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À DEMOCRACIA
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Política Democrática
Revista de Política e Cultura
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Conselho de Redação
Editor Alberto Aggio George Gurgel de Oliveira
Marco Antonio T. Coelho Anivaldo Miranda Giovanni Menegoz
Caetano E. P. Araújo Ivan Alves Filho
Editor Executivo Davi Emerich Luiz Sérgio Henriques
Francisco Inácio de Almeida Dina Lida Kinoshita Raimundo Santos
Ferreira Gullar
Conselho Editorial
Ficha catalográfica
NOVA AFRONTA
À DEMOCRACIA
Julho /2014
Sobre a capa
7
individualmente manipulados e, muito menos, as organizações que
os representam, tal como hoje ocorre, de uma forma descarada, por
parte dos executivos federal, estaduais e municipais controlados,
sobretudo pelo PT.
Qualquer que tenha sido a razão maior que ditou ao lulopetismo
criar, de cima para baixo, os tais “conselhos” – seja a necessidade de
dar uma satisfação às rebeliões de ruas e redes sociais desencade-
adas desde junho de 2013, e criar um mecanismo para dizer que o
“povo está sendo consultado pelo governo federal” antes de realizar
qualquer uma das suas atividades estatais, em qualquer dos seus
ministérios; seja a crescente preocupação com o declínio da imagem
do governo, e da sua líder maior, por conta de sua desastrada gestão
na economia (pibinhos, obras atrasadas e soluções adiadas, inflação
acima do desejável etc.); seja no social (redução das oportunidades
de emprego, dificuldades com sintomas de crise nos sistemas
públicos essenciais de educação, saúde e segurança pública) e em
muitas outras áreas da vida brasileira – trata-se de uma decisão
unilateral e voluntarista na crença de constituir-se novo e eficaz
elemento para se manter no poder.
Esta delicada questão é examinada, com muita argúcia e proprie-
dade pelo advogado e deputado federal Roberto Freire, presidente
nacional do PPS; pelo comentarista político João Bosco Rabello e pelo
tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques.
Na seção Conjuntura, temos quatro instigantes artigos, a começar
pelo do sociólogo político Luiz Werneck Vianna que desenvolve uma
análise comparativa entre o futebol e a política e as tentativas de certos
setores de fazê-los funcionar a contento, a fim de atender aos seus
interesses; seguido pelo jornalista João Paulo Cunha, que faz um
enfoque inovador sobre uma das questões centrais hoje do cidadão
brasileiro – a insegurança que domina, a toda hora e prati-camente em
todo lugar, e a ausência de políticas públicas sérias que permitam dar
tranquilidade a homens e mulheres, jovens e idosos, neste imenso país
urbano; o cientista político Sergio Fausto, que empreende um exercício
de identificar como talvez se dará a disputa presidencial deste ano e as
várias manobras que líderes governistas tentarão utilizar para fugir ao
debate das reais e importantes ques-tões do país, ante o evidente receio
de que possam perder as eleições; e, por fim, o economista mestre em
Sociologia e consultor em desen-volvimento regional e local, Sergio C.
Buarque, que faz uma provoca-tiva análise sobre as relações do PT com
a intelectualidade, além de abordar outros curiosos aspectos da
concepção e prática do lulope-tismo com a “elite” brasileira. Da melhor
qualidade.
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Já no Dossiê 1964, dando sequência a artigos e ensaios para
relembrar os 50 anos do golpe militar-civil, apresentamos, neste
número, uma série de artigos que relembram faces variadas desses anos
de muito autoritarismo e repressão sobre a sociedade brasileira. O
primeiro deles é do professor e historiador José Antonio Segatto, que nos
remete a examinar, com lupa, um aspecto essencial e definidor na práxis
da esquerda que é pugnar por uma frente democrática ou por organizar
grupos guerrilheiros; por um governo em que vigorem as liberdades
democráticas ou por uma ditadura do proletariado. Já o professor,
economista e senador Cristovam Buarque nos conduz a pensar
seriamente sobre o fingimento que vivíamos naquele período e ainda
vivemos nos dias de hoje e sobre a necessidade de se exigir seriedade no
trato da coisa pública. O desembargador aposentado e membro da
Academia Nacional de Direito do Trabalho, José Carlos Arouca,
desenvolve enriquecedora viagem pela organização sindical, na história
brasileira, enfatizando a violenta carga ditatorial sobre os trabalhadores
e seus órgãos representativos, enquanto o doutor pela Universidade de
Leeds (Inglaterra), Pedro Scuro Neto, disseca a questão dos grupos
armados na resistência democrática e identifica o imenso erro em que
estes grupos se envolveram. E, por fim, o professor de
Comunicação, Martin Cezar Feijó, faz curiosa análise sobre como
homens da cultura e das artes no Brasil enfrentaram o perigoso
período do regime autoritário.
Fraterna colaboração enfeixa a seção Questões da Cidadania e do
Estado de Direito, por iniciativa do cientista político Paulo Cesar
Nascimento, que nos enviou além deste seu trabalho (Cidadania e
raça no Brasil), o das sociólogas Marilde Loiola de Menezes (Cami-
nhos da cidadania no Brasil – regulação, participação e subcida-
dania), Leone Sousa (As jornadas de junho de 2013: o sentido do
nacionalismo) e de Maria Francisca Pinheiro Coelho (A cidadania e o
público-privado: entre leis e costumes).
Na seção Economia e Desenvolvimento, o leitor se enriquece com
duas boas análises e informações a respeito da situação da Petro-
bras, como a nossa empresa símbolo, num artigo contundente de
Silvio Sinedino, membro do Conselho de Administração e presidente
da Associação dos Engenheiros da nossa maior empresa estatal, e a
quantas anda a vida industrial brasileira, num estudo do economista
Manfredo Almeida, técnico de pesquisa e planejamento do Ipea.
Quanto à Batalha das Ideias, há dois estudos muito curiosos e
oportunos, um dos quais do historiador italiano Gian Luca Fruci,
sobre A história (in)finita da democracia direta, que nos revela outros
ângulos interessantes da ideia petista dos chamados “conselhos
Apresentação 9
populares” surgidos com o Decreto n o 8.423 (ver o Tema de Capa), e
o outro do historiador Michel Zaidan, a respeito do grande intelectual
judeu alemão Walter Benjamin e sua extraordinária obra nos
terrenos da Filosofia, da Sociologia e de outras áreas do pensamento.
Nas demais seções, temos na Memória, um belo relato do jorna-lista
e escritor paraense Lúcio Flávio Pinto sobre os 180 anos da rebelião da
Cabanagem e a professora argentina Nerina Visacovsky relembra as
atividades das instituições socioculturais e educativas agrupadas na
Federação de Entidades Culturais Judaicas, o Ídisher Cultur Farband
(Icuf), organismo que atuou na América Latina, desde os anos 1920. Em
Mundo, temos o artigo de Renato Zerbini Ribeirão Leão, membro do
Comitê de Direitos Humanos, Sociais e Culturais da ONU, no qual
destaca “Os 30 anos da declaração de Cartagena sobre refugiados”,
instrumento de proteção internacional aos perseguidos, em seus países
de origem, por motivos de raça, reli-gião, nacionalidade, grupo social ou
opiniões políticas, e o do professor Alberto Aggio sobre a abdicação do rei
Juan Carlos e a crise na monarquia espanhola, tema muito bem
aprofundado nesse inte-ressante estudo. Em Ensaio, temos o ensaísta e
ficcionista Flávio R. Kothe se divertindo e divertindo os leitores com suas
flexões e refle-xões a respeito das coisas da vida. Em Documentos
Históricos, temos um editorial do mensário Voz Operária, porta-voz
oficial do PCB, de
1971. Trata-se de um texto que se caracteriza pela lucidez com que
analisa e propõe ações para enfrentar a ditadura. E, por fim, temos
Resenha, com três boas análises sobre obras curiosas, como
A esquerda que não teme dizer seu nome, de Vladimir Saffatle, exami-
nada pelo historiador Adelson Vidal Alves; Inferno, de Dan Brown,
submetida a uma sacudida no tocante à sua tese sobre a reprodução
humana, feita pelo mestre em Econometria, Sergio Augusto de
Moraes; e Leitores, espectadores e internautas, do filósofo argentino
Néstor Garcia Canclini, muito bem esmiuçada pelo mestre em Comu-
nicação Social, Tiago Eloy Zaidan.
Boa leitura!
Os Editores
10
I. Tema de Capa:
Nova afronta
à democracia
Autores
Roberto Freire
Advogado, deputado federal (PPS-SP) e presidente nacional do Partido Popular Socialista..
Nova afronta à democracia
representativa
Roberto Freire
13
tivos”, grupos organizados nos quais se incluem “movimentos sociais”
– os sem-terra, sem teto, pelo passe livre etc.
O Decreto presidencial determina que órgãos da administração direta
e indireta a criar estruturas, como “conselho de políticas públicas” e
“comissão de políticas públicas”, sendo estes órgãos obrigados a
promover consultas populares sobre grandes temas, antes de definir a
política a ser adotada e anunciada pela máquina governamental. Quer
dizer, teoricamente pretende-se considerar tais colegiados durante “a
formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus
programas e políticas públicas”. Na prática, ministérios e demais órgãos
serão obrigados a criar conselhos, realizar conferências ou mesmo
promover mesas de diálogo, e apresentar relatórios anuais para mostrar
que estão cumprindo a determinação superior e prestar contas.
Segundo está escrito, o objetivo do Decreto é “consolidar a parti-
cipação social como método de governo”. Porém, na verdade, por trás
deste pretexto de promover uma maior participação da “sociedade
civil” na atividade estatal, além de golpear a democracia representa-
tiva ao obrigar órgãos federais a criar os tais “conselhos populares”,
a decisão presidencial, na verdade, afronta o fundamento básico da
igualdade perante a lei e cria uma casta de cidadãos de primeira
classe – os membros dos movimentos sociais – que estariam acima
dos demais. Desta forma, cinde-se a sociedade em duas categorias de
cidadãos, conferindo uma cidadania de segunda classe aos que não
militam nos tais movimentos.
O Decreto não cria uma nova forma de participação, mas um sistema
de tutela sobre os cidadãos ou movimentos organizados que poderão
atuar em conjunto com o governo federal na administração do Estado. É
mais do que evidente de que esses conselhos não poderão ser populares,
pois seus membros, além de serem indicados pelas máquinas das
organizações sociais controladas pelo PT serão nomeados pelo governo
petista. O mais grave é que o Sistema Nacional de Participação Social
não pode ser comparado às audiências públicas, que se realizam no
âmbito do Legislativo, convocadas pela
Câmara ou pelo Senado, já que, de acordo com o Decreto de Dilma,
ele se configura como uma vasta estrutura burocrática, comandada
por um “secretário-geral”, que é exatamente o secretário-geral da
Presidência da República, o petista Gilberto Carvalho.
Ao definir como sociedade civil “o cidadão, os coletivos, os movi-
mentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas
redes e suas organizações”, diante de tamanha subjetividade e impre-
cisão, caberá exclusivamente ao governo federal estabelecer o que é
institucional e, portanto, parte integrante dessa sociedade civil chapa
14 Roberto Freire
branca, e o que não é. A dedução lógica é de que todos aqueles que
porventura não pertençam a movimentos sociais (centrais sindicais,
federações, sindicatos, associações de moradores, entidades estu-
dantis etc.), em sua expressiva maioria controlados pelos petistas,
não poderão participar da “democracia direta” defendida pelo PT.
Essa decisão da presidente Dilma de tentar criar um modelo de
participação social, via decreto, passa por cima da Constituição e
enfraquece o Poder Legislativo como fórum de representação da
sociedade e de discussão de grandes temas, além do engessamento
das decisões do governo. Ressalte- se que o aspecto institucional
mais absurdo e inaceitável é, uma vez mais, o fortalecimento do
predomínio do Executivo sobre os demais poderes. Trata-se de um
novo atropelo do Legislativo e das instâncias jurídicas apropriadas.
