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CASOS

Varig

SEM TÍTULO, 2003. EDÍLSON MEIRELES.ACRÍLICA S/ TELA.

A história da Varig mostra uma sucessiva série de


erros e desacertos de gestão. O modelo de negócio
da empresa, que há algumas décadas era referência
nacional no setor e uma das maiores do mundo, foi
construído em torno de uma única competência, o
relacionamento com o governo. Dependente, a em-
presa não conseguiu reagir à desregulamentação do
setor, à entrada e ao crescimento de concorrentes
externos e internos, e à disputa por preços e custos.
O resultado, como se sabe, foi a derrocada.

por Marcelo Pereira Binder FGV-EAESP

A Varig foi fundada em 1927, pelo devido ao clima antigermânico, Otto nou o quadro do transporte aéreo
alemão Otto Meyer, com o apoio do Meyer deixa a presidência da empre- mundial. Numerosas aeronaves fo-
Sindicato Condor alemão. Em 1936 sa, que passa a ser ocupada por Ru- ram vendidas como sobras de guerra
iniciou a primeira rota aérea brasi- ben Berta, logo depois o responsável a preços muito baixos. Aproveitando
leira diária e em 1942, a primeira pelo grande crescimento da empresa esse momento, a Varig adquiriu
rota internacional para Montevidéu. nas décadas seguintes. vários desses aviões das bases norte-
Durante a Segunda Guerra Mundial, O período pós-guerra impulsio- americanas instaladas no Nordeste.

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Em 1952, a empresa adquiriu a
Aéreo Geral. Em 1958, pela ação go-
vernamental, o número de empresas
O fim do monopólio internacional gerou impactos negativos
aéreas foi reduzido, visando a aumen- na Varig, que superaram as próprias estimativas iniciais da
tar a rentabilidade do setor. Nas rotas
empresa. Na verdade, foi difícil para a Varig – e para muitas
internacionais, a Varig tornou-se a
única empresa a voar para os EUA, e outras empresas brasileiras – competir com as grandes norte-
a Panair, para a Europa. americanas que começaram a pousar no Brasil.
Os anos 1960 marcaram a ex-
pansão da Varig no mercado aéreo
doméstico e no internacional por
meio da incorporação do Consórcio Juscelino Kubitschek. Ruben Berta acumular milhas nos programas de
Real Aerovias (1961) e da Panair do tornou-se figura pública nacional, milhagem das companhias inter-
Brasil (1965), que, durante anos, tendo sido cotejado para cargos pú- nacionais, mas não podiam utilizar
foram suas principais concorrentes. blicos que sempre recusou para ficar suas milhas acumuladas em vôos
Em 1975, a Varig adquiriu a empresa à frente da companhia. A mesma boa que partiam do Brasil. O programa
aérea Cruzeiro do Sul, que falira, pas- política de relacionamento se esten- de milhagem da Varig foi introduzido
sando a ter o monopólio das linhas deu ao período de comando militar. somente em 1994, como ação defen-
internacionais e se transformando na O transporte aéreo dos presidentes siva ao programa da TAM, que havia
“empresa de bandeira” do país. brasileiros em viagens internacionais sido lançado em 1993.
tornou-se rotina na empresa a partir Como conseqüência, a Varig ha-
A Varig e o governo. Desde sua de Juscelino Kubitschek, ele próprio via se tornado uma empresa rentável,
fundação até a década de 1990, a agraciado com o benefício. Com esse embora tal rentabilidade se originasse
Varig expandiu-se constantemente, tipo de ação, o objetivo era associar basicamente do monopólio das rotas
seja por aquisição ou por crescimento sua imagem à de empresa aérea ofi- internacionais garantido por sua
orgânico. Investiu em tecnologia da cial, o que de fato conseguiu. Com parceria com o governo e, também,
informação para a comercialização o golpe de 1964, apoiou o governo da prática de tarifas elevadas. Um
de passagens e se estabeleceu como militar e sua “revolução libertadora”, passageiro brasileiro que fosse para a
uma das grandes companhias aéreas e em 1973 o resultado veio na forma Europa pagava, em média, o dobro de
do mundo. No entanto, para conse- de um decreto do governo Médici que um europeu que viesse ao Brasil.
guir chegar a essa posição, contou garantiu exclusividade à Varig em vôos
fortemente com o apoio do governo internacionais por 15 anos. Crise do modelo. O modelo de
brasileiro, de tal sorte que podemos Os benefícios dessa dependên- empresa fortemente ancorada em
dizer que sua competência central cia do governo se apresentaram em parcerias e redes de dependência com
formou-se em torno de sua relação várias circunstâncias. Por exemplo, o governo começou a desmoronar a
com o poder público. durante a década de 1980, programas partir da intensificação das pressões
Essa relação desdobrou-se em de milhagem de companhias aéreas para a quebra do monopólio da Varig
várias frentes. Em primeiro lugar, a internacionais foram proibidos no nas rotas internacionais.
Varig conseguiu apoio do governo do Brasil. Como conseqüência, a Varig Em janeiro de 1987, o ministro
Rio Grande do Sul com empréstimos ficou protegida da concorrência da Aeronáutica anunciou alterações
e vantagens. Mais tarde, desenvolveu dos programas de fidelidade dessas na exploração das rotas nacionais e
forte relacionamento com o presi- empresas. Na prática, os passageiros internacionais. Era o fim do monopó-
dente Getúlio Vargas e, depois, com brasileiros podiam inscrever-se e lio da Varig. As novas linhas seriam

