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© by herdeiros de Dmitri Volkogonov

Prefácio e notas © 1991 Harold Shukman, Phoenix Press

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Título original russo: Triyumf i Tragediya: politicheskii portret I.V. Stalina

Caderno de imagens: As ilustrações pertencem ao arquivo do autor.

CIP-Brasil. Catalogação na fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

V893s
Volkogonov, Dmitri, 1928-1995
Stalin: triunfo e tragédia / Dmitri Volkogonov; tradução: Joubert de Oliveira Brízida. – 2. ed.
– Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 2017.
Recurso digital

Tradução de: Stalin : triumph and tragedy


Formato: ebook
Requisitos do sistema: Adobe digital editions
Modo de acesso: World wide web
ISBN: 9788520941447 (recurso eletrônico)

1. Stalin, Iosif, 1879-1953. 2. Chefes de Estado - União Soviética - Biografia. 3. União


Soviética - História - 1925-1953. I. Brízida, Joubert de Oliveira. II. Título.

17-39583 CDD 923.1


CDU 929:320
SUMÁRIO

Nota do tradutor inglês


Prefácio
Introdução

1° VOLUME

PARTE I: ARDOR DE OUTUBRO

1 – Um retrato
2 – Fevereiro, o prólogo
3 – Os atores coadjuvantes
4 – O levante
5 – Salva por sorte
6 – Guerra civil

PARTE II: O AVISO DO LÍDER

7 – Camaradas em armas
8 – O secretário-geral
9 – A carta ao Congresso
10 – Stalin ou Trotsky?
11 – As raízes da tragédia

Ã
PARTE III: OPÇÃO E LUTA

12 – Construindo o Socialismo
13 – Leninismo para as massas
14 – Desalinho intelectual
15 – A derrota do “Inimigo nº 1”
16 – A vida particular do líder

PARTE IV: DITADURA OU DITADOR?

17 – O destino do campo
18 – O drama de Bukharin
19 – Ditadura e democracia
20 – O Congresso dos Vitoriosos
21 – Stalin e Kirov

PARTE V: O MANTO DO LÍDER

22 – Personalidade dominante
23 – O intelecto de Stalin
24 – Cesarismo
25 – À sombra do chefe
26 – O fantasma de Trotsky
27 – Um vencedor popular

PARTE VI: O EPICENTRO DA TRAGÉDIA

28 – Inimigos do povo
29 – Farsa política
30 – Quadros no banco dos réus
31 – A “trama” Tukhachevsky
32 – O monstro stalinista
33 – Culpa sem perdão
2° VOLUME

PARTE VII: NO LIMIAR DA GUERRA

34 – Manobras políticas
35 – Reviravolta
36 – Stalin e o Exército
37 – O arsenal de defesa
38 – O assassínio do exilado
39 – Diplomacia secreta
40 – Omissões fatais

PARTE VIII: INÍCIO CATASTRÓFICO

41 – Choque paralisante
42 – Tempos cruéis
43 – Desastres e esperanças
44 – O cativeiro e o general Vlasov

PARTE IX: O COMANDANTE SUPREMO

45 – O quartel-general
46 – Amanhecer em Stalingrado
47 – O comandante e seus generais
48 – Ideias de um estrategista
49 – Stalin e os Aliados

PARTE X: CLÍMAX DO CULTO

50 – O preço da vitória
51 – Cortina de segredos
52 – Um acesso de violência
53 – O líder envelhece
54 – Ventos gélidos

PARTE XI: AS RELÍQUIAS DO STALINISMO

55 – Anomalia histórica
56 – Dogmas mumificados
57 – Burocracia absoluta
58 – Deuses terrenos são mortais
59 – Derrota pela História

Cronologia
Notas
Nota do tradutor inglês

É praticamente impossível transpor com coerência todos os nomes russos, a


não ser com uma variedade de anotações especiais que exigiriam seu próprio
glossário. Parece muito pedante insistir com Aleksandr ou Trotskii (ou Trockij,
ou Trotskiy), quando Alexander e Trotsky são facilmente reconhecíveis. As
referências bibliográficas, no entanto, aparecem como normalmente
encontradas nos catálogos das bibliotecas, para garantir uma identificação
correta. O nome do senhor objeto deste livro apresenta um problema diferente
de transliteração. A forma inglesa do primeiro nome de Stalin é Joseph, e
“Joseph Stalin” é bastante comum. Todavia, como ele é aqui frequentemente
mencionado na forma totalmente russa do primeiro nome seguido do
patronímico, considerou-se que “Joseph Vissarionovich” ficaria estranho e que
“Iosef Vissarionovich” teria o mérito de maior precisão, além de se adaptar
melhor às iniciais “I.V.”, com as quais muitas vezes Stalin rubricava
documentos. Portanto, optamos por Iosef.
Os revolucionários profissionais normalmente adotavam codinomes, ou
“apelidos de partido”, em geral ao assinar pela primeira vez publicações ilegais,
ou em seguida à sua primeira prisão ou primeiro interrogatório pela polícia
secreta czarista. Assim, Vladimir Ulyanov adotou Lenin, derivado do nome do
rio Lena, da Sibéria, onde esteve exilado, enquanto Leon Bronshtein assumiu o
nome de um de seus guardas na prisão e virou Trotsky.
Parece que alguns adotaram nomes para criar imagem: por exemplo,
Vyacheslav Skyrabin acabou Molotov, o “Martelo”, ao passo que Lev Rozenfeld
tornou-se Kamenev, “Homem de Pedra”, e Iosef Djugashvili escolheu Stalin, o
“Homem de Aço”. Outros simplesmente buscaram o anonimato com nomes
russos comuns, enquanto os judeus, que eram desproporcionalmente
numerosos no movimento, encontraram no pseudônimo russo a vantagem
adicional do anonimato étnico, em face da força policial antissemítica. Quando
é apropriado, mencionamos o nome real ou original.
Prefácio

A história soviética escrita, como a própria União Soviética, passa no momento


pelas mais profundas mudanças. Praticamente todo princípio e axioma dos
últimos sessenta anos foi contestado e rejeitado. Acadêmicos soviéticos radicais
já começam inclusive a desfolhar a coroa dourada do halo de Lenin e muitos
afirmam que a doutrina marxista dos meados do século XIX é irrelevante para
as necessidades dos dias presentes.
Essa nova tendência de desvendar a verdade começou em 1956, quando
Khruschev fez seu “discurso secreto” no XX Congresso do Partido Comunista
da União Soviética, condenando Stalin pelos expurgos sangrentos dos anos
1930. Mas essa fase durou pouco porque o regime de Brejnev, apenas
interessado em si mesmo e temendo solapar sua própria legitimidade, deu fim
ao debate. Nada mais pôde ser dito sobre o assunto (exceto pelos dissidentes)
até que a gerontocracia se extinguiu. Por volta de 1985, Brejnev, Andropov e
Chernenko já tinham deixado o palco, e uma nova geração personificada por
um Gorbachov com cinquenta e quatro anos de idade estava no limiar do
poder. Vinham homens inflamados em 1956 pela crença de que o sistema
podia ser reformado, modernizado e eficiente, e trouxeram a público as ideias
que nutriram por trinta anos. A União Soviética entrou no período de sua
perestroika ou reconstrução.
Vacilante, depois com maior confiança, o novo regime apresentou também
a glasnost, a transparência, que afinal significa dizer a verdade, dar fim à prática
stalinista de manipular a opinião pública com mentiras de todo tipo, e abrir
perante o público assuntos que o partido sempre considerou de sua exclusiva
responsabilidade e não partilháveis. A transparência teve início na primavera de
1986 com o desastre da usina elétrica nuclear de Chernobyl, que se alastrou
sobre a vida de europeus ocidentais e arrancou uma franqueza inusitada das
autoridades soviéticas. Surgida uma fresta na cortina, tendo o Estado admitido
suas imperfeições pela primeira vez, intelectuais soviéticos começaram a testar
cautelosamente o novo clima. Manuscritos que dormiam havia muito tempo
nas gavetas foram tirados e oferecidos aos editores, que ainda estavam longe de
saber da reação que provocariam quando fossem publicados. A censura ainda
vigorava – e aliás permaneceu, pelo menos nominalmente, até o verão de 1990
–, mas os autores, antes encorajados pelo espírito de 1956 a escrever com
fidelidade sobre 1917 e os anos seguintes, começaram a se manifestar. Anatoly
Rybakov não soube até abril de 1987 se seu romance (escrito vinte anos antes)
sobre Stalin, Children of the Arbat, seria publicado na União Soviética, mas o
foi, e, aos poucos, memórias e livros de não ficção começaram a aparecer. Nos
primeiros meses de 1988, principiando com Nikolai Bukharin, os
Bolcheviques da Velha Guarda exterminados por Stalin como “inimigos do
povo” foram reabilitados postumamente, e seus julgamentos, oficialmente
denunciados como feitos com base em provas falsas. Nomes de “não pessoas”
puderam ser mencionados sem provocar represálias, e o processo vem se
mantendo incólume desde então, culminando no início de 1990 com um
debate aberto e não ideológico sobre Trotsky.
Já era tempo de aparecer um estudo competente e bem documentado sobre
Stalin e sua época. Até há um ano ou dois, a maior parte das revelações não era
feita por historiadores profissionais, mas por jornalistas e escritores, e, na
verdade, os historiadores, para quem os arquivos continuavam – e em boa parte
continuam – fechados, criticavam-se por esse estado de coisas. Porém, Dmitri
Volkogonov não era um membro típico da intelligentsia: tratava-se de um
coronel-general responsável pela educação política do Exército e por suas
atividades editoriais. Nessa posição, vinha tendo acesso raro aos arquivos,
conversara com chefes do partido e com militares dos altos escalões, havia
muito aposentados, com experiências pessoais da era de Stalin, dos julgamentos
e expurgos, do ambiente no quartel-general durante a guerra, do
comportamento pessoal de Stalin e de sua vida familiar.
Entre os acervos de arquivos que Volkogonov usou neste livro, o mais
importante é o do Partido Comunista, depositado no Instituto de Marxismo-
Leninismo. Aqui, pela primeira vez, tem-se um lampejo, entre outras coisas,
dos debates havidos nas plenárias do Comitê Central durante o período e que,
melhor que qualquer outro documento, dão um sabor do ambiente que
imperava na chefia. Os arquivos do Exército e da NKVD proporcionam uma
imagem única da mentalidade e do comportamento dos comandantes militares
e altos membros do aparato comunista. Entrevistas com auxiliares de Stalin e
suas famílias acrescentam muito ao nosso conhecimento de como Stalin vivia.
Chega a dar um frio na espinha ler seus comentários lacônicos sobre as listas de
sentença de morte que lhe eram apresentadas pelos assistentes e sua total
desconsideração pelos mais angustiantes pedidos de clemência a ele enviados
por pessoas diversas, como uma solitária camponesa e o teórico “favorito” de
Lenin, Nikolai Bukharin. Volkogonov examinou a biblioteca particular de
Stalin e fez uso das anotações às margens dos livros e dos trechos sublinhados,
de modo a lançar mais luz sobre o modo de pensar de Stalin. Enquanto outros
historiadores soviéticos continuam batendo às portas dos arquivos, para eles
firmemente trancadas, é de duvidar que outro livro com tão vasta e rica coleção
de documentos venha a ser escrito sobre esse período.

Nascido em 1928 em Chita, na Sibéria Oriental, Volkogonov é filho de um


técnico em agricultura e de uma professora. Em 1937, seu pai foi preso e,
soube ele depois, fuzilado. O restante da família foi então mandado ao exílio
em Krasnoyarsk, na Sibéria Ocidental. Em 1945, Volkogonov alistou-se no
Exército e, a despeito de seu passado politicamente duvidoso, progrediu rápido
na carreira, entrando na Academia Militar Lenin em 1961, onde se formou e
chegou ao magistério. Transferido em 1970 para o departamento de
propaganda do Exército, adquiriu a reputação de linha-dura que advogava a
doutrinação ideológica militar, e escreveu numerosos livros sobre o assunto.
No entanto, ao mesmo tempo, ele colhia material para um livro sobre a era
de Stalin que não se limitaria a jogar a culpa no ditador e em seus acólitos. Em
vez disso, identificaria como causa da perigosa situação da União Soviética a
combinação letal do comunismo autoritário de Lenin com a implacável
impulsão de Stalin pela onipotência pessoal e sua criminosa manipulação das
rivalidades internas e da inércia do partido, mais o caráter passivo dos russos e
seu amor por líderes fortes, sua ignorância da democracia e sua ausência de
autonomia pessoal.
Como muitas das figuras mais radicais da vida pública soviética,
Volkogonov admitiu em público não mais acreditar nos dogmas e mitos que
antes aceitara cegamente. Reconheceu que não emergiu, como os dissidentes
que admirava, um advogado ostensivo da verdade e da justiça. A exemplo de
muitos outros que estavam na linha de frente do movimento da reforma,
também aceitou ter vivido duas vidas mentais, perseguindo uma carreira na
educação militar, enquanto reunia subsídios nos desvãos do passado tão
assiduamente como qualquer dissidente perseguido. Começou a escrever seu
livro em 1978 e completou a primeira parte em 1985.
Tal grau de desamor não poderia continuar por muito tempo sem
consequências. Em 1985, foi alertado de que sua pesquisa histórica era
incompatível com o trabalho que fazia na administração política central, e que
teria de optar por uma ou outra atividade. Escolheu tornar-se diretor do
Instituto de História Militar do Exército, no qual completou seu livro sobre
Stalin. Lá compilou também detalhes completos sobre os expurgos no corpo de
oficiais e reuniu documentos até então inéditos para um estudo em grande
escala sobre Trotsky, ora completo. Prepara-se para encetar uma reinterpretação
de Lenin.
Uma das mais surpreendentes características da nova cena soviética tem sido
o surgimento de jornalistas e historiadores, de economistas e físicos, de
filósofos, músicos e poetas como políticos radicais, muitos deles membros do
partido, que se tomaram de inspiração nos anos 1950, mas mantiveram a
cabeça baixa durante a era de Brejnev. Como eles, mas singular entre os
militares mais antigos, Volkogonov, deputado do povo no parlamento russo,
esposou abertamente a filosofia da democracia liberal, a economia de mercado
e uma nova carta livremente negociada de união das repúblicas, ou de sua
independência, se assim preferirem. Em julho de 1990, pediu a condenação
oficial dos crimes de Stalin e, de fato, um mês depois, o governo soviético
expediu um decreto condenando Stalin por “violar os direitos básicos sociais e
econômicos do povo soviético e por privá-lo das liberdades que a sociedade
democrática considera naturais e inalienáveis”.
Quanto ao Partido Comunista, Volkogonov considera que lhe falta
capacidade para se adaptar ao regime democrático e que perdeu a iniciativa
política para grupos democráticos mais em sintonia com as necessidades do
povo. Chamou a atenção, durante o XXVIII Congresso, em julho de 1990,
para o fato de que, se o partido não se harmonizasse com os princípios gêmeos
do império da lei e do primado da democracia, e fracassasse ante o desafio de
competir pelo poder em igualdade de condições com outros partidos, estaria
fadado ao mesmo destino dado aos partidos comunistas da Europa Oriental em
1989.
O tema sobre o qual Volkogonov fundamenta tanto seu livro quanto sua
atividade como político é o da consciência. O fracasso em exercitar a
consciência levou os bolcheviques a privarem o povo de poder, a se alinharem
com a ideia ruidosamente falsa de Stalin de estar servindo à causa do socialismo
e a tolerarem os mais horrendos crimes cometidos, na história da Rússia, contra
a sociedade.
Hoje, o teste da consciência na União Soviética é ser capaz de admitir que
as conquistas do país nos últimos setenta anos, tais como são, poder-se-iam
conseguir e, na verdade, superar, por métodos diferentes, políticas distintas,
líderes outros, e que qualquer dessas alternativas teria consignado o regime
comunista à marginalidade utópica.