Como é de todos sabido, na democracia representativa, o foro
institucional de debate político é o Congresso, constituído por repre-
sentantes eleitos pelos cidadãos. Na “democracia participativa”
pretendida pelo PT, o povo passa a ser “representado” por líderes de
“movimentos sociais” selecionados pelo governo. Os “conselhos”
resultantes serão majoritariamente integrados por militantes que
gravitam na órbita lulopetista. Detalhe a destacar: a nova “represen-
tação” da “sociedade civil” não está sujeita ao crivo das eleições.
Por sua vez, a Constituição brasileira garante o direito à livre
manifestação e consagra a democracia representativa com eleições
livres nas quais a sociedade escolhe seus representantes no Parla-
mento. O grande mérito desse modelo, que foi aprimorado na Cons-
tituição Cidadã de 1988, é que todos os brasileiros têm exatamente a
mesma importância no momento do voto, independentemente de
suas condições econômicas ou sociais, de sua origem, da preferência
partidária ou do grau de envolvimento com a política.
Além do viés profundamente antidemocrático do Decreto, trata-se de
uma clara tentativa de manipulação política. O texto constitucional de
1988 também incorporou o princípio da participação popular direta na
administração pública graças a uma série de mecanismos – audiên-cias
públicas, referendos, plebiscitos e iniciativas de leis em prol da
cidadania, como a Lei da Ficha Limpa –, mas nenhum deles engessa o
Poder Legislativo e subjuga os representantes eleitos pela sociedade.
Participação popular, sob a forma de audiências públicas obriga-
tórias e outros instrumentos, é algo bem diferente da tese, contida no
Decreto, segundo a qual mesmo movimentos “não institucionais”
podem ter influência direta nas decisões de ordem pública. Nenhum
possível membro de um dos tais conselhos assumirá responsabili-
dade oficial pelos erros e possíveis acertos das decisões nem face à
16 Roberto Freire
A farsa como método
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O que resta do episódio é a indigência de conteúdos do governo
petista, incapaz de produzir propostas que respondam aos anseios
reais da população.
O partido insiste na opção da farsa como método, como demons-
trou mais uma vez ao assumir a desfiliação do deputado André
Vargas (PR), flagrado em corrupção.
Na vida real, o PT fez um acordo com Vargas, a quem interessava
a desfiliação, como forma de evitar sua cassação e viabilizar seu
retorno na próxima eleição, escapando à consequente perda dos
direitos políticos por oito anos.
Não falta razão, por isso, ao ex- presidente Lula, quando mani-
festa preocupação com a imagem de corrupção que passou a selo do
partido, líder hoje nesse quesito.
19
combinar a política mais tradicional dos socialistas e a nova política
proclamada pela Rede, mas o fato de se tratar de forças minima-
mente dotadas de conteúdo valoriza sua desassociação do bloco no
poder, cujo pragmatismo – simbolizado por aliados como Maluf,
Collor ou Newton Cardoso – põe à prova o poder de explicação de
quem acompanhou a trajetória pretérita do petismo.
O principal desafiador do bloco governamental surge com um
discurso econômico afiado, concorde-se ou não com ele. Em boa
parte, o núcleo de economistas que gestou o Plano Real e, posterior-
mente, as metas de inflação foi quem nos acostumou a expressões
como “âncora cambial” ou “âncora fiscal”, lastros no combate ao
descontrole de preços e à perda de valor da moeda. O ponto forte da
postulação oposicionista atual deriva dos índices cronicamente
baixos de crescimento, o que mais cedo ou mais tarde terá implica-
ções sociais negativas.
Na política, embora inimaginável a hipótese de se contraporem à
alternância – haja vista a transição exemplar entre Fernando
Henrique Cardoso e seu sucessor –, há entre os tucanos formulações
aventurosas, demonstrando uma menor preocupação com o que, por
analogia, chamaríamos de “âncora constitucional”. É o caso da
proposição de coincidência geral de mandatos estabelecidos em 5
anos: tempo demais para manter afastados das urnas os eleitores, a
requerer ainda por cima emenda constitucional para a implemen-
tação. Objetivos razoáveis de reforma podem perfeitamente ser alcan-
çados por medidas infraconstitucionais, menos traumáticas por defi-
nição. Por que não testar este caminho, afastando-nos da tentação
da grande reforma salvadora?
O petismo – produto de variadas tradições da esquerda (inclusive
autoritárias) e protagonista de curiosa “dualidade de poderes” entre
dois presidentes, o criador e a criatura – tem dado curso a uma pré--
campanha com traços de enigma, como quando, ao contrário do
lance ensaiado pela “Carta aos brasileiros” de 2002, radicaliza o
discurso e sugere iniciativas – a tal Constituinte exclusiva para a
reforma política é uma delas – que supõem perigoso salto no escuro,
além da letra e do espírito da Constituição de 1988.
De novo aqui, e ainda mais confusa, a ideia de reforma redentora dos
costumes políticos, com seu cortejo de listas fechadas e aumento do
poder das burocracias partidárias, como consta do repertório petista.
Repertórios análogos, em diferentes latitudes, têm afastado
representantes e representados, gerando ondas recorrentes de “indig-
A âncora constitucional 21
que um partido pretendeu decidir quem era culpado e quem era
inocente, ou em que juízes correram o risco de ser “julgados” por
uma das partes em questão.
Assim, o Decreto sobre a participação social, que insiste na
“atuação conjunta entre a administração pública federal e a socie-
dade civil”, quais garantias reais nos dá sobre a apregoada “diversi-
dade dos sujeitos participantes” das diferentes instâncias – conse-
lhos, comissões, “mesas de diálogo” – que confirma, redefine ou
institui? Como acreditar na autonomia de uma sociedade civil que
não só participaria “de forma direta (...) nos debates e decisões do
governo”, como também, ao mesmo tempo, poderia celebrar “parce-
rias” com a administração pública? Onde terminaria a participação
real e começariam processos de cooptação e partidarização, a partir
de cima, de “cidadão(s), coletivos, movimentos sociais institucionali -
zados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações”?
A cena eleitoral, deste modo, se complica com este novo movimento
voluntarista que, no mínimo, ao não se apresentar sob a forma de lei,
tenta ultrapassar o mecanismo central de representação e se apre-sentar
como um fato consumado, que poria, de um lado, os campeões da
participação popular e, de outro, os representantes carcomidos da velha
política, sem, no entanto, apontar nenhum esforço reflexivo sobre os
problemas da representação na democracia brasileira.
Inútil esperar que a luta eleitoral se trave com invariável elegância,
excluindo-se golpes sob a linha da cintura. Ao contrário, costuma -se
fazer o diabo para ganhar e manter o poder. Isso, com certeza, só
aumenta a responsabilidade de todos os democratas: seja em que
partido estiverem, em qualquer circunstância eles são chamados a
defender e a difundir o “patriotismo constitucional” como a única
âncora possível da convivência cívica.
Sérgio C. Buarque
Economista, mestre em Sociologia, professor da FCAP/UPE, consultor em Planejamento
Estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, fundador e
membro do Conselho Editorial da revista Será?
Sergio Fausto
Cientista político, superintendente do Instituto Fernando Henrique Cardoso (IFHC), mem-
bro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint) da Universidade de São
Paulo, e colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy, da
Rice University, em Houston, no Texas/EUA..
O futebol e a política1
25
presente na formação do senso comum com que os brasileiros se
percebem nas suas circunstâncias.
O resultado acachapante da disputa das semifinais com a Alemanha
(7 a 1), parcialmente confirmado, dias depois, na derrota para a
Holanda (3 a 0), não pode ser atribuído tão somente ao fortuito e aos
azares sempre presentes nas disputas esportivas. Ele depõe contra a
concepção estratégica da nossa preparação para os jogos e denuncia
o anacronismo do nosso repertório e do nosso sistema de jogo, de
resto visível nas competições em que se envolveram, em tempos
recentes, os nossos principais clubes nos torneios internacionais.
Exemplar, no caso, a derrota por 4 a 0 imposta pelo Barcelona ao
Santos do sempre brilhante Neymar, em 2011, na final do campeo-
nato mundial interclubes. E, sobretudo, põe a nu as estruturas do
nosso futebol – arcaicas, autocráticas –, que, com esse resultados
apavorantes na Copa do Mundo, abriu uma janela para a oportuni-
dade da sua remoção. A qual, todavia, não virá sem o clamor público
e a ação de uma crítica contundente que a tornem imperativa.
Mais do que exercer um papel pedagógico para a vida moderna,
com sua intrínseca valorização da cooperação – a coordenação de
movimentos dos jogadores para defender e atacar – e do mérito indi-
vidual, o futebol, entre nós, conforma um laboratório silencioso onde
se processam experiências que transcendem o seu território. A
questão racial foi uma delas, tão bem percebida por Mario Filho no
clássico da nossa literatura social O negro no futebol brasileiro,
quando argumentou que a valorização do negro – seu modelo foi
Leônidas da Silva, notável atacante dos anos 1930 – nos estádios de
futebol teria contribuído para a sua valorização na sociedade. Não há
Muralha da China a interditar o aprendizado que daí deriva para
outras dimensões da vida social, como, entre outros estudiosos, tem
destacado o antropólogo Roberto DaMatta.
O sentimento em favor de mudanças que varre o País certa-mente
não nasceu nesse “laboratório”, mas há algumas coincidên-cias com
o que já agita o mundo do futebol. Entre tantas, a polí-tica do
presidencialismo de coalizão na forma bastarda como o adotamos,
cujas afinidades eletivas com as práticas vigentes entre nossos
próceres esportivos chamam a atenção ao submeterem o futebol, tal
como os da política, aos interesses de autorreprodução de suas elites
dirigentes. O anacronismo e a resistência à inovação são outras
marcas comuns.
Fechada em panos de luto a Copa do Mundo de 2014, vamos,
agora, para a sucessão presidencial e as eleições para governador e
O futebol e a política 27
Sob o domínio do medo
A s pessoas estão com medo. A segurança, mais uma vez, está entre
as principais preocupações do cidadão. Todos têm uma história para
contar, conhecem alguém que passou por uma situação de violência. O
que ameaçava de longe, hoje se avizinha.
Somos a próxima vítima.
As notícias de crimes, antes consideradas de menor importância
na economia informativa, se tornaram estrelas em todos os veículos.
Há um exibicionismo da violência. A sensação de insegurança se
torna um agente mobilizador da emoção e os meios de comuni-cação
mudam seus protocolos do que é ou não notícia para atrair mais
público.
Os governos também se apressam em anunciar medidas para
conter os crimes. Mais polícia nas ruas, mais armamentos, novas
delegacias, tecnologia. Ou seja, o cardápio convencional de enfrentar
força com força, de tentar desequilibrar o jogo em favor da lei e da
ordem. Num acordo tácito, não dito, parece haver um silenciamento
sobre causas e direitos humanos em nome da eficiência urgente das
medidas que amenizem o pavor do cidadão.
De uns tempos para cá, foram se estabelecendo duas lógicas
paralelas sobre a questão da violência. A primeira é baseada em
dados estatísticos, que dão o número cru, o índice real dos danos
sociais causados pelo crime. A outra é a chamada sensação de
segurança, uma medida imponderável, sujeita mais aos aspectos
emocionais que aos fatos.
As políticas de segurança mais recentes buscam se guiar por
uma combinação das duas, como se fossem a mão esquerda e a
direita. Não são. Por muitos anos, o Brasil ficou refém de dados sem
consistência, apurados com amadorismo e quase sempre pouco
confiáveis. Com o aprimoramento da coleta de informações, ficou
mais explícito o ambiente e, com isso, a base para implantação de
políticas mais consequentes.
28
A entrada em cena da categoria de sensação de segurança pode
borrar um pouco a objetividade necessária e, em alguns momentos,
direcionar ações que são mais visíveis, mas nem sempre efetivas.
Atividades culturais voltadas para populações de risco, por exemplo,
não afetam a sensação de medo dos moradores de áreas nobres da
cidade.
