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Por uma sociedade

civil mais forte e uma


democracia ampliada

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Fundação Astrojildo Pereira
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Política Democrática
Revista de Política e Cultura
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Gildo Marçal Brandão Milton Lahuerta Zander Navarro

Produção: Editorial Abaré


Copyright © 2009 by Fundação Astrojildo Pereira
ISSN 1518-7446

Ficha catalográica

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF:


Fundação Astrojildo Pereira, 2009.
No 24, agosto 2009
200 p.

1. Política. 2. Cultura. I. Fundação Astrojildo Pereira. II. Título.

CDU 32.008.1 (05)

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.


Podem ser livremente veiculados desde que identiicada a fonte.

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Política Democrática
Revista de Política e Cultura
Fundação Astrojildo Pereira

Por uma sociedade


civil mais forte e uma
democracia ampliada

Agosto 2009

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Sobre a capa

A
s obras que embelezam a capa e a contracapa desta edi-
ção pertencem ao artista plástico Sérgio Pinheiro (nascido
em Jaguaribe/CE, em 1949). Desde muito jovem é artista e
“vive enganando a todos fazendo coisas belas”, como ele mesmo diz.
No início dos anos 1960, desenvolveu amizade e aprendizagem, em
múltiplas técnicas artísticas, com o mestre Zenon Barreto e viajou
pela América Latina. Em 1970, foi para o Rio de Janeiro, onde du-
rante um ano estudou comunicação visual, no Museu de Arte Mo-
derna, com os professores, entre outros, Frederico Morais e Aloísio
Carvão. No MAM, participou da exposição Arte Agora/70, a convite
do pintor João Câmara. Nas décadas de 1970/90, fez exposições
individuais no Brasil e exterior. Nos anos 1980, estudou artes plás-
ticas, como bolsista do governo francês e sob a direção do professor
Frank Popper, na Universidade de Paris, onde obteve o diploma de
Mestre. Participou do Salão dos Independentes e da Exposição La-
tino-Americana de Artistas, inaugurada pelo presidente Miterrand,
no Grand-Palais, em Paris. Expôs individualmente em Versailles,
na agência do Banco Crédit-Lyonnais, e participou de coletivas com
colegas bolsistas, vencendo concurso para cartão de Natal de 1981.
Participou da mostra “Art en Boite”, exibida em diversos países.
Ainda nos anos 1980, foi para a Inglaterra, ali residindo por quatro
anos. Expôs individualmente na Universidade de Durham e reair-
mou relação proissional com a Galeria Denise René, de Paris, porta
de entrada de todos que se interessam pelo construtivismo na Eu-
ropa e no mundo. Na segunda metade dos anos 1980 e no início dos
anos 1990, expôs na França, Inglaterra e Ceará o resultado de estu-
dos feitos a partir de embalagens de papelão servindo como suporte
para a pintura. Em 2007, teve mostra e comemorou quarenta anos
de pintura, no Memorial da Cultura Cearense, do Centro Dragão do
Mar de Arte e Cultura, com o tema “Os Ambulantes”. Há dois anos,
trabalha interpretações deste tema com a ajuda do computador.

Política Democrática · Nº 24

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Sumário

I. Apresentação
Os Editores ...................................................................................................................9

II. Entrevista
Luiz Werneck Vianna ................................................................................................. 13

III. Os 120 Anos da República

Uma República excludente e autoritária


José Antonio Segatto .................................................................................................. 39

IV. Observatório Político

Oligarquia e presidencialismo de coalizão


Rudá Ricci .................................................................................................................. 51

Bobbio e a governabilidade das sociedades democráticas


Giorgio Napolitano ..................................................................................................... 55

O poder político
Luiz Viégas da Motta Lima ......................................................................................... 57

V. Batalha das Ideias

Que futuro nos aguarda?


Eric Hobsbawm.......................................................................................................... 63

A esquerda se tornou liberal


Evelyne Pieiller .......................................................................................................... 67

O que signiica ser gramsciano


Giuseppe Vacca ......................................................................................................... 74

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A comunicação na batalha das ideias
Dênis de Moraes ....................................................................................................... 78

VI. O Social e o Político

A reforma agrária bifocal


José de Souza Martins ............................................................................................... 87

Governabilidade e coesão social: o caso do Chile


Isabel Allende Bussi .................................................................................................. 91

Reforma do Estado e cultura política


Luiz Eduardo Soares................................................................................................ 100

VII. Direito e Justiça

Mitigando a presunção de inocência


Luiz Felipe Haj Mussi ..........................................................................................107

Os princípios e a liberdade subjetiva do juiz


Oscar d´Alva e Souza Filho ...................................................................................... 112

A importância do Judiciário para a democracia


Leandro do Nascimento Rodrigues........................................................................... 120

VIII. Ensaio

Que poder feminino?


Uma relexão sobre a representação de mulheres no Legislativo
Patrícia Rangel ......................................................................................................... 129

IX. Mundo

Novos tempos para Itaipu e os brasiguaios?


Sigrid Andersen ....................................................................................................... 141

Uma terceira via para a guerra em Gaza


Jayme Fucs Bar ....................................................................................................... 146

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Pós-Socialismo – Por que o vento da crise varre do mapa a esquerda
europeia?
Marc Lazar ............................................................................................................... 149

X. Memória

Sobre o Instituto Vladimir Herzog


José Serra ................................................................................................................ 155

Permanência de Augusto Pontes (1935-2009)


Dimas Macedo ......................................................................................................... 161

Escritores combatentes: o Congresso de Escritores de 1945


Ana Amélia de M. Cavalcanti de Melo ...................................................................... 163

XI. Vida Cultural

Arte, poesia e abolição no Grão-Pará


Aldrin Moura de Figueiredo e Moema de Bacelar Alves ........................................... 171

O ensaísmo labiríntico e a dialética da solidão


Aline Maria de Carvalho Pagotto .............................................................................. 177

XII. Resenha

Introdução à airmação dos direitos humanos em dois livros


Tiago Eloy Zaidan e Rudrigo Rafael Souza e Silva................................................... 187

Saga de Zumbi dos Palmares revivida


Uelinton Farias Alves ............................................................................................... 193

Pandemônio da memória em Chico Buarque


Marco Antônio F. de Matos ....................................................................................... 196

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I. Apresentação

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N
ossa revista tem se sentido honrada de poder compartilhar
um franco diálogo com alguns dos nomes mais expressivos
da política e da cultura brasileiras. Nossa seção “Entrevista”,
iniciada duas edições atrás, já permitiu ao crescente número dos nos-
sos leitores conhecer as idéias e a sensibilidade do ex-senador Roberto
Freire e aspectos da incomum trajetória do poeta e hoje também artista
plástico José de Ribamar Ferreira, o maranhense Ferreira Gullar.
Esta edição abre-se com um bate-papo descontraído do nosso
editor Caetano Araújo e do ensaísta Luiz Sérgio Henriques com um
dos mais ricos pensadores sociais e políticos do país, na linha de
Sérgio Buarque de Hollanda e de Caio Prado Jr., que é o carioca Luiz
Werneck Vianna. Sua obra tem a profundidade e a argúcia de quem
trabalha o processo civilizatório brasileiro, com lupa, nele identii-
cando os nexos causais e os seus desdobramentos, de forma a permi-
tir que se avance por caminhos novos, no rumo do aperfeiçoamento
da democracia e de oportunidades iguais para todos.
No balanço que estamos realizando, por motivo dos 120 anos da
mudança de regime no país, o historiador paulista José Antonio Se-
gatto nos oferece um instigante artigo sobre Uma República autori-
tária e excludente. O autor de Reforma e Revolução – As Vicissitudes
Políticas do PCB faz um breve mas profundo relato sobre a nossa res
publica, identiicando as marchas e contramarchas na construção
desse complexo e delicado edifício, e as mazelas que foi deixando
enraizadas na cultura brasileira.
Na seção “Observatório Político”, há três contribuições teóricas da
melhor qualidade, como a do sociólogo Rudá Ricci, em que traz angu-
lação nova para ver e compreender o presidencialismo de coalizão no
Brasil com suas estreitas ligações ao coronelismo regional, seguido
por um curioso approach do presidente da Itália, Giorgio Napolitano,
em que desvenda aspectos muito interessantes sobre como se pro-
cessa, nos dias de hoje, a governabilidade nas sociedades democrá-
ticas, e encerrada com o economista Luiz Viegas da Motta Lima, que

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I. Apresentação

mostra como o poder econômico inluencia fortemente as disputas


eleitorais, desde tempos imemoriais até os dias correntes.
No restante das demais seções, como “Batalha das Idéias”, há
atrativos de todo tipo, oferecidos pelo historiador inglês Eric Hobs-
bawm, em que pergunta que futuro aguarda o mundo, com a crise
ambiental emergindo como um dos problemas centrais da humani-
dade e o tempo não sendo favorável ao homem; pela escritora france-
sa Evelyne Pieiller, que examina entre fria e emocionada o rumo da
esquerda na direção das ideias e da prática liberais; pelo brilhante
intelectual italiano Giuseppe Vacca a nos brindar com um curto mas
profundo artigo sobre o que signiica ser gramsciano, ele que é o
presidente da Fundação Instituto Gramsci e que nos deu o prazer de
visita ao Brasil a nosso convite, no segundo trimestre deste ano, para
um ciclo de palestras e debates e lançamento do seu livro Por um
novo reformismo; e, por último, publicamos um texto polêmico do
jornalista e escritor Dênis de Moraes sobre um tema sempre atual,
que é a comunicação na batalha das ideias.
Já em “O Social e o Político”, temos uma rica análise do sociólo-
go José de Souza Martins sobre o que ele chama de reforma agrária
bifocal; um enfoque interessante da deputada chilena Isabel Allende,
que, a partir da realidade do seu país, discute a importância de se
ter governabilidade vinculada a uma real e concreta coesão social;
e um texto veemente do antropólogo Luiz Eduardo Soares, em que
ele defende uma reforma democrática do Estado de forma a permitir
que os brasileiros tenham um sadio ambiente de cultura política (ele
aborda uma grosseira agressão feita por importante órgão de comu-
nicação contra o líder social carioca MV Bill). Destaque-se ainda na
seção “Ensaio” o trabalho de Patrícia Rangel, mestra em Ciência Polí-
tica pelo Iuperj, que analisa a participação da mulher na vida política
e os espaços ainda pequenos que tem conquistado nas instituições
públicas, principalmente nos legislativos.
Além disso, as demais seções estão também cheias de atrações.
Como você, leitor, vai constatar, este número – como vem ocorrendo
ultimamente - supera nossas expectativas, sobretudo por contar, como
ocorre a cada quadrimestre, com novos colaboradores e com trabalhos
que sempre mais valorizam seus autores e a nossa publicação.
Boa leitura e amplos debates!

Os Editores

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II. Entrevista
Luiz Werneck Vianna

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Por uma sociedade civil mais forte
e uma democracia ampliada

L
uiz Werneck Vianna é um “clássico moderno”. Egresso da
cultura comunista – do comunismo do antigo PCB –, este
cientista social e político dirige-se, no entanto, a todas as
forças e personalidades da cena pública, no melhor sentido daquela
cultura, e isto desde o seu primeiro livro, Liberalismo e sindicato no
Brasil. Os traços da modernização conservadora, ou da revolução-
restauração, que assinalam a reconstrução da vida republicana,
particularmente a partir de 1930, encontram uma formulação cris-
talina já neste livro.

Werneck Vianna ajudou assim a compreender, “no calor da


hora”, ainda na década de 1970, que a alternativa à incorporação
autoritária dos setores subalternos somente poderia ocorrer no Bra-
sil por meio de uma efetiva democratização da vida nacional. Em
cada texto que compõe sua já reconhecida obra, política e cultura,
ação prática e orientação acadêmica de alto nível se dão as mãos e
se fecundam mutuamente.

Este, de resto, o sentido último das “análises de conjuntura” em


função das quais o autor tornou-se particularmente conhecido. Análi-
ses que, mesmo atentas ao movimento singular dos atores e das forças
em campo, sempre se inserem numa “teoria do Brasil” mais ampla,
sem que isso em nenhum momento signiique a tentação de deduzir
de uma teoria ou doutrina abstrata a realidade necessariamente luida
e contingente em que se mexem aqueles mesmos atores.

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II. Entrevista

Não se trata de concordar com qualquer um dos cenários especí-


icos que estas análises propõem ou propuseram no tempo em que
foram formuladas, mas de reconhecer que, pelo arcabouço metodo-
lógico e pela amplidão da visão de Brasil que supõem, constituem
igualmente peças clássicas no seu gênero, combinando dialetica-
mente os movimentos lentos da “estrutura” e o teatro vivo em que
atuam personagens de carne e osso.

A atenção às diferentes iguras do intelectual e, nos últimos anos,


ao papel do direito nas sociedades contemporâneas, novamente a
partir da circunstância brasileira, caracteriza a fase mais recente da
produção de Werneck Vianna. O processo de conversão de interesses
em direitos, numa consolidação e ampliação permanente do horizonte
democrático do nosso tempo, está no centro das preocupações que,
pela própria natureza, só aparentemente se distanciam da política
prática e da própria vida dos cidadãos comuns, uma vez que, através
das indispensáveis mediações, articulam-se com os processos con-
temporâneos de mudança social, capazes, no caso brasileiro, de dar
vida e animar uma civilização original e profundamente democrática.

Este aspecto “otimista” do pensamento de Werneck Vianna não


tem nada de ingênuo; pelo contrário, talvez seja o mais signiicativo
indicador, hoje, da possibilidade de reconciliação não conservadora
entre esquerda e nação, entre intelectuais e cultura, entre “subalter-
nos” e história brasileira, numa chave distinta daquela da moderni-
zação autoritária do Estado e da sociedade. As inquietações e dúvi-
das a respeito do caminho brasileiro para a contrução e consolidação
da democracia vêm alimentando permanentemente esse “nosso clás-
sico” e, com certeza, compõem o núcleo dessa entrevista, concedida
a Caetano Araújo e Luiz Sérgio Henriques.

FAP – Acostumamo-nos a ver a sua obra como um conjunto


muito coerente de proposições e mesmo de sugestões de
método. Gostaríamos de começar falando de Liberalismo e
sindicato e do papel especíico que neste livro teve sua par-
ticular “expropriação” de conceitos de Lenin e Gramsci.

Werneck Vianna – Sua pergunta sobre meu método de trabalho


exige de mim uma consciência que desconio não ter. Vou, então, con-
tar como trabalho a partir de um exemplo. Na verdade, acumulo mui-
ta informação fática. Assim, no inal dos anos 1960 e início dos 70,
quando preparava Liberalismo e sindicato no Brasil, defrontei-me com

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Luiz Werneck Vianna

o problema da Revolução de 1930, e aí me detive. Não poderia pros-


seguir com a elaboração do estudo sem apresentar uma explicação
persuasiva sobre aquele fato de importância capital para uma moder-
na coniguração do mundo trabalho entre nós. Li tudo o que, naquela
hora, me era possível ler, tentando uma interpretação que viesse a em-
prestar inteligibilidade àqueles fatos, dados, eventos singulares que
desaiavam a explicação corrente. De resto, estou sempre consultando
os grandes intérpretes brasileiros, testando os conceitos elaborados
pela galeria dos clássicos, buscando chaves que me permitam triunfar
sobre um cipoal de fatos aparentemente “erráticos”.

Portanto, desconio que o importante em todo o procedimento de


método seja cotejar a acumulação de informações com a bibliograia
existente. Somente desse modo sabemos se as explicações correntes
dão conta dos problemas que nos atormentam. Sobre 1930, por exem-
plo, a bibliograia existente no período mencionado, nas décadas de
1960 e 70, “patinava” muito. Tínhamos uma noção da autonomia do
político, derivada de certa leitura do Poulantzas, que foi dominante
na época. Havia também certas interpretações conceituais a respeito
de categorias sociais determinadas: por exemplo, as Forças Armadas
poderiam ser consideradas um fenômeno de camadas médias, ou se-
riam uma burocracia strictu sensu operando a partir de sua própria
lógica? Houve uma literatura muito abundante sobre isso, e essa
biograia não me satisfazia.

Vocês me perguntam também sobre Gramsci. A leitura dele foi,


para mim, para minha geração, uma verdadeira iluminação, entre
outras coisas porque havia algo em comum entre a Itália e o Brasil:
o corporativismo, que foi uma ideologia forte e que Gramsci analisa
muito bem. Por outro lado, entre nós havia até algum germe de ame-
ricanismo. Pode não ter sido um tema central, mas também tinha
vínculos aqui na nossa sociedade. Antes mesmo de 1930, empre-
sários de São Paulo experimentaram formas de dominação de estilo
americano – Jorge Street e outros. Na discussão sobre o trabalho
do menor, na discussão sobre a legislação social, o liberalismo dos
empresários brasileiros era de estilo americano. Bem, havia nossa
vizinhança com os EUA. Mas penso que essa vizinhança não era
apenas geográica. Havia uma proximidade real entre os EUA e o
sentido da política getuliana, que era o de desenvolver novas formas
organizacionais. A vinda de Roosevelt para cá não foi um gesto ape-
nas de boa vizinhança, foi uma declaração funda de intenção por
parte do governo americano. Oswaldo Aranha, um americanista, era

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II. Entrevista

uma presença estratégica no interior do governo Getúlio. Isso para


não falarmos de outros personagens que a história perdeu de vista,
como Valentim Bouças, assessor pessoal, nos anos 1930, em matéria
econômica de Vargas, mais tarde personalidade relevante na criação
da IBM no país. Esse era claramente do “partido” americano. Com
tudo isso, encontramos aqui a ideia de realizar a americanização “por
cima”, que foi uma das hipóteses contempladas por Gramsci. Por isso
não iz exatamente uma importação de conceitos. Eu apenas percebi
que alguém tinha estudado uma conjunção fática muito semelhante
à que me preocupava e tinha chegado a uma explicação convincente,
embora não entendida pelos seus contemporâneos e nem mesmo por
muitos que vieram depois, até mesmo nos anos 1970. Tanto assim que
o veio principal da leitura de Gramsci, naquele momento, ainda nos
anos 1970, enfatizava a guerra de movimento, a guerra de posição,
categorias que estavam orientadas por um outro momento histórico.

Acho que é assim que opero – eu não trago previamente o concei-


to. Uma vez, há muito tempo, um colega marxista me desaiou com a
seguinte observação: “Você, nos seus textos, cita muito pouco Marx”.
Eu pensei: “É verdade, mas tudo ali é Marx”. Sobretudo a possibili-
dade da inteligibilidade do real. Neste caso do “real concreto”, a me-
lhor orientação que encontrava era a do Lenin. Mas o Lenin que me
guiou no período em que escrevi Liberalismo e sindicato no Brasil, o
Lenin determinante para mim, naquele contexto, foi o Lenin sociólo-
go, o dos textos de sociologia agrária, o autor de O desenvolvimento
do capitalismo na Rússia. Foi na macrossociologia de Lenin, cons-
truída com precisão cirúrgica na virada do século XIX para o XX, que
fui buscar duas categorias muito poderosas para entender o nosso
caso, para apreciar o desenvolvimento capitalista: o modelo ameri-
cano e o prussiano. E o que é que nós tínhamos aqui para explicar
os anos 1930? De fato, 1930 era um enigma: como é que os homens
do latifúndio do Rio Grande do Sul comandam o processo revolucio-
nário que leva à industrialização do país, e o fazem sem romper com
a estrutura agrária, conservando a coalizão empresários industriais-
elites agrárias, como na Alemanha ou no Japão? O que faltava, a
meu ver, na nossa bibliograia, era alargar a galeria de casos elenca-
dos, porque, na verdade, nossa diiculdade derivava da existência de
dois paradigmas apenas – o da Revolução Francesa e o da Revolução
Americana, sem que nos encaixássemos em nenhum dos dois.

A leitura de Gramsci, para voltarmos a ele, se torna ainda mais


relevante porque alarga o elenco de casos a serem comparados. Não

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Luiz Werneck Vianna

dá para entender a revolução brasileira na chave francesa ou na


chave americana. Ela tem outra conotação, tem outra forma de qua-
liicação. E nela o mundo agrário é essencial, não como algo que vai
ser reduzido, que vai ser enfrentado e abatido, mas como elemento
partícipe do processo da modernização. Quer dizer, uma moderni-
zação feita com a preservação de setores retardatários das elites.
E o interessante é que essa apropriação de Gramsci se dava em um
momento em que era lançado o livro de Barrington Moore, Origens
sociais da ditadura e da democracia, que, ainal, embora trabalhan-
do em continente próprio, com categorias e conceitos próprios, visão
de mundo própria, se avizinhava das construções marxistas, das
construções leninistas sobre a questão agrária. Não sei se foi por
isso, pela idoneidade de uma perspectiva como a de Moore, pelo fato
de o argumento não estar comprometido com autores apenas mar-
xistas, mas a verdade é que minha interpretação teve bastante acei-
tação, na época. Outros também trouxeram à tona o mesmo ponto,
como o Luciano Martins, o primeiro de todos, na tese defendida na
Sorbonne, o Octavio Velho, em O capitalismo autoritário e o campesi-
nato, e, mais à frente, a Elisa Reis. Houve um conjunto de trabalhos
voltados para esta nova direção. A minha marca em relação a esses
trabalhos é apenas uma: é que eu utilizei Barrington Moore mais
como uma escora de proteção em relação à cultura da época, mas os
alicerces visíveis do meu argumento são Lenin e Gramsci.

FAP – Continuemos com Gramsci. Você vê em 1930, e em


vários outros momentos cruciais da história brasileira, um
andamento do tipo revolução passiva, de revolução-restau-
ração, em que o ator se vê como que ultrapassado pelos
fatos e o processo político parece caminhar por si mesmo.
E, num mesmo movimento, parece tomar o conceito de re-
volução passiva não só como critério de interpretação, mas
também como programa político, a ser adotado por atores
mais realistas e sábios. Não seria uma forma soisticada de
transformar necessidade em virtude?

Werneck Vianna – Na discussão sobre o caso italiano, em que


Cavour é o vencedor e Mazzini o perdedor, Gramsci airma que, se
Mazzini fosse um político realista, ele teria desconstruído a armação
passiva do Risorgimento. Teria feito, alternativamente, com que ela
fosse menos onerosa para as classes subalternas, com que houvesse
rendimentos de outra natureza. Ora, essa não foi uma leitura inde-
vida de Gramsci, produzida artiicialmente por mim. Gramsci, nessa

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II. Entrevista

hora crucial, em que Cavour acaba de ganhar, airma que, se Ma-


zzini tivesse agido de modo diferente, não teria perdido tanto. Teria
perdido, inevitavelmente, mas não tanto. Eu me reiro a isso quando
enfatizo o tema da revolução passiva.

Trago a discussão para a nossa história e para perto de nós: es-


tamos num momento muito particular, e isso vale para o mundo in-
teiro, eu acho, mas, seguramente, para o Brasil: tem-se uma pesada
tradição autoritária na política, uma sociedade imobilizada politica-
mente, mas, de outro lado, livre, inteiramente livre na sua socia-
bilidade, sem nenhum controle, sem formas explícitas de controle.
O que faz entender que, na medida em que se luta pela democrati-
zação da política e de suas instituições, esse movimento maciço que
trabalha a base da sociedade vai ganhar maiores posições. E isto
numa dimensão “revolucionária”, importando mudanças de vulto de
posições no interior da sociedade. Uma coisa por aí, algo que decor-
re até de uma observação puramente demográica. Além disso, esse
mundo é airmador de direitos e traz com ele novos interesses. En-
tão, na medida em que você encontrar passagem e legitimação para
esses interesses, mesmo que a ordem excludente persista, você vai
minando o campo adversário e ganhando terreno molecularmente.
Se “Mazzini” agir segundo um cálculo – um Maquiavel da sociedade
civil –, senhor da sua circunstância, que não lhe permite uma vitória
inal, aproveitando as oportunidades para a defesa de sua identidade
e dos seus propósitos, ele pode impor ao seu antagonista uma parte
da sua agenda enquanto acumula forças para novos avanços, sem
que se entregue à passividade. Com isso, ele se credencia a interditar
a cooptação dos seus quadros por parte de Cavour.

Na verdade, tudo isso é uma revolução passiva numa escala que


Gramsci não pôde conhecer. Todos esses processos são posteriores
a ele. Mesmo de forma passiva, nosso país produziu esta imensa
mudança de posições, inclusive no tema do gênero, com a eman-
cipação feminina, a chegada da mulher no mercado de trabalho e
a perda de controle social em todos os níveis. Também no campo,
houve mudanças na relação de propriedade. Então, por que não ser,
hoje, um “perdedor” diferente do que foi Mazzini? Por que não ser um
político realista, no nosso caso? Por que não introduzir Maquiavel,
que é sempre mobilizado como teórico do Estado, nessa dimensão
societal? Diga-se de passagem que, quando eu comecei a estudar
o tema do direito, também foi essa a direção. Considerei assim os
novos institutos criados pela Constituição e até mesmo antes dela.

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Luiz Werneck Vianna

E começamos a compreender esses institutos e a procurar seguir por


esses caminhos. São caminhos de pequenas rupturas. Agora, isso
está desconectado da política? Não deveria estar, não, mas está.

FAP – Que papel teve a leitura de Gramsci e dos políticos


ligados ao eurocomunismo na sua geração e, mais ampla-
mente, na cultura democrática brasileira?

Werneck Vianna – Ao falar de eurocomunismo, a referência ime-


diata é Enrico Berlinguer, que apareceu como a melhor tradução
do pensamento gramsciano no plano político e, inclusive, um dos
mais audaciosos. Veja só a tese de que o feminismo era a parte mais
revolucionária. Quando eu fui apresentado a ela, reagi, mas icou
claro mais para a frente que Berlinguer tinha toda a razão. Agora,
uma coisa que me chamou a atenção, que sempre me incomodou na
política dos eurocomunistas foi a desatenção deles para com a cena
internacional. Foi uma concepção muito autárquica, a deles...

FAP – Autárquica e europeísta...

Werneck Vianna – Até italiana, eu diria. As possibilidades deles


aqui, que eram imensas, não foram exploradas. Eles se recusaram
a uma aproximação mais forte em nome de uma boa relação com o
partido soviético e demais satélites, em nome de cálculos políticos,
não sei com que sentido preciso. Um blefe era importante: dizer que
não iam se envolver com os partidos comunistas no poder, mas sem
abdicar de um papel “pontifício”, central, que era necessário que os
italianos tivessem naquele momento.

FAP – Inclusive em relação ao Brasil.

Werneck Vianna – Inclusive em relação ao Brasil, onde as possibili-


dades estavam inteiramente abertas. O Giovanni Berlinguer, irmão do
Enrico, tinha um trânsito enorme por aqui, especialmente na área dos
sanitaristas. Mas, quando tentávamos uma aproximação mais forte,
eles sempre lembravam os limites a que eram obrigados, em face da
amizade entre partidos irmãos. Era só conversa. Eu acho que faltou a
eles a percepção de que, para serem mais fortes na Itália, teriam que
ter presença em outros lugares. E um bom terreno para eles, naquela
época, era o Brasil. Como isso poderia ser atestado? Entre outras coi-
sas, pelo movimento editorial que tomou corpo em torno das obras de
Gramsci, pelos inúmeros intelectuais que passaram a se orientar pela

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II. Entrevista

leitura gramsciana, enim, pela “revolução gramsciana” que foi feita


na universidade brasileira, a partir dos anos 80. Acho que os italianos
não tiveram sensibilidade para perceber isso.

FAP – Apesar de tudo, era também um aparelho político ve-


lho, o deles. Seu “ministro das Relações Exteriores” era o
Gian Carlo Pajetta, um quadro histórico voltado para o Leste
europeu, para o velho bolchevismo. Limitado nesse sentido,
sem audácia. Na verdade, faltou audácia externa. Mas, e o
Brasil? O que signiicou, no Brasil, dentro do PCB, a corrente
eurocomunista? Gostaríamos de saber sua relação com Armê-
nio Guedes, p. ex., e com todo o processo de luta interna...

Werneck Vianna – Apenas digo que esta foi uma possibilidade que
se frustrou também por volta de 1980, 1981. Quando a direção do
PCB voltou ao Brasil, a minha posição foi abrir um terceiro caminho.
Prestes de um lado, Giocondo do outro, e nós numa terceira posição.
Fizemos, àquela altura, uma reunião, e fui amplamente derrotado.
A ideia vitoriosa foi a de que deveríamos nos associar ao Giocondo,
que era o caminho possível etc. Eu me bati por um terceiro caminho,
mas era inteiramente dependente do David [Capistrano Filho] para
fazer esse movimento, pois ele tinha o controle de São Paulo. Mas aí
o passado pesa, não é? Houve quem dissesse que não faria esse mo-
vimento para não virar “renegado” e coisas do gênero. O fato é que,
se isso tivesse sido feito, nada garante, a meu ver, que teria dado
certo, mas pelo menos teríamos tentado um movimento garibaldino e
não um movimento mazziniano. Porque dentro do partido havia esse
movimento mazziniano. Bom, eu não vou identiicar a essa altura
quem, a meu ver, consagrava melhor isso. Não faz sentido. Mas ha-
via. E, nesse sentido, a “Declaração de Março de 1958”, com todos os
elementos de revolução passiva que ela, inconscientemente, estimu-
lava, também não ajudava, principalmente no seu determinismo que
induzia a crença de que “os fatos” trabalhavam a nosso favor. Não
houve o corte ali, e, nisso, Gramsci tornou-se mais vivo nos cenácu-
los da cultura universitária do que na política. Porque ele icou sem
portador dentro da política.. Enim, o “grupo eurocomunista” não se
constituindo como tal, Gramsci vai sair da política, vai ser capturado
pelo campo da educação, dos estudos sobre folclore, da religiosidade
popular, qualquer coisa que não a política. E todo esse nosso movi-
mento então foi inteiramente decapitado, ao se dispersar em várias
direções. Uma fração dele, mais animada, foi para o PT, mas sem
partir de uma relexão própria. Se nos levantássemos naquela hora e

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Luiz Werneck Vianna

disséssemos: “Não, o novo vai conversar conosco”, havia energia ainda.


Poderíamos perder. Aliás, deveríamos perder. Mas, talvez, se mantivés-
semos linhas de continuidade, linhas de articulação... O fato é que, a
partir daí, fomos nos perdendo, até o ponto de hoje estarem inteira-
mente isolados os comunistas brasileiros que izeram a descoberta
gramsciana. Hoje é só um tempero especíico dentro da política.

Vemos o tema da revolução presente na juventude de agora,


nesta juventude do Psol, do PcdoB e de outras formações políticas,
e que não conhece a alternativa que os eurocomunistas chegaram
a esboçar. Perdeu-se, a meu ver, a oportunidade para a grande
política, e aí ganhou a pequena política, ganharam os pequenos ar-
ranjos. A falta de recursos também contou. Lembro o golpe mortal
que foi a proibição em 1981 da grande festa da Voz da Unidade, que
ia se realizar em São Paulo e nos garantir pelo menos um ano de
sustentação. Mas quero aludir também a esse sentimento de que a
ruptura era uma iconoclastia a ser evitada.

FAP – O americanismo, de extração gramsciana, é uma ins-


piração fundamental do seu pensamento, no sentido da bus-
ca de uma vida social que possa expressar crescentemente
elementos de autogoverno, com um mínimo de sedimenta-
ções e crostas parasitárias. No entanto, você se demarca ni-
tidamente dos nossos autores que poderiam ser chamados
de “americanistas”. Não haverá nisso uma contradição?

Werneck Vianna – A diferença é teórica: sobre o Estado. E tam-


bém sobre a relação entre moderno e arcaico, o que leva sempre a
um antagonismo: o moderno, para Faoro, tem que erradicar o seu
contrário, a tradição. Para mim, não: o moderno tem que assimilar
o seu contrário. Minha percepção de Estado é também diversa. Não
é possível desqualiicá-lo por deinição. Embora eu reconheça que
há aí um ponto enigmático mesmo, penso que esse enigma é da
nossa natureza, é da nossa própria formação: este Estado que está
aí nasceu mais moderno que a sua sociedade, portava uma “teoria”
para ela, um projeto de formar uma nação, e era autoritário, sem
dúvida. Mas o outro lado, os “americanos” da Regência e antes dela
– Frei Caneca e outros –, que apontavam para a livre iniciativa, para
a liberdade individual, não tinham como resolver uma questão es-
tratégica, qual seja, garantir a unidade nacional. No limite, abriam
mão dela, como Feijó, que também era um “americanista”. Então,
essa articulação entre ibéricos e americanos está presente na nossa

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II. Entrevista

história. Tocqueville, no começo de A democracia na América, faz


uso de uma airmação: as nações são como as pessoas, pois seguem
iéis às suas condições de origem. Nações, como a francesa, que
nascem animadas por dois princípios, vão ter diiculdades mais na
frente, vão ter que combiná-los. Nós, como os franceses, nascemos
animados por dois princípios: o público e o privado. Somos ibéricos
e americanos, com ênfase em ambos. Nós somos assim, nascemos
de uma composição entre eles, porque o liberalismo aqui abortou
diante da migração da família real. Mais um pouquinho e nós tínha-
mos feito uma revolução nacional libertadora.

FAP – Provavelmente esfacelando o país...

Werneck Vianna – Uma perspectiva hispano-americana. É aqui-


lo sobre o qual nossos próprios homens do momento de fundação,
como José Bonifácio, advertem: a fragmentação hispano-americana
não pode prevalecer aqui. Esse é o caminho da guerra civil. Enim,
mesmo diante de um ato libertário, ele diz não. É uma dissidência
infernal, não há como icar com um lado contra o outro. Nós temos
que entender isso na nossa história, como foi que isso aconteceu, e
agora trabalhar essas duas matrizes, valorizá-las, porque elas não
são alienígenas, elas são constitutivas do país.

FAP – Elas perpassam esquerda e direita...

Werneck Vianna – Pensando assim, também a direita. De tal modo


que quem contraria a realidade dessas duas matrizes sofre, em ge-
ral, sérios percalços. O Collor, por exemplo, quis fazer isso, romper
radicalmente com a tradição em nome do mercado moderno, e deu
no que deu. Aliás, se vocês me permitem, e isso vai sem maior pre-
tensão, o Fernando Henrique só me cita, sempre, nesse ângulo par-
ticular. Qual foi, então, a manobra que procurei conceber? Imaginei
que o mundo americano, o mundo da sociedade, especialmente da
vida associativa, da livre associação, fosse capaz de se elevar à polí-
tica e converter o Estado a partir de baixo e a partir de dentro. Um
processo de conquista feita ao longo do tempo, em que o direito teria
papel a cumprir, um direito criado a partir de baixo. Não o “direito
alternativo”, não o “direito achado na rua”. Não é isso. Mas sempre
procurei valorizar os novos institutos e preservar também os valores
do público. Citando um autor recente, contemporâneo, Pierre Rosan-
vallon começa sua Monarquia impossível exatamente como Tocque-
ville, ainda que sem citá-lo: “Nós, franceses, temos duas matrizes”

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Luiz Werneck Vianna

etc. Nós também temos duas matrizes. No caso dos americanos, não,
eles têm uma matriz única.

FAP – Você fala de uma mudança a partir de baixo, da so-


ciedade. Isso você encontra em Gramsci e vai buscar tam-
bém em Tocqueville. Ainal, qual o papel de Tocqueville na
sua relexão mais recente, assim como de outros teóricos
das ciências sociais, de forma geral?

Werneck Vianna – Lembro mais ou menos a relação que Grams-


ci teve com Benedetto Croce, que era o ponto culminante do pen-
samento na sua época. O que não quer dizer que a esquerda que
nós somos, e nem o Gramsci concordava com isso, deve aceitar pas-
sivamente qualquer ponto culminante desse tipo. Lembro também,
agora, a igura de Habermas, a posição mais poderosa que existe e
que de algum modo parte do nosso campo, parte do marxismo. Em
Habermas, temos uma origem mais próxima de Marx do que de qual-
quer outro pensador contemporâneo signiicativo, e também temos
uma construção democrática extremamente persuasiva das mudan-
ças na estrutura Estado, na estrutura do poder a partir da via social,
desde que se instituam procedimentos adequados e se libere a fala,
com os homens em igualdade de condições para se manifestar. A
propósito, o que sempre me aturdiu no Habermas é o fato de jamais
ter mencionado a existência de Gramsci. Ele escreveu sobre autores
americanos que trabalharam muito com Gramsci, como [Jean] Cohen
e [Andrew] Arato, especialmente na formatação do conceito de socie-
dade civil. Habermas trabalha muito com estes autores, incorpora-os
como uma das balizas do seu pensamento, mas curiosamente não
menciona Gramsci, o que sempre me que pareceu um traço pequeno
na sua obra.

FAP – Mas Tocqueville é de outro campo, não é marxista.


Como você vê essa interação? Ele tem algo a dizer para
nós? Na medida em que a questão da democracia ganha
peso, Toquevile precisa ser mais incorporado?

Werneck Vianna – Tocqueville, antes de tudo, ganha presença


imensa entre nós na medida em que é a principal referência dos nos-
sos “clássicos”, dos nossos intérpretes e estadistas. Alguns podem
sustentar que as concepções tocquevilleanas aqui são desajustadas,
que não há correspondência razoável entre o Brasil e a América do
Norte; outros, ao contrário, defendem, como o fazem os americanistas

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II. Entrevista

extremados, que se deve liberar a economia, liberar o indivíduo e que


se vai colher bons frutos com a derrocada dessa tradição barroca,
ibérica, pesada, dessa estrutura chinesa de dominação, burocrática,
patrimonial. E o ideal da township, da comunidade auto-organizada,
era uma presença forte nos municipalistas do Império. Encontramos
elogios fortes à obra tocquevilleana no principal opositor das ideias
de descentralização, que é o Visconde do Uruguai. Oliveira Viana
também. E vai por aí. A tradição autoritária brasileira vai numa dire-
ção, a tradição libertária vai em outra tradição... E frequentemente,
por peripécias da nossa história, nós da esquerda somos tachados de
estatistas, de autoritários, de conservadores.

FAP – Nós da esquerda?

Werneck Vianna – Nós da esquerda. No período pós-suicídio de


Vargas, icamos todos, PSD, PTB, PCB, confundidos no mesmo Es-
tado, na mesma estrutura corporativa sindical. E agora no governo
Lula isso volta. É como se a história se reanimasse e se izesse pre-
sente com todo o seu peso. A própria estatalização está de volta, em-
bora não se possa refazer o percurso de antes, porque, como disse,
sabemos que as duas matrizes são poderosas e nenhuma das duas
tem força suiciente para aniquilar a outra...

FAP – Mas neste jogo ambas entram em mutação, não?

Werneck Vianna – Ah, entram, vão entrando, e nós vamos nisso.


A percepção dessa alquimia é absolutamente necessária para operar o
mundo da política.

FAP – O “seu” Gramsci, decididamente, não é o “leitor de


Maquiavel”, aquele que supõe a mobilização jacobina da
vontade nacional-popular. Mas alguns processos em curso
na América Latina, hoje, não parecem estimular esse tipo
de leitura revolucionária?

Werneck Vianna – Este quadro latino-americano é difícil. É muito


difícil. É aí que, a meu ver, temos que pensar do ângulo de um país
continental, com uma história particular, e que olha para este mun-
do com simpatia, com interesse – e com reservas. Porque lá se vive
um processo que nós não podemos deixar de valorizar: a chegada de
milhões e milhões de pessoas ao mundo dos direitos, pessoas que
estavam ali embrutecidas em um canto do mundo e agora chegam à

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Luiz Werneck Vianna

política, à esfera pública, ao parlamento. Elas vêm com um sistema


de orientação dado pela sua particularidade, a mais absoluta, mas
também usando um arsenal de linguagem já experimentado e que
não foi muito bem-sucedido. Mas, de fato, o pensamento revolucio-
narista da América Latina veio com um novo fôlego, ainda que esse
novo fôlego seja refratado por uma série de outros processos. Temos
uma revolução autocontida espacialmente, ideologicamente.

FAP – Mas não o Chávez, que parece ter construído uma


“internacional” bolivariana...

Werneck Vianna – A questão é a seguinte: devemos nos opor a


isso, devemos combater isso? Essa é a questão que vocês estão me
impondo, não é? Acho que está claro, a partir de certos limites, sim.
E, para ser franco, a política externa brasileira em relação a esse
ponto tem sido, nas suas linhas gerais, muito inteligente, muito per-
tinente. De todo modo, nada disso quer dizer que se deve sacramen-
tar no seu conjunto essa nova posição revolucionarista. Se vocês me
perguntarem, eu acho que ela tem que ser contestada em termos
políticos, tem que ser teoricamente contestada. Agora, o fato é que
muitas agências formadoras de opinião, entre nós, aqui dentro, man-
têm sobrevivências revolucionaristas... De qualquer modo, é preciso
registrar que o cenário em que se inscreve, hoje, o Brasil transcende
o da América Latina e já é o mundial,e nele temos como trunfo nos-
sos valores e a história da nossa civilização.

FAP – Mas enfrentar teoricamente implicaria apontar as


contradições entre essa retórica jacobina e a convivência
com a sociedade civil.

Werneck Vianna – Mas seria uma retórica jacobina mesmo?

FAP – No caso dos índios? Do Evo Morales?

Werneck Vianna – É uma revolução agrária que está em curso na


Bolívia hoje?

FAP – Não. Até porque já aconteceu uma revolução agrária...

Werneck Vianna – Mais do que pensar em jacobinismo, nós temos


que pensar em cesarismo, em categorias mais referidas a um anacro-
nismo. E a situação boliviana, de fato, pode terminar em tragédia...

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II. Entrevista

FAP – Devemos nos preparar para o pior em situações como


a de Honduras e outras? Teríamos, como se quis nos anos
60, “um continente em chamas contra o imperialismo”?

Werneck Vianna – Há quem possa pensar assim, mas nesse parti-


cular o Brasil é uma presença apaziguadora.

FAP – E cabe considerar também o outro lado da moeda, o


lado do “império”, onde há sinais de vitalidade, que podem
alterar os dados desta situação. Observamos lá, desde a elei-
ção de Obama, uma referência constante aos pais fundado-
res, aos valores americanos...

Werneck Vianna – É a volta da religião civil, um fenômeno de im-


portância imensa. Sem falar na projeção externa disso, lembro que,
internamente, quando os Estados Unidos enfrentam uma questão
como a da saúde, rompem uma tradição pesada. Quer dizer, admi-
te-se que o Estado tem responsabilidades, há solidariedades entre
as gerações, os indivíduos têm que ser protegidos pela lei. E isso é
um divisor sem tamanho naquela sociedade. A ideia do pistoleiro,
do indivíduo solto, do aventureiro, do homem da fortuna, só por
isso sofre um baque considerável. A América se socialdemocratiza.
E a nossa experiência brasileira, há dezesseis anos também é uma
experiência socialdemocrata. E tudo indica que por mais quatro ou
oito anos vai persistir assim...

FAP – Seja Serra, seja Dilma...

Werneck Vianna – Seja Serra, seja Dilma. Isso signiica que, com
modulações, com variações para lá e para cá, vige uma única pauta.
O que há são interpretações da mesma pauta.

FAP – E assim voltamos ao cenário brasileiro, que parece


viver esta contradição entre atores exageradamente contra-
postos – na retórica – e substancial continuidade de projeto.
É como se fossem atores de outra peça, que, no fundo, não é
aquela que aqui está em cartaz. Como explicar estes atores
fora de lugar? Como explicar o antagonismo radicalizado
entre PT e PSDB, que envenena a cena pública? Para expli-
car isso, devemos sair da política e recorrer ao narcisismo
das pequenas diferenças?

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Luiz Werneck Vianna

Werneck Vianna – De fato, a política oicial brasileira não se en-


contra sob ameaça, no sentido de que não aparece nenhum grupo
forte, de baixo, mexendo com as coisas estabelecidas. Com isso,
os partidos hoje dominantes não têm porque se preocupar. Ao im
e ao cabo, vem o aumento do bolsa família... Do plano social não se
originam impulsos que interiram no sentido da mudança do quadro
partidário. A desigualdade não cai, mas esse tema – o da desigual-
dade – não tem, hoje, a carga dramática suscitada pela questão da
pobreza. O tema da desigualdade, a meu ver, se airma em momentos
revolucionários. Num momento como o nosso, visivelmente o que se
discute é a pobreza. Além do mais, na sociedade brasileira, ser de-
sigual ainda não signiica muita coisa, pois as classes subalternas,
em grande parte, têm uma vida paralela, culturalmente mais rica,
em certos aspectos, do que a do conjunto da sociedade. Do ponto
de vista de sociabilidade, do ponto de vista de vida associativa, do
ponto de vista do lazer, há um mundo paralelo, que não é ameaçado
pela repressão. Tem tráico, tem policial corrupto, mas tem também
imaginação solta, folguedo, dança, feijoada e churrasco na laje, co-
milança, festa de São João e muita energia para organizar tudo isso.
Não é um mundo anômico. Ao contrário, é cheio de energia.

O que coloca a seguinte questão: nesse contexto,para os setores


das elites políticas e econômicas exercerem hegemonia precisam ne-
gociar o tempo todo. Qual foi a agência cultural que mais cedo e me-
lhor compreendeu tudo isso? A Rede Globo de Televisão. Ela foi mui-
to ajudada nessa tarefa por alguns intelectuais formados no nosso
campo, como Dias Gomes, Vianinha, Armando Costa, Paulo Pontes
e muitos mais. Mas, com isso, tendo de abrir o sistema à invenção
popular - é claro que mistiicando, mascarando etc. –, novos perso-
nagens são mobilizados para a tarefa de organizarem a cena cultural.
A Globo exerce uma ação hegemônica? Exerce. É um aparelho cultu-
ral que é capaz de interpelar vivamente o que está embaixo e dirigi-lo
Tome-se o Estandarte Globo como exemplo: a Globo trouxe para si
a premiação das Escolas de Samba, deixando em segundo plano o
júri organizado pelas direções das Escolas. E isso vale para qualquer
coisa que viva, que se mexa no Rio de Janeiro, vale para qualquer
manifestação cultural da cidade e mesmo do país. O que faz com que
seja um domínio muito difícil de sacudir, de deslocar, mas também
muito permeável e invadido por baixo. Enim, um território da revo-
lução passiva, em que muitos são decapitados e têm suas cabeças
ocultadas para que o andamento cultural possa prosseguir.

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II. Entrevista

FAP – Já na questão partidária, a permeabilidade em rela-


ção ao que vem de baixo, da sociedade civil, não é similar.
Ambos os partidos, PT e PSDB, têm uma reação igualmen-
te reativa ao que vem da sociedade civil, ou há diferenças
entre eles?