Harold Shukman
St Antony’s College, Oxford
Agosto de 1990
Agradecimento do autor

O autor expressa profundo agradecimento àqueles colegas que lhe deram


irrestrita ajuda na preparação deste livro, muito especialmente A.P. Balashov,
F.D. Bobkov, G.A. Volkogonova, I.Ya. Vyrodov, N.N. Yefimov, I.P. Kalinina,
Yu.I. Korablev, B.I. Kaptelov, E.I. Katsman, N.G. Fokina e G.G.
Chernobrovkin.
Introdução

Stalin morria. Deitado no assoalho da sala de jantar de sua dacha em Kuntsevo,


ele desistira de tentar levantar-se e apenas erguia a mão esquerda, de tempos em
tempos, como se pedindo por socorro. Seus olhos entreabertos não podiam
ocultar o desespero com que fitava a porta. Debilmente, seus lábios formavam
palavras silenciosas. Algumas horas decorreram desde o derrame, mas não havia
ninguém ao seu lado. Finalmente, alarmados com a falta de qualquer sinal de
vida no interior da casa, seus seguranças entraram cautelosamente na sala de
jantar. Não estavam autorizados a chamar um médico de imediato. Uma das
mais poderosas figuras da história da humanidade não pôde contar com eles
para que o fizessem, já que era necessária a intervenção pessoal de Beria.
Quando, afinal, Beria foi encontrado, achou que Stalin apenas pegara num
sono profundo depois de um pesado e tardio jantar, e só depois de dez a doze
horas médicos aterrorizados foram trazidos para examinar o líder moribundo.
Foi um modo profundamente simbólico e por demais irônico de morrer. O
líder, em sua agonia de morte de muitas horas, não foi capaz de convocar ajuda
quando dela precisou. E aquele era o homem, o semideus, que com poucas
palavras poderia enviar milhões de pessoas de uma extremidade a outra do país.
No momento, era refém da “ordem” burocrática que ele mesmo aperfeiçoara.
A linha invisível entre o ser e o não ser só pode ser cruzada numa direção.
Mesmo os líderes não podem retroceder. Saberia Stalin que enfrentava não só a
morte física, mas também a política? Para seus contemporâneos, sua morte era
uma grande tragédia. Eles não achavam então que aquele homem encarava as
mortes de milhões como nada mais que um segredo de Estado. A morte deixou
para seus sucessores a interminável tarefa de tentar entender o que ele tinha
criado, e de discutir acirradamente o “enigma” do próprio Stalin. A morte não
o isentou. Todas as suas ações e seus crimes seriam submetidos ao julgamento
da história. Os mitos desmoronam por si mesmos, mas só podem ser
totalmente banidos pela verdade.
Apenas Stalin sabia toda a verdade sobre ele mesmo. Gostava das coisas em
preto e branco, porém fez de tudo para assegurar que sua história de vida fosse
contada em cores vivas. Não sei se ele tinha consciência da antiga lei romana
do “julgamento da memória” segundo a qual qualquer coisa que não fosse do
gosto de determinado imperador tinha de ser relegada ao esquecimento pelos
historiadores. De qualquer forma, essa lei meramente sublinhava a inutilidade
de se tentar arregimentar a memória humana. A lembrança vive (ou morre)
segundo leis muito diferentes. A história vai sendo continuamente feita. Ela
não tem rascunhos. Só na mente pode-se “rebobinar” o passado, como um
filme. Stalin entendia isso e se esforçava para garantir que não ficassem imagens
desnecessárias na crônica. Sabia-se sobre ele apenas aquilo que ele queria que se
soubesse.
Ao perder Lenin num momento crucial, quando foi necessário tomar
decisões históricas sobre os métodos a empregar para construir o socialismo, o
partido comunista entrou numa fase de ferrenha luta interna. A velha guarda
leninista não estava suficientemente alerta para o perigo que Stalin representava
tanto para o partido quanto para o Estado ainda inseguro. Isso levou os novos
administradores políticos a medidas crescentemente punitivas, em vez de
construtivas. Sabemos agora que Stalin não seria o objeto de uma biografia
como esta se não tivesse apelado para a força como instrumento decisivo na
consecução de seus planos políticos, sociais e econômicos. A mudança de
direção política, que começou no final dos anos 1920 e se tornou
marcantemente aguda depois do XVII Congresso do Partido Comunista, de
1934, resultou num período de anos amargos, durante o qual apenas a grande
carga de energia social gerada pela Revolução de Outubro e a lealdade do
partido ao leninismo impediram que o povo duvidasse dos valores socialistas e
interrompesse o processo de reestruturação do mundo começado por Lenin.
Portanto, não surpreende que a avaliação da personalidade de Stalin tenha
sofrido alteração importante à medida que a verdade foi emergindo.
Hoje, a maioria, quando pensa sobre Stalin, lembra-se do ano trágico de
1937 com sua repressão e o esmagamento dos valores humanos. Mas, para ser
preciso, deve-se dizer que aquilo que pensamos ser 1937 teve início, na
realidade, em 1º de dezembro de 1934, quando Kirov foi assassinado, e seus
contornos podem ser retraçados ainda mais cedo, ao final dos anos 1920. Com
o conhecimento de Stalin, começou a formar-se um monstruoso abcesso de
ilegalidade. Não pode haver perdão para os responsáveis, mas devemos também
lembrar que naqueles anos foram construídos a usina hidrelétrica do Dnieper e
o complexo metalúrgico de Magnitogorsk, e Stakhanov e assemelhados
cumpriam suas tarefas. Foi quando o patriotismo do povo soviético cresceu
chegando ao píncaro na Grande Guerra Patriótica.* Por isso, quando
condenamos Stalin por seus crimes, é política e intelectualmente errado, e
moralmente desonesto, negar, em princípio, as conquistas do sistema e suas
possibilidades. Tais conquistas não foram conseguidas graças ao modo de
pensar e agir de Stalin, mas a despeito dele. Mais se poderia alcançar se fossem
aplicados métodos mais democráticos. Ao condenar Stalin e seus cúmplices,
não devemos estender mecanicamente nosso julgamento aos milhões de pessoas
comuns cuja fé na sinceridade dos ideais da revolução permaneceu inabalável.
Durante toda a vida, Stalin tentou (com algum sucesso) transformar uma
de suas fraquezas em virtude. Já durante a revolução, quando tinha que visitar
uma fábrica ou um regimento, ou comparecer a um comício na rua, ou
misturar-se com a multidão, experimentava uma sensação de insegurança e
medo que, com o tempo, aprendeu a esconder. Não gostava de falar para
plateias, nem era bom nisso. Conquanto seu estilo fosse simples e claro, sem
voos fantasiosos, frases de efeito ou poses teatrais, o pesado sotaque georgiano e
a forma monótona de se expressar tornavam seus discursos inexpressivos. Não
era de admirar, pois, que ele falasse menos em comícios e manifestações do que
qualquer outro membro do entourage de Lenin. Preferia redigir resoluções e
instruções, ou escrever cartas ou relatórios para jornais sobre eventos políticos.
Era escritor medíocre de argumentação tão razoavelmente coerente quanto
invariavelmente categórica. Seus artigos para jornais são em branco ou preto,
sem tons intermediários. A clareza latina de seus artigos francos foi, talvez, uma
de suas qualidades atraentes.
Mais tarde, Stalin acostumou-se com a tribuna, mas em circunstâncias
diferentes. A plateia ouvia agora o seu tom calmo de voz em respeitoso silêncio
à espera de cortá-lo com ensurdecedores aplausos. Seus discursos se revestiam
então da natureza dos sermões de pároco. Stalin adotou a regra de não entrar
em contato direto com as massas. Com raras exceções, jamais visitou uma
fábrica ou uma fazenda coletiva, jamais viajou a qualquer das repúblicas, ou foi
ao front durante a guerra. Sua voz ressoaria de tempos em tempos do vértice da
pirâmide, enquanto milhões ouviam em santificado terror na sua base.
Transformou o distanciamento num atributo de culto. Tenhamos sempre em
mente que foi um mestre em fazer passar seus erros, omissões e crimes como
conquistas, sucessos, visão, sabedoria e constante preocupação com o povo.