Valores
Tudo isso parece apontar o dedo, como uma arma, para a cons-
ciência do cidadão comum: o que fazer? A primeira tendência, como
se observa, é responder à violência com mais repressão. São as
estratégias de tolerância zero, de grande impacto, mas presas ao
modelo tradicional de segurança em que, para cada crime, há uma
punição. Reduzir o crime a situações individuais, a serem comba-
tidas também de forma isolada, só será eficaz se o país se tornar um
imenso presídio.
A polícia e a Justiça precisam ser repensadas. E há alternativas
viáveis, inclusive já experimentadas no Brasil e em Minas, que
apontam para uma transformação cultural do setor de segurança. No
entanto, até pela consideração antropológica e cultural das medidas,
na busca de compreensão da dinâmica social e do diálogo com todos
os estratos sociais, são ações consideradas menos efetivas e
lenientes. Mesmo que sejam traduzidas em dados estatís-ticos
exemplares. Mais uma vez, a fantasia da sensação subjetiva de parte
da sociedade guia a política do setor.
O que vale mais: dar oportunidades de crescimento pessoal e
profissional para jovens em situação de risco social ou incentivar a
ostensiva ocupação das ruas pelas forças policiais? A resposta vai
variar de acordo com o interlocutor e com o grupo envolvido.
O que se percebe é que os programas sociais estão perdendo
terreno para a cobrança por mais polícia nas ruas. A chamada
sensação de segurança pode ser a tradução de um Estado policial.
Debater novos modelos de segurança significa também respon-
sabilizar a sociedade pela preservação de valores universais. De nada
vale cobrar mais força se o cidadão ensina valores antissociais para
seus filhos, como a competição desmedida, o consumo como
tradução de realização humana e a privatização do público como
trampolim para a felicidade individual. Terá pouca eficácia social
investir em segurança sem a contrapartida de políticas públicas de
proteção da cidadania e de promoção dos direitos humanos.
Sergio Fausto
32
se a economia está parando, a inflação segue alta e o mercado de
trabalho esfria?
A imagem de um governo popular submetido ao cerco de uma
“elite odienta” e de uma “mídia conservadora” é uma figura recor-
rente na retórica utilizada pelo ex-presidente Lula. Ele a empregou
pela primeira vez em resposta à crise do mensalão. Voltou a usá-la,
recentemente, na convenção que oficializou a candidatura de Dilma
Rousseff. Em momentos de dificuldade política, para efeitos dramá-
ticos, recorre ao paralelo histórico com o segundo governo de Getúlio
Vargas, cujo trágico desfecho completa sessenta anos no próximo dia
24 de agosto.
No imaginário lulista, o golpismo udenista ressurge encarnado no
PSDB, que, como a velha UDN, por não conseguir ganhar no voto,
pretenderia chegar ao poder por vias tortas, ao arrepio da vontade
popular. Essa narrativa faz lembrar a famosa frase de Marx segundo
a qual a história ocorre duas vezes: uma como tragédia e outra como
farsa.
É inegável a inclinação não democrática da ala ferozmente anti-
getulista da UDN. Basta lembrar o que escreveu Carlos Lacerda ainda
antes de Vargas anunciar sua candidatura às eleições de 1950:
“O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidente
da república. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar
posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de
governar”. Para interromper o mandato de Vargas, a UDN conspirou
com setores das Forças Armadas e da imprensa. O partido não reco-
nhecia a legitimidade do “velho ditador”, a despeito de sua volta ao
poder pelo voto, e apontava a suposta ameaça de imposição, por
Vargas, em aliança com Perón, de uma “República Sindicalista”, que
subverteria a ordem liberal da Constituição de 1946 e elevaria o risco
de o país pender em direção ao bloco soviético.
O paralelo histórico com o presente é uma farsa. A legitimidade
dos mandatos recebidos por Lula e Dilma nunca foi questionada. Os
militares estão nos quartéis e atuam rigorosamente dentro dos
limites que a Constituição estabelece. O PSDB, como partido de
oposição, moveu-se sempre dentro da legalidade e com moderação,
sendo não raro criticado por isso. A imprensa é hoje mais plural e
politicamente independente do que jamais foi na história brasileira.
As elites se diversificaram e se abriram a novos grupos, acostu-
mando-se a lidar com governos de distintas cores políticas. As
densas paranoias da Guerra Fria se dissiparam.
34 Sergio Fausto
pura distribuição de cargos que a nova maioria política deve se orga-
nizar. Ela deve ser apenas o suficientemente grande para viabilizar o
componente legislativo da agenda de governo.
Tão importante quanto definir a agenda é apresentar ao país um
diagnóstico realista da situação encontrada, não para desvalorizar o
atual governo, mas para explicar as razões de medidas que terão de
ser tomadas para corrigir problemas acumulados nos últimos anos.
E escolher nomes à altura dos desafios que o país terá de enfrentar.
Para começar a recuperar a confiança perdida no governo em
particular e na política em geral, não basta ganhar a eleição. É
preciso inovar desde logo na constituição do novo governo.
36
na estrutura de poder, predominando claramente na elite política
brasileira. Embora o poder não se restrinja ao controle das instân-
cias do Estado, parece indiscutível que o Partido dos Trabalhadores é
hoje o mais poderoso do Brasil com posição destacada no Estado e
irradiação em movimentos sindicais e sociais, formando uma forte
elite política.
No entanto, este movimento de fortalecimento político foi acom-
panhado de um contínuo e rápido afastamento da intelectualidade
brasileira, desta parcela da elite que, mesmo sem poder, pensa,
formula, analisa e, o que é pior para o governo, critica e o faz com
fundamento e argumentos. E foi precisamente por esta capacidade
de pensar e analisar que os intelectuais, muitos dos quais funda-
dores do partido, foram se afastando e questionando a prática polí-
tica do PT e da sua elite política no governo em busca permanente de
ampliação e consolidação do poder.
É isso que, seguramente, incomoda os petistas, gerando esta
aversão e desprezo pelos intelectuais e pela elite intelectual brasi-
leira. Embora possam se regozijar de ser o partido do povo e dos
pobres contra a elite (no caso, a elite intelectual), deve ser duro para
o PT perceber a demandada geral de intelectuais de peso. O intelec-
tual costuma pensar para além das emergências, formular e analisar
a complexidade da realidade e das decisões, antecipar os impactos e
os desdobramentos das escolhas. Os intelectuais discutem ideias e
propostas e procuram fundamentá- las em dados, em informações
ou em conceitos, fugindo dos slogans e frases de efeito do
competente comunicador de massas.
Parece que Lula está conseguindo difundir a ideia de que a elite
brasileira odeia o PT. Mas a verdade é que o PT, Lula e Dilma
demons-tram um ressentimento profundo com os intelectuais,
aliados e admiradores do passado que agora não escondem sua
decepção com a elite política no poder, e ousam criticar os
“iluminados” represen-tantes do povo.
Este ressentimento do PT com os intelectuais se manifesta também
nas acusações à imprensa que, segundo Gilberto Carvalho, estaria
dando uma “pancadaria diária” no governo e no partido, o que teria
levado às vaias à presidente Dilma de amplos segmentos da sociedade e
não apenas da “elite branca”, na abertura da Copa do Mundo. Como eles
se julgam bons e perfeitos, a rejeição de tantos brasileiros não resulta
dos seus erros e desvios políticos e administrativos mas da campanha da
imprensa que, suprema agressão, divulga a má gestão petista e os seus
resultados na economia, na política e na sociedade.
38 Sérgio C. Buarque
para glorificar o governo; em 2013, o governo federal gastou com
publicidade 2,3 bilhões de reais. Querem mais? O governo financia
com dinheiro público vários blogs que formam uma ampla malha de
propaganda, difusão de informação e debate ideológico nas redes
sociais. De 2003 a 2012, o percentual de recursos da Secretaria de
Comunicação da Presidência da República para a publicidade digital
no total da publicidade mais do que triplicou: passou de 1,4% para
5,3% o que representaria cerca de R$ 139 milhões, em 2013
(crescimento apenas em parte compreensível por conta da mudança
tecnológica da comunicação) . Existe, contudo, uma dife-rença
profunda na credibilidade de um órgão de imprensa estabele-cido e
submetido a regras e controles, com espaço para o contradi-tório em
todas as informações, e os blogs privados, muitos deles individuais,
financiados com dinheiro público e sem controles do que é veiculado.
Os blogs podem ser importantes veículos para o debate e exposição
de opinião, mas como difusor de informação não tem a credibilidade
que é exigida dos órgãos estruturados de imprensa cuja veiculação
decorre da produção intelectual de múlti - plos jornalistas com
prováveis diferenças políticas. Vale lembrar que a pesquisa do Ibope
de Confiança nas Instituições mostrou, em 2013, que os meios de
comunicação eram o quarto mais confiável pela sociedade (depois do
Corpo de Bombeiros, igrejas e Forças Armadas) enquanto o governo
federal aparecia em 12º lugar.
A relação política entre a intelectualidade (elite intelectual) e o
poder (elite política) vem apresentando um movimento pendular na
história recente do Brasil: quando não contam com o apoio e a
simpatia dos intelectuais, a elite no poder procura construir uma
base política na grande massa da população pouco informada e facil-
mente manipulada. Nas eleições parlamentares realizadas durante a
ditadura militar havia uma nítida divisão social do voto, na qual os
pobres costumavam votar na Aliança Renovadora Nacional (Arena) e
nos candidatos do governo militar enquanto a oposição recebia os
votos da intelectualidade, da classe média informada e de parte dos
trabalhadores urbanos.
De um modo geral, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB),
único partido de oposição autorizado, era o partido da intelectuali-
dade e a Arena era o partido do povão, a serviço da ditadura. Em
termos regionais, é importante lembrar, os governos militares se
beneficiavam do voto de cabresto do Nordeste, precisamente onde se
concentra a maior parcela dos eleitores de baixa renda, mais facil-
mente manipulados pelo fisiologismo. No período do chamado
“milagre econômico”, com crescimento econômico de 7% ao ano, a
40 Sérgio C. Buarque
lectuais, frustrados com a prática do PT e com o trato pouco sério da
coisa pública.
Desde o segundo governo Lula, e mais recentemente com a presi-
dente Dilma Rousseff, o PT vem se firmando como o partido dos pobres e
do Nordeste, enquanto a intelectualidade, a classe média informada e
mesmo parte relevante dos trabalhadores urbanos orga-nizados se
afastam ou migram para a oposição. As recentes pesquisas eleitorais
mostram com clareza que as eleições de 2014 devem repro-duzir a velha
divisão que, no passado, favoreceu, em diferentes momentos, a Arena e o
PMDB: os pobres e o Nordeste voltam majori-tariamente no PT enquanto
os outros partidos tentam consolidar a adesão dos intelectuais, da classe
média informada, dos formadores de opinião e dos trabalhadores
urbanos. O Ibope mostra que, na próxima eleição, a candidata
presidente Dilma Roussef teria sua mais expressiva votação na
população com até 4ª série de estudo (51%), no Nordeste (52%) e na
faixa de renda de até um salário mínimo (56%).
Esta configuração político- eleitoral pode confirmar a divisão feita
pelo PT entre a elite e o povo que vota em Dilma e, por serem mais
numerosos, podem reeleger a atual presidente. Ocorre que o voto dos
pobres e miseráveis é também majoritariamente o voto fisiológico e
manipulado pelos favores e distribuição de benesses e pela imensa
propaganda política que inibe o pensamento e a análise. Trata-se de
uma afirmação elitista, preconceituosa e reacionária, dirão os
petistas, mas não podem negar que são os pobres, analfabetos ou
pouco escolarizados, desinformados e com tantas carências que
preferem os benefícios diretos, que são os eleitores mais sensíveis e
vulneráveis aos mecanismos fisiológicos, populistas e personalistas
de obtenção do voto.
Cristovam Buarque
Professor da UnB e senador pelo PDT-DF..
45
do estado de direito democrático, ou como agiram e se portaram na
condução da transição democrática continuam ativados. Nesse sentido é
que a derrota de 1964 e seus desdobramentos devem ser pensados como
um problema histórico-político. Não por acaso, meio século passado,
aquela experiência histórica continua assombrando e condi-cionando a
intervenção dos agentes e protagonistas no tempo presente.