Werneck Vianna – Essa é uma ótima questão. Ambos os parti-


dos, e até mesmo seus candidatos, têm a postura tradicional do po-
lítico progressista brasileiro: são favoráveis ao que ocorre embaixo,
procuram entender, estabelecer políticas adequadas, mas uma rela-
ção orgânica, mesmo que simbólica, se dá com o tipo representado
pelo Lula. Porque a relação de Lula, no caso, é visceral. E vai haver
novidades nesse ponto a partir de 2010, porque tanto com Serra
quanto com Dilma teremos turbulências: nenhum dos dois vai ser
capaz de manter, de segurar esse equilíbrio precário que existe
hoje no interior do governo, no interior do Estado, e encarnar essa
representação da articulação entre Estado e sociedade que o Lula
faz em si. Não é o estilo do Serra nem da Dilma. Eles são adminis-
tradores, têm uma outra formação, outro estilo.

FAP – Mas continuaremos sempre no âmbito da revolução


passiva, sem esperar explosões...

Werneck Vianna – Já que a vida é imprevisível, tudo pode aconte-


cer, mas não é isso que se espera que vá acontecer, principalmente
quando a sociedade já conhece os trilhos domesticados por onde an-
dar. Por outro lado, é possível fazer grandes mudanças obedecendo
aos institutos existentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, posso ir
ao Congresso e mudar a legislação sobre saúde. É duríssimo, mas
posso mudar e avançar em muitas outras. E também aqui podemos
avançar em muitas direções. Olhando agora para a sociedade, como
resistirá o Serra ou a Dilma, logo que um deles tome posse, a uma
movimentação ativista do MST? Que nem Lula, resguardando um
pedaço de chão no interior do governo para eles? Acho que o Serra
não faria isso.

FAP – Não tem feito em São Paulo...

Werneck Vianna – Não tem feito em São Paulo... Quanto a isso não
há dúvida. E a Dilma, fará? Poderá fazer, mas ela também não tem
se chocado com o agronegócio. Ela vai suportar a pressão do agro-
negócio, com a alegação, por parte deste, de que sustenta o país e

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Luiz Werneck Vianna

quer sustentar o mundo? O agronegócio tem, de fato, o argumento de


que constitui uma base de lançamento estratégico para o Brasil na
cena mundial, e a Dilma, ao que parece, não é a favor de algo como
um jardim zoológico por aqui, e aparenta mais ser uma portadora do
lema do desenvolvimento das forças produtivas nacionais. Já o Lula,
o que faz? “Olha, meus amigos do mundo agrário, venham os dois
aqui, vamos conversar...”. Sempre com jeitinho, e tem dado certo. O
que poderia ter dramatizado a política brasileira não aconteceu: a
luta pelo terceiro mandato. O que quer dizer o seguinte: o presidente
subscreveu as instituições. Ele se alinhou nesta questão capital, for-
taleceu as instituições, jogou as regras do jogo. Ponto.

FAP – A velha esquerda nacional-desenvolvimentista tinha


um déicit de pensamento democrático (reiro-me aqui à
democracia representativa). O PT traz em si alguns ele-
mentos constitutivos (como a esquerda egressa da luta
armada ou o “populismo” de certas correntes do pensa-
mento católico), mais afeitos à democracia substantiva ou
aos mecanismos diretos de estruturação da vida política.
Corremos o risco de, além do desenvolvimentismo, repli-
carmos o velho déicit democrático?

Werneck Vianna – Devemos sempre ter em mente que o PT vive


a dinâmica da democracia representativa. As posições de força
dentro do partido dependem muito do mandato parlamentar. Os
parlamentares ouvidos, os políticos que falam para a sociedade
são credenciados pelo mandato. Isso é totalmente distinto do par-
tido político de esquerda dos anos 1950/1960 em que o mandatá-
rio era visto como um quadro menor na estrutura partidária, que
cumpre ordens e não tem autonomia. Isso mudou. Os parlamen-
tares começaram a ser quadros mais influentes do que os demais,
tal como ocorrera na Itália, onde a tradição revolucionária também
enfatizava o carisma do quadro, seu papel na estrutura organiza-
cional e não no parlamento. Essa passagem, no PT, já foi feita ca-
balmente. E não tem volta. O Genoíno, o Zé Dirceu, que está sem
mandato agora, mas vai voltar, o Palocci, enfim, todos buscam sua
legitimação como quadros parlamentares.

Quanto à posição do PT, ao medo de que o partido não valorize as


instituições da democracia representativa, essa é uma questão mais
complicada. Como será o petismo sem Lula? Esse é o grande proble-
ma. Um dilema muito curioso, esse da formação do PT. Isso já foi vis-

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II. Entrevista

to várias vezes, tanta gente escreveu sobre este dado, digamos, xiita
da formação. O partido chega para atingir um determinado objetivo,
não tem como atingi-lo, a não ser parcialmente e na dependência
pessoal do chefe. Então, todos icam nesta dependência e monta-se
um equilíbrio que não tem como ser quebrado, até que o próprio che-
fe se autonomiza e declara: “O programa do partido não me regula,
eu me adapto às circunstâncias. Sou um político de faro, de intuição.
Sou um político pragmático”.

FAP – Como o Zelig, do Woody Allen... Mas, nessa perspec-


tiva, o PT sem a presidência Lula, vai ter uma queda forte?
Ou seja, o sucesso do Lula se teria dado em detrimento do
partido, pelo menos até certo ponto?

Werneck Vianna – Terá uma queda, sim. E o sucesso do Lula,


paradoxalmente, fez com que a estrutura partidária icasse ainda
mais desfalecida. O que a direita pretende com essa campanha que
tem como alvo preferencial o Sarney? Está querendo demolir a de-
mocracia representativa? Não é o caso. Pretende quebrar o PMDB?
Certamente. Seu objetivo é impedir que o PMDB se torne uma plata-
forma de lançamento da candidatura Dilma? Certamente, também.
Mas está difícil perceber a natureza desse movimento mais recente
da política, porque há algo nele que é geral, universal, que tem a ver
com a valorização do princípio da moralidade pública. O tema da
moralidade pública é um tema emergente no mundo. E é muitíssi-
mo democrático. Li o depoimento de um ministro da Suprema Corte
Americana, que diz passar alguns dias da sua vida sem pensar noutra
coisa senão elaborando a sua prestação de contas anuais. Se essa
prestação não for minuciosamente correta, aparece um promotor e...
Esse é um novo mundo, uma nova ordem. E quem não entende isso,
perde, é derrotado. A democracia tem isso: vai avançando e vai assus-
tando também. A propósito, esse é um dos argumentos do Tocqueville.
Há algo nisso que é inexorável.

FAP – Uma palavra, ainda, sobre a contribuição brasileira


tanto no plano mais imediato, fortemente afetado pela crise
em curso no mundo e na América Latina, quanto em termos
mais estratégicos, como contribuição para uma superação
dos problemas de hoje que signiique ganhos civilizacionais.
Ou, para sermos mais diretos, o Brasil tem jeito?

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Luiz Werneck Vianna

Werneck Vianna – Tem. O Brasil é uma ponta de luz no mundo.


Tornamo-nos isso a partir da grande tragédia que foi a escravidão.
Ela fez com que cada um de nós se sentisse culpado e conhecesse a
compaixão. Viver sob uma ordem liberal, orientada desde a hora de
fundação do Estado-nação, pelos ideais da civilização, e coexistir com
a escravidão... Proclamar a sua iniquidade, como em José Bonifácio,
e admitir a sua existência, mesmo que por um tempo que deveria
ser breve – e que não foi – por falta de alternativas. Tenho pensado
muito nisso, na nossa visão compadecida, na presença da culpa em
cada um de nós, que convivíamos com uma instituição desumana e
para a qual não encontrávamos justiicação, salvo as do mais estreito
utilitarismo. Organizar essa circunstância alitiva, agônica, implicou
uma negociação ininterrompida em cada um, no sentido de conciliar
princípios com práticas que os desautorizavam, de onde, especulo,
nos veio a dialética como forma fundamental da nossa cognição. Não
tenho medo de dizer que aprendemos a ter uma percepção dialética
do mundo a partir da escravidão. Uma dialética sempre refratária à
síntese, obrigando a negociação entre pólos opostos. Tudo deve ser
negociado, e essa não é uma marca apenas do Brasil tradicional. Isso
se reitera nas práticas políticas modernas - no fundo, a experiência
da social-democracia brasileira, de FHC a Lula, é a da permanente
negociação entre princípios e interesses. A escravidão nos obrigou
a uma negociação permanente, inclusive porque, aqui, ela não im-
plicou o afastamento americano, o apartheid. Hoje se considera que
tolerância racial e tolerância religiosa, marcas do Brasil, não são lá
muita coisa. Bom, agora quem mais tem isso do jeito que nós temos?
Neste mundo de ódios raciais e guerras de religião isso é pouco?

FAP – Mas você então subscreve o Gilberto Freyre, o Joa-


quim Nabuco, que foram mais ou menos subestimados pela
sociologia marxista no Brasil?

Werneck Vianna – Em boa parte, sim. O diagnóstico da negociação


tanto no plano da política como no da sociabilidade está presente
neles. O fato é que nós temos sabido compor, de um modo ou de
outro, duas matrizes de orientação diversa, e assim evitando, para o
bem e para o mal, que conhecêssemos rupturas revolucionárias. O
estilo beligerante pode ter sucesso em um público restrito, mas terá
muita diiculdade para se universalizar. Entre nós, o político que tem
conseguido passagem é aquele que se aproxima do modelo do nego-
ciador, como Vargas, JK, Fernando Henrique e Lula.

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II. Entrevista

Sob certos aspectos são desvantagens amargas, mas das quais


podemos obter algumas vantagens. Teria sido melhor para nossa tra-
jetória se tivéssemos começado com uma revolução? Mas não come-
çamos. Certamente a história seria outra. Mas não se pode perder de
vista que a construção da civilização brasileira foi uma obra de arte
política, não foi uma construção qualquer. E nossa passagem para o
moderno também foi uma obra de arte política. Getúlio foi capaz de
compor as elites emergentes com as tradicionais, favorecer os traba-
lhadores urbanos e alterar a identidade, a natureza do país, embora
nos tenha deixado marcas difíceis de serem carregadas. O fato de
tudo se passar sempre assim, expropriando-se a vontade popular e
operando por cima, está na base de uma herança nefasta que temos
de erradicar. Mas o julgamento da nossa história também tem de
ser dialético. É impossível não valorizar Frei Caneca, mas, com ele,
aquele Norte-Nordeste teria ido embora. Sem dúvida. Para o bem ou
para o mal.

FAP – O Evaldo Cabral de Mello disse que seria para o bem,


opondo-se ao José Murilo, que ele chama de “saquarema”.

Werneck Vianna – É, saquarema. (Risos) Agora, essa história é


que permitiu a vitória do Lula em 2002. A esquerda, naquele momen-
to, podia mais uma vez ter jogado com tudo que tinha, ter convocado
seus fantasmas. No entanto, ela foi fazer o quê? Foi revisitar a histó-
ria, reconstituindo-a e legitimando-a. Porque uma coisa é consultar
o inventário, pegar isso e aquilo, outra é convocar os fantasmas. Se
os fantasmas fossem convocados, eles se desfariam em contato com
a realidade. Porque não tem mundo para isso.

FAP – O mundo aponta em que direção? Uma sociedade civil


mais forte, uma democracia ampliada...

Werneck Vianna – Certamente, e os recentes avanços nessa direção


não podem ser subestimados. A vida associativa em geral tem-se for-
talecido bastante, embora ainda se mantenha distante da esfera pú-
blica tradicional, em boa parte por incapacidade dos partidos políticos
e do desprestígio atual das instituições de representação política. Mas,
veja-se o caso dos movimentos sociais quilombolas que têm descober-
to o caminho para se atingir a esfera pública pela via do direito, seus
procedimentos e instituições. O mesmo com os Sem Teto etc.

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Luiz Werneck Vianna

Mas, voltando à sua questão, quando sustento que temos jeito,


penso em uma revalorização da nossa história, das nossas tradições,
operadas por esse mundo novo, emergente, que brota por aí. Porque
há o risco, talvez, de o mundo do passado icar no passado, e esse
moderno contingente que aí está criar indivíduos atomizados, intei-
ramente orientados para ideais de prosperidade, esvaziando-se de
valores e de sociabilidade. O fato também de a grande inteligência
brasileira ter sido deslocada, salvo alguns pouquíssimos persona-
gens, é um outro problema. A universidade tornou-se um lugar de
formação de proissionais, de especialistas. Mas o Brasil tem jeito.
Vai depender também da política, de como nós vamos operá-la e fa-
cultar às novas gerações uma vida pública animada e centrada em
valores da igual-liberdade e da fraternidade. Como é que nós vamos
lidar, na política, com esse mundo que está emergindo? Mesmo air-
mando que temos jeito, preciso admitir também que faltam partidos,
faltam personalidades exemplares, falta muita coisa. Mas é seguro
que izemos uma Constituição que se tem conirmado, em todos os
grandes embates republicanos e em delicadas controvérsias recentes
de interesses, como as que, entre outras, tiveram como objeto as ter-
ras da Raposa do Sol. Com ela, na medida em que se organiza, a so-
ciedade tem em mãos um mapa coniável para continuar a perseguir
objetivos de justiça social e de defender as garantias da liberdade.

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III. 120 Anos da
República

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Autor
José Antonio Segatto
Professor Titular da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Possui
graduação em História pela Universidade de São Paulo (1978), doutorado em História
Econômica pela Universidade de São Paulo (1993) e Livre-Docência pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1999). Autor de várias e importantes obras,
das quais se destacam Reforma e revolução: as vicissitudes políticas do PCB; Breve
história do PCB (1954-1964).

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Uma República
excludente e autoritária

José Antonio Segatto

N
os seus 120 anos de história, a República no Brasil com-
portou fases e períodos distintos e peculiares que, a grosso
modo, poderiam ser divididos ou resumidos em cinco: 1889-
1930, liberal-oligárquico; 1930-1945, centralizadora e ditatorial;
1945-1964, liberal; 1964-1985, ditatorial e 1985... democrática-li-
beral. Apesar dessas fases e períodos serem diversos entre si, eles
têm algumas características essenciais comuns: restrição aos direi-
tos civis, sociais e políticos; limitações do caráter público do Estado,
apropriado ou privatizado indevidamente por grupos e/ou facções
da classe dominante; utilização de formas arbitrárias, opressivas,
repressivas e/ou coercitivas de exercício do poder; presença de uma
cultura política antidemocrática, preservando e reproduzindo traços
perversos, presentes no clientelismo, no isiologismo, no patrimonia-
lismo, no corporativismo.
Em 15 de novembro de 1889 a República foi implantada através
da intervenção do Exército, como se estivesse realizando uma parada
militar. Para o destronamento do todo poderoso império dos senho-
res e sua substituição pelo regime republicano bastou uma simples
proclamação militar e foi realizada de um só golpe (pacíico e sem ne-
nhuma resistência), fruto de conspiração de um pequeníssimo grupo
na calada da noite. Pasmada, a sociedade brasileira só tomou conhe-
cimento do fato depois acontecido.
Instaurada a República, o governo provisório, chefiado pelo
Marechal Deodoro da Fonseca, tomou diversas medidas visando a

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III. 120 Anos da República

reorganização do Estado sob novas bases e sob a égide do lema “Or-


dem e Progresso”. Medidas ampliadas depois pela Constituição de
1891. A nova carta estabeleceu o federalismo – as províncias foram
transformadas em estados que passaram a ter maior autonomia so-
bretudo administrativa e inanceira; o presidencialismo; o poder e
mandatos eletivos e temporários – o presidente da República e dos
estados passava a ser eleito pelo voto direto com mandato de quatro
anos, os deputados e senadores passavam também a ter mandatos
eletivos de três e nove anos respectivamente; instituía-se o voto uni-
versal facultativo em substituição ao voto censitário – passaram a ser
eleitores todos os cidadãos maiores de 21 anos, alistados segundo a
lei, excluindo-se as mulheres, os analfabetos, os mendigos, soldados
e membros de ordens religiosas; assegurou a liberdade de pensa-
mento e imprensa e estatuiu o habeas corpus; a religião católica dei-
xou de ser oicial, separando a Igreja do Estado, agora laico.
Por terem sido os protagonistas principais na troca de regime,
os militares, inicialmente, assumem a direção do novo governo. Nos
primeiros anos (1889-1894) da República, o poder político do gru-
po militar aumenta em detrimento das oligarquias republicana ci-
vis: “Nessa época, seu poder é um fato, pois dos vinte estados, dez
são governados por militares” (CARONE, 1972, p. 359). Inluenciados
pelo positivismo, suas concepções antidemocráticas seriam expres-
sas no governo de Floriano Peixoto que emprega práticas repressivas
e excludentes. Aliás estas concepções e práticas marcarão presença
e ressurgirão ao longo de quase toda a história republicana.
Não obstante ter desempenhado papel fundamental na consolida-
ção das instituições republicanas nos primeiro cinco anos, o grupo
militar foi pouco a pouco, perdendo o poder para as oligarquias civis,
principalmente a cafeeira que, por sua vez, foram se impondo e assu-
mindo o comando do poder estatal. Desde 1894 e nos anos seguintes
(mandato de Prudente de Morais), as oligarquias estaduais, mais pre-
cisamente as de São Paulo e Minas Gerais, assumem o controle quase
absoluto da República, reforçado depois de 1898 com o estabelecimento
da “política dos governadores”, durante o governo Campos Sales.
A “política dos governadores” consolidou o domínio das oligarquias
estaduais sob o comando do governo federal, controlado pelos parti-
dos republicanos paulista e mineiro. Envolvia um complexo sistema
de trocas e lealdade entre os poderes federal, estaduais e locais – o
coronel representava o eleitor, monopolizando o poder político nos
municípios onde imperava o voto de cabresto, o “curral eleitoral”, a
corrupção, a fraude e a violência; estes, por sua vez, eram representados
pelos governadores, pelas oligarquias dominantes e pelos partidos re-

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Uma República excludente e autoritária

publicanos; os governos estaduais seriam a base de sustentação do


presidente da República com suas bancadas na Câmara e no Senado.
Em troca o governador recebia o apoio político, verbas, cargos, obras e
retribui o poder local deixando a este as nomeações (delegado de polí-
cia, coletor de impostos, agente do correio, professora...) e fornecendo
verbas e obras. O descomprimento de acordos podia signiicar desde
a intervenção nos estados e municípios até a “degola” das bancadas
estaduais (o não reconhecimento das eleições de senadores e deputa-
dos). “O comando do sistema caberá ao governador, isto é, ao grupo
estadual por ele representado, intermediário dos favores e benefícios
da União sobre as comunas” (FAORO, 1975, p. 630). Este arranjo de
dominação serviu para corroborar os poderes locais e oligárquicos, im-
pondo “uma ampla teia de submissão e dependência”, envolvendo “o
eleitor, o coronel, o partido e o Estado” (CASALECCHI, 1987, p. 13).
Houve um revigoramento do poder local – embora dependente
dos governos estaduais que passou a exercer um papel funda-
mental nas localidades do interior, tanto político-eleitoral como de
controle social. O fenômeno do coronelismo envolvia de um lado
a violência, a coerção, a opressão e também o favor, a proteção,
a ajuda e de outro a obrigação, a fidelidade, a obediência. “O co-
ronelismo não representava um mero obstáculo ao livre exercício
dos direitos políticos. Impedia de fato a democracia, porque, em
primeiro lugar, negava os direitos civis. Nas fazendas imperava a
lei do coronel, instaurada e praticada por ele. Seus trabalhadores
e dependentes não eram cidadãos do Estado brasileiro, mas súdi-
tos do coronel” (CARVALHO, 1995, p. 43).
Uma medida importante que contribuiu para o fortalecimento do
coronelismo e do poder oligárquico foi o controle ou o monopólio
das terras. A Constituição de 1891 transfere as terras devolutas da
União para os estados ou para as oligarquias regionais. “Cada esta-
do desenvolverá sua política de concessão de terras, começando aí
as transferências maciças de propriedades fundiárias para grandes
fazendeiros e grandes empresas de colonização interessadas na espe-
culação imobiliária” (MARTINS, 1981, p. 43).Terra e poder tornam-se
quase que sinônimos na República, o antigo senhor de escravos do
império “se transforma em senhor de terras” (idem, p. 44).
Nesse regime, os espaços para a oposição eram estreitos e os
canais legais de manifestação bloqueados. Partidos e movimentos
políticos que não estivessem atrelados ao sistema de poder oligár-
quico estavam fadados ao isolamento e ao insucesso eleitoral. Toda e
qualquer manifestação de descontentamento, de litígio ou de negação
daquela ordem era punida pela força, com violência. Casos exempla-

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III. 120 Anos da República

res foram os de Canudos e Contestado onde milhares de sertanejos,


lavradores e posseiros foram massacrados pelo Exército, polícia e
capangas das oligarquias. Um outro exemplo emblemático foi a tenaz
perseguição a socialistas, anarquistas, comunistas, sindicalistas,
“tenentes” e outros (mendigos, “vadios”, capoeiras, prostitutas etc.)
– para os nacionais o destino era o coninamento e o desterro para
o Núcleo Cleveland no Oiapoque; para os estrangeiros “indesejáveis”
e “perigosos à ordem pública e nocivos aos interesses da República”
(leis de 1907/13 e 21), o resultado era a expulsão. Na década de vin-
te (1922/26), Artur Bernardes, a pretexto de manter a ordem contra
os levantes tenentistas, governou sob constante estado de sítio, com
prisões políticas, repressão policial, censura à imprensa, empastela-
mento de jornais, limitação do direito de habeas corpus, depuração
da Câmara e do Senado pelas “degolas”, intimidação do Judiciário,
fechamento de sindicatos, perseguição a comunistas e anarquistas,
deportação e expulsão de lideranças nacionais e estrangeiras etc.
Os direitos sociais, por seu lado, praticamente inexistiam. Se, de
um lado, os trabalhadores rurais (colonos, agregados, parceiros, me-
eiros, vaqueiros, assalariados) estavam submetidos à opressão dos
senhores de terras e subjugados pelo coronelismo, as leis e garantias
trabalhistas para o proletariado urbano eram parcas e não respei-
tadas. O liberalismo burguês-oligárquico da Constituição de 1891
airmava a não intervenção do Estado no mercado e nas relações de
trabalho. A regulamentação das relações entre capital e trabalho era
vista como prejudicial e atentatória à livre circulação de mercadorias,
mais especiicamente à compra e venda da força de trabalho. “Em úl-
tima análise, as questões trabalhistas caíam na jurisdição do Código
Penal: daí a airmação repetida de que a questão social na Primeira
República não passava de um caso de política” (RODRIGUES, 1979,
p. 47). Criminalizado, o movimento operário estava sujeito a cons-
tante e violenta repressão.
Ao longo da década de vinte emergem problemas e contradições
que conduzem à derrocada do regime oligárquico – uma série de mu-
danças e movimentos iriam se intercalando e conjuminando e ao
longo do tempo provocariam o desgaste e a desagregação da ordem
sociopolítica: a) problemas acumulados com a política de valorização
do café, prolongando artiicialmente o fôlego da economia agroex-
portadora, em profunda crise estrutural desde o início do século; b)
cisões nas oligarquias estaduais, motivadas, em boa parte, pela rei-
vindicação de setores oligárquicos de alguns estados de maior parti-
cipação na política federal que privilegiava São Paulo e Minas Gerais;
c) oposição de facções da burguesia e das camadas médias urbanas

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Uma República excludente e autoritária

que buscavam áreas de participação política e no poder; d) o combate


proletário que, simultaneamente, reivindicava medidas imediatas e
esboçava projetos de transformações mais radicais; e) mobilização de
setores das Forças Armadas que propugnavam contra as oligarquias
através dos levantes “tenentistas” – a revolta do forte de Copacabana
(1922), o levante de São Paulo (1924) e seu desdobramento na coluna
Miguel Costa-Prestes.
Os problemas nacionais, agravados pela política inflexível de
Washington Luís e pela crise econômica de 1929, fortalecem as fra-
turas das oligarquias estaduais: vários de seus setores, principal-
mente segmentos do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais e da Para-
íba alinhados na Aliança Liberal, com apoio de militares e de outras
forças sociopolíticas, preparam a insurreição depois de derrotados
nas eleições de março de 1930 (vencida pelo candidato das oligar-
quias dominantes). O movimento eclode no Sul, Minas e no Nordeste.
Com sua vitória, a 24 de outubro, Getúlio Vargas assume o governo
provisório. Mesmo contando com a simpatia e o apoio populares, o
movimento procurou manter o povo afastado do processo, quer pela
demagogia, quer pela repressão, reordenando o poder de cima para
baixo, arranjando e conciliando as frações e grupos dominantes.
“O receio consistia em que a revolução viesse temerosamente, como
esclareceu João Neves da Fontoura, de baixo para cima” (RODRIGUES,
1982, p. 98). A ilosoia do movimento foi bem resumida por um de
seus líderes, o presidente de Minas Gerais, Antônio Carlos de An-
drade: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. O movimento
político-militar de 1930, mantinha assim a antiga tradição da histó-
ria brasileira: a mudança de regime resumiu-se a um acerto entre
grupos dominantes e através de uma operação militar, reduzindo o
povo a mero espectador.
Nos anos 30, no governo Vargas, há uma rápida e intensa mo-
dernização do Estado, que passa, inclusive, a ter papel importante
na acumulação de capital, no desenvolvimento das forças produtivas
e nas relações de produção. O Estado é reorganizado e centralizado
e intervém em diversos setores da vida socioeconômica e política.
Toma muitas medidas econômicas e administrativas, cria novos ór-
gãos, comissões, conselhos, departamentos, institutos, fundações,
códigos para regular e planejar a economia. Intervém nos governos
estaduais, dissolve Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e
o Congresso Nacional. Em 1932, decreta um novo Código Eleitoral,
estabelecendo o voto obrigatório e secreto, criando a Justiça Eleitoral
e estendendo o direito de voto para as mulheres; além de convocar
eleições para a Assembleia Constituinte.

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III. 120 Anos da República

Entre 1930 e 1943 é criada uma ampla e complexa legislação


trabalhista. Ainda em 1930 foi criado o Ministério do Trabalho, In-
dústria e Comércio, visando substituir e a luta pela colaboração de
classes ou instituir a “paz social”. A seguir, é criado um grande nú-
mero de leis e decretos que regulamentariam as relações entre ca-
pital e trabalho: nacionalização do trabalho (empresas deveriam ter
pelo menos dois terços de trabalhadores nacionais); regulamentação
do trabalho da mulher e do menor; férias anuais de 30 dias; criação
da carteira proissional; jornada de oito horas; limitação de trabalho
noturno e descanso semanal remunerado; regulamentação das pro-
issões; indenização por dispensa sem justa causa; aposentadoria
por tempo de serviço e idade; lei de acidentes de trabalho; salário
mínimo etc. Ao lado disso é implantada a Justiça do Trabalho e es-
tabelecida uma nova estrutura sindical, atrelada ao Estado. Estas
medidas seriam sistematizadas na Consolidação das Leis do Traba-
lho (CLT), em 1943. Observe-se que essa legislação não era extensiva
aos trabalhadores rurais.
Apesar de incorporar as reivindicações dos trabalhadores, o Esta-
do procura colocá-los sob o seu controle, além de manter o movimen-
to operário sob constante e violenta repressão policial. De 1931 a
1939 o governo cria uma estrutura sindical totalmente subordinada
ao Estado. Sua intenção era nítida, disciplinar e evitar os conlitos
sociais e impor a colaboração e a harmonia entre as classes.
Depois de derrotar São Paulo na Guerra de Secessão de 1932, o
governo faz um reordenamento das forças políticas no poder. Isso
permite a Vargas se reeleger na constituinte corporativa de 1934 e
recompor setores da classe dominante, cooptando inclusive boa par-
te da oligarquia paulista. Em 1935, fecha a Aliança Nacional Liber-
tadora com base na Lei de Segurança Nacional; e depois do levante
aliancista (novembro) nos quartéis, desencadeia violenta repressão,
estabelece o estado de sítio, equiparado depois a estado de guerra,
cria o Tribunal de Segurança Nacional (para julgar crimes políticos),
recria o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), além de
outras medidas que são postas em prática, “sempre numa restrição
contínua dos direitos democráticos” (CARONE, 1974, p. 344). Prisões,
tortura, perseguições, intimidações tornam-se normas. “Durante a
repressão desencadeada após a revolta de 1935 foram presas cerca
de 6 mil pessoas” (PINHEIRO, 1991, p. 322). Com isso, Vargas abriu
caminho para a implantação da ditadura do Estado Novo, em 1937,
quando dá um golpe de Estado, outorga uma nova Constituição,
suspende as eleições, extingue os partidos, fecha o Congresso, decla-
ra estado de emergência, suspende as liberdade civis, impõe a cen-

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Uma República excludente e autoritária

sura à imprensa, governa através de decretos-leis e outras medidas


repressivas e antidemocráticas.
No início dos anos quarenta (1942/3) depois de vários anos de
ditadura, as forças políticas democráticas começam a se rearticular.
Nesses anos, devido à forte pressão sobre o governo, o Brasil entra
na guerra ao lado dos aliados, criando um paradoxo: o país lutava
na Europa contra o nazifascismo, ao mesmo tempo em que, interna-
mente, o regime do Estado novo guardava semelhança com aquele.
Depois de 1943, o movimento oposicionista começa a tomar corpo,
reivindicando a realização de reformas político-institucionais: anis-
tia, eleições, convocação da Constituinte, liberdade de expressão e
organização. O movimento passa a aglutinar diversos setores da so-
ciedade – de comunistas, liberais, operários, empresários, estudan-
tes, intelectuais e outros – numa ampla frente democrática contra a
ditadura. No primeiro semestre de 1945 o movimento democrático
chega ao auge: é rompida a censura à imprensa; são marcadas elei-
ções; os partidos são legalizados, inclusive o PCB; é conquistada a
anistia aos presos e perseguidos políticos; é convocada a Assembleia
Constituinte. A sociedade civil se reorganiza e se mobiliza rapida-
mente e com desenvoltura – há uma grande renovação nas entidades
estudantis e nas direções sindicais; renascem os movimentos reivin-
dicatórios e grevistas.
As eleições de dezembro de 1945 foram, sem dúvida, as mais
democráticas que já haviam ocorrido no país até então, disputadas
por 12 partidos. São eleitos, o presidente da República e mais 320
parlamentares que comporiam a Assembleia Constituinte. Após seis
meses de trabalho, elaborou uma nova Constituição com caracterís-
ticas liberais. Não obstante garantir diversos direitos civis, sociais
e políticos, mantinha ainda elementos e instituições autoritários do
regime deposto, como, por exemplo, a estrutura sindical atrelada ao
Estado.
Esta euforia democrática do pós-guerra, no entanto, não duraria
muito tempo. Já em 1946, o governo Dutra regulamenta o direito de
greve, restringindo-o fortemente; impõe a Lei de Segurança Nacional.
E depois de 1947, sob inspiração da guerra-fria, põe o PCB na ilega-
lidade; fecha diversas organizações dos trabalhadores (MUT, CGTB);
intervém em centenas de sindicatos; desencadeia dura perseguição
política e toma medidas repressivas.
Os anos 50, repletos de conlitos sociopolíticos, será palco de vá-
rias tentativas golpistas dos setores liberais-conservadores da classe
dominante e das Forças Armadas, provocando crises políticas difí-

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III. 120 Anos da República

ceis, como a que levou ao suicídio de Vargas (1954) e a tentativa de


impedir a posse de Juscelino e Jango (1955). O quinquênio seguinte
(55/60) seria de relativa estabilidade democrática e de ingresso do
Brasil numa nova dinâmica de desenvolvimento capitalista. No início
dos anos 60, inicia-se num clima de instabilidade política, com a
renúncia de Jânio Quadros e a tentativa dos setores golpistas de di-
reita tentando barrar a posse de Goulart (1967) – a crise continuaria
até desembocar no golpe de 1964.
Paralelamente, desde meados da década de 50, houve um aumen-
to da capacidade mobilizatória do sindicalismo urbano: renovam-se
diretorias de sindicatos, federações e confederações; é criada uma
grande quantidade de entidades, de intersindicais e de centrais (CGT),
esboçando a criação de uma estrutura organizativa horizontal, em de-
trimento à horizontal oicial; as lutas (greves, mobilizações) têm uma
razoável expansão e além das reivindicações econômicas e corpora-
tivas, agrega outras mais amplas, como as reformas de base. Com
isto “se transformava em uma força que pretendia se fazer presente
na deinição dos rumos da vida política nacional...” (NEVES, 1981,
p. 39). Por outro lado passa a penetrar e se apoderar de agências
estatais e para-estatais e inluir no aparato governamental, criando,
inclusive uma situação anômala, na medida em que subverte as ina-
lidades (de controle e subjugação) para as quais foi criado.
Um elemento novo neste quadro é a emergência dos trabalha-
dores rurais no cenário sociopolítico nacional. O surgimento de as-
sociações, ligas, uniões na década de 50, se transformam em sin-
dicatos no início dos anos 60, reconhecidos a partir de 1962. Esse
fato impulsionou a luta pela reforma agrária e pela conquista de
direitos sociais. Em 1963 é promulgado o Estatuto do Trabalhador
Rural estendendo aos trabalhadores do campo os direitos trabalhis-
tas já conquistados pelos trabalhadores urbanos. O desenvolvimento
organizativo e mobilizador seria momento singular de extensão da
cidadania ao trabalhador rural, historicamente excluído e subjugado
pelo patronato e pelas relações clientelistas.
Concomitantemente ocorre uma ampliação muito grande das or-
ganizações e mobilizações estudantis, de proissionais liberais (mé-
dicos, advogados, jornalistas), o estímulo polizante da vida artística,
intelectual e de outros setores da sociedade civil (como a Igreja) e
política. Isso tudo permitiu que se colocasse na ordem do dia um
conjunto de exigências no sentido de promover reformas estruturais
e mudanças que pressupunham a ampliação da democracia e um
alargamento dos direitos de cidadania. O avanço organizativo, po-
litizado e mobilizador foi favorecido naqueles anos pela vigência de

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Uma República excludente e autoritária

determinadas liberdades democráticas e pela forma como se compôs


o poder estatal.
Contrapondo-se a essas tendências, setores dominantes desen-
cadeiam uma forte campanha de desestabilização que, a partir de
1962, acabou por dividir e isolar as forças transformistas. A extrema
polarização direita x esquerda, beneiciada pela crise econômica e
política, criaram condições para o golpe político-militar que, em 1º de
abril de 1964, depôs o governo constitucional de João Goulart.
Após o golpe, uma junta militar assume o controle do país. A 09 de
abril, é baixado um Ato Institucional (no 1) concedendo ao Executivo po-
deres excepcionais para cassar mandatos de parlamentares e suprimir
direitos por até 10 anos e decretar estado de sítio entre outras medidas.
Simultaneamente outras providências da ditadura recém-instalada:
perseguições, prisões, demissões de funcionários públicos, intervenção
em sindicatos, entidades estudantis, associações civis, instituições e
outras – a violência e o arbítrio tornaram-se normas. “A violação da
ordem democrática, em 1964, colocou em recesso a dimensão políti-
ca da cidadania brasileira” (SANTOS, 1979, p. 100).
Nos anos que se seguem, novas medidas arbitrárias são toma-
das para fazer frente à rearticulação da oposição e das manifesta-
ções estudandis e operárias: extinção dos partidos políticos, mais
cassações, novos atos institucionais, cerceamento das garantias e
liberdades individuais, eleições indiretas, repressão, tortura, assas-
sinatos, censura à imprensa etc. Criou uma amplíssima legislação de
exceção: Lei de Segurança Nacional, Lei de Imprensa, Lei de Greve,
leis cerceando atividades estudantis etc. Militarizou-se o Estado e
criminalizou-se a sociedade civil – o terrorismo de Estado implantou
a lógica da força e o domínio do medo. Implantava-se aí o mais longo
e brutal período de ditadura da história republicana brasileira, sob a
ideologia e prática do lema “Segurança e Desenvolvimento”.
No combate à ditadura as forças políticas em particular e a so-
ciedade civil em geral, tiveram que travar uma longa “guerra de po-
sições”, envolvendo embates eleitorais, mobilizações, campanhas,
greves, protestos, movimentos etc. Nesse processo houve uma ampla
reorganização da sociedade civil; a conquista do estado de direito
democrático, a extensão de direitos civis, políticos e sociais – mas,
não obstante isso, sobrevivera com muita força a discriminação e a
iniquidade, a exclusão e o arbítrio, a opressão e a coerção; e muitos
dos direitos obtidos com grandes lutas e sacrifícios estão constan-
temente ameaçados de serem abolidos ou subtraídos por poderosos
setores dominantes que continuam a deter posições de mando.

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III. 120 Anos da República

Referências
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São Paulo, Difel, 1972.
_____. A República Nova (1930-1937). São Paulo: Difel, 1974.
CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: um longo caminho. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
CASALECCHI, José Ênio. O Partido Republicano Paulista (1889-1926).
São Paulo: Brasiliense, 1987.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 2. ed. São Paulo: Globo/
Edusp, 1975.
MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. Pe-
trópolis: Vozes, 1981.
NEVES, Lucília de Almeida. O comando Geral dos Trabalhadores no
Brasil (1961-1964). Belo Horizonte: Veja, 1981.
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estratégias da ilusão. São Paulo: Cia. das
Letras, 1991.
RODRIGUES, José Albertino. Sindicato e desenvolvimento no Brasil.
2. ed. São Paulo: Símbolo, 1979.
RODRIGUES, José Honório. Conciliação e reforma no Brasil. 2. ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça. Rio de Ja-
neiro: Campus, 1979.

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IV. Observatório
Político

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Autores
Rudá Ricci
Sociólogo, doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Obser-
vatório Internacional da Democracia Participativa. Site: www.cultiva.org.br – E-mail:
ruda@inet.com.br – Blog: rudaricci.blogspot.com.

Giorgio Napolitano
Presidente da República Italiana. Formado em Direito, foi eleito deputado pela pri-
meira vez em 1953 pelo Partido Comunista Italiano, sendo reeleito por sucessivos
mandatos. Passou pela presidência da Câmara dos Deputados da Itália, foi ministro
do Interior e tornou-se europarlamentar de 1999 e 2004. Em 23 de setembro de 2005,
foi nomeado senador vitalício pelo presidente italiano Carlo Azeglio Ciampi.

Luiz Viégas da Motta Lima


Economista, contador, aposentado pelo Banco do Brasil, ex-dirigente nacional das
Confederações dos Bancários e dos Aposentados, atual presidente de Honra da Fede-
ração dos Bancários do RJ-ES, sociocolaborador da ABI e conselheiro nato da AAFBB
(Associação dos Antigos Funcionários do Banco do Brasil).

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Oligarquia e presidencialismo
de coalizão

Rudá Ricci

U
m artigo escrito por Carlos Alberto Di Franco, intitulado
“Simbiose – oligarquia e populismo”, motivou esta relexão
sobre o quanto o presidencialismo de coalizão montado pelo
lulismo confere uma sobrevida (e enquadra) às oligarquias e corone-
lismos regionais. Di Franco recupera a avaliação do sociólogo Leôn-
cio Martins Rodrigues para quem a multiplicação de escândalos não
punidos é fruto da aliança entre os grupos de Lula e de Sarney. Na
verdade, trata-se de um preço pago pelo lulismo pelo apoio que Sar-
ney deu ao presidente Lula durante o auge da denúncia do esquema
que icou conhecido como mensalão.
Para Leôncio, “o líder das oligarquias tradicionais do Nordeste
junta-se ao líder das novas classes ascendentes” e, ainda, “a união
foi possível por que os “novos” aderiram rapidamente ao projeto dos
“velhos”, de fazer da política uma escada para obter proveitos pes-
soais, enriquecimento e desfrute puro e simples do poder. É algo
de fato original. Entre nós, a ascensão dos plebeus não signiicou a
expulsão dos velhos oligarcas. Eles se entenderam, chegamos aonde
chegamos.”
Di Franco parece acertar o alvo quando airma, em seu artigo, que
o “presidente da República, invariavelmente, sai em defesa daqueles
que compõem o seu cinturão de proteção”. Mas, a partir daí, perde
o prumo porque parte para uma análise personalista, fulanizando a
política. Reairma a tese da oposição para quem o lulismo seria le-
niente. Perde, assim, a chance de aprofundar a análise sobre a lógica

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IV. Observatório Político

da Corte brasileira, dos acordos entre forças que corroem qualquer


inovação política em nosso país.
O fato é que o lulismo tem na coalizão presidencialista uma de
suas pedras fundamentais, nascida do pragmatismo sindical. Uma
coalizão que fez da partilha de cargos públicos uma blindagem que
praticamente inviabilizou qualquer discurso hegemônico da oposi-
ção. Mas como qualquer coalizão vitoriosa em nosso país depende
do partido “omnibus” que responde pela sigla PMDB, esta opção vai
tomando rumos imprevistos. Lembremos, apenas, que o conceito de
partido “omnibus” foi criado por Fernando Henrique Cardoso para
nomear os partidos que têm como intenção reunir várias doutrinas e
ideologias para atingirem o objetivo comum, no caso, a manutenção
de seu poder de inluência direta junto ao Poder Executivo (em todos
seus três níveis).
O poder do PMDB reside em sua expressiva força parlamentar e
no número de prefeitos e vereadores. Signiica dizer que é um partido
que se acomoda à peculiaridade das culturas locais, territoriais. Em
algumas localidades, possui lideranças mais populistas; em outros,
mais conservadoras; em outras, ainda, detentoras de discursos éti-
cos e moralistas. Mais à esquerda ou mais à direita, é o protótipo da
acomodação e do pragmatismo. É aí que se casa com o lulismo.
Assim, a coalizão presidencialista, ao mesmo tempo em que con-
fere um imenso poder ao lulismo, possibilita o fortalecimento de li-
deranças regionais, que se portam como porta-vozes das decisões
federais, já que participam direta ou indiretamente de ministérios e
fóruns de decisões do governo federal. E, assim, alimenta indireta-
mente as oligarquias regionais. Como contingência, não como inten-
ção, já que a coalizão envolve muitas tonalidades ideológicas.
O que há de interessante nesta equação é a criação de um sistema
de lealdades que garantem autonomia ideológica (ou programática) à
cúpula do governo federal, como se as lideranças regionais incorpo-
radas à coalizão de governo tolerassem as identidades programáticas
do lulismo desde que pudessem exercer seu poder ao longo do terri-
tório nacional. Uma situação muito parecida com o que a literatura
dedicada ao estudo do sindicalismo rural brasileiro denominou de
“Complexo Contag”.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Con-
tag) é a maior confederação de trabalhadores do Brasil. A partir do i-
nal dos anos 60, em plena ditadura militar, foi retomada por lideran-
ças nordestinas próximas ao PCB, mas que izeram composições com
outras forças políticas ao sul do país. Nos anos 70, o núcleo central

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Oligarquia e presidencialismo de coalizão

da Contag forjou uma fortíssima coalizão de gestão, envolvendo fe-


derações estaduais e sindicatos (STRs). Também incorporou em seu
corpo de assessores técnicos e lideranças oriundas do PCB e MR8.
Na prática, um conlito local era prontamente atendido por ad-
vogados e técnicos das federações e mesmo da Contag. Um dirigente
estadual ou local envolvido com este sistema de lealdades recebia,
em época de eleição das direções sindicais, apoio das instâncias su-
periores e vice-versa. Uma trama complexa porque não era raro que
numa localidade surgisse uma oposição sindical ideologicamente
próxima da direção da Contag, mas que não recebia qualquer apoio
da direção da confederação justamente porque não fazia parte do
sistema de lealdades que sustentava todas direções. Tempos de-
pois, era possível perceber que este sistema transformou-se numa
articulação de cúpulas dirigentes, com pouca possibilidade de par-
ticipação direta da base sindical no processo decisório. O único
momento de participação foram os congressos nacionais da Contag,
um evento, não um processo de gestão política.
A coalizão presidencialista lulista possui este signo. Não interfere
(ou interfere raramente) nas disputas regionais. Procura limitar a
força de seu próprio partido onde lideranças de partidos que fazem
parte da coalizão têm relevância eleitoral. Em troca, ganha liberda-
de programática, tendo utilizado como moeda cargos e ministérios.
Como se oferecesse anéis para preservar os dedos. Uma troca política
nítida, deinida, que se esboçou com mais clareza quando do ingres-
so do PMDB no governo Lula. Por este motivo, é fundamental que se
entenda que o PMDB tem responsabilidade central na conformação
inal do lulismo.
Até então, o lulismo ainda era depositário de certa lógica petista,
onde o partido liderava (ou subjugava) com mão de ferro outros alia-
dos (daí o mensalão). A partir da entrada do PMDB no governo fede-
ral, desenhou-se a coalizão presidencialista lulista com todas suas
cores. Os dirigentes do PT que operavam os bastidores dos acordos
entre partidos da base governista se retraíram às disputas internas.
O núcleo gestor do lulismo passou a receber um salvo conduto da
cúpula de todos partidos de sua base política, incluindo o seu pró-
prio partido.
Depois de Getúlio Vargas, o lulismo se constrói como modelo de
gestão política mais iel ao maquiavelismo. Soube aliar a administra-
ção da Corte com a relação direta com as massas populares. Conduz
uma política de Estado no io da navalha desta relação. Daí a contra-
dição entre análises que o consideram populista e as que o consideram

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IV. Observatório Político

refém das oligarquias (ou ele próprio uma oligarquia). O populismo


ignora as instituições e, em especial, as estruturas de mediação na
representação política (sindicatos, por exemplo). As oligarquias, por
seu turno, limitam a estrutura de poder a poucos expoentes, às elites
econômicas e políticas tradicionais.
O lulismo não trabalha em nenhuma dessas formas políticas. An-
tes, as redeine. Enquadra esses extremos num sistema de lealdades
absolutamente pragmático. Não se trata de uma mera ascensão po-
lítica de um segmento social, da elite sindical cutista (como sugere
Leôncio Martins Rodrigues). Esta, talvez, fosse uma evidência na pri-
meira gestão Lula. Mas a partir da coalizão com o PMDB, forjou-se
o lulismo, uma expressão política muito mais complexa que mero
acordo entre elites.