***

Meu trabalho baseia-se em material e documentos do partido que estão sob


guardas diversas: os Arquivos Centrais do Partido, os Arquivos da Corte
Suprema da URSS, os Arquivos Centrais do Exército, os Arquivos do
Ministério da Defesa, os Arquivos do Estado-Maior das Forças Armadas, os
arquivos de diversos museus, e outros [cf. Notas]. Sobre o aspecto militar das
atividades de Stalin, tomei conhecimento de muitos documentos interessantes,
originais e nunca publicados, do Ministério da Defesa. Um exame superficial
das decisões de Stalin, dos documentos do Exército e da lembrança de seus
contemporâneos nos diz que muitas vezes ele não acreditava no que advogava.
Por exemplo, lendo-se as minutas de sentenças do Colégio Militar da Suprema
Corte no caso dos generais D.P. Pavlov, V.E. Klimovskikh, A.T. Grigoryev e
A.A. Korobkov, acusados de envolvimento numa “conspiração antissoviética e
num colapso intencional do comando do front ocidental”, Stalin rabiscou:
“Nada deste absurdo.” Cortou as expressões “conspiração antissoviética” e
“objetivos conspirativos” e acrescentou em seu lugar: “mostraram covardia, não
tiveram autoridade e eficiência, permitiram a quebra da cadeia de comando”.
Embora a acusação continuasse injusta, e as sentenças proferidas em 22 de
junho de 1941 fossem rigorosas ao extremo, Stalin não mais achou apropriado
o velho jogo de “conspiradores”, em face do perigo mortal para si e para o país.
Ao passar os olhos sobre as ordens de Stalin, escritas em traço firme e
legível, em geral com lápis azul ou vermelho, perguntei-me onde estariam as
fontes mais profundas de sua irracionalidade, aspereza e astúcia. No copioso
alimento da educação religiosa dogmática que recebeu nos primórdios da vida?
Ou na dolorosa sensação de inadequação intelectual que sentia nos congressos
do partido, em Londres e Estocolmo, sentado a ouvir os brilhantes discursos de
Lenin, Plekhanov, Axelrod, Dan e Martov? Proviria sua irracionalidade do
amargor causado pelas sete prisões e cinco fugas por que passou antes de
outubro de 1917? A partir dos 19 anos de idade, nada mais fez a não ser viver
na clandestinidade do movimento, cumprindo instruções dos comitês do
partido, sendo preso, obtendo passaportes falsos e mudando-se de um lugar
para outro. Nunca ficou muito tempo na prisão, sempre fugia e voltava à
clandestinidade. No entanto, a ideia de escapar para o exterior nunca lhe
ocorreu.
Meu trabalho neste livro foi muito facilitado por matérias do Pravda de um
período de trinta anos, bem como de jornais como Bolshevik, Politrabotnik
(Trabalhador Político) e muitos outros que eram publicados nos anos 1920. No
exterior, existe abundante literatura sobre Stalin. Alguns dos livros – por
exemplo, as obras de Giuseppe Boffa, Louis Aragon e Anna Louisa Strong –
dão uma imagem bastante acurada. Há também dezenas de trabalhos
publicados para desacreditar – com a “ajuda” de Stalin – a própria noção de
socialismo. Sem perceber, Stalin fez mais para sujar o nome do socialismo que
qualquer livro de Leonard Schapiro, Isaac Deutscher, Robert Tucker ou Robert
Conquest. De especial interesse é o testemunho de estadistas estrangeiros que
conheceram Stalin, por exemplo, Franklin D. Roosevelt, Winston Churchill,
Charles de Gaulle, Mao Tse-tung, Enver Hoxha e, é claro, as memórias de sua
filha, Svetlana Alliluyeva.
Estudei os escritos de opositores de Stalin dentro do país, como Trotsky,
Zinoviev, Kamenev, Bukharin, Rykov, Tomsky e outros, todos eles camaradas
em armas de Lenin. Nenhum poderia se considerar protegido de Stalin,
diferentemente de Kaganovich, Molotov, Voroshilov, Malenkov, Zhdanov e
outros que cresceram para tomar o lugar dos primeiros. Nisso, Stalin seguiu a
velha regra dos ditadores: gente promovida por eles demonstra mais lealdade e
não aspira ao cargo supremo.
Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Bukharin e outros eram mais conhecidos do
que Stalin no começo dos anos 1920. Durante os anos de revolução e de guerra
civil, Trotsky foi incomparavelmente mais popular que Stalin, no partido e no
país todo. Líder reconhecido da Revolução de Outubro e um teórico que, em
1927, já tinha publicado vinte e um livros, Trotsky passou à história como
criador do Exército Vermelho. Tinha considerável talento para escrever e
frequentemente se pôs diante do espelho da história tentando justificar sua
ambição de liderar o partido. Mais parecia gostar da ideia dele mesmo na
revolução do que da revolução em si. Lendo sua correspondência, surpreendeu-
me descobrir que, mesmo nos períodos iniciais da guerra civil, Trotsky já se
preocupava com o que dele diria a história. Cartas de admiração a ele enviadas,
bilhetes que recebeu durante os numerosos discursos, listas de diplomatas
pedindo audiência, relatos de jornal sobre sua ação – tudo meticulosamente
arquivado e preservado. Trotsky estava convicto, e não sem alguma razão, de
que, após a morte de Lenin, a liderança poderia ser dele.
Trotsky disparava a maioria de suas setas críticas, oblíqua ou diretamente,
sobre Stalin, embora também seja verdade que grande parte delas foi atirada
depois de sua expulsão da União Soviética. Sua caracterização de Stalin como
“a mais marcante mediocridade de nosso partido” é bem conhecida. Por outro
lado, era comum em Trotsky fazer observações semelhantes sobre outros
adversários. Descreveu Zinoviev como “mediocridade incômoda”, Vandervelde
(presidente da Internacional Socialista que, em 1917, escreveu sobre a
Revolução Russa), como “mediocridade brilhante”, e Tsereteli, membro
menchevique do governo de Kerensky durante 1917, “mediocridade talentosa e
honesta”. Após sua expulsão da União Soviética e até o fim da vida, Trotsky foi
tomado por uma única, permanente e obsessiva paixão, seu ódio a Stalin, como
mostra seu último e inacabado livro – Stalin. É verdade que Trotsky alega não
haver motivação pessoal no livro: “Nossos caminhos divergiram tanto e há
tanto tempo e, aos meus olhos, ele é instrumento tão claro de forças históricas
estranhas e hostis a mim, que meus sentimentos para com ele diferem dos que
tenho em relação a Hitler ou ao Mikado. O elemento pessoal esvaiu-se há
muito tempo.”1 Apesar disso, ninguém escreveu de forma tão cáustica contra
Stalin, com um grau tal de caricatura e invectiva. Mas também ninguém
concorreu tanto para a exposição de Stalin.
No dia em que Lenin morreu, Stalin enviou o seguinte telegrama a Trotsky,
que estava no sul: “Dizer camarada Trotsky que camarada Lenin morreu
subitamente 21 de janeiro seis horas cinquenta minutos. Morte causada
paralisia centro respiratório. Funeral sábado 26 de janeiro. Stalin.”2 Ao assinar a
mensagem, Stalin deve ter pensado que era chegada a hora da guerra sem
piedade pela liderança. Mas saberia ele que, mesmo que sobrepujasse Trotsky,
não se livraria dele? Os métodos de uma burocracia autoritária, usando a
coerção e o “aperto dos parafusos” que Stalin aplicaria, eram exatamente os que
Trotsky advogava. Talvez tenha sido essa uma das razões da tragédia que
despontava. A luta política travada pelos dois, que durou até o momento em
que Trotsky foi assassinado, em agosto de 1940, influiu profundamente na
perspectiva de Stalin, que considerava Trotsky seu principal inimigo político.
Tive o testemunho de muita gente que, ou conheceu Stalin, ou foi arrastada
no redemoinho dos eventos causados por suas decisões. Muita coisa surgiu de
conversas com ex-membros do funcionalismo do Comitê Central, com
comissários, membros da NKVD, altas figuras do Exército, levadas pelo
destino a encontros pessoais com o secretário-geral e cujas vidas foram, muitas
vezes, alteradas da forma mais trágica por alguma decisão do “líder”. Depois de
meus artigos para o Pravda e o Literaturnaya Gazeta, recebi umas três mil
cartas, muitas de pessoas que contavam casos pavorosos.
Meu livro tem o subtítulo Triunfo e tragédia para indicar como o triunfo de
um homem foi a tragédia para todo um povo. No seu discurso para o XX
Congresso do partido, Khruschev pôs o problema ao seu modo: “Não se pode
dizer que suas ações foram as de um déspota louco. Ele acreditava agir no
interesse do partido, das massas trabalhadoras e da defesa das conquistas da
revolução. Essa foi a tragédia!” Julgo a ênfase de Khruschev mal empregada.
Sua avaliação justifica Stalin. Em nome do poder ilimitado, Stalin cometeu
crimes inomináveis, mas Khruschev não viu nisso a tragédia.
Stalin logo se habituou ao uso da força como atributo obrigatório do poder
ilimitado. É lógico presumir que a máquina punitiva, que ele colocou a todo
vapor no final dos anos 1930, capturou a imaginação não só dos funcionários
de escalões mais baixos mas do próprio Stalin. É possível que o deslizamento
para a coação como método universal tenha ocorrido em vários estágios.
Primeiro, a luta contra inimigos reais, que bem reais eram; depois, a supressão
de seus inimigos pessoais, também verdadeiros; no estágio seguinte, a máquina
funcionou com seu momento próprio e, finalmente, a força foi vista como um
teste de lealdade ao líder e à ortodoxia. A sombra de ameaça externa criou uma
mentalidade de cerco na população, que chegou ao ápice em 1937 e foi
resultado direto da força assumindo precedência sobre a lei, o deslocamento do
poder popular por substitutivos de culto.
Podia-se demonstrar ortodoxia, fé cega e lealdade ao líder fazendo
desavergonhadas acusações de “sabotagem”, “jogo duplo” e “espionagem”.
Como seria possível imaginar que todos os membros do Politburo nomeados
em maio de 1924 durante o XIII Congresso do partido, com a única exceção
de Stalin, se transformariam em “inimigos”? Stalin liquidou seus “inimigos”, e
as ondas continuaram se sucedendo. Triunfou uma força do mal. É difícil
explicar por que precisou continuar “extirpando” boas pessoas depois de ter se
livrado dos rivais. Aliás, bem antes da maioria, alguns bolcheviques da NKVD
viram o perigo iminente da suspeita e da repressão universais; ainda assim, só
de suas fileiras, 23 mil foram vítimas da falta total de lei.
Todavia, na análise final, mesmo o pior que a história pudesse perpetrar não
poderia evitar que o povo criasse em seu próprio país algo que o levasse
próximo da concretização de seus altos ideais. Mesmo nos anos mais amargos,
não faleceu a crença nos valores humanistas dentro do coração de milhões de
soviéticos. A tragédia foi terem tomado Stalin como símbolo e incorporação
humana do socialismo. Afinal, mentiras repetidas muitas vezes acabam
parecendo verdades. Na mente popular, a deificação do líder justificou todos os
efeitos negativos que acompanharam a cata dos “inimigos”, creditando também
todos os sucessos à sabedoria e à determinação de um homem. Além do mais,
Stalin aderiu ao uso da propaganda na promoção de seus esquemas grandiosos.
Ao tomar decisões de vulto, especialmente nas grandes reuniões, gostava de
citar os clássicos socialistas, embora a esse respeito revelasse uma típica fraqueza
humana. A maioria das pessoas, mesmo os onipotentes, precisa de uma escora
ideológica, seja a autoridade doutrinária, sejam as ideias perenes de um grande
antecessor, mesmo que, no caso, não passasse de camuflagem intelectual. O
triunfo do líder e a tragédia do povo encontraram expressão no dogmatismo e
na burocracia do sistema, na onipotência do aparato e na lavagem cerebral de
milhões, mas também no patriotismo e no internacionalismo do povo
soviético, no seu genuíno espírito cívico e em seus esforços heroicos.
Meu trabalho foi muito ajudado pelas memórias de famosos comandantes
do Exército soviético tais como I.Kh. Bagramyan, A.M. Vasilievsky, A.G.
Golovko, A.E. Yeremenko, G.K. Zhukov, I.S. Konev, N.G. Kuznetsov, K.A.
Meretskov, Moskalenko, K.K. Rokossovsky, S.M. Shtemenko e outros. É
verdade que essas memórias foram escritas numa época em que muito se
desconhecia sobre Stalin e na qual, depois do XXII Congresso do partido, o
stalinismo, para todos os efeitos e fins, foi inacessível a análises francas e
completas. Os militares, em particular no alto escalão, receberam todo o peso
da crueldade de Stalin, porém, com exceção de A.V. Gorbatov e de uns poucos
outros que conseguiram descrever a tempo aquilo por que passaram, ninguém
foi capaz de revelar coisa alguma. O assunto era praticamente proibido. Existe
outro lado do problema. Quando a guerra começou, Stalin, contra a vontade,
foi compelido a parar com a repressão dentro do país. Os comandantes do
Exército, nas suas memórias, ocuparam-se dos aspectos militares e do papel
exercido pela autoridade política de Stalin na derrota do fascismo. Isso, sem
dúvida, explica porque a maioria dos escritores militares apresenta Stalin sob
uma luz positiva e deixa fora da imagem muito daquilo que eles sofreram em
suas mãos. E algumas dezenas de milhares deles, que às vésperas da guerra
caíram no sangrento triturador do expurgo, pereceram. Sabe-se hoje que, no
começo da guerra, Stalin apelou repetidas vezes para a punição cruel de muitos
militares, usando-os como bodes expiatórios pelas pesadas perdas soviéticas.
Em retrospecto, é inacreditável a leniência do povo soviético, sobretudo do
povo russo. De onde vem ela? Dos 250 anos de domínio tártaro e da sucessão
de guerras para libertar-se dos grilhões? Da luta contra o inverno russo e da
grande extensão territorial? Ou deriva da sabedoria da experiência histórica, na
fé de que estava certo e no apego à tradição histórica? Talvez da convicção de
que tomara o rumo correto em 1917. Embora não se conscientizasse disso até
ser muito tarde, o povo só poderia ficar humilhado pelos rituais quase
religiosos de glorificação do mandante do país. Uma coleção de cantos de
exaltação, de hinos ridículos de boas-vindas, de cartas a Stalin chamando-o de
“pai”, “sol”, “líder sábio”, “gênio imortal”, “grande timoneiro”, “comandante
inflexível” constituiria um belo monumento a tal humilhação. A mente
burocrática superava a si mesma na invenção de epítetos sem levar em conta o
quanto afrontavam diretamente a dignidade do povo.
Seria de todo irrealista admitir que, não fora o vácuo político que se seguiu
à morte de Lenin, a evolução socialista da sociedade poderia ter acontecido sem
as distorções causadas por Stalin e seus cúmplices nas décadas de 1930, 1940 e
1950? A tragédia não era inevitável. Claro que é mais fácil falar hoje sobre
possíveis alternativas do que fazer a opção nos idos de 1920. Mais fácil analisar
as circunstâncias do que lidar com elas. “O historiador está sempre certo ao
comparar suas hipóteses com as coisas como se passaram”, escreveu Jean Jaurès.
“Está correto quando diz: ‘Eis aqui os erros do povo, e aqui, os do governo’, e
quando imagina como tudo seria se tais erros não fossem cometidos.”3 Havia
alternativas disponíveis.
Da morte de Lenin ao início dos anos 1930, Stalin ganhou a reputação de
ser um dos mais severos e mais obstinados dos líderes. Ele não tinha as
qualidades para substituir Lenin, mas nenhum dos outros tinha. Intelectual e
moralmente, ele não estava à altura da maioria dos líderes da revolução, mas na
luta pela sucessão o que valeu foi a determinação, a vontade política e a astúcia.
A despeito de suas “imperfeições”, Stalin tinha algo que faltou aos outros, isto
é, a possibilidade de usar o aparelho do partido ao máximo em benefício
próprio. O aparato era, na sua visão, o instrumento ideal do poder. E nem
todos os bolcheviques tinham ouvido o alerta de Lenin sobre Stalin.
Stalin conseguiu, temporariamente, disfarçar suas qualidades negativas,
depois que os delegados ao XIII Congresso do partido ouviram a opinião de
Lenin a seu respeito, e isso o ajudou a garantir o apoio da maioria dentro do
partido. Nessas circunstâncias, a chance dos demais postulantes não era muito
grande. Muitas altas figuras do partido, de início, simplesmente não levaram
Stalin em conta, e quando o fizeram, já era muito tarde.
Stalin, além do mais, era um grande ator. Encarnava muitos personagens
com consumada habilidade: o chefe modesto, o defensor da pureza dos ideais
do partido e, mais tarde, o líder e pai do povo, grande comandante, teorista,
connaisseur das artes, profeta. Mas, principalmente, Stalin tentou o papel de
aluno dedicado e camarada em armas do grande Lenin. Tudo isso grangeou-
lhe, gradualmente, popularidade dentro do partido e no país inteiro.
Entretanto, a questão é menos de personalidades que do potencial
democrático – por defeituoso que fosse – que Lenin começara a criar, mas que
não se manteve. Décadas depois, ainda estamos tentando identificar quem
poderia ter sido a alternativa de Stalin. O mais provável é que o núcleo
dirigente de leninistas do partido tivesse cumprido o “Testamento” de Lenin.
Mas a velha guarda revelou uma confusão e uma miopia inexplicáveis, em vez
de expressar a ideia coletiva, a vontade coletiva. Se tivessem sido criados
dispositivos de segurança democráticos para a defesa da sociedade,
notadamente sob a forma de liderança coletiva autêntica, o problema de
encontrar uma figura destacada para liderar não teria sido tão decisivo. Se, por
exemplo, o estatuto do partido tivesse fixado e confirmado um período preciso
para o mandato do secretário-geral e de outros cargos eletivos, é possível que
não acontecesse o culto a Stalin. Como as coisas se passaram, o destino do país
dependeu por demais da questão histórica de quem deveria estar no leme.
Malgrado o fato de que, no sentido formal, a autoridade de Stalin jamais foi
testada, ele praticamente abandonou a noção de socialismo de Lenin. O
comentário de Plutarco vem-nos logo à mente: “Quando o destino eleva às
alturas um caráter mau por meio de atos de grande importância, põe-lhe à
mostra a falta de substância.”4 O que chamamos de stalinismo foi exatamente o
caso. Pode-se discutir a legitimidade do conceito, mas é indiscutível que há um
fenômeno social específico por trás dele. Ele surgiu da deformação dos
princípios democráticos, sem os quais o socialismo perde tanto sua efetividade
quanto seu atrativo.
Para mim, o stalinismo é sinônimo de alienação da classe trabalhadora do
poder, de instalação de uma burocracia multiface e da imposição de fórmulas
dogmáticas na mente do povo. O exercício da autocracia resultou num tipo
específico de alienação que, por sua vez, deu lugar a uma apatia geral, à redução
do significado real dos valores socialistas e ao freio do dinamismo do
movimento. Stalin projetou sua vultosa e nociva sombra sobre cada lado de
nossa vida e não tem sido nada fácil libertarmo-nos desse eclipse dogmático e
burocrático.
Sendo verdade que os ideais socialistas foram preservados pelo povo, é
também verdade que o povo jamais descreu da “ideia russa”. As muitas
tentativas de introdução de reformas receberam, normalmente, a poderosa
resposta reacionária. Dos dezembristas de 1825 a Bukharin nos anos 1920 e a
Khruschev nos 1950, os reformadores sofreram derrotas. É importante lembrar
disso. O fato de Stalin ser derrubado do pedestal não significa a erradicação do
stalinismo, e não se pode desprezar a possibilidade de alguma forma de
neostalinismo igualmente maléfico ser restaurada. Não se trata de uma
profecia, apenas de um alerta da história.
Nota

* Como é chamada na Rússia a Segunda Guerra Mundial. [N. T.]


PARTE 1
Ardor de outubro

Não há revolução sem consciência.


Jean Jaurès
[1]
Um retrato

N o começo de 1917, Iosef Vissarionovich Djugashvili, ou Stalin,


como era então conhecido, tinha 37 anos de idade. Havia diversos
anos, morava em Stylaya Kureika, na região de Turukhansk, no
Círculo Ártico. As nevascas que acumulavam neve no teto da choupana davam-
lhe tempo bastante para que a mente vagasse para momentos memoráveis de
sua vida. Por exemplo, para aquele dezembro de 1905 quando conheceu
Vladimir Ilyich Lenin no encontro do partido em Tammerfors. Ele
comparecera aos congressos de Estocolmo e Londres e apreciara a arte da
política em ação, os oponentes buscando acordos e defendendo seus princípios,
e os debates ruidosos intercalados de conversas amistosas nos intervalos. Isto
sempre lhe causou perplexidade.
Suas raras viagens ao exterior tinham-lhe deixado a sensação vagamente
desconfortável de que não era capaz de competir com a argumentação
brilhante e a conversação espirituosa de gente como Plekhanov, Axelrod ou
Martov. Irritado e intelectualmente frustrado sempre que encontrava essas
pessoas, começou a desenvolver sua duradoura hostilidade pelo estilo de vida
emigré, pelo estrangeiro e pela intelligentsia, que discutia sem cessar em torno
das mesas de cafés baratos ou no quarto esfumaçado de hotéis pequenos e
decaídos, defendendo calorosamente escolas diferentes de filosofia e de teoria
econômica.
A vida de Stalin anterior a outubro fora marcada por sete prisões e cinco
fugas de masmorras czaristas ou exílio interno. O futuro líder não gostava de
relembrar em público aquela fase de sua vida. Jamais se referia à sua
participação nos roubos armados – “expropriações” – executados para reforçar
os cofres do partido bolchevique, ou aos seus tempos de Baku, quando clamou
pela “unificação com os mencheviques a qualquer preço”, ou a seus primeiros e
lamentáveis esforços literários. Certa vez, rememorou um de seus primeiros
poemas, escrito quando seminarista de 16 ou 17 anos. Eram versos dos quais
gostava e que chegaram a ser publicados no jornal Iveria. Evocando memórias
do seu Cáucaso nativo, os versos denotavam desespero, mas também
acalentavam vagas esperanças. Enquanto os recitava – para sua própria surpresa
– quase murmurando, como se rezasse, a senhoria esticou o pescoço por duas
vezes para bisbilhotar pelo vão da porta o que fazia seu inquilino caucasiano.
Com uma gotejante vela acesa junto ao cotovelo, Stalin estava sentado, um
livro aberto ao colo, o olhar perdido na janela coberta de gelo. De há muito,
abdicara dos poemas ingênuos de sua juventude e de tudo que fosse
considerado sentimental pela intelligentsia. Até mesmo com a mãe pouco se
correspondia. Depois de uma infância dura e de uma vida na clandestinidade,
sempre fugindo, tornara-se frio, calculista e desconfiado.
Stalin aprendera a afastar os pensamentos desagradáveis, mas a lembrança
do rosto de sua esposa, falecida havia dez anos, atingida pelo tifo, pairava
sempre em algum lugar. Ele recordava o casamento sigiloso na igreja de São
David, em junho de 1906, celebrado pelo colega seminarista Khristofor
Tkhinvoleli. A bela Yekaterina Svanidze – Kato – tinha os olhos cheios de afeto
voltados amorosamente para aquele marido que desaparecia por longos
períodos para então, subitamente, reaparecer. A vida em comum foi breve. A
doença privou Stalin do único ser humano que, provavelmente, amou. As
fotografias do funeral da esposa mostram-no encolhido e magro, cabelo
despenteado, de pé ao lado do túmulo, aparentando genuíno pesar.
As sementes da aspereza e da insensibilidade nele plantadas durante a
infância criaram raízes fortes. Na vida de homem caçado desde os 19 anos,
aprendera muito, em especial manha e parcimônia, e também a esperar. O
distanciamento e a reserva evidentes em seus primeiros anos se transformaram
com o tempo em fria falta de piedade. Contudo, acostumou-se ao uso de uma
máscara que dava a impressão de homem calmo e afável, quando estava com
outras pessoas.
Por que o jovem Djugashvili se tornou revolucionário? Teria sido pelo
contato com alguns fragmentos de vida intelectual na Escola Teológica de Gori
e no Seminário de Tiflis onde estudou? Teria sido a insatisfação com a vida
religiosa reclusa que o atraiu para a companhia de pensamento rebelde? Ou,
talvez, foram seus olhos abertos pelo “ABC do Marxismo”, panfleto popular
que lhe caiu nas mãos? Ninguém sabe ao certo. De todo modo, se ele não
tivesse feito na virada do século a mudança decisiva, posto que nebulosa, da
inclinação religiosa para as opiniões seculares heréticas, um vilarejo georgiano
qualquer o teria recebido, um dia, como jovem padre ortodoxo, pastor
espiritual de um rebanho humano. Sua vida monótona seria apartada do
mundo pelas montanhas majestosas da Geórgia e pelos pequenos problemas de
uma paróquia empobrecida, pelos cuidados com sua própria prole e pelos
devaneios sobre a excitante Tiflis. Como poderia Stalin saber, filho de um
sapateiro pobre, que os caprichos do destino e a força das circunstâncias o
levariam um dia a algo infinitamente maior que a posição de um pároco de
aldeia?

