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Revista Fórum de
CIÊNCIAS CRIMINAIS
RFCC
DOUTRINA e JURISPRUDÊNCIA SELECIONADA
Coordenação
Marcos Alexandre Coelho Zilli
Confira aqui mais informações
sobre a revista e os sumários
das edições anteriores.
Revista Fórum de
CIÊNCIAS CRIMINAIS
RFCC
REVISTA FÓRUM DE CIÊNCIAS CRIMINAIS – RFCC
Coordenação Acadêmica
Marcos Alexandre Coelho Zilli
Auxiliar Assistente
Eduardo Augusto Pereira
Conselho Editorial
Alicia Gil Gil
Daniel R. Pastor
Davi de Paiva Costa Tangerino
Ela Wiecko V. de Castilho
Fabíola Girão Monteconrado
Felipe Daniel Amorim Machado
Flávio de Leão Bastos Pereira
Inês Virgínia Prado Soares
Janaina Conceição Paschoal
José Carlos Moreira da Silva Filho
José Luis Guzmán Dalbora
Kai Ambos
Maria Thereza Rocha de Assis Moura
Nestor Eduardo Araruna Santiago
Rodrigo Medina Zagni
Sandra Regina Chaves Nunes
Túlio Lima Vianna
Pareceristas ad hoc
Beatriz Correa Camargo (beatrizcamargo@ufu.br)
Bruno Martins Torchia (bruno@brunotorchia.com.br)
Carlos Eduardo de Moraes Domingos (ceduardomd@gmail.com)
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Elisa Maluf (elisalmaluf@yahoo.com.br)
Gabriela Paredes Arcentales (gabriela.parcentales@hotmail.com)
Isac Barcelos (isacbps@gmail.com)
João Finkler (joao_finkler@hotmail.com)
Jorge Paschoal (jorgepaschoal@yahoo.com.br)
Marcelo Vieira (marcelo@realeadvogados.com.br)
Maria Domitila (mmanssur@tjsp.jus.br)
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Os conceitos e opiniões expressas nos trabalhos assinados são de responsabilidade exclusiva de seus autores.
CDD: 341.5
CDU: 343
Sumário
Editorial ...................................................................................................................... 7
DOUTRINA NACIONAL
A criminologia da libertação de Lola Aniyar de Castro e as contribuições de
Ricœur e Dussel
Mauro Guilherme Messias dos Santos.......................................................................... 13
1 A teoria crítica do controle social...................................................................... 13
2 A hermenêutica da crítica das ideologias.......................................................... 17
2.1 Função geral da ideologia................................................................................ 18
2.2 Função de dominação..................................................................................... 19
2.3 Função de deformação.................................................................................... 20
2.4 As quatro proposições de Ricœur..................................................................... 22
3 A necessidade filosófica, e não apenas política, de se escolher um lado............. 23
4 Considerações finais....................................................................................... 28
Referências................................................................................................................. 29
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES
Os impactos do compliance efetivo na responsabilidade administrativa
objetiva da pessoa jurídica na Lei Anticorrupção
Bruno Martins Torchia................................................................................................. 119
1 Introdução...................................................................................................... 119
2 Lei Anticorrupção............................................................................................ 123
3 Compliance.................................................................................................... 125
3.1 Considerações iniciais..................................................................................... 125
3.2 Compliance anticorrupção e criminal compliance............................................... 127
3.3 Procedimento de formulação, implantação e consolidação do programa de
compliance..................................................................................................... 129
3.4 Efetividade do compliance............................................................................... 136
4 A responsabilidade objetiva e os impactos do compliance efetivo na aplicação
das sanções da Lei Anticorrupção.................................................................... 139
5 Considerações finais....................................................................................... 144
Referências................................................................................................................. 145
ATUALIDADES
O Caso Riocentro e a evolução do crime contra a humanidade no Direito
Internacional dos Direitos Humanos
Flávio de Leão Bastos Pereira...................................................................................... 179
1 Contextualização............................................................................................. 180
2 Atentados do Riocentro: ideias iniciais.............................................................. 182
3 Atentados do Riocentro: crimes contra a humanidade?...................................... 184
4 O Brasil reconhece os crimes contra a humanidade e sua imprescritibilidade?
O diálogo com o Direito Internacional................................................................ 189
Referências................................................................................................................. 196
PARECERES
Parecer – Projeto de Lei Anticrime e a execução da pena após condenação
em segundo grau de jurisdição
Ives Gandra da Silva Martins........................................................................................ 201
Consulta ..................................................................................................................... 201
Resposta..................................................................................................................... 201
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Marcos Zilli
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DOUTRINA NACIONAL
A criminologia da libertação de Lola
Aniyar de Castro e as contribuições de
Ricœur e Dussel
Resumo: A teoria crítica do controle social elaborada por Castro tem como função principal desmascarar
a ideologia presente nos sistemas de dominação latino-americanos, sobretudo no Direito Penal.
Todavia, pode a teoria crítica ter a pretensão de combater a ideologia presente no discurso jurídico-
penal, sem a própria teoria vir a conter uma carga ideológica? O objetivo geral da pesquisa é debater
um alinhamento entre a teoria de Castro, a hermenêutica das ideologias de Ricœur e a filosofia da
libertação de Dussel. Por sua vez, os objetivos específicos são investigar se a teoria de Castro possui
carga ideológica, a partir das advertências de Ricœur, assim como cotejar as bases filosóficas da
teoria crítica de Castro e o pensamento de Dussel, perquirindo se a teoria crítica possui uma filosofia
genuinamente libertadora. A pesquisa se justifica pelos resultados insatisfatórios apresentados por
teorias criminológicas alegadamente assépticas, e, para a realização de seus objetivos, emprega o
método dedutivo, por meio da revisão bibliográfica das obras dos autores citados, a fim de realizar uma
releitura da criminologia da libertação de Castro. As hipóteses do trabalho são a presença de conteúdo
ideológico na teoria de Castro e de colonialismo na base filosófica da teoria crítica.
Palavras-chave: Teoria crítica. Ideologia. Hermenêutica. Criminologia da libertação. Colonialismo.
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Mauro Guilherme Messias dos Santos
Elaborada por Lola Aniyar de Castro (2005, p. 65), a teoria crítica do controle
social visa à quebra da ideologia que construiu uma falsa consciência do crime
e do criminoso, desvelando, sobretudo na realidade latino-americana, as formas
ocultas de dominação. Castro (2005, p. 49) aplica o termo ideologia não em sua
concepção de projeto político, mas na sua acepção de falsa consciência, ocultadora
da realidade.
A teoria consiste na crítica à ideologia do controle social, tendo como função
principal desmascarar todo tipo de legitimação ideológica presente nos sistemas
de dominação, sobretudo na dogmática penal. Afinal, sempre se soube que o
discurso jurídico-penal latino-americano é falso (ZAFFARONI, 2001, p. 14), serve de
instrumento para aprofundar as diferenças sociais e justifica a intervenção punitiva
oficial em auxílio a privilégios minoritários (CASTRO, 2005, p. 33).
A criminologia de Castro (2005, p. 58) deita raízes no materialismo histórico
de Marx, responsável por fazer uma interpretação materialista do desenvolvimento
histórico da humanidade, entendendo-o como o resultado do enfrentamento de
interesses contrários. Marx busca desvelar o caráter ideológico que apresenta a
engrenagem capitalista como invocação dos ideais burgueses, para mostrar que
essa sistemática somente funciona sob pressupostos de violência e dominação.
Especialmente na América Latina, Castro analisa em detalhes o controle
social exercido pela centralidade em desfavor da periferia do poder. As relações
de produção baseadas na exploração do homem e geradoras de analfabetismo,
mortalidade infantil e grandes massas de marginalizados, são, entre outros, os
meios úteis com que se mantém a submissão, se fortalece o poder de uma classe
e através do qual o capital transnacional obtém elevados lucros (CASTRO, 2005,
p. 33).
Os representantes da criminologia crítica partem de um enfoque materialista
e estão convencidos de que só uma análise dos mecanismos e das funções reais
do sistema penal, no capitalismo contemporâneo, pode permitir uma política
criminal das classes atualmente subordinadas (BARATTA, 2004, p. 209). Com uma
criminologia entendida e praticada dessa maneira, a teoria crítica do controle social
almeja proceder à denúncia da estrutura do controle social atual na América Latina,
desnudando o seu caráter legitimador e apresentando às classes subalternas um
discurso transparente que estimule a consciência de classe e uma compreensão
das verdadeiras condutas dissonantes (CASTRO, 2005, p. 64).
Baratta (2004, p. 210), o criminólogo europeu mais influente na criminologia
latino-americana de vanguarda (CASTRO, 2005, p. 38), isto é, entre os anos 70-80
do século XX, denunciou que mais de 80% (oitenta por cento) dos delitos perseguidos
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A criminologia da libertação de Lola Aniyar de Castro e as contribuições de Ricœur e Dussel
nos países de capitalismo avançado são delitos contra a propriedade. Para ele, é
natural que as classes desfavorecidas desse sistema de distribuição de riqueza
estejam mais particularmente expostas a esse processo de criminalização fundado
no dinheiro. A dogmática jurídico-penal é incapaz de visualizar tais desigualdades.
Muito em razão disso, Baratta (2006, p. 169) já falava de um direito desigual. A
crítica mostra que o Direito Penal não é menos desigual que qualquer outro ramo
do Direito burguês: em verdade, é o direito desigual por excelência (BARATTA,
2006, p. 169). A esse respeito, eis um atual dado estatístico brasileiro, em recente
levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2017, p. 14):
Imagem 1
Percentual de presos provisórios por tipo de crime praticado
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Mauro Guilherme Messias dos Santos
Segundo Leal (2017, p. 46), o controle protagonizado pelo sistema penal assume
formas nitidamente políticas, por ser resultado das necessidades do modo de
produção da vida social moderna e burguesa.
Tamanha a força do capital transnacional e a sua proteção estatal no Brasil,
especialmente via processos de criminalização primária (legislativa), se uma pessoa
meramente vender a outrem um automóvel alienado fiduciariamente em garantia,1
ainda que a este comunique a existência de alienação fiduciária, ficará, em tese,
sujeita à pena de reclusão, de um a cinco anos, e multa, caso não obtenha a
anuência do banco garantidor do bem móvel. Trata-se do crime instituído pelo
artigo 55 da Lei Federal nº 10.931/2004 (BRASIL, 2004), que incluiu o artigo
66-B, §2º, na Lei Federal nº 4.728/1965 (BRASIL, 1965).2 Hoje, com o advento
da mencionada Lei Federal nº 10.931/2004, tal negócio jurídico conta com uma
proteção estatal tamanha que uma pessoa pode ser presa em flagrante delito por
vender a terceiro, sem o conhecimento da instituição financeira garantidora, um
veículo alienado fiduciariamente.3
Portanto, os processos de criminalização são o norte da teoria crítica do
controle social. Todavia, como afirma Lola Aniyar de Castro (2005, p. 64), não se
deve ficar na simples denúncia – embora, para Novoa Monreal (1985, p. 31), ao
sair da denúncia para propor soluções práticas, a criminologia possa ficar sem
um chão epistemológico. Castro (1986, p. 39) responde a Novoa Monreal no
artigo El jardín de al lado, afirmando, categoricamente, que todo conhecimento
é prático e deve regressar ao mundo da práxis, de modo que a ciência não pode
estar desvinculada da luta social. Para Castro (2005, p. 66), a teoria do controle
social deve, inclusive na prática, isto é, num nível político, desmascarar todo tipo
1
A alienação fiduciária surge em 1965 como um instrumento de garantia destinado a permitir a difusão do
crédito direto ao consumidor, podendo figurar como credor apenas as instituições financeiras registradas
perante o Banco Central do Brasil. A aplicação mais comum do negócio jurídico acima ocorre na venda e
compra de veículos, mercado interessante e lucrativo a um sem-número de grupos econômicos.
2
Eis a redação do dispositivo legal em comento: Art. 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no
âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários,
deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil,
a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e
encargos. [...] §2º O devedor que alienar, ou der em garantia a terceiros, coisa que já alienara fiduciaria-
mente em garantia, ficará sujeito à pena prevista no art. 171, §2º, I, do Código Penal.
3
Por força do artigo 33, §2º, do Código Penal brasileiro (BRASIL, 1940), eventual condenação criminal
pode levar essa pessoa a cumprir a sua reprimenda nas casas penais brasileiras. Pior: a sua liberdade
será constrangida antes do seu patrimônio, pois, no Brasil, a atual maioria dos ministros do Supremo
Tribunal Federal entende, desde 2016, após o julgamento do habeas corpus (HC) nº 126.292/SP (BRASIL,
2016b), que a pena privativa de liberdade pode ser executada antecipadamente, logo após condenação
ratificada em segunda instância, mesmo que sujeita a recurso – ao contrário da pena de multa (e também
da pena de prestação pecuniária), que depende do trânsito em julgado. A seletividade penal fundada no
dinheiro, no grande capital, no poder político (sobretudo pela criminalização primária), não poderia ser
mais evidente.
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Mauro Guilherme Messias dos Santos
4
Dussel reconhece em Ricœur uma filosofia de embasamento ético e político, mas nela aponta uma incom-
pletude: sua inaplicabilidade para o enfrentamento assimétrico entre várias culturas, uma dominante e
outras dominadas, a exemplo da destruição do mundo ameríndio pela conquista em nome do cristianismo
(DUSSEL, 1993, p. 140).
5
A preferência pelo termo “decolonial”, e não “descolonial” – suprimindo, portanto, o “s” –, busca marcar
uma distinção com o significado clássico de “descolonizar”. Quer salientar que, ao invés de meramente
desfazer o “colonial” ou revertê-lo, a visada consiste em superar o momento colonial, a face oculta da
Modernidade, numa atitude pós-colonial, portanto. Tal marca distintiva, contudo, não é unânime no meio
acadêmico-científico, daí a necessidade do presente esclarecimento terminológico, que, de modo algum,
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A criminologia da libertação de Lola Aniyar de Castro e as contribuições de Ricœur e Dussel
A ideologia opera atrás de nós, mais do que a possuímos como um tema diante
de nossos olhos, e é a partir dela que pensamos, mais do que podemos pensar
sobre ela (RICŒUR, 1990, p. 70). O que a hermenêutica trata de trazer à luz não é
inicialmente o sentido do texto, mas o esclarecimento crítico de um entendimento
que o precede, justamente porque não existe tabula rasa do entendimento, ou seja,
há algo que lhe é anterior (GRONDIN, 2012, p. 48-50).
Gadamer critica fortemente o positivismo científico imposto às ciências humanas,
a suposta capacidade destas de descobrir a verdade operando uma fantasiosa e
fictícia exclusão dos pré-juízos do entendimento, em nome de uma concepção
de objetividade, herdada das ciências exatas no contexto histórico da Ilustração
(GRONDIN, 2012, p. 48-50). O filósofo alemão enxerga nos pré-juízos sobretudo
condições de entendimento. Não na forma de uma abertura ao subjetivismo ou ao
preconceito. Em verdade, para o autor, a interpretação deve a todo instante realizar
um exame crítico de seus pré-juízos, por meio do chamado “processo de revisão
constante”, precavendo-se contra o arbitrário dos preconceitos, distinguindo-se,
assim, os pré-juízos legítimos, aqueles que tornam possível o entendimento, daqueles
que não são legítimos e que cabe à crítica superar (GRONDIN, 2012, p. 48-50).
A ideologia, contudo, não permite essa clareza e amplitude de visada. Ela é
responsável por operar um estreitamento do campo com referência às possibilidades
de interpretação (RICŒUR, 1990, p. 71), o que o filósofo francês chama de “cegueira
ideológica”, isto é, um enclausuramento do campo interpretativo. É por isso que,
segundo Ricœur, a ideologia se exprime preferencialmente por slogans, de forma
semelhante, inclusive, à estratégia dos meios de comunicação para atrair leitores
e telespectadores a consumirem as manipuladas notícias da criminalidade, o
chamado “jornalismo verdade” (GOMES, 2014, p. 85).
tenta sobrepujar ou estigmatizar a expressão “descolonial”, mas, apenas, explicitar o porquê da preferên-
cia pela gramática “decolonial”.
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A criminologia da libertação de Lola Aniyar de Castro e as contribuições de Ricœur e Dussel
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Jakobs refundou o conceito de inimigo, aportando sobretudo nos filósofos Platão, Hobbes, Rousseau e
Fichte. Para o jusfilósofo de Bonn, só seria pessoa quem oferecesse uma “garantia cognitiva suficiente
de um comportamento”, ou seja, o indivíduo capaz de transparecer um modo de vida seguro, ideal, sem
riscos para a sociedade. De forma oposta, seria inimigo o indivíduo que, por meio de seu comporta-
mento, sua ocupação profissional ou, principalmente, mediante sua vinculação a determinados grupos,
descumprisse o seu papel no contrato social, abandonasse definitivamente o Direito, causando medo e
insegurança.
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nunca está fixo no tempo, como as ciências matemáticas concebem. Existe uma
distância temporal entre o intérprete e o texto, um distanciamento histórico repleto
de efeitos da ação da história, uma verdadeira herança de acontecimentos, uma
tradição, viabilizados por um constante diálogo entre o passado e o presente,
capaz de distinguir os pré-juízos legítimos dos ilegítimos. Segundo o autor, todo
mundo conhece essa peculiar impotência de se julgar onde não dispomos de uma
distância temporal que nos forneça critérios seguros (GADAMER, 2012, p. 393).
Por terceiro, a ciência social jamais rompe seus vínculos, e insiste em cair
na ilusão de uma teoria crítica elevada ao nível de saber absoluto. É preciso notar
que esse interesse totalizante das teorias sociais funciona como uma ideologia,
buscando dominação material, manipulação aplicada às pessoas ou apropriação
de heranças culturais.
A quarta e última proposição de Ricœur consiste na meditação de que o
saber teórico-social está sempre em vias de se arrebatar à ideologia. Existe uma
pré-compreensão na qual a pessoa está lançada, e qualquer pretensão crítica será
apenas parcial, sem uma completa isenção do fundo ideológico.
Embora a teoria crítica do controle social proponha, política e epistemologi-
camente, mostrar um caminho criminológico viável para sinalizar à dogmática a
existência de ideologias na aplicação da lei penal, é preciso ressaltar, com apoio
na hermenêutica de Ricœur: a própria teoria crítica de Castro possui uma carga
ideológica, apropriando-se de pressupostos teóricos coloniais e eurocêntricos,
sobretudo, durante os processos de “importação cultural” na base do desenvolvi-
mento da criminologia crítica na América Latina nos anos 80 (SOZZO, 2002, p. 398).
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Imagem 2
Evolução da população de mulheres no sistema penitenciário (Infopen)
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Mauro Guilherme Messias dos Santos
4 Considerações finais
A teoria crítica do controle social de Lola Aniyar de Castro busca, acima de
tudo, analisar criticamente o funcionamento da estrutura de dominação oficial,
a saber, o sistema penal, revelando a carga ideológica presente no discurso
dogmático. Propostas aptas a mostrar à dogmática a existência de ideologias têm
a possibilidade de diminuir, em alguma medida, o recrudescimento da aplicação
da técnica jurídico-penal.
Contudo, a presente pesquisa considera que, na linha do pensamento de
P. Ricœur, as teorias sociais possuem, inarredavelmente, uma carga ideológica,
decorrente da impossibilidade de separar do pensador a totalidade de seus
condicionamentos, da sua pré-compreensão, cuja estrutura precede e comanda.
Assim, a pretensão da teoria crítica de Lola Aniyar em apontar ideologias na
dogmática penal carrega consigo, necessariamente, um conteúdo ideológico, pois
não há pensadores sem amarras, sem pertença, sem efeitos da história – Castro,
por exemplo, integrou movimentos sociais e exerceu cargos político-estatais por
vários anos.
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A criminologia da libertação de Lola Aniyar de Castro e as contribuições de Ricœur e Dussel
Lola Aniyar de Castro’s criminology of liberation and the contributions of Ricœur and Dussel
Abstract: The critical theory of social control elaborated by Castro has as main function to unmask
the ideology present in Latin American systems of domination, especially in criminal law. However, can
critical theory have the pretension of combating the ideology present in the criminal-legal discourse,
without the theory itself containing an ideological charge? The general objective of the research is to
discuss an alignment between Castro’s theory, Ricœur’s hermeneutics of ideologies and Dussel’s
philosophy of liberation. On the other hand, the specific objectives are to investigate if the theory of
Castro has ideological load, based on Ricœur’s warnings, as well as to compare the philosophical
bases of Castro’s critical theory and Dussel’s thinking, inquiring whether critical theory possesses a
genuinely liberating philosophy. The research is justified by the unsatisfactory results presented by
allegedly aseptic criminological theories and, in order to achieve its objectives, employs the deductive
method, through a bibliographical review of the authors works cited above, in order to re-read Castro’s
criminology of liberation. The hypotheses of the work are the presence of ideological content in Castro’s
theory and of colonialism on the philosophical basis of critical theory.
Referências
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Bertrand Brasil, 2012.
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A criminologia da libertação de Lola Aniyar de Castro e as contribuições de Ricœur e Dussel
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Lavagem de dinheiro: uma análise
crítica da extinção do rol de crimes
antecedentes
Resumo: O presente artigo busca analisar a extinção do rol de crimes antecedentes à lavagem de valores,
levada a efeito pela Lei nº 12.683/12, percorrendo brevemente o contexto nacional e internacional
de seu surgimento, bem como as gerações ou modelos legislativos que a precederam, com o fim de
permitir um aporte crítico sobre a alegação de desproporcionalidade existente entre diversas hipóteses
de infrações penais prévias, com destaque para os crimes de menor potencial ofensivo e contravenções
penais, e a sanção cominada ao delito de branqueamento de capitais. Volta-se o estudo, igualmente, à
investigação de possíveis consequências de ordem político-criminais decorrentes da supressão da lista
de crimes antecedentes, tais como o óbice à suspensão condicional do processo ou à transação penal
em diversos delitos prévios, bem como a banalização do sistema de persecução penal, tanto em razão da
sobrecarga como pela perda do foco na grande criminalidade. Por fim, apontam-se algumas proposições
no sentido de evitar os referidos prognósticos e preservar a razoabilidade e a proporcionalidade entre o
apenamento aplicado ao delito prévio e à lavagem de dinheiro.
Palavras-chave: Lavagem de dinheiro. Rol de crimes antecedentes. Modelos legislativos. Bem jurídico.
Proporcionalidade
1 Introdução
Dentre as principais alterações trazidas pela Lei nº 12.683/12, uma das mais
relevantes e fundamentais foi, sem dúvida, a extinção do rol de crimes antecedentes
à lavagem de capitais, projetando a legislação brasileira à denominada terceira
geração de leis de combate ao branqueamento de valores, expressão que será
esclarecida ao longo da primeira parte deste trabalho.1
1
Como apontam Weber e Moraes (2013, p. 325), “a origem da expressão ‘lavagem de dinheiro’ remonta
às organizações mafiosas norte-americanas, que, na década de 1920, aplicavam em lavanderias e lava-
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Gabriel Silva Costa
Nessa toada, o presente artigo objetiva analisar, de forma um pouco mais detida,
essa opção legislativa e seus impactos sobre a justiça criminal, especialmente no
que tange à inclusão de contravenções penais e delitos de menor potencial ofensivo
dentre os passíveis de ensejar a lavagem de dinheiro.
Assim, com esse escopo em mente, serão investigadas a eventual violação
à proporcionalidade existente ao apenar de forma mais severa situações menos
graves, bem como as repercussões político-criminais dessa abertura, tais como a
ampliação da incidência de gravosas normas cautelares penais e o possível impacto
na perspectiva do desencarceramento promovido por alguns recentes dispositivos
processuais penais.
Não obstante, antes de iniciar o tema central deste estudo cabe percorrer,
ainda que brevemente, a construção histórica dos modelos de legislações voltados
à repressão do crime de lavagem de dinheiro e como tal evolução culminou na
extinção do rol de crimes antecedentes pela lei brasileira.2
rápidos o capital obtido com atividades criminosas. Esses negócios movimentavam dinheiro rapidamente,
o que facilitava a mistura do capital legalmente ganho com o advindo de atividades ilícitas, promovendo
a desvinculação dos recursos provenientes das atividades criminosas. Em razão de caracterizar a trans-
formação do dinheiro sujo em dinheiro limpo, geralmente são utilizados termos que pressupõem limpeza:
Portugal utiliza o termo branqueamento de capitais; a Espanha adota blanqueo de capitales; a França
segue a expressão blanchiment d’argent; os Estados Unidos empregam money laundering; a Argentina
assume a denominação lavado de dinero; a Alemanha refere-se a Gelwäsche; a Suíça utiliza o termo blan-
chiment d’argent; a Itália segue a designação riciclaggio di denaro” (no mesmo sentido, BRAGUÊS, 2009,
p. 7). Para os fins deste estudo, as referidas expressões serão utilizadas alternativamente.
2
Para uma análise do combate à lavagem de valores como política pública, vide percuciente estudo elabo-
rado por Francisco de Assis Campos da Silva (2006) e, mais especificamente, como política criminal, a
obra organizada por Miguel Bajo Fernández e Silvina Bacigalupo (2009).
3
“Ha de existir, como requisito imprescindible, un nexo entre el objeto del lavado y un delito previo. Si no
está presente ese nexo o unión o si se rompe por alguna circunstancia, no existe objeto idóneo para el
delito de lavado de activos. Cuando existe dicha conexión se dice que los bienes están ‘contaminados’ o
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Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes
razão pela qual a doutrina aponta o delito de lavagem de dinheiro como um crime
acessório, derivado, parasitário ou referente (MENDRONI, 2013, p. 61; BALTAZAR
JÚNIOR, 2015, p. 1.091; PRADO, 2007, p 409). Em outras palavras, cuida-se de
uma infração penal que depende da ocorrência de outra figura típica para o seu
aperfeiçoamento (TEBET, 2012). “Em verdade, a infração penal subjacente será
tratada como um elemento normativo do delito de branqueamento de capitais”
(WEBER; MORAES, 2013, p. 326).