54 Política Democrática · Nº 24

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Bobbio e a governabilidade
das sociedades democráticas

Giorgio Napolitano

À
s vésperas do dia 25 de abril de 2009, dia em que foram co-
memorados os 64 anos da libertação da Itália do nazifascis-
mo, o atual primeiro ministro italiano, Silvio Berlusconi, se
jogou numa campanha pela necessidade de reformar a Constitui-
ção italiana em nome das exigências de governabilidade. Para isso,
em sucessivas declarações, procurou mostrar que a Constituição de
1948 era, por um lado, pró-soviética; e por outro lado, um empecilho
às exigências de governar o país de maneira mais eiciente.
Homem político absolutamente contrário àquilo que Berlusconi
representa, o presidente da República, Giorgio Napolitano, teve uma
rápida reação. Assim, na abertura da 1a Bienal Democracia de Turim,
o presidente Napolitano deixou claro o seu posicionamento contrário
às intenções pouco democráticas de Berlusconi, recorrendo às ideias
do ilósofo italiano Norberto Bobbio, para quem “a denúncia da ingo-
vernabilidade tende a sugerir soluções autoritárias”, como se verá a
seguir. O trecho do discurso foi publicado no jornal italiano La Repu-
blica, edição de 23/04/2009.

[...] Já foi aberto, há décadas, o debate geral sobre a governabi-


lidade das sociedades democráticas. Ao afrontar no seu tempo esse
tema crucial, Norberto Bobbio observou que enquanto no início da
disputa sobre a relação entre liberalismo e democracia “o alvo prin-
cipal tinha sido a tirania da maioria”, este estava acabando por as-
sumir um sinal oposto, “não o excesso, mas o defeito de poder”. E
Bobbio acrescenta, mesmo sem elidir o problema: “a denúncia da
ingovernabilidade tende a sugerir soluções autoritárias”. Uma adver-
tência, esta última, que não se deveria esquecer nunca. E da qual
se deve extrair a exigência de ter sempre bem assentada a validade
e o caráter irrenunciável das “principais instituições do liberalismo”
– concebidas em antítese a todo despotismo – entre as quais, na clás-
sica deinição do próprio Bobbio, “a garantia de direitos de liberdade
(in primis liberdade de pensamento e de imprensa), a divisão dos po-

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IV. Observatório Político

deres, a pluralidade dos partidos, a tutela das minorias políticas”. E


sempre Bobbio igualmente enfatizava a representatividade do Parla-
mento, a independência da magistratura e o princípio da legalidade.
Tudo isso não constitui uma bagagem obsoleta, sacriicável – ex-
plicitamente ou de fato – sobre o altar da governabilidade, em função
de “decisões rápidas, peremptórias e deinitivas” da parte dos poderes
públicos. Evoquei – e está certamente entre os institutos não sacrii-
cáveis – a distinção dos poderes (Legislativo, Executivo, Judiciário);
e que me seja permitido fazer referência também ao reconhecimento
do Chefe de Estado como “poder neutro”.
Mencionei igualmente como essencial a representatividade do Parla-
mento: a propósito da qual penso que se possa dizer que essa não vem
fatalmente eivada por regras vigentes em diversos países democráticos,
inalizadas para evitar uma excessiva fragmentação política, mas periga
ser seriamente debilitada pela ausência de válidos procedimentos de
formação das candidaturas e de mecanismos feitos para ancorar os
eleitos na relação com o território e com os eleitores.
Deinitivamente, não se pode recorrer a simpliicações de sistema e
a restrições de direitos em nome do dever de governar. Não há, sob o
plano democrático, alternativa ao confrontar-se, ao combinar escuta,
mediação e decisões, ao chegar à síntese com a necessária tempestivi-
dade, mas sem sacriicar os direitos e a contribuição da representação.
Sabemos quais horizontes novos a Constituição abriu para o nosso
país: horizontes de liberdade e igualdade, de modernização e de soli-
dariedade. A condição para cultivar essas potencialidades, em termos
que respondam às necessidades e a instâncias que amadurecem no
corpo social, na comunidade nacional – a condição para reforçar as-
sim as bases da democracia e o consenso do qual se pode trazer se-
gurança e ímpeto – é um empenho que atravesse a sociedade, que se
faça sentir e pese enquanto expressão da consciência e da vontade de
muitos, homens e mulheres de cada geração e de cada classe.

Tradução de Marcos Mondaini.1

1 Professor da Universidade Federal de Pernambuco e, atualmente, faz pós-doutorado no Depar-


tamento de Teoria e História do Direito da Universidade de Florença.

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O poder político

Luiz Viégas da Motta Lima

N
a teoria, as agremiações partidárias existem para buscar a
conquista do poder político e passar a dirigir a nação. Nada
mais legítimo. Objetivam levar à prática, por imposição ou
persuasão, seu ideário, seu programa ou suas normas de vida em so-
ciedade. Assumindo o poder, estruturam o controle do Estado atra-
vés de um novo governo.
De imediato, não estamos questionando a forma como se dá essa
conquista. Se existirem condições objetivas e subjetivas, ela poderá ser
legitimada, tanto em movimento pacíico como em processo violento.
Por um só partido político ou por uma frente partidária. Isto sem levar
em conta que, muitas vezes, de forma condenável, o poder é alcançado
por golpe de força. Geralmente, isto acontece para imposição de normas
até então inexistentes ou completa supressão do “status quo”. Outras
vezes, para simples substituição de pessoas ou grupo no poder.
A história está repleta de exemplos onde organizações partidárias
pregam ou pregaram, abertamente, a substituição de governos, mes-
mo sem quebra das normas existentes. São os casos de renúncia,
muito frequentes nos regimes parlamentares, mediante apresenta-
ção de moção de desconiança. Ou, ainda, pela pressão popular e
política, como no nosso episódio de “impeachment”.
Mas, em quaisquer destes casos, mesmo na pacíica pressão po-
pular, pode desencadear-se processo revolucionário, assim entendido
aquele que transcende as normas existentes e impõe a substituição,
não só do governo e da estrutura de poder, mas do próprio regime.
Pouco importando, pois, o caráter inicial do movimento, havendo
resistência dos grupos governistas, ele poderá modiicar-se e trans-
formar-se em confronto armado. Outras vezes, podendo ter início
como luta armada, porém sem possuir conteúdo revolucionário, resulta
frustrante acordo entre os “litigantes”, para repartição do poder.
Nos países da chamada democracia representativa – o que mais
nos diz respeito – essa disputa acontece ou deveria acontecer através
do voto dos cidadãos conscientizados, em campanha eleitoral livre e
abrangente, sem pressões ou coações de qualquer natureza.

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IV. Observatório Político

Na prática, porém, não é bem assim. Mesmo nos países tidos como
os mais avançados, é inegável a existência de contrafações. A mais
comum é a inluência do poder econômico, que interfere de todas as
formas no tecido social, sobretudo na mídia. Durante a campanha
eleitoral, ou mesmo, antes dela, na elaboração do arcabouço legal
que a preside. As próprias agremiações partidárias, em sua essência,
pecam por ausência de conteúdo ideológico. Nos Estados Unidos da
América, alardeados como a maior democracia vigente, ica mais do
que lagrante a falta de espaço para qualquer outro partido, além dos
dois dominantes, que se alternam no poder, sem que haja, entre eles,
diferenças fundamentais. E o processo eleitoral, especíico em cada
estado federado, não está isento de episódios suspeitos. Como na
votação e recontagem dos votos ocorridas na Flórida, por ocasião da
reeleição de Bush, ilho. O “padrão democrático” dos nossos irmãos
do norte não é, como eles tentam fazer crer, exemplo de democra-
cia a ser impingido a quem quer que seja. A eleição de Obama, em
decorrência de uma intensa participação popular, pode representar
um sinal auspicioso de mudança, pois há menos de 60 anos, os ne-
gros, nos EUA, não podiam, sequer, sentar nos bancos da frente, nos
transportes coletivos. Hoje, a Casa Branca é ocupada por um negro,
com delegação para dirigir a maior potência do mundo.
Em nosso país, também é mais ou menos desse modo o que vem
ocorrendo. Desde o antigo “parlamentarismo” do Império, passando pela
Velha República, pela Revolução de 1930, até os nossos dias. Entre-
tanto, seria dramático se não pudéssemos assinalar alguma evolução.
Lógico que da época das “eleições a bico de pena” até os dias de hoje,
acentuada foi a evolução, tanto em métodos de votação e de apuração
do pleito, quanto em formas e amplitude de participação. O direito de
voto foi estendido a quase todos os cidadãos maiores de 16 anos. Tam-
bém evoluiu o melhor esclarecimento do eleitorado. Até mesmo surgi-
ram esboços de organizações políticas com algum conteúdo ideológico
ou, pelo menos, programático. Sejam elas à esquerda ou não.
Mas persiste, no fundamental, a inluência do fator econômico, da
manipulação da mídia e de profunda deiciência da propaganda elei-
toral. E a gritante falta de compromisso programático. Poderíamos, mes-
mo, assegurar a inexistência de partidos políticos autenticamente de
âmbito nacional, como impõe a lei, ou caracterizados por inequí-
voca posição ideológica. Daí a facilidade com que os políticos trocam
de legendas. Eis porque a verve popular caracteriza os partidos, em
geral, como “sopa de letras”, ou “coração de mãe”, onde sempre cabe
mais um. Esta a razão pela qual aqui não teve êxito a verticalização
dos votos, intentada pela Justiça Eleitoral. Em cada estado ou, até

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O poder político

mesmo, em cada município, as coligações são diferentes, em razão


de interesses locais que, mais das vezes, conlitam com os programas
partidários legalmente registrados. Ou, ainda, por simples rivalida-
des entre caciques.
Mais triste, entretanto – e o que mais se pratica – é a busca do po-
der, pelo poder. Pela cata de cargos, não importando o escalão. Pelas
vantagens oferecidas pelo poder. Pelas chamadas mordomias. Tanto
no aparato do Estado, quanto nas empresas ditas estatais. Mesmo por
aqueles grupamentos que, em épocas anteriores, fora do poder, critica-
vam a prática e alardeavam pudores e objetivos programáticos.
A nosso entendimento, é justa a participação de representantes das
coligações partidárias vencedoras, na cogestão do Estado. É a oportu-
nidade de aplicar seu programa. Porém, a participação deveria icar
restrita ao primeiro, no máximo segundo, escalão. E, assim mesmo, por
representantes em funções políticas de direção. O restante caberia aos
quadros do funcionalismo público, admitido por concurso, capacitado
e estimulado por perspectiva de carreira. Não a orgia de ocupações, às
vezes apenas burocráticas, a que assistimos, a cada nova eleição, nos
âmbitos nacional, estaduais e municipais. Muitas vezes em detrimento
do bom funcionamento dos serviços públicos, seja por incompetência
ou por simples inaptidão. Os nomeados terminando por serem meros
ocupantes de cargos, ostentadores de títulos ou rótulos administrati-
vos. Mas, assim sendo, fazendo jus às mordomias da posição.
Nesse particular, é vasta, quase ilimitada – a gama de cargos, até
os de menor importância, que são ocupados pelos próprios dirigentes
partidários, por correligionários, parentes ou amigos, muitas vezes
de forma irregular ou sem transparência. O recente episódio surgido
no Senado Federal é emblemático.
Infelizmente, é o que vemos, de forma quase generalizada. Não
fosse isso, não teríamos do que criticar aqueles que, na direção
do Estado, praticam hoje o que ontem, quando oposição, negavam
até de forma um tanto extremada. Não fosse isso e não veríamos
as mais esdrúxulas e dominantes coligações partidárias. Não fosse
isso e não assistiríamos as mais díspares nomeações de políticos
para os mais variados cargos dos diversos escalões do governo.
Em todos os governos, com as honrosas e episódicas exceções, que
acabam por justificar a regra.
Para agravar esse apego ao poder, pelo poder, é lagrante a sub-
missão de muitos oposicionistas de ontem, a cada novo governo. Dos
membros do Legislativo e do Judiciário ao todo poderoso Executivo.
Presenciamos, na mídia, a naturalidade com que magistrados, sem

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IV. Observatório Político

despir-se da toga, antecipam suas opiniões ou posições a respeito de


feitos sub judice. Ou, sem modéstia, ditam regras para procedimen-
tos legais ainda não promulgados. Já vimos casos de juízes de Alta
Corte excursionarem em cargos do Executivo e, depois, retornarem
ao tribunal de origem. Também estão presentes casos de magistra-
dos que, aposentados, retornam à política partidária, sem qualquer
constrangimento. Entendemos que, nos homens públicos, quaisquer
que sejam os motivos, o comportamento ético deve sempre prevalecer
sobre a eventual legalidade da ação.
Também convivemos, no Senado Federal, com elevado número
de membros que não sabem o que é receber um único voto do elei-
torado. Só é mandatário quem recebe mandato, neste caso, o voto.
Mas eles são os suplentes sem voto, efetivados por motivos os mais
variados. Consta que, até por acordo pré-eleitoral. Parlamentares há,
de ambas as Casas, que se afastam do posto, para o qual mereceram
a coniança do eleitor, para exercerem funções outras que não lhes
foram delegadas pelo povo. Em todos os níveis: federal, estaduais e
municipais. Isto não deveria ocorrer. Para transferir-se a outra fun-
ção, o parlamentar teria que renunciar ao mandato.
Outra questão: o voto secreto é salvaguarda do cidadão, para ga-
rantir-lhe a plena liberdade e autonomia no momento de eleger seus
mandatários. Mas é indigno e antidemocrático que o mandatário elei-
to, se esconda do cumprimento de seu mandato e da iscalização do
eleitor, exercendo qualquer tipo de voto secreto.
Todo este arrazoado é uma constatação que fazemos, motivada
por recentes e contumazes conirmações de “vetos presidenciais” a
projetos de leis. Aprovados no Senado Federal, ratiicados pela Câ-
mara dos Deputados ou vice-versa, muitas vezes por ampla maioria,
são vetados pelo presidente. Atualmente pelo Lula, mas anteriormen-
te pelos demais. E os mesmos parlamentares, integrantes dos órgãos
legislativos criadores da nova lei, diante do ato do Poder Executivo,
em maioria renegam sua anterior decisão. Não, por uma questão de
quorum ou de convencimento. Por subserviência, mesmo.
Tinham, portanto, razão os populares do Brasil Império, quando
airmavam que nada é mais parecido com um conservador, que um
liberal no poder.

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V. Batalha das
Ideias

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Autores
Eric Hobsbawm
Considerado um dos maiores historiadores vivos, é presidente do Birbeck College (Lon-
don University) e professor emérito da New School for Social Research (Nova Iorque).
Entre suas muitas obras, encontra-se a trilogia acerca do “longo século XIX”: A Era
da Revolução: Europa 1789-1848 (1962); A Era do Capital: 1848-1874 (1975); A Era do
Império: 1875-1914 (1987) e o livro A Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991
(1994), todos traduzidos em vários idiomas e lançados em edições brasileiras.

Evelyne Pieiller
Escritora, autora entre otras obras de Dick, le zappeur des mondes, La Quinzaine
littéraire, París, 2005; e L’Almanach des contrariés, Gallimard, colección “L’arpenteur”,
París, 2002, nenhum ainda traduzido para o português.

Giuseppe Vacca
Presidente da Fundação Instituto Gramsci, em Roma, formado em Filosoia do Direito,
e autor, entre outros, de Por um novo reformismo, editado pela Fundação Astrojildo
Pereira e pela Editora Contraponto. Esteve na London School of Economics, seguindo
cursos de História Econômica dos Estados Unidos e da União Soviética. De 1978 a
1983, fez parte do Conselho de Administração da RAI (Rádio e Televisão Italiana).

Dênis de Moraes
Escritor, professor da UFF. Este texto é parte do ensaio “Imaginário social, hegemonia
cultural e comunicação”, incluído no seu novo livro, A batalha da mídia. Rio de Janei-
ro: Pão e Rosas, 2009.

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Que futuro nos aguarda?

Eric Hobsbawm

A
prova de uma política progressista não é privada, mas sim
pública. A prioridade não é o aumento do lucro e do con-
sumo, mas sim a ampliação das oportunidades e, como diz
Amartya Sen, das capacidades de todos por meio da ação coletiva.
Isso signiica iniciativa pública não baseada na busca de lucro. De-
cisões públicas dirigidas a melhorias sociais coletivas com as quais
todos sairiam ganhando. Esta é a base de uma política progressista,
não a maximização do crescimento econômico e da riqueza pessoal.
Seja qual for o logotipo ideológico que adotemos, o deslocamento
do mercado livre para a ação pública deve ser maior do que os políti-
cos imaginam. O século XX já icou para trás, mas ainda não apren-
demos a viver no século XXI, ou ao menos pensá-lo de um modo
apropriado. Não deveria ser tão difícil como parece, dado que a ideia
básica que dominou a economia e a política no século passado de-
sapareceu, claramente, pelo sumidouro da história. O que tínhamos
era um modo de pensar as modernas economias industriais – em
realidade todas as economias –, em termos de dois opostos mutua-
mente excludentes: capitalismo ou socialismo.
Conhecemos duas tentativas práticas de realizar ambos sis-
temas em sua forma pura: por um lado, as economias de plani-
ficação estatal, centralizadas, de tipo soviético; por outro, a eco-
nomia capitalista de livre mercado isenta de qualquer restrição e
controle. As primeiras vieram abaixo na década de 1980, e com
elas os sistemas políticos comunistas europeus; a segunda está se
decompondo diante de nossos olhos na maior crise do capitalismo

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V. Batalha das Idéias

global desde a década de 1930. Em alguns aspectos, é uma crise


de maior envergadura do que aquela, na medida em que a globa-
lização da economia não estava então tão desenvolvida como hoje
e a economia planificada da União Soviética não foi afetada. Não
conhecemos a gravidade e a duração da atual crise, mas sem dú-
vida ela vai marcar o final do tipo de capitalismo de livre mercado
iniciado com Margareth Thatcher e Ronald Reagan.
A impotência, por conseguinte, ameaça tanto os que acreditam em
um capitalismo de mercado, puro e desestatizado, uma espécie de anar-
quismo burguês, quanto os que crêem em um socialismo planiicado e
descontaminado da busca por lucros. Ambos estão quebrados. O fu-
turo, como o presente e o passado, pertence às economias mistas nas
quais o público e o privado estejam mutuamente vinculados de uma ou
outra maneira. Mas como? Este é o problema que está colocado diante
de nós hoje, em particular para a gente de esquerda.
Ninguém pensa seriamente em regressar aos sistemas socialistas
de tipo soviético, não só por suas deiciências políticas, mas também
pela crescente indolência e ineiciência de suas economias, ainda
que isso não deva nos levar a subestimar seus impressionantes êxi-
tos sociais e educacionais. Por outro lado, até a implosão do mercado
livre global no ano passado, inclusive os partidos social-democratas
e moderados de esquerda dos países do capitalismo do Norte e da
Australásia estavam comprometidos mais e mais com o êxito do ca-
pitalismo de livre mercado.
Efetivamente, desde o momento da queda da URSS até hoje não re-
cordo nenhum partido ou líder que denunciasse o capitalismo como algo
inaceitável. E nenhum esteve tão ligado a sua sorte como o New Labour,
o novo trabalhismo britânico. Em suas políticas econômicas, tanto Tony
Blair como Gordon Brown (este até outubro de 2008) podiam ser quali-
icados sem nenhum exagero como Thatchers com calças. O mesmo se
aplica ao Partido Democrata, nos Estados Unidos.
A ideia básica do novo trabalhismo, desde 1950, era que o socia-
lismo era desnecessário e que se podia coniar no sistema capitalista
para fazer lorescer e gerar mais riqueza do que em qualquer outro
sistema. Tudo o que os socialistas tinham que fazer era garantir uma
distribuição equitativa.
Mas, desde 1970, o acelerado crescimento da globalização di-
ficultou e atingiu fatalmente a base tradicional do Partido Traba-
lhista britânico e, em realidade, as políticas de ajudas e apoios de
qualquer partido social democrata. Muitas pessoas, na década de
1980, consideraram que se o barco do trabalhismo não queria ir

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Que futuro nos aguarda?

a pique, o que era uma possibilidade real, tinha que ser objeto de
uma atualização.
Mas não foi. Sob o impacto do que considerou a revitalização eco-
nômica thatcherista, o New Labour, a partir de 1997, engoliu inteira
a ideologia, ou melhor, a teologia, do fundamentalismo do mercado
livre global. O Reino Unido desregulamentou seus mercados, vendeu
suas indústrias a quem pagou mais, deixou de fabricar produtos para
a exportação (ao contrário do que izeram Alemanha, França e Suíça) e
apostou todo seu dinheiro em sua conversão a centro mundial dos ser-
viços inanceiros, tornando-se também um paraíso de bilionários lava-
dores de dinheiro. Assim, o impacto atual da crise mundial sobre a libra
e a economia britânica será provavelmente o mais catastróico de todas
as economias ocidentais e o com a recuperação mais difícil também.
É possível airmar que tudo isso já são águas passadas. Que so-
mos livres para regressar à economia mista e que a velha caixa de
ferramentas trabalhista está aí a nossa disposição – inclusive a na-
cionalização –, de modo que tudo o que precisamos fazer é utilizar de
novo essas ferramentas que o New Labour nunca deixou de usar. No
entanto, essa ideia sugere que sabemos o que fazer com as ferramen-
tas. Mas não é assim.
Por um lado, não sabemos como superar a crise atual. Não há
ninguém, nem os governos, nem os bancos centrais, nem as institui-
ções inanceiras mundiais que saiba o que fazer: todos estão como
um cego que tenta sair do labirinto tateando as paredes com todo
tipo de bastões na esperança de encontrar o caminho da saída.
Por outro lado, subestimamos o persistente grau de dependência
dos governos e dos responsáveis pelas políticas às receitas do livre
mercado, que tanto prazer lhes proporcionaram durante décadas.
Por acaso se livraram do pressuposto básico de que a empresa pri-
vada voltada ao lucro é sempre o melhor e mais eicaz meio de fazer
as coisas? Ou de que a organização e a contabilidade empresariais
deveriam ser os modelos inclusive da função pública, da educação
e da pesquisa? Ou de que o crescente abismo entre os bilionários
e o resto da população não é tão importante, uma vez que todos os
demais – exceto uma minoria de pobres – estejam um pouquinho
melhor? Ou de que o que um país necessita, em qualquer caso, é um
máximo de crescimento econômico e de competitividade comercial?
Não creio que tenham superado tudo isso.
No entanto, uma política progressista requer algo mais que uma
ruptura um pouco maior com os pressupostos econômicos e morais
dos últimos 30 anos.

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V. Batalha das Idéias

Requer um regresso à convicção de que o crescimento econômico


e a abundância que comporta são um meio, não um im. Os ins são
os efeitos que têm sobre as vidas, as possibilidades vitais e as expec-
tativas das pessoas.
Tomemos o caso de Londres. É evidente que importa a todos nós
que a economia de Londres loresça. Mas a prova de fogo da enorme
riqueza gerada em algumas partes da capital não é que tenha contri-
buído com 20% ou 30% do PIB britânico, mas sim como afetou a vida
de milhões de pessoas que ali vivem e trabalham. A que tipo de vida
têm direito? Podem se permitir a viver ali? Se não podem, não é ne-
nhuma compensação que Londres seja um paraíso dos muito ricos.
Podem conseguir empregos remunerados decentemente ou qualquer
tipo de emprego? Se não podem, de que serve jactar-se de ter restau-
rantes de três estrelas Michelin, com alguns chefs convertidos eles
mesmos em estrelas.
Podem levar seus ilhos à escola? A falta de escolas adequadas
não é compensada pelo fato de que as universidades de Londres po-
dem montar uma equipe de futebol com seus professores ganhadores
de prêmios Nobel.
A prova de uma política progressista não é privada, mas sim públi-
ca. Não importa só o aumento do lucro e do consumo dos particulares,
mas sim a ampliação das oportunidades e, como diz Amartya Sen, das
capacidades de todos por meio da ação coletiva. Mas isso signiica –
ou deveria signiicar – iniciativa pública não baseada na busca de lu-
cro, sequer para redistribuir a acumulação privada. Decisões públicas
dirigidas a conseguir melhorias sociais coletivas com as quais todos
sairiam ganhando. Esta é a base de uma política progressista, não a
maximização do crescimento econômico e da riqueza pessoal.
Em nenhum âmbito isso será mais importante do que na luta
contra o maior problema com que nos enfrentamos neste século: a
crise do meio ambiente.
Seja qual for o logotipo ideológico que adotemos, signiicará um
deslocamento de grande alcance, do livre mercado para a ação pú-
blica, uma mudança maior do que a proposta pelo governo britânico.
E, levando em conta a gravidade da crise econômica, deveria ser um
deslocamento rápido. O tempo não está do nosso lado.

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A esquerda se tornou liberal

Evelyne Pieiller

A
questão não é nova, mas cada vez mais candente. As promes-
sas de Liberdade-lgualdade-Fraternidade anunciadas pela
República apontavam para um mundo compartilhado, e não
se cumpriram. Como fazer para que esses compromissos não sejam
apenas enunciados formalmente, como direitos, mas tornem-se da-
dos concretos, efetivos?
Evidentemente, é no domínio da “igualdade” que o descumpri-
mento é mais lagrante, traduzindo-se tanto em diferenças gritantes
de renda quanto na famosa “pane” do elevador social, ou, ainda, na
crescente vulnerabilidade dos mais pobres que se convencionou cha-
mar de “acidentes da vida”, advindas do desemprego, das doenças,
entre outros...
Da mesma forma, a “liberdade” só tem sentido completo quando
se pode escolher uma proissão, ou o lugar onde se quer morar. To-
dos livres e iguais, mas, claro, uns mais que outros...
A missão tradicional da “esquerda” é buscar atenuar as dispari-
dades. Mas depois da chamada “queda do comunismo”, as referên-
cias se relativizaram. Segundo alguns analistas, teríamos entrado
então numa era radicalmente nova, marcada pelo famoso im das
ideologias, ou, na verdade, pelo im da História.1 Ainda que essa air-
mação pareça um tanto arrogante, seria necessário, ao menos, re-
conhecer a morte da “utopia” comunista e o triunfo do bom senso e,
com mais ou menos entusiasmo, aceitar que a economia de mercado
e a democracia são intrinsecamente ligadas.
A partir daí, tudo se torna mais simpliicado e mais complicado
ao mesmo tempo. Simpliicado porque tal ideia consagra o “mercado”
como um dado natural e julga qualquer “revolução” destinada a inven-
tar outra economia como um equívoco, tanto no plano das liberdades
quanto no da eicácia – e a prova seriam os países do Leste Europeu.
E complicado porque com os dois “extremos” legitimadamente desqua-

1 Francis Fukuyama, La fin de l’histoire et le dernier homme [O fim da história e o último homem],
Paris, Flammarion, 1992.

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V. Batalha das Idéias

liicados, a esquerda – de Anthony Blair a Lionel Jospin – tornou-se


“realista” e Pascal Lamy, membro do Partido Socialista (PS), foi pro-
movido a responsável da Organização Mundial do Comércio (OMC).
A realidade, nesse contexto, permanece preocupante. As desi-
gualdades crescem e os questionamentos se fazem urgentes, por ve-
zes desoladores. Com a revolução excluída e a “modernidade” aceita,
como fazer para que a democracia, o governo do “povo para o povo”,
funcione, sob o regime do mercado? Certamente, os valores da es-
querda diferem dos da direita, mas qual ideal, qual projeto para o
mundo pode se airmar sobre a marca do realismo? Não há, por dei-
nição – e ousemos dizê-lo –, contradições a nomear e resolver?
Esse enorme problema gera enormes expectativas. E diz respeito
não apenas aos eleitores de espírito dito socialista, mas provavel-
mente a todos os cidadãos inquietos, desejosos de compreender se
as mazelas sociais são uma fatalidade, se o futuro tem apenas uma
cara, com diferentes maquiagens, ou se uma mudança de fato é pos-
sível... Em suma, trata-se de questionar o pensamento da esquerda,
que se tornou liberal.
O debate no âmbito desse socialismo modernizado procura res-
ponder se é a inscrição concreta de valores éticos no mundo real
que, essencialmente, permitiria a concretização das promessas da
democracia. Trata-se de uma concepção particular de igualdade e
dos meios de alcançá-la. Propõe-se outra visão de homem.
Talvez não seja completamente inútil procurar deinir com mais
exatidão a “esquerda liberal”, já que, às vezes, ela parece sofrer de
falta de unidade.
O ilósofo Serge Audier, conhecido por seus ensaios consagrados
a Raymond Aron, lembra, no breve volume 2 no qual retoma a ge-
nealogia do socialismo liberal, que este foi fundado sobre uma dupla
recusa: a do liberalismo “burguês” e a do “totalitarismo comunista”.
Se a rejeição do “totalitarismo comunista” é certa, a do liberalismo
“burguês” é mais luida.
Sejam quais forem as diferenças entre uma centro-esquerda “mo-
derna”, a terceira via do New Labour, e um socialismo liberal, que
não seria uma “simples adaptação da social-democracia ao capitalismo”,
o que sobra é um socialismo renovado que se diz “igualitário” e não
“igualitarista”, que não pretende erradicar todas as desigualdades (na-
turais e sociais) e que “exige o reconhecimento do caráter irrefutável e
potencialmente benéico de um mercado regulamentado e correto”.

2 As citações do parágrafo seguinte foram tiradas daí.

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A esquerda se tornou liberal

Trata-se de pôr em prática, na lógica da eicácia econômica, uma


“busca pela igualdade”, que se traduz em primeiro lugar pela exigên-
cia de “solidariedade”.
É exatamente esse ponto que caracteriza o socialismo liberal, sejam
quais forem as nuances e divergências reivindicadas por cada corrente.
O importante é renunciar ao igualitarismo – que visaria igualdade ci-
vil, política e social – e agir por uma “ilosoia dos direitos do homem”,
complementada pelos direitos sociais que reconhecem “a todos os indi-
víduos um mínimo de justiça social, condição de uma liberdade política
efetiva”. Assim, adeus utopia e bem-vinda a lucidez: os homens não
são, não podem ser, realmente iguais. Seria conveniente, no entanto,
criar instrumentos que impeçam níveis gritantes de desigualdade, o que
não seria frutífero nem para a democracia, nem para... o mercado. E a
solidariedade está no núcleo desses dispositivos.
Essa noção de solidariedade pertence ao domínio da ilosoia polí-
tica e moral e foi introduzida em 1840 por Pierre Leroux, um dos fun-
dadores do socialismo republicano. Ele a explica de maneira clara:
“quis substituir a caridade cristã pela solidariedade humana”.3 Léon
Bourgeois, um dos fundadores da Liga das Nações, prolongou essa
relexão sobre a “necessidade moral” da solidariedade como dever até
o im do século XIX. É uma noção que, além de substituir a ideia de
justiça social, possui o charme da virtude luida, já que dependeria
de cada um, em seu espírito e consciência, muito mais do que da
autoridade das leis.
A “solidariedade” permitiria a moralização do capitalismo brutal
ao introduzir, no interior do próprio sistema, a “possibilidade” de su-
avizar suas agruras. É a consciência dolorosa da inevitabilidade da
desigualdade entre indivíduos que induz à busca de uma conciliação
entre eicácia econômica e apoio aos “desfavorecidos”.
Essa concepção de desigualdade é central. E se articula perfei-
tamente com a própria ideologia do capitalismo, que supõe que o
melhor ganhe, que o mais trabalhador ou o mais inteligente faz a
diferença e sabe abrir seu caminho, contribuindo para a democracia.
O sucesso vem para aqueles que merecem, e os mais belos discursos
igualitaristas não impedem que alguns sejam mais talentosos para
subir na escala social.
Monique Canto-Sperber, diretora do Centro Nacional de Pesquisa
Científica (CNRS), afirma que se a precariedade aumentou, “as

3 Pierre Leroux, De I’Humanité, Paris, Perrotin, 1840.

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V. Batalha das Idéias

oportunidades para os talentos e iniciativas” também aumentaram


entre aqueles que sabem agarrar as oportunidades. O intervalo logica-
mente vai se aprofundar. Será assim, pois que não temos todos as
mesmas capacidades.
Seria preciso, portanto, acabar com os “mitos”, que serviram para
alimentar o “terrível espetáculo” do socialismo “real”. E mais: seria
preciso reconhecer que se “é possível exercer uma inluência sobre o
homem, não se pode modiicá-lo”. Nada de inocência à Rousseau, de
que o homem é bom por natureza. O mal existe e é precisamente “no
reconhecimento do mal e do conlito” que o liberalismo se desenvol-
veu – e o liberalismo de esquerda deveria levar isso em conta.
As diferenças de ânimo, de vontade, de competência, criam o con-
lito, a luta, a hierarquia. É por essa razão que “é ilegítimo se servir de
categorias morais, como, por exemplo, o predicado ‘justo’ para quali-
icar fenômenos tão complexos como a divisão das riquezas, cuja pro-
dução resulta de uma variedade de ações voluntárias cruzadas”.
O liberalismo de esquerda trabalhará, dessa forma, por um “li-
beralismo solidário e trágico”. O “trágico” refere-se aqui à aceitação
vigilante da constatação do mal inscrito potencialmente na natureza
do homem.
É exatamente em torno dessa deinição que tudo se organiza.
O mercado é indissociável do homem e refutá-lo seria recusar “a
complexidade, a saber, a ambivalência do real”, que é fundamental-
mente desigual.
Uma sociedade solidária deve ter co mo objetivos reduzir “si-
tuações de domi nação” e preservar “a riqueza da vida hu mana – a
preocupação com o bem comum, a família, a espiritualidade, o
saber, a cria ção, a tradição, a força irredutível do mal e uma visão
humanista”. 4
Para alcançá-los, as “regulações”, os “acompanhamentos so-
ciais” deveriam bus car superar “o pluralismo irredutível de in-
teresses e opiniões”. “As pessoas afetadas por uma ruptura no
trabalho” poderiam, as sim, ter a “segurança de estarem protegidas
da miséria e de que encontrarão soluções para voltar ao trabalho”,
sem que sejam impedidas as demissões – o que garantiria o cres-
cimento em longo prazo.
De fato, seria importante preservar o mercado e, ao mesmo tem-
po, permitir que cada um continue a participar, pois é “a condição

4 Léon Bourgeois, Philosophie de Ia solidarité, Edrteur, 1897.

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A esquerda se tornou liberal

não somente do enriquecimento, mas também da autocrítica e do


aperfeiçoamento do ser”. Com um mercado correto – ferramenta para
a liberdade e não um instrumento de dominação – todos teriam a
chance de buscar autonomia e “pleitear um projeto de vida”. O li-
beralismo de esquerda, apresentado de maneira equivocada como
muito diferente do neoliberalismo, garante as “funções protetoras de
base” e permite “às pessoas retomar a iniciativa, ou ao menos encon-
trar um sentido para a vida”. Na medida em que o coeiciente intelec-
tual de cada um permita...
Lembremos ainda que Raymond Aron, cujo pensamento não
está longe de Audier ou Canto-Sperber, já buscava uma concilia-
ção entre o socialismo e a tradição liberal “sem ilusão, mas não
sem vontade”.5
Essa aproximação parece se manifestar com uma clareza particu-
lar no governo de Nicolas Sarkozy. Além da crucial “solidariedade”,
se a questão social está diluída e sai do campo da decisão política
para passar ao da boa consciência compartilhada, é a ideia de “povo”
que, de maneira furtiva, muda de deinição.
A partir de uma escala de valores que toma como referência a do
liberalismo econômico, a lei dos grandes números não saberá ser
automaticamente justa se nada puder garantir que esse maior nú-
mero saiba pensar de maneira justa. Dito de outra forma, é preciso
se voltar à noção de “povo” e seu uso.
Quando, em La légitimité démocratique!6 [A legitimidade demo-
crática], o historiador Pierre Rosanvallon interroga a validade do su-
frágio universal como única fonte de poder democrático, ele não se
apoia na desigualdade das capacidades naturais, mas nas diferenças
entre os indivíduos. Segundo ele, fazer com que o maior número va-
lha para a totalidade é uma “icção fundadora”, na qual o “povo” é
considerado representante do conjunto da sociedade.
De acordo com Rosanvallon, os cidadãos têm cada vez mais consci-
ência de serem insuicientemente representados, o que se comprova
pelas taxas elevadas de abstenção. “A ideia de maioria tem um sen-
tido aritmético, mas não corresponde a nada de ordem antropológi-
ca”. Para que a democracia volte a ter importância, seria conveniente
dar-lhe legitimidade: o povo não se apresentaria mais como uma massa

5 Citado por Serge Audier, em Raymond Aron, philosophe de I’histoire. Obra coletiva sob
a direção de Serge Audier, Marc Olivier Baruch, e Perrine Simon-Nahum, Paris, Edition de
Fallois, 2008.
6 Esta obra é a continuação de La contre-démocratie. La politique à l’âge de la défiance, Le Seuil,
2006 (reeditado por Points-Seuil, 2008).

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V. Batalha das Idéias

homogênea, mas “como uma sucessão de histórias parti culares”.


O povo se tornaria o conjunto “plural das ‘minorias”’, e, pela preocupa-
ção de indivíduos concretos, seria possível implementar “a constituição
de um poder da sociedade em geral”. Para acompanhar o “novo mundo”
é preciso, de acordo com o autor, levar em conta os novos valores que
dão sentido ao ideal de democracia e pensar em meios que os efetivem.
A equidade necessitaria de instituições das quais ninguém po-
deria se apropriar, pluralização das expressões da soberania popu-
lar, escuta ativa da multiplicidade de situações pelo reconheci-
mento das singula ridades. Essas instituições estariam a cargo de
“denunciar o intervalo entre a realidade e os princípios fundadores
da democracia”.
Para Rosanvallon, uma “sociedade de imparcialidade radical”
abriria espaço para os valores caros ao novo cidadão: compaixão,
proximidade, transparência etc. As instituições seriam reguladas por
agências cidadãs, espécies de conselhos de orientação. Esse povo,
assim, não seria mais apenas população eleitoral, reduzida a uma
maioria, nem somente povo social, “soma de protestos e iniciativas”,
mas também povo-princípio, no qual “cada um quer ser considerado
em sua existência e dignidade”.
Nesse contexto, a democracia é enim “moral”: a maioria não faz
mais a lei. Passouse da aplicação mecânica do estatuto à escuta do
indivíduo, “o exercício dos direitos se torna indissociável da apre-
ciação dos comportamentos”, a aplicação da regra inumana porque
mecânica está ultrapassada, a noção de povo se amplia para povo-
humanidade, para que advenha, graças às instâncias de “deliberação
racional”, coniadas aos conhecedores e esclarecidos, a possibilidade
de “airmação positiva do ser”.
Tal ideal político não está longe daquele proposto pelo Tratado
Constitucional Europeu e acompanha certo discurso difundido, pró-
prio de um liberalismo atento a se humanizar e que se diz arauto e
defensor de uma “sociedade da particularidade”, assim como de uma
“economia da particularidade”.
Mas a proposta, com todas as bases delineadas por Rosanvallon,
não tem uma inclinação... aristocrática? Oh, certamente essa aristo-
cracia não se justiicaria a não ser por seu esclarecimento e mérito,
e interviria apenas no contexto da democracia representativa. No
entanto, e sem se deter sobre algumas airmações surpreendentes –
como, por exemplo, a de que o voto seria determinado por “atrações e
repulsões” – somos obrigados a observar que esses diferentes contra-
poderes, para tentar “aprofundar” a democracia, pretendem simples-

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A esquerda se tornou liberal

mente limitar o sufrágio universal, o poder de voto de cada eleitor,


esclarecido ou não...
No mesmo estado de espírito, em La Reine du Monde [A rainha do
mundo], o historiador e jornalista Jacques Julliard, diretor de reda-
ção do Nouvel Observateur e da Escola de Altos Estudos em Ciências
Sociais (EHESS), examina, após a comoção criada pelo resultado do
referendo europeu, como contrariar “essa piedosa mentira que cha-
mamos sistema representativo” e a “trapaça” do sufrágio universal.
Ele questiona, assim, o poder da opinião pública que permite não
deixar ao parlamento a função legisladora e destruir o monopólio da
vontade geral, considerada “totalitária”.
A opinião é a voz do povo, e é em geral uma potência moral, que
leva, por exemplo, à criação de um tribunal penal internacional, uma
dessas instâncias independentes, caras a Rosanvallon. Mas opinião
e sufrágio universal não se opõem. “Sondagens, eleições, referendos,
debates coletivos são modalidades diferentes de expressão de um
mesmo fenômeno: a opinião pública”.
O futuro da democracia repousa, assim, sobre uma cooperação
entre o sistema parlamentar e o sistema de opinião pública com a
condição de educar este último. Ora, “não há outro educador para o
povo que não ele mesmo, à luz da razão e da experiência histórica, do
estímulo de seus chefes. É, então, da coragem de homens políticos
que procede a sabedoria do povo”. O povo precisa de um “líder demo-
crático” que “o leve a querer aquilo que é de seu interesse superior”.
Não poderia ser mais claro.
Assim, de modo mais ou menos preciso, a vontade de democratizar
a democracia – o que implica tratar de igualdade, em suas diferentes
acepções – leva ao pensamento liberal social. Do mesmo modo, faz
com que a política deslize para o campo da moral. E substitua mais
ou menos parcialmente as elites pelo “povo” – mas resiste, claro, a
colocá-lo no controle. Da lei ao contrato, do coletivo ao particular, da
escolha ao consenso, do voto ao diálogo, é esse movimento que vai
caracterizar o “novo indivíduo democrático”.
É perturbador observar até que ponto essas modiicações do ideal
de “cidadão” correspondem ao novo “look” de um capitalismo de rosto
humano. Podemos nos perguntar, assim, se se trata de modernidade
ou de dar passos para trás no caminho da virtude, inteligentemente
fantasiados de progresso.

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O que signiica ser gramsciano

Giuseppe Vacca

Encontrei Gramsci enquanto preparava a tese de conclusão da


graduação. Estudava Direito e havia decidido tentar seguir o cami-
nho do “trabalho intelectual como proissão”. Interessavam-me a i-
losoia e a política. Empenhei-me numa tese sobre a ilosoia política
de Benedetto Croce. Tinha 20 anos, vivia em Bari, e o meu ponto
de referência – penosamente alcançado depois de atravessar todo o
arco de posições, da direita à esquerda – era a política cultural do
PCI. Para mim, então, no Sul da Itália, tornar-me “um intelectual”
signiicava antes de qualquer outra coisa “acertar as contas” com
Benedetto Croce, percebido como o principal obstáculo no caminho
para o marxismo. Li Il materialismo storico e la ilosoia di Benedetto
Croce [Concepção dialética da história], mas não me tornei gramscia-
no. Arranjei-me com leituras muito mais esquemáticas e “liquidei”
o idealismo à força de citações de Materialismo e empirocriticismo de
Lenin. Para Croce, julguei conveniente a fórmula com a qual Lukács
o rotula em O assalto à razão: uma variante fraca do “irracionalismo”
europeu do início do século XX.
Comecei uma leitura mais séria de Gramsci depois da formatura,
quando, estudando a genealogia do marxismo italiano, cheguei ao
idealismo napolitano. Mais uma vez a minha investigação inspirava-
se em Togliatti, e me dediquei a Bertrando Spaventa, que estudei
com paixão e grande proveito. Filiei-me ao PCI, unindo o estudo à
atividade militante. O magistério intelectual de Togliatti convivia com
uma grande impaciência política em razão da moderação do partido,
e sentia curiosidade pelas experimentações radicais da esquerda dos
anos 60: os Quaderni Rossi, de Panzieri, os Quaderni piacentini, de
Bellocchio, o messianismo de Fortini, La sinistra de Colletti.
Mas eu vivia no Sul da Itália, e a insatisfação com a política do
PCI – à qual, de qualquer maneira, me sentia vinculado como por
uma “escolha de vida” – estava ligada principalmente à sua incapaci-
dade de reelaborar o “meridionalismo”, à sua irrelevância urbana, ao
fato de estar instalado no campo e bastante distante da capacidade
de conduzir lutas hegemônicas. O meu primeiro escrito apareceu em
1964 nas Cronache meridionali. Estava dedicado à mudança de fun-
ção e papel dos intelectuais meridionais e era de genuína inspiração

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O que significa ser gramsciano

gramsciana. Havia aprofundado Alguns temas da questão meridional,


Os intelectuais e a organização da cultura e o Risorgimento, e com-
preendido que o principal mecanismo de reprodução do dualismo
italiano estava na destruição da autonomia relativa da intelligentsia
meridional e na concentração dos recursos fundamentais do “cérebro
nacional” – a indústria cultural, a pesquisa cientíica e a informação
– nas capitais industriais do Norte.
Mas até 1968 estes primeiros núcleos de “gramscismo” continu-
aram a conviver, contraditoriamente, com outros “marxismos” mais
coerentes com meu radicalismo político, que me levava a valorizar
teorizações aparentemente mais rigorosas, sobretudo as de Galvano
Della Volpe. Bertrando Spaventa, o estudo direto de Marx e a fusão
buscada pelo PCI entre lutas de classe e lutas antiautoritárias, assim
como as teorizações mais soisticadas do movimento estudantil – as
teses de Trento e do Palazzio Campana – é que dissolveram aquela
antinomia. Como pano de fundo, a vitoriosa guerra de libertação no
Vietnã, a Primavera de Praga e a repressão que se lhe seguiu. Depois
dessas experiências, não esperava mais nada da URSS, do “socialis-
mo real” e da visão dicotômica do mundo, da qual o “campo socia-
lista” era o álibi e a sustentáculo, e, consequentemente, diluíram-se
as incongruências do “mix de marxismos” que se abrigara na minha
mente na década anterior.
Como deixam evidente as lembranças até aqui evocadas, a minha
formação intelectual ocorreu em simbiose com a ação política, e eu a
considerava como parte da airmação de uma determinada orienta-
ção da cultura italiana sobre outras. Foi assim que me ensinaram, e
este modo de conceber a ação política de um intelectual correspondia
perfeitamente à minha moral e também talvez ao meu próprio tem-
peramento. Condenando a invasão soviética à Tcheco-Eslováquia, o
PCI começa o seu lento distanciamento de Moscou. Pessoalmente,
considerava-o muito tímido. Com os companheiros que animavam
o novo projeto da editora De Donato, pensávamos que se deveriam
generalizar os fundamentos teóricos e estratégicos da política do PCI,
que nos pareciam conigurar não apenas uma “variante nacional” do
comunismo internacional – um “comunismo democrático” motivado
pelas condições históricas e geopolíticas nas quais se enraizava sua
ação –, mas uma experiência histórica original, de valor geral e não
apenas italiano.
Para contribuir com a reelaboração da “tradição comunista” ita-
liana, mergulhei no estudo de Gramsci e de Togliatti. Mas, eviden-
temente, era sobretudo o segundo quem dava a sustentação para a
revisão teórico-política desejada, bem como para nossa dura disputa

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V. Batalha das Ideias

não apenas com os seus críticos e adversários de sempre, mas tam-


bém com a canonização da sua “herança” operada pelo PCI berlin-
gueriano. O que estava em jogo não era só a relação entre o PCI e o
comunismo internacional, mas também a interpretação de 1968 e a
estratégia do “compromisso histórico”, que nos iludíamos pudesse se
desenvolver como “assédio recíproco” entre DC e PCI, e como expe-
rimentação de uma transformação democrática e socialista inédita,
de valor europeu. Éramos “giobertianos”, como, de resto, também o
era o PCI nos enunciados da sua estratégia, cada vez mais distantes
da política que efetivamente praticava. Partilhávamos com o PCI a
incompreensão da transição dos anos setenta, que marcavam o im
do “reformismo nacional” na Europa e no mundo.
É nesse contexto que se desenvolveu e se aprofundou o meu en-
contro com Gramsci. Desde o início dos anos setenta, Franco de Fe-
lice, principal historiador e igura intelectual de referência para o
grupo da editora De Donato, empreende o estudo diacrônico dos Ca-
dernos do cárcere e, com um breve mas denso ensaio publicado no
Contemporaneo (Rinascita, n.42), em 1972 – “Uma chave de leitura
de Americanismo e fordismo” –, estabelece as primeiras bases para
derrubar as interpretações canônicas de Gramsci. O fato de eu não
ter realizado nunca um estudo sistemático dos Cadernos foi para
mim uma vantagem. Não estava demasiadamente condicionado pela
edição temática de 1948-1951, e iniciei um verdadeiro estudo destes
Cadernos com base na edição Gerratana de 1975. Acompanhar sua
redação quase dia a dia originava uma real mudança de paradigma.
Antes de tudo, icava evidente que o pensamento de Gramsci tivera
uma evolução muito signiicativa entre 1929 e 1935. Daí se destaca-
vam as inovações em relação à década de 1915-1926 e o entrelaça-
mento entre os “parágrafos” dos Cadernos e os desenvolvimentos da
política mundial. Nada de “pesquisa desinteressada”! Seria preciso
reconstruir a biograia política do prisioneiro para nos orientarmos na
ingens silva dos Cadernos e delinear sua biograia intelectual. Surgia
uma pergunta: qual teria sido o “programa cientiico” de Gramsci na
prisão de Turi? Em que medida dava sequência ao que tomou for-
ma entre a Grande Guerra e o advento de Stalin? Ao contrário, em
que pontos o reformulava? O grupo de estudiosos que trabalhou na
preparação do seminário do Instituto Gramsci, em 1977, intitulado,
não por acaso, “Política e história em Gramsci”, compartilhava esta
diretriz. Mesmo que, no seu resultado inal, o trabalho de preparação
tenha sido substancialmente posto de lado, Franco De Felice, Biagio
de Giovanni, Marisa Mangoni, eu mesmo e outros produzimos um
volume preparatório que projetava uma nova abordagem do pensa-
mento maduro de Gramsci.