Democracia negligenciada
Não se pode entender as avaliações sobre o golpe e seus
desdobra-mentos, produzidas pela esquerda e os projetos políticos
que delas derivaram sem um exame do comportamento de seus
protagonistas naquele quadro histórico.
O breve governo de João Goulart, em que pese todos os problemas e
atribulações, representou um dos poucos momentos realmente
democráticos da história republicana brasileira, particularizada pelo
autoritarismo que lhe é particular – nele houve, sem dúvida, a ampliação
das liberdades, a expansão dos direitos de cidadania e um
robustecimento da sociedade civil e política. Nesses anos, o processo
político brasileiro foi extremamente rico e ganhou contornos extraor-
dinários. Os problemas e contradições explicitaram-se e agudizaram--se.
As tensões políticas, as alterações e crises da economia, a reno-vação e
ascenso do movimento sindical urbano, a organização (sindical) e a
entrada na cena sociopolítica dos trabalhadores rurais, o cresci-mento
mobilizador do movimento estudantil e associativo das camadas médias,
o desenvolvimento das lutas e reivindicações nacionalistas e por
reformas estruturais (reformas de base), o impulso politizador e criativo
da vida artística e intelectual, a movimentação de forças e instituições
das classes dominantes para impedir os movimentos reformistas ou para
impor seus projetos, além de muitos outros fatos, acontecimentos e
fenômenos, dariam um caráter singular e notável a esse período
histórico do país.
Evidentemente, o avanço organizativo, politizante e mobilizador foi
favorecido pela vigência de determinadas liberdades democráticas e pela
forma como se compôs o poder estatal. Todos esses elementos, no
conjunto, criaram condições excepcionais para a inserção e o floresci-
mento de partidos e grupos de esquerda, anticapitalistas ou reforma-
dores, de extração marxista, nacionalistas, cristãos, trabalhistas etc.
Dessas, a mais antiga agremiação e uma das mais expressivas forças
da esquerda, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) – que havia recém-
passado por um traumático processo de renovação política, nos
Cristovam Buarque
56
fingimos ser ricos; apesar da pobreza. Usando a riqueza total do país de
200 milhões de pessoas, mas para esconder a pobreza de cada uma
delas e a tragédia social onde sobrevivem ameaçadas pelo desastre ao
redor. Ignorando inclusive a brutal concentração de renda total entre
poucos brasileiros, 10% dos quais se apropriam de 50% e deixam que os
50% mais pobres recebam apenas 10% do total.
Como temos uma indústria aeronáutica de elevado nível cientí -
fico e tecnológico, fingimos que nosso PIB é moderno apesar de
termos uma economia exportadora de bens primários e importa-dora
de conhecimento.
Nos últimos 20 anos, passamos de 1,66 milhão para 7,04 milhões
de matrículas nos cursos superiores, mas quase 40% de nossos
universitários não sabem ler e escrever satisfatoriamente, poucos
sabem a matemática necessária para um bom curso nas áreas de
ciências ou engenharias; raros são capazes de ler e falar outro
idioma além do português. Fingimos ser possível dar um salto à
universi-dade sem passar pela educação de base.
Comemoramos ter passado de 36 milhões, em 1994, para 50
milhões de matriculados na educação básica, em 2014, sem dar
atenção ao fato de termos 13 milhões de adultos prisioneiros do
anal-fabetismo; 54,5 milhões de brasileiros com mais de 25 anos não
terem terminado o Ensino Fundamental e 70 milhões não termi-
naram o Ensino Médio. Fingimos que os matriculados estão estu-
dando, quando sabemos que passam meses sem aulas por causa de
paralisações ou falta de professores.
Educamos diferentemente os ricos e os pobres, e como os negros,
por serem pobres, ficam sem escolas de qualidade e em
consequência fora de boa universidade, e fingimos resolver a falta de
democracia racial por meio de cotas. Reservamos cotas para alunos
que conclu-íram Ensino Médio, oferecemos bolsas para os que
estudam e ingressam em faculdades, esquecendo os que ficam para
trás ao longo da educação de base. E chamamos o programa de
Universi-dade para Todos – mesmo que esse “todos” só inclua poucos
que terminaram o Ensino Médio e conseguiram passar no vestibular.
Um bom programa como o Pronatec, finge que vai resolver o apagão
de mão de obra, quando 30% dos alunos abandonam os cursos porque
não tiveram o Ensino Fundamental com a necessária qualidade.
Temos quase 200.000 prédios que fingimos ser escolas, apesar da
péssima qualidade deles, da falta de equipamentos, até de giz, água,
luz; apesar dos professores sem salários, sem motivação, sem
58 Cristovam Buarque
Desde 1994 temos governos liderados por presidentes e partidos
progressistas, com promessas transformadoras, mas fingimos trans-
formar enquanto apenas damos jeitinhos. E para justificar a falta de
vigor transformador escondemos os problemas e superpublicizamos
os resultados bons, mas limitados programas sociais.
Fingimos ser um país com ambição de grandeza, mas nos conten-
tamos com tão pouco que os governantes se recusam a ouvir críticas
sobre a ineficiência dos serviços públicos. Preferem um otimismo
ufanista, comparando com o passado que já foi pior, e denunciam
como antipatriotas e antidemocráticos aqueles que ambicionam mais
e criticam as prioridades no uso da energia econômica do país e a
incompetência como elas são executadas.
Antipatriota e antidemocrático é achar que o Brasil não tem como
ir além, é acreditar nos fingimentos e não lutar pelas reformas que
há cinquenta anos fingimos fazer.
1 História das lutas sociais no Brasil. São Paulo: Edaglit, 1962, p. 20 e 119.
2 São Paulo: Cortez, 2002.
60
Getúlio Vargas, candidato da Aliança Liberal, derrotado nas
urnas pelos coronéis e donos das terras do eixo São Paulo-Minas
Gerais, assume o poder pelas armas e abre o ciclo das ditaduras. De
imediato, assinou nossa terceira lei sindical, escrita por dois socia-
listas, o carioca Evaristo de Morais, pai, advogado de presos polí-
ticos, pioneiro na abordagem de um novo direito que chamou Direito
Operário, e o pernambucano Joaquim Pimenta, misto de professor e
agitador social. Mesmo assim deram- lhe natureza de órgão de cola-
boração3 e para controlá-lo foi criado o Ministério do Trabalho, que
era também da Indústria e Comércio. No primeiro tempo da Era
Vargas foram três anos e oito meses de ditadura. Vargas inicia o
segundo tempo convocando a Assembleia Nacional Constituinte,
exclusiva e democrática, elegendo-se presidente por votação indireta.
A Constituição, aprovada em 1934, substituiu a unicidade pela
pluralidade. Só que outra lei sindical mitigou -a exigindo o apoio de
1/3 da categoria para seu reconhecimento, de modo que só era
possível a criação de, no máximo, três organizações. O historiador
Hélio Silva anota que o pluralismo empolgou os “pelegos” interes-
sados em eleger- se representantes classistas no Congresso Nacional,
compondo “uma bancada obediente à batuta do líder da maioria (...)
formada por um único eleitor, compreendendo- se como tal o que
elege, no caso o ministro do Trabalho, Agamenon Magalhães”. 4
Outro golpe e outro tempo de ditadura se inicia em 1937 com a
criação do Estado Novo fascista, estruturado por uma “carta” (assim
mesmo em letras minúsculas), escrita por Francisco Campos que,
mais tarde, escreveria também o AI-1 da ditadura militar de 1964. O
que fez? Copiou, no art. 138, a Declaração III da Carta del Lavoro do
regime implantado por Mussolini:
A associação profissional ou sindical é livre. Somente, porém, o
sindicato regularmente reconhecido pelo Estado tem o direito de
representação legal dos que participarem da categoria de produção
para que foi constituído e de defender-lhes os direitos perante o
Estado e as outras associações profissionais, estipular contratos
coletivos de trabalho obrigatórios para todos os seus associados,
impor-lhes contribuições e exercer em relação a eles funções dele-
gadas de Poder Público.5
Brasiliense, 1979, p. 67
10 MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e Oposição no Brasil de 1964 a 1979, 1984,
Rio de Janeiro: Vozes, p. 244.
11 Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo
com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e
aos servidores da administração direta e indireta, de fundações vinculadas ao
poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e
aos diri-gentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos
Institucionais e Complementares.
§ 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer
natu-reza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
12 Apelo feito no Dia 1° de Maio de 1970, reproduzido por Kenneth Paul Erickson, op.
cit., p. 239.
13 Luiz Inácio Lula da Silva, metalúrgico de São Paulo, e João Paulo Pires Vasconce-
los, metalúrgico de João Monlevade (MG), fundariam a CUT e depois o PT. Arnaldo
Gonçalves, metalúrgico de Santos, então filiado ao PCB, e Hugo Perez, eletricitário
de São Paulo, do grupo independente, ainda atuam na organização sindical.
68
de 2500% ao ano (detida somente quando os perseguidos pela dita-
dura chegaram ao poder), uma dívida externa “impagável”, e um
legado ainda não superado de violência, corrupção e impunidade?
Rebeldes de negócios
Para os radicais, “fazer a revolução” era como subir à Acrópole,
triunfar sobre o próprio destino engajando-se no movimento histó-rico e
na construção de um mundo novo, feito de perdas e desen-cantos,
porém jamais de desespero.12 Seria como ascender junto com o castigo,
consciente da onipotência e capacidade do revolucionário de minimizar
questões de estratégia ou de organização.13 Atributos
18 Cf. Partido Comunista Brasileiro (1971). A luta certa. Voz Operária (grifado pelo autor, da
provável redação de Orlando Bonfim, membro do Comitê Central, assassinado em 1975).
19 Maria C. Tavares. A era das distopias. Inteligência, 2014.
20 A Defesa Nacional. Revista de Assuntos Militares.. Editorial (out./1913); Olavo
Bilac (1965). A defesa nacional. Biblioteca do Exército. Na cultura organizacional
militar, latina, o tipo ideal de oficial “regenerador” e “disciplinador” é sem dúvida o
“Capitão Vidal”, personagem do filme O labirinto do fauno, de Guillermo Del Toro.
Crises de identidade
„Crise – ou perda – de identidade‟ nada seria além de uma “graciosa
expressão descritiva”26 se não considerássemos os eventos históricos
21 À exceção dos comunistas e do comando militar, todos supunham que o partido que
respaldava os militares continuaria logrando ampla maioria de votos nas eleições. Carlos
Matheus (2010). A eleição de 1974. No exílio, as lideranças esquerdistas prognosticavam
“meio século de ditadura”, tal como Salazar em Portugal.
22 Alessandra Carvalho (2013). Partidos e abertura nos anos 1970: o MDB nas
eleições de 1974 e 1978. XXVII Simpósio Nacional de História.
23 Cf. Informe 047 (1975), Centro de Informações da Aeronáutica; Amaury Ribeiro Jr.
A ordem é matar. IstoÉ, 24/03/2004.
24 Robert Michels. Political parties: a sociological study of the oligarchical tendencies of
modern democracy. Batoche Books, 2001, p. 241.
25 Marilena Chauí. Entrevista à revista Cult, n. 182, 2013.
26 Robert A. Nisbet. A sense of personal sameness. New York Times, 31/03/1968.
27 Pedro Scuro Neto. Sociologia ativa e didática. Saraiva (cap. VIII, ação social: funda-
mentos normativos), 2004.
28 Luiz Inácio Lula da Silva. Entrevista à CartaCapital, 30/05/2014.
29 Political parties.. ��������������������������������������������������������������������Asociologicalstudyoftheoligarchicaltendenciesofmoderndemoc-racy.
77
Imagem emblemática da resistência cultural
Uma imagem emblemática do evento pode ser destacada pela
apresentação de uma dupla de compositores tentando dar o seu
recado: Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil. A música era
“Cálice”, composta pelos dois exatamente para o evento. O motivo
original da composição era de que parcerias não muito comuns, a
não ser por serem de artistas contratados pela então Phillips,
deveriam compor uma obra original exclusivamente para o evento.