Antes de 1917, ninguém poderia supor que o revolucionário clandestino seria


rapidamente alçado, depois de 1922, ao píncaro do poder. Tirando do
caminho as sólidas fileiras dos camaradas de Lenin, Stalin logo emergiu entre
os líderes e, depois, assumiu o comando. Não houve quem antevisse que, após
a morte de Lenin, esse grupo de bolcheviques famosos se dissolvesse e sumisse
com tamanha rapidez. Quanto mais Stalin subia, menos restava daqueles que
ajudaram Lenin a acender a tocha revolucionária. Antes da revolução, ele era,
possivelmente, mais conhecido entre os diversos ramos do departamento de
polícia do que entre os outros revolucionários. A cada escaramuça com
Djugashvili, os gendarmes o fotografavam de frente e de perfil. Por mais
negligentes que fossem na vigilância dos presos, os guardas eram meticulosos
na descrição de seus “criminosos de Estado”. As fotos confirmam suas legendas
de um Djugashvili magro, cabelos pretos e abundantes, bigode fino, sem barba,
marcas de varíola no rosto, cabeça oval, testa plana, mas não larga, sobrancelhas
arqueadas, fundos olhos castanhos com um toque amarelado, nariz reto, altura
mediana de 1,65m, queixo pronunciado, voz suave, marca de nascença na
orelha esquerda, braço esquerdo definhado e com o segundo e o terceiro dedos
do pé esquerdo colados. Os guardas da segurança de Estado, ao tempo do
poderoso Stalin, não iriam se preocupar com tais trivialidades. Nem iria
qualquer prisioneiro político de seu governo empreender cinco fugas, como ele
conseguira. Quando se tentou descobrir o destino das incontáveis vítimas de
Stalin, as marcas de nascença e as alturas exatas dos “inimigos do povo” fizeram
pouca diferença. Tanto no critério quanto na escala, as imagens seriam bem
diferentes.
Os traços físicos de Stalin talvez não sejam tão interessantes quanto as
características políticas e morais que apresentava em 1917. Embora possa não
ter sido um vilão desde cedo, é importante saber que tipo de infância teve para
entender sua personalidade como adulto.
Pouco se sabe de seu tempo de menino, já que nem ele mesmo foi
expansivo a esse respeito. Seus pais, Yekaterina e Vissarion Djugashvili, eram
camponeses pobres que mais tarde passaram a morar em Gori, sempre carentes
de recursos. Dos três filhos, Mikhail e Georgii faleceram antes de atingir um
ano de idade, restando apenas Iosef, ou Soso, como era chamado. Mas este
também quase morreu de varíola aos cinco anos, fato que iria constar com
regularidade das fichas policiais em vista das marcas deixadas no rosto.
Segundo I. Iremashvili, um menchevique georgiano que conheceu a família, o
pai de Stalin, o sapateiro, bebia demais e espancava mulher e filho com
frequência. Antes de cair no pesado sono dos bêbados, socava as orelhas do
filho teimoso que, claramente, não tinha amor algum ao pai. O castigo
imerecido endureceu-o, e logo Stalin aprendeu com astúcia a evitar esses
encontros. Sua mãe, por outro lado, dedicou-se de corpo e alma ao filho.
Graças à sua insistência e a seu enorme esforço, Soso conseguiu uma vaga na
escola teológica e, depois, no seminário. A discórdia familiar persistiu e,
inevitavelmente, o casal se separou, com o pai mudando-se para Tiflis, onde
morreu sozinho numa pensão e foi enterrado como indigente.
Stalin saiu de casa quando se tornou revolucionário profissional. Parece que,
depois de 1903, só viu a mãe umas quatro ou cinco vezes. Ela o visitou em
Moscou pela primeira vez quando ele se tornou secretário-geral, e Stalin a viu
pela última vez em 1935. Foi o desejo desesperado da mãe analfabeta de ajudá-
lo na vida que deu a Stalin as primeiras oportunidades, porém tudo indica que
ele jamais refletiu sobre isso. Já idosa, dois anos depois do último encontro, em
julho do terrível ano de 1937, a mãe de Stalin morreu em paz.
O escritor alemão Emil Ludwig perguntou a Stalin, em 1931, o que o teria
empurrado para o pensamento revolucionário:
“Teriam sido, talvez, maus-tratos por parte dos pais?”
“Não”, replicou Stalin, “meus pais não tinham instrução, mas,
absolutamente, não me tratavam mal.”1 Mas o que sabemos dos seus primeiros
anos indica que ele apenas se referia à mãe.
Como aluno das instituições teológicas, Stalin demonstrou consideráveis
habilitações e uma memória fenomenal. Evidenciando ilimitado interesse pelo
Velho Testamento como pelo Novo, e assimilando os textos religiosos com
mais rapidez que os outros meninos, tentou captar a noção de um só Deus
portador do bem absoluto, do poder absoluto e do conhecimento absoluto. O
estudo prolongado da teologia como síntese dos dogmas e dos princípios
morais, entretanto, cedo perdeu a graça. Sem que ele disso se apercebesse,
durante a vida de estudante de teologia, certas linhas de pensamento e de
comportamento tomaram forma em sua mente. A dez anos de estudo religioso
devem somar-se outros tantos de prisão e exílio vividos por Koba, como ele se
autodenominava, adotando o nome de um herói de O patricida, do escritor
georgiano A. Kazbegi. Excluído pela sociedade, o sentimento de insatisfação do
jovem revolucionário com sua sina foi se enrijecendo até a condição de
amargura permanente. Sem dúvida, sua personalidade foi afetada pela
incongruente mistura de postulados religiosos – primeiro aceitos, depois
rejeitados – e o papel de proscrito social, que se combinaram para nele criar
uma atração pela atividade “rebelde”. Vinte anos de seminário e de cadeias só
podiam exercer influência sobre seus sentimentos, mente e caráter.
Por exemplo, ele tinha forte propensão para sistematizar, categorizar e
localizar nichos intelectuais para qualquer tipo de conhecimento, o que sinaliza
uma forma catequizadora de pensar. Por sua vez, isso criava a impressão de um
homem organizado e lógico. Igualmente, faltava-lhe o senso da autocrítica.
Toda a vida, acreditou em postulados, primeiro os cristãos e, depois, os
marxistas. O que não se ajustasse ao leito procustiano* de seus conceitos era
logo tachado de heresia e, depois, de oportunismo. E como raramente
duvidava do acerto das ideias e teorias em que acreditava, não achava necessário
sujeitá-las à crítica. Mentalmente, jamais se afastou dos preceitos clássicos do
marxismo. Talvez pusesse a fé acima da verdade, mas nunca admitiu isso, nem
para si mesmo. A fé nos ideais e nos valores é meritória, mas não deve
desbancar a verdade. A espécie de educação que Stalin recebeu e as privações da
infância talvez tenham se mesclado para tornar muito improvável que ele
pudesse, um dia, lidar racional e humanamente com o poder e a
responsabilidade que iria adquirir.
Stalin viu desde cedo que só podia contar consigo mesmo. Seus
companheiros em Baku e Tiflis diziam muitas vezes: “Koba, você é
determinado demais.” Ele gostou de ouvir isso e decidiu fazer desse atributo
sua marca registrada, adotando seu nome de tom metálico: a partir de 1912,
passou a assinar-se “Stalin, o homem de aço”. Não foi o único que quis
simbolizar uma personalidade forte com um nome adotado: L.B. Rozenfeld,
por exemplo, um tipo bem menos marcante que Djugashvili, optou por
Kamenev, “homem de pedra”. O tempo mostraria que a pedra não aguentava o
aço. Stalin queria crer em sua própria força, em sua própria invulnerabilidade,
em sua própria posição como chefe regional. A fé, como cimento do
dogmatismo, permaneceu com ele para sempre.
Sua educação religiosa alimentou um modo de pensar que virou qualidade
permanente, ainda que ele mesmo, como líder, muito criticasse o dogma, tal
como o entendia em sua forma simplista e vulgar. Inclinava-se a canonizar as
proposições marxistas e, muitas vezes, chegou a conclusões profundamente
erradas. Por exemplo, ao considerar absoluto o significado da luta de classes,
engendrou, nos anos 1930, a falsa formulação de que “a luta de classes mais se
aguça à medida que avança a construção do socialismo”. O oportunismo, o
facciosismo e as ideias alternativas eram para Stalin o mesmo que inimigos de
classe. O ex-seminarista viu na ditadura do proletariado um meio de coerção
social em vez de um princípio construtivo.
No caminho da revolução, Stalin assimilou as máximas do marxismo, mas
não teve talento criativo para aplicá-las. A influência de sua educação religiosa
(que outra não teve) expressou-se não no conteúdo dos pontos de vista, mas na
sua forma de pensar. Até o fim da vida, jamais conseguiu livrar-se das algemas
do dogmatismo.
Na realidade, Stalin não teve amigos íntimos; por certo, ninguém com
quem tenha tido relações afetuosas por toda a vida. O cálculo político, o
sangue-frio nas situações emocionais e a insensibilidade tornaram impossível
para ele criar e conservar amizades. Daí causar surpresa que, no fim da vida, ele
se lembrasse de alguns colegas da escola teológica e do seminário. Durante a
guerra, notou um dia que seu assistente A.N. Poskrebyshev guardava grande
soma de dinheiro no cofre. Com espanto e suspeita, olhando diretamente para
Poskrebyshev e não para o dinheiro, Stalin perguntou de onde vinha aquilo.
“São seus salários como deputado. Acumulam-se há anos”, explicou o
assistente, e continuou, “só tiro o necessário para pagar suas quotas ao partido”.
Stalin nada disse, porém, alguns dias mais tarde, deu ordem para que quantias
substanciais fossem remetidas para Peter Kopanidze, Grigory Glurdjidze e
Mikhail Dzeradze. O próprio Stalin redigiu a ordem:

1. Para meu amigo Pete – 40.000


2. 30.000 rublos para Grisha
3. 30.000 rublos para Dzeradze
9 de maio de 1944. Soso
No mesmo dia, escreveu um bilhete em georgiano:

Grisha!
Aceite este meu pequeno presente.
9 de maio de 1944. Soso2

Há várias notas semelhantes no arquivo pessoal de Stalin. Nos seus setenta


anos, e em meio à guerra, começou, subitamente, a revelar tendências
filantrópicas. Contudo, os amigos de que se lembrava eram os da juventude
distante como estudante teológico. Surpreende ainda mais porque Stalin jamais
mostrou inclinação pela sentimentalidade, por arroubos de amizade ou pela
gentileza. Não obstante, há evidência de um outro gesto benevolente que fez
depois da guerra, enviando a seguinte carta para o assentamento de Pchelok,
no distrito de Parbig em Tomsk:

Camarada Solomin, V.G.


Recebi sua carta de 16 de janeiro de 1947, enviada através do acadêmico Tsipin. Não esqueci de você
nem dos outros camaradas de Turukhansk, nem esquecerei, tenho certeza. Anexo 6.000 rublos de meu
salário de deputado. Não é grande soma, no entanto, será útil para você. Desejo-lhe saúde.
I. Stalin3

O velho bolchevique I.D. Perfilyev, exilado durante o período soviético, disse-


me que Stalin, quando esteve no exílio juntamente com ele, em Turukhansk,
teve um caso amoroso com uma mulher de lá, e que ela teve um filho. O
próprio Stalin jamais mencionou tal fato, e não consegui saber se ele, alguma
vez, preocupou-se com essa mulher, ou se apenas contentou-se com o bilhete
para os amigos de Turukhansk.
Sua frieza, sem sombra de dúvida, acentuou-se nos anos que passou como
revolucionário, vivendo na clandestinidade de 1910 a 1917, entrando e saindo
de prisões e exílios. Todos os que o conheceram testemunharam seu poder
extraordinário de autocontrole e impassibilidade. Ele podia dormir em meio ao
barulho, receber com indiferença sentenças de prisão e aguentar com
estoicismo as condições horrorosas da viagem para o exílio sob escolta policial.
Possivelmente, a única ocasião em que ficou abalado foi com a morte da jovem
esposa, atacada pelo tifo, deixando-o com um bebê de apenas dois meses de
idade, Yakov, alimentado por uma bondosa ama de leite chamada Monaselidze.
Em Turukhansk, onde, desde o início de 1914, ele passou seu último
período de exílio com Ya. M. Sverdlov e outros revolucionários, Stalin revelou-
se insociável e melancólico. Em diversas cartas do exílio, Sverdlov o descreveu
como “um grande individualista na vida diária”.4 Stalin já era membro do
Comitê Central do partido quando chegou ao exílio, juntando-se a outros
membros como o próprio Sverdlov, S.S. Spandaryan e F.I. Goloshchekin, mas
voltou-se para dentro de si mesmo. Parecia só se interessar pela caça e pesca.
Certa vez, é verdade, mostrou vontade de aprender esperanto no livro didático
que um dos exilados levara, mas logo se entediou. Sua existência de eremita só
se interrompia nas ocasionais viagens para visitar Suren Spandaryan, que
morava no vilarejo de Monastyrskoe. Exceto um ou outro aparte embaraçoso,
geralmente ficava em silêncio nos encontros organizados pelos outros exilados.
Dava a ideia de que, ou estava esperando que alguma coisa acontecesse, ou já se
cansara das fugas. De qualquer maneira, sua passividade social foi marcante nos
dois ou três anos que antecederam a revolução.
Poder-se-ia esperar que, inspirado pelo sucesso do panfleto que escrevera em
janeiro de 1913 em Viena, intitulado “O marxismo e a questão nacional”,
Stalin passasse seu longo tempo de exílio escrevendo mais. Mesmo que a peça
publicada devesse muito à mão editorial de Lenin, Stalin sabia que o líder
bolchevique dava valor ao panfleto;5 ainda assim, não conseguiu inspiração
para aprofundar o estudo do problema. A falta de qualquer atividade criativa
ou social durante aquele período relativamente longo é prova de sua depressão.
Ao longo de quatro anos, com acesso a uma biblioteca e muito tempo livre,
Stalin não fez esforço algum para empreender qualquer ação séria. Ocorre que
ele se comportara exatamente do mesmo modo durante dois períodos distintos
de exílio, em 1908 e 1910, em Solvychegodsk. Parece que o isolamento parcial
ou total dos centros revolucionários fazia com que mergulhasse numa espera
passiva, a menos que escapasse.
Os revolucionários, no exílio ou na prisão, geralmente leem muito. A prisão
é, para eles, uma espécie de universidade. G.K. Ordzhonikidze relembra que,
quando esteve na fortaleza de Shlisselburg, em São Petersburgo, leu Adam
Smith, Ricardo, Plekhanov, Alexander Bogdanov, William James, Frederick W.
Taylor, Klyuchevsky, Kostomarov, Dostoievsky, Ibsen e Bunin.6 Stalin também
leu bastante, encantado com a forma ineficiente com que o regime czarista
lutava com seus “coveiros”: não era preciso trabalhar, a leitura era permitida até
a saciedade da alma e podia-se até fugir, desde que houvesse vontade para
tanto. Daí, provavelmente, chegou ele à conclusão, proclamada mais de uma
vez, de que uma autoridade forte precisava de “órgãos punitivos” fortes.
Por ocasião dos expurgos dos anos 1930, ele iria apoiar a proposta de
Yezhov sobre alterações no sistema de cativeiro dos presos políticos. Instigado
por Stalin, o pleno do Comitê Central, em fevereiro-março de 1937,
introduziu um item especial no decreto resultante do relatório de Yezhov, a
saber, que “o regime prisional para os inimigos do poder soviético (trotskystas,
zinovievistas, SRs etc.) é intolerável. As prisões mais parecem casas de repouso
obrigatório. [Os presos] podem conviver, escrever cartas à vontade uns para os
outros, receber encomendas, e assim por diante”.7 É claro que foram tomadas
providências. Não haveria mais “universidades” para aqueles desafortunados.
Os que foram bater em locais de exílio distantes durante o regime de Stalin
tiveram de batalhar muito para, simplesmente, se manterem vivos, e muitos
fracassaram nesse intento. Até mesmo uma fuga ocasional era um
acontecimento e tinha que ser reportado a Stalin. Por exemplo, em 30 de
junho de 1948, o ministro do Interior deu conhecimento a Stalin e Beria de
que, em 23 de junho, no campo de trabalhos corretivos de Ob, sob a
responsabilidade da agência de construção da Ferrovia do Norte, um grupo de
33 prisioneiros desarmou dois de seus guardas, apoderou-se de dois rifles e 40
projéteis e conseguiu fugir pela margem esquerda do rio Ob. Em 19 de julho, a
situação era a seguinte: quatro prisioneiros haviam sido mortos, doze
recapturados e o restante estava sendo perseguido.8 Stalin ordenou que um
funcionário responsável se deslocasse para o local, organizasse a recaptura dos
fugitivos que restavam e submetesse um relatório direto a ele quando a
operação terminasse. Decididamente, Stalin não modelou seus órgãos punitivos
nos do czar.
Ao ler os jornais, que chegavam com muitos dias de atraso ao posto de
carruagens de Stanok, Stalin não podia deixar de perceber que grandes eventos
estavam por vir. Porém, quando estalou a Primeira Guerra Mundial, ele deu
fim a toda atividade social, passando a impressão de que, embora de início se
preparasse para fugir, não mais desejava interromper o exílio. Tinha duas
razões. Primeira, seria difícil manter-se na ilegalidade nas condições de tempo
de guerra e, segunda, não queria ser recrutado pelo Exército. Aliás, em fevereiro
de 1917, quando a comissão de conscrição, em Krasnoyarsk, o convocou, ele
foi julgado incapaz para o serviço militar em virtude de deformidades físicas,
ou seja, o braço atrofiado e o pé defeituoso.
Ao longo de quatro anos, ele esteve passivo, não escreveu quase nada e não
se comportou, de modo algum, como um membro do Comitê Central do
partido. Spandaryam e Sverdlov tornaram-se os líderes efetivos no exílio e os
outros se congregaram em torno deles. É possível que esse período de longa
depressão mental tenha sido um tempo de escolha pessoal para Stalin, tempo
de reflexão. Chegava aos quarenta anos de idade e seu futuro permanecia
nebuloso. Não tinha qualquer qualificação ou experiência profissional,
praticamente não trabalhara um dia sequer. Durante trinta anos, o país e o
partido seriam governados por um homem sem profissão e sem habilitações, a
menos que seja considerada profissão a meia-formação de padre. Molotov, pelo
menos, completou o curso secundário, e Malenkov, que largou a universidade,
desde cedo revelou-se um apparatchik assíduo da máquina do partido. Stalin,
diferentemente de Kaganovich, era incapaz de consertar até um par de sapatos.
O espaço para “profissão ou habilitação” dos formulários policiais era sempre
preenchido com “empregado de escritório”. Quando tinha que preencher o
registro para os congressos e conferências do partido, Stalin ficava em posição
incômoda para responder à pergunta sobre a natureza de sua ocupação e sua
origem social. Por exemplo, no formulário do XI Congresso, em 1922, no qual
foi delegado sem direito a voto, em resposta à questão: “A qual categoria social
você pertence? (operário, camponês, escriturário)”, ele não pôde escrever coisa
alguma.9
Revolucionário profissional, Stalin sabia bem menos sobre a vida de um
trabalhador, de um camponês ou de um funcionário de escritório do que sobre
um prisioneiro ou um exilado. Nas circunstâncias, talvez isso fosse inevitável,
mas ele tinha outra persistente característica de sua personalidade, isto é,
parecia saber muita coisa a respeito da vida dos operários. Depois, chegaria a
hora em que ele “saberia tudo e poderia fazer qualquer coisa”. O demorado
silêncio em Turukhansk é provável que tenha sido de certa forma um longo
período de “revisão”. Já era tarde demais para abandonar a carreira
revolucionária. As notícias de um ambiente contra a guerra e a ascensão do
movimento revolucionário em Petrogrado aos poucos restabeleceram-lhe a
autoconfiança e o trouxeram de volta à forma de combatente.
Os gélidos ventos polares parece que, verdadeiramente, congelaram os
poderes intelectuais de Stalin durante aqueles quatro anos. Foram, talvez, os
anos mais improdutivos e inertes de sua vida, mesmo na companhia de outros
bolcheviques bastante vivazes. Assim, ele esperou, avaliando a situação e
refletindo sobre o futuro. Que lembranças passariam por sua cabeça? Os
congressos do partido que frequentara, a prisão em Batum, o apartamento de
Alliluyev, o filho pequeno que não via por tanto tempo? Talvez suas atividades
como “expropriador” em nome de Lenin? Durante o período imediatamente
após a revolução de 1905, alguns dos membros mais radicais da ala
bolchevique do partido consideraram legítima a execução de roubos em
benefício da causa. Os testemunhos escritos de Dan, Martov, Souvarine e
outros membros da ala menchevique indicam que “o militante caucasiano
Djugashvili” participou de diversos roubos, se não diretamente, pelo menos
como um dos organizadores. Em especial, Martov assevera que o ataque
particularmente audacioso, em 1907, aos cossacos que faziam a escolta de um
carregamento de dinheiro em Tiflis “não daria certo sem Stalin”. Roubaram
cerca de 300 mil rublos. Martov escreveu: “Os bolcheviques caucasianos se
envolveram em diversas e ousadas empreitadas de natureza expropriatória: o sr.
Stalin sabe disso e ele foi certa vez expulso do partido por seu
comprometimento em expropriações.”10 Stalin tentou com persistência que
Martov respondesse à acusação de calúnia, destacando, porém, a afirmação de
que teria sido expulso do partido, e evitando a acusação de cumplicidade nos
roubos.
Seus anos de atividade revolucionária, se bem que em nível provincial, e a
aura romântica de “expropriador” que cumprira prisão e exílio criaram para
Stalin a reputação de “militante” e homem de ação, fama essa que, afora os
anos passivos no exílio, ele provavelmente merecia.
Lenin, por certo, teve parte destacada no surgimento de Stalin como
marxista. Sua primeira carta a Stalin, então na vila de Novaya Uda, na
província de Irkutsk, foi escrita em dezembro de 1903. Lenin era muito
atencioso para com revolucionários das minorias das terras fronteiriças
nacionais, e Djugashvili despertara sua atenção por causa de umas curtas
matérias escritas que publicara na imprensa do partido e em função das
conversas com outros camaradas. A carta de Lenin para Stalin elucida alguns
fundamentos da organização partidária. Stalin referiu-se a ela pela primeira vez
em público no fim de janeiro de 1924, numa reunião em memória de Lenin
promovida pelos guardas da segurança do Kremlin, por ocasião de um término
de curso. Na sua voz rouca e inexpressiva, Stalin falou sobre os encontros com
Lenin:

Conheci Lenin em 1903. Na realidade, não foi um encontro pessoal e sim postal, já que se deu por
correspondência. Não foi uma carta longa, mas continha uma crítica ousada e corajosa sobre o
trabalho de nosso partido e era uma exposição extraordinariamente clara e concisa de todo o plano de
trabalho do partido para o futuro imediato. Aquele pequeno e audacioso bilhete reforçou minha
crença de que o partido tinha em Lenin sua águia sobranceira. Não posso me perdoar por ter feito
com aquela carta aquilo que o revolucionário experiente na clandestinidade fez com muitas outras
missivas, ou seja, lancei-a às chamas.11

Stalin não podia se queixar de falta de atenção de Lenin. Na véspera da


revolução, o Comitê Central do partido, sob a presidência de Lenin, discutiu
especificamente a organização da fuga do exílio de Sverdlov e de Stalin.12 Pouco
antes, Lenin enviara 120 francos suíços para Stalin em Turukhansk.13 Também
tomara em boa nota a carta enviada do exílio na qual Stalin aventou a
possibilidade de publicar seus dois artigos “Da autonomia cultural-nacional” e
“O marxismo e a questão nacional” como um livreto único.14
Stalin encontrou-se com Lenin por diversas vezes antes de 1917. O tempo
mais longo que juntos passaram foi em Cracóvia. Tinham se reunido antes no
IV Congresso em Estocolmo e no V em Londres. Anos mais tarde, Stalin
lançou nova luz sobre aqueles encontros. Já em 1931, declarou: “Sempre que
fui ao exterior para vê-lo – em 1906, 1907, 1912, 1913 ...”,15 deixando
transparecer que não viajara ao exterior para reuniões do partido, mas para
encontrar-se com Lenin. Essa mudança de ênfase fortaleceu, depois, o conceito
de “dois líderes”, e ajudou a criar o mito de que a relação especial entre os dois
era anterior à revolução. É também verdade que Stalin sempre foi
especialmente cauteloso sobre essas ilações.
Perito na arte da sobrevivência na clandestinidade, Stalin também
dominava os segredos da transformação. Era uma coisa no Politburo, outra
quando discursava nos congressos e ainda outra quando conversava com os
trabalhadores que recebiam o prêmio Stakhanov. Tais mudanças nem sempre
saltavam aos olhos, mas ocorriam. Como confirmaram as pessoas que
trabalharam próximas a ele, Stalin era bem mais abrupto com os do círculo
íntimo do que quando “se exibia” em público. Todos temos nossos papéis;
alguns, nós desempenhamos, intencionalmente ou não, melhor que outros.
Mas os que ocupam posições elevadas na hierarquia social são, literalmente,
atores, talvez porque estejam tão destacadamente em exposição que qualquer
trivialidade é notada. A autoridade de um homem sobre os outros depende, é
claro, de seu poder, mas também de impressões, da “visibilidade” de sua
imagem, da atração que exerce ou não como líder.
O trabalho que ele desenvolveu em Baku, Kutaisi e Tiflis evidenciou
significativas qualidades de organizador. Todavia, mesmo então,
revolucionários perspicazes observaram que Stalin encarava a organização
partidária como um aparato, um mecanismo, a máquina para o processamento
de ordens. Outros bolcheviques caucasianos, como A.S. Yenukidze, P.A.
Dzhaparidze e S.G. Shaumyan, eram mais conhecidos localmente que
Djugashvili. Stalin pode ter sido igual a esses bolcheviques em termos de
formação e experiência prática como revolucionário, mas claramente perdia
para eles em popularidade pessoal.
Juntamente com o fim da dinastia dos Romanovs, acabou o exílio para
Stalin. Poucos poderiam prever, então, que, no período de um ano, desabaria o
edifício secular do czarismo, entregando a arena para a batalha entre dois
princípios, um novo e revolucionário, outro antigo e conservador. Stalin, cujo
“retrato de frente e de perfil” ainda era completamente desconhecido, teria seu
papel nesse conflito.
Nota

* Na mitologia grega, leito de ferro em que Procusto, famigerado salteador, deitava suas vítimas que ali
deveriam caber perfeitamente. Por isso. se fossem maiores, cortava-lhes os pés, se fossem menores,
estirava-lhes o corpo. [N. T.]
[2]
Fevereiro, o prólogo

E nquanto as garras geladas de Kureika ainda se fechavam em torno de


seus exilados, eventos sem precedentes se desenrolavam na Rússia
europeia. A guerra fazia sua colheita terrível já por trinta meses. Stalin
estava longe das trincheiras enlameadas e manchadas de sangue e dos cadáveres
enrijecidos de soldados presos no arame farpado. Mas, das escassas notícias que
chegavam, sabia que a produção industrial caíra de forma drástica, que o povo
passava fome e que o descontentamento crescia velozmente. A guerra levara o
império Romanov à crise. Uma explosão revolucionária era iminente.
A classe média esperava que fosse encontrada uma solução, seja por alguma
adaptação da monarquia, seja pela formação de uma democracia nos moldes
ocidentais. A sucessão desesperada de ministros só exacerbava as dificuldades
do regime. Nos três anos de guerra, o presidente do conselho de ministros
mudara quatro vezes, e dezenas de outras substituições tiveram lugar nos altos
cargos do Estado. No front, as coisas estavam ainda piores. O ministro da
guerra, general A.A. Polivanov, enviou o seguinte cabograma da linha de frente
para o palácio: “Deposito minha confiança em nossas vastidões intransponíveis,
em nossos atoleiros e na misericórdia de nosso benfeitor, Nicolau, o protetor da
Santa Rússia.”16
Nicolau II, malgrado toda a sua falta de imaginação, conseguiu manobrar
inteligentemente buscando meios-termos e fazendo concessões parciais para
salvar a monarquia. Mas chegara sua hora. Três semanas antes do colapso da
autocracia, o presidente da última Duma e líder do Partido Outubrista, M.V.
Rodzianko, disse ao czar: “Sire, não vos restou nenhum homem confiável ou
honesto: os melhores, ou foram afastados, ou se retiraram, e os que ficaram têm
péssima reputação.” Rodzianko argumentou com Nicolau rogando que
“outorgasse uma constituição ao povo” para salvar o trono.17 Mas nada poderia
salvá-lo.
O evento singular mais significativo do primeiro ato da Revolução de
Fevereiro foi a queda da autocracia. Os exilados, inclusive Stalin, acreditavam
na possibilidade do colapso, mas não esperavam que fosse tão súbito.
Lembrando-se das lições da revolução de 1905 e do que lera sobre a Revolução
Francesa, Stalin então sabia que a raison d’être daqueles revolucionários
profissionais estava prestes a ser justificada pelos eventos que se avizinhavam.
Um dos personagens do drama, V.V. Shulgin (que retornou do exílio no
Ocidente para a URSS em 1945, onde viveu até quase os cem anos de idade),
descreveu os detalhes em suas memórias, Dni (“Os dias”). Quando, como
emissários do Comitê Provisório, ele e A.I. Guchkov chegaram a Pskov, em 2
de março de 1917, para receberem instruções sobre a abdicação do czar,
contavam ainda com a salvação da monarquia. “O Imperador”, escreveu
Shulgin, “mostrava-se tranquilo como sempre. Quando Guchkov terminou
uma fala repleta de contradições, Nicolau, num tom de voz monótono, que
não passava o menor sinal de emoção, declarou: ‘Resolvi abdicar ao trono. Até
as três horas de hoje, pensei em fazê-lo em favor de meu filho Alexis. Mas,
depois, mudei de ideia em favor de meu irmão Miguel.’”18 Miguel, no entanto,
logo declinaria da coroa.
Enquanto isso ocorria, os exilados de Monastyrskoe e Kureika já estavam
em Krasnoyarsk e Kansk, e Stalin e Kamenev se encontravam em Achinsk.
Quando souberam que o grão-duque Miguel recusara a coroa, ficaram
extasiados e mandaram-lhe um telegrama de congratulações por sua
“magnanimidade e espírito cívico”. O telegrama foi assinado por Kamenev.
Nove anos depois, na tentativa de explorar ao máximo “o fraco de Kamenev
pela monarquia”, um Stalin que parecia anormalmente excitado disse:

O fato teve lugar em Achinsk, em 1917, depois da Revolução de Fevereiro, quando o camarada
Kamenev e eu éramos, juntos, exilados. Estávamos num jantar ou numa reunião, não me lembro bem,
mas, naquele encontro, diversos cidadãos, inclusive Kamenev, enviaram um telegrama para Miguel
Romanov [...] [Kamenev esbravejou de seu assento: “Admita que está mentindo! Por que você não
admite isso?”] Silêncio, Kamenev! [Kamenev gritou de novo: “Admita que você está mentindo!”] Cale-
se Kamenev, ou será pior para você. [E. älmann, diretor do encontro, repreende Kamenev.] O
telegrama para Romanov como primeiro cidadão da Rússia foi enviado por diversos negociantes mais
o camarada Kamenev. No dia seguinte, tomei conhecimento do fato, que me foi contado pelo próprio
camarada Kamenev, o qual veio a mim e me disse que tinha feito aquela burrice. [Kamenev bradou
novamente de sua cadeira: “Você está mentindo. Jamais lhe disse isso!”] O telegrama foi publicado em
todos os jornais, exceto nos bolcheviques. Aí está o fato número um.
Agora, o fato número dois. Tivemos nossa conferência do partido em Petrogrado, em abril, e os
delegados debateram se, em face do telegrama, simplesmente seria permitida a eleição de Kamenev
para o Comitê Central. Duas reuniões bolcheviques fechadas tiveram lugar, nas quais Lenin defendeu
Kamenev, argumentando em seu favor, com alguma dificuldade, para que fosse indicado candidato ao
Comitê Central. Só Lenin poderia salvar Kamenev. Eu também o defendi naquela ocasião.
Agora, o fato número três. É bem verdade que o Pravda apoiou o desmentido publicado pelo
camarada Kamenev, já que esse era o único meio de salvá-lo e de defender o partido contra os ataques
do inimigo. Dessa forma, veem todos que o camarada Kamenev é bastante capaz de mentir para o
Comintern e de iludi-lo. Só mais duas palavras. Como o camarada Kamenev tentou, ainda que
debilmente, negar a evidência de um fato, permitam-me coletar as assinaturas daqueles que
participaram da conferência de abril e que insistiram em vedar o acesso do camarada Kamenev ao
Comitê Central por causa do telegrama. [Trotsky, de seu lugar: “Só lhe faltará a assinatura de Lenin!”]
Camarada Trotsky, você tem que permanecer quieto!
[Trotsky: “Você não me intimida, você não me intimida!”] Você está negando a verdade, e é à verdade
que você deve temer. [Trotsky: “Você fala sobre a verdade stalinista, que é rude e desleal.”] Estou
coletando as assinaturas dos que acham que o telegrama foi assinado por Kamenev.19