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O que significa ser gramsciano

A esta abordagem comecei a me dedicar, com certa continuidade


e com aprofundamentos progressivos, depois de ter assimilado a cri-
se mundial dos anos setenta, ter construído uma ideia pessoal desta
crise e começado a compreender que estávamos frente a um declí-
nio talvez irreversível do sistema político da Itália republicana. Este
alargamento do campo de visão e uma signiicativa revisão dos meus
instrumentos de pesquisa me libertaram do “giobertismo” político e
cultural do PCI, que havia compartilhado na década anterior. Em
Gramsci descobri gradualmente os fundamentos de um pensamento
histórico-político útil para compreender o século XX como o século
da interdependência e da globalidade, da modernidade completa e da
sua crise, mas também os primeiros elementos daquele “novo modo
de pensar” que indica as perspectivas para superá-la. É o Gramsci
no qual trabalho ainda hoje: são mais de vinte anos, e creio poder di-
zer que, de fato, inalmente o encontrei e o elegi como guia da minha
pesquisa política e intelectual.

Tradução de Alberto Aggio1 e revisão de Luiz Sérgio Henriques.2

1 Graduado em História pela FFLCH-USP, mestre e doutor em História Social pela mesma fa-
culdade. Realizou estudos de pós-doutorado na área de História da América Contemporânea
na Universidade de Valência (Espanha). Atualmente é professor adjunto da Unesp, campus de
Franca.
2 Editor do site Gramsci e o Brasil, ensaísta, tradutor e um dos organizadores das obras de Antonio
Gramsci em português, especialmente a nova edição de Cartas do Cárcere.

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A comunicação na
batalha das ideias

Dênis de Moraes

A comunicação jamais esteve tão fortemente entranhada na ba-


talha das ideias pela direção moral, cultural e política da sociedade.
Reconhecendo o caráter estratégico da produção simbólica nas dispu-
tas pelo poder, compartilho da ideia de Jean-Paul Sartre (1994: 23)
de que a mídia desempenha os papéis de “servidores da hegemonia
e guardiães da tradição”. Ocupa posição proeminente no âmbito das
relações sociais, visto que ixa os contornos ideológicos da ordem he-
gemônica, elevando o mercado a instância máxima de representação
de interesses.
Sob alegação de que exerce uma função social especíica (infor-
mar a coletividade), a mídia não quer submeter-se a freios de con-
tenção e se põe fora do alcance das leis e da regulação estatal. A
opinião pública é induzida ao convencimento de que só tem relevân-
cia aquilo que os meios divulgam. Não somente é uma mistiicação,
como permite, perigosamente, a absorção de tarefas, funções e pa-
péis tradicionalmente desempenhados por instâncias intermediárias
e representativas da sociedade (sistema escolar, família, partidos
políticos, organismos da sociedade civil etc.). Os grupos de comuni-
cação sentem-se desimpedidos para selecionar as vozes que devem
falar e ser ouvidas – geralmente aquelas que não ameaçam suas
conveniências políticas e metas mercadológicas.
Essa posição hipertroiada dos meios tem a ver com a sua con-
dição privilegiada de produtores e distribuidores de conteúdos, tal
como ixado por Karl Marx (1997, v. 1: 67): “Transportam signos; ga-
rantem a circulação veloz das informações; movem as ideias; viajam
pelos cenários onde as práticas sociais se fazem; recolhem, produ-
zem e distribuem conhecimento e ideologia”.
Nos Cadernos do cárcere, Antonio Gramsci (2000: 78) situa a im-
prensa (o principal meio de comunicação de sua época) como “a parte
mais dinâmica” da superestrutura ideológica das classes dominan-
tes. Caracteriza-a como “a organização material voltada para manter,
defender e desenvolver a ‘frente’ teórica ou ideológica”, ou seja, um
suporte ideológico do bloco hegemônico. Enquanto aparelhos políti-
co-ideológicos que elaboram, divulgam e uniicam de concepções de

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A comunicação na batalha das ideias

mundo, jornais e revistas cumprem a função de “organizar e difundir


determinados tipos de cultura” (ib., 32), articulados de forma orgâni-
ca com determinado agrupamento social mais ou menos homogêneo,
o qual contribui com orientações gerais para exercer inluência na
compreensão dos fatos sociais.
Ao referir-se à imprensa italiana do início do século XX, Gramsci
(ib., 218) situa a ação dos jornais como verdadeiros partidos políti-
cos, na medida em que inluem, com ênfases e enfoques determina-
dos, na formação da opinião pública e nos modos de assimilação dos
acontecimentos: “Jornais italianos muito mais bem-feitos do que os
franceses: eles cumprem duas funções — a de informação e de dire-
ção política geral, e a função de cultura política, literária, artística,
cientíica, que não tem um seu órgão próprio difundido (a pequena
revista para a média cultura). Na França, aliás, mesmo a função
distinguiu-se em duas séries de cotidianos: os de informação e os de
opinião, os quais, por sua vez, ou dependem diretamente de partidos,
ou têm uma aparência de imparcialidade (Action Française – Temps
– Débats). Na Itália, pela falta de partidos organizados e centraliza-
dos, não se pode prescindir dos jornais: são os jornais, agrupados
em série, que constituem os verdadeiros partidos”. Mas ele ressalva
que a imprensa não é o único instrumento de publicização: “Tudo o
que inlui ou pode inluir sobre a opinião pública, direta ou indireta-
mente, faz parte dessa estrutura. Dela fazem parte: as bibliotecas, as
escolas, os círculos e os clubes de variado tipo, até a arquitetura, a
disposição e o nome das ruas” (ib., 78).
No artigo “Os jornais e os operários”, de 1916, Gramsci (2005)
insiste que os operários devem recusar os jornais burgueses, manti-
dos por capitais privados, visto que privilegiam as verdades de parti-
dos, políticos e classes dominantes. Para ele, os operários precisam
lembrar sempre que “o jornal burguês (qualquer que seja sua cor) é
um instrumento de luta movido por ideias e interesses que estão em
contraste com os seus. Tudo o que se publica é constantemente in-
luenciado por uma ideia: servir a classe dominante, o que se traduz
sem dúvida num fato: combater a classe trabalhadora. [...] E não
falemos daqueles casos em que o jornal burguês ou cala, ou deturpa,
ou falsiica para enganar, iludir e manter na ignorância o público
trabalhador”.
O ilósofo italiano reprova o trabalhador que lê regularmente e ajuda
a manter com seu dinheiro os jornais burgueses, “aumentando a sua
potência” e esquecendo-se de que tais veículos “apresentam os fatos,
mesmo os mais simples, de modo a favorecer a classe burguesa e
a política burguesa com prejuízo da política e da classe operária”.
Exempliica com a cobertura tendenciosa das greves: “Para o jornal

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V. Batalha das Ideias

burguês os operários nunca têm razão. Há manifestação? Os mani-


festantes, apenas porque são operários, são sempre tumultuosos,
facciosos, malfeitores”. Assim, o convencimento sobre o irremediável
conlito de interesses entre a classe trabalhadora e a imprensa da
burguesia justiica a atitude política que Gramsci julga mais conse-
quente: boicotar os jornais vinculados às elites hegemônicas.
Ao retomar mais tarde, nos Cadernos do cárcere, a análise crítica
sobre a imprensa, Gramsci assinala que o papel dos jornais trans-
cende, muitas vezes, a esfera ideológica em sentido estrito. Chama a
atenção para as determinações econômico-inanceiras das empresas
jornalísticas, que as impelem a agregar o público leitor para asse-
gurar rentabilidade e inluência. Avalia que a imprensa burguesa
se move em direção ao que pudesse agradar o gosto popular (e não
ao gosto culto ou reinado), com o propósito de atrair “uma clientela
continuada e permanente”. A seu juízo, “os jornais são organismos
político-inanceiros e não se propõem divulgar as belas-letras ‘em
suas colunas’, a não ser que estas belas-letras aumentem a receita”
(2002d: 40).
Esses componentes socioeconômicos e ideológicos estão na base
do que Gramsci denomina de “jornalismo integral”, isto é, o jorna-
lismo que não somente visa satisfazer as necessidades de seu públi-
co, “mas pretende também criar e desenvolver estas necessidades
e, consequentemente, em certo sentido, gerar seu público e ampliar
progressivamente sua área” (2000: 197). O jornalismo integral de
Gramsci atua como aparelho privado de hegemonia, na medida em
que procura intervir no plano político-cultural para organizar e di-
fundir informações e ideias que concorrem para a formação do con-
senso em torno de determinadas concepções de mundo.
Aos jornais, segundo Gramsci, interessa conquistar “o leitor em
toda a sua concretude e densidade de determinações histórico-polí-
ticas e culturais, de motivações éticas, como indivíduo e como expo-
ente de uma associação humana, como depositário de recursos inte-
lectuais latentes e como ‘elemento econômico”, ou seja, precisamente
como adquirente de uma mercadoria, de um produto”. Existem aí
nexos e remissões entre as dimensões políticas (a intervenção na
formação da opinião pública) e econômicas (o caráter empresarial e
mercadológico) que incidem na atividade jornalística. Gramsci atri-
bui ao jornalismo integral o exercício de um pressuposto categórico
à orientação ideológica hegemônica: “É dever da atividade jornalísti-
ca (em suas várias manifestações) seguir e controlar todos os novos
movimentos e centros intelectuais que existem e se formam no país.
Todos”.

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A comunicação na batalha das ideias

Se pensarmos no contexto contemporâneo, poderemos perceber


ecos da apreciação gramsciana. Os meios de comunicação elaboram
e divulgam equivalentes simbólicos de uma formação social já cons-
tituída e possuidora de signiicado relativamente autônomo. Na es-
sência, o discurso midiático se propõe ixar a interpretação dos fatos
por intermédio de signos ixos e constantes que tentam proteger de
contradições aquilo que está dado e apareça como representação do
real e verdade. Tal discurso interfere preponderantemente na carto-
graia do mundo coletivo, propondo um conjunto de linhas argumen-
tativas sobre a realidade, aceitas ou consideradas por amplos setores
da sociedade. Assume, pois, uma função ideológica que consiste, se-
gundo Chauí (1982: 21), em compor “um imaginário e uma lógica da
identiicação social com a função precisa de escamotear o conlito,
dissimular a dominação e ocultar a presença do particular, enquanto
particular, dando-lhe a aparência do universal”.
O estabelecimento de uma concepção dominante consiste, assim,
em “conservar a unidade ideológica de todo o bloco social, que é ci-
mentado e uniicado precisamente por aquela determinada ideologia”
(Gramsci, apud Gruppi, 1978: 69-70). Do ponto de vista das cor-
porações midiáticas, trata-se de regular a opinião social através de
critérios exclusivos de agendamento dos temas que merecem ênfase,
incorporação, esvaziamento ou extinção. O ponto nodal é disseminar
conteúdos que ajudem a organizar e a uniicar a opinião pública em
torno de princípios e medidas de valor. Por isso, formar a opinião
pública é uma operação ideológica “estreitamente ligada à hegemo-
nia política, ou seja, é o ponto de contato entre a ‘sociedade civil’ e
a ‘sociedade política’, entre o consenso e a força” (Gramsci, 2002a:
265). O processo da hegemonia importa, então, disputa pelo mono-
pólio dos órgãos formadores de consenso, tais como meios de co-
municação, partidos políticos, sindicatos, Parlamento etc., “de modo
que uma só força modele a opinião e, portanto, a vontade política
nacional, desagregando os que discordam numa nuvem de poeira
individual e inorgânica”.
Daí a importância crucial de se analisarem as formas de conven-
cimento, de formação e de pedagogia, de comunicação e de difusão
de visões de mundo, as formas peculiares de sociabilidade, as manei-
ras de ser coletivas e as clivagens, assim como as contradições pre-
sentes em cada período histórico (Fontes, 2008: 145). A referência à
difusão de ideias, valores e padrões de comportamento tem a ver com
um dos reconhecimentos decisivos no pensamento crítico atual: é no
domínio da comunicação que se esculpem os contornos ideológicos
da ordem hegemônica e se procura reduzir ao mínimo o espaço de
circulação de ideias alternativas e contestadoras - por mais que estas
continuem se manifestando e resistindo. A meta precípua é esvaziar

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V. Batalha das Ideias

análises críticas e expressões de dissenso, evitando atritos entre as


interpretações dos fatos e os modos de entendimento por parte de
indivíduos, grupos e classes.
Sem esquecer a constante reverberação do ideário dominante nos
canais midiáticos, devemos reconhecer que fatores mercadológicos,
socioculturais e políticos repercutem de alguma maneira na deini-
ção das programações. Um dos traços distintivos da mídia, enquanto
sistema de produção de sentido, é a sua capacidade de processar cer-
tas demandas da audiência. Os meios não vivem na estratosfera; pelo
contrário, estão entranhados no mercado e dele dependem para suas
ambições monopólicas. Do mesmo modo, precisam ter seus radares
permanentemente ativados para captar sinalizações, insatisfações e
carências. E com isso preencher vácuos abertos, antecipar tendências,
criar modismos, atenuar variações e repensar aproximações. Decisivo
não perder de vista que tais deslocamentos devem ocorrer, o máximo
possível, dentro das margens de controle delineadas por estrategistas
e gestores corporativos.
É impossível conceber o campo midiático como um todo harmo-
nioso e homogêneo, pois está atravessado por sentidos e contrassen-
tidos, imposições e refugos, aberturas e obstruções. Daí a existência
de entrechoques de concepções que se enfrentam e se justapõem
em diferentes circunstâncias históricas. É um campo atravessado
por contradições, oscilações de gostos, preferências e expectativas.
Enquanto mediadora autoassumida dos desejos, a mídia tenta iden-
tiicar indicações do cotidiano e eventuais alternâncias de sentimen-
tos que podem incidir em predisposições consensuais ao consumo.
Para tentar sintonizar-se com essas demandas, os veículos procuram
substituir formas disciplinares clássicas por um marketing mais ma-
cio e persuasivo, capaz de seduzir consumidores de diferentes estra-
tos sociais e somar capitais publicitários, patrocínios e audiências.
Ainda que prescrevam fórmulas e juízos, não há dúvida de que, em
maior ou menor grau, absorvem, essencialmente por razões de mer-
cado, determinadas inquietações do público. Quando as incorporam
em suas programações, fazem-no de acordo com suas escalas in-
terpretativas, sem deixar de avaliar intenções concorrenciais. Seria,
portanto, um equívoco ignorar injunções que se alojam nas diretivas
dos veículos e em seus peris especíicos e isionomias competitivas.
O aparato midiático tem que atualizar programações e ofertas
para assegurar máxima idelidade possível da audiência, em conso-
nância com suas conveniências estratégicas. O que não quer dizer
que as atualizações resultem em qualidade editorial ou pluralidade
real de pontos de vista. O fulcro de grande parte dos ajustes é seguir
modelando comportamentos e consciências, bem como inluencian-

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A comunicação na batalha das ideias

do agendas públicas e privadas. Busca-se incorporar peculiaridades


socioculturais a determinados produtos e serviços, de modo a usu-
fruir vantagens simbólicas associadas ao trabalho de conversão de
identidades à lógica consumista.
Em paralelo, a exploração de brechas dentro das corporações mi-
diáticas não deve ser descartada como recurso tático na resistência
ao pensamento único. Claro que a grave assimetria comunicacio-
nal — uma parte ínima da sociedade é proprietária dos veículos,
enquanto a coletividade é apenas destinatária — impõe limitações e
obstáculos. Mas não impede que sejam desenvolvidas algumas ações
criativas no interior das organizações, conseguindo-se, às vezes, vei-
cular materiais informativos que contrastam com o edifício ideológico
construído por seus proprietários.
Existem, simultaneamente, pontos de resistência aos discursos
hegemônicos que abrem horizontes de enfrentamentos de pontos de
vista. A começar pelos meios alternativos de comunicação, impres-
sos, eletrônicos ou virtuais, que se contrapõem aos modelos e crivos
midiáticos. Eles procuram disseminar ideias que contribuam para a
elevação da consciência social, o exercício da crítica e a intensiicação
do debate sobre possibilidades de transformação do mundo vivido. De
igual maneira, é essencial a reivindicação de políticas públicas que
possam coibir monopólios e oligopólios e conter a obsessão comercial
das indústrias culturais, ao mesmo tempo estimulando a produção
audiovisual independente, as mídias comunitárias e a organização co-
operativa em redes e coletivos de comunicação, bem como asseguran-
do o controle social democrático sobre empresas concessionárias de
licenças de rádio e televisão.
Em qualquer dos cenários, não podemos alimentar falsas ilusões
no enfrentamento do poderio midiático. Seria grave erro subestimar
a agressividade ideológica, a penetração social e a eiciência merca-
dológica das organizações de mídia. Trata-se, isto sim, de conceber
estratégias criativas e consistentes de difusão e pressão, que se tra-
duzam na ocupação de espaços táticos na sociedade civil por meios
alternativos, bem como no interior das corporações. O objetivo pri-
mordial é desenvolver dinâmicas informativas que reverberem visões
de mundo comprometidas com a efetiva liberdade de expressão, o
pluralismo e os direitos da cidadania. Essa ação ideológico-cultural
precisa inserir-se no plano geral de lutas sistemáticas para debilitar
as estruturas da dominação exercida pelas classes dominantes e al-
cançar, progressivamente, novas condições concretas de hegemonia
que priorizem a justiça social e a diversidade.

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V. Batalha das Ideias

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OTTOLENGHI, Franco. “Jornalismo”, em Gramsci e o Brasil.
SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática,
1994.

84 Política Democrática · Nº 24

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VI. O Social e o
Político

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Autores
José de Souza Martins
Professor Emérito da Faculdade de Filosoia, Letras e Ciências Humanas da Universi-
dade de São Paulo. Dentre outros livros, autor de Fronteira – A degradação do Outro
nos conins do Humano; (2a edição, Contexto, 2009); Retratos do Silêncio, Edusp, 2008;
Reforma Agrária: o Impossível Diálogo, Edusp, 2000; Exclusão Social e a Nova Desi-
gualdade, Editora Paulus, 2007; A Sociedade Vista do Abismo (Novos estudos sobre
exclusão, pobreza e classes sociais), Editora Vozes, 2008; A Sociabilidade do Homem
Simples (2a edição revista e ampliada, Contexto, 2008).

Isabel Allende Bussi


Socióloga formada pela Universidade do Chile, fez estudos de mestrado em Sociologia
pela Universidade Nacional Autônoma do Mexico (Unam) e também de Ciência Política
na Flacso (México). Filha do ex-presidente Salvador Allende e de Hortensia Bussi, é
deputada nacional pelo Partido Socialista do Chile, desde 1994.

Luiz Eduardo Soares


Cientista social e antropólogo, foi secretário nacional de segurança pública, do
governo federal (janeiro a outubro de 2003), subsecretário de segurança pública
e coordenador de segurança, justiça e cidadania do governo do Estado do Rio de
Janeiro (janeiro de 1999 a março de 2000). Tem dez livros publicados, entre eles Meu
Casaco de General, inalista do Prêmio Jabuti em 2000, e junto com André Batista e
Rodrigo Pimentel, Elite da tropa (Rio de Janeiro: Objetiva, 2006).

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A reforma agrária bifocal1

José de Souza Martins

S
e o número de entidades que falam em nome da demanda
popular por reforma agrária passar das 89 recentemente lis-
tadas por pesquisadora da Unesp, provavelmente não haverá
trabalhadores rurais sem terra, em número suiciente, para tanta
organização política falando e pleiteando em nome deles. Estamos
em face de um curioso fenômeno histórico e político, raro, senão
único, na história das lutas agrárias que acompanharam a crise do
antigo regime e o nascimento e expansão do capitalismo nos últimos
dois séculos. É o da lentidão e da demora na suposta desagregação
da velha ordem latifundista e na superação de suas sobrevivências,
entre nós.
Porque reforma agrária é isso: a remoção e superação dos arcaís-
mos que na tradição fundiária travam o desenvolvimento da econo-
mia moderna. Ou, então, nosso impasse agrário é de outra natureza,
de mera disputa de interesses partidários, o que se pode suspeitar
com base na proliferação de agentes de reivindicação, sem a coerên-
cia ideológica que nos diga que estamos, de fato, em face de um im-
passe histórico que pede uma ação política em nome dos pobres da
terra e com sua participação ativa. E não, como se está vendo, uma
luta de escritórios de serviços políticos, e lideranças de classe média,
não raro sustentados por verbas do próprio governo.
Não é a história que está em jogo e sim o poder. Justamente por
isso a reforma agrária, no Brasil, tornou-se irrelevante em face da

1 Versão revista e ampliada de artigo publicado em O Estado de S. Paulo [Ca-


derno Aliás, A Semana Revista], domingo, 24 de maio de 2009, p. J7.

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VI. O Social e Político

institucionalização da luta social que se trava em nome dela e dos


trabalhadores que a necessitam. O objetivo da luta é a luta e não
propriamente a remoção política dos entraves históricos que imobili-
zam os trabalhadores rurais aquém do historicamente possível e do
socialmente necessário.
As lutas agrárias têm sido expressões autodefensivas e conserva-
doras das vítimas da desagregação do velho regime e de suas injus-
tiças sociais. Tornaram-se uma força involuntariamente auxiliar do
surgimento e disseminação de uma nova ordem econômica, social e
política baseada no lucro (e não na renda fundiária), na igualdade
jurídica de seus membros (e não na desigualdade de nascimento das
pessoas) e na democracia representativa (e não na dominação patri-
monial e pessoal).
As lutas agrárias, ainda que também motivadas pela resistência
às iniquidades de uma ordem social adventícia, baseada na coisa e
não na pessoa, de algum modo tem contribuído para aperfeiçoar essa
mesma ordem, nela introduzindo, como observou E. P. Thompson,
em relação aos privilégios das corporações de ofício na sociedade
inglesa, um pressuposto moral regulador e humanizador da racio-
nalidade da produção e do lucro. T. H. Marshall, o introdutor da so-
ciologia na Universidade de Cambridge, fez estudos pioneiros sobre
o mesmo tema, constatando que foram esses setores historicamente
retrógrados da sociedade contemporânea que, sem expressamente
pretendê-lo, asseguraram o nascimento dos direitos sociais, civili-
zando o que parecia caminhar para a incivilidade da coisiicação ple-
na e absoluta do ser humano.
Numa escala bem mais modesta, aqui no Brasil o conservadoris-
mo agrário das lutas populares tem erguido uma barreira à latifun-
dização plena do país. Não fossem elas, o Brasil, a partir da ditadura
militar teria se transformado numa federação de enclaves territo-
riais, inanciados pelos incentivos iscais e dotados de poder próprio,
latifúndios modernos no sentido político e não latifúndios no sentido
histórico de fazendas descomunais e arcaicas.
Esse desencontro profundo entre a motivação imediata e a ação
dos movimentos sociais, de um lado, e seus resultados históricos, de
outro, têm sido característico das lutas sociais dos pobres na socie-
dade contemporânea, mesmo quando já não esteja em jogo a demo-
lição de uma ordem social e política pretérita. Nem por isso, esses
movimentos deixam de ter uma indiscutível importância histórica na
faxina que promovem, em nome de valores da tradição conservadora,
nos resíduos de arcaísmos que tolhem o desenvolvimento econômico
e social.

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A reforma agrária bifocal

No entanto, também eles se perdem na contradição que os move


e desigura. Uma coisa é o elenco de suas modestas demandas ma-
teriais, outra coisa é o que com elas fazem os grupos de mediação
interpretativa que as traduzem em política partidária e política de
Estado. O sem terra de referência do Ministério de Desenvolvimento
Agrário e do Incra, como o do próprio MST, é irreal e mero instru-
mento de demandas completamente estranhas às dos que carecem
de terra para trabalhar e de trabalho para sobreviver. Sem dúvida,
pode haver algum grau de coincidência entre o que precisam uns e
o que querem outros, aqueles que tutelam a formatação política das
carências sociais.
Mas pode haver distanciamentos e rupturas, como se vê agora
nas tensões entre o MST e setores da Igreja, de um lado, e o governo
Lula de outro, este implementando uma política agrária predominan-
temente orientada para favorecer o agronegócio. Política que retroce-
de, no que se refere aos direitos sociais sobre a terra e à soberania
nacional sobre o território, ao mais reacionário dos momentos de
nossa história fundiária, que foi o da República Velha. Com a dife-
rença de que essa política fundiária é a de um governo tido e havido
como de esquerda, enquanto a República Velha era a república das
oligarquias e dos grandes proprietários de terra. Os de ontem agiam
em nome de interesses próprios; os de agora agem em nome de inte-
resses alheios.
Nesse plano, a multiplicação do número de organizações que fa-
lam pelos que poderiam ser beneiciados pela reforma agrária e a ide-
ologização tanto do MST quanto da Pastoral da Terra, nos indica uma
crise nos indevidamente chamados de movimentos sociais. A crise se
enuncia na palavra do agente de pastoral da terra que, entrevistado
pelo jornal O Estado de S. Paulo, deine a reforma agrária do governo
do PT, de cuja ascensão a CPT tem sido uma das responsáveis, como
sendo uma reforma agrária cínica. O padre que emitiu esse juízo tem
suas ponderáveis razões. Mas não sei que outra palavra empregar
para deinir a conduta partidária dos que estando em desacordo com
a política agrária de Lula e do PT, ainda assim, os consideram os
únicos capazes de realizar as aspirações dos pobres da terra quando
eles mesmos estão dizendo exatamente o contrário.
Se o regime militar pensou a reforma agrária como instrumento
do Estado para acalmar os nervos dos trabalhadores rurais, é evidente
que o governo Lula vai na direção oposta, mas não necessariamente
melhor. Desde o início do primeiro mandato, ele considera a reforma
agrária um recurso tópico para amenizar a pobreza rural e urbana,
um modo de aplacar o apetite dos famintos. É o que se vê agora

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VI. O Social e Político

na extensão do Bolsa Família aos residentes dos acampamentos de


pressão do MST, e de outras entidades, em favor de mais desapro-
priações e mais assentamentos. Reforma agrária, aliás, em declínio
notório no governo petista, como acusam e conirmam com dados
MST e CPT.
Com essa medida, o Ministério do Desenvolvimento Social anexa
os sem terra aos moradores de rua e aos remanescentes de quilom-
bos. Reconceitua-os como sem destino, em exata oposição à ideolo-
gia, tanto do MST quanto da CPT, de que os desvalidos da terra são
vítimas de uma injustiça social histórica. Como os proletários de
Lênin, seriam também eles portadores de uma alternativa social e
política que os faria agentes privilegiados da transformação social.
Sujeitos do futuro e não do passado.
Um governo que, no agrário, optou em termos absolutos pelo he-
roísmo do agronegócio não poderia deixar de fazê-lo em face de uma
servil luta pela reforma agrária, alienada e incapaz de reconhecer-se
na possibilidade do agronegócio alternativo e popular, fundado no
capital social dos que, privados de terra, não foram privados de um
saber ancestral criativo e produtivo.

90 Política Democrática · Nº 24

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Governabilidade e coesão social:
o caso do Chile

Isabel Allende Bussi

T
rata-se de conceitos se complementam e constituem, sem dú-
vida, matérias de interesses para o Chile e os demais países da
América Latina. Governabilidade é um conceito pluridimen-
sional. Sua expressão fundamental tem relação com a democracia,
que dispõe de mecanismos legitimados para resolver civilizadamente
as discrepâncias ou as diferentes opções que aparecem na sociedade,
recorrendo ao acatamento das minorias frente à opinião das maio-
rias, assim como do respeito às minorias por parte das maiorias;
tudo isso, na moldura do Estado de Direito. Democracia e governabi-
lidade são termos complementares. Para que exista governabilidade,
deve ocorrer o funcionamento estável das instituições, a legitimidade
dos governantes, um projeto de país majoritariamente compartilha-
do, e o bem-estar da população em relação à diversidade e respeito
aos direitos humanos.
Governabilidade é também a capacidade de ação do governo; a ei-
cácia de suas políticas públicas, particularmente aquelas orientadas
para os setores mais desprotegidos; a capacidade de dispor de um
sistema de educação equitativo e de qualidade; a transparência e a
eiciência da gestão pública; o desenvolvimento ou a incorporação da
ciência e tecnologia; a possibilidade de resolver os conlitos sociais;
atingir consensos sociais em matérias fundamentais; impulsionar o
crescimento sustentado e proteger o meio ambiente. Assim mesmo,
está relacionada com a capacidade de antecipar soluções frente a fatos
que podem se converter em destoantes de mal-estar social.
A governabilidade deve incorporar a participação e a organização da
sociedade civil para que esta cumpra um papel de maior protagonismo
na defesa de seus direitos e na formulação de suas aspirações e pro-
postas. Desta maneira, ela pode envolver-se no diálogo nacional e na
tomada de decisões sobre os grandes temas que preocupam os países.
A governabilidade democrática respeita os direitos das pessoas e resolve
os conlitos através de canais que permitem o diálogo, a negociação.

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VI. O Social e o Político

A governabilidade na América Latina e no Chile


A América Latina superou o período de ditaduras militares que
se prolongou entre as décadas de 1970 e 1980 na maioria dos
países. Hoje, existem regimes democráticos depois de um período
de transição que signiicou superar anteriores estruturas de poder
militar autoritário e repressivo. No entanto, nos últimos 17 anos, 12
presidentes de países latino-americanos eleitos democraticamente
concluíram prematuramente seus períodos constitucionais por si-
tuações de ingovernabilidade. Suas renúncias obedeceram a crises
políticas que não puderam resolver, que detonaram violentas reações
sociais e que os obrigaram antecipadamente a deixar seus mandatos.
Em todos esses casos, não existiam esses mecanismos institucionais
para resolver os conlitos.
Contudo, é positivo veriicar que tais crises não resultaram em
golpes de Estado e em ditaduras militares, como ocorreu em décadas
passadas. Isso é porque hoje em dia não existem condições sociais
nem políticas que legitimem ações dessa natureza.
No Chile, a passagem da ditadura à democracia se conseguiu ten-
do como base uma coligação de centro-esquerda. Pela primeira vez,
em toda a história política de nosso país, temos uma aliança. Forças
políticas que sempre fomos quase antagônicas e adversárias, e tal-
vez quase inimigas. Estou falando da democracia-cristã e do mundo
socialista. Conseguimos gestar a Concertación de Partidos pela De-
mocracia, que foi capaz de elaborar um projeto de país que permitiu
o triunfo de quatro governos sucessivos, o último deles o encabeça,
pela primeira vez em toda a história de nosso país, uma mulher, a
presidenta Michelle Bachelet. A Concertación conseguiu estabelecer
condições de paz e de coniança que permitem o funcionamento das
instituições nos marcos do Estado de Direito. O prolongado período
de transição à democracia que tem experimentado o país tem sido
pacíico, as desconianças políticas tenderam a desaparecer depois
da saída do ex-ditador do Comando do Exército e de sua detenção em
Londres. Um feito signiicativo para a democracia foram as reformas
constitucionais promulgadas em 2005 que, entre outras modiica-
ções, terminaram com a Doutrina de Segurança Nacional que era
parte da Constituição imposta em 1980 e que entre outras coisas,
designava as Forças Armadas como garantia da democracia. Ainda
que não tenha eliminado todos os enclaves, ao menos, creio, que
avançamos bastante no aprofundamento da democracia. Mas ainda
temos certas ataduras, entre outras, um sistema eleitoral binominal
excludente, que altera a representatividade cidadã. Eu espero que

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Governabilidade e coesão social: o caso do Chile

seja uma das tarefas que seremos capazes de cumprir, apesar de que
já levamos 17 anos de transição democrática.
Os países da América Latina têm melhorado sua situação eco-
nômica e têm avançado num processo de inserção no mundo glo-
balizado. Persistem, não obstante, altos indicadores de pobreza,
marginalidade social, carências na educação, saúde, moradia e sub-
desenvolvimento rural. Ainda que tenha existido progresso, coexis-
tem na América Latina segmentos sociais de modernidade e riqueza
comparáveis com os países desenvolvidos junto com setores sociais
majoritários que vivem no atraso e na pobreza – às vezes, extrema.
Essa situação tem provocado descontentamento, desconiança nas
instituições públicas e na política; tudo isso afeta a validade da de-
mocracia e é germe de ingovernabilidade.
O Chile tem diferenças e semelhanças em relação aos demais pa-
íses latino-americanos. Entre suas diferenças temos, por exemplo, a
conquista de termos diminuído consideravelmente a pobreza por mais
da metade, descendo de 38,6% em 1990 – primeiro ano de governo de-
mocrático – a 13,7% em 2006. Assim, na década de 1990, o Chile du-
plicou sua produção, o que lhe permitiu alcançar maior crescimento
e bem-estar social. Ambos os resultados fortaleceram a governabilida-
de. Paralelamente, temos conseguido equilibrar os macroindicadores
econômicos e incrementar o investimento e a poupança nacional. A
estratégia de desenvolvimento impulsionada pelo Chile está vinculada
a sua capacidade exportadora. Para isso, tem dado importância aos
tratados bilaterais e multilaterais de livre comércio, cuidadosamente
negociados, cuja principal característica foi estabelecer condições de
intercâmbio de mútua equidade com países ou blocos. Esperamos que
isso implique proteção a longo prazo para os setores mais débeis da
economia nacional. Hoje, o Chile possui tratado de livre comércio com
85% da população mundial. O que não deixa de ser bastante notável
para um país de 15 milhões de habitantes.
Além da desigualdade de renda, entre as semelhanças do Chile
com os demais países latino-americanos está o baixo prestígio de
instituições como o Poder Judiciário, o Congresso Nacional e os
partidos políticos. A grande variável externa para nossos países é
a globalização, processo que mesmo podendo gerar oportunidades,
também produz inequidade.
O capital inanceiro especulativo é um dos causadores da crise
em nossos países. Há dois efeitos que são consequência da globaliza-
ção: por um lado, pode produzir uma forte tendência a integração e
a interdependência, mas, por outro, produz processos de fragmenta-
ção e erosão cultural de etnias e nacionalidades.

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VI. O Social e o Político

Requisitos para uma maior governabilidade


A governabilidade como preocupação fundamental nos convoca a
reletir sobre os requisitos que tornariam possíveis o estabelecimento
das melhores e mais favoráveis condições para alcançá-la. Em minha
opinião essas condições são:
Em primeiro lugar, a democracia, o respeito ao Estado de Direito
e o normal funcionamento das instituições.
Segundo. Melhorar a qualidade da política. É necessário, na
América Latina, e creio que não só nela, que a política tenha um
claro conteúdo ético, rigor de análise e riqueza propositiva. O prag-
matismo, a tecnocracia desumanizada, a corrupção, a inlação de
oferta de promessas impossíveis de cumprir, a pobreza do debate
político, os recursos efetivos e às vezes meramente conjunturais da
política midiática e as práticas populistas, devem ser evitados.
Terceiro. Melhorar a qualidade das organizações políticas. Os
diagnósticos airmam que existe uma crise de representatividade na
América Latina. Nossos partidos políticos têm perdido protagonismo
e se têm debilitado como mediadores da cidadania. Penso que os
partidos políticos devem se colocar à altura da sociedade do conheci-
mento, na qual este tem centralidade, e buscar capacidade técnica e
especialização, já que de suas ileiras surge um número importante
de quem assume papéis de condução do Estado ou daqueles que vão
se constituir em lideranças nacionais.
Quarto. Aumentar a participação e responsabilidade social. A so-
ciedade civil deve ter uma maior participação na tomada de decisões,
isso dá maior legitimidade às políticas públicas e, seguramente, mais
transparência, além de poder ser um mecanismo que ajude a evitar a
corrupção. É fundamental legislar a respeito para poder garantir um
amplo espaço de participação.
Quinto. Enfrentar a pobreza não só é um requisito de governa-
bilidade mas constitui um imperativo ético. Uma modiicação na
estratégia de desenvolvimento predominante se faz necessária para
dar melhores respostas às necessidades e expectativas da popu-
lação. Essa estratégia, em minha opinião, deve ter, entre outras
características, uma participação mais ativa do Estado na regula-
gem do mercado e no controle das empresas privadas que prestam
serviços públicos.
Sexto. É importante combater a discriminação de gênero, de et-
nias, de classes sociais, construindo sociedades mais inclusivas e
pluriculturais.

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Governabilidade e coesão social: o caso do Chile

Sétimo. É importante modernizar o Estado. Deve existir uma me-


lhor coordenação entre o Estado e a sociedade civil e entre o Estado
e as empresas privadas e cooperativas; da mesma forma, é necessá-
rio que o Estado exerça ações corretivas, maior controle e aplique
medidas compensatórias. O Estado deve impulsionar processos de
descentralização, melhorar a eiciência do gasto público e melhorar
os serviços ao cidadão. Não deveria ser uma utopia que o Estado seja
mais transparente e próximo às pessoas.
Oitavo. Em um sentido mais instrumental, o Estado tem que ter
capacidade de gestão sólida: entendemos por isto planejamento, or-
ganização, gestão de pessoas, motivação, controle, liderança, inova-
ção, produtos e serviços de qualidade, avaliação e acompanhamento
dessas políticas. No Chile, estamos experimentando o resultado de
haver aplicado de forma ineiciente e ineicaz um sistema de trans-
porte público para a Região Metropolitana conhecido como “Transan-
tiago”. Hoje, estamos afetando a qualidade de vida de mais de cinco
milhões de pessoas que utilizam esse serviço público. E, com a in-
tenção de melhorá-lo, lamentavelmente, hoje temos que reconhecer
que ainda não o conseguimos e é, sem dúvida, um desaio pendente.
Resultado: tem se deteriorado a imagem de nosso governo, de nossos
partidos e a relação entre nosso governo e a cidadania. Creio que é
uma lição que todos devemos aprender.
Nono. A qualidade e a igualdade da educação é outro dos compo-
nentes de governabilidade. Ela permite um desenvolvimento humano
integral, o acesso do conhecimento, o desenvolvimento da criativida-
de, a inovação e, seguramente, ganhar em competitividade.
Décimo. Como fator de governabilidade, também adquire signi-
icação um novo conceito de segurança hemisférica e de segurança
no âmbito planetário. Hoje temos fenômenos como o narcotráico, o
terrorismo, o tráico de armas não convencionais e as redes interna-
cionais de delinquência, que se instituem como novas modalidades
de ameaça. Esses fenômenos nos exigem melhores normas e ins-
trumentos internacionais para serem enfrentados e a cooperação de
todos os países.
Décimo primeiro. Também a colaboração entre nossos países
pode se expressar em contribuir para um clima internacional de paz,
onde predomine o respeito às instituições internacionais e, por certo,
ao direito internacional.
Décimo segundo. E, quanto à globalização, é necessário evitar
o efeito desestruturante que esta produz. Para isso se requer dar
a ela governabilidade política e governabilidade ao movimento de
capitais especulativos.

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VI. O Social e o Político

Coesão Social
Não se pode falar de governabilidade se não existe coesão social,
ou seja, se nossas sociedades não são inclusivas. Estar excluído dos
benefícios econômicos produz uma baixa credibilidade dos governos,
da política e dos partidos políticos que não são capazes de gerar al-
ternativas para resolver situações de iniquidade. A América Latina é,
de acordo com os organismos internacionais, a região mais desigual
do mundo, particularmente no que se refere à distribuição de ren-
da. Apesar da diminuição percentual dos pobres, o número absolu-
to aumentou concentrando-se particularmente nos setores rurais; o
desemprego segue em alta, cresce o trabalho informal sem proteção
social e coexiste um mercado de trabalho precário e instável. Por ou-
tro lado se tem produzido uma alta concentração do capital e o surgi-
mento de oligopólios que desprezam pequenos e médios empresários.
Tudo isto produz exclusão. Na América Latina, em 2005, quase 40%
da população vivia em condições de indigência. Estas cifras, de acor-
do com a Cepal, sofreram uma pequena baixa em 2006.
A população indígena da América Latina chega a 30 milhões de
pessoas, cuja maioria habita zonas rurais; tal população é constituí-
da por 650 povos caracterizados por uma grande diversiicação étni-
ca e cultural. A grande maioria dos indígenas latino-americanos vive
em situação de pobreza e marginalidade. Estamos longe de cumprir a
Convenção 169 da OIT que, entre outras coisas, assume um compro-
misso com a não discriminação; direito à integridade cultural; direito
à propriedade, uso, controle e acesso às terras e seus recursos; o
direito ao desenvolvimento e ao bem-estar social; direitos de partici-
pação política com consentimento livre, prévio e informado.
Até o momento, os modelos de desenvolvimento dos países da
América Latina e Caribe não conseguiram avançar suicientemente
em equidade e coesão social. Venezuela e Bolívia, com governos de-
mocraticamente eleitos, exploram novas vias para alcançar o bem-
estar de seus povos, nas quais o econômico se afasta da ortodoxia do
Consenso de Washington e no social buscam construir democracias
mais participativas. Em ambos os países, o Estado assume novas
funções, como um novo trato com empresas estrangeiras que explo-
ram os recursos naturais e uma maior ingerência no que se refere
ao âmbito econômico e social. O tempo se ocupará de demonstrar
seus resultados. Brasil, Argentina, Equador e Nicarágua, têm ou-
tras características, também impulsionam projetos de mudanças,
que no caso de suas instituições democráticas, tem conseguido su-
perar gradualmente as desigualdades anteriores e promover o cres-
cimento e bem-estar.