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distribuídas entre Varig, Transbrasil e Varig, que superaram as próprias do mundo com operações conjuntas
Vasp. A Varig manteria as linhas que estimativas iniciais da empresa. Na das quatro grandes empresas norte-
já operava e não teria concorrentes verdade, foi difícil para a Varig, e para americanas de aviação.
nacionais nessas linhas. muitas outras empresas brasileiras,
O problema maior não foi a competir com as grandes norte-ame- Rumo à derrocada. A década
entrada da Transbrasil nem da Vasp ricanas que começaram a pousar no de 1990 trouxe à Varig problemas
nas linhas internacionais, mas sim a Brasil. Aquelas companhias já haviam que contribuíram para o recente
entrada de grandes companhias nor- passado pela experiência de consoli- desfecho de sua situação . Primeiro,
te-americanas e européias no Brasil, dação do setor nos EUA em período com a privatização da Vasp no iní-
devido a acordos de bilateralidade anterior e estavam muito mais habi- cio dos anos 1990, aumentou-se a
da aviação internacional. Quer dizer, tuadas à economia de mercado e sua oferta de assentos e se reduziram
as empresas estrangeiras passariam a competitividade. tarifas, levando o setor à guerra de
operar novas linhas para o Brasil na Assim, o mercado passou a ter preços e perda de rentabilidade. Um
medida em que fossem criadas novas como concorrentes empresas con- segundo problema dizia respeito ao
linhas do Brasil para outros países, solidadas e com bom desempenho crescimento da TAM, que passava a
aumentando a concorrência nos vôos financeiro, a exemplo da United, Del- ocupar importante espaço no merca-
internacionais. ta, American Airlines e Continental, do de passageiros a negócios.
O fim do monopólio interna- esta última no final dos anos 1990. Em 1992, a Varig incorporou,
cional gerou impactos negativos na O Brasil passou a ser o primeiro país operacional e administrativamente, a

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Cruzeiro do Sul, empresa que havia
sido comprada em 1975. A união
Em 2006, a antiga Varig “morreu” agonizando, pedindo
das duas fazia parte do programa de
enxugamento da empresa gaúcha, auxílio ao governo, e parecendo acreditar-se vítima dos
que pretendia chegar, em 1993, a ter acontecimentos. A história da Varig não é um caso isolado
menos 4 mil funcionários. Em 1994,
devido à perda de mercado interno na vida empresarial brasileira. Nesse sentido, a Varig é um
e externo, e aos maus resultados retrato do Brasil.
financeiros, a Varig intensificou seu
processo de recuperação, demi-
tindo cerca de 3 mil funcionários,
devolvendo aeronaves, cancelando Rio-Sul. Nessa época a principal modelo de negócios, foi fundamental.
algumas rotas e suspendendo o paga- concorrente era a TAM, que crescia No entanto, mesmo assim ela não
mento de leasing de aeronaves. agressivamente no mercado executivo. conseguiu superar os problemas no
Ainda em 1994, a Apvar (Asso- Como reação, a Varig desenhou um uso de seus recursos. Como conseqü-
ciação dos Pilotos da Varig), em uma amplo programa de reposicionamento ência, o passivo foi transferido para
tentativa de ajudar a empresa, apre- de mercado, executado ao longo de os anos 2000.
sentou proposta para a redução de 1996, com ações como mudança da
custos e ganhos de eficiência que le- identidade visual, aumento do espaço O desfecho. O ano 2000 foi sig-
vava em consideração a possibilidade da classe executiva, e melhorias no nificativo para a Varig. Ela perdeu a
de redução de salários, hospedagem serviço de bordo. Essas mudanças liderança do mercado doméstico para
em hotéis mais baratos, comparti- geraram resultados positivos – embora a TAM. Sua capacidade de recupera-
lhamento de quarto e até demissões. não suficientes para resolver um pro- ção passou a ser vista com ceticismo
Em contrapartida, a Apvar queria um blema grave pelo qual padecia: custos pelo mercado, em parte oriundo da
assento no conselho de administra- muito altos em relação à concorrência baixa credibilidade na capacidade
ção da empresa. Essa proposta não e ineficiência operacional. gerencial daqueles que a conduziam.
foi aceita pela Varig. Para agravar esse quadro, em 1999 Afinal, haviam sido cúmplices do que
Como reflexo da crise, ocorreu houve a desvalorização do real. O im- sucedeu com a empresa.
uma mudança histórica na Fundação pacto sobre a estrutura de custos da O grande evento desses anos foi
Ruben Berta, que, pela primeira vez, companhia foi significativo, sobretudo o surgimento da Gol, empresa basea-
passa a ter quatro membros exter- pela elevação do preço do querosene da em um modelo de negócios focado
nos no conselho de administração. combustível. Isso provocou uma sen- no baixo custo e em tarifas acessíveis.
Eram representantes dos credores, sível queda no número de passageiros, No mercado internacional, esse mo-
dentre os quais a General Electric e especialmente nos vôos internacionais, delo já havia se consagrado graças
a McDonnell Douglas, bancos brasi- a principal receita da companhia. Em ao aumento dos custos do petróleo
leiros e estrangeiros. Em 1995, Rubel nova resposta, a empresa reduziu a e à possibilidade de comercialização
Thomas, depois de 35 anos na Varig, frota, cancelou algumas linhas e bus- de passagens diretamente ao usuário
cinco como presidente, foi afastado cou renegociar suas dívidas. final, algo que se tornou possível com
da presidência da empresa. Mas as dificuldades da década a internet.
Em 1996, Fernando Pinto as- de 1990 aprofundaram a crise, Em 2002, após 10 anos de pre-
sumiu a presidência. Ele tinha um resultando em acúmulo de saldos juízos consecutivos, a Varig obteve
histórico de realizações considera- negativos. A resposta da Varig, alte- lucro operacional nas rotas interna-
das bem-sucedidas no comando da rando aspectos importantes de seu cionais. Porém, esse lucro foi resulta-