De qualquer maneira, a dinastia dos Romanovs chegou ao fim. Como Shulgin


escreveu: “A Rússia não era mais uma monarquia, mas também não era uma
república. Era uma forma de Estado que não tinha nome. O que começara
com um pogrom dos judeus acabou se transformando na queda de uma dinastia
de trezentos anos.”20 Os da “velha guarda”, todavia, não se entregaram com
tanta facilidade. Ressurgiriam, na ocasião oportuna, sob a forma de exércitos
Brancos, com o apoio das forças da intervenção. Em seu Ocherki russkoy smuty
(“Uma história dos problemas russos”), A.I. Denikin lembrou que o general
Krymov, do 3º Corpo de Cavalaria, propôs “limpar Petrogrado pela força das
armas e, é claro, com derramamento de sangue”. Denikin lamentou, com um
suspiro, não ter seguido esse conselho a tempo.21 Porém, nos dois últimos dias
de fevereiro, acabaram todas as esperanças de deter a revolução. O comandante
militar da capital perdeu o último vestígio de autoridade sobre as unidades para
as quais os bolcheviques dirigiram sua propaganda. Na noite de 28 de
fevereiro, os ministros do último governo czarista estavam presos na fortaleza
de Peter-Paul. Triunfara na Rússia a revolução burguesa-democrática de
fevereiro. Ela foi o prólogo de outubro.
Mesmo antes do recebimento da notícia oficial, milhares de exilados das
fronteiras remotas se prepararam para viajar para Petrogrado, Moscou, Kiev,
Odessa, Tiflis, Baku e outros centros revolucionários.
Stalin e um grupo desses ex-exilados compraram suas passagens ferroviárias
de terceira classe e, sentados em seus vagões, com o olhar difuso e ansioso pelas
janelas, viram o trem rasgar as extensões siberianas, deixando suas depressões e
tédios nas margens congeladas do Yenisei. Stalin olhava os vilarejos pobres
enquanto “viajava para a revolução”. Sabia que seria hospedado pelos
Alliluyevs. Durante os longos anos de exílio, se recebera correspondência
regular de alguém, fora de Sergei Yakovlevich Alliluyev, seu futuro sogro, um
bolchevique que entrará em nossa história porque, em julho de 1917,
esconderia Lenin para que não fosse achado pelo Governo Provisório.
Ao se aproximarem dos Urais e em todas as paradas seguintes, os exilados,
dos quais havia alguns em cada trem, eram recebidos com ruidosas boas-
vindas. Cantava-se a “Marselhesa”, discursos jorravam e havia uma generalizada
atmosfera de júbilo. O retórico Kamenev e o fervoroso Sverdlov também
fizeram discursos, assim como outros passageiros. Stalin acompanhou a euforia
em silêncio.
Àquela altura, a maré democrática estava alta. A classe média baixa, ora se
inclinando pelos capitalistas “progressistas”, ora pelo proletariado, adernava a
nau do Estado com força cada vez maior. Crescia um ambiente reformista. O
sentimento era de que, com a derrocada da autocracia, estava alcançado o
objetivo principal. “A gigantesca onda pequeno-burguesa varreu tudo”,
escreveu Lenin. “Sobrepujou o proletariado consciente tanto numérica quanto
ideologicamente.”22 O grande pêndulo social oscilou para lá e para cá, entre a
esquerda e a direita, simbolizando um aspecto singular da Revolução Russa que
foi a existência de dois centros do poder. Numa das alas do Palácio Tauride
(onde costumava reunir-se a Duma de Estado, o velho pseudoparlamento
czarista) instalou-se o Comitê Provisório da Duma de Estado – o
“brinquedinho do governo”, nas palavras de Milyukov – com o tom dado pelos
Kadets (os democratas constitucionais), ou burguesia “de esquerda”. Na outra
ala, chefiado pelos mencheviques N.S. Chkheidze, M.I. Skobelev e pelo SR
(socialista revolucionário) A.F. Kerensky, o soviete de Petrogrado estava reunido
como órgão do poder revolucionário. Seu comitê executivo incluía
bolcheviques e mencheviques, porque esses mencheviques, que desfrutavam de
status legal antes de fevereiro, tinham feito bom uso das oportunidades. Suas
fileiras contavam com intelectuais, propagandistas e teóricos socialistas de
renome. Lenin ainda estava no exílio na Suíça, ao passo que Bubnov,
Dzerzhinsky, Muranov, Rudzutak, Ordzhonikidze, Sverdlov, Stalin, Stasova e
outros líderes do partido ou ainda se encontravam exilados, nas prisões, ou nos
campos de trabalho forçado.
Os mencheviques do soviete acompanharam os membros da Duma na
aprovação da transferência do poder estatal para o Governo Provisório. Em
uníssono, Tsereteli e Kerensky recitaram o refrão “o novo governo
revolucionário operaria sob o controle do soviete”, e essa era “a vontade da
história”. Sua demagógica retórica revolucionária agitadora das multidões e sua
insistência na mesma tecla do significado emocional daquele momento fizeram
com que a opinião pública favorecesse o Governo Provisório. Stalin, como
muitos outros, foi levado pela corrente.
Kerensky, que muito fez em prol da burguesia, também queria proteger os
representantes da dinastia, “para caso de necessidade”. Num dos ensaios que
escreveu já em fuga, e intitulado “A partida de Nicolau II para Tobolsk”, assim
se expressou:

A despeito de todos os rumores e insinuações, o Governo Provisório [...] decidira, bem no início de
março, enviar a família real para o exterior. No soviete de Moscou, em 7 [20] de março, em resposta à
gritaria de “Morte ao czar! Executem o czar!”, eu mesmo disse: “Isso jamais acontecerá enquanto
estivermos no poder. O Governo Provisório assumiu a responsabilidade pela segurança do czar e de
sua família. Cumpriremos essa obrigação até o fim. O czar e sua família serão mandados para a
Inglaterra. Eu os acompanharei pessoalmente até Murmansk.”23

“Minha declaração”, continuou Kerensky, “causou uma explosão de raiva nos


sovietes de ambas as capitais, mas, no verão, quando se tornou impraticável
manter a família real por mais tempo em Tsarskoe Selo, o Governo Provisório
recebeu a notificação [do governo inglês] comunicando que, até o fim da
guerra, era impossível a entrada do ex-monarca e de sua família em território
britânico.”24 A família real foi então despachada para Tobolsk. Ao mesmo
tempo, o Governo Provisório fez quanto pôde para vestir a revolução no manto
da reconciliação. Mantendo o poder, como disse Kerensky, a burguesia estava
também decidida a “deixar que o povo tivesse voz”.
A revolução completara, àquele estágio, sua primeira fase. A percepção era
adormecida pelo poder dual. Ostensivamente, o poder estava nas mãos do
Governo Provisório, junto com a antiga burocracia estatal, enquanto, em
paralelo, o soviete de Petrogrado fervilhava com o fermento revolucionário
criado pelos representantes dos operários e dos soldados. Duas ditaduras
coexistiam coladas uma à outra. Nenhuma das duas detinha poder total, mas
uma não podia tirar a autoridade da outra. Por mais que fosse socialmente
ambíguo, o poder dual não conseguiria desacelerar o alçamento revolucionário
das massas. Em 2 de março de 1917, por exemplo, o Izvestiya publicou a
famosa Ordem Nº 1 anunciando a introdução de princípios democráticos no
Exército: eleição de comitês dos soldados, abolição dos postos e títulos, ordens
só obedecidas com a aprovação dos sovietes, observância da disciplina
revolucionária, direitos civis iguais para oficiais e praças.
Antes da volta de Lenin, um papel especial foi desempenhado pelo Bureau
Russo do Comitê Central que, em março, cooptou três novos membros, entre
eles, Stalin. O bureau confirmou a composição do conselho editorial do
Pravda, e dele passou a fazer parte Stalin. O ressurgimento do jornal proletário
(proibido desde o começo da guerra) causou um impacto enorme.
Como se saiu Stalin nas revoluções de fevereiro e outubro? Qual foi sua
verdadeira função? O que foi ele: um líder, um forasteiro, um figurante?

Segundo a Breve biografia, “durante esse período importante, Stalin congregou


o partido para a batalha que objetivava transformar a revolução burguesa-
democrática numa revolução socialista. Com Molotov, orientou os trabalhos
do Comitê Central e do Comitê Bolchevique de Petrogrado. Os bolcheviques
tiravam direções ideológicas dos artigos de Stalin”.25 É descrito como líder da
revolução, como se já tivesse substituído Lenin. Os documentos não dão
qualquer fundamento a tais assertivas; Stalin não deu “direções”. Depois de sua
chegada a Petrogrado, nada mais foi do que um dos muitos funcionários do
partido. Seu nome raramente é citado no grupo particular de pessoas que
executaram as instruções do Comitê Central. De fato, ele era membro de
órgãos políticos importantes, mas, no decurso daqueles meses, pouco apareceu.
Reconhecido praticamente por ninguém fora de um pequeno círculo, Stalin foi
pessoa ignorada, um “representante das minorias nacionais”. Simplesmente,
um desconhecido. Esta é a verdade.
Trotsky, que ficou conhecidíssimo depois de seu retorno do exterior,
quando descreveu esse período da vida de Stalin em seu livro A Revolução de
Fevereiro, assinalou que “a posição no partido se tornou mais complicada, em
meados de março, depois da volta do exílio de Kamenev e Stalin, os quais
deram uma forte guinada para a direita no leme da política oficial”. Trotsky
sublinhou que Kamenev passara vários anos no exterior com Lenin, no centro
teórico do partido, e era um escritor e tribuno, ao passo que Stalin, o chamado
ativista prático, carente da necessária “visão teórica, bem como de amplos
interesses políticos, para não falar do conhecimento de línguas estrangeiras, era
inseparável do solo russo”. A facção Kamenev-Stalin “transformou-se [...] com
efeito, num grupo parlamentar por trás dos bastidores para ‘fazer pressão’ sobre
a burguesia”.26 Embora algumas das acusações de Trotsky a Stalin – como, por
exemplo, a de que este era favorável a uma política defensiva de guerra – não
sejam totalmente justificadas, ele, apesar disso, acerta quando diz que ao
pensamento de Stalin pré-outubro faltava visão e que tal fato, em várias
ocasiões, levou a uma preocupação estreita e míope com as coisas práticas.
Stalin não foi apanhado de surpresa pela Revolução de Fevereiro. Malgrado
a longa depressão, sua fé na inevitabilidade da revolução estava implícita. Se a
verdade não estivesse envolvida pela capa da fé, para ele, tratava-se de uma
verdade inferior. Embora tal abordagem não seja, em si, negativa, ela encerra o
perigo do pensamento dogmático. A fé num programa, numa linha de ação,
nas decisões, na “linha justa”, ajudaram-no sempre a permanecer convicto da
correção de suas ações. Ele viu a queda da monarquia como fatalidade
revolucionária e, sem dúvida, esperava que ela ocorresse em seu tempo, se bem
que, de repente, entendesse que a causa à qual devotara sua vida não era uma
questão de mera chance histórica, era algo mais.
[3]
Os atores coadjuvantes