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Governabilidade e coesão social: o caso do Chile

Chile tem seguido uma via distinta, de acordo com sua própria
realidade. A estratégia desenvolvida por nossos governos de Con-
certación é definida como um crescimento sustentável com equi-
dade e tem aumentado consideravelmente os empregos, sendo que
a metade destes novos empregos estão sendo ocupado por mulhe-
res – e ainda temos a mais baixa jornada de trabalho feminina da
América Latina.
Temos aumentado os gastos com saúde, ampliando sua cobertura
(os gastos com saúde por habitante aumentaram a uma taxa anual
de 10%); foram construídos mais de um milhão de habitações (sob o
comando do governo de Concertación,1990-2006, foram construídos
mais de um terço das habitações que existem atualmente em nosso
país), 72,6% destas habitações são ocupadas por seus proprietários;
os salários aumentaram em termos reais, 90% entre 1990 e 2006; se
constata um aumento considerável da taxa de investimento e se me-
lhorou o capital humano. Atualmente, de dez estudantes que entram
na universidade, sete deles são os primeiros da família que estão em
uma unidade de ensino superior. Na educação, temos tentado fazer
reformas curriculares e melhorar a capacitação docente, assim como
a ampliação da infraestrutura educativa junto com a obrigação do
Estado de elevar para 12 anos a educação obrigatória. Podemos dizer
que o último censo demonstrou uma melhora signiicativa na quali-
dade de vida da população, dentre outras coisas, em razão ao acesso
à habitação, à educação e a equipamentos como televisão, aparelhos
de som, lavadora etc...
Ainda que tenha existido progresso, que é inegável e do qual es-
tamos muitos orgulhosos, considero que a estratégia econômica do
Chile tem dado indícios de que está se esgotando em razão de temas
muito complicados. Temos um mercado altamente desregulado e,
ao mesmo tempo, uma economia altamente privatizada, na qual a
busca de lucro, muitas vezes, predomina em detrimento da quali-
dade do serviço prestado, entre eles a previdência social e a saúde.
Ambos componentes – falta de regulação e privatização – têm criado
uma alta concentração da riqueza além de termos uma educação
insuiciente em qualidade e um sistema de pensões que estamos em
via de reformar.
Esta mesma estratégia de desenvolvimento tem se mostrado de
grande utilidade para algumas empresas transnacionais que explo-
ram o cobre, e que pagam ao Estado baixíssimos impostos. Estas
empresas entregaram ao Estado, entre 1991 e 2004, uma receita mé-
dia de 225 milhões de dólares produzindo mais de 50% do cobre na-
cional. Por outro lado, a empresa estatal Codelco, tem entregado ao

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VI. O Social e o Político

Estado mais de 1,3 bilhões de dólares anuais para o mesmo período,


por exportar um pouco mais de 40% da produção. A esse respeito,
nunca devemos esquecer que a nacionalização do cobre foi realizada
pelo presidente Salvador Allende, em 1971, expressão visionária que
se tornou realidade em nosso país. Outra debilidade da estratégia
econômica tem sido a falta de incentivo à pesquisa para o desenvolvi-
mento e a inovação (apenas 0,7% do PIB se converte em pesquisa). O
Chile necessita não somente exportar matérias-primas, mas também
devemos exportar produtos com valor agregado que criam mais em-
pregos e constroem condições competitivas mais dinâmicas. No Chile
existe uma baixa proporção de pesquisa aplicada, o que resulta em
baixos níveis de impacto produtivo. Um aspecto que incide na gover-
nabilidade e na coesão social é a falta de importância dada no Chile
às Pymes (pequenas e médias empresas), que geram mais de 70%
dos empregos. Estas necessitam de maior apoio, tanto do Estado,
como da iniciativa privada, para melhorar sua capacidade inovadora,
produtiva e competitiva.
A coesão social tem relação com a identidade ou o grau de con-
senso que se tem em torno de um projeto de país. No âmbito do país
ou região, a coesão social e a exclusão são consequências de decisões
políticas e econômicas, de fatores estruturais e do peso das culturas
que se fazem hegemônicas. Interferem na falta de coesão social a
escassa participação civil e a discriminação que muitas vezes encon-
tramos por gênero, etnia ou por raças.
Não deixa de ser paradoxal o fato de que durante a ditadura ti-
vemos múltiplas formas de organização civil (entre outras as cha-
madas ollas comunales que eram uma estratégia de sobrevivência
em pleno período ditatorial); tivemos vários meios de comunicação
alternativos em plena ditadura, e hoje, depois de 16 anos de demo-
cracia, reduzimos e perdemos toda essa participação. O que resul-
ta no fato de que não temos praticamente meios de comunicação
escritos que não pertençam aos monopólios que são propriedades
da direita em nosso país.
E mais, uma recente pesquisa, feita por uma empresa conhecida
(Cerc), mostra que, no Chile, 92% das pessoas consideram que não
existe igualdade no trato que dão as autoridades. Em 2005, 84%
dos entrevistados responderam não acreditar que exista igualdade
perante a lei. A mesma pesquisa foi aplicada a jovens, e obteve as
seguintes respostas frente à pergunta: “O que falta para a sociedade
chilena se tornar mais democrática”? Responderam: “escutar mais
as pessoas, suas necessidades e opiniões; melhorar a aplicação da
justiça; diminuir as diferenças e a desigualdade e dar maiores

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Governabilidade e coesão social: o caso do Chile

oportunidades à população”. E mais, em nosso país a inscrição elei-


toral não é obrigatória, mas o voto sim. Temos mais de 800.000 jo-
vens que não estão inscritos e que têm a idade de votar, abrindo mão
assim do direito de participar da vida política do país. Creio que isto
demonstra a falta de coniança no atual sistema democrático, sendo
esse mais um dos desaios pendentes.

Como avançar na coesão social?


Os governos devem impulsionar políticas públicas que promo-
vam a coesão social em suas dimensões sociais, culturais, política,
econômica, territorial e no que diz respeito ao meio ambiente. Adi-
cionalmente, seguindo o exemplo da União Europeia, é importante
que a America Latina avance em integração regional, a partir de um
consenso de iniciativas que promovam a equidade e a coesão social.
Sobre este ponto, valorizamos a Declaração de Viena e a disposição
da União Europeia, expressada através do “Consenso Europeu sobre
Desenvolvimento”, no sentido de “colocar a erradicação da pobreza
no centro da cooperação para o desenvolvimento da União Europeia,
no contexto de um desenvolvimento sustentável, com a inclusão dos
Objetivos de Desenvolvimento de Milênio”.
Corresponde ao Estado, então, cumprir um papel no avanço da
coesão social, gerando estas condições para uma cultura solidária,
servindo de base para a construção de um pacto social que envolva
diferentes setores sociais. Corresponde ao Estado também regular e
intervir no mercado, especialmente quando este produzir inequida-
des. O mercado não produz equidade nem resolve as aspirações de
bem-estar de toda a sociedade; é o Estado, por meio de suas políticas
publicas e de articulação da vontade política e social, que pode ter e
cumprir este papel principal, no sentido de gerar benefícios compar-
tilhados como consequência do desenvolvimento.
Dissemos que é necessário resolver as iniquidades que existem
em saúde, educação e em relação à previdência social; desenvolver
mais o capital humano e social. Ter e aprofundar as convicções de-
mocráticas, no respeito aos direitos humanos e ao Estado de Direi-
to, identidades culturais fundamentais, fomentar o associativismo,
a aceitação da diversidade, e gerar maior coniança entre os atores
sociais em torno de um projeto de país.

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Reforma do Estado e
cultura política

Luiz Eduardo Soares

A crença dominante é a seguinte: para construir um país mais


justo, com governos mais eicientes, com menos corrupção e vio-
lência, é preciso punir mais e com penas mais longas, o que, por
sua vez, deve ser precedido pela promulgação de leis que ampliem
os mecanismos de controle sobre a sociedade e o Estado. Quanto a
este último, o senso comum diz que é necessário inibir desvios de
conduta, impondo regras rígidas para que seus atos se tornem mais
compatíveis com o respeito ao interesse público.
Em tese, soa perfeito. Na realidade, não é o que acontece. Tome-
mos o caso do Estado e da extensa e meticulosa legislação a que se
submete o executivo, em todas as esferas – federal, estadual e muni-
cipal. Cada nova lei que visa impedir a transgressão provoca, para-
doxalmente, a qualiicação dos criminosos e a valorização do crime,
tornando-o mais atraente. O interesse transgressor não cede ante a
nova barreira, mas é levado a soisticar seus procedimentos e reinar
o preparo técnico de seus “operadores”.
O cálculo de custo e benefício acaba compensando, porque, se
o aumento do risco encarece o crime, o preço cobrado a quem con-
trata o serviço transgressor também se eleva, tornando o negócio
mais lucrativo.
Em suma, na medida em que se expande a malha de controle, cres-
ce a disposição de transgredi-la e se aprimora a capacidade de fazê-lo.
O tráico internacional de drogas e o prosaico contrabando, o teatro
das licitações e as leis sobre convênios são exemplos conhecidos.
Depois de ter passado os últimos dez anos atuando nas três esfe-
ras do Executivo, posso dar o testemunho de que o que parece lógico
e quase indiscutível, quando se vê de fora, é irracional e destrutivo,
visto de dentro. É isso, mais do que as diferenças ideológicas, que
explica o choque frequente dos gestores públicos contra membros do
Legislativo, sintonizados com o senso comum das ruas, mas ignoran-
tes das armadilhas do controle normativo (e do aparato institucional
que lhe dá suporte e consequência).

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Reforma do Estado e cultura política

E é por isso que quando as oposições chegam ao governo adotam


as soluções que antes criticavam. Não é uma traição a princípios,
mas a indispensável adaptação a uma realidade imperiosa, que cas-
tra sem piedade a criatividade e a eiciência, produzindo governos
abúlicos sem que a corrupção seja sanada. Um exemplo: as diversas
modalidades de terceirização. Em teoria, trata-se de um mau cami-
nho. O melhor seria que o Estado funcionasse, valorizasse seus pro-
issionais, garantisse condições adequadas de trabalho e gestão. Mas
os governos retrocederiam ou fechariam as portas se tivessem de
renunciar aos convênios que terceirizam, quando não privatizam.
Para falar francamente: governar é quase inviável. Ser eiciente,
no governo, é inviável, salvo nas áreas em que a sobrevivência nacio-
nal abriu picadas para a oxigenação – a Fazenda, o Banco Central e
alguns poucos setores, nas distintas esferas.
O processo de democratização, gradualmente, com o propósito de
prevenir o autoritarismo e de apagar a memória sombria de Leviatã,
amarrou o Estado em uma camisa de força. Atire a primeira pedra
quem assumir a responsabilidade de governar o país sem medidas
provisórias, quem se comprometer a prover os serviços públicos sem
recorrer a organizações sociais, Ocips, ONGs ou aos mediadores in-
ternacionais. Os críticos da terceirização e da privatização não co-
nhecem a realidade – se assumirem o poder estarão condenados a
repetir seus adversários.
A consequência desse argumento deve ser o im de toda regu-
lamentação e de todo bloqueio normativo? Deve ser a capitulação
e a entrega do Estado à voragem privatista? Deve ser o triunfo do
laissez-faire, justamente quando o liberalismo anárquico naufraga,
tragado pela crise mundial, gerada pela desregulamentação irres-
ponsável? Não. Nada disso.
É necessário, em nome da justiça e da democracia, defender o
Estado e fortalecê-lo, mas isso não se faz bradando velhos slogans
e tapando o sol com a peneira. Para revigorar o Estado, impõe-se
transformá-lo, profundamente, liberando-o de amarras artiiciais e
apostando mais na transparência, na mídia livre, na participação so-
cial e nas eleições do que no aparato controlador. Não podemos con-
tinuar nessa via: para proteger a honestidade, estamos alimentando
a corrupção; para salvaguardar o Estado dos interesses privados,
estamos liquidando sua capacidade administrativa.
Agora, o outro lado da moeda: é nesse contexto que devemos en-
tender as dinâmicas em curso na sociedade. O isco sufoca os empre-
endedores. O empregado negocia soluções informais com seu patrão,

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VI. O Social e o Político

porque precisa trabalhar. O pequeno empresário tem de escolher:


dar três empregos informais ou um, formal. As boas instituições são
as que convertem vícios privados em virtudes públicas, e não as que,
inutilmente, se devotam a corrigir os indivíduos. Como julgar as mi-
crodecisões dos milhões de brasileiros que, na selva dos controles
normativos e ante a voracidade da exação iscal, encarando o desa-
io que é sobreviver, buscam opções menos onerosas e mais econô-
micas, sem cometer qualquer crime?
Nesse ponto, creio que todos podemos atribuir o verdadeiro sig-
niicado ao ato de Celso Athayde e MV Bill: negociar, licitamente, os
direitos autorais de um de seus livros com uma empresa legalmente
instituída (o que ela faria em outras áreas de atuação não se ti-
nha como saber) para que ela represente os autores no contrato com
a editora, fazendo com que se tornasse possível recolher impostos
como pessoa jurídica, em vez de como pessoa física. Qual o crime?
Extraordinário o cinismo de setores da grande imprensa. A revis-
ta Veja, por exemplo, célebre por sua “isenção e objetividade” – apli-
cadas numa versão muito peculiar de ambas as qualidades –, abriga
um colunista que se dedica ao esporte do tiro ao alvo – na semana
passada praticou tiro ao negro. Faz um grande sucesso transgredin-
do algumas regras básicas do jornalismo civilizado. Nada original. A
grosseria sempre foi um ilão fecundo para a exploração comercial
e a difusão de valores antidemocráticos. Sobretudo a grosseria chi-
que, blasé, arrogante, elitista e pseudointelectual. O clichê da direita
continua vendendo: por que mudar? A ideia não é essa? Vender e
desmoralizar os adversários sem direito de defesa?
Pois a última rodada de linchamento, promovido pelo arguto es-
criba com aquele conhecido requinte de sadismo – que se compraz
em apontar dedos para sentir-se puro e airmar-se superior –, atingiu
MV Bill e Celso Athayde. Simplesmente, repita-se, porque recorreram
a uma empresa para representá-los em um contrato com uma edi-
tora. Essa empresa, anos depois, tornar-se-ia objeto de denúncias
e investigações. Que responsabilidade poderiam ter, em qualquer
eventual ilícito por ela cometido, aqueles que negociaram com ela,
honestamente, licitamente?
O mais inacreditável vem agora: sabem quem tem contratos com
a tal empresa? A editora Abril, que publica a revista Veja.
Ora, de duas uma: ou todos os que negociaram com a tal empresa
tornaram-se automaticamente cúmplices dos ilícitos que ela porven-
tura tenha cometido, e nesse caso a Editora Abril é tão culpada quan-
to os cidadãos que ela acusou; ou ninguém pode ser acusado pelas

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Reforma do Estado e cultura política

possíveis faltas cometidas por terceiros, só por ter mantido alguma


relação contratual, de forma lícita, com o suposto faltoso. Neste último
caso, aqueles que a revista acusou merecem desculpas públicas.
Essa conclusão é tão clara que mesmo o mais parcial e astucioso
dos jornalistas teria de admiti-la. E teria a obrigação moral de divul-
gá-la. Mas falar em moral nesse ambiente envenenado pela ideologia
e a manipulação arbitrária não faz mesmo sentido. Nosso debate
público anda tão pobre e sujo que mesmo o gesto mais abjeto acaba
naturalizado. Ainda bem que existem os políticos para encarnar todo
o mal. Se não fosse assim, teríamos de discutir ética pública a sério,
sem bodes expiatórios.
Parece claro que a hipótese de Bill vir a ser candidato ao Senado,
mesmo sendo fantasiosa, foi suiciente para despertar a cólera deso-
nesta dos que mal conseguem disfarçar o racismo e o ódio – e/ou in-
veja – que sentem do sucesso de uma liderança popular legitimamen-
te construída e de enorme potencial mobilizador. A doença paranóica
do controle contagia. Use sua desconiança com moderação.

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VII. Direito &
Justiça

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Autores
Luiz Felipe Haj Mussi
Advogado, presidente do Conselho Nacional de Ética do PPS e desembargador federal
do Trabalho aposentado. Foi Secretário da Segurança Pública do Paraná e secretário
extraordinário de Assuntos Fundiários, ambos os cargos no Paraná.

Oscar d’Alva e Souza Filho


Procurador de Justiça do MP/Ce. Mestre em Direito Público pela UFC. Livre Docente
em Filosoia do Direito, pela UVA. Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidad
del Museo Social Argentino (UMSA). Autor de obras jurídicas e ilosóicas. Professor de
Filosoia do Direito da Unifor e e da Escola Superior do Ministério Público do Ceará -
ESMP. Email:oscardalva@uol.com.br

Leandro do Nascimento Rodrigues


Doutorando em Ciência Política – Ipol/UnB

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Mitigando a
presunção de inocência

Luiz Felipe Haj Mussi

I – Introdução

A
nação está constatando indignada o que poderíamos deno-
minar de sedimentação cultural da corrupção. Diariamente a
imprensa nacional divulga a prática constante e habitual de
ilícitos cometidos em face do poder público por cidadãos que ocupam
funções públicas. O que assusta a todos é que os cofres públicos são
objeto de um butim permanente e os assaltantes não são punidos.
Praticam tais assaltos como se fossem inerentes ao exercício dos car-
gos que ocupam. Ficamos com a impressão de que a locupletação
ilícita virou regra.
A nação precisa reagir e apontar soluções.
No meu entender, dois são os principais fatores que consolidaram
essa situação: o exercício permanente de uma velha prática política
que utiliza o Estado como fonte de benefício privado e a certeza da
impunidade.
Os sucessivos episódios pondo a nu o parlamento e o Poder Exe-
cutivo mostram a fragilidade das instituições brasileiras no combate
à corrupção.
Não possuímos instrumentos seguros e ágeis que possam contra-
balançar, de um lado a pronta resposta que o Estado deve dar aos
seus cidadãos e de outro assegurar ampla defesa aos eventualmente
envolvidos.

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VII. Direito e Justiça

A tarefa competiria ao Poder Judiciário, mas este, além de vi-


ver carente de meios humanos e materiais e de efetiva vitalidade de
muitos de seus componentes, está preso a uma legislação arcaica,
extremamente formal e meticulosa, com pesada burocracia e que só
faz retardar a prestação jurisdicional.
Assim, o sentimento de anomia que se abate sobre todos, fazendo
reviver e circular um movimento de desesperança em relação ao Es-
tado Democrático de Direito, tem sua razão de ser.
Porém, cabe àqueles que acreditam no poder sadio das institui-
ções democráticas apontar sugestões, ainda que possam ser acusa-
dos de autoritários ou de apresentar sugestões desrespeitosas aos
direitos civis.
Temos, por dever cívico, de provocar, ao menos, o debate.

II – A presunção da inocência
No que diz respeito à adoção de medidas coibidoras imediatas aos
agentes que, no exercício de atividades públicas, praticam atos de
corrupção, o principal argumento obstativo que surge é a arguição
do princípio constitucional da presunção da inocência.
Com efeito, é da tradição de nosso direito o respeito a esse prin-
cípio universalmente formulado1.
Diz a nossa Constituição [art. 5º, inciso LVII] que ninguém será con-
siderado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condena-
tória. Vale dizer, ninguém pode ser considerado culpado enquanto não
tiver contra si uma sentença condenatória irrecorrível. Sempre defendi
– e continuo defendendo – esse importante fundamento. É básico para
a manutenção do Estado Democrático de Direito.
Mas, convenhamos, o princípio tem por inalidade proteger o in-
divíduo em relação a eventual desmando ou arbitrariedade provindos
de autoridade pública, investida no poder momentaneamente domi-
nante e não o contrário.

1 Todas as constituições brasileiras, com algumas variáveis, inseriram o princípio da presunção


da inocência em seus textos. A conferir: Constituição Imperial de 1824; Constituição Federal
de 1891; Constituição Federal de 1934; Constituição Federal de 1937; Constituição Federal de
1946; Constituição Federal de 1967; Emenda Constitucional nº1/69 e Constituição Federal
de 1988.

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Mitigando a presunção de inocência

Ou seja, tal princípio não se presta a defender a sociedade em re-


lação ao indivíduo inescrupuloso. Temos que fazer uma real distinção.
Sob o ponto de vista da individualidade e da particularidade de cada
cidadão brasileiro ninguém pode acusá-lo de criminoso enquanto não
sobrevir uma sentença penal condenatória da qual não caiba mais
nenhum recurso. É o que o preceito constitucional assegura.
Porém, quando estamos diante da res publica, latu sensu, o
critério da oponibilidade contra todos [presunção absoluta da ino-
cência] deve ceder. E deve ceder porque temos que estar com o
pensamento voltado para a proteção de outros princípios consti-
tucionais, mais relevantes, que dizem respeito ao conjunto da ci-
dadania nacional, tais como o da moralidade, da lisura, da exação
e da transparência no trato da coisa pública. Tais princípios são
republicanos, cidadãos, coletivos e sociais e, portanto, têm prece-
dência em relação aos individuais.
O nosso Estado está, todo ele, desenhado constitucionalmente
para considerar a preponderância da proteção da coisa pública
em relação à proteção individual, quando colididos eventuais in-
teresses. E isso tem uma forte razão de ser, pois cabe ao Estado
velar pelos fundamentos republicanos, tais como, a soberania, a
cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político [art. 1º, CF],
bem como o livre exercício dos direitos sociais, a liberdade, a se-
gurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e
sem preconceitos, fundada na harmonia social, conforme está ex-
plicitado no Preâmbulo da Constituição.
Penso que, no eventual confronto entre ambas as situações [pre-
valência do interesse público ou prevalência do interesse privado]
quando não está em jogo o sagrado direito à liberdade que todo cida-
dão tem, deve prevalecer a primeira.
A prevalência da proteção pública em face da proteção individual
é também regra universal de direito.

III – O impedimento vencível


A ideia, portanto, é mitigar a aplicação do princípio da presunção
da inocência. Aplicar nos casos que envolvam a utilização indevi-
da de recursos públicos o princípio do impedimento vencível, impe-
dindo, de imediato, que pessoas condenadas em segundo grau de

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VII. Direito e Justiça

jurisdição permaneçam exercendo uma função pública ou a ela se


habilite, havendo sido condenado na constância do processo. Que
ique claro: não estou advogando a quebra do princípio da presunção
da inocência.
Porém, há que se impedir, pronta e temporariamente, que aque-
les que sejam condenados pela prática de atos de corrupção, em
segundo grau de jurisdição, continuem a exercer ou venham a exer-
cer funções públicas ou privadas, diretas ou indiretas, de quaisquer
natureza.
Justiica-se a limitação ao segundo grau de jurisdição porque é
exatamente nessas duas instâncias ordinárias que se supera a con-
trovérsia da existência ou não do fato considerado improbo ou ilícito.
As instâncias especiais ou extraordinárias, via de regra, não anali-
sam as questões fáticas.
No caso, não se violaria o princípio do duplo grau de jurisdição,
da ampla defesa, do devido processo legal e do contraditório vez que
estariam esgotadas as instâncias ordinárias. Em regra, as ações refe-
ridas são propostas em juízo de primeiro grau, cabendo recurso das
sentenças para os tribunais de justiça ou federais regionais. Por ou-
tra, aos tribunais superiores [instâncias especiais ou extraordinária]
é vedado analisar matérias meritórias. Nos casos em que o agente
possui foro privilegiado, o marco também seria o esgotamento da
instância ordinária.
Como não possuímos lei que regule a situação, o que se sugere
é que o Supremo Tribunal Federal edite uma Súmula Vinculante
mitigando a extensão e aplicabilidade do princípio da presunção da
inocência, adicionando a ideia do princípio do impedimento vencível,
de tal modo que a sociedade possa impedir, de imediato, o exercício
do cargo público ou de cargo em entidade que receba verbas do poder
público ao cidadão que venha a ser condenado.
O condenado pode até ser candidato, mas se eleito, não toma pos-
se. Só tomará posse quando absolvido ou indo o processo. Se estiver
no exercício do cargo e for condenado, deverá imediatamente dele se
afastar. Só retornará com a absolvição ou inalização do processo.
Aplicado o impedimento vencível, teremos outro salutar efeito:
os condenados procurarão resolver as pendências jurídicas o mais
rápido possível e, não, proceder como hoje procedem: apostar que o
tempo é o senhor da razão.

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Mitigando a presunção de inocência

IV – Proposta
A proposta poderia icar assim sintetizada: publicado o acórdão,
o condenado por ato lesivo ao patrimônio público, em segundo grau
de jurisdição, em processo criminal, ação civil pública, ação popular
ou em ação de improbidade ica impedido de exercer mandato, cargo
ou função de qualquer origem ou natureza, civil ou militar, cuja in-
vestidura decorra de eleição, concurso, nomeação ou indicação, em
qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e
dos municípios, na administração direta ou indireta, nas autarquias
proissionais, entidades sindicais, partidos políticos, organizações
sociais, serviços sociais ou organizações internacionais das quais a
República Federativa do Brasil seja membro.
Como se pode notar a proposta é de larga abrangência. Alcança
todas as entidades, públicas ou privadas que recebam recursos i-
nanceiros do poder público. Foi assim pensada e estruturada para
não excluir nenhum dirigente dessas entidades, que manipulem ver-
bas advindas dos cofres públicos, sejam federais, estaduais, distri-
tais ou municipais.
A edição de uma súmula nesse sentido permitiria uma pronta
coibição, pois bastaria uma reclamação junto ao Supremo Tribunal
Federal para se obter uma decisão imediata não permitindo o acesso
ou a continuidade da gestão do condenado por corrupção.
Possuir uma ferramenta dessa natureza, criteriosamente analisa-
da pelo mais importante tribunal do país, seria um bom recomeço no
combate à endêmica corrupção que estamos vivenciando e um alento
para os que acreditam na seriedade do exercício da função pública.
Eis um bom debate cidadão.

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Os princípios
e a liberdade subjetiva do juiz

Oscar d´Alva e Souza Filho

O
conceito de hermenêutica remonta a Hermes Termegisto, do
antigo Egito, (séc.V antes da era cristã) com quem Pitágoras
e depois Platão teriam conversado acerca da imortalidade
da alma e dos fenômenos ou acontecimentos sobrenaturais, segundo
nos informa Diógenes Laércio, em sua Vida dos Filósofos Ilustres. Até
então, em razão da especialidade de Hermes nas “ciências ocultas” ou
“sagradas”, hermenêutica signiicava tão somente a interpretação que
o grande sábio e mago egípcio fazia das coisas do além túmulo.
Em razão dessa origem a “operação de Hermes” ou “hermenêuti-
ca” por muito tempo signiicou a interpretação dos textos bíblicos e
religiosos, e foi desenvolvida por místicos de todos os matizes.
Convém observar que, por um período bem longo, na Mesopo-
tâmia e na Grécia, a ideia de uma justiça divina ou sobrenatural
serviu de base ou fundamento aos decretos, regulamentos ou leis
das cidades antigas. A ideia divulgada para o povo ensinava que a lei
civil ou nomos traz em si uma verdade religiosa e divina, daí porque
a única atitude que o povo haveria de assumir diante da legislação
seria uma conduta de total obediência. Os povos mesopotâmicos ali-
mentavam a crença segundo a qual a ordem dos acontecimentos do
mundo físico e social era providenciada pelo deus Anu, responsável,
pois, por tudo que ocorria no mundo terreno e celestial. Caso alguém
ousasse desrespeitar os comandos de Anu, teria de haver-se com
Enlil, o deus da tempestade, dos raios e dos trovões, responsável
pela administração do castigo aos que se atrevessem a se opor às
determinações de Anu. Como vemos, à ideia de obediência estava
ligado o conceito de penalidade a quem não anuísse com a vontade
do deus supremo.
A ideologia religiosa, por muitos séculos, serviu de fundamento
justiicador das leis editadas por reis, tiranos, chefes militares e go-
vernantes em geral, que circunstancialmente dominavam o aparelho
administrativo e político do Estado. Daí porque os ilósofos soistas

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Os principios e a liberdade subjetiva do juiz

(os primeiros críticos do Estado e do Direito Positivo) airmaram, no


século V antes da era cristã, que a lei nada mais seria que uma con-
venção dos poderosos. Trasímaco o mais crítico, chegou a discutir
com Sócrates (que acreditava na origem divina das leis), chamando-o
de ingênuo por desconhecer que a lei é a vontade dos mais fortes, em
Atenas e em todas as polis existentes no mundo, conforme registro
da República, de Platão.

Outras interpretações da lei


Além da interpretação religiosa das leis das cidades e de seus go-
vernantes, imprimindo a estas um caráter de respeitabilidade e de sa-
cralidade que muito ajudava a sua aceitação, outras interpretações
advieram, umas identiicando o nomos (lei civil) com o physis (lei da
natureza), no propósito de demonstrar o caráter imutável dos decretos
dos governantes, bem como a sua justiça natural ou cósmica.
A partir desse modo de compreender as leis promulgadas pe-
los governantes, interpretações diversas surgiram procurando de-
monstrar a existência de uma justiça na organização das coisas
do cosmo, uma necessidade contra a qual nada poderíamos fazer,
a não ser a aceitação dessa mesma ordem. A crença de que os
melhores e mais fortes devem triunfar nos céus, nas selvas, nos
rios e oceanos, e também na vida social, foi lecionada por Cálicles,
Tucídides e depois pelo grande Aristóteles, quando afirmou que as
desigualdades sociais provieram da própria natureza. Disse ele na
sua Política: “Foi a natureza quem fez animais grandes e ferozes
e animais fracos e inofensivos, peixes grandes e peixes pequenos,
abutres, águias, condores que se alimentam de aves pequenas
como rouxinóis e andorinhas. É lei da natureza que o mais forte
domine o mais fraco.”
Interpretando o mundo político, Aristóteles diria ser natural
que alguns homens dominem a outros homens, pois alguns nas-
ceram destinados, por sua natureza, ao comando (são homens
melhores, aristós) e outros que não têm a mesma qualidade, são
pessoas inferiores, (idiothés) destinadas a cumprir as ordens de
seus senhores.

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VII. Direito e Justiça

Vozes discordantes da versão oicial


Constata-se ao longo da histórica civil, antiga, medieval, moderna
e contemporânea, que o Direito Positivo, que tem por fonte formal o
Estado e seus governantes, sempre foi explicado, interpretado e
justiicado, de modo que os súditos, cidadãos ou os homens em ge-
ral, tivessem diante dele uma postura passiva de aceitação natural e
de obediência absoluta.
Mas, devemos salientar que essa “orientação” embora dominante,
pois imposta pelos grupos que efetivamente controlam o governo e
o Estado, quase sempre receberam contestação por parte da comu-
nidade dominada, que aqui acolá, consegue traduzir em linguagem
ilosóica, política, poética ou jurídica uma aspiração discordante da
versão oicial produzida pelos grupos dirigentes.
A presença discordante e relutante da população dominada e escra-
vizada é salientada e prevista pelo poeta Teogonis de Mégara, quando
alerta à aristocracia dominante para ter cuidados especiais com a gran-
de massa de idiothés, diz ele:
Ponha teu duro pé sobre o peito do ignaro vulgo./Dá-lhe com a espora de
bronze, faze-o encurvar-se/ante o opressor!/ Não há sob o sol que tudo
vê, nem há neste vasto mundo,/Um povo sequer que voluntariamente
aguente as fortes/ rédeas dos senhores. (SVETLOV, V. in SHCHEGLOV,
A.V. Historia de la Filosoia, p. 12, tradução de Mariza Aderaldo).

O jovem soista Alquidam ou Alcidamante chegou a proclamar


que “a natureza fez a todos os homens iguais em valor e em dignida-
de... foi a lei da cidade (o nomos) que transformou a uns em senhores
e a outros em escravos...”
Seguindo a essa concepção valorativa da lei civil, tida como odio-
sa e injusta, Alquidam e depois Licófron e Antifonte proclamaram a
igualdade natural de todos os homens, pregaram contra a escravidão,
e ainda defenderam a igualdade de homens e mulheres. Lecionaram
ainal que a lei civil deveria ser baseada na lei natural presente na
consciência de cada homem (ethos) e se o nomos não se adequasse
às recomendações da consciência do homem, este não seria obrigado
a respeitá-lo. A disciplina da consciência individual tem primazia
qualitativa sobre a disciplina legal.
Vemos assim, diante de um só fenômeno: a lei positiva criada
pela Polis ser interpretada de três formas diferenciadas: uma herme-
nêutica religiosa, uma naturalista ou isicista e uma outra eticista,
pois baseada na consciência ética do homem.

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Os principios e a liberdade subjetiva do juiz

A versão do governante como hermenêutica literal


A vontade política que triunfou no curso das lutas sociais tem
invariavelmente o privilégio de ditar aos súditos ou aos vencidos,
as leis que prevalecerão no dia a dia da vida social. Por isso se diz
que a lei é a vontade vencedora, ou a vontade dos mais fortes, dos
governantes enim. O governante comunica aos cidadãos, na Grécia
e em Roma, por exemplo, a sua vontade ou o seu poder administra-
tivo e político através de normas legais, obrigatórias, impostas e de
força coercitiva.
O Direito positivado nas leis civis (da cidade), sejam leis que or-
ganizem a vida dos cidadãos, sejam normas penais, comerciais ou
eleitorais geralmente se traduz por normatizações codiicadas pro-
mulgadas pelo governante/legislador.
Muitas vezes (nas monarquias), o governante exerce todas as di-
mensões do poder político, de modo pessoal e centralizado. É admi-
nistrador, legislador e julgador. Seu poder pessoal confunde-se com
o Estado e tem caráter vitalício. Nesses casos, a vontade do rei é a lei
que obriga a todos, menos a si mesmo. Ele pode mudar de vontade e
revogar a lei que criara anteriormente.
Em estágios evolutivos posteriores, o soberano ou imperador de-
lega poderes judicantes a alguns funcionários de sua coniança, mas
detém o poder de recurso ou o poder de graça ou de perdão. Essa
delegação de poderes permite ao legislativo adquirir uma relativa au-
tonomia, como o Senado romano, por exemplo. Mas o conjunto das
leis criadas pelo Legislativo tem que ser previamente aprovado pela
autoridade imperial. Caso seja aprovada, a questão do direito esta-
rá resolvida. A vontade do rei está na lei escrita (positiva) e caberá
aos juízes do império simplesmente aplicar as ordenações reais. Se
a lei é a vontade do rei não deve ser discutida e investigada, pois
está expressa claramente na codiicação. Cumpre aos juízes traduzir
em suas decisões a vontade legal ou real expressa na normatização,
nada mais. Justiniano, ao promulgar suas Institutas, deixou claro,
logo no art. 2º, que: aquele que ousar interpretar qualquer norma des-
tas Institutas, será processado por crime de falsum.
Ficou bem evidenciado o papel judicante de mero aplicador da
lei. O legislador cria a lei e o juiz a aplica, sem discutir seu conte-
údo, sua essência justa ou injusta. A grande característica dos go-
vernos autoritários (que justiicam sua autoridade através da força
militar, econômica e política que manipulam) é o culto à legalidade
que produziram. Quanto mais a lei positiva se airmar sem discus-
são, melhor para o governante autoritário. Por isso mesmo, a única

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VII. Direito e Justiça

hermenêutica que tais governos admitem da parte do Judiciário é a


hermenêutica legal ou literal.
O grande exemplo do autoritarismo legalista se efetivou com a
chamada Escola Francesa da Exegese, defendida freneticamente,
no período pós-revolucionário do Código Napoleônico (POITHIER,
1804) por notáveis, que o Direito está feito, está no Código e que não
cumpre a ninguém trazer dúvidas e incertezas ao Direito Positivo,
através de interpretações.
Essa atitude era compreensível pelo fato das leis serem feitas pelo
Parlamento burguês e os juízes de então (séc. XIX) serem ligados a
uma formação intelectual iluminista e aristocrática. Eram homens
cultos e enxergavam as falhas legislativas da lei criada pelo parla-
mentar burguês (homem de poucas letras como ainda hoje) e quando
dos julgamentos, preenchiam as lacunas e interpretavam a vontade
do legislador, às vezes dando-lhe um conteúdo diferente ideologica-
mente. Por isso, Montesquieu defendia que o juiz deve ser simples-
mente a boca da lei. Somente depois, o Judiciário ganhou a conian-
ça da burguesia que o transformou em Poder do Estado, e passou a
se preocupar inclusive com o resultado inanceiro que as demandas
causariam ao erário.

O momento da hermenêutica principiológica


A evolução das questões compreensivas do ser do Direito permi-
tiu a que chegássemos ao estágio atual, quando o operador do Direi-
to superou a postura legalista e positivista dos Estados autoritários
e a subserviência servil do Judiciário de então, e, buscando uma
identiicação ontológica com o Estado democrático de Direito, vem
desenvolvendo uma hermenêutica nova, hoje denominada de herme-
nêutica principiológica.
Paulo Bonavides, um dos propugnadores dessa nova hermenêu-
tica, assinala que vivenciamos uma nova época, a da superação do
direito-regra para atingirmos o direito-princípio. Em nossa A Ideologia
do Direito Natural (Ed. ABC, 2a.ed. p. 346/347) recolhemos do consti-
tucionalista que:
A Filosoia do Direito e o Direito Natural atualmente convergem no
sentido da renovação da concepção do Direito, e transcendem o po-
sitivismo jurídico clássico (vinculado à sociedade liberal) e, segundo
lhes parece, a presença mais relevante do Direito Natural, exercitando
inluxos sobre os conceitos jurídicos.

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Os principios e a liberdade subjetiva do juiz

Com o novo Direito que se formou à sombra da organização do Estado


Social e da positivação dos direitos humanos, nas três esferas, dimen-
sões ou gerações de direitos fundamentais, é perfeitamente perceptível
a presença e a ação de princípios e valores inspirados no Direito Na-
tural e que explicam o quadro de renovação hermenêutica no campo
do Direito.

Em seguida, o notável professor arremata de modo conclusivo


o seu pensamento:
Hoje, o Direito Natural, por seus valores e princípios, impregna a nova
positividade do Direito que transparece no jus-constitucionalismo
contemporâneo, que caminha do esforço da normatividade em bases
hermenêuticas, que não são os da subsunção e do dedutivismo, mas
da hermenêutica que pondera valores e se exercita na discussão prin-
cipiológica, que é a dimensão da legitimidade, agora, preponderante
sobre a legalidade em termos axiológicos hierárquicos. Daí surgiu a
nova metodologia interpretativa dos conteúdos constitucionais, com
base no emprego do princípio da proporcionalidade.

Pode ser constatada, com facilidade, ante a airmação cabal e


predominante nos dias presentes, da Hermenêutica Principiológica
e da preocupação do operador do Direito com a justiça material e
o Estado democrático de Direito, a superação do velho positivismo
exegético da denominada Escola da Aplicação. Hoje, o direito positivo
ou direito posto, de origem estatal-legislativa, não mais é apresenta-
do como o direito feito, deinitivo, ao qual o operador e os cidadãos
devem se curvar e obedecer.
Diante do caso concreto de um julgamento e ao cotejar uma lei
determinada, o juiz pode e deve, de início, indagar sobre a origem da
casa legislativa que engendrou o diploma legal, (Câmara Municipal,
Assembleia legislativa estadual ou Câmara Federal), sobre a data do
ato legislativo, sobre seu conteúdo social e a propósito da realização ou
não dos ideais humanistas do Estado Democrático de Direito. A partir
daí, pode posicionar-se como ser humano e como cidadão interessado
na felicidade da comunidade jurisdicionada, e inalmente interpretar a
norma legal, diante do caso concreto em julgamento, adicionando-lhe
conteúdos éticos e ideológicos. Pode até mesmo recusar o cumprimen-
to ou a aplicação da lei por inconstitucionalidade ideológica, quando
reconhecer nela um caráter espúrio e antissocial.
Vivenciamos um momento especial da existência do Poder Judi-
ciário, o instante da judicialização do direito legislado, o que signiica
uma recriação do direito pela atividade do julgador.

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VII. Direito e Justiça

Críticas à liberdade de julgar do juiz contemporâneo


A atitude judicante proporcionada pela adoção da hermenêutica
principiológica do Estado democrático de Direito, sem dúvida tem
colocado o juiz de direito no maior espaço de liberdade que já conhe-
ceu em sua história judiciária.
Por isso, os inimigos dessa hermenêutica fazem coro na conside-
ração crítica de que tal atitude poderia incentivar uma postura sub-
jetivista e autoritária, a ponto de comprometer a segurança jurídica,
que é um dos pilares do Estado de Direito. Ora, se o juiz, limitado
pela Escola da Exegese (formalista e positivista) muitas vezes come-
te erros absurdos, muito mais poderia errar, tendo por parâmetros
critérios éticos e ideológicos advindos de sua formação subjetiva. Aí
reside a crítica principal contra a Escola Principiológica e à Escola do
Direito Alternativo, que postula por atitudes judiciais semelhantes.
A defesa dessas duas escolas reside na airmação da necessi-
dade da reforma do Estado e do Poder Judiciário, ambos ainda em
desconformidade com o modelo constitucional de 1988. À medida
que o Judiciário assumisse a sua condição de membro de um poder
representativo da República e não se constrangesse com a neces-
sidade de prestar contas de seu mistér judicante à sociedade civil
jurisdicionada, ganharia com tal exercício mais poder, mais autori-
dade e mais legitimidade.
A ideia é a de que juízes, promotores de justiça, defensores pú-
blicos, advogados e delegados de polícias trabalhem em conjunto sob
a iscalização e avaliação, também, de entidades sociais e comuni-
tárias, pois na verdade seus trabalhos têm a sociedade civil como
principal destinatária. As autoridades judiciárias em geral haveriam
de desempenhar seus papéis sociais junto à própria comunidade a
quem se destinam seus trabalhos. Ninguém melhor que os jurisdi-
cionados para avaliar o desempenho da justiça do Estado. As co-
munidades, através de suas emissoras de rádios, de sua imprensa
comunitária, suas lideranças e associações poderiam sim, ajudar em
muito ao funcionamento da máquina burocrática judiciária e promo-
ver com toda legitimidade a cobrança contra a incrível morosidade
dos julgamentos. Por que não? Democracia não faz mal a ninguém.

Referências
ARISTóTELES. La Política. Traducción directa del griego por Antonio
Tovar, bajo la dirección de Rodolfo Mondolfo. Ed. Bilíngue. Argentina:
Editora Universitária Buenos Aires – Eudeba, 1966.

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Os principios e a liberdade subjetiva do juiz

ADRADOS, Francisco Rodríguez. Ilustración y Política en la Grécia


Clásica. Madrid. Revista de Occidente. Biblioteca de Política y Socio-
logía, v. 03, 1966.
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo: Ed.Saraiva,1967.
DIELS, Hermann. Soistas – Testimonios y Fragmentos. Traducción,
Introducción y notas de Antoni Piqué Angordans. Brugera: Barcelo-
na, 1985.
DHERBEy, Gilbert Romeyer. Os Soista. Lisboa: Ed. Estampa, 2001.
GUTRHIE, W.K.C. Os Soistas. Tradução de João Rezende Costa. São
Paulo: Paulus Editora, 1995
PLATON. La República. Traducción directa del griego por Antonio
Tovar, bajo la dirección de Rodolfo Mondolfo. Ed. Bilíngue. Argentina:
Editora Universitaria Buenos Aires – Eudeba, 1966
MÁyNEZ, Eduardo García. O Direito Natural na Época de Sócrates.
Tradução do espanhol por Oscar d´Alva e Souza Filho. Ed. ABC, For-
taleza, Rio de Janeiro e São Paulo, 2006.
SOUZA FILHO, Oscar d´Alva – A Ideologia do Direito Natural – editora
ABC – 2. ed. – Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo –2008
______. Discurso em torno dos Direitos: Natural, Posit, 2000 (Editado
em português, espanhol, francês e inglês).
______. Tetralogia do Direito Natural. Apresentação do Ministro César
Asfor Rocha, do STJ. Editora ABC – Fortaleza, Rio de Janeiro e São
Paulo, 2008.
______. Ensaios de Filosoia do Direito (temas gregos, medievais, mo-
dernos e atuais). Editora ABC – 2. ed. – Fortaleza, Rio de Janeiro e
São Paulo, 2007.
TEOFRASTO. Os Caracteres Morais (Comentários críticos de Oscar
d´Alva e Souza Filho). Tradução do espanhol por Mariza Ferreira
Aderaldo. Apresentação de Adísia Sá. Editora ABC – Fortaleza, Rio de
Janeiro e São Paulo, 2005.
TORRES, Mas Salvador. Ethos y Polis (Una Historia de la ilosofía
práctica en la Grecia clásica). Madrid: Ediciones Istmo. S. A., 2003.
VASCONCELOS, Arnaldo. Direito e Força (estudo da coação jurídica).
São Paulo: Ed. Dialética, 2003.

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A importância do Judiciário
para a democracia

Leandro do Nascimento Rodrigues

O
Poder Judiciário, como órgão de um Estado democrático
está estruturado em função da soberania popular e tem por
objetivo último o respeito integral dos direitos fundamentais
da pessoa humana. Vale ressaltar que:
[...] diferentemente dos demais poderes públicos, o Judiciário apre-
senta uma notável particularidade. Embora seja ele, por deinição, a
principal garantia do respeito integral aos direitos humanos, na ge-
neralidade dos países os magistrados, salvo raras exceções, não são
escolhidos pelo voto popular (COMPARATO, 2004, p. 151).

O que compatibiliza o Poder Judiciário com a ideia democrática (sob


a ótica de Montesquieu) é o prestígio público, fundado no amplo respei-
to moral, é a legitimidade pela coniança e respeito que os juízes inspi-
ram no povo. Isso é capaz de suprir a ausência do sufrágio eleitoral.
Comparato (2004, p. 151-152) coloca, ao analisar a independên-
cia do Judiciário, que:
[...] o Poder Judiciário em seu conjunto é independente quando não
está submetido aos demais poderes do Estado. [...] Ao contrário da for-
ma como é estruturada a administração pública, os magistrados não
dão nem recebem ordens, uns dos outros. A Independência funcional
da magistratura, assim entendida, é uma garantia institucional do
regime democrático.

A Independência do Judiciário é, por conseguinte, um conceito


que envolve vínculos, ou a ausência destes, entre o Judiciário e ou-
tros componentes do sistema político.
A Independência do Judiciário também pode ser vista como uma
característica fundamental da democracia liberal. Para os países que
estão em transição do autoritarismo ou outros modelos democráticos
menos avançados para a democracia liberal, um dos pontos mais
importantes acerca da independência judicial é como manter e res-
guardar seus requisitos mínimos.

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A importância do Judiciário para a democracia

Assim,
[...] se a transformação de regimes autoritários em direção à democra-
cia liberal levanta a questão das condições mínimas de independência
do Judiciário necessárias para que um regime seja considerado ver-
dadeiramente liberal, o crescimento do poder judicial em democracias
liberais consolidadas e com muito tempo de existência, bem como a
designação das principais responsabilidades do Judiciário em demo-
cracias liberais emergentes ou novas, levanta uma questão oposta de
quão independente um Judiciário forte pode ser independente sem
debilitar a democracia. Aqui, o princípio liberal da independência do
Judiciário vai de encontro ao princípio democrático de Accountability
(RUSSELL, 2001, p. 2, tradução nossa).

Russell (2001) propõe uma teoria geral da independência do Ju-


diciário. O primeiro requisito para tanto é ter clareza analítica e con-
ceitual sobre o fenômeno que está sendo denominado independência
do Judiciário. Desta forma, é preciso indagar se a independência do
judiciário refere-se apenas às relações entre instituições judiciais e
juízes individuais, ou não se deve ter nenhum tipo de relação com
outras instituições, grupos ou indivíduos.
Um segundo requisito é se buscar ideias coerentes do propósito
ou base lógica na Independência do Judiciário. Importante frisar que
esta não é um im em si mesma. Independência do Judiciário existe
para cumprir um importante papel, contribuir para se alcançar rela-
ções estatais mais desejáveis. Outro requisito importante para se al-
cançar uma teoria geral da Independência do Judiciário é identiicar
os principais componentes e elementos desta.
A Independência do Judiciário apresenta alguns signiicados. Tal
expressão tem sido usada na literatura da ciência política para se
referir a dois conceitos. Um destes é a autonomia dos juízes, tanto
coletiva quanto individualmente em relação a outras instituições e
indivíduos. “Usado neste sentido, é um termo relacional que se refere
a características cruciais da relação que os membros do Judiciário
devem ter um com o outro e que o Judiciário como um todo deveria
ter com outras partes do sistema político” (RUSSELL, 2001, p. 6,
tradução nossa).
A Independência do Judiciário também é utilizada para se referir
ao comportamento judicial considerado indicativo dos juízes usufru-
írem de um alto grau de autonomia.
Essas duas interpretações da Independência do Judiciário são
bem próximas. Uma serve como base para a outra.

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VII. Direito e Justiça

Buscamos juízes que usufruam de um alto grau de autonomia para


que possamos pensar e agir de forma independente ao invés de ser
controlado por outros em seu processo de tomada de decisão. [...] A
capacidade de um juiz de ter discernimento e capacidade de julgar
próprios, a segunda interpretação, não gera resultados automáticos
por usufruir de um alto grau de autonomia, a primeira interpretação
(RUSSELL, 2001, p. 6, tradução nossa).

Existem vários pontos críticos na Independência do Judiciário.


Talvez o mais relevante para a proposta deste estudo seja o que diz
respeito à administração dos tribunais. Esta é claramente uma área
em que os princípios de accountability democrática e independência
do Judiciário devem ser cuidadosamente balanceados.
Juízes e tribunais fornecem um serviço público. Numa democracia,
deve existir accountability na forma e eiciência como esse serviço é
fornecido e como os fundos públicos investidos nele são gastos. Legis-
ladores e membros do Executivo, liderados por políticos eleitos, devem
assumir alguma responsabilidade pela administração dos tribunais.
Inversamente, se tal responsabilidade é levada a um ponto em que
autoridades políticas também controlam aspectos vitais da adjudica-
ção, a Independência do Judiciário pode ser duramente enfraquecida
(RUSSELL, 2001, p. 19-20, tradução nossa).

A Independência do Judiciário é algo fundamental para que os


tribunais possam cumprir sua função de controle constitucional, ac-
countability legal e administração da justiça. Autonomia dos tribu-
nais e Independência do Judiciário são necessários para se alcançar
a imparcialidade nos julgamentos e para garantir o avanço do Estado
de Direito e de accountability legal mais efetiva. Autonomia política
em relação a outros poderes é essencial, principalmente na questão
de accountability horizontal.
Entretanto,
da mesma forma que o Judiciário de maneira ideal como iscal dos
outros poderes do governo, é desejável também que os juízes sejam
sujeitados a algum grau de controle político para garantir um nível
de accountability democrática dentro do Poder Judiciário. Isso é ainda
mais importante quando as decisões judiciais têm um impacto políti-
co, uma vez que através de suas decisões os juízes também participam
do processo de criação das leis e função social de controle do Estado.
Desse modo, o objetivo do princípio da separação dos poderes é al-
cançar um grau ideal, e não máximo, de independência institucional
(DOMINGO, 1999, p. 154, tradução nossa).

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A importância do Judiciário para a democracia

O Estado de Direito1 é outro tema central no debate acerca do Ju-


diciário. As principais questões relevantes para o Estado de Direito
estão na preocupação com os mecanismos de accountability, limite
efetivo para o governo e proteção dos direitos. Em termos sociais, o
Estado de Direito traz à tona a necessidade de penetração social e
ixação dos direitos e obrigações dos cidadãos que saíram de um regi-
me autoritário e agora vivem sob a égide de um regime democrático.
Accountability é um dos aspectos do Estado de Direito em que
agentes públicos prestam contas por seus atos dentro de um modelo
legal e constitucional pré estabelecido que delimita poderes e limites
de agentes estatais e órgãos do governo. É neste contexto que o papel
do Judiciário ganha relevância nos empreendimentos contemporâne-
os para se alcançar legitimidade do regime e formas signiicativas de
práticas democráticas.
O Judiciário é a instituição-chave nas incumbências de accounta-
bility legal e controle constitucional. A questão de accountability le-
gal deveria ser dirigida não apenas em termos de quão efetivamente
o Judiciário cumpre suas funções de manter agentes públicos sob
prestação de contas; devemos também direcionar accountability in-
terna para os tribunais. Como estes deverão ser monitorados e con-
trolados? (DOMINGO, 1999, p. 151-152, tradução nossa).

A tradição democrática liberal requer o vínculo entre Estado de


Direito e política democrática. Para tanto, discutiremos a seguir um
pouco mais sobre o Estado de Direito e Independência do Judiciário,
bem como o papel do Judiciário na democracia.
O Estado de Direito refere-se:
[...] às regras estabelecidas de uma natureza impessoal e geral que
ordena a relação entre Estado e sociedade, entre indivíduos na socie-
dade e no interior do próprio Estado. Claramente, o Estado de Direito
é um termo contestado e que desaia uma deinição precisa. Para nos-
sos objetivos, Estado de Direito é tomado como o governo pela lei, com
a lealdade a uma ordem legal previsível e que funcione. O Estado de
Direito ica latente quando o governo é refreado ou reprimido pela lei,
através de limites efetivos da prestação de contas do poder político e
agentes públicos, ordenado num formato constitucional (DOMINGO,
1999, p. 152, tradução nossa).

Podemos dizer ainda que o Estado de Direito refere-se aos me-


canismos de controle nos quais o Estado e os detentores do poder
sofrem limitações e podem ter que prestar contas de acordo com

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VII. Direito e Justiça

critérios normativos estabelecidos (geralmente corporiicado numa


Constituição escrita) com o objetivo de consolidar um governo limi-
tado e responsivo. Existe ainda um outro signiicado para o Estado
de Direito: também se refere a uma proteção signiicativa a certos
direitos.
O Judiciário cumpre duas funções em qualquer democracia: uma
função política, relacionada ao sistema republicado de freios e con-
trapesos2, e uma função legal, baseada em se aplicar a lei e dissolver
conlitos. A efetividade do Estado de Direito baseia-se na existência
de um Judiciário tratando a lei de forma consistente e imparcial.
Consequentemente, a credibilidade do judiciário e a coniabilida-
de de suas decisões derivam de sua independência do poder político
e particularmente do Executivo. Além disso, um Judiciário impar-
cial, atuando como um agente de limitação das autoridades políticas
garante a separação e balanço dos poderes. Dessa forma, trata-se de
uma instituição central de accountability horizontal, complementan-
do os mecanismos de accountability vertical, garantidos por eleições
regulares, justas e livres.
Deste modo:
[...] o papel dos tribunais é central para a consolidação democrática,
uma vez que é o Judiciário que escora o estabelecimento do Estado de
Direito e a accountability legal para normas constitucionais. O Judi-
ciário que realiza as seguintes funções: resguarda a lei e os princípios
constitucionais; provém o espaço para a resolução de disputas entre
indivíduos na sociedade e entre indivíduos e a sociedade, e inalmente,
é parte do sistema para administrar a justiça penal (DOMINGO, 1999,
p. 153, tradução nossa).

A participação do Judiciário na política demonstra-se relevante


para a questão de legitimação e consolidação. Sem mecanismos mi-
nimamente efetivos do Estado de Direito, duas questões importantes
do governo constitucional não estarão completas: primeiro, controlar
o Estado contra o abuso de poder e submeter o governo aos controles
de transparência, accountability e constitucionalidade; e segundo,
prover as condições necessárias para a mínima proteção dos direitos
através de mecanismos judiciais imparciais, previsíveis e acessíveis.

124 Política Democrática · Nº 24

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A importância do Judiciário para a democracia

Referências
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tico. Estudos Avançados. São Paulo. V. 18, n. 51, maio/agosto 2004.
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tin America. In The Self Restraining State: power and Accountability
in new democracies. Boulder: Lynne Rienner Publishers, 1999.
HAMILTON, MADISON, JAy. O Federalista. Coleção os Pensadores.
São Paulo: Abril Cultural, 1979.
MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. Coleção os Pensadores. São
Paulo: Abril Cultural, 1979.
O’DONNELL, Guillermo. Accountability Horizontal e Novas Poliar-
quias. Lua Nova, n. 44, 1998.
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Journal of Latin American Studies, v. 33: 2001.
RUSSELL. Peter H. Toward a General Theory of Judicial Independen-
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ville, 2001.
SADEK, Maria Tereza Aina. Judiciário: Mudanças nem Sempre à
Vista. Cadernos Adenauer, VII, n. 3, 2006.

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VIII. Ensaio

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Autora
Patrícia Rangel
Doutoranda no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB) e
mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
(Iuperj). Assessora parlamentar do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFE-
MEA), é responsável pelas áreas de Trabalho & Previdência e Poder & Política. Sua
linha de pesquisa na pós-graduação é Gênero e Democracia.

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Que poder feminino?
Uma relexão sobre a representação de
mulheres no Legislativo

Patrícia Rangel

E
m 2007, a eleição da primeira parlamentar completou 100
anos. Não é surpreendente que tenha sido obra da Finlândia,
país de excepcional histórico de acolhimento da mulher na
vida política. Infelizmente, na maior parte dos países, as mulheres
tiveram de esperar muito para serem eleitas e a representação femi-
nina não tem progredido satisfatoriamente.
Muitos elementos inluenciam a performance de candidatas que
concorrem a uma cadeira em assembleias legislativas. Contudo, cada
vez mais se destacam a relação entre representação de mulheres e ti-
pos de sistemas eleitorais e as novas interpretações sobre os vínculos
entre as duas dimensões. Mas será que o sistema eleitoral é, por si
só, uma variável suiciente para determinar o sucesso ou o fracasso
das eleições de mulheres para cargos legislativos? Em que medida
fatores culturais, socioeconômicos e outros fatores políticos também
inluenciam a presença feminina nos parlamentos?
O intuito do trabalho é analisar o impacto dos sistemas eleitorais
na eleição de mulheres e apontar outros fatores que possam inluen-
ciar o que chamaremos de feminização das assembleias legislativas,
explorando o modelo analítico proposto por Manon Tremblay em sua
obra Women and Legislative Representation (2007). A contribuição
do artigo se encontra em promover o debate sobre representação,
gênero e política. Como airma Cynthia Enloe (2000), introduzir e

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VIII. Ensaio

aprofundar a questão do gênero nos leva a explorar diferenças po-


líticas enraizadas nas diferenças naturais. A institucionalização de
disciplinas e trabalhos focados em gênero, a conformação de grupos
de pesquisa, a revisão de conceitos e o aprendizado de teorias femi-
nistas fazem parte do esforço de lançar holofotes à existência e ação
social das mulheres, empoderando esses atores políticos.

I – Mulheres e política institucional


Deinindo poder político como a capacidade de tomar decisões e
fazer valer escolhas no mundo público, é patente que as mulheres
ainda não alcançaram uma posição de poder na sociedade. Tal fato
não justiica, entretanto, nem respalda mitos como apatia política
ou desinteresse pelas coisas públicas por parte das mulheres. Como
bem explica Lúcia Avelar (2001), tende-se a considerar participação
somente formas de ação ligadas ao mundo masculino, de classe mé-
dia alta, da população branca. Por isso, diversos tipos de envolvi-
mento das mulheres na política não são reconhecidos1.
Argumenta Avelar (2001) que as diiculdades encontradas pelas
mulheres em função de sua condição não são decorrentes de qual-
quer situação individual ou deiciências particulares: as razões para
a baixa representação feminina são de natureza estrutural. A autora
ressalta que, apesar de toda a militância feminista pela igualdade
na organização política, os ganhos ainda são poucos, uma vez que
a conquista da igualdade formal não é a mesma da igualdade real, e
que a ampliação dos direitos de cidadania é um processo lento.
Cada vez mais a representação feminina tem sido considerada
fator relevante para se analisar uma democracia, e é hoje amplamen-
te aceita como critério para mensurar a cidadania e a igualdade de
oportunidades. Por conta disso, governos e organizações internacio-
nais têm se dedicado a propor e implementar soluções para o pro-
blema. Em 1995, a Conferência Mundial sobre a Mulher das Nações
Unidas estabeleceu um mínimo de 30% como meta mundial de par-
ticipação feminina em casas legislativas. Entretanto, dados da União
Interparlamentar da ONU (IPU, da sigla em inglês) apontam que, 13
anos depois, essa meta foi alcançada em somente 20 Câmaras de
Deputados no mundo.

1 A participação partidária e eleitoral vai desde o ato de votar até apoiar candidatos, passando
por estar no debate político, contribuir financeiramente com os partidos, candidatar-se a cargos
eleitorais e ocupar cargos públicos etc.

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Que poder feminino?

Trabalhos sistemáticos de monitoramento como o realizado pela


IPU (nível de representação alcançado nos parlamentos nacionais) e
pelo International Institute for Democracy and Electoral Assistance
– Idea (adoção de cotas nas casas legislativas) têm contribuído forte-
mente para apontar onde há avanços na área. Segundo a IPU, em feve-
reiro de 2009, havia 18,4% de mulheres legisladoras no mundo, sendo
18,5% das Câmaras Baixas e 17,6% das Câmaras Altas (IPU, 2009).

II – Fatores que inluenciam a representação política


de mulheres
1) Representação feminina e sistemas eleitorais

Diversos autores apontam que um dos fatores que ajudam a com-


preender resultados distintos em países semelhantes é o tipo de sis-
tema eleitoral. Suas características, apesar de não serem decisivas,
inluenciam as chances de elegilibidade das candidatas. Do ponto de
vista da representação formal, podemos considerar os sistemas elei-
torais como o principal mecanismo da escolha dos representantes.
É importante ressaltar que a opção por um sistema eleitoral não é
neutra, pois relete a concepção de representação política de um país
e determina a forma através da qual a vontade do povo será traduzi-
da no Legislativo.
Podemos considerar três grandes famílias de sistemas eleitorais:
sistemas majoritários; sistemas de representação proporcional (RP);
e sistemas mistos. Cada um deles está baseado em uma concepção
de representação política que representa a coniguração da assem-
bleia legislativa no momento. Um estudo realizado com base no ín-
dice da Freedom House em 2005 indicou que a proporção de mulhe-
res em câmaras baixas ou câmara única de 88 países democráticos
se distribuía da seguinte forma: 10,8% em sistemas majoritários,
17,7% em sistemas mistos e 21,1% em sistemas de representação
proporcional. Ou seja, assembleias legislativas formadas com base
em um sistema proporcional acolhem quase o dobro de mulheres que
o sistema majoritário acolhe.
Sistemas majoritários são desvantajosos para a eleição de mulheres
na medida em que cada partido político designa apenas um candidato
por distrito eleitoral, ao contrário do sistema de RP, no qual cada
candidato indica diversos nomes em cada distrito. O sistema de re-
presentação proporcional se fundamenta na noção de “microcosmo”
contida na deinição de representação simbólica. Ele busca reprodu-

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VIII. Ensaio

zir a coniguração da sociedade convertendo votos de cada partido


em assentos no parlamento, estimulando os partidos políticos a pro-
duzir uma lista balanceada que tenha apelo em todos os setores da
comunidade. Consequência direta disso é o favorecimento da eleição
de mulheres.
Apesar de a representação proporcional ser geralmente atrela-
da ao sucesso feminino em eleições, nem sempre esse sistema se
mostra amigável às mulheres. A análise dos estudos da IPU (2007)
sobre a participação feminina nos permite perceber que, apesar
de a maioria dos Estados que possuem mais de 25% de mulheres
parlamentares adotarem a RP, muitos dos países que estão nas
piores colocações também o fazem. Não devemos, portanto igno-
rar a inluência dos sistemas eleitorais sobre as chances de eleição
das mulheres, mas devemos ter em mente que eles interagem com
um amplo arranjo de outros fatores, criando uma dinâmica que in-
luencia a proporção de mulheres parlamentares. Outras variáveis
relevantes podem ser agrupadas em três categorias: culturais, so-
cioeconômicos e políticas.

2) Fatores culturais

Por cultura entendemos os padrões, valores, crenças e atitudes


que permeiam uma sociedade e suas instituições, contribuindo para
deinir como um povo fala, interage, delibera, enim, qual é seu estilo
de vida. A maior parte das comunidades está enraizada em valores
patriarcalistas, sobretudo as sociedades periféricas do capitalismo
tardio, nas quais há forte legitimação de papéis bastante distintos
para homens e mulheres. Esse fato implica numa forte resistência
das instituições partidárias e do eleitorado à participação político-
institucional de mulheres, associadas à esfera privada, às tarefas
domésticas e ao cuidado.
São sociedades transpassadas pela divisão sexual do trabalho,
que perpetua valores machistas no estabelecimento e desenvolvi-
mento de papéis sociais. Para Nancy Fraser, a capacidade destrutiva
dos valores androcêntricos estaria em seu exercício cotidiano e nos
processos de socialização mais básicos de um sistema de crenças
que situa as mulheres em posições de inferioridade. Na maioria dos
casos, a primeira barreira à participação política feminina já aparece
em casa.
Daí a necessidades de se estabelecer normas que condicionem
práticas sociais mais igualitárias, de modo a alterar a cultura políti-

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Que poder feminino?

ca e a mentalidade da população. Os próprios partidos apresentam


resistência à incorporação das mulheres na arena política, dada a vi-
são geral conservadora sobre o papel social da mulher. Aliando-se os
valores patriarcais às variáveis que determinam uma baixa demanda
por candidatos, resulta-se em uma realidade na qual os partidos
não tomam como prioridade a presença feminina em cargos políticos.
Faz-se necessário então desconstruir padrões institucionalizados de
valores culturais que privilegiam as masculinidades e desconside-
ram o que está no escopo do feminino, impedindo o estabelecimento
de uma verdadeira justiça, principalmente no âmbito material.

3) Fatores políticos

Quando falamos em fatores políticos, estamos nos referindo


àqueles elementos que moldam a demanda por candidatos. Há quem
insista que o incremento da participação feminina depende mais dos
partidos políticos do que do sistema eleitoral ou dos eleitores. Para
Araújo & Alves (2007), os partidos de esquerda teriam uma tendência
maior a estimular a participação feminina e a eleger mais mulheres.
Em relação ao âmbito organizacional, procedimentos internos ins-
titucionalizados, regras claras e vida partidária ativa seriam pontos
que incentivam a participação e o recrutamento eleitoral de mulhe-
res. Sobre o sistema partidário, pode-se considerar uma tendência
dos sistemas pluripartidários à estabilidade institucional e, conse-
quentemente, a proporções mais elevadas de mulheres eleitas. Uma
assembleia onde atuam vários partidos políticos, portanto, possuiria
mais chances de eleger mulheres que uma casa bipartidária.
As cotas para o sexo minoritário nas listas eleitorais, por sua
vez, apresentam-se como fator de impacto imediato no processo de
feminização das casas legislativas. Elas funcionam como mecanis-
mos de discriminação positiva para combater o problema estrutural
da baixa participação feminina e corrigir a injustiça do monopólio
da representação masculina e dos interesses desse grupo social
(AVELAR, 2001). A adoção de cotas é um artifício positivo nas estra-
tégias eleitorais, sobretudo quando a política se torna personalizada
e extremamente volátil. Esse artifício foi recomendado pela primeira
vez em 1986 pela conferência ministerial europeia sobre a igualdade,
e hoje é uma estratégia cada vez mais utilizada para reduzir a
sub-representação feminina. Os países que possuem maior número
de mulheres em seus parlamentos são os que desenvolvem leis de
igualdade entre os sexos.

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VIII. Ensaio

4) Fatores Socioeconômicos

Trabalhamos aqui com fatores socioeconômicos enquanto ele-


mentos que moldam as condições materiais que favorecem ou im-
pedem que mulheres se dediquem à política como candidatas. Uma
vez que os partidos políticos recrutam poucas, é natural que as mu-
lheres sejam sub-representadas nas assembleias legislativas. Alguns
acadêmicos argumentam que os partidos não convocam mulheres
por não encará-las como candidatos em potencial. Segundo eles, se
as condições socioeconômicas das mulheres fossem mais elevadas,
haveria um crescimento análogo na presença destas em partidos e
nas casas legislativas.
Relacionadas à falta de condições materiais suicientes estão as
responsabilidades domésticas, variável que pode ser apontada como
um dos principais fatores que impedem as mulheres de se dedicarem
à política. Aproximadamente 30% das legisladoras não têm encar-
gos familiares. Parlamentares mulheres também possuem mais que
o dobro de chances do que os homens de serem solteiras.
Segundo Avelar (2001), a sub-representação política da mulher
deriva da lógica de marginalização social. Na sociedade capitalista,
possui maior valor social o indivíduo que tem maior status ocupacio-
nal. As mulheres acabam por desenvolver menor status social, o que
diminui seu valor social e político. A ideologia do desempenho, base-
ada na tríade qualiicação, posição e salário também gera implicações
diretas nas relações de gênero, de modo a perpetuar a desigualdade
entre os sexos e o mito de inferioridade da mulher.

III – Conclusões
A sub-representação das mulheres é um sintoma do déicit de-
mocrático presente em diversos regimes eletivos. Falamos em déicit
democrático pois, considerando o princípio da representação descri-
tiva, uma assembleia legislativa só é considerada representativa se
sua composição for uma reprodução reduzida da sociedade. Assim,
podemos dizer que existe um déicit de representação em Estados
nos quais não existe paridade entre os sexos nas casas legislativas.
Vimos, neste breve compêndio de ideias, que as regras eleito-
rais inluenciam diretamente as chances das candidaturas femini-
nas. Observamos também que a forma como a sociedade se organiza
materialmente e a cultura têm peso no processo de feminização das
assembleias legislativas. Acredita-se que a política seja uma arena

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Que poder feminino?

predominantemente masculina, pensamento que se relete no baixo


índice de participação das mulheres nesse espaço e reproduz uma si-
tuação de marginalização. As desigualdades entre os sexos são perpe-
tuadas por mecanismos sutis de dominação, que naturalizam e legiti-
mam a diferença e funcionam como o habitus de Bourdieu: disposições
duráveis incorporadas desde a mais tenra infância que pré-moldam
oportunidades e proibições de acordo com condições objetivas.
Nesse sentido, Clara Araújo e Celi Scalon (2005) indicam que, a
despeito do desenvolvimento de uma cultura mais igualitária, as prá-
ticas ainda são exercidas de forma bastante tradicional e certas desi-
gualdades não são percebidas como injustas. Com base num survey
que analisou percepções sobre papeis sociais, as autoras apontaram
que grande parcela da população ainda pensa que existem atividades
distintas para homens e mulheres.
Retomando as perguntas de partida deste trabalho, podemos fa-
zer algumas airmações:
1) Os sistemas eleitorais exercem grande inluência sobre o processo
de feminização das Câmaras Legislativas.
2) Cada tipo de sistema eleitoral possui características que, em de-
terminados momentos, favorece ou prejudica a eleição de mu-
lheres, mas isso não pode ser tomado como uma regra universal
e imutável. Os sistemas de representação proporcional são to-
mados como os mais favoráveis à feminização das assembleias
legislativas, mas em alguns casos, não impediram mulheres de
ter uma performance insatisfatória em eleições. O sistema majori-
tário elegeu mais legisladoras do que o sistema proporcional ou o
sistema misto nos casos da Escócia e do País de Gales. É necessário
afastar generalizações e adotar uma perspectiva microanalítica
capaz de capturar detalhes importantes. Outros autores sugerem
a realização da análise com base em contracategorias.
3) É impossível analisar os impactos do sistema legislativo sobre o
número de mulheres legisladoras eleitas sem considerar as cotas
e a atuação dos partidos políticos.
4) Além dos partidos e das cotas, há outros fatores que interagem
com estes e com o sistema eleitoral e acabam por inluenciar a elei-
ção de mulheres nas assembleias legislativas. Estes são aspectos
culturais, socioeconômicos e políticos. O impacto desses fatores é
maior durante o processo de seleção de candidatos pelos partidos.

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VIII. Ensaio

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Que poder feminino?

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IX. Mundo

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Autores
Sigrid Andersen
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutorada
em Geograia pela Universidade de Aberdeen, Escócia. É professora-adjunta da
Universidade Federal do Paraná atuando nos temas: Políticas Públicas Ambientais,
Socioeconomia e Gestão de Zonas Costeiras e Turismo Sustentável

Jayme Fucs Bar


Economista, morou em São Paulo, onde foi militante do PCB. Há vários anos, resi-
de em Israel.

Marc Lazar
Professor de História e Sociologia Política do Instituto de Estudos Políticos de Paris.

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Novos tempos para
Itaipu e os brasiguaios?

Sigrid Andersen

A
posição do presidente eleito do Paraguai, Fernando Lugo, de
rever as cláusulas do Tratado de Itaipu, desperta a velha ge-
opolítica do Prata de um sono letárgico de mais de 40 anos.
O Paraguai exige o aumento no preço da energia excedente que vende
ao Brasil; liberdade para vender a energia a terceiros países e; a redu-
ção drástica da dívida que lhe coube na construção da hidrelétrica de
Itaipu. Por ter sido uma obra em litígio com a Argentina, Itaipu não
pode ser inanciada por bancos multilaterais de desenvolvimento. Foi
inanciada por bancos comerciais norte-americanos movidos a juros
de mercado; foi originalmente orçada em US$ 3.5 bilhões, custou
aproximadamente U$S 20 bilhões e tem prestações até 2023.
Nacionalismos exagerados, tanto de brasileiros quanto de para-
guaios, são pouco úteis neste momento de integração, de construção
de um bloco sul-americano que melhor se posicione no mundo glo-
balizado e que acima de tudo, dê dignidade de vida à sua população.
Ademais, para entender as demandas do Paraguai há que se consi-
derar os vários elementos em jogo. Não se exige apenas conhecimen-
tos de economia e direito internacional. Requer memória histórica,
em especial, sobre as teorias geopolíticas concebidas por Mário Tra-
vassos nos anos 30, aprimoradas no âmbito da Escola Superior de
Guerra, e postas em prática durante os sucessivos governos milita-
res do Brasil, entre 1964 e 1985. Coube, em grande parte, ao General
Golbery do Couto e Silva a realização da tarefa.

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IX. Mundo

Itaipu foi um projeto geopolítico, por excelência, e concebido com


múltiplos objetivos.
Não visava somente fornecer a energia necessária ao desenvolvi-
mento do “Brasil Potência”, concebido pelos militares. Sua constru-
ção representava a disputa Brasil-Argentina pelo poder regional e a
hegemonia do continente sul-americano, nos anos da Guerra Fria.
Foi construída sob um rio internacional, compartilhado, contíguo e
sucessivo da Bacia do Prata, à montante do território argentino, o
rio Paraná. É na “tríplice fronteira”, formada pelos limites territoriais
entre Brasil, Paraguai e Argentina que Itaipu foi ediicada.
A batalha para a sua construção, travada em bastidores, ocorreu
em pleno exercício das ditaduras militares do Cone Sul, sem divulga-
ção ao grande público. Durante sua construção, a obra protegeu-se
sob a lei de segurança nacional e foi diretamente subordinada ao
governo federal. Seus relexos regionais e internos foram colossais,
correspondendo, em magnitude, aos kilowatts gerados. Dentre os
impactos, a perda territorial, de riquezas naturais e infraestrutura
dos municípios do oeste do Paraná, o que uniu vários políticos e per-
sonalidades do estado pelo pagamento dos royalties de Itaipu.
Na arena internacional, o conlito com a Argentina tomou propor-
ções quase bélicas. Para a construção de Itaipu, Brasil e Paraguai
não consultaram a vizinha Argentina, conforme determinações da
VII Conferência Interamericana (1933) irmada pelos países do Prata.
A Conferência, realizada em Montevidéu, estabelecia o “princípio da
consulta prévia” a todos os países integrantes de uma mesma bacia
hidrográica quando obras hidrelétricas ou outros empreendimentos
fossem nela projetados (CAUBET, 1989). A Doutrina Harmon, defen-
dida pelo Brasil, caracterizou o atropelo diplomático.
Os argentinos poderiam ser prejudicados com Itaipu, pela im-
possibilidade da construção de outras usinas hidrelétricas no rio
Paraná, mais precisamente no nordeste argentino, pela redução do
potencial hidrelétrico. A barragem de Itaipu causou, também, o blo-
queio da navegação argentina nos rios interiores da Bacia do Prata.
A elevação da barragem diicultou as possibilidades de interligação
luvial com outros sistemas, inclusive o Paraná-Tietê. Foi feita sem
eclusas. Com Itaipu e a implantação do corredor rodoviário de ex-
portação (BR-277), a produção paraguaia e boliviana passa a ser
escoada pelos portos brasileiros do Atlântico, com o inevitável esva-
ziamento econômico do porto de Buenos Aires. Quagliotti de Bellis
nomeou esta estratégia, desenhada por Travassos no seu livro A Pro-
jeção Continental do Brasil publicado em 1931, como a “batalha dos

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Novos Tempos para Itaipu e os brasiguaios?

paralelos contra os meridianos”; os paralelos favorecendo a posição


brasileira e os meridianos oferecendo vantagens naturais à Argenti-
na, agraciada com a força centrífuga do Prata (ANDERSEN, 2005).
Militares argentinos ainda consideravam o lago artiicial de Itaipu
(1.460 km²) uma verdadeira “bomba de água”, estimada em dezenas
de bilhões de metros cúbicos, situada acima de seis províncias
argentinas, cinco grandes cidades do nordeste argentino e a própria
capital Buenos Aires. O Acordo Tripartite (1979), ardorosamente
batalhado pela Argentina no campo jurídico e diplomático, permitiu
a compatibilização das usinas de Corpus e yaciretá, também para
regular qualquer acidente artiicial ou natural que pudesse ocorrer
com Itaipu. Não é de se surpreender que generais argentinos mais
desesperados tenham tentado impulsionar, na época, a construção
da bomba atômica naquele país.
O argentino Guglialmelli (1981) revela que, com Itaipu, a Argentina
inalmente admite haver perdido o seu domínio na Bacia do Prata e,
consequentemente, sua liderança continental. Vê, ainda, sua inluên-
cia sobre o Paraguai reduzir-se drasticamente. Lembra que o confronto
com o Brasil seria impossível, dado os fortes laços deste país com os
EUA, já que havia se tornado um satélite privilegiado ou key-country
no campo sul-americano, durante os anos da Guerra Fria. Além dis-
so, confrontar-se com o Brasil, uma respeitável potência emergente em
termos industriais, econômicos e militares deveria ser evitada. Nada
sobrava à Argentina, senão agir pelos meio diplomáticos fazendo uso de
todas as instâncias oiciais regionais e internacionais possíveis.

O “Aprisionamento Geopolítico” do Paraguai


Com Itaipu e os corredores de exportação, dissolve-se a política
externa pendular exercida pelo Paraguai, desde a guerra da Tríplice
Aliança, e consolida-se a hegemonia brasileira sobre aquele país.
A opção do Paraguai pelo desenvolvimento associado com o Brasil,
ou como descreve Kohlhepp (1983), em “converter-se em periferia da
periferia”, cria condições para a penetração brasileira na fronteira
oriental paraguaia.
Um ano após a assinatura da Ata do Iguaçu (1966), o presidente
Alfredo Stroessner altera o Estatuto da Terra do Paraguai que proibia
a venda de terras a estrangeiros, nos 150 km de faixa de fronteira.
A medida é justiicada pela importância da colonização brasileira
para a modernização e o incremento da produção agrícola com a i-
nalidade de fortalecer a economia paraguaia. Em paralelo, oicializa

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IX. Mundo

a venda de terras, libera créditos bancários e reduz impostos aos


colonizadores. Os lucros escusos obtidos pelos membros do partido
colorado, com a venda de terras aos brasileiros, são amplamente
conhecidos.
Migrações massivas de brasileiros acabaram transpondo a fron-
teira do Brasil para ocupar as terras férteis dos departamentos fron-
teiriços de Alto Paraná, Itapua, Canindeyu, Amambay, Alto Paraná,
Caaguazu, Concepción e San Pedro. Laino lembra que, em meados
de 1979, somavam-se 454.500 o número de brasiguaios vivendo no
Paraguai, formado por pequenos, médios e grandes proprietários ru-
rais, fortes cooperativas e grandes companhias do agronegócio. Ali se
instalaram para o cultivo predominantemente da soja, reproduzindo
o mesmo modelo agroexportador aplicado no sul do Brasil. Enquanto
isso, dados do Centro Paraguayo de Estudios Sociológicos aponta-
vam que cerca de 1.100.000 paraguaios saíram do Paraguai, entre
os anos 70 e 80, para buscar sobrevivência como pequenos comer-
ciantes e mão de obra barata, legal ou ilegal, na Argentina e em ou-
tros países do Prata, conigurando um fenômeno sem precedentes na
América do Sul.
Hoje, os brasiguaios são responsáveis por 80% da soja produzi-
da no Paraguai e o acesso aos mercados internacionais é feito, em
grande escala, pela BR-277 e o porto de Paranaguá. No Paraguai,
o movimento nacionalista e campesino se estrutura para reaver as
perdas do passado.

Um imbróglio previsível
As relações Brasil-Argentina foram estremecidas na época, mas
a reconciliação veio sob o marco da integração regional, a partir dos
anos 90, com o Mercosul, a Unasul e outras formas de cooperação
bilateral. Já o embate atual entre Brasil e Paraguai era mais do que
previsível. A eleição do presidente Fernando Lugo interrompe a di-
nastia dos “colorados” que sustentaram o longevo governo ditatorial
de Stroessner marcado pela abertura do país à ocupação brasileira.
Eleito por uma coalizão de forças de esquerda e liberais, a campanha
do presidente Lugo centrou-se na revisão do Tratado de Itaipu e na
reforma agrária no país.
Teme-se que o preço a ser pago pela recusa na revisão do Tratado,
pelo Brasil, possa recair sobre os brasiguaios. A ameaça de expulsão,
seja pela desapropriação oicial de terras para a reforma agrária, seja
pelas invasões de campesinos sin terras, deliberadamente não contidas

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Novos Tempos para Itaipu e os brasiguaios?

pelo governo paraguaio, pode constituir-se em “trunfo” ou “moeda


de troca” do Paraguai para a pretendida renegociação, ainda que o
Itamaraty evite correlacioná-los.
O quadro mostra que as relações Brasil-Paraguai estão mais ata-
das do que se imagina. Até que os dois países encontrem soluções
aos impasses e que se estabeleçam formas mais harmônicas de coo-
peração, continuarão prevalecendo nas fronteiras do Paraná, os so-
nhos visionários de Travassos e Golbery.

Referências
ANDERSEN, S. M. Geopolitics and Ecology in Brazil (1964-1985): The
Effects of Brazilian Geopolitics on the Natural Environments of Ama-
zonia and the Plata River Basin. Tese de doutorado. Universidade de
Aberdeen, Escócia, 2005.
CAUBET, C.G. As Grandes Manobras de Itaipu: Energia, Diplomacia e
Direito na Bacia do Prata. São Paulo: Editora Acadêmica, 1989.
GUGLIALMELLI, J. H. Geopolítica Del Cono Sur. México: El Cid, 1979.
KOHLHEPP, G. Problems of Dependent Regional Development in
Eastern Paraguay, Institut fur Wissenschafttliche Zusammenarbeit,
Printed by Georg Hauser, Metzingen, Germany, 1983.
LAINO, D. Paraguay, Fronteiras e Penetração Brasileira, São Paulo,
Global Editora, 1979.
RIVAROLA. Estado, Modernización Agrícola y Diferenciación Campesi-
na en el Paraguay. Asunción: Centro Paraguayo de Estúdios Socioló-
gicos, 1982.

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Uma terceira via
para a guerra em Gaza

Jayme Fucs Bar

E
xiste, hoje, no contexto da guerra entre Israel e Hamas,
“realidades”. Realidades diversiicadas, onde grande parte
delas estão contaminadas por tendências. Não existe na mí-
dia uma procura de entender a realidade de forma profunda, muito
menos objetiva, muito menos sequer dentro de uma visão humaniza-
dora. O que existe é uma grande lavagem cerebral, manipulação des-
sas “realidades”, em que cada lado usa a mídia como uma efetiva e
poderosa arma de guerra para conseguir ganhos na opinião pública.
A manipulação é total e absoluta, o objetivo é desumanizar o outro
lado como forma de deslegitimar o adversário.
Não devemos cair nessa armadilha da lavagem cerebral de que
“sionismo é racismo”, “ataque nazista” etc ou como “todo Islã é ter-
ror”, “todo palestino quer destruir o Estado de Israel”.
Quem se posiciona com uma postura humanista deverá procurar
ter uma prática e uma linguagem diferente da manipulação desses
dois lados do conlito. Poderia enviar a vocês dezenas de ilmes feitos
em Israel e por seus simpatizantes no mundo onde se “prova”, com
as fotos de mortes, o sangue e destruição dos atentados terroristas
e os foguetes nas cidades de Israel. Poderia também enviar a todos
plataforma do Hamas, do Hezbollah e do Irã onde anunciam de forma
clara a destruição de Israel.
Mas essa não poderá ser a questão principal de nossos discursos,
pois cairíamos na armadilha de um dos lados. Nós, humanistas, de-
vemos estar conscientes em não cair num discurso desumanizador.
Importante entender que não existe um cidadão israelense que não
perdeu alguém próximo no Holocausto, ou num atentado terrorista ou
numa das sete guerras destes seus 60 anos de existência. Assim como
não existe uma família palestina que não perdeu um de seus queridos
numa das guerras com Israel. Isso se chama tragédia humana!
O conceito da guerra Israel-Hamas, aqui no Oriente Médio, não é
como se pensa ou se faz ser entendido como mais uma guerra isola-

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Uma Terceira via para a guerra em Gaza

da. Ela é consequência de uma cadeia de violência que começou na


tentativa de extermínio absoluto do povo judeu pela besta nazista,
continuou na construção do Estado judeu e, em consequência, nas
guerras de 1948, 1955, 1967, 1973, 1982, 2006 e 2008. Essas guer-
ras são uma disputa sem im pelo direito à herança histórica, religio-
sa e cultural de um mesmo território.
A solução para nós, humanistas, em Israel, é a divisão das terras
reivindicadas por judeus e palestinos em dois países e dois territó-
rios, Israel e Palestina (Cisjordânia e Faixa de Gaza), uma trégua sem
vencedores! Basta de mortes! Basta de guerras! Basta de tragédias a
esses dois povos sofridos, judeus e palestinos. Não devemos fazer essa
macabra contabilidade de veriicar de que lado morreu mais ou menos
gente. Cada ser humano que cai em cada lado do campo de batalha é
um ato de tragédia, de autodestruição da espécie humana que jamais
devemos aceitar, nem mesmo uma só morte pelo ato de violência.
Acredito numa concepção de vida que procura uma terceira via,
diferente do capitalismo global (representada pelo atual governo de
Israel) e diferente do fundamentalismo religioso (representada pelo
Hamas, Irã, Hesbollaz, Al Qaeda). Sim, é verdade, não abro mão de
minha inocência. Talvez a única forma de estar lúcido, dentro desse
grande delírio que vivemos neste mundo, é a inocência.
Vocês sabem alguma coisa sobre o Partido Meretz, Paz Agora,
“Hashomer Hatzair”? Não? Porque eles pertencem à terceira via,
são militantes ativos contra a postura bélica de Israel e contra o
fundamentalismo islâmico. Meretz, Paz Agora e Hashomer Hatzair
são eterna oposição a essas duas forças políticas, destruidoras, que
manipulam a opinião publica e conseguem, sob base do poder que
têm nas mãos, criar uma desinformação coletiva, dividindo o público
mundial totalmente massiicado por uma dessas alternativas, como
se fossem essas as “únicas alternativas” viáveis à “realidade” possível
no Oriente Médio.
Vocês sabem alguma coisa sobre os grupos palestinos que lutam
em Gaza contra o fundamentalismo islâmico? Não? Eles existem?
Sim! Claro! E eles também são parte dessa terceira via. A diferença
entre esses grupos em Gaza é que eles não têm a possibilidade de se
organizar ou se manifestar de forma aberta, como os grupos em Israel,
pois vivem em um Estado totalitário e não numa democracia.
Vocês sabem alguma coisa sobre os grupos de árabes e judeus
em Israel que atuam em conjunto pelo diálogo e coexistência? (Newe
Shalom, Sulra, Altenative, Givat Haviva etc) Não? Sabe por quê? Eles
também são terceira via! A mídia não se interessa por esse discurso

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IX. Mundo

humanista de diálogo e paz, pois isso não vende jornais, nem dá Ibo-
pe na TV, e os meios de comunicação estão contaminados por uma
dessas duas alternativas ameaçadoras.
Para nós, humanistas que vivemos em Israel, o conlito e a guer-
ra fazem parte da nossa triste “realidade” de vida. A tendência num
conlito é ver somente um lado, o seu lado, o lugar onde você vive,
porém a nossa luta aqui é outra! Ela é maior ainda, pois temos que
bater de frente contra essas duas forças opressivas, pois neste delírio
do ódio vivido no Oriente Médio devemos estar em estado de cons-
tante consciência frente a uma forte e poderosa opinião publica que
justiica a guerra em Israel. Consciência é saber que mesmo como
minoria vamos fazer escutar nossos gritos e que não vamos abrir
mão de nossa postura e opinião.
Com certeza que vemos “realidades” e aspectos diferentes de mui-
tos de vocês que estão do outro lado do planeta, porém o diálogo é
justo, o ódio não! E o mais importante é saber que a nossa luta aqui
é a luta de vocês, e a luta no Brasil também é a nossa luta, que não
estamos sozinhos e temos que unir todas as forças humanistas em
cada canto desse planeta, criar juntos, através da educação e da
conscientização, uma massa crítica de seres humanos onde cada um
possa assumir responsabilidades sociais e ecológicas no seu espaço
de atuação, organizando manifestações de ativismo, de não violên-
cia. Queremos fazer de nossos atos e ações “realidades” diferentes ao
capitalismo global e ao fundamentalismo religioso.
Nós, humanistas, devemos criar em nossas ações e em nossos
atos a possibilidade prática de criar um novo conceito de vida para
o mundo e para os seres humanos. Queremos uma terceira via de
esperança, que reivindica uma sociedade diferente dessa que vive-
mos hoje, em que a vida seja sagrada e seres humanos tenham esse
simples direito, o de nascer, viver e morrer em paz, com dignidade,
sem guerra e sem violência.
Shalom, Salam, Paz!

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Pós-Socialismo
Por que o vento da crise
varre do mapa a esquerda europeia?1

Marc Lazar

O
resultado das eleições europeias, que penalizou a esquerda,
suscita duas interrogações iniciais: a primeira é sobre o seu
atual estado de saúde; o segundo sobre seu futuro, que já
diz respeito ao pós-socialismo. Delineiam-se duas respostas de sinal
contrário. A primeira relativiza o insucesso e insiste sobre o caráter
particular dessa consulta eleitoral, apelando para a especiicidade
de cada país e recordando que a história da esquerda registra um
alternar-se ininterrupto de ciclos ora favoráveis, ora negativos. A se-
gunda, mesmo reconhecendo a pertinência de tais argumentos, vê
nessas eleições europeias – que já foram precedidas de outras perdas
– uma derrota histórica. E é essa última resposta que devemos levar
em consideração.
De fato, a esquerda reformista teve de engolir nada menos que 16
derrotas, algumas das quais de considerável relevo, que golpeiam as
suas formações mais importantes e emblemáticas.
A esquerda foi atingida não obstante a sua atual colocação – na
oposição, sozinha no poder ou associada a coalizões de governo –
e independentemente da sua trajetória histórica. Como explicar tal
desastre? Reunindo uma série de considerações de fato, de razões
conjunturais e de fatores mais estruturais.
O recorde de abstenções registrado nas eleições europeias deve
ser relacionado ao eleitorado predileto da esquerda: os jovens e, so-
bretudo, as camadas populares e operárias e os eleitores com nível
de instrução mais modesto, que são hoje os mais despolitizados e os
menos interessados na Europa. Os simpatizantes da esquerda que
foram às urnas dispersaram os seus votos. Quem vê na União Europeia
a causa de cada uma das suas atuais diiculdades votou nos partidos
eurocéticos, ou quem sabe naqueles xenófobos e populistas, como
parece tenha sido o caso de uma parte do eleitorado popular. Os

1 Publicado na edição do dia 16/6/09 do jornal italiano La Repubblica.

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V. Mundo

moderados, mais voláteis e incertos que nunca, optaram pelas for-


mações de centro-direita. Os europeus com rendimentos assegura-
dos e um alto nível de instrução, mais abertos ao mundo, preferiram
os Verdes (que progrediram em alguns países, entre os quais a Fran-
ça) achando que hoje os temas prioritários sejam aqueles da ecologia
e do meio ambiente.
Além disso, emergiu um paradoxo signiicativo: longe de favorecê-
la, a crise inanceira e econômica, pelo contrário, fez mal à esquerda,
que era convicta de poder tirar vantagem dela, já que a atual conjun-
tura assinala o im das ilusões sobre os benefícios da economia de
mercado e a ruína do mito neoliberal, com a necessidade de regras
emanadas do Estado e de políticas sociais. O Partido Socialista Euro-
peu não tinha, ademais, encontrado particular diiculdade na apro-
vação de um manifesto comum, e a sua campanha estava focalizada
sobre a Europa social. Também a esquerda radical acreditava que
fosse chegado o seu momento, para fustigar de um lado o capitalis-
mo e de outro o reformismo, réu de todas as traições; ao invés disso,
mesmo tendo feito alguns progressos, no total terá dez deputados a
menos no futuro parlamento europeu. Mas por que não se escutou a
esquerda? Antes de tudo, como escreveu Bernardo Valli no La Repub-
blica de 9 de junho, porque a direita, dando prova de grande pragma-
tismo, parou de se referir ao neoliberalismo – ao qual na verdade a
Europa não havia nunca se convertido – adotando posições protecio-
nistas; e não hesitou em se apropriar dos temas da esquerda.
Além disso – e, sobretudo – a esquerda mostrou uma tendência a
ler o presente através dos óculos do passado, sem colher toda a com-
plexidade dessa crise, reveladora das mutações bem mais profun-
das que atormentam há décadas as nossas sociedades. Crise quer
dizer desemprego, desigualdades sociais crescentes, exacerbação
da pobreza; e, no entanto, ao menos pelo momento, essa crise não
suscitou importantes mobilizações coletivas. Porque se tem medo.
Porque os sindicatos estão debilitados. Porque houve uma evolu-
ção nas relações sociais no interior das empresas. Porque o mun-
do do trabalho mudou. Porque a precarização agora é generalizada.
Em consequência, muitos europeus, deliberadamente ou por força
maior, tentam ainda estratégias individuais de sobrevivência e de
adaptação; e gostariam de se considerar livres e independentes, mes-
mo tendo fortes exigências de proteção. Quanto aos anciãos – cada
vez mais numerosos –, são sensíveis a temas como a segurança e a
imigração; e muitos aspiram refundar a própria identidade. Enim,
por sua vez, também os nossos regimes políticos sofreram uma pro-
funda transformação, em particular com o airmar-se da democracia

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Pós-Socialismo – Por que o vento da crise varre do mapa a esquerda europeia?

do público e da opinião, na qual o papel do líder é decisivo. E é claro


que há uma década, nesse campo, toda a esquerda sofre de um dé-
icit lagrante.
A esquerda reformista não icou nem imóvel nem muda. Recu-
sou-se a recuperar, como faz a esquerda radical, as velhas receitas
do passado; explorou outras vias, tentando voltar-se a outras faixas
de eleitores. Mas de frente a uma direita unida, capaz de propostas
incisivas, decidida a impor uma hegemonia cultural e a responder
à necessidade de identidade que se manifesta nos europeus, apre-
senta-se dividida, na defensiva, sem projetualidade nem identidade,
privada de líder, pouco acreditada, não em sintonia com as trans-
formações em curso. Por isso, a esquerda reformista tem uma prio-
ridade: a de iniciar rapidamente uma relexão aprofundada sobre
os fundamentos e as modalidades do seu reformismo, e analisar a
complexidade das mudanças em curso nas sociedades e nas nossas
democracias. Sob pena do seu desaparecimento.

Tradução de Marco Mondaini.2

2 Professor da Universidade Federal de Pernambuco e, atualmente, faz pós-doutorado no Depar-


tamento de Teoria e História do Direito da Universidade de Florença.

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X. Memória

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Autores
José Serra
Governador do estado de São Paulo. É formado em Engenharia pela Universidade de
São Paulo, possui mestrado em Economia pela Universidade do Chile (1968), da qual
foi professor entre 1968 e 1973. Foi deputado federal (1987-1995) e senador (1995-
2003), ministro do Planejamento e Orçamento (1995-1996), ministro da Saúde (1998-
2002) e prefeito de São Paulo (2005-2006). É autor, dentre outros, dos livros Reforma
Política no Brasil (1993), Manual dos Direitos do Trabalhador e Ponto de Chegada, Ponto
de Partida (2002).

Dimas Macedo
Poeta e critico literário, professor da Universidade Federal do Ceará e membro da Aca-
demia Cearense de Letras.

Ana Amélia de M. Cavalcanti de Melo


Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará.

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Sobre o Instituto Vladimir Herzog

José Serra

E
u iz questão de preparar uma fala a respeito da criação deste
Instituto, que representasse ao mesmo tempo uma visão do
Governo de São Paulo a respeito da pessoa e do papel que
teve na nossa história o Vladimir Herzog. Algo como uma espécie de
documento oicial. Esta cerimônia é um ato, na verdade, voltado para
o futuro, testemunho de uma vontade de contribuir para o que há de
melhor neste país.
É um momento em que reverenciamos a memória do Vladimir
Herzog, o Vlado, como era conhecido por seus amigos – eu nunca o
conheci – associando ao futuro esse empreendimento e pretendendo
marcá-lo com seu nome e, mais ainda, com sua presença. O que este
instituto virá a ser no futuro não depende do passado, mas sim do
que os seus organizadores e futuros colaboradores vierem a fazer.
Eu creio, espero mesmo, que o nome do Vlado sirva como fonte de
inspiração para coisas boas, construtivas, como estímulo para ideias
inovadoras e boas iniciativas.
Além de razões pessoais de seus amigos e familiares, evidente-
mente, reverenciar a memória do Vladimir Herzog se justiica por
motivos políticos e por motivos morais. Do ponto de vista político,
sua morte nas mãos do aparelho repressor do regime militar foi o
marco decisivo no processo de distensão então desencadeado pelo
general (Ernesto) Geisel (ex-presidente da República), pois provocou
uma confrontação decisiva com os setores mais duros do regime,
que resistiam a qualquer forma, por mínima que fosse, de liberalização:

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X. Memória

a chamada abertura lenta, gradual e segura, anunciada pelo governo


militar, que acabava de começar.
Não é à toa, aliás, que vários presos daquele período ouviram den-
tro do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Cen-
tro de Operações de Defesa Interna) a airmação de que o objetivo da
ação repressiva era identiicar e derrubar autoridades supostamen-
te condescendentes com a ação subversiva ao patrocinar pequenos
gestos liberais, como a nomeação do próprio Vlado para a direção de
jornalismo da TV Cultura (de São Paulo). Por certo, as coisas depois
não mudaram de um dia para o outro, as detenções arbitrárias con-
tinuaram, as agressões de tortura contra detidos políticos também,
e prosseguiram os assassinatos – outros assassinatos, inclusive em
1976, mais de um ano depois, em torno daquela famosa reunião de
dirigentes do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) no bairro da Lapa
(em São Paulo).
Mas o fato é que o enorme contingente ajudou a quebrar a espi-
nha dos setores mais radicais do regime e, assim, dar prosseguimen-
to ao lento processo da abertura programada. O clamor provocado
pela morte do Vlado foi também o marco, talvez o mais importante
ao lado das eleições de (19)74, na mudança da forma de expressão
política da sociedade, até então presa em uma espécie de armadilha.
A despolitização, o controle estrito da ação partidária, das manifes-
tações de opiniões e das lutas reivindicatórias parecia deixar espaço
apenas para o conformismo, a omissão, ou para a ação política de
contestação frontal clandestina ao regime. Mas a reação da socieda-
de (em consequência da morte de Vladimir Herzog), que teve na pre-
sença de muitos, de tanta gente no enterro e no culto ecumênico na
Praça da Sé, o seu primeiro grande ato público, mostrou que era pos-
sível fazer oposição e defender a democracia de modo pacíico, quase
silencioso, como exigia o sentimento de luto – mas ao mesmo tempo
(uma oposição) corajosa, irme, clara nos princípios que defendia e
na condenação a qualquer forma de violência como instrumento da
ação política.
E esse marco de resistência contra a ditadura na luta pela rede-
mocratização deve muito à pessoa de Vladimir Herzog, à sua igura
moral. A tortura e assassinato não se justiicam em nenhum caso.
Mas o choque provocado pela morte do Vlado foi ainda maior, por-
que ele não era um combatente clandestino, armado e pronto para a
confrontação. Não era uma ameaça nesse sentido, por mínima que
fosse, para os seus algozes. Era um jornalista, alguém que atuava
abertamente por meio da palavra, que fora detido quando exercia um
cargo de coniança do então secretário da Cultura do Estado, José

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Sobre o Instituto Vladimir Herzog

Mindlin – ou, talvez exatamente por isso, foi encarado como um pe-
rigo para a ditadura.
Era um homem, segundo todos os testemunhos que eu tenho, do
Markun, do Goldman e de tanta gente, afável, de modos tranquilos,
quase sempre sorridente. Não tinha nada de agitador, do polemista,
de líder autoritário. Isto acabou elevando a repulsa moral ao regime.
Não havia mais recuo possível. Se o Vlado tinha morrido vítima da
repressão, ninguém poderia se sentir seguro, pois não havia limites
para a violência da ditadura. O ato na Sé mostrou que havia espaço
para uma oposição moral, intelectual e política ao regime militar – e
que essa oposição expressava os sentimentos da imensa maioria, e
que seria tanto mais eicaz quanto mais ampla e mais pacíica, su-
perando as divisões ideológicas sem perder a irmeza e a clareza do
objetivo comum: a volta à democracia.
O culto e o enterro foram atos de serena coragem, de superio-
ridade moral da sociedade civil sobre um regime antidemocrático e
cruel. O movimento que levaria a ditadura a sucessivas derrotas elei-
torais, ao ressurgimento da luta sindical e, inalmente, à campanha
das Diretas e à eleição de Tancredo Neves. Para não dizer da própria
anistia, da qual eu fui um dos beneiciários depois de 14 anos de
exílio. Aliás, o sucesso eleitoral da oposição, o MDB (Movimento De-
mocrático Brasileiro, antecessor do atual PMDB), nas eleições de 74,
é preciso ter claro isso, havia sido o fator desencadeante da ofensiva
dos setores mais radicais do regime sobre as forças que, dentro da
oposição, pregavam a participação ativa nas campanhas eleitorais,
apesar das intimidações e das limitações às liberdades de palavra.
Uma grande parte da oposição, mais militante, era inclusive con-
trária à participação nas eleições, na perspectiva de que a única saída
era o enfrentamento, era um confronto, algo frontal contra a ditadu-
ra. Mas havia forças que defendiam a exploração das possibilidades
democráticas das eleições então existentes. E, dado os resultados de
1974, passaram a ser essas forças o alvo principal dos ataques dos
setores mais radicais da ditadura. A vítima maior desse momento foi
o Partido Comunista Brasileiro, o PCB, que não pregava a luta arma-
da, que teve muito dos seus militantes presos, torturados e assassi-
nados. Alguns, quero dizer aqui, amigos meus, próximos, pessoais.
A memória de Vlado certamente estava na mente de muitos dos
que levaram adiante, a partir daí, a luta democrática. Sobretudo,
anonimamente. Mesmo porque ele já estava engajado, intelectual e
proissionalmente, naquela mesma direção. Vale lembrar aqui uma
frase escrita por ele numa reportagem que investigou o clima reinante

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X. Memória

no mundo da cultura, no início da década de 70. Vale a pena ler o


que dizia ele. Abro aspas: “O mergulho nas trevas do lamento e da
impotência foi tão profundo que alguns se perderam pelos subterrâ-
neos, icaram na margem ou escolheram as viagens permanentes.
Mas muitos cansaram de lamentar, talvez com medo de se tornarem
tristes heróis de uma guerra acabada. Estão voltando a querer, isto
é, estão recuperando a vontade para voltar a fazer apesar de tudo”.
Isso é o que dizia o nosso Vlado, e voltou a fazer antes mesmo de
aceitar colaborar na Secretaria da Cultura.
No início de 1975, foi convidado para ser uma espécie de editor,
em São Paulo, do jornal Opinião, que foi tão fundamental para a re-
democratização brasileira nos anos 70, para as lutas da redemocra-
tização. Era um semanário criado no Rio de Janeiro pelo Fernando
Gasparian, com apoio de várias lideranças intelectuais, especialmen-
te a de Fernando Henrique Cardoso.
Naquele momento, o eixo de renovação da liderança política e da
efervescência da sociedade civil, inclusive do movimento sindical e
das primeiras organizações de bairro, tinha se transferido para São
Paulo. Vlado passou a se reunir semanalmente com um grupo de
colaboradores, para estabelecer uma pauta de temas que a gran-
de imprensa, ainda sob censura, tinha diiculdades em abordar. Os
mais assíduos, como José Augusto Guilhon (Albuquerque), Francis-
co Weffort, José Álvaro Moisés, revezavam-se com Fernando Henri-
que para publicar, toda semana, editoriais assinados sobre o foco
da conjuntura. As reuniões eram na antiga sede do Cebrap (Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento), na rua Bahia, que chegou, em
outros momentos, a ser palco de atentados. E que teve alguns de
seus pesquisadores detidos, encapuzados e torturados.
O Opinião estava aberto a todas as correntes da oposição e de-
fendia os resultados da eleição de 74 como um fator decisivo no pro-
cesso de redemocratização futura. Mutilado pela censura, ainda as-
sim conseguia publicar o que a grande imprensa não queria, ou não
podia divulgar. Mas para enfrentar a censura não adiantava só se
lamentar, ainda que fosse preciso usar de algum contorcionismo sin-
tático. Vlado encarava o desaio com bom humor e tranquilidade – é
o testemunho que eu tenho. Hesitou, mas não recusou, diante do
convite para dirigir o jornalismo da TV Cultura, onde certamente
imaginava continuar jogando aquele jogo em favor da democracia e
liberdade. Foi substituído no jornal por Paulo Markun, na época um
jovem franzino e, pelo que eu vi nas fotos, dono do maior bigode rela-
tivo com o tamanho do rosto que eu vi na minha vida. Eu disse isso
a ele, ele concordou, de maneira que não pode ser encarado como

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Sobre o Instituto Vladimir Herzog

um reparo. Aliás, o Markun era pouco mais que um menino, e icou


muito marcado por este emprego.
Ele sabe tudo sobre o Vlado. Eu aprendi com ele, inclusive, o
que eu tive de comum com o Vlado, além da tendência à calva. Ele
(o Vlado), como eu, era ilho de imigrantes. Ele mesmo, um imigran-
te. Seu pai tinha um armazém, como o meu pai. Na Europa, viviam (a
família Herzog) onde hoje é a Bósnia, mas durante a guerra fugiram
para a Itália. Vlado virou Aldo, e se passava por italiano, língua que
ele dominou rapidamente, certamente muitíssimo melhor do que eu
e, com isso, na prática, se tornou um imigrante italiano a mais quan-
do chegou ao Rio e, depois, a São Paulo.
Em São Paulo, estudou no Roosevelt, alguns anos antes de mim.
Eu só não sei na verdade, eu me esqueci de perguntar, para que time
ele torcia. Eu não quero nem saber. Palmeiras? Já é demais. Ele gosta-
va sobretudo de cinema, literatura, música e teatro, como eu. O teatro
era uma paixão tão grande que o Vlado arranjou um lugar de igu-
rante, como soldado romano, para assistir de graça às apresentações
no Teatro Municipal. Devo dizer que eu também iz incursões incon-
fessáveis na área do teatro, cheguei até a ser diretor na Politécnica
(Escola Politécnica da USP-Universidade de São Paulo). Seu sonho
era ser crítico de cinema, ou melhor, cineasta, como eu, para retratar
a saga de Canudos, sob o título “Antonio Conselheiro”.
Nos idos de (19)75, havia algo sim de subversivo, no bom sentido
da palavra, quando um jornalista assumia a direção dos jornais da
(TV) Cultura com a seguinte meta - e aqui vou ler palavras do próprio
Vlado, que apesar de tímido, como me disse o Goldman, que o conhe-
ceu bem, era um homem arrojado.
Dizia ele: “Um telejornal de emissora de governo também pode
ser um bom jornal, e para isso não é preciso esquecer que se trata
de emissora do governo. Basta não adotar uma atitude servil”. Vlado
icou menos de dois meses na cheia do Departamento de Jornalismo
do Canal 2, e não conseguiu implementar seu projeto. Sua gestão foi
bombardeada desde o primeiro dia por colunistas áulicos e parla-
mentares a serviço da extrema direita, agindo como propulsores do
conlito nos porões da ditadura, que visava contestar a política de
abertura do então presidente Geisel. E Vlado acabou se tornando o
elo mais fraco desta cadeia.
Foi detido e morto estupidamente na prisão. Ele, que escapou da
guerra, um judeu que sobreviveu às perseguições nazistas e migrou
para um país livre.

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X. Memória

Mas sua morte não foi o seu im. Ele viveu na redemocratização
e, depois de 34 anos, continua vivendo na nossa memória – a prova
é esta noite. Eu, na época de estudante, nos primeiros anos de mi-
litância política, aprendi uma consideração a respeito do presente:
era ver o presente como futuro. Isso é que dá sentido a uma militân-
cia política bastante intensa, bastante agressiva: encarar o presente
como história, e nós estamos fazendo história.
Ao longo dos anos aprendi outra coisa, e a noite de hoje é uma de-
monstração: que o passado sempre erra, e teima em se colocar junto
ao presente. O passado, na verdade, nos trás ao presente, nos ajuda
a entender o presente.
Por isso, depois de 34 anos, ele (o Vlado) continua vivendo na
nossa memória, e continuará com mais razão, na medida em que
esse Instituto for dando os seus frutos.
Que seus amigos diretos, e seus amigos indiretos, como eu, sai-
bam fazer prevalecer em nosso país padrões de desempenho que, in-
felizmente, ainda são escassos entre nós: a tolerância e o respeito na
convivência política, o respeito intransigente aos direitos humanos
individuais, a clareza e a coerência nas propostas e, sobretudo, entre
as propostas e as ações práticas, o mínimo de caráter na militância
política e social, uma visão de médio e longo prazo para o nosso país,
que mire as suas particularidades e seus grandes interesses – por-
que o país tem interesses que são os interesses da sociedade, e hoje
essa consideração parece até subversiva. Que privilegiem não apenas
grandes performances nos discursos, na comunicação, mas também
que as práticas não teimem em contradizer ponto por ponto aquilo
que se prega, aquilo que se diz, aquilo que se alardeia.
Para este Instituto, desejo toda a sorte do mundo. Porque a sorte
do Instituto fará bem a todos nós. E quero me colocar à disposição
como governador de São Paulo e, mais adiante, quando eu não for
mais o governador, para que o Instituto se fortaleça e cumpra o papel
que a sua família, que os seus amigos deiniram.
Conte comigo, Clarice. E contem todos os amigos diretos do
Vladimir e indiretos, meus colegas.

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Permanência de Augusto Pontes1
(1935-2009)

Dimas Macedo

N
o princípio era o verbo. E o verbo, encarnado, fez-se justo.
E o verbo, soberano, se chamava Augusto e de seus ramos,
imponentes, se ergueram as Pontes. E as fontes do saber, em
Augusto, se tornaram densas. Imensas as suas simetrias com o seu
prenome, posto que Francisco antecedia Augusto e posto que Augus-
to precedia a Pontes.
E Augusto Pontes, para todo o sempre, em rendas de opala, tinha
a fala mansa e o olhar agudo. E era quase-surdo, o nosso persona-
gem, para as vilanias. Se queria a dúvida e a pluralidade do conheci-
mento. E o seu argumento, quase-que socrático ou paripatético, se
fazia ascético, em tudo; e em quase-nada era viperino.
Augusto era divino num ponto: aquilo que o ligava ao próximo,
em grau de amizade. E a felicidade, para ele, consistia nisto: a vida,
enquanto sinergia, é o que pensamos, posto que o mundo, feito nor-
ma pura, é expressão da arte.
Em parte, era um grego; e na outra parte, o rapaz latino era
um andarilho irresignado. E mais do que amado, com o passar do
tempo, se tornou um mito. E meio sem soberba tinha a alma acesa
de hilaridades.
Era polifônico e mais do que irônico o nosso grande Augusto.
E sempre dava susto, na ilosoia, com suas estocadas. E não con-
descendia, em quase-nada ou tudo, com a ignorância. Ou quando
se ingia, em grau de sonolência, quando conversava.

1 Augusto Pontes: formado em Jornalismo na UnB, onde foi professor de Comunicação, foi se-
cretário de Cultura do Ceará (Governo Ciro Gomes), publicitário, editor na Rede Globo, guru
de várias gerações, incentivando cabeças para a música, literatura, jornalismo e artes plásticas.
Esteve nos bastidores dos movimentos culturais que sacudiram Fortaleza, dos anos 1960 a 1990,
idealizando festivais, gravação de discos, edição de livros, poeta parceiro de Ednardo, Fagner e
Rodger Rogério. Foi militante e dirigente estadual do PCB, nos anos 1960/70, estando ligado ao
Centro Popular de Cultura, da UNE, no período anterior ao golpe de 1964, sendo preso e sofrido
perseguições.

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X. Memória

Inventou, na mocidade, a Massafeira Livre e a Scala máxima


da publicidade. E era a claridade, como marqueteiro, em coisas da
política.
Vivia qual um Buda. E era franciscano e professor de música e de
ilosoia, posto que bebia na contracultura a sua sapiência.
Em grau de consciência e de coisas da ciência ou da literatura,
tudo ele sabia. E não se permitia, o soberano augusto, viver sem
liberdade.
Era largo o seu peito, tal como um protesto armado contra tudo.
Fez-se um grande escudo, em terras de Iracema, do socialismo e da
linguagem pura, mas a certa altura ixou um ponto e se tornou o
novo Príncipe da Cultura.
As ruas, no entanto, e o ágora da cidade mais o acolhiam: os
bares, os clubes de conversas e as casas de ensaio.
E no mês de maio, de 2009, fez-se a overdose em noite que cho-
via. E deu-se a hecatombe, no dia em que seu nome, de morte se
encantava, posto que pairava, sobre Fortaleza, uma nuvem densa,
posto que imensa, para o todo sempre, foi a sua perda.
E mais do que acesas resultaram as chamas do conhecimento.
E posto que o momento, mais do que augusto, é belo e sacrossanto,
que se erga um brinde, em grau de melodia, à sua memória. E que
se faça um corte, ressalvando a morte de Augusto Pontes: a) qual a
mais solene; b) qual a mais perene de todas as vidas.

Sociedade dos Poetas Vivos, Fortaleza-CE, 29/05/2009.

162 Política Democrática · Nº 24

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Escritores combatentes:
o Congresso de Escritores de 19451

Ana Amélia de M. Cavalcanti de Melo

E
m janeiro de 1945, seria realizado em São Paulo o I Con-
gresso Brasileiro de Escritores, organizado pela Associação
Brasileira de Escritores. A relevância do encontro no âmbito
do processo de redemocratização tem sido apontada seja em estudos
referentes à história do PCB ou sobre a trajetória de alguns inte-
lectuais brasileiros. No entanto pouco tem sido pesquisado sobre a
organização da associação que convoca este e outros Congressos de
Escritores que se realizarão seguidamente e que serão palco de in-
tensas disputas.
O Congresso reuniria delegados de diversos estados brasileiros.
Podem ser citadas a modo de exemplo algumas representações im-
portantes como Graciliano Ramos e Aurélio Buarque de Holanda de
Alagoas, do Ceará estaria presente Raquel de Queiroz, Raimundo
Magalhães e Herman Lima. O Distrito Federal, teria sua represen-
tação composta de vinte membros tais como Affonso Arinos, Apa-
rício Torely, Augusto Frederico Schmidt, José Lins do Rego, Moacir
Wernneck de Castro, Manuel Bandeira, Sergio Buarque de Holanda
etc. Do Estado do Rio com Astrojildo Pereira, de São Paulo com Caio
Prado, Antonio Candido, Mário de Andrade, Monteiro Lobato e várias
delegações estrangeiras da França, Suíça, Inglaterra, Rússia, Áus-
tria, Itália, Espanha, Portugal, Alemanha, Grécia, Estados Unidos,
Canadá, República Dominicana, Paraguai, Panamá e México.2
A abertura faz-se oicialmente com o discurso do presidente da
sessão de São Paulo, Sérgio Milliet no qual airma as sérias diicul-
dades da realização do encontro, não apenas pelas comuns questões
financeiras, mas pelo desinteresse da categoria. O discurso, no
entanto, faz apelo as responsabilidades do escritor frente ao mundo.
No mesmo sentido é pronunciado o discurso de Aníbal Machado,

1 Texto apresentado no XXVIII Congresso Internacional da Associação de Estudos Latino-Ameri-


canos – Lasa2009 / Repensar as desigualdades, 11-14 de junho 2009, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro(PUC/RJ).
2 Anais do I Congresso Brasileiro de Escritores. São Paulo: Imp. Graf. da Revista dos Tribunais,
1945.

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X. Memória

presidente do diretório nacional da Associação Brasileira de Es-


critores (ABDE), enfatizando o papel do escritor na vida nacional.
O destaque dos dois principais discursos torna claro o propósito do
congresso. Entretanto o direcionamento político do evento não se faz
sem tensões e resulta da hegemonia de certas forças que interessa
aqui estudar.
A ABDE, esta associação de classe, se por um lado seria fundada
com o objetivo de reletir sobre temas especíicos do ofício de escritor,
entretanto ao se propor no Congresso de 1945 uma pauta de dis-
cussões em torno da democratização da cultura e liberdade criativa
coloca-se como espaço de discussão da política nacional. A própria
atuação dos intelectuais nesta década será fortemente marcada pelo
resgate da questão da liberdade como essencial na vida política. Este
será o tema que, segundo Berenice Cavalcante, dará sentido as pa-
lavras formuladas nesse momento.3 Os intelectuais que se reuniriam
no Congresso de 1945 percebem-se como portadores de um papel na
sociedade que se relaciona à ação pública, ao mundo da política.
Segundo as declarações de Jorge Amado, presidente da delega-
ção baiana da ABDE e um dos vice-presidentes do Congresso, ele
fora chamado pelo PCB para desempenhar a “tarefa” de ajudar na
organização do conclave. Os delegados da Bahia eram Homero Pi-
res, Odorico Tavares, Dias da Costa, Alberto Passos Guimarães, Ja-
mes Amado, Edson Carneiro, Jacinta Passos, Vasconcelos Maia etc.
Segundo o escritor baiano duas correntes se debatiam no plenário:
os democratas e os comunistas. O grupo dos democratas era com-
posto por liberais, democratas cristãos e sociais democratas além
de comunistas não alinhados como Caio Prado Jr., Mario Schen-
berg e obedeciam “à batuta” de Carlos Lacerda que havia rompido
com o PCB em 1942.4
O momento era de absoluta necessidade de deinição no cam-
po ideológico. Esta atmosfera tem na literatura o melhor exemplo.
A atualização formal que se izera nos anos 20, fora, na década
de 30, inteiramente absorvida. O anticonvencionalismo tornara-se
não mais uma transgressão, mas um direito amplamente praticado
e muito bem recebido.5 O momento era o de revolver o conteúdo,
atualizá-lo no sentido de uma crítica social feroz.

3 CAVALCANTE, Berenice. Certezas e ilusões: os comunistas e a democratização da sociedade


brasileira. Rio de Janeiro: Eduff, 1986.
4 AMADO, J. Navegação de Cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 1993.
5 A afirmação é feita por Antonio Candido, “A Revolução de 1930 e a cultura”, Novos Estudos
Cebrap, São Paulo, v. 2, 4, p. 27-36, abril 1984, p. 30.

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Escritores combatentes: o Congresso de escritores de 1945

Os escritores além da Torre de Marim


A fundação da ABDE é sintomática dessa postura dos escritores.
Além disso, a entrada do Brasil na guerra nesse mesmo ano criava
um grande apelo nacional de mobilização dos ânimos no combate
ao facismo. Esta seria também a postura dos comunistas brasileiros
seguindo a orientação internacional. A luta democrática, vencida a
guerra, continuava a ser uma bandeira defendida pelos intelectuais
brasileiros organizados em torno da ABDE. A realização do I Congresso
de Escritores no Teatro Municipal de São Paulo seria marcante como
um dos eventos políticos mais importantes do período. O Congresso
é encerrado com a leitura e aclamação de uma declaração em defesa
da liberdade e da democratização da cultura.
Entretanto, apesar do consenso em torno de questões mais gerais,
a politização da ABDE gerava certas tensões e conlitos. Para alguns a
Associação deveria manter seu caráter de uma entidade meramente de
escritores. Nessa perspectiva é criada a UTI (União dos Trabalhadores
Intelectuais) com o sentido de aliviar a ABDE das demandas políticas.
Astrojildo Pereira seria seu presidente provisoriamente.
Destes escritores o exemplo de Graciliano Ramos é bastante sig-
niicativo da tensão existente neste momento em torno da função do
intelectual na vida política brasileira e das tensões que se estabele-
cem no interior da ABDE. Na biograia de Graciliano os anos 40 são
assinalados por uma participação na política de caráter muito mais
acentuado do que fora até então e com um grau de repercussão na-
cional que ele nunca conhecera. A homenagem realizada no Rio de
Janeiro, em 1942, pelo aniversário de seus 50 anos, com a participa-
ção de inúmeros intelectuais, políticos e escritores, conirmaria sua
consagração. Graciliano tornara-se um homem público cuja opinião
e inserção em atos políticos era importante. A compreensão que teria
dessa sua nova situação continuaria sendo marcada pela discrição
absoluta. No processo de ebulição democrática que se iniciava no
país, Graciliano integrar-se-ia às campanhas pela anistia aos presos
políticos e pela convocação da constituinte.6 Seria nesse luxo de
acontecimentos políticos do ano de 1945 que Graciliano se tornaria
membro do Partido Comunista Brasileiro.
Dentro do PCB o escritor mantinha-se iel às diretrizes internas,
considerando que, um indivíduo, ao iliar-se a qualquer partido, tacita-
mente estava de acordo com o que fosse estabelecido.7 À airmação
feita pela ilha do escritor deve-se acrescentar, no entanto, outras

6 RAMOS, Clara, Cadeia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992, p. 166.


7 Ibid., p. 169.

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X. Memória

circunstância de sua vida. O próprio conlito que teria com as lide-


ranças do PCB, quando inicia a elaboração das Memórias do Cárce-
re, indica que o grau de aceitação parece não ter sido total. Preva-
lecia a necessidade de independência que não via na iliação dever
de obediência.
A experiência da cadeia certamente redeiniriam a visão política
do escritor, acentuando um conlito interior entre a necessidade de
atuar na política do país, a participação na construção dos rumos
da sociedade brasileira e o sentimento de ceticismo e dúvida perma-
nente que lhe subtraía a vontade de atuar efetivamente. Diria em
Memórias do Cárcere:
Se todos os sujeitos perseguidos izessem como eu, não teria havido uma
só revolução no mundo. Revolucionário chinfrim. Desculpava-me a ideia
de não pertencer a nenhuma organização, de ser inteiramente incapaz de
realizar tarefas práticas. Impossível trabalhar em conjunto. As minhas
armas, fracas e de papel, só podiam ser manejadas no isolamento.
Realmente não me envolvera em nenhum barulho, limitara-me a
conversas e escritas inofensivas, e imaginara ficar nisso. A con-
vicção da própria insuficiência nos leva a essas abstenções; um
mínimo de honestidade nos afasta de empresas que não podemos
realizar direito.8

À parte as atividades do partido, o escritor seria um dos mais


ativos participantes da ABDE. Graciliano não pudera participar do
Congresso de 1945, mas acompanhava e integraria suas atividades.
Com o PCB novamente na ilegalidade em 1947, seus membros
buscariam outras formas de inserção política no país. A ABDE seria
uma dos órgão preferidos, uma vez que dela participavam diversos
escritores que pertenciam ao partido, além de ser ela uma organiza-
ção caracterizada por uma atuação importante na política nacional.
No segundo semestre de 1947 seria realizado o II Congresso dos es-
critores e este seria o momento de dar maior ênfase à atuação dos
comunistas na associação. A questão fundamental, apresentada no
congresso pelos escritores comunistas, entre eles Jorge Amado, seria
a da aprovação de uma moção contra o fechamento do PCB e contra a
caça aos seus parlamentares. Ao querer priorizar essa moção, alguns
dos membros da Associação opuseram-se. A contenda que se esta-
beleceria revelava, na verdade, um outro conlito que se desenvolvia
dentro do partido. Por um lado havia a necessidade de atuação dos
comunistas, postos na ilegalidade, a partir de outras vias que não a

8 Memórias do Cárcere. São Paulo, Círculo do Livro, s/d. p. 36.

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Escritores combatentes: o Congresso de escritores de 1945

partidária; por outro existiam divergências entre os membros do par-


tido com relação ao dogmatismo. A estes conlitos somava-se ainda o
desagrado dos não comunistas frente à transformação da ABDE em
órgão de representação do PCB. Graciliano, apesar de discordar do
estreito sectarismo que em muitos casos se impunha, sobretudo nas
questões literárias, apoiaria os comunistas.9
Dentro desse quadro, a participação dos comunistas na ABDE,
sobretudo o interesse do partido em dirigi-la, seriam vistos com de-
sagrado pelos outros membros da associação. Graciliano Ramos, em
1947, durante o II Congresso, seria consultado sobre a possibilidade
de assumir a Presidência da associação uma vez que seu anterior
presidente, Guilherme Figueiredo, havia renunciado por divergên-
cias ideológicas com o PCB. Graciliano recusaria o convite.
Apesar de todas as divergências com relação à política cultural do
PCB, Graciliano manter-se-ia em suas ileiras e chegaria, por duas ve-
zes, nos anos 51 e 52, a presidir a ABDE, já deinitivamente controlada
pelo PCB. Seria precisamente como representante dessa instituição que
o escritor seria convidado à URSS para os festejos de 1º de maio.
Durante a realização do Congresso em 1945 a expectativa difun-
dida na imprensa era do papel dos intelectuais na condução da so-
ciedade. Falava-se na missão dos escritores reunidos no Congres-
so.10 De acordo com Werneck Sodré, em suas memórias, a ditadura
já incapaz de impedir a realização do evento, impediria a divulgação
na imprensa das declarações inais.11
Não obstante, o evento se transforma em um acontecimento polí-
tico marcante assinalando o início do processo de redemocratização.
Os intelectuais assumem à cena política trazendo à tona uma das
teses em debate: “O apolitismo dos intelectuais”, de Osório Borba.
No parecer lido por Astrojildo Pereira airma-se: “A tese em apreço
examina os aspectos mais expressivos de tão debatido problema da
posição dos intelectuais em face das questões de ordem política, e com
razão airma que o chamado ‘apoliticismo’ dos intelectuais “é apenas
uma posição conformista, fuga a um dever elementar de cidadania”.12

9 MORAES, Dênis, O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: José Olym-
pio, 1993, p. 248.
10 Jornal do Brasil, 23 de janeiro de 1945.
11 SODRÉ, Nelson Wernneck. Memórias de um escritor. Rio de Janeiro: Civilização. Brasileira,
1970, p. 335.
12 Anais. Op. cit. p. 145.

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X. Memória

Referências
LEME, MARIO (org.). Plataforma da Nova geração. Porto Alegre: Ed.
Livraria Globo, 1945.
HALLEWELL. Carlos Laurence. O livro no Brasil: sua história. São
Paulo: T. A. Queiroz/Edusp, 1985.

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XI. Vida Cultural

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Autores
Aldrin Moura de Figueiredo
Professor e pesquisador da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará e
do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia

Moema de Bacelar Alves


Historiadora. Pesquisadora vinculada Grupo de Pesquisa em História da Arte na Ama-
zônia e ao Fórum Landi da Universidade Federal do Pará

Aline Maria de Carvalho Pagotto


Mestranda na Unesp, campus Franca.

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Arte, poesia e abolição no Grão-Pará

Aldrin Moura de Figueiredo


Moema de Bacelar Alves

O
s primeiros historiadores da arte na Amazônia procuraram ir-
mar o ano de 1888 como o principal marco das origens da
“história” da arte no extremo norte do Brasil. Estavam em jogo
os valores da liberdade e da abolição assim como os signiicados da
crença republicana, cultivados, em larga medida, a partir da década
de 1890.1 A literatura, no entanto, precedeu as artes visuais quan-
do o tema foi a luta pela liberdade e o engajamento no movimento
abolicionista na Amazônia. Nesta atividade, seria difícil encontrar
concorrente para Luiz Demétrio Juvenal Tavares (1850-1907). Para-
ense de Cametá, veio para Belém, ainda moço, estudar no Seminário
de Santo Antônio a im de seguir a carreira sacerdotal. Sua ativida-
de política e a vocação literária, no entanto, parecem tê-lo desviado
da missão. Ainda no seminário, mostrava sua veia nacionalista: era
1870, ano em que publicou no Liberal do Pará, na sessão “A
pedidos”, um poema exaltando a vitória do Brasil na Guerra do Pa-
raguai.2 Dois anos depois, após saber a notícia da morte do pai,
saía do seminário para trabalhar como professor de francês. Os tem-
pos eram difíceis e o poeta revelava-se descrente, inclusive em seus

1 BRAGA, Theodoro “A arte no Pará, 1888-1918: retrospecto histórico dos últimos trinta annos”.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Belém 7: 149-159, 1934.
2 SALLES, Vicente. “Luiz Demétrio Juvenal Tavares: cronologia”. In: TAVARES, Juvenal. Serões
da Mãe Preta: contos populares para crianças. 2. ed. Belém: Secult, 1990 [1897], p.14. Sobre
este contexto paraense ver BEZERRA NETO, José Maia. “Nos bastidores da guerra: fugas escra-
vas e fugitivos na época da Guerra do Paraguai (Grão-Pará: 1864-1870)”. História e Perspectivas.
n. 20/21, 1999, p. 85-104.

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XI. Vida Cultural

versos. O ano seguinte, 1873, prenuncia a grande virada em sua


vida, com uma série de acontecimentos-chave para o campo literário
paraense. Neste ano, sai o seu primeiro livro – Pirilampos, reunindo
poemas antigos que evocam a sua descrença e revolta com as “coi-
sas da vida”. Também ingressa definitivamente no jornalismo como
redator do jornal A Tribuna, periódico que icou famoso por exercer
uma postura nacionalista extremada e, cuja primeira façanha, foi ter
reletido e divulgado no Pará as ideias da I Internacional Socialista.
Não tardou para que Tavares se declarasse neste mesmo ano “livre
pensador”, começando sua carreira como um vigoroso polemista.
Viveu entre Belém e Cametá nos anos de 1875 e 1881, ano em
que ingressou na redação do Diário de Notícias. É a partir daí que
começou a aparecer o pseudônimo que vai torná-lo famoso – Mephis-
topheles, com o qual o jornalista passa a assinar muitos artigos que
vão da crítica ao humor, da polêmica à reflexão política. O passado
como “tribuno” refletiu-se bastante em seu decidido engajamen-
to nas campanhas abolicionista e republicana. No ano seguinte,
contudo, ele não estaria mais no Diário e, João Campbell, seu
ex-patrão, o atacaria no periódico A Troça. Juvenal Tavares passa
então a editar sua própria gazetilha, chamada O Papagaio, de-
monstrando sua qualidade de falador, em alusão e homenagem ao
célebre panfletário maranhense Vicente Ferreira Lavor Papagaio,
que ganhou fama no contexto da Cabanagem. 3 Quase imediata-
mente, o jornal, publicado semanalmente, foi considerado à época
“como o mais espirituoso jornal caricato que tem aparecido nesta
cidade, quer no texto, quer nas gravuras”.4 Em 1885, ingressou
na redação de A Província do Pará, onde permaneceu pouco menos
de um ano. Retornou ao Diário de Notícias em 1886 e na redação
do jornal ocorreu o feliz encontro com o jovem Antônio de Pádua
Carvalho (1860-1889), uma relação que daria muitos bons frutos
e provocaria a maledicência opositora, com uma acusação pública
do relacionamento homossexual entre os literatos.
No período entre 1886 e 1889 – ano de morte de Pádua Carva-
lho –, a convivência dos dois jornalistas imprimiu uma face impor-
tante ao Diário de Notícias. O jornal continuou politicamente com-
bativo, o que não impediu que as facetas poéticas dos redatores
viessem à tona. Note-se que as preocupações sociais apresentadas

3 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. “Páginas antigas: uma introdução à leitura dos jornais paraen-
ses, 1822-1922”. Margens. V. 2, n. 3, 2005, p. 245-266.
4 Até hoje não foi possível localizar um único exemplar desse jornal. O Papagaio, periódico
semanal, teve o seu primeiro número lançado em 10 de agosto de 1882. Cf. BIBLIOTECA
PúBLICA DO PARá, Jornais paraoaras: catálogo. Belém: Secult, 1985, p. 89.

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Arte, poesia e abolição no Grão-Pará

por ambos, em seus discursos abolicionistas, irão se revestir num


profundo interesse por tudo que era “popular”. Esse termo, sacrali-
zado na imprensa e na literatura, foi uma constante nesses intelec-
tuais. Defender a causa popular também era registrar seus costumes
e suas tradições. Em 1888, dedica “aos proletários do Pará” o livro
de poemas A viola de Joana, contando a história de uma escrava que
vive a experiência da libertação. Numa nota ao leitor acrescenta:
“A minha heroína é uma icção; mas uma icção que exprime a maior
realidade de nossa sociedade; porque não inge, senão o que real-
mente existe”.5 Nos jornais da cidade, seus poemas tornam-se hinos
recitados em saraus comemorativos da libertação dos escravos, en-
tremeados de símbolos sobre a infâmia do cativeiro, da luminosidade
dos novos tempos e dos ideais republicanos de fraternidade:

Ao romper de nova aurora

Jaz por terra pra sempre a escravatura!


Ergueu-se altiva e bela a Liberdade!
Ao romper de celeste claridade,
Rasgou-se o véu da nossa noite escura!

Pujante e alegre a geração futura


Levanta-se nos braços da Igualdade!
E ao doce amplexo da Fraternidade,
Hinos ressoam !... Novo sol fulgura!...

Abaixo para sempre o preconceito


Que aviltou longo tempo a pátria amada,
Fazendo-se de nós um mau conceito!

Essa raça que foi tão desgraçada,


Erguendo-se do vil, infame leito.
Vem-nos trazer a luz d’uma alvorada!66

5 TAVARES, Juvenal. A viola de Joana. Pará: Typ. do Diário de Notícias, 1888.


6 TAVARES, Luiz D. Juvenal. Versos: antigos e modernos. Belém: Typ. de A. F. da Costa,
1889, p. 25.

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XI. Vida Cultural

Proclamada a República, Juvenal Tavares foi nomeado Secretário


Interino da Instrução Pública, mas continuou escrevendo para o jor-
nal e publicando livros – agora com vivo interesse de formar futuros
cidadãos para a jovem República. Com isso realizou uma empreitada
ambiciosa para a época, buscar nas histórias narradas nas antigas
senzalas o fundo moral para a literatura infantil que deveria ser en-
sinada nas escolas primárias paraenses. Foi assim que em 1890,
publicou dois outros livros fundamentais: A vida na roça: contos e
scenas de costumes paraenses e Serões da mãe preta: contos popula-
res para crianças. Juvenal diz que pretendeu com este livro “copiar
com verdade os ‘contos da mãe preta’”, chamando nossa atenção ao
sentido político que esse tipo de literatura tomava, ao seu tempo,
para esses autores engajados nos movimentos operários e populares.
Lançando os olhos para o presente, o que chama a atenção em toda
essa história é que a atividade do folclorista, atualmente considera-
da por muitos como anacrônica e despolitizada, surgiu aqui a partir
de um movimento político com pretensões revolucionárias. Vicente
Salles resume os elos entre a perspectiva folclórica e socialista na
obra do literato: “Juvenal Tavares é recordado como poeta, mas em-
bora tenha produzido alguns poemas, a lira não foi o seu forte”. Mais
adiante completa: “O polemista vigoroso, o jornalista destemido, o
socialista que se inspirou em Proudhon, Louis Blanqui e Rochefort,
são qualidades, ou defeitos talvez intocáveis. Homem cheio de con-
tradições, mas de uma energia intelectual indiscutível”.7
Esse vigor revolucionário, está claro, já se fazia sentir na década de
1880 quando Juvenal Tavares criara enorme expectativa em relação
às lutas pela liberdade dos negros. Sua vasta obra poética descreve a
incompatibilidade da escravidão com novo projeto de nação pretendido
pelos republicanos para o Brasil. Libertar os escravos era, mais do que
qualquer outra coisa, um passo decisivo em direção à civilização mo-
derna. Em Belém, a abolição foi comemorada com “repiques festivos de
todas as igrejas e bastas girândolas de foguetes”, os fortes do Castelo e
da Barra “saudaram a notícia com salva de 21 tiros”,8 bandas de músi-
ca tocaram o hino nacional. A conhecida Liga Redentora dos Escravos
fez uma enorme passeata popular à frente do Palácio dos Governado-
res, para ouvir as palavras do presidente da Província Joaquim José
de Assis. Pela noite, com exceção da salva de tiros, os festejos se
repetiram. Tornados invisíveis no meio do “povo”, os ex-escravos
não receberam maiores comentários da imprensa. A exceção ficou
por conta dos poetas e seus versos com ambição de chegar à cesta

7 SALLES, Vicente “Apresentação”. In: J. Tavares, Op. cit., p. 8.


8 Diário de Notícias. 13 de maio de 1888, p. 1.

174 Política Democrática · Nº 24

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Arte, poesia e abolição no Grão-Pará

da cozinheira e à oicina do sapateiro. A redenção dos escravos era


havida então com dádiva da Princesa Regente. Jornais abolicionistas
eram capazes de equacionar a luta contra a escravidão e as ideias do
racismo cientíico que então se alastrava pelas instituições médicas
e jurídicas.9 Pretender a liberdade dos escravos jamais seria defen-
der a igualdade racial. O mundo senhorial e da casa-grande seria,
por seu turno, o principal alvo dos poetas.

A um escravocrata

Enorme como voz de tempestade,


Valente como o vendaval raivoso,
Ouço um bramir gigante e ruidoso,
Ouço um tropel a encher a imensidade!

Estronda no sertão e na cidade.


O vozear de um povo generoso...
Mísero escravo, afoga-te no gozo!
Brilhou, enim, o sol da liberdade!

A ti, ó vil senhor, hoje o que resta ?


O que te resta, ó píia criatura,
Que passavas a vida, rindo, em festa?

Toma da enxada e cava a terra dura;


Come o pão com suor da tua testa;
Infeliz, acabou-se a escravatura!10

9 MOTTA-MAUÉS, Maria Angélica. “O que a mulata tem a ver com a Senhora Aparecida?
Discursos sobre cor, raça e gênero no Brasil (na virada do século XIX e do XX)”. Humanitas.
v. 20, n. 1/2, 2005, p. 7-27 e FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Negro em terra de índio: matrizes
intelectuais das teorias racistas na Amazônia do século XIX. In: CAMPOS; Cleise et al (Orgs.).
Políticas públicas de cultura do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sirius; UERJ, 2007,
p. 131-145.
10 TAVARES, Luiz D. Juvenal. Versos: antigos e modernos. Belém: Typ. de A. F. da Costa,
1889, p. 27.

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XI. Vida Cultural

Posteriormente lançados no volume Versos: antigos e modernos,


em 1889, os poemas de Juvenal Tavares resumem parte importante
de uma aresta do abolicionismo paraense que sonhou em ver a revo-
lução socialista e libertária no entremeio da abolição da escravidão.
Difícil solução. O sonho de liberdade do poeta ruiria pouco tempo de-
pois com a própria decepção com os destinos da República brasileira,
acusada despótica e conservadora, por ele mesmo. Mas a liberdade
começara a ser construída, isso não havia como se mudar.

176 Política Democrática · Nº 24

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O ensaísmo labiríntico e a
dialética da solidão

Aline Maria de Carvalho Pagotto

Sermos nós mesmos sempre é chegar a ser esse outro que somos e que
trazemos escondido no nosso interior, mais do que tudo como promes-
sa ou possibilidade de ser.1

O
ensaísta e poeta mexicano Octavio Paz (1914-1998) partici-
pou de uma geração de escritores latino-americanos que se
dedicou a questões clássicas, como a modernidade, a identi-
dade coletiva das sociedades da América Latina, os modelos de orde-
namento social, os complexos vínculos com os países desenvolvidos e
o consequente futuro de suas regiões. Ele nasceu e morreu na Cida-
de do México, formou-se em Direito pela Universidade Autônoma do
México (Unam) com especialização em literatura mexicana, estaduni-
dense, parisiense e japonesa. Ao longo de sua trajetória, empenhou-
se pela divulgação da cultura no país e, para tanto, acompanhou a
história mexicana, em seu âmbito cultural, político e social, a partir
da fundação de grandes revistas, tais como a Barandal (1933), Cuar-
denos del Valle del México (1933), Taller (1938-1941), Plural (1971-
1976) e Vuelta (1976-1993).
Autor de obras críticas insubstituíveis e previamente conhecidas
por seu amplo foco analítico (arte, poesia, crítica, política, história
e ilosoia), irmou-se como a persona literária mais inluente, re-
conhecida e controvertida do século XX. Ao receber o Prêmio Nobel
de Literatura, em 1990, consagrou-se no grupo dos melhores litera-
tos latino-americanos. Octavio Paz também recebeu outros prêmios,
como o Cervantes (1981), o Aléxis de Tocqueville (1984), o Prínci-
pe das Astúrias (1993) e a Grã-Cruz da Legião de Honra da França
(1994). Um reconhecimento obtido pela autoria de obras célebres,
como O Labirinto da Solidão (1951), Filhos do Barro (1974), O Ogro
Filantrópico: história e política (1979) e Templo Nublado (1984). Assim
como, por suas grandes obras poéticas, tais quais Pedra do Sol

1 Paz, Octávio. O Labirinto da Solidão e post-scriptum. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1992,
p. 155.

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XI. Vida Cultural

(1957), Salamandra (1962), Filhos do Ar (1979) e A Chama Dupla:


amor e erotismo (1993).
Deinido por muito estudiosos como um intelectual de duplo ofí-
cio, devido a sua veia poética e crítica, propôs, na maioria de seus
ensaios, uma rediscussão da modernidade mexicana. Octavio Paz
buscava incitar novas e profícuas problematizações para esse antigo
debate latino-americano e assim conduzir o país a um verdadeiro pro-
cesso de modernização. Exatamente por não conceber esse mesmo
processo como um desenvolvimento unicamente político-econômico,
mas também sociocultural. É importante lembrar que o intelectual
estava escrevendo de um México em forte choque social entre estru-
turas pré-modernas e modernas, em meio a um processo de moder-
nização truncado e que buscou uma mentalidade moderna inspirada
nos modelos de desenvolvimento normalmente europeu e/ou norte-
americano. Além dessas importantes análises políticas e culturais, a
partir da poesia concedeu e decifrou novos signos ao mundo.
Paz, acima de qualquer outra função,2 foi primeiramente um po-
eta. A brumosa poética, que o envolveu, inluenciou na formulação
de conceitos e no desenvolvimento de temas para os ensaios, fazendo
com que não concedesse a devida atenção à clareza e à lógica de uma
argumentação cientíica. E, ao procurar entremear esses dois mundos
distintos num só ofício (o da poesia e o do ensaio crítico), produziu
com grande complexidade conceitos rotativos e heterogêneos;3 com
base nos ilhos mais turbulentos do Velho Mundo moderno, como
Tocqueville, Constant, Montesquieu, Marx, Nietzsche e Ortega y
Gasset. Segundo Celso Lafer, Paz “buscou redescobrir a igura do
mundo na dispersão dos fragmentos. Os signos estariam em rotação
em razão do senso de incongruência entre o criar e o viver na civili-
zação contemporânea”.4
O primeiro ensaio crítico intitulado O Labirinto da Solidão (1950)
se irmou como importante análise da formação sociocultural me-
xicana. A obra ensaística foi inluenciada por conceitos freudianos,
especialmente no que se refere à cultura e aos conlitos humanos
(neurose, angústia, busca de equilíbrio etc.). Da mesma forma que,

2 Octávio Paz exerceu vários cargos ao longo de sua vida. Foi poeta, escritor, diplomata, professor
de Universidades e editor-chefe de revistas.
3 A heterogeneidade nas obras do autor é costumeiramente debatida por estudiosos, assim como o
jogo dos contrários que utiliza como recurso linguístico para assinalar as labirínticas construções
históricas, sociais, políticas e culturais. Exemplo: a tradição e o moderno; o eu e o outro; a vida e
a morte; o mito e a História.
4 LAFER, Celso. Sua palavra se ajusta à criação e à crítica. Jornal da Poesia, São Paulo, 1998.
Domingo, 26 de Abril.

178 Política Democrática · Nº 24

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O ensaísmo labiríntico e a dialética da solidão

pelo clássico ensaio de Samuel Ramos intitulado “El peril del hombre
y la cultura en México” (1934) envolto pela ânsia em traçar uma iden-
tidade e uma ilosoia mexicanas. Há, não obstante, na obra, uma
sondagem sobre a clausura mexicana – país fechado ao mundo e a si
mesmo – e também sobre os instrumentos que o mexicano utilizaria
para tal im: as máscaras.
Como airma Octávio Paz em post-scriptum,
O labirinto da solidão foi um exercício da imaginação crítica: uma vi-
são e simultaneamente uma revisão. Uma coisa muito diferente de
um ensaio de ilosoia do mexicano ou da procura do nosso pretenso
ser. O mexicano não é uma essência e sim uma história. Nem ontolo-
gia nem psicologia. O que me intrigava (e intriga ainda) era menos ‘’o
caráter nacional’’ que aquilo que este caráter esconde: o que está por
trás da máscara.5

É importante esclarecer que, como asserção introdutória, no en-


saio a crítica não é preestabelecida, com um julgamento ou um obje-
tivo, mas solidiicada juntamente com a relexão proposta pela obra.6
O próprio ensaio literário é difícil de ser classiicado, já que não se-
gue um método, por ser aberto e exploratório, permitindo o enfoque
multidisciplinar dos temas. Ao contrário do discurso cientíico, no
interior do ensaio um conceito se desenvolve concomitantemente à
penetração da subjetividade, seja ela crítica, relexiva, analítica etc.
No caso de O Labirinto da Solidão o posicionamento de preceitos po-
éticos obedece às ideias barrocas, concedendo espaço à polifonia e
à imersão no panteísmo. Encalça-se de uma postura relexiva, ora a
desvendar mitos, ora a analisar a transcendência de ideias nos pro-
cessos sociais.
Sendo assim, na referida obra, o autor buscou, embora de for-
ma marginal,7 restabelecer a consciência de um México que, do seu
ponto de vista, teria sido sepultado vivo, com seus anseios, juí-
zos e impulsos. Para restabelecê-la, segundo Paz, seria necessário
uma revelação existencial – uma epifania – semelhante àquela que
se dá durante a adolescência. O adolescente, como no mito grego
de Narciso, se encanta pela imagem reletida e busca compreendê-la.
E, tombado às margens de sua consciência, indaga-se sobre o rele-
tido rosto disforme devido à incerteza das águas. Deslumbrando pela

5 PAZ, Octávio. Op. Cit., (p. 195)


6 Tal gênero foi criado por Michel Eyquem de Montaigne e posteriormente teorizado por Georg
Lukács e Theodor Adorno.
7 À margem das normas éticas.

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XI. Vida Cultural

ininitude de possibilidades do ser, encontra o eu e o outro. Junto


ao deslumbramento das riquezas oferecidas por um mundo recém-
percebido, se dá o introvertimento voltado ao autoconhecimento. Por
isso, airma em O Labirinto da Solidão,
Em algum momento, nossa existência se revela como intransferível e
preciosa. Quase sempre esta revelação se situa na adolescência. A des-
coberta de nós mesmos se manifesta como um saber que estamos sós;
entre o mundo e nós surge uma impalpável e transparente muralha: a
da nossa consciência. (...) Aos povos em transe de crescimento ocorre
alguma coisa parecida. Seu ser se manifesta como interrogação: o que
somos e como realizaremos isto que somos? 8

Octavio Paz buscou, em verdade, fazer o début mexicano. Ainal,


a adolescência corresponde ao abandono da juventude e o início da
vida matura. O intelectual como se imbuído pelo desejo de apresentar
o país às nações desenvolvidas e consideradas modelo em seu processo
de modernização, assemelha o país à imagem de um adolescente, com
seus conlitos internos, introspecções, soberba, em pleno processo de
construção de sua individualidade. Ou ainda, relata um México com
características típicas da transição eufórica da juventude. Ainda as-
sim, apresentá-lo enquanto adolescente garantia a notiicação de que
a sociedade mexicana estaria em meio a um processo de transição,
como o da adolescência, caminhando da pré-modernidade para a
modernidade. Uma forma também de declarar um México que aban-
donou a adolescência e está rumando à maturidade.
Nota-se nas quatro primeiras partes do ensaio, respectivamente
“O pachuco e outros extremos”, “Máscaras mexicanas”, “Todos os
Santos, Dia de Finados” e “Os ilhos da Malinche”, a análise pro-
funda do ser mexicano e de sua mexicanidade. Nas últimas quatro
partes, respectivamente “Conquista e Colônia”, “Da Independência à
Revolução”, “A inteligência” mexicana” e “Nossos dias”, há o desen-
cadeamento histórico que produziu esse mesmo ser. Enim, para o
autor, ultrapassar essa etapa signiicaria tomar consciência de si,
restabelecer-se, mas também perceber-se só. Já que um dos princi-
pais signos da maturação seria também a percepção da solidão. Por
esta razão, airma que,
A solidão, o sentir-se só e saber-se só, desligado do mundo e alheio a
si mesmo, separado de si, não é característica exclusiva do mexicano.
Todos os homens, em algum momento da vida, sentem-se sozinhos;
e mais: todos os homens estão sós. Viver é nos separarmos do que

8 PAZ, Octávio. Op. cit., p. 13.

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O ensaísmo labiríntico e a dialética da solidão

fomos para adentrarmos no que vamos ser, futuro sempre estranho.


A solidão é a profundeza última da condição humana. O homem é o
único ser que se sente só e o único que busca o outro.9

A visão de um México Jovem fundamenta-se na ideia das socieda-


des latino-americanas como não sendo modernas. Num lado oposto
a elas, erguem-se os EUA, exemplo de modernidade. Como airma
Xavier Rodriguez Ledesma,10 a explicação paciana do ser mexica-
no envolve-se da atitude, posicionamento e distanciamento, que o
próprio mexicano toma perante o moderno. As principais diferenças
entre mexicanos e norte-americanos não se restringiriam ao desen-
volvimento econômico, mas seria notável em razão da conformação
histórica do México. É importante airmar que, segundo Paz, essa
adolescência, da qual o México deveria fugir, teria se iniciado somen-
te com a Revolução Mexicana (1910-1917) e, por ela, teria aprendido
a se contemplar e a traçar sua singularidade. Por isso airma,
Não quero dizer que o mexicano seja crítico por natureza, mas sim que
atravessa uma etapa relexiva. É natural que, depois da fase explosiva
da Revolução, o mexicano se recolha para dentro de si mesmo e, por
um momento, se contemple. As perguntas que nós fazemos agora pro-
vavelmente serão incompreensíveis dentro de cinquenta anos.11

A ausência da modernidade, para o autor, constituiria relexo de


uma aguda carência de espírito, além de também signiicar falta de
consciência em si, ambos fatores que podem levar a uma sensibilida-
de semelhante a de um pêndulo, sem razão, oscilando com violência
e sem compasso.12 Segundo Paz, somente um grupo representaria
esse estado de espírito, o grupo de adolescentes mexicanos chamado
de pachucos, presente na primeira parte da obra.
O grupo los pachucos viveram no sul dos EUA, no im da déca-
da de 1940, e se singularizaram por sua vestimenta e linguagem.
Segundo Octavio Paz, o grupo não reivindicou uma nacionalidade,
não airmou nada de concreto, além da vontade de não ser como
aqueles que o rodeavam. Não pretendia retornar às tradições, muito
menos se enquadrar aos moldes norte-americanos de vida. O pachuco

9 PAZ, Octavio. Op. cit. p. 175.


10 RODRIGUEZ, X. Ledesma. El concepto de Modernidad en Octavio Paz. Colima: Revista de
estudios sobre las culturas contemporáneas. Diciembre, año/v. V, n. 10. Universidad de Colima,
México. p. 127-142.
11 Idem, p. 15.
12 Idem, p. 16-29.

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XI. Vida Cultural

negava a si mesmo e, por toda a impulsividade juvenil, se contradizia.


A primeira e principal delas, seria o próprio nome, que corresponde
à iliação incerta.13 A partir disso, salientou-se ainda mais as diferen-
ças entre norte-americanos e mexicanos, provocando o aumento das
opressões aos latinos em Los Angeles. Ao rejeitar a sociedade norte-
americana, enalteceram-na, fazendo da sua própria causa, inautên-
tica e supericial.
Na obra ensaística, Octavio Paz passa do grupo adolescente –
pachucos – ao mexicano adulto. Ao sobrevoar a construção social
mexicana, aponta um ser de arisca solidão. Ao mesmo tempo, sensí-
vel, hermético, espinhoso e cortês. O el macho é enclausurado em si
mesmo e, por isso, prejudicado em seu ideal de hombridade. Assim,
receia o meio que o cerca e, contra qualquer abertura de seu “eu”,
marca inconfundível de fraqueza e traição, desenvolveu um mecanis-
mo individual de fechamento. Ao duvidar da genuinidade dos senti-
mentos alheios, em defesa, o macho dissimula; disfarça seus senti-
mentos. Uma reação, para o autor, cujo relexo teria sido a história
e o caráter da sociedade, pois a dureza e a hostilidade do ambiente
os obrigou a se fechar ao externo.14 Já a mulher, estigmatizada por
sua abertura, ferida incurável, se irmou como o espelho da von-
tade masculina. A mexicana seria escassa de vontades, seu corpo
somente dormiria hipnótico. Esperava e desdenhava, muito embora
se opusesse a certo hieratismo. Um sinal, para o autor, de que a
dissimulação ultrapassa a questão de gênero e que esteve incada na
estrutura mexicana. Ou melhor, a dissimulação seria a essência do
caráter mexicano, um caminho alternativo à autenticidade.15
As máscaras foram construídas e utilizadas por todos os momentos.
Neste caso, o mexicano teria sido somente sentido – verdadeiramente – em
uma única ocasião: a festa. Estas, quase sempre religiosas, revelariam
o verdadeiro ser mexicano. Ainal, como em uma revolta, a festa dis-
solveria a sociedade e derrubaria as máscaras. Todos conviveriam.
A festa, tal qual airma o autor, seria a experiência da desordem.16
E também o portal entre o mundo terreno e o espiritual. Celebrá-la em
tempo mítico reajustaria a realidade. Ou mais, realizaria a abstenção
terrena; desordenaria para ordenar. Por esta razão, airma,
O mexicano, ser áspero, fechado em si mesmo, de repente explode,
abre o peito e se exibe, com certa complacência e detendo-se nos
meandros vergonhosos ou terríveis de sua intimidade. Não somos

13 PAZ, Octavio. Op. cit., idem, p. 17.


14 Idem, p. 31.
15 Idem, p. 41.
16 Idem, p. 49.

182 Política Democrática · Nº 24

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O ensaísmo labiríntico e a dialética da solidão

francos, mas nossa sinceridade pode chegar a extremos que horro-


rizariam um europeu. A maneira explosiva ou dramática, às vezes,
como nos despimos e nos entregamos, quase inermes, revela que
alguma coisa nos asixia ou nos coíbe. Alguma coisa nos proíbe de
ser. E porque não nos atrevemos ou não podemos encarar nosso
ser, recorremos à festa.17

A festa ao mexicano ixar-se-ia atrelada à religiosidade, tal qual a


vida manter-se-ia conectada à morte. Esta, segundo o autor, seria o
espelho reletor das gesticulações vãs da vida.18 Por esta razão, se a
morte careceu de algum sentido, a vida também o necessitou. Do mes-
mo modo, a morte deve corresponder dignamente à vida que se foi,
caso contrário a vida habitada seria de outrem. Para o antigo asteca,
também há a oposição entre vida e morte, porém essa mesma vida se
prolonga na morte. E, nesse sentido, a morte não seria o im natural,
mas o início de um novo ciclo. A lógica se modiicou somente com o
advento do catolicismo. A ideia de salvação, antes coletiva, tornar-se-ia
pessoal. O indivíduo tornou-se primordial ao cristão, posto que o mun-
do encontrar-se-ia perdido de antemão. A redenção, por sua vez, tornar-
se-ia também pessoal e não mais coletiva como antes.
Na análise estabelecida pela obra, percebe-se a descrição de uma
sociedade mexicana, cuja crença esteve arraigada, desde os astecas
até 1950. Segundo Paz, essa forte crença possibilitou muitos dos
processos históricos. Como exemplo, a fé na traição dos deuses e
a consequente conquista espanhola. A crença numa traição divina
teria provocado o suicídio asteca e gerado as possibilidades para o
avanço colonizador. Contudo, a crença na libertação dos despojos es-
panhóis pela Independência da Colônia, seria digna de desafetação.19
Mais razoável, seria assumir a gestação de uma Chingada – mãe
violentada por um pai agressivo e usurpador. Os próprios festejos
da independência também conirmariam tal iliação. Segundo Paz,
a independência viria somente com a Revolução Mexicana. Ainal,
após a independência, o mexicano, entorpecido pelo ser espanhol,
teria ajudado a irmar uma oligarquia espanhola no poder. A Revolu-
ção, que teria sido germinada no solo do país, teria derrubado suas
máscaras, possibilitando a libertação mexicana. Por isso, airma que
“da Conquista à Revolução, a História mexicana seria uma busca

17 PAZ, Octavio. Op. cit., idem, p. 51.


18 Idem, p. 53.
19 Idem, p. 55.

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XI. Vida Cultural

incessante por si mesma, todavia, a História da Revolução adiante


seria de introspecção rumo à modernidade”.20
Enim, no ensaio O Labirinto da Solidão”, Octavio Paz buscou in-
troduzir o mexicano, como também o latino-americano, na História
mundial, considerando sua realidade e mentalidade. Para realizar tal
objetivo, Octavio Paz caminhou até o âmago do ser mexicano e, de-
pois, utilizou-se da História, muito embora não tenha sido historia-
dor, para coser o indivíduo mexicano a seu país. Por isso, retrata um
México adolescente rumo à fase adulta; caminhando em direção à
modernidade. Já que, teria sido sepultado vivo e, neste caso, recupe-
rá-lo implicaria em fazê-lo tomar consciência de si, tal qual um jovem
durante a adolescência. Retomá-lo também signiicaria harmonizar o
mexicano e sua História. A visão de um México Jovem fundamenta-se
na ideia de que as sociedades latino-americanas não seriam moder-
nas. No extremo oposto, erguer-se-ia a sociedade norte-americana,
como exemplo de modernidade. Octavio Paz procurou instigar rele-
xões que, antes de uma ilosoia do ser mexicano, revelassem aquilo
que o caráter nacional esconderia. Muito embora tenha construído
conceitos complexos e rotativos, seus poemas e ensaios possuem um
link constante com a atualidade, pois dão vazão para que discussões
atuais brotem com o decorrer da leitura. Noutras palavras, é sempre
enriquecedor discutir o ensaismo de Octavio Paz. Os mais variados
temas por ele debatidos encontram-se ainda hoje em questão, posto
que surgem na cena política e social das transformações históricas.

Referências
AGUIAR, M. Alice. Um diálogo com O Labirinto da Solidão e Post-Scrip-
tum de Octavio Paz.
LAFER, Celso. Sua palavra se ajusta à criação e à crítica. São Paulo,
1998. Encontra no site: http://www.jornaldepoesia.jor.br/opaz02c.html
PAZ, Octavio. El Laberinto de la Soledad. México: Siglo XXI, 1951.
______. O Labirinto da Solidão e Post-Scriptum. São Paulo: Editora Paz
e Terra, 1992, p. 155.
RODRIGUEZ, X. Ledesma. El concepto de Modernidad en Octavio
Paz. Colima: Revista de estudios sobre las culturas contemporáneas.
Diciembre, año/vol. V, número 10. Universidad de Colima, México,
p. 127-142.

20 PAZ, Octavio. Op. cit., idem, p. 29.

184 Política Democrática · Nº 24

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XII. Resenha

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Autores
Tiago Eloy Zaidan
Mestrando do programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal
de Pernambuco e pesquisador do Grupo de Pesquisa Comulti – Ufal/ COS/ CNPq.
eloyzaidan@gmail.com.

Rudrigo Rafael Souza e Silva


Graduando em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco e bolsista de
iniciação cientíica CNPq do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direitos Sociais e Polí-
ticas Sociais. rudrigorafael@gmail.com.

Uelinton Farias Alves


Jornalista e escritor

Marco Antônio F. de Matos


Mestre em Teoria e Crítica Literária pela PUC-SP, orientador educacional do Colégio
Guilherme Dumont Villares, em São Paulo.

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Introdução à airmação dos direitos
humanos em dois livros

Tiago Eloy Zaidan


com colaboração de Rudrigo Rafael Souza e Silva

E
m 2008, comemoraram-se os 60 anos da Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos, importante marco universalizador
que coroou a militância dos direitos humanos do pós-Segun-
da Guerra Mundial. Contudo, a marcha dos direitos humanos na
lida por sua airmação é bem anterior a saliente seção da Assem-
bleia Geral das Nações Unidas realizada em 10 de dezembro de 1948.
Trata-se, a bem da verdade, de uma labuta que ultrapassou séculos,
modos de produções divergentes e que se banhou de sangue em di-
versos momentos revolucionários.

As obras
Lançado em 2006, o livro Direitos humanos, de autoria do histo-
riador Marco Mondaini, apresenta-se oportunamente como um per-
tinente almanaque que reúne 50 escritos, de diversas datas e na-
tureza, selecionados por terem cumprido um importante papel na
airmação dos direitos humanos em sua jornada mundial, ao longo
da história moderna e contemporânea. Dentre tais escritos estão, ora
por meio de trechos, ora por meio de transcrições integrais, hinos,
discursos, encíclicas da Igreja Católica, e obras relevantes de gran-
des vultos do pensamento social universal, como Rousseau, Locke,
Montesquieu, Stuart Mill e Marx, dentre outros. Constam, também,
cartas de direito, como algumas constituições do século XX (mexicana,

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XII. Resenha

chinesa, soviética e cubana), que apontam para a incorporação dos


direitos exigidos e reivindicados pela classe trabalhadora, através de
lutas sociais.
O sucesso da obra, que pode, em parte, ser atribuído ao amplo
espectro de leitores a qual se destina, em função de seu texto leve
e didático, acabou rendendo um segundo livro, publicado em 2008,
durante as comemorações relativas ao sexagenário da declaração de
1948 e aos 20 anos da Constituição vigente no Brasil. Trata-se do
volume Direitos Humanos no Brasil que, assim como a obra original,
tem em vista o mapeamento do processo de formação da cultura dos
direitos humanos, desta feita, no Brasil contemporâneo, mais pre-
cisamente de 1930 a 2002. Aqui, o autor cita 33 textos comentados
e contextualizados de modo a apresentarem-se cronologicamente,
seguindo a mesma dinâmica de fazer um apanhado de textos, docu-
mentos, manifestos e positivações que atestem a presença de uma
consciência cidadã em nosso país. O autor reforça a importância de
alguns intelectuais cuja contribuição para compreender a sociedade
brasileira se avulta consideravelmente quando nos deparamos com
a re-coniguração dos diversos elementos patrimonialistas presentes
em nossa história (da mais recente a mais remota). São emblemas
destes “intérpretes do Brasil”: Sérgio Buarque de Holanda, Raymun-
do Faoro, Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes. Dentre os documen-
tos destacados, um recebe especial atenção do historiador. A Consti-
tuição Federal de 1988.
Marco Mondaini é mestre em história econômica pela Universi-
dade de São Paulo (USP), doutor em serviço social pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor do Departamento de
Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É ain-
da coautor de História da cidadania (2003) e História das guerras
(2006), ambos pela editora Contexto, dentre outras publicações. Sua
militância intelectual em defesa da airmação dos direitos humanos,
já reconhecida nacionalmente, vem pautando sua carreira acadêmi-
ca. Defesa esta justiicada por teses como a que atribui “... o nível de
civilidade alcançado por uma sociedade – e seu progressivo distan-
ciamento da barbárie...” à “... capacidade que esta tem de fazer com
que os seus concidadãos sejam protegidos pelo generoso guarda-
chuva dos direitos humanos” (MONDAINI, 2008, p.12).
Mesmo reconhecendo retrocessos pontuais, alguns já superados
– como o Estado de terror implantado pelo golpe de 1964 no Brasil
– e outros anacrônicos – como a marginalização das classes subal-
ternas brasileiras –, Mondaini, em seu Direitos humanos e Direitos
humanos no Brasil, continua a revelar-se um intelectual otimista,

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Introdução à afirmação dos direitos humanos em dois livros

característica claramente perceptível também em outras obras e


artigos de sua autoria. Otimista com os avanços obtidos a duras
penas por meio de incansáveis lutas dos movimentos sociais – mes-
mo aquelas pouco percebidas ou mesmo questionadas – mas que,
de alguma forma, contribuíram para uma lenta, porém caminhan-
te, construção de uma cultura ou percepção, ainda que apenas
simbólica, de valorização dos direitos humanos ao longo de três
grandes ciclos.

Os ciclos de airmação
O primeiro ciclo de airmação dos direitos humanos na história
mundial ocorre, ao longo dos séculos XVII e XVIII, com o paulatino
advento de um novo modo de produção hegemônico, o capitalismo,
em superação ao feudalismo, e com a ascensão de uma nova classe
social: a burguesia. Pode-se dizer que sua origem remonta a Inglater-
ra, Estados Unidos e França. Em seu bojo está a luta pelo reconheci-
mento dos direitos civis e políticos, possibilitando, para um segundo
momento, a ampliação do relevo inicial, para contemplar direitos no
sentido das liberdades coletivas e, principalmente, da igualdade po-
lítica, com a labuta pelo sufrágio universal.
Já o segundo ciclo de airmação dos direitos humanos foi forte-
mente inluenciado pela luta entre as classes burguesa – a esta altura
passando a assumir um papel reacionário – e a trabalhadora. Nesse
período o pensamento socialista e as ações inspiradas por este, pos-
suindo em sua essência a crítica, a lógica da produção e reprodução
da desigualdade no capitalismo, passa a vincular-se intensamente
com as lutas em defesa dos direitos humanos.
Por im, o terceiro ciclo da airmação dos direitos humanos no
mundo é marcado por uma luta dupla: em defesa da efetiva realiza-
ção de direitos já conquistados em momentos anteriores, mas ainda
não estendido a todos na prática, e da ampliação do hall de direitos,
com a inclusão de novas demandas a somarem-se com as conquistas
já obtidas.
No cenário brasileiro, abordado na obra Direitos Humanos no
Brasil contemporâneo, é peculiar uma inversão que não deve ser
ignorada. Nada que necessariamente esteja ligada à nomenclatura
até então utilizada, mas sim à dinâmica clássica, segundo Mar-
shall, de constituição dos direitos e seu corolário. A ascensão
dos direitos humanos em âmbito nacional se inicia no “Brasil con-
temporâneo” (a partir da década de 30) e é marcada pela garantia

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XII. Resenha

dos direitos sociais numa sociedade na qual nem as liberdades


individuais nem a esfera pública se encontravam amadurecidas.
Isso veio reforçar uma correlação de forças favorável à manuten-
ção do poder nas mãos da hegemonia dominante. Vislumbrar uma
ruptura com esse panorama só foi possível, contraditoriamente,
no volver histórico de um momento caracterizado pela forte ne-
gação dos direitos civis e políticos, a saber, o período ditatorial
(1964 – 1985). Nesse instante, surge no país uma agenda política
coletiva de lutas sociais que buscam pôr em xeque os alicerces do
autoritarismo vigente no país. O movimento de redemocratização
do Brasil, apesar de entrecortado pela chegada do neoliberalismo,
deve ser considerado ponto de partida da socialização do poder e
de uma revolução processual.
Entretanto, a despeito de tal asseveração (não linear – é sempre
bom frisar), não são poucos aqueles que fazem oposição aos direitos
humanos, ou, quando não, encaram-nos com relativa desconian-
ça. Neste bojo, como bem cita Mondaini (2008, p. 12) em seu Direi-
tos Humanos, estão: os neoliberais, que os veem como um fardo a
atrapalhar os seus objetivos de lucro racional, via livre-mercado e
os militantes marxistas ortodoxos, que os vêem como mera colcha
mal-retalhada com vistas a, apenas, encobrir as estruturas e lutas
de classes na contraditória sociedade capitalista. Como se não bas-
tassem tais concepções contrafeitas, há, ainda, a generalizada e or-
dinária visão que rotula os direitos humanos como mero instrumento
de defesa de “bandidos”.
De fato, não deixa de ser curioso como a militância a favor dos
direitos humanos possa causar tanta repugnância e suspeita, sen-
timentos que não são exclusividade do século XXI. Ao longo da
evolução de sua airmação no mundo os direitos humanos sempre
enfrentaram algum tipo de aversão. Em sua jornada, de avanços e
retrocessos, o que mudou foram os seus opositores: representan-
tes da nobreza e do clero, durante o regime feudal, colonizadores
europeus, no advento da modernidade, e até mesmo um ex-aliado
importante, a burguesia, com o avanço da sociedade capitalista e
a sua posterior consolidação. No século XX, já eram tantos os seus
opositores, de vários segmentos ideológicos distintos, que se tornou
uma missão inglória atribuir-lhes o crédito devido.
A despeito de tanto aferro, para o professor e historiador Marco
Mondaini, os direitos humanos possuem um sentido universal, “...
antes de mais nada, porque passou a tratar a totalidade dos seres
humanos vivos com base em critérios igualitários...” (2008, p. 12),
percepção esta, complementada pela tradição que prega o tratamento

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Introdução à afirmação dos direitos humanos em dois livros

dos desiguais de maneira desigual. Explica-se: para aqueles indiví-


duos inferiorizados no interior das relações sociais faz-se imperativo
um tratamento legal distinto, com vistas a alçar-lhe a condição de par
dos demais indivíduos. Somente assim a igualdade puramente formal
passaria a ter cabimento.
Até chegar à sua terceira geração, situada nos dias de hoje, –
onde é inerente a forte influência, em seu seio, das tradições li-
beral, democrática e socialista – os direitos humanos encararam
uma batalha gradual e não linear de apresentação de demandas
e de contínua ameaça de perda de direitos. Atualmente, em meio
aos esforços por engendrar os chamados “direitos dos povos” –
uma das principais demandas deste terceiro ciclo – encontra-se
o paciente desafio do diálogo. Diálogo este a ser empreendido por
seus militantes, necessário para dirimir percepções negativas e
para aproximar potenciais aliados, ainda esquivos, na luta pela
afirmação dos direitos humanos.
O grande desaio em nosso país é o de desatar os nós de uma
estrutura social onde os interesses privados (econômicos) se sobre-
põem a uma cultura política consoante com a vontade pública e com
as necessidades das classes e grupos historicamente excluídos do
processo de distribuição da riqueza socialmente produzida. Tornar
consciente esse processo se faz premente a qualquer aspiração de
transformação social.
Do que até aqui fora expresso, pode-se extrair a intenção de
continuidade do legado – ainda in constructo – do autor que, lan-
çando mão da mediação teórica, porém abdicando de qualquer
resquício de academicismo, procura dar profusão ao debate so-
bre a temática percebida como estratégia de transformação dos
paradigmas de desumanidade de nossa sociedade. Sendo assim,
o diferencial do pensador em questão e a relevância das obras
aqui sintetizadas estão na tentativa de evidenciar o significado
da práxis política na contemporaneidade, pautada na constituição
de uma nova cultura, alicerçada na construção contínua de uma
consciência ética universal. Tal hegemonia situa-se no vértice das
conquistas dos diversos sujeitos sociais e do pensamento político-
filosófico voltado para a expansão do desenvolvimento histórico
dos direitos dos humanos. Destarte, constrói, por meio da objeti-
vação orgânica de sua intelectualidade, seu vínculo com a filosofia
da práxis gramsciana que tem como aspiração:
Uma “reforma intelectual e moral” que não pode estar desvinculada
dos ideais de “reforma econômica”, pois a hegemonia é ético-política

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XII. Resenha

mas também econômica. Só assim será ediicado um bloco histórico


alternativo, isto é, uma outra “unidade entre a natureza e o espírito
(estrutura e superestrutura)”.1

Sobre as obras: MONDAINI, Marco. Direitos Humanos. 2. ed. São


Paulo: Contexto/Unesco, 2008, 192p.; Direitos Humanos no Brasil.
São Paulo: Contexto/Unesco, 2009, 144p.

1 MONDAINI, Marco. A filosofia da práxis sobe ao sótão. Disponível em: <http://www.acessa.com/


gramsci/?page=visualizar&id=281> . Acesso em 05 de jan. 2009.

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Saga de Zumbi dos
Palmares revivida

Uelinton Farias Alves

D
epois da publicação de Memorial dos Palmares, o historiador
Ivan Alves Filho vem sendo considerado um típico especia-
lista sobre história do passado, na mesma acepção que o
seu livro, lançado 20 anos após a sua primeira concepção na Escola
de Altos Estudos de Ciências Sociais, de Paris, e recomendado pelo
Centre National de Recherche Scientiique entre as obras considera-
das “outils de recherche” – ou instrumento de pesquisa da instituição
– é, no gênero, o trabalho mais atualizado sobre a saga de Zumbi
dos Palmares, equiparando-se em concepção e qualidade, às obras
referenciais, sobre o período, que são O quilombo dos Palmares, de
Édison Carneiro, Rebeliões da Senzala, de Clóvis Moura, e Palmares:
a guerra dos escravos, de Décio Freitas – todas, sem exceção, pionei-
ras no que se referem aos estudos sobre conlitos raciais iniciados no
Brasil Colônia.
Com Memorial dos Palmares, no entanto, Ivan Alves Filho inaugu-
ra uma nova fase dos estudos coloniais brasileiros, a partir da tópica
dos estudos que tem, como pano de fundo, não apenas a natureza
política dos movimentos guerrilheiros, mas a natureza histórica e
social dos mesmos, carregada na observação de que, a grande reação
gerada em Palmares, vem de encontro a uma forte ação bélica do re-
gime colonialista, sob o comando do império português.
No seu livro, é importante observar, a idedignidade pela busca
histórica de documentos, em fontes primárias, sobretudo nos arqui-
vos europeus, como o da Torre do Tombo, fortalece a ideia de que
Palmares foi o maior quilombo já surgido no Brasil, não só em ta-
manho populacional (chegou a reunir aproximadamente 30 mil pes-
soas), mas também em longevidade, já que teria resistido por mais
de 120 anos, pois nascido por volta de 1596, em 1716 ainda foram
registrados cerca de “8 ataques palmarinos”, o que, sem sombra de
dúvida, nos induz a pensar que o quilombo não se extingue com a
morte de Zumbi, em 20 de novembro de 1695, tese defendida por
uma grande parcela da historiograia.

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XII. Resenha

O historiador Ivan Alves Filho não só põe em xeque essa tese,


como, melhor do que isso, descreve minuciosamente os ataques des-
feridos pelas forças policiais do governo de Pernambuco, bem como
retrata o temor das autoridades ante a fuga em massa dos negros, a
ilógica invasão e permanência holandesa na região, o envenenamen-
to de Ganga Zumba, depois do acordo com as forças legalistas, e a
traição que resultou no assassinato do líder supremo dos Palmares.
Lido e apreciado pelo velho Barbosa Lima Sobrinho, Memorial dos
Palmares retrata um Brasil antes do Brasil – na verdade, um país
cujo território era terra de ninguém, comandada por homens ganan-
ciosos pela riqueza, mas entregue à sorte de Domingos Jorge Velho,
igura emblemática e sanguinária que, segundo nos parece, ainda
aterroriza nossas esquinas, na ótica da nova política social do Estado
brasileiro, sob o pretexto de garantia da ordem e de uma paz cada vez
mais longínquas.
Ivan Alves Filho, a propósito, põe a nu toda a história desenvolvida
por mais de um século nas regiões entre os estados de Pernambuco e
Alagoas. Pontualmente, o historiador supera-se ao transformar o seu
livro Memorial dos Palmares num documento de referência para os
estudos acadêmicos ou paraacadêmicos do século do Descobrimen-
to, século imbricado na história e ao mesmo tempo demarcador de
fronteiras geográicas, pontiicadas por uma economia cobiçada pelos
agentes de governos coloniais internos e externos, o que, sem dúvida,
resulta em elementos gerador de conlitos, celeiro das muitas guerri-
lhas intestinas, a maior parte delas, contra os negros de palmerinos.
É notório observar que, 20 anos depois da concepção original do
seu trabalho, o livro reeditado agora por Ivan Alves Filho continue a
nos produzir surpresas agradáveis, por se inseri na moderna cober-
tura dos fatos que, mesmos depois de tantos séculos, ainda desperta
em nós emoção e curiosidades histórico-literárias.
Investigador experiente, autor de diversas obras referenciais de
historiograia e jornalismo investigativo, Ivan Alves Filho poderia dis-
pensar maiores apresentações, mas é impossível não fazê-lo, dada
a sua trajetória como escritor e pesquisador, autor, entre outros da
biograia Giocondo Dias: uma vida na clandestinidade (Mauad, 1997),
Brasil, 500 anos em documentos, o delicioso Cozinha brasileira (com
recheio de história) (Revan, 2000), e Tudo é política, cuja autoria di-
vide com o professor Nelson Werneck Sodré, além de dezenas de ar-
tigos e ensaios sobre os primórdios do Brasil do início de nosso de-
senvolvimento como nação.

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Saga de Zumbi dos Palmares revivida

Agora, em Memorial dos Palmares, revivemos, com aprazível in-


teresse, o desenrolar da história do maior quilombo já surgido entre
nós, através do relato, da sagacidade, da pena ágil e da análise
percuciente de Ivan Alves Filho.
É, sem dúvida, um livro robusto, importante, pelo seu conteúdo
e pelo seu alcance para o resgate da nossa história e conhecimento
de nossa juventude. Trabalho profundo, pode se dizer, de passagem,
mas que nos dá fôlego para ir até o inal de suas páginas.

Sobre a obra: Ivan Alves Filho. Memorial dos Palmares. Brasilia: FAP,
2009, 200p.

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Pandemônio da memória
em Chico Buarque

Marco Antônio F. de Matos

A
publicação do último romance de Chico Buarque, Leite derra-
mado, provocou na crítica literária nacional uma instigante
polêmica sobre o valor artístico da narrativa e, também, so-
bre o alcance das inluências machadianas que nela estariam pre-
sentes. A meu ver, tal discussão, embora aponte para questões reais
do universo iccional do autor, não poderá nos levar a compreender
o sentido literário do romance em análise.
Depois do visível amadurecimento literário de Chico, constata-
do nas páginas de Budapeste, quando o tema da identidade indi-
vidual de um ser humano na sociedade mercantilizada de hoje foi
trabalhado com grande sensibilidade narrativa, a crítica e o público
leitor aguardavam com ansiedade a publicação do novo livro. Tal
expectativa, porém, foi mal conduzida já a partir das primeiras aná-
lises que se izeram a respeito do romance, seja daqueles que, como
Carlos Graieb (Veja, 05.04.2009), consideram que Chico pretende
fazer um “panorama sociológico” dos últimos cem anos da história
brasileira, seja daqueles que, como Roberto Schwarz (Folha de S.
Paulo, 28.03.2009), dirigem o olhar para o objeto estético-literário
produzido pelo autor a partir de condicionantes históricos e sociais,
porém nem sempre destacando a originalidade da solução literária
encontrada por Chico.
Há nessas análises, contudo, muitos aspectos positivos que nos
ajudam a situar melhor a compreensão do romance. A obra de Chico
é icção literária, e tal caráter é alcançado reunindo ao mesmo tempo
vários elementos distintos (sociais e literários), entre eles aspectos da
história brasileira e temas caros a Machado de Assis, como o ciúme
doentio, expressão do egoísmo de classe do narrador.
De que nos fala Chico? O livro narra na primeira pessoa a
vida de um representante da elite brasileira, Eulálio Montenegro
D’Assumpção (assim mesmo, com p, para diferenciar-se de um
Assunção qualquer), que, de seu leito de morte num hospital infes-
tado de baratas, conta-nos a história da decadência de sua família

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Pandemônio da memória em Chico Buarque

tradicional. Seus parentes mais distantes vieram ao país com a Corte


de Portugal em 1808; seu avô foi comerciante de escravos à época de
D. Pedro II; o pai, senador da República, barão do tráico de escra-
vos e autor de um plano macabro para devolver os negros à África,
comerciou com armas de maneira ilegal, atividade que legou ao ilho.
O narrador vive a decadência dos setores burgueses atingidos pela
crise de 1929. A narrativa se estende até o golpe militar de 1964,
quando seu neto, “comunista da linha chinesa”, é morto nos porões
da ditadura. Para fechar o ciclo da ruína, seu tataraneto é preso
como traicante de drogas.
Eulálio casa-se com Matilde, mulatinha rejeitada pela própria fa-
mília que a adotara. A mãe de Eulálio se opõe ao casamento que, no
entanto, se realiza. Matilde submete-se a todos os caprichos do mari-
do até o dia em que desaparece, deixando a ilha, Maria Eulália, ain-
da no período de amamentação. Antes de fugir, Eulálio a surpreende
no banheiro derramando na pia o leite negado à ilha; daí, o título
do romance, que, segundo Schwarz, pode também ser interpretado
como uma metáfora do leite derramado de nosso país, ainda imerso
nas desigualdades e nas contradições sociais geradas e alimentadas
por todo o período histórico abordado por Chico Buarque.
O panorama histórico é o pano de fundo da história pessoal do
personagem. Nascido a 16 de junho de 1907, o protagonista é parte
integrante da burguesia brasileira que já nasceu colada ao imperia-
lismo estrangeiro (basta pensar em suas relações comerciais com o
arrogante engenheiro francês Dubosc) e sempre cresceu impulsiona-
da por valores vindos de fora. Por meio das memórias de Eulálio, a
burguesia brasileira (ou parte dela, a que não se adaptou aos novos
tempos do capitalismo) se desnuda diante de nossos olhos e mostra
todo o seu cortejo de misérias: Eulálio é liberal, mas vive à margem
da lei e beneicia-se de relações escusas com o Estado; a mãe cultiva
modos europeus (só conversa com os ilhos à mesa em francês), mas
é defensora da escravidão.
Essa situação de convivência entre pretensos valores liberais e
uma existência mergulhada no preconceito, no racismo e na aver-
são às classes populares1 é justamente o cerne da personalida-
de de Eulálio. Sua tragédia acontece a partir de tais limites:
o relacionamento fracassado com Matilde caracteriza-se por sua
incapacidade de superar a ideia de posse: a esposa é vista desde

1 Roberto Schwarz já analisou, em trabalhos anteriores, o caráter dualista e contraditório assumido


no Brasil pela importação do liberalismo europeu por uma burguesia comprometida com o atraso
e com a escravidão.

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XII. Resenha

o início (quando se casam, ela tem 16 anos) como propriedade


de Eulálio, não apenas no sentido sexual, mas também no senti-
do existencial. Ele resolve se ela irá à fazenda ou à praia com os
franceses; ele decide se ela irá à festa na Embaixada ou não. Ele a
trata de cima para baixo, incomoda-se por Matilde não falar bem
o francês, por assobiar e por gostar do maxixe, ritmo dos negros
importado da África. Seu elitismo aflora continuamente ao longo
do relato em trechos nos quais se revela o desprezo do personagem
pelas pessoas que estão à sua volta. No hospital, ele chega a dizer:
Hoje sou da escória igual a vocês, e, antes que me internassem,
morava com minha filha de favor numa casa de um só cômodo,
nos cafundós.
Toda essa história nos é narrada no estilo que Chico Buarque
pratica desde seu primeiro livro, Estorvo, no qual, como disse Graieb,
“o prosaico se mistura a efetivos achados poéticos”. O que dá consis-
tência ao memorialismo de Chico é a técnica da confusão premedi-
tada e organizada pelo narrador. O romance é permeado pela ambi-
guidade, pela “vaga lembrança” e pela superposição de vários relatos
sobre o mesmo fato. O narrador nos alerta: a memória é deveras um
pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o
dono é capaz de achar todas as coisas.
É principalmente com o desaparecimento de Matilde que a
narrativa concretiza esse seu método primoroso: trata-se de um
memorialismo singular no qual a evocação dos fatos associa-se a
lampejos poéticos e a imagens de forte conteúdo lírico. Esse desa-
parecimento é contado de várias maneiras diferentes: fugiu com
um amante, morreu num acidente automobilístico, foi internada
num sanatório, suicidou-se... Qual é a versão verdadeira? Não sa-
bemos e não é objetivo do romance esclarecer tal situação. O eixo
narrativo articula-se ao redor desta ambiguidade, e tal articulação
é que o organiza como ficção.
Em termos psicológicos, tal confusão justiica-se pela memória
frágil de um ancião de 100 anos. Em termos literários, trata-se de
uma escolha certeira de um escritor maduro e consequente. É opor-
tuno registrar que até mesmo os interlocutores de Eulálio são cam-
biantes, alternam-se a cada instante: às vezes, ele fala para uma das
enfermeiras; outras, para a ilha, Maria Eulália; em alguns trechos,
conversa com o leitor, com sua mãe ou mesmo com o pai já falecido,
vítima de sua prepotência ao envolver-se com uma mulher casada.
Outro aspecto interessante da forma literária encontrada por Chi-
co para sustentar seu romance foi destacado, ainda que, a meu ver,

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Pandemônio da memória em Chico Buarque

incorretamente, por Eduardo Gianetti (FSP, 28/03/2009) em seu co-


mentário sobre Leite derramado: o uso da primeira pessoa confessio-
nal. Para esse autor, Chico serve-se desse “recurso exigente”, todavia
não consegue realizá-lo com vigor, pois seus personagens são meras
sombras com os quais não se consegue criar empatia. Ora, a narra-
tiva na primeira pessoa ao estilo confessional caracteriza-se por um
paradoxo: ao mesmo tempo que dá vida ao narrador, e, no caso de
Chico, também ao período histórico abarcado, coloca em segundo
plano as outras iguras da trama narrativa. Trata-se não de uma
falha, mas do preço pago pelo autor para levar a cabo sua experiên-
cia estética particular. Para superar tal limitação, seria necessário
erguer um edifício narrativo mais amplo, ao estilo de À la recherche
du temps perdu, de Marcel Proust, o que, evidentemente, não era a
intenção de Chico Buarque.
Com Leite derramado, Chico repete, em outro contexto, a bem-
sucedida experiência de Budapeste. Desta vez, servindo-se da am-
biguidade como ponto central do discurso narrativo. E airma-se no
quadro literário brasileiro não como o panletário “de esquerda” no
qual muitos querem transformá-lo, mas no romancista criativo e re-
alista que põe a nu diante de seus leitores, de forma artística e ex-
tremamente irônica, as mazelas da sociedade brasileira atual. Tanto
quanto o Bentinho de Machado, o Eulálio de Chico ergue-se diante
de todos não apenas como o marido ciumento e agressivo, e sim
como o representante típico de uma elite que ainda domina nosso
país, alheia aos ventos da democracia e temerosa das reivindicações
dos de baixo.

Sobre a obra: Chico Buarque de Holanda. Leite derramado. São Pau-


lo: Companhia das Letras, 2009. 195p.
Fonte: Site Gramsci e o Brasil.

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