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aéreas. E a Varig conseguiu estabelecer


com maestria suas relações com o
governo, o que propiciou à empresa
crescimento e consolidação como a
maior empresa aérea nacional.
A alteração do ambiente externo
requeria da empresa maior compe-
titividade com ganhos de eficiência
operacional e redução de custos,
porém, a visão da Varig como uma
“grande família”, cultivada desde sua
fundação, gerou resistências. Não se
admitia a necessidade de cortar mais
de um terço de sua força de trabalho
para sobreviver, nem que a glória do
passado deixara de ser real.
No momento em que estava alta-
do de forte redução na oferta de vôos Mesmo com o suporte ou auxílio mente endividada e necessitando de
internacionais e da devolução de 12 governamental que se observou em fluxo de caixa elevado e positivo, a
aviões. A empresa encolheu rotas 2003 (a autorização para que a Varig empresa encolhia e perdia mercado.
com alta demanda. e concentrou-se e a TAM compartilhassem vôos com Em nossa avaliação, a Varig mante-
nelas Mas o encolhimento não foi redução de ofertas e aumento de ve práticas de gestão e tomadas de
acompanhado por diminuição pro- tarifas), a empresa não conseguiu se decisão ineficientes e desacertadas,
porcional na estrutura e nos custos. reestruturar. Por fim, no início de sendo incapaz de responder com
Para completar, houve uma redução 2006, o relatório anual da empresa, envergadura ao crescimento dos
de receita ao mesmo tempo em que relativo a 2005, reconhecia oficial- concorrentes. Na verdade, esse é
se manteve o passivo elevado. mente a falha na reestruturação e o um caso típico, em que, diante de
Em 2002, ocorreu uma fusão grande buraco em que a empresa se uma alteração de ambiente, não há
administrativa das três empresas do encontrava. O caminho encontrado contrapartida da empresa.
grupo – a própria Varig, a Rio-Sul e a foi o da recuperação judicial. Em 2006, a antiga Varig “mor-
Nordeste. A frota foi ainda mais redu- reu” agonizando, pedindo auxílio
zida com a devolução de 32 jatos entre Lições. A Varig cresceu e estabeleceu- ao governo e vendo-se como vítima
2000 e 2003, o que resultou em au- se em ambiente caracterizado por forte dos acontecimentos. A história da
mento da utilização diária dos aviões. interferência do Estado no setor aéreo. Varig não é um caso isolado na vida
A integração da malha das três em- A partir da perspectiva do setor aéreo empresarial brasileira. Nesse sentido,
presas gerou ganhos administrativos como elemento de desenvolvimento a Varig é um retrato do Brasil.
por meio da eliminação das diretorias econômico e de integração nacional,
Financeira, de Recursos Humanos, o Estado procurou gerar condições
de Administração e de Planejamento propícias para seu florescimento no Marcelo Pereira Binder
da Nordeste e Rio-Sul. No total, 75% país. Nesse ambiente, a relação com Doutor em Administração pela FGV-
EAESP
dos funcionários da Rio-Sul e da Nor- o governo, visando a obter benefícios Prof. do Departamento de Administração
deste foram demitidos, mantendo-se com regulação ou financeiros, era fun- Geral e Recursos Humanos da FGV-EAESP
somente a equipe operacional. damental à sobrevivência das empresas E-mail: mpb@fgvsp.br

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