S talin chegou a Petrogrado em 12 de março, pelo calendário antigo.*


Como seria de prever, ninguém foi recebê-lo na estação onde
desembarcou em companhia de Kamenev e Muranov. A cidade estava
ocupada com outras questões. Carregando sua mala de papelão, Stalin dirigiu-
se à casa dos Alliluyevs, sendo acolhido como parte da família. No mesmo dia,
encontrou alguns membros do Comitê Central e, naquela mesma noite, foi
eleito para seu Bureau Russo e para o conselho editorial do Pravda. Depois do
silêncio de Kureika, foi difícil sua adaptação ao barulho e à agitação. A partir
do momento da chegada, Kamenev, Muranov e Stalin assumiram,
praticamente, o controle do jornal, e, quase de imediato, “perderam o
compasso” por diversas vezes, teórica e politicamente, e não por acaso. Stalin
não era um pensador forte e independente, não tinha posição precisa nem um
entendimento claro da dinâmica do período pré-outubro. Estava acostumado a
obedecer ordens e a executar a “linha”. Na nova situação, teve de tomar suas
próprias decisões. O primeiro tropeço foi permitir a publicação de um artigo
de Kamenev chamado “O Governo Provisório e a Democracia Social
Revolucionária”, no qual o autor dizia de forma clara do que o partido tinha
que apoiar o Governo Provisório, já que este “lutava genuinamente contra os
remanescentes do antigo regime”. Tal afirmação contrariava as diretrizes de
Lenin.
Logo no dia seguinte, Kamenev, bem conhecido por ser escritor versátil e
rápido, publicou outro artigo, intitulado “Sem diplomacia secreta”, em que
praticamente esposou a posição “defensista revolucionária”. Enquanto o exército
alemão prosseguir a guerra, escreveu ele, quem é revolucionário “tem que se
defender firmemente em seu posto e responder bala com bala, granada com
granada. Sobre isso, não há dúvida”.27 As opiniões meio mencheviques de
Kamenev não encontraram oposição em Stalin, ele mesmo autor de um artigo
publicado no dia seguinte ao de Kamenev, chamado “Sobre a Guerra”. Apesar
de ser, de um modo geral, contra a guerra, o artigo contradizia frontalmente o
ponto de vista de Lenin. Stalin via saída para a guerra imperialista “se fosse
exercida pressão sobre o Governo Provisório para que anunciasse sua disposição
em logo abrir negociações de paz”.28
(A seu crédito, deve-se ressaltar que Stalin admitiu publicamente seu erro,
num discurso para a facção comunista do Comitê Central dos sindicatos. Disse
ele que sua atitude em relação ao Governo Provisório quanto à questão da paz
fora uma “posição gravemente errada porque gerava ilusões pacifistas, fortalecia
o ‘defensivismo’ e tornava a educação revolucionária das massas mais difícil”.29
Acrescentou que esta era a posição de todo o partido embora algumas de suas
organizações adotassem atitude própria. Mais tarde, quando Stalin se tornou
“infalível”, uma confissão pública como essa seria, é claro, impensável.)
Uma semana depois do artigo de Stalin, o Bureau aprovou uma resolução
alinhada com seu pensamento sobre a questão da guerra e da paz. Porém, na
ausência de Stalin, a influência de Kamenev no Pravda é que foi decisiva.
Kamenev foi o verdadeiro herói do “interregno” na liderança bolchevique e
contribuiu para o crescimento das tendências “defensivas”, meio mencheviques,
que floresceram em março. Stalin não tinha a autoridade para se contrapor a
ele. Mesmo na falta de Lenin e de outros destacados bolcheviques, Stalin não
conseguiu se comportar como líder quando o partido, acabado de emergir da
clandestinidade, necessitou de liderança enérgica. Sverdlov, Kamenev e
Shlyapnikov apareceram mais que Stalin durante o complexo momento em que
a direção política e as táticas do partido estavam sendo definidas.
Seguramente, Stalin não poderia adivinhar que Lenin iria determinar uma
linha para a revolução socialista quando chegasse em Petrogrado um mês
depois. Estava muito envolvido com as manobras políticas, que via como um
fim em si mesmas. A ausência de Lenin foi muito sentida em março. Objetivos
definidos não poderiam ser determinados pelo intelecto comum e pelo fervor
revolucionário de Stalin, e o recém-chegado de Kureika não tinha condições de
elevar e ampliar suas perspectivas. Um preeminente intelectual menchevique,
N.N. Sukhanov (Gimmer), escreveu em suas memórias: “Na arena política,
Stalin não passava de uma nódoa cinzenta e vaga.”30 Os outros membros do
Bureau, entre os quais P.A. Zalutsky, V.M. Molotov, A.G. Shlyapnikov, M.I.
Kalinin e M.S. Olminsky, eram igualmente incapazes de executar com
coerência as ordens que Lenin dera em suas “Cartas de longe”, em resposta aos
eventos de fevereiro. Parecia que Stalin, Kamenev e alguns dos outros não
conseguiam se livrar totalmente de suas ilusões “defensivas” e da fé no Governo
Provisório, e consideravam as reformas democráticas burguesas, de fato, o ápice
das conquistas.
A hesitação de Stalin era compreensível. Ele não tinha um conceito de
como a grande ideia deveria ser concretizada. As Revoluções de Fevereiro e
Outubro expuseram-lhe a debilidade, os rasos fundamentos teóricos, o baixo
nível de iniciativa, a incapacidade (até então) de converter slogans políticos em
proposições programáticas concretas. Ninguém jamais o recriminou por não
entrar na refrega ou por buscar os caminhos mais fáceis, temeroso de
confrontar o inimigo político. Determinação nunca lhe faltou, mas o
observador atento notaria que aquele revolucionário profissional era
extremamente vulnerável, e Stalin sabia disso.
Como já mencionamos, sempre que tinha de comparecer a uma oficina ou
uma fábrica, a uma unidade do Exército ou uma manifestação de rua, Stalin
passava por grande ansiedade, a qual, enfim, aprendeu a esconder com o passar
do tempo. Ao contrário de outros revolucionários, nunca teve atração pelas
massas, nem ficava à vontade no meio delas e, além disso, ou por causa disso,
não sabia bem como se dirigir às grandes multidões. Um operário (A.I.
Kobzev), que ouviu Stalin discursar num comício em Petrogrado, em abril de
1917, escreveu: “O que ele disse pareceu certo, foi fácil de entender e bastante
simples, contudo, de uma certa forma, você não conseguia, depois, se lembrar
do discurso.” Portanto, não surpreendia o fato de Stalin falar bem menos nos
encontros e manifestações do que qualquer outro líder bolchevique.
Quando Lenin e Trotsky retornaram, em abril e maio, respectivamente,
ficou ainda mais difícil para Stalin discursar em grandes eventos, em particular
a partir do momento em que Lunacharsky, Volodarsky, Kamenev, Zinoviev e
outros tribunos brilhantes começaram a ir aos comícios. Trotsky, por exemplo,
escolheu o Circo Moderno como local favorito e sempre o superlotou. Muitas
vezes foi carregado pela plateia até a tribuna. Ficou a impressão de que Trotsky,
às vezes, se preocupava menos com o conteúdo dos discursos do que com o
efeito provocado na plateia. Como Sukhanov anotou no seu diário de sete
volumes sobre a revolução, publicado em 1922-23, nas primeiras semanas após
seu retorno, Trotsky terminava um discurso rotineiro no Moderno e corria para
a fábrica Obukhov, depois para a fábrica Trubochny, em seguida para a Putilov,
a Baltiisky e, então, da Manège para os quartéis. Parecia falar em toda parte ao
mesmo tempo. Stalin, é claro, não podia ombrear com esse Cícero da
revolução. Trotsky deslumbrou-se com o crescimento da própria popularidade
e sabia, melhor que ninguém, incendiar uma plateia. Quando ouvia Trotsky
falar, Stalin alimentava uma hostilidade que beirava o ódio. Trotsky era o
centro das atenções, e todos sentiam atração por ele, ao contrário de Stalin, a
quem, especialmente antes de outubro, Trotsky, simplesmente, “não notava”.
Em vez de aparecer em público, Stalin escrevia sobre eventos políticos para
os jornais. Entre março e outubro, publicou mais de sessenta artigos e
comentários numa grande variedade de documentos bolcheviques. Embora
fosse apenas escritor mediano, sua argumentação era consistente e,
invariavelmente, categórica. Expressava-se com simplicidade elementar, sem
terminologia abstrusa, definições complexas ou proezas de lógica. Expunha
verdades simples que ninguém lembraria décadas mais tarde, caso não tivessem
sido escritas por ele.
Era mais do seu feitio permanecer na sede, trabalhando nos órgãos de
controle, como o bureau, o Comitê Central e o soviete.** Já em março, o
bureau atribuiu-lhe a missão adicional de membro do comitê executivo do
soviete de Petrogrado. As reuniões do bureau eram quase diárias para debater
questões práticas e distribuir mais e mais tarefas novas a seus membros. Dessa
forma, Stalin mantinha contato com as organizações do partido no Cáucaso e
noutras regiões.
Naquela ocasião, organizações unificadas de bolcheviques e mencheviques
foram criadas em numerosas províncias. O Comitê Central combateu tal
prática, como sempre o fez, se bem que sua abordagem de tal questão não fosse
a mais recomendável. Num momento em que a cooperação podia fortalecer a
luta contra a autocracia e, mais tarde, contra a burguesia, ela talvez devesse ser
encarada como uma concessão política para se atingirem objetivos específicos.
Stalin, em particular, foi fervoroso em desmanchar e suprimir tais alianças,
mesmo que elas pudessem ter contribuído para robustecer a influência
bolchevique.
Se uma linha conciliatória ameaçasse ideais, pontos do programa ou
conquistas concretas, talvez se justificasse destruir as organizações unificadas.
Contudo, o esforço concentrado contra os mencheviques, e mais ainda contra
os SR, socialistas revolucionários, causou mais prejuízos que benefícios. O que
se deve lamentar é que, com o tempo, essa abordagem virou tradição. Quando
os fascistas dos anos 1930 apontavam suas armas para nós, ainda estávamos
olhando os social-democratas como nossos “principais inimigos”.
Quando Lenin chegou à Rússia em 3 de abril (16, no calendário novo), foi
recebido às nove da noite em Beloostrov, a primeira estação em solo russo, por
representantes do Comitê Central e do comitê de Petrogrado do partido, bem
como por delegações de trabalhadores. Entre os que o receberam, estavam
Kamenev, Alexandra Kollontai, Stalin, Maria Ulyanova (irmã de Lenin), F.F.
Raskolnikov e A.G. Shlyapnikov. Mal entraram na cabine reservada trocando
calorosos cumprimentos, e Lenin já os surpreendia, como lembrou
Raskolnikov, com a pergunta: “Que andam vocês escrevendo no Pravda?
Lemos alguns exemplares do jornal e os xingamos bastante!”
A chegada de Lenin foi presenciada por Sukhanov, que cita o discurso de
boas-vindas de Chkheidze, no qual o líder menchevique disse que “a missão
principal [...] é defender nossa revolução contra quaisquer intromissões,
venham elas de dentro ou de fora. Esperamos que você se junte a nós na
perseguição desse objetivo”. Sukhanov registra que Lenin se comportou como
se tudo aquilo não tivesse coisa alguma a ver com ele. “Olhava em torno, ou
para as flores do buquê recebido, que pareciam totalmente fora de propósito.
E, então, dando as costas para o grupo de boas-vindas, replicou: ‘Caros
camaradas, soldados, marinheiros e operários. Fico feliz ao cumprimentar em
vocês a vitoriosa revolução russa. Em vocês, saúdo a vanguarda do Exército
proletário mundial. Está chegando a hora em que nosso camarada Karl
Liebknecht convocará os povos a voltarem suas armas contra os exploradores
capitalistas. A revolução russa que vocês fizeram abriu uma nova era. Viva a
revolução socialista mundial!’”31
Ali, na estação, Stalin sentiu o internacionalismo de Lenin apagando suas
próprias dúvidas ingênuas e atitude errônea para com o Governo Provisório. O
próprio Stalin mais tarde lembrou que, na noite de 3 de abril, “muitas coisas se
tornaram bem mais claras”. Lenin, apesar de vir “de longe”, entendia melhor
que os outros o significado do momento. No dia seguinte, no Palácio Tauride,
quando Lenin tornou públicas suas dez “Teses de Abril”, Stalin ficou
maravilhado com seu poder intelectual. As teses demoliram por completo sua
postura cautelosa expondo o perigo da política de esperar para ver. A
admiração de Stalin, todavia, era menos um tributo de respeito ao líder do que
apreço pelo impacto da nova ideia, uma avaliação que nem todos
compartilhavam. Para os camaradas em armas de Lenin, o líder do partido não
era inviolável. Em vista da situação sem precedentes, bem como da novidade
das ideias de Lenin, até mesmo figuras de realce do partido não estavam
prontas para aceitar o programa do líder. Achavam que a estada no exterior o
afastara da realidade russa e que ele se tornara um radical extremado. Só na
Sétima Conferência do partido, no final de abril, Lenin conseguiu o apoio da
maioria do Comitê de Petrogrado. Tendo feito seu precavido discurso de
março, Stalin achou que a argumentação de Lenin era uma censura direta à sua
posição. Sukhanov anotou em seu diário que o discurso de Lenin deixou
“muitas cabeças tontas”. Na reunião de 4 (17) de abril, só Alexandra Kollontai
pronunciou-se em sua defesa. Muitos bolcheviques (e não apenas Zinoviev e
Kamenev, como os historiadores soviéticos se acostumaram a dizer) não
podiam concordar com o ponto de vista de Lenin, e os conceitos por ele
expostos foram alvo de críticas severas.
Na Sétima Conferência do partido, de 24-29 de abril (que tornou público o
fato de seus 151 delegados representarem um partido de oitenta mil membros),
Kamenev atacou Lenin por não entender que as circunstâncias do momento
ditavam que se formasse um bloco com o Governo Provisório.32 Entre outros
que discordaram de Lenin, estiveram Smidovich, Rykov, Pyatakov, Milyutin,
Bagdatyev, cujos discursos seriam mais tarde classificados por Stalin como
“traiçoeiros”, “hostis”, “contrarrevolucionários” e incluídos no catálogo de seus
“crimes”. Após ter falado Bubnov, que advogou a monitoração do Governo
Provisório “de cima e de baixo”, Stalin defendeu as Teses de Lenin. Entretanto,
seu discurso foi pálido e não convincente. Como os argumentos são os
músculos das ideias, e Stalin careceu de argumentação, seu pronunciamento
causou pouco impacto na posição de Bubnov.
O relatório de Stalin sobre a questão nacional, todavia, teve maior peso.
Nele, asseverou que “a organização do proletariado de um estado de acordo
com as nacionalidades só poderia aniquilar a ideia da solidariedade das
classes”.33 O caminho mais certo para a classe trabalhadora de um Estado
multinacional era o da criação de um partido unificado, disse ele. Essa era uma
orientação contida na política leninista desde o início do século. O discurso,
em si, foi um esforço consciente e sem brilho de um “enrijecido revolucionário
prático”, porém, como regra naqueles dias difíceis, Stalin tentava se apegar a
uma posição “intermediária”, acreditando ser esta a atitude mais ponderada
numa ocasião em que as coisas se alteravam de maneira tão veloz.
Da mesma forma, os documentos da época evidenciam que Stalin era
pouco mais que um funcionário de modesto realce dentro da organização
partidária. Por exemplo, numa crônica compilada em 1924 para o período de
junho a setembro de 1917, enquanto Savinkov é citado mais de quarenta vezes,
Skobelev mais de cinquenta e Trotsky mais de oitenta, o nome de Stalin só
aparece nove vezes. Pode-se objetar que a abordagem estatística não diz tudo,
mas ela nos dá uma ideia dos papéis individuais vistos sob a ótica da opinião
pública. Exceto pela listagem dos vários comitês de que participou, no caso de
Stalin, é difícil encontrar-se na compilação algo de concreto sobre suas
atividades. O principal motivo disso talvez seja sua falta de iniciativa
revolucionária. Ele era um bom executor, mas não tinha imaginação. Em
março, mesmo como membro do Comitê Central e na ausência de Lenin,
foram escassos os seus atributos de liderança em escala nacional, e ele não foi
capaz de sugerir nada mais original do que “não devemos forçar os
acontecimentos”. O fato de Stalin ter permanecido em segundo plano em 1917
não se deveu apenas à sua passividade social, mas também ao papel de
executivo, para o qual tinha indiscutível talento. Nos meses tempestuosos de
1917, ele foi incapaz de elevar-se acima das tarefas do dia a dia. Trabalhando ao
lado de personalidades bem mais fulgurantes, é pouco provável que se
consumisse de ambição. As missões de menor relevância que cumpriu, no
entanto, foram-lhe conferindo, imperceptivelmente, autoridade política estável
entre os líderes bolcheviques, e, na Sétima Conferência, ele foi reeleito para o
Comitê Central.
Notas

* O calendário russo era 13 dias atrasado em relação ao do Ocidente até janeiro de 1918, quando passou
a coincidir com este. Assim sendo, a Revolução “de Fevereiro” ocorreu em março pelo Calendário Novo,
enquanto a Revolução “de Outubro” é comemorada, desde 1918, no dia 7 de novembro.
** Russo sovet, conselho. [N.T.]
[4]
O levante

C om o retorno de Lenin, o papel de Stalin se estabeleceu com mais


clareza como o de executor das ordens da liderança. Sua colaboração
foi inestimável nas operações sigilosas, na criação de vínculos com os
comitês do partido, e na organização das coisas que surgiram durante a
preparação para o levante armado.
O Comitê Executivo Central dos Sovietes, eleito no I Congresso dos
Sovietes de Toda a Rússia, que se reuniu entre 3 e 24 de junho, não era um
órgão bolchevique. Compreendia 123 mencheviques, 119 socialistas
revolucionários e 59 bolcheviques, entre os quais Stalin.34 Suas decisões, como
o comitê em si, eram conciliatórias para com o novo governo. Isso ficou
bastante claro depois que o Governo Provisório suprimiu com violência, no
início de julho, uma manifestação inspirada pelos bolcheviques. Claro também
ficou que a revolução socialista não poderia ser alcançada por meios políticos.
Lenin escreveu mais tarde que “nosso partido cumpriu sua indubitável
obrigação ao marchar, em 4 de julho, ombro a ombro com as massas
acertadamente indignadas e ao tentar dar à manifestação um caráter o mais
possível pacífico e organizado. Isso porque, em 4 de julho, a transferência
pacífica do poder para os sovietes ainda era uma possibilidade”.35 As lideranças
SR e menchevique, no entanto, já tinham “escorregado para o fundo do
revoltante poço contrarrevolucionário” – nas palavras de Lenin – ao fazer um
acordo com o Governo Provisório que resultou no emprego de tropas contra os
manifestantes. A instável coexistência dos dois centros de autoridade chegara ao
fim e se atingira um novo estágio – o da preparação para a tomada do poder
pelos bolcheviques.
O Governo Provisório preparava contra Lenin a acusação de ser agente
alemão. Ao saber de sua prisão iminente, o líder refugiou-se, com a ajuda de
Stalin, no apartamento dos Alliluyevs onde, no início de julho, se reuniram
membros do Comitê Central, inclusive Nogin, Ordzhonikidze, Stasova e
Stalin. A questão principal era se Lenin deveria ou não se entregar à “justiça”,
como demandavam as autoridades. Antes da reunião, Lenin declarara: “Se o
governo ordenar minha prisão e o TsIK (Comitê Executivo Central dos
Sovietes) ratificar a ordem, eu me entregarei em qualquer local indicado pelo
comitê.”36 As opiniões se dividiram. Alguns argumentaram que ele deveria se
entregar caso o TsIK desse algumas garantias. Porém, M.I. Liber e N.A.
Anisimov (membros mencheviques do TsIK) declararam que não havia
garantias que pudessem dar. Em vista dos abertos comentários feitos pela
imprensa contra Lenin e outros líderes bolcheviques, ficou claro que os
reacionários desejavam do governo um julgamento sumário deles. Depois de
discussões prolongadas, Lenin foi persuadido a não se render e a esconder-se
fora de Petrogrado por algum tempo.37 Inicialmente, Stalin não tomou posição,
mas depois ficou frontalmente contra a apresentação de Lenin aos tribunais,
alertando que ele poderia ser assassinado caso se rendesse.
Essa atitude era plenamente justificada. V.N. Polovtsev, um ex-membro da
Duma, lembrou em suas memórias que o funcionário enviado a Terioki, na
Finlândia, para prender Lenin, perguntou-lhe:

“Como devo entregar esse cavalheiro – inteiro ou em pedaços?”


Respondi, com um sorriso malicioso, que as pessoas quando são presas geralmente tentam escapar...