Os organi-zadores artísticos do evento – entre eles, André Midani e
Roberto Menescal – convidaram Gilberto Gil para se apresentar
conjunta-mente com Chico Buarque de Holanda, duas feras da MPB,
mas que atuavam em faixas consideradas diversas; um tropicalista
voltando do exílio, outro, o compositor mais censurado pela ditadura.
A base da música a ser apresentada foi criada por Gilberto Gil,
em uma sexta-feira santa, 20 de abril de 1973, quando Gil teve a
ideia que ele levaria ao Chico, no dia seguinte. Eles tinham marcado
uma reunião para o sábado de aleluia (21/4) na casa de Chico
Buarque, para discutirem a música inédita que deveriam apresentar
no Phono- 73. Gil teve a ideia com um refrão bíblico: “Pai, afasta de
mim este cálice”, que apresentou na reunião. Do substantivo –
“Cálice”, Chico observou o verbo – “Cale-se”. Da Semana Santa á
censura foi um passo inevitável: o tema principal da música.
A canção foi apresentada, como era obrigatório, aos censores, que
a vetaram, por entenderem uma crítica ao regime. A censura vetou a
música para ser apresentada no evento do Anhembi. Mesmo assim,
sem a letra, os dois apresentaram a melodia, o que a princípio foi
entendido pelo público. A apresentação da dupla se deu na sexta--
feira, 11 de maio. Tão logo ficou claro aos censores a manobra dos
cantores, o som foi cortado. As luzes foram apagadas. Mas o recado
havia sido dado. E a ditadura perdeu mais uma vez.
A música censurada
Mas o que incomodava tanto na letra de “Cálice”? Um refrão de
origem bíblica em um país que se diz religioso, principalmente
cristão, um canto de dor de uma fala de Jesus no Monte das
Oliveiras antes de ser preso, antes torturado e depois crucificado
pelos que detinham poder em sua época. Vestiram a carapuça, claro.
Referências
ALBUQUERQUE, Célio (Org.) 1973 – O ano que reinventou a MPB..
A história por trás dos discos que transformaram a nossa cultura..
Rio de Janeiro: Sonora, 2013.
ARAÚJO, Paulo Cesar de. O réu e o rei.. Minha história com Roberto
Carlos, em detalhes.. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
COSTA, Caio Túlio. Cale-se.. A saga de Vannuchi Leme.. A USP
como aldeia gaulesa.. O show proibido de Gilberto Gil.. São Paulo:
Giraffa, 2003.
Leone Sousa
Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (Unirio)..
85
Cidadania regulada
Wanderley Guilherme dos Santos é considerado um clássico no
estudo da cidadania no Brasil. Em Cidadania e Justiça , o autor
analisa a política social brasileira, fazendo um percurso histórico
desde a República Velha (Revolução de 30) até o período pós 1964,
denominado pelo autor de Acumulação e Equidade na Ordem Social
Brasileira.
Para ele, a tentativa mal sucedida da República Velha de orga-
nizar a vida econômica e social do país, segundo princípios laissez--
fairianos ortodoxos, leva ao então chefe de governo revolucionário,
Getúlio Vargas, a pôr em prática uma politica de intervenção do
Estado na vida econômica, com o propósito de estimular a industria-
lização e a diferenciação econômica nacional.
Um dos gargalos a ser enfrentado pela nova política era o
descom-passo entre a penetração das leis de mercado e o ritmo de
implan-tação da ordem capitalista na área urbana. Assim, apesar do
fracasso na implementação de um ordenamento no caótico processo
de acumulação, após 1923, podia-se observar um avanço efetivo no
que concerne à criação de uma política cujos benefícios iriam
redefinir a condição de cidadão no Brasil: o surgimento das Caixas
de Aposen-tadorias e Pensões (CAPs) subsidiadas pelo Estado. Para
Santos, tais benefícios se constituíam numa espécie de “dádiva” do
sistema que se perfilava em sentido oposto ao aumento progressivo
da repressão do poder público às demandas dos trabalhadores
referentes ao processo produtivo.
Assim, a extensão da cidadania no Brasil ocorre via regulamen-
tação de novas profissões e/ou ocupações cujo reconhecimento é
definido pelos direitos associados à profissão e não exatamente por
meio de uma expansão dos valores inerentes ao conceito de membro
da comunidade. São considerados, assim, “pré -cidadãos” todos
aqueles cuja profissão não é reconhecida na forma da lei”. 1
A regulamentação das profissões, a carteira profissional e o sindi-
cato moldam os parâmetros no interior dos quais passa a definir-se a
cidadania. Tais barreiras definidoras da entrada na arena politica, via
regulamentação das profissões, permitiam que todas as demandas
relativas a emprego, salário, renda e benefícios sociais ficassem na
dependência de um reconhecimento prévio por parte do Estado. E era
esse mesmo Estado, conclui o autor, que definia quem era e
4 A reflexão tem como base teórica-metodológica uma pesquisa coordenada pela au-
tora sobre cultura democrática e cidadania, realizada em junho de 1993, em
Campi-nas: São Paulo.
5 GOHN, Glória. Desafios dos movimentos sociais hoje no Brasil. SER Social, v. 15,
n. 33, dez./2013, p. 261.
6 Op. cit., p. 262.
A subcidadania
Ao tratar do tema da cidadania no Brasil, Marcelo Neves parece ir
muito além da abordagem dos autores até agora apresentados. Para
Neves, não se trata de uma subtração ou passividade em relação à
cidadania e sim de sua total ausência.
Definindo a cidadania como integração jurídica igualitária na
sociedade, Neves afirma que, em especial no Brasil e nos demais
países periféricos, ela estaria ausente quando se generalizam as rela-
ções de subintegração e sobreintegração no sistema constitucional.
Assim, do lado dos subintegrados estariam os subcidadãos, isto
é, aqueles que são excluídos no exercício dos direitos funda-mentais
constitucionalmente declarados, mas que, por outro lado não estão
liberados dos deveres e responsabilidades impostos pelo aparelho
coercitivo estatal, submetendo-se radicalmente às suas estruturas
punitivas.
Essa “regra” valeria para o sistema jurídico como um todo:
Os membros das camadas populares “marginalizadas” (a maioria
da população) são integrados ao sistema, em regra, como deve-
dores, indiciados, denunciados, réus, condenados etc., não como
detentores de direitos, credores ou autores.9
7 GOHN, Glória. Desafios dos movimentos sociais hoje no Brasil. SER Social, v. 15,
n. 33, dez./2013, p. 265.
8 Op. cit., p. 383.
9 NEVES, Marcelo. Entre subintegração e sobreintegração: a cidadania inexistente.
Dados, v. 37, n. 2, 1994, p. 260-261.
10 Ibidem.
11 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania – para uma sociologia politica da
modernidade perférica.. Minas Gerais/Rio de Janeiro: UFMG/Iuperj, 2003, p. 102.
Leone Sousa
94
Por que, em uma época de globalização e intensa comunicação
via redes internacionais, o nacionalismo continuaria inspirando
manifestações conduzidas, em sua maioria, por uma classe média já
inserida em um contexto cultural global? É justamente essa faceta
das manifestações, pouco estudada pelos analistas, que busco
examinar neste artigo.
Sem dúvida, toda essa exibição contundente de nacionalismo,
nas passeatas de junho de 2013, não passou desapercebida, espe-
cialmente por setores da esquerda. Surpreendidos pelo movimento
em geral, muitos autores interpretaram o fenômeno como prova da
sua ligação com “a direita” ou com “a ditadura militar,” que “mani-
pulam a consciência dos jovens”.2 Houve quem acusasse “grupos
direitistas” de “preparar um golpe”, e de “querer anular a esquerda…
dando ao protesto o caráter de um não protesto, uma manifestação
de „todos os brasileiros‟”.3 É o que parece sugerir também a filósofa
petista Marilena Chauí: “parte dos manifestantes está adotando a
posição ideológica típica da classe média, que aspira por governos
sem mediações institucionais, e, portanto, ditatoriais. Eis porque
surge a afirmação de muitos manifestantes, enrolados na bandeira
nacional, de que „meu partido é meu país‟, ignorando, talvez, que
essa foi uma das afirmações fundamentais do nazismo contra os
partidos políticos…”.4 (grifo meu)
Um ano depois, podemos constatar que a tal “direita” não era tão
influente no movimento e que o nacionalismo dos manifestantes
nada tinha de perigoso. O problema é que muitos autores ainda acre-
ditam ser o nacionalismo um fenômeno ultrapassado em tempos de
globalização e intensa comunicação via redes internacionais e que,
portanto, qualquer tentativa de revivê-lo seria, por essência, um
movimento reacionário, senão fascista.
Este tipo de lógica, no entanto, revela o desconhecimento do
pensamento contemporâneo a respeito tanto do nacionalismo quanto
da globalização. Por exemplo, a socióloga americana Liah Greenfeld,
especializada no estudo do nacionalismo, nos ensina que o fenômeno
surgiu originariamente na Inglaterra do século XVI, quando o termo
96 Leone Sousa
A cidadania e o público-privado:
entre leis e costumes
Referências
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Ciências Sociais, v. 31, a. 1, 1988, p. 5-34.
COELHO, Maria Francisca Pinheiro. Representação e participação: o
problema da Reforma Política no Brasil. In: MESSENBERG, Débora;
PINTO, Júlio Roberto de Souza; SOUSA, Leone Campos de, et al.
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Brasília: Senado Federal: Câmara dos Deputados: Tribunal de
Contas da União: Universidade de Brasília, 2010, p. 239-265.
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São Paulo, 1975.
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leis. Brasília: UnB, 1995.
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_______. Ensaios de sociologia. GERTH, H.H.; MILLS, Wright Ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
1 Ver a esse respeito MURILO DE CARVALHO, José. A Formação das Almas. São Pau-lo:
Companhia das Letras, 1990, p. 29, e SANTOS, Wanderley Guilherme. Décadas de
espanto e uma apologia democrática. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 103.
105
Esta é uma característica da questão racial no Brasil, pelo menos até
agora: sua discussão nunca comoveu as classes populares, inclu-sive a
camada mais pobre da população negra e mestiça brasileira, apesar da
evidência palpável de preconceitos e discriminação racial no país. Esse
tema continua confinado aos debates acadêmicos, às notí-cias
veiculadas na mídia e às ações governamentais. E, nesse sentido, a
distância em relação aos Estados Unidos é muito grande. Aquele país
conheceu um amplo e influente movimento civil pelos direitos humanos,
oriundo da sociedade civil, e que influenciou o curso das políticas
antirraciais tanto na América como no resto do mundo.
A comparação com os Estados Unidos, aliás, é muito pertinente
para a compreensão do contexto racial no Brasil, já que o modelo
norte-americano de combate às desigualdades raciais tem influen-
ciado enormemente o debate e as políticas públicas sobre raça no
Brasil. Tanto as ações afirmativas quanto a própria identificação
binária de raças, além da ênfase na autoconscientização racial, são
partes integrantes da visão racial norte-americana.
Nos Estados Unidos, o ethos puritano constituiu-se em grave
empecilho para qualquer aproximação entre as raças. Mesmo após a
abolição da escravidão, permaneceu no país um apartheid explícito
no sul, implícito no norte, e cuja característica principal estava no
cuidado com a preservação da pureza racial dos brancos e, portanto,
no impedimento da miscigenação. Após a guerra civil, a necessidade
de reintegrar a derrotada elite branca sulista na nação norte-ameri-
cana fez com que o governo federal concordasse com a permanência
da segregação racial no sul, situação que durou até a década de 60
do século passado.2
Além disso, em muitos Estados norte-americanos existiram leis
expressas impedindo casamentos entre raças diferentes, e a classifi-
cação racial do país, baseado na “gota de sangue” – um mínimo de
sangue negro já tornava a pessoa da raça negra –, confirmava a dico-
tomia branco/negro, negando status próprio ao miscigenado. A
discriminação racial e a segregação, porém, geraram forte aspi-ração
a uma consciência racial própria entre a comunidade afro--
americana, fortalecendo dessa forma o desenvolvimento de uma
identidade negra.
O poderoso movimento pelos direitos civis, fortemente enraizado
nas comunidades negras dos EUA, também forçou o governo federal,
2 Uma interessante interpretação da história da segregação racial nos EUA pode ser
encontrada em Anthony Marx, Making Race and Nation: A comparison of South Afri-
ca, the United States and Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
3 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global, cap. IV, 2005. Ver
também Veja, 15/9/1999, p. 71.
4 O caráter plástico do português é ressaltado não somente por Gilberto Freyre, mas
também por Sérgio Buarque de Holanda. Ver a esse respeito sua obra Raízes do
Brasil. São Paulo: Schwarcz Ltda., 2002, cap. 2.
5 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos.. São Paulo: Record, 2002, cap. X.
6 DA MATTA, Roberto. Notas sobre o racismo à brasileira, in: SOUZA, Jessé (org.).
Multiculturalismo e Racismo. Brasília: Paralelo15, 1997, p. 69-74.
Manfredo Almeida
Mestre em Economia pela USP, é técnico de pesquisa e planejamento do Ipea,
atualmente de licença.. <http//www..mansueto..wordpress..com>..
Silvio Sinedino
Membro do Conselho de Administração da Petrobras e presidente da Associação dos En-
genheiros da Petrobras (Aepet)..
Para onde caminha a Petrobras?
Silvio Sinedino
113
Ora, a presidente Dilma tem um mandato que lhe confere poder e
legitimidade para implantar suas políticas econômicas, mas não à
custa do enfraquecimento daquela que é a locomotiva do crescimento
nacional. Vamos pensar um pouco: se a locomotiva fica mais fraca, o
país cresce menos. A quem interessa? Com certeza não aos acio-
nistas e muito menos ao povo brasileiro, que é o dono da empresa.
Se o governo quer manter subsídios aos combustíveis, equivo-
cado inclusive ambientalmente, deve fazê-lo à custa do Tesouro
Nacional. Devemos lembrar que a Petrobras não é propriedade do
mandatário de plantão. É da nação. Os governos passam e a Petro-
bras permanece. A se manter a política de preços, tem que ser resta-
belecida com urgência uma conta- petróleo ou algo similar, que
estanque o prejuízo que se dá a cada venda.
Outra grande preocupação é que o desespero pela produção a
qualquer custo, comandado pela necessidade de fazer caixa, venha
fragilizar ainda mais a situação das plataformas e do transporte
aeronáutico. Os recentes acidentes tanto em plataformas quanto em
refinarias mostram que há algo de errado em nossa política. Outro
equívoco é dizer que o “conteúdo nacional” não é prioridade da
companhia.
Já defendíamos que a exploração do pré-sal deve se dar no ritmo
do interesse nacional, o que inclui o estímulo à indústria nacional
com bons empregos e salários. Não podemos nos esquecer do risco
da chamada doença holandesa, que é a desindustrialização em
países com grande receita em moeda forte pela exportação de
produtos primários, como o petróleo. O nosso parque já chegou a ter
3 mil indústrias nacionais como fornecedoras.
Ao mesmo tempo em que temos importado derivados por falta de
capacidade de produção nacional, os projetos de refinarias se
atrasam e têm os custos elevados ao limite da suspeição. A Renest,
projeto binacional que não tinha contrato legal assinado, acabou
(ainda não acabou!) sendo de um só país, o nosso, com custos
realizados supe-riores a três vezes o orçamento original.
A obra do Comperj, em área imensa de Itaboraí, tem hoje mais de
30 mil trabalhadores da construção civil, distribuídos em centenas
de canteiros de obra, sob responsabilidade de dezenas e dezenas de
terceirizadas e quarterizadas da Petrobras. Além dos acréscimos de
custo e atrasos de prazos já ocorridos, no momento há um clima de
greve selvagem sem possibilidade de intermediação pelo Sindicato da
Construção, considerado pelego, que já teve um veículo queimado
pelos trabalhadores revoltados.
Manfredo Almeida
117
tica industrial e, quando as metas não são alcançadas, a culpa é do
resto do mundo. E se as metas tivessem sido alcançadas? Neste
caso, o “sucesso” seria, integralmente, de quem formulou a política
industrial.
E quem acha que a política industrial foi um sucesso, sugiro
passar na FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas-São Paulo) e conversar,
por dez minutos, com o professor Luiz Carlos-Bresser Pereira.
Perguntem a ele se a indústria brasileira hoje é mais competitiva do
que era há quatro ou oito anos? Se quiserem, passem no IEDI (Insti-
tuto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial), em São Paulo, e
conversem com o presidente desta importante ONG, o economista
Pedro Passos. Estou aqui citando apenas pessoas que simpatizam
com política industrial.
Mas, vamos aos números.
Primeiro, em relação à taxa de investimento, esta taxa, em 2013,
foi de 18,4% do PIB, valor semelhante ao de 2010. Este ano deve
ficar muito próxima desse valor e, assim, será impossível cumprir a
meta de 22,4% do PIB previsto no Plano Brasil Maior. Por que?
Segundo o governo porque os empresários foram MUITO pessimistas.
Ou seja, para os meus amigos governistas, o erro não foi do governo,
mas sim dos empresários. Alguns ainda têm a coragem de dizer que
o governo foi capturado como se este não tivesse, por meio de suas
ações, se deixado capturar.
Segundo, elevar o dispêndio empresarial em P&D (Pesquisa &
Desenvolvimento) será outra das metas que não conseguiremos
atingir. E quem diz isso é “ninguém menos” do que os próprios
técnicos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), de
Brasília, que acompanham o Plano Brasil Maior. De acordo com
análise do ex-diretor adjunto do Ipea, Ricardo Cavalcante, e da atual
diretora da Diset (Diretoria de Estudos e Politicas Setoriais de
Inovação, Regulação e Infraestrutura), órgão vinculado ao Ipea,
economista Fernanda DeNegri, publicada em fevereiro de 2014, o
gasto empresarial em P&D na verdade se reduziu, de 2008 a 2011,
de 0,53% do PIB para 0,50%. Os pesquisadores corrigiram a amostra
e constataram que o crescimento que havia sido identificado decorria
da mudança da amostra.
Alguém acredita que esse número vai para 0,90% do PIB, em
2014, como está nas metas do Plano Brasil Maior? Impossível. De
2005 a 2011, praticamente esse indicador não aumentou, tendo
Fonte: PIM-IBGE.
OBS: média do ano. Para 2014, utilizou-se a média de janeiro e fevereiro.
Fonte: IBGE.
Michel Zaidan
Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco..
A história (in)finita
da democracia direta
1 Sobre esta análise provocadora e extravagante, ver MING, Wu, “Il Movimento 5
estel-le ha difeso il sistema”, Internazionale, 25 fev. 2013, disponível em:
<www.interna-zionale.it/news/italia/2013/02/26/il-movimento-5-stelle-ha-difeso-
il-sistema-2>; CICCARELLI, R., “Intervista a Wu Ming. Grillo cresce sulle macerie
dei movimenti”, Il Manifesto, 1º mar. 2013. Para uma investigação ampla, mas
interpretativamente mais asséptica, ver DIAMANTI, I., Natale, P. (orgs.), “Grillo e il
Movimento 5 Stelle. Analisi di un „fenomeno‟ politico”, Comunicazione politica,
1/2013; BIORCIO, R., NATALI, P., Politica a 5 stelle. Idee, storia e strategie del
movimento di Grillo, Milão, Feltrinelli, 2013; CORBETTA, P., GUALMINI, E. (orgs.),
Il partito di Grillo, Bolonha, Il Mulino, 2013.
125
cidadãos na gestão da coisa pública. Na França, logo após a desi-
lusão com a primeira experiência europeia de sufrágio universal
direto (masculino) – que levou, em abril de 1848, à escolha de uma
Assembleia Constituinte moderada e, em maio de 1849, ao triunfo
eleitoral dos conservadores –, o universo republicano derrotado
mergulhou, entre a primavera de 1850 e o verão de 1851 (portanto,
bem antes do golpe de Estado do príncipe-presidente Luís Napoleão
Bonaparte), num amplo debate que identificou aquilo que, na
linguagem da época, se chamava de “representomania” como prin-
cipal responsável por um resultado considerado não apenas impre-
visto, mas também (e sobretudo) inconcebível do exercício eleitoral
da soberania popular. Plus d’élections, plus de représentants du
peuple intitulava-se significativamente um opúsculo, que reapresen-
tava a velha ideia de sorteio dos deputados, enquanto naquele
contexto, não à toa, apareceram pela primeira vez expressões como
“governo direto”, “legislação direta” e “democracia direta”, desconhe-
cidas do vocabulário político da Revolução Francesa e da primeira
metade do século XIX.2
Termos sinônimos utilizados para imaginar um novo regime polí-
tico, baseado fundamentalmente na inversão do pressuposto concei-
tual (e funcionalista) que sustentara até 1848 a reivindicação do voto
universal: o “povo eleitor” reunido em assembleia não é capaz de se
autogovernar, mas sabe perfeitamente escolher os melhores e os
mais sábios como governantes.3 De fato, a filosofia de governo direto
prevê que o “povo eleitor”, considerado propenso a se enganar e a ser
enganado quanto às pessoas, seja substituído pelo “povo legislador”,
que, graças ao seu bom senso, não pode se equivocar quando discute
ideias, princípios, interesses, e é levado naturalmente (e facilmente)
para a deliberação sobre textos e quadros normativos. A formulação
da democracia direta se coloca, portanto, no quadro de uma hiper-
simplificação do político, que se recusa a pensar não só a represen-
tação, mas também (e sobretudo) o poder executivo, denunciado
como usurpador da soberania popular, e no âmbito de uma
harmonia destituída de conflito, que subentende a unanimidade em
nome da obviedade objetiva das decisões.
4 LUPO, S., “Il mito dela società civile. Retoriche antipolitiche nella crisi dela demo-crazia
italiana”, Meridiana. Revista di storia e scienze sociale, 38-39/2000, p. 17-43; idem,
Partito e antipartito. Uma storia politica dela prima Republica (1946-1978),
Roma, Donzelli, 2004; idem, Antipartiti. Il mito dela nuova politica nella storia dela
Republica (prima, seconda, terza), Roma, Donzelli, 2013.
5 RENSI, G., Gli anciens régimes e la democrazia direta. Saggio storico politico,
Bellin-zona, Colombi, 1902; idem, La democracia direta, Roma, Libreria politica
moderna, 1926. A obra foi também reeditada entre 1943 e 1945, respectivamente
em Roma (pela renascida Libreria politica moderna, com o titulo Forme di governo
del passato e dell‟avvenire) e Milão (pela Libreria editrice milanese, com o titulo
Governi d‟ieri e di domani).
6 LUPO, S., “Il mito...”, cit., p. 21-2
7 CASALEGGIO, G., Grillo, B., Siamo in guerra.. Per una nuova política, Milão, Chia-
relettere, 2011, p. 7-15, 61-8; Fo, D., CASALEGGIO, G., GRILLO, B., Il grillo canta
sempre al tramonto.. Dialogo sull’Italia e il Movimento 5 Stelle, Milão, Chiarelettere,
2013, p. 84-96.
Michel Zaidan
130
metodologia ao estudo da metrópole moderna (1994). Mas, ao que
parece, o professor alemão desconhece a recepção da obra de Walter
Benjamin no Brasil, pois afirma abertamente que até hoje os histo-
riadores não conhecem ou se apropriaram das sugestões teórico--
metodológicas oferecidas pela obra desse autor, se limitando a
comentá-la. A impudente afirmativa de W. Bollie ignora solenemente
a monumental pesquisa de campo feita, aliás, por um orientando
seu, Gunther Karl Pressler, que mapeou – como ninguém antes fizera
– a recepção da obra de Benjamin entre nós, no período que vai de
1960 até 2005 (2006).
Segundo Karl Presley, a história da recepção do pensamento de
Walter Benjamin no Brasil pode ser dividida em quatro fases e uma
das principais fases é justamente a da aplicação criativa da obra
benjaminiana ao contexto da redemocratização brasileira, quando o
país buscava redescobrir (ou “inventar”) a sua identidade. É nesta
fase, marcada pelo início da publicação das obras escolhidas, pela
editora Brasiliense, que As teses sobre o conceito de História, O
Narrador, A Origem do Drama Barroco Alemão e tantos outros
passaram a ser largamente utilizados para repensar o país e os
problemas de seu povo.
Período este que seria substituído por uma época de estudos filo-
lógicos e hermenêuticos. Estudos esses voltados para o espírito e a
letra do texto benjaminiano (2006). A chamada fase da aplicação
criativa da obra de Walter Benjamin no Brasil levaria Pressler a
refazer a conhecida tríade hermenêutica, da seguinte forma: ao invés
de compreender, interpretar e aplicar: ler, aplicar e entender (p. 347).
o0o
O que se segue abaixo é uma pequena amostra das possibilidades
de aplicação criativa do “método benjaminiano”.
A ideia de usar o “corpus” crítico-filosófico de Walter Benjamin, a
partir de conceitos como alegoria, reconstrução, memória e crítica
salvadora, nos cursos de graduação de História, começou a ser posta
em prática na Universidade de Brasília (UnB), em 1988, durante um
semestre sabático gozado no Departamento de História dessa univer-
sidade. No decorrer desse semestre, estudamos os textos filosóficos
de W. Benjamin na perspectiva de utilizá- los metodologicamente no
estudo e na interpretação do passado ou de obras literárias, pictó-
ricas ou cinematográficas.
Ensaios como O Narrador, As teses sobre o conceito de História,
A Origem do Drama Barroco Alemão e outros, foram lidos e debatidos
Referências
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Os cacos da História. São Paulo:
Brasiliense, 1983 e 1985.
______ . História e Narrativa em Walter Benjamin. São
Paulo: Perspectiva, 1994.
______ . A propósito do conceito de crítica em Walter Benjamin.
Discurso. São Paulo. 1983.
BOLLIE, Wille. Fisiognomia da metrópole moderna. São Paulo: Edusp,
1994.
PRESSLER, Gunter Karl. Benjamin, Brasil. São Paulo: Annalume.
2006.
ZAIDAN FILHO, Michel. Razão e História. Recife/Brasília: UFPE/UnB.
1988.
Nerina Visacovsky
Professora da Universidade Nacional de San Martin, Buenos Aires, Argentina..
O Idisher Cultur Farband (ICUF):
uma história entre knishes, mates e
caipirinhas
Nerina Visacovsky
Introdução
As instituições socioculturais e educativas agrupadas na Fede-
ração de Entidades Culturais Judaicas, o Ídisher Cultur Farband
(Icuf), construíram uma identidade particular nos seus sócios, a
partir da conjunção de componentes da tradição laica europeia com
o ideário comunista soviético e um compromisso indeclinável com o
ser nacional (VISACOVSKY, 2009). As instituições judaicas-progres-
sistas (em iídiche, progressive) da América Latina surgiram justo
onde se conformaram núcleos mais ativos de imigração judaica na
Argentina, no Brasil e no Uruguai. No período dos anos 1920 e 1930,
escolas, bibliotecas, teatros e organizações de solidariedade consti-
tuíram a base sobre a qual, com o impulso do comunismo na sua
etapa de frente popular, tomaram corpo as entidades que
construíram essa rede durante os anos 1940 e 1950. 1
137
Tomando como referência o artigo de Dina Lida Kinoshita, “O Icuf
como uma rede de intelectuais” (KINOSHITA, 2000), o presente
trabalho tem a intenção de ser um primeiro exercício na tarefa de
comparar esses grupos. Na nossa perspectiva, explicar a identidade
icufista não supõe simplesmente o fato de comparar a história da
coletividade judaica com a do Partido Comunista, mas também trata-
-se de uma tentativa de reconstruir uma identidade nova, de caráter
mutável, surgida daquela conjunção, mas que se tornou mais
complexa pela intervenção de outras variáveis, especialmente as
nacionais, isto é, a dos novos lares.
5 ������������������������������������������������������������������������������������NaArgentina,aindatinhavigênciaaLeideResidêncianº4.144de1902,quepermi-tia expulsar os
estrangeiros considerados indesejáveis. Muitos judeus de esquerda sofreram as consequências dessa lei, que finalmente foi derrogada no governo de
Arturo Frondizi.
Referências
BLOCH, Marc. Pour une histoire comparée des sociétes
européennes, publicado originalmente em Mélanges historiques,
París, S.E.V.P.E.N., 1963
CAMARERO, Hernán. A la conquista de la clase obrera.. Los
comunistas y el mundo del trabajo en la Argentina 1920-1935,
Buenos Aires: Siglo XXI, 2007.
148
lhidas, publicadas pelo Conselho Estadual de Cultura em 1976, a
historiadora Anunciada Chaves, presidente do órgão, diz que Patroni,
“figura singular e fascinante de liberal apaixonado e revolucionário,
dotada de extraordinária capacidade mental, dedicou a vida toda às
grandes causas políticas – Independência, Abolição e República”.
Há certo exagero nessa afirmativa, mas não muito. Patroni foi, de
fato, um defensor da monarquia representativa, com a divisão de
poderes entre o monarca e o parlamento, entre a nobreza e o povo.
Foi o tribuno e o ideólogo dos direitos civis conquistados pela revo-
lução francesa três décadas antes do momento mais intenso da sua
participação. O que a detonou foi a revolução constitucionalista de
1821 em Portugal, que acabou com a monarquia absolutista.
Patroni não foi, a rigor, um precursor – e menos ainda ativista
– da independência brasileira. O que ele queria era conquistar certas
liberdades públicas e certas vantagens junto à metrópole. O ofício
que carregou consigo para chegar à corte ressaltava que o povo do
Pará “portuguesamente” amava o rei e que, “por tantos títulos, deseja
que se estreitem cada vez mais os laços, que sempre nos têm unido”.
Patroni queria “ver já unido o Amazonas ao Tejo”.
Ele parecia convencido da possibilidade de eliminar a espoliação
colonial, mesmo sem acabar com a dominação portuguesa. No
discurso que fez perante às cortes reunidas em Lisboa, se referiu ao
“jugo” de dois séculos e disse que, com o movimento que eclodiu em
1º de janeiro de 1821, em Belém, esse jugo “foi sacudido”. O povo
não se dispunha mais a “baixar de novo a cerviz”.
Seu febril empenho foi mobilizado para transportar essas conquistas
para o Pará, que vivia sob a tirania de sucessivos governa-dores gerais e
comandantes militares mandados por Lisboa. Pode parecer que suas
idas e vindas entre as duas capitais, a metropolitana e a colonial,
possam ser interpretadas como prova do seu oportu-nismo. O que ele
pretendia, ao estabelecer a ponte entre a vanguarda lisboeta e a
retaguarda belenense, era se estabelecer como líder, repre-sentante e
porta-voz na relação entre esses dois mundos.
Mas essa é uma visão pobre e equivocada. Patroni tinha ambições de
poder, um poder exercido pela elite, mas era sincero e fundamen-tado o
seu desejo de abrir maior participação popular. Suas iniciativas e sua
desenvoltura, que lhe permitiram arranjar o parque gráfico para a
publicação de O Paraense, derivavam do poder do seu padrinho, de
quem adotou o nome, o capitão de fragata Felipe (ou Filipe: ainda há
controvérsia a respeito, como em quase tudo mais sobre o personagem)
Alberto Patroni. Mas o risco havia e o dele foi sério.
Alberto Aggio
Professor titular da Unesp/Franca..
157
pessoa humana: direito internacional dos conflitos armados, direito
internacional dos direitos humanos e direito internacional dos
refugiados.
Na Declaração, patenteou-se, por exemplo, a natureza pacífica,
apolítica e exclusivamente humanitária da concessão de asilo ou do
reconhecimento da condição de refugiado. Sublinhou-se, ademais, a
importância do princípio internacionalmente aceito de que tal
concessão ou reconhecimento não poderá jamais ser interpretado
como um ato inamistoso contra o país de origem dos refugiados.
Também sustentou-se que o reagrupamento familiar constitui um
princípio fudamental no regime de proteção dos refugiados. Senão ainda,
recomendou-se que o conceito de refugiado, além de conter os elementos
da Convenção da ONU de 1951 e de seu Protocolo de 1967, considerasse
também as pessoas que tenham fugido de seus países porque suas
vidas, seguranças ou liberdades tenham sido ameaçadas pela violência
generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação
maciça dos direitos humanos ou outras circuns-tâncias que tenham
perturbado gravemente a ordem pública.
Na continuação, influenciados por Cartagena, os documentos
oriundos da Conferência Internacional sobre Refugiados Centro--
americanos (CIREFCA), intitulados Princípios e Critérios para a
Proteção e Assistência aos Refugiados, Repatriados e Deslocados
Centro-Americanos na América Latina (1989) e Avaliação e Aplicação
dos Princípios e Critérios (1994), reconheceram a existência de uma
estreita e múltipla relação entre a observação das normas relativas
aos direitos humanos, os movimentos de refugiados e os problemas
de proteção, favorecendo e impulsionando, através da sustentação de
seu enfoque integral, a convergência entre as três vertentes da
proteção internacional da pessoa humana.
Igualmente, a Declaração de San José da Costa Rica sobre os
Refugiados e Pessoas Deslocadas (1994), ao inovar em matéria de
proteção particular dos deslocados internos, afirmando ser a violação
dos direitos humanos a principal causa de suas existências, reco-
nheceu, expressamente, as convergências entre os sistemas de
proteção internacional da pessoa humana, enfatizando os seus
caracteres complementares.
Destacou, ademais, que a proteção dos direitos humanos e o
fortalecimento da democracia constituem as melhores medidas para a
busca de soluções duráveis, para a prevenção dos conflitos, para os
êxodos dos refugiados e para as graves crises humanitárias.
Alberto Aggio
Flávio R. Kothe
Ensaísta e ficcionista, professor de estética da Universidade de Brasília (UnB).
Flexões e reflexões
Da diferença do semelhante
Os melhores atores não devem ser procurados nos palcos ou nas
telas, mas nos palácios e palanques, já sabia Nietzsche antes de
haver cinema e televisão. Mudam os tempos, não mudam os homens.
Quando a esposa de Júlio César foi acusada de adultério, ele a
defendeu nos tribunais; quando ela foi absolvida, ele se divorciou
dela com o dito que se tornou famoso: “À esposa de César não basta
ser honesta, ela precisa parecer honesta.” Quem ocupa o poder
precisa manter postura digna do cargo que exerce.
Ouve-se dizer que ao político basta parecer honesto, não importa
ser. Na democracia, ele conta, porém, com tantos inimigos que, com
o tempo, se há de descobrir se foi ou não foi. Em geral, tarde demais
se descobre o mau caráter, quando já fez estragos insanáveis. Mesmo
assim, isso é melhor que nos regimes autoritários, em que a
corrupção se torna pior, porque o sistema funciona à base do rabo
preso: cada um sabe das sujeiras do outro e todos assim se
entendem: aliados no mal, com discursos de moralismo.
Conta-se que, nos cortejos triunfais de César, os soldados, que
haviam lhe dado as vitórias que o endeusavam, entoavam cantigas
dizendo que ele era o marido de todas as mulheres e a mulher de
todos os homens. A zombaria não bastou para que se soubesse que
ele era apenas um homem, não um deus. Até hoje o celebramos no
mês de julho. Um desembargador me disse que conhecia muito juiz
que havia feito concurso como homem e havia tomado posse como se
fosse um deus...
165
A primeira lei de Euclides, citada no filme Lincoln, diz que se
duas coisas são iguais a uma terceira elas são iguais entre si. Se x =
10 e y = 10, então x=y. Por que então usar x e y? No segundo se
conclui a igualação, o que não é o mesmo que propor a igualdade.
Uma mulher que vai para a cama com vários homens é chamada de
galinha ou piranha, enquanto se o homem fizer o mesmo será
chamado de gavião ou garanhão. O igual não é o mesmo.
Pode um político dizer tudo o que pensa ou deve calar e mentir
conforme as necessidades do Estado? O que são essas necessidades
se não algo que ele mesmo define? Esse tema foi recorrente na
epopeia e na tragédia grega sob a figura de Odisseu ou Ulisses, o
ladino que dizia o conveniente que lhe trouxesse mais vantagens. A
política atiça os piores traços do homem. Todos os grandes homens
da história foram maus.
Estive, em outubro, num Congresso Internacional de Filosofia, em
Salvador, Bahia, e a proposta de um filósofo dizia que é preciso nego-ciar
o âmbito da norma com os políticos. Como negociar, no entanto, com
quem tem por natureza não dizer o que pensa e não pensa nem faz o que
diz? Os políticos formam uma casta que exerce o poder para manter e
aumentar o próprio poder, fazendo de conta que está servindo o bem
comum. Existe, por exemplo, a lei do abate- teto, que coloca um limite
para qualquer um que receba do erário público.
Todos os ministros do Supremo Tribunal ganham mais que esse
máximo constitucional. Deputados, senadores e ministros de Estado,
com as vantagens de carro e moradia à disposição e outros privilé-
gios, também devem ganhar mais. Uns são mais iguais que outros.
Será que, na era da internet, a democracia representativa não
está ultrapassada, já que é possível consultar o povo com facilidade
para decisões básicas? Quando as ruas se manifestam, logo surgem
os vândalos que fazem o jogo daqueles que querem manter seus
privilégios. São vetores complementares. Uns aparecem, os piores
desaparecem. Nas reformas mudam -se detalhes para, no fundo, não
mudar nada: plus ça change, plus il est la même chose.
Destino e destinação
Natal tem a ver com natalício. Celebra-se ter-se nascido. Como os
salmões e as tartarugas, os humanos costumam rever nessa época o
lugar em que nasceram, reencontrar pedaços perdidos de si mesmos.
Inventam um novo ano, para se separarem da roupa suja do ano que
acaba e vestirem uma roupagem feita de bons propósitos. A cada ano
Do bem e do mal
Caçar uma gazela é bom para o leão e mau para ela. Pecado ou
virtude parecem depender do lado em que se está. Em A origem da
tragédia, Nietzsche mostrou como o conceito de bom provém de “bonus”,
que eram, na Roma Antiga, as pessoas de tez e cabelos claros, e o de mal
provém de “malus”, que eram as pessoas de tez e cabelos escuros, os
escravos. Bom era ser patrício; mau, nascer escravo. Como hoje.
Kant propôs que a liberdade interior do homem permite que ele
possa decidir sobre o modo correto de agir em determinada situação,
segundo uma lei que poderia ser formulada racionalmente, devendo
ser seguida por todas as pessoas na mesma situação. Chamou isso
de imperativo categórico. O problema é que quando alguém decide
sobre isso em nome da liberdade, ele está interferindo na liberdade
do outro, pois talvez não se deva esperar que todos tenham o mesmo
tipo de resposta sobre qual seria o modo correto de agir. Dependendo
da época, nem concordamos conosco.
Espiação e expiação
Como muitos outros, em abril de 1964, fui submetido a interro-
gatório, no 8º Regimento de Infantaria, em Santa Cruz do Sul/RS,
minha cidade natal. Eu tinha 17 anos. Como havia um guarda
armado com fuzil na porta, ocorreu-me dizer ao capitão, que chefiava
o inquérito, que eu era menor de idade. Ora, isso não tinha então a
menor importância, nem minha família estava disposta a enfrentar o
Exército para me proteger.
Eu não estava sozinho: havia outros membros da diretoria da
Uesc, a União de Estudantes Santa-Cruzenses. Há meses, eu não era
mais o secretário de imprensa da entidade. Na minha memória ‒ é
estranho como ela funciona ‒, aquele capitão era mais bigode que
gente, ele todo se escondia atrás dos pelos. Ele disse que era o chefe
do serviço de informações do Exército local. Eu respondi: ‒ Mas eu
conheço o senhor. Foi meu professor de Biologia, em 1962, no curso
de contabilidade, lá no Liceu São Luís, dos maristas. Falava muito
sobre o ovo.
O que eu não acrescentei, mas pensei, ao vê- lo meio perturbado,
como se eu tivesse dito o que não devia, é que ele não conhecia muita
Biologia. No curso ‒ que eu abandonei tão depressa quanto pude,
estragando o sonho de meu pai, que queria fazer de mim um contador
(de números, não de histórias) ‒, os colegas estranhavam que se
tivesse Biologia em um Curso Técnico em Contabilidade, mas, como
a vida está em tudo, o que se faz...
Passada a primeira reapresentação, o capitão, do bigode, ficou
folheando uns papeis e eu fiquei esperando, do outro lado da mesa.
Eu tinha escrito alguns artigos para o jornal dos estudantes e para a
Gazeta Estudantil, tinha feito um programa de música clássica ligeira,
aos sábados à tarde, na Rádio Santa Cruz, onde também tínhamos um
programa informativo estudantil, e eu havia representado a enti-
Capitalismo e igualdade
O capitalismo precisa que todos tenham o direito de comprar o
que puderem e oferecer a todos no mercado o que quiserem. Ele gera
também condições semelhantes de trabalho num mesmo lugar para
muita gente, o que leva a movimentos sindicais organizados. Achava-
-se que, com o aumento do produto interno bruto, ocorreria algo
parecido com a maré alta: todos os barcos, grandes e pequenos,
iriam subir, viver melhor.
Não é isso, porém, o que se verifica nos últimos decênios em
países de capitalismo avançado: a distância entre ricos e pobres vai
aumentando, cada vez mais se concentra a renda numa minoria
cada vez menor. A classe média deixa de se expandir, vai sendo
despeda-çada. Não há mais igualdade na distribuição de
oportunidades. Com exceções, o curso superior fica resguardado
para jovens cujos pais também já fizeram curso superior. Mesmo
quando o Estado fornece ensino gratuito, as camadas baixas muitas
vezes não aproveitam a oportunidade que lhes é oferecida.
No Brasil, se pensa que isso se deve à falta de tradição escolar da
população de origem indígena e africana, mas houve escravos negros
que eram mais alfabetizados que os seus senhores brancos. Talvez
por ter o ensino ficado durante séculos em mãos de ordens religiosas
‒ que não pagavam os professores mas prometiam em compensação
lotes no céu ‒ o professor não seja aqui respeitado como, por exemplo,
no Japão ou na Alemanha. Ainda hoje ele espera construir um futuro
181
É sabido que, na teoria marxista- leninista, ocupa importante
lugar a tese sobre o papel decisivo das massas populares no desen-
volvimento da sociedade. A elas corresponde o papel determinante
nesse desenvolvimento, são elas que criam a história.
A justa compreensão dessa tese guia a atividade prática dos
comunistas e de seus partidos. Leva-os, com seu trabalho organiza-
tivo, ideológico e político, a dirigir sua atenção e suas energias prin-
cipalmente para os operários e os trabalhadores em geral. Exige
esforços contínuos e perseverantes em qualquer situação, para forta-
lecer e estreitar os vínculos do Partido com as massas. O Partido
Comunista não inventa nada, parte da própria vida, da luta que as
massas travam pelas suas reivindicações econômicas imediatas e
pelos seus interesses políticos, levando necessariamente em conta a
experiência e o nível de consciência das massas. Só partindo dessa
realidade e sem dela se desligar é que o Partido pode, como
vanguarda, avançar à frente do movimento espontâneo, indicar-lhe o
caminho, propondo a tempo a solução dos problemas que
preocupam o povo. Exatamente porque cabe às massas o papel
determinante no desen-volvimento da sociedade, o êxito de um
partido revolucionário depende de sua capacidade e de a elas estar
estreitamente ligado, de receber seu apoio, de conseguir dirigi-las.
Por tudo isso, compreende-se que as formas de luta não podem
ser inventadas. Lênin ensinou que, a esse respeito, a primeira
exigência é que se dê atenção à luta delas. A luta das próprias
massas, à medida que cresce a consciência das massas, e à medida
que as crises econômicas e políticas se acentuam, gera processos
sempre novos e sempre mais diversos de defesa e de ataque. O papel
da vanguarda se limita a generalizar, a organizar, a tornar cons-
cientes as formas de luta que surgem por si mesmas no curso do
movimento. E Lênin acrescentava: “O marxismo, neste sentido,
aprende – se assim se pode dizer – com a prática das massas, longe
de pretender ensinar às massas as formas de luta inventadas por
“sistematizadores” de gabinete”.
No ano que findou, a luta de nosso povo contra o processo de
fascistização do país pela camarilha de generais que empolga o poder
se deu em condições muito difíceis. A ditadura impôs sua política a
ferro e fogo. Particularmente nos últimos meses de 1970, às vésperas
das eleições e após o sequestro do embaixador da Suíça, desenca-
deou-se uma torrente de abusos, violências e crimes contra a popu-
lação. Os direitos mais elementares, como o de locomoção, de andar
nas ruas da cidade, e o da inviolabilidade do domicílio, são violados
da maneira mais brutal. O trabalhador sente que não tem sequer a
187
Esta deveria preocupar-se com o internacionalismo, que comporia
seu DNA inicial. Os debates identitários precisariam ser ignorados
em nome da recuperação da universalidade como eixo da construção
das políticas de esquerda.
O acerto do autor se dá na percepção de que o multiculturalismo
chega para fragmentar, tirar do horizonte qualquer perspectiva de
totalidade. Ao trazer a cultura, a política e a sociedade para campos
cada vez mais fatiados da vida coletiva, o universal acaba por desapa-
recer, abrindo espaço para uma sociedade de corporativismos e segre-
gação. Não se pode deixar de perceber que, de certo modo, Safatle parece
acreditar que as disputas modernas ainda se concentrem nas classes
sociais. Mostra-se, assim, certo economicismo em seu pensa-mento –
quem sabe o dogmatismo que contamina grande parte da
intelectualidade de esquerda, ainda com vícios esquemáticos do século
XIX e início do XX?
O autor não parece se preocupar com as profundas mudanças no
interior do mundo do trabalho, na perda de relevância da luta de
classes, na metamorfose da consciência do sujeito social moderno.
Parece insistir na “indiferença com as diferenças” sem atentar para a
necessidade de um diálogo atual com a realidade concreta.
Não soa de bom senso desconsiderar que as identidades nacionais
permaneçam fontes de conflitos que movem a história. Que ainda há a
necessidade de uma esquerda nacional. Mesmo diante da globali-zação,
que internacionaliza não só os mercados, mas também a cultura e a
política, há de se ficar atento à vitalidade não só de nação e sua ideia de
pertencimento, mas também à forma político-institucional em que se
expressa esta identidade, isto é, o Estado nacional.
O segundo capítulo, já por seu enunciado, é um convite à polê-mica.
Sobretudo, porque vivemos numa época em que o Estado demo-crático
de Direito representa forma superior de organização social, que
progressivamente vem substituindo conflitos abertos e violentos por
resoluções consensuais – consensos, aliás, sempre renováveis.
Porém, para Safatle, o Estado de Direito poderia às vezes ser
anulado, desde que a soberania popular e sua justiça entrem em
confronto com o ordenamento jurídico vigente. A ocupação de prédios
públicos, a invasão de propriedades ditas improdutivas, a violação da
liberdade de ir e vir através de piquetes etc., seriam perfeitamente
toleráveis, mesmo sendo ilegais, já que a causa pela qual falam seria
justa. Há, em Safatle, a dissociação entre a justiça e o Direito.
Obviamente, podemos discutir o quanto uma lei é justa, mas a
grande questão, que o filósofo ignora, é o valor subjetivo que a palavra
“justiça” pode trazer. Expropriar uma determinada extensão de terra
Sobre a obra: A esquerda que não teme dizer seu nome. Vladimir
Safatle. São Paulo: Três Estrelas, 2012.