Postas essas balizas, surge a questão fundamental sobre quais crimes, ou
classes de delitos, são aptos a gerar bens suscetíveis de serem branqueados
(CORDERO, 2014, p. 122). De Carli, ao analisar o tema, afirma que a trajetória da
criminalização da lavagem de dinheiro é uma história de expansão em dois sentidos
(2014, p. 08). No primeiro eixo, que denomina de expansão horizontal, observa-se
a proliferação de legislações antilavagem similares por vários países do mundo
com o fim de criar um regime global de proibição (DE CARLI, 2014, p. 08).4 Por
sua vez, em uma segunda direção, ocorre, de acordo com a autora, uma expansão
vertical, que visa aprofundar o âmbito de aplicação das normas de repressão à
lavagem de capitais, originando as chamadas legislações de primeira, segunda e
terceira gerações (DE CARLI, 2014, p. 08).
Ante o interesse para a compreensão do objeto deste artigo, merece apreciação
mais detida a nominada expansão vertical e suas três gerações (ou modelos) de
lei de combate ao branqueamento de valores.
Como aponta Cordero, o crime de lavagem de ativos surge inicialmente no
âmbito dos delitos relativos a drogas, essencialmente em razão das vultosas
quantias movimentadas por esses ilícitos (2014, p. 122). Nas palavras de Conti:
‘manchados’” (CORDERO, 2014, p. 122). Por outro lado, sobre a relevância da demonstração da prove-
niência, e não da simples precedência, dos valores lavados em relação ao delito antecedente, vide Knijnik
(2016).
4
“Em realidade, a repressão à lavagem de dinheiro revela um campo de harmonização penal. Por que é
importante que os países tenham legislações semelhantes? Para possibilitar a mais ampla cooperação
jurídica internacional, no caso dos crimes transnacionais, em razão da exigência da dupla incriminação”
(DE CARLI, 2014, p. 08).
R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019 35
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5
Destaca Souto que “el énfasis excepcional puesto en los años ochenta sobre la cooperación internacional
en materia de estupefacientes hizo que durante tiempo existiese una correspondencia entre blanqueo de
dinero y tráfico de drogas sin que fuese posible escindir el uno de las otras. Sin embargo, tras la equiva-
lencia entre blanqueo y estupefacientes subyace una simplificación no fundada sobre el análisis científico
ni la investigación. Naturalmente, no cabe desconocer la importancia de los beneficios del narcotráfico
como fuente financiera del crimen organizado, pero sabido es que con ser ingentes estas ganancias no
suponen más que una parte del dinero sucio global y sería artificial separar los capitales del tráfico de
drogas de las otras fuentes de fondos delictivos. En este sentido no podemos olvidarnos del tráfico ilegal
de armas, la trata de blancas y de menores vinculada a la prostitución internacional, el tráfico de títulos
valores robados o falsificados, la falsificación de dinero y de marcas, las quiebras fraudulentas de grupos
industriales o bancarios y la corrupción” (2001, p. 71/72).
6
Nas palavras do autor, “[l]a crítica a este modelo es que se muestra insuficiente, puesto que existirán
otras actividades delictivas que generan también grandes ganancias que no se encontrarán incluidas en
el listado, por lo que el lavado de los beneficios va a quedar impunes. Ello podría hacer necesaria una
constante revisión del catálogo para incluir nuevos delitos. Esto ha ocurrido en Alemania, donde en el año
1992 se aprobó la norma penal que sanciona el lavado, y en 1994 se tuvo que realizar una modificación
para ampliar el catálogo de delitos previos” (CORDERO, 2014, p. 123).
7
Aponta Cordero que a menção a crimes graves não é imune a críticas, pois “van a existir delitos que sin
ser graves generan cuantiosos beneficios que no van a quedar abarcados por el tipo del delito de lavado”
(2014, p. 124)
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Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes
8
“Por recomendação do Grupo de Ação Financeira (GAFI), ‘único organismo internacional especializado
e centrado tão-somente na luta contra a lavagem de dinheiro’, ao contrário da Convenção de Viena,
amplia-se o conceito de lavagem, sendo admitido qualquer delito prévio de natureza grave” (PRADO, p.
407). Por sua vez, “[o] GAFI – Groupe d’Action Financière (chamado, em inglês, de FATF – Financial Action
Task Force) é um órgão intergovernamental de elaboração de políticas (policy-making body) que trabalha
intensamente para gerar a vontade política necessária à promoção de reformas legislativas e regulató-
rias no âmbito dos países. Criado em 1989 pelo G7 (grupo dos sete países mais ricos, à época), ele é
o centro do sistema internacional antilavagem de dinheiro. Atualmente são membros 34 países e duas
organizações regionais. Essa organização examina as técnicas e as tendências de lavagem de dinheiro,
revisa as medidas já tomadas em nível internacional e expõe as providências que ainda precisariam ser
adotadas para combater o delito. Em abril de 1990, o GAFI elaborou e publicou um relatório contendo um
conjunto de 40 Recomendações que fornecem um plano abrangente de ação, a ser adotado por todos
os países para enfrentar a lavagem de dinheiro. [...] As Recomendações são adotadas por mais de 180
países. A par disso – e o que reforça significativamente sua efetividade – foram reconhecidas pelo FMI e
pelo Banco Mundial como os Padrões Internacionais a serem seguidos, na repressão e na prevenção da
lavagem de dinheiro e do financiamento ao terrorismo. Por sua vez, a ONU, através da Resolução nº 1.617
do Conselho de Segurança, instou veementemente todos os Estados Membros a darem cumprimento às
normas internacionais consubstanciadas nas Recomendações do GAFI” (DE CARLI, 2013, p. 32/33).
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9
Como anota Rodrigues, “[o] legislador nacional, na esteira das Dir. 2005/60/CE, do Parlamento Europeu
e do Conselho, de 26 de outubro e a Dir. 2006/70/CE, da Comissão, de 1 de agosto, fundamentou o
crime precedente com base em dois critérios: o primeiro determina que as vantagens sejam provenientes
de um crime classificado com uma certa gravidade; o segundo estabeleceu como condição no crime ante-
cedente a punição com pena de prisão mínima superior a seis meses” (2016, p. 182/183).
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Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes
Vale anotar, por outro lado, que existe uma elevação da pena nas hipóteses
em que o crime antecedente seja tráfico de drogas, praticado por organização
criminosa voltada para lavagem de dinheiro, entre outras situações previstas na lei
penal (WEBER; MORAES, 2013, p. 328), casos em que há, no entender da legislação
espanhola, uma maior gravidade dos delitos prévios à lavagem, justificando uma
ponderação diferente no que tange à sanção penal desta.10
Finalmente, voltando-se à realidade latino-americana, tem-se o exemplo
argentino. Inserido entre os delitos contra a ordem econômica e financeira, o tipo
de blanqueo de capitales estabelece que qualquer delito é passível de figurar como
antecedente da lavagem, havendo apenas o agravamento em algumas situações
especiais (WEBER; MORAES, 2013, p. 331). Contudo, merece destaque na
legislação argentina a disposição de uma relação entre a pena aplicada e a quantia
mínima branqueada, em uma única ou várias operações, o que não apenas limita a
incidência típica da norma penal como promove uma medida de proporcionalidade
entre os dois fatores.11
Concluindo esse breve escorço pelas legislações estrangeiras, cabe apenas
ressaltar alguns paradigmas da ordem internacional que, de uma forma ou de outra,
afetaram as opções legislativas brasileiras.
10
O artigo 301 do Código Penal Espanhol prevê que “1. El que adquiera, posea, utilice, convierta, o transmi-
ta bienes, sabiendo que éstos tienen su origen en una actividad delictiva, cometida por él o por cualquiera
terceras personas, o realice cualquier otro acto para ocultar o encubrir su origen ilícito, o para ayudar a
la persona que haya participado en la infracción o infracciones a eludir las consecuencias legales de sus
actos, será castigado con la pena de prisión de seis meses a seis años y multa del tanto al triplo del
valor de los bienes. […] La pena se impondrá en su mitad superior cuando los bienes tengan su origen en
alguno de los delitos relacionados con el tráfico de drogas tóxicas, estupefacientes o sustancias psicotró-
picas descritos en los artículos 368 a 372 de este Código. […] También se impondrá la pena en su mitad
superior cuando los bienes tengan su origen en alguno de los delitos comprendidos en los capítulos V, VI,
VII, VIII, IX y X del Título XIX o en alguno de los delitos del Capítulo I del Título XVI”.
11
De acordo com o artigo 303 do Código Penal Argentino: “1) Será reprimido con prisión de tres (3) a diez
(10) años y multa de dos (2) a diez (10) veces del monto de la operación, el que convirtiere, transfiriere,
administrare, vendiere, gravare, disimulare o de cualquier otro modo pusiere en circulación en el mercado,
bienes provenientes de un ilícito penal, con la consecuencia posible de que el origen de los bienes origina-
rios o los subrogantes adquieran la apariencia de un origen lícito, y siempre que su valor supere la suma
de pesos trescientos mil ($ 300.000), sea en un solo acto o por la reiteración de hechos diversos vincula-
dos entre sí. 2) La pena prevista en el inciso 1 será aumentada en un tercio del máximo y en la mitad del
mínimo, en los siguientes casos: a) Cuando el autor realizare el hecho con habitualidad o como miembro
de una asociación o banda formada para la comisión continuada de hechos de esta naturaleza; b) Cuando
el autor fuera funcionario público que hubiera cometido el hecho en ejercicio u ocasión de sus funciones.
En este caso, sufrirá además pena de inhabilitación especial de tres (3) a diez (10) años. La misma pena
sufrirá el que hubiere actuado en ejercicio de una profesión u oficio que requirieran habilitación especial.
3) El que recibiere dinero u otros bienes provenientes de un ilícito penal, con el fin de hacerlos aplicar en
una operación de las previstas en el inciso 1, que les dé la apariencia posible de un origen lícito, será
reprimido con la pena de prisión de seis (6) meses a tres (3) años. 4) Si el valor de los bienes no superare
la suma indicada en el inciso 1, el autor será reprimido con la pena de prisión de seis (6) meses a tres (3)
años”.
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12
O Brasil ratificou seus termos através do Decreto nº 154, de 26 de junho de 1991.
13
Conforme o art. 6º, §4º, da Convenção de Estrasburgo: “Cada uma das partes pode, no momento da
assinatura ou no momento do depósito do seu instrumento de ratificação, de aceitação, de aprovação
ou de adesão, mediante declaração dirigida ao Secretário-Geral do Conselho da Europa, declarar que o
n. 1 do presente artigo apenas se aplica às infrações principais ou às categorias de infrações principais
especificadas nesta declaração”.
14
Sobre o tema, vide Souto (2001, p. 139/140).
15
A Convenção de Palermo restou incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro em 12 de março de 2004,
por força do Decreto nº 5.015/04.
16
Internalizada pelo Direito brasileiro em 2006, por meio do Decreto nº 5.687.
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Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes
17
Anotam Callegari e Weber que não havia consenso quanto à classificação da lei original como de segunda
geração (2014, p. 83).
18
“A criminalização da lavagem de dinheiro no Brasil, estabelecida por meio da Lei 9.613/1998, apareceu
com atraso aproximadamente de uma década se comparada com as experiências jurídico-normativas de
outras nações. Não é estranho, contudo, que as preocupações originais a respeito do tema da lavagem
tenham surgido nos países centrais do capitalismo financeiro, notadamente na Europa e Estados Unidos,
repercutindo e impactando, apenas a posteriori, as regras jurídicas dos países periféricos” (SALVADOR
NETTO; COSTA; SARCEDO, 2013).
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19
Anote-se que, com a edição da Lei nº 10.467/02 foi incluso o VIII ao dispositivo em comento, assim
redigido “praticado por particular contra a administração pública estrangeira (arts. 337-B, 337-C e 337-D
do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal)”. Especificamente sobre a inclusão
dessa nova modalidade delitiva, segundo Barros, “[f]ica evidenciado [...] um novo traçado de política
criminal, que se encontra em fase de constante evolução no mundo moderno, sendo possível destacar,
especificamente neste caso: de um lado se verifica o alargamento da competência da Justiça Penal,
permitindo suplantar os limites de jurisdição territorial do País; de outro, procura-se enfrentar e reprimir
os ilícitos praticados contra a administração pública estrangeira, sinal de que a reiteração destes crimes,
com suas graves consequências para a sociedade, têm provocado o incremento da persecutio criminis
junto a comunidade internacional” (2002, p. 221/223).
20
Tratava-se, de acordo com a Exposição de Motivos, “de implementar o clássico princípio da justiça penal
universal, mediante tratados e convenções, como estratégia de uma Política Criminal transnacional”.
21
No mesmo sentido, William Terra de Oliveira, ao afirmar que a característica fundamental desses delitos
era a macrolesividade, “pois atingem muitas vezes interesses sociais e quase sempre geram grande
quantidade de dinheiro ilícito” (1998, p. 332).
22
“De fato, o delito de lavagem de dinheiro pressupõe a existência de ao menos um dos crimes anteceden-
tes, previstos no rol taxativo do art. 1º da Lei 9.613/98, sendo por meio destas condutas que o agente
obtém os valores, bens ou direitos objetos de posterior ocultação ou dissimulação” (HC n. 94.965/SP,
Rel. Min. FELIX FISCHER, Quinta Turma, DJe 30.03.2009).
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23
No ponto, Weber e Moraes alertam que o “reconhecimento nacional aos ditames da Convenção de
Palermo (Convenção contra o Crime Organizado Transnacional), devidamente internalizada em solo pátrio
por meio do Decreto 5814/2006, acabou por gerar grande controvérsia jurisprudencial acerca da defini-
ção e aplicação da expressão ‘crime organizado’” (2013, p. 327). À época, parte da doutrina entendia
“que este dispositivo seria inaplicável, por não haver em nosso ordenamento jurídico uma definição legal
ou um tipo penal que conceitue organização criminosa. Afastam, inclusive, a aplicação da Convenção de
Palermo, vez que ela traria um mandato de criminalização, não perfectibilizando um tipo penal específico,
nos moldes da legislação pátria” (2013, p. 344).
24
Ante os limites estreitos deste estudo, deixarão de ser abordadas, de forma mais aprofundada, as ques-
tões envolvendo os crimes tributários como antecedentes à lavagem de capitais, bem como a hipótese de
autolavagem, o concurso entre o delito prévio e o branqueamento de valores e a interface entre a lavagem
de valores e o exercício da advocacia. Todavia, remete-se o leitor aos estudos de Cordero (2011), Torrão
(2016), Godinho (2011) e Estellita (2016), respectivamente.
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Gabriel Silva Costa
Por sua vez, contra um rol fixo de delitos antecedentes, Luiz Regis Prado
afirmava que a técnica de catalogação de um rol de tipos legais prévios ao crime
de branqueamento de capitais não era a melhor, haja vista a grande probabilidade
de ocasionar graves lacunas de punibilidade (2007, p. 415). Portanto, na visão do
autor, seria suficiente a origem delitiva, proveniente de qualquer injusto penal, do
bem, direito ou valor econômico branqueado, na trilha do Código Penal Espanhol
de 1995 (2007, p. 415).
Em resposta às alegadas insuficiências, com a sanção da Lei nº 12.683, em
9 de julho de 2012,25 o dispositivo inicial da lei brasileira de combate à lavagem
de valores passou a vigorar com a seguinte redação:
25
O texto final decorre de um Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado nº
209/2003, de autoria do Deputado Federal Cândido Vaccarezza (PT-SP).
26
“A expressão infração penal, no sistema classificatório adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro,
engloba tanto o crime (sinônimo de delito) como a contravenção penal, espécies de injustos penais. Com
a postura ora acolhida, resta observada a necessária segurança jurídica, mas, para além, evitam-se even-
tuais e graves lacunas de punibilidade que maculavam a legislação anterior. Na atualidade, é bastante
a origem penalmente ilícita do bem, direito ou valor econômico que se procura introduzir no mercado
econômico legal, sob a falsa aparência de legitimidade. Isso vale dizer: é suficiente que o produto seja
proveniente de um injusto penal. Posicionamento mais restritivo é estatuído pelo Código Penal espanhol
de 2010, que exige tão somente a presença de delito anterior (art. 301 a 304), afastada a contravenção.
Em relação ao texto de 1995, que exigia delito grave, a crítica da doutrina acabou por surtir efeito. O im-
portante – verberava-se – é a origem delitiva do bem e não a gravidade do delito do qual procede” (PRADO,
2013, p. 12).
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27
De fato, a extensão atende à crítica ao rol anterior que excluía as contravenções penais. Nesse senti-
do, Weber e Moraes afirmam que “a impossibilidade das contravenções figurarem como ações típicas
precedentes excluía a contravenção do jogo do bicho e de jogos de azar (incluindo aqui a exploração das
conhecidas máquinas caça-níqueis e de vídeo-bingo) da condição de precedentes à lavagem de ativos. A
realidade social brasileira demonstra que tais práticas geram significativas quantias ilícitas que neces-
sitam ser e efetivamente são branqueadas. A possibilidade de enquadramento dos fatos à prática de
lavagem residia na eventual circunstância de restar caracterizado o contrabando ou descaminho de peças
das máquinas de jogos utilizadas” (2013, p. 348). Por sua vez, Odon afirmava que “[o] jogo do bicho, por
exemplo, uma das maiores chagas da criminalidade nacional, é uma contravenção penal e não um crime.
Assim, se um bicheiro introduz proventos do jogo no sistema financeiro para ocultar ou dissimular a ori-
gem, não estará praticando crime nenhum, por maior que seja o montante. [...] Atualmente proliferam-se
no Brasil as máquinas de caça-níqueis. Só no Distrito Federal (DF), onde a incidência não é tão alta quanto
em algumas cidades do Nordeste e Sudeste, estima-se que cada máquina arrecade R$ 3 mil por mês. É
um negócio que movimenta R$ 40 milhões por ano só no DF. É típico jogo de azar cujos proventos podem
ser injetados no sistema financeiro sem risco de incriminação, pois o jogo é mera contravenção penal”
(2003, p. 342/343).
28
Nesse sentido, vide Conjur (2012).
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29
“Isto é, apercebeu-se que, por meio da tipificação da lavagem, o sistema criminal busca fechar o cerco
para a ocorrência de diversas outras práticas, impedindo o aproveitamento dos produtos de crimes, impe-
dindo o financiamento de organizações criminosas, em suma, aumentando demasiadamente os custos,
em amplo sentido, dos denominados delitos antecedentes. Esta suposta eficiência do delito de lavagem,
a qual político-criminalmente faz prevalecer a lógica da repressão em face das garantias individuais, refle-
te-se de muitas formas na legislação” (SALVADOR NETTO; COSTA; SARCEDO, 2013).
30
“[N]ão podemos deixar de reconhecer a relevância de muitas condutas ilícitas que não constavam no rol
taxativo de crimes precedentes à lavagem de ativos, como as atreladas ao tráfico de órgãos, de pessoas,
tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, crimes ambientais. Tais condutas, exemplificadamente
referidas, são responsáveis pela movimentação de vultosos recursos, no plano nacional e internacional,
incorporados posteriormente ao sistema econômico com vista à dissimulação de sua origem.” (WEBER;
MORAES, 2013, p. 351).
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31
Prossegue o autor: “Tenho observado, com uma boa dose de pessimismo, que o sistema repressivo tende
a deslocar-se dos culpados para os inocentes. Neste caso, em vez da tarefa, tão perigosa, de pesquisar
grandes potentados financeiros, a lei permite que se investiguem factos domésticos de cada um, criando
a insegurança generalizada e a dependência dos órgãos repressores. O empolamento dos objectivos é um
meio seguro de os não atingir. Assim nunca se chegará às grandes pistas. A lista das infracções principais
deve ser revista. Terá de se limitar às que criam a necessidade de reciclar dinheiro sujo” (ASCENSÃO,
2003, p. 42/43).
32
Como anota Rizzo, o “jogo foi criado em 1892 pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador e
proprietário do jardim zoológico do Rio de Janeiro. Na época, o barão decidiu estipular um prêmio em
dinheiro ao portador do bilhete de entrada numerado com o animal do dia, com a finalidade de aumentar
a frequência ao zoológico. Eram 25 bichos e cada um era representado por quatro números sequenciais
de 00 e 99 por ordem alfabética. Um animal era escolhido e seu nome passava o dia inteiro coberto por
um pano. Ao final do dia, o pano era retirado e o prêmio entregue àquele que tivesse o bilhete de entrada
premiado com o número do bicho do dia. O jogo do bicho está proibido desde a década de 1940 não
somente por sua condição de jogo de azar, que induz a população ao vício e à miséria, mas também por
seu lado extremamente violento, ligado a outros tipos de [ilícito], como tráfico de drogas, lavagem de
dinheiro e violência urbana. [...] A grande preocupação das autoridades não é com o jogo em si, mas com
a estrutura criminosa que se alimenta dele, juntamente com os subornos que facilitam sua existência”
(RIZZO, 2013, p. 39/40).
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Gabriel Silva Costa
33
Conforme destaca editorial do IBCCRIM de 2012, “a nova lei é mais uma manifestação do expansionis-
mo penal, que, com o escopo de combater a grande criminalidade, acaba por criar regras e dispositivos
que exageram a amplitude da norma punitiva, afetam com penas significativas atividades sem maior
gravidade, passam para o setor privado a política de prevenção à lavagem e turbam o normal exercício de
determinadas atividades. Errou na dose o legislador”.
34
No ponto, oportuno recordar a distinção entre o exaurimento do delito prévio e a prática do crime de bran-
queamento de capitais com o seguinte exemplo apresentado por Bottini: “Se alguém rouba um banco e
esconde o dinheiro para depois usá-lo para aquisição de bens de consumo pessoal, em seu próprio nome,
como carros ou imóveis, oculta o dinheiro do ponto de vista objetivo, mas não há tipicidade de lavagem
de dinheiro porque sua intenção não é a reciclagem do capital, mas apenas exaurir o crime antecedente.
O agente não busca conferir uma aparência lícita aos bens obtidos pelo crime, mas apenas aguardar o
melhor momento para usufruí-los” (2016, p. 68).
35
Para o autor “ideal mesmo, do ponto de vista político criminal, seria erigir à categoria de crime as condutas
consideradas graves, fazendo com que se amoldassem ao delito de lavagem de dinheiro, que aceitaria
apenas crimes graves como infração antecedente, num padrão de moldura penal ou rol fechado. O grau
de gravidade poderia ser aquele sugerido na Convenção de Palermo, com penas máximas iguais ou supe-
riores a 4 anos, ou ainda o critério interno das infrações de menor potencial ofensivo (crimes com penas
máximas acima de dois anos – art. 61 da Lei nº 9.099/95)” (CONTI, 2014, p. 61).
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Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes
com o crime de lavagem, cuja pena mínima é de três anos (BOTTINI, 2016, p. 100).
Oportuno recordar que
36
De acordo com pesquisa apurada por Mendes, “[e]fetivamente, há carências de toda sorte que conduzem
à impunidade. Desde as deficiências de recursos humanos e materiais até obstáculos de ordem proces-
sual e probatório para comprovação do ilícito” (2002, p. 115/116).
37
Como afirma o autor, “é preciso reconhecer que se trata apenas de direito penal simbólico, preocupado
apenas em trazer uma pseudoimpressão de segurança para a população através da edição de leis mais ri-
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Gabriel Silva Costa
Por outro lado, como observa Moro, se por um lado a supressão do rol de
delitos prévios apresenta a vantagem da criminalização e persecução de pessoas
que atuam profissionalmente na lavagem de dinheiro, não fazendo distinções
em função da origem dos ativos branqueados, por outro existe um “certo risco
de vulgarização”, com duas ordens de consequências: a incoerente punição à
lavagem de forma mais gravosa do que a estabelecida para o crime prévio, bem
como a dispersão dos recursos disponíveis à prevenção e à persecução penal,
antes focalizados no combate à criminalidade mais grave (MORO, 2010, p. 36).38
Enfim, na esteira do que aponta Bottini, constatada a desproporcionalidade da
extinção do rol de crimes antecedentes à lavagem de valores, que pode alcançar
“a ocultação do produto de qualquer delito ou contravenção penal, por menor que
seja”, bem como suas graves consequências de ordem político-criminal, restaria
aguardar, ao menos por ora,
7 Algumas propostas
Postas as críticas, apresentam-se agora algumas tentativas de solução
potencialmente conciliadoras com a realidade do combate à lavagem de dinheiro
no Brasil.
A primeira delas colhe-se de Baltazar Júnior, que parte da perspectiva de
juiz federal que atuou durante anos em vara especializada em branqueamento de
capitais. O autor, percebendo que a nova tipificação do crime antecedente resultou
demasiadamente aberta, sugere como proposta a inclusão na descrição típica de
um valor mínimo para a incidência da norma penal, limitando, assim, sua aplicação,
gorosas, mas pouco atento às verdadeiras causas históricas, sociais e políticas da criminalidade” (CONTI,
2014, p. 58).
38
No mesmo sentido, Rios afirma que a alteração legislativa teria como repercussão imediata “a constata-
ção da perda da linha reitora que sempre primou por envidar esforços de prevenção e persecução dirigidos
aos delitos mais graves” (2012).
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Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes
haja vista que as penas aplicadas são altas e que, a levar-se em consideração
a possibilidade, defendida por alguns, de que qualquer tentativa de ocultação ou
dissimulação do proveito criminoso incorra no delito de branqueamento, resta a
conclusão de que este seria aplicável “à quase totalidade dos delitos que geram
proveito material” (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1.092).
No mesmo sentido, Massud e Sarcedo asseveram que a estipulação de
uma quantia mínima, por meio de uma norma penal em branco, para a incidência
do crime de branqueamento de valores poderia ser capaz de evitar ou mitigar a
desproporção ora apresentada (2009, p. 408/409).
A hipótese aventada, contudo, encontra algumas dificuldades. Em primeiro lugar
a indagação sobre qual seria o parâmetro a ser utilizado, ou mesmo se ele poderia
ter abrangência nacional, dado que a realidade brasileira é formada por inúmeros
contrastes. De toda sorte, novamente se voltaria à crítica sobre a necessidade de
atualização constante do valor mínimo estipulado pela lei ou outro ato normativo,
especialmente se o for em patamares muito baixos, facilmente superados pela
inflação e pela grande criminalidade.
Outra possibilidade seria a previsão de que apenas crimes graves seriam aptos
a gerar bens passíveis de lavagem de valores. Nesse sentido já se posicionou o
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), em editorial de 2012, in verbis:
Com ceticismo, Weber e Moraes ressaltam que a opção por tal parâmetro não
garantiria uma solução mais adequada ao problema, tendo em vista que a legislação
penal brasileira não “apresenta a sintonia desejada entre os tipos penais”, em outras
palavras, crimes com significativa gravidade, lesivos a bens jurídicos coletivos, como
crimes ambientais (Lei nº 9.605/98), acabam por receber penas mais brandas e
discrepantes de outras condutas menos lesivas, em razão do “período da edição da
lei, pressão política e popular a respeito de determinadas condutas e determinados
bens jurídicos, amadurecimento ainda incompleto acerca da relevância dos direitos
coletivos e difusos, dentre outras causas” (2013, p. 350/351).39
39
“Assim sendo, se é verdade que o rol restritivo de crimes antecedentes resulta criticável por sua óbvia
limitação de atender a realidade da lavagem de ativos no Brasil e pela incongruência de alguns delitos
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Gabriel Silva Costa
Por sua vez, Souto, constatando que a noção de “acto delictivo grave” não
possui significação penal própria, bem como dificulta a harmonização entre as
legislações internacionais antilavagem, entende que a escolha dos delitos prévios
não deve se ater unicamente à possível gravidade ínsita aos crimes antecedentes,
mas também à gravidade de sua relação com a lavagem de ativos, ou seja:
[...] esta norma mais não visa que [...] procurar alcançar um equilí-
brio entre a pena aplicável ao agente do crime de branqueamento e
a pena aplicável ao agente dos crimes subjacentes, atenta a relação
genética existente entre estes ilícitos, pois que, sem crime-base, não
pode, naturalmente, existir crime de branqueamento. (Apud MONTEI-
RO, 2012, p. 37)
escolhidos diante de outros de idêntica ou maior gravidade, dúvidas temos se melhor sorte assistiria a
uma escolha de categorias de delitos em função das penas previstas” (WEBER e MORAES, 2013, p. 351).
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Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes
Art. 1.º...
§4º A pena será reduzida de um sexto a dois terços, se os crimes
definidos nesta Lei forem praticados em caráter isolado e o delito
antecedente tiver a cominação de pena menos grave que o crime
previsto neste artigo. A pena será aumentada de um a dois terços,
se os crimes definidos nesta Lei forem praticados de forma reiterada.
§6º Serão puníveis os delitos previstos neste artigo, ainda que des-
conhecido ou isento de pena o autor do crime de que provieram os
bens, direitos ou valores. No caso de o autor da lavagem ser o mes-
mo autor do crime antecedente, aquela apenas será punida se de-
monstrada sua relativa autonomia e estruturação em face do crime
anterior.
§7º A ocorrência dos crimes previstos neste artigo ficará dependente
do estabelecimento de valor econômico mínimo, a ser fixado pelo
Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).
Art. 14...
§4º O COAF, por meio de resolução, deverá determinar o valor mínimo
a ser apurado para a ocorrência dos delitos previstos no artigo 1º
desta Lei. (2013)
8 Conclusões
Resta, neste capítulo, apresentar algumas ponderações finais sobre o tema
aqui tratado, não olvidando que inexistem respostas simples e definitivas em seara
tão complexa e intrincada como a da lavagem de valores.
Ainda que se possa falar em bens jurídicos diversos e na gravidade da lesão
à administração da Justiça ou à ordem econômico-financeira perpetrada com
a prática do branqueamento de capitais, afigura-se inegável a possibilidade de
desproporção entre as sanções previstas para a lavagem e para diversas infrações
penais antecedentes, com destaque para os crimes de menor potencial ofensivo
e para as contravenções penais.
R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 33-60, jul./dez. 2019 55
Gabriel Silva Costa
Por sua vez, constatado o risco dessa severa desproporção entre as punições,
surgem alternativas ou meios de tornar mais racional e razoável a aplicação do direito
penal antilavagem, o que se verifica, fundamentalmente, em algumas vertentes,
apresentadas ao longo do texto.
A primeira é, sem dúvida, a previsão de que apenas crimes graves sejam
passíveis de ensejar a lavagem dos bens deles provenientes. Em que pese a
dificuldade de se circunscrever um conceito de gravidade que atenda a todos os
múltiplos fatores que podem ser colocados em jogo, a pena aplicada ainda se
apresenta como o melhor critério, sendo esse utilizado inclusive para a delimitação
de crimes de menor potencial ofensivo ou passíveis de suspensão condicional
do processo, transação penal ou prisão preventiva. Trata-se, portanto, de critério
já adotado, em certa medida, pelo ordenamento jurídico brasileiro, sugerido pela
Convenção de Palermo e utilizado, com algumas variações, por diversos países,
como Portugal e Alemanha.
Em segundo lugar, aponta-se a opção legislativa portuguesa no sentido de
limitar a força punitiva aplicada à lavagem ao máximo da pena cominada ao delito
antecedente, percebendo-se que, não obstante sejam delitos distintos, estão
umbilicalmente jungidos, não sendo razoável que a tentativa de proveito do fruto
ilícito seja mais grave que a prática que o gerou. Cuida-se de uma proposição que
se possa chamar de conciliatória, pois ainda mantém a abertura do rol de crimes
prévios, mas limita a aplicação da sanção penal, merecendo referência a salutar
proposta legislativa do IBCCRIM em sentido parecido.
De outra face, vale anotar, uma vez mais, que, no que tange ao denominado
“jogo do bicho”, há um deslocamento do problema central, que é sua tipificação
como contravenção penal. Se estão corretos os autores que discorrem sobre o
tema, afirmando a danosidade social desse tipo de loteria e reafirmando o desvalor
da conduta, mais adequado seria alçá-lo ao status de crime, como o faz o Projeto
de Novo Código Penal, do que, com o fim de capturar uma ou duas contravenções
penais “graves”, recolher todo um subsistema do Direito Penal brasileiro.
Money laundering: a critical analysis about extinction of the precedent crime list
Abstract: The present article seeks to analyze the extinction of the list of crimes prior to money
laundering, carried out by Act n. 12.683/12, briefly reviewing the national and international context of its
emergence, as well as the generations or legislative models that preceded it, in order to allow a critical
contribution on the allegation of disproportionality existing between several hypotheses of previous
criminal offenses, For crimes of lesser offensive potential and criminal offenses, and the sanction for
the offense of money laundering. The study also turns to the investigation of possible political and
criminal consequences resulting from the suppression of the list of antecedent crimes, such as the
obstacle to the conditional suspension of the process or the criminal transaction in several previous
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Lavagem de dinheiro: uma análise crítica da extinção do rol de crimes antecedentes
crimes, as well as the trivialization of the Criminal prosecution system, both because of the overload
and the loss of focus on Finally, some proposals are pointed out in order to avoid the aforementioned
prognoses and to preserve the reasonableness and proportionality between the apprehension applied
to the previous offense and the money laundering.
Keywords: Money laundering. Precedents crimes. Legislative models. Legal interest. Proportionality.
Resumen: El presente artículo busca analizar la extinción del rol de crímenes antecedentes al blanqueo
de capitales, llevada a cabo por la Ley n. 12.683/12, recorriendo brevemente el contexto nacional e
internacional de su surgimiento, así como las generaciones o modelos legislativos que la precedieron,
con el fin de permitir un aporte crítico sobre la alegación de desproporcionalidad existente entre diversas
hipótesis de infracciones penales previas, con destaque para los delitos de menor potencial ofensivo
y contravenciones penales, y la sanción con el delito de blanqueo de capitales. Se examina también
la investigación de posibles consecuencias de orden político-criminales derivadas de la supresión de
la lista de crímenes antecedentes, tales como el óbice a la suspensión condicional del proceso o a
la transacción penal en diversos delitos previos, así como la banalización del sistema de persecución
penal, tanto en razón de la sobrecarga como por la pérdida del foco en la gran criminalidad. Por último,
se señalan algunas proposiciones para evitar dichos pronósticos y preservar la razonabilidad y la
proporcionalidad entre el aplazamiento aplicado al delito previo y al blanqueo de capitales.
Palabras clave: Blanqueo de capitales. Rol de crímenes antecedentes. Modelos legislativos. Bien
jurídico. Proporcionalidad.
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O juízo de admissibilidade da
acusação nos procedimentos penais
estrangeiros1
Resumo: Reconhecido o impacto que um processo criminal tem na vida de um cidadão, o presente artigo
busca brevemente trazer lições de ordenamentos jurídicos estrangeiros – nacionais e supranacionais –
referentes ao momento de análise judicial da acusação formal a dar início a um procedimento de
apuração de responsabilidade subjetiva penal para propor bases de discussão com relação ao juízo de
admissibilidade da acusação no processo penal brasileiro tal qual vigente.
Palavras-chave: Juízo de admissibilidade. Acusação. Ampla defesa. Procedimento.
1 Introdução
O presente artigo advém de dissertação de mestrado apresentada no programa
de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo que
teve por objeto de análise o juízo de admissibilidade da acusação sob um viés
constitucionalista, com enfoque nos direitos fundamentais da ampla defesa e do
contraditório.
Nesse aspecto, diante da limitada participação da defesa no âmbito da
investigação criminal, há de se sobrevalorizar o juízo de admissibilidade da acusação,
uma vez que será neste momento que o juiz deverá verificar a imputação acusatória,
única e somente após a reação defensiva.
1
Artigo elaborado por autor convidado.
R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 61-84, jul./dez. 2019 61
Hélio Peixoto Junior
2
Zilli conceitua o recebimento da acusação como a “declaração judicial de reconhecimento da convergência
dos mantos da legalidade e da legitimidade da tese acusatória e cujo selo somente pode ser estampado
após o movimento dialético processual inicial” (ZILLI, 2015, p. 5).
3
Lafave e Israel apontam que esta também é conhecida como “preliminary examination”; “probable cause
or bindover hearing” (LAFAVE; ISRAEL, 1993, p. 655).
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O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros
4
George Jr. aduz que: “Nel corso dell’udienza preliminare l’imputato gode di tutte le garanzie costituzionali
che gli sono riconosciute nel dibattimento poiché la preliminary examination è considerata una vera e
propria fase processuale. Solo pochi Stati consentono ala pubblica accusa di presentare l’information di-
rettamente al Giudice del dibattimento, senza passare attraverso il filtro dell’udienza preliminare. In questi
casi è tuttavia pur sempre richiesta una udienza per stabilire l’esistenza di sufficienti indizi di colpevolezza
(probable cause) quando si deve decidere se sttoporre l’imputato a custodia cautelare ovvero concedergli
la libertà provvisoria in attesa del giudizio” (GEORGE JR., 1988, p.123).
5
Lafave e Israel apontam que: “Preliminary hearing screening is said to serve to prevent hasty, malicious,
improvident, and oppressive prosecutions, to protect the person charged form open and public accusa-
tions of crime, to avoid both for the defendant and the public the expense of a public trial, and to save the
defendant from the humiliation and anxiety involved in public prosecution, and to discover whether or not
there are substantial grounds upon which a prosecution may be based” (LAFAVE; ISRAEL, 1993, p. 656).
No mesmo sentido aponta Goldstein: “The preliminary hearing examination is an important institution,
both because of the protection it affords the accused and because of its strategic position in the criminal
justice system and intimate interrelation with other aspects of the process – arrest, bail, prosecutorial
discretion, the grand jury, and the trial” (GOLDSTEIN, 1974, p. 772-773).
6
A jurisdição norte-americana, de uma forma geral, divide os delitos em uma classificação bipartida: misde-
meanor e felony. A primeira categoria corresponde a condutas delituosas menos gravosas, cuja punição,
geralmente, é limitada a menos de um ano de privação de liberdade. Já a segunda categoria representa
condutas delituosas mais sérias, podendo ser violentas ou não violentas, em que o tempo de privação de
liberdade é no mínimo de um ano. Outro aspecto refere-se à instalação prisional podendo ser uma jail faci-
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Hélio Peixoto Junior
lity ou prison facility. Aponta-se que a referida classificação pode variar de Estado para Estado (ROBERTS,
2011, p. 290).
7
Não obstante, o autor aponta que: “some autorithies argue that the preliminary hearing may now be so
rooted in the traditions and conscience of our people that there should be a constitutional right to the
hearing”. Em sequência indica que: “reformers argued that an adversary procceding would serve better to
protect the accused from illegal detention and also serve to protect him from the annoyance and costs of
having to defend himself at a public trial. It followed that the accused must be allowed the right to secure
counsel for hearing, and legislation has been considered in recent years to require appointment of counsel
for the indigent accused. It also followed that at an adversary hearing the accused should have the right
to make a statement in his own behalf, to produce witnesses in his defense, and to confront and cross-
examine witnesses for the prosecution. Model legislation was proposed and followed by many states that
sought to extend basic trial rights to preliminary hearings” (ANDERSON, 1970, p. 283-286). Em contra-
posição a ser a preliminary hearing um direito constitucional do cidadão, Lafave e Israel apontam que no
julgado Lem Woon v. Oregon a Suprema Corte, unanimemente, apontou-se que a ausência desta fase
procedimental não avilta a garantia do due process of law, entendimento confirmado em Gerstein v. Pugh,
apontando que esta não seria resultado direto da quarta emenda (LAFAVE; ISRAEL, 1993, p. 661-662).
8
E prossegue para apontar que: “The grand jury is designed in theory to provide an input for lay or commu-
nity views into the criminal process at a stage prior to trial, an input which both provides protection against
the arbitrary or oppressive utilization of power by a government official (i. e. the committing magistrate or
the prosecutor) and allow the grand jury to express its community judgement by exercising a power of nul-
lification to prevent a prosecution” (GOLDSTEIN, 1974, p. 803).
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O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros
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O autor ainda aponta que: “Most courts take the historical view that it is not, but a few courts clearly have
attempted to expand the hearing into a mechanism of discovery. As the hearing becomes more adversary
in nature, other incidental functions related to discovery of evidence become more important. Effective
defense counsel can make good use of an early opportunity to cross-examine key prosecution witnesses
If a record of the testimony is kept, witness testimony will be frozen, since ‘depositions’ can be used to
impeach witnesses at trial to preserve favorable testimony of witnesses unavailable at the trial. After learn-
ing something about the strength of the state’s case, defense counsel will have a better basis for plea
negotiations with the prosecutor. If the state’s case appears weak, defense counsel will be in a much bet-
ter bargaining position. On the other hand, a strong case presented by the state may help defense counsel
convince his client that he should plead guilty.” (ANDERSON, 1970, p. 287-288).
10
Os autores exemplificam que: “In the federal system, which is an indictment jurisdiction, the prelimi-
nary examination is not held if the defendant is indicted before the date set for the preliminary hearing”
(DRESSLER, 1997, p. 9). La Fave e Israel apontam 15 aspectos que sustentam a enorme diferença de
2 a 30% de arquivamentos nas cortes norte-americanas. Não obstante os autores concluem que: “As for
some differences, such as differences in the extent of pre-hearing prosecutorial screening, their impact
might suggest that the disparate rates do not reflect significant differences in the effectiveness of prelimi-
nary hearing screening, but rather differences in the types of cases that reach the preliminary hearing. As
for other, such as caseload or institutional factors that promote efforts to sharply reduce the number of
cases that reach the felony trial courts, their impact might suggest that rate differentials are attributable
to one jurisdiction adopting a screening determination that goes substantially beyond assessment of the
technical sufficiency of the evidence” (LAFAVE; ISRAEL, 1993, p. 656-657).
11
Anderson chama o Grande Júri de “final evidentiary screen in the pretrial process” (ANDERSON, 1970, p.
286).
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12
Scarance Fernandes aponta que: “Na fase perante o Grande Júri, com raríssimas exceções, não são aco-
lhidos os requerimentos feitos pelo Ministério Público, e a defesa, porque é conhecido o ‘extremo domínio
do Ministério Público’, dela não participa. O juiz leigo não rejeita a acusação, e, por isso, não há interesse
da defesa em mostrar as provas que pretende realizar. Quando a defesa requer inquirição de testemu-
nhas, ela o faz com o objetivo de melhor se preparar para o julgamento ou ganhar tempo para concluir um
acordo. O Ministério Público pode manter segredo quanto às testemunhas e aos relatórios policiais que
serão utilizados como prova no julgamento” (FERNANDES, 2005, p. 111).
13
Prossegue o autor para apontar que: “l’udienza preliminare assolve, oggi, a un compito ben più pregnante,
essendone stata fortemente rinvigorita la ‘vocazione selettiva’ (...) L’udienza preliminare è chiamata, oggi,
a svolgere la funzione di filtro in rapporto a imputazioni che possono essere non solo azzardate ma, perfi-
no, sorrette da elementi probatori insufficienti o contraddittori. Per quanto l’insufficienza o la contradditto-
rietà esprima l’inidoneità del materiale probatorio a sostenere l’accusa in giudizio (11), a rigore, è riduttivo
affermare che, in casi siffatti, l’imputazione possa qualificarsi come azzardata. Il riferimento lessicale vale
a connotare le imputazioni del tutto sguarnite di corredo probatorio: e tali sono solo le imputazioni ‘sicura-
mente infondate” (CASSIBA, 2007, p. 3-4).
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“L’elemento centrale della richiesta è l’imputazione nei due elementi fondamentali della persona dell’im-
putato, di cui vanno precisate le generalità, e dell’addebito che a lui viene ascritto, consistente nel fatto di
reato e nelle circonstanze aggravanti o che comportano l’applicazione di misure di sicurezza: il tutto con la
menzione dei relativi articoli di legge (art. 417 lett. a), b)” (PISANI et al., 2008, p. 395).
15
Prosseguem os autores apontando que: “Il decreto di fissazioni dell’udienza deve contenere l’indicazione
del giorno, dell’ora, e del luogo dell’udienza. Tra la data del deposito della richiesta e la data dell’udienza
non dovrebbe intercorrere un tempo superiore a trenta giorni, ma trattasi, ancora, di determine ordinato-
rio, dunque non sanzionato (art. 418). Tempi così contneuti danno conto, evidenemtente, dell’intento del
legislatore di dare continuità al procedimento penale e di evitare inutili ‘ristagni’ tra l’una fase e l’altra”
(DALIA; FERRAIOLI, 2016, p. 640).
16
Acerca deste aspecto, Cassiba aponta que: “Ciò si riverbere sul controllo circa la fondatezza dell’impu-
tazione perché a una cognizione ‘sommaria’ del giudice dell’udienza preliminare, sia sotto il profilo dello
sviluppo dei temi di prova sia sotto quello dell’affidabilità del risultato, si sostituisce una cognizione mag-
giormente articolata. Emerge, qui, il saldo legame fra la disciplina probatoria dell’udienza preliminare e la
ridisegnata regolamentazione dell’incompatibilità del giudice ex art. 34 comma 2-bis c.p.p. La fisionomia
dell’udienza preliminare implica che la decisione possa essere pregiudicata da precedenti decisioni assun-
te nel corso delle indagini preliminari e, a sua volta, pregiudicare la deliberazione in sede dibattimentale:
di talché, occorreva impedire il cumulo, nella stessa persona fisica, delle funzioni di giudice per le indagini
preliminari e dell’udienza preliminare” (CASSIBA, 2007, p. 5-6).
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17
O autor aponta que o fundamento constitucional da audiência preliminar remete ao arts. 24 comma 2 e
27 comma 2, ambos da Constituição italiana, sendo a primeira tutela ao direito de defesa em sede pro-
cessual, além de reafirmar a presunção de inocência (CASSIBA, 2007, p. 53).
18
No mesmo sentido: TONINI, 2006, p. 421.
19
Apontam em sequência os autores: “I poteri decisori del giudice corrispondono, dunque, a quelli del
giudice del dibattimento, perché formule terminative del giudizio dibattimentale, in virtu delle quali l’asso-
luzione viene disposta sia perché sono emerse prove a discarico sia perché mancano, sono insufficienti o
contraddittorie le prova a carico, sono applicabili anche in questa fase” (DALIA; FERRAIOLI, 2016, p. 649).
20
Tonini assim leciona expressamente: “il giudice emette il decreto che dispone il giudizio quando gli ele-
menti forniti dal pubblico ministero a sostegno della richiesta e le prove eventualmente raccolte nell’udien-
za preliminare fanno ritenere prevedibile una condanna in dibattimento” (TONINI, 2006, p. 424). O autor
aponta que o art. 429 não traz expressamente o quantum de prova é necessário, sendo este compreendi-
do pela interpretação a contrario do critério previsto para proferimento da sentenza di non luogo procedere.
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Assim, Tonini aponta que a decisão deve conter: “‘l’enunciazione in forma chiara e precisa del fatto’ e
dell circostanze, con l’indicazione dei relativi articoli di legge (art. 429, comma 1, lett. c, mod dalla legge
n. 479 del 1999); ‘l’indicazione sommaria delle fonti di prova e dei fatti cui esse si riferiscono’ (art. 429,
comma 1, lett d). Si tratta di informazioni che probabilmente la difesa già conosce perché sono inserite
nella richista di rinvio a giudizio (art. 417, comma 1, lett. b e c) o perché sono emerse nel corso dell’udien-
za preliminare” (TONINI, 2006, p. 424). Também apontando os requisitos de tal decisão.
22
O autor aponta que: “Come sottolineato anche dalla giurisprudenza costituzionale, la ‘quantità e [la]
qualità’ del materiale probatorio che può ‘trovare ingresso’ in sede di udienza preliminare incidono in
profondità sui connotati dell’accertamento qui compiuto; all ‘‘incremento’ degli elementi probatori ‘corri-
sponde – quanto alla determinazione conclusiva – un apprezzamento di merito ormai privo di quei caratteri
di ‘sommarieta’ che prima della riforma erano tipici di una delibazione tendenzialmente circoscritta allo
stato degli atti” (CASSIBA, 2007, p. 91).
23
Cassiba leciona que: “Il giudice dell’udienza preliminare deve disporre il rinvio a giudizio quando reputi
che l’istruzione dibattimentale conduca a ‘soluzioni aperte’ o, specularmente, la sentenza di non luogo
‘nele sole ipotesi in cui è fondato prevedere che l’eventuale istruzione dibattimentale non possa fornire
utili apporti per superare il quadro di insufficienza o di contraddittorietà probatoria’. E prossegue para
afirmar: “il legislatore ha reso esplicito che l’insufficienza e la contradditorietà della prova impongono qui
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il proscioglimento dell’imputato, sebbene il vaglio giurisdizionale non intervenga ‘sul merito’ del giudizio,
perché non implica l’accertamento della colpevolezza, ma concerne, unicamente, la verifica della sostenili-
tà dell’accusa, sia pure effettuata secondo canoni di maggiore completezza rispetto al passato” (CASSIBA,
2007, p. 92-93).
24
Por óbvio que nas hipóteses em que houver indeferimento irregular do pedido de aplicação de sentença,
nos moldes do art. 444 do CPP italiano, ou de rito abreviado, o referido pedido poderá ser reapresentado
ao juiz competente para o dibattimento (CASSIBA, 2007, p. 8).
25
Tratando sobre alternativas incidentes sobre as fases do procedimento, Scarance Fernandes ensina que:
“O atual procedimento imediato italiano não tem mais relação com o de 1930, o qual era destinado a
processos para os crimes cometidos em audiência (art. 435). O procedimento imediato do Código de
1988, disciplinado pelos arts. 419, 5, e 453, 3, é outro, bem diverso, sendo a sua ‘peculiaridade mais
evidente (...) representada pela ausência de audiência preliminar’ e, nesse ponto, se aproxima do procedi-
mento diretíssimo. Contudo, diferentemente desse, pressupõe a existência de uma fase de investigação
preliminar, ainda que sucinta, não derivando de prisão em flagrante. A adoção do procedimento imediato
pode resultar de iniciativa do Ministério Público, de requerimento da pessoa investigada, no início da
audiência preliminar, ou em virtude de oposição ao decreto de condenação no procedimento monitório”
(FERNANDES, 2005, p. 218).
26
Scarance Fernandes leciona que em homenagem à eficiência e celeridade com garantismo é de se
aplaudir a facultatividade da instrução no processo penal português. Em sequência o autor indica que:
“Cuida-se de audiência da tradição do sistema anglo-americano conhecida como preliminary examination,
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O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros
preliminary hearing ou examination trial, que influenciou o debate instrutório do Código de Processo Penal
de Portugal e a audiência preliminar do Código de Processo Penal italiano (Livro V, Título IX, arts. 416-433)
(FERNANDES, 2005, p. 114).
27
A autora aponta que: “A instrução não é um ‘instrumento de sindicância da atuação do ministério público
ao longo do inquérito, mas antes e tão-só uma fase destinada a comprovar o acerto da decisão de acusar
ou de arquivar tomada pelo ministério público”. Posteriormente aponta-se que houve reformas no direito
processual português que acabaram por desfigurar ligeiramente o aspecto desta fase ser apenas uma
fase de controle judicial da tomada de decisão em acusar ou arquivar a investigação. Assim aponta a pu-
blicidade da investigação como regra (art. 86, nº 1); a contraditoriedade dos atos de instrução (art. 289,
nº 2) e a equiparação do regime de alteração da qualificação jurídica dos fatos descritos na acusação e
o requerimento para abertura de instrução ao regime da fase de julgamento (arts 303, nº 5 e 358, nº 3)
seriam exemplos desta constatação.
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28
Sobre este ponto especificamente, Mendes aponta que: “O despacho de pronúncia nulo não é recorrível, é
antes reclamável. A reclamação é para a própria entidade que proferiu a decisão. A entidade que proferiu
o despacho pode deferir ou indeferir a reclamação. Se tivermos um despacho de indeferimento da recla-
mação de nulidade, este sim, é um despacho recorrível, com base no art. 310, nº 3” (MENDES, 2014, p.
89).
29
Carvalho destaca também a possibilidade de o juiz determinar o arquivamento em caso de dispensa da
pena ou de suspensão provisória do processo, conforme preveem os arts. 280, nº 2, e 74, ambos do
Código Penal, e 307, nº 2, e 281, do Código de Processo Penal (CARVALHO, 2013, p. 304).
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O autor aponta os julgados elencados em questão: TC nºs 31/87, 265/94, 474/94, 610/96, 468/97,
45/98, 156/98, 238/98, 266/98, 299/98, 300/98, 551/98, 216/99, 387/99, 459/00, 350/02,
463/02, 481/03, 79/05 e 242/05.
31
Também defensor da instrução, Da Veiga leciona que: “Em face de um despacho de arquivamento, o que
está em causa é o direito de o ofendido, com as vestes de assistente, pode deduzir um libelo acusatório
próprio, com indicação de meios de prova e possibilidade de requerer meios de obtenção de prova, para
além de poder analisar criticamente, à luz da lei, os pressupostos do despacho de arquivamento, tudo de
modo a tentar persuadir o Juiz de instrução a pronunciar o arguido. (...) também em face de um despacho
de acusação é manifestamente útil para o arguido tentar evitar a sua submissão a julgamento, através de
requerimento de abertura de instrução, deduzindo logo toda a defesa possível no sentido da não sujeição
a julgamento. É, desde logo, de salientar que o arguido acusado, que considera que o foi injustamente,
tem direito a tentar evitar uma submissão a julgamento socialmente estigmatizante e atentatória da sua
consideração social. É efetivamente inegável que o próprio julgamento implica restrições a direitos funda-
mentais (como ataques ao direito à imagem, à honra e consideração, bem como restrições do direito à
liberdade e até ao exercício de profissão), que são consideravelmente comprimidos (sobretudo em julga-
mentos de casos complexos e midiáticos, que envolvem muitas pessoas, designadamente testemunhas,
e que são muito demorados, tendo os arguidos de estar sempre presentes, seja por determinação do
Tribunal para o apuramento da verdade material, seja no próprio interesse da sua defesa). É, pois, legí-
timo que o acusado tenha o direito de tentar evitar tudo isso, a bem da preservação dos seus legítimos
interesses” (DA VEIGA, 2004, p. 195).
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O autor em sequência explica cada uma das razões que julga serem prejudiciais a tais alterações.
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E conclui o autor que: “Num tal contexto de irritação entre a lei escrita e a lei em acção, uma revisão
legal que projecta sinais contraditórios é reveladora de uma desorientação legislativa que naturalmente se
reflectirá numa desorientação na sua aplicação, com óbvio prejuízo para a boa realização do direito e para
o cumprimento das finalidades últimas do processo penal”.
34
Tratando do procedimento intermédio (Zwischenverfahren) do processo penal alemão, previsto nos dispo-
sitivos §§199/211 da StPO, Roxin leciona que: “La importancia principal del procedimiento intermedio
reside en su función de control negativa: discutiendo la admisibilidad y la necesidad de una persecución
penal posterior por un juez independiente o por un tribunal colegiado en una sesión a puertas cerradas,
se pretende proporcionar otra posibilidad de evitar el juicio oral, que siempre es discriminatorio para el
afectado. (...) Por otra parte, la importancia del procedimiento intermedio reside en que, una vez comuni-
cada la acusación, el imputado recibe nuevamente la posibilidad de influir en la apertura del procedimiento
principal a través de requerimientos de pruebas y objeciones” (ROXIN, 2003, p. 347). Seguindo, o autor
aponta que: “El tribunal está obligado a abrir el procedimiento principal (a través del ‘auto de apertura”)
cuando, según el resultado del procedimiento preliminar, el procesado es ‘suficientemente sospechoso’
de haber cometido una acción punible (§203), es decir, cuando es de esperar su condena, con una fuerte
probabilidad. (...) la sospecha ‘suficiente’ sólo alcanza para la cuestión referida a la comisión del hecho; el
tribunal tiene que estar convencido de la existencia de los presupuestos procesales y de la punibilidad de
la acción imputada” (ROXIN, 2003, p. 349). Entretanto, Volk critica o referido procedimiento intermedio:
“la demanda de crear un ‘tribunal de apertura’ separado es ciertamente simpática, pero ilusoria, pues
resulta costosa, retrasa considerablemente el proceso (¡cuestiones de detención!) y también fracasa por
el hecho de que los jueces conversan entre sí sobre sus juicios. Menos del uno por ciento de los casos
con acusación non son abiertos. Aun cuando se considere que el procedimiento intermedio no es efectivo,
mantiene sin embargo su alto valor simbólico” (VOLK, 2016, p. 233).
35
Apesar do presente trabalho apontar a Pre-Trial Chamber como a Sala de Questões Preliminares, tal
qual faz Zilli nos seus estudos, há parcela da doutrina que a indica como a “Câmara de Pré-Julgamento”
(FERNANDES, 2005, p. 129) e como a “Câmara Preliminar”, conforme Moisés Moreira Vieira traduziu os
escritos de TRENDAFILOVA, 2016, p. 871-899.
36
Japiassu aponta que: “Na Conferência de Roma, de 15 de junho a 17 de julho de 1998, quando foi apro-
vado o Estatuto que constitui o Tribunal Penal Internacional Permanente, o Brasil foi um dos 120 votos a
favor, sendo que também houve 7 contrários (Estados Unidos, Filipinas, China, Índia, Israel, Sri Lanka e
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Turquia, além de 21 abstenções, dentre os 162 Estados-Membros das Nações Unidas que la se fizeram
reapresentar. O Brasil assinou o tratado em 7 de fevereiro de 2000 e depositou o instrumento de ratifica-
ção em 20 de junho de 2002, tendo o Presidente da República promulgado o Estatuo de Roma, por força
do Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002” (JAPIASSU, 2005, p. 199-200).
37
Há uma exceção a tal regra denominada previsão transitória, prevista no art. 124. Acerca deste ponto,
Kaul leciona que: “é aplicável especificamente aos crimes de guerra, pela qual os Estados signatários
podem deixar de processar os crimes de guerra cometidos em seu território, ou por seus cidadãos,
num período de sete anos a partir da adesão ao Estatuto. No entanto, enquanto parcial derrogação do
Estatuto – pois é disso que se trata – pode ela ser reiterada apenas dentro de estreitos limites, na medida
em que esta previsão transitória está vinculada a outras atinentes à emenda do Estatuto” (KAUL, 2000, p.
110). Zilli aponta que: “ainda que a vinculação à jurisdição do TPI seja voluntária e consensual, a adesão
ao seu regime jurídico implica imediata e completa vinculação do Estado Parte a todos os dispositivos que
compõem a base normativa do ER. Ou seja, a adesão do Estado não está sujeita a reservas e condições.
Impõe ela o dever de cooperação e que se manifesta em várias frentes, dentre as quais, o auxílio na col-
heita e obtenção de elementos probatórios. Trata-se de importante solução que procura conferir eficiência
e efetividade ao Tribunal, já que não dispõe ele de qualquer força policial própria que lhe possa assegurar
a obediência no cumprimento de suas determinações” (ZILLI, 2013, p. 166).
38
Prossegue o autor para apontar que a investigação pode se iniciar por: i) requerimento de um Estado-parte
ao Procurador, devendo apresentar indícios suficientes da prática dos delitos correspondentes à compe-
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O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros
tência do TPI; ii) provocação do Conselho de Segurança, para que este então apresente à Procuradoria
uma notícia da prática dos referidos crimes internacionais; iii) instauração pelo próprio Procurador (proprio
motu investigations) de um inquérito lastreado em informações obtidas em outras fontes. Zilli destaca
que através de uma interpretação sistemática do Estatuto de Roma “somente na terceira hipótese está o
Procurador obrigado a obter uma autorização prévia da Sala de Questões Preliminares (Pre-trial Chamber)
para a instauração formal do inquérito”. Também tratando das investigações conforme prevê o Estatuto
de Roma: FERNANDES, 2005, p. 102-103. Destaca Scarance Fernandes que o “relevante papel destinado
ao Ministério Público na fase de investigação representa concreção de ponto de convergência entre o
modelo dos Estados Unidos e o de alguns países da Europa continental. O promotor norte americano tem
forte atuação na fase de investigação, coordenando os trabalhos desenvolvidos pela polícia e decidindo
sobre o seguimento a ser dado. Com as reformas na Alemanha, Itália, Portugal e, em parte, na Espanha,
o Ministério Público assume, nos Códigos, a missão de supervisionar a investigação”.
39
Caianiello, diferenciando a Audiência de Confirmação da Acusação na Sala de Questões Preliminares
com a Audiência Preliminar do direito processual penal italiano, aponta que: “L’udienza di convalida degli
addebiti, che há luogo uma volta formulata l’imputazioane, non è tropo dissimile dalla mostra udienza
preliminare. Si tratta infatti di um procedimento in contraddittorio, nel quale all’imputato è consentito
intervenire, presentare prove ed esporre le propie ragioni difensive. Il Prosecutor non sembra tenuto ad
operare uma completa discovery di tutta l’attività investigativa svolta, ma, ai sensi del 3º comma lett. b)
della norma citata, soltanto delle prove sulla base delle quali intende ottenere la conferma delle accusse
formulate con l’indictment. Qualora la Camera ritenga sussistente um probable cause, ossia che allo stato
gli eleemnti prodotti inducano a considerare ‘sostanzialmente’ fondata’ l’imputazione, questa viene confer-
mata e ne segue il rinvio a giudizio; in caso contrario, il non luogo a procedere (dismissal) non impedisce
al Prosecutor di ripresentare un nuovo atto d’imputazione, fondato sui medesimi fatti contestati in quello
precedente, purché sulla base di nuovi elementi probatori” (CAIANIELLO, 2001, p. 212).
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Hélio Peixoto Junior
40
Acerca da “disclosure” na Audiência de Confirmação da acusação, Miraglia aponta que esta: “in vista
della confirmation hearing assume um significato ancora più fondamentale per il ‘giusto processo’ rispetto
a quello rivestito in molti ordinamenti nazionali, a causa delle caratteristiche peculiari dei procedimenti
di competenza della Corte penale internazionale. Il procedimento prede avvio con un’indagine su una ‘si-
tuazione’, all’interno della quale la difesa ha spazi assolutamente limitati ed evanescenti. (...) Ci si trova
di fronte, quindi, ad um Procuratore che per mesi ha svolto indagini, dovendo, secondo il dettato dell’art.
54, ricercare ‘equalli’ anche elementi a discarico, che ha piena conoscenza del quadro probatorio – se
pur provvisorio – non solo relativo all’indagato, ma anche relativo a tutta la situazione all’interno della
quale sono stati commessi singoli fatti constituenti le fattispecie di reato che si contestano allo specifico
indagato, ed ad un difensore che ha a dispozione termini ristretti per la ricerca delle prove a discarico in
vista della confirmation hearing (senza contare le difficoltà oggettive che può incontrare nella raccolta di tali
prove. Gli oneri di discovery che gravano sull’accusa risultano, quindi, essenziali, e ci si deve domandare
se anche sufficienti, per consentire all’imputato di difendersi nell’ottica della parità delle parti; infatti,
soprattutto durante la confirmation hearing, tale difesa si base precipuamente sulle prove raccolte dal
Procuratore e comunicate dallo stesso” (MIRAGLIA, 2007, p. 114-116).
41
Aponta-se que: “O Estatuto de Roma prevê três patamares probatórios para as três fases de um caso – a
expedição de ordem de prisão (o patamar de ‘motivos razoáveis para crer’ ou reasonable grounds to be-
lieve), a confirmação das acusações (patamar de ‘motivos substanciais para crer’ ou substantial grounds
to believe) e a decisão de mérito (o patamar de ‘motivos para crer, além de qualquer dúvida razoável’
ou beyond reasonable doubt). Estes patamares são construídos levando-se em consideração a natureza
específica das diferentes fases dos procedimentos, e são organizados ‘hierarquicamente’, de forma que
cada patamar sucessivo impõe requerimentos mais elevados ao Procurador. Os patamares são consisten-
tes com o previsível impacto das decisões relevantes sobre os direitos humanos fundamentais da pessoa,
tornando-se cada vez mais rígidos e elevados de acordo com o aumento do impacto sobre o direito da
liberdade da pessoa em julgamento” (TRENDAFILOVA, 2016, p. 889).
42
Zilli aponta ainda a possibilidade do adiamento da audiência, pedindo que a Procuradoria avalie a viabili-
dade de apresentar novas provas, instaurar novo inquérito ou alterar parte da acusação (ZILLI, 2013, p.
184).
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O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros
Acerca do escopo da referida fase, em uma de suas decisões como juíza singular
no caso Katanga/Ngudjolo, Trendafilova (2016, p. 872),43 apontou que a audiência
de confirmação “tem uma abrangência limitada e de nenhuma forma pode ser vista
como um fim em si mesma, mas (...) como um meio de distinguir aqueles casos
que devem ser submetidos a julgamento daqueles que não devem”.
A audiência de confirmação é a culminação ou ápice dos procedimentos
prévios ao julgamento, reunindo os esforços de todos os agentes envolvidos. Esta
tem um impacto considerável na fase de julgamento, já que a decisão que confirma
a acusação fixa o framework, os contornos do objeto que será discutido na fase
de julgamento. Logo, a acusação do Procurador será edificada sob os pontos
que a decisão de confirmação da acusação abordou. A natureza da audiência de
confirmação é evidentemente basilar ao procedimento do TPI (TRENDAFILOVA,
2016, p. 872-873).44
Entendendo não estarem reunidas provas suficientes para o processamento
da acusação, haverá uma espécie de reconhecimento da ausência da justa causa,
não sendo tal decisão dotada de efeitos de coisa julgada material, podendo a
Procuradoria reunir novos elementos probatórios e apresentar nova acusação sobre
os mesmos fatos (ZILLI, 2013, p. 184).
43
Aponta-se que outras Salas de Questões Preliminares do TPI também confirmam tal posição acerca da
Audiência de Confirmação, de modo que esta não é nem um julgamento antes do julgamento ou um mi-
nijulgamento, nem um juízo de primeira instância, não devendo se decidir acerca da culpa do acusado. A
obra em questão aponta diversos julgados, tais quais Caso Lubanga; Caso Bemba; Caso Abu Garda; Caso
Mbarushimana.
44
Prossegue a autora para ressaltar que “a Audiência de Confirmação não deve ser um procedimento profor-
ma ou uma aprovação automática dos termos da acusação do Procurador. Em vez disso, ela deve ‘filtrar’
os casos que não satisfizeram os requisitos probatórios do art. 61 (7) do Estatuto e, dessa forma, finalizar
os procedimentos desses casos nesse estágio”.
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Hélio Peixoto Junior
Tal proposta exerceu grande impacto na América Latina, visto que reformas
globais foram estruturadas em países como Chile, Paraguai e Costa Rica, refundando
as bases do processo penal nesses países. Enquanto isso no Brasil, mesmo com
o intento de uma reforma global, foi possível promover apenas alterações pontuais
no Código de Processo Penal promulgado na década de 40.
A etapa intermédia, disposta nos arts. 267 a 281, previa audiência pública, com
possibilidade de produção probatória e alegações. Assim, brevemente confrontado o
projeto apresentado e finalmente aprovado no Brasil para reforma do procedimento
ordinário, com ampla participação de Ada Pellegrini Grinover, também membro central
do Código de Processo Penal Modelo para a Ibero-América, verifica-se que em 2008
estruturou-se algo muito diverso do desenhado pela Comissão de Especialistas e
consequentemente verificado nos modelos estrangeiros.
No Projeto de Lei nº 4.207 de 2007 nos parágrafos do art. 395, além da
indispensável manifestação defensiva se dar em momento anterior à conclusão do
juízo de admissibilidade da acusação, estabelecia-se uma fase independente com
possibilidade de alegações de ambas as partes, bem como de produção probatória,
mesmo que parcial.
Contudo, isso fora abandonado e afastado pelo Poder Legislativo, resultando
na edição do art. 396 do Código de Processo Penal com o vocábulo “recebê-la-á”,
responsável direto por toda a discussão acerca da sua inconstitucionalidade, pois
abre espaço para que acusações sejam recebidas sem a participação efetiva do
principal interessado na solução do caso penal, o acusado.
Nesse aspecto, vige hoje quanto ao procedimento comum ordinário, tomando
por base os arts. 396 a 399 do Código de Processo Penal, o seguinte modelo:
1) oferecimento da acusação; 2) análise judicial para rejeição ou recebimento
da acusação, determinando-se a citação do acusado; 3) efetiva comunicação do
acusado; 4) oferecimento de resposta à acusação e 5) rejeição tardia ou novo
recebimento da acusação e possibilidade de absolvição sumária.45
Com isso, mesmo com a reforma efetivada, resultando na promulgação da Lei
nº 11.719 de 2008, houve um menoscabo de um dos momentos mais importantes
do processo penal: o juízo de admissibilidade da acusação. Não somente fora
impedido o intento de estabelecer uma fase manifestamente independente para
45
Aponta-se esquematicamente tal formato com base na posição doutrinaria e jurisprudencial majoritária.
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O juízo de admissibilidade da acusação nos procedimentos penais estrangeiros
7 Conclusão
Tomando por base o exposto quanto aos ordenamentos jurídicos estrangeiros
analisados e ao Tribunal Penal Internacional, verifica-se uma constante: a fase
de admissibilidade da acusação é manifestamente um filtro contra acusações
infundadas, sendo então um espaço de garantia do contraditório e da ampla defesa,
além de importante critério de gestão do sistema de justiça criminal.
Assim, confrontado o modelo em vigência no Brasil, nota-se um déficit
importante frente ao disposto nos ordenamentos jurídicos estrangeiros.
De início, sequer há um alinhamento do texto infraconstitucional com o disposto
na Constituição da República de 1988. Assim, nem mesmo é premissa unânime
para a doutrina e jurisprudência a obrigatoriedade da reação defensiva inicial em
momento automaticamente posterior ao oferecimento da acusação e anterior ao
juízo de admissibilidade pela autoridade judicial.
Trazer lições estrangeiras para a análise do sistema processual brasileiro
tem por escopo justamente demonstrar o atraso em um modelo de procedimento
comum ordinário que ignora as benesses em se partir do juízo da admissibilidade
da acusação tanto como uma garantia para o acusado como um divisor de águas
a possibilitar a construção de um sistema de justiça criminal mais eficiente.
Dedicar mais atenção à análise inicial das acusações oferecidas, recusando
ab initio acusações temerárias e infundadas, evitando o trâmite tortuoso de
ações penais natimortas, tem resultado direto na gestão e julgamento dos casos
verdadeiramente robustos e merecedores da atuação estatal.
Frente ao sistema já existente, basta que haja um intento de constitucionalizar
o processo penal, promovendo assim uma interpretação adequada dos arts. 395 e
399, perfazendo um procedimento que oferecida a acusação seja o acusado citado
para apresentar sua defesa e apenas somente seu ingresso nos autos é que se
decidirá sobre a legitimidade da acusação.47
46
Na dissertação defendida, inclusive, se sustenta a inconstitucionalidade do art. 396 do Código de Processo
Penal, já que há contrariedade ao disposto no art. 5º, caput, inc. LV, da Constituição da República, possi-
bilitando que no momento inicial do processo criminal inexista contrariedade efetiva a viabilizar a reação
defensiva inicial logo após o oferecimento da acusação e em momento anterior ao juízo de admissibilidade
daquela.
47
Após uma análise histórica do processo penal brasileiro e dos procedimentos penais já vigentes, tal como
dos crimes de responsabilidade de funcionários públicos, dos crimes de drogas, dos crimes de imprensa
e de competência originária dos Tribunais Superiores, por exemplo, na dissertação “Fase de admissibili-
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Firmada tal premissa, então haverá espaço para que, de lege ferenda, possa
se discutir a criação de uma etapa intermédia,48 calcada sob o vetor da oralidade
e com produção probatória, além do estabelecimento de medidas processuais
a determinar ritos alternativos, como verificado em ordenamentos jurídicos
estrangeiros – processo penal italiano, v.g.
O principal critério norteador há de ser a defesa e o império inafastável
do contraditório e da ampla defesa desde o início do processo penal, visto que
tais garantias têm robustez e tradição histórica no processo penal brasileiro e
representam, não exclusivamente, as vigas mestras de um processo penal justo.
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A fixação do valor indenizatório na
sentença penal condenatória: fase
instrutória e prova da pretensão cível1
Resumo: A reforma processual promovida pela 11.719/08 introduziu no sistema processual penal
a ampla possibilidade de fixação de valor indenizatório mínimo na sentença penal condenatória.
Trata-se do ponto de chegada de um movimento de aproximação, separação e reaproximação entre
responsabilidades civil e penal. Em nosso ordenamento jurídico, representa a crescente preocupação
com uma política que integre um julgamento justo para vítimas e imputados. Contudo, a elencar tal
possibilidade no Código de Processo Penal vigente, o legislador deixou de confeccionar qualquer
disposição legal acerca de sua operacionalização. A regra traz insegurança jurídica quanto à forma de
sua aplicação. Este artigo limita-se à análise da fase instrutória e prova da pretensão cível.
Palavras-chave: Sentença condenatória penal. Fixação de valor mínimo indenizatório. Devido processo.
Processo penal.
1 Introdução
O presente artigo tem origem na dissertação de mestrado “A Fixação do Valor
Indenizatório na Sentença Condenatória Penal à Luz do Devido Processo” apresentada
no programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da USP, sob orientação do
Prof. Dr. Marcos Alexandre Coelho Zilli. Naquela pesquisa, a problemática central
consistiu na ausência de procedimentalização para a fixação de valor indenizatório
na sentença penal condenatória, possibilidade introduzida no sistema processual
penal pela Lei nº 11.719/08.
A reforma promovida pelo referido diploma legal é o ponto de chegada de um
movimento de aproximação, separação e reaproximação entre responsabilidades civil
e penal. Em nosso ordenamento jurídico, representa a crescente preocupação com
1
Artigo elaborado por autor convidado.
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uma política que integre um julgamento justo para vítimas e imputados. Contudo,
ao elencar tal possibilidade no Código de Processo Penal vigente, o legislador
deixou de apresentar qualquer disposição legal acerca de sua operacionalização.
A regra traz insegurança jurídica quanto à forma de sua aplicação, pendendo
questões tais como a necessidade de prévio requerimento para sua fixação pelo
julgador, quem deteria legitimidade e interesse para a formulação do pedido
ressarcitório, qual o momento e o modo de sua dedução, potenciais reflexos na
instrução processual, no sistema recursal, dentre outros. O tema traz, portanto,
como grande preocupação, o modo de realização do valor indenizatório dentro do
processo penal, muito mais do que seu conteúdo ou sua eventual repercussão no
processo civil.
Evidentemente, e até por limitação espacial, este artigo é um recorte da
pesquisa original, conquanto construído sobre as mesmas bases. Se naquela
buscou-se delimitar um possível modo de concretização da norma, a partir do
desenho processual já determinado pelo legislador, tendo como paradigma a
garantia síntese do devido processo, neste abordar-se-ão tão somente os impactos
da previsão legislativa na fase instrutória e na prova da pretensão cível no curso
do processo penal.
Para tanto, este estudo se inicia pela análise dos fenômenos da múltipla
incidência normativa, em parte decorrente do próprio movimento de confusão,
separação e reaproximação das esferas cível e penal. Posteriormente, serão
apreciados os modelos e mecanismos de coordenação de jurisdição especializadas,2
contexto no qual se insere a inovação legislativa introduzida pela Lei nº 11.719/08.
Compreendidos tais pressupostos, o desenho da procedimentalização da
fixação de valor mínimo indenizatório, não revelado pelo legislador, somente pode
ser construído a partir da garantia síntese do devido processo penal. Essa garantia
processual, de força constitucional, desdobra-se em uma série de outras garantias
que exercem a função de filtragem e orientação de como o arbitramento do valor
reparatório pode ser concretizado dentro do processo penal, sem a violação de
seu sentido de unidade, de suas diretrizes básicas e mesmo sem a mácula de
sua principal finalidade.
Examinados tais pressupostos teóricos, buscar-se-á solucionar as incertezas em
relação à fase instrutória, no curso do processo penal, resultantes da possibilidade
2
Em que pese sua unidade e indivisibilidade, por razões de comodidade lexical, usualmente emprega-se
o vocábulo “jurisdição” para expressar a variedade de órgãos encarregados do exercício da jurisdição em
suas diversas manifestações (MONTERO AROCA, 1976, p. 28/29). Fala-se, desse modo, em jurisdição
civil e jurisdição penal, autônomas e infungíveis entre si (LEONE, 1963, p. 276).
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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível
3
Nesse sentido: “Um mesmo e único fato ou comportamento humano pode surtir efeitos vários no mundo
do direito. Basta, para tanto, que mais de uma regra jurídica o preveja como suporte de sua incidência,
ou como elemento desse suporte” (BARBOSA MOREIRA, 1988. p. 96). Igualmente: ASSIS, 2000. p. 17.
PONTES DE MIRANDA, 1966. p. 27.
4
Igualmente: PALOMO HERRERO, 2008, p. 295; TUNC, 1989, p. 48; CARVALHO, 1995, p. 75; ASSIS,
2000, p. 29.
5
No mesmo sentido: ASSIS, 2000, p. 28.
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6
Ainda, “a afirmação, propugnada por Mortara, da unidade e da identidade da jurisdição, como função e
manifestação da soberania do Estado, pareceu uma importante conquista; salientou-se a necessidade de
evitar interferências, duplicidades e contradições nas atividades dos juízes penais e civis; e na hipótese
em que uns e outros fossem chamados para conhecer o mesmo fato, sustentou-se o conceito da preva-
lência da jurisdição penal, como sendo aquela que se exerce no interesse da coletividade e que por isso
também abarca o interesse do indivíduo lesado pelo fato delituoso” (LIEBMAN; GRINOVER, 2000, p. 754).
7
Ressalva-se que no sistema funcionalista teleológico a noção de culpabilidade é ampliada. Soma-se a
necessidade preventiva especial ou geral da sanção penal à noção de culpabilidade enquanto juízo de
reprovação. A essa adição dá-se o nome de responsabilidade penal, desencadeadora da aplicação da
sanção penal. Conferir: ROXIN, 1997, p. 204 e p. 791.
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8
Não se ignora, evidentemente, a responsabilidade civil por atos lícitos, v.g., norma do art. 929 do Código
Civil.
9
“No que têm de fundamental, coincidem o delito civil e o delito penal. Um e outro são uma rebeldia contra
a ordem jurídica. Consistem ambos num fato exterior do homem, antijurídico, imputável a titulo de dolo ou
culpa” (HUNGRIA, 1958, p. 27). “A diferença é mais extrínseca do que intrínseca, pois existe em ambas
uma característica essencial comum: a existência de um fato contrário ao direito” (GUERRA FILHO, 1985,
p. 263).
10
“Basta lembrar que o ilícito penal não difere em substância do ilícito civil, sendo diferente apenas a
sanção que os caracteriza (...).” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p. 159). Igualmente: HUNGRIA,
1958, p. 26.
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11
Nesse sentido: “A ideia de que a infração penal ofende contemporaneamente normas e interesses di-
versos, isto é, públicos de um lado e privados do outro, é uma ideia dos tempos modernos. No direito
antigo, por muito tempo, a pena e a reparação, quando previstas para um só fato ilícito, eram confundi-
dos e davam margem a uma única ação em favor do ofendido (dirigida conjuntamente ao ressarcimento
e à pena), que podia ser exercida unicamente sob forma de acusação perante o juiz penal” (LIEBMAN;
GRINOVER, 2000, p. 753). “(...) la distinction de la responsabilité civile et de la responsabilité pénale est
probablement la plus claire. La distinction, cependant, a été inconnue ou au moins obscure pendant des
siêcles. (...). Après des siècles, la distinction apparaît, sous une forme ou sous une autre, entre les actions
orientées vers la punition et celles qui tendent vers I’indemnisation de la victime. La distinction. bien entendu,
n’a pas été brutalernent conçue avec clarté. Elle a été ressentie, en quelque sorte, longtemps avant d’être
rationalisée. De plus, pendant une longue péríode, la punition et l’indemnisation, même quand elles étaient
distinguées, étaient administtées par le même tribunal, parfoís au cours de la mêrne action” (TUNC, 1989,
p. 47). Também, cf. LEAL, 1930. p. 21-22.
12
Marcelo Ferrante explica, neste sentido, que a reforma iluminista, ainda que dentro de um movimento de
humanização, consolida conceitos sobre os quais se apoia o direito penal estatal, quais sejam, interesse
público na aplicação da lei penal, persecução oficial e objetividade dos mecanismos de produção de ver-
dade. Cf. FERRANTE, 1995, p. 100-101.
13
“A antiga alocação da reparação exclusivamente no campo do Direito civil vem sendo relativizada, na me-
dida em que ela vem sendo introduzida no sistema penal seja por meio da atenuação de parcela da pena
ensejada pela reparação do dano pelo autor, seja por meio de acordos reparatórios, causas de extinção
da punibilidade e até mesmo como sanção autônoma” (PÜSCHEL; MACHADO, 2006).
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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível
14
Igualmente: “Nos últimos anos, tal visão, associada ao claro desejo de modernização da Justiça Penal,
levou a significativas mudanças que foram materializadas com o aprimoramento dos mecanismos alter-
nativos de solução do conflito. São exemplos a composição civil e a suspensão condicional do proces-
so. Ambas, contudo, ainda focam a vítima sob uma perspectiva preponderantemente patrimonial. Mais
recentemente, esta dimensão atingiu o seu clímax com a possibilidade de fixação, na própria sentença
condenatória, de um valor mínimo a título de reparação civil. Todos estes fenômenos, note-se, refletem
o anseio por uma maior eficiência da Justiça mediante a redução das distâncias entre as esferas civil e
penal” (ZILLI, 2011).
15
Cabe aqui ressalvar que, neste estudo, o vocábulo “reparação” tem sido e continuará sendo utilizado em
sentido amplo, a fim de indicar qualquer forma de prestação devida àquele que sofrer os danos decorren-
tes de uma infração penal. Tecnicamente, a doutrina distingue os termos “restituição”, “ressarcimento”,
“reparação” e “indenização”. Conferir: BARBOSA MOREIRA, 1988, p. 101.
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cujo cúmulo com a imputação se justifica pela relação entre ambos (CORDERO,
1971. p. 109).
A indenização do dano causado pela infração penal é matéria cível destinada
à apreciação do juízo cível no processo em que exerce sua jurisdição (ESPÍNOLA
FILHO, 1945. p. 26). Contudo, o nascimento simultâneo de pretensões – uma de
conteúdo acusatório e outra de conteúdo reparatório – originárias de um mesmo
fato implica sua coexistência (VITU, 1957, p. 144). Decorre, assim, uma rede de
interações entre a jurisdição penal e a jurisdição civil que, por vezes, entrecruzam-se.16
O regime jurídico próprio de cada uma dessas atividades jurisdicionais
especializadas impõe a sistematização de seu relacionamento e o desenvolvimento
de mecanismos destinados à compatibilização e prevenção de decisões conflitivas.17
Destarte, na lição de Araken de Assis, “nenhum ordenamento se mostra infenso
a grau mínimo de coordenação penal e civil, que, outrossim, graças a tendência
igualmente comum, se submete ao crivo de órgãos jurisdicionais distintos” (ASSIS,
2000, p. 46).
Não se trata, aqui, da elaboração de diferentes metodologias de reparação
de danos decorrentes da infração penal.18 O que se tem em vista é a conciliação
de decisões judiciais potencialmente conflitantes e a regulamentação da teia de
relações e pontos de contato entre jurisdição penal e civil. Os modelos para tanto
16
Nesse sentido: “Las mencionadas jurisdicciones se entrecruzan a veces. Así, la jurisdicción penal se suele
extender al conocimiento de un proceso (accesorio) de naturaleza civil: el de resarcimiento originado por el
hecho punible; por su parte, el previo pronunciamiento de la jurisdicción civil (o de la administrativa y aun
de la eclesiástica en los Estados que reconozcan eficacia a sus fallos) es en ocasiones necesario para
dejar expedito el camino a la jurisdicción penal (cuestiones prejudiciales); o bien, el órgano que ejerce la
jurisdicción constitucional es a la par tribunal penal de altas responsabilidades” (ZAMORA Y CASTILLO;
LEVENE HIJO, 1945, p. 201).
17
Nesse sentido: ESPÍNOLA FILHO, 1945, p. 36.
18
E, assim, até porque os sistemas de reparação de danos decorrentes da infração penal têm paradigma
diverso do estudo da coordenação de jurisdições. Embora não dispensem o estudo de mecanismos re-
tratados pelos sistemas de coordenação, os sistemas de reparação têm como ponto de partida a própria
satisfação do dano. Os sistemas de coordenação, diferentemente, estabelecem as relações de caráter
processual entre as pretensões que nascem do cometimento de uma mesma infração penal (CYRILLO,
1939, p. 24). O efeito prático e a diferença da classificação são claros. Exemplificativamente, cite-se o sis-
tema de indenização estatal e a criação de fundos de indenização. Esses partem da ideia de que a comu-
nidade é corresponsável pelos crimes, de modo que ela própria deve ser corresponsabilizada, conquanto
seja-lhe permitido o regresso contra o delinquente. A responsabilização do Estado seria somente provi-
sória, prestando de imediato uma indenização à vítima da infração penal (cf. DIAS, 1974, p. 573/574;
FERNANDES, 1995, p. 181). O sistema de indenização estatal diz respeito, diretamente, à reparação de
danos, pois se constrói sobre normativa destinada ao ressarcimento daquele que é lesado pelo delito.
Entretanto, a solução que apresenta pouca importância tem em relação ao estudo da coordenação das
atividades jurisdicionais civil e penal e seus respectivos regimes jurídicos. Não é demais lembrar, neste
ponto, que o art. 245 de nossa Constituição Federal de 1988 estatui, em seu art. 245, que “a lei disporá
sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes
carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilíci-
to”. Trata-se de nítida indicação de sistema de reparação do dano a ser promovida pelo erário. Todavia,
mesmo após tantos anos de vigência, não houve edição de lei que lhe conferisse efetividade.
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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível
19
Igualmente: CREUS, 1995. p. 18.
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Carlos Eduardo de Moraes Domingos
penal, de modo que inadequadas para análise de objeto que lhes é estranho; d)
fundir em um só processo a discussão de causas diversas provocará perturbação
no andamento do feito; e) os critérios para a apuração da responsabilidade penal
e da responsabilidade civil são diversos; f) a discussão de matéria de natureza
privada causará prejuízos na apuração da infração penal de interesse público; g) a
colaboração de parte civil para a prova da infração penal e do consequente prejuízo
acarretará desequilíbrio entre as partes, eis que o imputado ver-se-á atacado por
um órgão estatal e por um agente privado, tendo de se defender de pretensões
heterogêneas simultaneamente (BARBOSA MOREIRA, 1988, p. 105).
Qualquer que seja o sistema adotado, notam-se pontos de tensão aliviados
por normas que excepcionam o sistema e flexibilizam a concepção teórica pura. A
razão da mitigação da pureza dos modelos estudados é axiomática. Todos buscam
realizar interesses legítimos diretamente conectados aos escopos da jurisdição.
Essa deve se esmerar na busca de soluções não contraditórias no reconhecimento
das responsabilidades civil e penal decorrentes de uma origem fática comum,
prezar pela economia processual e, até mesmo, garantir a participação da vítima
na solução penal. Entretanto, da mesma forma deve atender ao interesse público
na precisão e justiça dos provimentos criminais, em um processo com duração
razoável e procedimentalmente coerente e adequado para tanto.
A sobriedade dessa constatação conduz à fixação de duas premissas
essenciais. Primeiramente, compreende-se que os diversos modelos de coordenação
não encontram existência pura no plano fático. Cada ordenamento jurídico nacional
desenvolve mecanismos próprios para atenuar seus rigores e contemplar a função
jurisdicional em sua totalidade.
Não há um pêndulo que permaneça em um dos polos extremos da estrita
separação ou da total cumulação, mas, em verdade, entre eles deve transitar.
A própria fixação de valor indenizatório mínimo na sentença penal condenatória,
recentemente inserida no art. 387, IV, do Código de Processo Penal brasileiro,
objeto de estudo deste trabalho, é um exemplo de mecanismo fundamentado em
um princípio de união que se insere em um sistema de separação de instâncias
adotado pelo nosso ordenamento.
A segunda proposição indica que, qualquer que seja o modelo adotado, os
princípios e garantias processuais decorrentes do devido processo deverão ser
observados tanto pelo legislador, quando da criação do desenho procedimental,
quanto pelo órgão judiciário diante de um caso concreto. Por essa razão, o implemento
de modelos, ou mesmo de mecanismos tendentes à união de objetos, terá como
efeito a incidência de princípios e regras processuais penais, ao lado de normas civis
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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível
20
GONÇALVES, Tiago Figueiredo. Sobre o dever imposto ao juiz do crime de fixar valor mínimo de reparação
dos danos civis causados pela infração quando da prolatação da sentença penal condenatória: implica-
ções da Lei 11.719/2008 no âmbito do processo civil e do processo penal. Ciências Penais, São Paulo,
v. 12 p. 353, jan./jun. 2010.
21
Nesse sentido: GONÇALVES, 2009, p. 241. DÍAZ Y GARCÍA CONLLEDO, 1995/1996, p. 29. SÁNCHEZ,
2004, p. 21. RANIERI, 1957, p. 127. ALMEIDA, 2016, p. 53. ALEXANDRE, 1991, p. 35.
R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019 95
Carlos Eduardo de Moraes Domingos
civil (ZAMORA Y CASTILLO; LEVENE HIJO, 1945, p. 94).22 Ainda que exercida
cumulativamente com a pretensão penal, a pretensão civil mantém sua natureza
e não se submete aos princípios da obrigatoriedade e oficialidade, característicos
do processo penal. Permanece na esfera de disponibilidade do lesado, que deve
sempre ter a possibilidade de renunciar a tal direito (LEONE, 1963, p. 478).23
Entretanto, é certo que a inserção da ação civil no processo penal não pode
ocorrer pura e simplesmente, considerado o interesse público que o permeia.
O potencial prejuízo à persecução penal é intuitivo. O contexto processual em
que é tratada a pretensão reparatória, embora mantenha sua natureza, implica
alterações nos princípios gerais de direito e processo civil que a orientam (PALOMO
HERRERO, 2008, p. 299).24 Sua disciplina deve então ser adaptada às exigências
e ao desenvolvimento do processo penal, de modo que não represente obstáculo
à concretização da jurisdição penal (LEONE, 1963, p. 479).
Assim, o exercício da ação civil no processo penal submete-se a duas regras
implícitas. A primeira delas indica que a pretensão civil é acessória quando cumulada
com a pretensão penal. A segunda determina que, embora mantenha sua natureza,
a ação civil está sujeita à regulamentação pelo processo penal (TONINI, 2010, p.
152). Desse modo, a pretensão reparatória tem como norte os princípios gerais
correspondentes à sua natureza, todavia, tendo em vista os interesses discutidos
no processo penal, inúmeras são as derrogações que lhes são feitas pela normativa
penal e processual penal.
Como resultado da prevalência do processo penal e da acessoriedade da
pretensão civil quando nesse deduzida, tem-se que a relação processual civil
desenvolve-se com uma configuração resultante da combinação de princípios e
regras de processo civil e de princípios de processo penal (LEONE, 1963, p. 481).
À pretensão civil aplicam-se as normas de processo civil, mas, necessariamente,
a questão também deve se submeter às normas de processo penal, considerando
que essas coordenam todo o procedimento e o objetivo principal do processo.25
22
Igualmente: SÁNCHEZ, 2004, p. 95. DÍAZ Y GARCÍA CONLLEDO, 1995/1996, p. 29. PALOMO HERRERO,
2008, p. 298-299.
23
Igualmente, conferir: ZAMORA Y CASTILLO; LEVENE HIJO, 1945, p. 95. VITU, 1957, p. 146.
24
Igualmente: HORTAL IBARRA, 2014, p. 9-10.
25
“En alguna medida se puede decir que el Derecho procesal penal tiene también por meta (accesoria o
secundaria) realizar el Derecho civil ex delito y, efectivamente, cuando se ejerce la acción civil reparatoria
se aplica por esta vía normas del Derecho civil y consecuencias jurídico-civiles, por más que las reglas
relativas a ello deban ser calificadas, en purismo, como normas de Derecho procesal civil injertadas en la
ley procesal penal. No obstante esta aclaración, las exposiciones de Derecho procesal penal se ocupan
de ellas necesariamente, porque forman parte de las que configuran el proceso penal y su desarrollo, y
debido a la coordinación imprescindible con las reglas puras de Derecho procesal penal que atienden a la
meta principal del procedimiento” (MAIER, 1989, p. 211).
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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível
26
A própria tradução do termo due process of law é de difícil realização, “vista a ambiguidade de sua
definição (...). Podemos, no entanto, tentar entendê-la sob a forma de ‘um procedimento justo, equitativo,
sob a boa e devida forma de lei’ ou segundo as regras do direito” (ARNAUD et al., 1999, p. 290).
27
“A noção do devido processo legal não é facilmente reduzida a nenhuma fórmula, pois seu conteúdo não
pode ser determinado pela referência a uma simples e qualquer norma” (PARIZ, 2009, p. 119).
28
“(...) muito embora o princípio do devido processo legal vá encontrar suas raízes na Magna Carta de 1215,
em cujo período serviu para regular o poder real, ele ultrapassou não só as barreiras geográficas, mas
também temporais e ideológicas, para compor na atualidade o ordenamento jurídico-constitucional brasi-
leiro. (...) Os anos passam, as nações se separam, ou se aglutinam, as bases geográficas se modificam,
mas persiste sempre a preocupação de impor limites, controlar a atividade daqueles que encabeçam o
processo político e promovem qualquer tipo de dominação sobre a sociedade” (LIMA, 1999, p. 184).
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Carlos Eduardo de Moraes Domingos
29
Nesse sentido: “Inicialmente, estas expressões – by the law of the land e due processo f law – estavam
relacionadas apenas a questões procedimentais, com significado nitidamente processual (‘direito a um
processo ordenado – ordely proceedings’), que foi, posteriormente, ampliado para acolher outros senti-
dos, como o da citação para a demanda, direito de defesa e o direito de não ser preso sem a evidencia de
uma justa causa (este derivado da Petition of Rights).” (PARIZ, 2009, p. 82). No mesmo sentido, conferir:
VIGORITI, 1970, p. 34-40.
30
É traço comum nas atuais conceituações da cláusula do devido processo legal o catálogo de garantias
processuais essenciais à noção de processo justo e método de exercício da função jurisdicional. Nesse
sentido, conferir: TONINI, 2010, p. 71; BADARÓ, 2016, p. 86.
31
Nesse sentido: “Entende-se, com essa fórmula, o conjunto de garantais constitucionais que, de um lado,
asseguram às partes o exercício de seus direitos, faculdade e poderes processuais e, do outro, são indis-
pensáveis ao correto exercício da jurisdição” (GRINOVER, 2013, p. 6).
32
Igualmente: DINAMARCO, 2017, p. 294-295; PARIZ, 2009, p. 75.
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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível
33
O devido processo legal, não só como princípio-síntese, mas também por se tratar de direito humano
fundamental, caracteriza-se pela indivisibilidade. Na dimensão dos direitos humanos e fundamentais,
André de Carvalho Ramos ensina que “a indivisibilidade consiste no reconhecimento de que todos os di-
reitos humanos possuem a mesma proteção jurídica, uma vez que são essenciais para uma vida digna. A
indivisibilidade possui duas facetas. A primeira implica reconhecer que o direito protegido apresenta uma
unidade incindível em si. A segunda faceta, mais conhecida, assegura que não é possível proteger apenas
alguns dos direitos humanos reconhecidos” (RAMOS, 2015, p. 91).
34
Neste ponto, oportuna a advertência formulada por Jorge de Figueiredo Dias: “A decantada natureza ‘pu-
blicística’ do processo penal em nada se opõe a um sistema acusatório, nem este é, necessariamente,
o reino do formal, do privatístico, do arremedo, em suma, da estrutura tradicional do processo civil; o
sistema basicamente acusatório é só expressão de uma concepção personalista do Direito e de uma
concepção democrática do Estado” (DIAS, 1974, p. 71).
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35
É nesse sentido que Juan Emilio Coquibus afirma que o direito processual alcança seu maior grau de per-
feição com um regime político que consiga conciliar o interesse individual, caracterizado pelas garantias
em favor do imputado, com o interesse social, traduzido pela eficiência da repressão penal (COQUIBUS,
1951, p. 18).
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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível
Fernandes, “em uma visão moderna, esses dois vetores não se opõem, pois não
se concebe um processo eficiente sem garantismo” (FERNANDES, 2010, p. 19).
Há natural dificuldade em se identificar e sistematizar todas as garantias que
compõem o devido processo penal, dado o seu caráter histórico e evolutivo. Sem
prejuízo de outras catalogações doutrinárias, Rogerio Lauria Tucci especifica garantias
que entende compor o devido processo particularizado no contexto processual penal:
36
Na jurisprudência, quando do julgamento do Habeas Corpus nº 96.905, o Supremo Tribunal Federal ar-
rolou, de igual modo, inventário de garantias que lhe parece compor a cláusula do devido processo penal.
Assim, listou as seguintes prerrogativas; “(a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário);
(b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e
célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e
à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis “ex post facto”; (f) direito
à igualdade entre as partes (paridade de armas e de tratamento processual); (g) direito de não ser inves-
tigado, acusado processado ou condenado com fundamento exclusivo em provas revestidas de ilicitude,
quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude derivada; (h) direito ao benefício da gratui-
dade; (i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito de não se autoincriminar nem de ser
constrangido a produzir provas contra si próprio; (l) direito de ser presumido inocente e, em consequência,
de não ser tratado, pelos agentes do Estado, como se culpado fosse, antes do trânsito em julgado de
eventual sentença penal condenatória; e (m) direito à prova”.
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37
Nesse sentido: “Nada dispõe sobre como esse valor é alcançado, se deve haver prévia manifestação da
vítima a esse respeito, inclusive para indicar parâmetros para a estipulação desse quantum, e, tampouco,
se deve haver alguma menção expressa do Ministério Público quando a persecução for de legitimação
pública” (CHOUKR, 2017, p. 863).
38
Fauzi Hassan Choukr adverte que: “é no fato de que não havendo previsão expressa de pedido sem que
haja, portanto, a exposição de fatos referentes à indenização de forma particularizar e individualizada,
de modo que possa gerar o cabível contraditório sobre o tema, que parecem residir os maiores entraves
para que se admita a plena compatibilidade do presente artigo com a estrutura constitucional” (CHOUKR,
2017, p. 863).
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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível
processo penal (NUCCI, 2009, p. 404). A partir destas, por meio do recurso aos
diferentes métodos interpretativos e integrativos do Direito, é que se pode atingir
sua concretização.
A ideia que deve servir-lhe de inspiração é a de que há a necessidade de se
integrar um conceito de julgamento justo para vítimas e acusados (SANDERS, 2004,
p. 193-194). Sempre a partir da filtragem da tutela constitucional, representada pela
garantia-síntese do devido processo legal, sua procedimentalização deve atender
à instrumentalidade finalística e metodológica do processo. Isto significa que sua
estruturação deve se prestar à tutela jurisdicional adequada. No caso, que contemple
a satisfação dos interesses da vítima e o direito de defesa efetiva do imputado.
39
Não é demais lembrar que “dentre as atividades necessárias à tutela dos interesses postulados pelas par-
tes, sobressai, sem dúvida, a probatória, pois a prova é indiscutivelmente o momento central do processo,
no qual são reconstituídos os fatos que dão suporte às pretensões deduzidas. Assim, o direito à prova con-
stitui aspecto fundamental do contraditório, pois sua inobservância representa negação da própria ação e da
defesa” (GRINOVER, 2013, p. 306).
40
Há até mesmo certa dificuldade em afirmar que a sentença penal condenatória seja, de fato, por si só, um
título executivo: “A sentença penal condenatória acerta a existência do ato ensejador de responsabilidade
civil e o elemento subjetivo (doloso ou culposo) do ofensor. Com base nessa decisão, a vítima ou seus
sucessores podem iniciar liquidação civil pelo procedimento comum (art. 509, II, do CPC de 2015), na
qual se desenvolve amplo contraditório destinado à demonstração da existência de dano, que pode resul-
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Carlos Eduardo de Moraes Domingos
tar em uma sentença de procedência ou de improcedência. Diante desse contexto, é difícil até mesmo
afirmar que a sentença penal condenatória seria, por si só, um título executivo, pois lhe falta mais do que
simples liquidez, mas sim a própria certeza objetiva e subjetiva. A única diferença para uma pura e simples
ação ex delicto está no fato de o processo se iniciar informado pela indiscutibilidade dessas questões
resolvidas na fundamentação da sentença penal condenatória” (SICA, 2016, p. 135).
41
No mesmo sentido: “Não há como negar que as instâncias penal e civil analisam os diversos aspectos
da causa segundo disciplinas normativas específicas, inclusive em termos de ônus da prova, com uma
necessidade de maior certeza para a imputação de natureza penal” (GOMES JR., 2015, p. 806).
42
Prosseguindo em seu raciocínio, o autor afirma que “no primeiro [processo civil], o quantum de prova é
idêntico para o requerente e para o requerido. O requerente deve provar os fatos constitutivos do seu direi-
to para eliminar a dúvida do juiz (art. 2697, inciso I, do Código Civil). A insuficiência ou a contraditoriedade
da prova por ele fornecida (por exemplo, sobre a existência de um crédito), é equiparada à inexistência
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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível
é mais intensa (LEONEL, 2016, p. 132), enquanto que nesse a liberdade defensiva
é mais extensa.
Como consequência, quanto à prova e contraprova da fixação de valor
indenizatório no processo penal, levanta-se uma primeira questão. Se mais intensa
é a atividade probatória do réu em relação ao pedido cível, tendo em conta as regras
de ônus de prova e o critério de julgamento próprios do processo civil, sua defesa
criminal estará relegada a um segundo plano ou haverá de renunciar a uma defesa
cível efetiva em favor de uma adequada defesa penal. Mais além, o que fazer se
a prova de sua defesa implicar a exasperação da indenização civil?43 O respeito e
a consonância da ampla defesa tanto em relação à imputação penal quanto em
relação à pretensão ressarcitória são o primeiro desafio a ser enfrentado.
Soma-se a isto o próprio risco de desvirtuamento do processo penal, em si
mesmo considerado, para a apuração de questão cível, em prejuízo ao interesse
público envolvido na sua solução. Prolongar a discussão indenizatória em detrimento
da discussão penal representa a distorção do processo penal para benefício de
questão predominantemente privada.
Por tais razões, a solução, conquanto casuística, parece residir na complexidade
da prova referente à pretensão ressarcitória, de modo que “não poderá o juízo
criminal ampliar demais a atividade probatória a respeito do dano civil para não
causar desvios procedimentais ou subverter a correta condução do processo para
a solução da pretensão punitiva” (CABRAL, 2016, p. 409). Isso significa que,
considerada a inconveniência de uma instrução probatória detalhada do valor
reparatório, deve-se privilegiar a produção de prova pré-constituída. Ao prudente
arbítrio do juízo, se a prova requerida por qualquer das partes for complexa e, desde
que pertinente e relevante ao feito, a decisão final não poderá comportar a fixação
de valor indenizatório mínimo.44
A fim de garantir o direito à prova, sem que o processo penal tenha pervertida
sua finalidade principal ou maculada qualquer garantia processual do imputado, o
julgador deverá deixar de fixar valor mínimo indenizatório no caso de complexidade
da instrução da questão cível. Ao imputado tem-se assegurada a garantia da ampla
de prova e faz com que o juiz indefira o pedido. Da mesma forma ocorre quando o ônus da prova com-
pete ao requerido (...). Em contrapartida, no processo penal, o órgão acusador tem o ônus de provas a
responsabilidade do acusado de modo a eliminar a dúvida. Quando restar dúvida (o que a jurisprudência
anglo-americana define como ‘razoável’), o acusado deve ser absolvido” (TONINI, 2010, p. 68-69).
43
O problema é identificado por: SUÁREZ SÁNCHEZ, 1998, p. 91.
44
Essa foi a solução encontrada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Penal nº 470. Cf.:
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 470. Relator(a): Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado
em 17.12.2012, acórdão eletrônico dje-074 divulg. 19.04.2013 public. 22.04.2013 rtj vol-00225-01
pp-00011.
R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019 105
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45
Nesse sentido: “Pensamos que o ingresso da vítima no processo penal para postular apenas a satisfação
do dano pode causar tumulto e arrastar o processo por mais tempo” (TOURINHO FILHO, 2013, p. 36). “É
mais um entrave à resposta da jurisdição criminal dentro do tempo razoável. Por isso, são inadmissíveis
os meios de prova e a metodologia de busca desta, quando objetivarem a reparação cível” (GIACOMOLLI,
2015, p. 110). Igualmente, já na década de 80, José Carlos Barbosa Moreira alertava quanto à incompa-
tibilidade entre celeridade processual e intervenção da parte civil e dilação instrutória no processo penal
(conferir: BARBOSA MOREIRA, 1988, p. 114).
46
Não é demais lembrar que “a eventual indisponibilidade patrimonial do réu, que por si só é gravíssima,
mas que, se for conjugada com uma prisão cautelar, conduz à inexorável bancarrota do imputado e de
seus familiares. A prisão (mesmo cautelar) não apenas gera pobreza, senão que a exporta, a ponto de
a ‘intranscendência da pena’ não passar de romantismo do Direito Penal” (LOPES JR., 2014. p. 184).
Do mesmo modo, “porque autorizado o seu encarceramento antecipado, deverão todos os partícipes da
persecução empreender o máximo de celeridade a fim de se chegar à solução final, para dar uma res-
posta definitiva à situação indesejada de prisão provisória. O julgamento final no menor tempo possível,
respeitando-se as demais garantias processuais é, portanto, uma forma de se atribuir maior efetividade e
respeito à presunção de inocência” (MORAES, 2010. p. 351).
106 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019
A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível
47
O direito ao silêncio tem origem no ius commune europeu, no início do século XVII. Conforme Albert
Alschuler, “the roots of the privilege in the early seventeenth century (and earlier) art to be found not in
the common law of England, but in the ius commune – the law applied throughout the European continent
and in the English prerogative and ecclesiastical courts. When seventeenth-century common law restricted
the power of the High Commission to ask incriminating questions of suspected religious dissenters, these
courts were, for the most part, requiring the commission to adhere to the law it purported to observe.
Several maxims of the ius commune expressed its most important limitation on interrogation. In addition to
the familiar Nemo tenetur maxim, given above, the ius commune made use of two more: Nemo punitur sine
accusatore (‘No one is punished in the absence of na accuser’) and Nemo tenetur detegere turpitudinem
suam (‘No one is bound to reveal his own shame’).” (ALSCHULER, 1997, p. 185). Por certo, tal direito
assumiu diferentes contornos em seu desenvolvimento histórico, de modo que posteriormente passou
a referir-se não apenas à instauração do procedimento criminal ou a uma acusação inicial, mas também
a toda condução do processo penal, independentemente da prova já colhida, desembocando no direito
ao silêncio e de não contribuir ativamente à construção e confirmação da tese acusatória (ALSCHULER,
1997, p. 185-201).
48
No processo civil, o direito ao silêncio restringe-se ao depoimento pessoal, nas hipóteses do artigo 388
do Código de Processo Civil. Contudo, seu exercício terá efeito direto quanto ao seu ônus de prova, uma
vez que segue lógica diferente àquela do processo penal.
49
“Sin necesidad de hacer el paralelo entre el lesionado en el proceso civil y el lesionado en el penal, basta
con que observemos que el impulso que mueve a este último es, como a aquél, un considerable interés
personal; además, parece que no está en armonía con los principios fundamentales del moderno proceso
que sea a un tiempo sujeto procesal y testigo” (FLORIAN, 1934, p. 241).
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Carlos Eduardo de Moraes Domingos
7 Conclusões
Dado que a ciência do Direito propõe sua divisão metodológica em ramos,
tem-se como resultado a possibilidade de múltipla incidência jurídica. Tal fenômeno
explica como um mesmo fato pode ser valorado por setores diversos do ordenamento
jurídico e ajustar-se ao suporte fático de uma ou mais normas. O que indicará qual a
50
Em sentido contrário, ao analisar a figura do assistente de acusação, Gustavo Badaró afirma que o sujeito
“não poderá ser assistente de acusação e prestar declaração como ofendido, nos termos do art. 201 do
CPP. Há uma incompatibilidade ontológica entre tais posições. Uma delas é parte, sujeito processual, a
outra é fonte de prova” (BADARÓ, 2016, p. 306-307).
51
Tema nº 983: “Nos casos de violência contra a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é pos-
sível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da
acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de instrução
probatória”.
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A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível
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Carlos Eduardo de Moraes Domingos
Setting damages in criminal sentencing: instructional phase and proof of civil claim
Abstract: The procedural reform set forth in Act 11.719/08 introduced into the criminal procedure
system the distinct possibility of setting minimum damages in criminal sentencing. This is the
culmination of a movement of convergence, divergence and reconvergence of civil and criminal liability.
In our legal system, it represents the growing concern for a policy that incorporates a fair trial for the
victims and the accused. However, when the lawmaker established this possibility in the current Code
of Criminal Procedure, no provisions were made with regard to its application. There is legal uncertainty
as to how the rule should be applied. This article is limited to the analysis of the instrumental phase
and proof of the civil claim.
Keywords: Criminal sentencing. Setting minimum damages. Due process. Criminal procedure.
110 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 85-115, jul./dez. 2019
A fixação do valor indenizatório na sentença penal condenatória: fase instrutória e prova da pretensão cível
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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES
Os impactos do compliance efetivo
na responsabilidade administrativa
objetiva da pessoa jurídica na Lei
Anticorrupção
1 Introdução
A Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, denominada Lei Anticorrupção (LAC),1
inaugurou, no ordenamento jurídico brasileiro, a responsabilidade administrativa da
1
A Lei Anticorrupção é também chamada de “Lei de Improbidade Empresarial”, “Lei da Empresa Limpa”,
“Lei da Integridade das Pessoas Jurídicas” ou “Legislação de compliance”.
R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 119-148, jul./dez. 2019 119
Bruno Martins Torchia
pessoa jurídica, desta vez de forma objetiva, pela prática de atos lesivos, os quais
estão descritos em rol numerus clausulus, no seu artigo 5º.2
A mens legis da LAC é responsabilizar a pessoa jurídica por atos de corrupção
praticados em face da administração pública nacional ou estrangeira, sem olvidar
da responsabilidade subjetiva de seus dirigentes, administradores ou de qualquer
pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito.
Modesto Carvalhosa doutrina que a referida lei possui natureza e substância
penal, haja vista que suas condutas ilícitas tipificadas e efeitos se justapõem na
esfera penal (CARVALHOSA, 2015).
As disposições da Lei Anticorrupção são extremamente severas e demonstram
que o legislador tem procurado agir com austeridade no combate à corrupção,
máxime porque tanto a Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº
8.666/1993)3 quanto a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992),
principais diplomas nacionais que até então previam sanções em licitações e
contratações públicas, não estavam se mostrando eficazes, por não direcionarem,
mais diretamente, às pessoas jurídicas.4 5
2
Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei,
todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1º, que atentem
contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra
os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos: I - prometer, oferecer ou dar,
direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada; II
- comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos
ilícitos previstos nesta Lei; III - comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para
ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados; IV - no
tocante a licitações e contratos: a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro
expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público; b) impedir, perturbar ou fraudar a
realização de qualquer ato de procedimento licitatório público; c) afastar ou procurar afastar licitante, por
meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo; d) fraudar licitação pública ou contrato dela
decorrente; e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública
ou celebrar contrato administrativo; f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de
modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em
lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou g) manipular
ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública; V -
dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir
em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema
financeiro nacional (BRASIL, 2016a).
3
Convém ressaltar que a Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos, além de sanções administra-
tivas, tipifica uma série de condutas criminosas, a partir do seu artigo 89.
4
Embora já existam normas legais definindo crimes, atos de improbidade e infrações administrativas pra-
ticados contra a Administração Pública, o legislador houve por bem disciplinar especificamente os ilícitos
praticados por pessoas jurídicas contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira. (DI PIETRO,
2014, p. 928).
5
Veja-se, a título de exemplo, a Convenção Interamericana de Combate contra a Corrupção (CICC), da
Organização dos Estados Americanos (OEA), realizada em 29 de março de 1996, em Caracas, Venezuela,
na qual se definiu a necessidade de responsabilizar pessoas jurídicas pela prática de atos de corrupção.
Nesse sentido é a redação do art. 3º, item 2: “Caso a responsabilidade criminal, sob o sistema jurídico
da Parte, não se aplique a pessoas jurídicas, a Parte deverá assegurar que as pessoas jurídicas estarão
sujeitas a sanções não-criminais efetivas, proporcionais e dissuasivas contra a corrupção de funcionário
120 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 119-148, jul./dez. 2019
OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...
público estrangeiro, inclusive sanções financeiras”. Referida convenção foi integrada ao ordenamento
jurídico brasileiro após aprovação do Decreto Legislativo nº 152, de 25 de junho de 2002, e Decreto nº
4.410, de 7 de outubro de 2002 (BRASIL, 2017).
6
Art. 6º Na esfera administrativa, serão aplicadas às pessoas jurídicas consideradas responsáveis pelos
atos lesivos previstos nesta Lei as seguintes sanções: I - multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento)
a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo
administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível
sua estimação; e II - publicação extraordinária da decisão condenatória. §1º As sanções serão aplicadas
fundamentadamente, isolada ou cumulativamente, de acordo com as peculiaridades do caso concreto e
com a gravidade e natureza das infrações. §2º A aplicação das sanções previstas neste artigo será prece-
dida da manifestação jurídica elaborada pela Advocacia Pública ou pelo órgão de assistência jurídica, ou
equivalente, do ente público. §3º A aplicação das sanções previstas neste artigo não exclui, em qualquer
hipótese, a obrigação da reparação integral do dano causado. §4º Na hipótese do inciso I do caput, caso
não seja possível utilizar o critério do valor do faturamento bruto da pessoa jurídica, a multa será de R$
6.000,00 (seis mil reais) a R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais). §5º A publicação extraordi-
nária da decisão condenatória ocorrerá na forma de extrato de sentença, a expensas da pessoa jurídica,
em meios de comunicação de grande circulação na área da prática da infração e de atuação da pessoa
jurídica ou, na sua falta, em publicação de circulação nacional, bem como por meio de afixação de edital,
pelo prazo mínimo de 30 (trinta) dias, no próprio estabelecimento ou no local de exercício da atividade, de
modo visível ao público, e no sítio eletrônico na rede mundial de computadores. (BRASIL, 2016a).
7
Art. 19. Em razão da prática de atos previstos no art. 5o desta Lei, a União, os Estados, o Distrito Federal
e os Municípios, por meio das respectivas Advocacias Públicas ou órgãos de representação judicial, ou
equivalentes, e o Ministério Público, poderão ajuizar ação com vistas à aplicação das seguintes sanções
às pessoas jurídicas infratoras: I - perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem
ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de
boa-fé; II - suspensão ou interdição parcial de suas atividades; III - dissolução compulsória da pessoa
jurídica; IV - proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos
ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo
mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos. §1º A dissolução compulsória da pessoa jurídica será de-
terminada quando comprovado: I - ter sido a personalidade jurídica utilizada de forma habitual para facilitar
ou promover a prática de atos ilícitos; ou II - ter sido constituída para ocultar ou dissimular interesses
ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados. §2º (VETADO). §3º As sanções poderão ser
aplicadas de forma isolada ou cumulativa. (BRASIL, 2016a).
8
Art. 7º Serão levados em consideração na aplicação das sanções: I - a gravidade da infração; II - a van-
tagem auferida ou pretendida pelo infrator; III - a consumação ou não da infração; IV - o grau de lesão ou
perigo de lesão; V - o efeito negativo produzido pela infração; VI - a situação econômica do infrator; VII - a
cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações; VIII - a existência de mecanismos e proce-
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OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...
2 Lei Anticorrupção
A Lei Anticorrupção, norma de natureza cível administrativa, disciplina a
responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas pela prática de atos que ela
considera lesivos, sem prejuízo da responsabilização (subjetiva) individual dos
seus dirigentes, administradores ou qualquer pessoa natural, autora, coautora ou
partícipe do ilícito.15
Modesto Carvalhosa entende que o diploma objetiva estabelecer normas de
conformidade visando o combate à prática da corrupção junto ao Poder Público. A lei,
porém, na visão do autor, constitui a transposição para o Direito Penal-Administrativo
13
Esse é o escólio de Carlos Henrique da Silva Ayres: “O benefício que as empresas sujeitas à legislação
norte-americana podem ter por conta de apresentarem um programa de compliance robusto é significativo,
reduzindo penalidades ou até mesmo eximindo-as de sanções em determinados casos, além de outras
consequências favoráveis” (AYRES, 2014, p. 44).
14
Marco Vinicio Petrelluzzi e Rezek Junior aduzem: “[...] o UK Bribery Act contempla que, na hipótese de
a sociedade comprovar a presença de procedimentos adequados no sentido de prevenção da corrupção
(programas de compliance), sua conduta poderá não sofrer qualquer sanção, o que vem estimulando
sobremaneira a adoção, por empresas com atuação no âmbito da União Europeia [sic], de programas de
compliance” (PETRELLUZZI; RIZEK JUNIOR, 2014, p. 27).
15
Humberto Barrionuevo Fabretti leciona: “Porém, é preciso atentar-se para o fato de que a Lei 12.846/2013
prevê̂ apenas a possibilidade de responsabilidade das pessoas jurídicas, sendo que a responsabilização
das pessoas físicas vai depender de outros diplomas legais, que deverão prever as condutas das pessoas
físicas que pretende punir, como, por exemplo, o Código Penal, a Lei de Improbidade Administrativa, a Lei
de Licitações, o Estatuto do Funcionário Público Federal etc.” (FABRETTI, 2014, p. 4).
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16
Art. 20. Nas ações ajuizadas pelo Ministério Público, poderão ser aplicadas as sanções previstas no art.
6º, sem prejuízo daquelas previstas neste Capítulo, desde que constatada a omissão das autoridades
competentes para promover a responsabilização administrativa (BRASIL, 2016a).
17
Art. 6º. [...] §3º A aplicação das sanções previstas neste artigo não exclui, em qualquer hipótese, a
obrigação da reparação integral do dano causado. [...] Art. 13. A instauração de processo administrativo
específico de reparação integral do dano não prejudica a aplicação imediata das sanções estabelecidas
nesta Lei. (BRASIL, 2016a).
18
Tramita perante o Supremo Tribunal Federal Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.261/DF
que visa discutir a responsabilização objetiva prevista na Lei Anticorrupção, ajuizada pelo Partido Social
Liberal (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 5.261/DF. Petição inicial. Reqte.: Partido Social Liberal
(PSL). Intdos: Presidente da República, Congresso Nacional, CONACI (Conselho Nacional de Controle
Interno). 11 mar. 2015. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do-
cID=8006839&ad=s#2%20-%20Peti%E7%E3o%20inicial%20-%20Peti%E7%E3o%20inicial%201. Acesso
em: 22 mar. 2016).
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OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...
3 Compliance
3.1 Considerações iniciais
Compliance é um termo anglo-saxão que deriva da expressão to comply e
significa obedecer, executar e realizar o que foi imposto.
Segundo José Anacleto Abduch Santos et al. (2015, p. 233-234) pode ser
compreendido como o dever de cumprir e fazer cumprir normas legais, códigos de
ética concorrencial e normas internas que regem determinada atividade econômica,
demonstrando diligência e o cumprimento do dever de cuidado inerente à prudência
no trato dos negócios e atividades empresariais.
Para Vicente Greco Filho (2015, p. 69), compliance “consiste na prática de
obedecer a regras ou requisições/mandamentos emanados de autoridades. Também
pode ser encarado como prática para assegurar total obediência à lei”.
Para Rodrigo Sánchez Rios e Caio Antonietto o compliance está ligado a três
vertentes: adoção de controles internos com o fim de prevenir modalidades delitivas;
limitação do abuso de poder através de governança corporativa; e compromissos de
luta contra a corrupção materializados em seus Códigos de Ética (RIOS; ANTONIETTO,
2015, p. 5-6).
O compliance visa reagir contra as infrações e fraudes cometidas no âmbito
da pessoa jurídica, possuindo, portanto, objetivos preventivos e reativos.
O compliance não é instituto novo e antes mesmo da edição da Lei Anticorrupção
várias organizações já tinham implantando este mecanismo, inclusive com suporte
em legislação estrangeira (OLIVEIRA, 2017, p. 24).
Sua primeira aparição histórica no plano internacional data de mais ou menos
15 anos. Nilson Lautennchleger Junior, citado por Flávio Rezende Dematté (2015, p.
129), destaca que normas mais sólidas de compliance ganharam maior relevância
nos Estados Unidos com a edição da Sarbanes-Oxley-Act, em 23 de janeiro de
2002, que seria uma resposta do governo americano ao caso Enron,19 envolvendo
19
Flavio Rezende Dematté nos ensina que o caso Enron, em 2001, foi um acontecimento de grande relevân-
cia porque ilustra bem a hipótese na qual a sobreposição de interesses privados dos membros diretores
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da empresa se faz presente com relação aos acionistas, uma vez que aqueles, durante anos, manipula-
ram relatórios de auditorias internas e externas para esconder uma dívida de aproximadamente 25 bilhões
de dólares (DEMATTÉ, 2015, p. 71).
20
Vicente Greco Filho disserta que o comprometimento empresarial pela anticorrupção traz uma série de
benefícios para a corporação, seja por contar com uma boa reputação, tornar-se mais atrativa para as ins-
tituições financeiras, bem como ser uma opção interessante de compra, fusão, incorporação etc. (GRECO
FILHO, 2015, p. 68-69).
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OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...
O compliance é termo que vem sendo cada vez mais dotado de generalidade,
de forma a ser utilizado como mecanismo de prevenção e reação por qualquer
pessoa jurídica, e em vários segmentos, sendo comum sua classificação se dar de
acordo com o ramo do Direito ou problema específico ao qual se relacione, já que é
uma construção que foi importada para o Direito brasileiro muito antes da LAC.21 22
21
Tais como compliance trabalhista, bancário, ambiental, tributário, concorrencial, criminal etc.
22
Lorraine S. Evangelista “sustentou que a definição de compliance cuidava de um ‘fenômeno’ um tanto
quanto complicado em razão das diferentes perspectivas tomadas por diversas disciplinas” (EVANGELISTA
apud GRECO FILHO, 2015, p. 70).
23
Acerca do fenômeno da corrupção remetemos o leitor a TORCHIA, Bruno Martins; MACHADO, Tacianny
Mayara Silva. Os reflexos sociais da corrupção no direito ao trabalho. XXV Encontro Nacional do Conpedi –
Brasília/DF. Florianópolis: CONPEDI, 2016. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/publicacoes/
y0ii48h0/6ghn3t0o/IXr7F879eTgC4EAc.pdf. Acesso em: 17 nov. 2016 (TORCHIA; MACHADO, 2016).
24
Governança corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monito-
radas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria,
órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas. As boas práticas de governança corpora-
tiva convertem princípios básicos em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade de
preservar e otimizar o valor econômico de longo prazo da organização, facilitando seu acesso a recursos
e contribuindo para a qualidade da gestão da organização, sua longevidade e o bem comum (INSTITUTO
BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA, 2015, p. 20).
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mais provável será que infrações venham a ser expostas para as autoridades e
para eventuais litigantes privados, aumentando, em consequência, a potencial
responsabilidade da empresa.
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves e Caroline da Rosa Pinheiro (2016,
p. 6) assinalam que, não obstante haja confusão ordinária entre o compliance e a
governança corporativa, não são institutos iguais, visto que a governança corporativa
se refere à existência de regras para a boa gestão da sociedade e o compliance
possui escopo mais restrito e diz respeito ao fiel cumprimento das normas legais,
que, num determinado contexto, têm força cogente.
Os autores prosseguem para dizer que existem teorias que buscam explicar o
embasamento do compliance, sendo elas a teoria da dissuasão (deterrence theory),
segundo a qual a maior probabilidade de sanção, seguida de uma eficiente fiscali-
zação, leva a um maior índice de compliance; a teoria da decisão comportamental
(behavioral decision theory), que assevera que os conceitos prévios cognitivos podem
influenciar na escolha racional; e a teoria normativista, que defende estratégias
de disseminação de informações, assistência tecnológica e inspeções, em prol de
maior cooperação entre os envolvidos (ALVES; PINHEIRO, 2016, p. 6-7).
Já o criminal compliance surgiu no cenário através qual empresários e
dirigentes possuem dificuldade em se adequar às regulamentações a que estão
sujeitos, devendo se prevenir de tais riscos, oriundos também de regulamentações
extrapenais (RIOS; ANTONIETTO, 2015, p. 8).
A origem do criminal compliance surge com a Lei nº 12.683/2012, que
modificou a Lei de Lavagem de Dinheiro, que impôs a obrigatoriedade de várias
pessoas físicas e jurídicas comunicar às autoridades responsáveis certas operações
de ativos, sob pena de responsabilização administrativa ou de presunção de origem
ilícita dos bens e valores (BONACCORSI, 2017, p. 208-211).
Há que se distinguir, porém, o compliance das normas relacionadas à prevenção
à lavagem de dinheiro e o compliance aplicável à Lei Anticorrupção. No primeiro
caso o mecanismo é obrigatório, ensejando aplicação de sanções administrativas
às pessoas físicas e jurídicas. E no segundo, facultativo, pois a ausência do
programa representará, tão somente, impossibilidade de mitigação da pena de
multa administrativa (VERÍSSIMO, 2017, p. 17).
Segundo Renato Mello Jorge da Silveira, a análise da Lei nº 12.683/2012,
da Lei Anticorrupção e do entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal
no julgamento do mensalão (AP 470) permite-nos concluir haver um reforço penal
na lavagem de capitais, de modo que as não correspondências aos programas de
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OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...
25
Art. 41. Para fins do disposto neste Decreto, programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa
jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à
denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes
com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a admi-
nistração pública, nacional ou estrangeira. Parágrafo Único. O programa de integridade deve ser estrutura-
do, aplicado e atualizado de acordo com as características e riscos atuais das atividades de cada pessoa
jurídica, a qual por sua vez deve garantir o constante aprimoramento e adaptação do referido programa,
visando garantir sua efetividade (BRASIL, 2016b).
Art. 42. Para fins do disposto no §4º do art. 5º, o programa de integridade será avaliado, quanto a sua
existência e aplicação, de acordo com os seguintes parâmetros: I - comprometimento da alta direção da
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pessoa jurídica, incluídos os conselhos, evidenciado pelo apoio visível e inequívoco ao programa; II - pa-
drões de conduta, código de ética, políticas e procedimentos de integridade, aplicáveis a todos os em-
pregados e administradores, independentemente de cargo ou função exercidos; III - padrões de conduta,
código de ética e políticas de integridade estendidas, quando necessário, a terceiros, tais como, fornece-
dores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados; IV - treinamentos periódicos sobre
o programa de integridade; V - análise periódica de riscos para realizar adaptações necessárias ao pro-
grama de integridade; VI - registros contábeis que reflitam de forma completa e precisa as transações da
pessoa jurídica; VII - controles internos que assegurem a pronta elaboração e confiabilidade de relatórios
e demonstrações financeiros da pessoa jurídica; VIII - procedimentos específicos para prevenir fraudes e
ilícitos no âmbito de processos licitatórios, na execução de contratos administrativos ou em qualquer inte-
ração com o setor público, ainda que intermediada por terceiros, tal como pagamento de tributos, sujeição
a fiscalizações, ou obtenção de autorizações, licenças, permissões e certidões; IX - independência, estru-
tura e autoridade da instância interna responsável pela aplicação do programa de integridade e fiscaliza-
ção de seu cumprimento; X - canais de denúncia de irregularidades, abertos e amplamente divulgados a
funcionários e terceiros, e de mecanismos destinados à proteção de denunciantes de boa-fé; XI - medidas
disciplinares em caso de violação do programa de integridade; XII - procedimentos que assegurem a pronta
interrupção de irregularidades ou infrações detectadas e a tempestiva remediação dos danos gerados;
XIII - diligências apropriadas para contratação e, conforme o caso, supervisão, de terceiros, tais como,
fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados; XIV - verificação, durante os
processos de fusões, aquisições e reestruturações societárias, do cometimento de irregularidades ou
ilícitos ou da existência de vulnerabilidades nas pessoas jurídicas envolvidas; XV - monitoramento contínuo
do programa de integridade visando seu aperfeiçoamento na prevenção, detecção e combate à ocorrência
dos atos lesivos previstos no art. 5º da Lei nº 12.846, de 2013; e XVI - transparência da pessoa jurídica
quanto a doações para candidatos e partidos políticos. §1º Na avaliação dos parâmetros de que trata
este artigo, serão considerados o porte e especificidades da pessoa jurídica, tais como: I - a quantidade
de funcionários, empregados e colaboradores; II - a complexidade da hierarquia interna e a quantidade
de departamentos, diretorias ou setores; III - a utilização de agentes intermediários como consultores ou
representantes comerciais; IV - o setor do mercado em que atua; V - os países em que atua, direta ou
indiretamente; VI - o grau de interação com o setor público e a importância de autorizações, licenças e per-
missões governamentais em suas operações; VII - a quantidade e a localização das pessoas jurídicas que
integram o grupo econômico; e VIII - o fato de ser qualificada como microempresa ou empresa de pequeno
porte. §2º A efetividade do programa de integridade em relação ao ato lesivo objeto de apuração será con-
siderada para fins da avaliação de que trata o caput. §3º Na avaliação de microempresas e empresas de
pequeno porte, serão reduzidas as formalidades dos parâmetros previstos neste artigo, não se exigindo,
especificamente, os incisos III, V, IX, X, XIII, XIV e XV do caput. §4º Caberá ao Ministro de Estado Chefe
da Controladoria-Geral da União expedir orientações, normas e procedimentos complementares referen-
tes à avaliação do programa de integridade de que trata este Capítulo. §5º A redução dos parâmetros de
avaliação para as microempresas e empresas de pequeno porte de que trata o §3º poderá ser objeto de
regulamentação por ato conjunto do Ministro de Estado Chefe da Secretaria da Micro e Pequena Empresa
e do Ministro de Estado Chefe da Controladoria-Geral da União (BRASIL, 2016b).
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1º Princípio – Procedimentos proporcionais: os procedimentos a adotar deverão ser proporcionais aos
riscos de corrupção sentidos e à natureza, escala e complexidade da atividade prosseguida pela pessoa
coletiva. Deverão, além do mais, ser os referidos procedimentos claros, práticos, acessíveis, efetivos,
implementados e executados pela entidade. 2º Princípio – Compromisso da hierarquia superior: os órgãos
superiores de gestão da entidade deverão comprometer-se com as medidas de combate à corrupção e
adotar uma cultura de coletividade segundo a qual a corrupção seja considerada inaceitável. Este com-
promisso deverá incluir formas de comunicação desta política anticorrupção no seio da organização e o
envolvimento das próprias instâncias superiores de gestão no desenvolvimento dos procedimentos de
combate à corrupção. 3º Princípio – Avaliação do risco: deverá existir uma avaliação – periódica, infor-
mada e documentada – da natureza e extensão da exposição da entidade a potenciais riscos, internos e
externos, à corrupção. Os riscos externos mais comuns são categorizados em cinco grupos: risco do país,
risco do setor, risco da transação, risco da oportunidade do negócio e risco de parcerias de negócios.
4º Princípio – Due Diligence: due diligences, proporcionais ao risco e orientadas por esse mesmo risco,
deverão ser realizadas junto das contrapartes negociais. 5.º Princípio – Comunicação (incluindo formação):
através de medidas, internas e externas, de comunicação e formação, a política anticorrupção deverá
ser acolhida pela organização, em medida proporcional aos riscos que a mesma enfrenta. 6º Princípio –
Monitorização e avaliação: os procedimentos destinados a combater a corrupção deverão ser monitori-
zados e avaliados e os necessários ajustamentos deverão ser implementados sempre que necessário
(GESTAO TRANSPARENTE, 2016).
27
Vicente Greco Filho diz que o FCPA é composto do seguinte: “i) Compromisso e envolvimento da Alta
Administração – Tone of the top; ii) Aplicação de políticas anticorrupção claramente articuladas; iii) Código
de Ética/Conduta; iv) Política e Procedimentos de Compliance; v) Fiscalização, Autonomia e Recursos
para o Compliance Officer; vi) Risk Assessment – Análise de Riscos do Compliance; (vii) Due diligence de
Terceiro e de Pagamentos; viii) Due Diligence anticorrupção em Fusões e Aquisições; ix) Treinamento e
Aconselhamento Contínuos; x) Canal confidencial – hotline – e investigações internas; xi) Monitoramentos
e revisões e testes periódicos” (GRECO FILHO, 2015, p. 75).
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28
Art. 2º Para que seu programa de integridade seja avaliado, a pessoa jurídica deverá apresentar: I - relató-
rio de perfil; (CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO, 2016a).
29
Art. 3º No relatório de perfil, a pessoa jurídica deverá: I - indicar os setores do mercado em que atua
em território nacional e, se for o caso, no exterior; II - apresentar sua estrutura organizacional, descre-
vendo a hierarquia interna, o processo decisório e as principais competências de conselhos, diretorias,
departamentos ou setores; III - informar o quantitativo de empregados, funcionários e colaboradores; IV
- especificar e contextualizar as interações estabelecidas com a administração pública nacional ou estran-
geira, destacando: a) importância da obtenção de autorizações, licenças e permissões governamentais
em suas atividades; b) o quantitativo e os valores de contratos celebrados ou vigentes com entidades e
órgãos públicos nos últimos três anos e a participação destes no faturamento anual da pessoa jurídica;
c) frequência e a relevância da utilização de agentes intermediários, como procuradores, despachantes,
consultores ou representantes comerciais, nas interações com o setor público; V - descrever as partici-
pações societárias que envolvam a pessoa jurídica na condição de controladora, controlada, coligada ou
consorciada; e VI - informar sua qualificação, se for o caso, como microempresa ou empresa de pequeno
porte. (BRASIL, 2016a).
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O princípio da segregação de funções é um controle preventivo interessante e se fundamenta na repar-
tição do poder de decisão no âmbito de uma organização, implicando na redução de possibilidades de
violação à integridade. Exemplos: limitação de tempo para certa função; separação de funções de auto-
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rização e aprovação de operações, controle e contabilização, sem que as pessoas possuam atribuições
sobrepostas, etc.
31
As medidas poderão variar em função da pessoa jurídica e, em todo caso, os normativos devem ser cla-
ros, concisos e disponibilizados ao público interno e externo.
32
Como forma de robustecer o programa, a pessoa jurídica pode instituir certificação de qualidade, que tem
por fito comprovar a aplicação das regras. Cite-se a ISO 37001, norma editada pela ABNT denominada
Sistema de Gestão Antissuborno (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2016).
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Art. 2º Para que seu programa de integridade seja avaliado, a pessoa jurídica deverá apresentar: [...] II -
relatório de conformidade do programa. [...] Art. 4º No relatório de conformidade do programa, a pessoa
jurídica deverá: I - informar a estrutura do programa de integridade, com: a) indicação de quais parâmetros
previstos nos incisos do caput do art. 42 do Decreto nº 8.420, de 2015, foram implementados; b) descri-
ção de como os parâmetros previstos na alínea “a” deste inciso foram implementados; c) explicação da
importância da implementação de cada um dos parâmetros previstos na alínea “a” deste inciso, frente
às especificidades da pessoa jurídica, para a mitigação de risco de ocorrência de atos lesivos constantes
do art. 5º da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013; II - demonstrar o funcionamento do programa de
integridade na rotina da pessoa jurídica, com histórico de dados, estatísticas e casos concretos; e III - de-
monstrar a atuação do programa de integridade na prevenção, detecção e remediação do ato lesivo objeto
da apuração. §1º A pessoa jurídica deverá comprovar suas alegações, devendo zelar pela completude,
clareza e organização das informações prestadas. §2º A comprovação pode abranger documentos oficiais,
correios eletrônicos, cartas, declarações, correspondências, memorandos, atas de reunião, relatórios,
manuais, imagens capturadas da tela de computador, gravações audiovisuais e sonoras, fotografias,
ordens de compra, notas fiscais, registros contábeis ou outros documentos, preferencialmente em meio
digital. (BRASIL, 2016c).
34
A legislação whistleblowing cria um instituto de política criminal para a descoberta de atos ilícitos. A ideia bá-
sica é transformar cidadãos em informantes (denunciantes) em favor do Estado. O instituto não se confunde
com a chamada delação premiada, prevista em diversas leis brasileiras. A delação premiada é a incriminação
de terceiro, realizada por um suspeito, indiciado ou réu, no bojo de seu interrogatório ou em outro ato pro-
cessual. Diz-se premiada por ser incentivada pelo legislador, que concede ao delator diferentes benefícios, a
exemplo da redução da pena ou da extinção da punibilidade. Ao contrário do delator, o agente whistleblower
não está envolvido na organização criminosa. É um terceiro sabedor de informações relevantes, seja por
decorrência do exercício direto do seu trabalho, seja por razões eventuais (OLIVEIRA, 2015, p. 6).
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ser valorada juridicamente como prova de que o empresário cumpriu com seus
deveres de controle e vigilância.
A implementação é uma fase do compliance que é constante, porquanto cada
fragilidade descoberta fará com que se criem novos mecanismos, sendo subdivida
em: (i) informação: comunicação e detalhamento das funções do compliance,
visualizando esse processo como progressivo e contínuo, em várias instâncias da
organização; (ii) incentivo: concessão de incentivos pela observância do compliance,
seja por informação aos denunciantes seja como critério na contratação ou promoção
de funcionário; (iii) organização: previsão de medidas organizacionais para criação
de processos de compliance permitindo a descoberta de fatos que impliquem a
violação dessas normas baseadas em função do risco da atividade ou da função
exercida (princípio do custo benefício).
A última etapa consiste na consolidação e aperfeiçoamento do compliance,
tornando-o parte da cultura da organização, subdividindo-o em: (i) reação: quando
descoberto um ato infracional ou ilícito, a pessoa jurídica deverá lançar mão dos
mecanismos de investigação interna para apurar a irregularidade, ou ilícito, a qual
será devidamente documentada, pois provavelmente será utilizada posteriormente
para comunicar as autoridades persecutórias oficiais ou em eventual processo
trabalhista; (ii) sancionar: aplicação de sanções quando apuradas violações ao
compliance, as quais já devem estar estabelecidas previamente e se basear sempre
na proporcionalidade conforme a gradação de culpa; (iii) aperfeiçoamento: tanto
de forma contínua quanto periódica, especialmente após a ocorrência de violações
(non compliance).35 Aprender com erros e problemas do passado e adotar medidas
corretivas faz com que o programa seja melhor no futuro. A edição de novas normas
ou regulamentos estatais poderá trazer a necessidade de revisão e adaptação do
programa. Os treinamentos periódicos são também imprescindíveis.
35
Non compliance é termo que vem sendo utilizado desmedidamente, correspondendo tanto à situação na
qual a pessoa jurídica não adota o programa quanto para aqueles atos e infrações que não são descober-
tos pelo programa.
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36
Art. 5º A avaliação do programa de integridade, para a definição do percentual de redução que trata o inci-
so V do art. 18 do Decreto nº 8.420, de 2015, deverá levar em consideração as informações prestadas,
e sua comprovação, nos relatórios de perfil e de conformidade do programa. §1º A definição do percentual
de redução considerará o grau de adequação do programa de integridade ao perfil da empresa e de sua
efetividade. §2º O programa de integridade meramente formal e que se mostre absolutamente ineficaz
para mitigar o risco de ocorrência de atos lesivos da Lei nº 12.846, de 2013, não será considerado para
fins de aplicação do percentual de redução de que trata o caput. §3º A concessão do percentual máximo
de redução fica condicionada ao atendimento pleno dos incisos do caput do art. 4º. §4º Caso o programa
de integridade avaliado tenha sido criado após a ocorrência do ato lesivo objeto da apuração, o inciso III
do art. 4º será considerado automaticamente não atendido. §5º A autoridade responsável poderá realizar
entrevistas e solicitar novos documentos para fins da avaliação de que trata o caput deste artigo. Art.
6º Para fins do disposto no inciso IV do art. 37 do Decreto nº 8.420, de 2015, serão consideradas as
informações prestadas, e sua comprovação, nos relatórios de perfil e de conformidade do programa de
integridade (BRASIL, 2016c).
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Sendo assim, como conclui Heinen, o regime de responsabilidade em casos de aplicação de penalida-
des administrativas é, em regra, de natureza subjetiva, verdade essa que não pode ser transportada ao
sistema de reparação de prejuízos, em que há casos em que se dispensa a prova do dolo ou da culpa. É
importante destacar que esses dois regimes devem ser bem diferenciados, porque o sistema de repara-
ção de prejuízos não se confunde com o sistema de direito administrativo sancionador (HEINEN, 2015, p.
83).
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Sobre o artigo 7º, José Anacleto Abduch Santos leciona: “A localização topológica da norma no Capítulo
III, destinado à responsabilização administrativa, não deve induzir o intérprete à conclusão de que inapli-
cáveis para a responsabilização judicial, devendo ser considerados como parâmetro objetivo para a impo-
sição das sanções previstas no art. 19” (SANTOS, 2015, p.225).
39
Art. 17. O cálculo da multa se inicia com a soma dos valores correspondentes aos seguintes percentuais
do faturamento bruto da pessoa jurídica do último exercício anterior ao da instauração do PAR, excluídos
os tributos:
I - um por cento a dois e meio por cento havendo continuidade dos atos lesivos no tempo; II - um por cento
a dois e meio por cento para tolerância ou ciência de pessoas do corpo diretivo ou gerencial da pessoa
jurídica; III - um por cento a quatro por cento no caso de interrupção no fornecimento de serviço público
ou na execução de obra contratada; IV - um por cento para a situação econômica do infrator com base na
apresentação de índice de Solvência Geral – SG e de Liquidez Geral – LG superiores a um e de lucro líquido
no último exercício anterior ao da ocorrência do ato lesivo; V - cinco por cento no caso de reincidência,
assim definida a ocorrência de nova infração, idêntica ou não à anterior, tipificada como ato lesivo pelo
art. 5º da Lei nº 12.846, de 2013, em menos de cinco anos, contados da publicação do julgamento da
infração anterior; e VI - no caso de os contratos mantidos ou pretendidos com o órgão ou entidade lesado,
serão considerados, na data da prática do ato lesivo, os seguintes percentuais: a) um por cento em contra-
tos acima de R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais); b) dois por cento em contratos acima
de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais); c) três por cento em contratos acima de R$ 50.000.000,00
(cinquenta milhões de reais); d) quatro por cento em contratos acima de R$ 250.000.000,00 (duzentos
e cinquenta milhões de reais); e e) cinco por cento em contratos acima de R$ 1.000.000.000,00 (um
bilhão de reais). Art. 18. Do resultado da soma dos fatores do art. 17 serão subtraídos os valores corres-
pondentes aos seguintes percentuais do faturamento bruto da pessoa jurídica do último exercício anterior
ao da instauração do PAR, excluídos os tributos: I - um por cento no caso de não consumação da infração;
II - um e meio por cento no caso de comprovação de ressarcimento pela pessoa jurídica dos danos a que
tenha dado causa; III - um por cento a um e meio por cento para o grau de colaboração da pessoa jurídica
com a investigação ou a apuração do ato lesivo, independentemente do acordo de leniência; IV - dois por
cento no caso de comunicação espontânea pela pessoa jurídica antes da instauração do PAR acerca da
ocorrência do ato lesivo; e V - um por cento a quatro por cento para comprovação de a pessoa jurídica pos-
suir e aplicar um programa de integridade, conforme os parâmetros estabelecidos no Capítulo IV. (BRASIL,
2016b).
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OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...
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Art. 6. [...] §4º Na hipótese do inciso I do caput, caso não seja possível utilizar o critério do valor do fa-
turamento bruto da pessoa jurídica, a multa será de R$ 6.000,00 (seis mil reais) a R$ 60.000.000,00
(sessenta milhões de reais). (BRASIL, 2016a).
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Nos Estados Unidos e no Reino Unido, países nos quais a cultura de compliance
é pioneira, há previsão expressa de que a pessoa jurídica que adota programa
efetivo de compliance possa ter exclusão completa das penalidades. Conforme
Carlos Henrique da Silva Ayres (2014, p. 44) preconiza:
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OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...
Marco Vinicio Petrelluzzi e Rubens Naman Rizek Junior (2014, p. 27) também
tratam da possibilidade de remissão completa das sanções previstas, ao afirmarem:
41
Muitos atos lesivos previstos na Lei Anticorrupção são tipificados como crimes no Código Penal ou na Lei
de Licitações.
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5 Considerações finais
Foi visto que o compliance consiste na instituição de mecanismo de prevenção,
mitigação e repressão de irregularidades e fraudes, possuindo, portanto, objetivos
preventivos e reativos.
A adoção do compliance é uma tendência e provoca a proliferação da cultura
da integridade nas entidades públicas ou privadas, pois constrói a confiança dos
consumidores, fornecedores, mídia e do mercado, aumentando a atratividade para
investimentos, especialmente se a empresa tiver ações em bolsa. A reputação e
a imagem da pessoa jurídica é um ativo que promove o comportamento ético dos
altos executivos, dos gerentes e dos empregados.
O programa de integridade se baseia em cinco pilares, sendo eles o
comprometimento e apoio da alta direção, instância responsável, análise de perfil
e riscos, estruturação das regras e instrumentos e estratégias de monitoramento
contínuos, e são instrumentalizados em etapas que podem ser denominadas de
formulação, implementação e consolidação e aperfeiçoamento.
A aferição da efetividade do compliance está ligada ao aspecto de medir
corrupção, ou seja, de ser capaz de detectar e agir contra os ilícitos praticados.
A Lei Anticorrupção, norma de natureza cível administrativa, disciplina a
responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas pela prática de atos que ela
considera lesivos e exclui a necessidade de perquirir culpa ou dolo da pessoa
jurídica na prática do ato lesivo.
Foi visto que apesar de o compliance ser fator que serve apenas para mitigar
a penalidade de multa, na razão de 1% (um por cento) a 4% (quatro por cento)
sobre a multa aplicada, em razão de expressa previsão do Decreto nº 8.420/2015,
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OS IMPACTOS DO COMPLIANCE EFETIVO NA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA...
concluiu-se que é muito mais benéfico possuir o programa do que não possuí-lo,
já que é fator que repercutirá na análise das outras circunstâncias atenuantes e
agravantes.
Não estar no compliance pode acarretar a impossibilidade de obter requisitos
para celebrar acordo de leniência; perder licenças administrativas; danos à imagem
da organização, litígios na área cível, criminal, trabalhista, fiscal, previdenciária ou
ambiental e à reputação, causando prejuízos imensos, de ordem moral e patrimonial.
Embora não haja possibilidade de se discutir no seio de um processo judicial a
ausência de dolo ou culpa da pessoa jurídica na prática do ato pela pessoa jurídica, o
compliance poderá ser fator a ser utilizado em eventual processo criminal, pois este
não se compatibiliza com o modelo da responsabilidade objetiva, exigindo-se prova
suficiente da culpa com observância de todas as garantias do devido processo legal.
Effective compliance outcome on the objective administrative liability of the legal person in the
anticorruption law
Abstract: Law n. 12,846 of August 1, 2013, known as the Anti-Corruption Law, inaugurated in the
Brazilian legal system a sphere of administrative accountability directed to a legal entity, in an objective
manner, according to its Article 5, although with clear criminal characteristics. At the time of applying
these sanctions, compliance programs may reduce penalties, but if they are effective and constituted
in accordance with legal parameters and guidelines. In light of this, it remains to investigate what the
requirements of an effective compliance program should be. It was concluded that the existence of
compliance is a factor that, in addition to being able to mitigate the pecuniary penalty, reducing the
penalty by 4% (four percent) of the fine, may have a positive impact on the analysis of other attenuating
circumstances and aggravating circumstances set forth in Decree no. 8,420 / 2015, on the occasion
of the trial in the Administrative Process of Accountability (PAR) and in a possible criminal case against
the directors of the legal entity, since the model of objective liability is not compatible with criminal
proceedings. The work was based on bibliographical and normative research, using the Anti-Corruption
Law and Decree nº 8,420, of March 18, 2015, as well as normative of the official organs of the public
power responsible for editing laws on corruption.
Keywords: Anticorruption Law. Effective compliance. Objective responsibility of the legal entity. Criminal
liability.
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Bruno Martins Torchia
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Artífices de conceitos: a invenção do
conceito de genocídio e sua aplicação
aos estudos históricos1
Resumo: Do conceito de genocídio cunhado por Raphael Lemkin, no decurso da Segunda Guerra
Mundial, àquele apresentado ao mundo pela Convenção Internacional sobre Prevenção e Repressão
do Crime de Genocídio, adotada pela Organização das Nações Unidas aos 9 de dezembro de 1948,
interesses como norte-americanos e soviéticos expurgaram-no de critérios elementares – como
o político, por exemplo – esvaziando gravemente seus sentidos e significados e inviabilizando sua
aplicação para uma gama considerável de casos. Para além da seara jurídica, o problema se apresenta
nas Ciências Humanas e Sociais quando o conceito é tomado de forma intocada, proveniente das
Ciências Jurídicas, para a análise de processos históricos. Por interferência do Direito sobre a História,
a Sociologia e a Antropologia, estas se veem impedidas de operá-lo desvelando a ausência de
referenciais sócio-históricos para a análise de processos genocidários. Este trabalho analisa o longo
processo de constituição e de disputa deste conceito, tentando avaliar em que medida se pode já dizer
de uma elaboração conceitual própria à natureza das Ciências Humanas e Sociais, para muito além
das Ciências Jurídicas e de sua estreita dimensão normativa.
Palavras-chave: Genocídio. Morticínios. Raphael Lemkin. Processos genocidários. Debate teórico-
conceitual.
Sumário: 1 De “um crime sem nome” à convenção da ONU – 2 Os debates acerca da aplicabilidade
do conceito onusiano às Ciências Sociais – 3 Para além do Holocausto e do normativismo jurídico – 4
Um repasse teórico, uma visita às fontes e os novos rumos dos “genocide studies” – Considerações
finais – Referências
1
Artigo elaborado por autores convidados.
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Rodrigo Medina Zagni, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro
Muitas coisas há que destruir para edificar a nova ordem; agora sa-
bemos que a Alemanha era uma dessas coisas. Demos algo mais
que nossa vida, demos o destino de nosso querido país. Que outros
maldigam e outros chorem; a mim me alegra que nosso dom seja
orbicular e perfeito. [...] Ameaça agora o mundo uma época implacá-
vel. Nós a forjamos, nós que já somos sua vítima. Que importa que a
Inglaterra seja o martelo e nós a bigorna? O importante é que reine a
violência, não as servis timidezes cristãs. Se a vitória e a injustiça e
a felicidade não são para a Alemanha, que sejam para outras nações.
Que o céu exista, mesmo que nosso lugar seja o inferno (BORGES,
2005, p. 113).
Em oito páginas, Borges nos fornece elementos que podem ser úteis para
compreendermos uma série de acontecimentos que tiveram lugar no século XX
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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos
2
Daqui por diante referida como CIPRCG.
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Rodrigo Medina Zagni, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro
no ano seguinte, nas linhas de Axis Rule in Occupied Europe: Laws of Occupation –
Analysis of Government – Proposals for Redress,3 obra em que dedicou um capítulo
inteiro à apresentação deste novo conceito (2009, p. 153-174), elaborado portanto
durante a Segunda Guerra Mundial e com as atrocidades nazistas ainda em curso.
É notável que Lemkin, distante do palco da destruição humana e material da
guerra, não dispunha de informações precisas a respeito do que ocorria; mas ainda
assim teria percebido os usos de uma violência de novo tipo.
O novíssimo termo se referia a uma antiga prática na história da humanidade,
cujas raízes estariam ainda perdidas até que uma arqueologia dos genocídios
pudesse ser empreendida (JONES, 2011, p. 3).
O que sabemos da Pré-História à Antiguidade, por meio dos parcos documentos
que nos chegam ao presente, é que morticínios foram perpetrados não apenas
para dar cabo de povos inteiros, mas também para a incorporação e exploração
de parte do grupo-alvo. Tais procedimentos caracterizaram, junto dos assassinatos
em massa, as guerras antigas; é o que podemos dizer, por exemplo, da expansão
do Império Assírio durante a primeira metade do primeiro milênio que antecedeu a
Era Cristã; ou do extermínio dos Melos pelas forças atenienses durante a Guerra
do Peloponeso, no século I a.C. (Cf.: CHALK; JONASSOHN, 2010, p. 62-63). No
mesmo sentido, o historiador Ben Kiernan (2004, p. 27-39), ao debruçar-se sobre
o cerco e a investida romana sobre Cartago durante a Terceira Guerra Púnica (de
146 a 46 a.C.), caracterizou o evento como o primeiro genocídio de que se teria
notícia e que, dada a sua violência,4 teria ecoado pelos séculos subsequentes na
história ocidental, demarcando muitos de seus destinos. À violência do Império
Romano teria se seguido aquela ultimada em razão da fé cristã: primeiro vitimando
cristãos que, proscritos pelo império, foram perseguidos e chacinados, inclusive
em espetáculos públicos; depois, adotando a autoridade romana o Cristianismo
como fé oficial, levando a cabo a perseguição às heresias e paganismo que, ainda
com o fim do império, adentrara à Era Medieval baseada no centralismo do poder
político da Igreja, mais incisivamente entre os séculos IX e XIV, e inscrevendo, com
isso, os movimentos cruzadísticos e suas investidas contra infiéis na França, onde
moveu-se contra a heresia cátara; na Alemanha, contra os judeus; e no Oriente
Médio, contra os muçulmanos (Cf.: BELL-FIAKOFF, 1999, p. 13). Ainda no século
XIII, também é como se pode caracterizar a expansão do Império Mongol a partir
3
Publicado em 1944 em Washington pela Carnegie.
4
Kiernan, com base nos dados dispostos pelo Senador Cato, fala da redução de uma população de 2 mi-
lhões e 400 mil para apenas 150 mil indivíduos.
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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos
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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos
como violência de novo tipo e que caracterizaria todo o século XX, à guerra dos
Estados contra suas próprias populações, quando consideradas párias sociais,
primordialmente por motivos rácicos, religiosos ou políticos.
A insistência de Lemkin, no entanto, levou à aprovação, em 1946, de uma
resolução da Organização das Nações Unidas, por meio de sua Assembleia Geral,
que teria se dado nos seguintes termos:
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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos
5
Expressão utilizada por Winston Churchill para se referir ao morticínio de judeus perpetrado pelos nazistas.
6
O conceito já havia sido utilizado por França, Grã-Bretanha e Império Russo, em 1915, para definir o mas-
sacre de armênios em curso no Império Otomano.
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com Hiebert (2013, p. 16) a consciência foi partilhada por acadêmicos de diversas
áreas, além de artistas, jornalistas e humanitaristas.
Isso porque o termo não se impôs apenas no universo acadêmico e jurídi-
co-político; rapidamente a palavra genocídio ganhou o senso comum adentrando
o vocabulário de jornalistas, políticos e militantes, passando a se referir a toda
sorte de violências que tenham culminado na morte quantitativamente expressiva
de populações civis e impondo-se a eventos que teriam ocorrido ao longo de todo
o século XX.
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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos
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7
Proveniente de uma tradição francesa, o termo foi criado no pós-Segunda Guerra Mundial para referir-se
aos atos de destruição de uma determinada cultura ainda que não levassem à morte de seus portadores.
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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos
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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos
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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos
8
O fato-acontecimento, ou evenementiele, foi atacado ferozmente pela primeira geração da Ecole des
Annales, cujos precursores alterariam definitivamente a concepção de História (Cf.: BLOCH, 1965, p. 95-
106; BRAUDEL, 1972, p. 7-70; FEBVRE, 1989, p. 59-71).
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seu caráter didático, o que possibilitaria aquilo que Josep Fontana (1998) chamou
de história-instrumento, dotada do potencial de alterar a realidade social.
A pesquisa recente cada vez mais envereda pela perspectiva da análise
comparativa, desvelando-se a necessidade da investigação de casos tomados como
clássicos de genocídio vis-à-vis àqueles numericamente tão mortíferos quanto os
clássicos, mas que por diversos motivos foram relegados a uma espécie de gueto
historiográfico. Contudo, não podemos cair na armadilha de classificar os massacres
menos conhecidos como genocídios esquecidos, como faz René Lemarchand em
obra editada por ele e intitulada Forgotten Genocides: oblivion, denial, and memory
(2013), por uma série de motivos: primeiro, tal abordagem incorre no risco de
classificar um morticínio como sendo maior ou mais importante do que o outro
e, por isso, uns seriam lembrados e outros esquecidos (sic); segundo, não há
genocídio esquecido para o grupo-alvo da violência em massa e seus descendentes,
ainda que este não seja alvo de frequentes análises pela academia. O trauma e a
memória permanecem, mesmo em casos que já estão temporalmente distantes,
como, por exemplo, o massacre da população circassiana do Cáucaso Ocidental
pelo Império Russo nos anos 1850-60 (Cf.: KREITEN, 2009); terceiro, chamar
alguns genocídios de esquecidos oblitera o fato de que poucos genocídios são, de
fato, profundamente conhecidos, o que inclui os processos genocidas durante a
Segunda Guerra Mundial, cuja dimensão judaica é relativamente bem analisada, mas
não se pode dizer o mesmo dos demais grupos-alvo da política nazista (BLOXHAM,
2005, p. 6), como ciganos, eslavos, testemunhas de Jeová, comunistas, maçons,
homossexuais etc. Assim, ao invés de tratarmos de genocídios esquecidos, como
faz Lemarchand e seus autores, devemos pensar em hidden genocides, conforme
formulam Alex Hinton (HINTON; LA POINTE; IRVIN-ERICKSON, 2013) e outros, pois
foram política, social, cultural ou historicamente escondidos, de acordo com um
sistema mais amplo de poder social e político.