A experiência de Stalin na clandestinidade foi, sem dúvida, bastante útil, e o


plano para tirar Lenin de Petrogrado com a colaboração de amigos confiáveis
foi muito bem montado.
Nessa ocasião altamente dramática, um evento importante teve lugar na
vida pessoal de Stalin: ele conheceu a filha de Alliluyev, Nadezhda, que seria
sua futura segunda esposa. Vinte anos mais velho que ela, Stalin conhecera a
família nos idos de 1890, quando chegou pela primeira vez em Baku. Aliás, sua
filha Svetlana Alliluyeva escreveu em Vinte cartas para um amigo que, em 1903,
Stalin salvou a vida da futura esposa quando ela tinha dois anos de idade e caiu
ao mar, sendo por ele resgatada. Retornando certo dia para casa, Nadezhda
encontrou o apartamento repleto de gente que jamais vira. Começaram a
perguntar-lhe insistentemente sobre a situação na rua. Muito nervosa, a moça
contou que ouvira dizer que as pessoas acusadas pelo levante de julho eram
“agentes secretos de Wilhelm, que já tinham escapado de submarino para a
Alemanha e que seu líder era Lenin”. Quando percebeu que o herói do boato
estava no apartamento, ficou terrivelmente envergonhada.
Os visitantes pararam com as perguntas e reexaminaram a situação. A ideia
de que Lenin não se entregasse era a correta, já que o governo, evidentemente,
planejava uma desforra. Lenin teve de trocar de roupa, usar um disfarce e partir
para a Finlândia via Sestroretsk. O próprio Alliluyev relembrou mais tarde:
“Saímos numa determinada noite para a estação Primorsky. Yemelyanov, um
operário membro do partido desde 1904, foi na frente, seguido a curta
distância por Vladimir Ilyich e Zinoviev, com Stalin e eu cobrindo a
retaguarda. O trem já estava na estação, e os três que iam viajar embarcaram no
último vagão. Stalin e eu esperamos a partida e fomos embora.” As lembranças
de Alliluyev não são muito exatas. Zinoviev não estava entre os viajantes, pois
já se encontrava foragido, e o trabalhador V.I. Zof foi um dos que
acompanharam o disfarçado Lenin.
A despeito de suas múltiplas tarefas, Stalin começou a passar mais tempo no
apartamento dos Alliluyevs. O homem duro e frio estava atraído pela pura e
ingênua moça, quase uma menina, que iria se tornar sua esposa. De sua parte,
Nadezhda observava com interesse o “velho conspirador”, como ele se
apresentara a ela.
Stalin, então, tornou-se um dos traços de união entre Lenin e o Comitê
Central. Há todos os motivos para se supor que Lenin confiou instruções e
conselhos a ele. Na véspera do VI Congresso do partido, por exemplo, Stalin
encontrou-se com Lenin.38 Não existem atas, mas a marca de Lenin está
claramente impressa em todos os documentos principais do congresso. Lenin
ficou muito satisfeito ao saber que os delegados já representavam um partido
de 240 mil filiados. As fileiras haviam triplicado em apenas quatro meses, fato
encarado pelo líder como aprobatório da linha de ação que tomara. Seus
artigos, como “A situação política”, “Sobre palavras de ordem” e “Uma
resposta”, deram as bases para as decisões do congresso. Uma resolução especial
foi deferida aprovando a não entrega de Lenin, e sua linha sobre o levante
armado também recebeu apoio.
Na cena política, com o partido na semiclandestinidade, ficou com Stalin e
Sverdlov a execução das instruções de Lenin. Ainda praticamente desconhecido
pelas massas, o papel de Stalin dentro da organização cresceu constantemente.
Em 10 de outubro, voltando da longa ausência, Lenin compareceu a uma
reunião do Comitê Central no apartamento do menchevique Sukhanov, cuja
esposa era bolchevique. Sverdlov presidiu o encontro. Lenin assegurou que a
situação política “está agora madura para a transferência do poder. [...] Temos
que discutir o aspecto técnico. Tudo depende disso”.39
A imprensa reportou que o suprimento de cereais para a capital escasseava
de forma alarmante. A câmara da capital solicitou ao prefeito que conclamasse
a população a permanecer calma, enquanto começava uma sessão especial para
debater a situação dos alimentos. Entrementes, Lenin convocava todas as
organizações e todos os soldados e operários a se engajarem no preparativo
direto e intensificado de uma sublevação armada. O Comitê Central do
partido montou um centro de operações, dirigido por Bubnov, Dzerzhinsky,
Uritsky, Sverdlov e Stalin, para supervisionar a organização do levante.
Na noite de 24 de outubro, Stalin esteve no quartel-general bolchevique, o
Instituto Smolny, onde o Comitê Revolucionário Militar estava sediado. Nessa
noite, uma unidade de cadetes apareceu para prender Lenin. Os integrantes da
unidade foram desarmados pelos Guardas Vermelhos e levados para a fortaleza
Pedro-Paulo. Uma reunião do Comitê Central ocorreu naquela mesma noite.
No dia seguinte, Kamenev propôs que não fosse permitido que qualquer
membro do Comitê Central deixasse o Smolny sem instruções especiais,
acrescentando que, caso o Smolny fosse destruído, o baluarte passaria a ser o
cruzador Aurora. Stalin não participou da reunião.40 Naquela noite, o Comitê
Revolucionário Militar tomou de assalto o Palácio de Inverno, onde o Governo
Provisório estava entrincheirado.
Em 25 de outubro, Guardas Vermelhos ocuparam posições-chave, os
regimentos de cossacos de Petrogrado recusaram apoio ao Governo Provisório,
e as linhas telefônicas do Estado-maior e do Palácio de Inverno foram cortadas.
Naquela tarde, uma sessão especial do soviete de Petrogrado foi aberta sob a
presidência de Trotsky. Em meio a ruidosos aplausos, ele anunciou que não
existia mais Governo Provisório, que os prisioneiros haviam sido libertados e
que telegramas foram enviados ao Exército notificando a queda do antigo
regime.
A organização do levante fora da responsabilidade do centro dirigido pelos
cinco homens práticos, inclusive Stalin, e do Comitê Revolucionário Militar,
que fez grande trabalho no recrutamento de forças para o golpe decisivo. Em
sua carta histórica de 24 de outubro para o Comitê Central, Lenin insistira
com toda a liderança afirmando: “Neste entardecer ou à noite, teremos que
aprisionar o governo, desarmando os cadetes etc. e dominando-os, caso haja
alguma resistência. Não podemos esperar! Poderíamos perder tudo! O governo
vacila. Temos que acabar com ele a qualquer custo! Retardar a ofensiva seria a
morte!”41
A exortação de Lenin foi acatada e a revolução aconteceu. Suas primeiras
medidas importantes foram ratificadas no II Congresso dos Sovietes aberto em
25 de outubro. Durante esses eventos, Stalin não foi visto. Ele executava as
ordens de Lenin, garantindo a circulação delas pelos comitês e preparando
material para publicação. Seu nome não é citado em documento algum
referente àqueles dias e noites históricos.
No congresso, o líder menchevique Martov tentou aprovar uma moção pela
busca de solução pacífica para a crise. Em nome do comitê central socialista
revolucionário, Gendelman propôs uma resolução condenando a tomada do
poder, porém, mesmo entre os SR, só conseguiu sessenta votos a favor; 93
votaram contra. O Bund [Liga] judaico, os mencheviques-internacionalistas e
os Poalei-Tsion (Operários Sionistas) retiraram-se do plenário. Enquanto isso,
numa atmosfera carregada de fumaça de tabaco e de cheiros humanos, descrita
com detalhes por John Reed em seu livro Dez dias que abalaram o mundo, o
congresso continuou trabalhando durante toda a noite.
Depois de aprovar os decretos de Lenin sobre terra e paz, o congresso
nomeou um Comitê Executivo Central para Toda a Rússia (VTsIK), no qual
62 de seus 101 membros eram bolcheviques. No entanto, a liderança
bolchevique não estava unida. Kamenev, Zinoviev, Nogin e Milyutin batiam-se
por que o poder fosse dividido com os outros partidos. Seguiu-se acirrada
batalha política em que Bubnov, Dzerzhinsky, Stalin, Sverdlov, Stasova,
Trotsky, Ioffe, Sokolnikov e Muranov ficaram do lado de Lenin.
O poder estava nas mãos dos bolcheviques, mas os autores da Revolução de
Fevereiro não aceitavam a situação. Em 29 de outubro de 1917, os
mencheviques lançaram um manifesto ao país:

Cidadãos da Rússia! Em 25 de outubro, o Conselho Provisório da República Russa foi forçado, à


ponta de baioneta, a se dispersar e, no momento, a suspender suas operações.

Com as palavras “liberdade e socialismo” nos lábios, os que usurparam o poder apelam para a
violência, exercendo um mando arbitrário. Prenderam membros do Governo Provisório, inclusive os
ministros socialistas, e os encarceraram em celas czaristas. Sangue e anarquia ameaçam cobrir a
revolução, afogar a liberdade e a república e causar a restauração da velha ordem. Esse regime deve ser
visto como o inimigo do povo e da revolução que é.42
***

Em poucos dias, o jornal que publicou a declaração e outros de oposição foram


fechados pelos bolcheviques.
Deve ficar perfeitamente esclarecido que os bolcheviques tomaram o poder
com o apoio dos Revolucionários Socialistas de Esquerda. Se bem que
discordassem dos bolcheviques em diversas questões, os SR de Esquerda
situavam-se no fluxo principal da corrente revolucionária. Organizados como
partido separado em novembro de 1917, eles expressavam, tanto quanto sua
matriz, o Partido Revolucionário Socialista, os grandes interesses dos
camponeses. Eram contra a ditadura do proletariado e favoráveis a uma
representação mais ampla dos partidos socialistas no Conselho de Comissários
do Povo, porém, no momento crucial, fecharam com os bolcheviques. Em
dezembro de 1917, aceitaram participar do governo soviético e receberam um
terço das pastas. Entre os que aceitaram cargos estavam I.Z. Steinberg, P.P.
Proshyan, A.L. Kolegaev, V.E. Trutovsky, V.A. Karelin, V.A. Algasov, M.N.
Brilliantov.
Um pluralismo socialista como esse proporcionava, por certo, excepcional
oportunidade histórica. Lenin percebeu isso quando afirmou que a união dos
bolcheviques com os SR de Esquerda “poderia ser uma ‘coalizão honrosa’, uma
união honrosa, porque não há diferença fundamental entre o trabalhador
empregado e o camponês explorado”.43 Se essa união tivesse sobrevivido, é
possível que muitas das características trágicas associadas com o monopólio do
poder político não tivessem medrado. Todavia, nem os SR de Esquerda nem os
bolcheviques estavam bem conscientes da importância histórica de sua aliança,
e o colapso da união no verão de 1918 foi a fonte de males futuros. Deve-se
dizer, de passagem, que Stalin sempre considerou os SR de Esquerda um típico
partido pequeno-burguês, mais tendente à contrarrevolução que à revolução.
Infelizmente, ele não era o único que pensava assim. A oportunidade de
consolidar o pluralismo revolucionário se perdeu no verão de 1918, e o
resultado foi o monopólio político, a uniformidade de pensamento e a ausência
de uma forma alternativa de autoridade que cedo desaguaram no mando cruel
de um só homem.
Como Stalin se comportou nos dias críticos de outubro? Qual foi seu papel
real? Por que seu nome aparece tão pouco nos relatos, embora ele fosse
membro de diversos órgãos importantes?
A propaganda abastecida pela Breve biografia objetivou consolidar a ideia de
que só existiram Lenin e Stalin: Lenin e Stalin inspiraram e organizaram a
vitória de outubro; como companheiro próximo de Lenin, Stalin foi o
responsável direto pela preparação de todos os aspectos do levante; seus artigos
foram publicados em cadeia por toda a imprensa bolchevique provincial; ele
convocou seus representantes regionais, aos quais atribuiu diversas missões, e
dirigiu apenas por meio de “convocações” e “instruções”. Mas essa era a
terminologia dos anos 1930. Os autores da biografia tiveram dificuldade em
dizer alguma coisa de concreto exatamente porque Stalin nem “dirigiu” nem
“orientou ou instruiu” quem quer que fosse. Nada mais fez que executar ordens
de Lenin e decisões do Comitê Revolucionário Militar.
Quando forças do Governo Provisório fecharam o órgão central de
divulgação do partido, Rabochii Put, em 24 de outubro, Stalin estava lá dando
apoio aos Guardas Vermelhos que o defendiam. No mesmo dia, o jornal
publicou um artigo dele intitulado “Do que precisamos?”, no qual continuava
a clamar pela convocação da assembleia constituinte.* Esse artigo, afinal, fazia
eco à malfalada carta de 11 de outubro de Kamenev e Zinoviev, que eles
chamaram “Sobre a situação presente”, na qual se opunham à decisão do
Comitê Central de desencadear a revolta armada. Escreveram: “Estamos com
uma arma apontada para a cabeça da burguesia e, sob tal ameaça, não se pode
esperar que ela convoque a assembleia.” Stalin também chegou a levantar a
questão da assembleia, e na véspera do levante, nada menos que isso. Bem
verdade que igualmente disse: “O governo [dos liberais] deveria ser substituído
por um governo de sovietes...”44
O primeiro cargo de Stalin no novo governo soviético foi o de Comissário
das Nacionalidades. Ainda assim, conquanto fosse um dos integrantes da
equipe de líderes que enfrentava problema atrás de problema em 1917, jamais
foi autor de iniciativa importante alguma, nem sugeriu ideias originais. Na
verdade, contudo, deve ser dito que, em 28 de novembro de 1917, numa
reunião do Conselho de Comissários do Povo (Sovnarkom), Stalin ficou
sozinho contra todos, opondo-se inclusive a Lenin, quando votou contra a
entrega de liberais importantes para julgamento nos tribunais revolucionários
como inimigos do povo.45 Porém, no geral, foi um líder de segunda ou terceira
categoria.
A despeito de ser membro de cada órgão revolucionário que se possa
imaginar, na prática, Stalin não teve, verdadeiramente, responsabilidades
concretas. No entanto, nada lhe escapou. Ficou pasmo com a energia de
Trotsky, com a capacidade de trabalho de Kamenev, com a impulsividade de
Zinoviev. Em diversas ocasiões, deu atenção às palavras de Plekhanov, a quem
dedicava sentimentos que quase chegavam ao respeito, e se surpreendeu certa
vez quando o ouviu dizer com amargura: “A história russa ainda não moeu a
farinha para fazer o bolo do socialismo.” “Pai do marxismo russo” e um dos
fundadores do partido, Plekhanov foi além: classificou como “delírios” as Teses
de Abril de Lenin, condenou a Revolução de Outubro e, no devido tempo, o
Tratado de Brest-Litovsk. Jogado na vala do reformismo superficial pela
corrente revolucionária e desiludido com o fato de os acontecimentos não
corresponderem à sua teoria, Plekhanov partiu para a Finlândia. Não podia
aceitar a revolução, mas também não podia lutar contra ela. Era homem de
princípios políticos morais.
Em 4 de junho de 1918, numa reunião conjunta do Comitê Executivo
Central para Toda a Rússia (VTsIK), do soviete de Moscou e dos sindicatos
locais, à qual Lenin compareceu, fez-se um minuto de silêncio pela morte de
Plekhanov, falecido em maio. Stalin ficou perplexo. Para ele, quem discordasse
publicamente da causa era um inimigo para sempre. Da mesma forma,
considerou excessivos o elogio póstumo de Trotsky e o obituário no Pravda
escrito por Zinoviev. Na perspectiva de Stalin, revolução era luta. Ou se é
aliado, ou inimigo. Em particular, chamou de “liberalismo” esses sinais de
respeito a Plekhanov, uma ressaca de sentimentalismo intelectual, indigna de
revolucionários. Seus camaradas de partido teriam, um dia, a oportunidade de
ver a coerência de Stalin a esse respeito.
Três anos depois da sublevação armada, em 7 de novembro de 1920, um
grupo de participantes no levante se reuniu para uma noite de rememorações.
Stalin foi convidado, mas preferiu não ir. Mas muitos outros compareceram,
inclusive Trotsky, Sadovsky, Mekhonoshin, Podvoisky e Kozmin. Lenin foi
citado várias vezes, bem como Trotsky, Kamenev, Zinoviev e um bom número
de outros revolucionários. Os registros do encontro foram preservados, e o
nome de Stalin não aparece uma vez sequer. Nem em conexão com o Comitê
Revolucionário Militar, nem ligado ao trabalho dos bolcheviques entre as
massas silenciosas de soldados e marinheiros ocorreu a qualquer dos presentes
lembrar seu nome. Para eles, Stalin não passara de um extra insignificante.
Transformado em “autocrata”, foi penoso para Stalin conviver com sua
insignificância e seu desconhecimento. Nos anos 1930, ele só tolerava ouvir
sobre os eventos da Revolução de Outubro se fossem descritos à luz do
conceito dos “dois líderes”. De início, os verdadeiros heróis da revolução foram
submetidos ao “silêncio”, ao “expurgo histórico” ou à “reedição”. Entre 1937 e
1939, foram fisicamente eliminados. Na altura dos anos 1940, podia-se contar
nos dedos da mão os líderes revolucionários ativos. Só permaneceram aqueles
que ajudaram a criar a nova biografia do líder. À proporção que diminuía o
número de veteranos de Outubro, mais inflado se tornava o papel de Stalin.
Naturalmente, Trotsky, que a partir de 1919 fez de Stalin o objeto principal
de seus ensaios críticos, foi fulminante. Em A escola stalinista de falsificação,
afirma que, em 1917, Stalin esteve quase sempre silencioso nos encontros e, de
modo geral, seguiu a linha de Lenin: “Não teve qualquer iniciativa. Não fez
uma só proposta independente, e não há ‘historiador-marxista’ do novo tipo
que possa alterar esse fato.”46
Em 1924, depois da morte de Lenin, Trotsky publicou um perfil do líder
falecido, no qual incluiu o seguinte diálogo:
“Ora bem”, disse-me Vladimir Ilyich logo após 25 de outubro, “se nos
matarem, será que Sverdlov e Bukharin darão conta do recado?” “Talvez não
nos matem”, repliquei com uma gargalhada.
“É isso mesmo!” exclamou Lenin, e riu também sonoramente.
“Quando esse perfil foi publicado”, lembrou Trotsky mais tarde em Minha
vida, “... Stalin, