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CONCEITOS DE LITERATURA E CULTURA

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Renato de Souza Bravo
Silvia Maria Baeta Cavalcanti
Tania de Vasconcellos
CONCEITOS DE LITERATURA E CULTURA

Eurídice Figueiredo
(organizadora)

2a edição

Editora UFJF / EdUFF


2010
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa dos editores.

Editora UFJF Editora da Universidade Federal Fluminense


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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca Central da UFJF

Conceitos de Literatura e Cultura / Eurídice Figueiredo,


organizadora. 2 ed. Niterói : EdUFF; Juiz de Fora: EdUFJF, 2010.
490 p.

ISBN 85-7626-003-4

1. Literatura comparada. I. Figueiredo, Eurídice (Org.)

CDU: 82.091

IMPRESSO NO BRASIL - 2010


SUMÁRIO

Introdução 7

Americanidade e Americanização 13
Zilá Bernd

Antropofagia 35
Heloisa Toller Gomes

Barroco e Neobarroco 55
Heloisa Costa Milton

Boom e Pós-boom 83
André Trouche

Crioulização e Crioulidade 103


Magdala França Vianna

Entre-lugar 125
Nubia Hanciau

Heterogeneidade 143
Graciela Ortiz

Híbrido, Hibridismo e Hibridização 163


Stelamaris Coser

Identidade Nacional e Identidade Cultural 189


Eurídice Figueiredo e Jovita Maria Gerheim Noronha
Indigenismo 207
Silvina Carrizo

Literaturas Migrantes 225


Maria Bernadette Porto e Sonia Torres

Mestiçagem 261
Silvina Carrizo

Multiculturalismo e Pluriculturalismo 289


Arnaldo Rosa Vianna

Negritude, Negrismo e Literaturas de Afro-descendentes 313


Eurídice Figueiredo, Maria Consuelo Cunha Campos,
Ana Beatriz Gonçalves e Márcia Pessanha

Pós-colonialismo e Pós-colonialidade 341


Eloína Prati dos Santos

Pós-moderno 367
Giséle Manganelli Fernandes

Realismo Mágico e Realismo Maravilhoso 393


Antonio Roberto Esteves e Eurídice Figueiredo

Regionalismo 415
Dilma Castelo Branco Diniz e Haydée Ribeiro Coelho

Textualidades Indígenas no Brasil 435


Cláudia Neiva de Matos

Transculturação e Transculturação Narrativa 465


Lívia Maria de Freitas Reis
INTRODUÇÃO

Eurídice Figueiredo

Como aponta Walter Mignolo, as teorias viajam e, ao chegarem a


lugares diferentes, são transformadas, sobretudo quando há a
interferência do legado colonial, ainda na memória das elites. Os
Estudos Culturais, que se originaram na Grã-Bretanha e se
disseminaram nos Estados Unidos, provocaram grandes
transformações na abordagem da Literatura Comparada nos últimos
anos no Brasil, tendo sido ora adotados (mas já transculturados) pelos
estudiosos brasileiros, ora rechaçados por aqueles que preferem uma
perspectiva mais puramente literária. Com o fim do estruturalismo
francês e com o surgimento dos estudos pós-coloniais na academia
anglo-americana, entraram em circulação conceitos que apareceram
em outros países e em outros contextos de produção. Ao mesmo tempo,
conceitos surgidos na América Latina passaram a ser mobilizados numa
nova perspectiva, sendo ressignificados neste novo contexto. Um bom
exemplo disto seria o uso diferenciado que se faz de termos derivados
de transculturação, conceito forjado por Fernando Ortiz em 1940:
no Canadá se fala muito de transcultura enquanto no Brasil esta palavra
é praticamente desconhecida. O mesmo se dá com mestiçagem: no
Canadá o conceito, esvaziado de seu sentido originário de mistura
racial, tem um espectro muito largo de uso, designando as misturas
culturais, literárias e lingüísticas: fala-se assim de língua mestiça, de
literatura mestiça, de arquitetura mestiça.
O propósito deste livro é o de tentar mapear os conceitos
identitários e literários que surgiram desde as vanguardas e transita-
ram pelas Américas até o final do século XX a fim de rastrear o sen-
tido, a origem e, sobretudo, o entrecruzamento e a superposição des-
tes conceitos, que correspondem a realidades culturais ora semelhan-
tes, ora díspares, e que foram cunhadas e utilizadas por teóricos em
várias partes do continente americano e no Caribe.
Trata-se, portanto, de uma obra de referência, que conta com a
participação de especialistas das várias literaturas nas quatro princi-
pais línguas das Américas (inglês, espanhol, francês e português),
que poderão dar conta do trânsito destes conceitos, com as referênci-
as bibliográficas das fontes, as ressignificações que foram assumindo
ao longo do tempo e do espaço percorridos. Muitos destes conceitos
tentam definir o estatuto da cultura americana e, sobretudo, latino-
americana, às vezes mais particularmente a literatura destes países
em oposição à literatura européia, mãe com a qual todas as literaturas
da América mantêm um vínculo placentário, na observação de Anto-
nio Candido. Este seria o caso de termos que têm origens diversas,
ora antropológicas, ora literárias, ora sócio-culturais.
Nos anos 1920 e 1930 surgem alguns conceitos chaves, que serão
retomados, transformados e revivificados por uma crítica mais cultu-
ral a partir dos anos 70. A antropofagia de Oswald de Andrade foi
revisitada pela música, pelo cinema, pelas artes plásticas e pelo teatro,
tornando-se um elemento canônico da cultura e da crítica brasileiras.
Enquanto Gilberto Freyre destacava a importância da mestiçagem na
formação do povo brasileiro, Fernando Ortiz analisava o processo de
transformação da cultura em Cuba, com a mistura das três raças, de-
signando-o por um novo conceito, o de transculturação. Se por um
lado, a mestiçagem cultural passou a ser absorvida pelos intelectuais
brasileiros desde então, a transculturação será aplicada à narrativa
literária pelo crítico uruguaio Ángel Rama, que fala de transculturação
narrativa. Durante o período das vanguardas no Peru, José Carlos
Mariátegui retomava e reutilizava o termo de indigenismo, numa vi-
são marxista e na defesa dos indígenas e de sua cultura, subalternos
em seu próprio país.

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Após o florescimento de uma literatura indigenista na região
andina, Antonio Cornejo Polar cria o conceito de heterogeneidade
para definir a realidade da América Latina em geral e mais particu-
larmente do Peru. Concomitantemente o escritor da ilha da Martinica,
Edouard Glissant, cria o conceito de crioulização para descrever a
formação dos povos compósitos da América das plantações, com im-
portante aporte das culturas africanas. No mesmo período, críticos
de origem asiática radicados nos Estados Unidos como Homi Bhabha,
Gayatri Spivak e outros, começam a falar de hibridez, hibridação,
assim como Garcia Canclini, argentino radicado no México, cunha o
termo de hibridismo, para tentar dar conta das misturas produzidas
por um mundo cada vez mais globalizado.
Nos anos 1970, Silviano Santiago já falava do entre-lugar do es-
critor latino-americano, conceito que não foi exportado devido à si-
tuação periférica que ocupa a crítica brasileira. Entretanto, termos
assemelhados serão utilizados em várias línguas por teóricos de dife-
rentes expressões: third space, in between, entre-deux. Como se pode
perceber, todos tentam dar conta de culturas que se constroem nas
margens, que se distinguem das culturas européias por um traço par-
ticular, a impureza, destacada por Silviano Santiago: “A maior contri-
buição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição
sistemática dos conceitos de unidade e de pureza (...). A América Latina
institui seu lugar no mapa da civilização ocidental graças ao movi-
mento de desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura os ele-
mentos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo
Mundo”.
A questão da contribuição do negro aparece no mapeamento dos
vários movimentos surgidos, tais como a Harlem Renaissance, seguido
da negritude na área do Caribe de língua francesa, pelo negrismo no
Caribe de língua espanhola, mas também pelo indigenismo e um cer-
to negrismo no Haiti, pela crioulização, bem como pelos movimen-
tos afro-brasileiros. Mas ela aparece também nas questões da
mestiçagem, do realismo maravilhoso, que surge no Caribe pelas mãos
de Alejo Carpentier mas também por haitianos como J. S. Alexis. O

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realismo maravilhoso, também conhecido por realismo mágico, asso-
ciado à utilização de um estilo barroco ou neo-barroco, está na origem
do fenômeno do boom da literatura hispano-americana, marco divisor
de águas que enseja o nascimento do termo pós-boom.
Alguns conceitos, como identidade cultural e identidade
nacional, são mais gerais porque abarcam, de fato, a espinhosa
problemática da nação como parâmetro definidor de uma cultura.
Pós-moderno e pós-colonial são igualmente abrangentes, oferecendo
a dificuldade adicional de serem termos que nascem em contextos de
produção diferentes dos da América Latina, tendo encontrado uma
resistência da crítica local e paradoxalmente se expandiram por todos
os campos da vida cultural.
Multiculturalismo e pluriculturalismo são termos muito
usados hoje pela crítica cultural, sendo que o país que melhor os define
é o Canadá, governado por uma política assumidamente multicultural.
O conceito de literatura migrante surge no Quebec para designar a
produção literária de imigrantes de primeira ou segunda geração.
Além do caso do Quebec, também foi contemplada no mesmo ensaio a
literatura produzida pelos hispânicos nos Estados Unidos.
Se a literatura indigenista era feita por mestiços ou simpatizantes
da causa indígena, como já salientava Mariátegui, os povos indígenas
das Américas, sobretudo a partir da segunda metade do século XX,
começam a produzir diferentes tipos de textos, escritos ou áudio-
visuais, o que designamos aqui de textualidades indígenas, seguindo
uma tendência dos grupos tradicionalmente subalternizados de
assumir sua própria voz, seu próprio discurso, evitando assim ser
falado pelo outro.
Americanidade, termo que em princípio deveria definir todo o
continente, tem sido usado como marca identitária sobretudo dos
latino-americanos, em oposição à americanização, processo de
massificação seguindo o modelo dos Estados Unidos, disseminado
sobretudo pela mídia.
Embora os vinte termos aqui usados não sejam todos conceitos
da mesma categoria de pensamento, o que se busca é rastrear nas

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quatro áreas lingüísticas o que tem aparecido na prática dos estudos
literários e culturais como sendo expressões de marcas identitárias
que dão conta de uma especificidade das vozes subalternas, das
minorias que participam da fundação da nação e da cultura. Não se
pretendeu aqui cobrir o aspecto do gênero (gender), área de pesquisa
que tem conhecido um grande desenvolvimento e que constituiria um
livro à parte. Em alguns ensaios, algumas áreas lingüísticas foram
privilegiadas, seja porque o conceito é mais relevante e pertinente em
algumas regiões, seja por não se contar com especialistas de todos os
assuntos, seja pela impossibilidade de se alongar demais.

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AMERICANIDADE E AMERICANIZAÇÃO

Zilá Bernd
Universidade Federal do Rio Grande do Sul/CNPq

Mérica, Mérica, Mérica,


Cosa sarà la sta Mérica?
Mérica, Mérica, Mérica,
L’è un bel massolino di fior
(Anônimo)

Definindo os objetivos
Os objetivos da presente reflexão são muito ambiciosos, talvez
demasiadamente ambiciosos e, por isso, pode acontecer que seu
percurso fique inacabado. Mesmo assim, acreditamos que valha a pena
tentar refazer a trajetória que o conceito de americanidade perfaz
através das Américas, retraçando seus deslocamentos, suas
transferências e as razões pelas quais ele é ora reivindicado ora
rejeitado, pairando quase sempre sobre ele o manto diáfano da
ambigüidade. Justifica-se o esforço por ser um conceito intimamente
associado às questões de identidade, podendo corresponder a um
anseio de afirmação identitária mais abrangente, para além das
nacionalidades, dos gêneros e das etnias, por tratar-se de um desafio
de identificação continental. Pensando-se na extraordinária
heterogeneidade do continente americano, esta proposta parece
irrisória: como se identificar a algo com tantas facetas no qual convivem
a riqueza e a pobreza, em que os desníveis econômicos e sociais são
imensos e onde tantas culturas se mesclaram em diferentes momentos
de sua história? Outro obstáculo talvez ainda mais difícil de vencer é
que a proposta de adesão a uma identidade continental obriga a romper
com os tradicionais pontos de referência étnicos, lingüísticos e
nacionais que são os que criam entre os indivíduos a noção de pertença
a uma comunidade. A grande vantagem é que a noção de
americanidade - com suas variantes américanité e americanidad - obriga
a introduzir a dimensão da alteridade na reflexão sobre o identitário,
podendo se constituir como uma espécie de não-lugar identitário para
as populações migrantes.
Antes de entrar na questão propriamente dita da migração do
conceito de americanidade através das Américas, para questionar a
oportunidade ou não de sua utilização no despertar do século XXI,
cabe mencionar, ainda que brevemente, alguns esforços já
empreendidos no sentido de tentar apreender aquele conceito e
projetá-lo no âmbito dos estudos literários no Brasil. Em 1995, editou-
se Literatura e americanidade (Editora da UFRGS) cujo conceito foi usado
no sentido de pertença à América, com ênfase na possibilidade de
contribuir para o esgarçamento de determinadas fronteiras
indevidamente impostas entre as literaturas americanas, permanecendo
a Europa como comparante incontornável. Já neste livro foram
lançados desafios para a prática de um comparatismo literário
interamericano. No mesmo ano de 1995, Imprevisíveis Américas (Sagra
Luzzatto/ ABECAN) teve a intenção de discutir questões de hibridação
cultural nas três Américas, e de interrogar-se sobre a possibilidade de
as Américas possuírem uma cultura que, apesar de sua prodigiosa
heterogeneidade, teria em comum o trabalho de e sobre o híbrido.
Em 2000, essa obra coletiva teve uma versão revista e aumentada,
editada em inglês, em Amsterdan, sob o título de Unforseeable Americas;
questionning cultural hybridity in the Americas, na qual foi empreendido o
questionamento mais aprofundado da hibridação cultural nas
Américas. A criação do GT- Relações literárias interamericanas da
ANPOLL, no ano 2000, deixou claro o interesse de mais de 20
pesquisadores de diferentes universidades brasileiras de exercer um
comparativismo literário entre as Américas, exercício esse que implica

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a revisão de muitos conceitos teóricos, entre os quais o de americani-
dade.
Nossa caminhada será longa, pois temos que, antes de tudo, nos
entender sobre o que significam as expressões: americano/a,
americanidade, americanização, e, até mesmo, América. Se formos
buscar ajuda no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, ele nos
confirma que “americano” é uma noção imprecisa, relativa em geral à
América do Norte, em especial aos Estados Unidos; em uma segunda
acepção, americano figura como relativo à América ou a qualquer país
deste continente. Enquanto, “americanizado” é referente à semelhança
com os americanos dos Estados Unidos e “americanização” é o efeito
de americanizar-se, de querer tornar-se semelhante aos cidadãos que
vivem nos Estados Unidos da América por admiração ao seu modo de
vida. A ambigüidade vem do fato desses cidadãos não se nomearem
estadunidenses, mas americanos, num processo metonímico
hipervalorizante. Enquanto os habitantes dos países latino-americanos
estavam se empenhando em definir-se como argentinos, uruguaios,
colombianos, brasileiros, etc, implicados em resolver a questão da
identidade nacional, os estadunidenses se apropriaram dos termos
América e “americano”, fazendo com que hoje, quando se fala de
“cultura americana” ou “cinema americano”, ou, simplesmente,
quando dizemos que “fulano é americano”, por exemplo, associa-se o
adjetivo, em primeiro lugar, aos Estados Unidos.
Uma das personagens de Noël Audet, ao viajar do Quebec aos
Estados Unidos, é impedida de entrar no país pelos funcionários da
alfândega, que a proíbem de entrar na “América”. “Sans blague,
proteste-t-elle, j’habite déjà en Amérique!” Elle a envie de leur crier
des injures, de leur dire qu’ils ont usurpé à leur seul usage le nom
d’Américains” (Audet, 1995, p.171).1 Já Maximilien Laroche, em seus
ensaios, vem, desde os anos noventa, alertando para esta situação que
nos impede de nomearmos a nós mesmos de americanos sem correr

1 “Isto é brincadeira, protesta ela, eu já moro na América! “Ela tem vontade de gritar-lhes
injúrias, de dizer-lhes que eles usurparam, para seu uso particular, a denominação de
americanos”. (A tradução é minha)

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o risco da ambigüidade. Ele chama a atenção para a necessidade de
romper com o círculo vicioso que une obrigatoriamente “uma certa
palavra a uma coisa: a palavra americanidade, por exemplo, e a
realidade América do Norte e, mais particularmente, esta palavra e a
realidade dos EUA” (Laroche, 1992, p.193). O interessante no texto
de Laroche é que ele não apenas constata a apropriação do termo
pelos estadunidenses, como destaca os efeitos de ambigüidade que
dele decorrem, passando para uma argumentação vigorosa em favor
da reversão desta situação, e propondo que redescubramos a América,
ou que juntos – hispano-americanos, antilhanos, brasileiros,
quebequenses - a reinventemos. Neste sentido, ele cita os autores Bell
Gale Chavigny e Gari Laguardia que, no livro Reinventing the Americas,
comparative studies of literature of the United States and Spanish America
(Cambridge University Press, 1986), afirmam que “a reinvenção da
América deve começar pela demonstração (revelação) da incoerência
retórica que cometemos a cada vez que designamos os Estados Unidos
pelo signo ‘América’ um nome que pertence de direito aos hemisférios”
(Chavigny e Laguardia, 1986, p. VIII, apud Laroche, 1992, p.195).

Percurso brasileiro
No século XVIII, José Basílio da Gama compõe O Uraguai (1769),
obra que está nos fundamentos da identidade nacional, invocando o
“gênio da inculta América” (canto IV) o que corresponde à
personificação da Musa invocada inicialmente no canto I. Menciona,
ainda, no canto V, a “Liberdade Americana” (com maiúsculas) e refere-
se aos índios vencidos das Missões Jesuíticas como o “rude Americano,
/ que reconhece as ordens e se humilha, / e a imagem de seu rei
prostrado adora” (GAMA, V, 137-139). Recuando ainda mais no tempo,
encontramos numerosas citações de Vieira (1608-1697) que incluem
a palavra América em referência ao continente, como o Sermão
Vigésimo Sétimo, em relação aos escravos: “e passam da mesma África
à América para viver e morrer cativos” (Vieira, 1981, p. 84); ou o
Sermão do Espírito Santo : “e o pudera dizer com muita razão aos
nossos da América” (Vieira, 1981, p.142). Mas talvez seja no Sermão

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da Epiphania em que apareça mais nitidamente sua concepção da
América como um todo no qual o Brasil se inclui. Menciona ainda o
fato de os três reis magos representarem a Ásia, a África e a Oceania.
E a América, o Novo Mundo, como fica, indaga o padre (Vieira, 1957,
p. 206-209), clamando para que esta nova terra seja mais respeitada.
Destaque-se, portanto, que, no que se refere ao Brasil, nem
sempre se cometeu a “incoerência retórica” de que falam os críticos
acima mencionados, pois a historiografia literária brasileira nos mostra
que, do século XVII ao XIX, circulava a palavra “americano” em
referência ao Brasil. José de Alencar, no prefácio do romance Sonhos
d’ouro (1872), ao introduzir a expressão “literatura nacional”, fala em
“seiva americana”:

A literatura nacional, que outra coisa não é senão a


alma da pátria, que transmigrou para este solo vir-
gem com uma raça ilustre, aqui impregnou-se da sei-
va americana desta terra que lhe serviu de regaço, e
cada dia se enriquece ao contato de outros povos e ao
influxo da civilização.

Mais adiante, no mesmo prefácio, ao falar das três fases da


literatura brasileira, reconhece que na segunda, a histórica, “se dá o
consórcio do povo invasor com a terra americana e a lenta gestação do
povo americano” (os grifos são meus). Como se vê, fica bem claro que
no século XIX, o discurso social punha em circulação o ideologema
americano(a) como equivalente de brasileiro(a). Luiz Roberto Cairo,
em artigo intitulado “Francisco Adolfo Varnhagen e o instinto de
americanidade” (2000), investiga o que seja o instinto de americanidade
“que tão de perto parece ter acompanhado a construção do instinto
de nacionalidade na literatura brasileira”. Em seu artigo, Cairo cita
Hélio Lopes (1997) que definiu o americanismo como “uma exaltação
do continente americano, visto como um dos aspectos do nacionalismo
romântico brasileiro” (Cairo, 2000, p. 86), chegando mesmo a afirmar
que o “americanismo” dos românticos brasileiros consistia em uma
usurpação do termo América: “chega-se a roubar o próprio nome da

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América para restringi-lo ao Brasil” (Lopes, 1997, apud Cairo, 2000,
p. 86). Esta constatação de “usurpação” da palavra América pelos
românticos, em referência ao Brasil, é prova inequívoca de que os
ideologemas viajam, e que o “pecado” de usurpação cometido pelos
estadunidenses já fora cometido por nossos poetas românticos. Não
seria difícil construir hipóteses sobre o porquê e o quando esta prática
deixa de ser costumeira. Acreditamos que “América” e “americano”
foram gradativamente substituídos por “Brasil” à medida que se
consolidava o projeto nacional, e que institucionalizar as letras
brasileiras tornou-se uma urgência. Valeu enquanto significava
oposição à Europa; quando os Estados Unidos passam a exercer
influência sobre a América Latina, o interesse passa a ser o de se
demarcar de um ideologema ambíguo em favor de um que
representasse nossa identidade de maneira inequívoca como Brasil,
brasilidade e brasileiro. Outra hipótese é levantada por Donaldo
Schüler, em seu mais recente livro (2001), no qual ele reflete sobre “O
fazer literário no espaço americano”. Para o crítico gaúcho,

O mapa do continente americano emerge das lutas por


independência manchado de nacionalidades, fragmen-
tos de unidades impostas, herança de conflitos distantes.
As unidades políticas se isolam ressentidas, mutuamente
hostis. Desenvolvem-se inseguras, carentes. Nascidas de
batalhas contra o autoritarismo de cabeças coroadas, não
cessa a resistência à subordinação imperialista, rapineira,
culpada pela transferência de nossas riquezas para ou-
tros territórios. O receio de que a influência alienígena
contamine legados culturais de que nos orgulhamos dis-
semina cautelas. (Schüler, 2001, p. 12)

Os modernistas, a começar por Mário de Andrade, vão tentar


definir a essência da brasilidade, sempre em oposição à Europa,
interessando-lhes, acima de tudo, a construção da língua e da cultura
nacionais. Suas sínteses não englobavam, de forma alguma, a Europa;
Mário de Andrade volta os olhos para a América, ao recolher, para
compor Macunaíma, mitos e lendas de toda a América Latina, tentando
integrá-los em uma única narrativa:

18
- Paciência manos! Não vou na Europa não! Sou ameri-
cano, o meu lugar é na América. A civilização européia
na certa esculhamba a inteireza do nosso caráter.
(Andrade, 1975, p. 145)

Sem dúvida, os postulados da Antropofagia prefiguram-se como


emergência do que hoje estamos chamando de americanidade, ao
preconizar uma identificação distintiva ao continente americano. O
poema Cobra Norato, de Raul Bopp (escrito em 1928 e editado em
1931), dentro do espírito da Antropofagia, ao apelar aos mitos
cosmogônicos da Amazônia, associados à renovação, e ao aderir ao
imaginário mágico-sacral dos nativos da América (“Agora sim, me enfio
nesta pele de seda elástica (da cobra) e saio a percorrer o mundo”)
está fazendo prevalecer a visão de mundo autóctone e afro-americana,
sobre o racionalismo europeu.

Percurso quebequense
No contexto quebequense, talvez seja ainda mais complexa a
relação com a América, pois sabe-se que a dupla colonização do
Québec, primeiramente pelos franceses em 1534 e depois pelos
ingleses em 1760, deixou uma ferida difícil de cicatrizar. Todo o
empenho em preservar a língua e a cultura francófonas no território
da província do Quebec teve que ser feito ao mesmo tempo a favor e
contra a França, num jogo de ambivalências que perdura até hoje. A
favor da França por ser imperioso para a comunidade preservar a
herança do patrimônio cultural francês, e contra ela, pois o
ressentimento de terem sido laissés pour compte, quando da invasão
inglesa, foi um trauma difícil de resolver. Por isso, parece à primeira
vista paradoxal que a cultura francesa seja tão ferrenhamente
defendida, enquanto os franceses (“les Français de France”) sejam
considerados como os “maudits français” (malditos franceses). Esta
situação determinou uma busca de afirmação identitária calcada no
repli sur soi (no ensimesmamento), num retorno nostálgico ao passado
e numa demarcação territorial circunscrita aos limites da província.
A célebre expressão “nous autres québécois” (nós, os quebequenses) é

19
reveladora de uma identidade de raiz única, voltada para a
determinação e valorização da história, da língua, da religião, da
cultura e dos valores herdados da colonização francesa. Esta postura
de preservação caracterizou a afirmação identitária como defensiva,
distante da fórmula dos antropófagos brasileiros cuja proposta era
preferencialmente agressiva, de devoração da cultura do outro. No
contexto do Quebec, o outro, que ameaça o equilíbrio instável da
cultura quebequense, foi, à época da invasão, a Inglaterra, passando
depois a ser representado pela América anglófona, ou seja, pelas
províncias canadenses de língua inglesa e pelos Estados Unidos.
Só bem recentemente, a partir dos anos 70, do século passado,
começa a haver uma abertura no debate identitário, com a inclusão de
um número maior de interlocutores, representado pelos numerosos
contingentes imigratórios, que chegaram ao Quebec, nos dois últimos
séculos. Léon Bernier (2001) destaca a dificuldade para alguns
quebequenses em pensar a identidade como um sistema de círculos
concêntricos (identidade quebequense, canadense, americana),
confundindo americanidade (américanité) com estadunidade. Porém,
sobretudo entre os mais jovens, verifica-se a percepção de que o
desenvolvimento de uma consciência continental não se traduz pelo
apagamento do sentimento de pertença a uma sociedade distinta, o
Quebec.
A americanidade não se confunde com americanização (assumir
o american way of life), pois remete – ao contrário – à inserção de um
dialogismo, como oposição ao “consenso globalizante da anglofonia”.
Como, nos dias de hoje, grande parte dos quebequenses é descendente
de imigrantes das mais diversas origens, emerge no Quebec uma
francofonia mestiça, caracterizada pela permeabilidade e pela
integração de distintos socioletos. Este é o ponto de vista de Van
Schendel (2001), que introduz o conceito de americanidade da
francofonia como vetor de uma pluralidade de pontos de vista e
contraponto dialógico à globalização.
Gérard Bouchard, em Génèse des nations et cultures du Nouveau
Monde (2000), vale-se, reiteradas vezes, do conceito de americanidade

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emprestando-lhe um sentido de resistência à atitude de buscar sempre
referências na Europa. Para ele, o conceito é paralelo ao de
africanidade ou antilhanidade, designando “a soma das transações
através das quais os membros de uma população nomeiam e ou sonham
com seu habitat” (Bouchard, 2000, p. 23). É interessante notar, também,
que americanidade designa, em sua reflexão, as marcas que a cultura
e o falar populares adquirem por distanciarem-se dos padrões da
norma culta emanada da Europa. Assim, ele afirma que a literatura
erudita ficava muito tolhida pela norma da língua francesa, nutrindo
uma relação de menosprezo com a cultura popular, o que afastava os
escritores “de uma americanidade viva e robusta que, aliás, forneceu
um rico material às práticas discursivas” (Bouchard, 2000, p. 126). O
emprego que faz do conceito é muito positivo, chegando mesmo a
afirmar que só emerge uma literatura quebequense, a qual irá nomear
a nação que passará a chamar-se Quebec, quando a cultura se torna
realmente americana, isto é, deixa-se impregnar pelos neologismos,
impurezas, anglicismos e transgressões associados à redescoberta da
América. As mestiçagens seriam as figuras da americanidade, assim
como, no contexto latino-americano, o crioulo, em um primeiro
tempo, e depois o mestiço se tornam figuras autênticas da
americanidade. Para o autor, a americanidade da América Latina está
inacabada porque os processos de continuidade e ruptura (em relação
aos modelos europeus) vêm se alternando, e os mecanismos de
apropriação simbólica não estão, ainda, inteiramente concluídos.
Jean Morisset é bem mais reticente em relação ao ideologema da
americanidade, colocando-o sob suspeição, por se tratar de um neo-
logismo que surge na América hispânica – americanidad 2 – e por con-
tinuar sendo associado apenas aos Estados Unidos. É interessante notar
que não há um equivalente em inglês para esta palavra, o que nos leva
a crer que o ideologema não circula – ou ao menos não com este rótu-
lo – no contexto anglófono. Neste sentido, o geógrafo da cultura e

2 Americanidad: expressão de uso corrente na América Latina no século XIX, para sublinhar
a existência de uma outra América, a América Latina, diferente da América do norte anglo-
saxã. (cf. Thériault, J.Y., 2001)

21
comparatista, que assinou numerosos artigos de envergadura
comparatista Quebec/ Brasil, prefere falar de Américas no plural, para
eliminar toda e qualquer ambigüidade e para introduzir a perspectiva
da diversidade e da pluralidade.
Pierre Nepveu, em Intérieurs du Nouveau Monde; essais sur les
littératures du Québec et des Amériques, esclarece, já no prefácio, suas
restrições em relação à noção de americanité, segundo ele, “neologis-
mo quebequense que freqüentemente significou (e significa cada vez
menos, felizmente) uma imensa ignorância da América e sua redução
a valores estereotipados nos quais não me reconheço: primitivismo,
naturalismo, anti-intelectualismo, mitologia dos grandes espaços,
sacralização da juventude e do novo” (Nepveu, 1998, p. 7). Contudo,
a relação de abertura que o autor propõe com respeito à América faz
do livro um ponto de referência obrigatório para quem pretende se
deter nesta questão das relações entre as identidades nacionais e uma
virtual identidade continental, que não se confunde com
homogeneização nem com melting pot, mas com dispositivo de ruptu-
ra com a idéia limitadora de fronteiras e de limites, ampliando-se as
noções de espaço. O que é acima de tudo valorizado, na revitalizante
proposta de Nepveu, é a possibilidade que a americanidade - ou como
quer que queiramos chamar as tentativas de estabelecimento de diálo-
go entre as Américas - oferece às literaturas, por mais ligadas que
estejam a culturas particulares, de se abrirem a outras influências para,
depois, voltarem mudadas, “carregadas de imagens e de idéias novas”
(Nepveu, 1998, p. 9).
Outro instigante ensaio que traz à baila a questão da
americanidade é Le mythe américain dans les fictions d’Amérique, de auto-
ria do crítico quebequense Jean Morency (1994). Comparando auto-
res estadunidenses e quebequenses conclui sobre a presença, no corpus
selecionado, de um mito unificador centrado no princípio da renova-
ção. A esse mito de renovação ele chama de mito americano, o qual
constituiria a grande narrativa das metamorfoses do homem em con-
tato com o Novo Mundo e sua tentativa de superação dos conflitos
iniciais.

22
Para encerrarmos, a tentativa de cartografar as migrações do
ideologema da americanidade, no que se refere ao Quebec, é oportu-
no destacar a posição do historiador quebequense Yvan Lamonde.
Em recente artigo (Le Devoir, out. de 2001), Lamonde critica a infla-
ção da noção de americanidade nos últimos tempos, sobretudo, a par-
tir da Cúpula das Américas (Sommet des Amériques), que aconteceu
em Quebec, em abril de 2001. Ele quer evitar que a noção de
americanidade inflame as consciências e se torne um novo
messianismo. Apoiado em suas pesquisas, o autor aponta a necessida-
de de lembrar que a americanidade é apenas um dos componentes da
identidade histórica do Quebec. Faz questão de sublinhar o ordinal
“um”, porque é preciso não esquecer que as experiências que ligaram
o Quebec à França, como primeiro colonizador, e à Inglaterra, como
segundo, foram tão determinantes para a formação da identidade
quebequense quanto a experiência americana. Como se vê, ele enten-
de por americanidade a constatação (e a aceitação) de pertencer ao
continente e de vivenciar experiências americanas. Lembra que há
uma síntese a realizar e que essa síntese deve incluir todas as heran-
ças, logo a americanidade e a europeidade, e que a noção de
americanidade não deve se confundir com uma aceitação incondicio-
nal da americanização “ou de qualquer forma de imperialismo, ga-
rantindo a vigilância contra qualquer projeto em que o econômico
venha a comandar a continentalização do imaginário e da cultura”.
(Lamonde, 2001)

Percurso caribenho
Os ideologemas não apenas viajam como se metamorfoseiam e se
travestem, a exemplo dos tricksters que povoam o imaginário america-
no. Assim, em 1927, quando surge no Haiti a Revue Indigène, seus
objetivos são os de chamar a atenção para o que havia de mais recuado
nas Américas antes da chegada dos conquistadores: os índios (caraíbas
e arawakes) que, no caso do Caribe, sofreram o genocídio logo nos
primeiros séculos. A palavra de ordem do manifesto de Normil Sylvain,
publicado no n.1 da Revue Indigène, parece ser o da renovação, o que

23
não significa fazer tábula rasa dos aportes culturais europeus, mas
“construir uma doutrina original” a partir dos modelos existentes.
Há um desejo manifesto de integração com a América Latina, pro-
pondo que o cordão de isolamento erguido entre a América hispânica
e a América francesa seja rompido. A noção de identidade apresenta-
da pelos articuladores da revista ultrapassa os limites dos essencialis-
mos, como o que leva os latino-americanos a definirem-se como índi-
os ou negros. Somos antes de tudo homens, afirma Sylvain, concluin-
do que os haitianos devem exorcizar a culpa de ignorar a América
Latina e tomar consciência de que “um perigo comum nos ameaça”,
ou seja, a alienação cultural e o franco-tropismo que leva a cultura das
elites a adquirir um caráter imitativo e subalterno. Trata-se, como o
Manifesto Antropófago brasileiro, publicado menos de um ano mais
tarde, de uma proposta clara de voltar-se para a América, assumindo
com orgulho o termo indigène (indígena), que fora usado como insul-
to. Falar a partir de um “ponto de vista indígena”, isto é, autóctone,
americano é a proposta que encerra o primeiro número da Revue
Indigène, coincidindo com os pressupostos dos modernistas brasilei-
ros com o seu lema “Tupi or not Tupi”. Reatar com uma tradição
americanista interrompida parece ser a tendência dos intelectuais
haitianos de 1927, convergindo com as teses da Antropofagia, que se
inspiraram do ritual antropofágico dos primeiros habitantes da Amé-
rica, os tupinambás, para formular sua teoria da cultura nacional.
Seis décadas mais tarde, em 1989, um outro manifesto eclode no
região do Caribe de língua francesa, intitulado Elogio da Crioulidade
(Éloge de la créolité), assinado pelos martinicanos Jean Bernabé, Patrick
Chamoiseau e Raphael Confiant. A crioulidade é um agregado
interacional (de influências recíprocas) ou transacional (acordo que
tem por base concessões recíprocas) de elementos culturais caribenhos,
europeus, africanos, asiáticos, etc. que a história reuniu em um mes-
mo solo. É, portanto, fruto de um turbilhão de significados em um só
significante, constituindo uma especificidade aberta, contrariamente
à Negritude, que se concentrava em torno de uma “especificidade
fechada”: a etnia e a cultura negras. Seus autores distinguem ameri-

24
canidade, antilhanidade e crioulidade, conceitos que poderiam recobrir
as mesmas realidades. Os processos de americanização (entendidos,
aqui, não como desejo de tornar-se estadunidense, mas como proces-
so contínuo de identificação com as Américas) e o sentimento de
americanidade dela decorrente serviriam para descrever processos
de adaptação progressiva das populações ao chamado Novo Mundo.
Diferente seria o processo de crioulização que designaria o “contato
brutal de populações culturalmente diferenciadas que foram levadas
a inventar novos esquemas culturais, para permitir sua coabitação”
(Bernabé, et alii, 1989, p. 30). Definida desta maneira, a crioulidade
englobaria a americanidade, pois implica um duplo processo:
- a adaptação de europeus, africanos e asiáticos ao Novo Mundo;
- a confrontação cultural entre esses povos num mesmo espaço,
levando à criação de uma cultura sincrética, dita crioula.
Edouard Glissant, que havia proposto a superação da negritude
através do conceito de antilhanidade (Discours Antillais, 1981), fornece
com suas teorizações sobre o Diverso e a Relação (Poétique de la Relation,
1990), sólidas bases para a crioulidade. Embora a princípio, tivesse
sido um crítico dos signatários do Éloge, acaba por avalizar o conceito,
preferindo, contudo, imprimir-lhe um caráter dinâmico, através da
introdução do termo crioulização, que remete ao devir inerente ao
conceito de identidade.
Em uma publicação recente, Walter Mignolo (2000, p. 239-249),
reflete sobre a crioulidade que considera um caso especial de
pensamento da margem (border thinking), em que as diferentes
populações em presença no espaço do Caribe são chamadas a inventar
novos projetos culturais que lhes permite coexistir. Seria, portanto,
resposta à busca de uma outra lógica, a lógica da diversidade, e de um
outro pensamento, o pensamento da margem:

No contexto do Caribe, vários são os autores que se refe-


rem à americanidade de forma recorrente, como o já
citado Maximilien Laroche, René Depestre e Dany
Laferrière. Nos limites do presente artigo, não é possí-
vel dar conta de todos os usos do termo e, portanto,

25
vamos nos limitar a mencionar um artigo recente de Dany
Laferrière, intitulado “Je suis en Amérique” (2000). Sen-
do de origem haitiana e cidadão canadense, viveu no
Quebec e residindo atualmente nos Estados Unidos, o
escritor se situa num entre-lugar que é americano. Afir-
ma ter o sentimento de pertencer à América e não à Eu-
ropa (embora sinta-se ligado à França através da língua)
ou à Africa (ligação com a cultura dos antepassados). A
América, para ele, seria um lugar de cruzamentos: es-
crever em francês, no jardim da casa de sua mãe no Haiti,
contos que ela lhe contara em créole, faz dele um ameri-
cano, como se o continente americano fosse uma espécie
de elo de ligação entre dois mundos, um espaço de
hibridação. Já que ele não é mais apenas haitiano, nem
inteiramente canadense (ou quebequense), ele prefere
nomear-se americano, como forma de reconhecer-se em
uma identidade mais ampla. Prefere, portanto, ser reco-
nhecido não como escritor francófono (palavra inventa-
da pelos franceses), mas como escritor americano que
escreve em uma língua francesa crioulizada. (Mignolo,
2000, p. 247).

Percurso hispano-americano
Não poderíamos concluir esse périplo em busca das aparições,
migrações e metamorfoses do ideologema da americanidade sem
relembrar que ele surge na América Latina como americanidad. Aimé
Bolaños3 nos informa que o conceito de americanidad se desenvolve
acompanhando um longo processo de diferenciação e de identificação,
sublinhando a importância do pensamento crioulo da ilustração,
vinculado às guerras de independência, para a consolidação deste
conceito. Ricardo Ávila (1998) aponta a gênese do conceito em Simón
Bolívar: Americanidad teria circulado primeiramente entre as elites
ilustradas do continente, vindo a tornar-se um mito fundacional, logo,
parte do imaginário coletivo dos latino-americanos. Solidifica-se como
resposta à política do presidente norte-americano Monroe, sintetizada

3 Informações fornecidas através de mensagem eletrônica em janeiro de 2002.

26
na frase: “A América para os americanos”, que era interpretada, na
América Latina, como “A América do Sul para os americanos do norte”.
As bases assimilacionistas dessa doutrina originaram a “resposta”
latino-americana que se expressou através da americanidad. Teriam
sido, segundo Ávila, a postura dos norte-americanos de se declararem
paladinos da democracia, que deu origem a uma identidade antagonista
na América Latina, opondo as Américas do Norte e do Sul.
Não se pode deixar de mencionar José Martí, quando o tema é a
americanidade. José Martí sonhou com uma América “nossa”: no
antológico Nuestra América (1891), articula seu pensamento em torno
de uma americanidade homogênea, prefigurando uma América “com
um só peito e uma só mente”, a união dos povos e o advento de “novos
homens americanos”. Não se confunda, aqui, o ideal de Martí, que
corresponde a um ideal da modernidade, de vislumbrar uma América
mestiça e homogênea, com o conceito de americanidade, que vimos
tentando construir no âmbito desse artigo. Na conjuntura da pós-
modernidade, reconhece-se a vasta heterogeneidade de culturas em
presença na América e sua capacidade de hibridação e de aceitação do
diverso em uma harmonia polifônica, como referem os autores do
Éloge de la créolité. Martí é, ainda hoje, uma referência obrigatória por
valorizar todos os elementos da América (a sua natureza, a sua cultura,
o seu povo mestiço) e por acreditar na possibilidade de constituir um
continente harmônico, reconhecendo-se direitos de índios, negros,
brancos e crioulos.
Deve-se ao cubano José Lezama Lima (1910-1976) uma das
reflexões mais lúcidas sobre a relação do escritor à América e sobre a
necessidade de uma “expressão americana”. Essa expressão americana
se caracterizaria pela proliferação e pela voracidade, no sentido de
abertura para a recepção de influências, e pela capacidade de
recuperar, restos, vestígios, marcas de culturas desvalorizadas para
reencená-las em um novo contexto. Em suma, a América seria o lugar
de transformação de fragmentos de outros imaginários, caracterizando
uma estética barroca. Irlemar Chiampi, autora do excelente prefácio
à edição brasileira de A Expressão americana (1988), sublinha que “o

27
barroco figura na fábula de nosso passado como um autêntico começo
e não como uma origem, já que é uma forma que renasce para gerar o
americano” (Chiampi, 1988, p. 24). Trata-se não de uma adaptação
do barroco europeu ao contexto americano, mas de constatar que o
verdadeiro barroco é realizado em sua plenitude no Novo Mundo,
desde os atos da vida cotidiana até às mais elaboradas formas artísticas.
É, ainda, Chiampi quem nos explica que a noção fulcral de
protoplasma incorporativo, exposta por Lezama, no último capítulo
de A expressão americana, intitulada “Sumas críticas do americano”,
para definir a originalidade da formação da cultura nas Américas,
“deriva conceitualmente da tese da transculturação” (Chiampi, 1988,
p. 10). Isto comprova que, da imbricação de aportes culturais, os mais
diversos em presença no continente, não há apenas perdas, mas a
geração de expressões culturais inéditas.

Incontornáveis Américas
Do trajeto percorrido, podemos perceber que há nuanças
significativas entre os conceitos de americanidad, américanité e
americanidade o que era, aliás, nossa hipótese inicial. Americanidad surge
primeiramente como força propulsora das independências e, mais
tarde, como revide ao temor de um neocolonialismo norte-americano,
estando ligado a determinadas urgências de uma América que precisa
concluir seus processos de independência social, política e econômica.4
Quanto à américanité quebequense, trata-se, sobretudo, de destacar o
seu caráter francófono, de reconhecer que a herança européia não foi
exclusiva e que há lugares de memória (lieux de mémoire) incontornáveis,
relacionados à vivência americana. Gérard Bouchard fala, em sua obra
já citada, em “gênese das nações e das culturas do Novo Mundo” e é
um dos grandes defensores da “americanidade quebequense”. A
americanidade, para além das variantes nacionais, repousaria sobre a

4 Há também o conceito de latino-americanismo que, segundo uma definição tradicional


(ver Alberto Moreiras, 2001) é “o conjunto de representações engajadas, encarregadas de
preservar, mesmo que de maneira contraditória ou tensa, uma idéia da América Latina como
o repositório de uma diferença cultural que quer resisitir à assimilação pela modernidade
eurocêntrica” (Moreiras, 2001, p. 60).

28
matriz das coletividades novas ou culturas fundadoras. Lembremos
que as coletividades novas são definidas por Bouchard como aquelas
que desenvolvem modelos culturais a partir da ruptura com as
metrópoles (e não a partir da continuidade, como é o caso das
coletividades ditas transplantadas). O autor lembra, também, que esses
espaços novos onde se erige a nova cultura, embora fossem na verdade
já habitados pelas populações autóctones, “criaram circunstâncias
próprias (pela ruptura com os modelos metropolitanos) a uma
mitologia dos (re)começos, a uma espécie de tempo-zero (ao menos
virtual, e às vezes real) da vida social” (Bouchard, 2000, p.15-16).
Já no contexto do Caribe, o conceito de crioulização abrange e
ultrapassa o de americanidade como um desafio de organizar a
comunhão “das diversidades humanas que não precisam renunciar
ao que elas são” (Chamoiseau, 1997, p. 203). Parece que há aqui uma
clivagem em relação à idéia de “gênese” das nações e das culturas
através dos mitos de recomeço, presente na concepção de
americanidade quebequense, pois, no âmbito da crioulização, surge o
conceito de “digênese” (Glissant), ou seja, uma negação da gênese, da
origem e dos recomeços. Nas Américas, “o ponto de impulso é
indiscernível, e móvel, e recapitulativo, e aberto, crescente, proliferante,
presidindo o nascimento sem começo das identidades crioulas”
(Chamoiseau, 1997, p. 204).
Segundo E. Glissant, a entrada em contato, no Novo Mundo, das
culturas atávicas (que possuem seus mitos cosmogônicos) dá origem a
culturas compósitas que não geraram gêneses, pois não adotaram esses
mitos de criação vindos de fora, até porque sua origem não se perde
na noite dos tempos, mas tem uma história. No que concerne às
sociedade crioulas do Caribe, “a gênese se funde em uma obscuridade,
a do ventre do navio negreiro. É o que eu chamo de digênese” (Glissant,
1997, p. 36).
Esse pensamento converge com o de Lezama Lima, para quem a
americanidade, ou a expressão americana, emerge com as formas
proliferantes e incorporativas do barroco que, nas Américas, graças
ao trabalho da transculturação, ao aproveitamento dos restos, dos

29
vestígios e das marcas deixadas por diferentes culturas gera elementos
culturais novos.
A americanidade na América Latina não se originaria, como quer
Gérard Bouchard, nem com o crioulo nem com o mestiço, pois a
mestiçagem se caracteriza pela homogeneidade (melting pot) e pela
previsibilidade. Ela só emerge verdadeiramente com a colocação em
marcha dos processos de transculturação e de hibridação com seu
valor acrescido da imprevisibilidade. O processo está inacabado, como
sugere o historiador quebequense, mas sempre o estará, pois os
processos de identificação estão em contínuo devir. O que interessa
não é propriamente o acabamento, mas que as trocas, as
interpenetrações e os processos de desiherarquização continuem a se
realizar, e que a idéia de uma americanidade compartilhada entre o
norte e o sul continue a possibilitar a relação.
Colocamos em epígrafe, nesse artigo, versos anônimos entoados
pelos colonos italianos, aqui chegados no século XIX. Sua curiosidade
em relação à América era muito grande e muitas foram as utopias que
se geraram em razão da expectativa da chegada. A América foi
pressentida por eles como um “massolino di fior”, um ramalhete de
flores, heterogêneo, múltiplo. As flores arranjadas em um ramo
guardam, cada uma, sua identidade, mas sua beleza adquire um
esplendor maior quando na harmonia do arranjo. Esta pode ser uma
utopia oitocentista, mas corresponde à intuição de um grupo que optou
pela América como lugar onde realizar seus sonhos e ideais. Talvez
estejam na voz popular e no imaginário mítico americano as chaves
que levarão à decifração e/ou à (re)invenção da americanidade. Talvez
sejam necessários, como quer Walter Mignolo, o surgimento de novos
lugares de enunciação para dar força e criatividade a conhecimentos
que foram subalternizados durante o processo de colonização
(Mignolo, 200, p. 3-45). Redescobrir na oralidade, no saber popular,
na “gnoseologia marginal” novas formas de habitar as Américas, e de
definir nossa pertença a elas, pode ser a via de acesso à americanidade
como lugar de resistência e recuperação da diferença colonial.

30
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33
ANTROPOFAGIA

Heloisa Toller Gomes


Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

Breve Histórico: O Movimento Antropófago e o


Modernismo Brasileiro
Os termos “antropofagia” e “antropófago” tornaram-se correntes
no vocabulário do modernismo literário brasileiro a partir de 1928, ano
em que Oswald de Andrade (1890-1954) lançou o seu explosivo Manifes-
to Antropófago. Esse texto, o gesto fundador do “Movimento Antropófa-
go” na literatura brasileira, expunha os inovadores e irreverentes princí-
pios que seriam desenvolvidos por Oswald e seus companheiros na Re-
vista de Antropofagia. Marcada pelo momento em que surgiu, a conturba-
da década de 20, a Antropofagia oswaldiana sobreviveu a seu tempo e
ampliou-se além da literatura e das artes plásticas, os dois campos em que
foi, de início, concebida. O conceito de “Antropofagia” e a noção que
hoje se tem do “Movimento Antropófago” devem-se em grande parte ao
texto do Manifesto de Oswald, súmula das propostas de renovação cultu-
ral e realização literária mais brilhante do movimento.
O legado da Antropofagia tem sido vasto, atingindo a cultura brasi-
leira em áreas diversas: o tropicalismo dos anos 60 e o Cinema Novo -
com Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade (1969) e Como Era Gosto-
so o Meu Francês, de Nelson Pereira dos Santos (1971) - foram decisiva-
mente marcados por suas idéias revolucionárias. Em entrevista de 1997
a Lara V.P. da Costa, o diretor, ator e encenador de teatro José Celso
Martinez Correia fez o significativo depoimento que se segue:
O Rei da Vela [peça de Oswald (1937), montada por Zé
Celso no Teatro Oficina, São Paulo, em 1967] ficou pronto
ao mesmo tempo que o Terra em Transe, do Glauber Ro-
cha, o Tropicália, do Caetano Veloso, o trabalho do Hélio
Oiticica. Na mesma época, começa a luta armada. O
Macunaíma, do Joaquim Pedro de Andrade, por outro
lado, foi muito influenciado pel‘ O Rei da Vela, especial-
mente pela cenografia do Hélio Eichbauer.

E adiante:

O tropicalismo vem da Antropofagia, que apareceu no


Modernismo e se confirmou no Manifesto antropófago, no
quadro da Tarsila do Amaral; mas depois houve um cer-
to eclipse desse movimento, pelo Naturalismo, pelo Rea-
lismo, pelo romance regionalista. Oswald dizia para a
geração que veio depois dele - a geração dos chato-boys -
, que a bola que ele jogou passaria por cima da cabeça
deles e outros iriam pegar. E nós pegamos a bola do
Oswald. O Tropicalismo retoma a Antropofagia, que re-
toma o Renascimento, que retoma o Dionisismo. São
movimentos muito amplos. Não são movimentos de um
subúrbio da cultura. (Correia apud Rocha, 2000, p.
55,56)

A Revista de Antropofagia, que publicou o Manifesto no seu número


de abertura, em maio de 1928, durou cerca de ano e meio. Sua
primeira fase, chamada por seus idealizadores “primeira dentição”,
encerrou-se em fevereiro de 1929. Na segunda fase (“segunda
dentição”) quando, segundo Augusto de Campos, a Antropofagia
adquiriu os seus definitivos contornos como movimento, a Revista foi
publicada nas páginas do Diário de São Paulo de 17.3.29 a 1.8.29. Ao
todo, foram 25 números.
Ao lado de Oswald, contaram-se entre os colaboradores regulares
ou esporádicos da Revista nomes de peso da intelectualidade brasileira
da época. Literatos, políticos e intelectuais, de diferentes tendências e
interesses, fizeram-se presentes: Guilherme de Almeida, Marques

36
Rebelo, Guilhermino César, Menotti del Picchia, Abgar Renault, Plínio
Salgado, José Américo de Almeida, Sergio Milliet, Antonio de Alcântara
Machado, Ascanio Lopes, Ascenso Ferreira, Augusto Meyer, Yan de
Almeida Prado, Josué de Castro, Pedro Nava, San Tiago Dantas,
Câmara Cascudo, Augusto Schmidt, Raul Bopp, Eneida, Mario de
Andrade. Artistas como Tarsila do Amaral e Pagu ali expuseram seus
trabalhos. Poemas famosos do modernismo estrearam em suas
páginas: “No Meio do Caminho” e “Anedota da Bulgária”, de Carlos
Drummond de Andrade; “Noturno da Rua da Lapa”, de Manuel
Bandeira; “República”, de Murilo Mendes; “Canção do Exílio” e
“Cartão Postal” (entre outros), de Murilo Mendes; “Diabo Brasileiro”,
“Migração” e “Maleita”, de Jorge de Lima. Mario de Andrade, figura
de proa no modernismo paulista, teve a sua participação no Movimento
Antropófago interrompida na medida em que as suas propostas
estéticas vieram a afastar-se das do grupo: a partir do 4o. número da
“2a. dentição” cessou a contribuição do autor de Macunaíma à revista.
É verdade que nem sempre as idéias expressas pelos mentores
da revista – muitos, sem dúvida, menos talentosos do que diversos
colaboradores citados acima – refletiram com fidelidade o pensamento
ou puderam avançar as propostas originais de Oswald. Em Revistas
re-vistas: Os antropófagos, artigo de introdução à edição fac-similar da
Revista publicada em 1975, Augusto de Campos observa:

Nos 10 números da revista [na primeira fase], o único


texto que se identificava plenamente com as idéias revo-
lucionárias do manifesto, era “A ‘Descida’ Antropófaga”,
artigo assinado por Oswaldo Costa, igualmente no n.º 1.
Um “doublé” de Oswald (até no nome) que diz: ‘Portu-
gal vestiu o selvagem. Cumpre despi-lo. Para que ele
tome um banho daquela ‘inocência contente’ que per-
deu e que o movimento antropófago agora lhe restitui.’

Muitos daqueles autores, como o referido homônimo de Oswald,


perderam-se na euforia do exótico e tiveram uma efêmera notoriedade.
Não, decerto, o próprio autor do Manifesto que anos mais tarde, em O

37
Caminho percorrido (um dos ensaios de 1943-44, reunidos em Ponta de
lança), faria uma avaliação retrospectiva do Movimento Antropófago,
ressaltando a sua seriedade ideológica e vendo-o como alavanca do
modernismo em particular, da moderna literatura brasileira em geral.
Oswald situa o ideário e as preocupações da Antropofagia no bojo do
modernismo nacional, expressando, portanto, nítidos anseios e
inquietações de seu tempo. Assim, ele afirma ser preciso:

compreender o modernismo com suas causas materiais e


fecundantes, hauridas no parque industrial de São Pau-
lo, com seus compromissos de classe no período áureo-
burguês do primeiro café valorizado, enfim, com o seu
lancinante divisor das águas que foi a Antropofagia nos
prenúncios do abalo mundial de Wall-Street.

No mesmo texto, Oswald enfatiza ainda: “A Antropofagia foi na


primeira década do modernismo o ápice ideológico, o primeiro contato
com nossa realidade política porque dividiu e orientou no sentido do
futuro” (Andrade, 1991, p.111).
A efervescência modernista condizia com o momento histórico
que então vivia o Brasil. Do ponto de vista político, o país na década
de 20 atravessava uma fase extremamente complexa. O poder, não
mais dependente dos latifúndios açucareiros do nordeste, agora
decadentes, atrelava-se aos interesses dos grandes proprietários rurais
de Minas Gerais e São Paulo. Naqueles últimos anos da República
Velha (1894-1930), São Paulo e o Rio de Janeiro contavam com uma
burguesia industrial e uma classe média em expansão, crescentemente
engajada no exército, no comércio, nas profissões liberais. A classe
trabalhadora brasileira diversificava-se e crescia em razão do influxo
da imigração européia, principalmente nos estados do sul. Em todo o
país, os antigos escravos e seus descendentes, que constituíam a grande
massa da população pobre, lutavam pela inserção social, quando não
pela sobrevivência. O desequilíbrio de forças entre a classe dominante
e os grupos sociais menos poderosos gerava ideologias conflitantes,
na tensão entre o conservadorismo e a apatia política, por parte da

38
primeira, e o ímpeto de reformas e de mudanças por parte dos últimos,
os grupos que se ressentiam da falta de poder político e de
oportunidades econômicas.
O desejo de mudanças refletia-se na esfera da cultura. Desde o
início dos anos 20 o panorama cultural brasileiro se expandia, com
anseios de renovação, agitando a intelectualidade na literatura, na
música, nas artes plásticas. A discussão político-cultural estava na
ordem do dia, assim como, nos meios intelectuais, a discussão social
viria a predominar na década seguinte. Conforme escreve Eduardo
de Assis Duarte,

Trinta vai herdar, como é sabido, boa parte deste sentido


de modernidade bafejado na literatura brasileira a par-
tir de 22. Mas vai sofrer, da mesma forma, o impacto da
derrubada da República Velha e da nova configuração
política instalada com a vitória dos liberais (Duarte, 1996,
p. 20).

O Manifesto antropófago de 1928, assim como seu antecessor na


obra oswaldiana, o Manifesto pau-brasil de 1924, foram manifestações
literárias diretamente decorrentes do Movimento Modernista
inaugurado, em São Paulo, pela Semana de Arte Moderna de 1922.
Ambos surgiram na chamada “fase heróica” do modernismo brasileiro,
a sua etapa inicial, entre a Semana e a Revolução de 30. De início
unificado em torno da revista Klaxon, mensário de arte moderna, o grupo
de São Paulo - o mais radical e combativo dentre os nossos modernistas,
segundo Manuel Bandeira (Breve história da literatura brasileira) -
bifurcou-se em Primitivismo e Verde-amarelismo (estes últimos, os da
Revista Anta). Os “Primitivistas” eram Oswald de Andrade, Raul Bopp,
Osvaldo Costa, Antônio de Alcântara Machado. Foi entre eles que
floresceu a Antropofagia.
Se tanto a Semana quanto a proposta estética dos “antropófagos”
diziam respeito, basicamente, ao modernismo dos grandes centros
urbanos do sudeste, o modernismo nordestino, igualmente fecundo,
expressava outras tendências e motivações. Em 1926, em Recife,

39
cientistas sociais e literatos (reunidos em torno de Gilberto Freyre)
organizaram o 1º Congresso de Regionalismo, antecipando o espírito
de denúncia social que marcaria a década seguinte, e afastando-se,
decididamente, do cosmopolitismo cultural do Rio e de São Paulo,
nos anos 20. Os escritores nordestinos estimulavam uma reflexão
sociológica e estética sobre a formação racial brasileira e sobre os
grandes problemas nacionais, mais especificamente do Nordeste,
através de uma crítica voltada para a realidade social das regiões mais
pobres do país. O Programa do Centro Regionalista do Nordeste
(1926) pretendia “desenvolver o sentimento de unidade do Nordeste,
já tão claramente caracterizada na sua condição geográfica e evolução
histórica e ao mesmo tempo, trabalhar em prol dos interesses da região
nos seus aspectos diversos: sociais, econômicos e culturais”. O
Manifesto do mesmo ano, elaborado por Gilberto Freyre, proclamava
em seus artigos VIII, IX e XVII a “Originalidade do 1º Congresso
Brasileiro de Regionalismo” na “defesa de valores plebeus e não apenas
dos elegantes e eruditos”, numa implícita crítica a seus pares do sudeste,
alertando: “Mas nem tudo está perdido: apenas ameaçado”. (Freyre
apud Teles, 1972, p. 216-218).
Oswald de Andrade reconheceu a inevitável diluição das propostas
da Semana diante do conturbado cenário social, político e econômico
internacional e no país na década de 30, e da conseqüente demanda
por uma literatura diretamente engajada no social. Ainda em O caminho
percorrido (Ponta de lança) ele escreveria:

O modernismo é um diagrama da alta do café, da que-


bra e da revolução brasileira. Quando o Sr. José Américo
de Almeida mostrou a senda nova do romance social, se
tinham já dividido em vendavais políticos os grupos lite-
rários saídos da Semana (Andrade, 1991, p. 111).

Na verdade, com o tempo aproximaram-se os poetas do sul e os


nordestinos. Ainda, no decorrer da década de 30, fundiram-se as
conquistas do modernismo estético do sudeste e o interesse pelo social
e pelas realidades regionais, estimulados pelos autores nordestinos
(Bosi, 1974, p. 389).

40
O Índio Brasileiro e a Questão Racial no Movimento
Antropófago: o Espaço da Utopia
Toda a ênfase dada por Oswald e pelos “antropófagos” ao
elemento indígena (núcleo da metáfora central da Antropofagia) diz
respeito a um índio emblemático, figurado e mítico. Não há referências,
quer no Manifesto quer na Revista (a não ser uma breve menção no
número final), a índios contemporâneos. A antropofagia dos grupos
tupi-guarani da costa brasileira quinhentista serve de mote à Revista
da antropofagia, assim como já havia servido ao indianismo romântico
de Gonçalves Dias. No século XIX, o poeta maranhense vinculara o
ritual indígena às qualidades de virilidade e bravura com que idealizara
nosso “bom selvagem”. Lembremos I Juca Pirama:

Mandai vir a lenha, o fogo,


A maça do sacrifício
E a muçurana ligeira:
Em tudo o rito se cumpra!

No Manifesto de Oswald de Andrade a marca rousseauniana, tão


forte no romantismo indianista, é explicitamente assinalada, porém
em seu irreverente avesso: “Filiação. O contato com o Brasil Caraíba.
Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau.”
Haroldo de Campos lembra que, em A Marcha das utopias, Oswald
investira ironicamente contra a visão romântica do índio e que criara,
no dizer de Oswald, aqueles “índios conformados e bonzinhos de
cartão-postal e de lata de bolacha”. (O Estado de São Paulo, 8-9-1953).
Campos assinala a afinidade oswaldiana, não com Rousseau, mas com
a concepção de Montaigne do “mau selvagem” devorador. Ele escreve:

O ‘índio’ oswaldiano não era o ‘bom selvagem’ de


Rousseau, acalentado pelo Romantismo e, entre nós, ‘ni-
nado pela suave contrafação de Alencar e Gonçalves Dias’.
Tratava-se de um indianismo às avessas, inspirado no
selvagem brasileiro de Montaigne (Des cannibales), de um
‘mau selvagem’, portanto, a exercer sua crítica (devoração)
desabusada contra as imposturas do civilizado (Campos,
1972, p. li, lii).

41
Na rejeição de falsos purismos, de cópias subservientes ou de
xenofobias redutoras, a Antropofagia condenava o indianismo, em sua
feição ufanista e romântica. No entanto, malgrado a sua crítica
desabusada dos românticos, (“contra o índio de tocheiro. O índio
filho de Maria, afilhado de Catharina de Médicis e genro de D. Antonio
de Mariz”, lemos no Manifesto), Oswald reduplicou a atração romântica
pelo passado indianista, especialmente pelo mito pré-cabralino.
Executou mesmo, nas palavras de Augusto de Campos, um “indianismo
às avessas” — prefigurado, aliás, cinqüenta anos antes pelo maranhense
Sousândrade.
Marcantemente diferenciado do índio romântico, o índio
configurado por Oswald de Andrade tampouco se assemelhava a seu
modelo real. Conforme observa o antropólogo Carlos Fausto, “[o]
índio nu oswaldiano continua sendo uma figuração distante das
realidades indígenas efetivas”. Fausto ressalta, por outro lado, a
importância da Antropofagia como metáfora, a expressar uma
compreensão profunda do canibalismo enquanto operação prático-
conceitual (Fausto, 2000, p.76).
A problemática racial, por sua vez, tão premente no modernismo
do nordeste acoplada à tematização dos problemas sociais brasileiros,
esteve ausente ou teve um tratamento, essencialmente, figurativo na
Antropofagia oswaldiana. Não que a questão racial estivesse fora dos
interesses de Oswald de Andrade, sendo amplamente trabalhada em
sua obra ensaística.
Tanto antes quanto depois da Antropofagia, Oswald discorreu
sobre o componente populacional negro em nosso país. Em várias
ocasiões ele comentou as idéias de Gilberto Freyre e Sergio Buarque
de Holanda, discutiu as relações raciais entre nós, comparou as relações
raciais no Brasil com as de outros países. No interior da Poesia pau-
brasil (1924), Oswald escreveu a impressionante série dos Poemas da
colonização. O reconhecimento da contribuição africana no Brasil
encontraria, em Oswald de Andrade, sua explicitação mais direta em
inícios dos anos 40 – especialmente em alguns dos textos reunidos em
Ponta de lança. Em Aqui foi o sul que venceu, por exemplo, ele se refere

42
ao orgulho “da mistura milionária que nos trouxe a África, com seus
grandes nagôs, seus filões de cultura sudanesa e oriental e seus rijos e
álacres trabalhadores do Benin e de Angola” (Andrade, 1991, p. 75).
Não há referências à população negra no Manifesto Antropófago.
A proposta relativa à identidade cultural brasileira toma ali a forma
de uma estratégia cultural que, sem pretender englobar uma leitura
consistente da nossa realidade social (ou política, ou econômica), aponta
para o espaço da utopia. Não se pode efetivamente encontrar na
Antropofagia aquilo que ela própria descarta. Nem sempre os
epígonos de Oswald assim o entenderam, como se lê em diversas
matérias publicadas na revista. Mas Oswald de Andrade foi claro ao
afirmar, no fragmento final do Manifesto antropófago, a primazia do
utópico: “Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada
por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições
e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.”

O Modernismo brasileiro e as Vanguardas Européias;


Antropofagia, Canibalismo: Uma Leitura dos
Termos na Cultura Ocidental
Os diversos movimentos vanguardistas europeus com os quais
os modernistas paulistas até certo ponto se identificavam foram,
decididamente, influentes na formulação do modernismo no Brasil.
Os modernistas brasileiros, principalmente aqueles pertencentes às
elites culturais urbanas, serviram de mediadores entre a vida intelectual
européia e a cultura nacional buscando, naquela, aspectos que
atendessem à nossa complexa realidade e herança de colonizados, em
uma sociedade então recentemente egressa do regime escravista, mas
com uma intelectualidade jovem, em grande parte ávida de
transformações sócio-econômicas de base. Em depoimento a Péricles
da Silva Ramos (Correio Paulistano, 26/6/49), Oswald de Andrade
estabeleceu a conexão, ao mesmo tempo em que marcou a diferença,
entre o modernismo brasileiro e as manifestações culturais da
vanguarda européia, ao relatar o sentido do “Movimento Pau-brasil”,
também configurado por ele:

43
O primitivismo que na França aparecia como exotismo
era para nós, no Brasil, primitivismo mesmo. Pensei,
então, em fazer uma poesia de exportação e não de im-
portação, baseada em nossa ambiência geográfica, histó-
rica e local. Como o pau-brasil foi a primeira riqueza
brasileira exportada, denominei o movimento Pau-Bra-
sil. Sua feição estética coincidia com o exotismo e o mo-
dernismo 100% de Cendrars, que, de resto, também es-
creveu conscientemente poesia pau-brasil.

Como os modernismos europeus, o modernismo brasileiro foi


fértil em manifestos. Mantendo diálogo com as correntes vanguardistas
européias (especialmente o Surrealismo e o Dadaísmo, dos quais
absorveu a “retórica de choque”, na expressão de Benedito Nunes), o
Manifesto Antropófago promovia uma síntese das conquistas daquelas
vanguardas, tais como a valorização do inconsciente e a negação do
racionalismo; e utilizava-se de recursos estilísticos e retóricos inéditos
ou retomados pelo modernismo internacional, como a rejeição da
sintaxe tradicional, frases de efeito e expressões-síntese em staccato –
técnicas, aliás, já antecipadas no século anterior pela poesia de Walt
Whitman e exploradas, por exemplo, no manifesto de Marinetti, a
plataforma estética do Futurismo (1909).
Mas por que canibalismo, por que antropofagia? Especifiquemos
o sentido dos dois termos, com freqüência confundidos ou utilizados
como sinônimos. A palavra “antropofagia” vem do grego
(anthropophagia, por via erudita) e etimologicamente significa o ato de
comer carne humana. Pode implicar a idéia de ritual, enquanto que
“canibalismo”, termo que designa também a ingestão por animais de
outros animais da mesma espécie, seria parte da dieta alimentar de
certas tribos indígenas. A palavra “canibalismo” só se difundiu, segundo
consta, depois da descoberta da América, originando-se
presumivelmente de um engano: em sua primeira viagem, Cristóvão
Colombo ouviu referências aos “caribes”, ou “caribas”, através dos
arawakes, seus inimigos. Estes diziam que os “caribes” eram ferozes e
comiam os prisioneiros. Colombo entendeu “caniba”, porque pensava

44
nos súditos do grande Can, surgindo, deste equívoco, os termos canibal
e canibalismo.
O mundo ocidental sempre sentiu horror e fascinação pelo tema
do canibalismo e pela figura assustadora do canibal antropófago,
estimulador de fantasias desconcertantes na mente de poetas, filósofos
e romancistas. De Homero e Ovídio a Joseph Conrad, de Santo
Agostinho a Dante, Rabelais, Ben Jonson, o imaginário europeu, pagão
e cristão, foi constantemente povoado de figuras terríveis de
devoradores, presentes nos mitos imemoriais (Cronos devorando os
filhos, Tântalo servindo aos deuses o corpo desmembrado do filho
Pelops), assim como na literatura, em lendas, no folclore e nos contos
de fadas com seus ogros e papões.
As descobertas marítimas da Idade Moderna européia e o acesso
mais amplo a zonas afastadas do planeta deslocaram geralmente para
regiões remotas, apartadas da civilização européia – o Novo Mundo, a
África, o Pacífico – aquilo que o imaginário civilizado rejeitava e
apartava de si, efetuando o que Peter Hulme chamou de canibalização
do arquivo colonial (Hulme, 1988, p.8,9). A noção do “caldeirão do
antropófago” incorporou-se com facilidade ao arsenal de noções
racistas com que o Ocidente eurocêntrico preconcebia e supunha ser
o “Outro”, conferindo-lhe invariavelmente o que podemos chamar
de alteridade negativa. Ao longo de séculos, intelectuais e literatos –
Milton e Coleridge, Marx, Herman Melville, José de Alencar, entre
tantos outros – ocuparam-se recorrentemente da temática da
antropofagia e do canibalismo, incorporando-a a seus respectivos
universos ficcionais, e/ou fazendo da devoração humana poderosa
metáfora crítica ou estética. Em A Tempestade (c.1611), Shakespeare
evocara o “canibal” através do anagrama “Caliban”. Já no século XX,
o modernista Francis Picabia, co-fundador da Revista Cannibale ao lado
de Tristan Tzara, publicava em Paris o Manifesto e Cannibale Dada
(1920); e Lévi-Strauss, em Tristes Trópicos (1955), atribuiu a imagem
do ogro à civilização ocidental, culpada do genocídio de populações
indígenas. Os exemplos são incontáveis.

45
Vejamos na ficção. Canibais ameaçam Robinson Crusoé, no céle-
bre livro de Daniel Defoe - aliás, o próprio “Sexta-Feira”, antes de ser
resgatado da selvageria por Crusoé praticara a antropofagia entre os
seus, relata o protagonista-narrador de The Life and Strange Surprising
Adventures of Robinson Crusoe (1719). Na primeira metade do século
XIX, Edgar Allan Poe, em The Narrative of Arthur Gordon Pym (1838),
descreveu com crueza de detalhes um ato de canibalismo encenado,
não entre nativos selvagens em paragens exóticas, mas por náufragos
famintos em uma baleeira à deriva. Poe inspirou-se no panfleto de
J.N. Reynolds, South Sea Expedition, exemplo de uma das numerosas
narrativas de colonização que relatavam casos de devoramento huma-
no entre aventureiros e marujos à beira da morte por inanição. Tam-
bém Jules Verne, em Les Enfants du Capitaine Grant (1868), relatou
cena de canibalismo, assistida com horror por olhos europeus; e
Flaubert, poucos anos depois, referiu-se a “antropófagos tocados de
plumas”, decorando a “geografia ilustrada” do lar burguês, em “Un
Coeur Simple” (1877). Na ficção brasileira das últimas décadas, João
Ubaldo Ribeiro e Antonio Torres, em Viva o povo brasileiro (1984) e
Meu querido canibal (2000), respectivamente, explorariam o tema.
O cinema também tem se entretido com a temática da devoração
humana, entre “selvagens” ou “civilizados”. Além dos filmes brasilei-
ros já citados e do recente Hans Staden (Luiz Alberto Pereira, 1999),
lembremos O Cozinheiro, O Ladrão, sua Esposa e seu Amante, de Peter
Greenaway (1989); O Silêncio dos Inocentes, baseado no livro de Thomas
Harris e dirigido por Jonathan Demme (1991), e o mais recente
Hannibal (Ridley Scott, 2001).
Oswald de Andrade, de início relutante em especificar o que en-
tendia por antropofagia (“Definir a antropofagia não é coisa fácil”,
declarou em entrevista a O Jornal no Rio de Janeiro, em 1928), assim
veio a defini-la em sua tese A Crise da Filosofia Messiânica (proposta à
Faculdade de Ciências e Letras da USP, em 1950):

A antropofagia ritual é assinalada por Homero entre os


gregos e, segundo a documentação do escritor argentino

46
Blanco Villalta, foi encontrada na América entre os po-
vos que haviam atingido elevada cultura: Astecas, Mais,
Incas. Na expressão de Colombo, ‘comian los hombres’.
Não o faziam porém por gula ou fome, tratava-se de um
rito que, encontrado também em outras partes do globo,
dá a idéia de exprimir um modo de pensar, uma visão
do mundo que caracterizou certa fase primitiva de toda
a humanidade. Considerada assim como ‘Weltanschauung’,
mal se presta à interpretação materialista e imoral que
dela fizeram os jesuítas e colonizadores. (...) A operação
metafísica que se liga ao rito antropofágico é o da trans-
posição do tabu em totem. Do valor oposto, ao valor
favorável.

O Que Diz o Manifesto: Sua Crítica


O grande achado de Oswald de Andrade foi fazer da noção da
antropofagia - em vários de seus aspectos conhecidos ou presumíveis:
místico-rituais, punitivos, metafísicos, vingativos, nutrientes - a
metáfora central a partir da qual entender o Brasil. Servindo-se do
farto material disponível na cultura ocidental, e recorrendo
explicitamente, no Manifesto, ao pensamento de Montaigne (“Des
Cannibales”, 1589), e de sua fonte mais importante, o protestante Jean
de Léry, figura-chave como intérprete europeu do canibalismo
indígena, ele ali pinçou aquilo que interessava, fundamentalmente, a
seu projeto: a revisão crítica e a renovação da cultura brasileira.
O Manifesto Antropófago patenteia a originalidade e o talento de
Oswald de Andrade, autor da proposta de renovação cultural mais
radical e polêmica de que até hoje se tem notícia na literatura brasileira.
O Manifesto questiona a estrutura política, econômica e cultural
aqui implantada pelo colonizador, na qual se formara a sociedade
patriarcal brasileira, com seus padrões repressivos de conduta. Assim,
avalia os estragos de uma civilização, que se perdera em modelos
culturais impostos pelo patriarcalismo luso-europeu, repressor e
culposo, e ridiculariza a imitação grotesca de padrões culturais e de
comportamentos que nos são estrangeiros. Tais padrões e modelos,
artificialmente introjetados, seriam a “má antropofagia”. Já a “boa

47
Antropofagia”, saudável e verdadeira, exibe como solução para os
impasses culturais brasileiros o devoramento, a deglutição e a digestão
de nosso legado cultural europeu (visto como inescapável), no solo
pujante do que Oswald chamou “o Matriarcado de Pindorama” e no
qual preside, alegremente, a “lei da antropofagia”.
Isto significa a radical negação de todos os padrões hierárquicos
estabelecidos, pois no processo digestivo opera-se a “absorção do
inimigo sacro” - ensinamento caraíba com data e local assim registrados
por Oswald no Manifesto: “Piratininga/ Ano 374 da Deglutição do Bispo
Sardinha”. Metáfora-chave, além de marco histórico da grande saída
cultural brasileira. Esta, a (re)descoberta proclamada pelos modernos
antropófagos. Esta, a originalidade brasileira.
Do ponto de vista estético, o Movimento Antropófago valoriza
nossos elementos nativos e primitivos em combinação com a assimilação
das tendências modernas do pensamento europeu. Na conjunção de
realidade natural, social, histórica brasileira com o instrumental teórico
e estético das vanguardas, a Antropofagia surge com uma proposta
original e inédita: é a metáfora central a partir da qual entender e
expressar o Brasil, reavaliando o seu passado e incorporando-o
criativamente ao presente, na projeção e no projeto de um futuro
utopicamente livre.
No cenário brasileiro, tumultuado e contraditório, a proposta
antropófaga tornou-se emblemática ao incorporar os próprios
paradoxos e impasses nacionais como materiais propulsores da
renovação radical (no sentido etimológico da palavra, de “raiz”)
imprescindível para sacudir o pensamento cultural brasileiro da
passividade e da letargia diante do status quo, e para libertá-la da imitação
servil dos cânones luso-europeus ainda vigentes naquele início do
século XX.
A Antropofagia oswaldiana despontou envolta em atilado senso
de humor, e seu caráter lúdico, parodístico, e, portanto, crítico, não
pode ser desdenhado. Ela realça a função do discurso irônico, em
uma reflexão de matiz anarquista e contestadora, fazendo do riso e da
utopia uma forma de combate e incorporando tanto o erudito quanto

48
o coloquial e o prosaico na tessitura de sua escrita (Helena, 1986, p.
76-78). Como sucede na paródia, há ali relações intertextuais com
obras ou autores anteriores: ao mostrar filiações diante de alguns destes
(Montaigne, Rousseau, Freud, Keyserling), o texto oswaldiano marca
um destacamento desvalorizador em relação a outros (Anchieta,
Antonio Vieira, Goethe) e combina, num mesmo gesto dialético, a
recapitulação e o repúdio, a continuidade e a ruptura: “tupi or not
tupi, that is the question” – sintetiza o Manifesto, no mais célebre de
seus achados.
Para Oswald de Andrade, Antropofagia é tanto metáfora quanto
diagnóstico e medida terapêutica. Metáfora do que deveríamos rejeitar,
assimilar e superar em prol de nossa independência cultural;
diagnóstico da sociedade brasileira reprimida por uma colonização
predatória; medida terapêutica, porque forma eficaz de reação contra
a violência aqui praticada pelo processo colonizador.
Ao englobar a reconstrução da cultura pela “aglutinação” do
acervo colonizador, em confronto com a “generosa utopia do
matriarcado de Pindorama”, a Antropofagia (sempre através do
Manifesto) pretende inaugurar simbolicamente uma outra história que,
servindo-se do passado conhecido e a partir dele, desterritorializa os
terrenos da tradição oficial, criando novas territorializações e
apontando novos rumos.
Há um duplo gesto a reconhecer nessa articulação do positivo e
do negativo, efetuada, dialeticamente, na figuração antropofágica de
destruição e de absorção alimentar. Em L’antropophage et le héros sans
caractère: deux figures de la critique de l’identité, Walter Moser entende
esse jogo duplo e simultâneo como uma estratégica discursiva que
instaura, a partir de dois momentos passíveis de descrição, uma
configuração identitária:

[A figuração antropofágica] contém inicialmente um


momento de violência feita a um outro e inclui a destrui-
ção e morte de uma alteridade de onde se quer tirar a
substância de outro através de sua reciclagem no meta-
bolismo (fisiológico ou cultural) do mesmo (Moser, 1994,
p. 249).

49
Preside ali, portanto, uma lógica dialética da identidade a apontar
para o paradoxo, uma vez que pressupõe a alteridade, mas que a
destrói, em um gesto de incorporação. Outro ponto a assinalar na
leitura de Walter Moser é o que ele chama de “mudança da função
discursiva”: na antropofagia oswaldiana o indígena, tradicional objeto
da descrição histórica e etnológica, torna-se sujeito e, deixando de
“ser falado”, fala em seu próprio nome.
Cumpre estabelecer, no entanto, os limites dessa mudança, que
não configura, decerto, uma inversão. O “falante” no texto oswaldiano
afirma-se ainda e sempre herdeiro daquela civilização que renega e
que também endossa (“Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte
de D. João VI”; [a favor de] Montaigne. O homem natural. Rousseau.”).
E cujos avanços valoriza, num tom laudatório na tradição do futurismo
de Marinetti: “A fixação do progresso por meio de catálogos e
aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.”
Em suma, quem fala no Manifesto antropófago é o “bárbaro
tecnizado” – para usarmos uma expressão do próprio Oswald de
Andrade – não o “Brasil Caraíba” de Jaci, ou Guaraci. O Manifesto,
em outras palavras, não pretende dar a palavra, porém chamar a
atenção para o silenciado, ou melhor: ele invoca e destaca o que de
silenciado tem havido em nós, herdeiros colonizados de uma tradição
européia, cujo domínio intimidante cumpre ultrapassar. Sendo, por
bem e por mal, inviável eliminar aquilo que nos formou, a saída é a
estratégia da devoração. Podemos, então, a partir deste ponto,
reencontrar o pensamento de Walter Moser, que afirma:

Ao rejeitar a falácia dos mitos de fundação que propõem


uma identidade pura ou homogênica, a Antropofagia
propõe ainda uma “arqueologia identitária” que revela
a constituição heterogênica e potencialmente violenta
existente em todo processo de formação de identidade,
uma vez que esta sempre se constitui da substância de
outrem (Moser, 1994, p. 249).

Há, decerto, contradições, limitações e ambigüidades que têm


sido apontadas pela crítica na Antropofagia oswaldiana. Alfredo Bosi,

50
por exemplo, vê no texto de Oswald a presença de um “Freud equívoco
e mal deglutido”; o “comprazimento da crise moral burguesa em que
ele próprio [Oswald] estava envisgado; e acrescenta que Oswald de
Andrade “misturou sempre os planos, pretendendo tirar do composto
uma filosofia de vida e da arte” (Bosi, 1974, p.386-398).
Por mais ponderáveis que sejam tais objeções, as falhas apontadas
não anulam a força energética da ampla realização oswaldiana,
emblema de uma proposta que enfatiza aquele mesmo “homem total,
corporal e espiritual” de que falaria Bakhtin a respeito de Rabelais.
Como a obra rabelaisiana descrita por Bakhtin, o Manifesto de Oswald
é um tipo de escrita literária que se torna “torrente complexa e
contraditória (produtivamente contraditória)” com a virtude de instituir
“vizinhanças novas, verdadeiras” – prosseguimos, parafraseando
Bakhtin – e, paradoxalmente, restabelecendo, através da vizinhança
direta com a comida, a bebida, a morte, o sexo, o riso, “vizinhanças
muito antigas entre as coisas”. (Bakhtin, 1988, p. 316)
A Antropofagia oswaldiana surgiu sob o signo do paradoxo e da
utopia. Enquanto paradoxo representou uma abertura à experiência
do novo, engendrada através da recuperação do arcaico; e enquanto
utopia do Brasil, ao propor o reencontro e o retorno à inocência
perdida, no uso irreverente, libertário e prazerosamente aleatório de
uma sofisticada erudição.
O conceito de Antropofagia tem recentemente atraído um
interesse crescente na comunidade acadêmica internacional e,
especialmente, em seus vínculos com o Novo Mundo, tornou-se foco
de freqüentes discussões – inclusive no âmbito da literatura comparada
– sendo um bom ponto de partida para o exame de problemas de
dependência cultural e de nacionalidade literária. (Rocha, 2002, p.16;
Carvalhal, 1986, p. 76)
Acrescentando uma dimensão inédita ao estudo das estratégias
culturais coloniais, a noção metaforizada de canibalismo, acrescida e
enriquecida pela contribuição, eminentemente brasileira, da
Antropofagia oswaldiana, abarca uma forma fecunda de crítica cultural
e acrescenta novos dados e indagações à questão da alteridade. O
alargamento da discussão da Antropofagia nas amplas direções ali

51
insinuadas tangencia a problemática das culturas periféricas e
metropolitanas, atingindo, assim, uma área de interesse vital para os
estudos literários e para os recentes estudos culturais.
A Antropofagia oswaldiana não pretende ser, nem efetua, uma
leitura consistente das questões sociais brasileiras. Exibe, mesmo, um
patente descompromisso com o espaço social, que desmantela e
reinventa, invocando um anarquismo liberalizante. Por outro lado,
expressa uma fina percepção da problemática da dependência cultural
que hoje, passados mais de 80 anos desde a publicação do Manifesto
Antropófago, ainda nos acomete. Representa o que de melhor a nossa
tradição vanguardista produziu, sendo parte daquele modernismo que
se manteve e mantém jovem. Neste início do século XXI, o desafio de
sua proposta soa pertinente e provocador.
A utilização original que Oswald fez da questão dupla da
antropofagia e do canibalismo, e a sua oportunidade na história
cultural brasileira, têm garantido o lugar da Antropofagia e do Manifesto
antropófago no cânone literário brasileiro. Cânone por cuja revitalização
Oswald de Andrade foi, em grande parte, responsável.

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Manifestos, teses de concursos e ensaios. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
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52
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the Manifesto Antropófago. In: Anthropophagy Today?
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis:
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VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000.

53
BARROCO E NEOBARROCO

Heloisa Costa Milton


Universidade Estadual Paulista - Assis

La mañana suda una palabra,


apesadumbrada desaparece,
correteando dobla la esquina.
José Lezama Lima

Néstor Perlongher (1949-1992), inquieto poeta argentino


territorializado no Brasil, mais especificamente em São Paulo, em
entrevista à revista Babel, em 1989, definiu seu estilo neobarroco, ou
«neobarroso» como preferia intitulá-lo, nos seguintes termos:

certo «embarrocamento» (não dizer nada «como vem», e


sim complicar, beirando a contorção) amaneirado ou
maneirista e, ao mesmo tempo, uma vontade de fazer
passar o uivo, a intensidade. Uma forma rigorosa (volutas
voluptuosas) para uma forma em torvelinho. E o desafio
constante de perder-me nas maromas das letras, eflúvio
dançarino, no limite da insensatez, da sem-razão. Já fa-
lei de um «barroco de trincheira», cabo subterrâneo. Ou
de um «neobarroso», que afunda no lodo do estuário.
(Perlongher apud Cangi, 2001, p. 95)

As imagens instigantes de Perlongher valem, aqui, como pré-texto


para que se disseminem aspectos da intrincada arte barroca e, mais
especificamente, de sua escritura, objeto deste trabalho. Assim, aspectos
como intensidade, afã de complicação, torvelinho de volutas,
resistência, barro como veio etimológico são, tal qual se observa, traços
configuradores de uma poética neobarroca que, em Perlongher, e não
só nele, produz entrançamentos de signos que provocam e arrebatam
o leitor, tornando-o cativo de teias polissêmicas.
São muitos os elementos que sintetizam a legião barrroca. Estética
da dificuldade, do simulacro, da variedade; dicção e contra-dicção;
extravagância, requinte, suntuosidade; o inexplicável, o ilegível, o
inacabado. Mais ainda, irregularidade, transitoriedade, abertura de
formas, talvez consciência de imperfeição, mas sem dúvida hibridismo
e jogo exacerbado de contrastes. Estes são, dentre outros, atributos
que permitem a aproximação teórica com esse universo artístico amplo
e controvertido, que em suas demarcações históricas (o período
abrangido pelo início do século XVII e parte do XVII) inicialmente
designou certo estilo na arquitetura e nas artes em geral, cujas
emanações teóricas acabaram por circunscrever toda uma
mentalidade, um estado de espírito cíclico que responderia ao
incremento de um estado de civilização, assim como se refigurou em
essência de modo de ser, modo de vida, gosto estético, identidade
cultural e prática discursiva poética e crítica.
Historicamente, o barroco europeu expressou uma cosmovisão
dinâmica, agregadora de multiplicidade de formas e estilos, com
diferentes tonalidades, segundo o âmbito cultural em que proliferou,
a partir do Renascimento. Nesse sentido, observa-se que, além das
tensões imanentes à dicção barroca propriamente dita, há dissensões
significativas entre um barroco católico, universo mais cerrado e
refratário às transformações culturais da época, e o protestante, mais
afeito aos valores da burguesia nascente, mais racionalista e tendente
ao mercantilismo e à industrialização.
Portanto, a abordagem desse fenômeno artístico impõe, como
condição primeira, o reconhecimento de sua natureza pluralizante e
multivocacional que, não obstante, traduz também unidade. Como
assinala Arnold Hauser,

56
O barroco dos círculos cortesãos e católicos não só é
totalmente diferente do da classe média e das comunida-
des protestantes, a arte de um Bernini e de um Rubens
não só descreve um mundo interior e exterior diferente
do de um Rembrandt e de um van Goyen, como, até
mesmo dentro dessas duas grandes tendências de estilo,
novas e decisivas diferenciações se fazem sentir. A mais
importante dessas subdivisões secundárias é a do barro-
co cortesão-católico numa tendência sensualista, monu-
mental-decorativa, na acepção tradicional de «barroco»,
e num estilo «classicista» mais estrito, formalmente mais
rigoroso. (Hauser, 2000, p. 442-443)

Divisões, ramos, entroncamentos, simultaneidade de tendências


opostas e ilimitadas, sejam quais forem os contornos, é fato que o
barroco insere-se como novidade e diferença numa mentalidade cultural
que abrigava o gótico e o maneirismo como estilos universais, apesar
de todas as controvérsias. Sabe-se, por exemplo, que, em sentido
contrário e de acordo com determinadas visões críticas já superadas,
o barroco significou a transformação (ou degeneração) desses estilos
consagrados. Leonardo Acosta pontua esse estado de coisas, de
maneira eloqüente, ao afirmar que:

Para Worringer, o barroco não era senão o surgimento


do espírito do gótico através das formas estabelecidas pelo
Renascimento, e a despeito delas. Estas interpretações
ignoram olimpicamente as variantes religiosas, nacionais
e classistas dentro do fenômeno barroco e, mais ainda,
negam a inserção de todos esses barroquismos em um
marco histórico determinado, que é o que efetivamente
determina a unidade do fenômeno estilístico por cima
de todas as variantes. (Acosta, 1984, p. 17-18) 1

1 «Para Worringer, el barroco no era sino el resurgimiento del espíritu del gótico a través de
las formas establecidas por el Renacimiento, y a despecho de ellas. Estas interpretaciones
ignoran olímpicamente las variantes religiosas, nacionales y clasistas dentro del fenómeno
barroco, pero más aún niegan la inserción de todos esos barroquismos dentro de un marco
histórico determinado, que es lo que efectivamente determina la unidad del fenómeno
estilístico por encima de todas las variantes.»»

57
Como se nota, a diversidade barroca congrega-se em unidade
por se originar numa visão de mundo comum, de ordem social e
ideológica, que é resultado do deslocamento da visão antropocêntrica
da cultura, por sua vez correlata da noção de um Deus individualizado
e instalado fora do sistema universal, para a consciência da existência
do Cosmos, e seu caráter infinito, como força superior reguladora da
vida terrena e espiritual. Tal mutação traz como conseqüências a
conceituação de arte como representação da infinitude do Universo e
da emancipação do homem e a inclinação a formas abertas, esquivas e
dinâmicas, que refiguram a relação espacial e cujos detalhes, ainda
que demonstrem esforço de síntese, subordinam-se a um conjunto
maior, orgânico e transcendental.

Só recentemente é que a arte do século XVII, como um


todo, foi classificada sob a designação genérica de barro-
co. Quando foi usado pela primeira vez no século XVIII,
o conceito de barroco ainda se aplicava exclusivamente
àqueles fenômenos que, de acordo com a estética
classicista predominante, eram considerados extravagan-
tes, confusos e bizarros (Hauser, 2000, p. 443-444)

pondera Hauser, refletindo sobre a rejeição inicial ao barroco,


tido como arte irregular e de ornato excessivo. Contudo, o estudioso
esclarece que a reinterpretação e reavaliação do barroco, tal como se
concebe hoje, foram tarefas realizadas principalmente por Heinrich
Wölfflin e Alois Riegl, que empreenderam o seu resgaste estético com
a superação das idéias de extravagância e decadência e a fixação do
termo barroco no sistema artístico.
Vale reiterar, neste ponto, que toda a opulência barroca, refletida
em suas múltiplas práticas e realizações, está alicerçada em
constituintes de caráter nacional, sejam eles sociais, políticos, religiosos
ou filosóficos, que acarretam diferenças ao mesmo tempo em que se
harmonizam na consciência do artista de produzir outras formas. Essas
formas novas não se desvinculam, por certo, dos diversos
expansionismos coloniais europeus, que incrementaram, como vontade
de estado, o advento do barroco histórico.

58
Contudo, dado o seu caráter transgressor, o fenômeno barroco
alcançou esferas mais totalizantes. Nas concepções de Octavio Paz,
disseminadas ao longo dos seus diversos estudos, mais que
referendados pelas condições nacionais, os estilos são sempre
transnacionais. Para o poeta, os estilos são viajantes que atravessam
países e imaginações, transformando a geografia literária e a
sensibilidade de autores e leitores. Por isso, considera abusiva e
limitadora a aplicação da idéia de nação às artes e principalmente à
literatura. No que diz respeito ao barroco, entende que essa condição
se acentua devido ao seu alcance e variedade cultural, pois

Seus domínios estenderam-se de Viena a Goa, de Praga


a Quito. A estética barroca aceita todos os particularismos
e todas as exceções (...) precisamente por ser a estética
do estranhamento. Sua meta era assombrar e maravilhar;
por isso buscava e recolhia todos os extremos, especial-
mente os híbridos e os monstros. Nesse amor pelo
estranhamento estão tanto o segredo da afinidade da arte
barroca com a sensibilidade crioula quanto a razão da
sua fecundidade estética. Para a sensibilidade barroca o
mundo americano era maravilhoso não somente por sua
geologia desmesurada, sua fauna fantástica e sua flora
delirante, mas pelos costumes e instituições peregrinas
de suas antigas civilizações.2 (Paz, 1983, p. 85-86)

Ressaltando o caráter transnacional do estilo barroco, o


pensamento de Paz aponta, nesse fragmento, a intenção estética de
assombrar e maravilhar, aspectos decorrentes do afã de produzir
estranhamento, com a incorporação de elementos híbridos, não
convencionais e polifacéticos. Ecoando, intencionalmente ou não,

2 «Sus dominios se extendieron de Viena a Goa, de Praga a Quito. La estética barroca acepta
todos los particularismos y todas las excepciones (....) precisamente por ser la estética de la
extrañeza. Su meta era asombrar y maravillar; por eso buscaba y recogía todos los extremos,
especialmente los híbridos y los monstruos ... En este amor por la extrañeza están tanto el
secreto de la afinidad del arte barroco con la sensibilidad criolla como la razón de su fecundidad
estética. Para la sensibilidad barroca el mundo americano era maravilloso no solamente por
su geología desmesurada, su fauna fantástica y su flora delirante sino por las costumbres e
instituciones peregrinas de sus antiguas civilizaciones.»

59
aspectos das reflexões consagradas de Alejo Carpentier, Paz explica a
fecundidade do barroco americano como resultado da afinidade entre
a sensibilidade do criollo e as próprias excelências do mundo
americano, sejam naturais, culturais e históricas, que, em síntese,
produzem o maravilhoso. Abrigando particularismos e excessos de
todos os tipos, o barroco é um conglomerado de paradoxos, conforme
ressalta Carlos Fuentes e, em geral, todos os que se dedicam à
interpretação desse estilo:

Arte do paradoxo: arte de abundância, praticamente afo-


gando-se em sua própria fecundidade, mas arte também
dos que nada têm, dos mendigos sentados nos átrios das
igrejas, dos camponeses que vêm à mesma igreja para
que seus animais e pássaros sejam abençoados, ou que
investem suas economias de todo um ano de duro traba-
lho, e inclusive o valor de suas colheitas, na celebração
do dia de seu santo patrono. O barroco é uma arte de
deslocamentos, semelhante a um espelho no qual cons-
tantemente podemos ver nossa identidade mutante.3
(Fuentes, 1993, p. 206)

Fuentes destaca a abrangência cultural do barroco flagrando-a


na extensa mobilidade social que ele supõe, como decorrência das
marcas impressas pelo catolicismo na religiosidade popular. Nesse
sentido, a identidade mutante, revelada no espelho artístico, não se
dissocia do feixe de eventos estéticos originados pelos programas
políticos e bélicos da Contra-reforma espanhola, do absolutismo
monárquico e, sem dúvida, da ação inquisitorial.
Esses são fatores importantes que deflagraram a arte barroca,
arte que, em termos históricos, paradoxalmente incrementou-se na

3 «Arte de la paradoja: arte de abundancia, prácticamente ahogándose en su propia


fecundidad, pero arte también de los que nada tienen, de los mendigos sentados en los atrios
de las iglesias, de los campesinos que vienen a la misma iglesia a que se les bendigan sus
animales y pájaros, o que invierten los ahorros de todo un año de dura labor, e incluso el valor
de sus cosechas, en la celebración del día de su santo patrono. El barroco es un arte de
desplazamientos, semejante a un espejo en el que constantemente podemos ver nuestra
identidad mutante.»

60
vacuidade social de uma Espanha que recém-concluíra a etapa inicial
da conquista da América e que, apesar do arrojo aventureiro, revelou-
se depois inábil e despreparada para administrar, em seu próprio
território, toda a riqueza que obtivera nas terras conquistadas. A um
período de ascensão e riqueza, deflagrado pelo «descobrimento»,
sucedeu uma fase de decadência econômica e social que, equivaleu,
contudo, a um florescimento no plano das artes do qual o barroco é a
grande expressão. Decorrência de crise acirrada, como esforço
artístico quase auto-suficiente o barroco alimentou-se de seus próprios
impulsos, proliferando numa espécie de vazio social que,
contraditoriamente, caracterizou-se pela manutenção do propósito
de expansão religiosa e gerou, como conseqüência, enorme vitalidade
artística.
Estética da abertura e da síntese na diversidade, tributária do
racionalismo da Renascença, vale observar que, no caso espanhol, a
dinâmica barroca acabou se fechando dado o caráter ideológico que a
transformou em veículo de propagação da fé católica e projeção da
vontade imperial da nação. Menos sensual e mais intelectualista e
espiritualista, o barroco tornou-se o eixo primordial da ação
colonialista espanhola na América, sendo, por isso, solidário da
repressão religiosa que a caracterizou.
Mariano Picón Salas ressalta o caráter medular do componente
hispânico na cultura do continente americano. Conceituando o barroco
espanhol como um misterioso complexo histórico, vê na repressão
espiritual uma de suas fontes mais marcantes. Enfatiza, em
decorrência, que nele predomina a fuga à realidade, a teatralização e
o artifício, razões pelas quais se transforma não só em arte da alegoria
por excelência, repleta de voluntarismos e formalismos, mas, também,
em arte retórica, cujos monumentos, edificações e arquitetura urbana,
com seu caráter grandiloqüente, exibem o triunfo da ação política e
apostólica na América.
Tais postulados, ainda segundo o estudioso, manifestam-se
incisivamente no campo das letras, no qual se produz um barroquismo
excessivamente artificial e verbalista. O ensaísta venezuelano reputa,

61
em síntese, que a inserção do barroco significou a imposição do selo
aristocrático da cultura espanhola no Novo Mundo. Semelhante
posição, a respeito do perfil repressivo do barroco, mantém Leonardo
Acosta, ao considerar que:

O triunfo do barroco no século XVII trará em si uma


aristocratização crescente da cultura. O índio e o mesti-
ço, cuja cultura se chamará agora «folclore», só poderão
participar da cultura dominante através das artes plásti-
cas, tradicionalmente de um status inferior em toda soci-
edade aristocrizante, em comparação com as letras. Os
mestre-de-obras, pedreiros, escultores, pintores e
decoradores índios e mestiços imporão, de certa forma,
sua própria expressão à linguagem formal do barroco
espanhol, resultando disso o que se conhece como «bar-
roco das ìndias» na arquitetura do México, Lima, Cuzco,
Puebla, Oaxaca, Tlaxcala, e também da Guatemala, Nova
Granada, alto Peru e Equador, sobretudo.4 (Acosta, 1984,
p. 25-26)

Essa curiosa interpenetração de dois mundos antagônicos, que


se revelou harmônica em termos do que Acosta classifica como plástica
barroca, explica-se, segundo os autores mencionados, pelos efeitos
que a tensão inerente ao barroco causou no mundo americano. Tal
tensão acabou se tornando um meio eficaz de representação de tensão
ainda maior, a que se verificou na própria estrutura colonial, repleta
de contradições e dicotomias expressas em pares de opostos como
exploradores-explorados, espanhóis-indígenas, senhores-escravos etc.
A estes se somam, ainda, oposições de outra índole, as existentes entre

4 «el triunfo del barroco en el siglo XVII traerá apareada una aristocratización creciente de
la cultura. El indio y el meztizo, cuya cultura se llamará ahora «folklore», sólo podrán
insertarse en la cultura dominante a través de las artes plásticas, tradicionalmente de un
status inferior en toda sociedad aristocratizante, en comparación con las letras. Los alarifes,
albañiles, escultores, pintores y decoradores indios y mestizos impondrán en cierta medida
su propia expresión al lenguaje formal del barroco español, resultando de ello lo que se
conoce como «barroco de Indias» en la arquitectura de México, Lima Cuzco, Puebla, Oaxaca,
Cholula, Tlaxcala, y también en Guatemala, Nueva Granada, el alto Perú, y Ecuador, sobre
todo.»

62
a Igreja, o Estado, o poder econômico dos criollos e demais
mantenedores da ordem colonial.
Todavia, apesar das junções e disjunções, a visão do barroco
americano como cruzamento cultural entre o universo espanhol, o
indígena, e, mais tarde, o negro, torna-se redutora se não enfatizar
um aspecto ideológico preponderante na arte da Contra-reforma, ou
seja, a manipulação intencional do contingente humano do Novo
Mundo por meio da sedução da imagem exuberante. De acordo com
as chamadas Leis das Índias, editadas pela Coroa espanhola, na
América, a monumentalidade colonial teria que servir não só como
veículo de dominação, mas, também, como forma plástica destinada a
subjugar as massas do continente pela admiração e temor ao poder
dos dominadores. Sendo assim,

O panorama não é tão simples como para que se estabe-


leça a equação usual espanhol = barroco, ou a igual-
mente freqüente e facilitadora que pode ser formulada
assim: espanhol + americano = barroco americano. Na
realidade, o barroco introduz-se na América uma vez
terminada a etapa aventureira da conquista, o «período
heróico». Sua finalidade será, precisamente, mitificar e
eternizar essa conquista, dar-lhe validade, já não legal, o
que tinha sido obra dos teólogos e juristas, mas artística,
cultural.5 (Acosta, 1984, p.24)

A importação do barroco para a América, consumação do selo


aristocrático salientado por Picón-Salas, reveste-se, portanto, do caráter
de manutenção de uma ortodoxia político-religiosa de Estado, com o
fim de contemplar os próprios espanhóis e, no lado oposto, assegurar
a hegemonia da cultura imposta a indígenas, mestiços e, depois, a

5 «El panorama no es tan sencillo como para establecer la usual ecuación español = barroco,
o la igualmente frecuente y socorrida que puede formularse así: español + americano =
barroco americano. En realidad, el barroco se introduce en América una vez terminada la
etapa aventurera de la conquista, el «período heróico». Su finalidad será, precisamente,
mitificar y eternizar esa conquista, darle validez, no ya legal, lo cual había sido labor de los
teólogos y juristas, sino artística, cultural.»

63
negros e mulatos. Evidentemente, não se pode ignorar certo grau de
integração artística entre mundos tão diversos, porém, é fato que a
existência do barroquismo americano supõe transformações,
diferenças e originalidades, como as que se verificam, por exemplo,
na obra excepcional de Aleijadinho. A plástica barroca americana
prima, dessa maneira, pelos processos de hibridismo, que tendem
justamente a diminuir o teor hispânico em benefício do esforço artístico
que expresse uma personalidade própria, resultante da confluência
de culturas, inclusive as pré-hispânicas, ainda que essa expressão se
fundamente no andaime formal do barroco europeu.
Nesse sentido, o barroco americano pode ser encarado como a
vitalização dialética do barroco europeu, uma vez que aparece “em
uma época em que o barroco espanhol, após codificar-se, congela-se
em uma retórica vazia e acadêmica, em fórmulas acunhadas e estéreis
como as que caracterizam a arquitetura do Império Romano na época
de sua maior expansão.”6 (Acosta, 1984, p. 28)
Sendo assim, o barroco americano, em sua relação dinâmica com
o europeu, constituiu uma espécie de alteridade artística, exatamente
a que foi ignorada pelos conquistadores. Estes, como é notório, não
vieram ao Novo Mundo para intercambiar cultura, ou fundar
territórios que reconhecessem e preservassem as singularidades do
outro, e, sim, para concretizar o desejo de dominação e exploração de
novos âmbitos, com a instalação da razão espanhola e seus valores
considerados eternos e imutáveis.
Neste ponto, é importante reiterar que, na América, esses pro-
cessos históricos originaram um corpo cultural disseminado em múl-
tiplos barroquismos, que muitas vezes são encarados como uma espé-
cie de reserva cultural latino-americana, reivindicada pela prática ar-
tística e a reflexão teórica de escritores, intelectuais e críticos que, por
caminhos diversos, estimulam o debate em torno das identidades do
continente. Barroco de resistência, medular, de desmitificação, devir

6 «en una época en que el barroco español, luego de codificarse, se congela en una retórica
vacía y académica, en fórmulas acuñadas y estériles como las que caracterizan la arquitectura
del Imperio Romano en la época de su mayor expansión.»

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americano, sejam quais forem as concepções, intenções e resultados
estéticos, o fato a destacar é que o barroco integra os programas e as
agendas culturais da América Latina como estrutura inerente a qual-
quer inventário de latino-americanismo.
Irlemar Chiampi, em sua obra, Barroco e modernidade, analisando
a prática escritural no continente, salienta o conceito de barroco como
encruzilhada de signos e temporalidades, que dá origem à
modernidade. Ressalta que a América foi o espaço privilegiado para a
apropriação do barroco colonial e, aludindo à continuidade, assevera
que aqui se realizam reciclagens modernas e pós-modernas da «arte
da contraconquista», com a exploração da sua potencialidade experi-
mental. O trabalho teórico da estudiosa focaliza um conjunto de re-
cursos expressivos, «certos estilemas, traços, temas e procedimentos
caracteristicamente barrocos» (Chiampi, 1998, p. XV) que instruem
o efeito neobarroco, e destaca tópicos operacionais do mecanismo de
radicalização do artifício como a proliferação, a ampliação, a mise-en-
abyme e a metaforização obscura.
Com o fim de examinar a prática discursiva de alguns escritores
latino-americanos e as variantes ideológicas que insuflam as
reciclagens, Chiampi distingue o comprometimento da verossimilhan-
ça como traço fundador do devir no continente, seja em termos da
representação da natureza, como em Alejo Carpentier, da
sobrecodificação das imagens, como em José Lezama Lima, da pró-
pria enunciação narrativa, como em Guimarães Rosa e em Jorge Luis
Borges, ou, ainda, da teatralização dos signos e sedução do texto, como
em Severo Sarduy e Julián Ríos.
Partindo do pressuposto de que todo «debate sobre a modernidade
na América Latina que não inclua o barroco é parcial e incompleto»
(Chiampi, 1998, p. XV), a autora entende como proposta moderna a
que recicla ideologicamente o barroco como fator de identidade cul-
tural e nova razão estética, que se manifesta, por exemplo, no chama-
do boom narrativo dos anos 60. No tocante a uma proposta pós-mo-
derna, enfatiza o papel crítico do barroco, conjunção de reciclagem
poética e reflexão teórica, e evidencia seu potencial para diluir as

65
dicotomias pré-estabelecidas. Pondera que ao invés do “pretérito per-
feito ou da negação da temporalidade, o barroco dinamiza-se para
nós na temporalidade paralela da meta-história: é o nosso devir per-
manente, o morto que continua falando, um passado que dialoga com
o presente por seus fragmentos e ruínas, quem sabe para preveni-lo
de tornar-se teleológico e conclusivo”. (Chiampi, 1998, p. XVII)
Salientando seu caráter de permanente construção, Chiampi
avalia, com argúcia crítica, que a reapropriação do barroco por
romancistas, poetas e ensaístas como Severo Sarduy, Augusto Roa
Bastos, Haroldo de Campos, Rafael Sánchez, Germán Belli, Octavio
Paz e Edouard Glissant, dentre outros, é tributária das lições de Lezama
Lima e Carpentier, nos anos 50 e 60: “A legitimação histórica do
barroco é o giro substantivo da reapropriação que requer uma
dialética: a de converter o universal em particular e, ao revés, o
particular em universal. Estes passos decisivos são tomados por Lezama
Lima, nos anos 50, e Alejo Carpentier nos 60”. (Chiampi, 1998, p. 6)
Tanto Lezama Lima quanto Carpentier são, efetivamente,
vertentes obrigatórias para o pensamento teórico e a prática barroca.
No tocante à reflexão crítica de Lezama Lima, destaca-se a proposição
do barroco como fato americano presente nas diversas expressões
culturais, fato que se articula a partir de duas categorias estéticas
fundamentais: a tensão e o plutonismo. Tais movimentos, para o
escritor, ensejam, simultaneamente, a ruptura e a convergência de
fragmentos distintos no universo cultural do continente. A tensão
supõe a combinação de elementos contraditórios, da qual resulta a
harmonia de conjunto, e o plutonismo, evocado na imagem de fogo
originário que queima os fragmentos e os empuxa, dinamiza as
variantes e traduz a possibilidade de aproveitamento das inúmeras
dicções e contradições culturais.
Em seu ensaio «A curiosidade barroca», presente na obra La
expresión americana (1957), após definir o barroco como arte da
contraconquista, Lezama Lima adverte que, no século XIX, barroco,
limitadamente, designava um estilo excessivo, formalista e destituído
de essência. Já no século XX, o conceito ampliou-se de tal forma que,

66
passando por Loyola, Rembrandt, El Greco, a matemática de Leibnitz,
Spinoza e outros ícones artístico-culturais, chegou abusivamente, como
quiseram alguns, a catalogar a própria imagem do mar.
Mas, apesar dos abusos, o autor considera que o barroco
americano, diferentemente do europeu, é estilo plenário, não
degenerescente. Sintetiza-o numa sucessão ampla de elementos, que
abrangem desde aquisições de linguagem, móveis para a vivenda,
formas de vida, curiosidades, misticismos, manjares, até pendores de
refinamento e mistério. Esses elementos operam como metonímias
conceituais da figura que Lezama Lima distingue como o grande
emblema cultural americano, o «senhor barroco». Em sua visão, esta
figura representa o triunfo da cidade e do americano ali instalado,
isto é, do primeiro americano que surge dominando os seus caudais:

Esse americano senhor barroco, autêntico primeiro ins-


talado no que é nosso, em sua granja, canonicato ou casa
bem cômoda, pobreza que dilata os prazeres da inteli-
gência, aparece quando já se afastaram o tumulto da con-
quista e o parcelamento da paisagem pelo colonizador.
É o homem que vem ao terraço, que abana lentamente a
arenisca diante do espelho devorador, para instalar-se
perto da cascata lunar que se constrói no sonho de sua
própria pertença. Trança e multiplica a linguagem ao
desfrutá-la: o desfrutar de seu viver lhe cresce e fervoriza.
(Lezama Lima, 1988, p. 81)

Para o escritor, o fato barroco não decorre da natureza e sim da


cultura, que propicia sentidos e aguça sensibilidades para o desfrute e
o aproveitamento das excelências de uma paisagem que se recobre de
artifícios. Movendo esse processo, está a vontade do «senhor barroco»
de impor ordem na desordem e promover o seu banquete, inclusive o
banquete literário.
Com essas imagens e conceitos, o escritor revê as expressões
fundamentais da cultura barroca na América em sua relação com a
espanhola, justamente para enfatizar, como signos americanos, a
rebelião e a ruptura com a matriz inicial, gestos preparados a partir do

67
século XVIII e amadurecidos nos subseqüentes. Ao final do ensaio
mencionado, Lezama Lima destaca a arte escultural e arquitetônica
do índio cusquenho Kondori e a do brasileiro Aleijadinho, tomando-
as como demonstração de enriquecimento e evidência da conquista
de uma nova forma. Afirma que a grande façanha do barroco
americano é a de Kondori:

Na voluntariosa massa pétrea das edificações da Compa-


nhia, no fluxo numeroso das súmulas barrocas, na gran-
de tradição que vinha arrematar o barroco, o índio
Kondori consegue inserir os símbolos incaicos do Sol e
da Lua, de abstratas elaborações, de sereias incaicas, de
grandes anjos cujos rostos de índios refletem a desola-
ção da exploração mineira. (Lezama Lima, 1988, p. 103)

Descrevendo o índio Kondori como símbolo da rebelião incaica,


relaciona-o com o Aleijadinho, que considera símbolo da rebelião
artística dos negros. Alude ao triunfo incontestável do artista brasileiro

posto que se opõe aos modos estilísticos de sua época,


impondo-lhe os seus e luta até o último momento com a
Ananke, com um destino torvo, que o irrita para
engrandecê-lo, que o desfigura de tal forma que somen-
te lhe permite estar com a sua obra que vai inundando a
cidade de Ouro Preto e as outras cidades vizinhas, pois
permanecem nele as melhores essências medievais do
fundador, daquele que faz uma cidade e a prolonga e
traça as suas muralhas, e distribui nela a graça e a preen-
che de torres e agulhas, de canais e fogatas. (Lezama
Lima, 1988, p. 104)

Aleijadinho e Kondori são, assim, representações do avivamento,


com novas chispas, da pedra hispânica com a prata americana,
avivamento perpetrado pelo impulso da rebelião. Essa imagem de
chispa de rebelião condensa-se na expressão «grande lepra criadora
do barroco nosso», com que Lezama Lima refere a arte de entranhas,

68
capaz de realizar a síntese cultural, tarefa privilegiada do «senhor
barroco»: “Vemos portanto que o senhor barroco americano, a quem
designamos como o autêntico primeiro instalado no que é nosso,
participa, vigia e cuida das duas grandes sínteses que estão na raiz do
barroco americano, a hispano-incaica e a hispano-negróide.” (Lezama
Lima, 1988, p. 106)
O escritor ressalta, ainda, que a herança do gongorismo no
continente opera a radicalização «luciferina» do recurso da proliferação
de signos presente no cânone de Luis de Góngora. Além disso, dá
corpo ao “senhor barroco” na figura de Don Carlos de Sigüenza y
Góngora, sobrinho americano do poeta espanhol, contemporâneo de
Sor Juana Inés de la Cruz e, junto com ela, expoente do barroco
colonial. Qualifica-o como modelo arquetípico, em figura, aventura,
conhecimento e desfrute das excelências disponíveis, do autêntico
senhor americano.
Em suma, enfatizando o barroco como a síntese cultural do
continente americano, Lezama Lima reivindica seu caráter de “lepra
luciferina”. Ao articular o binômio tensão/plutonismo, postula uma
versão meta-histórica, construída na reciclagem da herança colonial,
e elege o devir como o paradigma formal da identidade, que se estende
do século XVII à contemporaneidade.
Alejo Carpentier, buscando singularizar o estilo americano,
também propõe uma versão meta-histórica da cultura, cujo eixo
estético-ideológico localiza nos fundamentos de mestiçagem
decorrentes dos processos sócio-históricos. Sua concepção do realismo
maravilhoso, como ser e forma da mestiçagem, prevê um conglomerado
de códigos, dentre eles o lingüístico, referendado pelo estilo barroco.
Realismo maravilhoso e barroco são, portanto, pares comutáveis.
Se o primeiro é expressão essencial de uma identidade alicerçada na
história da América, na paisagem exuberante, no homem que a habita
e nos mecanismos de simbiose que abrigam os mitos, rituais e
manifestações mágico-religiosas dos povos pré-hispânicos, além de
todo o acervo colonial, o segundo se configura como a camada mais
visível, mais exterior e mais imediata dessa condição real maravilhosa.

69
Em sua busca de um estilo original, Carpentier elabora um
programa americanista que inclui onze conjunturas (contextos raciais,
econômicos, ctônicos, políticos, burgueses, de distância e proporção,
de desajuste cronológico, culturais, culinários, de iluminação e
ideológicos), por meio dos quais reflete sobre a ontologia americana,
oferecendo roteiro e instrumentos para a descolonização da cultura e
a prática do discurso poético. Em Carpentier, o barroquismo equivale
a uma desmitificação, que visa a dar legibilidade ao prodígio americano.
Para o autor, descolonizar a cultura significa dessacralizar o
modelo europeu, pondo em evidência os aspectos inerentes aos
contextos americanos. Sendo assim, Carpentier conclama a que se
aceite o barroco como estilo legítimo, em oposição à assimilação de
valores importados, e, com sua prosa instigante, solicita que o
intelectual latino-americano não tema essa arte:

Não temamos, pois, o barroquismo no estilo, na visão


dos contextos, na visão da figura humana enlaçada pelas
enredadeiras do verbo e do ctônico, inserida no incrível
concerto angélico de certa capela (branco, ouro, vegeta-
ção, arrevesamentos, contrapontos inauditos, derrota
do pitagórico) que pode se ver em Puebla do México, ou
de uma desconcertante, enigmática árvore da vida,
florescida de imagens e símbolos em Oaxaca. Não tema-
mos o barroquismo, arte nossa, nascida de árvores, de
lenhos, de retábulos e altares, de entalhes decadentes e
retratos caligráficos e até neoclassicismos tardios,
barroquismo criado pela necessidade de nomear as coisas7
(Carpentier, 1976, p. 36)

Como se constata, embora reivindique o barroquismo americano


como condição decorrente da convergência de elementos culturais

7 «No temamos, pues, el barroquismo en el estilo, en la visión de los contextos, en la visión de


la figura humana enlazada por las enredaderas del verbo y de lo ctónico, metida en el
increíble concierto angélico de cierta capilla (blanco, oro, vegetación, revesados, contrapuntos
inauditos, derrota de lo pitagórico) que puede verse en Puebla de México, o de un
desconcertante, enigmático árbol de la vida, florecido de imágenes y de símbolos, en Oaxaca.
No temamos el barroquismo, arte nuestro, nacido de árboles, de leños, de retablos y altares,
de tallas decadentes y retratos caligráficos y hasta neoclasicismos tardíos, barroquismo creado
por la necesidad de nombrar las cosas.»

70
diversos, Carpentier também propõe formulações que abrangem a
natureza como fator identitário. Além de tomá-la como um dos eixos
da sua categorização do real maravilhoso, considera-a imenso caudal
de matéria-prima para as elaborações culturais, razão por que extrai
do torvelinho de imagens que ela projeta um dos parâmetros para o
estudo dos constituintes barrocos na América.
Ao destacar o ímpeto de nomear como atividade essencial, postula
que essa operação, mais que mascarar e ocultar, busca viabilizar a cultura
americana no âmbito da cultura universal, com a realização das
diversas conjunturas, que, ao mesmo tempo em que a singularizam,
são condutos para a sua abertura ao exterior. Dessa forma, o barroco,
com a profusão de signos que o caracteriza, é, para Carpentier, a
legitimação estética da condição que define a América: espaço
privilegiado do realismo maravilhoso. Negando o barroco como estilo
histórico, o escritor assevera que a

América, continente de simbioses, de mutações, de vi-


brações, de mestiçagens, sempre foi barroca: as
cosmogonias americanas, aí está o Popol Vuh, aí estão os
livros de Chilam Balam, aí está tudo o que se estudou
recentemente através dos trabalhos de Ángel Garibay, de
Adrián Recinos, com todos os ciclos do tempo delimita-
dos pela aparição dos cinco sóis. (Em uma antiga mitolo-
gia asteca estaríamos atualmente na Era do Sol de
Quetzalcóatl) Tudo o que se refira à cosmogonia ameri-
cana – sempre é grande a América – está dentro do bar-
roco.8 (Carpentier, 1984, p. 66)

Ademais, considerando a América Latina como terra de eleição


do barroco, explica que:

8 « América, continente de simbiosis, de mutaciones, de vibraciones, de mestizajes, fue barroca


desde siempre: las cosmogonías americanas, ahí está Popol Vuh, ahí están los libros de Chilam
Balam, ahí está todo lo que se ha estudiado recientemente a través de los trabajos de Ángel
Garibay, de Adrián Recinos, con todos los ciclos del tiempo delimitados por la aparición de
los cinco soles. (En una antigua mitología azteca estaríamos actualmente en la Era del Sol de
Quetzalcoátl) Todo lo que se refiera a cosmogonía americana – siempre es grande América –
está dentro de lo barroco.»

71
Toda simbiose, toda mestiçagem engendra um
barroquismo. O barroquismo americano intensifica-se
com a criollidad, com o sentido do criollo, com a consci-
ência que adquire o homem americano, seja filho de bran-
co, vindo da Europa, seja filho de negro africano, seja
filho de índio nascido no continente... a consciência de
ser outra coisa, de ser uma coisa nova, de ser uma
simbiose, de ser um criollo 9 (Carpentier, 1984, p. 69)

Vale observar que o termo criollo, já anteriormente citado, designa,


na história cultural do continente, inicialmente o homem branco
nascido na América, que, em sua forma de ser, valores, hábitos e
costumes, identifica-se com o elemento europeu e, não só isso, sente-
se europeu com a singularidade de viver em outro espaço.
Posteriormente, quando esse homem branco, em plena crise de
identidade, indaga sobre sua efetiva condição identitária e se sente
mais americano que europeu, o termo passa a designar o ser que
reconhece sua alteridade com relação à figura do colonizador branco
e que, sobretudo, reconhece os processos marcantes de hibridismo
racial, cultural, religioso etc. Numa acepção mais ampla, criollo
incorpora as vertentes indígenas e negróides, sintetizando-se como
emblema da multiplicidade que edifica a mestiçagem da América
Latina.
Carpentier exalta precisamente essa condição, definindo-a,
dialeticamente, como cerne e resultado do realismo maravilhoso, que
se expressa, por sua vez, nos protocolos barrocos que dão visibilidade
às conjunturas políticas, sociais, étnicas e artísticas do continente. Nesse
sentido, indiretamente o escritor alenta a idéia de exclusividade
barroca, permitindo que se infira a possibilidade da existência de certo
monopólio, ou de reserva de domínio cultural, apta a doar identidade
à América.

9 «toda simbiosis, todo mestizaje engendra un barroquismo. El barroquismo americano se


acrece con la criolledad, con el sentido del criollo, con la conciencia que cobra el hombre
americano, sea hijo de blanco, venido de Europa, sea hijo de negro africano, sea hijo de indio
nacido en el continente ... la conciencia de ser otra cosa, de ser una cosa nueva, de ser una
simbiosis, de ser un criollo»

72
Entretanto, convém reiterar que, no resgate empreendido,
Carpentier não só recria e dinamiza o alcance do barroco (constante
humana, cíclica e, sobretudo, americana), como também o
redimensiona, de modo a eliminar o caráter de mera retórica
extravagante. Dentre os indiscutíveis e consagrados méritos de
Carpentier, vale ressaltar que sua sistematização teórica, bem como o
conjunto de sua refinada prática poética, sedimentaram os debates
sobre a modernidade cultural do continente e marcaram a escritura
subseqüente.
Alejo Carpentier e Severo Sarduy inscrevem-se no panorama
cultural da América Latina como os nomes mais difundidos no que
diz respeito à revisão crítica da estética barroca. A produção de Lezama
Lima, não menos fundacional que a de seus pares cubanos, demorou
um pouco mais a adquirir a ressonância que a caracterizou a partir
dos anos 70 do século XX.
Com Sarduy, que recicla o fenômeno barroco a partir das lições
desses escritores, dá-se a estetização lúdica, mais radical, da prática
barroquizante. Com ele fica estabelecido um corpo neobarroco, cujos
procedimentos artísticos descritos teoricamente e experimentados
poeticamente advêm da análise de uma linhagem de escritores latino-
americanos e da tradição crítico-poética incrementada a partir de
Lezama Lima e Alejo Carpentier.
No ensaio “El barroco y el neobarroco”, um complexo discurso
teórico-analítico que não deixa de dramatizar o estilo barroco, Severo
Sarduy dá início à sua argumentação, mencionando o destino dessa
estética à ambigüidade e à difusão semântica, destino que supõe os
mecanismos de aglutinação e proliferação incontrolada de significantes.
Orientado por esses postulados, repassa sinteticamente a história do
conceito, enunciando um eixo semântico repleto de idéias-imagens
que expressam a variedade de visões que ele enseja.
Sarduy propõe-se, então, reduzir a escritura barroca a um
«esquema operatório preciso, que não deixasse interstícios, que não

73
permitisse o abuso ou o desenfado terminológico»10 (Sarduy apud
Fernández Moreno, 1977, p. 168). Diante da polêmica que o conceito
amiúde suscita, Sarduy busca estudar a pertinência de sua aplicação à
arte latino-americana contemporânea, reconhecendo como principais
traços definidores do «festim barroco», com suas volutas, arabescos e
máscaras, a apoteose do artifício, a ironia e a irrisão da natureza.
Efetivamente, esse esquema operatório, que aproveita as
ocorrências já estabelecidas pelos estudos estruturalistas e pós-
estruturalistas, evidencia o trabalho sumamente eficaz de descrição
teórica da metáfora barroca, seus efeitos e ressonâncias, por meio de
uma composição de linguagem que, ao enunciar, explicita a própria
prática barroca. Sarduy ressalta a radicalidade da metáfora no âmbito
latino-americano, cujo teor metalingüístico se potencializa na
multiplicação irrefreada de artifícios e máscaras. A metáfora de
Góngora serve-lhe de parâmetro: “A metáfora em Gôngora é já, em
si, metalingüística, quer dizer, eleva ao quadrado um nível já elaborado
da linguagem, o das metáforas poéticas, que por sua vez supõem ser a
elaboração de um primeiro nível denotativo, «normal» da linguagem.11
(Sarduy apud Fernández Moreno, 1977, p. 169)
A metalinguagem barroca promove, portanto, a multiplicação de
camadas metafóricas a partir da primeira instância de codificação
poética do signo, instância que já não contempla, evidentemente, o
caráter referencial. Focalizando a artificialização radical como garantia
do timbre barroco, Sarduy distingue três mecanismos de produção
do artifício.
O primeiro, denominado substituição, produz o escamoteio de um
dado significante pelo recurso de substituição por outro, que não
pertence ao campo semântico do significante inicial. Como
conseqüência, sua apreensão se realiza no contexto poético em que se
“esconde”, ou do qual foi temporariamente “expulso”, para que seja

10 «esquema operatorio preciso, que no dejara intersticios, que no permitiera el abuso o el


desenfado terminológico.»
11 «La metáfora en Góngora es ya, de por sí, metalingüística, es decir, eleva al cuadrado un
nivel ya elaborado del lenguaje, el de las metáforas poéticas, que a su vez suponen ser la
eboración de un primer nivel denotativo, ‘normal’ del lengaje.»

74
decifrado, vencidas as dificuldades daí decorrentes, na esfera da
recepção. O romance Paradiso, de Lezama Lima, a pintura de René
Portocarrero, a arquitetura de Ricardo Porro são as obras que Sarduy
analisa para esmiuçar a incidência desse mecanismo. Além disso,
enfatiza seu caráter erótico ao sintetizar a marca distintiva dos
escritores contemporâneos com a seguinte colocação: “Abertura, falha
entre o nomeante e o nomeado e surgimento de outro nomeante, quer
dizer, metáfora. Distância exagerada, todo o barroco não é mais que
uma hipérbole, cujo ‘desperdício’ veremos que não por acaso é
erótico.12 (Sarduy apud Fernández Moreno, 1977, p. 170)
A nomeação é, de fato, um dos recursos de produção da metáfora
barroca. No ímpeto de nomear pela criação literária, com o fim de
incorporar as coisas da América a uma semântica universal, a metáfora
barroca dissemina sentidos justamente por obscurecer seus
significantes essenciais.
O segundo mecanismo de produção do artifício barroco Sarduy
denomina proliferação, caracterizando-o como operação metonímica
por excelência. Assinala que, na América, ele se tornou mais explícito
e demonstra sua viabilização na narrativa de Carpentier, na escultura
do venezuelano Mario Abreu, na poesia de Pablo Neruda e no romance
de João Guimarães Rosa.
Tal mecanismo consiste na obliteração de um dado significado e
a conseqüente substituição por uma cadeia de significantes em
progressão metonímica. Circunscrevendo o “significante ausente”,
criando uma órbita ao redor dele, o mecanismo permite uma leitura
radial da cadeia de signos e a inferência do significado no contexto.
Como recursos deste procedimento o autor destaca a “enumeração
disparatada, acumulação de diversos nós de significação, justaposição
de unidades heterogêneas, lista díspar e collage.13 (Sarduy apud
Fernández Moreno, 1977, p. 170) Por fim, esclarece que a proliferação,

12 « Abertura, falla entre lo nombrante y lo nombrado y surgimiento de outro nombrante,


es decir, metáfora. Distancia exagerada, todo el barroco no es más que una hipérbole, cuyo
‘disperdicio’ veremos que no por azar es erótico.»
13 “enumeración disparatada, acumulación de diversos nódulos de significación,
yuxtaposición de unidades heterogéneas, lista dispar y collage.»

75
para tornar legível o “significante expulso” e evidenciar sua ausência,
demanda a leitura radial que, sem nomear, faz referência àquele
significante que ostenta “as marcas do exílio”.
Condensação é o terceiro mecanismo e inclui procedimentos como
permuta, espelhamento, fusão e intercâmbio entre dois termos de uma
cadeia de significantes, de maneira que ambos resultam num terceiro
termo, que condensa semanticamente os dois primeiros. Reconhecível
extensamente, por exemplo, na obra de James Joyce, Lewis Carol,
Guillermo Cabrera Infante, na arte visual de Carlos-Cruz Díaz e Julio
Le Parc, na cinematografia de Leopoldo Torre-Nilsson e Glauber
Rocha, por este mecanismo a tensão criada entre os dois significantes
produz uma unidade discursiva que reduz a autonomia dos elementos
iniciais.
Apoiando-se na teoria de Bahktin sobre paródia e carnavalização,
Sarduy ressalta a intensificação do caráter polifônico, e até
estereofônico, do código barroco recente, literário ou não: “Espaço
do dialoguismo, da polifonia, da carnavalização, da paródia e da
intertextualidade, o barroco se apresentaria, pois, como uma rede de
conexões, de sucessivas filigranas, cuja expressão gráfica não seria
linear, bidimensional, plana, mas em volume, espacial e dinâmica.14
(Sarduy apud Fernández Moreno, 1977, p. 175)
A carnavalização barroca articula-se, pois, em múltiplos
protocolos expressivos: mistura de gêneros e discursos, linguagens
cruzadas, sinonímia abundante, perífrases, digressões, duplicações,
tautologias, transbordamento de significantes, negação de qualquer
intenção de funcionalidade e sobriedade e demais procedimentos
correlatos, incitadores de construções que prevêem

Verbo, formas malgastas, linguagem que, por ser dema-


siadamente abundante, já não designa coisas, e sim ou-
tros designantes de coisas, significantes que envolvem

14 «Espacio del dialoguismo, de la polifonía, de la carnavalización, de la parodia y de la


intertextualidad, lo barroco se presentaría, pues, como una red de conexiones, de sucesivas
filigranas, cuya expresión gráfica no sería lineal, bidimensional, plana, sino en volumen,
espacial y dinámica.»

76
outros significantes em um mecanismo de significação
que termina designando-se a si mesmo, mostrando sua
própria gramática, os modelos dessa gramática e sua ge-
ração no universo das palavras. Variações, modulações
de um modelo que a totalidade da obra coroa e destro-
na, mostra, deforma, duplica, inverte, desnuda ou so-
brecarrega até preencher todo o vazio, todo o espaço –
infinito – disponível.15 (Sarduy apud Fernández More-
no, 1977, p. 176)

Sarduy referenda o caráter metalingúístico da ordem neobarroca,


intencionalmente afeita à superexposição de sua estrutura interna e
dos elementos que a codificam. Buscando decifrar as unidades textuais
da semiologia do barroco latino-americano e denominando-as gramas,
conforme termo de Julia Kristeva, estabelece dois mecanismos para
sua composição: intertextualidade e intratextualidade.
Para a intertextualidade Sarduy distingue dois procedimentos, a
citação e a reminiscência. A primeira, forma de colagem, empréstimo,
transposição, traduz a sobreposição de um texto em outro, sem que
se alterem os elementos do texto transposto. Na reminiscência, ao
contrário, o texto transposto funde-se no outro, perdendo sua
autonomia e «autoridade de corpo estranho», mas integrando-se e
determinando a camada profunda do texto receptor.
No tocante à intratextualidade, Sarduy analisa os elementos
intrínsecos à operação escritural, aqueles que participam, com
consciência ou não do artista, do ato de criação. Trata-se de gramas
fonéticos, sêmicos e sintagmáticos. Ressalta como práticas ideais dos
gramas fonéticos o anagrama, por ser operação típica do «esconde-
esconde onomástico», o caligrama, o acróstico e demais formas verbais
e gráficas que indicam metamorfoses fonéticas. Dentre essas formas,

15 «Verbo, formas malgastadas, lenguaje que, por demasiado abundante, no designa ya cosas,
sino otros designantes de cosas, significantes que envuelven otros significantes en un mecanismo
de significación que termina designándose a sí mismo, mostrando su propia gramática, los
modelos de esa gramática y su generación en el universo de las palabras. Variaciones,
modulaciones de un modelo que la totalidad de la obra corona y destrona, enseña, deforma,
duplica, invierte, desnuda o sobrecarga hasta llenar todo el vacío, todo el espacio – infinito –
disponible.»

77
distingue a aliteração, que, ao remeter a si mesma, ao construir-se
sobre leve «vértebra semântica», é tautológica e paródica e, por isso
mesmo, barroca. Já os gramas sêmicos conduzem a significantes
«reprimidos», de extração oral, que não afloram na superfície do texto,
mas que, em estado de latência, são decifráveis «por trás do discurso».
Quanto aos gramas semânticos, são os elementos que promovem a
inserção de uma obra em outra obra, seja pelo recurso da repetição
do título, seja pela cópia reduzida, descrição, espelhamento e
procedimentos inerentes à mise en abîme. No entanto, esses indicadores
discursivos não são evidentes, dado que se localizam na estrutura de
apoio do texto, na estrutura subjacente, exercendo dali sua
«autoridade».
Ao final do ensaio, para concluir seu itinerário teórico, Sarduy
estabelece três constituintes essenciais da superabundância e do
desperdício do jogo barroco: erotismo, espelho e revolução.
Com relação ao erotismo, assevera que a linguagem barroca se
fundamenta no prazer do suplemento, do excesso e da perda parcial
do objeto, ressalvando que esta última é, em si, uma operação frustrada.
Por meio de uma sucessão de imagens não usuais, o autor explicita o
caráter simbólico do barroco:

O objeto (a) enquanto quantidade residual, mas também


enquanto queda, perda ou desajuste entre a realidade (a
obra barroca visível) e sua imagem fantasmática (a satu-
ração sem limites, a proliferação extenuante, o horror vacui)
preside o espaço barroco. O suplemento (...) intervém
como constatação de um fracasso: o que significa a pre-
sença de um objeto não representável, que resiste a fran-
quear a linha da Alteridade (A: correlação biunívoca de
(a), (a)lice que irrita a Alice porque esta última não logra
fazê-la passar ao outro lado do espelho.16 (Sarduy apud
Fernández Moreno, 1977, p. 182)

16 «El objeto (a) en tanto que cantidad residual, pero también en tanto que caída, pérdida o
desajuste entre la realidad (la obra barroca visible) y su imagen fantasmática (la saturación sin
límites, la proliferación ahogante, el horror vacui) preside el espacio barroco. El suplemento ...
interviene como constatación de un fracaso: el que significa la presencia de un objeto no
representable, que resiste franquear la línea de la Alteridad (A: correlación biunívoca de (a)),
(a)licia que irrita a Alicia porque esta última no logra hacerla pasar del otro lado del espejo.»

78
Sarduy tematiza a tensão que edifica o código barroco sublinhando
o impulso à ocupação do espaço (horror ao vazio) e a reiteração do
suplemento como marcadores do jogo a que se lança. Trata-se da
afirmação do caráter lúdico desse código, em oposição ao caráter de
trabalho que caracteriza o classicismo e seu homo faber. O homo barocchus
deleita-se na volúpia, no fausto, na perda parcial e momentânea do
objeto ansiado, no desperdício, no prazer. É esse o sentido do erotismo
para o escritor, que se articula no exercício da poiesis, na entrega à
atividade paródica, na transgressão do que é útil, funcional e natural.

No erotismo a artificialidade, o cultural, manifesta-se no


jogo com o objeto perdido, jogo cuja finalidade está em
si mesmo e cujo propósito não é a condução de uma
mensagem (...) mas seu desperdício em função do pra-
zer. Como a retórica barroca, o erotismo apresenta-se
como a ruptura total do nível denotativo, direto e natu-
ral da linguagem – somático – como a perversão que
implica toda metáfora, toda figura.17 (Sarduy apud
Fernández Moreno, 1977, p. 182)

O erotismo como componente estético essencial diz respeito, pois,


ao desfrute dos signos poéticos propriamente ditos (as volutas
vuloptuosas, o uivo, o eflúvio dançarino de Perlongher), postos em
circulação e em cena numa rede infinita de possibilidades. Nessa sala
de espelhos, condição atribuída ao texto, o signo se multiplica
incessantemente, ora se ocultando, ora se refigurando, ou se
reabilitando no interior da linguagem em permanente mutação. Trata-
se de uma estrutura intrincada, cuja tônica é a legião de elementos
que impõe, no campo da leitura, que a percepção se detenha na
observação das minúcias que dinamizam o conjunto.
Comparando o barroco europeu, o barroco colonial e o
neobarroco, Sarduy pontua que os dois primeiros apresentam uma

17 «En el erotismo la artificialidad, lo cultural, se manifiesta en el juego con el objeto perdido,


juego cuya finalidad está en sí mismo y cuyo propósito no es la conducción de un mensaje ...
sino su desperdicio en función del placer. Como la retórica barroca, el erotismo se presenta
como la ruptura total del nivel denotativo, directo y natural del lenguaje – somático – como
la perversión que implica toda metáfora, toda figura.»

79
condição mais harmônica, gerada pela visão de um universo móvel,
infinito e inesgotável como logos exterior que fornece consistência,
organização e permite a apreensão epistemológica de suas
potencialidades. Já no âmbito do neobarroco, a representação expressa
falta de harmonia, perda, carência, heterogeneidade, sintomas de um
desejo que não se realiza pela impossibilidade de captura do objeto
ansiado. Em suma, o neobarroco é o «reflexo pulverizado de um saber
que sabe que já não está ‘aprazivelmente’ fechado sobre si mesmo»18
(Sarduy apud Fernández Moreno, 1977, p. 183), cuja revolução se
articula no gesto de impugnar e metaforizar a ordem logocêntrica.
Destronamento, transgressão, busca, utopia, excentricidade
caracterizam os impulsos do barroco novo, cujas ocorrências no
continente dessacralizam as formas antigas, recriam-nas e as
reinventam sob outros fundamentos epistemológicos. A esse respeito
vale patentear, com Irlemar Chiampi, que, no tocante à síndrome do
barroco, se houver

uma saudade sarduyana, ela está longe dos modismos


dos «neo» que inflam o cenário pós-moderno. Sua vi-
são, das próprias margens que geraram aquele
carrefour de povos, línguas e culturas, reivindica a
periferia que reinventou o barroco europeu excluin-
do todo «simulacro de verdade» e, juntamente com
ele, o potencial utópico que um dia este continente
abrigou. (Chiampi, 1998, p. 34)

O ensaio de Severo Sarduy, síntese de seu pensamento crítico e


sua prática poética, é referência teórica obrigatória para a reflexão
sobre os protocolos do barroquismo no continente, razão pela qual
seus princípios demandam um exame mais acurado. Conformes com
as características da estética que analisam, igualmente complexas,
desbravadoras e metalingüísticas, as lições de Sarduy, apesar da
bagagem estruturalista que refletem, constituem parâmetro para a

18 «reflejo pulverizado de un saber que sabe que ya no está ‘apaciblemente’ cerrado sobre sí
mismo»

80
visão/revisão da cultura latino-americana e seus marcadores mais
freqüentemente assimilados: o barroco e o neobarroco como incisivas
presenças identitárias.
Constituindo o veio de inserção na modernidade, com a
apropriação da cultura estrangeira, e de participação na pós-
modernidade, com a reciclagem do moderno, como quer Irlemar
Chiampi e outros críticos, o fato a assinalar é que as tessituras barrocas
do continente persistem, continuam nomeando, definindo e
provocando variedade de reações, polêmicas e controvérsias.
Lepra, lodo, barro, pedra, tripas, entranhas, tumor e verruga;
curiosidade que enseja o devir; expressão plena da mestiçagem,
estética da dificuldade; mais ainda, neobarro, nova trincheira, nova
resistência, estuário, neo-artifício, neologismo: o campo semântico do
barroco e do neobarroco é amplo e, como tal, abriga inúmeras e
provocadoras derivações. Mas sejam elas quais forem, barroco e
neobarroco são claves culturais que conferem não mais um selo
aristocrático à cultura do continente, mas incitam agendas, programas
e projetos que preenchem a alteridade latino-americana, instalando-
a, como pulsão crítica e criadora, na razão universal.

Referências Bibliográficas
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CANGI, Adrian (sel. e pról.). Néstor Perlongher: Evita vive e outras prosas. São Paulo:
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CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade. São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 1998.
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HAUSER, Arnold. História social da arte e da literaura. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo:
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SARDUY, Severo. El barroco y el neobarroco. In: FERNÁNDEZ MORENO, César (coord.
e introd.). América Latina en su literatura. 4ª ed. México: Siglo XXI/UNESCO, 1977.
BOOM E PÓS-BOOM

André Trouche
Universidade Federal Fluminense

Se há algum denominador comum entre os estudos que se


debruçam sobre o boom e sobre o pós-boom, este será seguramente a
certeza de que se trata de termos de difícil e esquiva definição, que
envolvem distintos campos do saber, e cuja trajetória atribulada —
construindo significações sucessivas ao longo do tempo — foi decisiva
para sua consideração, hoje, como conceitos identitários importantes
na conformação do projeto criador latino-americano.
Embora os termos boom e pós-boom, enquanto indicadores de
um fenômeno de recepção e, posteriormente, por e xtensão
metonímica, de fases históricas do processo literário hispano-
americano, em princípio, estejam aparentemente muito mais próximos
da pesquisa no campo da sociologia (recepção) e da história literária
— torna-se imperioso tratá-los no âmbito específico das questões
identitárias e literárias.
Neste sentido, é fundamental esclarecer que trabalharemos com
os conceitos de boom e pós-boom, buscando sempre articular o estudo
e a reflexão sobre sua trajetória no discurso crítico hispano-americano
ao universo das narrativas e das construções identitárias que os
conformam. Em outros termos: este trabalho pretende levantar a
constituição e o percurso dos conceitos de boom e pós-boom, com
base, não só nos textos crítico-teóricos fundadores destes conceitos
(Monegal,1972), (Rama,1982), (Donoso,1984), (Pizarro, 1995), (Franco,
1997), (Shaw, 1997), mas, também, na consideração da produção
narrativa dos anos 60/70 (caso do boom) e dos anos 80/90 (caso do
pós-boom) que os suscitaram — Carpentier, Borges, Cortázar, Fuentes,
García Márquez, Vargas Llosa, Puig, Roa Bastos, Diamela Eltit,
Napoleón Baccino Ponce de León, Arturo Árias, Abel Posse — nos
quais despontam, como linha de força, questões de fundamental
importância.
A ênfase nesta dupla articulação justifica-se pela necessidade de
buscar um diálogo dos textos críticos entre si e destes com a produção
narrativa, para que se possa estabelecer um código comum capaz de
pavimentar, com maior segurança, uma incursão por este campo de
investigação. Isto porque, apesar de muito disseminados, estes termos,
ao longo do tempo, vêm dando margem aos mais distintos usos e às
mais diversas interpretações, que chegam até mesmo, no caso de alguns
críticos, à negação de qualquer conteúdo conceitual.
Assim os termos boom e pós-boom serão considerados, como
ponto de partida, como conceitos teóricos forjados pela teoria
econômica para analisar a performance de venda e marketing de um
determinado produto, em modernas sociedades de consumo. A partir
deste patamar, tomando este conceito por empréstimo, é que
“armaremos nosso olhar”, em busca de, se não responder, pelo menos
equacionar algumas indagações que permanecem desafiando o
discurso crítico latino-americano: afinal, de que se fala quando nos
referimos a boom e pós-boom ? De um termo meramente indicador
de um fenômeno de recepção da literatura hispano-americana? De
um termo cunhado pelo discurso crítico europeu/norte-americano, a
(re)descobrir a América? De um termo eivado de etnocentrismo, que
indicia apenas um fenômeno editorial, manipulado pelas grandes
editoras multinacionais de então? De um termo que aponta o
surgimento de uma rica floração literária, sem precedentes no processo
narrativo latino-americano? De um conceito teórico revelador da
emergência e da maturidade do processo literário latino-americano?
Que autores devem ser elencados como formadores do boom e por
quê? Pode-se pensar em alguma proposta poética comum a este grupo
de autores e obras? Em que momento se dá a explosão expressa pelo

84
termo boom e o que determina a passagem para uma fase de pós-
boom? Como aparecem no boom e no pós-boom as grandes questões
identitárias que sustentam a produção narrativa latino-americana no
século XX? E, principalmente, diante de tal quadro de perplexidades,
qual a validade crítico-conceitual destes conceitos hoje?
Quaisquer que sejam as respostas permanece pertinente e
relevante a pesquisa, uma vez que, embora, amplamente,
problemáticos, estes conceitos apresentam, hoje, um uso tão
disseminado e indiscriminado que é praticamente impossível pensar
a produção narrativa latino-americana do século XX ignorando-os
ou colocando-nos fora de seu eixo de abrangência. Principalmente se
levarmos em consideração que, efetivamente, a partir de meados do
século XX, a narrativa hispano-americana apresenta um evidente e
inquestionável processo de renovação do velho quadro do regionalismo
naturalista, cristalizando as propostas poéticas oriundas das
vanguardas dos anos 20.
Buscar estas respostas implica, inicialmente, revisitar os ensaios
de Rodríguez Monegal (1972), Angel Rama (1982) e José Donoso
(1972), e que correspondem às primeiras tentativas de uma reflexão
crítico-teórica mais ambiciosa e conseqüente sobre estes termos/
conceitos.
Produzido em 1972, compartilhando, portanto, o mesmo
conte xto histórico do “boom”, o ensaio El boom de la novela
latinoamericana de Emir Rodríguez Monegal chama a si a tarefa “imensa,
porém, impostergável” de traçar as grandes linhas e “situar o fenômeno
do boom no contexto da literatura latino-americana contemporânea”1
(Monegal, 1972, p. 12).
Partindo de uma discussão acerca das origens do fenômeno,
Monegal, primeiramente, busca relacionar o boom a contingências
específicas do campo intelectual latino-americano nos anos 50/60,
enfatizando a questão do crescimento do número de leitores: “porém,

1 Tradução livre do original em língua espanhola. Assim como esta, todas as demais citações
de textos em língua estrangeira, ao longo deste trabalho, serão apresentadas em forma de
traduções livres.

85
como todo fenômeno cultural, o boom tem não apenas uma origem
única, mas várias origens. E a primeira é, naturalmente, o público.
Sem o leitor não há boom” (Monegal, 1972, p. 13). Paralelamente,
Monegal trata, também, de outras mudanças em aspectos importantes
do campo intelectual latino-americano, tais como a emigração (forçada
pela guerra na Europa) para a América Latina de uma grande
quantidade de escritores (Bergamín, Alberti), editores (Gonzalo
Losada, Llausás) e professores como Américo Castro, José Gaos “que
impulsionam o empreendimento editorial latino-americana e dão lugar
a um verdadeiro renascimento cultural, equivalente ao criado na Itália
do Quatrocentos pelos humanistas que escaparam ao cerco de
Constantinopla” (Monegal, 1972, p.15). Ainda no campo dos
fenômenos conjunturais, Monegal chama a atenção para o importante
papel desempenhado pelo crescimento demográfico e industrial de
muitas das grandes cidades e centros urbanos latino-americanos nesta
época, além do impacto causado pelo processo geral de modernização
das metrópoles. A disponibilização de um maior número de
universidades, escolas secundárias, bibliotecas, livrarias, revistas e
periódicos e, sobretudo, a entrada em cena de editoras latino-
americanas que “não apenas traduzam e adaptem a cultura universal,
mas que também fomentem a cultura nacional e latino-americana”
(Monegal, 1972, p.16) são outros fatores considerados decisivos para
o surgimento do boom.
Delineadas as linhas mestras do perfil do campo intelectual latino-
americano nos anos imediatamente anteriores ao boom, parte, então,
o crítico uruguaio para uma observação retrospectiva das mudanças
que vinham se produzindo no interior do projeto criador, desde os
anos 40, para chegar, finalmente, ao cenário de uma “Nova Narrativa”
que irá desaguar no boom, embora nele não se esgote, definitivamente.
Os capítulos finais de seu ensaio dedicam-se ao estudo destes novos
narradores e de suas narrativas.
De toda a grande contribuição oferecida pelo trabalho de
Monegal, é importante ressaltar a estreita vinculação – que ele é o
primeiro a estabelecer – entre a Nova Narrativa e o Boom. Com grande

86
ousadia, ainda compartilhando o zeitgheist da renovação, e, ainda, no
calor do boom, o crítico uruguaio esboça um perfil da Nova Narrativa
Hispano-Americana, buscando, de forma rigorosamente didática,
apontar o surgimento do fenômeno e sua posterior consolidação:

Já se discutiu, mais de uma vez, onde situar a data de


origem do novo romance. Parece óbvio que se seguimos
o curso da história literária recente, a aparição sucessiva
nos anos quarenta de La invención de Morel (1940) de
Adolfo Bioy Casares, Ficciones (1944) de Borges; El señor
presidente (1946) de Astúrias; Al filo del agua (1947) de
Augustín Yánez, El reino de este mundo (1949) de
Carpentier; Hombres de maíz (1949) de Asturias (...) [que]
servem para colocar uma série de marcos através dos
quais a narrativa hispano-americana passa do realismo
telúrico dos Rivera, Gallegos, Güiraldes e demais, e da
crônica realista dos Azuela, Guzmán, Ciro Alegría et alia,
a formas narrativas muito mais complexas, vinculadas ao
vanguardismo. (...) A década seguinte verá a aparição
não apenas de novas obras dos escritores já menciona-
dos acima (sobretudo Los pasos perdidos, 1953, de
Carpentier; Los adioses, 1954, de Onetti; e o único ro-
mance de Guimarães Rosa, 1956), mas também de obras
de escritores que continuam o processo de renovação da
nova narrativa: Pedro Páramo (1953), de Juan Rulfo; El
sueño de los héroes (1954) de Adolfo Bioy Casares; La
región más transparente (1958) de Carlos Fuentes; Los rios
profundos (1959), de José María Arguedas, para citar al-
guns dos mais notáveis (Monegal, 1972, p. 76-77).

Apesar de extensa, esta citação justifica-se por reunir e elencar


obras e autores que, ainda nos anos quarenta e cinqüenta, aproveitando
a experiência de gerações anteriores, incorporam, também, elementos
da nova narrativa européia e norte-americana, suscitando um cenário
verdadeiramente renovador no projeto criador latino-americano, e,
ainda segundo Rodríguez Monegal, alicerçando as condições para o
salto dos anos 60.

87
Ao estabelecer esta estreita vinculação entre a nova narrativa e o
boom, ele abre caminho para que a consideração do termo boom
ultrapasse o fenômeno de recepção e a mera designação de uma fase
histórica do processo literário latino-americano, que ele inicialmente
indica, e atinja o patamar de um conceito teórico importante para o
estudo da narrativa. É exatamente esta proposta de consideração do
termo que leva o crítico a minimizar a importância de determinados
contraditórios, tais como o elenco dos autores que efetivamente teriam
participado do boom, as cifras de vendas e de traduções, os grandes
embates políticos e ideológicos, a maior ou menor importância da
influência exercida pela revolução cubana e pela atuação de órgãos
como a Casa de las Américas, embora reconheça sua existência e o
papel — ainda que lateral — que efetivamente desempenharam na
configuração deste campo intelectual.
É no âmbito das sucessivas publicações dos textos narrativos, isto
é, no universo do literário propriamente dito, que Rodríguez Monegal
vai buscar e encontrar as linhas mestras do fenômeno de renovação e
emergência do projeto criador latino-americano. Na verdade, desde a
publicação de Historia universal de la infamia, de Jorge Luís Borges, em
1935, começa a surgir uma série de textos, apresentando em comum
um decisivo processo de “(des)realização” e rompendo,
definitivamente, com a ingenuidade da estética realista/naturalista até
então vigente na prosa narrativa, que parecia se manter irredutível às
propostas vanguardistas desde os anos 20. José María Arguedas, Jorge
Luís Borges, Miguel Ángel Astúrias, Agustín Yánez, Alejo Carpentier,
Juan Carlos Onetti e Juan Rulfo lançavam, então, as primeiras
sementes, que logo floresceriam e garantiriam para o texto hispano-
americano um espaço único e próprio. Ultrapassando e
desmascarando o mundo empírico das aparências, dado como absoluto
pelo realismo tradicional, a obra destes narradores começa, assim, a
assimilar o mito, a história, o lendário oral como signos contíguos e
não-excludentes, que compartilham, enquanto realidade verbal, o
mesmo solo comum da linguagem. Começam, portanto, a constituir o
quadro de uma nova narrativa que viria a desaguar no boom dos anos
60, por mais difícil que seja uma definição precisa deste termo.

88
Deste panorama, porém, é preciso destacar dois aspectos
fundamentais: o primeiro é o fato de que todo este processo de
renovação artística impôs uma carga de informação de tal modo
violenta, que provocou uma verdadeira revolução, exigindo do leitor
um grande esforço de reconhecimento do processo artístico moderno.
Na América Latina, esta renovação acontece de forma afirmativamente
transformadora: os novos procedimentos são assimilados, exatamente,
no bojo de um processo de tomada de consciência, por parte dos
intelectuais, de sua americanidade, daquilo que Carpentier aponta
como a diferença, a alternativa ao universo cultural europeu. Diferente
de uma Europa sólida em termos culturais e históricos, a América
Hispânica é ainda uma realidade a ser construída. Corajosamente,
fascinados com esta circunstância, escritores chamam a si esta tarefa
de verdadeira criação do real hispano-americano, não permitindo,
portanto, qualquer tentativa de aproximar o evidente experimentalismo
de que se revestem as obras desta época, a algum tipo de mero exercício
narcísico, tão comum e caracterizador da narrativa européia no século
XX.
O segundo aspecto a destacar é o fato de o texto passar a estampar
a consciência de que a narrativa faz parte do universo da linguagem e,
só assim, pode ser entendida. A nova narrativa hispano-americana,
portanto, se constitui numa longa viagem em busca de uma identidade,
em busca do resgate/construção de sua imagem, enfim, em busca de
individualidade. Uma viagem, porém, que não se desenrola como uma
(re)visita de determinados temas ou de referências, mas que se constrói
e se desenvolve no interior do universo da linguagem. Inteiramente
sintonizada com a atitude básica de busca de autoconhecimento, que
vem caracterizando o projeto criador americano desde o século XVII.
O que parece decisivo, aqui, é ressaltar que em um determinado
momento esta nova narrativa cria particularidades tão próprias que
configura uma cena literária específica, a exigir da crítica uma
designação condizente com a especificidade que ostenta. É neste
quadro e com esta significação que deve se discutir e estabelecer o
conceito de boom.

89
Outro texto fundador acerca do conceito de boom surgiu também
em 1972, e, portanto, absolutamente envolvido pelo calor dos debates
que, então, ocupavam espaço privilegiado. Trata-se do depoimento
do escritor chileno José Donoso que, desde o título de sua obra, faz
questão de frisar o aspecto subjetivo de suas colocações: Historia
personal del boom. Varia o ensaísta, varia o ponto de vista, varia a
proposta de abordagem. Permanece, porém, a mesma perplexidade:

O que é então, o boom? O que há de verdade e de enga-


no, e de fraude nele? Sem dúvida é difícil definir com
rigor, nem que seja apenas superficial, este fenômeno
literário tão recém terminado — se é verdade que termi-
nou —, e cuja existência como unidade se deve não ao
arbítrio daqueles escritores que o integraram, à sua uni-
dade de pontos de vista estéticos e políticos e às suas
inalteráveis lealdades de amizade, e, sim, ao fato de que
seja antes uma invenção daqueles que o põem em dúvi-
da” (Donoso, 1972. p. 12).

A leitura integral do ensaio de Donoso não deixa lugar a dúvida.


Seu ponto de vista é, fundamentalmente, o literário e sua perspectiva,
a do escritor, preocupado com os procedimentos retóricos e com as
concepções poéticas que os informam. Como assinala Rama

a percepção de Donoso é estritamente literária e nem


sequer leva em conta o o consumo massivo de narrativas
latino-americanas. Para ele, estão no boom tanto os Cien
años de soledad como Paradiso que só teve um succès d’estime
entre os leitores, tanto La ciudad y los perros, como El
astillero, que segue sendo um livro de escritores. É, por-
tanto, uma apreciação perfeitamente legítima do que
poderia ser chamada “nova narrativa latino-americana”
(Rama, 1982. p. 247).

Falando sempre enquanto escritor, o ensaio de Donoso, ainda


que sem nenhum rigor conceitual, termina por compor um
interessante painel do projeto criador do boom, revelando aspectos,

90
motivações e desafios comuns, que se colocavam para os condutores
do projeto criador latino-americano, no contexto dos anos sessenta.
Embora não faça alusão à existência de um corpo programático de
idéias e concepções poéticas comuns que pudessem caracterizar
nitidamente um movimento, o depoimento de Donoso permite, sim – e
talvez seja esta sua contribuição mais importante –, que pensemos no
boom como uma proposta estética, ainda que multifacetada e fluida.
O terceiro texto fundamental a construir teoricamente o conceito
de boom e pós-boom é, sem dúvida, um ensaio publicado por Ángel
Rama como um dos capítulos de La novela latino-americana 1920-1980:
el boom en perspectiva. Publicado em 1982, exatamente dez anos
depois da publicação dos trabalhos de Monegal e de Donoso, e dez
anos depois da data consensualmente considerada como limite do
fenômeno (1972), o ensaio de Rama passa em revista os principais
elementos constitutivos do boom, com um nítido objetivo de traçar
um perfil definitivo do fenômeno, uma revisão/balanço geral do muito
que já havia sido publicado assistematicamente sobre o tema:

Antes de tudo é preciso definir o boom, coisa nada fácil,


visto que sua existência está registrada em milhares de
revistas e jornais dos últimos dez anos como um tópico
cuja origem ninguém conhece, mas que se repete como
uma senha (Rama, 1982, p. 239).

Sua tentativa de definição do fenômeno começa exatamente por


recolher e comparar “esquivas definições” apresentadas pelos
escritores envolvidos:

Para ajustar a definição do boom, torna-se mais impor-


tante retomar a opinião dos escritores que participaram
do movimento, dado que nos permite visualizá-lo a par-
tir de sua perspectiva (...). Tanto as posições derivadas
deste debate, como as adotadas, paralelamente, por al-
gumas figuras centrais do movimento tenderam a ressal-
tar a positividade do fenômeno, embora não deixassem
de anotar perplexidades e discrepâncias. Devem ser en-

91
caradas como ações de contra-ataque, como a forma com
que os narradores enfrentaram o rígido direcionamento
que se vinha formulando havia alguns anos, e que havia
gerado polêmicas nas quais se misturaram assuntos ar-
tísticos e políticos (Rama, 1982, p. 241).

Dos vários documentos a que se refere, Rama destaca, apresenta


e comenta depoimentos de Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar e José
Donoso, que expressam diferentes formas de interpretação do
fenômeno, e, principalmente, discutem o fenômeno do boom a partir
de perspectivas distintas e aparentemente contraditórias. A grande
contribuição do crítico uruguaio neste aspecto reside, exatamente,
no fato de confrontar estes depoimentos e posturas, demonstrando
que, em vez de excludentes (como aparentam), estas múltiplas visões
do fenômeno devem ser consideradas complementarmente. De sua
articulação, de seu diálogo é que se pode chegar a uma perspectiva
ampla do fenômeno em tela.
Rama reserva, ainda, uma seção especial para a consideração da
atuação das editoras e do mercado editorial como um todo, na
conformação do boom:

Os editores que propiciaram o surgimento da nova nar-


rativa foram em sua maioria casas oficiais ou pequenas
empresas privadas, que há algum tempo defini como
culturais, para distingui-las das empresas estritamente
comerciais. Uma enumeração parcial das editoras dos
sessenta evidencia claramente esta situação: em Buenos
Aires, Losada, Emecé, Sudamericana, Compañía Gene-
ral Fabril Editora, além de algumas outras de menor
porte (...), de todas, coube papel central a Fabril Edito-
ra, a Sudamericana, a Losada, a Fondo de Cultura, a
Seix Barral, e a Joaquín Mortiz, cujos catálogos, nos anos
sessenta, apresentaram um quadro de mudança, em que
uma elevada porcentagem de produção nacional ou lati-
no-americana passou a ocupar o lugar antes ocupado
pela produção estrangeira, ao mesmo tempo em que
várias delas instituíram concursos internacionais com

92
prêmios atrativos, que deram a conhecer obras de qua-
lidade, que o público recebia referendadas por jurados
qualificados, o que assegurava uma grande audiência
(Rama, 1982. p. 249).

Rama faz questão de deixar evidente que a ação destas editoras


culturais foi fundamental por propiciar a publicação de “obras novas
e difíceis, interpretando, sem dúvida, as demandas iniciais de um
público também novo, melhor preparado e mais exigente, porém, o
fizeram pensando no desenvolvimento de uma literatura mais que na
contabilidade da empresa” (Rama, 1982. p.250). Ainda segundo Rama,
os efeitos desta política editorial não demoraram a se manifestar em
toda sua extensão e com grande contundência, determinando o
desaparecimento de muitas, a sobrevida de outras, totalmente
arruinadas e inviáveis comercialmente e a manutenção de algumas,
outra vez vigorosas comercialmente, após uma mudança fundamental
na política editorial, optando por comercializar apenas uma linha de
garantidos best sellers. Ao terminar a década de setenta se registra uma
“assombrosa transformação no mercado editorial” (Rama, 1982. p.
252). As editoras culturais estavam todas em definitiva crise de
insolvência financeira, enquanto haviam emergido, robustamente, as
multinacionais do livro, reduzindo e comprometendo, drasticamente,
a autonomia editorial da América Latina, que vinha sendo construída
desde os anos trinta.
As três seções seguintes de seu ensaio dedicam-se à observação
da crítica suscitada pelas narrativas do boom, uma discussão acerca
de quem são os escritores e à consideração das datas e limites
temporais do fenômeno e suas cifras. Este balanço sobre o discurso
crítico, suscitado pelo boom, revelará alguns aspectos e interfaces
importantes do campo intelectual latino-americano de então. A
primeira e mais óbvia é a constatação de que o boom mobilizou todos
o setores da crítica: a veiculada pelos jornais, a das revistas
especializadas, a crítica profissional, a dos próprios criadores e a
acadêmica. Outro aspecto importante, que envolve a consideração do
discurso crítico, é a grande rejeição que sofre o termo, e a conseqüente

93
reação apaixonada que o termo boom provoca em criadores e críticos,
desde os primeiros momentos.

O capítulo das queixas contra o boom é bem extenso e se


inicia pouco depois de seu surgimento. Já fizemos alu-
são a algumas, de tipo predominantemente político, po-
rém, elas formam um amplo leque e procedem de varia-
das posições estéticas (Rama, 1982, p. 254).

Esta paixão despertada pelo fenômeno do boom, segundo Rama,


encontrou seu maior ponto de tensão quando se tratou de definir
quem eram os autores a serem considerados. Refletindo com toda a
nitidez a imensa dificuldade em definir o movimento, não há qualquer
consenso, além de multiplicarem-se os (possíveis) critérios que
justifiquem as escolhas. “Cada um tem sua própria lista” (apud Rama,
1982. p. 260) afirmaria Vargas Llosa, demonstrando cabalmente a
inexistência de um perfil ou de um corpo de idéias coletivamente aceito,
a alicerçar uma definição para o fenômeno. Insistindo, porém, na
tentativa de levantar critérios – ou grupo de critérios – capazes de
justificar as listas de escritores do boom que se apresentaram, Rama
propõe uma ”operação que tem ao menos três articulações obrigatórias
sucessivas, utilizando cada uma critérios heterogêneos que apesar disso
se vão somando” (Rama, 1982. p. 261). Na primeira se institui uma
distinção/discriminação entre os diversos gêneros literários,
cristalizados em seu paradigma genérico tradicional, sem que seja
levada em conta a enorme relativização genérica produzida pela
contemporaneidade. Assim, nenhum autor, constata Rama – por mais
sucesso editorial que tenha alcançado, por maior que seja sua inserção
na modernidade, e/ou por mais que seja reconhecida a excelência de
seu trabalho –, será incorporado ao universo abrangido pelo conceito
de boom, se não houver produzido narrativas, ou seja, “este termo
somente se aplicará à narrativa contemporânea” (Rama, 1982. p. 261).
Criticando vivamente esta atitude, Angel Rama a classifica de redutora
e empobrecedora, deformando alguns dos mais característicos aspectos
da cultura latino-americana. A segunda articulação apontada por Rama,

94
apelará a um conjunto de critérios exclusivamente quantitativos,
aceitando no elenco de narradores do boom apenas aqueles que
ostentassem o privilégio de serem os mais vendidos. Esta proposta,
para o crítico uruguaio é, de saída, tecnicamente inviável, uma vez
que as variáveis e condicionantes do contexto social de cada região
apresentavam enorme diferença, dificultando, sobremaneira, o
estabelecimento de cifras válidas para todas as regiões da América
Latina. A seguir, Rama indica o surgimento de uma terceira articulação
do conceito de boom, qualitativa, que põe em jogo um processo seletivo
em busca de premiar determinados valores intrínsecos das narrativas.
“Se as duas primeiras respondem a mecanismos aparentemente
objetivos, a terceira remete a um critério estético ou, ao menos,
cultural” (Rama, 1982. p. 263). Claro está, porém, que mesmo estes
critérios valorativos estavam destinados a produzir apenas
desencontros e ressentimentos, uma vez que careciam de objetividade.
Por fim, é na seção destinada à observação das datas e cifras do
boom, que encontraremos as evidências definitivas quanto à imperiosa
necessidade de que a análise do fenômeno não se restrinja à observação
da performance de vendas e/ou de publicação de um grupo restrito
de escritores. Para determinar com algum critério as datas que
sinalizariam o início do processo, Rama opta por recorrer à observação
da evolução da tiragem e venda de livros. Partindo da observação da
performance de Julio Cortázar e de Gabriel García Márquez (nomes
indiscutíveis, presentes consensualmente em todas as “listas de autores
do boom”), Angel Rama logo sente a necessidade de ampliar o foco de
pesquisa e abranger um número muito maior de escritores, para que
possa chegar a uma noção mais exata do conjunto. Além disso, entra
em cena um outro aspecto fundamental: o sucesso de vendas e o
incremento da produção de livros possibilitam, quase imediatamente,
a reimpressão ou reedição de obras anteriores (do mesmo autor, ou
não) que não tenham obtido repercussão quando de seu lançamento.
Este fenômeno é decisivo para a sedimentação da impressão de que a
América Latina atravessava um momento de prodigiosa e repentina
floração de criadores, “tão grande, quanto inextinguível. De fato não

95
estava presenciando uma produção exclusivamente nova, mas, sim, a
acumulação em um só decênio, da produção de quase quarenta anos,
que até aquela data só era conhecida da elite culta” (Rama, 1982. p.
270).
Deste modo, parecem estar ao menos equacionadas algumas das
indagações propostas a esta reflexão e que direcionaram o exame dos
três ensaios que compõem o quadro teórico privilegiado para o exame
deste fenômeno. Se, por um lado, nenhum dos três textos é capaz de
esgotar o tema, uma leitura que os reúna, confronte e articule
complementarmente permite que ousemos, primeiro, pensar o boom
como um conceito. Um conceito que, tomado de empréstimo à teoria
econômica, inicialmente foi aplicado à literatura latino-americana, no
intuito de dar conta de um súbito incremento de cifras no movimento
editorial. Apesar da violenta reação que sempre provocou, este termo
– que então apenas designava um fenômeno de comercialização e
recepção —, por seu uso extremamente recorrente e indiscriminado,
ganhou uma nova dimensão, através de um processo metonímico de
extensão de significado, passando a indicar um período, uma proposta
poética e uma fase histórica do processo narrativo: o período que até
então era designado pelo composto: “Nova Narrativa Hispano-
Americana”. É ao longo desta trajetória, pois, que o significado deste
termo vai-se constituindo conceitualmente. Neste sentido, faz-se
importante voltarmos, agora, aos questionamentos que interpusemos,
e propor, conclusivamente, a absoluta validade de uma retomada
crítico/conceitual desta questão, hoje, bem como propor a consideração
do termo boom como um conceito – construído ao longo da trajetória
de sua utilização pelo discurso crítico, nos últimos 30/40 anos – que
aponta para importantes questões identitárias que sustentam o campo
intelectual e o projeto criador latino-americano.
No que diz respeito ao pós-boom, embora seja inteiramente
ingênua e insustentável qualquer tentativa de estabelecimento de
limites temporais rígidos para o levantamento e a análise de mudanças
e novas tendências, podemos considerar a década de 70 como o período
em que se iniciou uma sensível transformação na atitude escritural.

96
A relação Colônia/Metrópole, vigente até o século XIX, que depois
foi acompanhando as transformações geopolíticas e culturais, sendo
rebatizada como relação Centro/Periferia, sempre se traduziu,
majoritariamente, em metáforas e alusões no campo da psicanálise:
crise e busca de identidade de imagem, afã de autonomia, construção
de individualidade eram os termos e conceitos, fundamentalmente,
processados. A partir dos anos 70/80, estas relações passaram a se
expressar pela consciência de relações políticas de interdependência.
A escritura de narradores como Manuel Puig, Severo Sarduy,
Luís Rafael Sánchez, Augusto Roa Bastos, Arturo Árias e tantos outros,
em processo de superação das utopias modernistas predominantes
na “Nova Narrativa Hispano-Americana”, abandona a busca ingênua
do que seria uma visão americana, que substitua a radicional visão
oficial, apresente uma “versão verdadeira” da história, ressalte a
“verdadeira” imagem da América e resgate a “verdadeira” identidade
americana, assumindo, assim, uma postura tão distinta em relação à
atitude escritural predominante no boom, que parece anunciar uma
nova fase no projeto criador hispano-americano.
Tal fenômeno é absolutamente decisivo, porque cristaliza, uma
transformação fundamental na própria concepção de ficção. Uma
transformação radical, que problematiza a representação — ou seja,
questiona a própria base de sustentação dos discursos —,
desconstruindo, assim, as fronteiras entre verdade e ficção e forçando
a criação de novas convenções de leitura.
Sem dúvida pode-se afirmar que este novo cenário configura um
painel multifacetado e desigual, em que se alternam atitudes escriturais
dos mais variados matizes. Propostas que vão desde a retomada e a
transformação do passado incaico em imagem utópica, como em Abel
Posse, passam por um experimentalismo exasperado, como o de
Diamela Eltit e o do Roa Bastos dos anos 90, e chegam à reafirmação
esperançosa das utopias coletivas e sociais.
Esta transformação tão profunda no projeto criador hispano-
americano exigiu o reconhecimento de um novo momento no desen-
volvimento do processo literário na América Hispânica. Este novo

97
contexto, cuja denominação genérica de pós-boom parece indicar que
o único consenso que apresenta é o fato de ser uma fase posterior ao
boom, sem dúvida, só pode ser claramente identificado em seus con-
tornos mais marcados, a partir dos anos 80.
Antes, porém, de encarar a questão do processo narrativo nas
últimas décadas é importante uma referência a um aspecto, que pen-
samos ainda exigir algum esclarecimento. Trata-se das relações entre
a “nova narrativa hispano-americana” e o modernismo.
Ao se considerar a narrativa do boom, ainda que atentos para
não insistir nas práticas etnocêntricas de considerar os fenômenos e
contingências culturais europeus, como naturalmente universais, não
há como não apontar algumas equivalências e atitudes comuns mais
que evidentes entre o projeto criador modernista e a(s) poética(s) da
Nova Narrativa Hispano-Americana. Dentre estas, há que se destacar,
por sua importância como ponto de partida de uma atitude que se
constituirá em referência privilegiada nas décadas seguintes, o alto
teor de experimentalismo característico da prosa modernista e tam-
bém presente na “nova narrativa hispano-americana”.
É indispensável, todavia, que esta questão seja observada com
olhar muito atento, pois o questionamento da enunciação literária e a
propalada tendência ao hermetismo, ou ao exercício narcísico, tão
característicos do alto modernismo europeu, na América Latina ad-
quire um perfil deveras particular. Mesmo os textos consensualmente
considerados como verdadeiras matrizes paradigmáticas desta atitu-
de experimental — Pedro Páramo, de Juan Rulfo, La muerte de Artemio
Cruz, de Carlos Fuentes, Los cachorros, de Vargas Llosa, El otoño del
patriarca, de García Márquez , para citarmos apenas alguns exemplos
—, em momento algum procedem a uma assepsia ideológica, abdicam
de uma clara atitude de intervenção social numa perspectiva
transgressora, nem abandonam a proposta narrativa de contar uma
história.
Isto, desde logo, invalida qualquer tentativa de estabelecimento
de uma identidade absoluta entre a poética modernista européia e a
narrativa do boom, indicando, claramente, a necessidade da constru-
ção de modelos críticos próprios, capazes de permitir uma aborda-

98
gem da produção literária latino-americana fundada na lógica da trans-
formação e da transmutação, como vimos indicando.
(Re)colocar em evidência a questão do experimentalismo justifica-
se pela urgência de uma reflexão sobre a produção narrativa hispano-
americana ao longo dos anos 80/90, que problematize tanto a
aparentemente “natural” e simples relação de proporcionalidade,
apresentada por determinadas correntes críticas, em que o
modernismo estaria para o boom, assim como o pós-modernismo
estaria para o pós-boom, como, também, as ingênuas tentativas de
opor boom e pós-boom a partir de parâmetros frágeis e questionáveis
como os de uma pretensa retomada da narratividade, com o conseqüente
abandono do experimentalismo.
Infelizmente, porém, a maior parte dos estudos, que vem tentando
uma abordagem da narrativa hispano-americana a partir dos anos 70,
sistematicamente, incorre numa ou noutra perspectiva, num afã, talvez,
de buscar uma atitude predominante de todo ausente nas duas últimas
décadas.
De um lado, na procura indiscriminada de equivalências entre o
chamado pós-boom e a perspectiva pós-moderna, aliam-se ensaios
como os de Raymond Willians The postmodern novel in Latin America,
para quem, por exemplo:

No caso do romance da América Latina, a “grande nar-


rativa” foi a narrativa modernista de Fuentes, García
Márquez, Cortázar e Vargas Llosa nos anos 60; o oposto
desta “grande narrativa” é a obra de Eltit, Pacheco, Sarduy
e outros escritores pós-modernos (...) estes novos discur-
sos, esta nova feição da pós-modernidade, descendem
em linha direta da escritura modernista latino-america-
na - da narrativa de Borges, Astúrias, Carpentier, García
Márquez e outros. Eles são também práticas culturais
que representam uma ruptura fundamental com o pas-
sado recente dos anos 40, 50 e 60 (Wilians, 1996, p. 65)

Do outro lado, no outro extremo talvez, encontramos vozes


francamente ingênuas como a de Juan Manuel Marco, que em De

99
García Márquez al postboom perora “denunciando” os autores do boom,
na busca de ressaltar uma pretensa “correção ideológica” do pós-boom:

Não apenas os autores típicos do “boom” e em última


instância a serviço do estabelecido como Borges, Fuentes
e Vargas Llosa, assim como outros mais de transição e
progressistas como Carpentier, Cortázar e García
Márquez, propagaram a imagem narcisista de uma es-
critura luxuosa, cosmopolita e elaborada, totalmente con-
trária à suposta pobreza prosaica da tradição regionalista,
que é capaz de captar com “maior sutileza” o tecido
labiríntico do inconsciente coletivo, a trama inextricável
da vida, em que jaz o minotauro da realidade (Marcos,
1986, p. 09).

L onge deste patrulhamento ingênuo e redutor, porém


enveredando pelo mesmo viés de identificar a narrativa do pós-boom
com o abandono do experimentalismo, com uma reação contra o
“excessivo elitismo e uma atitude inamistosa em relação ao leitor”
(Shaw, 1995. p.11) e, conseqüentemente, com o ressurgimento de
contadores de histórias mais próximos ao verismo tradicional e à
denúncia social e política, Donald Shaw, ainda que postulando uma
atitude de cautela nesta aproximação, chega a tomar de empréstimo o
arqui consagrado termo neo-realismo, empregando-o mais de uma vez,
num ensaio em que busca apresentar um balanço da narrativa das
últimas décadas:

Elit, por exemplo, rejeita especificamente o neo-rea-


lismo do pós-boom, e reafirma a importância central
da expressão ambígua e metafórica da ficção (Shaw,
1995. p.17).
Uma segunda razão porque devemos ser cautelosos
numa associação tão estreita entre o Pós-boom e qual-
quer tipo de neo-realismo é que um dos mais impor-
tantes gêneros do movimento é o Novo Romance His-
tórico (Shaw, 1995. p.19).

100
O que parece realmente comprometedor nestas tentativas de
reflexão sobre o conjunto da produção literária na América Hispânica,
nas últimas décadas, é o caráter generalista destes estudos, que se
perdem e xatamente por pretender compor um quadro de
características hegemônicas, tão ao gosto da velha historiografia
literária, fundada, exclusivamente, na ótica dos estilos de época e dos
antigos conceitos de movimento literário, como se ainda fosse possível
nos anos 80 e 90 pensar em grupos articulados em torno a propostas
programáticas coletivas.
Apesar de aliar-se às tentativas de estabelecer este antigo quadro
de características predominantes, e insistindo em nomear o “pós-boom”
como um movimento, o próprio Donald Shaw parece intuir e
considerar a precariedade de tal procedimento ao reconhecer o aspecto
rigorosamente aberto, relativizado e dialógico que as formas literárias
vêm assumindo, principalmente no campo da narrativa, e ao enfatizar
o aspecto heterogêneo da produção literária nas últimas décadas:

Isto serve para nos lembrar que o Pós-Boom é um movi-


mento consideravelmente menos homogêneo do que o
Boom. E que mesmo a existência de famílias de escrito-
res não é aceita por todos os críticos, e menos ainda pela
totalidade dos escritores (Shaw, 1995. p. 9).

Além das previsíveis dificuldades advindas da falta de um


distanciamento temporal, que permita uma visão mais nítida do
conjunto, é decisivo levar-se, efetivamente, em conta o fato de que os
anos 80 e seguintes consagram uma abertura radical na consideração
do fenômeno literário e em sua práxis, ultrapassando barreiras,
apagando fronteiras, e colocando em questão até mesmo o próprio
objeto de estudo da teoria e da crítica literárias. Assim, promovem a
coexistência de uma multiplicidade de atitudes escriturais, concepções
poéticas e procedimentos retóricos, de tal forma diversificada que se
torna inócua e redutora qualquer tentativa de estabelecimento de
hierarquias, ou de prevalência de uns sobre outros.

101
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102
CRIOULIZAÇÃO E CRIOULIDADE

Magdala França Vianna


Universidade Federal Fluminense

La fixité du territoire est terrifiante. Rien


n’est plus beau que le chaos – et il n’y a
rien de plus beau que le chaos-monde.
É. Glissant

La Créolité est notre soupe primitive et


notre prolongement, notre chaos originel
et notre mangrove de virtualités.
J. Bernabé, P. Chamoiseau, R. Confiant

As palavras crioulização e crioulidade vêm do termo crioulo que


circulou nas Américas coloniais, a partir da língua espanhola, como
criollo. Egresso do latim criare com o sentido de educar, o termo
identificava os que nasciam e eram educados nas Américas sem ser
originários delas como os ameríndios, passando, entretanto, a indicar,
por extensão, homens de todas as raças, animais e plantas que se
transportaram para o continente americano a partir de 1492. Alguns
dicionários franceses registram a ocorrência do termo apenas no século
XIX, tornando seu uso restrito à linhagem de colonos brancos
chamados de békés nas Antilhas. Atualmente, na França, o termo
privilegia a definição de línguas complexas, egressas da situação de
contato entre elementos lingüísticos totalmente heterogêneos,
explicando-se, assim, a tendência à redução do conceito a uma simples
defesa da língua, que é, entretanto, apenas um dos componentes de
um debate bem mais amplo sobre a identidade múltipla, como esclarece
o teórico da Crioulização, Édouard Glissant: “Quando digo
crioulização, não me refiro absolutamente à língua crioula, mas ao
fenômeno que estruturou as línguas crioulas, o que não é a mesma
coisa” (Glissant, 1996 p. 29). De fato, ao se tomar como referência de
pesquisa a leitura do verbete crioulo em dicionários de línguas neolatinas,
encontrar-se-á uma multiplicidade de registros no percurso conceitual
do termo até a emergência de crioulização e crioulidade nos diferentes
discursos em que seus sentidos vão sendo ressignificados. O Novo
dicionário da língua portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira
define crioulo como: o indivíduo de raça branca, nascido nas colônias
européias de além-mar, particularmente as das Américas,
denominando também de crioulo o dialeto falado por essas pessoas; o
negro nascido nas Américas; o dialeto português falado em Cabo
Verde e em outras possessões portuguesas da África. Há ainda registros
diversos relativos à circulação da palavra em construções regionais
específicas como, no Rio Grande do Sul, os nativos de determinada
região ou o indivíduo natural de qualquer parte do Estado e, no Rio
de Janeiro, qualquer indivíduo negro (bacurau), além de extensões
da carga semântica de base, tais como “galinha comum, sem tipo nem
raça definida” ou “cigarro feito de palha e fumo de rolo”. Encontram-
se, também, referências às variações da lenda sulista do Crioulo do
Pastorejo ou Negrinho do Pastoreio. Para crioulismo registra-se a tendência
nativista nas literaturas hispano-americanas. O dicionário
enciclopédico Le Petit L arousse refere crioulo como pessoa de
ascendência européia nascida nas antigas colônias francesas de
plantação como as Antilhas, as Guianas, Reunião etc, e, também, como
o dialeto que, surgido por ocasião do tráfico de escravos africanos
entre os séculos XVI e XIX, torna-se língua materna dos descendentes
desses escravos. Para crioulização registra-se o processo pelo qual um
pidgin (língua de relação nascida do contato entre línguas européias,
asiáticas e africanas que permite a comunicação entre comunidades,
mas, ao contrário do crioulo, não tem o estatuto de língua materna)

104
torna-se crioulo, enquanto crioulismo é idiomatismo próprio de língua
crioula, e crioulofono, o falante de língua crioula. Para se crioulizar,
registra-se o “estar afetado por um processo de crioulização”.
Na América hispânica, o termo crioulo não só indica os membros,
de classes subalternas, nascidos nas Américas, mas, também, refere-se
à lógica sincrética do crioulo vernacular como modelo inclusivo com
um majoritário aporte de construções sociais. William Rowe escreve
que o “crioulo denomina, no século XX, uma atitude cultural, que se
tem chamado de ‘nacionalismo estético’. E, como movimento literário,
existe, nas histórias da literatura, um certo consenso de que o
crioulismo estende-se de 1900 até mais ou menos 1945 ou 1950” (Rowe,
1994, p. 707). Essas referências autorizam a pesquisa de um continuum
processual ou de “continuidades” nas construções culturais identitárias
entre as sociedades crioulas de diferentes expressões lingüísticas nas
Américas. No Brasil os movimentos negros ainda absorvem teorias da
Negritude como referência discursiva e não participam do debate
cultural sobre a Crioulização, ou sobre as manifestações da Crioulidade,
cuja discussão, permanente no Caribe, já se divulga entre os
afrodescendentes dos Estados Unidos. As teorias da Crioulização e da
Crioulidade vêm ganhando corpo nos meios acadêmicos brasileiros e
em simpósios promovidos por organizações internacionais científicas
e educacionais como a UNESCO.
O mapeamento histórico da palavra crioulo, base sêmica da qual
emergem os conceitos de crioulização e crioulidade, em que se evidenciam
inscrições do discurso colonial e se problematizam representações da
alteridade na desconstrução de conceitos ocidentais essencialistas e
puristas, torna visível, em termos lingüísticos, as migrações discursivas
que caracterizam o processo de significação vocabular, ou seja, o jogo
de divergências entre significante e significado, que Roland Barthes
(1984) chamou de significância, e Jacques Derrida (1967), de différAnce.
O dito “o mar é história”, do escritor caribenho Derek Walcott
(Santa Lúcia), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1992, citado
por Édouard Glissant (Martinica) na epígrafe de Poétique de la Relation

105
(1990), autoriza a inscrição de oceanos e mares no âmbito das fronteiras
culturais moventes. De fato, autênticas regiões aquáticas abertas, como
a atlântica e a caribenha, constituíram-se na rota do projeto
e xpansionista ocidental não só pelo tráfico de populações
transplantadas, mas, também, por migrações múltiplas. Glissant, que
assina o pensamento da Crioulização, escreve sobre a importância do
mar do Caribe - “um mar aberto, um mar que difrata [...] e que leva à
comoção da diversidade” (Glissant, 1996, p.14) -, definindo-o não
apenas como um mar de trânsito e passagem, mas, também, como
lugar de circulação de elementos culturais diversos “que realmente se
crioulizam, que realmente se sobrepõem e se confundem uns com os
outros para resultar em algo absolutamente imprevisível,
absolutamente novo que é a realidade crioula” (Glissant, 1996, p. 15).
O pesquisador antilhano usa a referência da circularidade geográfica
da região do Caribe e a figura da difração para definir a Crioulização
como um movimento aberto que se propaga em espiral em várias
direções, diferindo, portanto, fundamentalmente, da “projeção em
flecha” marcante em todo processo de colonização.
Apesar de reconhecer que o fenômeno não se processa,
exclusivamente, no Caribe, Glissant destaca o privilegiamento da região
para a ocorrência de mestiçamentos etnoculturais por seu
extraordinário poder de diversidade e unidade. Em Introduction à une
poétique du divers (1996), o escritor defende a teoria de que existe
atualmente uma arquipelização cultural do Caribe, evoluindo para a
crioulização. O termo aplica-se também a uma totalidade-planetária em
que, não havendo mais “nenhuma autoridade ‘orgânica’ e onde tudo
é arquipélago” (Glissant, 1996, p. 22), se realiza o produto imprevisível
de construções culturais heterogêneas e complexas postas em relação.
Transversalizando a ótica ocidental monolítica e universalista com o
“olhar exterior” crioulo, ele avalia a arquipelização dos continentes e
revitaliza o conceito de região cultural: “As Américas arquipelizam-se
e constituem regiões além das fronteiras nacionais. Creio que é preciso
restabelecer a dignidade do termo região. A Europa se arquipeliza. As
regiões lingüísticas, as regiões culturais, para além das barreiras das

106
nações, são ilhas, mas ilhas abertas, e essa é sua principal condição de
sobrevivência” (Glissant, 1996, p. 44). A dinâmica dessas construções
tem escapado às políticas nacionais resistentes às forças da
arquipelização e, apesar da relação hierárquica entre centro e periferia,
não parece possível deter a transgressão das fronteiras geográficas e o
desenho de novas cartografias culturais policêntricas e polifônicas.
Entretanto, as políticas de disseminação das linguagens telemáticas e
icônicas da atualidade pelos mass-media, ao unificarem seus produtos
e promoverem a estandardização de sujeitos culturais, que se vêem
atravessados por conceitos universais e metodologias totalizantes, têm
constituído uma ameaça ao processo de arquipelização cultural.
Provocando importantes debates sobre o tema, Édouard Glissant,
mentor da Crioulização, e os teóricos da Crioulidade, Jean Bernabé,
Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant, defendem a tese de que a
permanência do processo sustentar-se-ia na vitalização de uma relação
dialógica entre os povos, ou seja, de fluxos comunicativos
descentralizados, intercâmbios parciais, hibridizações e sincretismos,
contra cada tentativa de retorno de paradigmas unificados e
monológicos. A crença nesse aparato conceitual é que faz os
pesquisadores da Crioulização e da Crioulidade verem no encontro de
povos e culturas a possibilidade de construção de um novo ethos, uma
nova maneira de ser e estar no mundo. Entretanto, apesar da crença
dos intelectuais antilhanos nessa ética política dialógica inscrita nos
discursos da Crioulização e da Crioulidade, sabe-se que a difusão do
processo no hemisfério norte tem sido rechaçada por políticas
segregacionistas, que tentam apagar seus aspectos mais evidentes em
nome de uma cultura branca e européia. Ainda assim, nada parece
capaz de impedir o fluxo da crioulização, que tem inscrito significativas
construções em matrizes culturais populares, como, por exemplo, nos
Estados Unidos, onde há, entre outros traços não menos importantes,
numerosos empréstimos às línguas autóctones depositárias de
memórias indígenas, além de um grande aporte de construções
culturais negras, como o jazz, os blues, e o rock, heranças pontuais de
ritmos africanos que, reconstituídos através da memória, evoluíram
em matrizes musicais negras.

107
A atual complexidade das migrações faz das Antilhas um
arquipélago movente, onde se constitui uma região cultural aberta,
atravessada por uma multiplicidade de culturas, mesmo as mais
contraditórias, como, por exemplo, o rap, que convive com o gwoka,
ou o teatro de boulevard com a veillée, o serão ou sarau antigo. Por isso,
a despeito da situação de insularidade, sua cultura pode ser descrita
como uma “border culture”, em que se estimula a criação de novas formas
culturais, valorizando-se novos mestiçamentos e dinamizando-se as
formas tradicionais já estratificadas pelo uso. O esquema de
transplantação e desenraizamento é comum a todas as ilhas, sejam de
língua francesa, espanhola, inglesa ou holandesa. Há, como se sabe,
por exemplo, em Londres, Liverpool, Amsterdam, New York e Miami
quarteirões caracteristicamente caribenhos. Das complexas migrações
haitianas, que ocorrem principalmente entre Canadá, Estados-Unidos
e Europa, surgem combinações lingüísticas imprevisíveis, como as de
haitianos de Nova York ou Toronto, que, apesar de conservarem a
prática da língua crioula, perdem a do francês e se exprimem em inglês.
Além disso, parte da produção literária do Haiti escreve-se em inglês
nos Estados-Unidos e em francês no Quebec, assim como a das ilhas
de expressão lingüística inglesa também já se produz em Londres e
suas periferias, ou a de escritores do Suriname que vivem em Haia e
publicam em Amsterdã. Guadalupe e Martinica incluem-se na rota de
migrações predominantemente da República Dominicana, Dominica
e do Haiti, e os censos demográficos demonstram que apenas 30%
dos insulares jamais deixaram seus países. Os outros 70% movimentam-
se entre suas ilhas de origem, a França e os países da Europa onde há
oferta de trabalho, disseminando suas alteridades culturais, sobretudo
através da música, como, por exemplo, o zouk, que se enraizou
fortemente na região parisiense. Atualmente, mais de meio milhão de
guadalupenses e martiniquenses residem na França e seus descendentes
são classificados pelas agências de imigração como Deuxième Génération.
Eles se caracterizam por falar o francês standard, sem o acento
antilhano, “devorador de r”, de que fala Frantz Fanon, e são chamados
de “négropolitains”, negros metropolitanos. Sua visão das construções

108
culturais do arquipélago é mediada por cursos ministrados por
professores especializados da metrópole. De um modo geral, as
comunidades de imigrados recentes são desprestigiadas pelos
“residentes” da metrópole não só pelo uso do crioulo e o acento
fortemente marcado, mas por práticas culturais, mantidas em
numerosas associações, que não correspondem aos paradigmas
definidos como autênticos.
Todo esse quadro deixa claro que o encontro de culturas nas
sociedades contemporâneas pode provocar reações opostas de
abertura e fechamento em relação às políticas identitárias. O escritor
antilhano Raphaël Confiant (Martinica), um dos mentores da
Crioulidade, em entrevista divulgada pela emissora de rádio francesa
Fréquence Paris Plurielle (106,3 MHz FM), em 22 de janeiro de 1999,
aponta o capitalismo como o sistema responsável pela gestão desse
contato generalizado de culturas, línguas, religiões, civilizações, em
territórios fixos, demarcados politicamente, onde são obrigados não
só a coabitar, mas, também, a se expor a constantes confrontos. A
administração dos conflitos e diferenças daí advindos por programas
desenvolvidos pelos agentes da modernização nas Américas Latina e
Afrolatina (Glissant), realizando o discurso racionalista e
autolegitimador da modernidade que se ergueu como solução para o
subdesenvolvimento, resultou, na análise de Confiant, no esvaziamento
do conceito liberal de nação. Ante o fracasso da modernidade em
construir espaços de verdadeira ação democrática, enfrenta-se, hoje,
segundo o escritor, o grave dilema da opção entre o fascismo e a
crioulização, a identidade múltipla, a partilha da identidade, que é,
entretanto, considerada uma via alternativa muito mais difícil que a
da exclusão da diferença. Avaliando a complexidade dessa dinâmica,
em entrevista a Label France (janeiro de 2000, nº 38), por ocasião do
lançamento de seu livro Sartorius. Le roman des Batoutos (1999), uma
fábula moderna da não-dominação, Édouard Glissant diz que se torna
cada vez mais necessário compreender as dimensões do mestiçamento
cultural e axiológico no âmbito de um processo intercultural, em que
se devem definir programas de uma educação voltada para a

109
construção de imaginários múltiplos, uma vez que sem essa prática
não será possível a produção de um discurso de solidariedade que
fortaleça a autodeterminação dos povos. É preciso, portanto, no âmbito
desse debate, analisar as dimensões descentralizadas, policêntricas e
polimórficas das novas organizações que vêm desconstruindo a relação
dual e hierárquica entre centro e periferia. Para isso, tem-se recorrido
a estratégias de implantação de políticas culturais que tornem viável o
acompanhamento dessa dinâmica por uma educação mestiça. Talvez
assim fosse possível, segundo os estudiosos da Crioulização e da
Crioulidade, inibir o desenvolvimento de nacionalismos e integrismos
de toda ordem, responsáveis pela instauração de regimes de medo e
violência, sobretudo nas Américas Latina e Afrolatina, na definição de
Glissant. Essas Américas são, em suas análises, um projeto cultural a ser
produzido, e seu embrião estaria na vitalização de uma possível rede
de trabalho intelectual que fosse capaz de distinguir raízes identitárias
comuns e estabelecer pontes de relação solidária entre os povos, uma
vez que soluções individuais não parecem possíveis. Politicamente, as
construções conceituais da Crioulização e da Crioulidade partem, pois,
da análise da modernidade em crise, da hesitação da Europa entre a
tolerância multiétnica e a nostalgia nacionalista, em um momento em
que as ideologias hegemônicas são incapazes de fornecer um modelo
para o futuro.
Em busca da discursividade dialógica, necessária à realização do
projeto de construção de uma América crioula, o teórico antilhano
referenda o pensamento do antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro
(1978), que, como outros pesquisadores latino-americanos, defende
uma nova cartografia das Américas baseada na mobilidade do processo
de crioulização. Em Introduction à une poétique du divers (1996), Glissant
descreve a existência de três Américas que se interpenetram, muitas
vezes, de maneira indissociável: a Meso-América dos ameríndios; a
Euro-América, constituída pelo Canadá, Estados-Unidos e uma parte
do Chile e da Argentina, que preservaram construções ethoetnoculturais
de seus países de origem; e a Neo-América, definida por ele como a
América da crioulização, herdeira das civilizações egressas do sistema

110
de plantação e povoamento, ou seja, a América constituída pelo Caribe,
o nordeste do Brasil, Guianas e Curaçao, a costa caribenha da
Venezuela e da Colômbia e uma grande parte da América Central, do
México e do sul dos Estados-Unidos, particularmente, a Luisiânia. À
proposta dos dois pesquisadores, acrescenta-se, ainda, a ocorrência
de múltiplos desdobramentos de regiões culturais como, por exemplo,
na Venezuela e na Colômbia, que são fracionadas em duas, uma andina
(Meso-América) e outra caribenha (Neo-América).
A importância da movência das fronteiras culturais na produção
de uma textualidade híbrida em formações discursivas e em processos
de construções identitárias na América Afrolatina pode ser avaliada
ao se reconstituirem matrizes de importantes movimentos político-
literários ativos, por exemplo, na década de 30, quando as teorias da
Negritude referendavam-se na revitalização da herança africana no
Indigenismo haitiano de Jean Price-Mars, e no pensamento de escritores
do Renascimento do Harlem. Após Aimé Césaire e o movimento da
Negritude, escritores e pensadores antilhanos, ao elaborarem novas
teorias e conceitos sobre a construção de identidades culturais, vêm
instaurando um polêmico debate em torno do pensamento da
Crioulização e da Crioulidade. Na Martinica, os discursos da Crioulização
e da Crioulidade têm como data-marco as edições de Le discours antillais
(1981), de Édouard Glissant e do manifesto coletivo Éloge de la Créolité
(1989), assinado pelo lingüista Jean Bernabé, e os escritores Patrick
Chamoiseau e Raphaël Confiant. O escritor haitiano René Depestre
acrescenta ao conjunto o livro de Aimé Césaire Poésie et connaissance
(1944), considerando que as três obras complementam-se na revelação
do processo da crioulização e do trânsito da crioulidade no romance e
na poesia da Martinica. No ensaio Les aventures de la créolité (Ludwig,
1994), Depestre escreve que, embora não se constituísse na obra de
Césaire um discurso conceitual ou antropológico sobre Crioulização
ou Crioulidade, o imaginário do mestiçamento crioulo em trânsito na
literatura antilhana já se expressava poeticamente no barroquismo,
na carnavalização, na marronnage (clandestinidade) cultural, no humor
“negro”, no onirismo antilhano, no realismo maravilhoso e no
surrealismo popular de seus textos.

111
No Éloge de la Créolité, Bernabé, Chamoiseau e Confiant, além de
proclamarem sua filiação a Césaire - “A Negritude cesairiana é um
batismo, o ato inicial de nossa dignidade restituída. Nós somos para
sempre filhos de Aimé Césaire” (1989, p. 18) -, consideram-no um
ante-crioulo: “A Negritude impunha-se então como vontade obstinada
de resistência, total e unicamente empenhada em domiciliar nossa
identidade em uma cultura negada, denegada e renegada. Césaire um
anticrioulo? Absolutamente não, mas um ante-crioulo” (1989, p. 18).
Em recente sessão de debates em que se discutia a criação de um
conselho de pesquisas sobre a língua crioula, Raphaël Confiant reitera
as concepções do Éloge sobre a Crioulidade, quando se proclamou a
identidade crioula - “Nem Franceses, nem Africanos, nem Asiáticos,
nós nos proclamamos Crioulos” (p. 13), e reafirma que a Negritude
promoveu apenas a consciência das origens africanas, constituindo,
entretanto, uma etapa necessária à construção do discurso da
Crioulidade: “A Negritude não saberia ser senão uma breve etapa na
direção da crioulidade. Não há mais, não há e não haverá, cada vez
mais, senão crioulos” (Confiant, KAPES Kreol, 2002, p. 2). Além de
Confiant, também Patrick Chamoiseau, em Écrire en pays dominé,
escreve que a “Negritude havia reconstituído pedaços de África pura.
Concentrações de identidade. [...] essas memórias (Traces-mémoires)
de África estiveram todo o tempo em ressonância com as outras e
foram afetadas por elas. Elas não reconstruíram África nenhuma na
região, mas teceram uma trama cintilante de áfricas moventes, à deriva
em suas diversidades próprias e à deriva em todas as outras”
(Chamoiseau, 1997, p. 128).
Na evolução dos debates em torno dos conceitos, instaurou-se
entre a intelectualidade antilhana uma polêmica sobre a construção
teórica da Crioulização e da Crioulidade. Na Introduction à une poétique
du divers, em diálogo mantido com o poeta quebequense Gaston Miron
sobre uma provável ambivalência entre a produção literária da
Crioulidade, ou seja, os romances de Chamoiseau e Confiant, nos quais
haveria uma certa busca de identidade única, e o projeto de identidade
definido no Éloge de la Créolité, que postula a totalidade-planetária

112
(totalité-monde) após a totalidade caribenha, Glissant diz reconhecer
uma diferença entre o manifesto e a produção literária, entretanto,
corrigindo Miron, acrescenta: “Mas creio que é nas obras literárias, e
não nas tentativas teóricas, que a abordagem da totalidade-planetária
(totalité-monde) primeiro se desenha. Dito isto, eu não vejo a contradição
que você assinala e não acredito que esses escritores estejam em busca
de uma ‘raiz única’ ” (Glissant, 1996, p. 104). Entretanto, entrevistado
pela jornalista alemã Andréa Schwieger Hiepko, em maio de 1998,
por ocasião de sua conferência em Berlim intitulada Penser l’Europe de
nouveau: Médias électroniques, oralité et identité (KAPES Kreol, 2001),
Glissant diz que a discussão baseia-se na evidência de uma concepção
essencialista no discurso da Crioulidade: “Quando propus o conceito
de Crioulização, Chamoiseau e Confiant o tomaram para desenvolver
o conceito de Crioulidade, mas sou totalmente contrário a essa noção
de Crioulidade. A Crioulização é um processo permanente que
convém à movência permanente do caos-planetário (chaos-monde). A
Crioulidade consiste em interromper o movimento em um lugar e
momento determinados e definir o que se passa ali. Penso que essa
tentativa leva ao risco de nos fazer voltar às antigas essências
identitárias” (Glissant, 2001, 13/10, p. 6). Com isso, Glissant reitera as
distinções entre Crioulização e Crioulidade já elaboradas na Poétique de
la Relation: “Nós não propomos o ser, nem modelos de humanidade.
O que nos orienta não é somente a definição de nossas identidades,
mas também sua relação com todo o possível: as mutações mútuas
que esse gênero de relações cria. As crioulizações levam à Relação,
mas não para universalizar; a ‘crioulidade’, em seu princípio,
regressaria às negritudes, aos afrancesamentos, às latinidades”
(Glissant, 1990, p. 103).
Respondendo à avaliação de Glissant, em entrevista ao professor
Michel Peterson sob o título de L’imaginaire de la diversité (KAPES Kreol,
2001), Patrick Chamoiseau diz que “na Martinica nos acusaram com
freqüência de querer reger a criação e ser os comandantes do espírito,
quando nós só quisemos simplesmente dizer quais eram nossas
referências e nossas intenções” (Chamoiseau, 2001, 12/10 p. 3).

113
Segundo Chamoiseau, o texto do Éloge de la Créolité é “menos fechado
e menos dirigista do que se pensa”, não se caracteriza como um
manifesto - “não é um manifesto”, e se define como “uma espécie de
quadro estético que fornece algumas orientações na noite”
(Chamoiseau, 2001, 12/10, p. 3). No artigo Le créole à travers les âges de
l’oral à l’internet, en passant par l’écrit (KAPES Kreol, 2001), Raphaël
Confiant e Jean Bernabé também manifestam sua posição a respeito
da polêmica: “Nós queríamos ir mais longe nessa utopia de uma
Martinica biológica, formulando o sonho de uma comunidade de
crioulos, crioulofonos, crioulisantes, crioulistas e crioulofilas,
preocupada em defender a biodiversidade cultural do espaço
crioulofono tanto quanto seu entorno natural. [...] Nesse contexto
histórico novo, cabe a nós agir, agora, para dar vida ao espaço
crioulofono, todos nós, crioulos, crioulofonos, crioulisantes, crioulistas
e crioulofilas” (Confiant, Bernabé, 2001, 13/10, p. 3).
A Crioulização, segundo Glissant, fundamenta-se no princípio de
que o ser humano não é uma entidade absoluta, mas um sendo/estando
movente (étant changeant) em processo perpétuo, produzindo
identidades inclusivas e impregnando de novas linguagens ethos
diversificados. Para que a crioulização se realize, as construções
culturais postas em contato devem ser, obrigatoriamente, equivalentes
em valor, uma vez que a inferiorização de uma delas descaracteriza o
processo. Glissant distingue crioulização de mestiçagem e
transculturação. A mestiçagem é tomada por ele no plano biológico
ou racial, e seus resultados têm a marca do previsível, opondo-se ao
conceito de impredictibilidade ou imprevisibilidade, responsável pela criação
de regiões culturais e lingüísticas totalmente inesperadas na
crioulização: “a mestiçagem será o determinismo, e a crioulização é,
em relação à mestiçagem, o produtor do imprevisível. A crioulização
é o impredictível” (Glissant, 1996, p. 89). A diferença entre
transculturação e crioulização estaria, entretanto, na abordagem da
primeira pelo conceito e da segunda pelo imaginário. Para o escritor,
nenhum movimento representa melhor o que se passa no mundo que
“essa realização imprevisível a partir de elementos heterogêneos”

114
(Glissant, 1996 p. 29), no momento em que a discursividade ocidental,
fundamentalmente conceitual, é rasurada pelo imaginário crioulo.
Teorizando, em Poétique de la Relation, sobre a construção do
imaginário nas sociedades migrantes, Glissant, além de ressaltar a
importância do pensamento complexo desenvolvido na movência das
migrações, aponta a crioulização cultural como chave do pensamento
da modernidade e identifica na Relação exatamente o contrário de um
multiculturalismo redutor da diversidade, de uma dominação cultural
e política do Outro: “As culturas em evolução inferem a Relação, o
excedente que funda sua unidade-diversidade” (Glissant, 1990, p. 13),
ou seja, uma totalidade aberta, em movimento sobre si mesma cujo
resultado é a multiplicidade na totalidade.
A trama epistemológica da Crioulização fundamenta-se em uma
intervalorização de elementos heterogêneos postos em contato, ou seja,
em uma concepção da diversidade cuja teoria abre um leque de conceitos
complementares, como os de memória-residual (trace-mémoire), totalidade-
planetária (tout-monde), caos-planetário (chaos-monde), lugar (lieu),
identidade-rizoma, relação, opacidade. Teorizando sobre a diversidade,
Glissant diz que “o diverso não é o melting-pot, o ‘bouilli-bouilli’, o
méli-mélo, etc. O diverso é as diferenças que se encontram, se ajustam,
se opõem, se afinam e produzem o imprevisível” (Glissant, 1996, p.
98), apondo à universalidade dos pensamentos de sistema a diversalidade
do pensamento da memória-residual (trace-mémoire), que fundamenta
as práticas de reconstituição cultural no rastreamento de memórias
diversas sobreviventes da degradação e do recalcamento de heranças
étnicas nos processos de colonização. A totalidade-planetária (tout-
monde) diz respeito à complexidade do mundo atual, onde se realizam
sistemas erráticos de relações, que têm um caráter totalmente
imprevisível e cuja proposta é a convivência em contato sem diluição de
identidades diversas em um “magma multicultural” (Glissant, 1996,
p. 88). A concepção de lugar relaciona-se à totalidade-planetária (totalité-
monde) “que não é o totalitário, mas seu contrário em diversidade”
(Glissant, 1996, p. 105), distinguindo-se do território: “O lugar não é
um território: aceita-se partilhar o lugar, concebendo-o e vivendo-o

115
em um pensamento de errância, mesmo que o defendamos contra
toda desnaturação, toda alteração” (Glissant, 1996, p. 105). A
concepção de lugar é fundamental para inibir o apagamento identitário:
“O contrário da crioulização será, efetivamente, o não-identitário. Mas
há o lugar, que nos mantém” (Glissant, 1996, p. 99).
O conceito de caos não parte de uma visão apocalíptica e é dotado
de valor positivo - “nada é mais belo que o caos – e não há nada de
mais belo que o caos-planetário (chaos-monde)” (Ludwig, 1994, p. 112),
sem conotações de incomunicabilidade ou babelismo. Para a busca do
invariante cultural do caos-planetário (chaos-monde), ou a evidência de
universos caóticos em todo o mundo contemporâneo, é necessário
aporem-se as construções epistemológicas da Crioulização fundadas
no conceito de imprevisibilidade que acrescenta uma forte dimensão
político-social à concepção do caos-planetário - “há caos-planetário
porque há imprevisível” (Glissant, 1996 p. 37) -, a uma revisão das
concepções monolíticas ocidentais de mito fundador, tempo,
legitimidade e filiação. O resultado dos conflitos e rupturas, mas,
também, as conciliações decorrentes do processo, constituem o
pensamento complexo do caos - “pelo qual a totalidade-planetária se
acha hoje realizada” (Glissant, 1996, p. 82) -, contra a linearidade
conceitual ocidental.
Em diálogo com Appiah (1997), sobre o valor ideológico e a função
política dos conceitos no estágio atual das sociedades contemporâneas,
Glissant trabalha a concepção de que “o imaginário invadiu o conceito”
(Ludwig, 1994, p. 125), revitalizando o papel da arte, da literatura,
como pedagogia do caos, ou “a literatura como descoberta do mundo,
como descoberta da totalidade-planetária (tout-monde)” (Glissant,
1996, p. 91). Somente a aprendizagem do imaginário da totalidade-
planetária (tout-monde), na qual a atuação da arte é fundamental, pode
ultrapassar, segundo o teórico da literatura, os limites da violência
conceitual que, ainda hoje, referenda os genocídios, os massacres e as
intolerâncias. Em relação às estratégias estéticas, a palavra caos tem
também uma conotação positiva que inclui a aceitação das zonas de
opacidade próprias da oralidade. Praticando-se nos textos literários a

116
integração das dialéticas do oral e do escrito, prestigia-se a memória
oral, elaborada nas Antilhas, a partir do século XVII, pelo resgate de
fragmentos culturais reconstituídos em mosaico na experiência comum
de uma realidade nova. Essa prática é fundamental para as construções
identitárias não só do povo antilhano, mas de todos os povos egressos
dos sistemas de dominação.
A relação postula uma situação dialógica de transversalidade e
não de causas e efeitos, explicando-se como tentativa de estabelecimento
de uma rede de solidariedade com o mundo. Dizendo de outra
maneira, é uma rede de relações concebida como identidade rizoma,
isto é, raiz em busca de outras raízes na diversidade da experiência
antropológica das sociedades crioulas, opondo-se à dominação por uma
única etnia, uma única língua, uma única visão do mundo. Concebidas
por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mille Plateaux (1980), as imagens
de rizoma (que se expande) e raiz única (que mata) são retomadas por
Glissant em Poétique de la Relation (1990) e constituem o princípio da
poética da relação, segundo a qual toda identidade se expande na
mobilidade do “sendo/estando movente” (étant changeant). A Relação
opõe-se, pois, às identidades exclusivas constituídas pelas noções
estáticas de ser e estar e de absoluto, próprias do pensamento totalitário
e monolítico, ou seja, de raiz única.
A opacidade consiste na recusa do totalitarismo da razão cartesiana,
da transparência universal ocidental e dos conceitos de modelo e
compreensão, interferindo, dessa forma, nas concepções filosóficas e
políticas mantenedoras dos paradigmas hegemônicos contemporâneos.
O conceito tem, no texto de Glissant, a marca da solidariedade étnica
e propõe a valorização e estetização das opacidades crioulas contra a
compreensão das transparências ocidentais: “É preciso lutar,
poeticamente, para afirmar o direito de todos os povos à opacidade;
isso quer dizer que eu não tenho necessidade de compreender um
povo, uma cultura, de reduzi-lo à transparência do modelo universal
para trabalhar com ele, amá-lo, freqüentá-lo, realizar coisas com ele”
(Ludwig, 1994, p. 128). Nesse sentido, na construção do “nós” coletivo,
um dos objetivos da opacidade é o resgate e a revitalização da palavra

117
do contador de histórias crioulo do universo rural antilhano, mobilizando
as oposições e os paradoxos das estratégias da oralidade e da escrita.
Escrever é, pois, na concepção dos autores antilhanos, um ato coletivo
constituído no processo da crioulização, como pensa Depestre:
“Etimologicamente: metabolismo cultural nascido in loco (ou seja, em
terra americana), processo de sincretismo, de dinamização e aceleração
barroca das heranças culturais, a crioulização terá se desenvolvido a
ponto de fazer surgir nas literaturas elementos poderosos de
comunhão estética a partir das cruéis antinomias que a colonização
tinha tramado na vida plantacionária” (Ludwig, 1994 p. 160). Para o
escritor haitiano, entretanto, apesar da comunhão estética das
produções literárias antilhanas, a dinâmica de mutações identitárias,
que caracteriza a crioulização em toda sua complexidade contextual,
preserva a diversidade das construções culturais que se mantêm
“dissemelhantes em seus mais evidentes signos de parentesco” (Ludwig,
1994 p. 160).
No Éloge de la Créolité, Bernabé, Chamoiseau e Confiant, ao
elaborarem uma poética da literatura antilhana, afirmam que “uma
das missões dessa escrita é tornar visíveis os heróis insignificantes, os
heróis anônimos, os esquecidos da Crônica colonial, aqueles que
ofereceram uma resistência elaborada em desvios e em paciências, e
que não correspondem em nada ao imaginário do herói ocidental-
francês” (Bernabé, Chamoiseau, Confiant, 1989, p. 41). A conceituação
de Crioulidade parte, pois, da prática de um discurso crítico do
etnocentrismo tendo em vista o resgate dos valores de povos
colonizados e neocolonizados, que deverão agenciar sua própria
história a partir de uma nova categoria ontológica, a do ser crioulo. A
questão fundamental proposta no Éloge de la Créolité é a necessidade
de elaboração interior de uma nova identidade crioula. Seus autores
denunciam a pretensão ocidental à universalidade, ou seja, recusam,
na experiência européia, os paradigmas a partir dos quais se
dimensiona a humanidade, e denunciam a exotização do nós coletivo
martiniquense: “Nós vimos o mundo através do filtro dos valores
ocidentais e nosso fundamento tornou-se ‘exotizado’ pela visão

118
francesa que tivemos que adotar. Condição terrível a de conceber sua
arquitetura interior, seu mundo, os instantes de seus dias, seus próprios
valores, com o olhar do Outro” (Bernabé, Chamoiseau, Confiant, 1989,
p. 14).
No texto do Éloge levantam-se importantes questões, sobretudo,
no plano político, concernentes às construções identitárias crioulas, à
análise de mitos e realidades específicas do Caribe, que vêm se
diversificando em identidades múltiplas, embora historicamente
egressas de matrizes coloniais comuns de recalcamento, esquecimento
e/ou silenciamento cultural que identificam peculiarmente as culturas
afrolatinas nas Américas. Os mentores da Crioulidade referendam o
discurso da Crioulização fundado na lógica da diversidade, mas enfatizam
a necessidade de enraizamento histórico e cultural das sociedades
crioulas. É essa proposta que se constitui como alvo das discussões
sobre as construções identitárias de raiz única, apesar do referendum
dos autores às migrações culturais e ao trânsito da diversalidade. O
enraizamento, segundo Bernabé, Chamoiseau e Confiant, não constitui
um essencialismo, ou uma evidência de pureza etnocultural, mas
reflete uma tentativa de decifração dos enigmas históricos e
antropológicos, necessária à reconstituição da realidade crioula, cuja
figura é a identidade-rizoma de Deleuze e Guattari em que, como já
se disse, a raiz única se dissolve para dar lugar à raiz rizomática. O
projeto teórico e as práticas políticas dos pesquisadores da Crioulidade
realizam-se na tentativa de mobilização desse rizoma em convergência
harmoniosa. O trabalho, portanto, de reconstituição de memórias
recalcadas pelo dualismo maniqueísta ocidental, produtor das grandes
oposições redutoras e exclusivas, dá, sem dúvida, a seus pesquisadores
o estatuto de antropólogos ou etnólogos da Crioulidade reivindicado
no Éloge: “Um pouco como em escavações arqueológicas: após a
demarcação do espaço, avançar a pequenos toques de broxa para nada
alterar ou perder desse nós enterrado pela francisação” (Bernabé,
Chamoiseau, Confiant, 1989, p. 22).
Revendo políticas culturais e construções identitárias, os três
autores desconstróem as oposições maniqueístas que foram

119
constituídas como expressões simbólicas de resistência em práticas
anticoloniais. Assim eles avaliam a violenta inscrição do alterismo nos
povos colonizados que passou a funcionar como arquétipo da
identidade do novo mundo, referendando, portanto, a tese de Appiah
(1997), já exposta anteriormente. A Crioulidade surge, pois, como parte
da proliferação de um mecanismo de estratégias contemporâneas para
a prática da liberação cultural e política. Da discussão sobre a
intensidade das migrações nas sociedades contemporâneas, constrói-
se em seu discurso uma imagem da história como caleidoscópio que,
além de afiançar a condição multicultural do homem, acena com uma
esperança histórica de reconciliação dos povos em um mundo marcado
por guerras e fenômenos de uniformização e estandardização culturais:
“Por sua constituição em mosaico, a Crioulidade é uma especificidade
aberta. [...] Exprimi-la é exprimir não uma síntese, nem simplesmente
uma mestiçagem, ou qualquer outra unicidade. É exprimir une
totalidade caleidoscópica, ou seja, a consciência não totalitária de uma
diversidade preservada” (Bernabé, Chamoiseau, Confiant, 1989, p.
28).
Em Texaco (1992), romance ganhador do prêmio Goncourt de
literatura, Patrick Chamoiseau, definindo a cultura-mosaico inscrita na
língua crioula do bairro de Texaco, escreve que “a cidade crioula fala
em segredo uma linguagem nova e não mais teme Babel” (Chamoiseau,
1992, p. 243). Essa linguagem caracteriza uma identidade nova
“multilíngüe, multi-racial, multi-histórica, aberta, sensível à diversidade
do mundo” (Chamoiseau, 1992, p. 243), constituída no processo de
crioulização e identificada na emergência das crioulidades
ethoetnoculturais. Em Écrire en pays dominé, Chamoiseau pluraliza os
termos Crioulização e Crioulidade, definindo-os da seguinte maneira:
“É preciso chamar de ‘crioulizações’ os mecanismos evolutivos dos
processos de relações, que, entalhados de maneira complexa e
acelerada nas Américas, repercutem hoje no mundo inteiro”
(Chamoiseau, 1997, p. 201). E ainda: “É preciso chamar de
‘crioulidades’ as resultantes particulares na alquimia das crioulizações.
Resultantes que continuam em movimento porque estão submissas às

120
eletrólises contínuas das crioulizações” (Chamoiseau, 1997, p. 201).
Todos esses mecanismos encontram-se nas Américas das plantações,
no Caribe e em todos os espaços onde houve ou há crioulização. A
abordagem dessa realidade complexa pelos teóricos da Crioulidade,
que recusam a noção de mestiçagem usada como fuga dialógica do
monologismo, inclui as teorias da multiculturalidade, da
transculturalidade e do multilingüismo. Sabendo-se que no
multiculturalismo supõe-se a presença de vários imaginários em um
mesmo espaço, enquanto no transculturalismo há uma correlação,
ou, como diz Chamoiseau, uma “inter-retro-reação” aos diferentes
imaginários, conclui-se que a proposta da Crioulidade é totalmente
pertinente quando afirma reconhecer em um mesmo espaço, a
possibilidade de convivência de processos de multiculturalidade
justaposta e mecanismos de transculturalidade nos quais as construções
culturais, em relação aberta e ativa, afetam-se e modificam-se. O
interesse dos autores da Crioulidade é, pois, a análise dos mecanismos
de solidariedade conflitual no processo das construções culturais e
identitárias crioulas, em que não ocorreu uma síntese harmoniosa, mas
uma espécie de diferenciação aberta em que se refletem as modalidades
dialógicas e paradoxais emergentes do mestiçamento entre África,
Europa, Índia e Ásia. Essa é a trama construída por Chamoiseau em
Texaco: “eu tento ver toda a diversidade interior, a que continua aberta,
que não funda o território, que não forma raiz única, que não funda
uma história, una língua, mas que parece se desdobrar em feixes”
(Chamoiseau, KAPES Kreol, 2001, p. 3).
Os discursos da Crioulização e da Crioulidade parecem constituir,
assim, a partir de suas rigorosas construções teóricas, um importante
referencial para os debates sobre o sentido da historicidade das
Américas Latina e Afrolatina. No quadro de sua produção conceitual,
parece ser fundamental o reconhecimento da importância do conceito
de região, das migrações e das fronteiras culturais, que se movem em
processo constante de reorganização, desempenhando um papel
determinante nas dinâmicas de integração social. Tudo isso referenda
uma necessária parceria intercultural entre as sociedades das diferentes

121
áreas lingüísticas das Américas, se for possível concluir que a
articulação de novos espaços políticos na situação atual, quando os
fenômenos migratórios são massivos e generalizados, não se constitui
apenas a partir do equacionamento ou do equilíbrio de paradigmas
culturais diferentes. Nesse sentido, a própria história das Américas
constitui-se como pano de fundo para a representação de um projeto
histórico solidário de construção de sociedades com uma visão mais
complexa sobre o direito de investigação, restauração e difusão de
seus bens culturais e seu patrimônio histórico, não em busca,
certamente, do restabelecimento de matrizes essencialistas, mas de
um dialogismo identitário, sabendo-se que o conceito tem múltiplas
ocorrências, lugares de articulação e pontos de convergência. A
Crioulização e a Crioulidade inscrevem-se, pois, como expressões de
um ideário político, cultural e identitário, na construção desse
pensamento, base da solidariedade política entre povos crioulos, que
constitui, também, o objetivo deste programa de pesquisa.

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123
ENTRE-LUGAR

Nubia Jacques Hanciau


Fundação Universidade Federal do Rio Grande/RS

Quem, ainda que envolvido e não


desnavegado em margem, não tomou na
boca toda dos sentidos, ainda que em
silêncio oculto, o sabor da margem?
Homi K. Bhabha

O conceito de entre-lugar torna-se particularmente fecundo para


reconfigurar os limites difusos entre centro e periferia, cópia e
simulacro, autoria e processos de textualização, literatura e uma
multiplicidade de vertentes culturais que circulam na
contemporaneidade e ultrapassam fronteiras, fazendo do mundo uma
formação de entre-lugares. Marcado por múltiplas acepções, o entre-
lugar é valorizado pelos realinhamentos globais e pelas turbulências
ideológicas iniciadas nos anos oitenta do último século, quando a
desmistificação dos imperialismos revela-se urgente.
Por ocasião dos quinhentos anos das descobertas de Colombo, o
momento foi ideal para a reconsideração a respeito do
eurocolonialismo nas Américas e suas conseqüências. No âmbito da
cultura oficial, a conjuntura enseja a ocasião para celebrar a
superioridade européia, enquanto as narrativas indígenas encontram
a oportunidade para afirmar sua contra-história, resgatar seus
costumes e consolidar as lutas por território e autonomia. Surgem
novos discursos, diferentes sujeitos, dinâmica de fronteiras. Para o/a
pesquisador/a, o desafio hoje, mais do que em outros períodos, é o de
enfrentar uma cultura em movimento.
Foi o brasileiro Silviano Santiago quem, nos anos 1970, quando
vivia nos Estados Unidos, definiu esse espaço intermediário e
paradoxal, no ainda hoje atual ensaio “O entre-lugar do discurso latino-
americano”. Filiava-se Silviano Santiago à tendência tropicalista dentro
da tradição oswaldiana e modernista. Para ele, “o intelectual brasileiro,
no século XX, vive o drama de ter de recorrer a um discurso histórico,
que o explica, mas que o destruiu, e a um discurso antropológico, que
não mais o explica, mas que fala do seu ser enquanto destruição”
(Santiago, 1982, p. 17). Retoma Paulo Emílio Salles Gomes para
lembrar que nossa difícil construção se dá em uma dialética rarefeita
entre o ser e o ser outro, entre o ser explicado e destruído, entre o
ser constituído, mas não o ser explicado:

Como “explicar” a “nossa constituição”, como refletir


sobre a nossa inteligência? Nenhum discurso discipli-
nar o poderá fazer sozinho. Pela História universal, so-
mos explicados e destruídos, porque vivemos uma ficção
desde que fizeram da história européia a nossa estória.
Pela Antropologia somos constituídos e não somos expli-
cados, já que o que é superstição para a História, consti-
tui a realidade concreta do nosso passado (Santiago, 1982,
p. 17-18).

“Ou bem nos explicamos, ou bem nos constituímos”. Eis, para


Santiago, o falso e simples dilema do intelectual brasileiro, que gera
todas as formas de discurso autoritário, tanto o populista quanto o
integralista. É preciso buscar a explicação da constituição brasileira
(leia-se da inteligência) através de um entrelugar [grafia encontrada
com ou sem hífen] ou de uma “dialética rarefeita” [...]. “Nem cartilha
populista, nem folclore curupira – eis as polarizações que devem ser
evitadas a bem do socialismo democrático. Nem o paternalismo, nem
o imobilismo” (Santiago, 1982, p. 18).
Além de discutir o lugar que ocupa o discurso literário do Brasil
e das Américas em confronto com o europeu, Santiago indaga-se a

126
respeito do que é produzir cultura e literatura em província
ultramarina, analisando as relações entre as duas civilizações,
completamente estranhas, uma à outra, cujos primeiros encontros
situaram-se no nível da ignorância mútua. Para ele, no renascimento
colonialista está a origem de uma nova sociedade, mestiça, cuja principal
característica é a reviravolta, que sofre a noção de unidade e pureza,
contaminada em favor de uma mistura sutil e complexa, que se dá
entre o elemento europeu e o autóctone, associado à infiltração
progressiva, efetuada pelo pensamento selvagem, que leva à abertura
do único caminho possível para a descolonização (Santiago, 2000, p.
15). Esse espaço, aparentemente, vazio, templo e lugar de
clandestinidade, seria o lócus do ritual antropófago da literatura latino-
americana, no qual ela se realizaria “entre o sacrifício e o jogo, entre a
prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre
a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão” (Santiago,
2000, p. 26).
O desejo de releitura dos tradicionais espaços de enunciação –
desafiados pelos discursos pós-colonialistas e pela posição singular da
crítica ante a dependência cultural –, fez com que fossem criados esses
novos espaços, que, misturados às virtualidades globais e às
regionalidades enunciativas, atendem ao apelo de instâncias subjetivas
dos discursos em circulação.
Entre-lugar (S. Santiago), lugar intervalar (E. Glissant), tercer
espacio (A. Moreiras), espaço intersticial (H. K. Bhabha), the thirdspace
(revista Chora), in-between (Walter Mignolo e S. Gruzinski), caminho
do meio (Z. Bernd), zona de contato (M. L. Pratt) ou de fronteira
(Ana Pizarro e S. Pesavento), o que para Régine Robin representa o
hors-lieu, são algumas, entre as muitas variantes para denominar, nesta
virada de século, as “zonas” criadas pelos descentramentos, quando
da debilitação dos esquemas cristalizados de unidade, pureza e
autenticidade, que vêm testemunhar a heterogeneidade das culturas
nacionais no contexto das Américas e deslocar a única referência,
atribuída à cultura européia.
Quando a história da literatura das Américas for capaz de romper
com a concepção do universalismo metropolitano centrado na Europa,

127
quando forem valorizadas as variantes diferenciadoras de sua
produção em função de uma literatura geral, a cultura intelectual
poderá conquistar, de maneira endógena, seu espaço de enunciação
na história da cultura, sem que isto seja uma concessão condescendente
ao bom selvagem, que produz textos estranhos, aceitos como
curiosidade por aqueles que se consideram detentores do juízo
universal.
Os seguintes aspectos são, particularmente, relevantes para tal
conquista: evitar o eurocentrismo, localizar a diferença e afirmar a
identidade endógena. Na medida em que a historiografia literária,
particularmente, a latino-americana, não consegue a satisfação dessas
metas temáticas, a inabilidade vem responder à existência contínua e
persistente de um estado de coisas colonial, neocolonial ou pós-colonial.
Percebe-se, aí, a necessidade de buscar a realização prática dos três
temas com alguma beligerância ativa na luta contra a hegemonia
intelectual metropolitana (Moreiras, 1999, p. 19).
Guimarães Rosa, no antológico “A terceira margem do rio”, que
compõe as Primeiras estórias (1962, primeira edição), cria ficcionalmente
esse espaço intermediário. Em narrativa, que a crítica classifica entre
a história e o conto, Rosa situa seu personagem “na vagação”,
alienando-se da rotina de sua vida para estar em constante deriva,
executando “a invenção de (...) permanecer naqueles espaços do rio
de meio a meio”, numa canoa que jamais “pojava em nenhuma das
duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio”, não mais tocando “em chão
nem capim” (Rosa, 1978, p. 28-30).
Ora, o barqueiro de Rosa sugere o que poderia se constituir em
um terceiro tipo de construção identitária, recorrente em diferentes
corpora literários, notadamente em países onde os fluxos migratórios
são freqüentes e numerosos. O barqueiro, cujo trabalho é o de realizar
constantes travessias, levar e trazer passageiros de uma margem à outra
quando da inexistência de pontes, ao facilitar a travessia de fronteiras
ele não reproduz nem o nomadismo em flecha (expressão do
caribenho Édouard Glissant), nem exatamente o nomadismo circular,
à moda do “partidor centripetal”, de que fala Luis Fernando Veríssimo,

128
em texto intitulado “Os dois Ulisses”, ao evocar os Ulisses de Homero
e de Dante, que se encontram sem se fundirem na obra epônima de
James Joyce, na odisséia de um só dia que compartilham. O Ulisses de
Homero, segundo Verissimo um “ficador centrifugal”, deseja ao cabo
da aventura voltar para casa. O de Dante, Stephen Dedalus, um
“partidor centripetal”, cujo exílio caracteriza-se por ser uma aventura
sem volta. Ambos andam pelas margens da sociedade de Dublin,
parecendo dois exilados em sua própria terra. O primeiro, no entanto,
é um cidadão atrás de uma reintegração com sua sociedade e seu lar.
O outro é um poeta que persegue uma missão poética: a de criar a
consciência da sua raça.
Uma terceira margem, um caminho do meio, consiste nesses
procedimentos de deslocamento, de nomadismo, em que o projeto
identitário possa nascer da tensão entre o apelo do enraizamento e a
tentação da errância. Lançando mão de um oxímoro, Michel Maffesoli
chamou esse espaço de “enraizamento dinâmico”, expressão retomada
por Zilá Bernd, que sugere, em “Enraizamento e errância: duas faces
da questão identitária” (Bernd, 2001, p. 1), um caminho do meio para
superar a aporia fundamental encerrada pela questão identitária:
afirmar-se e excluir o outro (ou seja, a afirmação das identidades passa
pela negação das alteridades), ou desistir de se nomear e desaparecer.
Na etimologia de oxímoro (do grego oxymóron) estão oxus (agudo)
e môrus (louco), que remetem a uma loucura aguda da linguagem.
Anulando fronteiras tradicionais, unem-se, assim, conceitos que se
excluem mutuamente, com o objetivo de produzir novos sentidos.
Para Maximilien Laroche, a oximorização consiste em aglutinar,
deliberadamente, os contrários para criar novas e vivas identidades.
Palavras que associam aspectos contrários para evocar uma realidade
original. Personagens que reúnem forças opostas para criar situações
novas, inéditas. Atmosfera, cenário, simbolismo que vão buscar um
universo de representações, de sentimentos e de sensações
heterodoxas (Laroche, 1988, p. 89).
Em Escrituras híbridas, Bernd postula, ainda, que “um texto do
terceiro espaço relaciona-se, de certa maneira, à articulação hegeliana

129
(tese, antítese, síntese)” (1998, p. 268). Tal disposição, no entanto, é
desconstruída por meio de diversas práticas: deslocamentos de
personagens, estratégias de desvio, que contribuem para solapar o
fundamento das polaridades. Nas dicotomias oralidade e escrita,
palavra e imagem, formas arcaicas e modernas, racionalidade e magia,
que compreendem as escrituras híbridas dos tempos da pós-
modernidade, a literatura projeta-se em direção à ocupação da terceira
margem, poetizada por Rosa, do entre-lugar, proposto por Silviano,
ou de um espaço intersticial (liminar, “no além” ou terceiro espaço),
sugerido por Homi K. Bhabha.
Para Eneida Maria de Souza, é nos discursos contemporâneos,
dedicados aos discursos pós-colonialistas, que se percebe a exigência
de o sujeito se posicionar como detentor de uma enunciação
particularizada (2001, p.2). A manifestação de subjetividades no
discurso crítico atinge relevância para o debate pós-colonialista, por
se tratar da conjunção entre teoria e prática, do desejo de expressão
enunciativa com vistas à representação de lugares, que se impõem
pela sua natureza intermediária e paradoxal.

O desafio das misturas


Os ingredientes clássicos do Velho Mundo faziam parte da
bagagem imaginária dos degredados transladados para o Novo
Continente. As formulações européias misturaram-se às locais pela
expansão ultramarina do fim do século XV. Uma vez descobertas e
alcançadas, as novas terras representavam o próprio purgatório, um
lugar intermediário entre o céu e a terra, o “terceiro lugar”, oposto à
Europa – metrópole da cultura e terra dos cristãos –, para muitos um
inferno com duração limitada, que começava com o rito de passagem
simbolizado pela viagem dos navegantes às terras de além-mar
(Hanciau, 2001, p. 117-118).
Passagem do velho ao novo, do homogêneo ao heterogêneo, do
singular ao plural, da ordem à desordem, a idéia de mistura/hibridação/
mestiçagem compreende, desde então, conotações complexas e
apriorismos ambíguos, que pressupõem a existência de grupos

130
humanos puros, fisicamente distintos e separados por fronteiras, as
quais a mistura dos corpos viria pulverizar. O fenômeno da mistura
tornou-se realidade quotidiana, visível nas ruas e nas telas. Multiforme
e onipresente, associa seres e formas que, a priori, nada aproximaria.
Esta telescopagem de estilos prolifera, surpreende e sacode as
referências tradicionais. Um mundo moderno, homogêneo e coerente
vai ceder lugar a um universo pós-moderno, fragmentado,
heterogêneo e imprevisível. Misturar, entrecruzar, cruzar, telescopar,
superpor, justapor, interpor, imbricar, colar, fundir, são algumas
palavras entre tantas outras aplicadas à mestiçagem, que abafam –
numa profusão de vocábulos – a imprecisão das descrições e o fluxo
do pensamento. Em princípio, a expansão colonial misturou o que
não estava misturado: corpos puros, cores fundamentais, elementos
homogêneos, isentos de qualquer “contaminação”.
Eis a origem da mestiçagem, exercida hoje em materiais
derivados, encontrados nas sociedades que se alimentam de
fragmentos importados e nativos, de crenças truncadas, de conceitos
descontextualizados, às vezes mal-assimilados, de improvisações e
ajustes nem sempre exitosos. A mestiçagem supõe a convergência de
elementos díspares de proveniência européia, ameríndia e africana,
em sua origem estrangeiros uns aos outros, que se ajustam entre si,
reorganizam-se, conferindo-lhes um novo sentido. Elementos do
patrimônio antigo servem de “ponte” e liga entre o Ocidente e a
América (e. g. A visão do paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, e a
obra do “apóstolo dos índios”, Frei Bartolomé de Las Casas (1457-
1566).
Compreender a mestiçagem implica defrontar-se com hábitos
intelectuais que levam a preferir os conjuntos monolíticos aos espaços
intermediários. Embora as abordagens dualistas e maniqueístas
seduzam por sua simplicidade, tal maneira de ver limita e empobrece
a realidade, além de eliminar os elementos que desempenham papéis
determinantes na contemporaneidade: as trocas de um mundo a outro,
os cruzamentos, os indivíduos e grupos que fazem as vezes de
intermediários, de “passadores” (passeurs culturels), no dizer de Suzanne

131
Giguère, que transitam entre os grandes blocos. Essas personagens e
esses espaços de mediação tiveram um papel essencial na história da
colonização do Novo Mundo. Segundo Mignolo, “é nos espaços in
between, criados pela colonização, que aparecem e se desenvolvem
novas formas de pensamento, cuja vitalidade reside na aptidão em
transformar e criticar o que as duas heranças, a ocidental e a ameríndia,
têm de pretensamente autêntico” (Mignolo apud Gruzinski, 1999, p.
43).
As aproximações entre os dois continentes efetuaram-se, porém,
à custa de mal-entendidos e contínuas deformações que modificaram
os saberes e as crenças autóctones. Uma distância instaurou-se com
relação à realidade européia, introduzindo misturas entre os povos
americanos. O conhecimento dos religiosos do Velho Mundo e os dados
ameríndios engendraram novos saberes intermediários, que se
desenvolveram à margem dos saberes estabelecidos. Essas “impurezas”
e “contaminações”, esses vestígios é que levaram à alteridade, à busca
da verdade do outro, à ultrapassagem de fronteiras.
Para falar em fronteiras, na confluência de duas ou mais correntes
genéticas, de cromossomos em constante “travessia”, a mistura de etnias
gera uma espécie mais mutável e maleável, uma progenitura híbrida.
Da racial, ideológica, cultural e biológica cross-polinization, surge uma
consciência mestiça, una conciencia de mujer, que Gloria Anzaldúa, em
“La conciencia de la mestiza”, chama de consciência das fronteiras,
acentuada no seu texto pelos versos do poema intitulado Una lucha de
fronteras / A struggle of Borders.

Because I, a mestiza,
Continually walk out of one culture
And into another,
Because I am in all cultures at the same time,
Alma entre dos mundos, tres, cuatro,
Me zumba la cabeza con lo contradictorio.
Estoy norteada por todas las voces que me hablan
Simultaneamente (Anzaldúa, 1994, p. 426).

132
A mestiça de Anzaldúa é o produto da transferência cultural e
dos valores espirituais de um grupo para outro. Podendo ser
tricultural, monolingual, bilingual ou multilingual, possuindo dupla
ou tripla personalidade, falando um patois numa condição de perpétua
transição, ela enfrenta o dilema da espécie. No berço de uma cultura,
ora prensada entre duas, ora contraída entre três e seus sistemas de
valores, a mestiça vive uma guerra interna, sofre a luta da carne e das
margens. Como tantos outros que têm ou vivem em mais de um
universo cultural, ela torna-se múltipla. A coexistência de dois modelos
de referência, habitualmente incompatíveis, causa-lhe um choque ou
colisão cultural, levando-a a rumar para uma nova consciência, a
abandonar a margem oposta, a deixar para trás a cultura dominante,
apagando-a, para atravessar a fronteira, na trajetória de um espaço
intermediário em direção a um outro território completamente novo
(Anzaldúa, 1994, p. 428).

Fronteiras e deslocamentos
Além de abarcar amplos domínios, as fronteiras muitas vezes são
porosas, permeáveis, flexíveis. Deslocam-se ou são deslocadas. Se há
dificuldade em pensá-las, em apreendê-las, é porque aparecem tanto
reais como imaginárias, intransponíveis e escamoteáveis. Estudá-las,
se não resolve essa problemática, leva pelo menos a entender o
sentimento de inacabamento, ilusão nascida da incapacidade de
conceber o “entre-dois-mundos”, a complexidade deste estado/espaço
e desta temporalidade.
O conceito de fronteira apresenta-se igualmente ambivalente ou
bifronte para a historiadora Sandra Pesavento (2001, p. 7-8), que vê
uma tendência a pensar as fronteiras a partir de uma concepção que
se ancora na territorialidade e se desdobra no político. Neste sentido,
a fronteira constitui-se em encerramento de um espaço, limitação de
algo, fixação de um conteúdo e de sentidos específicos, conceito que
avança para os domínios da construção simbólica de pertencimento
denominada identidade e que corresponde a um marco de referência
imaginária, definido pela diferença e alteridade na relação com o outro.

133
Nessa dimensão, coloca-se o debate a respeito das categorias
presentes na nova temporalidade, a do mundo globalizado. Nele as
fronteiras se apagam, dissolvem os localismos e/ou acirram as questões
identitárias. Figurando um “ir-e-vir” não apenas de lugar, mas, também,
de situação ou época, a dimensão de fronteira postulada por Pesavento
possibilita – pelo contato e permeabilidade –, o surgimento de algo
novo, híbrido, diferente, mestiço, um “terceiro”, que se insinua na
situação de passagem.
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o
“novo”, como ato insurgente, e não parte do continuum do passado e
do presente. Gera uma produção artística que não apenas retoma o
passado – causa social ou precedente estético –, mas o renova,
refigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que, além de inovar,
interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte
da necessidade (e não da nostalgia) de viver.
Os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta
possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos. Podem
confundir as definições de tradição e modernidade, ao tentar realinhar
as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, e
ao pretender desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento
e progresso. O imaginário da distância espacial, o viver de algum modo
além da fronteira destes tempos, confere relevo às diferenças sociais,
temporais, que interrompem a noção de contemporaneidade cultural.
Em Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação, Mary
Louise Pratt aborda o tema das fronteiras, de maneira dialética e
historicizada, para re/elaborar alguns dos termos e conceitos
supramencionados. Ela elege a expressão “zonas de contato” para
designar os espaços sociais em que culturas díspares se encontram, se
chocam, se entrelaçam freqüentemente em relações extremamente
assimétricas de dominação e subordinação. Pratt discorre sobre o
espaço de encontros coloniais no qual pessoas, histórica e
geograficamente separadas, entram em contato umas com as outras,
estabelecem relações contínuas, geralmente associadas a circunstâncias
de coerção, desigualdade radical e obstinada. O termo “contato” é

134
tomado emprestado de seu uso em lingüística; quanto à expressão
“linguagem de contato”, ela remete a linguagens improvisadas que se
desenvolvem entre locutores/sujeitos de diferentes línguas nativas que
precisam comunicar-se entre si de modo consistente, usualmente no
âmbito comercial (Pratt, 1999, p. 27-32).
Se o sujeito transculturado é alguém que está in/conscientemente
situado entre pelo menos dois mundos, duas culturas, duas línguas e
duas definições de subjetividade, constantemente mediando entre elas,
a transculturação também pode ser vista como um fenômeno de zona
de contato, que não apenas conduz a formular uma série de
questionamentos, mas organiza, segundo Angel Rama, esse espaço
“ambivalente e indeterminado” (apud Alberto Moreiras, 2001, p. 227),
no qual o artista, ou crítico, transculturador está livre para dedicar-se
à tarefa de recompor, a partir de um material cultural, um discurso
superior, à altura dos produtos hierarquizados da literatura universal.
Moreiras, menos entusiasmado na avaliação do poder cultural da
“semiperiferia do mundo”, acredita que o télos celebrativo ou heróico
da transculturação orientada não consegue responder à simples
pergunta: “e se esse espaço indeterminado do entrelugar mostrasse
ser não o fornecedor de uma nova coerência histórica, mas um espaço
mestiço de incoerência?” (Moreiras, 2001, p. 227).
Uma perspectiva “positiva” de contato salientaria as inter-relações
dos indivíduos, tratadas não em termos da separação ou segregação,
mas de presença comum, interação, entendimentos e práticas
interligadas, mesmo que freqüentemente dentro de relações
assimétricas de poder. Quando Ron Carter utiliza a expressão
“literaturas de contato”, é para indicar as literaturas escritas fora da
Europa em línguas européias (Pratt, 1999, p. 32). Ao empregar o termo
“contato”, as dimensões interativas e improvisadas dos encontros
coloniais são enfatizadas, deixando de ser suprimidas ou ignoradas
pelos relatos de conquista e dominação em circulação.

Estar no além, no terceiro espaço


Antes de serem marcos físicos ou naturais, as fronteiras são, so-
bretudo, o produto da capacidade imaginária de refigurar a realida-

135
de, a partir de um mundo paralelo de sinais que guiam o olhar e a
apreciação, por intermédio dos quais os homens e as mulheres perce-
bem e qualificam a si mesmos, o corpo social, o espaço e o próprio
tempo. Entre as vozes que enaltecem as diferenças e refletem a respei-
to do trânsito, tempo e espaço/fronteiriço, com sua carga simbólica,
suas hierarquias e seus limites, a de Homi K. Bhabha se propõe traçar
formas, estabelecer situações abertas. Seu trabalho tem a ver com um
tipo de fluidez, um movimento de vaivém, sem aspirar a qualquer
modo específico ou essencial de ser.
Para introduzir O local da cultura, texto que se quer fronteiriço,
descentrado e ambivalente como o lugar deslizante de onde emerge o
discurso híbrido, Bhabha toma emprestada de Heidegger a seguinte
definição: “Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como
os gregos reconheceram, (...) é o ponto a partir do qual algo começa a
se fazer presente” (Bhabha, 1998, p. 19). Para Bhabha, é o tropo do
tempo atual colocar a questão da cultura na esfera do “além”. Nossa
existência, marcada por uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de
viver nas fronteiras do “presente”, não parece encontrar nome pró-
prio além do atual e controvertido deslizamento do prefixo “pós”:
pós-modernismo, pós-colonialismo, pós-feminismo... Mas, se o jargão
destes tempos – pós-modernidade, pós-colonialidade, pós-feminismo
–, tem significado, este não está no uso popular do “pós” para indicar
seqüencialidade (feminismo posterior) ou polaridade (antimo-
dernismo). Estes termos, que apontam insistentemente para o além,
só poderão incorporar a energia inquieta e revisionária do além se
transformarem o presente em um lugar expandido e ex-cêntrico de
experiência e aquisição de poder.
Estar no “além”, conforme Bhabha demonstra, significa habitar
um espaço intermediário, nem um novo horizonte, nem um abando-
no do passado. Neste início de terceiro milênio nos encontramos exa-
tamente no momento de trânsito em que espaço e tempo, passado e
presente, interior e exterior, inclusão e exclusão se cruzam para pro-
duzir figuras complexas de diferença e identidade. Residir “no além”
é ser parte de um tempo revisionário, que retorna ao presente para

136
redescrever a contemporaneidade cultural, reinscrever a comunida-
de humana, histórica, “tocar o futuro em seu lado de cá”. Nesse sen-
tido, o espaço intermédio “além” torna-se um espaço de intervenção
no aqui e no agora.
Ao falar das confluências estéticas entre a literatura do Caribe e
da América Latina, em Nation and narration (1990), Bhabha, mais uma
vez, aponta um espaço de trocas e mudanças, sempre movediço, nunca
fixo, um “terceiro espaço” que tem por objetivo abalar ou ultrapassar
as oposições binárias que se insinuam nos “sistemas de pensamento” e
nos “pensamentos de sistema”, um espaço novo, intersticial, que provê
e promove estratégias de resistência e desenvolvimento, no qual a
sutileza e a abertura imperam. E sugere que nele se examinem as
rupturas das convenções e das práticas de escritura, que rompem
com o realismo para abrir outras possibilidades, as quais emergem da
estrutura indefinível das fronteiras da cultura híbrida.
No cerne dessa formulação, o terceiro espaço, embora
irrepresentável em si mesmo, constitui as condições discursivas de
enunciação que asseguram: o sentido e os símbolos da cultura não
têm unidade ou fixação primordial; os mesmos signos podem ser
apropriados, traduzidos, re/historicizados e lidos novamente. O que
Bhabha chama de “contribuição radical da tradução da teoria”
depende de que não haja, em nenhum caso, uma comunidade dada
ou um corpo popular cuja historicidade inerente e radical emita os
signos adequados para uma igualmente adequada e libertadora
construção social. Outros teóricos, entre eles Alberto Moreiras, pensam
que além de possível é necessário perseguir operações teórico-
discursivas orquestradas desde a periferia, para que esta “construa
suas próprias frases com sintaxe e vocabulário recebidos” e subverta
as interpretações codificadas pelos pactos de leitura hegemônica,
desviando-os de re/significações locais pedantes – e perversas – como
a própria revolução pós-moderna (Moreiras, 1999, p. 14-15).
Em Bhabha – cujos conceitos a respeito da hibridação nas
trajetórias feministas e pesquisas acadêmicas são freqüentemente
empregados –, a definição de terceiro espaço ou espaço intersticial

137
parte de uma noção lingüística em que qualquer mensagem entre
Sujeito e Objeto cria um lugar aberto a uma gama de possibilidades,
que não seriam vislumbradas nem pelo emissor nem pelo receptor.
No campo cultural esta base teórica permite sair do binário, já que o
terceiro espaço não pretende ser apenas um terceiro termo, mas um
entre-lugar que o engloba e o ultrapassa, uma dimensão que se abre
para além da inversão dos termos opositivos (sujeito/objeto; dito/não-
dito; sentido/não-sentido), escapando da tautologia e do logocentrismo.
O afastamento das singularidades de “classe” ou “gênero,
enquanto categorias conceituais e organizacionais básicas, resultaram
em uma consciência das posições do sujeito – raça, gênero, geração,
localidade geopolítica, orientação sexual –, que habitam qualquer
pretensão à identidade no mundo moderno. O que é teoricamente
inovador e crucial no terreno político é a necessidade de passar além
das narrativas de subjetividades originárias e iniciais para focalizar os
momentos ou processos produzidos na articulação de diferenças
culturais. Esses “entre-lugares” fornecem o campo para a elaboração
de estratégias de subjetivação que dão início a novos signos de
identidade e a postos inovadores de colaboração e contestação no ato
de definir a própria idéia de sociedade.

Finalizando...
Momento particular este, das fronteiras do milênio, do balanço
do que foi feito; momento de fechamento e abertura, de inventário,
em que se pergunta a respeito da bagagem trazida para esta terceira
margem da história. Ocasionadas pelo “ir-e-vir”, as misturas fizeram
nascer virtualidades e contrariedades, complementaridades e
antagonismos, que têm por resultado configurações novas,
imprevisíveis. Justamente nesta liberdade de ligações que reside a fonte
de inovação e criação. A gama de combinações parece inesgotável,
dando a impressão de uma criação descontínua, por vezes aleatória,
mas que impressiona por sua excepcional diversidade.
Chora, uma recente revista eletrônica canadense, propõe uma
seção chamada thirdspace, um espaço que pretende “ir além das

138
fronteiras e das disciplinas”. Originária em Platão e expandida por
Julia Kristeva, chora simboliza uma terceira condição, um espaço
eterno e indestrutível que leva em conta a posição de tudo o que virá a
ser (Platão, Timaeus 50-2). Segundo a página eletrônica Thirdspace, chora
é por si só um terceiro espaço, um lugar de origem, híbrido, intangível,
uma articulação essencialmente móvel e extremamente provisória,
constituída por movimentos e efêmeras estases.
Walter Mignolo, por sua vez, em capítulo ao qual dá o título de
“Thinking in between languages”, refere De Vos (1994) para dizer
que viver confinado nas margens hoje é concebido e experimentado
em diferentes perspectivas: não apenas na autenticidade característica
das culturas nativas, perseguidas pela globalização, nem na silenciosa
porém perigosa autoridade da cultura norte-americana em sua triunfal
caminhada planetária. A celebração do bi ou do plurilinguajar é, no
processo global, precisamente a celebração da ruptura das histórias
locais e dos desígnios globais, além de ser uma crítica à idéia de que a
civilização está ligada à pureza do monolinguajar colonial e nacional
(Mignolo, 2000, p. 250).
Embora o idioma planetário ofereça uma alternativa à língua da
moda, ou às ideologias, que ocupam um espaço cada vez maior, a
despeito dos excessos, a crítica pós-moderna e muitos criadores,
artistas e escritores, trazem, das misturas do mundo, novas luzes que
nem sempre as ciências sociais oferecem. Os novos fenômenos parecem
cada vez mais abrir a esfera do comparatismo da periferia, surgindo
múltiplos discursos e perspectivas que utilizam métodos
transdisciplinares, impulsionando uma nova dinâmica às relações
interamericanas. A obra de Édouard Glissant (1981, 1990, 1995) fala
de lugares intervalares, identidades híbridas, negociação de
identidades em culturas multifacetadas e abertas à relação com o outro,
no Diverso, em processos contínuos de crioulizações ou de mestiçagens
culturais. Reconhecendo que todas as culturas são híbridas e que as
misturas remontam às origens da história do homem, a escritura
glissantiana propõe a formulação de uma nova ideologia saída da
globalização.

139
A consciência nacional só pode surgir do compromisso, cuja forma
é um entre-lugar definidor não mais de um puro exotismo europeu,
nem da pura e xuberância encontrada na América, mas da
contaminação de um sobre o outro, cuja marca ideológica – uma
amálgama dos dois valores – deve aparecer no texto, transformado
em produto impuro, mas afirmativo da nacionalidade (Santiago, 1982,
p.110).
Toda uma gama de possibilidades e questões se apresenta àqueles
que enfrentam e tentam compreender as fronteiras, marcos divisórios
que induzem a pensar na passagem de uma época, situação ou lugar a
outro, estimulados pela necessidade de explicar o funcionamento da
cultura, marcada pela condição inicial de colonialismo, do exílio e,
mais tarde, das ditaduras em importantes setores intelectuais, que
problematizaram as identidades nas Américas. Nesta perspectiva, uma
ambivalência se faz sentir. De um lado, a “desfronteirização” alarga o
conceito de unificação e abre novos campos de aceitação e identidade;
de outro, se repetida, ou muito aberta, ao evidenciar os processos de
globalização e seus movimentos, ela pode provocar a insegurança ou
o medo da negação das identidades locais.

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141
HETEROGENEIDADE

Graciela Raquel Ortiz


Universidad Nacional de Rosario (Argentina)

No âmbito da crítica literária e cultural, deve-se o conceito de


heterogeneidade ao trabalho de reflexão desenvolvido, desde o começo
dos anos 70, pelo crítico peruano Antonio Cornejo Polar, que
encaminhou suas pesquisas à elucidação dos processos de produção
das literaturas, sobretudo andinas, pensadas sempre em relação com
os problemas sociopolíticos e econômicos dos países envolvidos.
Nos anos 70, diante do sucesso que a crítica imanentista tinha
alcançado nos âmbitos universitários latino-americanos, e apesar de
reconhecer o avanço que ela significou pelo seu grau de formalização
e objetivação nas análises feitas quando comparadas com o
impressionismo ou a estilística utilizados até então, Cornejo Polar
salientava os limites que tal aproximação impunha ao texto literário
ao considerá-lo desligado “do processo histórico da cultura”.
A necessidade de elaborar uma teoria literária que, com seus
princípios e métodos, fosse capaz de dar conta da especificidade da
literatura produzida na América Latina se constituiu, naquela época,
em um dos temas centrais na agenda de um grupo de intelectuais
latino-americanos, entre os quais se achavam Angel Rama, Roberto
Fernandez Retamar, Antonio Candido e Antonio Cornejo Polar. Tal
atitude estava determinada pela necessidade de tomar distância crítica
dos pressupostos teóricos elaborados na Europa e dominantes nos
âmbitos acadêmicos e intelectuais latino-americanos.
No ensaio Problemas atuais da crítica, publicado em 1977, Cornejo
Polar chama a atenção para a necessidade de elaborar uma crítica
aberta e interdisciplinar para poder dar conta do “conflito implícito
numa literatura produzida por sociedades internamente heterogêneas,
inclusive multinacionais dentro dos limites de cada país, ainda
marcadas por um processo de conquista e uma dominação colonial e
neocolonial” (Cornejo, 2000, p.21).
No ano seguinte, Cornejo Polar publica o ensaio fundamental, O
indigenismo e as literaturas heterogêneas: Seu duplo estatuto sociocultural,
no qual apresenta uma leitura crítica de textos indigenistas
interpretados numa ótica da duplicidade dos mundos socioculturais
que intervêm na produção literária, insistindo na idéia de conflito já
assinalada no ensaio de 1977: “As literaturas heterogêneas, [ao
contrário,] se caracterizam pela duplicidade ou pluralidade dos signos
socioculturais do seu processo produtivo: trata-se, em síntese, de um
processo que tem pelo menos um elemento não coincidente com a
filiação dos outros, e que cria necessariamente uma zona de
ambigüidade e conflito” (Cornejo, 2000, p.162).
O conceito de heterogeneidade parte do reconhecimento — como
a priori epistemológico —, de que a realidade andina, em particular, e
a latino-americana, em geral, estão marcadas pelas diferenças radicais
das culturas indígenas, européias e africanas, que se confrontaram
desde a descoberta e a conquista da América. Além disso, Cornejo
Polar leva em conta a existência de três sistemas na literatura andina:
o culto, o popular e o indígena, que têm a particularidade de estarem
instalados no mesmo espaço literário e de estabelecerem imprevisíveis
relações de natureza contraditória. Nessa perspectiva, Cornejo segue
de perto as reflexões feitas por José Carlos Mariátegui nos “Siete
ensayos de interpretación de la realidad peruana”, quando, em 1928,
defendia a necessidade de procurar um método crítico, que
considerasse a coexistência do quíchua e do espanhol, com o intuito
de definir uma literatura nacional que não ignorasse a situação da
conquista.
Apesar de visar a compreensão da literatura andina e do mundo
andino ao elaborar o conceito de heterogeneidade, Cornejo Polar

144
amplia a possibilidade de compreender vastas produções simbólicas
da América Latina nessa perspectiva baseada na diversidade.

O indigenismo das nações andinas, o negrismo centro-


americano e caribenho, mas também, de certo modo, a
literatura gauchesca do Rio da Prata, e a ligada ao con-
ceito do “real maravilhoso” podem entender-se como
variáveis do fenômeno que preocupava José Carlos
Mariátegui. Em todos esses casos trata-se de literaturas
situadas no conflituoso cruzamento de duas sociedades
e duas culturas (Cornejo, 2000, p.158).

Visões “homogeneizadoras”
Convencido de que a realidade andina estava conformada por
uma multiplicidade de universos socioculturais diversos, como já foi
assinalado, Cornejo confrontou o conceito de heterogeneidade com o
conceito de “literatura nacional”, ao considerar que este estava
alicerçado no pressuposto da unicidade. Com a maioria dos
movimentos de emancipação ocorridos durante o século XIX na
América Latina, surgiram e se fortaleceram no final do século os
discursos que homogeneizavam as diferenças apagando-as, com o
intuito de consolidar as representações que organizavam de maneira
coesa a comunidade em torno da idéia de “nação”. Nesse sentido, a
crítica literária configurou seu objeto a partir da delimitação do que
era a “literatura nacional”: tratava-se, no caso do Peru, da literatura
culta escrita em espanhol e produzida segundo o cânone das elites
dominantes que, por sua vez, seguiam os padrões europeus.
Na segunda metade do século XIX, Ricardo Palma leva adiante
o projeto lingüístico-literário de introduzir nos seus textos expressões
populares e coloquiais, com o fim de tornar sua escrita representativa
de uma linguagem nacional, pelo fato de ela integrar tanto a expressão
culta quanto a fala popular estilizada. Cornejo afirma que, “diluindo
as fronteiras entre a oralidade e a escrita, o culto e o popular”, Palma
elaborou uma política da língua que deu como resultado a aceitação,
sem questionamentos, dessa linguagem literária, como se fosse

145
realmente a conciliação feliz das diversas línguas. O espaço lingüístico
assim criado, regido pela norma culta permeável a ponto de se
apropriar dos usos populares, apresentava-se como homogêneo.
O modernismo hispano-americano continuou na linha de Palma
em relação à inegável representatividade e legitimidade nacional da
linguagem literária mas de um ponto de vista hierárquico, isto é,
tratava-se da linguagem que melhor pudesse representar a nação ou,
em última análise, o setor culto.
Quanto à historiografia literária, ela levou em conta os textos
literários escritos em espanhol culto, fato que significou um recorte
que escamoteou as produções populares orais ou escritas em espanhol
e excluiu, é claro, as literaturas orais em língua quíchua ou aimará,
confinadas, como afirma Cornejo, ao espaço do folclore. Além disso,
ao organizar a sua matéria numa concepção linear do tempo, a
historiografia impunha uma sucessividade que deixava de fora a
“perturbadora simultaneidade de opções literárias contraditórias”, na
busca de uma unidade que sacrificava a diversidade.
Essas razões, entre outras, levam o crítico a afirmar, de maneira
enfática, que a delimitação do “objeto [nossa literatura] não depende
só de uma opção própria da teoria literária, mas também e sobretudo,
de uma opção inocultavelmente política sobre quem (e quem não)
formamos parte de ´nossa América’”(Cornejo, 1992, p.11).

Debate Cornejo Polar/Roberto Paoli


No fim da década de 70 houve um interessante debate entre o
crítico italiano latino-americanista Roberto Paoli e Antonio Cornejo
Polar, que foi publicado na Revista de Crítica Literária Latinoamericana
n. 12 e, após, retomado no livro Asedios a la heterogeneidad cultural que
é importante lembrar, pois permite acompanhar as precisões que o
crítico peruano fez a respeito do conceito de heterogeneidade. A
questão central levantada por Paoli se relaciona à não pertinência
epistemológica desse conceito para caracterizar a essência do
indigenismo, pois ele serviria também para definir toda uma série de
universos, que não necessariamente têm a ver com a cultura, a produção

146
ou a recepção do texto literário. Ao atingir tal abrangência de referentes
e fenômenos, o conceito de heterogeneidade perde a eficácia e se faz
desnecessário. Paoli assinala, também, a possibilidade de pensar a
literatura produzida por escritores urbanos do norte da Itália, cujo
tema era o mundo arcaico dos camponeses do sul do país, como
heterogênea. Além disso, ele argumenta que, ao postular a concepção
do mundo indígena como impenetrável para os escritores indigenistas,
Cornejo Polar estaria contradizendo o que se dá de fato na história
dos homens: a diferença e a ininteligibilidade têm a ver com situações
históricas que se modificam com o tempo, o que faz com que o que era
ininteligível num dado momento do passado possa ser compreensível
a posteriori, afirma Paoli.
Partindo do esclarecimento que o seu campo de estudo é a
literatura e não as questões sociais, Cornejo Polar concorda com Paoli
que o escritor indigenista — que não é índio e produz a sua literatura
fora do sistema sociocultural indígena —, tem a possibilidade de
conhecer o mundo indígena, mas isso não significa que na sua prática
de escrita, ele possa expressá-lo “de dentro”, do interior. O conceito
de heterogeneidade é utilizado, justamente, para definir uma produção
literária complexa e plural, fruto da convergência conflitiva de pelo
menos dois universos socioculturais diferentes.
Cornejo salienta que a heterogeneidade é um conceito teórico
que abrange várias literaturas além da indigenista — aspecto que de
fato ele mesmo assinala em seus ensaios em relação ao negrismo, à
gauchesca e ao real maravilhoso entre outras —, mas as
particularidades que esse conceito adquire em cada uma dessas
expressões literárias só podem ser reconhecidas quando estudadas
em seus processos históricos específicos. A esse respeito, ao considerar
o indigenismo, o crítico peruano utiliza um duplo critério de
elucidação: por um lado, “o grau de assimilação dos interesses sociais
autênticos” dos índios (no oposto, o modo em que esses interesses são
apagados ou tergiversados); por outro lado, a assunção de certas
estruturas temático-formais indígenas e a sua eficácia produtiva no
discurso literário indigenista, como por exemplo, os recursos da

147
oralidade quíchua utilizados numa estrutura narrativa ocidental como
o romance (e no oposto, como essa forma ocidental rejeita tais
estruturas).
Além disso, o conceito de heterogeneidade permite fazer uma
leitura da literatura indigenista, que vai além das leituras tradicionais
centradas nos textos, ao levar em conta os processos sociais conflitivos
— os dois universos socioculturais — que estão envolvidos na sua
produção. Cornejo afirma:

“É interessante sublinhar, em todo caso, que a complexa


trama do indigenismo não se esgota na difícil vinculação
de duas culturas, pois abarca, ao mesmo tempo, a não
menos difícil ligação entre duas formações sociais tão
dissímiles que, por vezes, ao longo da história, fundam-
se em contrapostos modos econômicos de produção. A
categoria de heterogeneidade procura cobrir ambos os
campos, o cultural e o social. Por isso, é preferida à cate-
goria mais recortada de transculturação” (Cornejo, 2000,
p.194).

Manifestações da heterogeneidade
As Crônicas do Novo Mundo constituem, na perspectiva de
Cornejo Polar, as primeiras manifestações da heterogeneidade, das
quais decorre seu caráter fundador, pois nelas se inscrevem dois
universos em confronto. Por um lado, o produtor do texto se dirige a
um leitor europeu que ignora ou conhece muito mal a realidade
americana, por outro lado, esse mundo desconhecido e enigmático
tem que ser apresentado, de maneira inteligível, para o público receptor,
situação que leva os cronistas a compará-lo, permanentemente, com
as referências européias.
Cornejo Polar dedicou longos períodos de sua vida intelectual ao
estudo do indigenismo e, particularmente, do romance indigenista
por ser este um dos espaços privilegiados de manifestação da
heterogeneidade. Nas primeiras décadas do século XX houve uma
renovação dos códigos literários, através das criações das vanguardas

148
e do novo indigenismo, que muitas vezes atuaram de maneira
relacionada, dando lugar ao surgimento de um “novo sujeito produtor
de cultura” oriundo, em geral, das cidades provincianas e pertencente
à camada social média. Escritores como César Vallejo e José Carlos
Mariátegui se preocuparam em refletir no que estava envolvido no
uso de uma nova linguagem para que não fosse só uma casca ou um
mero artifício. Essa inquietação tinha, provavelmente, sua origem na
consciência do enorme atraso das sociedades andinas em contraste
com a modernização das formas artísticas proposta pelas vanguardas.
Cornejo salienta que grande parte do trabalho poético de Vallejo
consistiu no confronto de uma visão e de umas palavras
contemporâneas com “uma ordem referencial pouco menos que
primitiva”, e no uso de uma linguagem que “situa o antigo num
horizonte semântico que o transmuda sem o extraviar, em experiências
e em palavras pontualmente contemporâneas” (Cornejo, 1994, p.167).
Uma outra maneira de mudar a linguagem artística consistiu em
trazer o quotidiano à forma escrita. Os esforços de incluir nas narrações
formas que remetiam à oralidade, sobretudo, à fala das classes
populares, das camadas mais baixas da sociedade, inclusive do quíchua,
traduziam a necessidade de oralizar a escrita como tentativa de ampliar
a abrangência do literário. Contudo, tal projeto estava atravessado
pelas tensões produzidas, por um lado, pelo fato dessas narrativas
estarem afastadas das práticas comunicativas das massas representadas
através de suas próprias falas, já que o analfabetismo lhes impedia o
acesso à leitura; por outro lado, ao não saber escrever, essas camadas
eram escritas pelos intelectuais, que assumiam o papel de representantes
de algo que eles mesmos não eram. Porém, Cornejo Polar salienta que
tal perspectiva não anula a legitimidade ou condena a intencionalidade
do projeto dos vanguardistas e dos indigenistas, mas evidencia a
complexidade das relações entre a voz e a letra numa sociedade que,
nas primeiras décadas do século XX, estava conformada por uma
população, em sua maioria, analfabeta e bilíngüe.
Com efeito, para o crítico peruano, todos os indigenistas dessa
época, assim como alguns vanguardistas, reivindicavam, como uma

149
das estratégias para se opor às oligarquias, a origem indígena das nações
andinas que havia sido abafada, até então, pela minoria dominadora.
Colocaram em foco a questão indígena, ao mostrar que os índios
tiveram o triste papel histórico de serem a maioria da população e, ao
mesmo tempo, os mais marginalizados, designando os índios como a
origem e como o componente primordial da nacionalidade.
No ensaio intitulado O indigenismo andino, publicado em 1994,
Cornejo afirma:

“A definição do indigenismo como literatura heterogê-


nea aponta, principalmente, para a evidência de que se
trata de uma produção discursivo-imaginária sobrepos-
ta entre dois universos socioculturais diversos – e mes-
mo opostos e beligerantes, quando se incorpora o dado
histórico da conquista e a subseqüente dominação de um
deles sobre o outro. É óbvio que na América Latina o
indigenismo não é a única literatura heterogênea... As-
sim, deve ficar claro que se trata de uma categoria críti-
ca, de certo modo teórica, cujo uso tem de recorrer à
história para distinguir uma heterogeneidade de outra...”
(Cornejo, 2000, p.195)

Cornejo interessa-se pelos conflitos que transparecem nos


romances indigenistas, isto é, nos paradoxos que mostram que esses
conflitos não foram resolvidos pelos romancistas, muitas vezes, por
carecerem dos instrumentos apropriados.
Sendo seu objetivo contar a história da exploração dos índios, o
romance indigenista se construiu com base nos códigos realistas,
apresentando as histórias como fatos realmente acontecidos, que
narravam a situação de marginalidade e injustiça sofrida pelos índios.
Esse é um dos conflitos que marcaram o romance indigenista, pois se
ele tivesse acabado com a mera descrição da situação abjeta, não
apresentaria nenhuma solução às injustiças descritas, o que, de um
ponto de vista ético, os escritores não podiam aceitar. A solução estava
no abandono do código narrativo realista e na passagem para um final
alegórico no qual se vaticinava um tempo em que a rebelião dos índios

150
triunfaria. Esse final marca, também, outro paradoxo, que tem a ver
com a dificuldade do romance indigenista em imaginar os processos
que permitiriam a entrada na modernidade, pois se, por um lado, a
rebelião triunfal significava acabar com a opressão — em muitos casos
imaginada como a entrada à modernidade —, por outro lado, essa
rebelião apontava igualmente para o resgate do passado e a conservação
de uma ordem arcaica — às vezes com o perigo de cair em alguma
situação pior —, que o próprio romance condenava.
Os escritores indigenistas levaram adiante a defesa dos índios,
reivindicando-os enquanto origem da nação, como já foi assinalado,
tomaram a palavra em seu nome e se tornaram seus representantes.
Porém, essa reivindicação deixava de fora os que a proclamavam, pois
eles não eram índios, situação paradoxal que os colocava numa posição
subsidiária em relação à identidade nacional.

O sujeito migrante
A partir do estudo dos textos de José María de Arguedas e,
sobretudo, do romance Os rios profundos, no livro de ensaios Escribir
en el aire, publicado em 1994, Cornejo coloca em foco a construção do
discurso do migrante, fato que o leva a postular a emergência de um
novo sujeito como aprofundamento da categoria de heterogeneidade.
Trata-se de um sujeito mestiço, que tenta articular a sua dupla origem
para atingir um equilíbrio instável, e, por ser migrante, deve conviver
com o passado ancorado num espaço longínquo e num tempo arcaico,
e com o presente urbano marcado por um tempo fugidio, tempos
diversos, mas contemporâneos. Obrigado a falar, a partir de vários
lugares, o sujeito tece uma trama textual nos seus deslocamentos
realizados entre essas múltiplas possibilidades.
O narrador-protagonista, do romance de Arguedas citado, é um
sujeito mestiço que se sente índio, mas que pode escrever utilizando
um instrumento cultural moderno como é o romance, cujo referente
“obedece a outras normas socioculturais (...) signo de uma
modernidade desigual (...) que só pode produzir uma nova e inclusive
mais incisiva forma de heterogeneidade” (Cornejo, 1994, p. 211). A

151
narração escrita em espanhol é fragmentada pela presença de cartas,
que por sua vez remetem a outras cartas escritas em quíchua, que
aludem a canções cantadas nessa língua pelas índias e ouvidas no
passado submerso na memória. Tanto o sujeito quanto seu discurso
são plurais, oscilantes “no limiar de dois mundos, oral e escrito,
romance e canção, moderno e antigo, urbano e camponês, espanhol e
quíchua” (Cornejo, 1994, p. 213).
As múltiplas vozes e línguas que se deixam ouvir no romance
constrõem, seguindo o conceito bakhtiniano de polifonia, um espaço
textual em que as identidades fragmentadas se elaboram em termos
relacionais, muitas vezes conflitivos, e não se estabilizam numa posição
única, rejeitando a lógica dialética que aponta para uma síntese
superadora. O conceito do sujeito, que no discurso monolítico
sustentaria uma identidade forte e sem fissuras, entra em crise.
A partir da visão do mundo arguediana, que não tenta ser
totalizadora no sentido de conciliação dos conflitos, Cornejo Polar
elaborou, já na década de 80, o conceito de totalidade contraditória.
Trata-se de pôr em jogo uma pluralidade, inclusive contraditória, de
vozes em diálogo num espaço “que em si mesmo parece ou carece de
limites ou ser — inclusive no seu centro — só uma aberta, instável e
porosa borda” (Cornejo, 1994, p.218), que torna dispensável a
construção imaginária de uma nação homogênea, na qual as diferenças
são apagadas, numa operação de ocultamento da diversidade, em prol
de uma fictícia unidade nacional tranqüilizadora.
Alberto Moreiras, no seu livro A exaustão da diferença, destaca que
a idéia de Cornejo da necessidade de elaborar uma historiografia
literária latino-americana alicerçada no conceito de “´totalidade
contraditória´ superou todos os esforços historiográficos anteriores
pelo respeito demonstrado a todas as implicações da irredutibilidade
da diferença cultural e da heterogeneidade histórica do hemisfério”
(Moreiras, 2001, p. 77). Contudo, Moreiras afirma, de maneira
contundente, que a teoria da heterogeneidade da literatura latino-
americana “foi amplamente ignorada” pelos críticos que se
circunscreveram a utilizar as idéias da transculturação de Angel Rama,

152
numa versão simplificada, que se impôs como paradigma dominante.
Nesse sentido ele salienta que a transculturação aponta para a
conciliação dialética, o que implica que “deve funcionar e mesmo se
alimentar da rasura sistemática do que não cabe nele” (Moreiras, 2001,
p. 234).
A partir das análises apresentadas no livro Escribir en el aire, Mabel
Moraña sustenta que o campo conceitual, que abrangia, no começo, a
noção de heterogeneidade, que guia o desenvolvimento crítico dos
textos abordados, é ampliado ao não se limitar a postular só a
diversidade dos sistemas culturais, pelo fato de apresentarem algum
elemento diferencial nas instâncias de produção/recepção ou referente/
representação. É o conceito de “totalidade contraditória”, em
consonância com a idéia de “equilíbrio instável”, o que permite passar
de uma análise centrada nos produtos culturais a uma outra que
considera os processos envolvidos na produção cultural. Porém, a
crítica observa que o conceito de “totalidade contraditória” atua na
fronteira do paradoxo ao aludir o primeiro termo à vontade de
exaustão que caracterizou, nessa época, as perspectivas críticas
elaboradas por intelectuais como Losada, Rama, Osorio entre outros,
ao passo que o segundo termo apontaria para as lutas e tensões da
múltipla realidade latino-americana, assinalando “as linhas de fração
que terminariam pondo em crise a estratégia mesma de totalização”
(Mazzotti, 2000, p. 487).

Em relação com o pós-modernismo


Na introdução ao livro Escribir en el aire, Cornejo faz um balanço
do percurso realizado pela crítica literária latino-americana. A despeito
do fracasso do projeto dos anos 70 na elaboração de uma teoria literária
latino-americana, a historiografia literária e a crítica acharam, através
do impulso produzido por esse projeto, formas próprias para dar
conta das produções literárias marcadas pelo multiculturalismo.
Contudo, apesar da especificidade, que possa achar-se no pensamento
crítico, Cornejo destaca a coincidência que em determinado momento
existiu entre as idéias sustentadas pela crítica latino-americana e aquelas

153
do pós-estruturalismo e do pós-modernismo em relação com a crítica
do sujeito, a heterogeneidade discursiva, o questionamento sobre o
valor e legitimidade dos cânones. Porém, ao notar o uso que se faz nos
âmbitos intelectuais pós-modernos metropolitanos dos autores latino-
americanos, ele assinala, por um lado, o paradoxo de ler a literatura
latino-americana com o “cânone crítico de uma literatura que não
acredita nos cânones”, por outro lado, o caráter central que têm o
marginal e a periferia no pensamento pós-moderno, alertando para o
perigo de cair na armadilha de estetizar as injustiças pelo viés do
marginal.

Mestiçagem, transculturação e heterogeneidade


Em 1995, Cornejo Polar elaborou um documento de trabalho,
para ser discutido durante as Jornadas Andinas de Literatura
Latinoamericana (JALLA), realizadas na cidade de Tucumán,
Argentina, intitulado “Mestiçagem, transculturação, heterogeneidade”,
incluído em Asedios a la heterogeneidad cultural, livro publicado em 1996,
que reúne uma série de estudos realizados pelos alunos e discípulos
de Antonio Cornejo Polar, convocados pela Associação Internacional
de Peruanistas. Esses estudos, que dialogam com os conceitos e a
metodologia crítica construídos pelo crítico peruano, foram redigidos
como uma homenagem a seu prolífico trabalho docente que abrangia,
naquele momento, quase trinta e cinco anos.
Nesse documento, o crítico coloca uma série de questões como
tarefa a levar adiante pela crítica literária latino-americana nos debates
futuros, texto que, de alguma maneira, poderia ser lido na atualidade
como um intenso e breve balanço de suas convicções e interrogações
ao levar em conta que Cornejo morreu em 1997. Se a tarefa da teoria
crítica consiste em procurar instrumentos teórico-metodológicos, que
permitam construir e compreender o objeto chamado literatura, ao
considerar a literatura latino-americana perpassada pelas tensões em
conflito que surgem como produto de sua multiplicidade, Cornejo
Polar formula a hipótese de que talvez seja a conflitividade o objeto
que a crítica deve dar-se.

154
Três conceitos chaves — mestiçagem, transculturação e
heterogeneidade —, que articularam durante décadas o pensamento
crítico latino-americano, são confrontados mais para colocar
perguntas que para achar respostas.
Quais os fundamentos e os limites teóricos desses termos?
A categoria de mestiçagem, considerada por Cornejo como “o
mais poderoso e extenso recurso conceitual com que América Latina
se interpreta a si mesma” (Mazzotti, 1996, p.52) numa perspectiva
sociopolítica, respondia à necessidade de pensar um lugar de encontro
harmonioso entre as duas correntes culturais e raciais mais
importantes, que conformavam essa América após a descoberta: a
indígena e a hispânica, lugar de conciliação que legitimava, a priori, o
que era definido como a “identidade nacional” ou regional. Por sua
vez, como conceito definidor da especificidade da literatura latino-
americana — falava-se de “literatura mestiça” — ele careceu, segundo
a análise de Cornejo, de fundamentações teóricas sólidas.
Quanto à categoria de transculturação de Ortiz e Rama — de
grande poder hermenêutico —, Cornejo sugeria a necessidade de
avaliá-la como possível fundamento epistemológico do conceito de
mestiçagem e, caso a transculturação fosse a resolução conciliadora
das contradições socioculturais existentes entre os elementos em
contato, ele sustentava a exigência de pensar uma outra categoria para
as situações nas quais as diferenças socioculturais dos elementos que
entram em relação são enfatizadas e não há uma instância sincrética.
Nesse nível de não resolução, tem que se pensar o conceito de
hibridação, de García Canclini, que, sem negar a síntese, a desestabiliza
ao lhe conferir um caráter provisório.
Tanto a categoria da heterogeneidade, elaborada em relação à
literatura para elucidar os discursos nos quais uma das instâncias
produtoras tem uma origem sociocultural ou étnica diferente, quanto
o caráter do histórico, que aponta para o fato que temporalidades
diferentes coexistem fragmentando a linearidade da história, deviam
ser problematizados em confronto com o conceito de “literatura
alternativa” proposto por Martin Lienhard.

155
Uma última sugestão para o debate tem a ver com a abrangência
do conceito de “literatura nacional” que, no caso andino, deveria
considerar, também, as literaturas em línguas quíchua ou aimará, o
que leva a definir o objeto como singular ou plural, e a pensar as
relações que se dão entre essas literaturas. Cornejo, convencido que
nunca se chega a definições absolutas, considerava que a sua hipótese
de “totalidade contraditória”, elaborada para tentar entender a
situação de coexistência de múltiplas literaturas em inter-relação, devia
ser estudada para poder dar conta de seu funcionamento, pois, naquele
momento, ele ainda o ignorava.

Olhares sobre o conceito de heterogeneidade


Para Raúl Bueno, co-responsável da publicação da Revista de
Crítica Literária Latinoamericana, fundada por Cornejo Polar, em
1976, o potencial hermenêutico do conceito de heterogeneidade, em
relação com outros conceitos que arquitetam os estudos literários na
América Latina, se baseia no fato de ser, por um lado, um conceito
ancorado não só nos processos culturais, mas, também, histórico-
sociais, por outro lado não se trata de mostrar a variedade de elementos
que compõem as diversas realidades em contato, mas de abordá-los a
partir das diferenças que os constituem.
Partindo da “heterogeneidade básica” como condição essencial
da América Latina, que funciona como um a priori epistemológico e
como uma categoria de análise para Cornejo Polar, Bueno apresenta
sua própria análise das diferenças existentes entre os conceitos de
heterogeneidade, transculturação e mestiçagem, partindo da oposição:
processo/resultado. Assim, ele considera a transculturação como um
processo cultural de passagem de conteúdos culturais de uma cultura
para outra, sem pensar, necessariamente, o deslocamento como perda.
A respeito dos outros dois conceitos, Bueno os define como “os
resultados polares da transculturação”, salientando que “resultado”,
em nenhum caso, significa algo inerte, ao contrário, trata-se de “um
conjunto dinâmico de distintos processos secundários controlados pela
mesma polaridade” (Mazzotti, 1996, p. 29). Na mestiçagem cultural

156
existe a tendência a um apagamento das diferenças no intuito de
estabelecer uma continuidade que visa, como alvo final, a
homogeneidade. Por sua vez, a noção de heterogeneidade — chamada
de secundária para diferenciá-la da básica —, define-se pela ratificação
das diferenças dos elementos em contato, fato que afirma a
descontinuidade na qual se lêem as fissuras culturais. Estabelecidas
essas relações, ele propõe, então, a transculturação como um
“operador de mestiçagem ou de heterogeneidade”.
Bueno salienta o caráter ético da proposta de Cornejo Polar ao
não ficar num plano meramente cognoscitivo das diferenças. A ênfase
colocada na diversidade, na afirmação e na defesa das diferenças, que
estão na base das produções literárias heterogêneas, não significa, para
Cornejo, a aceitação das desigualdades e das situações de exploração,
muito pelo contrário, a aposta intelectual de crítico peruano implica,
também, o compromisso político de lutar contra as múltiplas formas
de opressão, uma das quais tem a ver com a visão unificadora, que,
desde o literário, impõe um padrão universal de compreensão do
objeto literário.

Heterogeneidade literária e transculturação


na leitura de Friedhelm Schmidt
Salienta Schmidt que Rama, ao considerar que a literatura latino-
americana apresenta uma unidade, produto da homogeneização
provocada pela dependência cultural, estabelece um só sistema literário
para a América Latina, ponto central de diferenciação com a posição
de Cornejo, que afirma a existência de uma pluralidade de sistemas
literários no interior de cada país, colocando o acento no caráter plural.
Olhando para o termo de transculturação, Schmidt faz questão
de sublinhar uma divergência no uso do conceito de transculturação
que fazem Fernando Ortiz, que cunhou a palavra, e Angel Rama. Ortiz
assinala as transformações que a cultura dominante experimenta pela
influência das culturas dominadas, ao passo que Angel Roma se detém
na análise da dependência cultural na perspectiva dos processos que
provocam as mudanças das culturas dominadas. Contudo, Schmidt

157
lembra que, nas postulações de Rama, as culturas dominadas
correspondem à literatura culta modernizada, situação que o leva a
deixar de lado as produções de importantes setores marginalizados.
Ao contrário, na conceituação de Cornejo Polar “os sistemas
subordinados não cultos (a literatura popular e as literaturas em
línguas nativas) são considerados produtores de seus próprios
significados, que não são meras variantes do sistema hegemônico”
(Mazzotti, 1996, p. 42).
Apesar das contradições assinaladas entre as teorias, é preciso
considerar que podem existir processos de transculturação nas
literaturas latino-americanas, mas que eles não podem apagar os
sistemas “não cultos”, nem representar a conciliação “das contradições
internas das literaturas heterogêneas”.

A heterogeneidade na globalização
Hugo Achugar, no ensaio “Repensando la heterogeneidad
latinoamericana (a propósito de lugares, paisajes y territorios”,
concorda com a idéia de que a heterogeneidade é um dos conceitos
fulcrais com que se pensou a cultura latino-americana no último
quartel do século XX. Porém, Achugar se pergunta sobre a pertinência
de conceber a heterogeneidade como um fenômeno cultural exclusivo
da América Latina - segundo as considerações elaboradas por Cornejo
Polar –, sobretudo, se for analisado em relação à globalização. Por um
lado, a globalização pressupõe, como estratégia necessária ao centro,
a elaboração de seu discurso a partir de uma representação universal
“tanto das sociedades periféricas quanto dos sujeitos subalternos, mas
esse simulacro de homogeneidade (...) não consegue apagar a
complexa heterogeneidade do mundo real” (Achugar, 1996, p. 854)
Por outro lado, na atualidade, as categorias de centro/periferia
são questionadas, desde múltiplos lugares, por serem consideradas
como conceitos insuficientes para dar conta do funcionamento do
espacio social contemporâneo.
Achugar sugere que, à luz dessas novas perspectivas, a relação
entre homogeneidade e heterogeneidade tem que ser analisada desde

158
dentro como desde fora dos conceitos centro/periferia, global/local,
pois o que parece estar em tensão é a idéia do próprio como exclusivo
e específico em relação com o alheio e o geral. E afirma de maneira
contundente:

temos nos deslizado da descrição de um traço dominan-


te da cultura latino-americana, como é a sua
heterogeneidade, à postulação desse traço como especí-
fico e da especificidade à exclusividade (Achugar, 1996,
p. 857).

Para abrir o leque das reflexões, Achugar lembra que Fernando


Ortiz diferenciava a transculturação cubana dos processos similares
europeus, desde uma perspectiva temporal, pois o que se deu em
milênios na Europa aconteceu em quatro séculos em Cuba. É numa
perspectiva temporal que talvez tenha que ser pensada a exclusividade
da heterogeneidade latino-americana.

A dimensão teórica
Apesar de Cornejo Polar ter enfatizado que limitava suas reflexões
à dimensão crítica, ao percorrer seus ensaios, constata-se que existe
neles uma produção teórica em diálogo permanente com as
problemáticas epistemológicas discutidas nas ciências sociais e na
antropologia. Em relação a esse tema, Mabel Moraña considera que a
obra de Cornejo (centrada, mas não reduzida ao conceito de
heterogeneidade) pode ser considerada como uma “Teoria do
conflito”, pois ela aborda a “natureza problemática da mediação
letrada e das operações de apropriação cultural e ideológica”, que
fundamentam os processos de produção simbólica na América Latina,
assim como explora os antagonismos sociais e culturais que tensionam
as sociedades andinas.
Numa penetrante avaliação, Moraña afirma

Partindo da problematização da mediação letrada, a obra


de Cornejo se aplica sobretudo à elaboração do outro,

159
em contrapartida dos essencialismos identitários, de cu-
nho romântico-idealista, e das reclamações de todo
universalismo que pretenda apagar a especificidade his-
tórica, cultural e política da América Latina (...) Mas a
ênfase de sua crítica é colocada, principalmente na
permeabilidade, tensões e negociações que tornam pos-
sível essa representação de um outro que é definido como
essencialmente diverso (Moraña, 2000, p.226).

A heterogeneidade e o compromisso
intelectual de Cornejo Polar
Não podemos terminar este percurso sobre o conceito de
heterogeneidade sem salientar que ele não foi, simplesmente, uma
noção teórico-prática que permitiu a Cornejo trabalhar com textos
literários, pois, em última análise, tratava-se de um conceito que se
integrava com seu profundo compromisso ético com o homem e com
seu tempo.
Antonio Candido, ao escrever uma palavra em homenagem a
Cornejo Polar, evoca a consciência continental que tinha o crítico
peruano a tal ponto que, no projeto de pesquisa, que levava adiante,
sobre literatura do mundo andino e sobre a literatura latino-americana
em geral, ele incorporou a cultura e a literatura brasileiras, pois estava
convencido da necessidade do conhecimento e do intercâmbio
interamericano. Avaliando o peso intelectual de Cornejo Polar,
afirmava que a sua acuidade crítica lhe permitia tanto trabalhar no
plano prático das análises, quanto transpor as verificações no plano
conceitual, possibilitando-lhe ter “algumas das posições mais lúcidas
para o estudo de nossas literaturas”.
Por sua vez, Mabel Moraña salienta que Cornejo Polar, ao
desmontar o discurso da harmonia — imposta entre outras pela
ideologia da mestiçagem —, leva-nos a captar as tensões internas e
contraditórias da América Latina. Liberado das periodizações da
historiografia literária, assim como das restrições impostas pela
literatura canônica, Cornejo recolhe os discursos subterrâneos “que
interpelam e em muitos casos nutrem a produção canônica”, o que
possibilita a recuperação dos pequenos relatos históricos, culturais e

160
literários, que são os que “realmente importa resgatar”, e que
permitem construir uma historicidade alternativa, longe das
conceituações totalizantes.

Referências Bibliográficas
ACHUGAR, Hugo. “Repensando la heterogeneidad latinoamericana (a propósito de
lugares, paisajes y territorios”. In: Revista Iberoamericana. Crítica cultural y teoría literaria
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MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença. A política dos estudos culturais latino-
americanos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

161
HÍBRIDO, HIBRIDISMO E HIBRIDIZAÇÃO

Stelamaris Coser
Universidade Federal do Espírito Santo

Pareço Cabo-verdiana
pareço Antilhana
pareço Martiniquenha
pareço Jamaicana
pareço Brasileira
pareço Capixaba
pareço Baiana
pareço Carioca
pareço Americana
Elisa Lucinda*

que preto, que branco, que índio o quê


que branco, que preto, que índio o quê
que índio, que preto, que branco o quê
somos o que somos, inclassificáveis.
Arnaldo Antunes**

A cultura tem sido insistentemente associada ao fenômeno


sociodemográfico das migrações e deslocamentos desde as últimas
décadas do século XX, momento em que as preocupações da crítica
cultural se voltam com freqüência para as possíveis implicações de
*
Elisa Lucinda, Constatação. In Euteamo e suas estréias. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 86.
**
Arnaldo Antunes. Inclassificáveis. In: O Silêncio, BMG Brasil, 1996. CD.
múltiplos movimentos migratórios dentro de um mesmo país, através
de fronteiras nacionais e/ou entre continentes. Quais as conseqüências
desses deslocamentos para os países do primeiro mundo, habituados
a catalogar separadamente as categorias raciais e étnicas (os Estados
Unidos, por exemplo) ou tradicionalmente considerados brancos e
homogêneos, como a Inglaterra? Que acontece com a cultura de países
do “terceiro mundo” quando, intensificado o trânsito internacional, a
desterritorialização se torna um fenômeno de massa? Como entender
os câmbios e conflitos entre povos opressores e oprimidos,
colonizadores e colonizados? Será possível e desejável escapar aos
tradicionais binarismos culturais para subverter hierarquias?
Tais questões são multifacetadas e controversas, já que o estado
nômade e marginal pode ser hoje a opção natural de intelectuais
cobiçados por grandes universidades metropolitanas, mas as pessoas
comuns se vêem desprotegidas e desesperadas na condição de
despatriamento. Uma multidão de emigrantes pobres tem sido
deslocada à força pela globalização, segundo dados da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), grupo integrante da Organização
das Nações Unidas (ONU).1 Em meio a tais estímulos e pressões, os
estudos da cultura vêm buscando estratégias para adequar-se aos
desafios apresentados pela interculturalidade e multipolaridade da
era pós-moderna e pela necessidade de repensar definições de
comunidade e nação. Dentre os novos conceitos e abordagens
difundidos nos países de língua inglesa, ressalta a valorização da idéia
de híbrido e dos processos de hibridação ou hibridismo em substituição
a teorias monolíticas e categorias antigas, (supostamente) uniformes e
estanques.
Para brasileiros e latino-americanos de um modo geral, o conceito
de híbrido remete à longa história de mestiçagem e sincretismo que
caracteriza tanto os mitos e ideais nacionais quanto suas mais

1 A Gazeta, Vitória, “Globalização faz crescer a emigração”. 03 mar. 2000, p. 14. A matéria
(Londres, AE-AP) indica que cerca de 130 milhões de pessoas estão trabalhando como
imigrantes em todo o mundo. Já em outubro de 2002, a ONU divulgou que 175 milhões de
pessoas vivem hoje fora de seus países de origem, sendo a Europa o maior receptor desses
imigrantes. Cf. Globo News/NET, 29 out. 2002.

164
profundas divisões e desigualdades. Cabe então perguntar até que
ponto a retomada contemporânea do conceito de hibridismo não
contribui para a fragmentação e apropriação de culturas subalternas
e para a diluição discursiva da violência e da dominação. Independente
do ângulo em que seja usado ou interpretado, o termo é sem dúvida
carregado de ambigüidade e polêmica e merece ser pensado no amplo
contexto de suas manifestações.
A princípio, o hibridismo nos reporta à biologia e à preocupação
com a mistura das espécies que aflora em pesquisas e escritos europeus
(e eurocêntricos) do século XIX. A primeira definição de híbrido
proposta pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001, p. 1526)
aponta para o conteúdo negativo do termo: “animal ger. estéril,
formado pelo cruzamento de progenitores de espécies diferentes;
bastardo” (e.g. burro e mula). Até mesmo a etimologia truncada da
palavra vai absorver conotações desfavoráveis adicionais, como explica
o dicionário:

A grafia mais usual hybrida (encontrada nos manuscritos


de Horácio, Valério Máximo e em inscrições) foi influ-
enciada prov. por uma falsa aproximação literária com o
gr. húbris, eos ‘tudo que excede a medida, excesso, impe-
tuosidade’ e húbrisma,atos ‘ultraje, violência’ .

Ao traçar paralelos com espécies híbridas de animais estéreis e


plantas debilitadas, a ciência européia divulgou o princípio de que a
miscigenação seria danosa para a espécie humana. Cientistas
enfatizaram que o cruzamento de raças diferentes resultaria não tanto
em infertilidade mas, principalmente, na decomposição ou degradação
dos descendentes híbridos, considerados por Robert Knox (apud
Palmer, 2001) “uma monstruosidade da natureza”. Entretanto, a
ciência acabaria constatando que as espécies híbridas da botânica
mostravam maior vigor e resistência do que as espécies puras que lhes
deram origem; apenas perderiam força à medida que sucessivos
cruzamentos tornassem a espécie novamente homogênea (Stross,
1999). Mesmo assim, na visão que predominou no século XIX nos
Estados Unidos e em outras partes do continente americano, a mistura

165
racial e étnica se manteve como algo distante e perigoso, indicativo da
degeneração das espécies.
Apesar da propaganda racista, a América branca foi obrigada a
encontrar formas de lidar com a inevitável aproximação entre raças.
No século XX, a sociologia e a história norte-americanas debruçaram-
se sobre o binômio preto e branco sob a nova influência de Franz
Boas, também professor e inspirador de Gilberto Freyre.
Principalmente na primeira metade do século, cientistas sociais dos
Estados Unidos voltaram-se para o contraponto brasileiro e sua
propalada democracia racial na esperança de entender e amenizar as
crescentes dificuldades de convivência pacífica em seu país. Os escritos
de Donald Pierson (1942), Robert E. Park (1942;1950) e Stanley Elkins
(1959), por exemplo, insistiam no contraste Brasil-Estados Unidos e
idealizavam a realidade brasileira. Mais adiante, o livro hibridamente
intitulado Nem preto nem branco, do historiador Carl Degler (1971), foi
premiado por seu estudo comparativo das relações raciais Brasil-
Estados Unidos, com a tese de que o menor grau de conflito brasileiro
se devia à maior flexibilidade da posição do mulato na hierarquia social
e racial do país.
A tradução para o português de um poema escrito pelo escritor
negro norte- americano Langston Hughes (1902-1967) transporta as
considerações comparativas sobre o híbrido para o âmbito da
literatura. No original inglês, sob o título “Cross” — que, como
substantivo, pode significar cruzamento, encruzilhada e cruz — o
narrador fala de sua condição de mulato, filho de mãe negra e pobre
e de pai branco e rico. Se antes houvera rejeição e revolta contra os
pais, a maturidade traz agora o desejo de reconciliação com a memória
dos pais e a reflexão sobre a própria identidade híbrida num universo
de classes sociais rigidamente separadas por raça e cor. O texto parece
mesclar o lamento do blues com a ironia do rap no final. Seu elemento
crucial (sem intenção de trocadilho) está exatamente no título. Ao
verter o monólogo para a língua portuguesa, Oswaldino Marques
prefere (talvez) abrandar e conferir maior ambigüidade à dor,
antecipando discussões culturais contemporâneas ao denominá-lo,
simplesmente, “Híbrido” (Hughes, p. 142-143).]

166
Cross Híbrido

“My old man’s a white old man “Meu velho pai era branco,
And my old mother’s black. Minha velha mãe era preta;
If ever I cursed my white old man Se algum dia roguei praga ao meuvelho pai
I take my curses back. Bato agora na boca, arrependido.

If ever I cursed my black old mother Se alguma vez esconjurei minha velha mãe
And wished she were in hell, E cheguei a querer que ela fosse para o inferno,
I’m sorry for that evil wish Agora me penitencio desses maus pensamentos
And now I wish her well. E desejo ardentemente
Que tudo lhe corra bem.

My old man died in a fine big house. Meu pai morreu numa casa grande e bela,
My ma died in a shack. Minha mãezinha numa miserável choupana;
I wonder where I’m gonna die, Quem me dirá onde vou acabar os meus dias,
Being neither white nor black”. Não sendo branco nem preto”.

A associação de tema, linguagem e musicalidade negras costuma


caracterizar a obra de Langston Hughes, onde denúncia e drama
podem revestir-se de humor e leveza.2 No poema, a dor está sugerida
diretamente no título que sobrepõe e equipara o sofrimento de Cristo
com a miscigenação e a encruzilhada. O ponto onde diversos caminhos
se cruzam é duplamente significativo por evocar tanto o local de rituais
africanos quanto o momento de escolha e dúvida (“I wonder”),
acrescido aqui da sugestão irônica de que não existe direito à escolha
para o negro que fala. A cruz cristã também se bifurca ironicamente
já que lembra tanto a dor do Cristo quanto a ameaça de cruzes
incendiárias da Ku Klux Klan. “Cross” remete, por fim, à agonia dos
mulatos claros que passavam por brancos (ou cruzavam a rígida linha
de fronteira racial), escapando à rigidez da classificação racial de
períodos da história dos Estados Unidos. Tornavam-se párias, sem
identidade e sem uma comunidade à qual pertencer ou, como diz o
poema, sem ter onde morrer.

2 Comentários sobre a forma e a linguagem da adaptação do poema, feita por Marques, serão
omitidos por não parecerem pertinentes ao conceito em discussão no momento.

167
O sistema birracial dos Estados Unidos sempre rejeitou formas
de classificação para pessoas de origem dupla ou múltipla (mixed race),
impedindo o reconhecimento de “identidades raciais mistas” (Zack,
1993, p.4). Toda essa carga histórica e cultural é evocada no título do
poema de Hughes. Ao verter o texto para a língua portuguesa, o
tradutor transporta-o também para uma cultura conhecida pela
variedade de cores morenas e mulatas do povo e, segundo inúmeros
estudos sociológicos, pela multiplicidade de termos que permitem
escapar ao binarismo racial. Mesmo sob o novo título, aparentemente
mais brando e com menor carga simbólica, fica latente a violência sexual
contra a mulher negra e a carga de sofrimento e conflito que
historicamente formaram o híbrido.
Por outro lado, a adaptação brasileira do poema faz lembrar ao
leitor o interesse sociológico pela híbrida solução brasileira para resolver
o torturante dilema americano,3 ou o desejo de escapar à previsão feita
por Tocqueville ao visitar os Estados Unidos na primeira metade do
século XIX. A seu ver, a harmonia racial seria muito mais rara e difícil
naquele país do que em qualquer outra nação do mundo (apud Degler,
1971, p.258). A segunda edição da tradução de Casa Grande e Senzala
em 1966 nos Estados Unidos contribuiria para difundir as idéias de
Gilberto Freyre sobre o contraste entre o Brasil e a América inglesa,
que, segundo reafirmava Freyre, cultuava a uniformidade e abominava
a diferença
Estudos comparativos das diferentes percepções de raça, cor e
classe multiplicaram-se ao longo das décadas seguintes, mas o elogio
do sincrético e do híbrido foi gradativamente perdendo força. Com a
persistência da desigualdade e da discriminação no Brasil, a falência
das propostas assimilacionistas nos Estados Unidos e a crescente
afirmação da diferença por parte dos afro-descendentes, o arco-íris
da população brasileira passou a ser interpretado como forma de
mascaramento da desigualdade social e racial e perpetuação do poder
da hegemonia branca (e.g. por Skidmore, 1974).

3 Título do famoso livro de Gunnar Myrdal sobre as relações raciais.

168
Enquanto isso, a dicotomia racial dentro dos Estados Unidos foi-
se tornando impraticável à medida que seu suporte legal era
questionado e demolido e o influxo de novos grupos imigrantes
acrescentava tons e misturas ao país. Assim, a população latina
(originária ou descendente de imigrantes da América Latina),
caribenha (das ilhas do Caribe espanhol, francês ou inglês) e asiática
(proveniente de muitos países e culturas) crescia em números,
visibilidade e influência.4 Enquanto anteriormente predominavam os
estrangeiros europeus, nas últimas décadas do século XX a maioria
deles era proveniente da Ásia e da América Latina. Uma inevitável
transformação cultural é resultante da entrada, circulação e crescente
poder dessa multiplicidade de vozes, visões e estilos que renovam e
modificam a face da nação. A classificação demográfica complica-se
cada vez mais já que os novos grupos e os sucessivos cruzamentos
escapam ao enquadramento numa das cinco categorias até
recentemente adotadas nos formulários do Censo e das instituições
norte-americanas: White; Black; Asian or Pacific Islander; American Indian
or Alaskan Native; Hispanic (branco; preto; asiático ou proveniente de
ilhas do Pacífico; índio americano ou nativo do Alaska; hispânico).5
O grande influxo de imigrantes não implica, porém, em mudança
radical da sociedade. Na última década do século XX, por exemplo,
“a homogeneidade racial e a segregação são comuns” em Los Angeles,
onde ainda persistem os enclaves étnicos nos locais de residência e
trabalho (Booth, 1998, p. 8). Segundo Naomi Zack (1993), os Estados
Unidos não possuem uma tradição legal, histórica ou cultural para
apoiar pessoas de raça mista; não há associações positivas nem
comunidades permanentes onde elas se abriguem. Mesmo assim, a

4 Mesmo nas regiões tradicionalmente brancas o fenômeno se espalhou. Na rede de escolas


públicas da cidade de Minneapolis, estado de Minnesota, Estados Unidos, por exemplo, no
ano escolar de 1987-88,45% dos alunos foram classificados como minorias: negros, índios,
hispânicos ou do sudeste asiático. Muitos eram imigrantes; mais de 40 línguas eram faladas
pela população escolar, além do inglês (Annual Report, p. 9). Nos Estados Unidos como um
todo, o censo mostrava em 1994 que um entre cada dez habitantes havia nascido no estrangeiro
(Booth, p. 7).
5 O Censo de 2000, nos Estados Unidos, afinal introduziu, em seus formulários, a possibilidade
individual de marcar mais de uma opção racial ou étnica, utilizando-se do sistema Check All
That Apply, ou CATA (Funderburg, p. 48).

169
forma de pensar o país vem obrigatoriamente mudando. Vinte anos
atrás, o antropólogo Victor Turner (1982; apud Kapchan, 1999, p.
240, tradução livre) já observava que “aquilo que fora considerado
contaminado, promíscuo ou impuro” e, conseqüentemente, relegado a
plano inferior, estava se tornando “foco de atenção analítica pós-
moderna”. O universo intelectual e acadêmico dos Estados Unidos e
da Inglaterra vai refletir em sua própria composição, nos currículos
de cursos, pesquisas e publicações, a presença marcante dos novos
imigrantes e dos contínuos cruzamentos étnicos e raciais. Em conjunto
com a visível mudança demográfica e as culturas daí advindas, interesses
e abordagens de novas produções intelectuais e acadêmicas são
coloridas pela experiência vivida ou herdada e um crescente
reconhecimento de misturas culturais, despatriamento e nomadismo.6
A idéia de hibridismo desenvolvida pela biologia vai aos poucos
migrando para outros campos. Os estudos lingüísticos a tomaram
emprestada para abordar as misturas entre uma língua européia e
outra língua nativa ou africana que resultaram nas línguas crioulas.
Estas “se tornaram línguas maternas de certas comunidades
socioculturais” como, por exemplo, no Haiti e na Jamaica (Houaiss,
2001, p. 871). Mais recentemente, o conceito foi popularizado na área
comercial e industrial, podendo referir-se a tipos de música, aparelhos
ou soluções tecnológicas. Carros híbridos podem hoje ser movidos a
gasolina e eletricidade ou ter sistemas combinados. No mundo da
tecnologia, os equipamentos híbridos atualmente produzidos pela
indústria de monitores, por exemplo, são “aqueles que unem várias
funções em um só aparelho” (Gonçalves, 2001, p.2). A apropriação
do conceito vem ocorrendo também na crítica cultural, principalmente
para descrever novas culturas criadas em regiões de intensa mistura
e/ou espaços de fronteira. A analogia não é perfeita, já que os genes

6 É interessante notar a mudança gradual em publicações nas áreas dos estudos étnicos e
raciais nos Estados Unidos. O catálogo de lançamentos da Temple University Press (primavera
2002), por exemplo, mantém as sub-áreas separadas (tais como estudos Chicanos, African-
American, Native-American, etc.) mas inclui diversos títulos abordando cruzamentos raciais e
culturais, e.g. VALDES et al. (eds.) Crossroads, directions, and a new critical race theory; DANIEL,
More than black? Multiracial identity and the new racial order; WONG, The sum of our parts:
Mixed-heritage Asian Americans; ROOT, Love’s revolution: Interracial marriage.

170
envolvidos num cruzamento biológico só produzirão duas alternativas
possíveis, com um número limitado de cromossomas. Formas culturais
híbridas, por sua vez, adaptam-se com mais rapidez a contextos novos
e podem apresentar uma infindável combinação de traços e
características (Stross, 1999).
A produção crítica, artística e literária resultante dos cruzamentos
étnicos, raciais e culturais ocorridos nas últimas décadas vem
contaminando a academia e a cultura de modo geral e provocando
dissonância e polêmica. A discussão da idéia de híbrido, do impuro e
do transcultural é atualmente elaborada por pensadores e correntes
que por vezes se misturam, hibridamente, mas conservam
especificidades e podem também abrigar profundas discordâncias.
Inspirado no trabalho precursor de Mikhail Bakhtin, o conceito surge
com insistência na crítica pós-colonial, principalmente com Homi
Bhabha, cujo texto dialoga e/ou colide com as leituras da questão
colonial feitas por Edward Said, Aijaz Ahmad, Chandra T. Mohanty,
Benita Parry, Abdul JanMohamed e Robert Young, entre outros. A
idéia de hibridismo passa também pela interdisciplinaridade e
transculturalidade dos Estudos Culturais inicialmente elaborados a
partir da Inglaterra por professores ligados ao Caribe inglês, como
Stuart Hall e Paul Gilroy. Ocupa lugar central no trabalho de
pesquisadores da América Latina, da fronteira México-Estados Unidos
e das comunidades latinas nos Estados Unidos, eles próprios muitas
vezes integrantes da invasão latina que vem provocando uma reviravolta
demográfica nos Estados Unidos. Ressalta nesse contexto a obra do
latino-americano Nestor García Canclini, freqüentemente citado e
discutido por críticos diversos, como por exemplo os latinos Guillermo
Gómez-Peña e Alberto Moreiras. No Brasil, diversas pesquisas
elaboram o tema, podendo-se destacar os estudos sobre a hibridação
na literatura das Américas, com ênfase no Quebec e nas Antilhas
francesas, editadas por Zilá Bernd. Nessa mistura híbrida
marcadamente americana, de uma ponta a outra do continente
encontram-se herdeiros de séculos de produção histórica, teórica e
literária sobre o tema.

171
Embora intercambiadas, dispersas no universo acadêmico e
associadas a outras abordagens críticas, essas redes se distinguem pelas
origens nacionais e as marcas étnicas de alguns de seus principais
expoentes, além de algumas preocupações específicas. Assemelham-
se, no entanto, ao enfatizar as culturas do periférico, colonizado e/ou
subalterno e as diversas maneiras como elas mesclam, influenciam e/
ou parodiam a cultura hegemônica central, ao mesmo tempo em que
são transformadas por ela. Os exemplos que se seguem elaboram o
conceito de híbrido e mostram algumas das maneiras como ele surge
na crítica cultural contemporânea divulgada principalmente pelos
Estados Unidos e Inglaterra.
Um dos fundadores e ex-diretor do Centro de Estudos Culturais
Contemporâneos da Universidade de Birmingham na Inglaterra,
Stuart Hall (2001, p. 39, 92) tem contribuído para difundir a idéia de
que a construção de identidades na pós-modernidade é um processo
inevitavelmente em andamento, impuro e híbrido. Argumentando na
contra-corrente de tentativas essencialistas que querem preservar a
ilusão de sujeitos, etnias, raças, locais e nações “purificadas”, unificadas
e coesas, Hall (2003) associa-se a Homi Bhabha (e Jacques Derrida) ao
ressaltar ambivalência e antagonismo em qualquer ato de significação
nos processos de transformação cultural. Hibridismo se refere não a
um sujeito híbrido, formado e assumido como tal, mas ao angustiante
processo de tradução cultural. Sem glorificar nem crucificar a
globalização, Hall (2001 e 2003) aponta os movimentos complexos,
contraditórios e desestabilizadores entre tradição e tradução que atuam
na “produção de novas identidades” em condições diaspóricas. Como
ele enfatiza (2003, p. 83), “as comunidades migrantes trazem as marcas
da diáspora, da “hibridização” e da différance em sua própria
constituição” (ênfase do autor).
Com uma pesquisa sociológica apoiada em vertentes semelhantes,
Paul Gilroy interroga a experiência contraditória de ser europeu e
negro. Voltando-se para a longa história dos cruzamentos raciais na
diáspora africana, Gilroy estuda o Oceano Atlântico como um espaço
histórico-geográfico “intercultural e transnacional” onde culturas

172
negras vêm se mesclando através dos séculos. Seu livro The black Atlantic
(1993, p. XI, tradução livre) trata do “inevitável hibridismo e
cruzamento de idéias” decorrente daquela mescla e pretende
evidenciar “a instabilidade e a mutabilidade das identidades, que são
sempre incompletas, eternamente sendo refeitas”. A partir da
experiência dos negros na Inglaterra, a intenção de Gilroy é demolir
“a trágica popularidade das idéias sobre integridade e pureza das
culturas” e repudiar “a perigosa obsessão com a pureza racial” que
contamina tanto brancos como negros. Gilroy (1993, p. 7, 223) defende
a recuperação e o fortalecimento das culturas da diáspora negra e o
reconhecimento do “inescapável e legítimo valor da mutação, do
hibridismo e das inter-misturas”. Embora produzidos na Inglaterra,
os estudos culturais de Hall e Gilroy voltam-se freqüentemente para
as populações e produções culturais das Américas, enfatizando seu
caráter híbrido e provocando inevitável polêmica onde as linhas
divisórias ainda são norma.
Nas últimas décadas do século vinte, Homi Bhabha provou ser
um dos maiores responsáveis pela divulgação do conceito de híbrido
na comunidade acadêmica de língua inglesa. Partindo de Bakhtin,
Freud, Lacan, Derrida e Foucault para analisar o jogo de poder e o
encontro entre colonizador e colonizado, Bhabha abandona a visão
da sociedade e da cultura entrincheirada em dicotomias e posições
antagônicas para defender um terceiro espaço ambivalente e fluido onde
identidades e relações seriam construídas. Busca o termo híbrido em
Mikhail Bakhtin, que o aplica à análise da linguagem no romance.
Para Bakhtin, hibridação vem a ser a mistura ou encontro de duas
linguagens sociais diversas dentro do mesmo enunciado. Pode ser
usada intencionalmente numa forma artística como o romance, cujo
terreno discursivo mostraria uma duplicidade de vozes, sotaques,
linguagens, consciências e épocas que ali colidem, negociam e
proliferam (Bakhtin, 1981, p. 358-60).7 Bhabha prefere utilizar o

7 Bhabha explicita sua ligação com Bakhtin (1996, p. 58) . Por sua vez, Nelson H. Vieira
(1998) destaca a colisão entre formas contrastantes como o fator essencial no híbrido descrito
por Bakhtin, em A imaginação dialógica.

173
conceito para identificar a estratégia ou discurso de negociação em
condições de desigualdade e antagonismo político. Segundo ele (1996,
p. 58-60), abre-se aí um espaço para o subalterno que não envolve
nem assimilação, nem colaboração, nem antagonismo aberto. Tal
“experiência intersticial” abre possibilidades para que os grupos
minoritários construam suas “visões de comunidade” e apresentem
suas próprias versões de “memória histórica”. Assim, o “terceiro
espaço”

é capaz de abrir o caminho à conceitualização de uma


cultura internacional, baseada não no exotismo ou na
diversidade de culturas, mas na inscrição do hibridismo
da cultura. Para esse fim deveríamos lembrar que é o
“inter” — o fio cortante da tradução e da negociação, o
entre-lugar — que carrega o fardo da significação da cul-
tura (Bhabha, 1998, p. 69).

Ao apontar a relação de ambivalência entre o dominador/


estrangeiro e o subalterno/ colonizado, com a decorrente disseminação
do poder, Bhabha diverge de Edward Said e outros críticos culturais
que insistem na impossibilidade de um poder colonial ambíguo.
Bhabha (1986, p. 158) se reconhece devedor e admirador de Said mas
considera a idéia de que “o poder e o discurso colonial sejam possuídos
exclusivamente pelo colonizador (...) uma simplificação teórica e
histórica” (tradução livre). Interessa-lhe a complexidade do “mundo
colonial híbrido e incompleto”, que, segundo ele, exige novas formas
de se pensar e “requer uma teoria de ‘hibridização’ do discurso e do
poder” (Bhabha ,1998, p. 156, 162).
Em oposição aos que apontam para a opressão e o dilaceramento
que caracterizam a condição subalterna no colonialismo, Bhabha (1998,
p.172) argumenta que os nativos em sistemas coloniais aproveitam-se
de interstícios do poder para apresentar suas próprias “exigências
interculturais, híbridas”, com que “ao mesmo tempo desafiam as
fronteiras do discurso e modificam sutilmente seus termos”.
Dissolvendo binarismos puros e distinções estanques, o polêmico

174
teórico “está não apenas falando de hibridismo, mas fazendo uma teoria
híbrida” (Alcorn, 1995). Sendo ele próprio um nômade deslocado de
sua origem, Bhabha reconhece que “o hibridismo cultural e histórico
do mundo pós-colonial é tomado como lugar paradigmático de partida”
da sua própria produção intelectual, que se situa “nas margens
deslizantes do deslocamento cultural” e assim escapa ao confinamento
resultante da fidelidade nacional ou mesmo partidária (Bhabha, 1998,
p. 46).
O primeiro mundo vai assim redescobrir e valorizar a mistura
cultural adotando o termo híbrido com freqüente aprovação, em grande
parte pressionado por mudanças raciais e étnicas e pela influência de
culturas híbridas dentro de seu próprio espaço geográfico. “A maior
parte dos escritos pós-coloniais trata da natureza hibridizada [hibridised]
da cultura pós-colonial como ponto forte e não fraco” (Ashcroft, 1995,
p. 183). Tal popularização, no entanto, pode tanto mascarar
desigualdades econômicas e hipocrisias sociais, como também, mais
uma vez, permitir ao hemisfério norte que se aproprie de idéias e
questões longamente debatidas e vivenciadas no Caribe, América Latina
e outras áreas “subalternas”, sem que isso resulte em transformações
de hierarquia e poder.
Como ressalta Robert Stam (2001), o hibridismo “recentemente
recodificado como um sintoma do momento pós-moderno, pós-
colonial e pós-nacional” é na verdade um componente perene tanto
do discurso oficial quanto da crítica cultural da América Latina,
rotulado variadamente como “mestizaje, indigenismo, diversalité,
creolité, raza cósmica”.8 Stam observa que, para qualquer estudioso
da cultura latino-americana, é deveras surpreendente encontrar no
meio acadêmico opiniões críticas tipicamente colonialistas que,
apagando ou ignorando culturas latinas, atribuem a Homi Bhabha a
criação do conceito de híbrido. Lavie e Swedenburg (1996, p. 8-9)
acrescentam que as práticas culturais sincréticas e híbridas são
produtos ou processos rotineiros e comuns para “os membros das

8 Shohat e Stam elaboram discussão semelhante em Unthinking Eurocentrism (1994, p. 41).

175
margens no Primeiro e no Terceiro Mundos”, cujos deslocamentos
vêm influenciando as metrópoles ocidentais. Revertendo o movimento
do centro para a periferia que caracterizou a era colonial e fez das
colônias “o local central dos sincretismos e hibridismos”, os grandes
“centros globais” são agora internacionalizados e hibridizados neste
novo momento histórico pós- (ou neo-) colonial.
Se na Inglaterra predominam as novas influências de correntes
imigratórias de indianos, paquistaneses, jamaicanos e caribenhos de
modo geral, a tradição do hibridismo está sendo gradualmente
transplantada para dentro dos Estados Unidos com a ajuda decisiva
de latino-americanos e dos chicanos e latinos9 que assumem identidades
mestiças, contribuindo para minar idéias divididas e binárias de
fronteira. As “culturas híbridas” estudadas por Néstor García Canclini
nas últimas décadas do século XX mapeiam zonas intermediárias entre
os espaços anglo e latino do continente americano, além de analisar
fenômenos e momentos de caráter decididamente híbrido na história
cultural do continente. Marcado por sua experiência na cultura latino-
americana e por cruzamentos de fronteira constantes, García Canclini
tenta escapar a dicotomias tais como opressores-oprimidos, erudito-
popular ou latino-anglo para examinar, principalmente, as formas de
arte produzidas em regiões de fronteira em situações de extrema
dubiedade e criatividade.
De origem argentina, radicado no México mas com vivência
profissional em diversos países do continente, inclusive no Brasil,
García Canclini é um dos nomes latinos mais associados à discussão
do hibridismo. Sua pesquisa quer inserir-se no amplo quadro de
interesse regional-hemisférico contemporâneo, fortalecendo-se com
raízes fincadas na história. “A hibridez tem um longo trajeto nas
culturas latino-americanas”, diz ele (1997, p. 326), apontando como
exemplos iniciais as “formas sincréticas” que combinaram as influências
européias (espanhola ou portuguesa) e indígenas. Já no século XX,
outra forma de hibridismo transparece nas tentativas de conciliar a

9 O termo latino é usado aqui para indicar os cidadãos originários (eles próprios ou suas raízes
familiares) da América Latina, tendo nascido ou estando agora vivendo nos Estados Unidos.

176
modernização cultural com a semimodernização econômica das
criações artísticas e literárias de escritores de diversas partes do
continente. Canclini cita os exemplos da Antropofagia brasileira e do
grupo argentino Martín Fierro (ambos da década de 20), além de obras
argentinas das décadas de 30 e 40 que, segundo Beatriz Sarlo,
caracterizaram-se por uma “cultura de mescla” (apud Canclini, 1997,
p. 327).
A partir de estudos interdisciplinares que envolvem as artes,
políticas culturais, comunicação, antropologia e história, García
Canclini (1997, p.15) vai aprofundar a análise das “culturas híbridas”
da América contemporânea. Marcado por sua própria migração e a
de tantos outros latinos, propõe-se a discutir “os cruzamentos
culturais” surgidos por meio da “experiência dos exílios e das novas
raízes”. As manifestações e projetos desenvolvidos em diversas partes
da América Latina e na fronteira com os Estados Unidos demonstram
a impureza e o hibridismo cultural que identificam o momento
presente em diversas metrópoles das Américas. Essa arte híbrida se
afasta tanto dos antigos ideais monolíticos de pureza original das
identidades e culturas quanto dos paradigmas binários que
costumavam contrapor centro e periferia. Segundo García Canclini
(1997, p. 310-311), “os estudos sobre o imperialismo econômico” que
tentaram explicar a dependência do terceiro mundo não bastam para
analisar o tempo atual. Vivemos em uma nova época marcada por
intercâmbios e pela disseminação de produtos e saberes, “uma densa
rede de estruturas econômicas e ideológicas” que inclui um dinâmico
crescimento interno e a exportação cultural por parte de vários países
considerados dependentes, como o Brasil.
García Canclini procura ressaltar que o deslocamento tão
vivenciado e debatido nos dias de hoje não é algo específico do momento
contemporâneo; na verdade, marcou a experiência de escritores e
artistas latino-americanos que em diversas épocas compuseram seus
trabalhos no exílio. O ponto de vista expresso nessas obras jamais
poderia ser autêntico e incontaminado; ao contrário, situa-se em um
espaço imaginário necessariamente híbrido onde o passado e a cultura

177
herdada e lembrada se combinam com novas influências e descobertas.
A análise de García Canclini sobre a posição de tais artistas e escritores
aproxima-se do conceito de intertextualidade, fugindo à ilusão do
original puro para realçar a condição híbrida e afastar-se da conexão
habitual entre literatura e nação:

O lugar a partir do qual milhares de artistas latino-ame-


ricanos escrevem, pintam ou compõem música já não é a
cidade natal na qual passaram sua infância, nem
tampouco é essa na qual vivem há alguns anos, mas um
lugar híbrido, no qual se cruzam os lugares realmente
vividos. (1997, p.327)

O antropólogo lembra que artistas do período modernista já


mesclavam o europeu, o africano, o indígena, o culto e o popular nas
Américas, produzindo uma “arte mestiça, impura” que se desenvolveu
“no cruzamento dos caminhos que foram nos compondo e
descompondo”. Onde estaria, então, “a novidade da descoleção, da
desterritorialização e da hibridez pós-modernas?” Ele considera que
o deslocamento e o desenraizamento pós-modernos diferem das
expressões de exílio e mestiçagem cultural que os precederam. O artista
de hoje não busca legitimidade nem se insere em um estilo ou
determinada escola como acontecia anteriormente. Mostrando-se
híbrido e inacabado em sua própria concepção múltipla, “o pós-
modernismo não é um estilo mas a co-presença tumultuada de todos,
o lugar onde os capítulos da história da arte e do folclore cruzam
entre si e com as novas tecnologias culturais”. Ao reconhecer e trabalhar
com a “hibridação cultural”, os artistas contemporâneos não parecem
pretender “inventar ou impor um sentido ao mundo” mas, sim,
desconstruir o real e suas representações tradicionais. No entanto,
mesmo em fragmentos e dubiedades que negam qualquer intenção
totalizadora, alguns deles parecem acenar com novas utopias
“praticáveis” e se envolvem em “movimentos socioculturais vivos”
(García Canclini, 1997, p.328-9, 332, 336).

178
No âmbito brasileiro, diversos pesquisadores vêm abordando e
dialogando sobre as questões culturais híbridas. Interessadas em
narrativas americanas que registram e negociam tais misturas e
deslocamentos, Bernd e De Grandis (1995, p. 9) propõem-se a “refletir
sobre as questões que derivam deste longo itinerário marcado por
processos constantes de absorção, devoração, e xclusão,
entrecruzamento e reciclagem” e abrir espaço para o exame de
práticas culturais que elaborem o híbrido como conceito e prática.
Acompanhando tendências da crítica pós-moderna, Bernd (1998, p.
17-8) associa o termo “híbrido” a identidades construídas, ambíguas,
impuras, heterogêneas e deslocadas e acredita na possibilidade
“fertilizadora” da “inscrição subversiva” de culturas marginais nas
culturas hegemônicas. Podem-se observar manifestações de “hibridação
literária” na estética, na construção de personagens e/ou nas narrativas
propriamente ditas. Bernd argumenta que seres híbridos que se
transformam são “figuras-símbolo da própria América”, cujas
“sucessivas metamorfoses foram tematizadas por autores brasileiros,
antilhanos e quebequenses” (1998, p. 260).10
Áreas de fronteira e espaços de intensa mistura e/ou choque
cultural, como o Brasil, as ilhas do Caribe e a cidade de Quebec,
destacados por Zilá Bernd, oferecem exemplos intrigantes e fecundos
de hibridismo. Na percepção de García Canclini (1997, p.312), porém,
é na fronteira entre o México e os Estados Unidos que se pode
desenvolver hoje “a refle xão mais inovadora sobre a
desterritorialização”.11 Somando a diversidade lingüística (espanhol,
inglês e línguas indígenas) à fluidez e emaranhado das representações
culturais, uma cidade de fronteira como Tijuana é um laboratório de
“produtos híbridos” e interculturais (1997, p.322). Isso se evidencia
desde os cartazes e anúncios comerciais até a música rock e punk ali

10 Outras análises de textos híbridos em cruzamentos literários inter-americanos podem ser


encontradas em Pérez Firmat (1990), Spillers (1991), Coser (1994) e Figueiredo & Santos
(1997), entre outros.
11 O assunto já é muito discutido na imprensa e na mídia de modo geral. Cf. capa da revista
Time 11 jun 2001: “Welcome to Amexica- What’s happening on the U.S.-Mexico border is
changing a continent”.

179
ouvida, além dos “gêneros constitucionalmente híbridos” como o
grafite e os quadrinhos, “lugares de interseção entre o visual e o
literário, o culto e o popular”, entre o produto artesanal e o massivo
(1997, p.336).12 As pessoas que participam da construção desse espaço
por vezes assumem e promovem o caráter desterritorializado e
intermediário de sua própria experiência, mas tende a persistir,
segundo García Canclini, a procura por alguma solidez ou demarcação
(que ele denomina “reterritorialização”) por parte dos novos grupos,
como forma de contrabalançar as muitas mudanças e incertezas.
Popularizado pelos debates acadêmicos em diversas partes do
mundo, o conceito de hibridismo vem-se transformando também, com
acréscimos e revisões. Interessado na proliferação de percursos e
intercâmbios contemporâneos, Cyrus Patell (1999, p. 178), por
exemplo, sugere o conceito de “poligênese cultural” para escapar ao
esquema binário que tende a manter-se nas análises atuais sobre
hibridismo cultural. Embora focalizem a diluição das diferenças e
separações culturais, elas normalmente se restringem à observação
da mistura de duas culturas, enquanto o momento contemporâneo
mostra o cruzamento de múltiplas influências com origens diversas.
Já Alberto Moreiras (2001, p. 316, 330-332), professor latino-
americanista da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, oferece
uma análise extensa e complexa sobre a adoção entusiasmada do
hibridismo pela crítica contemporânea. Moreiras problematiza tanto
o otimismo de Stuart Hall em relação a uma “etnia híbrida” (resultante
da “dialética contínua entre o local e o global”), quanto os conceitos
de desterritorialização e reterritorialização popularizados no contexto
americano por García Canclini. Moreiras apoia as discussões
desenvolvidas por John Kraniauskas e Walter Mignolo sobre a
necessidade de se continuar a elaboração do trabalho de Garcia
Canclini e refletir que “o hibridismo pode atualmente quase ser, em
seu aspecto performático, uma espécie de disfarce ideológico para a
reterritorialização capitalista”. Na tentativa de resistir à associação do

12 O termo massivo é usado por Canclini (p.21) para referir-se a objetos e obras ligados à
chamada cultura de massa, justapondo-o às noções de popular e culto.

180
híbrido com a política hegemônica, as “intenções pós-marxistas e
desconstrutoras” de Moreiras (p. 37) aliam abordagens teóricas de
Gramsci, Jameson, Derrida, Spivak, Bhabha a pesquisas do Grupo
de Estudos Subalternos. Moreiras (p. 317) propõe tanto o resgate
quanto a crítica do híbrido através da sua associação com o subalterno,
que seria “aquilo que está fora de qualquer articulação hegemônica
em qualquer momento”. Moreiras (p. 347-348) associa a proposta de
uma articulação dupla do pensamento subalternista à idéia aporética
de “hibridismo selvagem” de Bhabha, observando que “o hibridismo
selvagem preserva, ou mantém em reserva, o local do subalterno” à
medida que desestabiliza tanto identidades quanto diferenças e oferece
“um lugar para a possibilidade de uma outra história”. Esse sentido
“selvagem e des-localizado”, total e ao mesmo tempo kantianamente
contraditório, diverge das formas comumente defendidas de
hibridismo cultural e se apresenta como “o lugar afirmativo da política
subalternista, que surge como o lugar além da hegemonia” (Moreiras,
p. 348, 353). Isso possibilitaria ao híbrido escapar ao status de
“‘significante vazio’ da política cultural contemporânea” (p. 344),
situando-se “além”, do outro lado da hegemonia, um local de
desestabilização ou um não-lugar. Moreiras percebe essa “possibilidade
impossível” do hibridismo selvagem como o abismo que “pode ser
transformado no local ‘apropriado’ de uma política subalternista”
(348-9).
Além de Alberto Moreiras, diversos estudiosos da cultura têm
observado as contradições presentes no hibridismo cultural como um
conceito crítico implicado no processo colonial eurocêntrico, embora
ele pareça acenar com possibilidades de transgressão. A ambigüidade
e a fluidez do conceito e a complexidade de sua utilização hegemônica
na história continuam merecendo atenção, provocando polêmica e
estimulando revisões por diversos ângulos.
A retomada de um termo historicamente carregado de racismo e
negatividade tem sido um dos aspectos controversos abordados no
debate, embora Bhabha, García Canclini e outros pensadores o adotem

181
exatamente por seu poder libertador e anti-hegemônico. Em Colonial
Desire (1995), Robert Young define o hibridismo como a manifestação
do desejo colonial pelo colonizado. A forma obsessiva como os tratados
científicos do século XIX tratavam da miscigenação e se voltavam para
a união sexual entre brancos e negros indica, segundo Young, que
essa intensa teorização sobre raça deve ser lida como teorias disfarçadas
de desejo. Apesar da diferença na abordagem atual, Young (p. 27)
observa que a adoção entusiasmada do hibridismo no discurso crítico
pode novamente indicar uma obsessão com a idéia de raça,
perpetuando uma linguagem racista e preconceituosa ao invés de
distanciar-se desse discurso.13 Hall (2003, p. 93), por sua vez, critica a
rigidez do raciocínio de Young por manter o termo ‘híbrido’ associado
a um conteúdo semântico racializado fixo e negar sua utilidade na
abordagem da cultura contemporânea.
A discordância teórica apresentada por Abdul JanMohamed se
volta para a aproximação entre colonizador e colonizado que se percebe
nas análises desenvolvidas por Homi Bhabha. Segundo JanMohamed
(1985, p. 85; tradução livre), o poder imperial e/ou hegemônico não
busca aproximar-se do outro subalterno ou periférico; pelo contrário,
ele tende a rejeitar, temer e reprimir o espaço e a cultura do colonizado.
Conseqüentemente, o desenvolvimento do sincretismo literário e
cultural tem cabido “não aos escritores colonialistas e neocolonialistas
mas sim, cada vez mais, aos artistas do Terceiro Mundo”. A partir de
outro viés, Rey Chow critica a opinião defendida por Bhabha de que
a hibridez do discurso colonial permite que o subalterno fale. Questiona
ela (1993, p. 35, tradução livre):

Que tipo de argumento é esse que diz que a “voz” do


subalterno pode ser encontrada na ambivalência da fala
do poder imperialista? É um argumento que torna des-
necessário lidar realmente com o subalterno, já que ele
já “falou”, por assim dizer, através das lacunas do sistema.

13 Comentários sobre o assunto no verbete “hybridity” em Ashcroft et al, 1998, p. 118-121.

182
Falando pelos interstícios ou situando-se nas margens do discurso
colonial, as vozes periféricas estariam sempre circunscritas ao discurso
eurocêntico e o híbrido simplesmente repetiria velhos padrões
coloniais. Dentro da crítica colonial, pesquisadores como Chandra T.
Mohanty, Benita Parry e Aijaz Ahmad discordam também do viés
“textual e idealista” de estudos que sugerem igualdade de condições
no processo imperial e tendem a relevar especificidades locais, conflitos
políticos e exploração econômica (Ashcroft et al., 1998, p. 119).
Segundo Ahmad, a defesa do conceito de hibridismo cultural com
base na intenso tráfego que atualmente liga e transforma as diversas
culturas é uma generalização óbvia, com a qual não se pode discordar.
No entanto, o argumento de que a condição híbrida se aplicaria
particularmente ao migrante e identificaria a época pós-moderna não
merece credibilidade. Ahmad (1995) rejeita sobretudo a idealização
da figura do intelectual migrante e marginal, cujo olhar duplo, híbrido
e deslocado supostamente permitiria uma visão mais correta e clara.
Segundo ele (1995, p. 17), o hibridismo tem-se apresentado de forma
celebratória sem que se pergunte “para dentro de qual cultura e nos
termos de quem” ocorre a hibridação. Assim utilizado, o conceito perde
densidade histórica e simplifica as leis de mercado dentro de uma
inconcebível igualdade universal.
Numa linha de raciocínio semelhante, Robert Stam (1998) lembra
que o hibridismo nunca foi “um encontro pacífico” na história das
Américas e que, portanto, é imprescindível que se considerem os tipos
díspares de realidades híbridas nos dias atuais. Aquilo que pode ser
experimentado por alguns como um tropo pós-moderno seria para
outros uma experiência viva e dolorosa de fragmentação e exílio
forçado. O esvaziamento do termo pelo poder hegemônico pode ser
comprovado na própria experiência histórica da América Latina, que
mostra como “o hibridismo é cooptável”. Stam recorda que “a
identidade nacional tem sido geralmente articulada como híbrida” no
discurso oficial latino-americano, cuja retórica de integração tenta
disfarçar a hegemonia racial e as explorações inerentes ao modelo
político. A história social e cultural das Américas permite evitar também

183
o erro crítico de assumir que o híbrido acaba de ser descoberto por
novos intelectuais estabelecidos no primeiro mundo e respaldados pela
teoria francesa.
Cautelosamente, o escritor chicano Guillermo Gómez-Peña
defende a idéia de hibridismo em sua obra e a pratica na experiência
de seu cotidiano, sem no entanto idealizar o alcance de sua própria
opção híbrida ou do intenso debate atual sobre deslocamentos e
misturas na fronteira México-Estados Unidos. Por um lado, Gómez-
Peña (1996, p. 15) observa que ainda persistem os guetos separados
por ideologia e cor, apegados ao mito do autêntico. Isso cria enorme
dificuldade para artistas que apoiam o hibridismo e as “colaborações
interculturais” e, por isso mesmo, são “vistos com desconfiança pelos
dois lados”. Como alternativa ao essencialismo e à mesmice da cultura
de consumo, Gómez-Peña propõe uma definição ampla de hibridismo
cultural, político, estético e sexual, cruzando raças, artes, espaços e
visões de forma “polilingüística” e “multicontextual”.
De forma semelhante a García Canclini e outros adeptos do
termo, Gómez-Peña percebe a utilidade do híbrido para ameaçar a
monocultura e resgatar a vitalidade das contradições e da
multiplicidade. Por outro lado, alerta para o perigo de assimilação aos
interesses e padrões culturais hegemônicos se a crítica cultural ficar
limitada ao elogio da migração e dos cruzamentos. Gómez-Peña rejeita
a linguagem que serve ao show e apaga a consciência das hierarquias e
profundas divisões que permanecem entre gerações, raças, etnias,
classes, gêneros, países, hemisférios e continentes. Segundo ele, o
conceito de híbrido pode desgastar-se completamente e contribuir
apenas para embelezar e modernizar um discurso conservador,
perdendo seu potencial transgressor e afirmativo de identidades
alternativas.

O híbrido será eventualmente apropriado pela


transcultura oficial globalizada e usado para batizar fes-
tivais de arte de livre comércio, monótonos seminários
acadêmicos e publicações reluzentes. Se o modelo híbri-
do for despolitizado, teremos que procurar um outro

184
paradigma e outro conjunto de metáforas para explicar
as complexidades e perigos de nosso tempo (Gómez-Peña,
1996, p. 13; tradução livre).

Mais que isso, o modelo conceitual como vem sendo utilizado já


se encontra exaurido de qualquer potencial de libertação ou
transgressão, na opinião de Hardt e Negri (2001, p. 156, 163). Segundo
os autores de Império, a discussão sobre identidades fragmentárias e
híbridas apenas reflete a constituição do novo império econômico e
político – global, sem fronteiras – que já se tornou realidade. Tal
discurso seria mero sintoma da “notável mudança que estamos vivendo,
ou seja, a passagem para o Império”. Assim, a crítica das “divisões
binárias” feita por Bhabha, por exemplo, estaria ultrapassada, já que
há muito foram rompidas as fronteiras dualistas que caracterizaram a
era moderna. De forma semelhante a Moreiras, Hardt e Negri
argumentam que o conceito de hibridismo só resgatará seu viés
transgressor se ultrapassar questões apenas culturais e observar as
bases eminentemente econômicas do momento contemporâneo, “os
regimes e práticas de produção” que podem ser analisados “no terreno
plástico e fluido das novas tecnologias de comunicação, biológicas e
mecânicas”(p. 236-38).
O debate é amplo e a polêmica se estende por círculos acadêmicos
através do mundo. Este estudo aborda apenas algumas das elaborações
e aplicações do conceito de hibridismo e alguns dos questionamentos
levantados a respeito de suas definições, contradições e limitações.
Inúmeros livros, artigos, seminários, cursos e debates têm sido
dedicados ao tema, talvez com isso contribuindo para diluir seu poder
crítico ou, pensando positivamente, comprovando sua aplicabilidade
em análises do momento cultural contemporâneo. Além dos estudos
já clássicos dedicados ao tema, a dinâmica variedade do debate já
mereceu um livro inteiro apropriadamente intitulado Hybridity and its
discontents, editado por Annie Coombs e Avtar Brah (2000).
Em ensaio apresentado sob este mesmo título, a professora
Deepika Bahri faz um lembrete oportuno e insere a discussão do
híbrido num contexto geral e amplo muitas vezes esquecido pela

185
crítica, que habitualmente se volta exclusivamente para seu grupo de
interesse e espaço específico. A colocação de Bahri (2001) parece
apropriada para interromper, sem intenção de concluir, a presente
discussão. A ênfase teórica nas culturas de fronteira e/ou de grupos
de imigrantes e nômades contemporâneos parece obliterar o
reconhecimento de que, na verdade, todas as sociedades são complexas
e híbridas. O híbrido não está convenientemente circunscrito às
margens, aos guetos de imigrantes, aos barrios, aos espaços alternativos,
ou apenas aos dias atuais. Híbridos não são os outros: híbridos somos
todos nós, são todas as culturas e todas as histórias.

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188
IDENTIDADE NACIONAL E IDENTIDADE CULTURAL

Eurídice Figueiredo
Universidade Federal Fluminense/CNPq
Jovita Maria Gerheim Noronha
Universidade Federal de Juiz de Fora

A noção de identidade
O debate sobre a questão das identidades na modernidade tardia
é complexo porque, ao se partir de uma definição que na sua origem
tem um uso ontológico, para empregos cada vez mais fluidos, sem
contornos definidos, que vão do sociológico ao antropológico, do
político ao cultural, do literário ao existencial, encontram-se problemas
que se referem a visões essencialistas e até críticas que negam a
possibilidade de se conceber a existência de uma identidade fixa. No
mundo contemporâneo, fala-se, cada vez mais, de identidades plurais,
ou, ainda, de identificações, que teriam o caráter provisório porque
em constante devir. Stuart Hall aponta, para descrever a evolução do
conceito de identidade, três concepções de sujeito: o sujeito iluminista,
o sujeito sociológico e, finalmente, o sujeito pós-moderno. A identidade
estaria, tal como definiu Charles Taylor, estreitamente vinculada à idéia
de reconhecimento:

[Ela] designa algo que se assemelha à percepção que as


pessoas têm de si mesmas e das características fundamen-
tais que as definem como seres humanos. A tese é que
nossa identidade é parcialmente formada pelo reconhe-
cimento ou pela ausência dele, ou ainda pela má percep-
ção que os outros têm dela (...). O não-reconhecimento
ou o reconhecimento inadequado pode prejudicar e cons-
tituir uma forma de opressão, aprisionando certas pes-
soas em um modo de ser falso, deformado ou reduzido
(Taylor, 1994, p. 41-42).

O termo usado nesse sentido é recente e resulta, segundo Taylor,


da conjunção de duas mudanças. De um lado, o fim das hierarquias
sociais do Antigo Regime, baseadas na honra (honneur), e implicando,
conseqüentemente, na desigualdade e na exclusão, já que a condição
necessária de sua existência é que nem todos tinham acesso a ela. De
outro, a noção moderna de dignidade, universalista e igualitária,
própria das sociedades democráticas que, ao contrário, inclui a todos.
Assim, “a democracia inaugurou uma política de reconhecimento
igualitário que adquiriu diferentes formas ao longo dos anos, antes de
retornar sob a forma de exigência de igualdade de status para as
culturas e sexos” (Taylor, 1994, p. 44).
Um outro fator vai dotar a noção de reconhecimento que emerge
com a democracia de uma nova dimensão: trata-se de uma certa
concepção de identidade que surge no fim do século XVIII, como a
de uma identidade individualizada, particular, associada ao ideal de
autenticidade. Esse ideal de autenticidade, que se instaura
principalmente com Rousseau, corresponderia ao que Hall chama de
concepção de identidade do sujeito do iluminismo, na qual o indivíduo
centrado é “dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação”
(Hall, 200, p. 10). Herder, além de acrescentar a idéia de originalidade,
extrapola a noção de identidade para uma idéia mais coletiva, tomando
uma feição que está na origem do nacionalismo moderno, “em suas
duas formas – benigna e maligna” (Taylor, 1994, p. 49), pois passa a se
estender àqueles que transmitem a cultura, dos quais se exige fidelidade
à sua própria cultura. Essa noção de identidade ligada ao
reconhecimento não pode ser compreendida sem que se leve em conta,
como propõe Taylor, um aspecto essencial da condição humana que é
o “dialogismo”, pois “não adquirimos as linguagens necessárias para
a autodefinição de nosso eu, somos antes levados a elas por interação
com as linguagens daqueles com quem convivemos” (Taylor, 1994,
p.50). Na análise de Hall, esta visão da identidade seria a do sujeito
sociológico, concebido como um indivíduo não auto-suficiente,

190
formado na relação com os outros, que servem de mediadores e
transmissores de valores, sentidos e símbolos, ou seja, da cultura.
Como uma identidade não é elaborada isoladamente, mas antes
negociada pelo indivíduo durante toda a vida, se depreende daí a
importância do reconhecimento nessa construção. Entende-se, desse
modo, porque a questão identitária só interessa e só é reivindicada
por aqueles que não são reconhecidos por seus interlocutores: “Minha
própria identidade depende vitalmente de minhas relações dialógicas
com os outros” (Taylor, 1994, p. 52). É pois em torno da noção de
reconhecimento que se formam tanto os movimentos nacionalistas
quanto os movimentos identitários das minorias já que, como aponta
Mercer, “a identidade somente se torna uma questão quando está em
crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é
deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza” (Mercer apud
Hall, 2000, p. 9).
Na segunda metade do século XX surge o sujeito pós-moderno,
um ser fragmentado, visto “como não tendo uma identidade fixa,
essencial ou permanente”, já que ele “assume identidades diferentes
em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor
de um ‘eu’ coerente” (Hall, 2000, p. 13). Como há em nós identidades
contraditórias, nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas, em função de elementos nacionais, culturais, de gênero,
de classe social, de posição política e religiosa, enfim, das várias
identificações que formam o sujeito mosaico de nossa era. Para tentar
pensar as diferenças entre identidade nacional e identidade cultural,
serão analisados alguns tipos de discursos fundacionais da nação no
Brasil e no Quebec bem como os referentes às identidades culturais
negras da diáspora.

Identidade nacional
A idéia de nação e nacionalismo começou a ser mobilizada na
Europa a partir do século XVIII para designar a identidade de cada
povo. Entre 1830 e 1880, momento do liberalismo triunfante, havia,
segundo Eric Hobsbawm, “três critérios que permitiam a um povo

191
ser firmemente classificado como nação, sempre que fosse
suficientemente grande para passar da entrada”:
1. “O primeiro destes critérios era sua associação histórica com
um Estado existente ou com um Estado de passado recente e
razoavelmente durável”;
2. “o segundo critério era dado pela existência de uma elite
cultural longamente estabelecida, que possuísse um vernáculo
administrativo e literário escrito”;
3. “o terceiro critério, que infelizmente precisa ser dito, era dado
por uma provada capacidade para a conquista” (Hobsbawm, 1998, p.
49).
Para se constituir uma nação era preciso, portanto, já haver um
estado de fato, que possuísse uma língua e uma cultura comuns, além
de demonstrar força militar. Foi em torno desses três pontos que se
formaram as identidades nacionais européias.
A construção de uma identidade nacional passa, assim, por uma
série de mediações que permitem a invenção do que é comumente
chamado de “alma nacional”, ou seja, parâmetros simbólicos que
funcionam como “provas” da existência desse Estado, e que
determinam sua originalidade: uma língua comum, uma história cujas
raízes sejam as mais longínquas possíveis, um panteão de heróis que
encarnem as virtudes nacionais, um folclore, uma natureza particular,
uma bandeira e outros símbolos oficiais ou populares. Os integrantes
de cada comunidade são convidados a neles se reconhecer e a eles
aderir.
Benedict Anderson, diferentemente de Hobsbawn, considera que
os nacionalismos nascem antes na América do que na Europa, como
fruto de um descolamento das elites crioulas em relação à Espanha e
à Inglaterra. A independência dos Estados Unidos (1776), primeira
república na América, que será o modelo para as demais repúblicas
latino-americanas, que apareceriam ao longo do século XIX, suscita
um movimento de busca de novos discursos que exprimissem as novas
realidades políticas do continente. O Haiti seria, talvez, um caso à parte,
já que foram os ex-escravos que promoveram a independência,

192
liderados por Toussaint Louverture. Todas as elites crioulas temiam
que o exemplo do Haiti se alastrasse, o que não aconteceu. O Brasil
também tem suas peculiaridades, pois contou com a presença da família
imperial portuguesa de 1808 a 1889, tendo sido o príncipe português
Pedro I quem proclamou a independência. Anderson acusa de
eurocentrismo os pesquisadores europeus que persistem considerando
o nacionalismo como uma invenção européia (Anderson, 1996, p. 192).
Como mostrou Charles Taylor, tal como ocorre no nível
individual, a identidade coletiva se forma pelo dialogismo. O que move
o processo de criação de uma identidade nacional seria a “necessidade
de reconhecimento” (Taylor,1994, p. 41) da nação que se forma, em
relação a dois interlocutores: seus integrantes, que devem interiorizar
essa “alma nacional” que lhes foi ensinada, e os Estados, já estabelecidos,
que devem respeitar essa nação. O termo “necessidade” aponta, assim,
para o fato de que esse duplo reconhecimento, interno e externo, é
vital tanto para a existência efetiva da nova nação, quanto para,
posteriormente, sua sobrevivência. O Haiti foi o país que mais sofreu
ao longo do século XIX para obter o reconhecimento internacional,
e, talvez, por isso mesmo, suas elites tiveram muitos problemas para
lidar com sua haitianidade.
Todavia, embora a idéia de nação permaneça como referente,
seu patrimônio simbólico pode se transformar historicamente em
função de novos objetivos. No Brasil, a questão identitária foi colocada,
sobretudo, a partir do século XIX com a busca romântica, que nasce
do conflito de já não poder/querer ser português. A existência da nação
— ou seja, o fato político da separação de Portugal — suscita um fato
cultural, como bem mostrou Antonio Cândido. Ao se analisar a
constituição da literatura brasileira, pode-se ver que, durante o século
XIX, o termo que se busca afirmar é o de nacionalidade. A publicação
do livro de Ferdinand Denis, o Résumé de l’histoire de la littérature
brésilienne (1826), foi um momento fundamental de afirmação da
nacionalidade porque, ao usar pela primeira vez o termo de “literatura
brasileira” (distinta da portuguesa), ele conferia de certo modo uma
existência àquilo que era, até então, uma dúvida e um anseio. Quando

193
os românticos brasileiros se interrogam sobre o caráter nacional, ou
seja, sobre o que distinguia os brasileiros dos portugueses, eles estão
tentando criar uma identidade coletiva, embora, como mostrou Regina
Zilbermann, o sintagma “identidade nacional” não conste na
historiografia romântica, só tendo aparecido na crítica brasileira
posterior. Zibermann faz um inventário dos termos que designam a
identidade nacional no século XIX — cor local, caráter nacional,
espírito nacional, instinto de nacionalidade, no célebre texto de
Machado de Assis —, além de levantar os raros usos do termo
identidade nos textos críticos do século XIX, e, assim mesmo, com
sentido totalmente diferente (Zilbermann, 1999). Nos textos críticos
do século XIX já se pode depreender a idéia de que o brasileiro é
fruto de uma cultura híbrida, quando, por exemplo, Santiago Nunes
Ribeiro afirma que a “poesia do Brasil (...) é a filha das florestas, educada
na velha Europa, onde a sua inspiração nativa se desenvolveu com o
estudo e a contemplação de ciência e natureza estranha” (apud
Zilbermann, 1999, p. 43). Embora sem falar dele diretamente, as
florestas remetem ao índio, que se funde com o português, sua língua
e sua cultura. Assim, o português representa a cultura inicial e o índio,
em suas diferentes metáforas, remete ao solo americano. Alencar, no
célebre prefácio de Sonhos d’ouro, afirma:

A literatura nacional que outra coisa é senão a alma da


pátria, que transmigrou para este solo virgem com uma
raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana desta
terra que lhe serviu de regaço; e cada dia se enriquece
ao contato de outros povos e ao influxo da civilização
(Alencar, [s.d.] p. 9).

A força da terra — ou seja, da nação concebida como território,


muito mais do que como uma entidade política e cultural — é tão
contundente em Alencar que ele termina o seu prefácio falando das
frutas do país:

O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabu-


ticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o

194
mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o da-
masco e a nêspera? (Alencar, [s.d.], p. 13).

A exaltação do índio se faz em detrimento do reconhecimento da


contribuição do negro à formação da identidade nacional. Isto se
explica porque, como se necessitava de uma genealogia, de um mito
cosmogônico, vai-se buscar inspiração naquele que é autóctone e dono
original da terra, enquanto o negro, além de ser de fora como o
português, é marcado pelo estigma da escravidão. Em um quadro de
idéias positivistas e darwinistas não se considerava que o negro tivesse
cultura, ocorrendo sua exclusão, num momento em que Alencar já
colocava o aporte dos imigrantes que começavam a chegar. No Brasil,
como a tradição da nacionalidade, expressa, sobretudo, pela expressão
“caráter nacional”, era muito forte, tendo sido reforçada, inclusive,
no grande movimento de vanguarda que foi o modernismo, começou-
se a falar de identidade nacional. Mário de Andrade, no prefácio a
Macunaíma (jamais publicado como tal), explica a questão da falta de
caráter do brasileiro. Diz que se interessou por Macunaíma devido à
“preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa
a entidade nacional dos brasileiros”. Causa uma certa estranheza o
uso da palavra “entidade” (e não identidade), cuja origem é,
verdadeiramente, ontológica. E ele continua: “Ora depois de pelejar
muito verifiquei uma coisa me parece que certa: o brasileiro não tem
caráter” (Andrade, 1978, p. 218). Explica que entende por “caráter”
não uma “realidade moral”, mas “a entidade psíquica permanente, se
manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento
na língua na História na andadura, tanto no bem como no mal”
(Andrade, 1978, p. 219). Mário, admirador de Alencar, continua
usando o termo “caráter” no mesmo sentido do século XIX, quando
Alencar destaca o caráter das nações da Europa em contraste com o
dos povos em formação, que, como as crianças, tendem à imitação,
nesta necessária etapa de “amálgama” em que se mesclam “traços de
várias nacionalidades adventícias”. Ou seja, o caráter de que falam
Alencar e Mário corresponde ao que hoje se chama de identidade
nacional. Ele considera que “o brasileiro não tem caráter porque não

195
possui nem civilização própria nem consciência tradicional”. Segundo
ele, os franceses, os iorubás e os mexicanos teriam caráter porque
possuem “civilização própria”, pelo “perigo iminente” ou pela
“consciência de séculos”. É, desse modo, que começa a se construir
uma identidade nacional brasileira, que se opõe, desde sua origem, à
idéia de importação, de que somos, entretanto, como afirma Paulo
Prado, em Retrato do Brasil, grandes apreciadores.
Ao contrário dos Estados Unidos, cuja independência é de 1776,
e de todos os países continentais da América Latina, que fizeram suas
independências ao longo do século XIX, o Canadá continuou sob o
domínio inglês, chegando ao século XXI com um estatuto bastante
singular, como parte do Commonwealth, conservando a figura (ainda
que decorativa) do Governador Geral, representante da Rainha, cuja
foto ainda é estampada na moeda local (o dólar canadense). O Quebec,
única província do Canadá cuja língua majoritária é o francês, se
afirma em oposição ao canadense de língua inglesa desde a cessão do
território à Grã-Bretanha, em 1763, pelo Tratado de Paris. O primeiro
dado importante a se observar na construção identitária do Quebec é
que o Canadien, que começa a criar sua identidade no século XIX,
ignora a mestiçagem com os povos autóctones; sua identidade será
sempre uma pura e incontaminada filiação à França,
emblematicamente representada pela flor de lis, símbolo da realeza
destronada e do ancien régime, e paradoxalmente adotada como
bandeira do Quebec. Esta identidade será sempre construída como
reação e oposição aos vencedores ingleses, que dominam política e
economicamente o país, além de constituir a maioria da população do
Canadá.
A identidade do Quebec, que surge na Revolução Tranqüila
(1960), se constrói por oposição a este Outro, não mais como
simplesmente reativa, mas, já agora, de maneira afirmativa. Ao se
perceber e se afirmar como maioria na província, o agora Quebequense,
que surge em substituição ao antigo Canadense francês, dá as costas
aos francófonos de outras províncias (Ontario, New Brunswick),
embora sua identidade emane de sua origem francesa e de sua

196
francofonia. Ora, este é o dilema da província: ao confundir identidade
nacional (provincial) com identidade lingüística, ao considerar
quebequense só o quebequense francófono, cria-se um grande
problema político, que está longe de ser resolvido. Letourneau e Ruel,
ao analisarem os depoimentos prestados à Comissão Bélanger-
Campeau, em 1990, esquadrinham os planos narrativos e
argumentativos desta “tomada de palavra pública” e tentam definir
quem seria quebequense na opinião dos franco-quebequenses:

Já que a alienação do sujeito quebequense era cometida


pelo inglês, não se pode impedir de deduzir que os au-
tores consideram o inglês, senão enquanto figura
arquetípica da opressão, ao menos (...) como não sendo
quebequense. É quebequense aquele que ama o Quebec
e os quebequenses. Evidentemente há autores que consi-
deram os ingleses como membros da coletividade
quebequense conquanto (...) aprendam a língua france-
sa, sem o que eles não passam de residentes munidos de
direitos. Trata-se, em certo sentido, de cidadãos cana-
denses em processo ou não, conforme sua vontade, de se
tornarem quebequenses (Letourneau, Ruel, 1994, p. 298).

Há uma espécie de nó na questão do Quebec. Do ponto de vista


jurídico, todos os que nascem na província, inclusive os anglófonos,
são quebequenses. Mas como a identidade do quebequense se define
por sua origem (québécois pure laine) e pela língua francesa, em oposição
ao anglófono, este grande Outro, que o persegue desde 1763, quando
o Canadá é cedido à Inglaterra, não existe possibilidade de solução
identitária. Este é o verdadeiro fantasma que subjaz em todo o debate
identitário no Quebec. Como a questão é quase insolúvel, o problema
é contornado. Há toda uma produção teórica sobre questões
identitárias concernentes ao primeiro pólo, aqueles que são
francófonos, mas não são descendentes dos colonizadores franceses,
incluindo neste debate os chamados escritores migrantes, étnicos ou
como quer que sejam chamados. O outro pólo fantasmático fica em
suspenso; os anglófonos estão excluídos do debate identitário porque,

197
na verdade, se eles forem considerados quebequenses, a identidade
quebequense (francesa) desaparece, tornando-se um mero gentílico
destituído de valor de identificação. Na última proposta de referendo
a base política é o discurso nacionalista, que no Quebec constitui-se
como

um ritual linguageiro, uma homenagem aos antigos e


uma mola de mobilização que contém uma argumenta-
ção e uma tradição bem estabelecidas. É uma queixa
articulada, muitas vezes patética, que funda sua presun-
ção de ser sem necessitar precisar a natureza nem as fron-
teiras desta ontologia coletiva. Todos os dominantes e
governantes do mundo fazem uso de tais procedimentos
retóricos para fazer viver os Nós que eles criam
(Letourneau, 1997, p. 115).

Embora a doxa no Quebec ainda se ressinta deste cansativo debate,


a nova visão dos historiadores sobre o quebequense, segundo
Letourneau, cria “as condições propícias à sua abertura ao Outro, o
que se depreende de vários estudos que procuram mostrar a herança
heterogênea (britânica, francesa, americana, ameríndia) e as influências
exóticas em que bebeu a cultura quebequense francófona para se tornar
o que ela é” (Letourneau, 1999, p. 56).
Se os séculos XVIII e XIX foram dominados pela identidade
baseada no Estado-Nação, no século XX iniciou-se um movimento
que anunciava o fim da noção de nacionalidade, privilegiando os
particularismos e criando laços que transcendem o nacional.
Entretanto, as coisas não parecem estar de todo mudadas, como
demonstrou a reação de minorias, como a dos índios, aos
acontecimentos do 11 de setembro de 2001 nos Estados-Unidos. Os
europeus, por sua vez, como propõe Thiesse, “no estado atual das
coisas parecem tão providos de identidades nacionais quanto
desprovidos de identidade européia” (Thiesse, 1999, p. 288). De modo
análogo, os brasileiros se sentem, antes de tudo, brasileiros, e muito
pouco latino-americanos. Talvez por sua própria natureza de
construto, ensinado e interiorizado num lento processo, a idéia de

198
identidade nacional não parece estar perto de desaparecer por
completo, mas deixou de ser a única referência. Assim, temos hoje, de
um lado, entidades como a União Européia, o Mercosul — embora
sua concepção continue se assemelhando a uma estrutura de Estado
—, e de outro, o sujeito pós-moderno, com novas identificações que
querem se basear em solidariedades transnacionais, reivindicando a
pertença a uma mesma cultura, definida como gênero, classe, etnia
ou religião.
O processo de criação de uma identidade nacional não deixa de
ter contradições. A primeira delas provém do fato de que, ao criar sua
identidade, cada nação age em nome de uma originalidade, mas se
reporta a um único modelo:

Nada de mais internacional que a formação de identida-


des nacionais. O paradoxo é grande, já que a irredutível
singularidade de cada identidade nacional serviu de
pretexto para afrontamentos sangrentos. Elas são oriun-
das, entretanto, de um mesmo modelo, cuja regulação se
efetuou no contexto de intensos intercâmbios internaci-
onais (Thiesse, 2001, p.11).

Outra questão, que deriva da primeira, é a da busca da


autenticidade, sempre problemática, pois se encontra a um passo da
folclorização, uma vez que o próprio princípio de nação repousa sobre
uma comunidade atemporal. No caso de países cuja identidade se forma
num contexto de dependência cultural, é comum ocorrer o que
poderíamos chamar de auto-exotização. No Brasil, por exemplo,
percebe-se que os românticos, na ânsia de afirmar nossa originalidade,
acabaram criando uma imagem do país que reproduzia a visão dos
europeus sobre nós, procedimento que parece, aliás, perdurar em
muitas de nossas auto-representações. O Quebec continua a lidar com
dificuldade a sua idéia de nação dentro de outra nação, não tendo
conseguido superar o seu complexo de inferioridade lingüístico em
relação à França nem tampouco em relação ao inglês, língua dominante
na América do Norte, numa crise identitária que está longe do fim.

199
Identidade cultural
Fala-se em identidade cultural quando se quer referir a grupos
que não se apóiam em um Estado-Nação, mas que reivindicam a
pertença a uma cultura comum. Nesse caso, não se mobiliza a
referência geográfica, e a tendência desses movimentos é ser
transnacional, baseando-se em categorias tão diversas como raça, etnia,
gênero, religião. Todavia, também nesse caso, trata-se de determinar
um patrimônio comum e difundi-lo. Isso implica na revisão da história
e no questionamento da cultura hegemônica, que não os incluiu, na
busca de antepassados, na criação de uma linhagem, na escolha de
símbolos e até mesmo, por vezes, no estabelecimento, senão de uma
língua, ao menos de uma linguagem.
Os processos de construção de identidade coletiva, nacional ou
cultural, são, todavia, similares no que tange ao estabelecimento de
um modelo com o mesmo fim, ou seja, o reconhecimento. O que os
distingue, como explicita Taylor, é o fato de que, quando se trata de
grupos minoritários, ser reconhecido não é uma “necessidade”, mas
uma “exigência” junto aos interlocutores com os quais esses grupos,
cada vez mais específicos e numerosos nas sociedades democráticas,
dialogam. O termo “exigência de reconhecimento” esclarece a
natureza desse anseio: ele indica que essas reivindicações dizem respeito
a mudanças na legislação desses países em função dos interesses de
cada grupo.
Assim como acontece com as identidades nacionais, que são
negociadas em função das necessidades do momento, a rede simbólica
dos movimentos identitários das minorias também pode-se
transformar historicamente. O exemplo dos movimentos negros pode
servir de demonstração de que a cada momento histórico corresponde
a construção de uma identidade específica. Nos anos 1930, Aimé
Césaire criou o conceito de negritude como glorificação dos valores
negros, que é uma antítese do preconceito branco-colonial de que os
negros não tinham valores. Césaire, homem de seu tempo, é tributário
da revolução do pensamento que se operava enquanto esteve em Paris
fazendo seus estudos superiores e onde fez amigos entre os estudantes

200
africanos. Ele, como outros artistas do continente americano, só pôde
descobrir a África através do olhar das vanguardas européias. No
entanto, menosprezar a importância dessa descoberta por causa da
mediação européia é desconhecer a história. Para um ser dilacerado
por três séculos de aviltamento, o conhecimento de seu continente
original restabelece sua dignidade, oferecendo-lhe uma ancestralidade
que lhe fora confiscada. O poeta antilhano descobre um pai negro
que o restabelece e o legitima, em oposição ao pai branco que ignora
seus bastardos. Do ponto de vista psicológico e afetivo, essa descoberta
contribui, certamente, para aliviar o grande trauma do tráfico
negreiro. Césaire tem consciência de tudo isso e não renega as suas
dívidas, percebendo a dimensão que a descoberta da África teve para
a sua formação:

Creio que a África representou para mim, evidentemen-


te, a volta às fontes, a terra de meus pais, portanto, uma
imensa nostalgia e, por conseguinte, um lugar de reali-
zação. (...) Creio que eu não teria sido o que sou se não
tivesse conhecido a África à minha maneira, se não tives-
se encontrado os africanos. (...) É claro que meu conhe-
cimento da África era livresco, eu era tributário do que
escreviam os brancos; toda nossa geração, aliás; não está-
vamos totalmente satisfeitos porque, nesta área, a litera-
tura não era abundante e, mesmo quando existia, ela era
certamente parcial (Césaire apud Kesteloot, Kotchy,
1993, p. 200).

A construção identitária, baseada na idéia de raça, que nasceu


nos Estados Unidos com a criação do pan-africanismo, ainda persiste
nos estudos culturais e literários americanos, o que, segundo Appiah,
é uma “espécie de ironia histórica” já que a categoria de raça é uma
criação do colonialismo e do escravismo dos europeus, como já foi
amplamente estudado por Fanon, Memmi e Said. Continuar se
apoiando nesta categoria parece ser um impasse, que está longe de
ser ultrapassado. Appiah, que é africano e trabalha em universidade
americana, afirma:

201
A “raça” nos incapacita porque propõe como base para a
ação comum a ilusão de que as pessoas negras (e brancas
e amarelas) são fundamentalmente aliadas por natureza
e, portanto, sem esforço; ela nos deixa despreparados,
por conseguinte, para lidar com os conflitos “intra-raci-
ais” que nascem das situações muito diferentes dos ne-
gros (e brancos e amarelos) nas diversas partes da econo-
mia e do globo (Appiah, 1997, p. 245).

Pode-se afirmar que as identidades, complexas e múltiplas,


nascem de uma oposição a outras identidades, baseando-se em
formações discursivas imaginárias e não na razão. Entretanto, segundo
Appiah, se é papel do intelectual buscar a verdade, é tentador também
“celebrar e endossar as identidades que, no momento, parecem
oferecer a melhor esperança de promover nossos outros objetivos, e
silenciar sobre as mentiras e os mitos” (Appiah, 1997, p. 248). Enquanto
houver racismo, a sua antítese, o racismo às avessas, será a única
resposta que poderá satisfazer aqueles que são discriminados. O
afirmacionismo negro norte-americano (assim como o brasileiro)
promete ter vida longa.
Numa linha transnacional, recusando construções que
reivindicam a “pureza” racial e o absolutismo étnico, e tendo também
como fundamento a idéia de solidariedade, o sociólogo inglês Paul
Gilroy forjou, recentemente, a noção de “Atlântico negro”, qual seja,
“as formas culturais estereofônicas, bilíngües ou bifocais originadas
pelos – mas não de propriedade exclusiva dos – negros dispersos nas
estruturas de sentimento, produção, comunicação e memória” (Gilroy,
1993, p.35). Essa formação intercultural e transnacional incluiria todos
os que compartilham de uma condição comum, a escravidão e a
discriminação, e se basearia no conceito de diáspora negra:

Sob a idéia-chave de diáspora, nós poderemos ver não a


“raça”, e sim formas geopolíticas e geoculturais de vida
que são resultantes da interação entre sistemas comuni-
cativos e contextos que elas não só incorporam, mas tam-
bém modificam e transcendem (Gilroy, 1993, p. 25)

202
A noção de “Atlântico negro” seria uma solução teórica para
entender a cultura negra, diante do fracasso de paradigmas como os
de raça ou etnia e nação. Ela permite escapar ao essencialismo e aos
impasses do afrocentrismo no que concerne, por exemplo, à idéia de
tradição e a certos problemas como o exílio da África. A idéia de
diáspora seria, segundo Gliroy, uma solução realmente produtiva:

Sugiro que esse conceito deva ser valorizado por sua ca-
pacidade de propor a relação entre igualdade e diferen-
ciação étnica: um mesmo mutável. Afirmo também que as
trocas entre negros e judeus são importantes para o fu-
turo da política cultural do Atlântico negro, bem como
para sua história (Gilroy, 1993, p. 29).

A mobilização desse conceito pressupõe um intercâmbio


permanente, através das viagens entre os negros da África, da Europa
e do Novo Mundo, que formam esse Atlântico negro, e permite religar
manifestações culturais tão diferentes quanto os escritos de W.E.B.
Du Bois, Richard Wright e Toni Morrison, o jazz, o soul e o rap, pois
não se baseia na idéia de cultura monolítica, mas de diversidade
cultural. Essas culturas também não seriam fruto de uma tradição
africana que se reitera, mas, ao contrário, resultado de práticas que,
por serem inovadoras e transgressoras, inscrevem-se solidamente na
modernidade. A visão de Gilroy ultrapassa a negritude com sua volta
à África, ultrapassa, também, a idéia de território e de nação, centrando-
se no movimento transatlântico das inúmeras diásporas embora, de
um ponto de vista brasileiro, ele se concentre, quase que
exclusivamente, no Atlântico Norte e no mundo de língua inglesa.
Os intelectuais das Pequenas Antilhas, assim como Gilroy, vem
buscando uma solução identitária que não se ligue nem à idéia de
Estado-Nação ou território — pelo seu estatuto de departamentos de
além-mar —, e nem à de raça, já que a formação étnica dessas
sociedades teve como marca a mestiçagem. Como a questão da
independência, nesse contexto, torna-se complexa, o que se reivindica
é, antes, uma autonomia do que uma ruptura com a metrópole, como
explica Patrick Chamoiseau:

203
Meu projeto é a constituição do Lugar, que concebo como
algo que se opõe à Nação, à Pátria. O Lugar é um espaço
que não é simplesmente delimitado pelo geográfico, ele
pode ser um espaço que se prolonga em trans-solidarie-
dade com a África, a América Latina, a Europa também,
através da França (Chamoiseau, 2002).

A distinção feita por Taylor entre necessidade e exigência de


reconhecimento estabelece uma diferença fundamental entre os
conceitos de identidade nacional e identidade cultural, movimentos
que estão próximos pelo fato de serem construtos fundamentados em
categorias no fundo muito semelhantes, pois se, no segundo caso, não
existe o apoio do Estado-Nação, toda uma rede de símbolos se forma
no sentido de estabelecer uma “comunidade imaginada” (Anderson,
1996), definida em consonância com o conceito mais amplo de cultura
ou, mais restrito de raça, etnia ou sexo.

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205
INDIGENISMO

Silvina Carrizo
Universidade Federal de Juiz de Fora

O indigenismo, de modo geral, na Hispano-América, e de forma


particular na área andina, assume vários níveis, porém destaca-se o
seu caráter programático no qual podem confluir a vontade de ação
política, uma forma do discurso identitário e uma chave estética que
lhe dá expressão. Surge a partir do processo de conquista e colonização
e é debatido como prática política, programa a desenvolver, requisitório
a favor dos direitos humanos, estética de denúncia e como questão
étnica e identitária, seja de um vice-reinado em particular, da nação
em sua totalidade ou de um grupo (etnia e/ ou classe). Sua história,
nesse sentido, não é outra coisa senão o jogo entre as vontades que o
propalam, suas incidências e repercussões no contexto social e seu
caráter enunciativo, ancorado em determinados contextos. Na
historicidade do conceito, lêem-se não apenas os diferentes tipos de
propostas acerca do índio, mas, também, as vozes dos que as enunciam,
as demandas desses sujeitos — muitas vezes relacionadas com outros
problemas —, e os modos dos discursos, como a apologia, a defesa ou
a denúncia na construção deste outro que é o indígena.
Num rápido percurso, poderíamos ter uma idéia ampla e
heterogênea do indigenismo, percurso que mantém linhas de contato
com a modalidade em particular que procuraremos descrever, a do
indigenismo de 1920 e 1930. Assim, durante a colônia, teríamos o
indigenismo evangélico, no qual se destaca o bispo de Chiapas, Fray
Bartolomé de las Casas (1474-1566). Ele será retomado de forma
indistinta em movimentos posteriores, justamente pela forma com que
se mistura o discurso com a ação e seu sentido de integração: o dos
crioulos e o dos mestiços como o Inca Garcilazo de la Vega (1539-
1616). Uma vez constituído o Estado-nação, no século XIX, teríamos
a modalidade do indianismo patriarcal dos românticos, o paternalismo
do movimento nos finais do mesmo século e o começo do “mesticismo”,
movimento de mestiços letrados. Nessa virada de século, sobrepujam-
se doutrinas como o positivismo, o anarquismo e o velho humanismo
liberal, e acentuam-se as formas acusatórias e de responsabilidade das
elites dirigentes, como no caso das narrativas naturalistas de Clorinda
Matto de Turner, das Ligas Pró-indígenas e do movimento gerado
por González Prada em torno da questão de “peruanizar o Peru”.
O discurso do indigenismo crioulo muitas vezes torna-se defensivo
perante a chegada de novas administrações da metrópole,
contribuindo para a construção de uma identidade crioula, delineando
um conceito de índio e traçando as formas com que as elites imaginam
e/ou realizam a assimilação dos nativos, enquanto crítica às formas da
conquista e da colonização. Na sua própria construção, gera e amplia
o que se tem denominado como gênero “arbitrista”, viabilizado pelo
uso da imprensa, primordial na esfera da colônia. Nessa série de textos
se daria pela primeira vez e de forma oblíqua — pois não é o eixo
central —, o aparecimento de certas características tais como: a
procura pelo conhecimento do indígena e a denúncia do estado a que
é submetido, a defesa de seus direitos e a questão dos modos de
incorporação com base no processo de evangelização.
Já o indigenismo mestiço, cultural e etnicamente mestiço, dá-se
desde a colônia, nos casos do Inca Garcilazo de la Vega e do cronista
Guamán Poma de Ayala (1530?-1616?), passando por várias formas
intermitentes até chegar ao Arguedas (1911-1969) tardio dos anos 60
e, num certo sentido, com Gamaliel Churata (1894-1969). Esta
modalidade de indigenismo traz a novidade do conhecimento
gnoseológico, o desenvolvimento de obras que, se não discutem e
problematizam seus próprios conceitos, são laboratórios deles. Este
indigenismo mestiço coloca em cena o drama sócio-cultural do país e

208
do próprio discurso indigenista, fato que pode ser observado a partir
das atitudes dos escritores e por entender a sua própria obra como
luta pessoal e artística, dada a sua condição heterogênea manifestada
pela dualidade da cultura a que pertencem: com o bilingüismo e a
adaptação da escritura alfabética nas suas próprias tonalidades, ou
pelo fato de trabalhar nos seus próprios limites culturais. Nos seus
textos, não apenas se observam focalizações pró-indígenas, como,
também, uma outra forma de conhecimento do indígena, que, de
modo geral, faltou no indigenismo dos crioulos.
Nesse breve panorama, que toma em conjunto os tempos longos
de construção de um processo e de uma modalidade discursiva
amplamente heterodoxa, pode-se observar que o indigenismo dos 20
e 30 compartilha com estas formas surgidas desde a colônia e, em
especial, com o gênero das crônicas, o seu caráter dialógico e
intercultural. Assim, tem sido sempre uma demanda levantada a partir
de vozes não indígenas, vozes brancas, crioulas ou mestiças, vozes dos
setores de dominação (coloniais ou nacionais) ou das classes médias
emergentes, o que por outro lado, faz ressaltar na sua enunciação, a
distância perante os mundos étnicos e culturais. Esta forma de
indigenismo também compartilha a vontade de revelar o que é
desconhecido para leitores distantes, e a sua posição conflitiva na
interseção de dois universos diferentes.
O movimento indigenista faz sua aparição articulada com a Revista
Amauta (1926-1930), “revista mensal de doutrina, literatura, arte,
polêmica”, fundada e dirigida por José Carlos Mariátegui (1895-1930).
A partir dos variados artigos que nela se publicam, o conteúdo do
problema indígena pela primeira vez é relacionado com o problema
da propriedade da terra e o latifúndio e como um problema nacional
de exploração do campesinato e de exclusão da maioria da população
indígena. Na revista, são sentadas as bases tanto das reivindicações
econômicas e políticas da sociedade quanto os caminhos culturais e
artísticos das forças progressistas. Conformando, desse modo, um
órgão de doutrina e de militância, que busca captar as consciências e o
consentimento dos setores populares e dos intelectuais, Amauta

209
inseriu-se na realidade do país como ponto de interseção no qual
confluíam distintas tendências políticas e artísticas, diferentes
interesses e várias disciplinas acadêmicas em torno das novas
propostas.
As operações tanto políticas como estéticas, que de forma gradual
se instaurariam a partir do último terço do século XIX, são resultados
da derrota do Peru na Guerra do Pacífico (1879-1883), questão e debate
que se estenderão até finais da década de 20. Como estas operações
exprimem uma vontade de conhecer o Peru real, de entender o
fracasso e repensar a questão nacional, a partir de padrões que dêem
conta da totalidade do país, esses debates se inserem, também, na
questão da modernização. Entres os alvos e as metas desse movimento,
interessa observar que, além do significado histórico, enquanto
movimento político e social de massas, conformou-se uma proposta e
luta no campo simbólico dos discursos, em que se propunham combater
os estereótipos hispanistas. O debate se desdobraria em intrincadas
discussões em torno do positivismo, do pensamento racial e da tradição
colonial para gerar, a partir dali, uma autoconsciência nacional em
que postulavam figuras mestiço-indígenas, como sintoma dos novos
grupos sociais em ascensão, em luta contra o poder dominante e a
cultura hegemônica. Por outro lado, é importante destacar que todo
o processo com que se fecha o século XIX e começa o XX tem como
dominância o problema indígena. Exemplo disso seriam as revoltas
que se espalham desde 1880, a constituição governamental das Ligas
Pró-indígenas, a fundação do Patronato da raça indígena em 1922
pelo governo de Leguía e a formação das sociedades civis em torno do
índio, como, também, as pesquisas em história e antropologia e a
descoberta das ruínas de Machu Pichu em 1911.
José Carlos Mariátegui foi também fundador da Central Sindical
(1927) e do Partido Socialista (1928) e tinha publicado, sob a forma de
artigos, muitas das passagens que apareceriam em seu clássico Sete
ensaios de interpretação da realidade peruana (1928). O indigenismo
socialista que pregou, tanto em livros quanto na revista, tinha seu
alicerce num entramado de três fatores: a) as forças sociais em

210
mudança, a presença do operariado e do movimento camponês, que,
no período de 1890 a 1924, foi centro de onze sublevações indígenas;
b) uma percepção diferente da construção temporal da nação; c) o
dispositivo marxista como intérprete e canalizador das energias do
presente. Em Sete ensaios, procurará abranger a sociedade em sua
totalidade, na sua dupla vertente, a mundial e a nacional, a fim de
compreender sua problemática, realizando uma análise econômica,
social e política na perspectiva marxista, bem como as relações com as
manifestações do povo e das artes. Partirá, para isso, da consideração
do problema do índio e da terra como uma urgência nacional e de
reivindicação social e espiritual, trabalhando as relações entre situação
social do índio, a sua história e a questão demográfica. A partir dessas
considerações, o autor leva a cabo uma ampla crítica à modalidade de
latifúndio que se dera no país — o gamonalismo — considerando-o a
primeira marca do atraso. Por outro viés, observa, com agudeza, como
a assimilação que o latifúndio fez das comunidades indígenas da serra
não só as petrificou como, também, não soube redirecioná-las como
força nem como meio de produção. No entanto, Mariátegui levanta a
hipótese do que teria acontecido caso a entrada da economia capitalista
tivesse quebrado o poder do latifúndio, considerando a aculturação
das comunidades de forma positiva. Ao mesmo tempo, o isolamento
dos bolsões indígenas nas serras permite o conhecimento de hábitos
de coletivismo e tradições culturais que sobrevivem, ilustrando as
potencialidades de evolução e desenvolvimento da comunidade. Estas
energias deveriam ser absorvidas pelo socialismo peruano como formas
de resistência. Já num viés contrário, a economia da costa, zona onde
convivem o espírito do latifúndio com a tecnificação capitalista, esses
indígenas ora foram aculturados, em um sentido que não restou força
de resistência, ora produziu um despovoamento do índio.
É importante ressaltar que Mariátegui, ao refletir sobre a questão
da identidade nacional e da exclusão do camponês e do indígena, não
fica a salvo das armadilhas que acabam apagando outros componentes
sociais e étnicos, como seria o caso dos negros, dos chineses e, em
grande medida, dos mestiços. Existe uma lógica interna que não lhe

211
permite fugir do bipolarismo da argumentação, embora a colocação
do problema como uma questão sociológica e a sua interpretação
particular do marxismo tenham-lhe permitido rejeitar as teorias da
raça em sua vinculação com o positivismo e o determinismo que
pairavam na época.
Assumir o compromisso com o marxismo deu o caráter de
internacionalismo ao pensamento e à ação de Mariátegui e dos
indigenistas, mas, também, os colocou perante a mundialização do
capital e da cultura, forçando-os a aceitar a necessidade de se abrir ao
cosmopolitismo das vanguardas. Por outro lado, conscientes de que
as “tradições inventadas” remanejadas pelos nacionalismos atuam sobre
o território e o passado, os indigenistas se viram na encruzilhada de
reformular e refundar um novo conceito de nação aliado ao socialismo.
Procuraram desmascarar a interligação entre burguesia nacional e
capitalismo tal como se operaria na realidade dos países colonizados.
Nesse caminho é que se deve interpretar a exigência de que o socialismo
deve assumir uma atitude nacionalista tanto quanto assumir a causa
indigenista implica, para Mariátegui, assumir a causa socialista, quer
dizer uma causa internacional, ainda que em sua modalidade peruana:

A propagação das idéias socialistas no Peru trouxe como


conseqüência um forte movimento de reivindicação in-
dígena. A nova geração peruana sente e sabe que o pro-
gresso do Peru será fictício ou pelo menos não será pe-
ruano enquanto não se constituir a obra que signifique o
bem-estar para a massa, da qual quatro quintos são indí-
genas e camponeses (Mariátegui, 1968, p. 44).

Dentro do espírito de mudança, que caracteriza Mariátegui e o


grupo de Amauta, conceitos chave como os de nacionalismo, socialismo,
vanguarda e indigenismo se constituirão como os operacionalizadores
de uma forma original de refletir a respeito da conjuntura que vive o
país. Assim, um conceito de nação é refundado, mas agora na clivagem
entre uma determinada noção de passado e presente, entre o particular
(a situação de dependência e a fragilidade do país) e o universal (o
ritmo da história mundial), entre o nacional e o cosmopolita.

212
No sétimo ensaio “As correntes de hoje. O indigenismo”,
Mariátegui enfatiza que a sensibilidade nova se alimenta de um
panorama mental do qual o indigenismo literário é um sintoma. O
espírito de ruptura demarcaria, na esfera da arte, uma consciência e
uma literatura sem ataduras com o colonialismo espanhol e o passado
liberal da república, ligando o presente e os tempos anteriores à
colonização, fazendo do indigenismo uma aproximação à
“peruanidade”, através de caminhos universais e cosmopolitas. Por
outro lado, esse panorama mental corresponderia a uma etapa
cosmopolita dentro da história literária nacional, seria mais realista,
mas, também, mais lírica, estaria configurada por um olhar materialista
e por um impulso vital. Essa sensibilidade é o alicerce das tentativas e
esboços da poesia andina, ainda em germe, que aos poucos abandona
a corrente costumbrista para idealizar o índio e estetizá-lo. Porém, a
poética indigenista é, ainda, um assunto de sujeitos mestiços, a
reivindicação dos excluídos e a refundação de uma nação integrada
exigem dos escritores a tomada de consciência do espaço simbólico
que eles ocupam na sociedade.
O conhecido “magisterio” de Mariátegui dentre os escritores e
pensadores indigenistas viabilizou novos caminhos na interpretação
do problema peruano e deve-se frisar que muitos autores
representativos do movimento lhe dedicaram importantes
homenagens, tanto na forma de discursos (que apareceram, de forma
geral, nas décadas de 50 e 60) quanto em formas narrativizadas, no
interior das ficções, nas quais se debatiam o seu protagonismo e sua
herança.
Os indigenistas de 20 e 30 erguiam-se como os atores da oposição
à oligarquia e como os construtores de um novo conceito de integração.
Nesse sentido, a entrada do marxismo, como paradigma preferencial
de leitura sobre a realidade peruana e como modo de ação, colocava o
centro do problema nacional na exploração da maioria da população
camponesa e no problema da estrutura econômica latifundiária. Junto
com as propostas de uma revolução socialista vislumbrava-se uma
nova forma de incorporação dos setores excluídos do país, na busca

213
do equilíbrio social, superando o velho positivismo e o liberalismo de
fachada, tanto quanto os princípios raciais que condenavam as
populações indígenas.
No que tange ao tema da incorporação, o movimento estimula e
começa o trabalho de pensar nas trocas culturais como questão
diacrônica e sincrônica ao mesmo tempo, fato reconhecido
amplamente na fórmula de “Peruanicemos al Perú”. Tendo em vista o
índio de carne e osso, o marginalizado do projeto nacional, e em virtude
dos elementos culturais e de resistência, que sobrevivem em suas
comunidades, esses militantes e artistas propõem uma nova leitura e
interpretação da história do Império Inca, tanto quanto da história
da colônia, uma leitura anti-hispanista, que incorpora na nova tradição
nacional o componente relegado. Num outro sentido, esta riquíssima
vinculação de dois mundos polarizados, pelo menos ao nível do
discurso, assinala os caminhos de um sério trabalho que saiba lidar
com os problemas de tradição e modernidade, fundamentais na hora
de pensar e gerenciar políticas no Peru.
A variante observada do indigenismo socialista do grupo de
Amauta, difere, não tanto por uma questão de etnicidade, mas pela
sua condição de classe emergente, em conflito com as classes
dominantes e pela adaptação do marxismo como crivo para entender
e modificar a realidade. Ángel Rama, em Transculturación narrativa,
procura explicar este indigenismo a partir dos conceitos de classe e
dos modos pelos quais são percebidos os intercâmbios culturais. Em
sua visão, por exemplo, Churata e o grupo de Amauta enquadram-se
numa manifestação especial do indigenismo, chamada de “indigenismo
do mesticismo”. Tal denominação chama a atenção para o setor médio
emergente e mestiço do qual provinham estes porta-vozes, e, além do
mais, alude ao silenciamento de sua identidade mestiça, dada a urgência
de uma conscientização das classes e de armar uma frente que reunisse
a classe média, os operários e os camponeses. A escolha destes
“mesticistas” pelo indigenismo é uma opção de luta de classes, a favor
dos oprimidos, não identitária, já que se constrói a partir da
necessidade da negação de sua própria identidade mestiça. Por outro

214
viés, Rama sublinha o caráter contraditório deste mesticismo, que
continua a refletir sobre o outro, sob o crivo da histórica
“exterioridade”, que recai sobre o indígena e que baseia suas
argumentações nos conflitos polarizados e não nas zonas de
cruzamentos culturais, étnicos e até de classe.
Não é possível pensar o indigenismo de 20 e 30 sem ter em vista
duas linhas de pensamento importantes na América Latina, que
perpassam a constituição do Estado modernizado, pois os indigenistas,
de um modo complexo, retrabalham a partir dessas duas linhas,
exigindo uma modernização e uma entrada na cultura cosmopolita,
através de uma virada socialista. Esta virada não poderia atingir o
equilíbrio social imaginado sem a força do passado, dos mitos e do
sentido das comunidades indígenas e sem o campesinato trabalhando
conjuntamente na mesma direção. Dentre essas duas linhas, a mais
antiga é a que afirma a inferioridade das populações nativas e todo o
seu passado cultural em virtude do progresso e do ingresso no concerto
das nações ocidentais. Esta linha tem como alicerce o programa
“civilização e barbárie”, cunhado pelo escritor argentino Domingo F.
Sarmiento, que se expressa na sua obra Facundo (1848). Esta linha de
pensamento reflete sobre o território espaço-temporal e cultural como
um verdadeiro deserto a preencher. Estas teses são uma forma
parricida, gerada da negação, em que as soluções são trazidas de fora.
A outra linha é a que se debruçará sobre o problema da assimilação
dessas culturas e da problemática da mestiçagem cultural, e que tem
no cubano José Martí (1853-1895), com Nuestra América (1891), e no
uruguaio José Enrique Rodó (1872-1917), com Ariel (1900) as suas
vozes mais representativas. Nos seus programas, propõe-se o “novo-
mundismo”, quer dizer, a procura do próprio para uma autêntica e
nova assimilação à cultura européia, existindo, entre eles, a consciência
de que a divisão racial tinha sido imposta pela colônia e mantida pelas
elites crioulas e mestiças.
Da mesma forma, o indigenismo coloca também em debate uma
ampla discussão acerca da mestiçagem e da conformação sócio-étnico-
identitária do Peru. A defesa da mestiçagem no mundo andino tem

215
sido, de modo geral, produzida e espalhada a partir dos setores de
dominação, com os mesmos atributos de elogio, orgulho e originalidade
com que tem aparecido em outras nações do continente, como no
caso do Brasil e do México. Os sujeitos que a enunciam levantam sua
condição étnica, apagando sua condição de classe e a posição social a
partir da qual falam, como nos casos do Inca Garcilazo e de Riva
Agüero. Riva Agüero publica, em 1916, “El elogio del Inca Garcilazo”,
em que o sentido da peruanidade se constrói sobre a figura real de
um escritor mestiço, tornando-se defesa e proclamação da mestiçagem
pacificadora, nobiliária e ocultando a violência do processo histórico.
Para escritores como Riva Agüero e Victor Belaúnde (1889-1966), da
aristocracia crioula, o mestiço era um produto forjado durante o
período colonial, com valores hispânicos e católicos. A reivindicação
do indígena dentro dessa mescla construía laços com a grandeza do
império incaico, com total desinteresse pelo índio vivo. O socialismo
indigenista de Mariátegui problematizava e rejeitava essas tradições,
contribuindo não apenas para desmascarar a mestiçagem como um
ideologema das classes dominantes, mas, também, para colocar o
problema em outra direção, fazendo um forte apelo ao encerramento
da discussão sobre as raças, e propondo a abertura para análises de
tipo sociológico. Todavia, embora evitando trabalhar com a
mestiçagem, ele a estaria propondo ao reconhecer a urgência da
incorporação do índio como forma do equilíbrio social e não da
harmonia identitária. Ao ser pensada esta incorporação pela via da
aculturação, o sentido dessa aculturação guardaria relação com uma
retroalimentação tanto da cultura ocidental, como da indígena. Apesar
de não aprofundar as reais possibilidades, ele deixou um terreno fértil
para refletir nos modos de entrada e de passagens, mas, por outro
lado, acabou contribuindo para a tipificação pejorativa de um certo
mestiço sócio-étnico, como um sujeito social, ambíguo e desqualificado.
O indigenismo literário do século XX esteve vinculado tanto à
esfera dos novos regionalismos, quanto à ruptura tradicionalista e às
vanguardas andinas. Seus atores se moviam entre diferentes disciplinas
como a incipiente antropologia, a história, as artes e a militância política.

216
Este indigenismo artístico procurou e implicou uma transformação e
cancelamento dos suportes ideológicos e das convenções estéticas do
indianismo, do naturalismo e do modernismo hispano-americano,
sendo, de um modo geral, um movimento anti-oligárquico. Num outro
viés, assim como o discurso indigenista desde a colônia representa
uma discursividade heterogênea e não monolítica, essa
heterogeneidade se observa, também, pelos cruzamentos e passagens
entre formas estéticas diversas que vão desde a opção pelo hermetismo
até o não-estilo de alguns indigenistas (Cornejo Polar,1994a,p.163),
configurações discursivas de campos ideológicos bem distintos, tanto
quanto pela atuação e representatividade que foram adquirindo
diversos grupos indigenistas, convocados e dados a conhecer pela
própria revista Amauta, respondendo às necessidades e
particularidades de diversas regiões do país. Num sentido amplo, o
indigenismo podia se misturar com o romance social e de denúncia,
com as estéticas de vanguarda e, ao mesmo tempo, levantar o
regionalismo ou negá-lo. Assim, entre as configurações discursivas de
campos ideológicos diversos, pode se destacar a tendência “telurista”
com dois de seus romances mais exemplares: Pueblo enfermo (1909),
do boliviano Alcides Arguedas (1879-1946), e Huasipungo (1934), do
equatoriano Jorge Icaza (1906-1978). Essa tendência se, por um lado,
mantinha o tom de acusação, por outro, manifestava uma persistência
dos estereótipos positivistas, da psicologia das raças e do determinismo
do meio. Apesar desses componentes, o romance de Icaza explora
com maior profundidade o mundo andino, assim como se abre à
experiência com a língua popular e o estilo “tremendista”. No caso
especial de Alcides Arguedas, é o seu próprio percurso de escritura
que vai definir alguns dos caminhos do indigenismo, pois seu primeiro
romance Wuara wuara (1904), embora tenha sido o primeiro a tematizar
uma revolta indígena, situa-se dentro dos parâmetros do romantismo
e, portanto, está mais próximo do conceito forjado na primeiras
décadas do século XIX. O seu romance mais conhecido, Raza de bronce
(1919), expressa uma visão mais negativa e pessimista, já que, apesar
da diminuição do pensamento racista e determinista, o indígena

217
continua a ser considerado como bárbaro. A tendência mais mítica, e
da qual participam os indigenistas radicais, propunha a reivindicação
e a volta da civilização incaica e foi, de um modo geral, condensada em
Tempestad en los Andes (1927), de Luis E. Varcácel. Por sua vez, um dos
principais romances de denúncia social, El Tungsteno, escrito por Cesar
Vallejo, em 1931, assinala as trilhas diversificadas do indigenismo, pois
é este autor, nascido na cidade interiorana de Chuco, quem estabelecerá
os novos parâmetros da poesia de vanguarda no Peru com a publicação
de Trilce, em 1922, livro que Mariátegui reconhece, no seu Sete Ensaios,
como a verdadeira voz da alma indígena. Também, próximo ao
aparecimento de El Tungsteno, Ernesto Reyna publica o seu romance
El Amauta Atusparia (1930), romance de denúncia dos problemas do
campesinato e que abriria a trilha do romance sobre o campesinato, e
que, como no caso do livro do Varcárcel, também teve um prefácio de
Mariátegui. Outra tendência importante é aquela que vinculou o
indigenismo com as poéticas da vanguarda, na qual se destaca o grupo
de Puno, que sob o nome de grupo poético “Orkopata”, reunia-se em
torno do Boletín Titikaka (1926-1930) e levou a cabo importantes
pesquisas na área da linguagem poética. A revista era dirigida, entre
outros, por Gamaliel Churata, que também é o autor da obra El pez de
oro (19571). A experimentação vanguardista e urbana na prosa tem
seu exemplo em Um hombre muerto a puntapiés (1927), de Pablo Palacio.
Entre outros grupos que ganharam destaque se encontra o grupo de
Cuzco, com as suas revistas Kosko (1924-25) e Alma Quechua (1934-
1939).
Não obstante, é a partir de 1930 que surgem os autores e as obras
mais importantes do movimento.Tanto os dois peruanos, Ciro Alegría
(1909-1967), com os seus romances La serpiente de oro (1935), Los perros
hambrientos (1938) e El mundo es ancho y ajeno (1941), e José María
Arguedas, com o seu primeiro livro de contos Agua (1935) e o seu
romance Yawar Fiesta (1941), quanto Jorge Icaza com o seu romance
Huasipungo (1934), assinalarão o ponto alto das narrativas indigenistas,

1 Esta obra é uma volumosa recopilação dos escritos dispersos, durante muitos anos, por
Churata e que se atém ao espírito do indigenismo dos 20.

218
as vias possíveis de tratamento e, como no caso do Arguedas, a
superação do próprio indigenismo.
Este indigenismo literário de modo significativo capta as relações
e dependência dos personagens no seu meio geográfico e social,
colocando o personagem índio como agonista, aprofundando, assim,
a perspectiva ambiental e psicológica. A questão da reivindicação social,
da denúncia e dos conflitos culturais aparece de uma forma nítida e
contundente em Yawar fiesta de Arguedas e em El mundo es ancho y
ajeno de Alegría. De modo geral, pode-se dizer que o indigenismo
narrativo estava marcado e atravessado pela procura de proximidade
com o mundo indígena, porém, isso resultava num trabalho de
permanente autocrítica, pois resultava numa pesquisa que questionava
a forma de encarar o tema, de pensar a região, a visão sobre o outro,
os graus de passagens entre o mundo da realidade e do mágico, tanto
como a linguagem ou as linguagens possíveis para a representação
desse mundo étnico, cultural e regional. Muito disso já tinha sido visto
e colocado por Mariátegui, no seu livro de 1928, nestas palavras:

A literatura indigenista nos não pode dar uma versão


rigorosamente realista do índio. Ela deve ideá-lo e
estetizá-lo. Também não pode nos dar a sua própria alma.
É ainda uma literatura de mestiços. Por isso se chama
indigenista, e não indígena. Uma literatura indígena, se
deve vir, virá no momento exato. Quando os próprios
índios estejam capacitados a produzi-la (Mariátegui, 1968,
p. 245-6).

As palavras de Mariátegui foram retomadas, examinadas e


ampliadas por vários críticos posteriores, como Cornejo Polar, que
consegue elaborá-las num sentido mais contemporâneo:

Sem dúvida o assunto tem a ver com a excentricidade do


narrador em relação ao mundo narrado, mas, talvez, te-
nha relação também (…) com a forma em que constrói
um discurso que, por um lado, refere-se a um sujeito
emissor constituído como agência única da autoridade

219
narrativa e, por outro, a um referente pré-valorizado
demais e portanto recolhido em um sentido forte e
impositivo. Noutros termos, o narrador desprende só
uma voz e impõe um só significado ao universo da re-
presentação (…) [o que] implica, de modo específico, que
na sua condição de relato heterogêneo entre dois mun-
dos sócio-culturais fortemente diferentes, o romance
indigenista de então (até El mundo es ancho y ajeno) não
possui instrumentos de modo a processar com eficiência
o conflito a partir do qual surge e com o qual, de certa
forma, está constituído (Cornejo Polar, 1994a., p. 206).

As primeiras narrativas de Alegría e Arguedas mantêm a


separação do narrador e do protagonista, conhecida dentro da crítica
como “exterioridade”, entretanto, essa separação permanece sempre
questionada como conflito através de vozes que entram nos diferentes
planos da enunciação, com a intenção de superá-la. Isto acontece tanto
no caso do primeiro romance de Alegría, com figuras desgarradas
pelo biculturismo e pela violência, quanto no primeiro livro de
narrativa de Arguedas. De certo modo, na medida em que os escritores
iam produzindo as suas obras, a partir dos seus depoimentos e do
funcionamento do sistema de crítica que instaurara Amauta, o
movimento indigenista ia se superando. Assim a expressão dos conflitos
do homem com o seu próprio meio geográfico conseguiu fugir do
velho regionalismo e pôde dar conta do aprofundamento no
conhecimento da área cultural da “sierra”, mesmo quando esta diferia
em termos sociais, culturais e étnicos. No caso de Alegría, trata-se da
serra do norte e no caso de Arguedas, é o sul do país.
No entanto, prevaleceria uma visão dualista do país. A sociedade
peruana estaria conformada por dois mundos independentes, quase
alheios entre si e incomunicáveis. Nas artes plásticas e na literatura, a
questão conflitiva da sociedade era expressa através do enfrentamento
do latifundiário e do índio, os mundos representados eram os povoados
do interior e as capitais de província. Assim, a crítica o concebeu como
um “insularismo”, em oposição ao “universalismo” obtido pelas obras
das décadas seguintes. Porém, o insularismo atribuído ao indigenismo

220
(crítica que não deveria atingir nem Alegría, nem Arguedas) também
foi praticado, de alguma maneira, pela crítica literária até 1970, quando
começou o interesse pela sua significação sócio-cultural enquanto
modalidade artística. Desta forma, o indigenismo permitiu uma outra
entrada para a observação dos conflitos étnicos e de classe em variadas
regiões americanas, fazendo dialogar diferentes obras de vários países
entre si ou permitindo uma leitura a partir da conquista do continente.
Dois conceitos foram cunhados pela crítica, o de literatura
heterogênea (Antonio Cornejo Polar) e o de literatura da
transculturação (Ángel Rama).
Além da constante auto-reflexão dos escritores e das suas
próprias mudanças na produção de suas obras, aparece como sintoma
de um gradual desbotamento, já por volta de 1930, o ensaio de Uriel
García, “El nuevo indio”, no qual o autor propõe a mestiçagem
integradora como a origem da capacidade universalizante da
experiência americana e, ao mesmo tempo, como uma superação dos
anteriores indigenismos e como rejeição à tentação da volta ao passado,
discutindo, em particular, com as idéias e a herança literária de
Valcárcel (Cornejo Polar, 1994a, p.181-6). Esta etapa, também conhecida
como “neo-indigenismo”, não é, na realidade, outra coisa senão o
terreno fértil da literatura transculturadora à que faria referência
Rama décadas depois, e na qual Arguedas resulta voz, escritura e
testemunho.
De um modo particular, a obra de Arguedas, desde seus começos,
interpretava o indigenismo na sua dupla função, não apenas como
documento acusatório, mas, também, como revelação do universo
índio-andino na sua complexa relação com o mundo da costa, do
branco e do mestiço. No entanto, acarretava um problema que se
colocava no avesso da própria visão de mundo dos indigenistas e com
isso punha em conflito até as suas próprias convicções, isto é, a proposta
original do autor implicava um movimento contrário: trazer o mundo
indígena para o mundo ocidental, mas “indigenizando” a língua
castelhana e permitindo os cruzamentos e conflitos culturais nas ordens
da lógica, da sintaxe e da própria narrativa. Esta passagem começará

221
com a escritura de Los ríos profundos (1958) e será ampliada e levada
até o extremo em Todas las sangres (1964). De certa forma, pode-se
falar de um “indigenismo às avessas”, pois não seria o mundo andino
interpretado a partir da visão da modernidade, mas, ao contrário, a
modernidade seria compreendida na perspectiva da racionalidade
indígena, que também havia sofrido o impacto da modernidade. Nesse
caso, o maior exemplo seria a obra póstuma de Arguedas, El zorro de
arriba y el zorro de abajo (1971), como, também, os testemunhos que
surgem e são publicados a partir de 1980 (Cornejo Polar, 1994b).
Em 1970, Arguedas podia afirmar que a literatura indigenista
tinha deixado de ser indigenista pelo simples fato de expressar o Peru
como totalidade em conflito, mas que por outro lado continuava a sê-
lo na medida em que continuava a falar acerca do valor da população
nativa (Arguedas,1976, p.430). Estas declarações de Arguedas
coincidem com a publicação de Todas las sangres, romance em que se
expressa a tentativa de abranger o conjunto da nação a partir, também,
de uma mudança de cenário, da pluralidade de personagens
ocidentalizados e indigenizados, e da procura da superação dos
dualismos. Por sua vez, estão inscritas no contexto que se abre em
1950, no qual a reflexão da realidade peruana vai deixando de lado o
pensamento dualista, para se inserir nas preocupações com o
capitalismo, o subdesenvolvimento e a dependência que, em particular,
no Peru, produziu a decomposição das sociedades andinas.
Em seu famoso “Yo no soy un aculturado”, de 1958, Arguedas
ressaltava o poder da cultura mestiça pelo fato de não ser uma cultura
vencida: “Eu não sou um aculturado; eu sou um peruano que com
muito orgulho, como um demônio feliz, fala em língua cristã e em
índio, em espanhol e em quichua” (Arguedas, 1976, p. 432).
Demarcando o percurso tanto da cultura indígena, como das formas
de mescla que a modernização trouxera para o Peru, o autor encerrava,
no nível do discurso e da literatura com Todas las Sangres e com El
zorro de arriba y el zorro de abajo, a razão de ser do indigenismo, abrindo
canais para novas formas de expressão e de luta. Cornejo Polar

222
caraterizou esse momento como uma forma própria de esgotamento
do indigenismo:

A questão não passa por fundar um “modelo lingüístico”


que “superando as contradições entre dois povos e duas
culturas” se projete, de modo premonitório para a cons-
tituição de uma sociedade nova e provavelmente homo-
gênea, mas (…) por reconhecer a inviabilidade (e até a
ilegitimidade) de um modelo que faz do que é vário,
diverso e problemático apenas uma coisa só (Cornejo
Polar, 1994a, p. 218).
.
Fruto dessa ampliação da sensibilidade diante do mundo, o
indigenismo de Arguedas, a partir de Los ríos profundos (1958), começa
a trilhar os caminhos da prosa poética e do realismo mágico, atingindo
com Manuel Scorza (1928-83) uma fusão interessantíssima ao trazer
para a narrativa o humor, o desenfado e a fantasia perante a história
oficial do Peru e, junto com isso, a narrativização do conflito armado,
quando da aparição do movimento Sendero Luminoso. A sua obra
mais conhecida, a saga em cinco volumes La guerra silenciosa (1971-
79), universaliza, em palavras de Cornejo Polar (1984), a problemática
das populações indígenas e os seus esforços liberadores.

Referências Bibliográficas
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223
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cultura latinoamericana, vol 3, México: Fondo de Cultura Económica, 1993.

224
LITERATURAS MIGRANTES

Maria Bernadette Porto


Universidade Federal Fluminense/CNPq
Sonia Torres
Universidade Federal Fluminense

Primeiras Pistas
A migração não é um fenômeno recente; na verdade, o movimento
dos povos sobre a terra existe desde os tempos mais remotos, em
virtude de catástrofes naturais, de guerras e/ou conquista de um povo
por outro, levando determinadas comunidades a deslocar-se e
reorganizar-se socialmente, em novas terras. Mas o fato é que, com a
constituição e consolidação, no Século XIX, dos estados-nação, a
demarcação de fronteiras adquire importância crescente, e nasce,
então, a moderna ideologia de “segurança nacional”. É importante
assinalar que é a partir dessa ideologia que a questão da imigração
começa a ser tratada como “problema”, já no Século XX –, com as
conseqüentes políticas de controle de fluxos migratórios e de fronteiras
cada vez mais policiadas, por parte de países do chamado ‘centro’. É,
também, no Século XX que a imigração passa a ser relacionada, cada
vez mais, às crises econômicas e conturbações sociais internas de países
periféricos, resultantes, em grande medida, da política externa das
nações hegemônicas, e do fenômeno do pós-colonialismo.
A imigração – sua dinâmica, suas causas e conseqüências
econômicas, políticas e culturais – é, portanto, um dos temas mais
discutidos e estudados da contemporaneidade. O sociólogo Immanuel
Wallerstein – autor da monumental trilogia The Modern World System
(1974), e responsável pela famosa separação do mundo em países de
centro e de periferia –, prevê que, nos próximos 50 anos,
testemunharemos grandes fluxos migratórios, inevitáveis. Como
conseqüência, a demografia vai mudar de forma dramática: haverá
uma cascata de fluxos, que irá mais rápido do que jamais ocorreu na
história do planeta, criando um efeito político radical, por causa de
sua velocidade e de seu tamanho (Wallerstein, 1999, p. 9).
Numa época em que “todo o planeta está se tornando território
de deslocamentos cruzados”, a tal ponto que é “muito difícil dizer se
certos fenômenos são de imigração ou migração (Eco, 1998, p. 109), é
inegável a atualidade dos estudos sobre a produção cultural de
(i)migrantes. Ao se reconhecer que, no próximo milênio, a Europa
será um continente multirracial ou “colorido” (Eco, 1998, p. 110) – o
que supõe a idéia de mestiçagem –, ou ao se admitir, como o escritor
e ensaísta antilhano Édouard Glissant, que o mundo caminha em
direção à crioulização, “movimento perpétuo de interpenetrabilidade
cultural e lingüística” (Glissant, 1995, p. 92), sugere-se a dificuldade
de se estabelecerem contornos da identidade individual e coletiva e o
caráter móvel das fronteiras culturais num contexto caracterizado
por profundas transformações socio-demográficas e conceituais. Como
afirma Sherry Simon:

As migrações sem precedentes da era pós-colonial, a ace-


leração das comunicações e dos deslocamentos, e a
internacionalização da cultura de massa daí decorrente
se acompanham de profundas mudanças na ordem das
filiações identitárias. A heterogeneização crescente das
populações e a disseminação das nacionalidades desafi-
am imagens e mitos da especificidade da cultura nacio-
nal; em todo o Ocidente, o ideal de uma cultura nacio-
nal monolítica se torna cada vez mais difícil de ser atua-
lizado. (Simon, 1991, p. 17).

Hoje, os estudos sobre (i)migração e etnicidade nas sociedades


industriais avançadas são de relevância crescente, no nível global,
porque nos ajudam a buscar compreender as interrelações entre fluxos
migratórios internos e externos, visto que, muitas vezes, o êxodo do
campo para a cidade, em determinados países, freqüentemente, leva

226
ao cruzamento de fronteiras internacionais. No caso da América do
Norte, o México serve como um dos melhores exemplos: a cidade de
San Diego é, hoje, não apenas um corredor para imigrantes ilegais
rumo a Los Angeles ou a Chicago, mas o local preferido e destino
final de milhares de mexicanos, legais ou ilegais, em busca do Sonho
Americano.
É importante ressaltar que a globalização das economias, das
culturas e dos conjuntos geopolíticos não impede a irrupção de
reterritorializações fictícias com o local, os regionalismos, os
nacionalismos, os etnicismos e os culturalismos, pelos quais se buscaria
uma segurança em um mundo instável e difícil (Robin, 1994, p. 217).
Sensível à coexistência de tais apelos em nosso tempo, num texto
centrado nas literaturas migrantes no Quebec, Pierre Nepveu salienta
a ambigüidade da consciência contemporânea: se, por um lado se
depreende o medo da mistura e do heterogêneo, por outro, identifica-
se a presença do híbrido e da impureza em produções culturais de
nossa época (Nepveu, 1988, p. 210).
Tendo por base tais tendências contraditórias, as presentes
reflexões visam discorrer sobre algumas perspectivas interessantes
de análise das construções identitárias da pós-modernidade e do pós-
colonial abertas pelo fenômeno da (i)migração, especificamente na
América do Norte. Ao se interrogar sobre as migrações na história da
humanidade e, sobretudo, as do Terceiro Milênio, Umberto Eco
propõe a distinção dos termos “imigração” e “migração”. A seus olhos,
o primeiro supõe o deslocamento de alguns indivíduos (mesmo muitos,
mas em medida estatisticamente irrelevante em relação à cepa original)
que se transferem de um país para outro. Quanto às migrações,
referem-se ao movimento de um povo inteiro que, pouco a pouco, se
desloca de “um território para outro (e não é relevante quantos
permanecem no território original, mas em que medida os migrantes
mudam radicalmente a cultura do território para o qual migraram)”.
E se na imigração, “os povos podem pensar em manter os imigrantes
em um gueto para que não se misturem com os nativos”, no caso da
migração, “não há mais guetos e a mestiçagem é incontrolável” (Eco,

227
1998, p. 109). A fim de darmos conta da complexidade tanto dos
espaços quanto dos textos culturais ‘fronteiriços’ ou ‘mestiços’, que
pretendemos discutir aqui, trabalharemos com este último conceito,
visto que ele abrange os fluxos e trânsitos da Nova (des)Ordem Mundial.

Escritas da Desterritorialização: (In)Definições


Nas Américas – em particular no Quebec e nos Estados Unidos –, a
expressão “literaturas migrantes” designa a produção literária
construída a partir da perspectiva do (i)migrante, constituindo-se
como uma prática concreta e crítica da desterritorialização (cf. Nepveu,
1989, p. 21; Deleuze & Guattari, 1975; García-Canclini,1995), do
estranhamento produtivo, vivenciado no espaço estrangeiro sob a
forma de tensões, trocas e travessias de línguas e culturas, de trânsitos
entre o ser e o tornar-se. Situados em entre-lugares marcados pela
articulação de diferenças culturais, tais escritores encontram, nestes
interstícios, a oportunidade de rever o conceito de fronteira, encarada
como “o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente” (Bhabha,
1998, p. 24 – grifo nosso). Aí se elabora o imaginário migrante que
embaralha pontos de referência e mistura as categorias do próximo e
do distante, do familiar e do estrangeiro, do semelhante e do diferente.
(Nepveu, 1988, p. 199-200). Outros autores – nômades ou não –,
propuseram algumas definições das literaturas migrantes, apontando
aspectos que se manifestam no âmbito dessa produção literária:

Essa escrita é a revelação do cruzamento das culturas


(Simon Harel).

A migração da escrita não é feita num sentido único. Em


outras palavras, se essa escrita vinda de alhures sofre a
influência do lugar onde se insere, isso não ocorre sem
sua incidência sobre a escrita daí (Anthony Phelps).

Escrita: o que é fixo. Migrante: o que se movimenta. Es-


critas migrantes. É quase uma adivinhação: o que é, o
que é, é fixo e se movimenta? (Anthony Phelps).

228
Como todas as culturas, a do imigrante engloba domíni-
os da experiência humana que não podem ser inteira-
mente traduzidos pela língua e, ainda menos, por uma
única língua (Marco Micone).

O país que acolhe o imigrante não é, portanto, nem uma


página branca, nem uma página pronta, é uma página
que está sendo escrita (Amin Maalouf).

Trocas e Negociações no Jogo Transcultural


Na troca entre símbolos tradicionais e circuitos de comunicações
internacionais, indústria cultural e migrações, questões sobre
identidade e nacionalidade, defesa da soberania nacional e
apropriações desiguais do conhecimento e da arte não desaparecem.
Os conflitos não são apagados; são, antes, colocados em um registro
diferente, multifocal, e a autonomia de cada cultura é repensada
(García Canclini, 1995: 240-241).
No âmbito da produção migrante, o jogo de mão dupla,
estabelecido pelos dois lados em contato, torna evidente que nenhuma
cultura pode absorver totalmente uma outra nem se furtar às
transformações decorrentes de tal confronto. Daí decorre, em
particular, o caráter transitório da cultura (i)migrada que, pela
impossibilidade de se manter inalterada no espaço do Outro, pode
fecundá-la através de trocas criativas próprias da transcultura.
Modelo interpretativo privilegiado em meios literários e artísticos
marcados pela experiência das movências e mutações identitárias, o
conceito de transculturação deve ser aqui evocado. Criado, há mais
de cinqüenta anos por Fernando Ortiz, discípulo de Malinowski, para
dar conta da complexidade étnica de Cuba, seu país natal, este termo
remete à idéia de passagem e às diferentes fases do processo de transição
de uma cultura a outra. Baseando-se na leitura do livro Contrapunteo
del tabaco y del azúcar (Ortiz, 1983), o quebequense Jean Lamore
considera a transcultura um processo irreversível, marcado por um
conjunto de transmutações constantes que ocorrem de um lado e de
outro, do qual surge uma nova realidade, vista não como mosaico de

229
caracteres, mas como fenômeno original e criativo. (Lamore, 1992, p.
47).

As Literaturas Migrantes no Quebec


No Canadá – e, em especial, no Quebec –, nos últimos vinte ou
trinta anos, modificou-se o perfil dos imigrantes que aí se instalaram:
se antes eles eram provenientes de países europeus, a partir dos anos
70, eles se originam das Antilhas, Ásia e África, o que acarretou
mudanças no panorama social quebequense. Para Berrouët-Oriol e
Robert Fournier (1992, p. 8), o Terceiro Mundo francófono deixou
de ser um dado longínquo para os quebequenses, que passaram a
identificá-lo no seu próprio espaço.
Até os anos 60, falava-se de homogeneidade em se tratando do
Quebec, visão difundida pelas elites no século XIX, que não
correspondia, necessariamente, à experiência vivida no cotidiano, mas
que persiste ainda, de certa forma, nos dias de hoje. Tal homogeneidade
se baseava na crença da mono-identidade minoritária do Quebec,
fundamentada na defesa da língua francesa e da religião católica,
alicerces que permitiam o reconhecimento da cultura nacional e a
ocultação das divisões e conflitos de uma sociedade em vias de
industrialização.
Ora, com a chegada de novas levas de imigrantes oriundos de
países não europeus, o caráter heterogêneo da cultura quebequense
se tornou cada vez mais visível. E se anteriormente obras literárias
colocavam em relevo a figura de imigrantes, o que é novo, nos anos
80, refere-se ao fato do reconhecimento, por parte da crítica, da
pluralidade cultural da escrita quebequense, ou, como quer Pierre
Nepveu (1988), dá-se a tomada de consciência da multiplicidade de
centros de referência identitária no âmbito da literatura produzida
no Quebec. Identifica-se, pois, a passagem de uma “presença implícita
do heterogêneo, mais ou menos difuso” a “um pensamento explícito
e amadurecido do heterogêneo que constitui um conceito operatório
na elaboração e na crítica das práticas e teorias literárias, sociais e
culturais” (L’Hérault, 1991, p. 57).

230
Com o inegável aporte de autores migrantes e de reflexões sobre
sua produção literária, teve lugar a redefinição identitária dos
quebequenses, cujo imaginário se modificou graças às trocas e aos
contatos com a diversidade do Outro, próprios do processo
transcultural. Desta forma, a pluralidade de vozes alófonas (entre as
quais se inclui o escritor Sergio Kokis, de origem brasileira) levou à
releitura crítica do mito do “Québécois pure laine” (“quebequense
pura lã”), fundamentado na concepção de uma identidade plena, pura
e estável. Um exemplo de tal revisão se depreende na fala de jovens
poetas de origem haitiana, instalados no Quebec desde sua infância,
que, motivados pelo desejo de serem reconhecidos no seio da literatura
quebequense, chegaram a se definir, de modo irreverente, como “poetas
pura lã pixaim”, o que aponta para uma situação intervalar e ambígua
(Phelps, 2000, p. 94, 95).
Mais recentemente, adotando a perspectiva migrante, a escritora
quebequense Lori Saint-Martin também propõe uma leitura crítica
do clichê “Québécois pure laine” em seu conto “Pur polyester” (Porto,
2000). Ao assumir a ótica da “écriture du hors-lieu”, a autora mostra
as angústias e contradições vivenciadas por uma jovem imigrante que,
pelo seu olhar novo, questiona a experiência da (i)migração. Marcado
pelo caráter plural de impossibilidades (entre outras, a impossibilidade
de chegar, de se tornar quebequense, de traduzir, na língua do Outro,
seus próprios desejos e sentimentos), o ser migrante se situaria no
espaço entre duas línguas, duas culturas, duas memórias culturais
(Porto, 2000).
Falar da produção migrante no Quebec passa, necessariamente,
pelo reconhecimento da representação do Outro na literatura
quebequense na qual, antes mesmo da emergência de autores nômades,
insinuavam-se marcas do heterogêneo, tal como aparece nas obras de
Jacques Ferron e de Gabrielle Roy, por exemplo. Além disto, segundo
Pierre Nepveu (1988, p. 200-201), o imaginário quebequense se definiu,
desde os anos 60, pela presença do exílio (físico e fictício), da falta, do
país ausente ou inacabado. Como sugere Maximilien Laroche (1997,
p. 612), a profunda redefinição identitária dos quebequenses traz,

231
também, de novo à baila o grande debate canadense entre francófonos
e anglófonos, a complexidade das relações entre quebequenses e a
França e, ainda, a necessidade de se rever a questão dos autóctones,
estrangeiros do interior.
Os novos fluxos migratórios se inseriram em um Quebec marcado
por condições particulares: do ponto de vista político, após a Revolução
Tranqüila, que desencadeou significativas mudanças estruturais na
sociedade e o questionamento de suas bases, os quebequenses passaram
de uma sociedade rural, agrária e católica a uma sociedade moderna,
industrializada e leiga, que aspirava a se definir em termos de país, de
nação em direção à independência. Além disto, em 1980, momento
posterior ao plebiscito, deu-se uma pausa no grande debate nacional
para se conferir relevo a outras questões importantes, como a da crise
da natalidade e a imigração. Do ponto de vista lingüístico, a adoção da
lei 101 – que consagrou o francês como língua oficial do Quebec –,
provocou mudanças no próprio exercício cotidiano da língua francesa.
Outro aspecto deve ser evocado: a idéia de nacionalismo também foi
revista, evoluindo de um discurso agrário e conservador a um discurso
nacionalista moderno que visa, entre outras coisas, a integrar os
imigrantes à maioria francófona (Berrouët-Oriol & Fournier, 1992, p. 8).
Para melhor oferecer referências sobre a produção migrante no
Quebec, alguns dados devem ser lembrados aqui. Publicado no interior
do livro L’écologie du réel (1988), o capítulo “Écritures migrantes”
constitui o primeiro estudo consagrado à literatura migrante, em seu
conjunto, no âmbito de uma obra crítica sobre a literatura
quebequense. Apontando para a perspectiva de uma literatura “pós-
quebequense”, construída graças à experiência da desterritorialização
e à pluralidade de centros de referência, Pierre Nepveu salienta traços
significativos da mesma produção: a mestiçagem, a hibridação, o plural,
o desenraizamento, a transcultura, que, ao lado de outros aspectos, a
aproximam da pós-modernidade.
Para a divulgação de temáticas privilegiadas em obras migrantes,
foram criadas revistas, que permitiram a circulação de idéias e o debate

232
crítico voltados para a experiência das migrações (é o caso de Dérives,
Spirale, Vice Versa), e a coleção de estudos sobre grupos étnicos,
inaugurada pelo Institut Québécois de Recherche sur la Culture. Colóquios
foram, igualmente, realizados em torno das literaturas migrantes,
sendo que o primeiro, Écrire la différence, organizado em 1985, pela
revista Vice Versa, reuniu pesquisadores que trataram de aspectos que
iam da etnicidade à escrita, da política do desenvolvimento cultural à
mestiçagem (Gauthier, 1997, p. 16). Editoras, como Guernica, Nouvelle
Optique e as Edições Balzac (através da coleção “Autres Rives”)
também contribuíram para a divulgação de textos nômades.
Se no panorama atual da produção migrante surgida no Quebec
é possível depreender a exploração de certos temas em comum, e a
valorização de uma prática estética fundamentada na circulação de
signos privilegiados, não se pode, entretanto, considerar, sob uma
rubrica uniforme, autores oriundos de países muito díspares, que
experimentam, de diferentes modos, a vivência do exílio. Exílio
lingüístico, cultural e geográfico, conhecido de perto por autores
migrantes, que se desligaram de sua terra de origem ou, mais
indiretamente, por escritores filhos de imigrantes que, embora tendo
nascido no Quebec, sentem-se deslocados em um cotidiano no qual,
ao mesmo tempo, se vêem excluídos e incluídos. Assim, nos textos
migrantes do Quebec, trata-se de mostrar a terra natal através da
reinvenção da memória, reelaborada a partir de rememorações pessoais
de um vivido, ou da reconstituição de lembranças nas quais se mesclam
referências familiares e traços ficcionais. Além disto, autores de um
mesmo país podem já trazer na sua bagagem identitária familiar as
marcas de migrações e mestiçagens anteriores, o que sugere a
necessidade de se levar em conta as condições particulares em jogo na
produção de um texto migrante. Logo, cabe ressaltar que o caráter
plural de imaginários próprios da produção migrante pode ir além
da duplicidade de pertencimentos. Isto ocorre porque a diversidade
de referenciais identitários pode estar presente já no país de origem
de autores nômades que, ao se fixarem no Quebec, aí inscrevem a
complexidade de seus componentes identitários. É o caso de escritores

233
magrebinos que conhecem, em sua terra natal, tensões e conflitos
decorrentes de confrontos entre culturas diversas, reformulando sua
identidade no novo contexto que, por sua vez, modifica-se com a sua
presença.
No interior da diversificada produção migrante no Quebec,
reconhece-se, cada vez mais, a presença do que se convencionou
chamar, com certo grau de eurocentrismo, de “sul francófono”, ou
seja, representantes do Haiti, do Maghreb, do Oriente Médio e do
Extremo Oriente. Nesse contexto destacam-se, em especial, duas
comunidades culturais: a dos ítalo-quebequenses e a dos haitianos,
que ilustram a coexistência de imigrações muito distintas no Quebec.
No que concerne aos autores de origem italiana, sua atuação se
faz notar em diferentes áreas culturais, pois, além da produção literária
e crítica, alguns se dedicam à tradução, à edição e ao jornalismo, como
Fulvio Caccia, fundador da revista Vice Versa e autor dos livros Quêtes
(em parceria com Antonio D’Alfonso) –, que reúnem textos de autores
ítalo-quebequenses – e Sous le signe du Phénix (1985), que apresenta
entrevistas com quinze autores de origem italiana, que ali refletem
sobre questões como o devir minoritário, o projeto transcultural, as
práticas de resistência à assimilação daqueles que, tendo sido
considerados como gens du silence, pelo seu conterrâneo Marco
Micone, se apoderam da palavra e de outras formas artísticas para
inscreverem a sua diferença remodelada em contato com o Outro.
Quanto à comunidade haitiana, ela decorre de fortes fluxos
migratórios, que se deveram à repressão de Duvalier e à abertura do
Canadá à política de imigrações. No período entre 1968 e 1983, o
Haiti ocupa o primeiro lugar entre os países de imigração no Quebec.
Segundo estudos feitos por Jean Jonassaint (1986), a literatura dita
haitiana é, majoritariamente, produzida fora do Haiti (em Nova York,
Montreal, Paris e Dakar), o que lhe permite reconhecer uma diáspora
haitiana. Ao se estudar a obra de autores haitianos, que vivem e
escrevem no Quebec, deve ser considerado o que Maximilien Laroche
(1991) chama de o “duplo palco da representação”, já que os mesmos
escritores misturam em seus textos imagens e signos de sua terra natal

234
e as marcas do espaço quebequense. Isto aparece, por exemplo, no
universo de Émile Ollivier que, ao se ver numa situação de
esquizofrenia simbólica, sente-se duplamente desprendido, desligado
da realidade haitiana e do contexto quebequense que estão na base de
seus fantasmas, desejos e alegrias (Jonassaint, 1986, p. 88).
Apesar do reconhecimento cada vez maior das escritas migrantes
no Quebec, elas ainda são alvo da resistência em certos meios culturais.
Isto porque a palavra nômade desestabiliza e inquieta as certezas
identitárias de um Quebec idealizado pelas elites, a partir da idéia de
homogeneidade. Uma das provas do incômodo causado pela aceitação
da literatura migrante no Quebec – o que se comprova por premiações
que conferiram destaque a vozes alófonas em detrimento de autores
quebequenses –, se refere à polêmica criada em torno da conferência
de Monique LaRue, L’arpenteur et le navigateur, publicada como livro.
A escritora desenvolve reflexões sobre duas figuras míticas presentes
no imaginário quebequense: o geômetra e o navegante que, remetem,
de certo modo, aos dois narradores analisados por Benjamin em seu
clássico estudo. Ao primeiro, movido pela paixão da medida, coube a
exploração do território no início da colonização e o estabelecimento
de fronteiras. Por sua vez, opondo-se ao caráter sedentário do
geômetra, o navegante rompe as amarras, larga o seu passado, mas
transporta com ele sua memória (Larue, 1996, p. 26). Ao identificar a
complementaridade de tais figuras, LaRue mostra que, para navegar,
o navegante não pode dispensar o trabalho do geômetra, e que um
mundo constituído apenas por navegantes seria destituído de marcas.
Daí LaRue aposta numa identidade quebequense, que supõe
apropriações e desapropriações, enraizamentos e desenraizamentos,
num jogo contínuo entre o ser e o vir a ser. Em outras palavras, esta
conferência de LaRue apresenta considerações interessantes, que
contribuem para as reflexões sobre a produção migrante e sobre a
literatura quebequense em geral, nas quais, ao lado dos apelos do
enraizamento, teria havido sempre lugar para as práticas da
mobilidade.

235
Discorrer sobre textos migrantes leva, muitas vezes, a reflexões
em torno da cidade de Montreal, espaço privilegiado das trocas
interculturais e do inacabamento identitário. Ao acolher, em seu
interior, tradições culturais diversas que, aí transplantadas, acabaram
por interagir com as que foram elaboradas no Quebec, Montreal
oferece a escritores migrantes a oportunidade de se interrogar sobre
sua própria experiência marcada pelo pluralismo, pela hibridação e
por movências sem fim, que se inscrevem em um texto urbano
poliglota, que pode ser associado à América enquanto lugar de
encontros e de choques culturais e lingüísticos.
Construção textual polifônica – sobretudo a partir da Revolução
Tranqüila que consagrou seus vínculos estreitos com a literatura
quebequense –, Montreal constitui uma referência constante em obras
migrantes, que exploram as inúmeras facetas do espaço urbano
cosmopolita onde se depreendem as categorias do móvel, do
transitório, do fragmentado e as mutações perpétuas. Assim, cidade
vivida e imaginária, conhecida de perto no cotidiano ou nas páginas
da ficção, Montreal se afirma enquanto espaço de infinitas
possibilidades que confere à literatura o estatuto de lugar de passagem,
de troca e de transformação (Nepveu & Marcotté, 1992, p. 9-10).
O tema do trânsito pela cidade de Montreal está presente não
apenas em textos migrantes, aparecendo, também, no universo de
autores de origem quebequense, sensíveis a aspectos priorizados pela
ótica do estrangeiro e às práticas nômades. Por exemplo, construído
a partir das relações estabelecidas entre seres da mobilidade (imigrantes
ou não), o romance Nous avons tous découvert l’Amérique, de Francine
Noël (1992), oferece pistas interessantes a este respeito. Consciente
de que “a diáspora é uma maldição e (que) a questão mais importante
no fim do século (...) é a migração de massas humanas”, uma
personagem deste romance salienta que isto obriga os quebequenses
“a redefinir noções como as de território, nação, cultura, legitimidade,
propriedade” (Noël, 1992, p. 316). Numa cidade “bastarda” onde
“todo imigrante é um mutante” (Noël, 1992, p. 122), a vivência da
multiplicidade e das mutações se dá no próprio bairro, situado na

236
confluência de várias etnias que se afirmam como microsociedades
(Noël, 1992, p. 30). O exercício das travessias pelas searas urbanas
remete, ainda, às movências entre línguas e, em particular, à prática
da tradução. Ao conferir visibilidade a uma personagem imigrante
que se instala em Montreal onde trabalha como tradutora, o romance
permite o redimensionamento da noção de identidade cultural em
nosso tempo, no qual autores nômades são vistos como homens
traduzidos, produtos das novas diásporas criadas pelas migrações pós-
coloniais (Hall, 1999, p. 89).
Na obra de autores migrantes identificam-se pontos de contato
com questões presentes no romance de Noël, sobretudo no que diz
respeito às (im)possibilidades de reconhecimento de Montreal como
novo lugar de enraizamento onde as negociações identitárias supõem,
em maior ou menor grau, desafios, impasses e angústias. Conhecendo
a experiência de l’autre rivage – título significativo de um de seus
livros –, Antonio D’Alfonso afirma-se como um ser dual, ligado a duas
nações, a dois imaginários – elaborados em Roma e Montreal
(D’Alfonso, 1987) –, que levam o poeta a se considerar como “o eterno
peregrino condenado a não poder dizer nunca: Eis-me restituído à
minha margem natal” (D’Alfonso, 1987, p. 145).
No espaço estrangeiro, para compensar o vazio e preencher a
falta decorrente do exílio, autores migrantes podem-se valer de
estratégias variadas que concernem à apropriação espacial. Por
exemplo, no universo da escritora egípcia Anne-Marie Alonzo, as
memórias ligadas às categorias do aqui e do lá se sobrepõem, numa
espécie de palimpsesto em que são neutralizadas as diferenças: é o
caso da superposição do deserto de neve e do deserto de areia em
seus textos. Já no romance da escritora chinesa Ying Chen, Les lettres
chinoises –, construído nos intervalos existentes entre dois mundos, a
partir da troca de cartas entre um jovem chinês que acaba de se instalar
em Montreal e sua noiva que permanece na China – o imigrante
descobre similitudes entre as ruas de Montreal e as de sua cidade
natal (Shangai) (Chen, 1993, p. 108). Embora pareça querer adotar o
modelo dos pássaros migrantes que, ao criar ninhos em toda parte,

237
mostram que sabem “despossuir-se sobretudo de sua origem” (Chen,
1993, p. 38), Yuan continua ligado a suas raízes. Trata-se de um texto
nascido da superposição de exílios: a ruptura geográfica vivenciada
pelo jovem no país do Outro, se complementa com a descoberta do
exílio em seu próprio país por sua noiva, que se vê desenraizada, mesmo
em Shangai, o que sugere que a experiência do estranhamento
privilegiado em textos de autores migrantes diz respeito a certa
maneira de se estar no mundo.
O fato de se sentir estrangeiro pode afetar autores migrantes no
exercício de sua prática lingüística. Até mesmo aqueles de origem
francófona devem tirar partido do distanciamento criado no âmbito
de seu idioma. É o que ocorre com Régine Robin, francesa descendente
de pais judeus poloneses que, ao se mudar para Montreal, se depara
com a sensação de exílio na sua cotidianidade lingüística. Isto é sugerido
em seu romance La Québécoite, publicado em 1983, que constitui um
marco na trajetória das escrituras migrantes no Quebec.
Enquanto expressão de diferentes estranhezas (Harel, 1989) no
seio da literatura quebequense contemporânea, a língua francesa
veicula, pois, a pluralidade de experiências e de memórias culturais
que se traduzem diferentemente segundo cada autor migrante. Se na
obra de Emile Ollivier, antilhano de nascimento, que adota o uso
haitiano do francês, inúmeras imagens surgem graças ao vivido haitiano
e à experiência quebequense, no universo do iraquiano Naïm Kattan
percebe-se a inclusão de termos em hebreu ou em árabe em textos
escritos em francês. Trata-se, em resumo, de explorar o uso criativo
de um francês desterritorializado, de apostar nas possibilidades da
“literatura menor” (Deleuze & Guattari, 1975).
Assim, como a cidade de Montreal, a língua francesa torna-se o
espaço imprevisível de muitas potencialidades, terreno fértil para a
manifestação de outros horizontes referenciais. Por isto mesmo, na
cidade de Montreal e no seu cotidiano lingüístico, seres nômades
experimentam o difícil e produtivo incômodo de estarem, ao mesmo
tempo, dentro e fora.

238
Encarada como este “dentro-fora”, Montreal aparece na ótica de
Régine Robin como “uma outra América onde o Velho Mundo pode
ser vivido como um sonho acordado, embalado pela velha língua ídiche,
deixando a passagem livre para todos os textos, para todas as
invenções” (Nepveu, 1998, p. 315). “Cidade de línguas, de discursos e
de sonoridades que constitui um e xtraordinário terreno
hermenêutico” (Nepveu, 1998, p. 318), Montreal encarnaria a Nova
Babel por excelência, com suas contradições e possibilidades de leitura.
Identificando em Montreal marcas da pátria imaginada de Salman
Rushdie, no posfácio a um de seus romances, que representa um marco
significativo na produção migrante (La Québécoite), Régine Robin
reconhece, nesta cidade cosmopolita, o repertório plural de todas as
línguas, os cheiros de diversos mercados do mundo e as mesmas redes
de televisão (quebequenses, francesas, canadenses inglesas, americanas
e étnicas), que se organizam num “patchwork” de programas, de
línguas que evocam, não um “babelismo de bazar”, mas, sobretudo, a
“felicidade da mistura”, o “hibridismo das formas, dos vocábulos, dos
sons, riqueza da alteridade” (Robin, 1993, p. 208-209).
A referência ao “babelismo de bazar”, resgatado pela “felicidade
da mistura” aponta para a revisão do episódio bíblico de Babel
empreendida por muitos autores nômades que aí identificam, em
particular, as sugestões do heterogêneo e do inacabamento promissor
(Porto, 2001). À luz de estudos de Paul Zumthor, sabe-se que, ao invés
de ser visto como sinal de fracasso, o caráter inacabado da torre de
Babel assinala que “a cada instante da história estamos no começo”
(Zumthor, 1997, p. 213), diante de todas as possibilidades a serem
construídas. Tal é o sentido euforizante de Montreal, Babel em trânsito
na leitura feita por Régine Robin, que aí reconhece o aspecto
inacabado do Quebec, “país borgesiano impossível, que procura se
fechar permanentemente e que, de fato, está sempre aberto” (Robin,
1996, p. 115).
Lido, ainda à luz de Derrida, o inacabamento de Babel evoca “a
impossibilidade de se terminar, de se totalizar, de se esgotar, de se
completar algo da ordem da edificação, da construção arquitetural”

239
(Derrida, 1987, p. 203). Aí se esboça um aspecto importante para as
escritas migrantes nas quais, destituídas de um cunho essencializante,
as construções identitárias não se orientam no sentido das totalizações,
definindo-se, antes, enquanto processo inacabado. Assim como o devir
identitário de seres nômades, a própria América – redescoberta pelos
quebequenses ainda recentemente, em parte, graças à tomada de
consciência da heterogeneidade inscrita em seu meio –, passa a ser
considerada enquanto lugar de movências e mutações plurais. E como
quer o escritor judeu iraquiano Naïm Kattan, conhecedor de perto
da passagem do Oriente ao Ocidente, se no início do seu itinerário de
imigrante a aventura americana lhe parecia a busca da terra prometida,
a experiência em Montreal lhe mostrou que a América deve ser vista,
sobretudo, como terra de promessas. (Kattan, 1986). Promessas que
se renovam ou não no espaço do Outro enquanto reinvenção contínua
de identidades em trânsito.

Documentados/Indocumentados, Migração Circular


e Exílio. Literatura Hispânica nos EUA
O nível e configuração dos fluxos migratórios atuais, se não
resolvem, ao menos complicam a equação globalização =
americanização. Durante os anos 90, os EUA tiveram o maior número
de imigrantes de sua história, e não há sinais de diminuição espontânea.
Hoje, os EUA contam com uma população nascida no estrangeiro de
27 milhões, duas vezes mais do que em 1910, antes o ano da maior
onda migratória daquele país. Mas é importante notar, também, tratar-
se de um fluxo etnicamente menos variado: 50% dos imigrantes pós-
1970 são de origem hispânica.
No entanto, se nesses tempos de Buena Vista Social Club a “febre
latina” vem tomando países do centro, como os EUA, de assalto, nunca
é demais lembrar que esse fenômeno não é novo; é, antes, a repetição
de fenômeno semelhante, marcadamente entre o final do século 19 e
primeiras décadas do século passado, quando inúmeros intelectuais e
artistas do Caribe se deslocaram para o “colosso do norte”. Basta
lembrarmos que os escritos do líder revolucionário José Martí foram

240
produzidos ao longo de 15 anos passados em solo norte-americano,
assim como as crônicas e memórias dos porto-riquenhos Jesús Colón
e Bernardo Vega.
Esse vínculo histórico nasce em conseqüência do encontro entre
um império em declínio e outro emergente – a Espanha e os EUA,
respectivamente –, e iria contribuir para o aparecimento de três
comunidades étnicas, que podem ser consideradas os pilares da
hispanidade nos EUA, a mexicana, a porto-riquenha e a cubana. É no
final do século XIX que os EUA começam a surgir como um império
emergente, depois de terem anexado uma vasta parte do território do
México ao seu, e de terem estabelecido uma relação neocolonial com
países de cultura hispânica do Caribe. Em 1898, o governo dos EUA,
em conseqüência da guerra com a Espanha, fazia intervenções em
Porto Rico, Cuba e nas Filipinas, colocando estas colônias espanholas,
que lutavam pela independência, sob sua tutela, e transferindo, desta
maneira, a hegemonia para as suas mãos. Antes disso, em 1848, após
vencer a guerra contra o México, os EUA já haviam anexado a parte
nordeste do México, que também já pertencera, anteriormente, à Coroa
espanhola, dando origem ao que hoje é conhecido como o sudoeste
dos EUA.
É, também, a partir do século XIX que começam a ser
incorporados, em grande escala, grupos raciais de diferentes origens,
para auxiliar no desenvolvimento do capitalismo norte-americano,
como chineses na construção de ferrovias e braceros mexicanos para
trabalhar na agricultura.1 Não causa surpresa, portanto, que hoje,
mais de 100 anos depois de sua intervenção no Caribe, e passados
mais de 150 anos depois da anexação de parte do território mexicano,
em um efeito de bumerangue – ou revanche da história –, os EUA são
marcados pelo peso demográfico, político, cultural e lingüístico de
suas comunidades étnicas.
Os três principais grupos (numericamente) de hispânicos nos
EUA têm contribuído para a construção de um corpus literário norte-
americano marcado por aspectos de transculturação e hibridismo, e

1 Para uma discussão mais detalhada do Bracero Program de 1946, ver TORRES, S. Escritos
chicanos.

241
por suas histórias marcadas pelas experiências de conquista,
neocolonização, diáspora e exílio.

Mexicanos Conquistados e “Indocumentados”

NO COLOREDS
NO MEXICANS
NO DOGS
WILL BE SERVED ON THESE PREMISES
[Cartaz colado à porta de uma lanchonete, no Sudoeste
dos EUA, na década de 1950]

A primeira coisa a ser problematizada, no que concerne à


imigração mexicana nos EUA, é se, de fato, pode-se referir a grande
parte da população de origem mexicana vivendo nos EUA como
‘imigrante’, pois o território hoje conhecido como o sudoeste
estadunidense foi, originariamente, território colonizado pelos
espanhóis, tendo se tornado México depois da independência, em
1821. Em 1846, os EUA, com sua ideologia expansionista, “inventaram”
uma guerra com o México, que se encontrava bastante enfraquecido
depois de sua guerra de independência, e ainda em fase de
reconstrução nacional, conquistando o território noroeste mexicano 2.
Em decorrência da assinatura do controvertido Tratado de Guadalupe-
Hidalgo (1898), 3 que estabelecia novas fronteiras, tendo o Rio Grande
como limite entre o México e o Estado do Texas, o mexicano que ali
habitava ganhou o status de “imigrante forçado”, pois esse território
tornou-se, da noite para o dia, “americano”. Com isso, ele foi alienado

2 Para um levantamento completo da história do povo mexicano-americano, a partir da


anexação de terras mexicanas aos EUA, ver o já clássico Occupied America, do historiador
Rudolfo Acuña (1988).
3 Remeto o leitor ao estudo do historiador chicano Richard Griswold-del Castillo (1990)
sobre o Tratado de Guadalupe-Hidalgo, no qual ele demonstra como este Tratado, que
garantia plena cidadania, de acordo com a Constituição Americana, e proteção às terras
daqueles mexicanos que optassem por permanecer do lado conquistado, foi, sistematicamente,
desrespeitado no que concerne aos títulos de terras. Ou seja, os mexicanos continuaram
sendo “conquistados” ao longo dos anos, e, mesmo tendo tornado-se “cidadãos americanos”,
sempre foram vistos como cidadãos de segunda classe, fornecedores de mão-de-obra barata
para os “anglos”.

242
em sua própria terra, como foram os indígenas norte-americanos,
gerando um fenômeno de colonialismo interno, ou processo de
incorporação de uma cultura subalterna à cultura dominante por meio
de conquista, força ou violência.
Diante desses fatos, podemos argumentar que o mexicano não
atravessou a fronteira México-EUA; foi, antes, a fronteira que o
atravessou. Isso ajuda a explicar o fato histórico de o imigrante
mexicano “indocumentado”, ao atravessar a fronteira, rumo aos EUA,
normalmente não enxergar tal ato como sendo transgressor: o faz
como quem ‘volta para casa’. É importante lembrar, aqui, que o Tratado
garantia plena cidadania, de acordo com a Constituição Americana, e
proteção às terras daqueles mexicanos que desejassem permanecer
em el norte. No entanto, o Guadalupe-Hidalgo, à maneira dos tratados
assinados com as nações indígenas, jamais foi respeitado na prática,
principalmente, no que concerne aos títulos de terras. Além da
violência da conquista, o povo mexicano sofreu a violência da
discriminação contra sua herança cultural, assim como a exploração
econômica. O mexicano do norte não perdeu apenas suas terras e
referências familiares e comunitárias; passou, também, a ser cidadão
de segunda classe em uma pátria estrangeira, passando a sofrer
discriminação racial. O mesmo tratamento receberiam, no século XX,
os imigrantes mexicanos.
Como ressalta Ramón Saldívar (1990), é de crucial importância
se compreenderem as distinções raciais e culturais entre o mexicano-
americano pós-1848 e o colonizador anglo-americano, que iria começar
a penetrar a região sudoeste depois de sua aquisição pelos EUA: a
barreira entre os antigos e os novos habitantes daquela região formaria
a base para outras diferenças que se iriam apresentar com o
crescimento industrial americano após a guerra civil, e com a chegada
de milhares de novos imigrantes mexicanos ao território anteriormente
mexicano, agora parte dos EUA (Saldívar, 1990, p. 18). A história dos
conflitos raciais e econômicos ocorridos nas regiões de fronteira – a
do Texas, em especial –, foi registrada nos corridos, baladas de origem
folclórica cantadas/contadas na fronteira dos EUA com o México, a

243
partir do século 18, cuja temática abrange desde os conflitos sociais e
políticos até as catástrofes naturais e os conflitos individuais.
Formalmente, o corrido está relacionado à tradição romanesca e ao
romance corrido, ou “romance cantado”, levado para o México pelos
conquistadores espanhóis (a forma correlata, aqui no Brasil, seria o
“rimance”, ou romance rimado, na literatura de cordel). Mas,
interessantemente, ele só iria se consolidar como gênero na última
metade do Século XIX, não no México, mas na província de Nuevo
Santander – precisamente no local EM, que viria se situar a fronteira
do México com o Texas.
É fácil de se compreender porque o corrido, com sua narrativa
épica, de resistência ao “anglo”, fosse popularizado justo em uma região
de tantos conflitos étnicos, econômicos e culturais. Se a Segunda
Grande Guerra e a Guerra da Coréia contribuíram para a mudança
social, cultural e econômica na região, com as oportunidades
econômicas oferecidas aos veteranos de guerra e seus filhos no pós-
guerra, dando início ao acesso a publicações em língua inglesa que,
mesmo de forma discreta, começaram a substituir as cantigas, lendas,
folclore e jornalismo em língua espanhola (Saldívar, 1990, p. 48), isso
não eqüivale a dizer que podemos, a partir de tais dados, decretar a
morte desse gênero narrativo-musical; ao contrário, ele tem merecido
releituras, inclusive deslocadas para espaços urbanos como Atlanta e
Chicago, demostrando que a ‘fronteira’ do chicano expande-se para
além do limite meramente geográfico. Destaco, aqui, os grupos
Exterminador, cujos corridos “perrones” (“cachorrões”) satirizam o
narcocorrido (referência ao narcotráfico na fronteira do México com
os EUA), um novo gênero surgido nos últimos tempos (cf. Los Tigres
del Norte, 2001b); Los Tigres del Norte, talvez o mais conhecido,
com o sucesso “Somos Más Americanos” –

Ya me gritaron mil veces


Que me regrese a mi tierra
Porque aqui no quepo yo
Quiero recordarle al gringo
Yo no cruce la frontera

244
La frontera me cruzó.
América nació libre
El hombre la dividio
Ellos pintaron la raya
Para que yo la brincara
Y me llaman invasor.
[...]
[Já me gritaram mil vezes/Que regresse a minha terra/
Porque eu aqui não caibo./Quero lembrar ao gringo/Eu
não cruzei a fronteira/A fronteira me cruzou./A Améri-
ca nasceu livre/O homem a dividiu/Eles pintaram uma
faixa/para que eu a pulasse/E me chamam de invasor.]

e Los Reyes del Corrido, de Atlanta, Georgia, cujo narcocorrido


homônimo narra o confronto entre um traficante mexicano e um
policial gringo, que matam um ao outro em um tiroteio sangrento. A
letra critica o fato de o governo americano querer acabar com os
traficantes mexicanos (“varrer a casa alheia”), ignorando o consumo
de drogas em sua própria “casa”:

Atlanta, estado de Georgia


Tu fama sigue creciendo.
[...]
En el año 87
Que tragédia tan atroz!
Un gringo y un mexicano
en la ciudad de Norcross
se mataron a balazos.
Eran valientes los dos.

El gobierno americano
Se encuentra muy confundido.
Quiere barrer casa ajena.
La de ellos no la han barrido.
[...]
[Atlanta, Georgia/tua fama continua crescendo./No ano
de 87/Que tragédia tão atroz!/Um gringo e um mexica-
no/na cidade de Norcross/se mataram a balaços/Eram

245
valentes os dois./O governo americano/Está muito con-
fuso./Quer varrer casa alheia./A deles ainda não varre-
ram.]

A tradição do corrido vem sendo recuperada e revisitada na


contemporaneidade, portanto, e segue desempenhando seu papel de
“jornal”, contando as notícias correntes à comunidade.
É importante frisar que, no sul do estado do Texas, desde meados
do século passado, pode ser percebida uma resposta, em termos de
estudos culturais, por parte de intelectuais e escritores chicanos como
Américo Paredes, José Limón, Tomás Rivera, Gloria Anzaldúa e
Rolando Hinojosa, cujos projetos revisitam as tradições culturais de
Nuevo Santander por eles herdadas. Em 1958, surgiu o estudo do
antropólogo chicano Américo Paredes (que já virou “clássico chicano”)
With His Pistol in His hand: A Border Ballad and its Hero, uma análise do
popular corrido de fronteira, narrando os feitos heróicos da lendária
figura de Gregório Cortez, que enfrentou los rinches, os Texas Rangers,
com apenas sua coragem e sua pistola. 4 A obra de Paredes serviu de
linha mestra para obras de escritores como Tomás Rivera (falecido) e
Rolando Hinojosa. O projeto literário de Rolando Hinojosa, intitulado
Klail City Death Trip Series (KCDTS), constituído de dez volumes (até a
presente data) 5, narra 200 anos de história da fronteira entre o Texas
e o México, e entrecruza tradições tanto anglo-americanas quanto
latino-americanas, misturando história, crônica, metaficção, tradição
oral, colagem e etnografia. Hinojosa situa suas histórias na fronteira,
demonstrando, ao mesmo tempo, que a literatura chicana é sin fronteras,
já que nasce na interseção de dois mundos, o “anglo” e o mexicano.

4 Essa primeira versão contra-hegemônica da história do sul do Texas foi adaptada para o
cinema, em 1982, dirigida por Robert M. Young, tendo James Olmo no papel-título, com
105 minutos de duração, sob o título The Ballad of Gregório Cortez.
5 Os romances são, por ordem de publicação: Estampas del valle y otras obras (1973 – Versão The
Valley, 1983), Klail City y sus alrededores (1976 – Versão Klail City, 1977), Mi querido Rafa (1981
– Versão Dear Rafe, 1985), Rites and Witnesses (1982), Partners in Crime: A Rafe Buenrostro Mystery
(1985), Claros varones de Belken/Fair Gentelmen of Belken County (1986), Becky and her friends
(1989 – Versão Los amigos de Becky, 1991) e The Useless Servants (1993). O volume de poesias
Korean Love Songs (1978) também pode ser considerado como parte integrante do cronicón de
Hinojosa, já que é um longo poema narrado, uma balada de fronteira.

246
Desde 1976, quando seu segundo romance, Klail city y sus alrededores,
foi vencedor do Prêmio Casa de las Américas, sua obra tem sido
constante objeto de estudo, tanto nas Américas quanto na Europa.
Outra “etnógrafa nativa” do Texas, a escritora Gloria Anzaldúa,
também faz da fronteira seu laboratório. Em seu conhecido e,
freqüentemente, citado Borderlands/La Frontera (1987), ela faz uma
revisão da história de sua comunidade, Hidalgo County, vista de uma
perspectiva feminista e homossexual. Seu texto – uma “mestiçagem”
de testemunho, autobiografia, poesia, dichos (ditados populares),
lendas, mitos e teoria –explora um idioma mestiço, que, segundo ela,
é a única forma de legitimizar seu grupo étnico:

A identidade étnica está colada à identidade lingüística


– eu sou minha língua. Enquanto eu não puder me or-
gulhar de minha língua, não posso me orgulhar de mim
mesma. Enquanto não puder aceitar como legítimos o
espanhol chicano do Texas, o Tex-Mex e todas as outras
línguas que eu falo, não posso aceitar minha própria
legitimidade. Enquanto não for livre para escrever como
bilingüe (...), enquanto ainda tiver de falar inglês ou es-
panhol, quando preferia falar Spanglish, e enquanto ti-
ver de adaptar-me aos falantes do inglês, em vez de fazer
com que eles se adaptem a mim, minha língua será ilegí-
tima. (Anzaldúa, 1987, p. 59). Trad. minha, deste, e dos
demais trechos citados da obra de Anzaldúa)

O trecho acima aponta para a questão central na construção


identitária de hispânicos nos EUA. Flores e Yúdice observam que

A língua (...) é o terreno necessário onde os hispânicos


negociam o valor e buscam redefinir as instituições atra-
vés das quais ela é distribuída. Isso não significa que a
identidade hispânica está reduzida a suas dimensões lin-
güísticas. Antes, na estrutura sociopolítica atual dos EUA,
questões relacionadas à ‘esfera privada’, como língua(gem)
(...), sexualidade, o corpo e a definição de família (...)
tornam-se o material em torno do qual a identidade his-

247
pânica é trabalhada na ‘esfera pública’. (Flores, Yúdice,
1990, p. 61)

Isso é confirmado no texto de Anzaldúa, visto que Borderlands é,


além de uma crítica ao patriarcado homofóbico de seu universo natal,
uma revisita à história de sua própria família. Em um trecho
autobiográfico, a autora recorda a desapropriação das terras de sua
família, nos remetendo, ao mesmo tempo, para a história coletiva
marcada pelo controverso Tratado de Guadalupe-Hidalgo: “Nos anos
50, vi a terra ser dividida em milhares de retângulos e quadrados
simétricos, constantemente irrigados” (Anzaldúa, 1987, p. 9).
Borderlands/La frontera é um exemplo de como a fronteira pode ser
tematizada histórica, geográfica, política, lingüística e sexualmente,
mostrando que “essa ferida aberta, onde o Terceiro Mundo raspa
contra o primeiro e sangra” (Anzaldúa, 1987, p. 3) é conseqüência da
ideologia expansionista estadunidense.
Cabe ressaltar que, mesmo quando o autor chicano não é
originário do sudoeste, essa região é o grau zero de seu imaginário
porque, até o chicano nascido e criado em uma megalópole como
Chicago, é proveniente de famílias de origem rural ou operária
nascidas na fronteira ou que migraram do México. É o caso de Sandra
Cisneros, de longe a mais conhecida das escritoras chicanas, cujo livro
The House on Mango Street retrata, através de uma série de vinhetas,
relata as experiências de exclusão de uma adolescente da inner city
étnica de Chicago. Já as histórias de seu livro de contos Woman
Hollering Creek passam-se, freqüentemente, no sudoeste. No hilariante
conto “Bien Pretty” (o grifo é da autora), Cisneros escolhe o estado do
Texas como cenário para sua história – escolha cuidadosa e significativa,
porque situa os personagens no estado norte-americano mais
emblemático da transição entre nações e palco sangrento de conflitos
inter-étnicos. Aqui os conflitos de fronteira são deslocados para a esfera
privada, para a relação entre a protagonista chicana e seu amante,
Flavio Munguía, dublê de exterminador de baratas e poeta e (apesar
da camisa Lacoste) the real thing; i.e., um mexicano “de verdade”.

248
A busca incessante da protagonista por um centro originário é
um tema freqüente na literatura chicana contemporânea, e representa
os conflitos de se viver uma existência bicultural e bilíngüe, em um
país que aliena seus Outros. Hoje, vários desses filhos de uma imigração
forçada são famosos, e nos acostumamos a vê-los na mídia – como o
roqueiro Carlos Santana, a falecida cantora Selena, e atores como James
Olmo. Mas, da Balada de Gregório Cortéz até o seriado Ressurection
Boulevard, da TV a cabo, o percurso tem sido longo, e não sem
contratempos.

Prá lá e prá cá: migração circular entre Porto Rico e EUA

[...] across forth and across back


back across and forth back
forth across and back and forth
our trips are walking bridges!
Tato Laviera (“AmeRícan”)

Porto Rico, pequena ilha do Caribe, sofreu um processo


diaspórico, que resultou na expatriação de aproximadamente 40% de
sua população para o continente norte-americano, desde os tempos
em que seus líderes políticos lutavam pela Independência de seu país
do primeiro colonizador, a Espanha. A ocupação de Porto Rico pelos
EUA em 1898, depois de quatro séculos de colonização espanhola,
inicia um processo histórico, a partir da instauração da Lei Foraker,
de 1900, que declara Porto Rico território americano “não-
incorporado”. O Decreto Jones, de 1917, estabelecendo cidadania
americana aos cidadãos porto-riquenhos; a crise econômica e social
da ilha durante os anos da Depressão norte-americana; o controle
externo de sua economia, e a conseqüente migração em massa da
população para os EUA – todos esses fatores contribuíram para os
fortes vínculos entre a ilha e o continente norte-americano. Como
conseqüência, como observa Juan Flores (1990), a literatura porto-
riquenha do século XX demonstra uma obsessão temática com os EUA.

249
Muitas das obras de exilados políticos do final do Século XIX,
que lutavam contra a hegemonia espanhola, juntamente com os ensaios
do líder do Partido Revolucionário Cubano-Porto-riquenho, José
Martí, são verdadeiros documentos do olhar latino-americano sobre
os EUA da virada do século. Em geral, são impressões e depoimentos
dos anos de exílio em Nova York. Também Pachín Marín e Arturo
Alfonso Schomburgh publicam uma parte considerável de suas obras
em jornais norte-americanos. Nos anos 50, Porto Rico sofreu um
processo de industrialização maciça, promovendo, por um lado, o
crescimento econômico e provocando, por outro, o encolhimento da
força de trabalho e um alto índice de desemprego. Como resultado, a
ilha viveu um verdadeiro êxodo – o número de porto-riquenhos
deslocados para os EUA, durante esse período, é estimado em 900.000
a um milhão de pessoas, incluindo as crianças nascidas já no continente
(Oboler, 1995, p. 30).
É natural que este movimento se encontre refletido na literatura
nacional de Porto Rico, pois a avalanche de famílias que aportam em
Nova York, e o conseqüente esvaziamento do campo, muda
drasticamente a feição do país. A atenção de escritores como René
Marqués, Enrique Laguerre, José Luís González, Emílio Días Valcárcel
e Pedro Juan Soto volta-se para essa realidade de migração maciça, e
muitos deles foram testemunhar essa experiência de perto. O resultado
foi um verdadeiro boom de narrativas e peças teatrais produzidas entre
1950 e a primeira metade dos anos 70. Vale lembrar, aqui, obras como
La carreta (1953), de René Marqués, Spiks (1973), de Pedro Juan Soto
e Harlem todos los dias (1973), de Díaz Valcárcel.
Mas, talvez, nenhuma dessas obras seja tão popular quanto um
conto singelo escrito por Luis Rafael Sánchez, em 1983 ,“La guagua
aerea”, por sua tematização explícita da tradição de migração circular
entre a ilha de Porto Rico e outra ilha, mais rica, Manhattan. A história
se passa durante um vôo entre San Juan e Nova York, e, com exceção
da tripulação gringa, todos os passageiros são porto-riquenhos que
costumam ir-e-vir entre as duas ilhas. O conto tem várias passagens
humorísticas, entre elas uma conversa entre o narrador, que também

250
é passageiro, e sua vizinha de assento. Ao perguntar-lhe de que aldeia
de Porto Rico ela é natural, a personagem responde, com a maior
naturalidade, “de Nueva York!”. “La guagua aerea” aponta para a
complexidade de se ser ao mesmo tempo porto-riquenho e cidadão
norte-americano; e seu autor estabelece, através de trechos em
Spanglish, um diálogo com seus colegas da “escola nuyorican” (fusão de
Puerto Rican com New Yorker), uma geração de poetas radicalmente
comprometida com o destino de sua comunidade, traço sempre
presente, em menor ou maior escala, na produção literária desse grupo
étnico.
A “geração nuyorican” nasce colada aos movimentos estudantis
do final da década de 1960/início da década de 1970 nos EUA, e, em
especial, ao partido dos Young Lords (braço hispânico dos Black
Panthers). Durante esse período de efervescência política e cultural,
era comum a reunião em torno do Nuyorican Poets Café, no Lower
East Side de Nova York, para a declamação de poesias. 6 Alguns dos
poetas marcantes dessa época são Pedro Pietri, Miguel Piñero e Tato
Laviera (fundadores do Café, por sinal). Pietri é autor do conhecido
“Puerto Rican Obituary”, considerado o poema nuyorican “inaugural”,
com seu famoso verso “aqui [em Porto Rico] ser chamado de negro é
ser chamado de AMOR”. Os longos poemas narrativos de Piñero,
contando as histórias de junkies e prostitutas, mostram o lado sórdido
da vida no gueto. Seu contundente poema “Jitterbug Jesus” narra a
concepção de Jesús Rodríguez, futuro junkie, em meio aos escombros.
Talvez o mais conhecido dos “poetas declamadores” seja Laviera, que,
além de jogar com a influência de ritmos caribenhos em sua poesia, é
um virtuoso do bilingüismo. Laviera afirma que o fato de escrever em
inglês e espanhol permite que ele se comunique com todo o continente
(Luis, 1992, p. 1027). Seus poemas operam na interface entre a
América “anglo” e a latina: um bom exemplo é o título de sua coleção
de poemas, Enclave (1981), uma homenagem, ao mesmo tempo, a sua

6 O café ainda é ponto de encontro de poetas, embora não exclusivamente porto-riquenhos;


abriu-se para vários poetas do Village. Mas o espaço mereceu uma antologia com seu nome,
reunindo os poetas da época. Ver Aloud. Voices from the Nuyorican Poets Café.

251
comunidade étnica (enclave) nos EUA, e ao popular instrumento
tocado no Caribe, a clave. Mas, embora ele aparentemente superponha
mundos tão distintos, não deixam de ficar marcadas as vastas diferenças
econômicas que os separam: o espanhol falado nos EUA é representado
como a língua dos pobres; e o inglês é o inglês dos negros, os únicos
‘americanos’ que convivem com os porto-riquenhos nos enclaves e
guetos.
Essas considerações nos remetem para a postulação de Paul Gilroy
(1993) de que hoje uma consciência diaspórica está sendo definida
dentro e contra a restrição das fronteiras nacionais; postulação essa
que desconstrói o conceito (essencializante) de ‘raízes’ negras,
contrapondo-o à imagem (essencial) de ‘rizomas’ da diáspora negra.
Gilroy chama, ainda, nossa atenção para o argumento de Ralph Ellison
(em sua obra Shadow and Act) de que não são apenas as culturas
amalgamadas formadas pela fusão de identidades africanas com as
européias que ligam as pessoas de origem parcialmente africana agora
espalhadas pelo planeta, e sim uma “identidade de paixões” (Gilroy,
1987, p. 158-159). E faço aqui uma ligação entre as reflexões de Gilroy
e a “guerra de posição” – o esforço para construir uma aliança contra-
hegemônica –, de que fala Gramsci, fortalecendo, dessa maneira, o
diálogo com o conceito de literaturas menores, postulado por Deleuze
e Guattari (1977), dado o caráter político e coletivo do objeto aqui
analisado. A poesia de Laviera, juntamente com a de Sandra María
Esteves e Miguel Piñero são um bom exemplo. Demostra uma
aproximação muito grande com a cultura africana, não somente do
Caribe como, também, dos EUA: salsa, jazz, blues, soul e gospel muitas
vezes se misturam, nos ritmos desses poetas – levando-nos a refletir
sobre o papel dos processos de identificação e reinvenção da tradição
nas comunidades diaspóricas, e reforçando a argumentação de Gilroy
de que a tradição agora pode ser concebida tomando-se por base as
relações de identificações diaspóricas, ao invés de identidades
diaspóricas, através do tempo e do espaço (Gilroy, 1993, p. 276 – grifos
nossos). Coincidentemente, James Clifford escreveu palavras quase
idênticas: “identificações, não identidades, atos de relacionamento no
lugar de formas pre-estabelecidas: esta tradição é uma rede de histórias

252
parcialmente ligadas, um tempo/espaço de cruzamentos
persistentemente deslocados e reinventados” (Clifford, 1994, p. 321 –
grifo do autor).
“I speak the alien tongue in sweet boriqueño thoughts” (Eu falo a língua
do outro/com doces pensamentos porto-riquenhos), diz um verso de
Sandra María Esteves (1980), comprovando, ao mesmo tempo, a
argumentação de Deleuze e Guattari de que “uma literatura menor
não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em
uma língua maior” (Deleuze & Guattari, 1977, p. 25).

Havana, USA: Literatura cubana dos EUA

I spent ten years collecting dreams


and forgetting the coastland of my country.
I am now bordering the domain of a shadow.

“Landscapes of the mind”


Carlota Caulfield, 1995

A primeira característica da comunidade cubana nos EUA, que


já assinala uma problemática, é sua identificação freqüente como
comunidade de exilados políticos. Essa identificação está ligada à
revolução cubana de 1959, quando Fidel expulsou as elites da ilha. No
entanto, o processo de emigração cubana para os EUA é de longa
data, pois, antes da guerra de independência contra a coroa espanhola,
já existiam relações entre Cuba e os EUA. A partir de meados do
século XIX, um número significativo de cubanos passou a emigrar
para os EUA, a fim de fugir da devastação econômica causada pela
Guerra dos Dez Anos. E, por causa das turbulências causadas pela
guerra, alguns donos de fábricas de charutos transferiram suas
fábricas para os EUA, atraindo inúmeros operários cubanos para
aquele país. Refugiados políticos também se mudaram para lá nessa
época, a fim de dar continuidade às campanhas pela libertação de
Cuba. Ou seja, nunca é demais lembrar a influência que os cubanos
residindo nos EUA, tradicionalmente, e xerceram sobre os

253
acontecimentos na ilha. A Revolução de 1898, articulada em grande
parte por José Martí, é interna, conforme ele mesmo havia previsto,
mas é, ao mesmo tempo, articulada de fora, precisamente dos EUA,
onde ele se encontrava.
Depois da independência, a comunidade de emigrés cubanos
começou a passar por mudanças sutis. A maioria daqueles que se
consideravam refugiados políticos voltou para Cuba. Mas as
oportunidades econômicas eram limitadas, e os cubanos que
trabalhavam na indústria de charutos resolveram permanecer nos
EUA. Com o êxodo dos líderes patriotas para Cuba, começou a formar-
se um operariado composto por ativistas radicais no cenário cubano
dos EUA. Essa comunidade, contudo, foi se dissolvendo com o
desmantelamento da indústria de charutos, no sul da Flórida, em
conseqüência da Depressão americana, na década de 30 (Olson, 1994,
p. 40).
O período de maior crescimento da população cubana nos EUA
deu-se durante a ditadura de Batista, quando ela saltou de 20 mil
para 50 mil pessoas (Olson, 1994, p. 40). Mas a primeira grande onda
migratória ocorreria a partir de 1959. Com a consolidação do regime
de Fidel, a emigração cubana para os EUA assume uma feição de escolha
permanente, o que iria dar a esse grupo, composto em sua maioria de
profissionais “colarinho branco”, uma característica distinta daqueles
cubanos que haviam escolhido viver nos EUA anteriormente –, e
também dos demais grupos de imigrantes caribenhos, sobretudo, os
porto-riquenhos, de extrato social rural e multirracial, cujo contato
com sua ilha, através da migração circular, é constante. Podemos dizer
que é a partir de 1959, então, que começa a se formar a chamada
primeira geração de “cuban-americans” –, aqueles que foram para ficar,
ou que ficariam até Fidel cair.
Mesmo depois de mais de 40 anos no exílio, a comunidade segue
atenta a qualquer sinal de mudança política na ilha, dando seqüência
à tradição cubana de monitorar a vida política de Cuba a partir dos
EUA, sobretudo, de Miami. Em 1989, o FBI declarou Miami a capital

254
do terrorismo nos EUA 7 quando foram detonadas 80 bombas contra
residências particulares e estabelecimentos comerciais de exilados
cubanos que trabalhavam para melhorar as relações com Cuba.
Organizações linha-dura, como a Cuban American National
Foundation, acusaram aqueles que apóiam essa mudança de serem
agentes do governo de Fidel; promoveram passeatas na cidade, com o
objetivo de unificar a comunidade sob uma mesma agenda política:
evitar o diálogo com o governo cubano e derrubar Fidel. Uma pergunta
que fica no ar é como essa comunidade pretende reconstruir Cuba,
sem dialogar com o outro lado; claramente, seus planos para a
reconstrução de Cuba não incluem aqueles que vivem na ilha. Mas na
literatura, como veremos, há sinais de mudança, embora ainda
esparsos, dessa postura.
Isso nos traz à produção cultural cubana contemporânea
produzida em solo norte-americano. Grande parte dela é produzida
pelos filhos da geração de 59. A partir de meados da década de 80
começa a surgir uma geração de escritores cubanos dos EUA que tem
conseguido boa visibilidade: o best-seller Oscar Hijuelos, autor de The
Mambo Kings Sing Songs of Love, adaptado para o cinema; Roberto
Fernández; e Virgil Suárez – um dos mais prolíferos, com três
romances e um livro de contos, publicados entre 1989 e 1996, e a co-
edição de uma antologia de literatura da diáspora cubana, intitulada
Little Havana Blues (1996). E as mulheres Achy Obejas, Christine Bell
(cujo romance The Pérez Family, de 1990, também foi adaptado para o
cinema) e Cristina Garcia (outra best-seller, com o romance Dreaming
in Cuban, de 1992, com previsão, também, de adaptação para o cinema).
Se tivéssemos que escolher um período para representar a
transição entre literatura de exílio e “étnica”, teria de ser em meados
dos anos 70. Duas escritoras cubanas dessa época merecem destaque,
por expressarem o hibridismo característico de textos biculturais:
Lourdes Casal e Dolores Prida. Segundo Eliana Rivero, Lourdes Casal

7 Com os recentes ataques ao World Trade Center e Pentágono, é bastante provável que haja
uma mudança nesse dado estatístico, já que Fidel Castro deixou de ser o inimigo público
número um dos EUA, para dar lugar a Osama bin Laden.

255
representaria a transição entre o discurso nostálgico do exilado e a
consciência de uma identidade dupla do imigrante (Rivero, 1995, p.
34). Seu livro Los fundadores: Alfonso y otros cuentos, publicado em 1973,
contém recriações de uma infância em Cuba, mescladas à sua
experiência norte-americana. Seu conto, do mesmo volume, intitulado
“Love story según Cyrano Prufrock” desfila imagens cubanas
transculturadas para a paisagem novaiorquina O que chama a atenção
neste centro é a maneira pela qual Casal dá à nostalgia uma dimensão
tanto local quanto global: ícones culturais como Malcolm X, John
Lennon e Marcuse retiram-se, quando o “sonho acaba”, dando lugar
à sociedade de consumo e ao reinado de Nixon nos EUA; a autora
entrecruza essa colagem dos anos 70 com a nostalgia por uma Cuba,
também perdida no tempo.
Outra autora cubana que começa a publicar nos EUA, na mesma
década, conhecida, sobretudo, como dramaturga, é Dolores Prida.
Em 1977 ela produziu o musical Beautiful Señoritas, uma sátira, em
um ato, dos estereótipos impostos à mulher latina: Carmem Miranda,
Cuchi Charo, mulheres vestidas de preto, chorando e rezando sobre
suas tortillas... até chegar às jovens latinas modernas, que tentam
redefinir suas imagens. Sua peça mais conhecida, entretanto, é a
“fantasia bilíngüe para duas mulheres”, intitulada Coser y cantar, que
estreou em 1981. Prida já demonstra uma preocupação de trabalhar
na interface gênero/etnia/classe, e Coser y cantar representa, através
de duas personagens em cena, as duas faces de uma mulher bicultural
que precisam fundir-se para que ela continue a existir. As duas
personagens da peça chamam-se She e Ella, e a dinâmica da peça gira
em torno do paradigma de uma performance competitiva. Dentro desse
paradigma, Ella e She gesticulam e articulam experiências passadas e
presentes, memórias e fantasias, em uma confrontação verbal e não-
verbal entre o inglês e o espanhol.
Na produção de cubanos nos EUA dos últimos dez anos, o que se
pode observar é que os textos produzidos por mulheres tendem a
fugir do paradigma presente em grande parte dos textos masculinos,
que homenageiam cubanos emblemáticos da indústria de

256
entretenimento norte-americano. As obras femininas parecem querer
estabelecer um diálogo, produzindo textos que buscam novas rotas,
sobretudo políticas, de relação entre os cubanos de “cá” e os de “lá”,
como os romances Dreaming in Cuban, de Cristina Garcia, que explora
o vínculo entre a personagem Pilar e sua avó Célia, que permaneceu
na ilha, através de uma espécie de fio telepático, concebido como texto/
imaginação; Memory Mambo, que revisita a nostalgia e as obsessões
temáticas da comunidade de exilados, desconstruindo alguns de seus
mitos mais caros; e The Pérez Family, de Christine Bell, narrada do
ponto de vista de marielitos 8 recém-chegados a Miami, e seu choque
cultural com os cubanos “americanos”.
A literatura da diáspora cubana contemporânea, sobretudo de
mulheres, revela que os cubanos que partiram estão cada vez mais
curiosos sobre a ilha, e desejam fugir da nostalgia de seus pais. O
mesmo movimento pode ser percebido nos que ficaram – fato que fica
comprovado pela recepção que as obras dessas escritoras têm tido em
Cuba. Pois fica o fato de que todos os cubanos estão ligados por um
passado comum, que começou quando sonharam criar uma nação
independente.

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8 Ver TORRES, S. Nosotros in USA, para um discussão dessa última onda migratória, e suas
implicações para a mudança de perfil da comunidade cubana de Miami, sobretudo racial e
de classe.

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MESTIÇAGEM

Silvina Carrizo
Universidade Federal de Juiz de Fora

O conceito de mestiçagem exige uma abordagem histórica


condizente com a discursividade que fala sobre ela, os sujeitos que a
enunciam e os modos diferentes com que se vão preenchendo os
sentidos. Trata-se de um conceito que emerge do choque com o
diferente e se estabelece a partir da biologia, alargando-se na sociedade
através de artimanhas discursivas e práticas políticas e, por sua vez,
atinge seu clímax ao ser proclamado como categoria identitária de
uma nação e/ou de um continente. Do espaço biológico ao da sociedade
e ao da nação, múltiplas estratégias se encravam para poder lhe oferecer
tanto seu caráter depreciativo, quanto o afirmativo. Do discurso
cientificista ao organicista e à passagem a um discurso sobre o nacional,
o conceito de mestiçagem foi ganhando em sistematicidade e em
apropriação político-ideológica, deixando ainda de lado os verdadeiros
problemas sociais, e sendo proposto, enquanto forma identitária, como
um modelo de convivência humanista, que salvaria as deficiências das
relações sociais dentro do mundo capitalista. Por sua vez, no que tange
às questões sobre o problema da identidade nacional, deve-se levar
em conta como o “nós nacional” aborda a alteridade inserida no seu
próprio mapa, já que uma complexa trama determina que “nós” e
“outros” estão incluídos em determinada comunidade. Também é
conveniente não esquecer que mais que entender como uma certa
elite reflete sobre o povo, pode-se ler, a contrapelo, como ela mesma
se interpreta.
Na trama desses discursos que se retroalimentam, e por sua
própria conformação na sua historicidade, a passagem do uso até
abusivo do critério biológico - inclusive na sua intercomunicação com
o societal -, produziu uma reviravolta, na sua notória irrupção em
direção da esfera do cultural. Assim, distanciados do positivismo
oitocentista, intelectuais, já do século XX, puderam abrir novas
perspectivas para a conceituação da mestiçagem, agora ligada a outros
conceitos como os de “processo” ou de “hibridização cultural”. Este
casamento de conceitos começa a manifestar outra dinâmica e, ao
mesmo tempo, a ser reapropriado e usado de formas diferentes e
muitas vezes incoerentes com os conceitos mesmos, pois de alguma
forma, embora exprimindo modalidades novas, mais afins com seu
tempo, ainda ficariam atrelados a uma noção de identidade e de nação.
É importante frisar que o conceito de mestiçagem tem as suas
próprias características no Brasil, mas que são justamente as
modalidades diferentes de pensá-lo, a partir do século XX , que
começam a dialogar com as propostas de intelectuais da América
Latina, e estas modalidades atuariam como substrato de conceitos mais
complexos como os de transculturação de Fernando Ortiz 1,
transculturação narrativa de Ángel Rama2 e, inclusive, ecoariam no
conceito de culturas híbridas tal como proposto por Canclini3.
O conceito de mestiçagem possui, no Brasil, um caráter histórico
particular, pois sua utilização se dá já no período pós-independência
e durante o Segundo Reinado, operando-se a sua refuncionalização
na República, assim como nas três primeiras décadas do século XX. A
sua peculiaridade está cimentada na articulação da mestiçagem com o
discurso sobre o nacional, praticado pelas elites e, muitas vezes,
absorvido pelo Estado-nação. Nesse sentido, não é um discurso próprio
dos modos de imaginar da Colônia, como o é, de modo geral, na
América hispânica. A voga do “indianismo”, que impregnou o Segundo
Reinado, a maioria das suas instituições como o Instituto Histórico e

1 ORTIZ, Fernando: Contrapunteo del tabaco y el azúcar, publicado em 1940.


2 RAMA, Ángel: Transculturación narrativa, publicado em 1982.
3 CANCLINI, Néstor: Culturas híbridas. Estrategias para entrar y salir en la modernidad, publicado
em 1992.

262
Geográfico e os escritores da época, instaura, mesmo quando
ressaltando a figura do autóctone como própria, uma tendência a favor
do “amálgama sócio-étnico”.
Devemos reconhecer, de saída, que esta historicização do conceito
exige o recorte, e que, por sua vez, toda generalização implica suas
controvérsias. Por isto, procuramos periodizar as diferentes formas
do discurso sobre a mestiçagem, a partir de “textos programáticos”.
Talvez seja, justamente, a pluralidade deles que contribua para o
esclarecimento dos posicionamentos dos sujeitos que os enunciam, a
conjuntura em que falam e as formas pelas quais se pensa a mestiçagem,
para dar significado à sua própria construção histórica.

A imaginação romântica
A nação enquanto nova forma de comunidade imaginada, que se
começa a pensar na comple xa e xperiência do período pós-
independência, absorve no Brasil a reflexão sobre a alteridade, o que
pode ser bem descrito não apenas nos escritores da época, mas,
também, no ideário romântico-nacional que constroem pensadores
estrangeiros, em princípios do século XIX, como Ferdinand Denis
(1798-1890) e o naturalista Carl Friederich Philip von Martius (1794-
1868). Ambos são responsáveis pela introdução dos critérios
naturalistas de análise do meio e da raça na historiografia brasileira e
se encontram comprometidos com o sentimento nativista da época.
Embora seus escritos ressaltem a questão indianista, e com isso
colaborem na propagação desse imaginário, eles elaboram importantes
idéias sobre o conceito da mestiçagem. Denis, em seu Resumo da História
Literária do Brasil (1826), ao considerar a literatura como veículo de
afirmação nacional, estimula a voga do nativismo. Esta moda estava
cimentada no critério de diferencialidade e originalidade das literaturas
nacionais. Entendia que a natureza brasileira, suas culturas nativas e
o choque cultural haviam formado e inspirariam um gênio distinto e
novo. Todavia, deve-se ressaltar que esse gênio também estava marcado
pela mestiçagem, pois Denis enuncia a mistura racial e cultural como
um fato, promovendo o surgimento do mameluco como um fator

263
diferencial. Isto resulta importante, pois faz referência a uma
visibilidade impossível de desconhecer e, ao mesmo tempo, assinala
um tipo de mestiçagem como o preferencial. Também é interessante
destacar duas questões que, como a anterior, estão no cerne de muitas
das disputas de sentido em torno do conceito de mestiçagem e que já
tinham sido colocadas pelo francês. Por um lado, refere-se a ele como
uma luta heróica, que ligada ao passado, lança promessas para o futuro,
quer dizer, possui um matiz apologético: “Parece-me que, no tempo
em que uma luta heróica desenvolveu todos os caracteres, na época
em que a Holanda foi vencida pelo Brasil, a natureza deste ofereceu
ao mundo um espetáculo desconhecido, que fez com que se lhe
compreendessem os desígnios” (Denis apud Cesar, 1978, p. 40); por
outro, não pode deixar de sublinhar outro fator que estaria implícito
na própria enunciação da mestiçagem, sua forma de apelar à alteridade
e à mesmidade simultaneamente, como, ao descrever cada uma das
raças que a compõem, estas tendem, paralelamente, a se desmanchar,
como no caso o número três viraria o um: “(...) pareceu-me que antes
de tudo conviria tornar conhecidos aqueles traços característicos que
distinguem as raças, os quais modificar-se-ão um dia, mas que é
importante não esquecer” (Denis apud Cesar, 1978, p. 40).
O naturalista von Martius fez uma longa viagem pelo Brasil entre
1817 e 1820. O resultado dessas explorações vem à tona – entre outros
artigos e livros - em seu conhecido trabalho “Como se deve escrever a
História do Brasil”, escrito em 1843, sendo premiado e publicado em
1845. Nesse ensaio, von Martius explica a relação indiscutível entre
história e etnografia, como a história ajuda a despertar o patriotismo
e a acreditar na perfectibilidade dos povos, mas, também, lança um
apelo à necessidade do poder monárquico. Ainda mais instigante é
que, se o naturalista percebe a peculiaridade do país na mistura de
três elementos raciais, é a mestiçagem uma qualidade importantíssima
para a formação dos povos:

(...) o gênio da História (do mundo), que conduz o gêne-


ro humano por caminhos, cuja sabedoria sempre deve-
mos reconhecer, não poucas vezes lança mão de cruzar

264
as raças para alcançar os mais sublimes fins na ordem do
mundo. Quem poderá negar que a nação inglesa deve
sua energia, sua firmeza e perseverança a essa mescla dos
povos céltico, dinamarquês, anglo-saxão e normando?
(Martius, 1982, p. 88).

Von Martius, como Denis, trabalha a partir da visibilidade e


incorpora o tom apologético, mas ressalta duas questões importantes
para a época: a importância da união em torno do poder monárquico
e a presença da mescla nas classes baixas:

Na classe baixa tem lugar esta mescla, e como em todos


os países se formam classes superiores dos elementos in-
feriores, e por meio delas se vivificam e fortalecem, as-
sim se prepara atualmente na última classe da população
brasileira essa mescla de raças, que daí a séculos influirá
poderosamente sobre as classes elevadas, e lhes comuni-
cará aquela atividade histórica para a qual o Império do
Brasil é chamado. (Martius, 1982, p. 88).

O texto todo está impregnado de vocábulos que designam a


tolerância, a confraternização e a união do país, assim como nos deixa
entrever a importância de hierarquizar o “tom local” como uma forma
de atrair tanto os leitores internos de uma nação quanto os estrangeiros.
Assim, uma mestiçagem particular, unida ao exotismo em voga e a
uma ideologia da confraternização, realça um sentido que logo depois
será pontualmente discutido por outros intelectuais, porém, nunca
extinguido. Se Denis manifestava a sua tendência pelo mameluco, von
Martius enfatiza o poderoso motor da missão civilizatória, o português-
branco, que terminará por assimilar os outros dois componentes
étnicos: “O sangue português, em um poderoso rio, deverá absorver
os pequenos confluentes das raças índia e etiópica” (Martius, 1982, p.
88). E, como Denis, na sua própria escrita pode-se perceber como
essa mestiçagem tripartite acabará numa mestiçagem única.
Estes viajantes estrangeiros já falavam da mestiçagem e, ao fazê-
lo, criavam potenciais questionamentos e dúvidas. Os escritores

265
românticos da época, embora de forma muitas vezes oblíqua, também
se debruçaram sobre aspectos desta questão. Embora o indianismo
estivesse em voga, uma questão como a mestiçagem, num país
escravocrata, não podia passar despercebida, e sua entrada no interior
das narrativas dava-se através de elipse e de mascaramentos. Os
nascimentos, os encontros amorosos, as uniões tribais, os vários exílios,
as representações dos personagens mestiços, nos romances indianistas
de Alencar (O Guarani -1857, Iracema -1865 e Ubirajara -1874) , em A
Moreninha (1844), de Macedo, em A Escrava Isaura (1875), de
Guimarães exploram e significam um marco possível para poder
imaginar a aculturação e a mestiçagem, no que em outro sentido é
manifestado, através de uma tendência à confraternização e ao
amálgama, traçando e fundando no interior da literatura, assim,
fórmulas ideológico-estéticas próprias ao ser brasileiro.

A imaginação científica
A publicação da História da literatura brasileira de Sílvio Romero
(1851-1914) acontece no marco da promulgação da lei da abolição da
escravidão em 1888. Seu prólogo é um indicador instigante do
momento, dando conta das formas com que a elite reflete sobre o
problema da inclusão da massa dos ex-escravos.

O momento político e social é grave, é gravíssimo. Os


problemas que nos assediam a despeito de havermos ar-
redado o trambolho da questão servil, são ainda muito
sérios, são da índole daqueles que decidem do futuro de
um povo (Romero, 1949, p. 22).

Como resultado da visibilidade deles e da apropriação de discursos


científicos positivistas acerca do negro e da viabilidade dos países
mestiços, Romero fará um importante trabalho de cruzamento de
tradições discursivas, de modo a refletir sobre o país num marco
totalmente diferente. O “aggiornamento” de teorias científicas
européias, para oferecer uma solução ao problema nacional, tem na
base três argumentações importantes: em primeiro lugar uma

266
concepção histórica do conceito de raças, acreditando na evolução
étnica; em segundo, a idéia de que a unidade racial é diferente da
unidade sociológica, e, em terceiro, Romero acredita na inevitabilidade
da luta das raças. Por outro lado, porém, ele descartava duas
argumentações ortodoxas: a do caráter inato das diferenças raciais e a
da degenerescência dos sangues mestiços.
No seu prólogo, historiciza o tratamento dado à questão da
mestiçagem:

Durante muitos e muitos anos reinou o vulgar precon-


ceito sobre a imensa inteligência e a enorme robustez
das populações cruzadas. Supunha-se que as gentes
mestiçadas dispunham de vantagens excepcionais e ma-
ravilhosas.
A observação das populações das colônias européias da
América e da Oceânia mostrou haver engano naquelas
afirmativas gratuitas. Apareceu então uma tremenda re-
ação e chegou-se ao ponto de proclamar a completa
hibridação das gentes cruzadas, isto é, sua fraqueza e
esterilidade radical no fim de um certo número de gera-
ções. (Romero, 1949, TI., p. 104)

Romero considera que a mescla deve ser entendida como


formadora da nação, a partir dos três componentes raciais. Assim, o
pensamento científico imprime um sesgo diferente, pois a mestiçagem
é a marca diferenciadora.

O mestiço é o produto fisiológico, étnico e histórico do


Brasil; é a forma nova de nossa diferenciação nacional.
Nossa psicologia popular é um produto desse estado
inicial. Não quero dizer que constituiremos uma nação
de mulatos; pois que a forma branca vai prevalecendo e
prevalecerá; quero dizer apenas que o europeu aliou-se
aqui a outras raças, e desta união saiu o genuíno brasi-
leiro, aquele que não se confunde mais com o português
e sobre o qual repousa o nosso futuro. (Romero, 1949,
TI., p. 102 grifos do autor)

267
Em Romero, a localização da marca de identidade nacional, no
passado, ao mesmo tempo, produz o paradoxo ao se pensar o presente
e o futuro, pois essa marca deve tender a se desmanchar num rosto
embranquecido. A mestiçagem estava nos começos da nação e isso
torna a pátria brasileira diferente e original, ou seja, oferece-lhe um
valor positivo; porém, como dar resposta à condição de civilidade do
país no bojo dos debates europeus em relação aos países mestiços? O
autor exprime a sua tendência: “O mestiço, que é a genuína formação
histórica brasileira, ficará só diante do branco quase puro, com o qual
se há-de, mais cedo ou mais tarde, confundir” (Romero, 1949, T. I,
p.84). O ideal de branqueamento, que se desprende como resposta,
tem como alicerce a idéia de que uma raça superior pode assimilar as
inferiores, o que significaria dizer, em outro plano, que o Brasil poderia
entrar de cheio no mundo do progresso e da civilização. Assim, o
impasse do momento político-social cria este tipo de paradoxo. A tríade
se desfaz em busca do um, que não é outra coisa senão o mesmo, a
condição do branco, vista como única saída. Essa única saída é
encontrada não apenas na “seleção natural”: “Sabe-se que na
mestiçagem a seleção natural, ao cabo de algumas gerações, faz
prevalecer o tipo de raça mais numerosa, e entre nós das raças puras
a mais numerosa, pela imigração européia, tem sido, e tende ainda
mais a sê-lo, a branca” (Romero, 1949, T. I, p.86); mas, também, na
questão da imigração branca e européia, pois os imigrantes viriam
não só como mão de obra livre e como índices do progresso, mas,
também, para reforçar o caráter latino da população branca brasileira
e para transformar, gradualmente, os mestiços em brancos:

Dentro de dois ou três séculos a fusão étnica estará talvez


completa e o brasileiro mestiço bem caracterizado.
Os mananciais negro e caboclo estão estancados, ao pas-
so que a imigração portuguesa continua e a ela vieram
juntar-se a italiana e a alemã. O futuro povo brasileiro
será uma mescla áfrico-indiana e latino-germânica, se
perdurar, como é provável, a imigração alemã, ao lado
da portuguesa e da italiana. (Romero, 1949, TI., p. 86)

268
Conectado a este ideal, mesmo quando Romero ressalta a
originalidade de um país mestiço na sua formação como sociedade, o
autor não consegue, ainda, enxergar um espírito nacional definido :
“A grande fusão não está completa, e é por isso que ainda não temos
um espírito, um caráter inteiramente original” (Romero,1949,T. III,
p. 241). Como já tinha ficcionalizado Alencar, o problema do rosto do
país – a referência é sobre Moacir, em Iracema -, é um problema do
futuro. No caso de Romero, esse futuro viria gradualmente e, embora
num outro viés que o de Denis, desmancharia essa mestiçagem ao se
embranquecer. Porém, esse processo estaria revigorado pelos
elementos culturais dos componentes negro e índio. A concepção
realista e cientificista do autor coloca freios ao tom apologético e
revigora o matiz defensivo perante a Europa e perante a própria elite
brasileira; mas, também, sugere a possibilidade de o Estado ter de pôr
ordem no futuro racial, identitário e de progresso do país. Nesse plano,
o último texto indianista de Alencar e os escritos, em geral, de Romero
parecem empenhados em retratar qual deveria ser a maneira pela
qual o Estado deverá confrontar esse problema tão visível.
Os percalços da República e as desilusões de um intelectual da
talha de Romero o levarão, tempos depois, na evolução de seu
pensamento, ao pessimismo que, no caso dele, acaba propondo o
arianismo, negando, assim, toda viabilidade mestiça.
Interessante é contrastar o tom defensivo que se opera em
Romero perante a conceitualização da mestiçagem em polêmica
permanente com os românticos indianistas e até com Rousseau e von
Martius, polêmica que, a partir de outras vias, também instauraram
Freyre e Prado, por exemplo, o que, nesse sentido, torna emblemática
a forma pela qual a mestiçagem é entendida como uma construção
discursiva histórica. Romero manifesta uma atitude crítica perante
todos eles, denominando essa visão de mundo de obnubilação afetiva
e imaginativa, que os levaria à “fantasia romântica de acreditar no
resultado maravilhoso da mistura de raças inteiramente diversas”
(Romero, 1949, T. V, p.143). Atitude que sopesará através do seu
pessimismo realista.

269
Uma linha sutil ressalta duas matrizes de pensamento sobre a
questão do nacional: a conhecida como indianista e a que defende a
mestiçagem. A esta caberá, também, dar entrada à reflexão sobre o
negro, linha que continua nos trabalhos de Nina Rodrigues e Paulo
Prado com o seu viés negativo, e em Gilberto Freyre e Arthur Ramos,
com uma visão mais positiva. É também possível demarcar o conteúdo
dessas linhas de pensamento, pois aquela que ressalta a figura do índio,
o faz colocando a mestiçagem em posição oblíqua (Denis, Alencar), ou
apenas pensando-a em um sentido que abole a formação tripartite da
sociedade brasileira, quer dizer, apenas salientando o componente
caboclo ou o branco, além de que silencia a presença do componente
negro. Isto não deve ser pensado apenas no marco do século XIX,
também deve se questionar o aparecimento do “neoindianismo” no
século XX. No caso da linha da mestiçagem é importante salientar a
forma com que se relega o papel do indígena na formação da sociedade,
e como se ressaltam as contribuições do componente negro, tanto
quanto os fatores positivos da miscigenação. Mesmo assim, essas duas
linhas, que se abrem na reflexão no século XIX, trazem consigo um
jogo entre o três e o dois para acabar sempre propondo o um, abolindo,
assim, a possibilidade da alteridade, pois ancoradas na idéia de Nação
como unidade e integração não podem fugir ao conceito de mesmidade
do qual partem, nem da construção dicotômica e, portanto,
excludente, acerca da integração. Desse modo, poderíamos pensar
que na imbricação da mestiçagem com o conceito de nação oitocentista,
o que está em jogo é a forma através da qual se concebe a identidade,
pensada na época como “caráter, personalidade, subjetividade”, que
neste século esteve sempre atrelada ao problema da nação.
No caso dos escritos de Nina Rodrigues (1862-1906), mesmo
quando integra o componente de cor e a questão da mestiçagem à
reflexão sobre a nação brasileira, e apesar de haver sido o redator do
primeiro estudo etnográfico do afro-brasileiro, pode-se salientar o fato
de ele não acreditar nem na possibilidade de civilizar o negro, nem na

270
possibilidade de que a miscigenação fosse um processo para atingir
um Brasil embranquecido4:

Não acredito na unidade ou quase unidade étnica, pre-


sente ou futura, da população brasileira, admitida pelo
Dr. Sílvio Romero. Não acredito na futura extensão do
mestiço luso-africano a todo o território do país; consi-
dero pouco provável que a raça branca consiga predo-
minar o seu tipo em toda a população brasileira.
(Rodrigues, 1938, p. 126).

Dentre as ficções que exemplificam bem a passagem e os


paradoxos da época achamos O Mulato (1881) e O Cortiço (1890), de
Aluísio Azevedo (1857-1913), romances de cunho naturalista nos quais
a construção da narrativa trabalha a partir dos padrões de observação
da ciência e das doutrinas raciais, em voga. Embora estejam permeados
pelo imperativo da ascensão social e da modernização, respectivamente,
estes romances não conseguem escapar da prerrogativa da identidade
nacional e tocar fundo na questão da mestiçagem. Deste modo, torna-
se sugestivo a narrativa precisar da tematização, no âmbito da cidade,
da mulata ante a proximidade do imigrante, do local perante o
estrangeiro e, que o faça por meio do repertório do discurso científico
sobre a raça e do exotismo. O narrador enfatiza em relação a Jerônimo
– imigrante português – e Rita Baiana:

Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das


impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz
ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas
da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das bauni-
lhas (...); era o veneno e o açúcar gostoso (...); ela era a
cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca
doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno dele,
assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras

4 Sobre o tema Nina Rodriguez escreveu: “Antropologia patológica: os mestiços” em 1890 e


“Miscegenação, degenerescência e crime” em 1898.

271
embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as ar-
térias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha
daquele amor setentrional, uma nota daquela música fei-
ta de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem, de
cantáridas que zumbiam em torno a Rita Baiana e
espelhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca
(Azevedo, 1993, p. 64).

Pelo viés contrário, numa cidade de província, um mulato como


Raimundo pode ascender socialmente desde que suas origens estejam
silenciadas e sua conduta seja dissimulada, adaptando-se aos padrões
do bom comportamento. Apesar de todas as características positivas
dos personagens mestiços centrais – na sua ampla gama, pois existem
muitos outros –, eles não encontram saída dentro dessas narrativas.
Quebrado esse pacto social de “civilidade”, dada a ociosidade de Rita
Baiana ou a pretensão de casamento com branca de Raimundo, o
mundo dos mulatos, dos mestiços se abre à morte, no caso de
Raimundo e, também, no de Bertoleza – que era cafuza –, ou à
impossibilidade de qualquer tipo de movimento social e, num outro
sentido, a permanecer num eterno exótico que apenas serve, no
interior d’O Cortiço, para “abrasileirar” – na acomodação ao meio local
– certos estrangeiros, que, ainda por cima, não representam os
“vencedores” do relato. Assim, na trama dos textos, parece apenas
operacionalizar-se o caráter pejorativo da cadeia semântica construída
sobre o mestiço. Estas narrativas delineiam, dessa maneira, um mestiço
vencido, de modo que o pretendido discurso da diferença nacional,
configurado a partir desses mesmos mestiços, não se sustente e apareça
de forma superficial, como um adorno.

A imaginação psicologizante
Nos inícios do século XX, a tendência a refletir sobre o que seria
a nação brasileira está permeada por uma profunda subjetividade,
inclusive na mesma escrita. Dois ensaios representativos dos pólos
ufanista e pessimista marcam, talvez, o ponto álgido da questão da
mestiçagem no que se refere ao vazio de ferramentas conceituais e à

272
procura das mesmas. Em 1901, Affonso Celso (1860-1938), por ocasião
do quarto centenário do Brasil, escreve Porque me ufano do meu país, e
anos mais tarde, mas tematicamente próximo, Paulo Prado (1869-1943)
lança o seu Retrato do Brasil. Ensaio sobre a tristeza brasileira, em 1928.
O ufanismo de Celso importa num discurso ideológico que marca
a reedição do mito do paraíso. Achando o país sublime e futuro celeiro
do mundo, fazendo o repertório das bondades naturais que oferece a
nação, o autor toca, também, na composição social: “Sexto motivo da
superioridade do Brazil: excellencia dos elementos que entraram na
formação do typo nacional” (sic Celso, s/d, p. 61-83), encontrando no
mestiço um componente da população e a mestiçagem como um
resultado da mistura de “três dignas e valorosas raças”. A mestiçagem
ressaltada seria mais uma das “grandezas do Brasil” – um discurso
apologético – junto às do meio e às de caráter e, ao mesmo tempo,
absorvida neles. Por sua vez, é um dos alicerces da homogeneidade e
da união do país: “O Brazil é perfeitamente homogeneo, material e
moralmente, pelo lado social e pelo lado ethnico, pois nelle se cruzam
e se fundem todas as raças” (sic Celso,s/d, p.194). Entretanto, cabe o
destaque da miscigenação com o índio: “São Paulo, lugar em que mais
considerável se operou o cruzamento com os índios, marcha na
vanguarda da nossa civilisação” (sic Celso, s/d, p. 83). O que chama a
atenção nesta narrativa é que a mestiçagem já funciona como uma das
características da formação da nação brasileira, não precisa aparecer
de forma elíptica, nem ser discutida, é uma questão naturalizada que
se aparenta às belezas da natureza do território e às bondades do
caráter do brasileiro. E é por isso mesmo que também não precisa ser
a característica, é uma a mais dentro do enfoque do país “natureza”.
O ensaio de Paulo Prado de alguma maneira, também, já assinala
“o mito das três raças” como um clichê, porém vai lhe propor dois
sentidos diferentes. O livro faz o balanço de todas as deficiências da
formação espiritual e social do país, e na segunda parte, chamada de
“Post-scriptum”, fará uma breve verificação do estado em que se
encontram as mesmas questões no presente. É por isso que, de saída,
o olhar se concentra no passado e a mestiçagem aparece atrelada à

273
questão colonial e, com isso, à questão da formação nacional, mas num
viés psicologizante. O autor tenta interpretar os elementos
conformadores da “psique nacional” ou do “caráter nacional”.
Retrato do Brasil expõe sua tese já a partir da sua primeira frase:
“Numa terra radiosa vive um povo triste” (Prado,1962, p. 3). A luxúria
e a cobiça, dois pecados capitais, produziram pela inutilidade do esforço
e pelo ressaibo da desilusão a tristeza e a melancolia, que são estados
psicológicos herdados desde os primeiros tempos da conquista e
colonização. A eles deve-se somar o Romantismo, outro mal do país,
produto da nação já constituída, e que trouxe a “hipertrofia da
imaginação e a exaltação da sensibilidade” (Prado, 1962, p. 45). Esses
defeitos da psique nacional foram e configuraram o alicerce da carência
da “argamassa que liga os grandes povos idealistas” (Prado,1962,
p.165).
A luxúria do colonizador resultou numa importante mescla que
se, por um lado contribuía para a adaptação, por outro trazia a perda
de valores: “Do contato dessa sensualidade com o desregamento e a
dissolução do conquistador europeu surgiram as nossas primitivas
populações mestiças. Terra de todos os vícios e de todos os crimes”
(Prado, 1962, p. 27). Entretanto, se essa superexcitação erótica se
observa em todas as camadas sociais, Prado ressalta a responsabilidade
da “boa sociedade da época”, tanto quanto não deixa de culpar a
mulher indígena e a mulata. Por outro lado, como já temos visto em
outros textos, existiria uma mestiçagem mais apropriada:

Mais tarde só escaparam à degenerescência de além-mar


os grupos étnicos segregados e apurados por uma
mestiçagem apropriada. Foi o caso de Piratininga em
que o Caminho do Mar preparou e facilitou para a for-
mação do mameluco “esse centro de isolamento”, da teo-
ria de Moritz Wagner (Prado, 1962, p. 98)

O “reino da mestiçagem”, não obstante, é um processo contínuo


de mesclas que tem seu ponto de partida na conquista, mas que não
deixa de ser um amálgama. Nesse sentido, a mestiçagem, apesar de já

274
ser pensada não apenas como matriz, mas, também, como “processo
contínuo” e que mostra sua imensa diversidade nos seus vários tipos
de cruzamento, nem por isso foge, na percepção de Prado, à idéia de
“síntese”, tão prezada nesta resumida história do conceito. De todas
as formas, se síntese está ligada à unidade, também está relacionada à
diversidade e a processo, fato que Prado parece ser o primeiro a notar
e ressaltar, assumindo a complexidade do conceito da mestiçagem,
não apenas como um estado de formação, mas, também, como um
modo particular de dinâmica criativa e aberta. Estas aproximações,
anos depois, serão reutilizadas por Gilberto Freyre, que não nega a
importância do ensaio de Prado.
O autor sabe escapar muito bem às armadilhas do discurso racial,
porém, a condição do negro cativo também é responsável pelos vícios
morais:

O negro cativo era a base de nosso sistema econômico,


agrícola e industrial e como que em represália aos hor-
rores da escravidão, perturbou e envenenou a formação
da nacionalidade, não tanto pela mescla de seu sangue
como pelo relaxamento dos costumes e pela dissolução
do caráter social, de conseqüências ainda incalculáveis
(Prado, 1962, p.112).

Assim, de forma geral, a mestiçagem, neste primeiro sentido que


argumenta Retrato do Brasil, abrange e culpabiliza a sociedade como
um todo, absorvendo o viés negativo e pessimista, mesmo quando a
base do discurso do autor não seja nem o das teorias raciais, nem o do
subjetivismo das grandezas do país.
Já no “Post-scriptum”, a mestiçagem atinge outro significado,
pois, como fará mais tarde Freyre, Prado parece estar sensível aos
conflitos no nível mundial. Portanto, a mestiçagem à brasileira terá
sido e é um processo de “reunião”:

A hiperestesia sexual que vimos no correr deste ensaio


ser traço tão peculiar ao desenvolvimento étnico da nos-
sa terra, evitou a segregação do elemento africano, como

275
se deu nos Estados Unidos dominados pelos preconcei-
tos das antipatias raciais. Aqui a luxúria e o desleixo
social aproximaram e reuniram as raças (Prado, 1962,
p. 157).

Retrato continua e reafirma, assim, de uma forma paradoxal, o


ideologema da confraternização e o da falta de preconceito, como
formações emblemáticas da mestiçagem no Brasil, adquirindo,
também, o valor de resistência e positividade, na comparação com os
Estados Unidos, pois já não se está construindo uma atitude defensiva,
como poderia ser o caso da reflexão de Romero. Por outro lado, Prado
não está alheio às teses sobre a mestiçagem, que escrevera o mexicano
José Vasconcelos5 e que tanto repercutiriam na Hispano-América, pois
ao compreender a mestiçagem como processo aberto e dinâmico,
entende que a fusão e refusão de elementos não têm outro caminho
senão o da mudança: “No Brasil, se há mal, ele está feito,
irremediavelmente: esperemos, na lentidão do processo cósmico, a
decifração do enigma com a serenidade dos experimentadores de
laboratório. Bastarão 5 ou 6 gerações, para estar concluída a
experiência” (Prado, 1962, p. 162, grifos meus).
A tristeza estrutural do caráter brasileiro redundaria no atraso
do país e, por esse viés, pode-se ler a vontade de substituir o status quo,
que no projeto moderno de que fazia parte Prado, é visto como
instauração do novo, portanto, não é de estranhar que se carreguem
as tintas no futuro: “a confiança no futuro que não pode ser pior do
que o passado” (Prado, 1962, p.183)
Para além de Paulo Prado e Affonso Celso, que articulam seus
ensaios na linha de interpretação do nacional, ecoam, nestas três

5 Vasconcelos (1882-1959) faz uma viagem pelo sul do continente, em 1922, em caráter de
embaixador especial, participando, entre outras tarefas diplomáticas, das celebrações do
Centenário da Independência do Brasil. Fruto dessas viagens é o seu livro La raza cósmica
(1925), em que elabora a tese utópica da raça cósmica que terá a suas origens em países como
Brasil, Argentina, Uruguai e Chile. O impacto dessa obra, no Brasil, se deu no pensamento
de Plínio Salgado e de Graça Aranha, mas, também, foi importante em Cassiano Ricardo e
Menotti del Picchia. O conhecimento dessas teorias em Prado veio-lhe, provavelmente, de
Graça Aranha.

276
primeiras décadas do século, manifestações que trabalham o discurso
da mestiçagem junto ao do nacional no contraponto com novas formas
de pensar sobre a diversidade cultural e regional do país. Nesse sentido,
as propostas de Gilberto Freyre e as do chamado Neoindianismo,
mesmo sendo muito diferentes, são iluminadoras dos conflitos político-
ideológicos que o país atravessou, tentando dar substrato nacional a
diferentes regiões e vice-versa.
Assim, constituindo-se como dissidentes da Semana de Arte
Moderna de 1922, um grupo de artistas e intelectuais conformou uma
nova reivindicação dos ancestrais indígenas na formação da nação,
reforçando o mito do bandeirante e sentando os alicerces da
“aventura” modernizadora e nacionalista do Estado Novo. No entanto,
suas manifestações só aparecem, de forma contundente, a partir de
1927 com O curupira e o Carão, de Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e
Menotti del Picchia, A revolução de Anta, de Plínio Salgado, e Martim
Cererê, de Cassiano Ricardo (1928). Todos eles redigem o “Manifesto
Nhengaçu Verde Amarelo”, em 1929, no qual se concentram as teses
básicas acerca da exaltação do indígena e da mestiçagem com o
componente luso. Por sua vez, essa mestiçagem imbricada no solo do
catolicismo é o substrato da ausência de preconceitos raciais e religiosos
e o símbolo da harmonia e da tolerância. Bebendo nas propostas do
mexicano Vasconcelos, reforçam a utopia da concórdia universal dada
pela fusão e refusão total de todas as raças no Brasil, num amplo jogo
entre o país como lócus e o mundo:

Somos um país de imigração (...) Na opinião bem funda-


mentada do sociólogo mexicano Vasconcelos, é de entre
as bacias do Amazonas e do Prata que sairá a ‘Quinta
raça’, a ‘raça cósmica’, que realizará a concórdia univer-
sal, porque será filha das dores e das esperanças de toda
a humanidade. Temos de construir essa grande nação,
integrando na Pátria comum todas as nossas expressões
históricas, étnicas, sociais, religiosas e políticas. Pela for-
ça centrípeta do elemento tupi (Menotti del Picchia et
alii, apud Teles, 1972, p. 236)

277
Casa-grande & Senzala
Casa-grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre (1900-1987),
aparece como um estudo concreto sobre a cultura mestiça, traçado
sobre os conceitos de formação histórico-social do país, e ligando a
identidade mestiça ao discurso do nacional. A análise de Freyre vai da
figura do colonizador às características da colonização, e daí à formação
da sociedade brasileira, arrastando as mesmas características de
mobilidade e miscibilidade, que, em si, contribuem para manter os
antagonismos em equilíbrio e que são tidas como positivas:

(...) um regime de influências que se alternam, se equili-


bram ou se hostilizam. Tomando em conta tais antago-
nismos de cultura, a flexibilidade, a indecisão, o equilí-
brio ou a desarmonia deles resultantes, é que bem se
compreende o especialíssimo caráter que tomou a colo-
nização do Brasil, a formação sui generis da sociedade
brasileira, igualmente equilibrada nos seus começos e
ainda hoje sob antagonismos, (Freyre, 1958, p.10).

Poderíamos dizer que a análise e a interpretação de Freyre se


ancoram na figura do colonizador e em tudo o que abrange o sistema
socio-econômico-cultural da casa-grande, pois de alguma maneira a
senzala é seu apêndice, e ao mesmo tempo, é a que faz daquela um
espaço diferencial. Tanto o colonizador como a casa-grande estão
atravessados pelo conceito de inter-relação e com o modo de permear-
se frente à diversidade. Estes dois conceitos aparecem por cima do de
aculturação, pois se está pensando em uma categoria mais ampla como
é a de hibridização cultural. Se isto se opera no nível micro, no nível
macro este modo de hibridização cultural será denominado
“abrasileiramento”. Assim, Freyre observa e cataloga o que dos
“outros”, a cultura ameríndia e a africana, tem sobrevivido na casa-
grande e pode ler-se não somente como uma forma particular de
absorver a cultura dos outros, mas, também, como um modo nacional.
A operação metonímica leva a enlaçar a casa-grande (a classe) à nação
e, assim como estes elementos da cultura que se hibridizaram
permanecem, também o fazem na cultura nacional.

278
A rasura dessa lógica está inscrita no mesmo texto, no entanto,
não colide para Gilberto Freyre com sua exposição, pois não afeta a
casa-grande, antes reforça esse modelo de abertura e inter-relação
com a diversidade. Esta corrosão se daria no que tange à figura do
índio e aos problemas de contato cultural que se produziram na etapa
de absorção ao sistema econômico da monocultura açucareira: “O
açúcar matou o índio” (Freyre, 1958, p. 218), e em uma segunda que
alude ao sistema jesuítico de catequese e civilização, que, segundo
Freyre, acabou “artificializando-o” e, por isso, não o integrando.
Mas tudo na lógica freyriana tem rendimento, pois o autor
encontra na figura do escravo negro um elemento particular de
integração em vários sentidos, e que gera a entrada de certos elementos
da cultura indígena na casa-grande. Isto repercute a outro nível como
abrasileiramento: “Mas deve-se salientar que foi nas cozinhas das casas-
grandes que muitos desses quitutes perderam o ranço regional, o
exclusivismo caboclo, para se abrasileirarem” (Freyre, 1958, p.171).
Mais adiante enfatiza: “Na Bahia e em Pernambuco, a pokeka [sic] se
africanizou, ou antes, se abrasileirou, deliciosamente, em moqueca nas
cozinhas das casas-grandes” (Freyre,1958, p.174). Ao fracasso dos
índios deve acrescentar-se o fracasso do resto do povo que permaneceu
à intempérie, fora da “proteção” do sistema da casa-grande e que em
sua totalidade está fora da análise freyriana6.
Por outro lado, este caráter afirmativo da argumentação de Freyre
contribui na conformação de um modelo de civilização constituído. O
suporte básico é a introjeção do binômio civilização e barbárie,
trocando bárbaro por “primitivo”, o que tornaria os dois componentes
positivos, portanto, a convivência de elementos de cultura civilizada
com a primitiva. Esta dualidade de cultura apresenta sérios problemas
de contato e intercomunicação, mas sendo uma cultura “em formação”
pode, dadas as características de sua formação social, equilibrar esses
antagonismos. Desta maneira, o autor sopesa as desvantagens e as
vantagens e operacionaliza sua afirmativa no futuro:

6 Cf. a respeito quando Gilberto Freyre alude à população brancarana, aos mestiços livres, —
Casa Grande & Senzala, 1958 T.I, p.63-4.

279
E não sem certas vantagens: as de uma dualidade não de
todo prejudicial à nossa cultura em formação,
enriquecida de um lado pela espontaneidade, pelo fres-
cor de imaginação e emoção do grande número e, de
outro lado, pelo contato, através das elites, com a ciên-
cia, com a técnica e com o pensamento adiantado da
Europa. Talvez em parte alguma se esteja verificando
com igual liberdade o encontro, a intercomunicação e
até a fusão harmoniosa de tradições diversas, ou antes,
antagônicas, de cultura, como no Brasil. É verdade que
o vácuo entre os dois extremos é ainda enorme; e defici-
ente a muitos respeitos a intercomunicação entre as duas
tradições de cultura. Mas não se pode acusar de rígido,
nem de falto de mobilidade vertical (...) o regime brasi-
leiro, em vários sentidos um dos mais democráticos, fle-
xíveis e plásticos (Freyre, 1958, p.71).

Esta inversão é produtiva quando contextualizamos as discussões


acerca da viabilidade dos países mestiços no que diz respeito ao
progresso e à democracia, discussão que teria sua origem no
pensamento de Le Bon7 e frente a uma classe dominante que se pensa
branca8, ao mesmo tempo, que complexifica a matriz societal brasileira.
Em tal caso é bom lembrar o que DaMatta assinala a respeito:

É que, naquele livro [Casa-grande & Senzala], ele reveste


de verdade a “fábula das três raças”, ao mesmo tempo
em que inicia sua demolição crítica, tomando a

7 Le Bon diz a respeito: “Tous les pays que présentent um trop grand nombre de métis sont,
pour cette seule raison, voués à une perpétuelle anarchie.” E como bem assinala Eve-Marie
Fell esta frase foi mil vezes citada pela intelligentsia latino-americana. Em: LE BON, Gustave:
Lois psychologiques de l’evolution des peuples. 4 ed. París: Félix Alcan, 1900, p.45, Apud FELL, Eve-
Marie: “Del pensamiento racista al despertar de la consciencia revolucionaria”, p.579-595,
em PIZARRO, Ana: América Latina: palavra, literatura e cultura. Vol. 2. São Paulo: Memorial;
Campinas: UNICAMP, 1994.
8 Fernand Braudel caracteriza muito bem esta situação em relação à aparição do livro: “Em
1933 Casa Grande & Senzala vinha a lume num Brasil doente, como o mundo de então,
sofrendo em sua vida material, em sua realidade política, social, intelectual. O novo livro, de
refinada escritura, causou de pronto um escândalo: O Brasil daqueles anos queria ser Europa
e se colocava do lado da casa-grande, dos brancos.” Em: ———, “O Inventor do Brasil”, p.11,
Caderno 2/Cultura O Estado de São Paulo, Domingo 12 de março de 2000 (Braudel escreveu
o texto para o prefácio da edição italiana de Casa Grande & Senzala da Giulio Einaudi Editore).

280
“mestiçagem” muito mais como um processo situado no
código histórico-cultural, de que no quadro de uma lin-
guagem racial. (DaMatta, 1987, p. 6).

Neste sentido, e seguindo o pensamento de DaMatta, o modelo


de civilização que representaria o Brasil não somente interpreta a
mestiçagem por outro viés, mas o tripartite se entrelaça a uma
dualidade cultural com a qual o brasileiro está acostumado a conviver.
Distanciando-se de certo chauvinismo étnico que permeava os
discursos americanistas de entreguerras, Freyre assenta a originalidade
do modelo brasileiro de civilização na noção de antagonismos em
equilíbrio. Essa maneira de lidar com a diversidade de raça e culturas
representa não somente um critério de diferencialidade, mas é
entendida como forma de resistência à homogeneização – que é o que
nos constitui e preserva –, e, então, se torna um valor. É neste sentido
que Casa-grande & Senzala pode dialogar com a discursividade hispano-
americana da época, pois constrói e acarreta o tema da América como
modelo, enquanto lócus e utopia. Por sua vez, deve ter-se em conta
que esta temática não é em nada alheia às correntes de pensamento
modernistas do Brasil: do Pau Brasil à Antropofagia de Oswald de
Andrade, passando pelo grupo da Anta, se pensa o país como lugar
diferente e utópico. Da mesma maneira, este livro de Freyre será o
pontapé inicial, que depois contribuirá para a criação da
lusotropicologia e até da hispano-luso tropicologia, ampliando de
maneira tentacular o domínio do modelo diferente.
A fórmula de antagonismos em equilíbrio se desdobra, também,
através de dois tipos de discursividades que correm entrecruzadas: se
por um lado, no nível da análise e interpretação da formação da
sociedade brasileira significam “ajustamento de tradições e de
tendências” (Freyre, 1958, p. 222), no nível do discurso identitário
trazem consigo valores humanistas de que dão conta as contínuas
referências à harmonia, à confraternização (Freyre, 1958, p.74), à
contemporização (Freyre,1958, p.126). Assim, se o texto de Freyre
desmonta o mito das três raças, ao trabalhá-lo junto com uma reflexão
sobre o poder e com um viés culturalista, contribui para tornar idílica

281
a fase da colonização do país, re-editando o já consabido ideologema
da confraternização.
O ensaio de Freyre ressalta o fato de não haver um rosto mestiço
único, e, sim, de existirem múltiplos rostos sob um solo de dualismo
cultural. Embora Freyre esteja refletindo sobre a nação como um
universo integrador, a diversidade apontada deixa ver a questão de
modo mais aberto e na tendência mais para a heterogeneidade cultural
que para um discurso que pretenda à homogeneização. É uma unidade
na diversidade, mas mostrando que essa unidade se nutre justamente
pela via da hibridização. Nesse sentido, Freyre é um dos poucos
pensadores da questão do nacional atrelada à questão da mestiçagem
que supera e foge à reflexão sobre a síntese.
Essa mestiçagem social e essa hibridização cultural oferecem um
jogo aberto perante a questão da identidade nacional quando pensada
mais para o presente, pois a tripartição original é um valor da sociedade,
uma reserva moral dinâmica – a mestiçagem contínua da qual falava
Prado -, e de grandes passagens e altos componentes de
heterogeneidade –, em uma evidente alusão ao que depois será
denominado como “transculturação” tanto em Ortiz, quanto em Rama
–, mesmo quando se assinala que o problema não está ali, e, sim, na
dualidade cultural.

Mapear a cultura negra


Arthur Ramos (1903-1949), médico legista e antropólogo,
discípulo de Nina Rodrigues, foi o seu continuador. Essa continuidade
foi experimentada na intensa formulação de estudos sobre as culturas
negras no que tange a sua participação e status étnico-cultural fora
dos critérios de formação nacional e da instituição da escravidão, além
da motivação pela superação dos preconceitos.
As culturas negras no Novo Mundo (1937) é um estudo comparativo
e pioneiro dentro da problemática, pois se por um lado abrange o
universo das culturas negras no mapa mundial, por outro o estuda
com seriedade científica e atendendo à especificidade cultural de cada
área de procedência – culturas negro-africanas -, assim como aos

282
processos de aculturação decorrentes – culturas negras no Novo
Mundo. Ramos estuda e devolve às culturas negras na América o
caráter positivo do contato, tão importante como o que foi atribuído
aos indígenas e aos europeus, levando em conta, como assinala no seu
Prefácio à 1ª edição, os obstáculos metodológicos ou conceituais que,
para a época, comprometiam os estudos sobre a cultura negra, quais
sejam: a exploração política do negro, o tratamento dado como material
exótico e pitoresco e o assunto dos estudos “em moda”. O que, por
sua vez, supõe no trabalho de Ramos, estar para além dos protocolos
de exaltação ou censura, que tanto interfiriram na hora das pesquisas
sobre estas culturas e suas contribuições.
Nesse livro nos interessa, em particular, o último capítulo,
intitulado “A aculturação negra no Novo Mundo”, pois nele Ramos
oferece uma reviravolta no que diz respeito a muitas das formulações
que destacamos neste percurso histórico do conceito da mestiçagem.
A pergunta de que parte o autor é por que motivo as culturas negras
não se conservaram, no Novo mundo, no estado original. Nesse viés, a
primeira argumentação de Ramos desmonta a tese de Bilden e de
Gilberto Freyre de que não se pode estudar os povos negros no Brasil
fora do sistema da escravidão, tese que Ramos destaca como “o
leitmotiv” dos ensaios de Freyre sobre a influência do negro no Brasil:

Não foi, de fato, o regime da escravidão que, por si só,


diluiu, esfacelou ou apagou as culturas negras no Brasil
e no Novo Mundo, em geral. O regime de escravidão
alterou, de fato, a sua essência, mas como fator
condicionante, entre outros, de dois processos psicossociais
de relevante significado: a) a separação dos indivíduos
dos seus grupos de cultura e b) os contatos de raça e de
cultura, com a miscigenação, na ordem biológica, e a
aculturação na ordem cultural. (Ramos,1979, p. 241, grifos
do autor)

Ramos está interessado na observação dos fenômenos de


separação ou não dos indivíduos de seu grupo e cultura, e no contato
ou não de raças e de culturas, e nesse sentido o conhecimento que

283
possam trazer os estudos sobre os processos de aculturação tanto
importam em relação às culturas negras, quanto à cultura brasileira
como um todo: “É este o único método capaz de nos levar ao exato
conhecimento de nós mesmos”(Ramos, 1979, p. 248). Se nessa primeira
argumentação ele foge do argumento que apenas sopesa a escravidão
é porque esses contatos também foram produzidos pelas formas em
que foram transportadas ao continente, pelas migrações secundárias,
as fugas dos negros.
A segunda grande argumentação é a de que a miscigenação é,
por um lado, o resultado do contato: “Quando dois povos entram em
contato há sempre miscigenação” (Ramos,1979, p.242), portanto é
colocada dentro do universo antropológico, por outro lado, sendo
assim, a mestiçagem não possuiria nenhuma característica em especial,
produzindo “uma lavagem” do conceito. É como se fosse mandado
para o seu lugar, aquele que diz respeito às relações de raça, que no
continente se fizeram numa ampla gama, tirando-lhe, assim, qualquer
tipo de valorização alheia à esfera da biologia. Por sua vez, esse
posicionamento de Ramos confirma e re-instala as suas pesquisas
aquém dos critérios do ensaio de interpretação nacional e da procura
do caráter brasileiro, devolvendo ao discurso antropológico, seu matiz
de contribuição científica e negando-lhe a sua interferência naquele
tipo de ensaios.
Essas duas argumentações, a que fizemos referência, lhe permitem
entrar de cheio na teoria, em voga por aquele momento, da aculturação.
Através dela, não apenas demonstra como vão se dando os três
resultados da aculturação: aceitação, adaptação e reação, no Brasil e
no Novo Mundo, mas, principalmente, consegue desmontar, a partir
do discurso científico, a teoria falaz do embranquecimento. Se como
ele assinala “Todas as vezes que se opera o distanciamento dos
indivíduos negros dos seus padrões de cultura, vão se acentuando
progressivamente as oportunidades do processo de aceitação” (Ramos,
1979, p. 246) e isso é o que aconteceu e acontece no Brasil, e por
outro lado, se todo contato de culturas não implica, necessariamente,
contato de raças, o branqueamento é uma saída arianizante e

284
biossociológica que esquece os processos culturais e psicossociais de
contatos de culturas.

A questão do abrasileiramento na era Vargas


A mestiçagem “seletiva” que propunham, de diversos modos,
Sílvio Romero (1888), João Batista Lacerda (Sur les Métis au Brésil,
1911) e Oliveira Vianna (1920 e 1922) atinge durante o Estado Novo
(1937-1945) seu ponto mais alto e sua face mais intolerante.
Conformou-se a chamada “campanha de nacionalização” que visava
ao “caldeamento” de grandes setores de imigrantes, em particular da
região sul do país, que se achavam, de acordo com o Estado, “não-
assimilados” e representavam uma ameaça à unidade nacional.
Procurava-se o abrasileiramento dos mesmos a partir das premissas
de assimilação e de caldeamento. Seyferth assinala o paradoxo que a
campanha propunha:

Longe de propor uma política de imigração que con-


templasse todo o território brasileiro, os nacionalistas
do Estado Novo consideraram o Nordeste uma espécie
de reservatório de brasilidade, justamente porque ficou
fora do processo imigratório. Assim, o Brasil mais tradi-
cional possuía o elemento humano mais apropriado para
nacionalizar o sul. (Seyferth, 1997, p.101).

O abrasileiramento, tal como proposto, negava legitimidade às


etnicidades e dava novo status à visão da mestiçagem como base da
formação nacional, restituindo ao Nordeste o papel de reservatório
dessa mestiçagem de origem e, outorgando-lhe o poder de
“nacionalizar” os não-assimilados. Dessa forma, mesmo que
permanecesse o preconceito contra os “nordestinos”, a sua função
social transformava-se em uma função moral, ao mesmo tempo em
que o conceito de mestiçagem ficava atrelado à tradição da formação
nacional, e o de caldeamento ecoava como fórmula para o presente.
A mestiçagem emerge nas formas discursivas dos pensadores e
artistas brasileiros antes do aparecimento e difusão do discurso

285
científico sobre a raça, como produto da visibilidade e em confluência
com uma retórica humanista que sempre teve como alicerce a idéia da
harmonia. Para os fins políticos e ideológicos, todas estas narrativas
que assinalamos tiveram amplo impacto como metáfora de integração
social, elaborando uma visão de permanente negação das exclusões
sociais e econômicas; e como formas matizadas de conciliação opostas
ao confronto, construindo, assim, uma forma particular de
propedêutica do poder estendida ao longo do território e das camadas
sociais. Porém, coube-lhe outros percursos, além do político, do
ideológico, do social e do econômico; coube-lhe preencher um
imaginário de nação em que atuam, talvez ao mesmo tempo, a
espiritualidade, a resistência e a idéia de destino, como bem já destacava
Sílvio Romero:

O povo brasileiro, como hoje se nos apresenta, se não


constitui uma só raça compacta e distinta, tem elementos
para acentuar-se com força e tomar um ascendente ori-
ginal nos tempos futuros. Talvez tenhamos ainda de re-
presentar na América um grande destino cultur-históri-
co (sic Romero, 1949,T1, p. 85).

Não é por acaso, que no fim do século XX , Caetano Veloso tenha


admitido:

Não é um país que tenha sabido se organizar como uma


sociedade nem justa, nem equilibrada, nem rica; no en-
tanto é um país interessante, mesmo porque o modo de
ser rico, equilibrado e justo que os grandes, as grandes
nações têm apresentado, tem deixado muito a desejar,
porque está sempre acompanhado de um efeito colateral
espiritual brutal, né?
Eu acho que um engrandecimento espiritual das coleti-
vidades deveria ser um projeto de população justamente
como a nossa: de mestiços falando português, no vasto
território americano, no hemisfério sul.9

9 Em: “A mestiçagem”, Globo Repórter. Rio de Janeiro: Rede Globo, Novembro 1996. 1
videocassete (90 minutos):VHS, son., color.

286
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de la Literatura Latinoamericana), 1960. (1ª ed. 1925)
MULTICULTURALISMO E PLURICULTURALISMO1

Arnaldo Rosa Vianna Neto


Universidade Estácio de Sá

Assim como anunciado em seu prefixo, o multiculturalismo reúne


uma pluralidade de sentidos que variam segundo os autores, a disciplina
ou a abordagem epistemológica a partir da qual é estudado. Analisado
como conceito e ideologia, o multiculturalismo problematiza questões
complexas e contraditórias em curso nas sociedades pós-industriais,
que atuam como indicadores da crise do projeto de modernidade.
Geralmente utilizada para descrever a diversidade demográfica e
cultural das sociedades humanas, mais precisamente quando se quer
estudar a coexistência da diversidade sócio-cultural e a construção de
identidades em um mesmo país ou em uma determinada região, a
epistemologia multicultural, ao argüir a modernidade sobre a questão
da diferença nas categorias filosófica, política e social, ultrapassa as
especificidades nacionais e inscreve-se como conceito civilizacional no
discurso que as sociedades contemporâneas elaboram em
contraposição às ideologias monoculturais.
Para uma definição dos limites deste texto, e sabendo-se que o
debate multicultural problematiza questões teóricas em um quadro
de globalização econômica, que obriga à avaliação dos valores de
mercado em relação às salvaguardas da diversidade cultural, optou-

1 Este trabalho foi realizado durante meu estágio de Doutorado em Montreal, graças a bolsa
de estudos financiada pela CAPES. Manifesto, pois, meus agradecimentos ao Programa de
Doutorado no País com Estágio no Exterior, pela possibilidade que me foi proporcionada de
acesso à pesquisa de material bibliográfico especializado para a realização de leituras e análises
necessárias ao desenvolvimento deste estudo.
se, por uma questão didática, pelas leituras política e culturalista do
conceito que, antes balizado pelo marco do nacional, tende, hoje, a ser
substituído pelo regional em uma mediação de relações entre o local e
o mundial. Trata-se, pois, de observar, em um contexto econômico
planetário, como se conciliam leis de mercado com a preservação das
construções culturais humanas em sua identidade e diferença.
Rastreado a partir de matrizes que consideram a diferenciação
social como operação constante de desterritorialização e
reterritorialização de identidades, pode-se verificar que o conceito de
multiculturalismo, identificado inicialmente como pluralismo cultural
e/ou cosmopolitismo, especializou-se e evoluiu na tentativa de conciliar
a integração das diversas formações culturais e identitárias
constituintes de toda sociedade. Entretanto, se desde o romantismo e
o relativismo cultural das ciências sociais do início do século XX
instaurou-se uma tradição humanista de reconhecimento de
alteridades e tolerância entre diferentes culturas habitando um mesmo
espaço, o que se debate, atualmente, é a manutenção ou o congelamento
das diferenças, ou seja, uma divisão estática, compartimentalizada das
construções culturais como discurso ideológico da globalização. A
ocorrência das duas nomenclaturas deve-se, pois, a um processo de
ressignificação de objetivos, e, também, de meios para alcançá-los.
Assim, pluralismo cultural e multiculturalismo parecem constituir-se
como etapas do longo processo de instituição de políticas
multiculturalistas cujo objetivo é a gestão da diferença.
Ante as mutações em curso nas sociedades contemporâneas,
plurais e complexas, o multiculturalismo busca um redimen-
sionamento de fronteiras e fechamentos característicos da
epistemologia monocultural e a problematização de conceitos, como
os de identidade, diferença, igualdade, justiça, relativismo,
universalismo, racionalismo, subjetividade, cidadania, ética, direito,
inscritos no projeto de modernidade das democracias liberais, que
fazem da integração da diferença um dos fundamentos de sua
legitimidade. Podendo-se avaliar, entretanto, que a complexidade das
mutações sociais implica uma reestruturação profunda de identidades

290
e suas representações, não é difícil concluir que a integração real não
segue automaticamente a integração formal ou legal, garantida
constitucionalmente, diluindo-se o conceito de diferença no da
igualdade prometida pela cultura política ocidental. Alguns analistas
das políticas multiculturais apontam o fato de que, apesar da retórica
pluralista de integração das diversas formações culturais e identitárias
em uma mesma região, e de situações extremas de segregação e outras
manifestações de exclusão menos radicais, as diferenças sociais, raciais
e étnicas, enquanto se mantiveram dentro de limites precisos,
possibilitaram uma coexistência maior da diversidade identitária.
Ainda é necessário observar que a pedagogia integracionista promovida
pelas políticas do multiculturalismo provoca e desenvolve, muitas vezes,
durante o processo, movimentos separatistas e a “guetoização” de
várias comunidades, tornando cada vez mais complexa a gestão da
diferença nas sociedades contemporâneas ante a crise do universalismo
e o advento da diversidade como valor ethoetnocultural.
Estudando questões ligadas à cidadania multicultural e a uma
teoria liberal do direito de minorias, o filósofo Will Kymlicka (2001)
distingue minorias nacionais de grupos étnicos. Segundo Kymlicka,
as minorias nacionais são egressas de um processo de conquista ou
incorporação e a elas se deve uma autonomia político-administrativa
passível de evoluir até a autodeterminação. Já os grupos étnicos
resultam de processos de imigração e, tomando-se como referência
critérios geográficos, étnicos ou religiosos, constituem comunidades
relativamente homogêneas. A esses grupos, ainda segundo a análise
de Kymlicka, não se assegurariam direitos especiais, mas apenas o
reconhecimento cultural e identitário. Entretanto, através de atos
institucionais ou de iniciativas públicas, cujo objetivo é reconhecer,
tolerar e incentivar a diversidade cultural-identitária, tem-se garantido
um conjunto de direitos não só a membros de grupos constituídos
por minorias indígenas e nacionais, mas, também, a minorias oriundas
de movimentos migratórios.
A uma abordagem política do multiculturalismo interessa não
apenas uma análise de todo esse continuum, mas, também, um estudo

291
sobre a perda progressiva de referências de numerosos grupos sociais
e a constituição de minorias nacionais e étnicas como causa de
reivindicações identitárias e multiculturais, de direitos administrativos
e políticos específicos no seio de um Estado nacional.
Em uma leitura culturalista, lembrando-se que, muitas vezes, não
se definem limites e oposições entre o político e o cultural, e que a
própria epistemologia cultural redimensiona fronteiras entre os
diversos campos do saber, a análise inclui as manifestações de grupos
que, embora não se organizem, objetivamente, a partir de bases étnicas,
políticas ou nacionais, constituem movimentos sociais estruturados
em torno de um sistema de valores partilhados, um estilo de vida
homogêneo, um sentimento de identidade ou pertença coletivas, ou,
ainda, uma experiência comum de marginalização que os identifica
como grupos de exclusão. Esse é o campo de pesquisa em que atuam
as análises da antropologia interpretativa (Geertz, 1973) e dos estudos
culturais (Hall, 1994), que, submetendo à crítica conceitos unitários e
monolíticos, como os de origem, pureza, identidade e autenticidade,
reinscrevem em uma visão plural da história uma multiplicidade de
fragmentos culturais em trânsito sob uma ótica descentralizadora e
policêntrica, produtora de conflitos e mutações.
Nesse processo, é interessante observar que mecanismos de uma
multiculturalidade justaposta podem cruzar-se com a ocorrência de
práticas transculturalistas (Ortiz, 1993), em que determinadas
culturas, postas em relação aberta e ativa, afetam-se e modificam-se
em um processo transitivo de complexas mutações das quais surgem
novas realidades culturais. No estudo da ocorrência desses
mecanismos, deve-se enfatizar, também, a questão do multilingüismo
como mais um fator de complexificação das construções culturais nas
sociedades contemporâneas.
Os estudos multiculturais podem definir-se, nessa perspectiva,
em relação ao papel da linguagem, à construção do sujeito, à teoria da
identidade (inclusive gênero, relações interpessoais e reivindicações
identitárias) e à concepção da realidade e do conhecimento, no âmbito
de uma antropologia urbana, que torna visível uma outra forma de

292
metrópole, difundindo-se nas periferias ingovernáveis e em constante
movência, onde se redesenham cartografias e se deslocam os lugares
institucionais do poder e do governo. A fragmentação da metrópole e
a dilatação de suas fronteiras, que se tornam móveis, plurais e
polifônicas, ocorrem pelo trânsito de uma pluralidade de culturas não
mais na direção de um centro, mas em busca de dialéticas sincréticas,
dialógicas e híbridas. Essas práticas descentralizadoras produzem
novas epistemologias que são atravessadas por conflitos radicais e pelas
irredutíveis diferenças dos novos sujeitos metropolitanos. Nessa nova
forma de metrópole, onde se instaura um outro logos urbano, plural e
dialógico, dissolve-se o conceito histórico de sociedade civil como
símbolo emblemático da modernidade, ou seja, a dialética entre Estado
e sociedade não resiste à globalização e à abertura sem fronteiras dos
mercados.
Incidindo sobre tais realidades em torno da problemática do
pluralismo cultural e identitário, o multiculturalismo envolve, também,
formas de mobilização política e cultural de grupos cujos membros,
ao fazerem parte, por exemplo, de minorias sexuais, comportamentais,
étnicas ou religiosas, inserem-se, ideologicamente, como
multiculturalistas em práticas sociais com o objetivo de reivindicar
direitos particulares ou tratamentos preferenciais. Tais grupos
caracterizam-se pela articulação de movimentos reivindicatórios de
reconhecimento público, desde uma simples inclusão simbólica à sua
aceitação como entidades sociais distintas. No âmbito dessas
construções, problematiza-se a questão da ameaça à primazia do
Estado, reconhecendo-se grupos, que se constituem em identidades
abertas, favoráveis ao diálogo, enquanto outros se fecham em
verdadeiros guetos culturais-identitários. Se a existência de práticas
pacíficas identifica determinados grupos, não se exclui, entretanto, a
ocorrência de atos de violência em outros. Enquanto alguns são
efêmeros, outros são duradouros, havendo, ainda, os que têm por
objetivo impor sua cultura ao conjunto da sociedade. Ante a
complexidade das formas de diversidade cultural-identitária, não é
difícil entender a razão pela qual uma das discussões, que alimenta,

293
atualmente, o diálogo sobre a reestruturação das sociedades, é a de
como conciliar a complexidade do diverso com a unidade política e a
coesão social.
Uma análise sobre a proliferação de minorias e grupos tão
diferenciados requer uma contextualização política, econômica e social
das realidades em que se inserem e a partir das quais organizam suas
reivindicações. Assim, não se poderiam deixar de referenciar, como
paradigma analítico, os mecanismos de poder da nova ordem mundial
ditada pela globalização da economia capitalista em uma época
caracterizada pela recomposição geopolítica, cujo início foi marcado
pela explosão dos conflitos do período pós-guerra-fria inaugurado,
simbolicamente, pela queda do muro de Berlim e a reunificação da
Alemanha. Sabe-se que esse quadro expressa resultados de mudanças
profundas, responsáveis pela alteração do equilíbrio de forças políticas
e econômicas sobre as quais estavam estruturadas não só as relações
internacionais, mas, também, as identidades sócio-culturais. Com a
queda da maioria dos regimes comunistas e o desmantelamento de
quase todos os Estados multinacionais, como a URSS, inaugurou-se
um período de instabilidade política e guerras atrozes, podendo-se
tomar como referência o caso da Iugoslávia, que, constituída por grupos
étnicos e minorias nacionais, viu surgirem dos conflitos novos Estados
a reivindicar uma homogeneidade nacional e cultural. Essa nova era
substitui o período anterior, marcado por um conjunto de certezas
sociais e econômicas e uma relativa estabilidade política mundial,
caracterizada pela estrutura geopolítica dicotômica, que dividia política
e ideologicamente o mundo nos blocos comunista e capitalista.
Assim, no atual contexto da sociedade pós-industrial, definida
por uma economia cada vez mais globalizada de serviços, tecnologia e
informação, os conflitos sociais parecem caracterizar-se antes por
reivindicações de pertenças étnicas e culturais distintas que por uma
consciência de classe como na sociedade industrial. A luta por mais
justiça e igualdade, fomentada nos conjuntos industriais por uma classe
operária ideológica e politicamente conscientizada, foi substituída por
um conflito, predominantemente, urbano, cujos personagens são

294
indivíduos socialmente desamparados, excluídos do sistema e de suas
riquezas, que passam a encontrar refúgio nas identidades étnicas,
culturais e religiosas em torno das quais tentam às vezes se mobilizar.
Poder-se-ia dizer que os conflitos étnicos e culturais representam, na
sociedade pós-industrial, o que os conflitos de classe representavam
na sociedade industrial. Deve-se, entretanto, salientar, evitando-se
generalizações perigosas, que não se substituiu um paradigma classista
por um outro etnoculturalista, uma vez que a revitalização das
construções culturais e das identidades não se traduz, necessariamente,
pelo apagamento da importância da classe social. Ante o processo em
curso da fragmentação das classes e a conseqüente diluição da
hegemonia e da mediação, torna-se visível o declínio da antiga classe
operária, enfraquecida e desmobilizada pela dispersão provocada pelas
políticas econômicas pós-industriais, quando milhões de empregos
desapareceram sob o efeito conjugado do progresso tecnológico e a
competição mundial, levando o sistema empresarial a investir em
regiões onde as condições de produção, principalmente em termos
de salários e proteção social, são mais vantajosas. No entanto, é preciso
considerar que as classes sociais e as conseqüentes desigualdades estão
sempre em processo de recomposição, e que, ultimamente, a eclosão
das lutas sociais parece aproximar-se mais dos conflitos de classe que,
como querem alguns analistas, das guerras culturais, uma vez que a
exclusão, econômica ou cultural, não substitui os embates entre as
hierarquias e as classes sociais, mas a eles se acrescenta. Não surpreende
pois constatar que as lutas pelo reconhecimento cultural-identitário
estejam ligadas às da redistribuição da riqueza e do poder.
Rechaçada por alguns como ameaça à unidade nacional, a
diversidade cultural, enriquecida pelos movimentos migratórios, é,
entretanto, celebrada por uma expressiva margem da população
urbana, representada por cidadãos de relativo poder aquisitivo, cujo
nível de educação varia entre o médio e o superior. Esse segmento
social, por diversos fatores, como certas práticas de evasão existencial,
aprimoramento pessoal, ou modismo, incorpora, muitas vezes, alguns
hábitos de vida oriundos dos povos imigrados, passando a consumir

295
produtos culturais dados como exóticos. Nesse contexto, a diversidade
passa a ser socialmente valorizada e cultivada, traduzindo-se antes pela
sedução do estranho na busca de “excentricidades” migrantes, a
adoção de filosofias e religiões freqüentemente qualificadas de étnicas,
a “exoticidade” de práticas culturais, como a música, a pintura, o
figurino ou a culinária estrangeira que por uma reflexão profunda
ou uma ação política sobre o multiculturalismo. Há, contudo,
importantes questões a considerar sobre os fenômenos migratórios.
Uma delas é que, atualmente, as sociedades oriundas das imigrações
passam por um processo de estratificação social e econômica que
ameaça a solidariedade étnica preconizada por alguns ativistas.
Entretanto, não parece correto afirmar que as sociedades caminham
para uma guerra global de culturas e civilizações, embora, mais do
que nunca, seja necessário considerar, cuidadosamente, a articulação
entre as pertenças sociais e as identidades étnicas e culturais, uma vez
que o processo afeta, conjuntamente, dinâmicas sociais e políticas
urbanas. Na verdade, uma análise das guerras de culturas e civilizações
parece afiançar a manipulação de estratégias dos governos atuais para
camuflar o malogro de suas políticas sociais. Com isso, embora não se
minimizem os conflitos que tomam forma étnica ou cultural, não se
há de apontar, entretanto, a diversidade cultural como a principal
causa dos conflitos e dificuldades atuais. A visibilidade da ocorrência
de questões políticas e econômicas sob os conflitos aparentemente
étnicos e culturais faz com que se os considerem mais como
conseqüência que causa das desigualdades e embates sócio-
econômicos. Enfim, parece possível afirmar que o problema da coesão
social e da cidadania está muito mais ligado ao fosso sócio-econômico
crescente que à diversidade cultural e às reivindicações identitárias.
É necessário ao debate multiculturalista acrescentarem-se, ainda,
outras análises elaboradas por diferentes pensadores sobre as causas
do desocultamento da complexidade cultural-identitária. Em uma
perspectiva política, se alguns avaliam o recrudescimento de problemas
relativos à diversidade cultural como conseqüência do fracasso do
marxismo e do liberalismo, tidos como dois grandes mitos

296
homogeneizadores, outros o vêem como produto da diminuição da
capacidade dos Estados em definir e controlar as fronteiras do espaço
público nos últimos trinta ou quarenta anos. Já em uma leitura
interdisciplinar, muitos compartilham, ainda, a opinião de que se trata
de uma revanche do ser humano reduzido ao estatuto de consumidor
por uma economia capitalista triunfante, ou de uma busca de sentido
e referências existenciais por indivíduos que, perdidos no processo
da globalização, passam a conhecer novas formas de discriminação e
preconceitos. A tais indivíduos, a abertura para o mundo fascina e
apavora, e, apesar de considerarem inevitáveis a convivência e o
confronto com a multiplicidade de experiências e contaminações
culturais, entendem, no entanto, que a melhor forma de identificação
é a assunção da diferença. Além da evidência de todos esses fatores,
há de se levar em conta que uma das causas principais da
problematização da diversidade cultural-identitária reside no fato de
que a globalização da economia capitalista, ao invés de privilegiar o
poder construtivo das novas tecnologias para tornar possível uma nova
era de bem-estar generalizado, agravou ainda mais a diferença entre a
minoria capitalizada e a maioria de baixa-renda, acentuando a
polarização social e o aumento da exclusão. Assim, compreende-se
que a complexificação da diferença vem se tornando visível
publicamente à medida que a distância entre a fragmentação sócio-
econômica e as políticas institucionais, oficialmente engajadas por parte
de governos comprometidos com a luta contra as desigualdades e as
discriminações, torna-se mais contundente. Nesse quadro, indivíduos
e grupos excluídos ou desprivilegiados procuram refúgio em
identidades e culturas exclusivistas nas quais se sentem mais
protegidos, seja pelas leis das políticas multiculturalistas ou pelos
mecanismos de reivindicações cuja eficácia, muitas vezes, representa
uma maior tranqüilidade para os que, de alguma forma, sofrem com
as formas de exclusão. Confrontadas à diversidade cultural-identitária
crescente, cuja manifestação se dá de diferentes formas, há as culturas
e as identidades étnicas, sexuais, religiosas, de classe ou, ainda,
profissionais, que os Estados são levados a reconhecer e, em

297
conseqüência disso, instados a praticar uma série de intervenções
públicas em diferentes campos.
Pode-se dizer que a razão de alguns países adotarem uma política
multiculturalista deve-se, em grande parte, à dinâmica das migrações
e às reivindicações por parte de grupos, cuja identidade emerge de
ideologias ou costumes diferentes dos que são normatizados pela
definição de uma identidade nacional construída pelo processo de
homogeneização cultural-identitária característico do Estado-Nação,
onde a monocultura e a identidade única são consideradas como norma
social. O crescente interesse pelos movimentos migratórios atualmente
deve-se ao fato de que a contribuição das migrações oriundas da
dinâmica de uma economia de mercado, que provocou, e ainda
provoca, intervenções na organização e no equilíbrio de forças
internacionais, pode interferir na construção da nova ordem mundial
ditada pela globalização da economia capitalista. Isso explica o porquê
de as migrações terem sido determinantes para a adoção de políticas
multiculturalistas em países da Europa e da América do Norte.
Deve-se lembrar que o multiculturalismo ganhou evidência desde
que passou a ser tratado, também, como questão política, quando a
problematização da diferença desenvolveu tensões e resistências sociais
e políticas, gerando conflitos pela redistribuição do poder, recursos
econômicos, meios de produção e controle social. A retórica da
solidariedade pluralista, construindo uma política de sacralização da
diferença, parece ser a estratégia, que vem sendo utilizada, para
camuflar os verdadeiros problemas econômicos e sociais, atuando como
mecanismo de substituição das reformas sociais. É mais fácil para a
cultura ocidental urbana, globalizada e policêntrica aceitar a diferença
cultural, a coexistência de etnias bem tipificadas, que o fato social das
desigualdades. O debate político, em uma dimensão interdisciplinar,
expressando as diferentes realidades que o termo designa, gira,
portanto, em torno da problemática de como lidar com a diversidade
cultural e identitária em uma mesma região, sabendo-se,
evidentemente, que tais realidades variam segundo as práticas sociais
e políticas nacionais.

298
O Canadá foi o primeiro país a adotar oficialmente uma política
multiculturalista, fazendo com que o termo em questão ganhasse cada
vez mais espaço no estudo das ciências sociais e no debate público ao
longo dos anos oitenta e noventa em países das Américas, da Europa e
Austrália. Assim, o multiculturalismo, e suas implicações políticas e
culturais, tem sido discutido nos Estados Unidos a partir de questões
étnicas e nacionais, enquanto na Europa define-se pela vigência de
um pacto social gerador de políticas de iniciativa estatal voltadas para
os problemas de imigração, exclusão e marginalidade. Na América
Latina, Néstor García Canclini (1990), Jesús Martin Barbero e Gustavo
Gilli (1987), através de perspectivas diferenciadas, mas partindo do
conceito gramsciano de hegemonia e de uma visão ampla de cultura
como relação entre produção, circulação e consumo do conjunto de
bens simbólicos, concebidos por uma determinada sociedade, rompem
com a tradição dos estudos sobre a sobrevivência da cultura popular e
dos “altos estudos” da Escola de Frankfurt sobre cultura erudita, que
apontavam a “dissolução massiva”, produzida pelos meios de
comunicação, como ameaça à sobrevivência das especificidades
identitárias. Conduzindo estudos e pesquisas em termos de uma
recepção social e culturalmente integrada, Canclini e Barbero/Gilli
ressignificam estatutos identitários, alçando o consumidor passivo dos
produtos culturais de massa de alienado do processo de produção
dos sentidos a sujeito da apropriação cultural. É, portanto, a
apropriação de bens culturais, mediada por um conjunto de influências
que reorganizam a percepção da diversidade multicultural,
produzindo ou reproduzindo significados sociais e interações
identitárias, que insere o ethos latino-americano no debate sobre a crise
da modernidade. A reinserção cultural de sujeitos históricos excluídos,
que, entretanto, continuam a sobreviver em uma relação assimétrica
de poder e de subordinação, torna imprescindível ao reconhecimento
teórico a adoção de políticas, que possibilitem o exercício de uma
democracia plena, manifesta na garantia da aquisição de uma cidadania
não só de direitos políticos e legais, mas, também, cultural. Assim,
tem-se investido na adoção de práticas sociais multiculturalistas,

299
visando, prioritariamente, à conjunção ativa de uma pedagogia cultural
e políticas de identidade voltadas para grupos excluídos ou que sejam
objeto de discriminação, como populações indígenas, populações afro-
descendentes e mulheres, entre outros, que tiveram suas
oportunidades de acesso aos bens culturais negadas ao longo da
história.
As políticas do multiculturalismo estão, assim, diretamente ligadas
a mobilizações dos diferentes grupos de exclusão, que dão sentido ao
que se conhece há alguns anos como identity politics. O reconhecimento
pelo Estado da diversidade identitária e das políticas de tolerância
passa, muitas vezes, pela mediação institucional de elites oriundas de
culturas minorizadas, cooptadas tendenciosamente pelo Estado em
nome das clientelas que representam. Alguns analistas criticam tal
prática, temendo uma refeudalização das sociedades nacionais e a
superposição ou a descaracterização institucional de algumas figuras
como, por exemplo, leis majoritárias e singularidades, espaço público
e privado. Quanto às minorias oriundas de imigração recente, elas se
organizam para reivindicar ações que facilitem, sobretudo, o trânsito
lingüístico, cultural e religioso. As minorias muçulmanas imigradas,
por exemplo, em países da Europa, Canadá e Estados Unidos, lutam
para receber, em termos de ajuda pública financeira, o mesmo
tratamento dado a outras religiões quanto a locais de culto, parcelas
nos cemitérios, ou, ainda, a cursos de religião em escolas públicas.
Essas são apenas algumas das diversas reivindicações que, todavia, têm
em comum o fato de serem articuladas em torno de identidades étnicas,
culturais, raciais e religiosas, reforçando com isso o sentido da
expressão “políticas de identidade”. Na verdade, a busca de afirmação
dos grupos nos espaços públicos tem em vista a recusa de uma total
invisibilidade cultural e identitária.
As políticas de identidade mobilizam grupos que dispõem de
recursos muito desiguais para o exercício do jogo político. Depois de
terem sido ignorados por um longo período, os autóctones, também
conhecidos como “as primeiras nações”, vêm sendo alvo de atenções
especiais em diferentes tratados internacionais. No Canadá, eles têm

300
um poder de negociação que pode ser muito grande, pois ocupam
um território rico em recursos hidrelétricos. Entretanto, apesar da
solidária mobilização política, desenvolvem-se, também, antagonismos
na prática das identity politics, uma vez que os grupos minoritários não
constituem entidades totalmente homogêneas, passando, muitas vezes,
por conflitos culturais internos não só, por exemplo, de gerações e
gênero, mas, também, políticos e econômicos. Pode haver, ainda,
divergências enormes quanto às reivindicações formuladas, à
identidade e cultura defendidas, como, também, em relação aos
objetivos perseguidos e aos meios de ação. Um outro problema de
difícil solução desenvolvido no âmbito das políticas identitárias é a
emergência de líderes comunitários que, além de exigirem o monopólio
da representação de seu grupo, não hesitam em privilegiar seus
interesses específicos.
Enfim, não seria correto afirmar que os grupos minoritários estão
sempre a favor de um projeto ou de políticas multiculturalistas, e que
os grupos majoritários a elas sempre se opõem. Na Austrália, por
exemplo, embora o projeto multiculturalista seja estatal, sabe-se que
há uma oposição severa dos aborígines australianos às suas políticas,
pois entendem que o multiculturalismo frustra seus direitos
fundamentais. Na qualidade de “primeira nação”, eles consideram os
outros grupos, seja a maioria oriunda das migrações de povoamento
vindas das Ilhas Britânicas, ou os imigrados de outras regiões do
mundo, como intrusos que ameaçam sua soberania ancestral sob o
pretexto de uma ideologia que prega o respeito à diferença cultural.
No Canadá, o multiculturalismo foi oficialmente adotado como
política do governo federal por Pierre Eliott Trudeau, primeiro-
ministro nas gestões de 1968 a 1979 e 1980 a 1984. Segundo a versão
dos quebequenses francófonos, partidários das políticas pela
independência do Quebec, Trudeau teria adotado o multiculturalismo
em seu primeiro mandato, no início dos anos setenta, como estratégia
para enfraquecer o biculturalismo francófono-anglófono. Criada, pois,
para diminuir a influência do Quebec no Canadá, em uma época
durante a qual o movimento independentista se fortalecia, a política

301
multiculturalista ganhou, também, maior motivação com a famosa gafe
de Charles de Gaulle, que, em visita oficial ao Canadá, proferiu a
conhecida exortação: “Vive le Québec libre!”. Nesse caso, ao invés de o
multiculturalismo canadense servir à conciliação da diversidade
cultural, foi usado para diluir o poder da minoria francófona no
Canadá.
Entre outros mecanismos utilizados para referendar a diversidade
cultural, o Estado, através de concessões e transferências de recursos
financeiros, vem atuando junto a determinadas instituições e
associações. Nesse sentido, algumas iniciativas, entre muitas outras,
podem ser lembradas. No Canadá, por exemplo, há leis que permitem
ao poder público conceder subsídios às ações que têm por objetivo
melhorar o conhecimento recíproco e a coabitação entre diferentes
grupos culturais do país, estados e municípios. No Quebec, além de
editarem-se jornais em línguas estrangeiras, que são publicados por
associações de imigrados, há programas comunitários em cadeia de
rádio e televisão subvencionados pelo governo.
Uma outra forma de atuação das políticas públicas ocorre nas
diferentes iniciativas tomadas pelos governos na luta contra o racismo
e a xenofobia, como, por exemplo, a implementação de programas de
educação anti-racista em escolas públicas, bem como a criação de
departamentos de estudos étnicos e raciais em várias universidades
do Canadá, dos Estados-Unidos e, mais recentemente, do Brasil.
Assim, aplicam-se medidas previstas, por exemplo, nas constituições
de estados como São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro, a saber, entre
outras, a inclusão do ensino de história das civilizações africanas nos
currículos escolares das redes estaduais e em alguns municípios
pioneiros na implementação do referido projeto. Revitalizando-se a
complexidade da realidade social, instaura-se, pois, no Brasil, por essa
via, o debate sobre produção cultural e reconstrução de identidades,
buscando-se, ainda, é verdade, um caminho na cientificidade
contemporânea.
Em alguns países tomam-se medidas para facilitar as relações entre
o Estado e grupos que não falam a língua oficial do país ou da região

302
em que vivem. Assim, escolas públicas de alguns Estados do sudoeste
estadunidense desenvolvem programas de ensino bilíngüe, em
espanhol e inglês, cuja clientela é constituída por filhos de imigrados
hispanos, apesar dos acalorados debates políticos que tal situação
provoca. No Quebec, como se sabe, embora o idioma oficial seja o
francês, o governo provincial oferece serviços também em inglês,
enquanto nas outras regiões do Canadá, em virtude da forte autonomia
das províncias, os serviços públicos dos outros governos provinciais
são oferecidos apenas em inglês, apesar da adoção do bilingüismo pela
política federal. Em outros países, vários serviços podem ser oferecidos
aos imigrantes em sua língua de origem, dependendo, é claro, do peso
da representação demográfica de cada grupo. Em Nova York, cédulas
eleitorais em diferentes línguas são fornecidas em bairros como, por
exemplo, Chinatown. Enfim, em alguns bairros de forte densidade
demográfica estrangeira, as autoridades locais afixam informações
públicas nas várias línguas correspondentes aos principais países de
origem dos imigrados. No bairro latino de Montreal, a agência do
banco Caisse Populaire Desjardins, no Boulevard Saint-Laurent, afixou
na fachada principal um grande cartaz anunciando a Caisse d’Économie
des Portugais de Montreal. Nessa agência, todos os funcionários falam,
além de francês e inglês, também o português. Há, ainda, no mesmo
bairro, bancos onde o atendimento pode ser oferecido, por exemplo,
nas línguas croata e espanhola, entre outras.
Outras medidas típicas das políticas do multiculturalismo, como
a criação de museus da imigração, a exemplo do de Ellis Island em
Nova York, também fazem parte do programa de conscientização do
grande público sobre a história multicultural das nações. Há, ainda,
ações que se revelam não só em casos de intervenção de autoridades
públicas para facilitar as práticas religiosas minoritárias, como, também,
para a manutenção de códigos relativos ao vestuário e à alimentação e
o reconhecimento de feriados religiosos. No Canadá, os sikhs, de origem
indiana, estão autorizados a conservar o turbante e a portar a faca
tradicional. Embora essas iniciativas não constituam uma garantia
eficaz da manutenção da diversidade cultural, há, no entanto, um

303
investimento social na busca de direitos contra a discriminação étnica,
cultural ou racial.
Enfim, faz-se necessária uma referência às políticas públicas
inspiradas na affirmative action dos Estados Unidos. Trata-se de medidas
institucionais freqüentemente adaptadas pelas políticas
multiculturalistas mesmo que inicialmente não visem a objetivos
culturais e identitários. Embrionárias nos anos sessenta, só tomaram
corpo após a instituição da igualdade racial nos Estados Unidos como
matéria de direito, consubstanciando-se no final da década de setenta.
Tais políticas investiram na garantia do princípio da igualdade, fazendo
aumentar, através de medidas específicas, a participação e
representação de minorias étnicas (inicialmente afro-americanas) na
administração pública, universidades, mercado de empregos e política.
Mais tarde, abrigaram-se outras minorias raciais e étnicas (asiáticos e
hispânicos) e categorias sociais identitárias, como, por exemplo, a de
gênero. Seu objetivo principal, que deveria ser a valorização da
diversidade cultural-identitária, dando maior visibilidade social a
grupos sub-representados ou previamente excluídos em todos os níveis
da sociedade, torna evidente, na verdade, a decisão política de acelerar
a integração de grupos marginalizados para pôr fim às discriminações
raciais, que ainda existem de maneira considerável. Definidas,
inicialmente, por “quotas raciais e étnicas” proporcionais ao peso
demográfico real das minorias representadas (afro-americanos,
asiáticos, hispânicos), as práticas implementadas pela affirmative action,
de cunho acentuadamente político, raramente mantêm-se hoje,
contrariando o que se lê com freqüência, uma vez que provocaram
sérias discussões em debates públicos. A garantia de “vagas étnicas”
(quase nunca preenchidas) para o acesso de minorias às Universidades,
longe de reparar uma injustiça histórica, criou problemas jurídicos e
sociais que agravaram os embates. Essa prática reproduziu-se, de
maneira geral, no acesso aos mercados de trabalho, possibilitando, na
seleção de candidatos de igual qualidade, o privilégio dos que fossem
oriundos de grupos de exclusão. No Brasil, propostas governamentais
pela implantação de medidas semelhantes também têm sido alvo de

304
grandes polêmicas, como, por exemplo, a que se criou em torno da
política de reserva de 50% das vagas do vestibular nas Universidades
estaduais para alunos oriundos de escolas públicas do Estado do Rio
de Janeiro. A legislação, investindo em programas de “ação afirmativa”
como estratégia governamental de definição de “políticas de
identidade” vai garantir, evidentemente, o ingresso à Universidade de
alunos de classes populares, que contam com um número elevado de
afro-descendentes. Entretanto, o projeto, que parece investir na
política da “igualdade de oportunidades em sociedades
acentuadamente desiguais”, ainda que possa vir a favorecer uma certa
mobilidade social pela integração de grupos marginalizados, a partir
da possibilidade de acesso ao ensino superior, também poderá acentuar
a discriminação e a reprodução de estereótipos, visíveis nos processos
de exclusão, caso não se concretizem no cotidiano escolar novas
concepções pedagógicas, já em curso em programas das instituições
oficiais encarregadas do planejamento educacional no Brasil, que
parecem contemplar as diversidades e desigualdades sociais com
políticas desconstrutoras de preconceitos ethoetnoculturais.
Alguns estudiosos, avaliando as controvérsias das políticas da
affirmative action, entendem que a adoção de critérios construídos sobre
uma base racial, não só manteve desigualdades, mas acirrou
preconceitos étnicos e comportamentais, provocando reações
organizadas por parte de grupos radicais como, por exemplo, os de
inspiração neonazista, que se aproveitaram do contexto histórico e
das construções sócio-político-culturais favoráveis como pretexto para
fundamentar ou justificar suas ações. Assim, a ocorrência de
dificuldades de uma incorporação igualitária, que tem favorecido a
reprodução mimética dos estigmas de uma etnicidade condenável,
supõe, necessariamente, uma revisão do projeto integracionista para
a substituição dos paradigmas monoculturais que impregnam
instituições ocidentais com sua tábua de valores.
Algumas questões consideradas importantes na discussão do
pensamento multiculturalista, como, por exemplo, a conciliação de
princípios liberais (liberdades individuais, justiça social e democracia)

305
com o reconhecimento de minorias nacionais e comunidades
etnoculturais, parece continuar na pauta de debates político-filosóficos
através dos quais se tentam referendar propostas coerentes para a
viabilização de sociedades multiculturais. Nesse âmbito, indaga-se,
também, sobre o lugar dos direitos coletivos na democracia liberal
(Taylor, 1997). A essa ideologia e a esse projeto de sociedade chama-
se, geralmente, de multiculturalismo hard. Ele questiona a concepção
clássica de identidade nacional e vai além do pluralismo superficial
presente no multiculturalismo tido como soft, trabalhando com a
possibilidade de inclusão dos grupos étnicos no processo de definição
de identidades nacionais.
As questões multiculturalistas encontram, ainda, lugar no debate
que opõe, desde os anos sessenta, dois campos na teoria e na filosofia
política: o dos liberais e o dos “comunitaristas”. Os liberais, revelando
uma posição assimilacionista, manifestam sua desconfiança quanto ao
reconhecimento da diversidade cultural e identitária no espaço
público. Segundo esta concepção, o indivíduo, que constitui o centro
da sociedade, é e deve ser o cidadão titular exclusivo de direitos e
deveres. Ao contrário, para os comunitaristas a comunidade é uma
exigência tanto ontológica quanto normativa para o indivíduo. Em
suas considerações, o reconhecimento dos direitos coletivos para as
minorias étnicas e culturais não chega a representar um problema de
princípio, porém, suas posições não levam seriamente em conta os
perigos do fechamento e da separação comunitários. Desses debates
resultaram algumas sínteses que não são suficientemente convincentes.
Uma delas, contudo, foi, relativamente, bem aceita por uma grande
maioria dos grupos em questão. Trata-se do estudo do filósofo liberal
Will Kymlicka (2001), que, propondo um modelo muito elaborado de
cidadania multicultural, demonstra que o Estado não pode e não deve
ser neutro nos campos das construções culturais e das políticas de
identidade, pois a instituição dos direitos humanos não compensa,
suficientemente, as discriminações sofridas pelas minorias. Segundo
Kymlicka, uma teoria da justiça nas sociedades multiculturais deveria,
além da garantia dos direitos universais a todos os indivíduos, incluir

306
direitos e/ou estatutos especiais para algumas minorias. Dessa forma,
a cidadania multicultural seria diferenciada, concebendo, ao mesmo
tempo, direitos individuais iguais para todos e direitos específicos para
os membros de algumas minorias. Kymlicka ainda defende a idéia de
que determinados grupos, que oprimem seus próprios membros, não
devem gozar do reconhecimento público.
Quanto ao multiculturalismo de mercado, há de se constatar a
evidência de uma outra forma de reconhecimento da diversidade
cultural-identitária. Caracterizado pela predominância do setor
privado, que intervém onde o Estado se ausenta, o capitalismo
empresarial parece dialogar com as políticas multiculturalistas. Sabe-
se, entretanto, que o multiculturalismo de mercado não supõe,
necessariamente, uma participação nos debates filosóficos com relação
aos direitos coletivos ou ao princípio de reconhecimento das minorias.
Assim, a diversidade é reconhecida, e até mesmo encorajada, pelo setor
privado desde que possa representar uma fonte de proveito econômico.
Embora traduzindo um ideário louvável, como o respeito pela
diferença, pelas identidades culturais e o direito de representação das
minorias, as políticas multiculturalistas podem, contudo, produzir
efeitos perversos ou descambar para epistemologias totalitárias,
provocando um distanciamento entre os grupos culturais, e
conduzindo as representações identitárias à fragmentação. Nesse
sentido, um dos mais graves problemas gerados pelas políticas
multiculturalistas, que poderia se constituir como ameaça à coesão
social e política, é o que se chama de naturalização e essencialização
das culturas e identidades. A adoção de uma concepção naturalista e
essencialista da cultura por alguns multiculturalistas pode conduzir a
um relativismo cultural nefasto. Essa concepção supõe que as crenças
relativas a uma determinada sociedade não devem estar sujeitas a
comparações. Seus adeptos concebem a cultura como um conjunto
claramente delimitado, fechado e coerente, de traços diversos e crenças
que dão sentido à existência dos indivíduos, determinando seus
comportamentos sociais e transmitindo-se de geração em geração. Para
eles o indivíduo possui uma única identidade cultural e estará sempre

307
imerso em uma só cultura. Eles concebem um mundo claramente
dividido em culturas coerentes e distintas, sustentadas por grupos
sociais de forte homogeneidade interna. Em suas formas extremas, o
relativismo cultural atribui o mesmo valor a todas as culturas.
Conseqüentemente, todas as culturas e todas as práticas culturais
devem ser reconhecidas, pois são equivalentes e legítimas. Seguindo
essa lógica, tolerar-se-ia, por exemplo, a prática da infibulação ou a
amputação sexual de mulheres, tradição mantida em algumas culturas,
que seria acatada não como mutilação, mas como costume cultural a
se respeitar em detrimento da integridade física e psicológica que
deveria ser defendida como valor universal. Ainda é importante
registrar que existem muitos indivíduos que não aceitam as fronteiras
culturais pré-estabelecidas pelas culturas monolíticas e reivindicam
uma cultura múltipla resultante de um processo de mestiçagem em
que são atores. Para eles, a tribo, a comunidade, a região, a nação são
entidades organizadas em torno de estruturas, conceitos e valores
demasiadamente estanques. Afirmando a e xistência de um
neocosmopolitismo, eles experimentam um forte sentimento de
pertença a diferentes lugares, sociedades e grupos, identificando-se
com o produto cultural híbrido emergente das novas técnicas de
comunicação e informação.
Apesar de parecerem utópicas, é necessário insistir que as análises
do pensamento multiculturalista tornam-se sempre mais ricas e eficazes
se feitas a partir de um debate amplo e concernente a todos: a
renovação e o fortalecimento da democracia e da justiça social. A esse
propósito, os processos de deterioração social e econômica em curso,
assim como as forças políticas comprometidas com ideologias
monoculturalistas, constituem obstáculos bem maiores que a grande
maioria dos movimentos de afirmação cultural-identitária inscritos,
felizmente, em um programa democrático. Assim, poder-se-ia dizer
que um dos meios mais eficazes para inibir ideologias extremistas,
que provocam a separação étnica e a guetoização de minorias culturais,
é o rompimento com a lógica da exclusão e da desigualdade social.
A maioria dos estudiosos do multiculturalismo partilha a opinião
de que pensar a diversidade cultural é, também, uma forma de refletir

308
sobre as práticas democráticas. Seu objetivo mais nobre seria não
perder de vista o respeito à democracia como limite que não deve ser
ultrapassado quando se fala em aceitação de todas as formas de
diversidade cultural. Muitos teóricos, entretanto, temem que as práticas
multiculturalistas possam representar uma nova tentativa de imposição
de paradigmas tipicamente ocidentais a todo o mundo. Concluindo, a
maioria dos especialistas no assunto valoriza a tentativa de conciliação
da democracia com uma diversidade cultural cada vez maior, sob a
argumentação de que a identidade multicultural traduz uma evolução
das referências nacionais quando interroga a produção de imaginários
coletivos e as representações de alteridades culturais presentes em
toda sociedade, sem que, necessariamente, seja decretado o declínio
da democracia.
Assim, apesar da reincidência da retórica de retorno à nação
homogênea e da produção pelos mass-media de linguagens que,
difundindo uma cultura de massa estandardizada, fabricam
identidades prêt-à-porter, parece possível acreditar que sempre haverá,
na maioria das sociedades modernas, a coexistência de indivíduos e
grupos que reivindicam pertenças etnoculturais diferentes. Nessa
perspectiva, os movimentos migratórios continuarão a existir e a
alimentar a diversidade, fazendo emergir novas formas de identidades
culturais, enquanto outras desaparecerão ou perderão seu significado
social. Assim, a permanência da diversificação social provavelmente
deverá continuar a bloquear as tentativas aparentemente vitoriosas de
assimilação ou unificação cultural, provocando, certamente, situações
conflituosas, mas, também, produzindo o surgimento de novas
solidariedades e progresso social.
Os ideais de construção de uma sociedade plenamente apaziguada
e harmoniosa continuam a constituir um discurso utópico, entretanto,
o ponto de partida de toda ação política voltada para os ideais de
solidariedade parece ser a conscientização de que a existência da
diversidade cultural é um fato e que a democracia multicultural pode
constituir-se como proteção contra a ameaça representada pela lógica
da pureza ethoetnocultural ainda ativa em várias regiões do mundo.

309
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311
NEGRITUDE, NEGRISMO,
LITERATURAS DE AFRO-DESCENDENTES

Eurídice Figueiredo
Universidade Federal Fluminense/CNPq
Ana Beatriz Rodrigues Gonçalves
Universidade Federal do Espírito Santo
Márcia Maria de Jesus Pessanha
Universidade Federal Fluminense
Maria Consuelo Cunha Campos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Introdução
A questão do título deste ensaio é tão problemática que já poderia
constituir um artigo em si. Sem poder entrar na polêmica dos
diferentes termos, que foram surgindo ao longo dos anos para designar
os movimentos identitários, literários e culturais dos afro-descendentes
na América e no Caribe, o que se quer aqui é mapear os momentos
nodais dos principais movimentos no campo literário, que aparecem
a partir dos anos 1920. A primeira manifestação coletiva de peso foi a
Harlem Renaissance nos Estados Unidos, que forneceu os primeiros
escritores que alcançaram projeção ainda em vida. Nascida no Harlem,
bairro novaiorquino, ela revela, também, o início do sucesso nacional
e internacional do jazz. Em seguida vieram movimentos caribenhos,
com autores de língua francesa (Aimé Césaire, Léon Gontran Damas,
Jean Price-Mars, Jacques Roumain) e de língua espanhola (Nicolas
Guillén, Palés Matos e Manuel Del Cabral). Os jamaicanos Marcus
Garvey e Claude McKay, que emigraram para os Estados Unidos, se
incorporam aos movimentos daquele país.
O Brasil não trilhou os mesmos passos na época, apesar do
surgimento em São Paulo de uma imprensa negra, que foi se
expandindo para várias cidades do país, entre 1920 e 1937, quando o
Estado Novo proibiu todos os partidos políticos e associações, matando,
assim, a Frente Negra Brasileira. Destaca-se, desde então, a participação
decisiva de Abdias do Nascimento, que criou o Teatro Experimental
do Negro em 1944, tendo continuado sua militância pelos direitos
dos negros até os dias de hoje. A aparição de escritores com esta marca
fortemente identitária no Brasil será, portanto, bem mais tardia,
embora não se possa descartar a existência da voz negra na virada do
século, em escritores canônicos como Cruz e Souza (1861-1898) e
Lima Barreto (1881-1922). Entretanto, é preciso observar que eles
falam a partir de uma experiência individual, não se organizando em
grupo nem formulando teorias poéticas a respeito de seu papel
enquanto negros na sociedade.
Houve (e talvez ainda haja) um movimento pendular nos
movimentos negros: a oscilação entre o desejo de volta à África, literal
ou simbólica, e o desejo de enraizamento no solo americano. A criação
da Libéria (1847), primeira república independente da África, como
opção de volta para os libertos, o back to África de Marcus Garvey
(1887-1940), e até mesmo a negritude de Aimé Césaire, representariam,
de formas variadas, este desejo de volta à terra de origem. Edouard
Glissant considera que a pulsão natural do transplantado é o desejo
de volta. Entretanto, ao voltar, o Ser se dá conta de que ele já não é o
mesmo, o que acarreta uma frustração. A volta pode ser, também,
usada como um mecanismo de desvio: assim, Glissant considera que a
negritude de Aimé Césaire pode ser um desvio proveitoso desde que
a volta ao real (antilhano) se faça de uma nova maneira, ou seja, desde
que o Ser abandone o seu sonho de origem, que seria o restabelecimento
daquele Uno que foi rompido pela perda da terra natal (a África).
Independentemente da postura teórica quanto a esta questão,
os principais escritores negros, da primeira metade do século XX,
estiveram na África, seja em visitas rápidas, seja vivenciando mais ou
menos ativamente os processos de independência. Para só dar dois
exemplos: Frantz Fanon (1925-1961), médico psiquiatra, nascido na
Martinica, militou no movimento de descolonização da Argélia; W.E.B

314
Du Bois, escritor norte-americano, passou seus últimos anos em Gana,
a convite do primeiro-ministro da época, Kwame Nkrumah.
Du Bois resume, em texto publicado em 1903, este duplo
movimento ao tentar conciliar América e África:

A história do Negro americano é a história desta luta —


este anseio por atingir a humanidade consciente, por
fundir sua dupla individualidade em um eu melhor e
mais verdadeiro. Nessa fusão, ele não deseja que uma ou
outra de suas antigas individualidades se percam. Ele
não africanizaria a América, porque a América tem mui-
tíssimas coisas a ensinar ao mundo e à África. Tampouco
desbotaria sua alma negra numa torrente de
americanismo branco, porque sabe que o sangue negro
tem uma mensagem para o mundo. Ele simplesmente
deseja que alguém possa ser a mesmo tempo Negro e
americano sem ser amaldiçoado e cuspido por seus ca-
maradas, sem ter as portas da Oportunidade brutalmen-
te batidas na cara (Du Bois, 1999, p. 54).

Os movimentos negros são contemporâneos e, até certo ponto,


derivados dos primeiros estudos importantes feitos sobre a África por
etnógrafos europeus (Frobenius, Boas, Delafosse, Griaule), que
revelavam ao mundo a beleza e a riqueza das civilizações da África
subsaariana, considerada, até então, nos discursos escravistas e
colonialistas, como sinônimo de barbárie.
Os principais movimentos culturais de afro-descendentes
coincidem com as vanguardas, que pregavam a ruptura com os valores
tradicionais da arte européia, valorizavam o primitivismo, a expressão
dos sonhos e delírios, derivados da liberação do inconsciente. As
vanguardas descobriam também, no início do século, a então chamada
arte negra, ou seja, as máscaras e estátuas africanas levadas para a
Europa pelas incursões dos exércitos coloniais ingleses e franceses,
que pilhavam a África. Jean Laude considera que “não foi a arte negra
que os artistas modernos descobriram no início do século; foi
provavelmente a arte moderna que se descobriu ao descobrir a arte

315
negra” (Laude, 1968, p. 19). O detonador desta descoberta e deste
reaproveitamento seria Picasso, que, em 1906, pintou o quadro Les
demoiselles d’Avignon, com marcas visíveis das máscaras africanas nos
traços dos rostos das jovens, já anunciando o cubismo.
Um aspecto que deve ser destacado é a convergência de dois
movimentos que se seguem: 1. No início de século XX há a descoberta
da África pelos europeus, em dois níveis: o científico, com os estudos
etnográficos e antropológicos, e o artístico, com a revolução
vanguardista e a promoção da “arte negra”. 2. Desde o final do século
XIX se iniciava um processo de invenção da África pelos afro-
americanos, como Alexander Crummell, que a concebem a partir de
uma noção de “raça”, ou seja, a África seria a terra dos “negros”. Ora,
segundo Appiah, até os fins do século XIX nenhuma etnia do
continente africano se via como “africana”, muito menos como “negra”.
“A centralidade da raça na história do nacionalismo africano é
amplamente presumida e freqüentemente ignorada” (Appiah, 1997,
p. 22). Esta solidariedade racial dos negros, que nasce junto com o
pan-africanismo, será o tecido de base de todas as construções
identitárias subseqüentes.

Harlem Renaissance (Estados Unidos)


Vários fatores prepararam o advento da Harlem Renaissance: no
plano social se destaca a migração de cerca de dois milhões de negros
do sul rural para as fábricas do norte no início do século, o que propicia
o fortalecimento e a autonomia de uma mão de obra mais coesa.
Paralelamente, o ressurgimento da Ku Klux Klan acirra a violência
dos confrontos raciais. Entre a segunda metade do século XIX e o
início do século XX três homens se destacam na defesa dos direitos
civis dos negros: Frederick Douglass (1817?-1895), Booker T.
Washington (1858?-1915) e W.E.B. Du Bois (1868-1963).

Nesse trio, Douglass foi o brilhante orador abolicionista,


Washington o empresário pragmático afinado aos novos
tempos, Du Bois o intelectual requintado, estudioso da
sociedade de seu país a partir do interesse apaixonado

316
pelo destino do povo negro. Dos três líderes, foi ele quem
revelou mais explicitamente, em sua obra escrita, o im-
pacto da opressão racial e seus efeitos devastadores na
nascente comunidade dos libertos da escravidão (Gomes
apud Du Bois, 1999, p. 7).

Du Bois tematiza os problemas vividos pelos negros no livro


publicado, em 1903, The souls of black folk (traduzido por Heloísa
Toller Gomes em 1999, As almas da gente negra), que o torna bastante
conhecido. Ele cria revistas e colabora na fundação de movimentos,
dentre os quais se destacam: Niagara Movement (1905-1909), NAACP
(National Association for the Advancement of Colored People),
fundada em 1910 e ainda em funcionamento. Booker Washington
fundou o Tuskegee Normal and Industrial Institute, a fim de promover
a formação de uma mão de obra negra mais qualificada. Sua grande
obra, que terá impacto na escrita da geração seguinte, é Up from Slavery,
de 1901.
Assim, muitos foram os predecessores que prepararam o terreno
para a Harlem Renaissance, o primeiro movimento artístico de
importância, que reuniu escritores, músicos de jazz e artistas em geral,
no Harlem, tradicional bairro negro da cidade de Nova York, nos
anos de 1920. Autores tão diferentes como Langston Hughes, Claude
McKay, Zora Neale Hurston, Jean Toomer, Countee Cullen, Nella
Larsen, músicos como Louis Armstrong, Duke Ellington, todos com
obras de amplo reconhecimento público, demonstram uma aguda
consciência crítica da questão racial. A publicação da antologia
organizada por Alain Locke, em 1925, The New Negro: An Interpretation,
confirma formalmente a existência do movimento. A sonoridade de
alguns poemas é marcada pelo jazz, pelo blues e pelos spirituals; além
dos textos e de algumas partituras, o livro tem fotos de alguns autores,
ilustrações de Winold Reiss e Aaron Douglas, que exploram motivos
africanos, além de fotografias de estátuas e máscaras, o que serve para
resgatar uma ancestralidade perdida e oferece uma percepção visual,
auditiva e tátil. Houston Baker Jr. considera o livro de Locke o
primeiro livro “nacional”, entendendo por nação a comunidade dos

317
afro-americanos, ou seja, a idéia de nação se fundamenta na raça (Baker
Jr., 1987, p. 85). Baker Jr. também associa o livro de Locke à idéia de
“marronnage de grande escala”, fazendo apelo ao termo usado no
Caribe para a designar resistência à escravidão (marron, maroon,
cimarrón é o escravo que foge, respectivamente em francês, inglês e
espanhol) tanto no sentido literal quanto no sentido cultural. É de se
notar que Abdias do Nascimento cria no Brasil o conceito de
quilombismo para nomear o movimento de resistência negra.
Todos os autores pretendem retratar a vida dos negros,
mostrando os malefícios do racismo e suas repercussões no seio das
famílias, a miséria, o sofrimento, enfim, as mazelas por que passam os
negros norte-americanos. Entretanto, ao tematizar a vida das
comunidades, sobretudo o aspecto sexual, muitos deles temiam cair
nos estereótipos e nos clichês, até por considerarem que seus principais
leitores ainda eram os brancos.
Langston Hughes (1902-1967), uma das figuras seminais da
Harlem Renaissance, é considerado por muitos o mais importante
escritor afro-americano do século XX, tendo inspirado e encorajado
duas gerações de escritores. De 1923 a 1925 visitou a Europa e a África,
tendo publicado seu primeiro livro de poemas, The Weary Blues, em
1926. Sua poesia se inspira, freqüentemente, no blues e no jazz, como
em suas duas obras-primas: Montage of a Dream Deferred (1951) e Ask
Your Mama: 12 Moods for Jazz (1961). Além de poesia publicou também
contos, a autobiografia, The Big Sea: An Autobiography (1940) e dois
romances, Not without Laughter (1930) e Tambourines to Glory (1958).
Artista versátil, Hughes “tomou o mundo como seu público mas as
vidas das pessoas comuns negras como seu principal assunto (Bell,
1987, p. 130).
Claude McKay (1889-1948), nascido na Jamaica, publicou dois
livros de poesia em seu país, antes de partir para os Estados Unidos,
onde publica Harlem Shadows (1922), que contém seus poemas mais
conhecidos. Escreveu Home to Harlem (1928), primeiro romance de
autor negro a ter sucesso comercial. Ficou na Europa de 1923 a 1934.
Voltou para o Harlem, tendo publicado sua autobiografia, A Long Way
from Home (1937) e um livro de ensaios, Harlem: Negro Metropolis (1940).

318
Zora Neale Hurston (1891-1960) foi a primeira escritora que
recolheu e publicou o folclore negro norte-americano, tendo estudado
antropologia com Franz Boas na Columbia University. Em seu
romance mais importante, Their Eyes Were Watching God (1937),
(traduzido em 2002, com o título de Seus olhos viam Deus), ela descreve
a busca de libertação e realização de uma personagem feminina.
Morreu no anonimato, com sua obra relegada ao esquecimento, tendo
sido resgatada por feministas, como Alice Walker.
Um personagem bastante controvertido foi Marcus Garvey (1887-
1940), que advogou a volta à África, a fim de constituir uma nova
nação. Nascido na Jamaica, fundou a Universal Negro Improvement
Association (UNIA), em 1914, e seu jornal Negro World. Em 1916 foi
para Nova York, tendo publicado manifestos e ensaios nos quais
desenvolve suas idéias pan-africanas. Sua obra mais proeminente é
The Philosophy and Opinions of Marcus Garvey; or, Africa for the Africans
(1923). Criador do garveyismo, entre 1920 e 1925 chegou a ter até
um milhão de adeptos. Foi preso em 1925, acusado de fraude postal,
e deportado para a Jamaica em 1927. Lutou pela independência de
seu país, porém sem sucesso.
A Harlem Renaissance foi uma “eclosão de literatura, música e
crítica social que incluiu algumas das primeiras tentativas de artistas e
intelectuais afro-americanos para se definirem em termos modernos”
(Baker Jr., 1987, p. 9). Ela abriu novas perspectivas para os escritores
negros nos Estados Unidos, suscitando o aparecimento de muitos
novos talentos nas gerações seguintes. Um exemplo a ser destacado é
o de Richard Wright, que publicou Native Son em 1940, primeiro
romance de um autor afro-americano que teve amplo sucesso de crítica
e de vendagem. Ela foi também uma faísca importante para a explosão
de movimentos de negros no resto do mundo, sobretudo, a partir de
Paris, centro para o qual convergiam artistas e escritores da América,
do Caribe e da África. Abdias do Nascimento (em texto de 1978) faz
um relato de suas leituras de autores afro-americanos em tradução,
que revela um pouco da repercussão no Brasil:

319
De memória posso lembrar, por exemplo, a Autobiogra-
fia de Booker T. Washington, que li ansioso, lá pela dé-
cada dos 30... Também de há muito tempo me vem à
lembrança o comovente Imenso mar, do poeta Langston
Hughes, com quem mais tarde eu trocaria esparsa e fra-
terna correspondência. Outra leitura inesquecível: Filho
nativo, de Richard Wright, e Negrinho, parte de sua auto-
biografia; recordo ainda A Rua, de Ann Petry e, mais
recentemente, Giovani, Numa terra estranha e Da próxima
vez, o fogo, todos de James Baldwin; e O povo do blue, de
Le Roy Jones, Alma encarcerada, de Eldridge Cleaver.
Estou quase certo de que também O homem invisível, de
Ralph Ellison, tenha sido publicado no Brasil, livro que
li em tradução ao espanhol. Mas certamente a última
dessas obras negro-norte-americanas editadas no Brasil terá
sido Raízes negras, de Alex Haley (Nascimento, 1980, p. 14)

Negritude (Martinica)
A negritude criada por Aimé Césaire (nascido em 1913), Léon
Gontran Damas (1912-1978) e Léopold Sédar Senghor (1906-2001)
não foi um movimento isolado, pois surgiu no bojo dos movimentos
das vanguardas européias e em contato com os autores da Harlem
Renaissance: Langston Hughes, Claude McKay, Countee Cullen,
Sterling Brown. A Revue du Monde Noir (The Review of the Black World),
revista bilíngüe, publicada de novembro de 1931 a abril de 1932,
favoreceu este intercâmbio. Várias são as revistas de curta duração
que apareceram: La voix des nègres (1927), La race nègre (1927-1931),
Le cri des nègres (1931). Os martinicanos René Ménil e Étienne Léro
criam, em 1932, a revista Légitime Défense, apoiando-se nos ideais
comunistas e surrealistas. Ela teve apenas um número, pois seus
articuladores enfrentaram pressões governamentais, tiveram suas
bolsas de estudo suspensas e não puderam contar com o apoio dos
familiares. O marxismo e o surrealismo contribuíram, cada um a seu
modo, para fortalecer à época os fundamentos da contestação negra,
pois o materialismo dialético, ao questionar a desigualdade das classes
sociais, apontando para uma melhor equalização de recursos e de bens

320
materiais, favorecia os colonizados, os oprimidos e os negros que
buscavam a independência política, econômica e a ascensão social. O
surrealismo, movimento artístico que pregava a liberação das forças
inconscientes e valorizava a arte primitiva, permitiu que o universo da
cultura africana fosse revisto de maneira favorável, possibilitando a
emersão das vozes dos negros da diáspora.
Em 1935 Césaire, Damas e Senghor fundam o jornal L’étudiant
noir. Césaire relata sua experiência da época, afirmando que seu desejo
era chamar a revista de L’étudiant nègre, como provocação, já que o
adjetivo nègre era muito pejorativo. Foi neste contexto que ele teria
criado o termo negritude, embora no único número remanescente da
revista a palavra não apareça. A negritude foi tematizada por Césaire
no longo poema Cahier d’un retour au pays natal, publicado em sua
primeira versão em 1939, na revista Volontés. Este poema será também
publicado na revista Tropiques, que ele cria, em 1941, na Martinica,
com sua mulher Suzanne Césaire e com René Ménil. Na edição
definitiva (1971), ele recebe um prefácio de André Breton, Un grand
poète noir, escrito, em 1943, em Nova York.
Senghor, que se tornaria, depois da independência, presidente
de seu país, o Senegal, contribuiu muito para a criação e a divulgação
da negritude, pois possuía um conhecimento prático de seu país, de
sua cultura e de sua língua materna e foi, por isso, capaz de levar o
espírito africano para os antilhanos, que buscavam suas origens
africanas, a fim de construir novas identidades, em ruptura com a
identidade de colonizado que lhes havia sido imposta.
Damas (nasceu na Guiana, fez seus estudos secundários na
Martinica e viajou em 1929 para Paris) foi o primeiro a publicar um
livro, em 1937: Pigments, um livro de poemas, os quais, muitos deles,
já haviam sido publicados na revista Esprit, desde 1934. Neste livro há
o “confronto permanente entre Branco e Negro, Europa e África,
Senhor e Escravo, Colonizado e Colonizador, Crueldade e Inocência,
Ódio e Amor, Falso e Verdadeiro, Eles e Eu. Explorando estes temas
que se tornarão os lugares comuns da negritude, Damas insiste sobre
o eu e o não-eu, sobre a diferença legítima entre duas raças e duas
culturas e sobre o direito à diferença” (Racine, 1983, p. 58).

321
A publicação da Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache,
organizada por Senghor, em 1948, serviu para dar maior visibilidade
à produção poética, destacando-se, nesta obra, o importante prefácio
de Sartre, Orphée Noir, no qual ele profetizava o fim da negritude.
Sartre considerava que ela era uma resposta (antítese) à negação de
valores perpetrada pelo colonialismo (tese), e que a síntese, terceiro
momento da dialética, seria a abolição da negritude em benefício de
um novo humanismo, sem valoração racial.
Frantz Fanon, no livro Peau noire masques blancs, de 1952, estuda
a psicopatologia do negro antilhano, que se descobre negro ao
desembarcar na França, já que, como toda sua educação é francesa,
ele pensa como um francês. Diferentemente de Jung, ele considera
que o inconsciente coletivo é “o conjunto de preconceitos, mitos,
atitudes coletivas de um grupo determinado” (Fanon, 1952, p. 152).
Assim, o antilhano, tendo o inconsciente coletivo de um Branco, será
negrófobo, atitude perfeitamente neurotizante, que acarreta o ódio
de si. Sem adotar as idéias de negritude de Senghor e outros africanos,
ele se identifica com a poesia, sobretudo, de Césaire, e reage à crítica
de Sartre, julgando que ainda era preciso viver este segundo momento
da dialética, ou seja, afirmar os valores negros. Entretanto, no último
capítulo deste livro ele afirma os ideais de fraternidade e universalidade,
ao escrever: “O negro não existe. Nem tampouco o branco. Todos os
dois têm de se afastar das vozes desumanas que foram aquelas de seus
ancestrais a fim de que nasça uma autêntica comunicação” (Fanon,
1952, p. 187). O livro de Fanon que teve maior repercussão foi,
entretanto, Les damnés de la terre, que trata mais do colonizado do que
propriamente do negro.
Se a negritude passou a ser criticada posteriormente por seu
essencialismo e sua epidermização, é preciso lembrar que ela foi muito
importante para o surgimento de uma nova modalidade de percepção
do negro, de sua história, cultura e arte, além de propiciar condições
de continuidade a uma vertente de manifestações literárias que
focalizavam o negro e seu universo. Pode-se, portanto, dizer que a
negritude representou o primeiro momento de luta contra a alienação

322
engendrada pelo sistema colonialista, escravocrata, participando da
relação dialética branco/negro, e preencheu o primeiro espaço de
conscientização do negro.
Dentre as críticas à negritude merecem destaque a do antilhano
Edouard Glissant, que recusa o essencialismo, mas afirma, como
Sartre, que a negritude foi um momento de luta, de busca de auto-
afirmação e, por isso mesmo, caracteriza uma travessia que finda
quando se atinge o objetivo da contestação. Reconhece, portanto, a
relevância da negritude antilhana, abrindo possibilidades para outras
idéias e movimentos negros. René Depestre, do Haiti, em sua obra
Bonjour et adieu à la négritude, publicada em 1980, também destaca a
faceta positiva da negritude de Aimé Césaire, que recupera a África
para os antilhanos, insuflando-lhes o orgulho de pertencerem à raça
negra, mas, também, condena o essencialismo estreito contido na
negritude.
De um modo geral, segundo vários críticos, pode-se dizer que a
negritude representou um conceito identitário que teve como
princípios básicos norteadores: construir uma nova identidade negra;
rejeitar a arte decalque dos modelos europeus e rebelar-se contra a
política colonialista européia. Assim, a negritude foi muito importante
por reunir as vozes negras dispersas, irmanando-as numa tomada de
consciência e num grito de liberdade.

Indigenismo e negrismo (Haiti)


O indigenismo no Haiti designa o projeto dos artistas de “se
inspirar (quanto aos temas e à forma de sua produção) nos costumes,
valores (da música, da religião e da dança) pertencentes à vida e à
cultura nacionais” (Gaillard, 1993, p. 9). Definido assim, de maneira
quase tautológica, pode-se ler o indigenismo como uma forma de
nacionalismo ou de haitianidade. Embora ele tenha existido, segundo
Gaillard, ao longo do século XIX, desde a independência do país (1804),
ele eclode enquanto movimento literário com um programa definido
com o lançamento da Revue Indigène (1927), que teve 6 números. O
termo indigène não evoca o “indígena” ou o “índio” natural da América,

323
sendo usado nos textos da época como sinônimo de nacional. Jacques
Roumain (1907-1945) deu o nome à revista, tornando-se, nos anos
subseqüentes, o escritor mais importante do grupo, com vasta
produção, só interrompida por sua morte prematura. Marxista, como
tantos de sua geração em todo o continente, Roumain dedicou-se aos
estudos etnográficos, a fim de melhor conhecer seu país e os problemas
do homem negro, tendo publicado, entre outros, Les griefs de l’homme
noir. Escreveu poesia, ensaios e narrativas, dentre as quais se destaca
o romance Gouverneurs de la rosée (1944).
Entretanto, as balisas teóricas do movimento já estavam sendo
propagadas por Jean Price-Mars (1876-1976), desde o início dos anos
20, através da publicação de artigos e da apresentação de conferências.
Este médico e etnógrafo, que vivera muitos anos na França e nos
Estados Unidos em funções diplomáticas, voltou para o Haiti em 1916,
começando, então, a desenvolver suas pesquisas etnográficas com
objetivos pedagógicos. Publicou, em 1928 (portanto, um ano depois
da Revue Indigène), o livro Ainsi parla l’oncle, no qual ele pretendia
integrar a cultura popular haitiana através dos estudos da etnografia.
Inspirando-se no título de Nietzsche, ele substitui o super homem
Zaratustra por um personagem folclórico do Haiti, o Oncle Bouqui, o
velho negro contador de histórias, que passará a ser associado a ele
mesmo, apelidado, a partir de então, de Oncle. Neste livro, que se
tornou um clássico, ele estuda a cultura popular haitiana e suas origens
na África: o vodu, os cantos e contos, as lendas e adivinhas. Os dois
elementos culturais mais fortemente rejeitados pelas elites letradas
eram o vodu, considerado uma superstição a ser eliminada, e a língua
crioula, rejeitada como dialeto, forma popular desprezível. O trabalho
dos indigenistas será sobretudo no sentido de conceder ao vodu o
caráter de religião, portanto digna de ser aceita como qualquer religião,
e de reconhecer o crioulo como língua nacional do Haiti. Esta missão,
se não foi realizada em sua plenitude, acabou por mudar, de maneira
significativa, o discurso produzido pelas classes letradas a respeito
destas duas criações haitianas.

324
Price-Mars se detém mais na questão do vodu, buscando suas
origens na África, estudando o animismo, os cantos usados nas
cerimônias, reproduzindo, inclusive, partituras. Durante a ocupação
americana (1915-1934) houve muitas campanhas contra a superstição
(leia-se, de perseguição ao vodu, considerado uma magia negra, que
ameaçava levar o país à barbárie). Price-Mars argumenta que o vodu
é uma religião porque tem seus deuses, uma teologia, ou seja, um
sistema de representação para explicar o mundo, possui culto, com
cerimônias dirigidas por um corpo sacerdotal hierarquizado e
assistidas por uma sociedade de fiéis.
Ao mapear e revalorizar os elementos populares haitianos,
relegados por séculos de alienação sob o domínio/fascínio francês,
seja durante o período colonial, seja depois da independência do país,
Price-Mars tenta romper com o bovarysme das elites. O termo, usado
pela crítica literária francesa para exprimir a alienação romântica de
Madame Bovary, personagem do romance homônimo de Flaubert,
que sonha com idílios em paisagens italianas, adquire, aqui, um sentido
antropológico, apontando para a demissão das elites, proveniente de
sua anomia sócio-cultural. Tomando o termo emprestado a M. de
Gaultier, ele define o bovarismo coletivo como “a faculdade que tem
uma sociedade de se conceber outra do que ela é” (Price-Mars, 1998,
p. xxxvii). Se esta sociedade usa esta representação como mola
propulsora para fazê-la avançar, esta atitude pode ser considerada
fecunda, mas se, ao contrário, esta representação a impede de crescer,
provocando toda sorte de formas servis de imitação, então se pode ter
certeza que esta atitude é estéril, levando o país à ruína.
Esta alienação, que se exprimia por uma mimetismo em relação
à França, era tanto mais surpreendente, já que o Haiti teve uma gloriosa
luta contra a metrópole francesa, liderada por Toussaint Louverture
e Dessalines, que venceram as tropas de Napoleão. Entretanto, logo
após a abolição da escravidão, a independência e a proclamação da
república (1804), o país implantou o único modelo nacional que
conhecia, o modelo francês. Tendo interiorizado o etnocentrismo
francês que o designava como bárbaro, ele recalca o bárbaro que tinha

325
dentro de si, buscando imitar o civilizado. Pierre Buteau considera
que o Haiti não constituía uma nação, já que para se ter uma nação é
preciso possuir uma cultura própria. O indigenismo veio preencher
esta lacuna, corrigir esta forma de perversão que existia, “a exclusão
sistemática da cultura popular dos lugares formais do Estado e da
totalidade das instituições da sociedade civil no Haiti” (Buteau, 1993,
p. 13).
A herança africana só vai emergir por influência das vanguardas
francesas que cultuavam o primitivismo neste início de século. Alguns
jovens vão descobrir o valor e o encanto da então chamada art nègre
na Europa. De volta ao país natal nos anos 20, passam a ver o país
com novos olhos. Como outros artistas latino-americanos, eles
descobrem o próprio país pela mediação do olhar europeu das
vanguardas.
Em 1934, Jacques Roumain funda o Partido Comunista. O
indigenismo, enquanto movimento, está acabado, evoluindo para um
contra-racismo, na identificação com os chamados povos negros. Em
1938, surge, na esteira do indigenismo, um outro movimento, que
será conhecido como noirisme (negrismo), em torno da revista Les griots,
criada por François Duvalier, Louis Diaquoi e Lorimer Denis. O que
surge como movimento de vanguarda, com a força reivindicatória da
herança africana, tão realçada pelo título da revista, em que se coloca
em destaque os griots, acabará com a ascensão de Duvalier ao poder e
a instauração de uma ditadura, em que pai e filho se sucedem (Papa
Doc e Baby Doc).
Para alguns críticos, não há propriamente conteúdo político no
movimento indigenista, pois não se encontra na revista nenhuma
crítica à ocupação americana, nenhuma denúncia contra a miséria e
a exploração, nenhuma defesa dos oprimidos, “sua única reivindicação
é o direito de intervenção da periferia na linguagem poética [já que
ela] pretende ser, antes de tudo, uma vanguarda literária” (Pierre et
alii, 1993, p. 63). Assim, a crítica teria valorizado demais a parte de
consciência social e subestimado o seu trabalho formal. Entretanto,
para outros críticos, o negrismo de François Duvalier e seu governo

326
ditatorial seriam um prolongamento do indigenismo. Na verdade, a
questão política é bastante espinhosa neste caso, pois ninguém quer
ter seu nome associado ao de Duvalier. Aimé Césaire reconhece Price-
Mars e Roumain como seus predecessores, mas tentará se dissociar
do negrismo de François Duvalier ao longo de toda sua vida. O poeta
Léopold Sédar Senghor (1906-2001), que se tornaria presidente do
Senegal, rende um tributo a Price-Mars nos anos de 1950, afirmando
que ele “legitimava as razões de minha busca, confirmava o que eu
havia pressentido, pois, ao mostrar os tesouros da negritude que havia
descoberto na terra haitiana, ele me ensinava a descobrir os mesmos
valores, porém virgens e mais fortes, na África” (Senghor, 1993, p. 109).

Negrismo (Porto Rico, Cuba, República Dominicana)


Os traços das culturas africanas existiam em certas regiões da
América, mas, até o século XX, eram pouco conhecidos, e, sobretudo,
pouco valorizados. A publicação em Cuba, entre 1916 e 1924, de três
obras de Fernando Ortiz, Los negros esclavos, Los negros brujos e Glosario
de afronegrismos, começa a trazer à luz esse mundo “submerso,
vislumbrado, mas não conhecido” (Coulthard apud Fernández
Moreno, 1979, p. 51).
Esses processos de conscientização do negro abrem caminho para
que se concretize, entre as décadas de 20 e 30, um movimento literário-
político concentrado nas Antilhas de língua espanhola, especialmente,
em Cuba, Porto Rico e República Dominicana: o movimento negrista,
também conhecido como negro, negróide, afro-antilhano, mulato e
criollista. Cada país apresenta suas características próprias, mas, de
um modo geral, todos têm a mesma finalidade: denunciar a situação
do negro. Essa poesia, segundo Mónica Mansour, “pretendia valorizar
os costumes e tradições dos negros americanos, por meio de descrições
de sua dança rítmica e sua sensualidade” (1973, p.137). Para tal se
valiam de recursos literários como o uso de diferentes ritmos, através
da repetição de acentos, palavras, estrofes, que simbolizam a repetição
do elemento de percussão; a aliteração para marcar o ritmo e
reproduzir o som de objetos musicais; a onomatopéia; a freqüência

327
de versos curtos, agudos e rápidos; a imitação da fala do negro do
Caribe. Quanto à temática, exalta-se o instinto, valorizando-se a intuição
sobre a razão; os costumes, as tradições e as origens do negro também
são temas constantes; identifica-se a mulher negra à natureza e exalta-
se sua sensualidade; os rituais religiosos também aparecem como parte
da temática dessa poesia. Outra característica é o tom de protesto pela
situação sócio-econômica, mediante descrições da vida cotidiana dos
negros: a fome, a humilhação e a tristeza do negro explorado pelo
branco.

Luis Palés Matos e a poesia negra de Porto Rico


Na primeira metade do século XX Porto Rico encontra-se em
situação conturbada: cedido pela Espanha aos Estados Unidos, pelo
Tratado de Paris (1898), torna-se colônia norte-americana. Em 1917
os porto-riquenhos recebem a nacionalidade americana, iniciando,
assim, um processo de assimilação cultural.
Luis Palés Matos denuncia o marasmo cultural e o desespero do
povo de Porto Rico. Quando publica, em 1937, a primeira edição de
sua obra principal, Tuntún de pasa y grifería, a maioria de seus poemas
já era conhecida, pois compunha suas poesias negras desde 1929.
Aspira, por meio de sua poesia, expressar a consciência coletiva porto-
riquenha e antilhana, sua disposição de vida. Para ele, uma poesia
antilhana que exclua o negro parece impossível, já que

o negro vive fisica e espiritualmente conosco e suas ca-


racterísticas, matizadas no mulato, influenciam de modo
evidente todas as manifestações de nossa vida popular...
Não conheço nenhuma característica de nosso povo que
não ostente a marca dessa deliciosa mistura da qual ar-
ranca seu tom verdadeiro o caráter antilhano (Palés Ma-
tos apud Schwartz, 1991, p. 639).

Sua poesia afro-antilhana é, então, o resultado de uma consciência


cultural aguda e da invenção poética do autor. No Preludio, poema
que abre seu Tuntún de pasa y grifería, o poeta já adverte que sua

328
“experiência negra” é uma visão de fora, estereotipada. Sua obra
explica o que é a cultura antilhana de modo geral, suas características
e suas peculiaridades. Reivindica uma cultura à qual se sente ligado e
a defende para que esta não se anule e nem se reduza. Essa é a principal
finalidade de sua obra, ou seja, questionar sua cultura, seu modo de
existência. Para ele uma das formas de questionamento é a denúncia
da exploração do antilhano pelo branco.
Pode-se caracterizar a poesia de Palés como uma tomada de
consciência, mediante a qual “o poeta e seus leitores se salvam de
sucumbir ao derrotismo tão difundido” (Diaz Quiñones, 1970, p. 24).
Trata-se, então, de uma literatura de signo político, testemunha da
realidade social do país.

Nicolás Guillén e a poesia negra em Cuba


A sociedade cubana, tal qual a porto-riquenha, sofre uma
influência forte da presença norte-americana. Em 1898, os Estados
Unidos declaram guerra à Espanha, desembarcam em Cuba,
“libertando” a ilha da Espanha, e passando a exercer uma espécie de
protetorado.
Nos anos 20, o papel dos intelectuais negros na redefinição de
cubanidad foi fundamental. Entre eles, cabe destacar Gustavo Urrutia,
diretor da coluna “Ideales de una raza”, do jornal Diario de la Marina
e Nicolás Guillén, considerado o maior poeta do negrismo caribenho.
Guillén é o poeta de um povo, seu principal afã foi a criação de
uma poesia com uma inconfundível marca cubana que refletisse e
ajudasse a consolidar a identidade nacional. Toda sua obra é uma
batalha contra a opressão, contra os privilégios e rivalidades que
separam os seres humanos de qualquer condição.
Em 1930, publica, na coluna “Ideales de una raza”, uma série de
oito poemas, que, mais tarde, seriam publicados com o título Motivos
de Son. Surge, assim, uma obra que permite ao negro falar por si mesmo
e em sua própria perspectiva. Guillén se inspira no son cubano, um
ritmo musical popular, para fazer uma crítica implícita, compassiva,
do meio ambiente sócio-econômico dos bairros negros de Havana.

329
Tentava incorporar à literatura cubana — não simplesmente como
um tema musical, mas como um elemento de verdadeira poesia — o
que poderia se chamar de poema-son. A poesia torna-se o instrumento
para questionar uma realidade, um contexto. A poética de Motivos se
ancora na busca de identidade do homem negro e na denúncia da
exploração de sua condição.
Em 1931, publica Sóngoro Cosongo, no qual se verifica uma
linguagem poética que, para sugerir o mundo totêmico e rítmico da
África em Cuba, se apoiava nas onomatopéias combinadas com o
romance e outras formas métricas da tradição clássica espanhola.
Aparecem neste livro as primeiras insinuações de uma poesia de
protesto social. Preocupa-se com a elaboração de uma poesia
genuinamente cubana que refletisse a verdadeira história e a
composição social da Ilha. Deste modo, segundo o autor,

estes são versos mulatos (...) que compartilham os mes-


mos elementos que participam da composição étnica de
Cuba (...) a injeção da África neste país é tão profunda, e
tantas correntes capilares correm e se entrecruzam em
nossa bem irrigada hidrografia social, que decifrar o
hieroglífico seria uma tarefa de miniaturistas. Conseqüen-
temente, acho que entre nós uma poesia crioula que des-
denhe o negro não seria verdadeira. O negro contribui
com essências vitais a nosso coquetel. E as duas raças que
emergem à superfície da Ilha, ainda que distantes em
aparência, têm um vínculo subterrâneo, como essas pontes
submarinas que unem secretamente dois continentes.
Portanto, o espírito de Cuba é mestiço (Marquez, 133).

A mistura feita por Guillén dos tambores africanos com as formas


tradicionais, ao tratar a temática negra, é um reflexo, no que se refere
à técnica, de uma busca de um espírito mestiço. Em West Indies, Ltd.
(1934) o poeta atinge todo o arquipélago antilhano, e os elementos de
protesto social passam a um plano proeminente. Esses poemas são
denúncias contra o abuso e a injustiça a que os povos das Antilhas
estão coletivamente submetidos.

330
A partir de 1934, o conceito de uma poesia mulata para Guillén
passa a implicar uma premissa universalista, que o leva a ver o negro
como parte da grande massa de deserdados. Agora, era muito evidente
- como para Frantz Fanon - que o problema do negro não era um
assunto de homens negros vivendo entre homens brancos, mas o negro
oprimido de forma sistemática por uma sociedade racista, colonialista
e capitalista, mas, somente por acaso, branca. Começa, então, a
empregar uma série de técnicas para combater essa sociedade, como
salpicar sua poesia com palavras e frases em inglês e a denunciar a
situação racial nos Estados Unidos e em outras partes do planeta.
Com o triunfo da revolução cubana vê a realização de seus sonhos
e esperanças. Uniu-se a ela imediatamente e o desenvolvimento da
revolução se converte no principal tema de sua poesia.

Manuel del Cabral e a poesia negra na República Dominicana


Para que se entenda o movimento negrista na República
Dominicana é necessário fazer algumas considerações históricas a
respeito desse país. Desde o momento de sua formação como nação,
“este país tem sido dirigido por um conglomerado que vive negando
sua própria realidade” (Franco, 1979, p. 87). Negam a presença do
negro e sua participação na formação dominicana. Essa negação é
bastante compreensível, uma vez que, ao contrário das outras nações
hispano-americanas, que conquistaram suas independências lutando
contra Espanha, a República Dominicana consegue a sua lutando
contra o Haiti, “nação predominantemente negra, em meio a um
ambiente ideológico universal propício ao racismo” (Franco, 1979, p.
90). Assim, desde sua independência, trata-se de promover uma
identidade nacional dominicana oposta ao Haiti. Desta forma, como
observa Peter Winn, “se o Haiti era negro, africano e praticante do
vodu, a República Dominicana seria branca, espanhola e católica”
(1992, p. 288). Por este motivo, e apesar da grande população negra
dominicana, a atitude oficial tem sido de rejeição absoluta a qualquer
idéia de influência africana e a exaltação de valores culturais espanhóis.
Em outras palavras, no que se refere à cultura dominicana, o negro
será quase sempre o “outro”, alguém “de quem se fala”.

331
Mesmo assim, o movimento negrista se desenvolve na República
Dominicana. O principal cultivador dessa poesia foi o poeta Manuel
del Cabral. Sua extensa obra é caracterizada por uma linguagem
refinada e uma visão irreal, estereotipada do negro. Seus versos, que
no princípio foram “moda, ritmo, superfície rara, influências nobres
e fecundas, se transformam em poesia social” (Caamaño de Fernández,
1989, p.93). Sua obra pode ser dividida em duas etapas: a primeira
nos transmite uma imagem superficial e colorida do negro, já que
serve de inspiração os negros estrangeiros, haitianos ou cocolos (negros
que chegam das Pequenas Antilhas). Esta tendência pode ser explicada,
segundo Pedro Henríquez Ureña, por que “os negros dominicanos
não têm costumes tão pitorescos como os negros estrangeiros” (apud
Caamaño de Fernández, 1989, p. 93).
Já na segunda fase, sua obra se caracteriza por ser uma
“manifestação de verdadeira solidariedade humana com o homem
negro haitiano (grifo meu), para ir ascendendo pela rota de uma visão
do negro sem bandeiras, de qualquer parte da terra onde seja vítima
da exploração e do preconceito racial” (Caamaño de Fernández, 1989,
p.100). Estiliza o homem de cor e os motivos que o conformam em
sua essência negra, movido pelo propósito de apresentar a condição
de seres que ocupam a posição mais baixa na pirâmide social, e
conseguir atrair a atenção para a exploração de que são vítimas.
Pode-se dizer que a partir de, aproximadamente, 1940 o
movimento afro-antilhano hispano-americano chega ao seu final. A
poesia negrista passa a ser mais social que racial, ou seja, busca-se
uma integração social de todos os povos oprimidos do mundo, sejam
negros ou não. Uma das principais críticas ao movimento está no fato
de que estes poetas viam o mundo do negro a partir de uma posição
de observador alheio, e sua poesia, descritiva em alto grau, o
representava como uma figura pitoresca que vivia de maneira
elementar através de seus sentidos. Ou seja, o negro aparece numa
atmosfera de violência, densa sensualidade, toques de tambor, danças
frenéticas e possessão voduesca. No que se refere às mulheres,
enfatizavam-se os aspectos mais animais e sensuais de sua aparência.

332
Para Richard Jackson, trata-se de “uma compreensão superficial
da cultura negra por parte de seus descobridores brancos”. Segundo
o autor “estes poetas brancos não viram o negro por dentro”, e
“propagaram uma imagem do negro como imoral, primitivo, cheio
de dança, música, ritmos e sensualidade” (Jackson, 1976, p. 41-43).
Entretanto, René Depestre, em um artigo intitulado “Le négrisme
en Amérique Latine”, observa que “se o negrismo não exprimiu de
dentro, ele marcou uma ruptura com a representação da condição
negra” (Depestre, 1980, p. 28), ou seja, o movimento negrista abre
caminho para que se reforce a necessidade do reconhecimento e da
aceitação da participação do negro e do mulato na formação cultural
latino-americana.

Literatura negra no Brasil


Não obstante a qualidade e a quantidade da produção literária
afro-brasileira, o mundo acadêmico e as editoras comerciais brasileiras
hegemonicamente resistem, ainda, a vê-la enquanto tal, preferindo,
ao contrário, mantê-la na invisibilidade — da qual a procuram retirar
não somente os escritores afro-brasileiros, mas, também, alguns
pesquisadores, usualmente, reunidos em grupos de pesquisa.
Não obstante, ainda, ter havido, no país, escritores afro-
descendentes desde o século XIX — e entre eles se encontrarem
figuras da grandeza literária de Luís Gama, Machado de Assis, Cruz e
Sousa, Lima Barreto —, a questão da exclusão negra do cânone
literário permanece um assunto incômodo ainda em nossos dias.
David Brookshaw, autor de Raça e cor na literatura brasileira,
externava, no início dos anos 80, sua perplexidade ante a ainda
evidente escassez de escritores afro-descendentes no cânone literário,
sendo o país um dos de maior população negra fora do continente
africano. O mito da democracia racial, negação defensiva do racismo,
à brasileira, em muito teria contribuído para tal estado de coisas.
Zilá Bernd aponta os diálogos existentes entre os escritores
brasileiros com outros autores negros dos Estados Unidos e do Caribe.

333
Solano Trindade, em sua principal obra, Cantares ao meu povo (1961),
“dialoga com os mais representativos autores da negritude norte-
americana e antilhana, como Langston Hughes e Nicolas Guillén”
(Bernd, 1987, p. 87), Oswaldo de Camargo estaria mais próximo de
Ralph Ellison, Baldwin e Du Bois, pois em sua obra se percebe “a
presença obsessiva destas imagens que aparentemente apontam para
uma ausência de identidade ou para uma identidade negativa” (Bernd,
1987, p. 99), enquanto Eduardo de Oliveira é o poeta que mais usa a
palavra negritude, fazendo referência a Césaire, Damas, Senghor,
Guillén e Hughes, evidenciando “sua intenção de alinhar-se na
corrente internacional a que pertencem estes poetas, representando
sua ramificação brasileira” (Bernd, 1987, p. 107), o que comprova a
intertextualidade entre os autores negros, que formariam, assim, uma
comunidade internacional, ligada pela mesma solidariedade e
comunhão de valores.
O ano de 1978 constituiu no Brasil um marco na luta pela
igualdade racial, com a fundação do MNU (Movimento Negro Contra
a Discriminação Racial), que “vem atuando no sentido de transformar
o Brasil em uma autêntica democracia racial, através da luta sistemática
contra todas as formas de discriminação racial” (Bernd, 1987, p. 85).
No que diz respeito à luta pela visibilidade e valorização da literatura
negra brasileira, neste mesmo ano, é criada a série literária Cadernos
Negros, que irá alternar a publicação de antologias de poesia com
antologias de prosa de ficção de autores afro-brasileiros. A partir de
1982, o grupo Quilombhoje assume a elaboração da série e, desde
então, imenso e significativo trabalho vem sendo realizado, com
dezenas de autores afro-descendentes publicados, mediante prévio
processo de seleção especializada.
Entre os escritores, temos, por exemplo, Abílio Ferreira, Cuti
(Luiz Silva ), Márcio Barbosa, Ramatis Jacinto, Luís Cláudio Lawa,
Éle Semog (Carlos Amaral Gomes ), Arnaldo Xavier, Oubi Inaê Kibuko
(Aparecido Tadeu dos Santos ), Al Eleazar Fun (José Luiz de Jesus),
Domingos Moreira, Henrique Cunha Junior, Jamu Minka, Jônatas
Conceição, Jorge Siqueira , Waldemar Euzébio Pereira.

334
A poesia de Cuti e da geração de 1980, segundo Bernd, “inaugura
uma fase na poesia negra que se reveste de características que permitem
inferir uma descrença em ideologias salvadoras”, revelando “uma total
desesperança no [seu] poder de redenção” (Bernd, 1987, p. 119).
Entre as escritoras, encontramos, entre outras, Geni Guimarães,
Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves, Sonia Fátima da Conceição, Alzira
Rufino, Ana Célia da Silva, Conceição Evaristo, Lia Vieira, Eliane
Rodrigues da Silva, Eliete Rodrigues da Silva Gomes.
A proposta da publicação dos Cadernos é constituir-se, de modo
similar ao dos quilombos históricos, como um lugar de resistência ao
racismo e de afirmação cultural e identitária afro-brasileira, num
circuito editorial alternativo.
Embora antes de Cadernos já existissem excelentes autores afro-
brasileiros contemporâneos publicando individualmente, como Adão
Ventura, a publicação coletiva constituiu uma estratégia para tornar
mais visível a literatura afro-brasileira enquanto tal, como resposta às
dificuldades editoriais e à indiferença da crítica. Zilá Bernd considera
como características fundamentais “a rejeição de uma identidade
atribuída ao negro pelo outro e o desafio do eu lírico de assumir as
rédeas de sua destinação histórica” (Bernd, 1988, p.76). A poesia negra,
apesar da grande variedade de concepções, é regida, segundo a autora,
por quatro leis que correspondem a princípios essenciais e que
funcionam como programa de lutas:
1. A emergência do eu enunciador. O eu lírico revela “a deter-
minação do poeta de desvencilhar-se do anonimato e da ‘invisibilidade’
a que o relegou sua condição de descendente de escravo” (Bernd,
1988, p.77). O eu com freqüência se identifica com o nós, a
comunidade de negros à qual pertence.
2. A construção da epopéia negra. O poeta tenta reescrever a
história da raça, já que sua presença foi rasurada pela história oficial.
A história de Zumbi é recriada por Solano Trindade, em Canto dos
Palmares, e por Domício Proença Filho, em Dionísio esfacelado. A vida
do negro no Rio Grande do Sul é contada por Oliveira Silveira, em
Décima do negro peão.

335
3. A reversão dos valores. As características físicas e simbólicas
negras, consideradas pela doxa branca como sendo negativas, passam
a ser valorizadas, assumindo um caráter positivo.
4. A criação de uma nova ordem simbólica. Os significantes, que
remetem à escravidão e aos elementos culturais ancestrais (música,
dança, religião), são evocados a fim de se criar nova ordem simbólica.
Zilá Bernd conclui que o princípio da resistência à assimilação é
o conector que une estas quatro leis, a fim de fornecer aos poetas
mitos, símbolos e valores que lhes permitam criar novas identidades.

Sabotar a tradição, inverter a ordem de modo e alterar


uma situação que a condenava a ocupar sempre os espa-
ços da penumbra e do esquecimento, e não os da clari-
dade e do prestígio, nortearam os rumos desta literatura
cujo princípio fundamental não poderia ser outro que
não o da reapropriação sistemática de um esquema referencial
fundador e a conseqüente redemarcação de um territó-
rio (Bernd, 1988, p. 99). (grifos da autora).

As barreiras idiomáticas da língua portuguesa começam a ser


quebradas, na difusão coletiva da produção literária afro-brasileira.
Ocorrem lançamentos bilíngües, como os de Finally us (que contempla
a produção de escritoras afro-brasileiras) e de Schwarze Poesie, reunindo
diversos autores.
Semelhantemente ao que ocorreu nos Estados Unidos, o resgate
histórico de escritoras negras, marginalizadas da literatura canônica
nacional, constituiu importante tarefa. A ela dedicaram-se, por
exemplo, Maria Lúcia de Barros Mott e Alzira Rufino, reivindicando
nomes, numa tradição afro-brasileira, como os de Rosa Maria Egipcíaca
de Vera Cruz, Teresa Margarida da Silva e Orta, Maria Firmina dos
Reis, Luciana de Abreu, Auta de Souza, Antonieta Barros, Ruth
Guimarães, Laura Santos, Vera Tereza de Jesus, Anajá Caetano.
É, porém, através de um resgate (e conseqüente revisão do lugar
da obra), o da escritora afro-brasileira Carolina Maria de Jesus,

336
empreendido por Robert M. Levine e José Carlos Sebe Bom Meihy,
que se pôde acompanhar o caso mais exemplar da fabricação do
esquecimento, atingindo uma escritora negra no Brasil. Best-seller
da década de 60, com seu livro mais conhecido, Quarto de despejo, ainda
em vida foi Carolina devolvida ao anonimato em que sua figura e obra
permaneceriam até este resgate, efetuado apenas nos anos 90, quando
já existia, no país, um Movimento Negro Unificado atuante.
Acompanhar a trajetória de Carolina Maria de Jesus implica, portanto,
deparar-se com algo ainda muito pouco mostrado pela cultura
brasileira: a luta quotidiana de uma mulher “de cor”. O que distinguiu
Carolina dos demais a viver a exclusão foi o fato de ela ser capaz de
desafiar a pobreza e seus promotores, através de incomum capacidade
de luta e perseverança e de uma agressiva personalidade. Carolina foi
uma guerreira contra as tropas da herança racista, antiinteriorana,
preconceituosa em relação às mulheres. Sobretudo, foi a autora de
Quarto de despejo, uma escritora que afrontou a marginalidade e a
negligência política, recusando-se a aceitar o lugar subalterno destinado
à sua etnicidade, a seu gênero, à sua origem de classe. Houve,
entretanto, um breve momento de sua vida em que, debaixo dos
refletores de uma breve fama, ainda que de maneiras contraditórias e
estranhas, ela coube, por assim dizer, em todas as frentes e, ao mesmo
tempo, não serviu por longo período a nenhuma: é provável que tenha
sido deixada por todos, por isso mesmo.
Nos anos 90, a poesia e a arte de Ricardo Aleixo vão refletir a tese
da dupla herança na produção afro-descendente. Desde o livro de
estréia, Festim, publicado em 1992, Aleixo vem revelando inquietações
formais próprias do escritor requintado que é. Ao mesmo tempo em
que sua obra é publicada nos Estados Unidos, França, Espanha, e em
antologias brasileiras de poetas dos anos noventa, e que incorpora as
conquistas das vanguardas literárias ocidentais, ela não volta as costas
para as culturas populares e busca inserir-se nesta tradição afro,
hifenizada.

337
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PÓS-COLONIALISMO E PÓS-COLONIALIDADE

Eloína Prati dos Santos


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Literature was made as central to the cultural enterprise


of Empire as the monarchy was to its political formation
(Ashcroft, Griffiths, Tiffin, 1989, p.3)*

Nos anos 60 do século XX, com o início do ciclo de valorização e


politização das “Novas Literaturas”, oriundas do ciclo colonial do
Império Britânico, o termo pós-colonial passou a ser usado para
designar essas interações nas sociedades culturais e nos círculos
literários (Ashcroft, Griffiths, Tiffin, 1989). O prefixo “pós” tem sido
fonte de discussões constantes entre os críticos por seu sentido
primeiro indicar “depois” do colonialismo, enquanto os estudos pós-
coloniais abrangem, principalmente, as articulações “entre” e “através”
dos períodos históricos politicamente definidos, do pré-colonial,
passando pelo colonial, estendendo-se às culturas pós-independência
e, mais recentemente, ao neocolonialismo de nossos dias.
Os estudos pós-coloniais desenvolveram-se no que ficou
conhecido como teoria do discurso colonialista, disseminado,
principalmente, pelas obras de Edward Said, Gayatri Spivak e Homi
Bhabha (que, no entanto, só passaram a usar o termo mais tarde, na
década de 90). Essa “santa-trindade” (como os apelida Moore-Gilbert),

*A literatura tornou-se tão central ao projeto cultural do Império quanto a monarquia o foi
para sua formação política.
vive nos Estados Unidos e produz suas teorias criticas — ainda em
grande parte centradas na produção européia e estruturadas a partir
de teorias européias, dedicando apenas algumas reflexões a pensadores
das Américas, como Fanon —, dentro dos mais prestigiados
departamentos acadêmicos daquele país, atingindo repercussão
mundial. A influência fortemente pós-estrutural desses primeiros
críticos — Said/Foucault, Bhabha/Althusser e Lacan, e Spivak/Derrida
—, levou a muitas reflexões sobre o enfoque nos efeitos materiais da
condição histórica do colonialismo, bem como sobre seu poder
discursivo, e houve insistência na manutenção do hífen para distinguir
o pós-colonial como um campo de estudos da própria teoria do
discurso pós-colonial (Ashcroft, 1996).
Stephen Slemon (1990) chama a atenção para o fato de o
colonialismo, sendo transhistórico e inespecífico por definição, ser
uma categoria já bem problemática, e destaca, sobretudo, que presumir
que as reações dos povos oprimidos sejam sempre de resistência pode
remover a capacidade de atuação (agency) desses povos. Como Aijaz
Ahmad (1992) e outros têm insistido, as sociedades pós-coloniais têm
agendas internas próprias e forças internas que continuam a interagir
e a modificar as respostas às incursões coloniais. A definição de pós-
colonialismo precisa, então, incluir uma consideração ampla dessa série
de locais e suas preocupações e práticas. A preocupação com o local
deve ser básica: cada encontro colonial foi diferente e cada ocasião
pós-colonial necessita ser localizada com precisão e analisada com
especificidade dentro destes princípios gerais.
Uma distinção precisa ser feita entre o que é considerado escrita
colonial e escrita colonialista. A literatura colonial abrange um espectro
amplo e heterogêneo de textos, focalizando as percepções e as
experiências coloniais, escrita por metropolitanos, crioulos, indígenas,
durante o período colonial. Essa literatura inclui tanto textos escritos
na Europa como no Império, com menções diretas ou indiretas às
colônias, incluindo diários de viagens, relatos de aventureiros, de
missões catequizadoras, bem como romances que consideram o
imperialismo uma parte natural da ordem mundial. A literatura

342
colonialista, por outro lado, é aquela, especificamente, voltada para a
expansão colonial, em geral literatura escrita por europeus e de um
ponto de vista europeu sobre terras e povos não-europeus por eles
dominados. A literatura colonialista encarregava-se de propagar as
teorias da superioridade européia e da missão civilizatória do império,
usando linguagem estereotipada para mediar as relações entre
colonizadores e colonizados. O Império foi, em grande parte, um
exercício textual: relatórios de burocratas coloniais, anúncios, tratados
políticos, diários, editais, cartas, romances de aventura, todos
continham idéias imperiais de orgulho racial e poder nacional. Havia
o uso de textos locais, sagrados ou não, para estabelecer um sistema
legal e misturá-los ao “saber científico moderno” com a finalidade de
atingir a governabilidade nas colônias.
A literatura pós-colonial não é, portanto, simplesmente aquela
que veio depois do império, mas aquela que veio com o império, para
dissecar a relação colonial e, de alguma maneira, resistir às perspectivas
colonialistas. A mudança de poder nas ex-colônias demandava uma
descolonização simbólica dos sentidos dominantes, na qual a literatura
toma parte relevante. Ao dar expressão à experiência do colonizado,
os escritores pós-coloniais procuram subverter, tanto temática, quanto
formalmente, os discursos que sustentaram a expansão colonial: os
mitos de poder, raça e subordinação, entre outros. A literatura pós-
colonial mostra as marcas profundas da exclusão e da dicotomia
cultural durante o domínio imperial, as transformações operadas pelo
domínio cultural europeu e os conflitos delas decorrentes.
Todos, colonizados e colonizadores, precisavam criar um mundo
novo a partir das histórias do velho. Em curto espaço de tempo, muitas
pessoas encontraram-se com uma enorme diversidade geográfica,
cultural e humana, e recorreram a figuras retóricas conhecidas para
traduzir o inarticulável, tornando familiar o estranho pelo uso de nomes
conhecidos, e convenções textuais estabelecidas. Como a conquista
era, em geral, definida por conflitos militares, pelo deslocamento sem
precedentes de populações e pela exploração das riquezas locais, a
resistência a essa dominação por parte daqueles que careciam de armas

343
ou dinheiro se dava textualmente. E foi na recriação épica do passado
que os primeiros nacionalistas encontraram um meio de contra-
escrever sua representação colonial e reinscrever-se nessa nova história.
Sem dúvida, esse aspecto contraditório do discurso colonial/pós-
colonial — chamado por Sara Suleri de esquizofrenia —, está sempre
presente no discurso crítico pós-colonial. Esse aspecto é bem eviden-
te no estudo das literaturas em língua inglesa, que conta com um gran-
de número de estudos sobre o Império Britânico. Em língua inglesa
surgiram antologias de literatura pós-colonial capazes de dar a di-
mensão —assustadora —, da variedade de discursos contra-imperi-
ais, por um lado, enquanto por outro parecem desconcertantemente
homogeneizadoras ao agrupá-las em um único espaço que mal esboça
uma distinção geográfica. Nelas o continente americano figura com
contribuições da literatura do Caribe, dos Estados Unidos e do Cana-
dá.
The Empire writes back (1989), um dos poucos livros panorâmicos
a mapear as literaturas de língua inglesa ante o fenômeno colonial,
mesmo sinóptico em demasia, torna-se útil por fornecer várias
definições importantes dos tipos de experiências coloniais. Os autores
fazem uma distinção, por exemplo, entre “colônias de assentamento”
(settler colonies), como a maioria dos países das Américas, a Austrália e
a Nova Zelândia, onde a primeira tarefa foi a de constituir uma literatura
separada daquela produzida nos centros metropolitanos, e as “colônias
de assentamento profundo”, como a Argélia, a Índia, o Quênia, a
Jamaica e a Indonésia, por exemplo, onde houve uma repressão mais
profunda das línguas e culturas locais e uma imposição muito mais
acentuada do inglês, da literatura e da cultura inglesas, e onde a
expressão local só pôde ser recuperada a partir dos movimentos de
independência realizados após a Segunda Guerra. O livro inclui a
questão do indigenismo, reconhece as relações entre língua, cultura e
local, mencionando a contribuição das teorias caribenhas, mas dedica
apenas uma página a Edward Braithwaite e ao conceito de
crioulização.

344
A análise dos diferentes tipos de colonização havia sido desenvol-
vida por Coronel West (1989), em sua análise do pragmatismo
estadunidense e seu ressurgimento em tempos pós-modernos como
uma defesa das vantagens do progresso (entenda-se progresso mate-
rial) de seus habitantes. A ênfase de West na pós-modernidade, como
na obra de Fredric Jameson, no lugar da pós-colonialidade, aponta
para a conversão dos Estados Unidos em um poder imperial e tam-
bém explica, em parte, o interesse tardio pelos estudos pós-coloniais
na América Latina (Mignolo, 1996, p. 11-12).
Esse movimento iniciado na segunda metade do século XX, que
Mary Louise Pratt, Diana Brydon e Walter Mignolo, entre outros,
chamam de “descolonização do conhecimento”, foi desencadeado pela
desintegração dos últimos impérios coloniais europeus, mas tem sido
muito mais do que isso. Como diz Pratt, “as revoluções não
revolucionam automaticamente a subjetividade (inclusive a dos
próprios revolucionários)” (Pratt, 1999, p. 16), daí a necessidade de
desconstrução do imperialismo e do colonialismo. A tarefa não é fácil
e um dos rótulos usado com insistência é o “pós-colonialismo”. O
termo é útil, no entender de Pratt, quando “se refere ao fato de que as
manobras do colonialismo estão atualmente disponíveis para uma
reflexão crítica em caminhos que não estavam até agora” (Pratt, 1999,
p. 16). Entre os usos negativos do termo, que Slemon e Ahmad
apontam junto com Pratt, está no fato de, “como os outros ‘pós’ (pós-
nacional, pós-moderno, pós-guerra fria, pós-Estado, pós-marxismo,
pós-feminismo), o ‘pós-colonial’ autoriza um certo desengajamento
em parte dos intelectuais metropolitanos e cosmopolitas, renovando
sua licença para funcionar inconseqüentemente como um centro que
define o resto do mundo como periferia. O termo ‘globalização’ é
geralmente usado como significando uma nova ordem mundial na
qual as dinâmicas imperiais de centro/periferia deixaram de ser
relevantes” (Pratt, 1999, p. 17).
Segundo Leela Gandhi, foi somente a partir da última década do
século XX que o pós-colonialismo passou a constituir um dos

345
principais discursos críticos da humanidade, ao lado de teorias como
o pós-estruturalismo, a psicanálise e o feminismo. Por sua natureza
interdisciplinar e seu uso diversificado, gerou um enorme corpus de
literatura acadêmica especializada, marcada pelo debate entre o
marxismo e o pós-estruturalismo/pós-modernismo, nenhum dos lados
tendo, de forma exaustiva, segundo ela, dado conta das conseqüências
e significados do encontro colonial. Se por um lado a crítica pós-
estruturalista da epistemologia ocidental e a teorização das diferenças/
alteridade cultural são indispensáveis à teoria pós-colonial, filosofias
materialistas, como o marxismo, parecem suprir as bases da política
pós-colonial. O crítico pós-colonial precisa trabalhar em direção a uma
síntese, ou uma negociação entre os dois modelos de pensamento,
sugere Gandhi, que julga vir desse projeto de integração política e
teórica a atenção acadêmica ao pós-colonialismo (Gandhi, 1998, p.
viii-x).
O estudo das formas de representação e sua correlação com as
relações de poder dentro das nações que passaram pela experiência
colonial tem como marco inicial o livro Orientalismo (1978), de Edward
Said, que representa a primeira fase da teoria pós-colonial, ainda não
engajada com as conseqüências do colonialismo e suas ambivalências,
ou com a história e as motivações da resistência anti-colonial. Said se
dirige à produção discursiva e textual dos significados coloniais ao
mesmo tempo em que analisa a consolidação da hegemonia colonial.
Spivak comemora o fato de o livro de Said ter alçado a “marginalidade”
ao status de disciplina acadêmica, na qual o marginalizado pode falar,
ser ouvinte e até assunto. Também é reconhecido o fato de Said ter
levado as questões da colônia e do império para o centro da discussão
acadêmica, pelo menos no cenário anglo-americano da teoria literária
e cultural, rompendo com o alienado e alienante estudo das literaturas
em língua inglesa nos departamentos de inglês pelo mundo afora.
O livro de Said torna-se, ironicamente, canônico. Orientalismo é
o primeiro livro de uma trilogia, com The question of Palestine (1979) e
Covering Islam (1981), dedicados ao estudo da relação desproporcional

346
entre o oriente e o ocidente, contemplando igualmente o imperialismo
inglês e o estadunidense. Os livros chamam a atenção para a violência
do imperialismo e fazem críticas profundas aos procedimentos
imperiais, que Ahmad toma como críticas mais atualizadas da
tradicional polêmica anti-colonial (Ahmad, 1992, p. 174).
A principal contribuição do livro de Said reside na extensa e
detalhada, por vezes e xagerada, exposição da relação entre
conhecimento e poder nas relações coloniais. E reclama o ensino, a
escrita e a pesquisa sobre o oriente como um acompanhamento
cognitivo essencial às aventuras imperialistas européias em um oriente
hipotético, uma vez que esta derivou exatamente da forma ocidental
de estudar e pensá-lo.
Conforme destaca Bart Moore-Gilbert, Said não só baseou suas
reflexões na “altas teorias” francesas para aplicá-las à academia anglo-
americana, como forneceu os primeiros exemplos de aplicação
sustentada desses modelos de análise à tradição textual e à história
cultural anglófonas. Adaptou elementos dessa nova teoria, que tanto
revia quanto reforçava a velha tradição marxista, ao estudo das
conexões entre a cultura ocidental e o imperialismo, para descrevê-
los como profundamente contaminados com “as políticas, as
considerações, as posições e as estratégias do poder” (SAID, 1985, p.
15). Seu livro também traz, pela primeira vez, as questões de raça,
império e etnicidade para dentro dessas altas teorias, apontando para
sua forma etnocêntrica de pensar o mundo (Moore-Gilbert, 1997, p.
34).
Said rejeita o entendimento liberal tradicional das ciências
humanas como disciplinas que buscam conhecimento “puro” ou
“desinteressado”. Esses argumentos baseiam-se em duas fontes
metodológicas, Foucault e Gramsci. Said segue Foucault em duas
premissas básicas: a concepção do poder e de como ele opera, e o
conhecimento como o principal instrumento desse poder. O marxista
italiano Gramsci, por outro lado, está menos preocupado com o aparato
repressivo do poder e mais com a forma como o consentimento dos
setores subordinados (ou “subalternos”) da sociedade é solicitado

347
através de canais como a educação e as práticas culturais. Said deve a
Gramsci a conceituação das dinâmicas da dominação.
Na visão de Said, o orientalismo opera a serviço da hegemonia
ocidental ao produzir um oriente discursivo como o outro inferior ao
ocidente, manobra que reforça e constrói, em parte, a auto-imagem
de civilização superior do ocidente. Said distingue, mas, de certa forma,
também essencializa, os sistemas de representação da dicotomia
oriente-ocidente: o oriente discursivo é calado, sensual, feminino,
irracional e atrasado, despótico, em contraste com o ocidente
representado como masculino, racional, moral, democrático, dinâmico
e progressivo.
Tanto Bhabha quanto Spivak aclamam o livro de Said como o
marco inicial dos estudos pós-colonais: Bhabha em “Postcolonial
criticism” (Greenblat, Gunn, 1992, p. 465) e Spivak em “Marginality
and the teaching machine” (1993, p. 56). O livro de Said também deu
impulso a outras obras sobre o assunto, como White mythologies (1990),
de Robert Young, uma crítica da historiografia ocidental,
particularmente, em suas encarnações marxistas. Mesmo entre aqueles
que lhe são hostis, como Aijaz Ahmad e John MacKenzie, o livro de
Said é reconhecido como seminal. Em In theory (1992), Ahmad tenta
promover o marxismo como o campo mais fértil para se examinar as
questões da relação entre cultura e (neo)colonialismo, e seu capítulo
mais longo é dedicado a Orientalismo.
O próprio Said, nos ensaios reunidos em Cultura e Imperialismo
(1993), promove uma profunda e extensa modificação de alguns dos
argumentos de Orientalismo. Há um considerável alargamento da
discussão das relações entre a cultura e as histórias do imperialismo.
Mais espaço é dado a um número maior de áreas geográficas, formações
sociais e formas culturais, e mais atenção é dada ao período
contemporâneo e às questões de gênero (só discutidas a contento em
Spivak). Há uma mudança notável para as formas literárias e um
engajamento maior com figuras canônicas da cultura metropolitana.
O mais importante é o engajamento de Said com a produção cultural

348
não ocidental, como os subaltern studies, o romance africano e a crítica
caribenha, principalmente, Fanon.
Antes de Cultura e Imperialismo, em The world, the text and the critic
(1983), Said já expressa a necessidade de ir além das relações opostas
e desiguais entre as culturas ocidentais e não-ocidentais que
caracterizaram a era colonial. Ele já parece pensar então que Foucault
não oferece uma explicação para as mudanças históricas que podem
fazer o mundo atual avançar para uma relação nova, menos conflituosa,
que ele deseja encorajar. Não surpreende, então, que em C&I, Said
parece mais inclinado para o arquivo discursivo do indivíduo, escritor
ou tradição nacional, e menos para a base econômica e cultural da
superestrutura. A sugestão mais radical encontrada em C&I é a de
que o mundo atual agora possui algo que se aproxima de uma “cultura
comum”, enraizada na experiência compartilhada do colonialismo e
do imperialismo. Para isso, um novo paradigma é necessário para as
pesquisas na área das ciências humanas, e ele propõe como método
um combate à visão dicotômica encontrada na pesquisa ocidental. C&I
ainda reconhece muito mais a resistência à cultura dominante imposta
ao abordar as histórias da descolonização contemporânea, e reconhece
o papel crucial dos nacionalismos culturais. Ao mesmo tempo em que
admite sua utilidade em combater o império, Said alerta para a
dificuldade de reconciliação com o ocidente provocado pelo
nacionalismo, que muitas vezes reproduz o poder imperial que
combateu.
Said valoriza os intelectuais do Terceiro Mundo, que como ele,
Spivak, Bhabha e outros, migraram para a metrópole, por sua “viagem
para dentro”, e reconhece seu mérito como figuras opositoras,
expresso na forma pela qual se apropriam do discurso dominante da
metrópole para voltá-los contra o ocidente e desconstruir suas
tentativas de dominar as regiões de onde eles vêm. No entanto, por
“cruzar fronteiras”, o intelectual abrigado na metrópole escapa dos
impasses que aprisionam alguns intelectuais nacionalistas. Said enfatiza
a possibilidade de, vivendo entre dois mundos, atuar como mediador
entre eles, e enfatiza essa interrelação. A continuidade entre os dois

349
livros é mais visível no ensaio “Orientalism reconsidered” (1985), no
qual Said se retrata da afirmação de que os ocidentais seriam
ontologicamente incapazes de simpatizar com o oriente.
O texto de Said não pode ser desvinculado das teorias pós-
estruturalistas que floresceram nas academias européias e americanas
após os conflitos de 1968, durante os quais operários e estudantes
juntaram-se em um enfrentamento sem precedentes contra o
autoritarismo das instituições e do estado capitalista. O fracasso do
movimento desencadeou uma série de indagações sobre a teoria
marxista e suas omissões.
Um outro grupo de críticos joga exatamente essa relação com o
pós-estruturalismo contra Said e seu Orientalismo. Ahmad é, talvez, o
mais contundente deles, apontando o conteúdo reacionário das teorias
pós-estruturalistas como responsável pela derrocada do pensamento
marxista, e o surgimento de governos e movimentos de direita no
mundo anglo-americano. Os refúgios que sobraram, segundo Ahmad,
foram um terceiro-mundismo e um ecologismo fracos.
Não há dúvida, no entanto, que a objeção de Said às ortodoxias
marxistas são mediadas pelo ceticismo pós-moderno contra as grandes
narrativas totalizadoras e universalizantes. O fracasso radical do
marxismo, para Said, reside, precisamente, na sua inabilidade em
acomodar as necessidades políticas e as experiências específicas do
mundo colonizado. Ele refere-se à cegueira do próprio Marx ao mundo
fora da Europa quando este, na verdade, identifica o colonialismo
europeu como o projeto histórico que facilita a globalização do modo
capitalista de produção e, portanto, destrói os modos “primitivos”,
pré-capitalistas, atrasados de organização social.
O que Said faz é estender o terreno geográfico e histórico do
descontentamento com a epistemologia ocidental expresso por
Derrida e Foucault. Derrida analisa, brilhantemente, as inadequações,
as traições e as elisões do sistema metafísico ocidental, sem abordar os
fatores externos ou outras civilizações que fazem desse sistema um
sistema “ocidental”. Foucault devota atenção às estruturas e ordens
discursivas da civilização ocidental, que, no entanto, permanecem
culturalmente míopes em relação ao mundo não europeu.

350
Para Said tanto o marxismo quanto o pós-estruturalismo são
semelhantes em suas tendências etnocêntricas. Mais tarde, Spivak vai
demonstrar que é possível chegar às conclusões de Said, em
Orientalismo, sem derrubar o projeto epistemológico marxista inteiro,
uma vez que repensar as relações atuais entre o primeiro e o terceiro
mundo, através de estudos marxistas sobre a globalização do capital e
a divisão internacional do trabalho, pode ser bem útil.
Em seus livros posteriores, Said se distancia do pós-
estruturalismo, mais ou menos pelas mesmas razões que alimentam a
hostilidade de Ahmad contra ele: o fracasso em confrontar as questões
da história (neo)colonial e as relações culturais, a inabilidade em
teorizar a resistência ao discurso dominante e estruturas de poder
satisfatoriamente, e a tendência a domesticar o ativismo político ao
traduzi-lo de suas bases populares para a arena acadêmica. A partir
de The world, the text and the critic (1983), em suas entrevistas a Imre
Salusinsky (1987) e Michael Sprinker (1989), e em Cultura e
Imperialismo, em que, por exemplo, compara, desfavoravelmente,
Foucault com Fanon, essa trajetória torna-se clara.
Além de Said, tanto Bhabha quanto Spivak fornecem uma crítica
profunda da teoria crítica européia de um ponto de vista pós-colonial.
Bhabha, por exemplo, reconhece no pós-estruturalismo um outro
tipo de truque da elite ocidental privilegiada para produzir um discurso
sobre o outro que reforce a equação poder-conhecimento por ela
concebida (Bhabha, 1994, p. 20-21).
A republicação dos ensaios de Homi K. Bhabha, alguns
extensamente revisados, em O local da cultura (1994), facilitou a avaliação
de sua contribuição para a análise das questões culturais e políticas do
(neo-)colonialismo, raça, etnicidade e migração. Reunidos, os ensaios
de Bhabha demonstram o grau de desafio a que ele submete a visão de
seus predecessores no campo dos estudos pós-coloniais,
particularmente, as de Said e Fanon. Como Spivak, ele centra seu
interesse nas trocas envolvendo a história da dominação britânica sobre
a Índia, e tem se ocupado, mais recentemente, das conseqüências do
neo-colonialismo nos tempos atuais e dos conflitos entre o discurso

351
pós-moderno e o pós-colonial. A discussão que Bhabha faz da pós-
colonialidade é de continuidade entre a era colonial e o presente, a
que ele se refere como “the on-going colonial present” [o presente
colonial em progresso] (Bhabha, 1994, p.128). A leitura de Bhabha
oferece alguns dos mesmos desafios de ler Spivak, pois seu texto é
denso, evasivo; sua forma de expressão às vezes quase mística apela,
primeiramente, à intuição do leitor. A dificuldade se acentua porque
Bhabha torce suas fontes de forma radical para acomodá-las a seu
fim, como com Bakhtin ou Roland Barthes.
Esta é uma estratégia comum na teoria pós-colonial: reler
narrativas ocidentais de formas novas, incluindo o “re-escrever” de
textos literários metropolitanos por artistas não-ocidentais. Wide
Sargasso Sea (1966), de Jean Rhys e Corações migrantes (1995), de Maryse
Condé, são exemplos de vozes femininas periféricas (Caribe) re-
escrevendo os clássicos Jane Eyre (1847), de Charlotte Brontë e O Morro
dos ventos uivantes (1847), de Emily Brontë, respectivamente. Bhabha
e Spivak estendem esse processo subversivo de “re-citar” e “re-sistir”
à arena crítica e teórica.
Bhabha também procura afastar a análise das relações coloniais
das oposições binárias presentes nas obras de Said e de Fanon.
Enquanto Said focaliza, quase que exclusivamente, o colonizador, e
Fanon, o colonizado, Bhabha procura enfatizar as mutualidades e as
negociações que atravessam a divisão colonial. Para ele, as relações
entre colonizador e colonizado são muito complexas e politicamente
contaminadas, uma vez que veiculam padrões psicológicos afetivos
contraditórios. Entre elas Bhabha aponta o desejo e o medo do outro,
por exemplo, como elementos que complicam e dificultam a formação
de identidades e posicionamentos, formando relações unitárias
instáveis entre colonizador e colonizado, completamente distintas de
outras e em conflito com elas. Bhabha recorre a Freud e Lacan (cujas
revisões radicais de Freud informam sua obra) para essa tarefa, um
trabalho, como ele reconhece, antecipado por Fanon, em Pele negra,
máscaras brancas (1952).
A instável esfera psíquica das relações coloniais aparece no
trabalho de Bhabha na análise do funcionamento dos estereótipos

352
coloniais, e examina os graus de fratura e desestabilização da
identidade do colonizador — e sua autoridade — pelo contato com as
respostas psíquicas ao “outro” colonizado. Para Bhabha há uma
contradição na “economia do estereótipo” dos povos subalternos, na
medida em que o já conhecido precisa ser constantemente repetido,
demonstrando que o sabido não está tão seguramente estabelecido
como o poder retórico do estereótipo quer fazer crer. Além da teoria
psicanalítica, Bhabha usa elementos do pós-estruturalismo para
conceituar as tensões e perturbações dentro do discurso colonial.
Como Said e Spivak, ele também reconhece a ausência de questões de
raça e império nessa teoria. Assim sendo, ele propõe uma
reconfiguração da atenção habitual da desconstrução à disseminação
e à différance de Derrida, levando a análise do deslizamento semântico
do texto para as modificações de significado em locais e contextos de
enunciação peculiares da condição (neo)colonial.
Importante para os países da América, é a discussão de
“arremedo” [“mimicry”]. Bhabha vê fraturas no discurso colonial
através de tipos diversos de “repetição”. O colonizador requer do
sujeito colonizado a adoção de formas exteriores e a internalização de
valores e normas do poder ocupante. A “mímica” expressaria a missão
do projeto civilizatório de fazer o colonizado copiar, ou repetir a
cultura do colonizador. Por seu contraste com a dominação baseada
na força, Bhabha considera o arremedo como uma das estratégias de
poder e conhecimento coloniais mais eficientes e difíceis de detectar,
que se acentua nas Américas devido ao processo de (aparente)
descolonização prematura da maioria de seus países, que lograram
sua independência dos impérios britânico, espanhol e português uns
duzentos anos antes da formulação dessas teorias, nas quais as elites
“crioulas” reproduziram, com bastante eficiência, as idéias de
superioridade racial européia em relação a negros e índios.
Em seu exame das relações entre o discurso pós-moderno e o
pós-colonial, Bhabha confronta, por exemplo, Fredric Jameson,
Richard Rorty e Francis Fukuyama, tanto na visão de que o iluminismo
se esgotou e se tornou incapaz de encarar os acontecimentos
catastróficos do século XX, quanto à visão de que a modernidade se

353
completou, de forma mais ou menos satisfatória, com o alegado triunfo
dos modelos ocidentais de democracia social e organização econômica.
Para Bhabha, a modernidade não se completou porque em certos
aspectos o mundo chamado de pós-moderno, simplesmente, repete e
perpetua alguns aspectos negativos da modernidade, como a forma
de “construção do outro” [“otherness”], que caracterizou a história
colonial e sua continuação nas estruturas sociais, econômicas e políticas
atuais. Para ele é impossível considerar completo o projeto de
modernidade enquanto o papel do mundo não-ocidental em sua
constituição não tiver sido analisado. A contribuição do regime
escravocrata e da exploração colonial para a consolidação material da
modernidade ainda não foi totalmente reconhecida, o que é verdade,
também, na esfera cultural e ideológica.
Bhabha propõe uma “arqueologia pós-colonial da modernidade”
que leve em conta a reinserção das histórias reprimidas e das
experiências sociais dos historicamente marginalizados, cujos
precedentes ele encontra inscritos na obra de Fanon (Pele negra,
máscaras brancas). A idéia de Bhabha é fornecer um novo espaço e
tempo para a política da cultura em nosso tempo, que transcenda os
conceitos de relação entre as culturas em termos de aproximação com
o modelo estadunidense “pluribus unum”, que disfarça a continuidade
da dominação dos velhos centros de autoridade, ou dos particularismos
de confronto fundamentalistas, sendo forçado a admitir que todas as
culturas são impuras, mistas e híbridas. The third space [“o terceiro
espaço”] e the-in-between [o “entre-lugar”] são os termos que ele usa.
Bhabha menciona, apenas uma vez, a alteridade da mulher e das classes
subordinadas, uma discussão a que Gayatri Spivak se dedica.
Como Said, que tendo aludido a Fanon em The world, the text and
the critic (1983), só reconhece sua contribuição em “Orientalism
reconsidered” (1985), em que admite alguns de seus argumentos terem
sido antecipados por Fanon e Césaire, entre outros, também Bhabha
aborda uma parte limitada da obra de Fanon a partir dos anos 80, e
não reconhece outros predecessores além de Said, sua teoria sendo
informada, quase que exclusivamente, pela “alta teoria” européia.

354
Roberto Young, em sua abordagem dos três grandes teóricos
(Said, Bhabha e Spivak), em White mythologies, reconhece a importância
de Fanon como predecessor do trabalho dos três, indicando Os
condenados da terra (1961) como o texto que inicia a tentativa de
descolonizar a filosofia e a historiografia européias. Young, porém,
toma, arbitrariamente, este trabalho de Fanon, não mencionando que
essa discussão havia sido iniciada uma década antes em Pele negra,
máscaras brancas. A abordagem de Fanon é breve e um pouco mais
longa que a sobre Roland Barthes.
Já Peter Hulme (1986) destaca a importância do Caribe — uma
metonímia da América como um todo, ele sugere —, que nos deu
muitos precursores de Said: Fanon, Césaire. C.R. L. James, Antonius,
Ranajit Guha, que em suas análises dos processos coloniais e da
mestiçagem souberam reconhecer os Estados Unidos como país
imperial dentro do continente desde o seu início, e não apenas a partir
da Segunda Guerra Mundial e dos últimos processos de
independência política em várias regiões do globo. No entender de
Hulme, Said deixa de considerar, por exemplo, o “colonialismo
interno” dos Estados Unidos, que tem sua maior expressão no
genocídio das populações indígenas, em ações imperiais no Pacífico
no século XIX e nas incursões na América Central e no Caribe no
século XX. Diana Brydon também está entre os que apontam o Caribe
como o local onde se iniciou a tradição das preocupações com raça,
classe e gênero, não só através de Pele negra de Fanon, mas de Tradition,
the writer and society, de Wilson Harris e Os Jacobinos negros, de C.R.L.
James, por exemplo (Brydon, 1993, p. 28).
As reflexões críticas de Gayatri Spivak constituem uma das mais
inovadoras e substanciais contribuições às formas pós-coloniais de
análise cultural. Seus ensaios, no entanto, constitui, também, um
grande desafio ao leitor por sua complexidade e erudição. Seu estilo
desafia as convenções de discurso acadêmico aos quais, em geral,
aderimos e é caracterizado por um modo de exposição provisório e
informal, no qual se destacam suas reflexões. The post-colonial critic
(1990) toma a forma de uma série de entrevistas; curiosamente, uma

355
informalidade que nem sempre torna o pensamento de Spivak mais
acessível. Isso pode dever-se ao fato de que sua posição crítica, ao vivo
ou na página, caracteriza-se por um método intervencionista,
combativo até. Spivak é conhecida pela superposição eclética de assuntos
e obras, como o imperialismo e as diferenças de gênero, ou Baudelaire,
Kipling e os arquivos da East India Company. Esse aspecto
aparentemente fragmentário de seu trabalho deriva de suas estratégias
teóricas, particularmente, sua oposição à prática desconstrutiva de
“crítica persistente”. Em contraste com, por exemplo, uma certa
arquitetura textual em Orientalismo, a lógica de Spivak é a da retórica,
a do texto sob exame e onde isso possa levar, incluindo meias-voltas e
becos sem saída. Spivak desconfia, principalmente, da construção
acadêmica que busca o fechamento, o estabelecimento de uma verdade
definitiva e totalizante sobre qualquer texto ou questão teórica.
Também no nível temático há diferenças entre Said e Spivak.
Desde o início, Spivak enfoca, principalmente, o discurso colonial e as
várias manifestações de contra-discurso. Isso a levou a projetos
diversos, como a historiografia dos Estudos Subalternos Indianos, uma
colaboração com a feminista argelina Marie-Aimée Hélie-Lucas,
considerações críticas sobre um grande número de obras pós-coloniais
nas artes visuais e na mídia, e a análises de traduções da ficção bengali
de Mahasweta Devi. Esse tipo de trabalho é, acima de tudo, um
reconhecimento persistente da heterogeneidade das culturas pós-
coloniais, como a afirmação de que a Índia não pode representar o
resto do oriente, e de que as diferenças entre as formações coloniais
precisam ser respeitadas e não homogeneizadas.
Há, ainda, uma diferença política nas posições de Said e de Spivak:
enquanto Orientalismo aborda a experiência colonial como uma
narrativa ininterrupta de opressão e exploração, Spivak tende a ver,
de forma mais complexa, os efeitos da dominação ocidental. Ela insiste
em ver os aspectos positivos do imperialismo, que sempre aborda em
suas obras, como um paradoxo característico do pós-colonial. Enquanto
crítica da ferrenha divisão de trabalho na cena internacional
contemporânea, Spivak declara ser impossível negar o poder

356
civilizatório do capital socializado no mundo atual, por exemplo. Ela
é também implacável ao criticar a suposta benevolência das empreitadas
ocidentais em favor do sujeito pós-colonial, e vê tais intervenções como
o mesmo tipo de visão, que informa as narrativas imperialistas que
prometiam redenção ao sujeito colonizado. Seu ceticismo a respeito
de qualquer encaixe intrínseco ou fácil entre os objetivos e premissas
do primeiro e do terceiro mundo é notável, principalmente, quando
se referem ao feminismo. Ela sugere que o feminismo acadêmico dos
países desenvolvidos, mesmo que inconscientemente, arrisca uma
exacerbação dos problemas do sujeito feminino no mundo periférico,
justamente por não contemplar sua imensa diversidade.
O trabalho de Spivak destaca, ainda, de forma consistente, as
práticas e políticas pedagógicas, uma área não detalhada por Said ou
Bhabha. Seus ensaios mais famosos encontram-se no contexto dos
problemas de ensino, como “Imperialism and sexual difference” (1986)
e “How to teach a culturally different book” (1991), que exploram as
dificuldades de ensinar literatura colonial sem reforçar ou perpetuar
os valores contidos nesses textos. Em particular, seu trabalho promove
novas formas de inserir a produção cultural pós-colonial na academia
ocidental sem ignorar seus desafios aos cânones metropolitanos e sem
perpetuar a “subalternização” das literaturas do terceiro mundo.
Spivak tenta, ao mesmo tempo, usar o trabalho de Derrida e ir
além dele, enquanto procura reabilitar a desconstrução dos ataques
feitos por outros críticos, como Said. Em “Can the subaltern speak?”,
o mais conhecido de seus ensaios, ela tenta identificar aspectos do
trabalho de Derrida que conservem uma utilidade de longo prazo
para povos fora do primeiro mundo. A aplicação da desconstrução às
questões pós-coloniais tem pelo menos duas ênfases em Spivak, uma
negativa e uma afirmativa. Por um lado, ela encara a desconstrução
como um tipo de “ciência negativa” (ou aquela que não visa produzir
conhecimento positivo ou estabelecer uma verdade autoritária sobre
o texto ou problema em questão), que deve ser entendida como uma
forma de crítica ideológica de exposição do erro. Spivak procura
revelar as premissas em que se baseia e que media o pensamento

357
retórico por trás de uma narrativa, seja política, literária, histórica ou
teórica. Central a esta “crítica negativa” está o hábito de ler contra a
lógica ostensiva ou o significado superficial do texto, concentrando-
se em personagens menores, sub-enredos ou temas marginais para
salientar as molduras conceituais de algumas obras de mulheres do
século XIX e sua natureza racial subconsciente, por exemplo (Moore-
Gilbert, 1997, p. 84).
O termo “subalterno” vem de Gramsci (“Notes on Italian history”,
1934-35) e de seu interesse em grupos sociais submetidos à hegemonia
das classes dominantes, como camponeses e trabalhadores, e também
de seu reconhecimento de que a história das classes subalternas é tão
complexa quanto a das classes dominantes, embora fragmentária e
episódica, uma vez que elas têm menos controle sobre suas próprias
representações. Um grupo de historiadores especializados em estudos
sul-asiáticos criou os Subaltern Studies, para examinar a subordinação
nessa área sob os aspectos de classe, casta, idade, gênero e ofício, tendo
produzido vários volumes de ensaios sobre a história, a política, a
economia e a sociologia da subalternidade, e as atitudes e ideologias
das culturas que informam o sistema (Guha, 1982, p. vii). Uma grande
diversidade é encontrada entre grupos subalternos a partir desses
determinantes, mas todos eles apresentam em comum a noção de
resistência à elite dominante, vozes que as burguesias crioulas
reprimiram com bastante sucesso. Spivak criticou as premissas do
grupo, iniciando pela noção gramsciana da autonomia dos grupos
subalternos, que ela julga essencialista. As tentativas de Guha de evitar
esse essencialismo através da especificação das diferenças entre os
grupos subalternos e os grupos indígenas, segundo ela, problematizam
a idéia de subalterno em si. Segundo Spivak, para o verdadeiro grupo
subalterno, cuja identidade é a própria diferença, não há sujeito
subalterno representável que possa se conhecer e se vocalizar.
Spivak também aponta uma perspectiva afirmativa na
desconstrução: seu potencial de agir como produtora de poder político
[“empowering”] e o potencial de gerar conscientização e ajudar na
liberação dos socialmente excluídos e marginais. O importante,

358
segundo ela, é seguir o “itinerário do silenciamento” dos sujeitos que
são inscritos ou descritos. Ela também faz uso da desconstrução para
desmanchar binarismos evidentes nos discursos dominantes. Mais
importante ainda, Spivak dialoga com uma linha de pós-colonialismo
feminino que ela reconhece no trabalho de Bell Hooks, Deniz
Kandiyoti, Ketu Katrak, Wahneema Lubiano, Trin-Ti Minh-ha,
Chamdra Talpade Mohanty, Aiwah Ong, Sara Suleri, entre outras.
Nas Américas, essa lista pode ser acrescida de Glória Anzaldúa e
seu importante Borderlands/La frontera: the new mestiza (1987), no qual
uma chicana estuda o papel da mestiça na sociedade estadunidense,
contribuindo para ancorar no mundo hispânico teorias como “o
terceiro espaço cultural” de Bhabha e “zonas de contato”, de Pratt:
aquele espaço em que todos vivemos no continente americano, cuja
fundação mesma sempre escorregou entre um lugar “descoberto” e
um lugar “inventado”, um espaço indefinido entre a assimilação (ou
assimilações) e a alteridade. O livro em si é híbrido, usando um gênero
que ela denomina de “autohistória”, um processo epistemológico de
autocriação que compreende ficção, crítica e autobiografia. Esse
método promove a transculturalidade do discurso feminista no âmbito
da fronteira México/Estados Unidos, pois aproxima literaturas em
inglês e espanhol, lingüística e tradição oral, história, estudos culturais,
antropologia, ciência política e estudos de mulher e de fronteiras. Para
Anzaldúa, a construção discursiva da mestiza, da Chicana, é uma
empreitada feminista radical que se dá nos entrecruzamentos da
sexualidade, raça/etnia, gênero e classe dentro dos Estados Unidos
(Saldíval-Hull, 1999, p. 1-13).
Nos Estados Unidos esses estudos “étnicos” beneficiaram-se,
grandemente, dos movimentos pelos direitos civis e pelo feminismo
das décadas de 60 e 70, e deram conta de abordar assuntos como
diáspora e escravidão, e, mais recentemente, deram origem aos
chamados borders studies (estudos das fronteiras). Durante a última
década, os estudos étnicos voltaram-se, de forma radical, para o estudo
da raça, das etnias, do império, inserindo o estudo das literaturas de
língua inglesa em um contexto mais global e menos nacional. As muitas

359
fronteiras nos Estados Unidos — lingüísticas e culturais, mais do que
geográficas —, têm ocupado um grande espaço na academia, o que
também acontece no Canadá. Podemos mesmo dizer, que vivemos em
um momento “transnacional” neste início de século, cada vez mais
conscientes das formas pelas quais narrativas locais e nacionais não
podem ser concebidas separadamente de um sentido radicalmente
novo da nossa história compartilhada e das interdependências globais.
Os “estudos das fronteiras”, por exemplo, usados no contexto da
história cultural, estabelecem pontes para além da estratificação interna
em etnias e das formas pelas quais as diferenças culturais podem ser
usadas para definir conexões e tensões transnacionais (Singh, Schmidt,
2000, p. 7). A borders school tem estudado como grupos situados em
fronteiras mutáveis e linhas divisórias internas, marcadas, em parte,
pela cor ou classe social, criam uma divisão explorada pelo capital (e
pela academia, sem dúvida), e suas novas estratégias de cruzamento
dessas fronteiras e de criação de novos espaços públicos, que
assegurem sua sobrevivência e e xaminem os processos de
“imperialismo interno”. Essas escolas desafiam as narrativas
dominantes de diferenças étnicas e exclusão, que apóiam narrativas
simplistas de inclusão pluralista (como o multiculturalismo “oficial”
do Canadá), encorajando a transgressão de fronteiras estabelecidas
por definições de qualquer natureza.
Esses estudos têm contribuído para uma abordagem teórica mais
includente também dos povos nativos das Américas, os últimos a se-
rem contemplados dentro do exame do processo colonial, embora
figurem entre suas maiores vítimas (cf. Textualidades indígenas). No
entanto, conforme aponta Arnold Krupat, a literatura escrita pelos
ameríndios não pode ser classificada como pós-colonial, pela razão
óbvia de que lhe falta o “pós”, embora a maioria dos povos indígenas
do continente viva em uma condição de subalternidade e sua produ-
ção crítico-literária seja ideologicamente análoga àquela produzida nos
países com um passado colonial do qual eles fizeram parte. Essas
“primeiras nações” estão na América há cerca de 30 mil anos e tive-
ram sua diversidade de hábitos, culturas e línguas reprimidas ou apa-

360
gadas durante o processo colonial, em um processo mais semelhante
ao dos povos nativos das colônias de assentamento profundo. Krupat
usa a expressão “tradução anti-imperial” para descrever a situação
dos ameríndios, que precisam “textualizar” uma cultura predominan-
temente oral, para que ela se torne um objeto de estudo. Mas a ex-
pressão verbal nativa, atraentemente adaptada aos padrões de
literalidade ocidentais, tende a obscurecer os referenciais distintos de
cada tribo ou nação, produzindo uma homogeinização indesejável.
Nesse sentido, a tradução passa a ser mais do que uma troca de nomes
para constituir uma tradução (trans)cultural (Krupat, 1996, p. 34-
35).
O pós-colonialismo parece responder a intenções mal sucedidas
de esquecer o passado colonial após a independência, como se a su-
pressão dessas lembranças oferecesse emancipação das realidades desse
encontro desconfortável. O projeto disciplinar do pós-colonialismo é,
justamente, o de retornar à cena colonial para revisitar, lembrar e,
principalmente, interrogar o passado. O arquivo das relações coloni-
ais contém múltiplas histórias de resistência, mas, também, de sedu-
ção e cumplicidade, conforme destaca Gandhi (1998, p.5).
Um bom exemplo disso é trazido à tona por Walter Mignolo
quando este conceitua as diferenças entre os discursos pós-coloniais e
suas teorias, diferenças essas que são difíceis de mapear, uma vez que,
para ele, as teorias pós-coloniais seriam equivalentes aos discursos pós-
coloniais (políticos, históricos e literários de emancipação). Seu
exemplo é a obra de Fanon, escrita em 1961, que só passou a ser
estudada como teoria pós-colonial depois que a academia conceitualizou
essa nova prática teórica, inventando-lhe um nome e situando-a dentro
de um campo acadêmico específico (Mignolo, 1996, p.15). Poderíamos
acrescentar Darcy Ribeiro, que já falava em “subalternidade” desde
1968 (a partir de suas leituras de Gramsci), embora o termo só tenha
adquirido destaque a partir de 1991, com seu uso por Gayatri Spivak.
Mignolo aborda a situação distinta dos Estados Unidos em relação
aos demais países americanos, por não terem o mesmo tipo de herança
colonial. Para ele os Estados Unidos deram continuidade à expansão

361
européia, iniciada em redor de 1500, e as discussões em torno de sua
condição são mais facilmente feitas sob a ótica dos estudos pós-
modernos. Como fontes desta discussão, ele aponta Fredric Jameson
(1986) e Ajiz Ahamad (1987). Cornel West (1989) retoma a discussão
das heranças pós-coloniais em colônias de assentamento, colônias de
assentamento profundo e colônias de assentamento profundo depois
de 1945. E aponta o (re)surgimento do pragmatismo estadunidense
como uma colônia de assentamento, como o equivalente das teorias
pós-coloniais nas colônias de assentamento profundo, antes e depois
de 1945. Para Mignolo, esta ênfase no pós-moderno em uma colônia
de assentamento que se torna um poder mundial pode explicar a
atenção que o conceito de pós-modernidade encontra na América
Latina, em detrimento das análises de enfoque pós-colonial (Mignolo,
1996, p.11).
Isso se deve ao fato de os movimentos de descolonização pós 1945
terem levado em conta os países ligados ao Império Britânico, e
algumas colônias francesas e alemãs, enquanto as ex-colônias latino-
americanas, locais de um processo prematuro de descolonização, foram
deixadas fora do debate, só retomado na região muito recentemente.
Ainda, pela diversidade de níveis de desenvolvimento, os países latino-
americanos nem sempre são aceitos como um grupo de países terceiro-
mundistas, de onde se origina a maioria das reflexões sobre a pós-
colonialidade. Assim sendo, o conceito de pós-colonialidade só
começou a ser discutido recentemente nos círculos acadêmicos latino-
americanos dos Estados Unidos, e se mantém, em grande parte,
ignorado nos países latino-americanos, enquanto os conceitos de
modernidade e pós-modernidade gozam de extensa bibliografia,
principalmente, nos países com grandes populações de descendência
européia, como o Brasil e os demais países do Cone Sul (Mignolo,
2000, p. 92). Mais interessante é a observação de Mignolo sobre o
“colonialismo interno”, um conceito que ele atribui a sociólogos
terceiro-mundistas e considera os primeiros sinais de teorização pós-
colonial na América Latina depois de 1970. A importância dessa
conceituação estaria no reconhecimento da situação de subalternidade

362
de comunidades como as indígenas, asiáticas e México-americanas,
dentro dos Estados Unidos (Mignolo, 2000, p. 97).
Rodolfo Pino (1998), ao considerar as causas da dominação dos
povos nativos, faz uma análise bem detalhada desse “colonialismo
interno”, que ele vê como típico do Terceiro Mundo, enquanto chama
o fenômeno equivalente no mundo desenvolvido de “colonialismo do
bem-estar” [welfare colonialism].
Embora o termo pós-colonial seja de importação recente, conta-
se com textos importantes que articulam a pós-colonialidade na
América Latina através do estudo do colonialismo, da modernização
e, mais recentemente, da globalização. Podemos considerar como
básicas para os estudos pós-coloniais americanos reflexões marxistas,
como as de José Carlos Mariátegui, do Peru (já na década de 1920),
ou as de Enrique Dussel, da Argentina (a partir de 1970), de
pensadores liberais como Leopoldo Zea e Edmundo O‘Gorman, do
México (a partir de 1960), e Jorge Klor de Alba (1998) mais
recentemente, bem como as de Gilberto Freyre e Caio Prado Jr. no
Brasil, entre inúmeros outros. O nome de Mário de Andrade (em
Brydon, 2001) e o tema da antropofagia (em Barker et alii, 1998)
também circulam na crítica pós-colonial internacional como reflexões
sobre a identidade brasileira. Cobrir a grande massa de estudos sobre
o colonialismo na América hispânica e no Brasil e o crescente número
de textos, que reexaminam a questão, incorporando várias questões
da teorização pós-colonial, requereria um outro verbete. Por outro
lado, partes desse corpus já aparecem em outros verbetes desta
publicação.

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365
PÓS-MODERNO

Giséle Manganelli Fernandes1


Universidade Estadual Paulista – São José do Rio Preto

Where do we go, how do we live,


who do we believe?
[Para onde vamos, como vivemos,
em quem acreditamos?]
Don DeLillo, The Names, 1989

“O que é, então, o pós-moderno?” Essa questão formulada por


Jean-François Lyotard (1988, p. 23), revela o centro da nossa
preocupação, cuja proposta é a de focalizar o pós-moderno por meio
da discussão de suas origens, de suas diferentes perspectivas de
abordagem, de alguns de seus teóricos. Temos consciência de que há
uma dificuldade extra para o seu entendimento: o fato de estarmos
vivendo na era pós-moderna.
O pós-moderno intriga, pois coloca em questão o conceito
tradicional que se tem de arte e de suas relações com o mundo. As
idéias de um trabalho completo e da existência de certezas acabam, e
entramos em um mundo caracterizado pela profusão de fragmentos
e incertezas. Nessa heterogeneidade, encontramos o desafio da análise
do pós-moderno, que provoca novos rumos na concepção artística.

1 A autora agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pela
concessão da Bolsa de Pesquisa no Exterior/2000-2001 (Pós-Doutoramento), na Universidade
da Flórida, à Fundação para o Desenvolvimento da UNESP (FUNDUNESP), e ao 1999/USIA
Summer Institute on Contemporary American Literature, ocorrido na Universidade de
Louisville, Kentucky, EUA.
Ele pode ser examinado sob vários aspectos ao focalizarmos as
manifestações artísticas e culturais contemporâneas.
O próprio termo “pós-moderno” é perturbador, bem como o são
suas formas correlatas, pós-modernidade e pós-modernismo.
A fim de explanar as origens desses conceitos, partamos das
afirmações de Perry Anderson:

a idéia de um ‘pós-modernismo’ surgiu primeiro no


mundo interno hispânico dos anos trinta, uma geração
antes de seu aparecimento na Inglaterra ou na América.
Federico de Onís, um amigo de Unamuno e Ortega, foi
quem lançou o termo pós-modernismo. Ele utilizou-o para
descrever um refluxo conservador dentro do próprio
modernismo: aquele que procurava refúgio de seu for-
midável desafio lírico num perfeccionismo mudo de de-
talhe e humor irônico, cuja característica mais original
era a nova autêntica expressão concedida às mulheres
(Anderson, 1999, p. 3-4)2 .

A obra de Onís, intitulada Antología de la Poesía Española y


Hispanoamericana, foi publicada em 1934. Além de Onís, Anderson
menciona o historiador Arnold Toynbee, cuja obra A Study of History,
teve seu primeiro volume publicado, também, em 1934, e nele Toynbee
afirma, segundo Anderson, que “a concorrência de duas forças
poderosas, Industrialismo e Nacionalismo, formou a história recente
do Ocidente” (Anderson, 1999, p. 5). Já em seu oitavo volume,
publicado em 1954, “Toynbee nomeou a época que havia começado
com a Guerra Franco-prussiana de ‘era pós-moderna’” (Anderson,
1999, p. 5).
Ainda segundo Anderson, “A verdadeira mudança ocorreu com
o aparecimento, no outono de 1972, em Binghamton, de um periódico
com o subtítulo expressivo de Journal of Postmodern Literature and Culture

2 As traduções dos trechos de obras em línguas estrangeiras, citadas na bibliografia, foram


feitas pela autora deste trabalho, que agradece as sugestões recebidas dos colegas João Carlos
Gonçalves, Roxana Guadalupe Herrera Álvarez e Wanda Aparecida Leonardo de Oliveira no
processo tradutório.

368
¾ the review boundary 2” (Anderson, 1999, p.15). Um dos
colaboradores deste periódico era Ihab Hassan, que já havia publicado,
em 1971, “POSTmodernISM: a Paracritical Bibliography” e a obra
The Dismemberment of Orpheus: Towards a Postmodern Literature.
Podemos, ainda, servir-nos da conceituação elaborada por Terry
Eagleton:

A palavra pós-modernismo geralmente refere-se a uma for-


ma de cultura contemporânea, enquanto que o termo
pós-modernidade alude a um período histórico específico.
Pós-modernidade é um estilo de pensamento que duvi-
da das noções clássicas de verdade, razão, identidade e
objetividade, da idéia de progresso e emancipação uni-
versais, de estruturas únicas, grandes narrativas ou fun-
damentos definitivos de explicação. […] Pós-modernis-
mo é um estilo de cultura que reflete alguma coisa dessa
mudança de uma época, numa arte pluralista, superfici-
al, descentralizada, infundada, auto-reflexiva, divertida,
derivativa, eclética, que torna indistintas as fronteiras
entre cultura ‘alta’ e ‘popular’, bem como entre arte e
experiência cotidiana (Eagleton, 1997, p. vii).

Assim, observamos que, de um modo geral, o termo pós-


modernismo está mais ligado ao mundo das artes, ao passo que pós-
modernidade tem maior conexão com o estilo de vida e pensamento de
uma determinada época. Já o termo pós-moderno engloba tanto pós-
modernismo quanto pós-modernidade. Tendo em vista que trataremos de
variados elementos que compõem o cenário atual, optamos por utilizar
pós-moderno para indicar as manifestações do contemporâneo que
focalizaremos, não obstante os autores citados estabeleçam suas
próprias acepções dos termos.
Vejamos, agora, o seguinte questionamento de Ihab Hassan:

O pós-modernismo pode desdobrar-se num problema


ainda maior: ele é somente uma tendência artística ou
também um fenômeno social, talvez até uma transforma-

369
ção no humanismo do Ocidente? Sendo assim, como es-
tão os vários aspectos desse fenômeno ¾ psicológico, fi-
losófico, econômico, político ¾ unidos ou desunidos?
(Hassan, 1985, p. 122).

A fim de tentarmos verificar os “vários aspectos desse fenômeno”,


principiaremos a análise com uma das possibilidades de se abordar a
questão, isto é, por elementos econômicos, culturais e sociais. Um
dos teóricos ligados a essa corrente é o crítico marxista Fredric
Jameson, que nos oferece a seguinte periodização:

Cabe-me agora dizer uma palavra sobre o uso adequado


desse conceito: ele não é apenas mais um termo para
descrever um estilo específico. É, também, pelo menos
tal como o emprego, um conceito periodizante, cuja fun-
ção é correlacionar a emergência de novos aspectos for-
mais da cultura com a emergência de um novo tipo de
vida social e com uma nova ordem econômica ¾ aquilo
que muitas vezes se chama, eufemisticamente, de moder-
nização, sociedade pós-industrial ou de consumo, socie-
dade da mídia ou dos espetáculos, ou capitalismo
multinacional. Esse novo momento do capitalismo pode
ter sua datação no surto de crescimento do pós-guerra
nos Estados Unidos, no fim da década de 1940 e início
dos anos cinqüenta, ou, na França na fundação da V
República, em 1958. Os anos sessenta são, sob muitos
aspectos, o período transicional fundamental, um perío-
do em que a nova ordem internacional (o
neocolonialismo, a Revolução Verde, a computação ele-
trônica e a informática) foi, ao mesmo tempo, instalada e
assolada ou abalada por suas próprias contradições in-
ternas e pela resistência externa. (Jameson apud Kaplan,
1993, p. 27)

Assim, para Jameson, o pós-moderno está também conectado ao


momento sócio-econômico-cultural com “o apagamento da antiga
(característica do alto modernismo) fronteira entre a alta cultura e a
assim chamada cultura de massas ou comercial” (Jameson, 1996, p. 28).

370
O primeiro ponto desta discussão pode ser abordado pelo
processo de domínio do capital pelo qual estamos passando no mundo
contemporâneo e suas conseqüências. A fase do capitalismo em que
ora nos encontramos, isto é, a do “capitalismo tardio”, título da obra
escrita por Ernest Mandel [Der SpätKapitalismus] usado por Jameson
para debater a sociedade contemporânea, revela que o momento pós-
moderno é dominado pelo capitalismo multinacional e, também, pelo
consumo, o sustentáculo do capitalismo.
A realidade que predomina no presente mundo do “capitalismo
multinacional” interliga as economias de tal maneira que qualquer
acontecimento nas finanças de um determinado país pode
desestruturar o quadro econômico de outro(s). Na atualidade, há
muitas diferenças entre os tipos de capitalismo existentes nos mais
diversos países (Gray, 1998), e esse fato tem que ser levado em
consideração. Dessa forma, o contraste entre os países desenvolvidos
e os países em desenvolvimento pode agravar-se. Ressaltemos como o
geógrafo Milton Santos refere-se ao papel que assumem as grandes
potências na globalização:

As potências centrais (Estados Unidos, Europa e Japão),


apesar das divergências de competição quanto ao merca-
do global, têm interesses comuns que as incitarão a bus-
car adaptar suas regras de convivência à pretensão de
manter a hegemonia. Como, todavia, a globalização atu-
al é um período de crise permanente, a renovação do
papel hegemônico da Tríade levará a maiores sacrifícios
para o resto da comunidade das nações, incentivando,
assim, nestas, a busca de outras soluções (Santos, 2000,
p. 153).

Portanto, cabe aos países buscar o que for melhor para suas
populações, e Carlos Rincón lembra-nos de que

Nesta nova fase da globalização, segundo disse Marshall


Berman, toda identidade individual e coletiva depende
e dependerá cada vez mais no futuro, das relações entre

371
o global e o local. Interdependências globais e indepen-
dências locais resultam agora ¾ como pôde-se demons-
trar no caso da América Latina ¾ simultaneamente
incrementadas (Rincón, 1995, p. 103).

Parece não haver outra alternativa senão a de fazer parte dessa


grande rede do mercado mundial. O poder do capital objetiva, a todo
custo, levar as pessoas ao consumo desenfreado, de modo que haja
um acúmulo de bens materiais. Este fenômeno da “cultura do
consumo”, como aponta Jameson, foi “desenvolvida inicialmente nos
Estados Unidos e em outros países do Primeiro Mundo”, mas está
“agora espalhada sistematicamente pelo mundo todo” (Jameson, 2001,
p. 27). Como exemplos, podemos citar os catálogos e cupons de
descontos enviados pelos correios (convencional ou eletrônico); os tipos
de compras pelas “ponto-com”; o “e-comércio”, que tem se revelado
uma maneira prática de comprar; e lojas em cidades brasileiras que
permanecem abertas nos finais de semana e feriados, as chamadas
“lojas de conveniência” com funcionamento vinte e quatro horas por
dia, sete dias por semana. No momento, não há indícios de que esse
consumismo irá mudar, pois existe a contínua criação de novas
necessidades pela mídia.
O momento pós-moderno coloca-nos numa situação de culto ao
consumo, cujos “templos” são os shopping-centers e os supermercados.
O consumidor deve ter todo o conforto necessário para suas compras
e deve realizá-las num mesmo lugar, sem ter que se locomover
erraticamente e deparar-se com diversos estacionamentos lotados. O
que se verifica, também, é uma abundância e uma grande variedade
de produtos. Como fazemos com as gomas de mascar, qualquer
produto deve ser consumido rapidamente e, em seguida, descartado,
substituído por outro. Uma forma de incentivar o consumo é o cartão
de crédito: mesmo sem dinheiro, o consumidor pode ter o seu sonho
realizado, podendo pagar o produto posteriormente. O cartão de
crédito tornou-se, assim, sinônimo da tão procurada eficiência do
mundo contemporâneo. Sem dúvida, ao falarmos sobre a sociedade
de consumo não podemos esquecer-nos dos excluídos do sistema, que

372
constituem a parte da população que é sacrificada, ficando fora da
prática do consumo, não tendo acesso, muitas vezes, nem às suas
necessidades básicas.
Na atualidade, não são somente os objetos que são consumidos,
as pessoas também se tornaram mercadorias, estando dispostas a
qualquer sacrifício para aparecerem na mídia ao menos por alguns
segundos. Com isso, revistas sensacionalistas fazem sucesso vendendo
a imagem das pessoas que querem ser “consumidas”. Parece no mínimo
estranho o fato de que essas pessoas, depois de um certo tempo,
paradoxalmente, começam a reclamar da mídia, protestando contra
o desrespeito à sua privacidade. Os políticos também são conscientes
de que os meios de comunicação podem elegê-los ou não, ao conseguir
transformar heróis em vilões e vice-versa num curto espaço de tempo.
Podemos, dessa forma, observar que a imagem assumiu um grande
poder na sociedade pós-moderna e tudo passou a ser válido se estiver
na mídia, notoriamente, na televisão.
Torna-se interessante, aqui, determo-nos no papel crucial dos
meios de comunicação no mundo pós-moderno. Vivemos na era da
informação e nossas vidas são controladas pelas telas dos computadores
e da televisão. Trata-se da “sociedade do espetáculo”, como aponta
Jameson (2001, p. 87), parafraseando Guy Debord e sua obra La société
du spectacle [A sociedade do espetáculo]. A cultura visual impera em nosso
mundo e as imagens têm sido referência de “verdade” para a
população. As imagens têm nos controlado em várias circunstâncias,
tais como quando estamos numa loja, num hotel, num banco e somos
filmados pelas câmeras internas de TV, revelando que estamos vivendo,
de forma inexorável, como alvos na “sociedade da vigilância”.
A televisão tem contribuído para determinar a opinião pública
nos últimos anos. As imagens exercem influência sobre as pessoas,
que buscam informação e entretenimento. Contudo, é possível
constatar que as informações são transmitidas rapidamente, num nível
superficial, para logo serem esquecidas. Sobre esse tema, Jameson
entende que, neste momento do capitalismo tardio, ocorre

373
o desaparecimento do sentimento da história, o modo
como todo o nosso sistema social contemporâneo come-
çou, pouco a pouco, a perder sua capacidade de reter
seu próprio passado, começou a viver num presente per-
pétuo e numa perpétua mudança que oblitera o tipo de
tradições que todas as formações sociais anteriores, de
um modo ou de outro, tiveram que preservar. Basta pen-
sarmos no esgotamento das notícias pela mídia: em como
Nixon e, mais ainda, Kennedy são figuras de um passa-
do agora distante. Ficamos tentados a dizer que a pró-
pria função da mídia é relegar ao passado essas experi-
ências históricas recentes, com a maior rapidez possível.
A função informacional da mídia consistiria, portanto,
em nos ajudar a esquecer, a funcionar como os próprios
agentes e mecanismos de nossa amnésia histórica
(Jameson apud: Kaplan, 1993, p. 43).

Dessa forma, nossa época faz-nos viver no mundo da experiência


imediata intensa e estamos condenados a viver num “presente
perpétuo”. A conseqüência direta disso é que perdemos a noção
histórica. Uma dessas características de perda da noção de tempo e,
também, de espaço, pode ser constatada na MTV, segundo análise de
Teixeira Coelho:

Na MTV não há, a rigor, horário nobre, nem festival de


inverno, nem festival de verão, nem terça nobre, nem
domingo maior. A MTV está livre do tempo. Nisso é
pós-moderna: existe na dimensão do espaço ou, como
não existe espaço sem tempo, existe na dimensão de um
espaço apoiado num tempo uniforme e estável, portanto
um tempo que não existe mais. Se deve ser um ambiente
visual, todos seus espaços devem equivaler-se, nenhum
tempo distingue nenhum espaço. …
Não é raro, pelo contrário, que os clips apresentem perso-
nagens que se movem num espaço vago e indeterminado
que não é o espaço (nem o tempo) de hoje, ontem ou de
amanhã ¾ e que só pode ser, portanto, a u-topia, o lugar
nenhum (Teixeira Coelho, 2001, p.168-169).

374
Nessa procura pela experiência imediata, há programas
prometendo sucesso material instantâneo, e a televisão contribui para
essa sensação de que tudo pode ser alcançado e resolvido de modo
rápido. Certos programas de entretenimento têm apresentado um
padrão de qualidade discutível e as fórmulas de sucesso são
reproduzidas em várias emissoras no mesmo país, bem como em
emissoras no mundo todo, enquanto, é claro, houver patrocinadores
dispostos a financiar essas atrações, pois os anunciantes estão sempre
interessados nos índices de audiência por elas alcançados, que nada
mais são do que o universo de potenciais consumidores.
Outra característica do capitalismo neste momento pós-moderno
é o avanço da tecnologia, intimamente ligado à natureza do
conhecimento que, por sua vez, está conectado à competição pelo
poder. Jean-François Lyotard focaliza esta questão em sua obra A
condição pós-moderna. Para Lyotard,

O saber é e será produzido para ser vendido, e ele é e


será consumido para ser valorizado numa nova produ-
ção: nos dois casos, para ser trocado. (...)
Sabe-se que o saber tornou-se nos últimos decênios a
principal força de produção, que já modificou sensivel-
mente a composição das populações ativas nos países mais
desenvolvidos e constitui o principal ponto de estrangu-
lamento para os países em vias de desenvolvimento. Na
idade pós-industrial e pós-moderna, a ciência se conser-
vará e sem dúvida reforçará ainda mais sua importância
na disputa das capacidades produtivas dos Estados-na-
ções. Esta situação constitui mesmo uma das razões que
faz pensar que o afastamento em relação aos países em
vias de desenvolvimento não cessará de alargar-se no fu-
turo (Lyotard, 2000, p. 5).

Tomando por base essas afirmações de Lyotard, poderíamos


afirmar que o conhecimento determinará o poderio das nações e que,
neste mundo contemporâneo globalizado, isso significará, acima de
tudo, expor com veemência os contrastes e o sistema de poder entre

375
os países mais ricos e os mais pobres como jamais ocorreu
anteriormente. Quem tem mais conhecimento tem mais poder e
consolida sua riqueza e seu domínio sobre os pobres. Sabemos que a
Internet trouxe maior velocidade para a distribuição das informações;
porém, isso não significou sua democratização. Algumas nações jamais
terão pleno acesso ao mundo virtual e isso significa mantê-las em
defasagem econômica e conseqüente exclusão do sistema global. A
tecnologia parece ser algo que vai nos salvar de todos os problemas,
mas isso pode não acontecer verdadeiramente. Temos a ilusão de que
estamos no controle de tudo, mas não há verdade nisso. Contudo,
não há, nos dias atuais, como sobrevivermos sem as vantagens e
desvantagens trazidas pela tecnologia.
Jean Baudrillard questiona as tecnologias do virtual e denuncia
a suposta “liberdade” que ela nos oferece, mostrando como a máquina
limita e controla as nossas ações:

Há no cyberespaço a possibilidade de realmente desco-


brir alguma coisa? A Internet apenas simula um espaço
de liberdade e de descoberta. Não oferece, em verdade,
mais do que um espaço fragmentado, mas convencional,
onde o operador interage com elementos conhecidos,
sites estabelecidos, códigos instituídos. Nada existe para
além desses parâmetros de busca. Toda pergunta encon-
tra-se atrelada a uma resposta preestabelecida.
Encarnamos, ao mesmo tempo, a interrogação automáti-
ca e a reposta automática da máquina. Codificadores e
decodificadores ¾ nosso próprio terminal, nosso pró-
prio correspondente. Eis o êxtase da comunicação
(Baudrillard, 1997, p. 148).

Ao pensarmos sobre a influência do virtual e das imagens no


mundo contemporâneo, torna-se importante refletirmos sobre o real
e a nossa “ilusão” de real e quando temos o simulacro, a cópia sem
original. Na televisão, vemos as imagens sendo repetidas tantas vezes
que perdemos a noção de real. Connor, baseando-se em Baudrillard,
faz o seguinte comentário sobre a simulação:

376
No regime de simulação que é a cultura contemporânea,
Baudrillard diagnostica a incessante produção de ima-
gens sem nenhuma tentativa de fundamentá-las na reali-
dade. Ao lado disso, como em resposta à percepção do
desaparecimento do real, há uma tentativa compensató-
ria de manufaturá-lo, num “exagero do verdadeiro”
(Simulations, 12); em outras palavras, o culto à experiên-
cia imediata, à realidade crua e intensa, não é a contra-
dição do regime do simulacro, mas o seu efeito simulado
(Connor, 1989, p. 52).

Assim, quando a imagem não tem mais nenhuma relação com o


real, sendo o simulacro de si mesma, entramos no “hiper-real”, segundo
Baudrillard. Tudo passa num ritmo tão acelerado, as imagens se
sucedem de modo tão fluido e o tempo é tão fugaz que, com isso,
perdemos a noção do real, o qual é substituído pelo “hiper-real”, que
seria algo “mais real que o real”. Podemos constatar que as notícias
são colagens de imagens fragmentadas.
Nesse contexto socioeconômico há uma transformação na
narrativa, segundo Lyotard. Para ele, ocorre uma “incredulidade em
relação aos metarrelatos” e “A função narrativa perde seus atores
(…), os grandes heróis, os grandes perigos, os grandes périplos e o
grande objetivo” (Lyotard, 2000, p. xvi). Partindo do pressuposto de
que “na sociedade e na cultura contemporânea, sociedade pós-
industrial, cultura pós-moderna, a questão da legitimação do saber
coloca-se em outros termos. O grande relato perdeu sua credibilidade”
(Lyotard, 2000, p. 69). Lyotard mostra que a credibilidade dessas
grandes narrativas foi perdida desde as tecnologias advindas da
Segunda Guerra. Em conseqüência disso, vemos uma intensificação
do fragmentário nas narrativas contemporâneas, como aponta Silviano
Santiago: “As narrativas hoje são, por definição, quebradas. Sempre a
recomeçar” (Santiago, 2002, p. 54). Essa característica reflete o próprio
estado de fragmentação da realidade nos dias atuais.
Aliado à mudança na narrativa, o papel do artista pós-moderno
também se transformou, e Lyotard apresenta a seguinte reflexão sobre
o assunto:

377
Um artista, um escritor pós-moderno está na situação de
um filósofo: o texto que ele escreve, a obra que ele pro-
duz não são, em princípio, governados por regras já
estabelecidas, e não podem ser analisadas por intermé-
dio de um julgamento determinado, pela aplicação nes-
se texto, nessa obra de categorias conhecidas. Essas re-
gras e categorias são o que a obra de arte está buscando.
O artista e o escritor trabalham, então, sem regras a fim
de formular as regras do que terá sido feito. Daí, o fato
de que a obra e o texto têm as propriedades do aconteci-
mento; daí, também, eles sempre chegam muito tarde ao
autor, ou seja, a realização (mise en oeuvre) da obra co-
meça sempre muito cedo. O pós-moderno seria compre-
endido segundo o paradoxo do futuro (post) anterior
(modo) (Lyotard, 1988, p. 27).

Há, desta forma, um redirecionamento do que até então era feito.


As regras são vistas a posteriori, e o artista tem liberdade para romper
com o preexistente. Ocorre uma preocupação de retorno ao passado
para esclarecer e orientar o presente, um iluminando o outro.
E seguindo essa idéia de o presente iluminar o passado, podemos
analisar outra preocupação do pós-moderno: o retorno à História.
Ora, os romances históricos podem ajudar-nos a revisitar a História e
repensá-la. O pós-moderno retorna aos arquivos, mas para subvertê-
los, questioná-los. Sobre a relação entre Literatura e História no pós-
moderno, Linda Hutcheon, com seu conceito de “metaficção
historiográfica”, apresenta História e ficção como “criações humanas”
e, assim, há um “repensar” e uma “reelaboração das formas e dos
conteúdos do passado” (Hutcheon, 1991, p. 21-22), além de haver
uma reflexão sobre o próprio processo de criação ficcional.
Hutcheon assinala o problema da natureza do material histórico,
pois conhecemos o passado

Por meio de seus discursos, por meio de seus textos —


ou seja, por meio de rastros de seus eventos históricos:
os materiais de arquivo, os documentos, as narrativas de
testemunhas ... e historiadores. De certa forma, então, a

378
ficção pós-moderna simplesmente evidencia o processo
da representação narrativa — do real ou do fictício e de
suas inter-relações. (...)
Fatos são eventos para os quais demos significado (...). A
ficção pós-moderna tematiza, com freqüência, o proces-
so de transformar eventos em fatos por meio da filtragem
e da interpretação dos documentos dos arquivos
(Hutcheon, 1993, p. 36,57).

Essa posição de Hutcheon encontra respaldo na teoria de Hayden


White, que não somente retoma a idéia aristotélica da superioridade
da poesia em relação à História, como propõe uma discussão sobre
“literatura do fato” ou “ficções da representação factual”. Segundo
White, “embora os historiadores e os escritores de ficção possam
interessar-se por tipos diferentes de eventos, tanto as formas dos seus
respectivos discursos como os seus objetivos na escrita são amiúde os
mesmos”. O teórico aponta para o fato de que tanto a História quanto
a ficção são narrativas construídas pelo homem por meio da linguagem
e, assim, não são isentas de manipulação: “a história não é menos uma
forma de ficção do que o romance é uma forma de representação
histórica” (White, 1994, p.137-138). Literatura e História não podem
mais ser pensadas como a primeira descrevendo o imaginário e a
segunda, a realidade. Nos discursos de uma e de outra há elementos
reais e fantasiosos. Por tudo isso, a História não pode ser considerada
como a única fonte de informação dos fatos. Aí entram os romances
históricos para ampliar o conhecimento do leitor que, devido a uma
maior participação, é provocado a fazer uma reflexão crítica sobre o
tema abordado. Esta é, então, a proposta pós-moderna: repensar o
passado, dessacralizando a História oficial. A atitude pós-moderna em
relação à História tem por objetivo focalizá-la não mais pelo modelo
linear do tempo histórico, como afirma Kearney (1992).
O leitor pode, pela leitura de um romance histórico, tomar
consciência histórica, refletir sobre a própria História, formar sua
opinião sobre os acontecimentos e questionar a História oficial. Esse
projeto pós-moderno acentuou-se com a economia de mercado e com

379
a tecnologia, que levam o homem contemporâneo a uma espécie de
resgate de seu passado histórico.
Com o avanço tecnológico, a sociedade dá cada vez menos
importância aos seres humanos e o capitalismo desenfreado passa a
imperar de modo avassalador. Com isso, o indivíduo se enfraquece,
mas os grupos se fortificam e surgem, então, as reivindicações das
mulheres, dos negros, dos gays e lésbicas. O pós-moderno trouxe para
o debate questões relativas à raça, à classe e ao gênero. As diversidades
precisam ser respeitadas, pois “a idéia de que todos os grupos têm o
direito de falar por eles mesmos, na sua própria voz, e ter aquela voz
aceita como autêntica e legítima é essencial para a postura pluralista
do pós-modernismo” (Harvey, 1989, p. 48).
A literatura vai, assim, acompanhar essa tendência, apresentando
preocupações com o feminismo, com os negros e homossexuais;
verifica-se, também, uma marcante intertextualidade, metonímia,
humor de estilo erudito; há ênfase na metalinguagem, a linguagem
aparece fragmentada, semelhante à linguagem cinematográfica, com
mudanças rápidas de cena, ocorre a presença da auto-reflexão, o
popular e o erudito misturam-se.
Além de todos esses aspectos, o pastiche e a paródia também estão
presentes na arte pós-moderna. O pastiche é assim definido por
Jameson:

O pastiche, como a paródia, é o imitar de um estilo úni-


co, peculiar ou idiossincrático, é o colocar de uma más-
cara lingüística, é falar em uma linguagem morta. Mas é
uma prática neutralizada de tal imitação, sem nenhum
dos motivos inconfessos da paródia, sem o riso e sem a
convicção de que, ao lado dessa linguagem anormal que
se empresta por um momento, ainda existe uma saudá-
vel normalidade lingüística. Desse modo, o pastiche é
uma paródia branca, uma estátua sem olhos: está para a
paródia assim como uma certa ironia branca ¾ outro
fenômeno moderno interessante e historicamente origi-
nal ¾ está para o que Wayne Booth chama as “ironias
estáveis” dos século XVIII (Jameson, 1996, p. 44-45).

380
Segundo Jameson, o pastiche está na imitação de “estilos mortos”
e isto poderia ser visto nos “filmes de nostalgia”, como Guerra nas
Estrelas. Essa seria uma característica marcante do filme pós-moderno,
já que não conseguimos nos concentrar no presente e nos tornamos
incapazes de lidar com o tempo, pois não queremos pensar
historicamente.
Como tudo muda de maneira veloz, a própria narrativa retratará
esta rapidez de alterações no tempo e no espaço. O leitor deverá
acostumar-se a esse novo estilo de produção literária que, afinal,
acompanha os tempos, devendo estar mais atento para as mudanças
repentinas de vozes e personagens, e para a intertextualidade presente
nas obras. O tempo e o espaço são fugazes (revelando a fragmentação
do mundo atual), há confusão de vozes (tanto o narrador, como a
personagem pode estar se expressando), mistura de pronomes (o autor
pode unir-se aos leitores), as personagens podem ser conhecidas de
maneira rápida, como se as estivéssemos vendo num computador
percorrendo as páginas de um site, e, num mesmo romance, podemos
ter narrador de primeira e de terceira pessoas misturados. Todos estes
procedimentos ocasionam uma “multiplicação das instâncias
narrativas”, como menciona Rincón (1995, p.101), bem como revelam
a fragmentação do sujeito na contemporaneidade
Fokkema assinala essa vocação pluralista dos autores pós-
modernos:

O pós-modernista, em vez de se concentrar no eu interi-


or, como os modernistas eram tentados a fazer, não res-
peita qualquer fronteira: as personagens podem deslo-
car-se tão longe como o espaço cósmico, ou o futuro dis-
tante; fazem experiência com drogas e com a
automatização; comprazem-se com a massa desestruturada
das palavras, a biblioteca, a enciclopédia, a publicidade,
a televisão e outros mass media (Fokkema s/d, p.77).

A descontinuidade na escrita pós-moderna faz o leitor participar


da construção do texto narrado, a fim de “procurar coerência”
(Fokkema, s/d, p. 68).

381
Já o resgate da História feito pela ficção pós-moderna é, para
Hutcheon, “uma reação aos herméticos formalismo e esteticismo
anistóricos que caracterizam grande parte da arte e da teoria do
chamado período modernista” (Hutcheon, 1991, p.121). Portanto, o
pós-moderno revela-se como uma maneira mais consciente de
estabelecer as relações entre linguagem e realidade, voltando ao
historicismo, não como um retorno ingênuo, mas para uma reescrita
crítica da História.
A junção de ficção e realidade aparece de modo claro para
cumprir os objetivos de desestruturação do autor ao jogar com a
linguagem, aproximando textos de diferentes naturezas, apropriando-
se de vários registros de escrita, inclusive de documentos históricos
reais e de documentação, a fim de enfatizar, segundo Linda Hutcheon,
“tanto a natureza discursiva daquelas representações do passado como
a forma narrativizada pela qual nós as lemos” (Hutcheon, 1993, p.
87). Essa troca entre os documentos e a ficção acentua a fragmentação
do texto. Para Hutcheon, essa inserção de documentos históricos na
ficção pós-moderna faz do leitor um “colaborador consciente”
(Hutcheon, 1993, p. 88), exigindo, vale salientar mais uma vez, um
papel mais ativo do leitor que, a partir das múltiplas perspectivas
apresentadas pelo revisitar crítico da História, por meio de uma
linguagem transgressora e pela subversão de personagens históricos,
pode revisar a História oficial.
Tendo em vista que a ficção tem seus próprios mecanismos de
funcionamento, Brian McHale considera que a preocupação
epistemológica do romance moderno do início do século cedeu lugar
à preocupação ontológica.

enquanto a ficção de orientação epistemológica (moder-


nismo, ficção policial) está preocupada com questões tais
como: o que há para se conhecer sobre o mundo? Quem
sabe isso, e quão confiável é? Como é transmitido o co-
nhecimento, para quem, e quão confiável é? etc., a ficção
de orientação ontológica (pós-modernismo, ficção cien-
tífica) está preocupada com questões tais como: o que é

382
um mundo? Como um mundo é constituído? Há mun-
dos alternativos e, se há, como eles são constituídos? Como
mundos diferentes e tipos diferentes de mundo diferem,
e o que acontece quando alguém passa de um mundo
para outro? etc (McHale, 1992, p. 247).

Como a realidade que aparece no texto constitui-se num típico


questionamento do pós-moderno, para Linda Hutcheon “as fronteiras
entre a arte e a realidade são realmente contestadas, mas apenas porque
ainda existem ¾ ou assim pensamos nós. Em vez da síntese,
encontramos a problematização. Pode não ser muito; porém, mais
uma vez, pode ser tudo o que temos” (Hutcheon, 1991, p. 278). Sobre
a relação com o real, Silviano Santiago afirma que “o narrador pós-
moderno sabe que o ‘real’ e o ‘autêntico’ são construções da
linguagem” (Santiago, 2002, p. 46-47).
O fundamental é como o autor trabalha os fatos, manipulando a
linguagem com variados processos. Segundo Brian McHale, “o autor
pós-modernista arroga para si poderes que os deuses sempre
reivindicaram: onipotência, onipresença” (McHale, 1994, p. 210).
Diante do fato de que os autores contemporâneos trabalham de
modos tão variados, torna-se difícil fazer generalizações. Há uma
diversidade de escolhas estéticas e de aspectos abordados. As
experiências com a linguagem apresentam-se de diversas formas: letras
maiúsculas, itálico, trechos que parecem tirados de telegramas, frases
curtas, espaços em branco, parágrafos de tamanhos diversificados,
notas de rodapé, inserção de artigos de jornal, palavras surgem
sozinhas, mas carregadas de significados, tais como marcas de
produtos, assinalando para uma crítica ao consumismo etc. Sobre essas
distintas formas de escrita, existentes na literatura pós-moderna, afirma
Brian McHale:

Os críticos sempre descreveram a escrita pós-modernis-


ta como descontínua, mas nem sempre reconheceram a
conexão entre esta descontinuidade semântica e narrati-
va e seu “correlativo objetivo” físico, o espaçamento do

383
texto. Os textos pós-modernistas são tipicamente espaça-
dos, literal e figurativamente. Capítulos extremamente
curtos, ou parágrafos curtos separados por largas faixas
de espaço em branco tornaram-se a norma. (...)
A descontinuidade física e o espaçamento dos tex-
tos pós-modernistas são com freqüência realça-
dos adicionalmente pelo uso de títulos ou cabeça-
lhos, num tipo mais proeminente, no começo de
cada capítulo curto ou parágrafo isolado. Tais ca-
beçalhos tendem a corroborar com o que o
espaçamento já sugere, isto é, que cada segmento
curto constitui uma unidade independente, um
texto miniatura por si mesmo, dessa forma, na
prática, completando a desintegração física do
texto que o espaçamento começa (McHale, 1994,
p. 181-182).

Outro aspecto presente na literatura pós-moderna é o cyberpunk,


que recebeu a seguinte definição de Brian McHale:

Cyberpunk, pode-se dizer, traduz ou transcodifica os pa-


drões pós-modernistas do nível da forma (a massa contí-
nua verbal, estratégias narrativas) ao nível do conteúdo
ou do “mundo”. Colocando isso de outra forma, o
ciberpunk tende a “literalizar” ou “tornar real” o que na
ficção pós-moderna ocorre como metáfora ¾ metáfora
não no sentido restrito de um tropo vocabular (embora
isso seja também uma possibilidade), mas no sentido
amplo em que a estratégia narrativa ou um padrão de-
terminado do uso da linguagem pode ser entendido como
uma reflexão figurativa de uma “idéia” ou tema. Tam-
bém a este respeito, a prática cyberpunk é claramente uma
continuação ou extensão da prática de ficção científica
de maneira geral, porque a ficção científica, com fre-
qüência, origina elementos de seus mundos ao literalizar
metáforas do discurso cotidiano da ficção e da poesia
(McHale, 1992, p. 246).

384
A temática diversificada de pontos, que são tratados por escritores
considerados pós-modernos, inclui: conspiração, tecnologia, poder
da mídia, poder da imagem, televisão, cultura popular,
multiculturalismo, retorno crítico à História, consumismo, sociedade
de vigilância, tragédia nuclear, poder do capital, terrorismo, paranóia,
religião, morte. Sobre as múltiplas possibilidades oferecidas pelo pós-
modernismo, Rincón, assinala que

O pós-modernismo vai, aos olhos de Fiedler, além dos limi-


tes sociais e institucionais, ao unir os mais diversos te-
mas e atitudes narrativas. Não se tratava simplesmente
de transgressões. Daí, seu público e as atitudes da críti-
ca: “O pós-modernismo oferece um exemplo a um público
jovem novo e expulsa certos críticos ultrapassados e con-
trariados do seu antigo status de elite, ao oferecer liber-
dades cujo único pensamento, mais do que os encorajar,
os assusta” (Rincón, 1995, p. 136-137).

Fokkema afirma que o pós-modernismo é a primeira manifestação


literária, constituída na América, que teve ascendência na literatura
da Europa (Fokkema, s/d, p. 61), e George Yúdice traz à baila “um
curioso ¾ e totalmente compreensível ¾ argumento”: o de que “a
América Latina estabelece o precedente da pós-modernidade muito
antes de a noção aparecer nos contextos europeu e norte-americano”,
pelo fato do “caráter heterogêneo das formações sociais e culturais da
América Latina”, o que “possibilitou formas descontínuas, alternativas,
e híbridas de emergir que desafiaram a hegemonia da grand récit da
modernidade” (Yúdice, 1992, p.1). Ainda para Yúdice,

Nos anos 60, os escritores do chamado Boom pensaram


que eles poderiam alcançar não somente culturas nacio-
nais mas, mais importante, uma cultura continental glo-
bal equivalente àquela da Europa e dos Estados Unidos.
Em vez de tomar por base as tradições nativas e popula-
res, os escritores do Boom procuraram forjar uma nova
linguagem estética e, conscientemente, uma nova consci-
ência hegemônica. (...) (Yúdice, 1992, p. 10-11).

385
As seguintes afirmações de Sheldon Penn corroboram a idéia de
que o hibridismo existente na região torna-se pertinente à análise do
pós-modernismo na América Latina:

O debate interdisciplinar sobre o pós-modernismo na


América Latina, que teve seu impulso alguns anos de-
pois do ocorrido nos Estados Unidos e Europa, está re-
lacionado com o definir pós-modernismo especificamente
para sociedades que experienciaram uma modernidade
muito irregular em comparação com aquelas dos países
do centro. (...) Uma crítica inicial sobre a pós-
modernidade na América Latina que se tornou corrente
foi a de que ela era totalmente inadequada para uma
sociedade que não tinha experienciado a modernidade,
além de uma forma importada, quer ela seja econômica,
política ou estética. Muitos agora percebem que esta vi-
são era muito simplista, preferindo analisar estas estru-
turas como formas de uma cultura híbrida (apud Bertens,
Natoli,, 2002, p. 152-153).

Em relação ao Brasil, José Guilherme Merchior (1980) aponta a


“diversidade” do nosso modernismo, e Domício Proença Filho afirma
que o nosso pós-modernismo também possui um caráter próprio, com
realizações que demonstram, ainda, uma ligação com o moderno até
outras que conectam a cultura erudita e a popular (Proença Filho,
1995, p. 70). O debate sobre o pós-moderno no Brasil pode ser
vinculado ao desenrolar de sua História, com fatores culturais e
políticos que incluem, segundo Rincón:

o surgimento da idéia de resistência cultural, o Cinema


Novo, a Canção de protesto, a integração dos jovens, a ex-
plosão dos meios de comunicação, a configuração da
cultura como espetáculo, a contracultura, o underground,
o Teatro Oficina, a crise do logocentrismo, o milagre eco-
nômico do regime militar, a repressão, o crescimento inu-
sitado da indústria cultural, as culturas alternativas, a
Abertura, a redemocratização (Rincón, 1995, p. 108).

386
Rincón destaca, também, a importância da televisão no contexto
do pós-moderno brasileiro, pois, para o teórico,

a implantação da televisão, nos termos e sob as condições


políticas em que se realizou entre 1966 e 1972 no Brasil,
com um choque entre tecnologias e mentalidades, teve
efeitos decisivos sobre os processos de construção da re-
alidade: na forma como seus usuários organizam e mo-
dificam a imagem do mundo que os rodeia, sua “pró-
pria” representação da realidade social (Rincón, 1995,
p. 111-112).

A arquitetura e a pintura também tiveram mudanças significativas


em seus projetos estéticos.
Sobre a arquitetura, Perry Anderson, ao abordar o trabalho de
Charles Jencks, considera que o pós-moderno foi definido como
movimento pela mistura do novo e do velho, do alto e do baixo, e isso
garantiu-lhe o futuro. Portanto, houve o alinhamento do gosto culto e
da sensibilidade popular no pós-moderno (Anderson, 1999, p. 22).
Segundo Eleanor Heartney, a fotografia desempenha um papel
pós-moderno ao apresentar a questão da originalidade, tão debatida
no contemporâneo, já que “podem ser feitas infinitas impressões
igualmente bem definidas de um único negativo” e, assim, “não existe
o ‘original’, condição que se ajusta perfeitamente à negação pós-
moderna da exclusividade e da originalidade” (Heartney, 2002, p. 33).
Nas artes plásticas, destacam-se os trabalhos de Robert
Rauschenberg e Andy Warhol. Sobre o trabalho desses artistas, afirma
Robert Dunn:

O trabalho exemplar de Rauschenberg marca a tran-


sição para uma perspectiva e sensibilidade modifica-
das na arte visual. Como Calvin Tompkins (1976:204)
afirmou, para Rauschenberg o artista não era o ‘ele-
mento controlador’, impondo ‘sua personalidade,
suas emoções, suas idéias, seu gosto’ no processo cria-

387
tivo. Em vez disso, o artista interagia com os materi-
ais que ele encontrava no mundo, deixando-os falar
por si mesmos sob sua influência criativa. (…) Num
movimento drasticamente oposto à noção modernista
de um trabalho fechado confeccionado pelo artista
(belas-artes), Rauschenberg colocou a vida de volta à
arte ao fazer a arte consistir de objetos, imagens e ma-
teriais do cotidiano. (…)
A inspiração para este movimento [de Rauschenberg]
foi Marcel Duchamp, cujos ‘readymades’, em décadas
anteriores, já tinham ridicularizado a arte elevada e
as pretensões do modernismo estético e dos que se
aclamavam seus promotores.
O que começou com Rauschenberg foi completado pela
arte pop. As histórias em quadrinhos de Roy
Lichtenstein e as latas de sopa de Andy Warhol foram
o começo de uma apropriação amplamente baseada
na estética da mídia de massa (Dunn, 1991, p. 116-
117).

Enquanto a arte moderna opunha-se à inclinação ao mercantilismo,


a arte pós-moderna passou a ser produto de consumo, e Annateresa Fabris
mostra a consciência de Wahrol em relação a esse fato:

Ao apropriar-se de imagens pré-constituídas, Warhol


demonstra estar lidando não com a realidade, mas com
a ordem dos signos, colocando a arte numa situação
homóloga à produção industrial e serial e à
artificialidade da paisagem urbana contemporânea. Se
o consumo é um dos esteios dessa ordem, pois é ele
que permite a reprodução infinita, não admira que
Warhol rejeite a (falsa) intangibilidade da obra de arte
e a converta francamente em mais um dos produtos
que povoam o universo da mercadoria. Desse modo,
põe fim ao dilema que acompanhava a arte desde o
surgimento da vanguarda ¾ ser ao mesmo tempo uma
criação autônoma e uma mercadoria ¾ , anunciando
o advento da Business Art (In: Chalub, 1994, p. 110).

388
Ao tornar-se mercadoria, a arte fortalece a cultura de massa que
vende seus produtos, visando o lucro. Esse fenômeno recebeu críticas
veementes, como as de Adorno e Horkheimer, que registraram a
transformação que a indústria cultural significou para a arte:

A indústria cultural pode-se vangloriar de haver atuado


com energia e de ter erigido em princípio a transposição
¾ tantas vezes grosseira ¾ da arte para a esfera do con-
sumo, de haver liberado o amusement da sua ingenuida-
de mais desagradável e de haver melhorado a confecção
das mercadorias (In: Lima, 1990, p. 173).

Ora, a indústria cultural domina a chamada indústria do


entretenimento, caracterizada pela reprodução de fórmulas de sucesso
de audiência. Para Adorno e Horkheimer, inúmeros consumidores
interessam-se pela técnica e não pelo conteúdo, que é repetido. A
indústria cultural controla as necessidades dos consumidores.
Podemos afirmar que, nessa busca da indústria cultural pelo lucro,
existe uma tendência à “homogeneização” do gosto para que haja mais
consumo, entretanto, sem a real preocupação com a qualidade. Terry
Eagleton concorda com essa postura de Adorno e Horkheimer, pois,
para ele, no pós-moderno, a cultura está associada à vida social, porém,
“na forma da estética da mercadoria” (Eagleton, 2000, p. 30).
As diversas possibilidades que se apresentam no pós-moderno
levam-nos, segundo analisa Nicolau Sevcenko, ao “aprendizado
humilde, que já tarda, da convivência difícil mas fundamental com o
imponderável, o incompreensível, o inefável ¾ depois de séculos da fé
brutal de que tudo pode ser conhecido, conquistado, controlado”
(Sevcenko apud Oliveira et alii, 1995, p. 54).
A partir dos pontos aqui levantados, torna-se possível verificar
que com toda essa nova configuração que o mundo está tomando, um
novo capítulo na História da humanidade parece estar começando. O
desafio que se encontra diante de nós é entendê-lo.

389
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BAUDRILLARD, J. Tela total: Mito-ironias da era do virtual e da imagem. Trad. e Org.
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391
REALISMO MÁGICO E REALISMO MARAVILHOSO

Antonio R. Esteves
Universidade Estadual Paulista – Assis
Eurídice Figueiredo
Universidade Federal Fluminense/CNPq

“¿Pero qué es la historia de América


toda sino una crónica de lo real maravilloso?”
Alejo Carpentier

“El mundo, desgraciadamente, es real”.


Jorge Luís Borges

Parece não haver dúvidas de que a maturidade plena da literatura


hispano-americana é alcançada no século XX, num processo não
pouco doloroso no qual o romance tem fundamental importância. A
superação dos modelos realistas do século XIX tem origem na Europa,
nas primeiras décadas do século, com os chamados movimentos de
vanguardas, que se seguem ao período de profunda crise econômica
e social causada pela hecatombe da primeira guerra mundial. Essas
idéias atravessam o Atlântico e se espalham rapidamente pelo
continente americano, onde encontram terreno fértil, destruindo em
pouco tempo os frágeis pilares da narrativa hispano-americana da
época, baseada num modelo exógeno, que confundia a realidade com
a descrição da exótica paisagem local e das complexas relações sociais
herdadas dos modelos coloniais aqui implantados.
Assim, ainda no período de entre-guerras, surgem em vários
pontos da América Latina escritores preocupados não apenas em
romper com os modelos narrativos do século XIX mas,
principalmente, em superar os cânones europeus, tentando criar uma
literatura, e, sobretudo, uma narrativa, que focalizasse a crise do
homem americano numa sociedade complexa que, ao mesmo tempo
em que desejava ingressar na era industrial e tecnológica e seu universo
urbano, ainda vivia em um mundo rural e agrário, salpicado por
relações econômicas e sociais medievais, num período em que a Europa
discutia formas de superação do capitalismo.
Essa empresa renovadora produz narradores tão diferentes como
Jorge Luís Borges, Roberto Arlt e Adolfo Bioy Casares, na Argentina;
Miguel Ángel Asturias, na Guatemala; Arturo Uslar Pietri, na
Venezuela; Alejo Carpentier, em Cuba; José Maria Arguedas, no Peru;
Juan Carlos Onetti, no Uruguai; Agustín Yáñez e José Revueltas, no
México, entre outros menos conhecidos. Todos estrearam na primeira
metade do século e cada um, partindo de sua experiência local e do
desejo de superar os modelos realistas europeus, e usando os
ensinamentos das vanguardas européias, produziam um tipo
particular de narrativa. Nas duas décadas seguintes essa lista engordaria
com novos nomes como Gabriel García Márquez, na Colômbia; Julio
Cortázar, na Argentina; Juan Rulfo e Carlos Fuentes, no México; Mario
Vargas Llosa, no Peru; José Donoso, no Chile; Augusto Monterroso,
na Guatemala; José Lezama Lima e Guillermo Cabrera Infante, em
Cuba; Mario Benedetti, no Uruguai e, por que não, João Guimarães
Rosa, no Brasil. Juntamente com os primeiros daquela lista,
praticamente todos seriam imortalizados em seus respectivos países,
assim como conseguiriam ocupar um importante espaço na cena
cultural internacional, no vácuo que se seguiu ao fim da segunda guerra
mundial. Muitos escritores desse grupo, heterogêneo em sua origem
e em seu modo de escrever, fariam parte de um movimento conhecido
pela alcunha pouco definitória de boom da literatura latino-americana.
A crítica, em seu tradicional descompasso com a produção
artística latino-americana, diante de tal avalancha de textos, viu-se na
necessidade de tentar explicar o fenômeno, ou pelo menos de criar
alguns rótulos apressados que suprissem a falta de uma reflexão mais
profunda sobre a questão. Foi nesse contexto que se popularizaram,

394
principalmente, nos meios acadêmicos, os termos realismo mágico e
realismo maravilhoso que, mais que conceitos, seriam rótulos usados
de forma mais ou menos indiscriminada, às vezes alternando-se, às
vezes opondo-se, às vezes complementado-se, durante as décadas
seguintes.
A necessidade de um conceito, que explicasse o fenômeno de
forma homogênea e a existência de poucas pesquisas mais profundas
sobre a questão, fez com que seu uso proliferasse não sem muita
confusão, advinda, principalmente, da falta de uma definição que não
fosse controversa e de sua aplicação indiscriminada a praticamente
toda produção narrativa, incluindo, até mesmo, o cinema, que viesse
da América Latina.
Tentaremos acompanhar a trajetória de tais termos, desde suas
origens nas vanguardas européias, apresentando as tentativas de
definição e delimitação de cada um deles, realizadas pela crítica nas
últimas décadas.
Aplicada às artes plásticas, a expressão realismo mágico, chegou
à América na mesma bagagem que trouxe os conceitos das vanguardas.
A crítica tem sido unânime em apontar Franz Roh como o primeiro a
usar o termo, em seu livro Pós-expressionismo, realismo mágico. Problemas
relacionados com a pintura européia mais recente, publicado em Leipzig,
em 1925. Menton (1999) aponta que o próprio Roh já havia utilizado
o termo em ocasiões anteriores, uma delas em um artigo publicado
em 1923, também sobre o expressionismo alemão. Esse livro foi
traduzido para o espanhol por Fernando Vela, e publicado pela Revista
de Occidente de Ortega y Gasset, em 1927. Nesse mesmo ano, também
apareceram partes dele nas páginas daquela prestigiosa revista
espanhola, em seu número de abril-maio-junho. Na publicação da
revista, entretanto, o título em espanhol sofreu uma alteração,
desaparecendo o “pós-expressionismo”: “Realismo mágico. Problemas
de la pintura europea más reciente”. Na publicação em livro, houve
uma inversão: Realismo mágico, postexpresionismo. Problemas de la pintura
europea más reciente. Em ambos os casos, a expressão “realismo mágico”
aparece destacada e foi dessa forma que os hispano-americanos tiveram

395
contato com o termo, seja através da revista, seja através do livro. No
referido livro de Menton, há vários depoimentos que revelam sua
recepção tanto na Argentina como na Venezuela.
O problema ontológico da expressão, explorado pelo emprego
hispano-americano do termo, aplicado mais tarde à literatura, já estava
presente no uso que dela fazia Roh com relação à pintura: “representar
as coisas concretas e palpáveis, para tornar visível o mistério que
ocultam” (Roh apud Chiampi, 1980, p. 21). Ainda no âmbito das
vanguardas européias, em 1926, Massimo Bontempelli, escritor e
crítico italiano, usou a expressão realismo mágico, em sua revista 900.
Cahiers d’Italie et d’Europe, também no campo das artes plásticas, em
acepção parecida com a de Roh, como forma de superar o futurismo.
Segundo demonstra Menton (1999), o termo foi bastante usado no
âmbito das artes plásticas européias, em várias línguas, durante as
décadas seguintes.
No contexto hispano-americano, deixando de lado os usos
restritos que possam ter sido feitos de passagem, costuma-se apontar
o escritor e crítico venezuelano Arturo Uslar Pietri como o primeiro a
ter utilizado o termo realismo mágico aplicado à literatura. Em Letras
y hombres de Venezuela, de 1948, ao analisar a produção de contos
daquele país, nos anos 30 e 40, ele aponta como tendência
predominante o realismo mágico. Mais tarde, o próprio Uslar Pietri
(1990), esclarecerá que já conhecia a expressão desde o período em
que viveu em Paris, no final dos anos 20, quando entrou em contato
com as vanguardas européias e leu o livro de Roh.
Em seu livro O realismo maravilhoso, obra fundamental para o
entendimento da questão, Irlemar Chiampi aponta dois aspectos
relevantes que já aparecem no texto de Uslar Pietri. Por um lado, “a
realidade é considerada misteriosa, ou ‘mágica’, e ao narrador cabe
‘adivinhá-la’. Ou então, “a realidade é considerada prosaica e ao
narrador cabe ‘negá-la’” (Chiampi, 1980, p. 23). Dessa forma, a
introdução do termo na crítica hispano-americana envolve, já de saída,
dois problemas, o da ontologia da realidade e o da fenomenologia da
percepção. Ambos são evitados por Ángel Flores, numa conferência

396
apresentada no Congresso da Modern Languages Association, em Nova
York, em 1954, que pôs definitivamente em moda o termo.
Flores prefere apresentar as raízes históricas da nova corrente
ficcional, para depois defini-la do ponto de vista narrativo. Para ele, o
nascimento do realismo mágico ocorre em 1935, com a publicação de
Historia universal de la infamia, de Jorge Luís Borges. Tentando
caracterizar uma tradição ininterrupta de literatura mágica na
América hispânica, o autor comete alguns equívocos, como o de associar
o exotismo modernista ao mágico das crônicas coloniais, criando um
conjunto heteróclito no qual cabem escritores tão díspares como Bioy
Casares, Juan Rulfo, Eduardo Mallea, Juan José Arreola, Ernesto
Sábato, Juan Carlos Onetti, Julio Cortázar, Santiago Dabove.
Alguns anos mais tarde, seguindo o lento passo da carruagem da
crítica hispano-americana, Luís Leal praticamente reformula os
conceitos de Flores e inclui na lista o escritor cubano Alejo Carpentier.
Se Flores, por um lado, definia o realismo mágico, seguindo o modelo
do fantástico kafkiano, como uma espécie de “naturalização do irreal”,
Leal inverterá o processo, usando a fórmula da “sobrenaturalização
do real”, apoiando-se tanto no anti-expressionismo de Roh como na
proposta surrealista da ontologia da realidade. Ao contrário de Flores,
que incluía em seu realismo mágico uma literatura tipicamente
fantástica, produzida na América, Leal insiste em que a nova tendência
não cria mundos imaginários, já que a magia está na própria vida, nas
coisas e no modo de ser dos homens.
Ao associar o elemento mágico com a própria forma de ser da
realidade, Leal coincide com a teoria do real maravilhoso, desenvolvida
alguns anos antes pelo escritor cubano Alejo Carpentier. Aí está,
segundo Chiampi, a grande inovação de Leal. “A vinculação do
conceito com a origem do termo, na pintura, bem como a inclusão da
reflexão de Carpentier sobre o ‘real maravilhoso americano’ na
questão, possibilitaram introduzir a faceta ‘realista’ do realismo mágico
— diferenciada da literatura fantástica e do realismo tradicional
hispano-americano” (Chiampi, 1980, p. 27).

397
Tendo como base os textos de Flores e de Leal, aparentemente
contraditórios, mas complementares, a utilização do termo tem sido
profusa nas últimas décadas, aprofundando a ambigüidade existente
desde o princípio e aparentemente sem solução. Alguns escritores
aproveitaram-se da situação e aplicaram o rótulo a sua própria obra,
complicando um pouco mais a situação. Um exemplo é o guatemalteco
Miguel Ángel Asturias, que viria a receber o Prêmio Nobel de
Literatura, em 1967 e que, desde o início dessa década, passa a definir
sua obra, profundamente arraigada na cosmogonia maia-quiché, como
realismo mágico.
O próprio Uslar Pietri voltaria a usar o termo em várias ocasiões.
Num artigo publicado em 20 de fevereiro de 1985, no El Nacional, de
Caracas, retorna à questão, fazendo uma série de pontualizações.
Começa rememorando suas discussões, em Paris, com Asturias e
Carpentier, por cerca de três anos, quando ali estiveram exilados, a
partir de 1929. Dessas discussões, sobre a realidade hispano-americana
e as teorias surrealistas, teria originado a literatura desses três
escritores, segundo ele, fundadores de uma nova forma de fazer
literatura na América hispânica. No entanto, ele faz questão de fixar
as diferenças entre seus objetivos e os princípios surrealistas: “jogo
outonal de uma literatura aparentemente esgotada” (Uslar Pietri, 1990,
p. 123.). O que se propunham a fazer era totalmente diferente: revelar,
descobrir, expressar, em toda a sua plenitude, essa realidade quase
desconhecida e quase alucinatória que era a América Latina, para
penetrar no mistério criativo da mestiçagem cultural.
Ele também marca a diferença entre essa nova forma de fazer
literatura, que chama de realismo mágico e a literatura fantástica
européia, que se enlaça com os contos fantásticos orientais. Trata-se
de um realismo peculiar no qual o elemento novo não é a imaginação,
mas a forma de representar a realidade, em que está o elemento
fantástico. O universo crioulo americano está impregnado de magia
no sentido do inusitado, do estranho.
Uslar Pietri encerra o artigo lembrando que esse mesmo
fenômeno literário seria batizado por Carpentier como realismo

398
maravilhoso. “Trata-se de um bom nome ainda que a magia nem
sempre esteja relacionada com as maravilhas e que na realidade
cotidiana há um elemento mágico que só é captado por alguns” (Uslar
Pietri, 1990, p. 126). Mais isso não tem importância, conclui ele, o
mais importante é o fato de que a partir dos anos 30, de uma forma
contínua, a literatura hispano-americana não tem feito outra coisa
senão expressar o sentido mágico de uma realidade peculiar.
O termo real maravilhoso ou realismo maravilhoso, com o qual o
realismo mágico, muitas vezes, se confunde e do qual é contemporâneo,
tem uma definição menos ambígua e um uso bem mais restrito.
Também em 1948, época em que se encontrava exilado na Venezuela,
Alejo Carpentier publica, nas páginas de El Nacional de Caracas, o
ensaio “Lo real maravilloso”, que no ano seguinte apareceria como
prólogo de seu romance El reino de este mundo. No ensaio, que acabaria
ficando mais famoso que o próprio romance que introduz, o escritor
cubano, que tinha freqüentado os círculos surrealistas de Paris,
juntamente com Uslar Pietri e Asturias, propõe o conceito de real
maravilhoso para explicar sua obra e a própria realidade americana.
A base desse raciocínio é a suposta existência de uma realidade
maravilhosa na América Latina, resultado da conjunção de uma
natureza exuberante e uma cultura mestiça, em cuja história ocorrem
fatos que podem parecer insólitos aos olhos do estrangeiro.
É claro que por trás dos conceitos de realismo maravilhoso de
Carpentier e de realismo mágico, usado por Uslar Pietri, embora eles
o neguem, está a noção de imaginação mágica dos surrealistas,
estritamente associada à manifestação do maravilhoso. Em seu feroz
combate ao racional, seguindo a vocação dos românticos e simbolistas,
os surrealistas procuram realizar uma revolução da linguagem poética
unida à transformação da vida. Para nomear o desconhecido,
transformando-o numa manifestação da linguagem, valem-se da magia,
vista quase como um sinônimo de poesia. Através dela, pode-se chegar
ao maravilhoso, cujo lugar predominante é a própria linguagem, que
tem a capacidade de criar universos alternativos, um “outro lugar”
que refuta, incessantemente, a realidade mais imediata. Ao negar a

399
realidade que os rodeia, muitos surrealistas, como o próprio Breton
ou Artaud, buscam na América esse lugar da inocência, numa espécie
de reatualização da própria Utopia. Da mesma forma, para poder
nomear o maravilhoso, o surrealismo teve que realizar uma revolução
poética na linguagem, tentando encontrar o valor emocional das
palavras e suas afinidades secretas em oposição à função básica da
linguagem como elemento de comunicação. Conforme aponta muito
bem Victor Bravo (1995, p. 26), é nesse contexto surrealista que se
localiza o germe, tanto do realismo mágico como do realismo
maravilhoso, que, seguindo o princípio das rupturas iniciáticas, muito
comum entre os surrealistas, faz com que Uslar Pietri, Asturias e
Carpentier se separem de seus gurus franceses, buscando estabelecer
um novo movimento que fosse, estritamente, americano em suas
matrizes.
Irlemar Chiampi (1980) afirma que a adoção, por parte de
Carpentier, do real maravilhoso como signo de nossa cultura, foi
motivada por sua dissidência com o surrealismo, mas as teses expostas,
no famoso prólogo de El reino de este mundo, revelam a dupla postura
de aceitação dos postulados surrealistas, os aspectos mágicos e
irracionais do real e de recusa dos mecanismos de busca da sobre-
realidade na literatura, defendida pelos franceses, na década de 20.
“É inútil reivindicar qualquer valor referencial para o real maravilhoso
americano”, continua Chiampi. “Seu valor metafórico, contudo,
oferece um teor cognitivo que bem pode ser tomado como ponto de
referência para indagar sobre o modo como a linguagem narrativa
tenta sustentar a identidade da América no contexto ocidental”
(Chiampi, 1980, p. 39).
A teoria do realismo maravilhoso foi aprimorada com o passar
do tempo, ao longo de várias décadas. Sua primeira versão aparece,
como já se disse, no prólogo de El reino de este mundo, em 1948. Mais
tarde, Carpentier retoma a questão em “De lo real maravilloso
americano”, incluído em seu livro de ensaios Tientos y diferencias,
publicado em 1964. Voltaria ao tema, uma vez mais, na conferência
“Lo barroco y lo real maravilloso”, proferida no Ateneo de Caracas,

400
em 1975. No texto inicial, Carpentier expõe a idéia básica: a existência
de uma realidade maravilhosa americana, que se opõe ao elemento
maravilhoso das literaturas européias, e, mais especificamente, ao
maravilhoso dos surrealistas, já que este conceito partiria da artimanha
literária e não da realidade em si. O texto termina com uma pergunta
que acabou tornando-se a divisa da teoria: “¿Pero qué es la historia de
América toda sino una crónica de lo real maravilloso?” (Carpentier,
1989, p. 12).
Ao voltar à questão, em 1964, o escritor retoma o texto original
de 1948, acrescentando-lhe uma parte na qual inclui dois elementos
novos: a idéia de realismo maravilhoso como uma forma de ser e pensar
acima de uma temporalidade específica, e a idéia de que se pode aplicar
o termo à obra de outros escritores hispano-americanos e não apenas
a si próprio.
No último texto sobre o tema, Carpentier tenta dar maior precisão
ao termo, associando-o ao insólito e ao assombroso. Volta a insistir nas
diferenças com o surrealismo e com o realismo mágico, ao mesmo
tempo em que estabelece uma estreita relação com o barroco. Ao tratar
das diferenças para com o realismo mágico, ignora as várias acepções
que o termo adquiriu no continente, aplicado à literatura latino-
americana, preferindo ater-se à primitiva noção contida no livro de
Roh.
É importante destacar a associação entre o real maravilhoso e o
barroco latino-americano que não deve ser visto apenas como um estilo
de época. Tomando o conceito de Eugenio D’Ors, Carpentier vê o
barroco como uma forma de ser, que pode ser encontrada em qualquer
época e está associado ao modo de ser do americano, derivado de sua
formação histórica mestiça. Para ele, a América sempre foi barroca,
com todas as suas mutações, simbioses, vibrações: mestiçagem, enfim.
A América além de ter criado um barroco cultural, guardaria, desde
suas ancestrais origens, uma espécie de barroco natural.
A essa forma barroca de ver o mundo estaria associado o real
maravilhoso latino-americano. Num primeiro momento, essa forma
de pensar é apresentada como algo específico da América Latina, mas

401
em seu segundo texto fica explícito que tal realidade maravilhosa não
é algo específico do continente americano, ao analisar outras culturas,
como a da Rússia, China e Oriente Médio sob esse ponto de vista. No
entanto, ele segue acreditando que haja uma especificidade americana,
ou seja, o real maravilhoso que subjaz em nossa realidade — física,
histórica e psicológica — constitui a base fundamental de nossa
identidade continental, nossa especificidade e diferenciação frente a
outros povos. A idéia não é exibir o realismo maravilhoso como melhor,
mas, simplesmente, como diferente, pela simples razão de que vem da
maior e mais complexa mestiçagem do mundo. A mestiçagem, conceito
caro a Carpentier, não se refere simplesmente à mistura de sangue,
mas, principalmente, de culturas. A América seria, enfim, uma grande
mistura de misturas: a cultura da Europa mediterrânea, já bastante
mestiça, se mescla com as culturas americanas, também fortemente
mestiças e com culturas africanas, talvez as menos misturadas, mas,
também, mestiças.
Analisando a presença do conceito do realismo maravilhoso no
pensamento de Alejo Carpentier, Alexis Márquez Rodríguez, grande
estudioso de sua obra, aponta, ainda, duas vinculações possíveis. A
primeira delas, decorrente da associação com a forma de ser barroca,
é a concepção de tempo, muito associada ao tempo cíclico primitivo
ou ao tempo mítico, num claro esforço de negar o tempo progressivo
da cultura ocidental. É uma constante em sua obra a coexistência entre
vários tempos numa mesma época ou a utilização de metáforas como
o caramujo ou o labirinto, normalmente associadas à temporalidade.
Em boa parte de suas obras o tema tempo associa-se à estética barroca.
O outro aspecto é uma certa relação inevitável com a condição de
subdesenvolvimento vivida pela América Latina, já que muitas das
formas do realismo maravilhoso são decorrentes desse
subdesenvolvimento. Se o real maravilhoso é uma forma de ser de
nossa realidade e essa realidade é subdesenvolvida, logo há que se fazer
tal associação. Não se pode, no entanto, dizer que isso seja conseqüência
do subdesenvolvimento.

402
De forma análoga à de Uslar Pietri, que reúne em bloco a
produção literária hispano-americana de quase meio século sob a
denominação genérica de realismo mágico, Irlemar Chiampi também
prefere usar um termo único. No entanto, abdica da expressão
realismo mágico, segundo ela própria, “de uso corrente na crítica
hispano-americana” (Chiampi, 1980, p. 43), optando pelo termo
inventado por Carpentier. Justifica sua opção pelo “desejo de situar o
problema no âmbito específico da investigação literária”. Segundo ela,
o termo maravilhoso está mais associado à tradição cultural, prestando-
se à relação estrutural com outros tipos de discurso, como o fantástico
ou o realista. O termo mágico, ao contrário, tomado de outro campo
cultural, ao ser acoplado com realismo implica uma ambigüidade
teórica, ora de ordem fenomenológica (a atitude do narrador), ora de
ordem de conteúdo (a magia como tema).
As vantagens da utilização do termo maravilhoso acoplado ao
realismo para designar a nova literatura hispano-americana são de
ordem lexical, poética e histórica, segundo Chiampi (1980, p. 48). A
primeira delas está na definição lexical da palavra, associada ao mesmo
tempo com “o extraordinário”, o “insólito”, e com o que escapa ao
curso ordinário das coisas e do humano. Na raiz da mirabilia latina
está o mirar, olhar com atenção, olhar através, também presente na
origem das palavras milagre e miragem, ambas usadas em oposição ao
natural. “O maravilhoso recobre, nesta acepção, uma diferença não
qualitativa com o humano; é um grau exagerado ou inabitual do
humano, uma dimensão de beleza, de força ou riqueza, em suma, de
perfeição que pode ser mirada pelos homens” (Chiampi, 1980, p. 48).
Na segunda acepção, o maravilhoso difere do que é humano:
refere-se àquilo que é produzido pela intervenção dos seres naturais.
As duas acepções são importantes para a compreensão das
manifestações do maravilhoso no romance hispano-americano. Em
algumas obras, os acontecimentos ou personagens são simplesmente
extraordinários (primeira acepção). Em outras há o maravilhoso
sobrenatural (segunda acepção).

403
A segunda vantagem do termo maravilhoso seria sua presença
na literatura, poética e história literária, na tradição ocidental, desde
os gregos, passando pelas narrativas orais do oriente e pelas gestas
medievais, pelo romantismo e pelo simbolismo. Por fim, há a associação
da maravilha à própria história da América. A perplexidade do
europeu em designar uma realidade, que resistia aos padrões
racionalistas da cultura européia, fez com que cronistas, viajantes,
historiadores, não apenas escritores, se valessem do maravilhoso para
designar essa nova realidade.
Chiampi, enfim, propõe uma teoria do realismo maravilhoso que,
analisando suas relações pragmáticas e semânticas e formas discursivas,
define-o, não apenas como “um movimento literário ou escola, de um
dado momento das letras hispano-americana, mas como um tipo de
discurso que permite determinar as coordenadas de uma cultura, de
uma sociedade, de uma linguagem hispano-americana”, como muito
bem o sintetiza Emir Rodríguez Monegal (1980, p. 13) na apresentação
que faz do livro. Sua visão do realismo maravilhoso, em suma, constitui-
se numa “tipologia do discurso narrativo do nosso universo cultural
que pode ser aplicado a outros discursos de outras épocas dentro da
nossa história literária” (Rodríguez Monegal, 1980, p. 14), bem de
acordo com os princípios que Alejo Carpentier defendia em seus
escritos.
No entanto, alguns críticos preferem estabelecer diferenças entre
os termos realismo mágico e real maravilhoso. Para o crítico
venezuelano Alexis Márquez Rodríguez (1992), o que Uslar Pietri
define como realismo mágico é apenas uma criação estética, uma obra
humana que, partindo de uma realidade, mediante um tratamento
adequado, converte-se em insólita ou mágica. Os recursos utilizados
são variados, sendo os mais comuns o exagero e a hipérbole, como em
Gabriel García Márquez, por exemplo, ou a deformação da realidade
até chegar ao grotesco, como em algumas obras de Carlos Fuentes.
Trata-se, no entanto, de uma maravilha criada pelo homem, como ele
também cria ou inventa a magia e o fantástico. O realismo mágico
seria, então, essa magia inventada ou criada pelo artista a partir de

404
uma realidade concreta, a qual deforma-se intencionalmente com fins
estéticos. É claro que, se essa realidade é de per si maravilhosa ou insólita,
facilita essa deformação intencional. O artista pode, porém, partindo
de uma realidade comum e normal, transformá-la esteticamente em
mágica.
Já o real maravilhoso, como propõe Carpentier, não é o resultado
da criação do artista através de determinado procedimento formal,
pois ele já está ali. Assim, Márquez Rodríguez (1992, p. 78) sustenta
que o realismo mágico é um conceito estético que alude a um
procedimento para criar a obra de arte, ao passo que o real maravilhoso
é um conceito ontológico, na medida em que se refere a um modo de
ser de uma determinada realidade. Assim sendo, retorna-se à
ambigüidade original do termo: o problema estético é de dupla
natureza, de percepção e de expressão. O primeiro está associado à
capacidade de perceber o maravilhoso, que só existe em quem possui
condições para isso. Se não se possui esta capacidade básica, o real
maravilhoso poderá passar ante nós sem que o percebamos, ou seja,
sem que o captemos como maravilhoso. Uma vez captada tal realidade,
se requer, também, uma capacidade especial para expressá-la, o que
exige o domínio ou a invenção de uma linguagem própria, um estilo
que esteja de acordo com os traços daquela realidade maravilhosa,
que, uma vez percebida, deve-se expressar. O personagem José Arcadio
Buendía, de Cem anos de solidão, por exemplo, é um personagem insólito,
irreal, na medida em que é real-mágico, pela construção de García
Márquez. Ao contrário, o que faz insólitos Mackandal ou Henri
Chistophe, de El reino de este mundo, não é produto ou invenção de
Alejo Carpentier, já que este apenas coloca sua habilidade narrativa
para descobrir tais personagens e reconstruir suas vidas, mediante
uma técnica e um estilo que expressem fielmente uma realidade
intrinsecamente maravilhosa (Márquez Rodríguez, 1992, p. 80).
Nessa mesma direção, caminha o pensamento de Seymour
Menton que vem estudando o realismo mágico há várias décadas, tendo
publicado dois livros e mais de uma dezena de artigos. Em seu último
livro sobre a questão, Historia verdadera del realismo mágico (1999),

405
recolhe uma série de artigos editados nas últimas duas décadas e
apresenta uma interessante cronologia de sua utilização, desde a
primeira vez que aparece, provavelmente, em 1923, até 1995.
Interessado em marcar as diferenças entre realismo mágico e realismo
maravilhoso, retoma a acepção original de Roh, dedicando-se a traçar
sua trajetória, principalmente, nas artes plásticas e fora do contexto
das literaturas latino-americanas. Ao contrário de Carpentier, que
entende o realismo maravilhoso como uma forma de ver o mundo,
presente em vários lugares ao longo da história, Menton (1999, p. 20-
21) procura ver o realismo mágico como um desses “estilos fáceis de
identificar e presentes em várias formas das artes, dentro de um período
histórico com limites mais ou menos precisos, como o barroco, o
romantismo, o realismo ou o surrealismo”.
Na literatura, Menton (1999, p. 30) procura estabelecer, de forma
bastante simples, às vezes simplista, os limites do realismo mágico,
não apenas com relação ao realismo maravilhoso, mas, também, com
relação ao fantástico. Para ele, quando os acontecimentos ou
personagens violam as leis físicas do universo, a obra deveria ser
classificada como fantástica. Quando tais elementos fantásticos têm
uma base folclórica associada ao mundo subdesenvolvido, com
predomínio das culturas indígena ou africana, seria mais apropriado
usar o realismo maravilhoso. O realismo mágico, por sua vez, em
qualquer país do mundo destaca os elementos improváveis,
inesperados, assombrosos, embora possam pertencer ao mundo real.
Já na relação com o surrealismo, Menton (1999, p. 38) também
simplifica: o surrealismo baseia-se na interpretação freudiana dos
sonhos e no mundo subconsciente de cada indivíduo, ao passo que o
realismo mágico prefere o inconsciente coletivo junguiano, idéia
oriunda das teorias arquetípicas, segundo as quais todas as épocas se
fundem num determinado momento do presente, e que a realidade
em si tem certos traços que a identificam com o mundo dos sonhos.
Embora muitos críticos costumem classificar a obra de Borges
como fantástica, Menton acredita que seria mais acertado incluir na
categoria de realismo mágico boa parte dela, já que fantásticos seriam

406
apenas aqueles contos mais próximos do ensaio, como “Pierre Menard,
o autor do Quixote”, por exemplo. Seu livro traz um interessante
ensaio em que analisa com primor diversos contos do escritor argen-
tino dentro dos princípios do realismo mágico. Em outro capítulo,
analisa o clássico Cem anos de solidão, apontando uma série de caracte-
rísticas do realismo mágico.
O mais interessante desse livro, em seu afã de não circunscrever
o realismo mágico a uma categoria estritamente latino-americana, é a
análise de uma série de textos que extrapolam a literatura hispano-
americana. Assim, Menton analisa obras do suiço André Schwarz-Bart;
do italiano Dino Buzzati; do brasileiro José J. Veiga; do romeno-isra-
elense Aharon Appelfeld; dos norte-americanos Truman Capote,
Robert Nathan e Toni Morrison; do haitiano Jacques Stéphen Alexis;
das caribenhas (de Guadalupe) Simone Schwarz-Bart e Maryse Condé;
e das norte-americanas de origem latina, Ana Castillo e Cristina García.
De uma forma ou de outra, porém, estas obras são lidas em compara-
ção com o contexto hispano-americano, em suas relações ou com o
realismo mágico de García Márquez, Borges e Cortázar ou com o real
maravilhoso caribenho de Alejo Carpentier.
Alejo Carpentier, no prefácio a El reino de este mundo, revela que
sua teoria do realismo maravilhoso nasce de seu contato com o Haiti,
em cuja história se inspira o próprio romance. “Tudo isso ficou parti-
cularmente evidente durante minha permanência no Haiti, quando
vivi em contato diário com aquilo que poderíamos chamar de Realida-
de Maravilhosa” (Carpentier, 1985). A partir desta descoberta no Haiti,
ele vai estender a aplicação do conceito — de forma talvez um pouco
abusiva —, a toda a América. A fonte inspiradora do realismo maravi-
lhoso é, como se sabe, o vodu, que engendra um manancial de ele-
mentos mágicos que se integram ao quotidiano dos haitianos.
Mackandal, o legendário personagem da revolução haitiana (que apa-
rece no romance de Carpentier), morto na fogueira pelos franceses,
renasce das cinzas, qual uma Fênix negra, tornando-se uma das enti-
dades do vodu, invocadas nas cerimônias.

407
O autor cubano, que tinha rompido com o grupo surrealista de
André Breton, estabelece um paralelo entre Mackandal (personagem
histórico) e Maldoror (personagem fictício) da obra Les chants de
Maldoror, de Isidore Ducasse, Comte de Lautréamont. Ambos os
personagens têm poderes licantrópicos, ou seja, a capacidade de se
transformar em diferentes animais, desaparecendo subitamente e
reaparecendo em outros lugares, sob outras formas. Entretanto, o
que era ficção na Europa torna-se realidade na América. Carpentier,
que zombava do culto de Breton por Lautréamont, quando da famosa
disputa que culminou com o manifesto Un cadavre (1930), e a
inauguração de uma boate gay chamada, provocativamente, Maldoror,
ao escrever o prefácio mais de 15 anos depois, muda um pouco de
posição, reivindicando o fato de Lautréamont haver nascido em
Montevidéu, ou seja, transforma sua identidade, (re)integrando-o ao
continente americano.
Inspirada no Haiti, a teoria do realismo maravilhoso de
Carpentier encontrará ecos entre os escritores haitianos daquela
geração. Em 1956, Jacques Stéphen Alexis apresenta o texto
“Prolegômenos a um manifesto do realismo maravilhoso dos haitianos”
no Primeiro Congresso dos Escritores Negros. Neste contexto de
produção e apresentação, o realismo maravilhoso haitiano de Alexis
terá um forte conteúdo “negro”, em oposição ao racionalismo ocidental
(branco).

Esta arte não recua diante do disforme, do chocante, do


contraste violento, diante da antítese enquanto meio de
emoção e de investigação estética e, resultado admirável,
ela chega a um novo equilíbrio, mais contrastante, a
uma composição tão harmoniosa em seu contraditório, a
uma graça interior, nascida do singular e do antitético
(Alexis, 1956, p. 263).

A arte que ele propõe, profundamente realista, é também “ligada


ao mito, ao símbolo, ao estilizado, ao heráldico e até ao hierático”, ou
seja, o autor tenta demonstrar que não há exclusão entre elementos

408
contraditórios. Como exemplos tirados da vida real, o autor cita cenas
do vodu: a pessoa em transe é capaz de pegar em ferro quente, andar
sobre brasas, comer vidro. Tais fatos seriam o legado de tradições
africanas ancestrais que o haitiano recebeu e que a ciência ainda deverá
esclarecer um dia. Assim, o realismo maravilhoso, intimamente ligado
ao mundo mágico do vodu e às suas práticas, vai aparecer nas próprias
obras de Alexis como nos romances Compère Général Soleil (1955), Les
arbres musiciens (1957), L’espace d’un cillement (1959) e no livro de contos
Romancero aux étoiles (1960).
René Depestre, que revela ter assistido à conferência de
Carpentier em Port-au-Prince em 1942, na qual ele fez “um ardente
devaneio sobre a magnificência desolada” das ruínas do palácio Sans
Souci e da cidadela La Ferrière, segue a sua linha teórica de reflexão.
O maravilhoso, entendido como tudo o que se afasta da ordem natural
das coisas, está impregnado na vida dos haitianos. Haveria poucos
povos que avançaram com tanta audácia nesta via quanto eles, na
medida em que o sentido do maravilhoso seria uma das componentes
históricas da consciência e da sensibilidade do povo haitiano. O autor
assim define o real maravilhoso:

Ele comporta correntes que se interpenetram e se recor-


tam entre elas no natural e no sobrenatural, no picares-
co, no erótico, no inefável, no absurdo, no burlesco, no
mágico e no feérico. Sua impressão marcou organica-
mente a religião e os mistérios políticos da sociedade, as
aventuras orais do folclore e a literatura escrita em fran-
cês ou em crioulo, os encantamentos do amor e da dan-
ça, a música e, com uma magnificência estelar, as artes
plásticas (Depestre, 1980, p. 237).

O oxímoro emblemático do realismo maravilhoso haitiano pode


ser representado pelo mito do zumbi, o morto-vivo, largamente
tematizado pelos escritores, inclusive da diáspora, que vivem
atualmente na França, no Canadá ou nos Estados Unidos. O aspecto
mais descrito é o processo de zumbificação, no qual a pessoa, após

409
tomar uma espécie de veneno, dado por um pai de santo, fica
aparentemente morta (catalepsia) e é enterrada. Retirada durante a
noite, ela fica a serviço do pai de santo (ou de quem encomendou o
trabalho), alimentada sempre com comida sem sal, para continuar
desprovida de vontade. Estas figuras têm um conteúdo político muito
forte, já que metaforizam a situação dos haitianos durante as ditaduras
de François Duvalier (1957-1971) e de seu filho, Jean-Claude Duvalier
(1971-1986), trinta anos de terror em que morreram 30.000 pessoas,
e um milhão de haitianos se exilaram. A violência muitas vezes
exacerbada que aparece na obra de alguns autores, como Gérard
Etienne, se exprime através de imagens que remetem, segundo o crítico
Régis Antoine, às figuras zoomórficas que povoam a obra de
Lautréamont.
Alguns autores, a começar de Jacques Roumain e Jacques
Stéphen Alexis, conciliaram marxismo com vodu, criando o que Régis
Antoine chama de “realismo ao mesmo tempo socialista e maravilhoso”
(Antoine, 1992, p. 140). Depestre, que no romance Le mât de cocagne
(1979) passa do burlesco ao patético, sempre ancorando o realismo
maravilhoso no vodu, afirma, numa entrevista, que não via contradição
entre marxismo e vodu pois, apesar de ser materialista, acredita que
“toda a consciência do povo haitiano se manifesta através de uma
mediação religiosa”, assim sendo “não se pode se contentar em dizer
que não é científico” (Depestre, 1983, p. 121).
Outro mito muito presente na literatura do Caribe francófono é
o da licantropia, assinalado por Carpentier no caso de Mackandal.
Feiticeiros que se despojam de sua pele humana, transformando-se
em animais, sobretudo em pássaros, à noite, são recorrentes em autores
como o próprio Alexis, ou em outros escritores contemporâneos. Esta
possibilidade, assim como outras, tais como conhecer o mundo dos
mortos, escapa à lógica ocidental, não está prevista nos livros, como
observa um personagem do romance Pays sans chapeau, de Dany
Laferrière, ao escarnecer da lógica ocidental, que não tomou
conhecimento das histórias dos deuses do vodu.

410
Como a literatura do Caribe é profundamente enraizada no
folclore, alguns elementos utilizados se originam dos contos
maravilhosos, como é o caso da história do romance Ti Jean L’horizon,
de Simone Schwarz-Bart, no qual um monstro engole o sol, deixando
o país às escuras. Todo o tratamento dado ao assunto tem a marca dos
contos folclóricos, com provas, provações, rituais iniciáticos, armas
mágicas, que ganham, entretanto, outra roupagem no contexto de
um romance. Temas como o erotismo, a sensualidade, os jogos, os
costumes populares, também são, freqüentemente, inspirados em
práticas mágicas ou superstições, criando um universo bem
característico do mundo maravilhoso.
Para concluir esse painel, vale a pena comentar um artigo bastante
característico dessa tendência em universalizar o uso do termo. No
artigo “Magic realism: a typology”, de 1993, William Spindler tenta
estabelecer uma tipologia para o realismo mágico, partindo de um
rápido histórico do termo e de suas duas acepções. A acepção original
se refere a um tipo de obra literária ou artística, que apresenta a
realidade a partir de uma perspectiva incomum, sem transcender os
limites do natural, mas que induz o leitor a um senso de irrealidade. A
acepção mais comum atualmente, no entanto, refere-se a obras em
que duas visões contrastantes de mundo, uma mágica e outra racional,
apresentam-se como se não fossem contraditórias, usando, para isso,
elementos míticos e crenças de grupos étnico-culturais para os quais
tal contradição não se manifesta.
Na primeira acepção estaria a definição proposta, originalmente,
por Roh e mantida por críticos como Leal, Anderson Imbert e
Menton, que vêem o realismo mágico como um estilo que apresenta o
natural e o comum como sobrenaturais, através de uma estrutura que
exclui esse elemento sobrenatural como interpretação válida. A
segunda acepção, sem dúvida a mais usada pela crítica latino-americana
atual, praticamente substituiu a primeira, coincidindo quase por
completo com o realismo maravilhoso de Carpentier. Boa parte da
crítica usa realismo mágico quase como sinônimo de realismo
maravilhoso, e inclui na categoria uma variável gama de escritores
não apenas latino-americanos.

411
Considerando a confusão causada pelo uso indiscriminado desses
termos, Spindler tenta simplificar uma situação complicada desde suas
origens, sugerindo três modalidade de realismo mágico:
I - Realismo mágico metafísico. Corresponderia à definição
original do termo, sendo mais apropriadamente aplicado à pintura,
mas que também poderia deslocar-se à literatura e estaria baseado em
perspectivas deslocadas e ângulos incomuns para induzir a um efeito
de irrealidade, sem lidar, no entanto, diretamente com o sobrenatural.
Nessa categoria estariam, entre outras, por mais paradoxal que possa
parecer, obras de Buzzati, Borges, Henry James ou Camus.
II - Realismo mágico antropológico. Nesse tipo de realismo
mágico, o narrador normalmente tem duas vozes. Em alguns
momentos usa o ponto de vista racional e em outras prefere o enfoque
da magia, no qual aparecem referentes míticos e histórico-culturais
de um determinado grupo étnico ou social, como os maias de Asturias,
as comunidades rurais do México e da Colômbia, em Rulfo e García
Márquez ou a Índia de Salman Rushdie. A palavra mágico, nesse caso,
é tomada no sentido antropológico. Essa é a definição mais atual e
específica de realismo mágico, estando fortemente associada à literatura
latino-americana, e aproximando bastante do realismo maravilhoso
de Carpentier.
III - Realismo mágico ontológico. Diferente da acepção anterior,
nesse caso a antinomia básica se resolve sem recorrer a nenhuma
perspectiva cultural em particular. O sobrenatural apresenta-se de
forma realista como se não contradissesse a razão e não se oferecem
explicações para os acontecimentos irreais da obra. Não há referência
à imaginação mítica de sociedades pré-industriais, pois o autor, não
preocupado com o leitor, exerce a plena liberdade de criação. O mágico
refere-se a ocorrências inexplicáveis, prodigiosas ou fantásticas, que
contradizem as leis do mundo natural, não havendo explicações
convincentes no texto para sua presença. Diferencia-se do fantástico
pelo fato de o narrador não se apresentar alterado, intrigado ou
perturbado diante dessa realidade. Nessa categoria entrariam obras
de Kafka, Cortázar, Gógol ou, até mesmo, alguns contos de Carpentier,
como por exemplo, “Viaje a la semilla”.

412
Como se pode ver, o realismo mágico é um rótulo que vem sendo
aplicado a um grande número de obras de arte e literatura,
especialmente, da literatura latino-americana, há várias décadas.
Parece, no entanto, que aqueles que o utilizam têm em mente conceitos
variados que nem sempre são compatíveis entre si. Trata-se de uma
marca evidente do desejo da crítica, ou mesmo do público em geral,
em entender e/ou explicar um fenômeno literário, inicialmente
circunscrito à complexa e multifacetada realidade latino-americana.
A raiz das confusões causadas por seus variados matizes parece estar
no desejo da crítica em homogeneizar uma produção artística, que
em sua origem é heterogênea. Passado, também, ao que parece, o desejo
homogeneizador que tem suas raízes na utopia de uma grande
América, a tendência é que tais conceitos adquiram outros matizes,
mais condizentes com a multiplicidade dessa realidade cultural.

Referências Bibliográficas
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CARPENTIER, A. “Prólogo”. El reino de este mundo. La Habana, Letras Cubanas, 1989.
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________ . Tientos y diferencias. Montevideo. Arca, 1967.
DEPESTRE, R. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980.
__________. Entretien avec René Depestre par Maximilien Laroche et Euridice
Figueiredo. Dialogues et cultures. n. 25, Québec. p. 112-129, août 1983.
CHIAMPI, I. O real maravilhoso. São Paulo, Perspectiva, 1980.
JOSEF, B. A máscara e o enigma. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1986.
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MENTON, S. Historia verdadera del realismo mágico. 1. reimp. México, FCE, 1999.
PADURA, L. Lo real maravilloso: creación y realidad. La Habana, Letras Cubanas, 1989.

413
RODRÍGUEZ MONEGAL, E. Apresentação. In CHIAMPI, I. O real maravilhoso. São
Paulo, Perspectiva, 1980.
SPINDLER, W. Magic realism: a typology. Forum for modern languages studies,
Oxford, 1993, v. 35, p. 75-85.
USLAR PIETRI, A. Realismo mágico. Cuarenta ensayos. Caracas, Monte Ávila, 1990.
REGIONALISMO

Dilma Castelo Branco Diniz


Universidade Federal de Minas Gerais
Haydée Ribeiro Coelho
Universidade Federal de Minas Gerais

Tratar do regionalismo hoje implica revisitar posições cristalizadas e


contemporâneas, refletir sobre o regionalismo e a globalização e destacar
suas diferentes perspectivas, tais como a política, a antropológica e a
literária, que estabelecem um relacionamento entre si.
Norberto Bobbio concebe o regionalismo como “tendência política
dos que são favoráveis às autonomias regionais” (Bobbio et alii, 1986,
p. 1084), enquanto João Pedro Galvão de Sousa fala de “uma tendência
de apegamento às coisas de determinada região de um país,
valorizando-lhe certas peculiaridades culturais, históricas, políticas e
geográficas” (Sousa et alii, 1998, p. 459).
Contemporaneamente, a respeito do regionalismo literário
brasileiro, Lígia Chiappini de Moraes Leite fez um longo estudo,
atentando para o desafio imposto: “delinear as principais questões
críticas, históricas e teóricas, sem deixar de fornecer as informações
mínimas necessárias e sem cair numa listagem exaustiva de normas,
datas, obras” (Leite, 1994, p. 668). Nesse estudo, a autora aborda os
seguintes aspectos: o contraponto entre o regionalismo e o
modernismo, situado no contexto de “uma problemática mais geral
da cultura, da política e da organização da sociedade como um todo”
(Leite, 1994, p. 669); o regionalismo e o sertanismo; a explicitação
das razões históricas do fortalecimento do regionalismo no Norte e
no Sul do país, através de exemplificação com diversos autores; o
regionalismo no pré-modernismo e o enfoque do regionalismo no
conto, durante o pré-modernismo. Em relação a esse último aspecto,
a autora cita o problema que Antonio Candido identifica no
regionalismo brasileiro, que oscila entre o fato de ser potencialmente
“instrumento de descoberta e autoconsciência do país” ou “ideologia
que mascara as condições de dominação do homem pobre no campo”,
e enfoca, em seguida, a obra de alguns contistas do regionalismo
brasileiro (Leite, 1994, p. 684).
A ensaísta mostra como o regionalismo não constitui uma
categoria ultrapassada, o que a leva a colocar a seguinte questão: “até
que ponto a manutenção de nossas desigualdades econômicas e sociais
dá margem a uma produção enformada por essa luta?” (Leite, 1994,
p. 700).
Para compor uma perspectiva mais detalhada sobre o
regionalismo, a remissão a outros textos de críticos brasileiros torna-
se necessária. Como tivemos em nosso país a unidade política
preservada, costuma-se esquecer a diversidade que dirigiu a formação
e o desenvolvimento de nossa cultura. Na realidade, a colonização do
Brasil se deu em núcleos separados e praticamente isolados entre si: o
desenvolvimento econômico e a evolução social foram, assim, bastante
heterogêneos, consideradas as diferentes regiões. Ao tratar desse
assunto, Antonio Candido cita o historiador Alfredo Ellis Jr. que
defende a idéia de que houve não uma, mas várias “Colônias
portuguesas” na América. O referido crítico, ainda, afirma que Viana
Moog, trazendo essa idéia para o terreno literário, procurou
interpretar a nossa literatura em função do que chamou “ilhas de
cultura mais ou menos autônomas e diferenciadas”, caracterizadas,
cada uma, pelo seu genius loci particular. Para Antonio Candido, o
caso do Nordeste é um comprovante dessa “idéia engenhosa e em
parte verdadeira”. Trata-se de uma região que se destaca na geografia,
na história e na cultura brasileiras com impressionante autonomia e
nitidez. Dessa autonomia surgiu um sentimento regionalista que
encontra expressão típica na Confederação do Equador, tentativa, à
maneira da República de Piratini, de dar expressão política à referida

416
diversidade e que, se falhou no âmbito político, persistiu no plano
intelectual. A literatura e a oratória tornaram-se a forma preferencial
daquela região de exprimir a sua consciência e de dar estilo à sua
cultura intelectual, que antecedeu, e por muito tempo superou, a do
resto do país (Candido, 1981, v. 2, p. 298).
Baseando-se em George Stewart, Afrânio Coutinho define o
regionalismo de duas maneiras. Em primeiro lugar, num sentido largo
“toda obra de arte é regional quando tem por pano de fundo alguma
região particular ou parece germinar intimamente desse fundo”. Num
sentido mais estreito, para ser regional, “uma obra de arte não somente
tem que ser localizada numa região senão também deve retirar sua
substância real desse local”. Afrânio Coutinho especifica ainda mais
esse sentido estreito do regionalismo, ao declarar que essa “substância”
local decorre primeiramente do seu fundo natural – clima, topografia,
flora, fauna, etc. –, como elementos que influem sobre a vida humana
da região; e, em segundo lugar, é proveniente das “maneiras peculiares
da sociedade humana estabelecida naquela região e que a fizeram
distinta de qualquer outra” (Coutinho, 1969, p. 220). O referido crítico,
ainda, afirma que o sentido autêntico do regionalismo seria o
equivalente a esse último.
Ao sustentar que o regionalismo literário precisa ser bem
compreendido, se se quer usá-lo com propriedade, José Maurício
Gomes de Almeida define, assim, o regionalismo: já que a região implica
uma parte dentro de um todo – o país como tal – a “arte regionalista
stricto sensu seria aquela que buscaria enfatizar os elementos diferenciais
que caracterizariam uma região em oposição às demais ou à totalidade
nacional” (Almeida, 1981, p. 47).
Com essa definição, Gomes de Almeida assinala que o
regionalismo, de certa forma, se inclui no movimento nacionalista,
podendo-se inferir, ainda, que todo posicionamento regionalista, seja
no campo artístico-cultural ou político-social, reflete uma consciência
orgulhosa dos valores locais, e uma vontade de vê-los afirmados e
reconhecidos no âmbito nacional. Na literatura brasileira, essa atitude
já aparece claramente em Franklin Távora, com sua “literatura do

417
norte” e, mais tarde, de forma mais coerente e embasada ideologi-
camente, no movimento regionalista nordestino dos anos vinte.
Verifica-se, pois, que as regiões que apresentam uma fisionomia
cultural mais bem definida e diferenciada são exatamente aquelas que
suscitam a consciência regionalista num nível mais profundo e
coerente. No Brasil, essas regiões seriam o Nordeste e o Rio Grande
do Sul. Afrânio Coutinho afirma, entretanto, que o essencial nessa
literatura regional é que não se põe em xeque a unidade do país, o
lastro comum de origem portuguesa, que aqui se amalgamou com as
contribuições indígena e negra, e, mais tarde, com muitas outras
influências estrangeiras: “O regionalismo é um conjunto de retalhos
que arma o todo nacional” (Coutinho, 1969, p. 222).
O referido crítico sustenta, também, que não interessa ao estudo
literário a divisão regional geográfica (baseada no critério das regiões
naturais). O que importa, realmente, são as regiões culturais marcadas
pela importância que tiveram como focos regionais de produção
literária, embora haja muita semelhança entre essas duas divisões. As
regiões culturais ou literárias constituem outros tantos ciclos de
literatura regional, da seguinte forma: Ciclo nortista, Ciclo nordestino,
Ciclo baiano, Ciclo central, Ciclo paulista e Ciclo gaúcho. A esses se
juntaria uma espécie de subciclo, constituído pelo Rio de Janeiro e
zona suburbana, que é uma verdadeira pequena província literária
(Coutinho, 1969, p. 222).
A semelhança entre região cultural ou literária pode ser
encontrada em O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, de
Darcy Ribeiro. Nesse livro, o autor, ao abordar o tema da mestiçagem,
apresenta a diversidade cultural através dos vários brasis, focalizados
nos capítulos: “O Brasil crioulo”; “O Brasil caboclo”; “O Brasil
sertanejo”; “O Brasil caipira” e “Brasis sulinos” (Ribeiro, 1995).
Mantendo o diálogo entre Antropologia e Literatura, confirma uma
de suas observações: “as criações literárias nos dão, na forma de
romances, amplos painéis das condições de existência do povo e
profundas percepções do espírito brasileiro, incomparavelmente
melhores e mais agudas que toda produção científica e ensaística”
(Ribeiro, 1985, p. 14).

418
No contexto do regionalismo, o sertanismo é de fundamental
importância. Alguns críticos, como Nelson Werneck Sodré (Sodré,
1976, p. 403), costumam ver no sertanismo uma forma romântica
precursora do regionalismo realista. Gomes de Almeida discorda dessa
atitude e afirma que “sertanismo e regionalismo não são etapas
cronológica e estilisticamente sucessivas, mas problemas de natureza
diversa, em que pese o muito que entretenham em comum” (Almeida,
1981, p. 46). Como o sertanismo refere-se a sertão, convém partir de
um exame cuidadoso dessa palavra. O sertão designa, de um modo
geral, em todo o Brasil, as regiões interioranas, de população
relativamente escassa, onde vigoram costumes e padrões culturais
ainda rústicos. No caso do Nordeste, a palavra possui configuração
semântico-sociológica ainda mais definida: significa a zona rural, em
geral, semi-árida do interior, sujeita às secas periódicas e caracterizada
pelo predomínio da pecuária extensiva, em contraste com a faixa
litorânea, dominada pelo cultivo da cana e pelo complexo cultural
dela derivado.
Dessa maneira, tanto se pode falar de sertanismo a propósito de
obras românticas do tipo de O sertanejo (1876), de José de Alencar, e
de Inocência (1872), de Alfredo Taunay, como de criações posteriores:
Dona Guidinha do poço (1899), de Manuel de Oliveira Paiva, Pelo sertão
(1898), de Afonso Arinos, Os sertões (1902), de Euclides da Cunha,
Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos, Grande sertão: veredas (1956),
de Guimarães Rosa (para citar apenas alguns exemplos). Por outro
lado, o simples fato de O tronco do ipê (1871) e Til (1872), ambos de
José de Alencar, serem considerados romances românticos que
transcorrem no meio rural não faz deles obras sertanistas. “Nem é
sertanista toda a ficção rural, nem o sertanismo é monopólio
romântico” (Almeida, 1981, p. 47).
Alfredo Bosi parece considerar o sertanismo como um dos filões
do regionalismo de José de Alencar. Ele afirma que as “várias formas
de sertanismo (romântico, naturalista, acadêmico e, até, modernista)”,
que têm surgido em nossas letras, desde meados do século XIX,
nasceram do contato de uma cultura letrada e urbana com a “matéria

419
bruta do Brasil rural, provinciano e arcaico”. E como o escritor não
pode fazer folclore puro, limita-se a projetar os próprios interesses
ou frustrações na sua viagem literária pelo campo. Dessa experiência,
“resulta quase sempre uma prosa híbrida, onde não alcançam o ponto
de fusão artístico o espelhamento da vida agreste e os modelos
ideológicos e estéticos do prosador” (Bosi, 1970, p.155). Para desfazer
essa armadilha, restam alternativas extremas: o puro registro da fala
regional ou a pesquisa dos princípios formais que regem a expressão
da vida rústica, para com eles elaborar códigos novos de comunicação
com o leitor culto. Do primeiro caso, Alfredo Bosi cita, como exemplos,
certos trechos de Inocência, de Taunay e outros, de contos dos pós-
românticos do início do século XX: o paulista Valdomiro Silveira e o
gaúcho Simões Lopes Neto. Do segundo caso, destaca a invenção
revolucionária de Guimarães Rosa, que conseguiu “universalizar
mensagens e formas de pensar do sertanejo através de uma sondagem
no âmbito dos significantes” (Bosi, 1970, p.156).
A importância regional cresce no Brasil a partir do Romantismo,
quando a consciência nacional desperta para a independência política
e cultural. Muitos críticos salientam, entretanto, que há uma diferença
essencial entre o regionalismo tal como era visto pelos românticos e o
regionalismo que foi posto em prática pela geração realista.
Afrânio Coutinho, por exemplo, afirma que o regionalismo
romântico é “uma forma de escape do presente para o passado”, um
passado idealizado, que usa do artifício da transposição de um desejo
de compensação. Esse tipo de regionalismo apresenta uma
“contradição ao supervalorizar o pitoresco e a cor local do tipo, ao
mesmo tempo que procura encobri-lo”, atribuindo-lhe qualidades,
sentimentos e valores que não lhe são próprios, mas pertencem à
cultura que se lhe sobrepõe. Já se observou que o índio de Alencar era
um europeu de tanga e tacape (Coutinho, 1969, p. 219). Afrânio
Coutinho, ainda, sustenta que o Realismo prosseguiu na marcha
introspectiva proveniente do romantismo, mergulhando na vida
nacional, à procura da compreensão de seus valores e de suas tensões.
Mas, ao mesmo tempo em que buscava fontes de inspiração, o

420
regionalismo realista desviou-se do saudosismo e escapismo
românticos, para considerar a existência contemporânea, seus
problemas e contradições. Foi com o Realismo que se tomou
conhecimento de que a cultura regional, conforme acentua B. A.
Bodkin, pode oferecer à literatura “um assunto”, “uma técnica”, e
“um ponto de vista” (Bodkin apud Coutinho, 1969, p. 220). Dessa
maneira, os escritores realistas puderam encontrar ao seu alcance uma
ampla fonte de assuntos, sugestões, linguagem, tipos humanos e formas
de conflito social e moral.
Para outros críticos, como José Maurício Gomes de Almeida, o
regionalismo literário, considerado no seu stricto sensu, não existe na
fase romântica, porque o escritor brasileiro, nessa fase, está mais
preocupado com uma “afirmação nacional” do que “regional”. No
caso específico de José de Alencar, por exemplo, mesmo quando ele
se volta para o pampa e para o sertão nordestino, o que procura,
notadamente, é a exaltação do brasileiro, em oposição ao europeu.
Tanto em Alencar quanto nos escritores românticos em geral inexiste
o sentido particularista que caracteriza o regionalismo, estando a
dimensão nacionalista sempre em primeiro plano. Entretanto, na
medida em que, em determinadas obras românticas, a afirmação do
universal se faz através de tipos regionalmente configurados – o
gaúcho, o vaqueiro cearense – pode-se considerá-los lato sensu,
regionalistas. Mas, se O gaúcho e O sertanejo podem ser classificados de
regionalistas, no sentido lato, dificilmente seriam, mesmo em termos
latos, Til ou O tronco do ipê. Gomes de Almeida também sustenta que,
na evolução do romance regionalista na literatura brasileira, a grande
contribuição de Alencar se faz através de O gaúcho e O sertanejo. Essas
duas obras, sobretudo a última (mais profundamente radicada no meio
regional), constituem etapas necessárias de transição entre o indianismo
nacionalista de O guarani (1857) e o regionalismo particularista, já
presente em Franklin Távora (Almeida, 1981, p. 48-49).
Aliás, Antonio Candido considera Franklin Távora como o
primeiro “romancista do Nordeste”, no sentido em que ainda hoje
compreendemos a expressão, e que assim se tornou o fundador de

421
uma linhagem ilustre, culminada na geração de 1930, mais de meio
século depois de suas tentativas, reforçadas a meio caminho pelo
“baiano fluminense” Euclides da Cunha, autor de Os sertões (Candido,
1981, p. 300).
Esse sentido globalmente nacionalista da ficção romântica, mesmo
quando assume feição regional, foi mostrado com perspicácia por Alceu
Amoroso Lima que, em seu estudo sobre Afonso Arinos, chamou-o de
“brasileirismo”, estágio que, segundo ele, precede o regionalismo
propriamente dito (Lima, 1966, p. 590-612).
Numa visão semelhante a essa de Amoroso Lima, Alfredo Bosi
afirma que o termo “regionalismo”, invocado para definir grande parte
da prosa narrativa pré-modernista é, embora imperfeito, sintomático:
vale para narradores como Xavier Marques, Alcides Maia, Simões
Lopes Neto, Afonso Arinos, Valdomiro Silveira e outros. Não esgota,
porém, todo o romance da época, já que se atém apenas ao fator
ambiental, geográfico, das obras. Melhor seria empregar o termo
“nacionalismo” em sentido lato, que inclui atitudes polêmicas,
sentimentais ou irônicas e que vai de Euclides da Cunha a Monteiro
Lobato, passando por Graça Aranha e Lima Barreto (Bosi, s. d., p.
12-13)
Para compreender melhor a obra dos regionalistas do pré-
modernismo é necessário lembrar a importância de Euclides da Cunha.
Com Os sertões, o escritor surpreendeu todo o país, porque revelou
um lado desconhecido do Brasil e apresentou uma nova maneira de
interpretar a vida nacional. Ao narrar o ataque a Canudos, exprime e
denuncia o crime cometido contra Antônio Conselheiro e seus
companheiros. Seguindo a mesma esteira da denúncia, surgem Triste
fim de Policarpo Quaresma (1911), romance de Lima Barreto, e dois
ensaios de Monteiro Lobato, “Velha praga” e “Urupês”, publicados,
respectivamente, em 11 de novembro e 23 de dezembro de 1914, no
jornal O Estado de São Paulo.
No romance de Lima Barreto, há uma forte crítica ao
nacionalismo exagerado do Major Quaresma, com a denúncia de que
a idéia de pátria é usada, muitas vezes, para camuflar interesses de

422
classe. Já nos ensaios, o fazendeiro Monteiro Lobato descreve a figura
do caboclo trabalhador rural – o Jeca Tatu. A figura do caboclo
preguiçoso e atrasado, sempre de cócoras, aparece como uma
caricatura. Um retrato desagradável sim, mas real. Tanto que o Jeca
Tatu foi logo reconhecido como o símbolo do caboclo do interior do
Brasil, seu nome transformou-se em substantivo comum e, assim, foi
dicionarizado.
Ao tratar da prosa pré-modernista, Alfredo Bosi salienta, ainda,
que já se pode contar, nessa fase, com um vigoroso regionalismo, que
se antecipa à imersão na realidade nacional que iria caracterizar a
literatura modernista. Mas torna-se necessário distinguir nuances:
existe um regionalismo “sério”, que implica pesquisa e íntimo
sentimento da terra e do homem, mas existe também um regionalismo
“de fachada, pitoresco e elegante”, assim como não são da mesma fibra
um “nacionalismo crítico” e um “nacionalismo declamatório” (Bosi,
s. d., p. 55)
Gilberto Freyre, depois de ter realizado seus estudos sociológicos
nos Estados Unidos e na Europa, organizou, em 1926, o “Primeiro
Congresso Brasileiro de Regionalismo”, propiciando, por meio de seus
textos e de suas posições, uma agitação intelectual que suscitou o
aparecimento do romance nordestino de 30. Conforme José Maurício
Gomes de Almeida, a expressão “romance regionalista de 30” é
aplicada, “de forma genérica, ao conjunto da produção nordestina da
época” (Almeida, 1981, p. 177). Em consonância com o sentido que
concebe o regional, o crítico focaliza, com profundidade, quatro obras
de ficção dos anos 30: Menino de engenho e Fogo morto, de José Lins do
Rego; Terras do sem fim, de Jorge Amado e Vidas secas, de Graciliano
Ramos.
A bagaceira, de José Américo de Almeida, é considerada obra de
transição “entre a ficção realista e a ficção moderna”, tendo em vista
os seguintes aspectos: o estilo (discurso ornamentado, sem o amplo
aproveitamento do léxico regional, de raiz popular); posição hesitante
do autor (“entre o purismo lingüístico da época pré-modernista e a

423
revalorização do coloquial proposta pelos escritores novos”) e a
“concepção normativista da ‘boa’ linguagem” (Almeida, 1981, p. 181).
José Lins do Rego traz para sua obra uma visão estético-cultural
defendida por Gilberto Freyre, intitulando sua obra, ligada ao
engenho, de “ciclo da cana-de-açúcar”. Os livros que compõem o “ciclo”
são: Menino de engenho (1932); Doidinho (1933); Banguê (1934); Moleque
Ricardo (1935) e Usina (1936).
Menino de engenho desenrola-se entre dois pólos dialéticos: o
confessional e a vida do engenho, constituindo-se, também, como “uma
forma abreviada de bildunsroman: a formação de uma criança, entre
os 4 e os 12 anos, criada sem mãe, em um engenho do Nordeste”
(Almeida, 1981, p. 187-188). Também, nesse romance, o engenho é
mostrado sob a perspectiva da classe dominante, o que coincide com a
visão de Gilberto Freyre, tão bem analisada por Darcy Ribeiro, no
prefácio escrito em Casa Grande & Senzala (Ribeiro, 1979).
Comparativamente à obra Menino de engenho, Fogo morto apresenta
uma forma dramática tanto na trama quanto na construção dos
personagens, em oposição a um enfoque lírico-elegíaco. O engenho
Santa Fé constitui-se como uma “espécie de micro-cosmos da realidade
nordestina” (Almeida, 1981, p. 197). Também “o meio ambiente não é
apenas o cenário para os acontecimentos de primeiro plano: entre
espaço, ação e personagem o elo é indissolúvel” (Almeida, 1981, p.
214).
No sul da Bahia, surgiu um processo de exploração agrícola do
cacau que desencadeou produções culturais importantes, incluindo a
corrente regionalista. Em Terras do sem fim, Jorge Amado focaliza “um
episódio efetivamente ocorrido na região, a luta entre as famílias
Oliveira e Badaró (cujo nome real é mantido na obra) ocorrido em
fins da década de 1910” (Almeida, 1981, p. 221). Segundo Eduardo
de Assis Duarte, Terras do sem fim “condensa nos clãs em guerra duas
concepções de desenvolvimento da agricultura daquele tempo: a linha
mais arcaica, representada pelo ‘feudalismo messiânico’ de Sinhô e o
‘feudalismo’ pretensamente ‘moderno’ de Horácio” (Duarte, 1996, p.
149).

424
Na opinião de José Maurício Gomes de Almeida, Vidas secas, de
Graciliano Ramos, exibe “a essência de uma arte regionalista, na sua
expressão mais alta”. Nesse livro, a integração entre o espaço (físico e
social), o homem, a ação, a linguagem, a temática e a própria articulação
da narrativa torna-se quase absoluta. Baseando-se num ensaio de
Frederick G. Williams, o referido crítico explica que a estrutura do
romance adota “a forma cíclica da seca e das chuvas torrenciais”, que
é a característica da região retratada no romance. No plano temático,
o sentido de circularidade do tempo se reflete sob a forma de um
fatalismo arraigado, de uma aceitação passiva e resignada do destino,
por parte dos personagens (Almeida, 1981, p. 248, 249). Na vida áspera
da caatinga, os seres humanos nivelam-se aos animais, fato que constitui
uma denúncia das condições sub-humanas em que vive/vegeta o
sertanejo nordestino. A carência da linguagem, nos personagens de
Vidas secas, torna-se causa e expressão concreta da incapacidade de
compreenderem o mundo em que vivem. O drama de Fabiano e sua
família, afirma ainda Gomes de Almeida, “ultrapassa em muito o seu
significado regional: é o eterno drama do homem oprimido pelas
circunstâncias, que luta assim mesmo para afirmar a dignidade de
sua condição” (Almeida, 1981, p. 263).
Em seu conhecido ensaio “Literatura e subdesenvolvimento”,
Antonio Candido trata, alternativa ou comparativamente, das
características literárias na fase que ele chama de “consciência amena
de atraso”, correspondente à ideologia de “país novo”; e na fase da
“consciência catastrófica de atraso”, correspondente à noção de “país
subdesenvolvido”. Explicando que a consciência do
subdesenvolvimento é posterior à Segunda Guerra Mundial,
manifestando-se, claramente, a partir dos anos de 1950, afirma
entretanto, que, desde o decênio de 1930, tinha havido mudança de
orientação, sobretudo, na ficção regionalista. O chamado romance de
30 adquiriu uma força desmistificadora: as tendências regionalistas,
já sublimadas e de certa forma transfiguradas pelo realismo social,
atingiram o nível das obras significativas. Considerando que,
posteriormente, houve um reflorescimento da novelística, marcada

425
pelo refinamento técnico, nutrida de elementos não-realistas, como o
absurdo, a magia das situações ou de técnicas antinaturalistas, como o
monólogo interior, a visão simultânea e outras, o referido crítico propõe
uma terceira fase que ele denomina de “super-regionalismo” (em
analogia a surrealismo ou super-realismo). Essa fase corresponde à
“consciência dilacerada do subdesenvolvimento”. Deste super-
regionalismo é tributária a obra revolucionária de Guimarães Rosa,
solidamente fincada no que se poderia chamar de a “universalidade
da região” (Candido, 1987, p. 142, 161-162).
O regionalismo, visto de forma ampliada em outros países da
América Latina, no contexto da reflexão sobre a literatura, a cultura
e a transculturação narrativa, foi estudado por Ángel Rama. Para o
enfoque das regiões, das culturas e das literaturas, o crítico uruguaio
evidenciou, no contexto em que escreveu, que a unidade e a diversidade
têm sido uma fórmula preferida pelos analistas de múltiplas disciplinas.
Em decorrência dessa concepção, surgem outros aspectos: as vastas
regiões dentro de um país, a existência de sub-regiões e a contigüidade
entre as regiões dos diferentes países, criando um outro mapa mais
verdadeiro pelas características culturais. Pode-se mencionar, como
exemplo, o estado do Rio Grande do Sul que mantém uma vinculação
maior com o Uruguai e a Argentina do que com o Mato Grosso ou o
Nordeste do Brasil.
No decorrer do estudo, Ángel Rama evidencia como essa relação
entre unidade e diversidade tem propiciado diferentes classificações
e divisões antropológicas. Citem-se os estudos de Charles Wagley, Darcy
Ribeiro, Manoel Diegues Júnior, Arnold Strickson, Charles Wagley e
Marvin Harris. Em As Américas e a civilização, Darcy Ribeiro trata dos
Povos-testemunho (os mesomericanos e os andinos); dos Povos-novos
(os brasileiros, os grã-colombianos, os antilhanos e os chilenos) e os
Povos-transplantados (os anglo-americanos e os rio-platenses). Para
exemplificar, com base em uma análise de subcultura regional, Ángel
Rama refere-se ao peruano José Maria Arguedas que, em Todas las
sangres, ofereceu “um panorama completo, não só das classes sociais
da serra, mas também das formas culturais dentro das quais suas
criaturas narrativas se articulavam” (Rama, 1989, p. 66).

426
A cultura regional tem uma potência integradora forte, podendo
ser modificada pelo processo de modernização. Segundo Ángel Rama,
paradoxalmente, a reativação do problema regionalista na América
Latina foi conseqüência da modernização. Segundo ele, essa retomada
da discussão só foi possível porque os intelectuais estavam preparados
para o debate sobre o regionalismo. Assim, em “zonas aparentemente
submersas, destinadas a serem arrasadas pela aculturação, surgem
equipes de pesquisadores, artistas e escritores que reivindicam a
localidade e se opõem à indiscriminada submissão que delas se exige”
(Rama, 1989, p. 68).
Em seu estudo, Ángel Rama cita Darcy Ribeiro como um dos
autores que estudou a pulsão modernizadora sobre a cultura, através
da “atualização histórica” e da “aceleração evolutiva”. Em O processo
civilizatório, Darcy Ribeiro esclarece que se entende por “atualização”
ou “incorporação histórica” “os procedimentos pelos quais esses povos
atrasados na história são engajados compulsoriamente em sistemas
mais evoluídos tecnologicamente, com perda de sua autonomia ou
mesmo com a sua destruição como entidade étnica” (Ribeiro, 1983, p.
56). Para o antropólogo, o conceito de aceleração evolutiva “será
utilizado para indicar os procedimentos diretos, intencionais ou não,
de indução do progresso com a preservação da autonomia da sociedade
que o experimenta e, por isso mesmo, com a conservação de sua figura
étnica e, por vezes, com a expansão desta como uma macro-etnia
assimiladora de outros povos” (Ribeiro, 1983, p. 56).
Na discussão do conflito entre regionalismo e modernização, o
propósito de Ángel Rama “é registrar os felizes esforços de compor
um discurso literário a partir de fortes tradições peculiares mediante
plásticas transculturações que não se rendem à modernização mas
sim utilizam-na para seus próprios fins” (Rama, 1989, p. 75).
Ángel Rama, através de inúmeros exemplos, evidencia, nas
culturas regionais, a resistência como forma de preservação cultural.
Nesse contexto, o conceito de transculturação constitui um operador
crítico importante para mostrar de que forma, através da literatura, é
possível evidenciar o conflito existente na incorporação de uma cultura

427
por outra. Para o crítico uruguaio, as peculiaridades da conquista e
da colonização da América L atina constituem a origem da
multiplicidade de regiões “que se desenvolveram lentamente com
escassos vínculos com os centros do vice-reinado, registrando
marcadas tendências separatistas ou ao menos isolacionistas que lhes
permitiram elaborar padrões culturais próprios, freqüentemente
muito arcaicos, muitas vezes produto de originais sincretismos que
serviram de base a fortes tendências localistas” (Rama, 1989, p. 94).
William Rowe, no estudo sobre o criollismo, ao referir-se a José
Carlos Mariátegui, através de Siete ensayos de interpretación de la realidad
peruana, salienta que o autor peruano chama o trabalho dos
indigenistas de novo regionalismo. Assim, este ‘novo regionalismo é
uma expressão da consciência serrana e do sentimento andino. Os
novos regionalistas são, antes de tudo, indigenistas’ (Mariátegui apud
Rowe, 1994).
Embora o crítico uruguaio Hugo Achugar não trate,
especificamente, do regionalismo, reflete sobre a heterogeneidade
latino-americana com base nos lugares, nas paisagens e nos territórios.
Se, por um lado, há um processo de homogeneização/ globalização
que submete os estados nacionais a um novo desafio, por outro, “as
diferenças e integrações apresentam uma dinâmica própria e as
paisagens culturais funcionam em vários e múltiplos tempos e direções”
(Achugar, 1996, p. 846).
Nesse sentido, várias indagações são feitas, tais como aquelas que
investigam “em que medida as mudanças tecnológicas dos meios de
comunicação e dos processos de integração regional em curso têm
transformado (...) o modo de produção das identidades locais ou
supranacionais” (Achugar, 1996, p. 846). Tal questionamento, no
contexto da globalização, pressupõe a existência de múltiplas
identidades, a mobilização dos sujeitos sociais, a construção de uma
mensagem global como versão neoliberal da multiplicidade heterogênea
e a necessidade de precisar “quem fala e sobretudo de onde se fala”
(Achugar, 1996, p. 849).

428
Referindo-se à posição de resistência diante do processo de
globalização, Hugo Achugar evidencia o trabalho de Nelly Richard
em que “o passado não aparece como um lugar sagrado e desprovido
de conflitos a partir do qual se resiste ao indiferenciado acionar do
processo de globalização, mas sim, como um lugar/problema de onde
se assinalam os vazios das histórias oficiais assim como os problemas
de uma resistência potencialmente desativadora” (Achugar, apud
Richard, 1996, p. 850).
No contexto da globalização, o crítico uruguaio refere-se às cinco
dimensões do fluxo global, designadas por Arjun Appadurai de: a)
etnopanoramas; b) tecnopanoramas; c) finançopanoramas; d)
midiapanoramas; e) ideopanoramas.
O termo panorama, segundo Arjun Appadurai, diz respeito às
“interpretações profundamente perspectivadas, modeladas pelo
posicionamento histórico, lingüístico e político das diferentes espécies
de agentes: os estados nacionais, as multinacionais, as comunidades
diaspóricas, bem como os grupos e movimentos subnacionais
(religiosos, políticos ou econômicos), e até mesmo os grupos
intimamente mais relacionados, como as vilas, os bairros e os grupos
familiares” (Appadurai apud Feathestone, 1999, p. 312). Veja-se, então,
em que consistem esses “panoramas”.
“Etnopanorama” compreende “o panorama das pessoas que
constituem o mundo em transformação em que vivemos; turistas,
imigrantes, refugiados, exilados, os que trabalham fora do país de
origem e outros grupos e pessoas que constituem um aspecto essencial
do mundo, e parecem afetar a política das e entre as nações, num
grau até agora sem precedentes”. (Appadurai apud Feathestone, 1999,
p. 313).
“Tecnopanorama” refere-se à configuração global, também fluida,
da tecnologia, e do fato de que a tecnologia, tanto a superior como a
inferior, a mecânica e a informal, agora se movimenta em alta velocidade
através das diversas formas de barreiras anteriormente
intransponíveis”. (Appadurai apud Feathestone, 1999, p. 313)

429
A concepção de “finançopanorama” diz respeito à distribuição
do capital global, envolvendo mercados do dinheiro, as bolsas de valores
nacionais e a especulação em commodities. Os “midiapanoramas”
reportam-se “à distribuição de capacidades eletrônicas de produzir e
disseminar informações (jornais, revistas, estações de televisão,
estúdios para produção de filmes, etc.) (...) e as “imagens produzidas
por esta mídia”. (Appadurai apud Feathestone, 1999, p. 315)
Os “midiapanoramas” formam-se de “scripts de vidas imaginárias
baseadas no próprio ambiente dos espectadores e de espectadores que
vivem em outros ambientes”. (Appadurai apud Feathestone, 1999, p.
316). Os “ideopanoramas” como os “midiapanoramas” são imagens
concatenadas, “porém, muitas vezes, são diretamente políticos e se
relacionam às ideologias dos estados e às contra-ideologias de
movimentos explicitamente orientados para a tomada do poder do
estado ou de parte do mesmo poder”. (Appadurai apud Feathestone,
1999, p. 316)
A compreensão desses diversos panoramas suscita outras posições
teóricas, como a do próprio Hugo Achugar, apresentada no prólogo à
edição em espanhol de La Modernidad desbordada: dimensiones culturales
de la globalización, da autoria de Arjun Appadurai. Nesse prólogo,
Achugar reitera a importância do lugar de onde se fala ou a partir de
onde se teoriza. Refletindo sobre a necessidade de inclusão de outro
panorama ou scape às categorias já evidenciadas por Arjun Appadurai,
acrescenta a paisagem da “memória”, tendo em vista a constituição
das subjetividades contemporâneas, sob a perspectiva do Rio da Prata,
“uma região fortemente atravessada nestes tempos pós-ditatoriais pelo
debate em torno da memória coletiva”. (Achugar apud Appadurai,
2001, p. 13).
Torna-se importante observar, ainda, que o regionalismo recebe
nomenclatura diferente na província canadense do Quebec. Na
literatura quebequense, o regionalismo é chamado de terroirisme ou
agriculturisme, e o romance regionalista é conhecido como o romance
do terroir, ou seja, o romance da terra. No início do século XX, graças
à industrialização, a população urbana do Canadá francês cresce

430
significativamente, chegando a ultrapassar a população rural, em 1921.
Entretanto, a ideologia do terroir não reflete as realidades da época:
ela separa dois modos de vida, idealizando em excesso a vida do campo
e condenando, exageradamente, a vida citadina. O romance mais
famoso desse período é Maria Chapdelaine (1914), de Louis Hémon.
Ele leva à perfeição o modelo de romance da terra, iniciado com La
terre paternelle (1846), de Patrice Lacombe e se torna logo o romance
fundacional da literatura canadense-francesa. Michel Bernard afirma
que “o mal de Louis Hémon foi o de não ter tido de imediato um
sucessor. Mais de vinte anos separam sua obra dos grandes livros de
Ringuet e de Guèvremont que destruíram os mitos de uma sociedade
camponesa preservada” (Maillot, 1997, p. 83). Lionel Groulx e Félix-
Antoine Savard são dois outros autores para os quais a terra é um
mito, um símbolo de duração que nada poderia perturbar. À
sacralização da terra pregada por Hémon, Groulx e Savard se opõe a
sua dessacralização em La Scouine (1918), de Albert Laberge, no qual
aparecem as forças autodestruidoras da terra, enquanto os romances
Nord-Sud (1931), de Léo-Paul Desrosiers, e Le Survenant (1945), de
Germaine Guèvremont, sublinham a existência de uma tensão
permanente entre o desejo de evasão do nômade e a resistência do
sedentário, preso à terra (Weinmann e Chamberland, 1996, p. 80,
93).
Na literatura dos Estados Unidos, historicamente, o
“regionalismo” e o “realismo” se constituíram em categorias separadas,
apesar de apresentarem limites muito tênues. Os escritores que
mostravam com mais insistência uma cor local ou uma escrita mais
dialetal eram considerados regionalistas. Atualmente, muitos críticos
questionam essa divisão. Martha Banta, por exemplo, afirma que
dentro do quadro de poder econômico e/ou político, pode-se observar
que os textos de “homens brancos e urbanos” são, freqüentemente,
julgados como realistas, enquanto outros, pertencentes a quem se
encontra fora dos centros de poder, isto é, os habitantes do meio oeste,
os negros, os imigrantes e as mulheres, são classificados como
regionalistas (Banta, 1988, p. 501, 503).

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433
TEXTUALIDADES INDÍGENAS NO BRASIL

Cláudia Neiva de Matos


Universidade Federal Fluminense/CNPq

Primeiras palavras
A primeira coisa que os portugueses recém-desembarcados em
seus veludos e armaduras escaldantes naquele outono tropical repa-
raram nos habitantes das praias e matas do Brasil foi a coisa mais
evidente: os índios estavam nus. Eram seres “nudi e formosi” (como
escreveu Americo Vespuccio); gente bonita, saudável, à vontade na
luxuriosa paisagem natural, topografias e vegetações que os cronistas
coloniais não se cansariam de descrever e louvar. E para os escritores
europeus, que então consideraram com simpatia o homem do Novo
Mundo subequatoriano, a virtude e o valor de ser “selvagem” residi-
am nesse laço íntimo e remoto do Humano com o Natural. Gente nua
de corpo e de espírito, tabula rasa e sem mácula oferecida à inscrição
da história do Ocidente.
Espetáculo prioritariamente visual, apreendido muito mais pelo
olhar que pelo ouvido, o índio do Brasil apresentou-se desde o início,
e durante muito tempo, como figura muda. Apesar do grande inte-
resse que lhes suscitava o chamado gentio e do empenho de pesquisa
e pedagogia de jesuítas e outros desbravadores das línguas autócto-
nes, não pareciam estes propriamente interessados no que o índio
pudesse ter a dizer.
A grande maioria da informação que temos sobre o índio dos
primeiros séculos da colonização está vazada pela escrita de cronistas,
viajantes, missionários. A barreira idiomática justifica a princípio, mas
não explica em todo o seu sentido, a espécie de afasia que ataca a
imagem do índio nessa história, nesse texto que registra costumes,
objetos, cultura material, atitudes, ornamentos e feições do rosto e do
corpo, e só deixa de registrar, justamente, o texto indígena: sua fala,
sua palavra autenticada, seu nome próprio.
Na verdade, o texto, o discurso verbal, não é o único elemento
expressivo, significativo, da voz humana. Os índios que nos mostram
os relatos coloniais não permanecem em inteiro silêncio e imobilida-
de. Eles dançam, fazem música e cantam. A maioria da informação
produzida no período fala dessas manifestações cantadas e dançadas,
descritas, às vezes, com minúcias que destacam em primeiro plano os
elementos materiais (roupas, ornatos, instrumentos); em segundo pla-
no a música; em terceiro a parte vocal (canto).
A recepção das vocalizações indígenas pelos cronistas coloniais
mostra-se hesitante e contraditória. Muitos ouvidos educados reagem
escandalizadamente ao que lhes parece um monte de “gritos” e “ur-
ros”; relatam a ausência de melodia, chegam a não reconhecer ali
qualquer tipo de canto, ou só percebem naquele vozerio um canto
sem palavras.
Mas há, também, quem veja no Novo Mundo um berço de “gran-
des cantores”. É o caso de Michel de Montaigne: desiludido com a
“civilização” de uma França dilacerada por guerras intestinas, o
ensaísta celebra, no famoso “Dos Canibais”, a poesia “bárbara” dos
índios americanos, dela apresentando dois exemplos: um canto guer-
reiro (o discurso de um prisioneiro destinado ao ritual antropofágico)
e uma canção de amor, sobre a qual comenta:

“tenho bastante conhecimento de poesia para julgar isto,


que não somente nada há de bárbaro nessa obra da ima-
ginação, mas também que ela é plenamente anacreôntica.
De resto, a língua deles é uma língua doce e de sonorida-
de agradável, aproximando-se das terminações gregas.” 1
(Montaigne, 1986: p. 101)

1 Esta e outras citações retiradas de publicações em língua original foram traduzidas por mim.

436
Na verdade, os textos apresentados por Montaigne estão longe
de corresponder verossimilmente a um discurso indígena. O autor
não cita sua fonte, mas constatou-se que se trata de versões estilizadas
de dois textos que Jean de Léry, calvinista vindo ao Brasil no meio do
século XVI com a missão da França Antártica, publicara em sua Via-
gem à Terra do Brasil.
Várias crônicas de viajantes, nos séculos XVI e XVII, como o
Tratado descritivo do Brasil de Gabriel Soares de Sousa em 1587, refe-
rem-se à veia musical e poética dos índios, particularmente, os do grupo
tupi, habitantes dos primeiros territórios atingidos pelo homem bran-
co. Entretanto, nenhum documento das textualidades indígenas é
produzido por esses viajantes, salvo algumas raras exceções pouco
dignas de fé etnológica, como no caso mencionado de Jean de Léry.
Quanto aos missionários da Companhia de Jesus que se consagram
ao estudo das línguas autóctones, servem-se delas somente para abrir
caminho à evangelização do gentio. Gramáticas, vocabulários e des-
crições formuladas na época silenciam sobre as textualidades indíge-
nas.

Etnografia e Literatura
No século XVIII parece dar-se um declínio do interesse pelos
índios, fora do campo religioso. As informações escasseiam, e as refe-
rências aos cantos tornam-se mais negativas. A visada de antipatia crí-
tica prolonga-se no início do século XIX. Em 1803, Ribeiro de Sampaio
reporta uma oração fúnebre, em louvor a um defunto, feita num can-
to “muito desentoado”, ao qual “os assistentes correspondiam na mes-
ma desentoação” (Sampaio, apud Camêo, 1977: p. 34). A
ininteligibilidade continua marcando a recepção pelos ouvidos bran-
cos. Os cantos dos Botocudos soam com “pouca modulação” aos ou-
vidos do Príncipe Maximiliano de Wied Neuwied, que comenta: “Cons-
ta que figuram no canto palavras referentes à guerra ou à caça, o fato
é que tudo pareceu-me um simples vozear sem palavras”, (Neuwied
apud Camêo, 1977: p. 35). Spix & Martius escrevem sobre os Juri: “A
cantiga soava agora não mais no simples ronco dos homens, porquan-

437
to os sopranos, guinchando a melodia, se juntavam ao abominável
berreiro.” (Spix & Martius, apud Camêo, 1977: p. 38)
Já por essa época, todavia, a Independência em andamento irá
buscar lastro estético e ideológico na literatura romântica nascente,
que atribui aos personagens selvagens, além de virtudes combativas,
morais e afetivas, o dom da palavra poética. Nosso primeiro poeta
romântico, Gonçalves de Magalhães, recupera sugestões das velhas
crônicas do século XVI para responder à questão colocada no cerne
da discussão sobre a identidade literária nacional: os índios brasilei-
ros eram mesmo poetas? Magalhães responde categoricamente: “Eles
o foram, e ainda o são.” Queixa-se pois de que os missionários não “se
dessem ao trabalho de recolher, ou de verter em língua portuguesa os
cânticos dos Índios.” (Magalhães, In: Coutinho, 1974: p. 24-25).
À idéia literariamente difundida de uma poeticidade profunda
da alma e da linguagem indígenas corresponde, portanto, à ausência
de documentos ilustrativos dessa poeticidade. O campo está livre para
os procedimentos de idealização, e, desde então, uma pretensa e su-
posta “poesia primitiva” não deixará de fascinar poetas e pensadores
brancos e civilizados.
No Indianismo romântico, a criação artística brasileira, e, prin-
cipalmente, a literatura, associa o elemento indígena a uma visão e
expressão do mundo poéticas, situando na ascendência autóctone um
lastro fundamental para a construção de uma auto-imagem sedutora
da nação e da alma nacional. Poetas, romancistas e críticos elaboram o
mitema da poeticidade indígena, projetado em heróis cantores, capa-
zes de perceber e expressar as harmonias profundas entre a alma
humana e a virgem e mãe Natureza. Mas a essa extrema literarização
do índio no Romantismo, com seus acentos nostálgicos, corresponde
o pressuposto de sua exclusão da história presente e futura. Com
exceções (como Ubirajara e “A Canção do Tamoio”), os romances e
poemas figuram ou prefiguram a extinção do povo indígena; assim se
dá em Iracema e n’O Guarani, de José de Alencar, no “Y-Juca-Pirama”
e em “Marabá”, de Gonçalves Dias. Histórias de exilados, párias,
despatriados, encorpando o que Alfredo Bosi chamou de “mito
sacrificial” do indígena na literatura romântica (Bosi, 1992: p. 176-193).

438
Nas últimas décadas do século XIX, idealização e estetização ro-
mânticas deram lugar às primeiras tentativas mais ou menos sistemá-
ticas, e de pretensão mais ou menos científica, de investigar e docu-
mentar as culturas autóctones. Naquele mesmo período, tomava cor-
po a pesquisa folclórica no país. Desde então, etnógrafos, historiado-
res, sertanistas, folcloristas, antropólogos e outros aficionados das ci-
ências sociais registraram narrativas indígenas, analisadas com os ins-
trumentos das genealogias evolucionistas, da antropologia estrutural,
da lingüística, da história das religiões.
Entre os pesquisadores que iniciaram o processo de
encorpamento e sistematização desse repertório, algumas contribui-
ções merecem ser destacadas, como as de Couto de Magalhães (O Sel-
vagem, 1876), Carlos Frederico Hartt (Contribuições para a etnologia do
vale do Amazonas, 1885), Barbosa Rodrigues (Poranduba amazonense,
1890), Capistrano de Abreu (Rã-txa Hu-ni-ku-i: gramática, textos e voca-
bulário caxinauás, 1914).
A documentação é ampliada, compilada e analisada no século XX
por sertanistas como o Marechal Rondon e os irmãos Orlando e Cláu-
dio Villas-Boas, e um grande número de etnógrafos contemporâne-
os, como Claude Lévi-Strauss, Darcy Ribeiro, Berta Ribeiro, Carmem
Junqueira, Lux Vidal e muitos outros. Os antropólogos interessam-
se, notadamente, pelo campo vasto da mitologia, utilizada como prin-
cipal referência para tentar compreender o pensamento e a lingua-
gem denominados “selvagens”. Disso resulta grande quantidade de
documentos relativos aos relatos, lendas e “histórias de antigamente”,
que vão geralmente informar uma perspectiva etnográfica, com a re-
flexão literária se mantendo mais ou menos ausente do processo.
Se o repertório de narrativas se encontra consideravelmente en-
riquecido, o silêncio permanece, todavia, sobre os cantos, os quais,
por seu caráter textualmente mais formalizado, poderiam prestar-se
melhor a uma abordagem francamente estética. De qualquer modo, a
informação mitológica, assim constituída e oferecida ao público, vai
alimentar operações de tematização estilizada por parte da literatura
branca, escrita e culta. Elementos das lendas indígenas, relatadas pe-

439
los etnógrafos, povoarão numerosas obras do Modernismo brasileiro.
Reportando-se aos predecessores românticos, os modernistas proce-
dem a uma recriação crítica e parodística dos emblemas literários da
tradição nacional, mas isso não apaga de suas obras a imagem ideali-
zada de uma poeticidade indígena.
De todo modo, as lentes pelas quais nos foi dado a ler o índio
brasileiro operaram, via de regra, de modo desfocado e lacunar, pro-
movendo, quer pela estilização literária, quer pelo tratamento da do-
cumentação histórica, uma dupla exclusão. Os procedimentos de re-
gistro e as modalidades de leitura etnográfica a que foi submetida a
prosa narrativa indígena ignoraram ou empanaram, via de regra, seus
aspectos e potencialidades estéticas. A função literária ou poética dos
relatos de tradição oral, entre os quais os indígenas, não costuma ser
levada em grande conta pelos analistas, que tendem para as operações
estruturais “frias”, aplicadas, sobretudo, à morfologia dos elementos
da trama.
Quanto à poesia dos índios, permaneceu quase desconhecida para
nós; sobre ela formaram-se pouco mais que hipóteses, esboços hesi-
tantes que empobreceram e estereotiparam o objeto de sua conside-
ração, a ponto de proscrever-nos a possibilidade de qualquer estesia
mais aguda desse objeto. Investiu-se na unidade, na simplificação2, na
exterioridade superficial, em vez de pesquisar a rica diversidade des-
sas culturas com sua poesia, enfrentando-lhe a complexidade e os
matizes subjetivos e estéticos.

Outras textualidades ameríndias


Por diversos motivos históricos e culturais, aquilo que podemos
considerar como a literatura indígena brasileira, ou a parte dessa lite-
ratura a que temos acesso, constitui um repertório diverso dos seus
congêneres no resto das Américas. As populações indígenas tropicais,
os povos da floresta no Brasil, estiveram, e em parte ainda estão, entre

2 Antonio Risério denunciou muito bem essa visada simplificadora que às vezes se dissimula
sob processos de idealização: “insistir na existência de uma ‘poesia primitiva’ é cultivar uma
superstição etnocêntrica” (Risério, 1993: p. 33)

440
os mais “primitivos” do continente americano, o que aliás certamente
estimulou que tenham sido os mais freqüentemente imaginados e re-
presentados pelo Ocidente na perspectiva das “visões do paraíso”.
Criou-se, assim, uma situação paradoxal: por um lado, o Brasil pos-
sui uma literatura culta, na qual o motivo indígena é o mais forte, o
mais insistentemente cultivado na intenção de fundar uma imagem
enobrecida ou diferencial da nacionalidade; por outro lado, esse cui-
dado de estetização não encontrou correspondência no domínio da
pesquisa, e as artes verbais dos índios brasileiros permaneceram bem
mais desconhecidas que as das outras etnias autóctones do Novo Mun-
do. Quanto à criação de literatura escrita diretamente por indivíduos
indígenas, é ainda muito incipiente entre nós, como veremos adiante.
Para melhor que melhor possamos situar o caso brasileiro no quadro
americano, aqui vão alguns dados, certamente muito esparsos e par-
ciais, porém, a nosso ver, significativos, sobre as textualidades indíge-
nas, provenientes de matriz oral ou de produção escrita, em outros
territórios do continente.
Quando os Espanhóis chegaram à América Central, Aztecas e
Maias já praticavam formas de escrita que tinham aperfeiçoado desde
séculos: sistemas pictográficos, alguns dos quais começavam a movi-
mentar-se no sentido da fonografia. Puderam, portanto, reter para a
posteridade os esquemas de numerosas textualidades de gêneros e
temas variados. Nos primeiros momentos da colonização, os conquis-
tadores espanhóis destruíram e queimaram grande parte desses do-
cumentos, mas muita coisa salvou-se, graças à intervenção de missio-
nários que recolheram a palavra indígena e lhe emprestaram sua pró-
pria língua, ou a registraram no idioma original com o sistema alfabé-
tico europeu. Boa parte dessa herança literária foi, assim, mais ou
menos cristianizada pela intervenção dos frades evangelizadores:

“[...] convertida em instrumento de conquista, a escrita


das línguas indígenas passou a ser patrimônio da Igreja.
É certo que com essas mesmas escritas se resgatou a his-
tória que conhecemos sobre o passado pré-hispânico, nar-
rada por seus falantes nas formas mais cultas de suas

441
línguas nativas e transcrita com grande rigor quanto à
forma. Parte da essência simbólica que ligava cada lín-
gua com a memória cultural indígena permaneceu na
recompilação da literatura oral pré-hispânica levada a
cabo pelos religiosos, com ajuda dos índios nobres e
principais, regatando para a posteridade a poesia náhuatl,
os grandes textos maias e as formas do verso dramático
zapoteca. Entretanto, essa crônica literária foi fatalmen-
te permeada pela interpretação cristã-européia dos fra-
des, e é lícito imaginar que os próprios informantes na-
tivos nem sempre ofereceram o conteúdo de seu passado
real, mas sim o de um passado compatível com a outridade
ocidental à qual se confrontavam.” (Pellicer, Dora, in
Montemayor [org.], 1993: p. 26)

A escrita, embora precocemente atuante no quadro das línguas e


textualidades nativas mesoamericanas, viu-se, então, desvinculada da
função social, eminentemente religiosa e ritual, que possuía antes da
conquista, e foi posta a serviço da catequese. Correndo à parte, toda-
via, a persistência da tradição oral contribuiu para manter viva uma
cultura literária asteca e maia.
Quanto aos Incas da América do Sul, mesmo se não se pode afir-
mar que tenham conhecido alguma forma de escrita, edificaram uma
grande civilização, e as tradições orais de seus descendentes foram
registradas desde os tempos coloniais pelos europeus e pelos própri-
os nativos. Como aconteceu na América Central, aqui também certas
coletividades indígenas desde cedo descobriram a utilidade da escrita
para arquivar suas tradições orais. É verdade que, como aponta Martin
Lienhard (in Pizarro [org.], 1995: p.174), “na medida em que deixa-
ram de ocupar o circuito oral, muitos desses textos ‘morreram’ pou-
co a pouco do ponto de vista das respectivas coletividades, embora
com a possibilidade de uma reativação posterior”, mas, também, abri-
ram caminho às pesquisas modernas sobre a literatura autóctone nos
países andinos, amplamente intensificadas desde a época culminante
dos “indigenismos”, nas primeiras décadas do século XX. Evidente-
mente, nada disso impediu que os manuais de literatura

442
latinoamericana tenham, sistematicamente, ignorado o repertório
ameríndio.
As artes verbais tradicionais dos índios norte-americanos vêm
sendo registradas desde o início do século XIX. Como outras litera-
turas autóctones do Novo Mundo, elas compreendem dramas rituais,
canções, narrativas, discursos, histórias de vida. A pesquisa se tornou
mais científica e eficaz, desde o final do século XIX, com a criação do
Bureau of American Ethnology, no quadro do Instituto Smithsonian,
em Washington. O esforço em demanda de informações e registros
era, então, em grande parte, motivado pelo mito do “vanishing Indian”
(Ruoff, 1991: p.9), que ajudava também a dar suporte à tomada das
terras indígenas. Pela primeira vez, reconhecia-se a atuação e signifi-
cado da cultura indígena no passado norte-americano, ao mesmo passo
que se reprimia a importância de sua presença efetiva na atualidade
histórica.
Mais recentemente, com a etnopoética norte-americana moder-
na tomando forma nos anos 70, graças ao trabalho de pesquisadores e
poetas como Jerome Rothenberg, destaca-se a coleta, tradução e estu-
do do cancioneiro. Muitas antologias foram produzidas; o trabalho
de tradução avança e sutiliza-se. Além disso, a presença de descen-
dentes de índios no jornalismo especializado e nos quadros universi-
tários torna os chamados Native Studies um domínio que a etnografia
“dura” deve partilhar com as considerações propriamente estéticas e
as implicações políticas.
Mas o que se considera como o acervo de literatura do índio nor-
te-americano extrapola, largamente, os repertórios tradicionais com-
pilados pelos estudiosos. À primeira vista, impressiona a quantidade
de nomes autorais habilitados a integrar esse acervo, ao contrário do
que acontece no Brasil, onde ainda são muito escassos os autores indí-
genas individualmente reconhecidos, que produzem e publicam lite-
ratura escrita. Em parte, isso poderia ser explicado pela atuação mais
eficaz dos sistemas educacionais, possibilitando a alguns grupos e in-
divíduos um acesso mais pleno e precoce ao mundo da escrita. Mas, o
que também motiva o desequilíbrio entre as produções brasileiras e a

443
norte-americana é a diferença nos critérios para se considerar que
um indivíduo é indígena. Assim é que, num livro como Literatures of
the American Indian, de A. Lavonne Brown Ruoff, encontram-se
repertoriados até autores que têm, como no caso do mestiço Cherokee
J. M. Oskison, apenas 1/8 de sangue autóctone (cf. Ruoff, 1991: p.
80). Por esses critérios, naturalmente, também o elenco brasileiro de
autores indígenas poderia ser muito expandido, incluindo escritores
de primeiro plano como Gonçalves Dias.
Um dos marcos iniciais da documentação de literatura oral indí-
gena da América do Norte é a publicação das Algic Researches,
enfocando a cultura e literatura Ojibwa, em 1839, por H. R.
Schoolcraft. Mas a produção de literatura escrita por nativos norte-
americanos começa mais cedo ainda, no final do século XVIII. Os
primeiros escritos têm, freqüentemente, finalidade informativa sobre
a cultura e história dos autóctones, combinando formas e temas da
tradição com gêneros da literatura ocidental. Este procedimento será
uma constante nas obras dos muitos autores indígenas que se segui-
rão, inclusive, no campo da criação poética e ficcional.
Oratória e autobiografia são dois gêneros que historicamente ser-
viram de ponte entre as textualidades orais e escritas. O primeiro
autor indígena a publicar em inglês foi Samson Occom (Mohegan),
missionário metodista famoso pela sua oratória: Sermon preached at the
execution of Moses Paul, Indian, em 1772. A 1a autobiografia publicada
foi A son of the forest, em 1829, de William Apes Pequot. Criado entre
brancos, Apes converteu-se ao Metodismo e tornou-se ministro orde-
nado. Escreveu, também, obras em defesa dos povos nativos, como
Nullification of the unconstitutional laws of Massachusetts, relative to the
Marshpee tribe (1835). No elenco histórico de escritores indígenas nor-
te-americanos haverá muitos outros como ele, convertidos à civiliza-
ção e à religião dos brancos, mas críticos do tratamento reservado aos
índios pela sociedade dominante.
As autobiografias indígenas foram muito populares no século
XIX e na primeira metade do século XX. Além das produzidas dire-
tamente em inglês e por escrito, numerosas narrativas pessoais são

444
colhidas por antropólogos (como o relato Sioux Black Elk speaks, 1932),
e outras são escritas pelos próprios índios na língua materna e, de-
pois, traduzidas e editadas por estudiosos (como The warrior who killed
Custer, originalmente escrita em língua Dakota pelo chefe White Bull).
O primeiro romance escrito por um índio foi Life and Adventures
of Joaquín Murieta (1854), do mestiço Cherokee John Rollin Ridge,
com um herói de ascendência hispânica e indígena. Ficção e poesia de
autores indígenas, bastante escassas no século XIX, tornam-se mais
comuns no XX, projetando nomes como os de Emily Pauline Johnson
(poeta e contista, Mohawk canadense, 1861-1913), Charles Eastman
(ficcionista, memorialista e ensaísta, Sioux, 1858-1939), Lynn Riggs
(poeta e dramaturgo, Cherokee, 1899-1954) etc.
Desde os anos 60, com a revitalização do orgulho índio (cf. Ruoff,
1991: p. 89), ficção e poesia aumentaram em quantidade e qualidade.
Entre os contemporâneos, podemos citar, a título de exemplo, o poe-
ta e ficcionista Leslie M. Silko (mestiço Laguna), os romancistas James
Welch (Blackfeet / Gros Ventre) e Louise Erdrich (Ojibwa), e, sobre-
tudo, Kiowa N. Scott Momaday, um dos primeiros índios americanos
a receber um PHD em Inglês, professor na Universidade do Arizona,
e, certamente, o mais importante escritor indígena da atualidade no
país. Entre seus muitos livros, estão: o romance House made of dawn
(1968), ganhador do prêmio Pulitzer, o relato autobiográfico e poéti-
co The way to rainy mountain (1969), os poemas de The gourd dancer
(1976).
De modo geral, a literatura ameríndia pode ser, e tem sido, vista
como uma literatura de resistência: “Heterogeneidade, gêneros ‘fra-
turados’, assuntos ‘polimorfos’, territórios de ‘fronteira’ – estas são as
marcas da ‘escrita de resistência’ especialmente praticada pelos Nati-
vos norte-americanos em processo de ‘mestiçagem’ nas suas relações
internas/externas com as formações sociais dominantes.” (Godard,
Barbara, apud Boudreau, 1993: p.178). Tais palavras também poderi-
am caracterizar a produção literária indígena na América do Norte
francófona, no Québec, embora ela tenha tomado vulto muito mais
tardiamente que na América anglófona.

445
Um repertório de textualidades de autoria indígena veio sendo
constituído no Québec desde o século XVIII, o que se deve em boa
parte ao acesso precoce que os autóctones da região tiveram à palavra
escrita. Mas, nos primeiros tempos, esse repertório é constituído em
larga escala por petições, cartas mais ou menos oficiais, requisições
etc. Aí se pode perceber um grau considerável de participação autóc-
tone nas questões institucionais. Em contrapartida, os índios perma-
neceram quase ausentes da cena literária branca e das discussões e
elaborações concernentes a uma identidade nacional.
Diversamente do que se passou nos Estados Unidos, um corpus
propriamente literário de autoria indígena demorou a tomar forma
no Québec; várias de suas características, porém, são similares ao que
se encontra no resto da América do Norte:

“Os livros [que os autores ameríndios do Québec] escre-


vem possuem as mesmas características: as autobiografi-
as escritas por Ameríndios (An Antane Kapesh, Mathieu
André, etc.), os ensaios históricos e etnográficos (Daniel
Vachon, Marguerite Vincent, Pierre Gill, etc.), as narra-
tivas ou dramas-rituais (An Antane Kapesh, Yves Sioui
Durand), os poemas (Éléonore Sioui, grupo Kashtin) e a
prosa (Richard Kistabish) são o resultado de uma
‘mestiçagem’ entre as formas orais tradicionais e a escri-
ta. Efetivamente, eles contêm elementos da tradição e ten-
tam levar em conta imposições e regras da escrita, mas
sem corresponder aos gêneros reconhecidos pela tradi-
ção da história literária do Québec ou da França. Em
segundo lugar, a literatura escrita ameríndia constitui
um meio de dar a conhecer reivindicações, um inegável
veículo político.” (Boudreau, 1993: p.178-179)

A seqüência do desenvolvimento dessa literatura também é a mes-


ma, apesar da defasagem cronológica: dominam primeiro os ensaios
históricos e autobiográficos, depois vêm os poemas e romances. Assis-
te-se, agora, desde os anos 70, a um surto considerável de produção
escrita e impressa por parte de índios e de seus descendentes, sobre-

446
tudo, nos domínios do romance e da poesia. O interesse pela pesquisa
e registro da cultura tradicional e da literatura oral também foi
reavivado neste período, que se seguiu à aparição do chamado “Livro
branco”, em 1969, em que o governo canadense propunha a assimila-
ção dos ameríndios, convertidos em cidadãos canadenses. Associações
indígenas voltaram-se contra o projeto, promovendo a valorização da
indianité, e ajudando a provocar um verdadeiro surto literário, no qual
se destacaram autores como An Antane Kapesh (Inuit), Bernard
Assiníwi (mestiço Cri), George E. Sioui (Huron).

Literaturas indígenas do Brasil


A grande extensão territorial brasileira acolhe uma multiplicidade
muito grande de grupos indígenas, alguns ainda sem nenhum ou quase
nenhum contato com o mundo “civilizado”. Embora grande parte
das populações autóctones tenha sido dizimada, como em outras re-
giões americanas, muitas delas permanecem como sujeitos de uma
cultura viva, e não como objetos de pesquisa arqueológica: das 1300
línguas que supostamente existiam no território no momento da che-
gada dos portugueses, em 1500, cerca de 170 ainda são faladas no
país, das quais apenas cerca da metade já foi basicamente investigada
e descrita por etnólogos e lingüistas (Ricardo apud Silva, Grupioni,
1995, p. 30). Há portanto um quadro urgente e amplo de registro e
pesquisa ainda por realizar, para que cheguemos a ter um conheci-
mento menos lacunar da literatura desses povos.
De modo geral, entretanto, podem-se considerar, no universo
da comunicação verbal indígena, duas grandes séries de práticas
discursivas que, manifestando e gerando sentidos e efeitos
conjugadamente sociais e estéticos, podem ser consideradas forma-
doras de um patrimônio literário: as narrativas e os cantos, recobrindo
o principal de sua arte verbal em prosa e verso. A quase totalidade
desse patrimônio foi constituída na tradição oral. A produção de lite-
ratura escrita, por autores individualizados, é caso ainda muito ex-
cepcional. Também não é grande o acervo de documentos publica-

447
dos, mormente no caso do cancioneiro. Daremos adiante uma visão
sintética desse repertório.
Que textualidades deveriam integrar um corpus de literatura in-
dígena brasileira? Ao tentar circunscrevê-lo, devemos ter em mente
que se trata de configuração provisória e sujeita a reformulações, na
medida dos avanços de um conhecimento ainda incipiente. Os critéri-
os de identificação dos tipos de produção implicados são, necessaria-
mente, vacilantes e inseguros, porque, na verdade, não se tem ainda
um conceito firmado do que seja uma expressão poética indígena. E
tal conceito, se for possível construí-lo, não corresponderá imediata,
necessária e meramente a um corpus: será antes um amplo sistema
semântico e formal, relacionado a uma visão de mundo complexa e
diferente da nossa, e manifestado em modalidades textuais variadas e
de contornos freqüentemente imprecisos.
Há, portanto, a explorar um território textual e discursivo cons-
tituído por dois conjuntos de dimensões radicalmente desiguais,
construídos em circunstâncias e sob critérios diferentes: por um lado,
uma infinitude de textos produzidos por culturas iletradas, ágrafas,
gerados e consumidos por via áudio-oral, em forma de prosa narrati-
va ou em formato rítmico de versos, de que pequena parte já se en-
contra divulgada por escrito (note-se que parte considerável desse
acervo só se encontra traduzida para línguas estrangeiras, e publicada
fora do Brasil); por outro lado, textos autorizados por via da escrita
em primeira mão: prosa e verso produzidos por indivíduos indíge-
nas letrados. Já vimos que tal repertório encontra-se em vias incipientes
de constituição; e nele predominam textos produzidos em situações
especiais, combinando, por vezes, as circunstâncias novas de aquisi-
ção de uma segunda língua (o português) e aquisição da expressão
escrita. Esse conjunto tem como referência básica a produção realiza-
da no quadro de programas de educação indígena ligados a institui-
ções religiosas, ao Estado ou a Organizações Não Governamentais lei-
gas, as quais vêm ampliando, consideravelmente, o acesso dos índios
brasileiros à cultura escrita e aos meios técnicos de expressão.

448
A narrativa
Em sua Literatura oral no Brasil, Câmara Cascudo abre o capítulo
dedicado à literatura indígena evocando uma cena referida pela mai-
oria dos “seringueiros e cortadores de caucho, viajantes e pequenos
mercadores” que visitaram aldeias indígenas no norte e centro-oeste
do Brasil:

“Depois do jantar, noite cerrada, no pátio que uma fo-


gueira ilumina e aquece, reúnem-se os velhos indígenas,
os estrangeiros, para fumar e conversar até que o sono
venha. Evocações de caçadas felizes, de pescarias abun-
dantes, aparelhos esquecidos para prender animais de
vulto, figuras de chefes mortos, lembrança de costumes
passados, casos que fazem rir, mistérios da mata, assom-
bros, explicações que ainda mais escurecem o sugestivo
apelo da imaginação, todos os assuntos vão passando,
examinados e lentos, no ambiente tranqüilo.” (Cascudo,
1984: p. 78).

Como outras culturas orais, as culturas indígenas do Brasil são,


espantosamente, extensas e se manifestam de forma ampla e minuci-
osa em repertórios narrativos armazenados na memória e transmiti-
dos de geração a geração.

“O indígena conta, horas e horas. Conta, dias e dias, ou


melhor, noites e noites, um milhar de estórias de guer-
ra, caça, pesca, origem de várias coisas, o amanhecer de
sua família no mundo. Todas as coisas [...] têm uma His-
tória religiosa, hierárquica, e uma literatura folclórica
adjacente.” (Cascudo, 1984: p. 87).

As narrativas servem à transmissão do saber comunitário, cons-


tituindo o repositório e o veículo dos conhecimentos e tradições cul-
turais. Os agentes e circunstâncias de transmissão desse saber não são
exatamente os mesmos em todas as culturas e registros, mas certos
quadros recorrentes se apresentam nos testemunhos e documentos

449
de pesquisa. Por exemplo, tarefa e prerrogativa de narrar cabem, antes
de qualquer coisa, aos velhos; mas, em diferentes domínios e condi-
ções, também as mães são importantes narradoras.
A distinção entre os quadros narrativos da tradição oral - mitos,
lendas e fábulas - é questão freqüentemente abordada pelo estudo desse
repertório, e ocupou, particularmente, os folcloristas da primeira
metade do século XX. A definição mais complexa é a do mito, que não
se esgota numa caracterização textual - espécie de “constante em
movimento” (Cascudo, 1984: p. 105), capaz de informar representa-
ções imaginárias e textualidades de vários formatos. As lendas são lon-
gas narrativas sérias, que tratam, freqüentemente, da origem e expli-
cação das coisas que povoam a terra, a água e o céu, das nações indíge-
nas e seus costumes, integrando elementos heróicos e traços religio-
sos numa atmosfera carregada de sentido e elementos sobrenaturais.
Conta-se, por exemplo, o aparecimento e/ou a criação da mandioca,
do milho, do guaraná, dos fenômenos e elementos cósmicos. Aí se
encena uma explicação animista do mundo, segundo a qual a maioria
das coisas e dos grupos humanos teve origem na ação de animais
semidivinos, em sua relação com os seres humanos. É o caso, por exem-
plo, da mitologia da Jibóia, eixo central da cultura, relatos, cantos e
artesanato dos Kaxinawá.
Já as fábulas ou contos têm formato mais curto e personagens
animais, tematizando aspectos práticos e morais da vida cotidiana.
Constituem, segundo Câmara Cascudo, uma “expressão popular e
democrática” (Cascudo, 1984: p. 88), de sentido freqüentemente crí-
tico e/ou pedagógico.

“Nas fábulas pode intervir o sobrenatural, mas esse não


é o elemento típico. Nas lendas é a própria atmosfera. E
é preciso crer porque elas se articulam com o patrimônio
da tribo que nos hospeda. Quando a fábula denuncia
sua versatilidade pela etimologia, lembrando a conversa,
a palavra, o entreter das horas, com humor ou tristeza
nos contos evocados, a lenda, legenda, traz a idéia da lei-
tura, do gráfico, a imobilidade que se reveste de um li-
geiro ritual, determinando a meia certeza da credulida-
de.” (Cascudo, 1984: p. 98-99)

450
Às vezes o esforço de classificação converge com a associação
costumeiramente promovida entre o sistema narrativo indígena e o
das culturas ocidentais arcaicas e, ao mesmo tempo, “clássicas”, parti-
cularmente, a grega. A epopéia de Homero e a fábula de Esopo são
constantemente aludidas nessa aproximação, e, aliás, certas semelhan-
ças são mesmo flagrantes.
A respeito da épica de formato longo, associada aos mitos da ori-
gem e à formação das estruturas sociais, menciona-se o lento desen-
rolar da narrativa, com espaço para todas as digressões e minúcias, o
tema da viagem, o maravilhoso. A narrativa pode alongar-se indefini-
damente, e, também, interromper-se abruptamente. Há várias seme-
lhanças imediatas com a epopéia antiga, mas não se costuma verificar
nas narrativas indígenas aquele tom de “louvor” guerreiro que resso-
ava nos cantos homéricos. Narram-se o fio do tempo, pequenos deta-
lhes e, às vezes, situações muito cruas.
No âmbito da fábula, a narrativa indígena e a antiga (Esopo em
particular) têm em comum a importância e significação humana dos
bichos personagens, bem como a função crítica, moral e pedagógica.
As figuras centrais dos repertórios míticos e narrativos variam
segundo a nação, mas algumas avultam, como o jabuti, protagonista
das fábulas da Amazônia tupi, que articula um grande ciclo de relatos,
tal como acontece com o macaco, a onça e alguns outros protagonis-
tas zoomórficos. Os animais também servem para estruturar e justifi-
car mitologicamente a divisão entre clãs.
Entre as entidades fantásticas, cujas variantes circulam na cultu-
ra de diferentes nações indígenas brasileiras, destaca-se, por exem-
plo, o Curupira, pequeno índio de pés voltados para trás, gênio tute-
lar das florestas, cuja benevolência se procura obter com presentes e
oferendas, capaz de fazer os caçadores perderem-se no mato, mas,
também, de vir em seu auxílio. Ele, em algumas regiões, confunde-se
com o Caapora, que veio a ser um duende muito popular nas narrati-
vas tradicionais do Nordeste; mas o Caapora também se apresenta
como um homenzarrão escuro e taciturno, de cara e corpo peludos,
montado num enorme porco-do-mato.

451
Outra entidade de amplo espectro e domínio geográfico é o
Boitatá, serpente de fogo que vive à beira d’água, descrito por Anchieta,
em 1560, como “coisa de fogo, [...] o que é todo fogo, [...] um facho
cintilante correndo daqui para ali” (José de Anchieta, Cartas, informa-
ções, fragmentos históricos, apud Cascudo, 1972: p.153).
O Jurupari, que os missionários e cronistas coloniais apresenta-
ram como supremo espírito do mal, desempenhou o papel do demô-
nio no discurso catequizador. Porém tal interpretação, que denuncia
o viés maniqueísta cristão, seria corrigida mais tarde pelos etnólogos
do século XIX, como Stradelli, que o caracterizou como “legislador
divinizado, que se encontra como base em todas as religiões e mitos
primitivos” (Ermano Stradelli, “Leggenda dell’Jurupary”, apud
Cascudo, 1984: p.126). Enviado pelo sol para reformar os costumes
da terra, Jurupari subverteu o matriarcado primitivo, transferindo o
poder para os homens e ensinando-lhes segredos que seriam trans-
mitidos aos jovens machos por ocasião dos ritos iniciáticos da puber-
dade.
Em sua incorporação de motivos autóctones, a literatura
indianista romântica privilegiou, notadamente, os aspectos míticos e
heróicos das lendas de origem. O exemplo acabado é a Iracema, de
José de Alencar, subintitulada “lenda do Ceará”. Quanto à literatura
oral em português, foi ela mais informada pelos gêneros associados à
fábula, mitos e figuras da vida cotidiana e do presente. Essas modali-
dades influíram, consideravelmente, no folclore brasileiro, circulan-
do pelas vias do português ou, até o século XVIII, pela “língua geral”
tupi/nheengatu, e “mestiçando-se” com elementos da narrativa oral
de linhagem portuguesa e africana.
De toda maneira, tratando-se de mitos das origens (“histórias de
antigamente”, “histórias dos antepassados”, como as chamam os índi-
os em português) ou de passagens anedóticas sobre o cotidiano da
vida na floresta, a narrativa indígena apresenta-se como texto movente,
difícil de captar com instrumentos literários tradicionais. Normalmen-
te enunciada com o acompanhamento de ampla gesticulação e recur-

452
sos de dramatização, necessita, para ser analisada, de uma perspecti-
va poética centrada na transmissão oral e de corpo presente, vale di-
zer, na performance do narrador e na sua recepção pelos ouvintes.
A maior parte dos registros narrativos feitos por folcloristas e
etnógrafos é deficiente como informação literária, pois limita-se a cap-
tar os aspectos principais da trama ou a configuração dos mitos, esca-
moteando as peculiaridades do estilo narrativo indígena. Uma das
primeiras experiências mais completas de documentação do texto
narrativo foi empreendida, no início do século XX, pelo historiador
Capistrano de Abreu, que compôs o Rã-txa Hu-ni-ku-i com base em
longos depoimentos de dois jovens Kaxinawá.
Aos poucos, os modos de documentação dos relatos foram se
aperfeiçoando e tornando-se mais fiéis. Como para o conjunto das
manifestações literárias orais, um avanço enorme foi feito a partir da
invenção e difusão dos meios de registro e reprodução do som, e,
também, da imagem. Mais recentemente vêm-se realizando registros
nos quais são maiores a autonomia e a responsabilidade do informan-
te, que é convertido numa espécie de autor ou de auto-etnógrafo. Com
isso, alguns aspectos estéticos dos discursos narrativos indígenas co-
meçam a tornar-se mais sensíveis para nós, seus distantes leitores. Em
muitos registros atuais, atenua-se, embora não desapareça, a atuação
intermediária do homem branco: os gravados da boca dos narrado-
res tradicionais (geralmente os “velhos” da aldeia) e depois transcri-
tos para o papel, sempre em língua materna, geralmente por outros
índios; os feitos diretamente por escrito, em língua materna, por ín-
dios alfabetizados; traduções integrais, parciais ou sintetizadas dos
textos em língua original, realizadas por indígenas bilíngües; narrati-
vas escritas diretamente em português por índios bilíngües ou mes-
mo de nações que já perderam o uso do idioma ancestral, mas conser-
vam parte do acervo cultural da tradição. Exemplos desses repertóri-
os encontram-se em publicações como: Antes o mundo não existia: a
mitologia heróica dos índios Desaña, de autoria de Umúsin Panlõn Kumu

453
e Tolamãn Kenhíri, com introdução de Berta Ribeiro3 (1980); Torü
Duü’ügü, nosso povo, edição bilíngüe de relatos orais de dois Ticuna
(1985); Mantere Ma Kwé Tinhin: histórias de maloca antigamente, de
Pichuvy Cinta Larga (1988); a coletânea bilíngüe Shenipabu Miyui (His-
tória dos Antigos), obra de narradores, escritores e ilustradores
Kaxinawá (1995); Vozes da origem: estórias sem escrita, coletânea de nar-
rativas Suruí organizada por Betty Mindlin (1996); Moqueca de mari-
dos: mitos eróticos (1997) e Terra grávida (1999), coletâneas temáticas
reunindo vários grupos de Rondônia, com organização, também, de
Betty Mindlin.
Boa parte das publicações que abrem espaço para a “autoria”,
isto é, para a manifestação textual indígena produzida em primeira
mão, está associada aos programas de educação diferenciada desen-
volvidos no país por iniciativa do Estado, de instituições religiosas (como
o Conselho Indigenista Missionário), e, sobretudo, de ONGs (Orga-
nizações não governamentais) leigas. Shenipabu Miyui, por exemplo,
foi realizado por professores bilíngües Kaxinawá no quadro dos tra-
balhos da Comissão Pró-índio do Acre4; Vozes da origem está associado
ao projeto de pesquisa e educação do Instituto de Antropologia e Meio-
ambiente; o Conselho Indigenista Missionário editou Mantere Ma Kwé
Tinhin e Histórias de ontem e de hoje.
Nos casos acima, como em muitos outros, trata-se de narrativas
oriundas da tradição oral. Mas, em semelhantes circunstâncias edito-
riais, já se pode assinalar, também, a constituição incipiente de uma
literatura escrita em português (e, também, em certos casos, em lín-
gua materna) por indígenas, muitas vezes recém-letrados, exercendo
sua autoria individualmente ou em equipe, criando textualidades es-

3 Berta escreve na Introdução: “Na história da antropologia brasileira, esta é a primeira vez
que protagonistas indígenas escrevem e assinam sua mitologia. [...] Em primeiro lugar, isto
confere autenticidade incontestável ao conteúdo e forma narrativa, como expressão de fé e
construção literária. Em segundo lugar, documenta o resultado da simbiose entre o
conservantismo cultural e o uso de instrumento adquirido de nossa civilização para exprimi-
lo: a linguagem escrita.” (Kumu e Kenhíri, 1980: p.90).
4 O programa de formação docente da CP-I/Ac, responsável pela produção de grande
número de publicações didáticas elaboradas pelos próprios professores indígenas, intitula-se
justamente “Uma experiência de autoria”.

454
critas contemporâneas. Boa parte desse ainda pequeno acervo é cons-
tituída pela publicação, sob forma de materiais didáticos para os pro-
gramas especializados, de textos produzidos por índios sem objetivo
explicitamente “literário”, mas nos quais se manifestam uma visão de
mundo e um arranjo discursivo que impressionam por sua força po-
ética. Por exemplo, os textos do livro de leitura Estórias de hoje e de
antigamente dos índios do Acre, organizado por Nietta L. Monte (1984),
Geografia indígena, organizado por Marcia S. Rezende e Renato A.
Gavazzi (1992), e a primeira parte da Antologia da floresta; literatura
selecionada e ilustrada pelos professores indígenas do Acre, organizado por
Cláudia N. de Matos (1997) -, todos elaborados com a participação de
professores indígenas de diversas nações, e publicados sob a égide da
Comissão Pró-Índio do Acre; e os textos Ticuna d’O livro das árvores,
organizado por Jussara Gomes Grüber (1997), no quadro da Organi-
zação Geral dos Professores Ticunas Bilíngües.
Ainda são muito raros entre nós os autores indígenas de perfil
mais individualizado, mas já é possível apontar nomes como os de
Daniel Mundukuru (Histórias de índios, 1999; Coisas de índio, 2000) e
Kaka Werá Jecupé, Tapuia (Todas as vezes que dissemos adeus, 1994; A
terra dos mil povos: história indígena do Brasil contada por um índio, 1998).

A poesia dos cantos


A feição multiexpressiva das manifestações poéticas das culturas
orais, em que as palavras se conjugam estreitamente à voz, ao gesto, à
encenação, ao corpo, enfim, tem sido sublinhada e discutida por mui-
tos especialistas, como Paul Zumthor. É lugar-comum os estudiosos
de literatura oral se queixarem e se desculparem por não serem capa-
zes de dar conta ao leitor - às vezes tampouco a si mesmos -, da pleni-
tude de um sentido cuja produção teria um de seus fatores essenciais
na performance. Na documentação por escrito, escamoteiam-se vários
aspectos do evento original, notadamente nos casos em que a expres-
são em linguagem verbal se conjuga indissoluvelmente ao canto e à
música, ao gesto e à dança.

455
Tal dificuldade viria somar-se ao postulado corrente de que seria
indispensável, para compreender e interpretar tais textos, pesquisar
e reconhecer previamente o contexto em que são produzidos. O pres-
suposto aí é que a expressão poética, via linguagem verbal, fosse nula
de autonomia numa cultura em que tudo estaria cerradamente apri-
sionado em rituais e tradições pré-determinados em seu exercício e
alcance de sentido.
Nessa área de questões, a etnomusicóloga Hélza Camêo faz uma
reflexão singela e muito interessante. Considerando a fórmula básica
palavra + música + movimento, que se influem mutuamente na ex-
pressão artística, supõe que deve haver, todavia, uma linha central,
derivando de um ponto de partida, um estímulo, impulso inicial; e,
para Hélza, essa fonte geradora de expressão estaria seguramente na
palavra: “considerando-se o canto como resultante da exacerbação
emocional da palavra, que, na intensidade da emissão, adquire con-
teúdo musical, tornando-se expressiva e altamente impressiva”
(Camêo, 1977: p.12).
Como captar essa impressão, como se abrir a ela? Como ouvir e
compreender a palavra poética do índio? É preciso reconhecer as di-
ficuldades e resignar-se a só dar do assunto uma visão lacunar e in-
completa. Muita coisa provém de observação ainda fragmentária, par-
cial, restrita, condicionada pela pouquíssima informação disponível
sobre o assunto.
De toda maneira, é aos cantos, principalmente, que se adequa o
conceito de uma “poesia” indígena. A noção de poesia, aqui, se con-
cretiza na articulação de duas categorias expressamente literárias: por
um lado, aponta para o domínio da Lírica, a demanda pelo lirismo,
pela intimidade cultivada da linguagem que faz comunicar subjetivi-
dades individuais e sociais; por outro lado, aponta para o texto em
versos, aquele discurso que, numa cultura oral, formalizando-se e fa-
vorecendo a fixação mnemônica, cristaliza-se, privilegiadamente, em
texto.
As textualidades em verso, que costumam constituir o conjunto
mais caracterizadamente lírico dos repertórios culturais, são, nas lite-

456
raturas orais, quase sempre manifestadas no canto, associando-se com
a música e com a dança. A pesquisa da expressão poética indígena, ou
o material de que para ela dispomos, construiu-se em associação es-
treita com a pesquisa da expressão musical. Ambas foram objetos de
um prolongado desconhecimento por parte do branco, certamente
relacionado com a pouca influência que exerceram na cultura nacio-
nal. É verdade que nas últimas décadas os esforços da etnomusicologia
moderna, somados ao de etnolingüistas, reduziram a nossa ignorân-
cia e insensibilidade na matéria, que, todavia, permanece enorme.
Câmara Cascudo comenta que “a poética indígena foi, intrinse-
camente, o elemento de menor influência na literatura oral do Brasil”
(Cascudo, 1984: p.137). A matéria narrativa de fábulas e lendas foi
exportada dos acervos literários orais indígenas para, respectivamen-
te, o folclore em língua portuguesa e a literatura escrita brasileira. Os
cantos, ao contrário, permaneceram restritos ao âmbito das línguas
autóctones maternas, legando somente ao folclore geral escassos ver-
sos e motivos musicais, no âmbito dos acalantos e canções de roda.
Apesar disso, a poesia indígena não é um fato arqueológico - sua
antiqüíssima estirpe continua viva na voz dos cantores indígenas, nas
numerosas línguas autóctones ainda faladas no Brasil, e, mais recen-
temente, começou a se tornar acessível para nós. Alguma coisa de sua
sonoridade já se encontra divulgada em vinil ou CD documental, por
exemplo: A Arte vocal dos Suyá, realizado por A. Seeger (Museu Naci-
onal/Tacape, 1982); Paiter Marewá: cantam os Suruís de Rondônia (Me-
mória Discos e Edições LTDA, 1984); cantos amazônicos em Música
popular do Norte, vol. IV (Marcus Pereira); Kaapor, cantos de pássaros
não morrem (Unicamp/Minc-SEAC, 1988); Bororo vive (Museu Rondon/
UFMT, 1989) Xingu: cantos e ritmos (Philips/Phonogram); Ñande Reko
Arandu: memória viva guarani (Comunidade Solidária); Etenhiritipá:
cantos de tradição xavante (Quilombo Música/Warner Music Brasil
LTDA, 1994) etc. Há também versões mais ou menos estilizadas, como
em Txai, de Milton Nascimento (CBS, 1990); e na coletânea, realiza-
da por Marlui Miranda, com cantos de diferentes nações, Ihu – Todos
os sons (Pau-Brasil, 1995), cujo material também foi divulgado em song-
book (1996).

457
Já o acesso aos textos é mais complicado, defrontando-se com
obstáculos que a tecnologia material não basta para superar. A letra
das canções parece ter resistido mais ainda que a expressão ritmo-
melódica (instrumental e vocal) ao conhecimento do homem branco.
Os estudiosos que trabalharam mais com o discurso verbal indígena
reservaram sua atenção ao código (lingüistas) e às estruturas narrati-
vas mitológicas (antropólogos -, que também costumaram tratar essas
narrativas como uma língua).
O pouco que se tem de traduções dos cantos foi empreendido de
maneira assistemática e visando a um conhecimento basicamente an-
tropológico e/ou complementando estudos etnomusicológicos. O re-
gistro inaugural é o de Jean de Léry, que em Viagem à Terra do Brasil
(1ª edição em 1578), anota letra e melodia de uns poucos fragmentos
de canções Tupinambá. Pouquíssima coisa será acrescentada antes do
século XX a esse acervo; por exemplo, algumas pequenas peças apre-
sentadas por Couto de Magalhães em O Selvagem (1ª edição em 1876),
e a série de canções recolhidas por Barbosa Rodrigues na Poranduba
amazonense (1890). Mais recentemente podem-se mencionar (no que
diz respeito aos textos) os cantos Ariti coletados e traduzidos por Cân-
dido Rondon e João Barbosa Faria em Esboço gramatical; vocabulário;
lendas e cânticos dos Índios Ariti (Pareci) (1948); alguns cantos cerimo-
niais Suyá em Os Índios e nós, do etnomusicólogo Anthony Seeger
(1980); cantos xamanísticos Kadiwéu apresentados por Darcy Ribei-
ro em Kadiwéu; ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza (1980);
um canto de pajé em Araweté; o povo do Ipixuna, de Eduardo Viveiros
de Castro (1992); algumas canções intercaladas nas narrativas Suruí,
publicadas por Betty Mindlin, em Vozes da origem (1996); cantos festi-
vos Kuikúro, analisados por Bruna Franchetto, no ensaio “Tolo
Kuikúro: ‘Diga cantando o que não pode ser dito falando’” (1997);
trechos de cantos de cipó5, analisados por Cláudia N. de Matos, em “A
Canção da Serpente: poesia dos índios Kaxinawá” (1999).

5 Cantos rituais que acompanham a viagem alucinógena provocada pela ingestão de uma
bebida preparada com alguns tipos de cipó e folhas da floresta amazônica.

458
Até o momento não se pode dizer que exista produção individu-
al de poesia escrita por parte de indígenas brasileiros. As raríssimas
exceções - que aliás incluem alguns textos de grande força poética -
situam-se, mais uma vez, no âmbito dos projetos de educação diferen-
ciada. Alguma coisa pode ser encontrada, por exemplo, na já mencio-
nada Antologia da floresta, da Comissão Pró-Índio do Acre, ou no Livro
de poesias do Instituto de Antropologia e Meio-ambiente.
A primeira e maior dificuldade para o estudo das letras dos can-
tos indígenas, que constituem boa parte da produção discursiva que
poderíamos chamar de lírica, é pois a escassez de documentação. O
fato de a tradução dos textos em versos apresentar maior dificuldade
que a dos textos narrativos em prosa terá, certamente, contribuído
para aumentar essa lacuna. Por outro lado, as poucas tentativas de
análise e interpretação deste material destacam, geralmente, as fun-
ções xamânicas e cultuais do cancioneiro, seguindo uma linha da An-
tropologia que remonta à “ciência das religiões” do século XIX.
Os cronistas coloniais referiam-se, freqüentemente, à
ininteligibilidade do que diziam os índios ao cantar. E, na verdade,
mesmo que não houvesse a barreira do idioma, talvez não fosse fácil
para ouvidos e cabeças de branco compreender essa linguagem forte-
mente estilizada e figurada, que opera com a elipse, a síntese e o su-
bentendido. Essa linguagem poética que, como toda linguagem poéti-
ca, aciona a materialidade do código, explora a estética metafórica, o
enigma, as zonas de intraduzibilidade. Mesmo atualmente, colocam-
se grandes dificuldades na transposição dos textos em versos para o
português. Quando se tenta encetar uma tradução ou quando se lêem
traduções alheias, tem-se, muitas vezes, à primeira vista, a impressão
de que falta nexo ao texto.
Aos poucos se estão constituindo amostragens mais consistentes.
Aí se destaca a grande contribuição potencial que podemos esperar
dos projetos educacionais indígenas desenvolvidos nas últimas déca-
das. Expandindo o acesso dos índios ao mundo da escrita, e, investin-
do freqüentemente no bilingüismo e na preservação da cultura
endógena viva, esses programas também cuidaram de desenvolver

459
convenções de grafia para as línguas maternas, e estimular o registro
de textualidades nessas línguas por parte dos próprios indígenas. Dou
como exemplo o livrinho Nuki Mimawa (Nossa Música), editado em
1995, pela Comissão Pró-índio do Acre. Trata-se de uma coletânea de
letras de cantos Kaxinawá na língua original, resultado de gravações e
transcrições realizadas por um grupo de professores indígenas bilín-
gües.
É interessante notar que a escrita, bem como o toca-fitas - ele-
mentos integrantes do aparato de dominação cultural -, tenham sido,
justamente, o meio disponível para resistir a essa dominação, desen-
volvendo um trabalho cujo sentido foi, assumidamente, o de revitalizar
a tradição cultural nativa, preservando, da degradação e do esqueci-
mento, um patrimônio cultural ameaçado pelas pressões culturais
heterógenas no contato com o mundo dos brancos. Joaquim Maná de
Paula, principal organizador do trabalho, escreve na Introdução:

“Este livro de música Kaxinawá foi um trabalho de al-


guns professores interessados em registrar sua cultura
no momento em que a língua Kaxinawá passou a ser
dominada pela escrita. [...] Nosso objetivo é que essas
músicas façam parte da disciplina de línguas das escolas
indígenas Kaxinawá, onde os professores possam apren-
der e ensinar aos seus alunos. Não só aos alunos, mas
todo o povo da comunidade envolvente. Para que eles
possam se expressar, aprender e fortalecer a nossa lín-
gua materna Hãtxa Kui [língua verdadeira].” (Joaquim
Maná, in Nuku Mimawa, 1995: s/pág.)

A língua das canções é ao mesmo tempo circunscrita e plena. As


narrativas podem, eventualmente, apresentar alguns termos ligados à
cultura ou ao idioma do branco. Não os cantos, que, conservados mais
rigorosamente em sua forma tradicional, constituem uma espécie de
viveiro e cartilha da língua materna em estado puro. A isso se refere
Joaquim Maná, quando diz: “Pra você saber que está falando bem sua
língua, você tem de aprender várias letras”. Essa mesma pureza lin-

460
güística seria correlata a certo grau de intraduzibilidade: “Quando
você canta, não entra uma palavra em português. Nas traduções a
gente vê que tem umas palavras que não dá pra traduzir.” 6
Para a tradução dos cantos deve-se contar com a colaboração
indispensável de indígenas bilíngües, proficientes em língua portu-
guesa, e, ao mesmo tempo, profundamente vinculados à sua cultura
original. Há muitas peculiaridades a considerar em sua significação e
função. Carregados freqüentemente de sentido ritual, podem jogar
com simbolismos complexos, exprimindo-se numa língua “antiga”,
elítica e estilizada, que aos próprios índios apresenta zonas de obscu-
ridade -, não só quanto à interpretação dos sentidos, mas até na com-
preensão de alguns termos desusados ou pertencentes a repertórios
especiais.
Quanto ao repertório de cantos nas línguas indígenas ainda fala-
das no Brasil, o necessário é portanto: 1) registrá-lo - tarefa urgente,
como sempre a viram e pintaram os aficionados dos muitos tipos de
folclore; 2) traduzi-lo - tarefa fascinante, complexa e árdua, na qual as
dificuldades habituais de qualquer tradução de versos poéticos se so-
mam às criadas pela extrema distância e diversidade cultural e lin-
güística; 3) lê-lo/interpretá-lo - tarefa multidisciplinar, mas à qual o
olho/ouvido literário não pode deixar de trazer sua essencial contri-
buição. A 1ª tarefa caberá, preferencialmente, a pesquisadores indí-
genas, bastando que lhes forneçamos os meios para fazê-lo; a 2ª, e,
certamente, também a 3ª, requerem a colaboração das duas partes
interessadas: especialistas brancos e índios.
Os gêneros são muitos, variando no formato discursivo: celebra-
ção, solilóquio lírico, exortação, invocação, magia, cura; cantos de le-
tra linear e cantos de refrão, baseados na repetição. A temática é mais
variada do que fizeram crer os primeiros informantes, incluindo a
vida cotidiana, o trabalho, as sensações, a sedução e o sentimento amo-

6 Estas afirmações foram feitas por Joaquim Maná Kaxinawá em conversas gravadas por
mim, ao longo do trabalho de tradução, que realizamos em conjunto, de alguns cantos do
Nuku Mimawa.

461
roso etc. Aliás, já em 1587, Gabriel Soares de Souza dava notícia da
diversificação temática e funcional dos cantos indígenas, apontando
entre esses “músicos de natureza” a ocorrência de cantos de “chaco-
ta”, cantos rituais de plantio, odes às coisas naturais etc.
A lírica indígena não trabalha muito com abstrações (o que não
quer dizer que não opere com metáforas). A linguagem se mostra
apegada ao mundo concreto, movendo-se sobre fortes referências
empíricas, e praticando toda forma de animização. Borrando os limi-
tes (pelo menos para nossa compreensão de “estrangeiros”) entre o
sentido próprio e figurado, essa linguagem projeta um mundo mar-
cado de plenitude anímica e poética.
As coisas da Natureza, bichos, árvores, céu, astros, águas e ven-
tos, são assunto de poesia, quer diretamente, quer indiretamente, for-
necendo o referencial metafórico para falar também das relações hu-
manas e culturais. A distinção conceitual e - digamos assim - existen-
cial entre Natureza e Cultura, que baliza o conhecimento ocidental do
mundo, é entre os índios mais tênue; talvez fosse melhor dizer que a
relação entre os dois termos é para eles mais cerrada e vital.
Se insistimos em perceber pontos de contato entre os cantos das
diversas culturas indígenas, tentando captar as estruturas fundamen-
tais de sua linguagem poética, o que apreendemos, à primeira vista,
não difere muito do que caracteriza a poesia em geral: ritmias, repeti-
ções, paralelismos, procedimentos metafóricos e alegóricos. Todavia,
vale sublinhar, mais uma vez, a multiplicidade de formas e motivos
desses cantos, facilmente constatável mediante uma breve considera-
ção do repertório disponível, e contraposta à perspectiva
homogeneizadora tradicional. A diversidade verifica-se no interior
dos grupos e entre eles, projetando enorme variedade de gêneros,
assuntos, procedimentos estilísticos de natureza sintática ou semânti-
ca, imagística, inserções sócio-culturais, modos de produção e recep-
ção. Não se pode mais imaginar a poesia indígena envolta num véu
unificador que secundarize as diferenças internas, diferenças que aju-
dam a criar e perceber sua complexidade e historicidade.

462
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464
TRANSCULTURAÇÃO E
TRANSCULTURAÇÃO NARRATIVA

Lívia de Freitas Reis


Universidade Federal Fluminense

Una literatura nace siempre frente a una


realidad histórica y, a menudo, contra esa realidad.
La nuestra no es una excepción a esa regla. Su
carácter singular reside en que la realidad contra la
que se levanta es una utopía. Nuestra literatura es la
respuesta de la realidad real de los americanos a la
realidad utópica de América.
(Octavio Paz)

O termo transculturação surge pela primeira vez em 1940, no


livro Contrapunteo cubano del azúcar y del tabaco, de Fernando Ortiz. O
vocábulo tornou-se referência obrigatória, sobretudo, na área da
antropologia, para toda reflexão sobre o fenômeno da mestiçagem
não apenas em Cuba, mas, por analogia, em toda a América.
Em Cuba, Ortiz é chamado o “terceiro descobridor”, depois de
Colombo e Humboldt, pois sua vasta obra científica foi um dos
principais fatores na formação identitária de Cuba. Durante sete
décadas ele escreveu livros, artigos para jornais, proferiu conferências,
criou inúmeras revistas, editoras e instituições culturais. O fundamento
de suas reflexões e as múltiplas facetas do pensador e do homem de
cultura sempre giraram em torno de um tema principal: Cuba e a
dinâmica de sua formação social, econômica e cultural.
Segundo o escritor cubano, Lisandro Otero, “um dos primeiros
problemas de Ortiz, no desempenho de suas investigações, foi a falta
de instrumentos adequados à sua nova tarefa: não e xistiam
precedentes, nem vocabulário científico adequado à descrição dos
fenômenos que investigava” (Otero, 1982, p. 35).1
A partir da necessidade gerada pela carência de uma terminologia
científica própria, para as então nascentes ciências sociais, Ortiz criou
novos termos como, por exemplo, afro-cubano, e aquele mais
conhecido, e que nos interessa discutir neste momento:
transculturação, empregada pela primeira vez no ensaio em tela.
“Do fenômeno social da transculturação e de sua importância
em Cuba”, é o segundo capítulo, daquele que vem a ser a o livro mais
importante e conhecido do escritor cubano: Contrapunteo cubano del
azúcar y del tabaco. Nesta obra Ortiz analisa a história econômica de
Cuba, intimamente ligada à cultura da cana e do tabaco. Por seu estilo,
no limiar entre o literário e o ensaístico, por sua prosa irônica e
irreverente, pelas freqüentes brincadeiras e jogos de palavras, a obra
reduz a distância entre o olhar científico e o objeto. Como afirma
Roberto González Echevarría, “o Contrapunteo define o cubano a partir
do cubano, em um discurso cubano e mediante uma metodologia
cubana” (Echevarría, 1996, p. 25)
Ao longo dos capítulos, o autor constrói um jogo dialético entre
o açúcar e o tabaco, principais produtos de Cuba, elementos
primordiais no desenvolvimento da economia cubana, do passado
colonial aos dias de hoje. Utilizando o contraponto musical como base
de seu texto antropológico-literário, ele constrói uma melodia textual
na qual os elementos fundadores da cultura cubana são colocados
ponto contra ponto, nota contra nota e os produtos se transformam
em entidades abstratas: o branco do açúcar e o marrom do fumo, o
doce e o amargo, o alimento e o veneno, a carne e o espírito, o sol e a
lua, o dia e a noite, a água e o fogo. O contraponto de elementos
culturais, aliado à uma imaginação exuberante e a uma documentação
científica vasta e precisa, resulta em uma obra sem igual.

1 Todas as traduções ao longo do texto são de minha autoria.

466
O ensaio, além de propor o uso do conceito teórico da
transculturação é, dentro do conjunto do livro, aquele mais
preocupado com as questões relativas às ciências sociais. Ao traçar
uma arqueologia da formação do povo cubano, o autor visita os diversos
grupos que se mesclaram e resultaram no que hoje chamamos de
cubanos. Desde as origens pré-históricas, marcadas pela presença de
diversos povos indígenas, nativos da ilha, em diferentes graus de
desenvolvimento, até a chegada dos europeus com seu “furacão
cultural” e, por último, dos negros, oriundos de várias etnias africanas,
a história de Cuba foi a história do encontro múltiplo e variado, não
apenas de povos, etnias, raças, mas, sobretudo, de culturas e economias
distintas, em choque permanente.
O ponto principal e a razão pela qual Ortiz advoga a criação de
um novo vocábulo são, segundo sua própria argumentação, a
inexistência de um termo que possa abarcar e significar este processo
sempre em movimento, que é o encontro dos povos e de suas culturas.
O vocábulo proposto, transculturação, designa

as fases do processo de transição de uma cultura a outra,


já que este não consiste somente em adquirir uma cultu-
ra diferente, como sugere o sentido estreito do vocábulo
anglo-saxão, aculturação, mas implica também necessa-
riamente a perda ou desligamento de uma cultura pre-
cedente, o que poderia ser chamado de uma parcial
desculturação, e, além disso, significa a conseqüente cri-
ação de novos fenômenos culturais que poderiam ser
denominados neoculturação. (...) No conjunto, o pro-
cesso é uma transculturação e este vocábulo compreende
todas as fases da trajetória. (Ortiz,1983, p. 90)

Este ensaio de Ortiz, bem como grande parte de sua obra, teve
como inspiração o interesse do antropólogo/sociólogo pela cultura
negra que, transplantada da África, floresceu em Cuba, gerando
inúmeros fenômenos culturais. Ao longo do texto, pode-se vislumbrar
que entre as variadas transculturações, que marcaram a história de
Cuba, nenhuma foi mais cruel que a dos negros, pois estes, como os

467
brancos, chegaram a um novo mundo que lhes era totalmente
estranho. Porém, enquanto os brancos chegaram com o afã civilizatório,
de conquista e de riqueza, os negros foram transplantados totalmente
contra sua vontade. Para Ortiz, embora o processo seja doloroso para
todos, os negros, por sua condição de absoluta subalternidade em um
sistema escravocrata, foram os que mais sofreram no movimento de
transplantação espacial e cultural, corte radical com suas raízes, enfim,
transculturação.
Para o autor, a necessidade do neologismo proposto é vital, pois
não há nenhum outro fenômeno de maior transcendência na formação
histórico-social do povo cubano que a mestiçagem, e esta não pode ser
entendida sem um conceito teórico que lhe dê sustentação, pois a noção
de transculturação ultrapassa a visão limitada de mestiçagem racial,
para significar o movimento que subjaz ao encontro de culturas. É
interessante perceber que na mesma época, no Brasil, o antropólogo
Gilberto Freyre produzia reflexões que mantêm um nítido diálogo
com o pensamento de Ortiz, sem que seus autores tivessem
conhecimento entre si.
O exame atento do texto aponta para a possibilidade de leituras
em várias direções: como documento etnográfico, análise sociológica,
antropologia social, história cultural, além dos méritos literários,
resguardados por uma linguagem rica em metáforas, imagens,
comparações, aliterações, reiterações, ritmo etc. Para além destas
possibilidades de leitura, deve-se, ainda, ressaltar a extrema
contemporaneidade da reflexão elaborada por Ortiz, em um trabalho
produzido em 1940.
A forma pouco ortodoxa com que Ortiz analisa o processo
civilizatório que se deu em Cuba, com suas sucessivas ondas migratórias
de origens e culturas diversas, seus conseqüentes des/encontros,
choques, disputas, aplastamento racial, desarraigamento cultural e
geográfico, para alcançar, enfim, a dolorosa convivência e posterior
interpenetração cultural, em nada faz lembrar as teorias de corte
positivista. Mesmo com uma certa dose de empirismo, não se pode
negar que no Contrapunteo, Ortiz logrou construir uma obra síntese,

468
de equilíbrio teórico e metodológico, sustentada por uma reflexão
original, desvinculada das amarras teóricas das principais correntes
da época. O antropólogo cubano foi pioneiro ao elaborar um edifício
teórico capaz de entender e explicar os paradoxos culturais que fazem
parte da origem e formação dos povos latino–americanos, sempre
buscando uma forma de ver o homem em sua multiplicidade, de
ressaltar seu potencial ativo e criativo. Além disto, como afirma Silvia
Spitta (1995), ele toma a música como referencial da dinâmica
intercultural da América Latina, elemento exemplar para demonstrar
a dinâmica dos processos de transculturação.
O conceito, mesmo que sujeito a críticas quanto a sua natureza
pouco precisa, foi rapidamente incorporado pelo discurso nacionalista/
crioulista latino-americano e, muitas vezes, utilizado como sinônimo
de mestiçagem cultural. No entanto, sua pertinência permanece, e o
conceito de transculturação continua na base de inúmeras reflexões
acerca da questão identitária, não apenas em Cuba, mas em toda a
América Latina.
O contexto de crises e mudanças que ocorrem por todo o
hemisfério ocidental nos anos de 1960, na América L atina,
simultaneamente ao movimento nas ciências sociais, que investigam
terminologias capazes de dar respostas à necessidade de conhecer e
descrever uma realidade que se sabe diferente, a produção literária
vive o momento do boom, também conhecido por “nova narrativa”,
que vem a ser uma rica floração de textos de ficção narrativa,
produzidos ao longo da década de 60 que, à sua maneira, também
buscaram falar uma linguagem nova para expressar a identidade de
um continente jovem e desconhecido.
A partir do conjunto de dados históricos e culturais específicos
do momento de inquietação que caracterizam os anos 60, podemos
localizar a contribuição de Ángel Rama, no artigo Los procesos de
transculturación en la narrativa Latinoamericana, de 1974, e no livro
La transculturación narrativa em Latinoamérica, de 1982. Em ambos os
textos, o crítico uruguaio desenvolve um aparato teórico que dá
sustentação à sua reflexão sobre a narrativa do continente no século

469
XX. O ponto de partida de Rama, tanto no artigo, quanto no livro, é
a descrição e discussão do conflito entre vanguardismo (modernismo2)
e regionalismo. Para Rama a introdução de novas formas literárias
pelos vanguardistas durante a segunda metade dos anos 30, nos
conglomerados urbanos da América Latina, significou o “cancelamento
do movimento narrativo regionalista que predominava na maioria das
áreas do continente e dentro do qual haviam se expressado tanto em
áreas de médio e escasso desenvolvimento educativo, como as mais
avançadas” (Rama, 2001, p. 209). Diante do impacto e da pressão
modernizadora de inspiração estrangeira, são três as respostas dos
regionalistas: aceitação absoluta das novas formas literárias; a rigidez
cultural, que rejeita toda novidade estética, e o que Rama define como
“plasticidade cultural” de uma produção literária, que integra as novas
estruturas formais sem recusar as próprias tradições. Esta proposta é
o que ele vai chamar de literatura de transculturação.
Rama utiliza o termo, a partir da apropriação do sentido de
transculturação definido por Ortiz. Isto é, a transculturação não
consiste em adquirir uma cultura, o que ele entende como aculturação;
transculturação implica em processos de aculturação, de desculturação
parcial e de neoculturação. A noção de processo descrita por Ortiz
agrada a Rama, sobretudo, porque traduz um perspectivismo latino-
americano “inclusive no que pode ter de interpretação incorreta por
considerar a parte passiva ou inferior do contato de culturas, a
destinada às maiores perdas, sem nenhum tipo de resposta criativa”
(Rama, 1982a, p. 33).
O conceito de “transculturação narrativa” nasce na transposição
do conceito antropológico/cultural elaborado por Ortiz às obras
literárias. A partir deste ponto, Rama elabora seu conceito partindo
de correções no conceito original: para o uruguaio, a visão de Ortiz é
geométrica, de acordo com três momentos, ou seja, no primeiro há

2 Vanguardismo ou vanguarda, no mundo hispânico, correspondem aos movimentos estéticos,


das décadas de 20/30, conhecidos, no Brasil, como modernismo . Por sua vez, o termo
modernismo, em espanhol, se refere ao movimento estético que floresceu no mundo hispano-
americano, entre o fim do século XIX e início do XX, sobretudo, na poesia e tem como
principal expoente o poeta nicaragüense Rubén Darío.

470
uma desculturação parcial, que pode ter vários níveis e alcançar
diferentes zonas, tanto dentro da cultura, como da literatura, embora
acarrete sempre em alguma perda de componentes considerados
ultrapassados. Em um segundo momento, há assimilações e
incorporações procedentes da cultura externa em um movimento de
reaculturação. O terceiro momento se caracteriza por um esforço de
acomodação, de recomposição dos elementos sobreviventes da cultura
originária com os influxos que vêm de fora.
Este modelo não atende adequadamente nem aos critérios de
seleção, nem aos de inventividade, postulados obrigatórios em todos
os casos de “plasticidade cultural”, uma vez que eles legitimam a energia
e a criatividade de uma comunidade. Para Rama, esta seleção obedece
a um comportamento peculiar das sociedades latino-americanas que,
ao se tornarem independentes, no processo de formação de sua
identidade, procuraram selecionar justamente os elementos que as
sociedades européias e americanas postergaram em seu processo
evolutivo, destacando-os de seus contextos para os fazerem seus, numa
operação arriscada e abstrata.
Esta capacidade de seleção, aplicada também na própria cultura,
faz com que esta sofra grandes perdas e mutilações. O empenho na
busca de valores resistentes, mais enraizados e fortes o suficiente para
enfrentarem os perigos de um empobrecimento decorrente do
processo de transculturação são, na verdade, uma expressão da
criatividade dessas culturas, que vão elaborar o que Ortiz chama de
neoculturação, fruto das duas culturas postas em atrito. Aqui ocorrem
as perdas, seleções, assimilações e redescobertas, operadas
simultaneamente, resolvidas em um amplo remanejamento cultural.
Dentro do processo de transculturação, esta é a fase de maior função
criativa. “Utensílios, normas, objetos, crenças e costumes, somente
existem em articulação viva e dinâmica, que é a que desenha a estrutura
funcional de uma cultura” (Rama, 1982a, p. 39).
Aprofundando o entendimento da teoria de Ángel Rama,
percebe-se que, para o autor uruguaio, três operações fundamentais
ocorrem no interior das narrativas por ele consideradas
transculturadas: o uso da língua, a estruturação literária e a cosmovisão.

471
A primeira operação ocorre na língua. Desde o final do século
XIX, com o primeiro impacto modernizador provocado pelo
modernismo na América Hispânica, a língua surge como um escudo
de defesa e prova da independência. O postulado modernista apontou
dois caminhos: um de reconstrução purista da língua espanhola
clássica e outro que buscava transformar o registro americano do
espanhol em norma culta para a literatura. Os escritores regionalistas,
da primeira década do século XX, se esforçam em fixar um sistema
que permitisse alternar a língua culta do modernismo com o falar
dialetal de seus personagens, na maioria rurais, com o objetivo de
ambientá-los de forma realista. Não se trata apenas de um registro
fonético, e, sim, de uma reconstrução sugerida pelo manejo de um
léxico regional, de formações fonéticas dialetais e, em menor grau,
construções sintáticas locais. Para resolver os problemas de diversos
registros regionais, foram utilizados alguns recursos que marcassem
estas diferenças, como o uso de aspas, a adoção de glossários e
apêndices explicativos para marcar os usos de falares americanos, que
não faziam parte do Dicionário da Real Academia Espanhola. Essas
soluções literárias demonstram uma grande ambigüidade lingüística,
ao mesmo tempo em que refletem e reforçam a estrutura social, na
qual os escritores ocupam um lugar superior com relação aos estratos
inferiores da sociedade, devido à sua educação e manejo da norma
culta do idioma.
Sob o efeito da modernização, no momento seguinte, os herdeiros
e transformadores do regionalismo introduzem mudanças mais
efetivas. Reduzem o uso de dialetismos e de termos estritamente
americanos, abandonam a fala popular compensando com o uso mais
confiante da fala americana própria de cada escritor. Eliminam o uso
do glossário, por entender que as palavras regionais transmitem seu
significado a partir do contexto lingüístico, diminuem a distância entre
a fala do narrador-escritor da fala dos personagens, provocando uma
maior unidade lingüística e artística na obra. Quanto aos personagens
que utilizam algum falar autóctone, os narradores transculturados
procuram encontrar uma equivalência dentro do espanhol, forjando

472
uma língua artificial e literária que, sem quebrar o tom unitário da
obra, permita registrar as diferenças do idioma. Com esses mecanismos
de uso da língua, os escritores propõem a unificação lingüística do
texto literário, com uma evidente concepção de organicidade artística
mais moderna, graças a “uma nova e impetuosa confiança na língua
americana própria, que o escritor maneja todos os dias”. (Rama, 1982a,
p. 41)
No caso dos escritores regionalistas, em processo de
transculturação, o léxico, a prosódia e a morfossintaxe da língua
regional se transformaram em ferramenta para realçar os conceitos
de originalidade e criatividade. Desta forma, solucionaram a unidade
da criação artística, de acordo com os padrões da norma modernizante.
Deixaram de marcar a diferença entre o padrão culto oficial e, ao
mesmo tempo, esta língua literária artificial se destaca, ocupando a
totalidade da obra e o lugar do narrador ao expressar sua visão de
mundo, sua perspectiva na ação literária. Sua legitimização se dá no
uso de formas léxicas ou sintáticas próprias, características do espanhol
americano. Desta forma, o autor se reintegra à comunidade lingüística
e fala a partir do universo cultural americano, descrevendo-a
livremente através de seus usos idiomáticos. O escritor não tenta imitar
a fala regional. Ao sentir-se parte dela, procura elaborá-la com
finalidades artísticas, investigando as possibilidades múltiplas que a
língua proporciona para a construção da língua especificamente
literária.

Aqui há o fenômeno de neoculturação, como dizia Ortiz.


Se o princípio da unificação textual e da construção de
uma língua literária própria da invenção estética pode
responder ao espírito racionalizador da modernidade,
compensatoriamente a perspectiva lingüística, da qual
se assume a visão regional do mundo, prolonga sua vi-
gência em uma forma ainda mais rica e interior que an-
tes, expandindo assim a cosmovisão originária em um
modo mais ajustado, autêntico, artisticamente solvente,
ao mesmo tempo modernizado, mas sem destruição da
identidade (Rama, 1982a, p. 43)

473
A estruturação literária é, segundo Rama, outro mecanismo
utilizado pelos narradores transculturados que, neste caso, tiveram
que enfrentar problemas que pediam soluções mais complexas que
aquelas encontradas no nível de uso da língua. Neste aspecto, o autor
considera que “a distância entre as formas tradicionais (locais) e as
modernas, (estrangeiras), era muito maior” (Rama, 1982a, p. 43). O
romance regionalista, que tinha sido elaborado sobre o modelo do
naturalismo do século XIX, se vê frente a uma variedade de recursos
vanguardistas, que já haviam sido absorvidos pela poesia e logo depois
disseminados na narrativa urbana, especialmente, no caso argentino,
no fantástico. O romance regional era descendente direto de uma
concepção rígida, racionalista, filho do sociologismo e do psicologismo
do século XIX, apenas levemente rejuvenescido pela filosofia de fim
do século. Com essa filiação e tradição, pode-se avaliar o difícil
enfrentamento entre o romance regionalista e os novos cânones
introduzidos pelas vanguardas.
Ainda no nível das estruturas literárias, o regionalismo retrocedeu
ainda mais ao manancial da cultura tradicional na busca de
“mecanismos literários próprios, adaptáveis às novas circunstâncias e
suficientemente resistentes à erosão modernizadora. A singularidade
das respostas corresponde a uma sutil oposição às propostas
modernizadoras” (Rama, 1982a, p. 44). Desta forma, em vez da
fragmentação da narração ao estilo de James Joyce, que dominou o
panorama das narrativas das vanguardas, João Guimarães Rosa, em
Grande sertão veredas, resgata o tradicional monólogo discursivo, que
tem suas fontes tanto na narrativa clássica quanto na oral, de origem
popular. Juan Rulfo, em Pedro Páramo, reinventa o falar dispersivo
das “comadres”, que se intercalam com vozes sussurrantes, para fazer
frente à justaposição de pedaços soltos na narração, utilizados por
Huxley e John Dos Passos. Ambas as soluções se fundam na narração
oral e popular. Outro exemplo, apontado por Rama, é García Márquez
que, para resolver a equação de conjugar, em um plano de
verossimilhança histórica, as ações que se realizavam no plano do
maravilhoso, em Cem anos de Solidão, encontrou uma solução simples

474
e original: lembrou-se de uma de suas tias que, diante de situações
inusitadas, reagia de forma natural, sem o menor sinal de espanto.
Esta naturalidade diante do irreal, do fantástico, do extraordinário,
aliada às fontes da narrativa oral e de uma visão de mundo que rege
seu comportamento estilístico, foi a chave que o autor colombiano
utilizaria em grande parte de sua obra.
Ao lado do êxito da operação transculturadora no nível das
estruturas narrativas, como nos exemplos estudados por Ángel Rama,
o regionalismo também sofreu grandes perdas no que se refere às
estruturas narrativas frente ao impacto modernizador.

Naufragou grande parte do repertório regionalista, que


só sobreviveu em alguns epígonos e, curiosamente, na
linha da narrativa social posterior a 1930. Estas perdas
foram, ocasionalmente, substituídas pela adoção de es-
truturas narrativas vanguardistas...mas estas soluções
imitativas não renderam o dividendo artístico que pro-
duziu a volta a estruturas literárias pertencentes à tradi-
ções analfabetas” (RAMA, 1982a, p. 46).

Além da língua e da estrutura literária, a cosmovisão é o terceiro


nível das operações transculturadoras que funcionam no interior das
narrativas, segundo a descrição de Rama, e, seu papel é de vital
importância, pois, ela engendra os significados. Neste terreno os
herdeiros do regionalismo lograram os melhores resultados, por ser
a cosmovisão o espaço onde se consolidam os valores e as ideologias e
ser reduto da resistência contra as influências homogenizadoras da
modernização de origem estrangeira.
A vanguarda contestou o discurso lógico-racional que refletia as
origens burguesas da literatura do século XIX, porém três tendências
literárias manipulavam este discurso: o romance regionalista, o
romance social e o realismo crítico. O romance social se manteve
vinculado ao racionalismo logicista, conservou o modelo narrativo
burguês, embora invertendo sua hierarquia de valores, incorporou
um discurso antiburguês. A narrativa de crítica social adotou

475
influências vanguardistas tanto na estrutura quanto na escritura,
fazendo com que o impacto modernizante se desenvolvesse na linha
da narrativa cosmopolita e fantástica.
O movimento irracionalista europeu impregnou múltiplas áreas
da atividade intelectual, modelou a renovação artística, através do
expressionismo alemão, do surrealismo francês, do futurismo italiano,
e do ponto máximo da renovação: o movimento dadaísta. Influenciou
a filosofia, a política, moldou os caminhos do existencialismo, chegando
a alterar até disciplinas naturalmente alheias ao movimento, como a
antropologia e a psicanálise. “Entre esses aportes, nenhum mais
vivamente incorporado à cultura contemporânea que uma nova visão
do mito, que, em algumas expressões, pareceu substituir às religiões
que haviam sofrido profunda crise no século XIX” (Rama, 1982a, p.
50). A incorporação do mito à análise das sociedades racionalizadas
inundou o século XX, a partir das revisões propostas pela antropologia
inglesa, pela psicanálise, até mesmo nos estudos da religião.
Os intelectuais hispano-americanos residentes na Europa tomam
conhecimento destas idéias no período entre as duas grandes guerras.
“O mito, o arquétipo, apareceram como categorias válidas para
interpretar as características da América Latina, em uma mescla sui
generis com esquemas sociológicos, mais ainda, com um forte e decidido
apelo às crenças populares sobreviventes nas comunidades indígenas
ou afro-americanas na América” (Rama, 1982a, p. 51). A
desculturação, que as culturas regionalistas sofreram com a
incorporação deste corpus de novas idéias, foi violenta e
paradoxalmente enriquecedora. Em contato com o discurso lógico–
racionalista, as culturas regionais se voltam para suas fontes locais, se
impregnam delas, analisando essas formas culturais de acordo com
suas formas tradicionais. De sua herança cultural retira sua
sobrevivência, estabelecendo contato fecundo com as fontes vivas, que
são inextinguíveis da invenção mítica nas sociedades, sobretudo rurais.
Desta forma, redescobre-se a criatividade dos sistemas narrativos,
aplicados ao regionalismo e se reconhecem, tanto as possibilidades de
diferentes falares, como as diferentes estruturas do narrar popular.

476
Assim, acaba-se por reconhecer a existência de um universo disperso,
de livres associações, de infinita inventividade, que relaciona idéias e
coisas, com uma mobilidade e ambigüidade únicas. Um universo que,
na verdade, sempre existiu, mas que permaneceu oculto pelos rígidos
cânones do positivismo, e que, neste momento, se revigora através do
movimento irracionalista europeu do século XX, permitindo o
reaparecimento das culturas rurais latino-americanas, que agora
podiam ser apreciadas sob novos prismas.
A resposta à desculturação, no nível da cosmovisão, ou
significados, que o impacto irracionalista europeu promove, apenas
na aparência parece confirmar a proposta modernizadora, rendendo-
se a ela. Na realidade “supera-a com uma riqueza imprevisível a que
poucos escritores da modernidade foram capazes de chegar: o manejo
dos mitos literários que vai se opor ao pensar mítico” (Rama, 1982a,
p. 55).
Nos três níveis de transculturação narrativa: uso da língua,
estrutura literária e cosmovisão, identificados por Rama, fica claro
que os produtos que resultam do contato cultural da modernização
não podem assemelhar-se às criações urbanas cosmopolitas, nem aos
do antigo regionalismo. A mediação alcançada pelos narradores
transculturados foi resultado de séculos de contato e negociação
cultural que gerou um paulatino acrioulamento, ou assimilação, das
mensagens culturais européias e sua hibridação ao longo da história.

O diálogo entre o regionalista e o vanguardista se fez


através de um sistema literário amplo, um campo de
integração e mediação funcional e autorregulado. A con-
tribuição maior do período de modernização (1870-1910)
tinha preparado esta eventualidade, ao construir na
Hispano-América um sistema literário comum (Rama,
1982a, p. 56).

A teoria da transculturação narrativa, construída por Ángel Rama,


se completa com um estudo sobre os quatro narradores, por ele
considerados exemplos de transculturadores, pois em suas obras

477
operam todas os mecanismos anteriormente apontados. São eles: o
peruano José Maria Arguedas (1911-1969), cuja obra mais divulgada
é Los ríos profundos; o mexicano Juan Rulfo (1918-1986), conhecido
pelo romance Pedro Páramo; o brasileiro João Guimarães Rosa (1908-
1968), autor de Grande sertão veredas; e o colombiano Gabriel García
Márquez (1928), um dos expoentes do boom da narrativa hispano-
americana dos anos 60 e autor de Cien años de soledad.
O conceito criado por Ortiz nos anos 40 e a adaptação para a
análise das narrativas do século XX, no continente latino–americano,
desenvolvido por Rama nos anos70/80, têm sua vigência confirmada
pela rede de discussões, reapropriações e novas leituras que continuam
a surgir por parte da crítica cultural e literária da atualidade. No
entanto, antes de passar ao exame de algumas das novas leituras, que
a transculturação tem merecido recentemente, vale lembrar o crítico
brasileiro Antonio Cândido, grande amigo e interlocutor intelectual
de Rama, que, ainda nos anos 70, em um ensaio intitulado “Literatura
e subdesenvolvimento”, propôs a criação do termo literatura super-
regional para trabalhar o que ele chama de terceira fase da narrativa
regionalista.
Cândido elabora sua reflexão a partir da consciência do
subdesenvolvimento, que se alastra por toda América Latina depois
da segunda guerra mundial. Tomando como ponto de partida o atraso
e o subdesenvolvimento e sua repercussão na consciência do escritor,
o crítico oferece um grande painel, de fundo sociológico, das relações
de dependência cultural entre as metrópoles européias e as periferias
latino-americanas.
Discute as aparentes contradições que implicam em todo o
processo de criação no continente, a partir das vanguardas dos anos
20, que oscilam entre a produção original e a cópia de modelos
estrangeiros, apontando para a existência de uma raiz comum em
ambos os projetos criadores: “Sabemos que somos parte de uma cultura
mais ampla, da qual participamos como variedade cultural” (Cândido,
1972, p. 347). As vanguardas estéticas dos anos 20, aliadas à consciência
estético-social dos anos 30/40, tencionadas pela crise do

478
desenvolvimento econômico e pelo experimentalismo técnico das
décadas posteriores, foram, paulatinamente, transformando a
dependência em um tipo de interdependência cultural, “o que dará
aos escritores da América Latina a consciência de sua unidade na
diversidade, além de favorecer a criação de obras maduras e originais
que serão lentamente assimiladas por outros povos, inclusive de países
metropolitanos e imperialistas” (Cândido, 1972, p. 347).
Para o autor, o regionalismo na América Latina sempre foi uma
força estimulante na literatura. Em uma primeira fase, que
corresponde à consciência de país novo, a literatura regional se veste
de pitoresca e decorativa e funciona como o descobrimento e
reconhecimento da realidade do país e de temas nacionais. A segunda
etapa, a do subdesenvolvimento, funciona como consciência da crise,
motivando uma literatura mais documental, carregada de urgência e
empenho político. A terceira e última etapa, que Cândido define como
super-regionalista, e marca a permanência do regionalismo nas
diversas literaturas nacionais em todo o continente, “corresponde à
consciência dilacerada do subdesenvolvimento e opera a superação
de um tipo de naturalismo que se baseava na referência a uma visão
empírica do mundo; naturalismo que foi uma tendência estética
peculiar a uma época, na qual triunfava a mentalidade burguesa e
correspondia à consolidação de nossas literaturas” (Cândido, 1972,
p. 353).
Como exemplos da melhor cepa da literatura super-regionalista,
Antônio Cândido inclui aqueles que superam os problemas e
contradições presentes nas etapas anteriores da narrativa regionalista
e que, ao mesmo tempo, produzem uma literatura universalmente
válida. Entre os autores citados, encontram–se, Guimarães Rosa, José
Maria Arguedas, Juan Rulfo e García Márquez (os mesmos elencados
por Rama como expoentes entre os narradores transculturados).
É interessante observar a relação que se estabelece entre sua
reflexão e a de Ángel Rama, principal teórico da transculturação
narrativa. Percebe-se que a proposta de Cândido do super-
regionalismo latino-americano corresponde, com poucas nuances, ao

479
que Rama, ao longo de várias obras, descreveu como os processos de
transculturação narrativa na América Latina. Para ilustrar o profícuo
diálogo entre os dois latino-americanistas vale transcrever um trecho
de uma carta de Rama a Cândido, publicada recentemente em fac-
símile, no livro: Ángel Rama: literatura e cultura na América Latina,
organizado por Flávio Aguiar e Sandra Guardini de Vasconcelos.

...tu artículo es realmente excelente y digo esto como me


elogiara a mí mismo. Me produce cierto asombro
comprobar como caminamos por sendas paralelas, que
creo se deben a perspectivas críticas similares.
Enteramente de acuerdo con la tesis que te conduce
progresivamente del cambio hacia el 30 del país nuevo
al país subdesarrollado y a la valoración que rescata al
regionalismo en una nueva perspectiva que tú llamas
superregionalismo. Eso es lo que bajo el título de Los
transculturadores de la narrativa te proponía como uno
de los temas de mí seminario de mí visita a São Paulo, de
tal modo que es tú artículo el que puede servir de base al
debate, sin que yo agregue demasiado, para que vieras a
qué punto estamos coincidiendo en la apreciación de los
fenómenos literarios del continente. Como para mí, co-
incidir contigo es la corroboración de que no me equi-
voco, te imaginas la alegría que me produjo leerte...
(RAMA, 2001, p. 38)

Se as teorias desenhadas por Rama e Cândido se afinam e se


complementam de forma tão exemplar, pode-se, também, afirmar que
a complexidade cultural latino-americana nunca deixou de referir-se
à transculturação narrativa como ferramenta essencial de análise. Em
muitos aspectos a categoria heterogeneidade, proposta por Antonio
Cornejo Polar, dialoga com as teses levantadas por Rama.
Os conceitos de transculturação e heterogeneidade têm sido
usados de maneira mais ou menos paralela pela crítica literária e pelos
estudos culturais. O próprio Cornejo Polar, melhor teórico da
heterogeneidade, fala repetidamente da transculturação narrativa, sem
fazer uma distinção rigorosa entre ambos. O confronto entre as duas

480
categorias, aparentemente complementares, se percebe na crítica latino
americana em vários momentos, em diversos textos, entre eles, em
um artigo de Raul Bueno: “Sobre la heterogeidad literária y cultural
de América Latina” (1996). No ensaio, o autor defende a idéia que as
duas categorias são distintas e não se referem à mesma coisa: enquanto
uma se refere a processo, a outra é resultado, como explica em seguida:

A heterogeneidade precede a transculturação; uma


transculturação começa a ocorrer quando se dá uma si-
tuação heterogênea de pelo menos dois elementos. Mas
heterogeneidade é também o momento seguinte, quan-
do a transculturação não se resolve em mestiçagem, e
sim em uma heterogeneidade reafirmada e mais acentu-
ada, ou quando a mestiçagem começa a solidificar-se,
como cultura alternativa, adicionando um terceiro ele-
mento à heterogeneidade inicial” (Bueno, 1996, p. 21).

Para Bueno a transculturação não é uma categoria descritiva da


realidade latino-americana como a heterogeneidade, e, sim, uma parte
destacada das dinâmicas da própria heterogeneidade. Na sua leitura,
tanto transculturação como mestiçagem ou hibridismo, aludem a
processos culturais ou raciais. O conceito de heterogeneidade refere-
se aos processos históricos que estão arraigados na base das diferenças
sociais, culturais e literárias da sociedade latino-americana.
Friedhelm Schmidt, no ensaio “Literaturas heterogêneas o
literatura de la transculturación?” (1996), ressalta mais as diferenças
que as similitudes entre os dois conceitos. O ponto de partida do crítico
alemão é uma contradição que está na base da conceituação de Rama,
o qual destaca que a definição de Ortiz sobre a aculturação, a rigor, é
incorreta. Mesmo assim afirma que vai utilizá-la, pois toma em
consideração seu perspectivismo latino-americano. Enquanto o cubano
mostra as transformações da cultura dominante por parte da cultura
dominada, descrevendo os processos de transculturação, estes mesmos
processos de transculturação, na descrição de Rama, implicam,
exclusivamente, em mudanças nas culturas dominadas. Ainda que na
teoria de Rama a cultura regional não assuma um papel passivo nos

481
processos de transculturação, porque são os próprios autores
regionalistas que iniciam o processo de renovação da produção
literária, a transculturação, em momento algum afeta a cultura
dominante. Diante desse quadro, Schmidt indaga: “Por que a
contradição entre a pretensão em transmitir o perspectivismo latino-
americano proveniente da teoria de Ortiz por um lado, e a
apresentação exclusiva de processos de transculturação que não
significam nada além de mudanças para as culturas dominadas?”
(Schmidt,1996, p. 38)
Em uma linha crítica semelhante encontra-se a leitura do conceito
de transculturação de Alberto Moreiras. O ensaio “O fim do realismo
mágico, o significante apaixonado de José Maria Arguedas” é uma
reflexão na qual se percebe uma profunda crítica ao conceito de
transculturação desenvolvido por Ángel Rama.
Moreiras introduz seu pensamento a partir do questionamento
do realismo mágico que, para ele, é uma escrita da disjunção, opondo-
se radicalmente à noção defendida por Irlemar Chiampi, que vê o
realismo mágico como a escrita da não disjunção ou da mediação.
Para o mexicano, o princípio da contradição de opostos, presente no
realismo mágico, não funciona na cultura latino-americana. “O
realismo mágico é um instrumento técnico dentro de um aparato
maior e mais abrangente de representação transculturadora”
(Moreiras, 2001, p. 222). Analisando os dois sentidos de
transculturação, o antropológico, a partir de Ortiz, e o crítico literário,
a partir de Rama, Moreiras levanta uma série de elementos com os
quais constrói um contra-discurso ao conceito elaborado pelo
uruguaio:

Se a transculturação literária é uma “transculturação


orientada”, ela é em si já transculturada, isto é, a
transculturação não nomeia um fato natural ou primá-
rio, mas é ela própria uma representação comprometi-
da, isto é, não se refere simplesmente a uma relação soci-
al, ligada às interpretações, estatutos, hierarquias, resis-
tências e conflitos de grupos, que existem em outras es-

482
feras da cultura na qual circula (Greenblat apud Moreiras,
2001, p. 224).

Como não há transparência na transculturação e por ser


orientada, ela está sempre fora de controle e fora de sua função como
instrumento técnico para a integração das influências externas no
processo de preservação e renovação cultural, que é o sentido dado
por Rama. “Como aparato crítico genealógico de certa expressão
cultural e histórica, terá extrema dificuldade de se proteger da história
que procura criticar ou derrotar a favor da história que procura
preservar em uma forma mediada, pois ambas as histórias, e não
apenas a segunda, são, simultaneamente, parte de sua própria
constituição: a transculturação não pode sair de si mesma a fim de
estabelecer distinções claras e objetivas ou descomprometidas”
(Moreiras, 2001, p. 225). O crítico ressalta que, embora Rama parta
do conceito antropológico, sua reflexão parece originar-se no reino
da ideologia.
Aprofundando as críticas à conceituação de Rama, Moreiras
discute o que Rama denomina transculturação “bem sucedida”, isto
é, aquela em que a cultura dominada é capaz de inscrever-se na cultura
dominante. Para Moreiras essa posição de Rama sugere um forte
posicionamento ideológico, pois implica na aceitação da modernização
como uma verdade ideológica e destino do mundo, uma auto sujeição
histórica à modernidade eurocêntrica.
A reflexão elaborada por Moreiras vai, paulatinamente,
desconstruindo a teoria elaborada por Rama e conclui com um estudo
sobre a obra de José Maria Arguedas, o escritor peruano, exemplo
modelar dos processos de transculturação narrativa, nos estudos de
Ángel Rama. Para Moreiras, a narrativa de Arguedas, na obra póstuma
El zorro de arriba y el zorro de abajo,

abre a teoria da transculturação para a presença do evento


silencioso e ilegível. O suicídio de Arguedas ocorre, para
nós, como um evento de linguagem. É um evento ilegí-
vel, no sentido de que abre uma fissura entre linguagem

483
e significação... Como ato literário, a utopia fundadora
latino-americana chega ao fim. Arguedas perde para nós
todos os traços da possibilidade de uma mediação real
mágica de culturas (Moreiras, 2001, p. 246/7).

A crítica à teoria de Rama também encontra ecos na área dos


estudos subalternos norte-americanos, especificamente, em John
Beverley, no ensaio: “Transculturation and subalternity: The ‘Lettered
City’ and the Túpac Amaru rebelion”, de 1999.
Para Beverley a noção de transculturação proposta por Ortiz e,
posteriormente, re-elaborada por Rama são problemáticas, porque,
em ambas, o processo é visto como uma etapa necessária pela quais
passam os povos colonizados da América Latina, diante do impacto
da modernização. Para o norte-americano, ambas as teorias,
“expressam uma fantasia de reconciliação de classe, gênero e raça
(respectivamente nas formas liberal e social democrata)” (Beverley,
1999, p. 47) Na sua argumentação, o impasse fundamental deste, que
vem a ser um dos mais importantes paradigmas culturais da América
Latina, é a preocupação de Rama em integrar os grupos subalternos
à cultura hegemônica, via transculturação. A partir desta perspectiva,

Rama não foi capaz de conceitualizar ideologicamente


ou teoricamente os movimentos de identidade e direito
indígena, que desenvolveram seus intelectuais orgânicos
(literários ou não literários) e suas formas culturais in-
dependente do processo de transculturação narrativa, e,
muitas vezes, se viram obrigados a contradizer tais nar-
rativas (Beverley 1999, p. 47).

Um levantamento, mesmo que superficial dos diferentes usos,


apropriações, releituras críticas, aproveitamentos e ressemantizações
que os conceitos de transculturação e transculturação narrativa têm
tido nas mais diversas disciplinas, apontam para uma infinidade de
citações de nomes de autores e obras que não caberiam nos limites
deste texto, uma vez que a própria natureza dos conceitos transita
por inúmeros campos do saber.

484
No entanto, deve-se ressaltar que após uma pesquisa bibliográfica,
percebemos que os conceitos transitam mais intensamente nas regiões
que conformam a América Latina do que na América do Norte, à
exceção do Canadá. Nos Estados Unidos os conceitos fazem parte de
investigações ligadas, sobretudo, aos Departamentos de Estudos
Latino-Americanos, Estudos Culturais e Latino Studies. Na bibliografia
consultada, no que se refere aos Estados Unidos, a obra que mais
freqüenta as bibliografias e livros de referência na área dos estudos
literários e culturais é: Os olhos do Império. Relatos de viagem e
transculturação, de Mary Louise Pratt, de 1992, com edição brasileira
de 1999.
O livro de Pratt é um estudo sobre os relatos de viagem e do
impacto da literatura de viagem que reinventou o imaginário popular
europeu. A obra procura demonstrar a dinâmica dos processos de
interação social e ideológica que surgiu do encontro de diferentes
culturas e sociedades. A partir dos conceitos de Ortiz e Rama, a autora
constrói seu próprio conceito de “zonas de contato”, que serve para
entender como os grupos marginais e subordinados “selecionam e
inventam a partir de materiais a eles transmitidos por uma cultura
dominante, ou como os modos metropolitanos são recebidos pela
periferia e ainda outra questão mais herética: no que se refere à
representação, como falar de transculturação das colônias para as
metrópoles?” (Pratt, 1999, p. 31)
Ainda no âmbito dos estudos culturais norte-americanos, a mais
recente publicação de Walter Mignolo, Local histories/ Global designs
(2000), apresenta uma importante contribuição crítica às questões
identitárias na América Latina e no Caribe.
A obra de Mignolo promove um amplo diálogo entre críticos que
discutem questões pertinentes ao debate pós-colonial e pós-moderno
e sua relação com o pensamento que surge das periferias, sobretudo,
ao recolocar a América Latina no cenário pós-colonial e ressaltar as
suas especificidades articuladas aos modelos asiáticos, fundadores da
crítica pós-colonial. Fundamental em sua linha de raciocínio, Mignolo
recoloca o século XVI como ponto de partida da configuração da
diferença colonial na construção do imaginário Atlântico, que se tornou

485
o imaginário do mundo colonial/moderno. Para ele, muitos
historiadores e críticos da cultura foram cegos com relação à diferença
colonial e quanto à subordinação do conhecimento. Pensar “a partir
de” foi a expressão que provocou o juízo crítico e que terminou por
promover a expressão que funciona como espinha dorsal na obra que
é border thinking, pensamento periférico ou das margens, definição que
procura dar conta do reconhecimento da diferença colonial de uma
perspectiva da subalternidade, que demanda uma maneira de pensar
a partir do que emana de um lugar marginal no mundo colonial.
Por outro lado, Mignolo aponta para uma série de ganhos na
epistemologia das margens, que foram, em uma certa medida,
decorrentes do pensamento de Ortiz. O conceito de transculturação
contribuiu, enormemente, para mover o discurso sobre raças para o
discurso sobre culturas. Neste sentido, produziu um discurso
antropologicamente transculturado ao juntar ciências sociais e
literatura de uma maneira sedutora e criativa:

Em um sentido, seu conceito de transculturação foi e é


um degrau importante na construção do pensamento de
as margens, apesar das margens que Ortiz apagou existi-
rem no objeto de estudo e não no sujeito do conheci-
mento... Talvez, Ortiz não tenha pensado, ou não tenha
sido possível pensar em antropologia cultural em ter-
mos de posições hegemônicas e subalternas no campo
do conhecimento (Mignolo, 2000, p. 166-167).

Contudo, a vantagem do termo transculturação em relação à


mestiçagem é, para Mignolo, o poder que permite afastar-se das
considerações de ordem racial, a possibilidade de mover-se na direção
da cultura e, ao mesmo tempo, responder à necessidade do
pensamento das margens.
Se o diálogo teórico entre Mignolo e Ortiz é rico em nuances e
argumentações, sua visão é mais crítica com relação à transculturação
narrativa de Rama. Para Mignolo, a transculturação narrativa foi uma
importante contribuição, no sentido de alargar o conceito de Ortiz

486
para o campo literário e cultural no terceiro mundo, e sua relação
com a história universal, além de ser útil para sintetizar algumas de
suas idéias e organizar alguns conceitos que são similares à própria
transculturação de Ortiz, como a noção de consciência dupla de Du
Bois, de crioulização de Glissant, e, mais recentemente, a nova
consciência mestiça de Gloria Anzaldúa. No entanto, Mignolo utiliza
outro texto de Rama, de 1965, para criticar a tradição do pensamento
que vê a América Latina como continente marcado pela expansão da
ideologia da independência, principalmente, pela mentalidade crioula,
que acredita que nem as culturas indígenas ou africanas têm
possibilidade de se desenvolver, satisfatoriamente, no Novo Mundo, o
que diminui, em seu entendimento, a força e vigor do pensamento de
Rama quanto às questões por ele mesmo formuladas na
transculturação narrativa.
Os processos de transculturação estão na base da história cultural
do continente que, como dizia Otávio Paz, “antes de ter existência
histórica própria, começa sendo uma idéia européia, um capítulo da
história das utopias européias” (Paz, 1972, p.16). Os conceitos de
transculturação antropológica e literária emprestam espessura
histórica e ajudam a compreender e explicar o fenômeno, que é a
marca que distingue os povos das Américas de todos os outros povos
do planeta.

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