Evidentemente, tal estratégia analítica tende a reduzir o alcance da investigação
possível e necessária de diferentes morticínios, não permitindo generalizações
ambiciosas. Por outro lado, sempre haverá espaço para o debate em torno da
indicação dos casos que deveriam ser tratados como efetivamente paradigmáticos.
Entretanto, entendemos que a análise comparativa pode colaborar para a elucidação
de determinadas condições que favorecem a definição das escolhas políticas,
sociais, culturais e históricas para a categorização do que é – e, sobretudo, do
que não é – genocídio.
Essa abordagem é fundamental para a cunhagem de um arcabouço conceitual
próprio das Ciências Humanas e Sociais, especificamente, para os estudos
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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos
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Considerações finais
O desafio para todo genocide scholar é, em primeiro lugar, estabelecer em
sua pesquisa qual conceito de genocídio está em tela e quão próximo ou distante
ele está daquele definido pela ONU em 1948, já descaracterizado das formulações
iniciais de Raphael Lemkin. O sociólogo britânico Martin Shaw é um dos acadêmicos
que defende um retorno às ideias de Lemkin, recuperando o caráter explicativo do
conceito de genocídio, evitando seu esvaziamento em conceitos paralelos como
etnocídio, limpeza étnica, dentre outros, que foram utilizados ao longo dos anos
devido à natureza demasiadamente restritiva do conceito onusiano. Esse movimento
“propõe restaurar o conceito de genocídio como uma categoria geral, capaz de
servir como um marco para a interpretação da ação violenta contra populações
civis”, na medida em que o foco muda da intenção de destruir um grupo no todo ou
em parte – como prevê o conceito onusiano – para “um tipo geral de ação social,
caracterizado pela combinação de objetivos destrutivo-sociais e modalidades
violentas e coercitivas, que estabelece um tipo especial de conflito social violento”
(SHAW, 2013, p. 248).
Os acadêmicos teriam um compromisso moral ao estudar genocídios, isto é,
o de tomar partido a partir de análises fundamentadas e éticas: “os estudiosos
devem apresentar testemunho, mostrar solidariedade com as vítimas e colocar-se
inequivocamente de um lado do processo histórico” (SHAW, 2013, p. 19); sob o
risco de relativizar acontecimentos em busca de uma suposta isenção, muitas
vezes baseada em argumentações jurídicas, que evitam chamar o caso cambojano
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Artífices de conceitos: a invenção do conceito de genocídio e sua aplicação aos estudos históricos
Wordsmiths: the invention of the genocide concept and its application to historical studies
Abstract: From the concept of genocide coined by Raphael Lemkin during World War II to that presented
to the world by the International Convention on the Prevention and Suppression of Genocide Crime,
adopted by the United Nations on December 9, 1948, interests as North-Americans and Soviets
expunged it from elementary criteria – such as the political, for example –, severely emptying its senses
and meanings and making its application unfeasible for a considerable range of cases. Beyond the
legal field, the problem presents itself in the Humanities and Social Sciences when the concept is
taken in an untouched form, from the Legal Sciences, for the analysis of historical processes. Due to
the interference of the Law on History, Sociology and Anthropology, they are prevented from operating
it, revealing the absence of socio-historical references for the analysis of genocidal processes. This
paper analyzes the long process of constitution and dispute of this concept, trying to evaluate to what
extent it can already be said of a conceptual elaboration specific to the nature of the Human and Social
Sciences, beyond the Legal Sciences and its narrow normative dimension.
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ATUALIDADES
O Caso Riocentro e a evolução do
crime contra a humanidade no Direito
Internacional dos Direitos Humanos1
Resumo: O artigo analisa o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça – Recurso Especial nº
1.798.903-RJ –, de Relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz. A análise ora proposta perpassa os
argumentos apresentados pelo Ministro Relator, favoráveis e contrários ao entendimento dos fatos que
exsurgem das circunstâncias dos acontecimentos ocorridos no Rio de Janeiro no ano de 1981, ainda
durante a vigência do Estado de exceção que vigorou no país entre 1964 e 1985, e consistentes na
tentativa de realização de atentado a bombas por militares pertencentes às fileiras mais radicais dos
grupos que estavam no Poder e que eram contrários à abertura política que, à época, desenvolvia-se no
Brasil. As medidas adotadas pelo Ministério Público Federal, no sentido da persecução e punição dos
responsáveis pelas referidas ações, demandam o esclarecimento sobre a caracterização, ou não, dos
acontecimentos e condutas envolvidas no episódio, como crime lesa-humanidade. Nesse sentido, as
ponderações ora apresentadas enfrentam os estágios evolutivos verificados no Direito Internacional,
tanto em suas dimensões consuetudinárias quanto positivadas.
Palavras-chave: Caso Rio-Centro. Crimes contra a humanidade. Imprescritibilidade. Direito internacional
dos direitos humanos.
1
Artigo elaborado por autor convidado.
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Flávio de Leão Bastos Pereira
1 Contextualização
Os fatos que fornecem o pano de fundo da análise ora proposta, e também
submetidos ao crivo do Superior Tribunal de Justiça por meio do Recurso Especial
nº 1.798.903-RJ, remetem ao ano de 1981 e, mais especificamente, a aconte-
cimentos ocorridos durante o período do governo Ernesto Geisel (15 de março
de 1974 a 15 de março de 1979) e sob o qual se promovia gradativa abertura
política no país, elemento importante para a compreensão dos acontecimentos
centrais no contexto sob comento. O período mais crítico que marca o regime
de exceção instaurado por meio de um golpe a partir de 31 de março de 1964
é alcançado com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5) em 13 de dezembro de
1968. É a partir da supressão do espaço democrático para o diálogo político que
surgem os movimentos de resistência armada, suprimidos em poucos anos pelo
regime, especialmente por meio da ação das estruturas então estabelecidas e
que operacionalizaram as estratégias de combate aos referidos movimentos, não
restando limitadas tais ações e dinâmicas repressivas apenas em relação aos
movimentos de oposição armados, mas também com forte atuação investigativa
sobre intelectuais e professores, estudantes, operários, clérigos, militares, dentre
outras categorias. No intuito de imprimir eficiência às ações de monitoramento e
repressão aos movimentos contrários ao regime, mesmo aqueles que não aderiram
à luta armada, foi concebida e iniciada a denominada Operação Bandeirante (OBAN),
com o objetivo de colher informações junto a opositores feitos clandestinamente
prisioneiros. Com sede na rua Tutóia, na capital paulista, a OBAN logo viria a se
tornar o Departamento de Operações de Informação – Centro de Operações de
Defesa Interna (DOI-CODI), modelo de estrutura que passava então a atuar como
principal responsável pela inteligência e repressão do regime e que, diante do
êxito no cumprimento de seus objetivos, seria exportado para todo o Brasil no
combate às forças políticas e sociais consideradas subversivas. Com técnicas de
torturas, sequestros e desaparecimentos inspiradas pela experiência francesa na
guerra de libertação da Argélia ocorrida entre os anos de 1954 e 1962 (a conexão
francesa),2 o DOI-CODI constituiu engrenagem central no aparato repressor, atuando
2
Ocasião histórica na qual foram cometidos crimes de guerra contra milhares de vítimas argelinas por es-
quadrões da morte, especialmente comandados pelo General Paul Aussaresses, posteriormente acusado
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O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
pela Justiça francesa por “apologia de crimes de guerra”; por comandar esquadrões da morte e pela
prática sistemática da tortura na referida guerra de independência da Argélia. Referidas técnicas foram ex-
portadas pelos franceses, especialmente ao Cone Sul durante o período das ditaduras a partir da década
de 60. Leia-se, a respeito Agência Estado (2001).
3
Para melhor detalhamento sobre a existência, modo de recrutamento e funcionamento do DOI-CODI, leia-
se A CASA DA VOVÓ – Uma Biografia do DOI-CODI (1969-1991), o Centro de Sequestro, Tortura e Morte
da Ditadura Militar, de Marcelo Godoy, Alameda Editora, 610 páginas, 2015.
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O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
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[...] todos os que foram deportados, executados ou massacrados não têm senão a nós para por eles
pensar. Se assim não o fizéssemos, concluiríamos seu extermínio; e eles seriam novamente aniquilados
de modo definitivo... Aqueles que desapareceram para sempre hoje existem somente por meio de nós na
devoção fiel à nossa memória; se os esquecêssemos, eles simplesmente deixariam de existir. Se esque-
cêssemos os guetos, tais vítimas seriam assassinadas pela segunda vez. [...] (Livre tradução do autor).
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5
Adotada pela Resolução nº 2.391 da Assembleia Geral das Nações Unidas em 26 de novembro de 1968
e em vigor a partir de 11 de novembro de 1970 (UNITED NATIONS, 1968).
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O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
punição dos responsáveis pela tortura e morte de Wladimir Herzog, bem como por
violar o direito de sua família em conhecer a verdade, além da violação do direito
à integridade pessoal de seus familiares. A morte de Herzog, resultado da ação
das estruturas da repressão organizadas para o combate à oposição ao regime,
foi considerada crime contra a humanidade. O Estado brasileiro foi condenado a
investigar e punir os agentes responsáveis, bem como por ter-se eximido de tal
obrigação com fundamento na Lei de Anistia, devendo reconhecer a imprescritibilidade
decorrente da natureza de crime de lesa-humanidade reconhecida no caso Herzog, na
medida em que seu assassinato mediante tortura se deu no âmbito de um sistema
repressivo organizado e atuante contra parcela da população civil. Neste sentido, o
cotejo dos atos cometidos por setores resistentes e contrários à abertura política
no ano de 1981, com as balizas históricas e jurídicas internacionais que definem o
crime contra a humanidade, permite vislumbrar com certa clareza a gravidade das
condutas praticadas, tanto no caso Herzog quanto no caso Riocentro.
Os crimes contra a humanidade são previstos em sua origem pelo denominado
direito de Haia, ou seja, na Convenção de Haia de 1907; o final da Segunda Guerra
Mundial tem como uma de suas consequências a realização dos primeiros tribunais
criminais internacionais da história (considerando-se as frustradas tentativas após
o término da Primeira Guerra Mundial de realização de tribunais que julgassem os
criminosos de guerra atuantes naquele conflito – a chamada primeira onda dos
tribunais criminais internacionais6), ainda que contestados em relação a certos
aspectos. Assim, a Carta de Londres (UNITED NATIONS ORGANIZATION, 1945)
conferiu a base jurídica para a punição, pelo Tribunal Militar Internacional de
Nuremberg (INMT), dos crimes contra a humanidade perpetrados pelo regime cujos
réus representavam sua estrutura diretiva, em seu artigo 6º, alínea “c”. Também
o Tribunal Militar Internacional para o Extremo-Oriente (Tribunal de Tóquio), com
fundamento na Carta do Tribunal Internacional Militar para o Extremo Oriente (UNITED
NATIONS ORGANIZATION, 1946), define crimes contra a humanidade (artigo 5º, “c”).
Com a realização dos tribunais criminais internacionais ad hoc no período pós-guerra
fria, especialmente o Tribunal Criminal Internacional para Ruanda (Resolução nº
6
Os julgamentos de Leipzig e de Istambul consistiram nas primeiras tentativas de definir, processar e
julgar responsáveis pela prática de crimes contra a humanidade em conflitos internacionais. Com pe-
nas lenientes e anistias concedidas aos poucos condenados, não são reconhecidos atualmente como
tentativas bem-sucedidas, embora constituam do ponto de vista histórico certo avanço na mentalidade
e na cultura jurídica internacional. Sobre o tema, manifestou-se Hans Kelsen nos seguintes termos: [...]
Internationalisation of the legal procedure against war criminals would have the great advantage of making
the punishment, to a certain extent, uniform. If war criminals are subjected to various national courts, as
provided for in Article 229 of the Treaty of Versailles [of 1919], it is very likely that these courts will result
in conflicting decisions and varying penalties […] (CASSESSE, 1998).
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Em português: […] Leipzig, Constantinopla, Nuremberg, Tóquio – a visão sobre os tribunais por crimes de
guerra e “crimes contra a humanidade” refletia a crescente institucionalização e codificação de instrumen-
tos humanitários durante a segunda metade do século XIX. Isso ficou evidente nos esforços formativos de
Henri Dunant e seu Comitê Internacional da Cruz Vermelha, fundado em 1864. A Cruz Vermelha foi uma
instituição pioneira na abordagem do sofrimento que ofende a consciência humana. Os líderes também
estavam se conscientizando sobre os “crimes contra a humanidade” [...]. (livre tradução do autor).
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O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
Tanto no caso Wladimir Herzog, julgado pela Corte Interamericana quanto nos
fatos ocorridos por ocasião dos atentados de 1981 no Riocentro, as circunstâncias
mencionadas pelo Relator do Recurso Especial apresentado pelo Ministério Público
Federal ao Superior Tribunal de Justiça encontram-se presentes. Como se verá
adiante, argumentos contrários ao entendimento de se tratar de crimes contra a
humanidade foram considerados, mas não resistem a uma análise mais acurada.
Por exemplo, crítica veiculada no sentido de que os militares pertencentes à
corrente mais radicalizada do regime ditatorial e que desejavam minar o processo de
abertura política em curso à época não representavam o Estado e suas estruturas
oficiais. Tal argumentação, contudo, enfrentada também no voto sob comento,
não resiste a alguns contrapontos bem elencados no referido voto, v.g., ao se
considerar que: (i) a caracterização de crimes contra a humanidade prescinde da
exclusividade de um Estado organizado totalmente em suas políticas de ataques
sistemáticos contra populações civis por motivações políticas, religiosas, nacionais
etc.; (ii) ainda que se considere que o regime de exceção, durante os anos do
governo Geisel, buscasse implantar gradativamente a abertura política, o fato de
que parcela daqueles agentes (a chamada linda dura) que davam sustentação
operacional à repressão não aceitava referida visão (a abertura do regime) já seria
suficiente para fazer caracterizar a prática de crime de lesa-humanidade no caso
dos atentados do Riocentro. Neste sentido, o Relator menciona a ocorrência e
prática de cerca de 40 atentados a bombas cometidos pela citada linha radical
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The law applicable to atrocities that may not meet the strict definition
of genocide but that cry out for punishment has been significantly
strengthened. Such offences usually fit within the definition of ‘crimes
against humanity’, a broader concept that might be viewed as the
second tier of the pyramid. According to the most recent definition,
comprised within the Rome Statute of the International Criminal Court,
crimes against humanity include persecution against any identifiable
group or collectivity on political, racial, national, ethnic, cultural,
religious, gender or other grounds that are universally recognized as
impermissible under international law. This contemporary approach
to crimes against humanity is really no more than the ‘expanded’
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O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
definition of genocide that many have argued for over the years.
(SCHABAS, 2009, p. 11-12)8
Assere que o intuito dos acusados era “forjar um ‘ato terrorista sub-
versivo da esquerda armada’, atribuindo o atentado a bomba falsa-
mente a uma organização da militância contra o regime de exceção, e
assim justificar um novo endurecimento da ditadura militar brasileira
diante da ‘ameaça comunista’” (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
2019).
8
Em português: [...] A lei aplicável às atrocidades que podem não atender à definição estrita de genocídio,
mas que clamam por punição, foi significativamente fortalecida. Tais ofensas geralmente se enquadram
na definição de ‘crimes contra a humanidade’, um conceito mais amplo que pode ser visto como ocupando
o segundo nível da pirâmide. De acordo com a definição mais recente, incluída no Estatuto de Roma do
Tribunal Penal Internacional, os crimes contra a humanidade incluem perseguição contra qualquer grupo
ou coletividade identificável por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos, de gê-
nero ou outros que sejam universalmente reconhecidos como inadmissível pelo direito internacional. Essa
abordagem contemporânea dos crimes contra a humanidade não é mais do que a definição “expandida”
de genocídio que muitos têm discutido ao longo dos anos. [...] (Livre tradução do autor).
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exatamente por ser o Estado brasileiro soberano e assim reconhecido, sua aderência
a qualquer convenção ou tratado internacional, trate-se do sistema global ou do
sistema regional interamericano, além de sua participação nas organizações
internacionais, resultam especificamente de sua livre decisão. E, quando assim
decide, a própria Constituição da República de 5 de outubro de 1988, assim como
a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, estabelece vias de diálogo entre
as esferas jurídicas nacional e internacional. Aliás, diga-se de passagem, a Carta
Republicana de 1988 constitui sistema aberto e não encerrado em si próprio. Seu
§2º do artigo 5º, também adjetivado por juristas como a cláusula de abertura da
Constituição, se revela ao intérprete com cristalina transparência ao inserir no rol
de fontes das quais emanam os direitos humanos fundamentais não apenas os
direitos e garantias previstos em seu texto, mas também aqueles decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados e dos tratados internacionais aos quais
a República brasileira tenha aderido. E, reiterando a preservação da soberania do
Estado brasileiro, pode este se retirar a qualquer momento de tratado ou convenção
ao qual tenha eventualmente aderido por meio do instrumento da denúncia. Aliás,
o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se manifestar neste sentido:
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O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
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Flávio de Leão Bastos Pereira
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O CASO RIOCENTRO E A EVOLUÇÃO DO CRIME CONTRA A HUMANIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
Mas cabe então aqui a seguinte indagação: o Brasil, para efeito de reco-
nhecimento dos atentados do caso Riocentro como crimes contra a humanidade,
reconhece tal costume? Neste sentido, o Estado brasileiro firmou em 1914 a
Convenção sobre Leis e Costumes de Guerra Terrestre (HAIA, 1907), pela qual
reconheceu o caráter normativo dos princípios do jus gentium consagrados pelo
Direito Internacional consuetudinário reconhecidos pelos Estados soberanos. Como
bem enfatiza no voto sob análise do Ministro Relator, o Brasil desde o início do
século XX reconhece a força normativa destes princípios.
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Flávio de Leão Bastos Pereira
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Flávio de Leão Bastos Pereira
todos os seres humanos, é de que se trata de um caminho sem retorno, sob pena
do comprometimento da existência da própria humanidade.
O caso do Riocentro, dentre outros, apresenta significativa importância em
sua elucidação e punição dos responsáveis, para que o Estado brasileiro possa
construir um futuro melhor exatamente em razão de um passado adequadamente
conhecido, discutido e, principalmente, apreendido em suas lições.
Neste sentido, bem caminhou o Superior Tribunal de Justiça em sua funda-
mentação e decisão. Crimes de lesa-humanidade não podem ser esquecidos, sob
pena de perdermos a capacidade de projetar um futuro promissor e democrático.
Recorrendo à visão de George Orwell, recordamos que aquele que controla o passado
controla o futuro. Um controle que deve ser inspirado na justiça, na verdade e na
memória históricas.
The Riocentro Case and the Evolution of the Crime Against Humanity in the International Human
Rights Law
Abstract: The article analyzes the judgment of the Superior Court of Justice – Special Appeal n.
1.798.903-RJ – delivered by Justice Rogerio Schietti Cruz. The analysis now proposed goes beyond
the arguments presented by Justice Schietti, in favor and against the understanding of the facts that
emerge from the circumstances of the events that occurred in Rio de Janeiro in 1981, even during the
term of the State of exception that prevailed in the country between 1964 and 1985, and consistent
in the attempt to carry out bomb attacks by military personnel belonging to the most radical ranks of
the groups that were in power and that were against the redemocartization that was developing at the
time in Brazil. The measures adopted by the Federal Public Prosecution Service, in order to persecute
and punish those responsible for these actions, require clarification on the characterization, or not,
of the events and conduct involved in the episode, as a crime against humanity. In this sense, the
considerations presented here face the evolutionary stages verified in international law, both in its
customary and positive dimensions.
Keywords: Rio-Centro case. Crimes against humanity. Non statute of limitations. International human
rights law.
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Flávio de Leão Bastos Pereira
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PARECERES
Parecer – Projeto de Lei Anticrime e a
execução da pena após condenação
em segundo grau de jurisdição
Consulta
Consulta-me a eminente Deputada Carla Zambelli se os artigos 617-A e 637
do Projeto de Lei Anticrime apresentado pelo Ministério da Justiça e Segurança
Pública estariam em conflito com a decisão do Supremo Tribunal Federal, que,
nas Ações Declaratórias 43, 44 e 45, decidiu que, apenas após o esgotamento
de todas as possibilidades de recurso (trânsito em julgado), é possível o início do
cumprimento da pena.
Resposta
Em face da urgência do pedido, responderei à questão única formulada em
breve opinião legal.
Não pretendo, na presente resposta, firmar juízo de valor sobre as duas
correntes, que se digladiaram no referido julgamento, cujo acórdão ainda não foi
publicado, tendo a tese vencedora mencionada pela ilustre Deputada prevalecido
por 6 votos a 5.
Responderei, exclusivamente, a questão à luz do que disseram os preclaros
magistrados da última instância para, a partir de sua opinião, presumir o futuro
resultado.
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Parecer – Projeto de Lei Anticrime e a execução da pena após condenação em segundo grau de jurisdição
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Ives Gandra da Silva Martins
Desta forma, o Supremo Tribunal Federal, por seis votos a cinco, ao decidir
que não poderia haver prisão, em execução de sentença, senão após o trânsito em
julgado, privilegiando o disposto no artigo 5º, inciso LVII, da Lei Suprema, teve, no
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Parecer – Projeto de Lei Anticrime e a execução da pena após condenação em segundo grau de jurisdição
Art. 5º ...
inciso LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória; ...
Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por
ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente,
em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou,
no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão tem-
porária ou prisão preventiva.
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Ives Gandra da Silva Martins
Marilene Talarico Martins Rodrigues, Lenio Streck, Angela Vidal da Silva Martins,
Ana Regina Campos de Sica, Maurício Prazak, Leonardo Garbin, Pierpaolo Bottini,
Marco Aurélio Florêncio Filho, Juliana Abrusio, Cristiano Maronna, Elias Assad,
Carmen Sílvia Valio, Fernanda Marinela, Tatiany Ramalho, Fábio Simantob, Roberta
Amorim Dutra, Ricardo Breier, Ricardo Luiz de Toledo Santos Filho e eu mesmo, em
que o tema foi amplamente debatido.
Ora, no momento em que o julgamento – o mais acompanhado da história
do Brasil – realizou-se, cada um dos supremos julgadores trouxe sua refletida e
definitiva opinião sobre a matéria, razão pela qual a possibilidade de alteração de
seu posicionamento é praticamente nenhuma.
Nada obstante o apaixonado debate entre doutrinadores e juízes a respeito
do tema, quero lembrar dois aspectos que me parecem de particular relevância.
O primeiro deles é que as duas teses jurídicas em questão são consistentes.
A primeira, de que o trânsito em julgado implica a presunção de inocência
até que esse evento ocorra, tem seus seguidores, à luz de um argumento, além
de outros, de fácil compreensão até por não operadores do Direito. Como alguém
inocente, enquanto não transita em julgado uma decisão condenatória, pode cumprir
a execução de pena nesta condição? Como um inocente pode ser preso, como
culpado, sendo ainda inocente?
A tese contrária também se justifica à luz de três fundamentos, entre outros,
igualmente de fácil compreensão para leigos, ou seja: 1) a possibilidade de recorrer-se
a quatro instâncias (1ª, 2ª, STJ e STF) leva muitos processos à prescrição da pena
pela lentidão da justiça; 2) nas duas primeiras instâncias é que se discute toda
a matéria fática; 3) os tribunais superiores (STJ e STF) só reexaminam questões
jurídicas e não mais matéria de fato, salvo fatos novos, relacionada aos processos,
com o que o reexame não impediria a aplicação da pena pela última instância em
que toda a matéria fática pode e deve ser reexaminada.
À evidência, nas duas correntes há inúmeros outros componentes que eu
poderia abordar, mas para efeitos desta breve opinião legal e de sua compreensão,
principalmente, para pessoas não formadas em Direito, apresentei aqueles de
maior facilidade na compreensão.
Hart, em seu famoso livro “The concept of Law” em 1961 (Ed. Clarendon)
declara que “direito é aquilo que a Suprema Corte diz que é”, pois a segurança
jurídica só se obtém pela certeza da decisão judicial na aplicação da Lei. E, no
controle concentrado (ações diretas, declaratórias, de descumprimento de preceito
fundamental ou repercussão geral), a decisão tem efeito impositivo sobre as
instâncias inferiores e sobre a Administração Pública em geral.
206 R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 201-207, jul./dez. 2019
Parecer – Projeto de Lei Anticrime e a execução da pena após condenação em segundo grau de jurisdição
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Instruções para os autores
R. Fórum de Ci. Crim. – RFCC | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 209-210, jul./dez. 2019 209
INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES
texto do artigo, referências. O autor deverá fazer constar, no final do artigo, o local
e a data em que foi escrito o trabalho de sua autoria.
Recomenda-se que todo destaque que se queira dar ao texto seja feito
com o uso de itálico, evitando-se o negrito e o sublinhado. As citações (palavras,
expressões, períodos) deverão ser cuidadosamente conferidas pelos autores e/
ou tradutores; as citações textuais longas (mais de três linhas) devem constituir
um parágrafo independente, com recuo esquerdo de 2 cm (alinhamento justifica-
do), utilizando-se espaçamento entre linhas simples e tamanho da fonte 10; as
citações textuais curtas (de até três linhas) devem ser inseridas no texto, entre as-
pas e sem itálico. As expressões em língua estrangeira deverão ser padronizadas,
destacando-as em itálico. O uso de op. cit., ibidem e idem nas notas bibliográficas
deve ser evitado, substituindo-se pelo nome da obra por extenso.
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