impediria a aplicação da pena pela última instância em
que toda a matéria fática pode e deve ser reexaminada.
À evidência, nas duas correntes há inúmeros outros componentes que eu
poderia abordar, mas para efeitos desta breve opinião legal e de sua compreensão,
principalmente, para pessoas não formadas em Direito, apresentei aqueles de
maior facilidade na compreensão.
Hart, em seu famoso livro “The concept of Law” em 1961 (Ed. Clarendon)
declara que “direito é aquilo que a Suprema Corte diz que é”, pois a segurança
jurídica só se obtém pela certeza da decisão judicial na aplicação da Lei. E, no
controle concentrado (ações diretas, declaratórias, de descumprimento de preceito
fundamental ou repercussão geral), a decisão tem efeito impositivo sobre as
instâncias inferiores e sobre a Administração Pública em geral.

206 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 201-207, jul./dez. 2019
Parecer – Projeto de Lei Anticrime e a execução da pena após condenação em segundo grau de jurisdição

Compreende-se, pois, que, em face da harmonia e independência dos poderes,


estabelecidas no artigo 2º da Carta da República, a segurança é proposta pelo
Legislativo e, nos casos expressos previstos na lei suprema, pelo Executivo, mas
a certeza é determinada pelo Judiciário.
Ora, nesta linha, o último voto do Ministro Toffoli abriu indiscutível espaço
para a presunção de legalidade de eventual explicitação legislativa, ao declarar,
por 6 votos a 5 que o “trânsito em julgado” não é cláusula pétrea, para efeitos de
prisão de condenados em segunda instância.
Quando das conversas com os amigos e constituintes Bernardo Cabral,
Ulisses Guimarães e Roberto Campos, assim como com os Ministros Moreira Alves,
Sydney Sanches e Francisco Rezek da Máxima Corte, à época da Constituinte – na
oportunidade, escrevi pequeno livro para 66 constituintes intitulado “Roteiro para uma
Constituição”, veiculado pela Editora Forense – defendia a tese de que os Tribunais
Superiores deveriam ter a função de dar estabilidade às instituições, cabendo às
instâncias inferiores fazer justiça. É o que ocorre com a Suprema Corte dos Estados
Unidos e com os Tribunais Constitucionais dos regimes parlamentares europeus.
Creio que o Pretório Excelso ganharia em relevância perante a nação e deixaria
de ser objeto de manifestações populares, em que o debate ideológico se faz
presente, se sua competência fosse semelhante àquela da maioria dos países em
que a democracia não sofreu ruptura depois da 2ª Guerra, ou seja, exclusivamente
constitucional. Foi o que propugnei naquele opúsculo de 1987.
Pessoalmente, entendo, ao concluir esta breve opinião legal, que, se o
Congresso Nacional aprovar a execução de sentença a partir da decisão de 2ª
instância em matéria penal, por 6 votos a 5, a Suprema Corte confirmará sua
constitucionalidade.
É minha opinião, salvo melhor juízo.
São Paulo, 18 de novembro de 2019.
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
P2019-016 OP LEG CARLA ZAMBELLI – prisão 2ª inst. – IVES

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

MARTINS, Ives Gandra da Silva. Parecer – Projeto de Lei Anticrime e a execução


da pena após condenação em segundo grau de jurisdição. Revista Fórum de
Ciências Criminais – RFCC, Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 201-207, jul./
dez. 2019. Parecer.

R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 201-207, jul./dez. 2019 207
Instruções para os autores

A Revista Fórum de Ciências Criminais – RFCC, ISSN 2319-0795, é um pe-


riódico voltado ao Direito Penal, Processual Penal e Criminologia, bem como a
todas as áreas de conhecimento que permitam uma compreensão mais profunda
das Ciências Criminais. Com um conselho editorial composto por professores das
mais concei­tuadas universidades do país e do exterior, o periódico veicula artigos
doutriná­rios tratando de temas atuais e relevantes. A revista contém, ainda, se-
ções de legis­lação e de jurisprudência, inclusive comentada, pretendendo manter
o leitor atualizado e, assim, tornar-se de leitura obrigatória para aqueles que mili-
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a uma publicação editorial científica. A escrita deve obedecer às novas regras
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Portuguesa, a partir de 1º de janeiro de 2009. As citações de textos anteriores ao
Acordo devem respeitar a ortografia original.
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do: título do artigo (na língua do texto, em espanhol e em inglês), nome do autor,
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artigo, de até 250 palavras (na língua do texto, em espanhol – Resumen, e em
inglês – Abstract), palavras-chave, no máximo 5 (na língua do texto, em espanhol –
Palabras clave, e em inglês – Keywords), sumário do artigo, epígrafe (se houver),

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INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES

texto do artigo, refe­rências. O autor deverá fazer constar, no final do artigo, o local
e a data em que foi escrito o trabalho de sua autoria.
Recomenda-se que todo destaque que se queira dar ao texto seja feito
com o uso de itálico, evitando-se o negrito e o sublinhado. As citações (palavras,
expres­sões, períodos) deverão ser cuidadosamente conferidas pelos autores e/
ou traduto­res; as citações textuais longas (mais de três linhas) devem constituir
um parágrafo independente, com recuo esquerdo de 2 cm (alinhamento justifica-
do), utilizando-se espa­çamento entre linhas simples e tamanho da fonte 10; as
citações textuais curtas (de até três linhas) devem ser inseridas no texto, entre as-
pas e sem itálico. As expressões em língua estrangeira deverão ser padronizadas,
destacando-as em itálico. O uso de op. cit., ibidem e idem nas notas bibliográficas
deve ser evitado, substituindo-se pelo nome da obra por extenso.
Os trabalhos serão selecionados pela Coordenação Acadêmica e pelo
Conselho Editorial da revista. Os originais recebidos e não publicados não serão
devolvidos. Não serão devidos direitos autorais ou qualquer outra remuneração
pela publicação dos trabalhos. O autor receberá gratuitamente um exemplar da
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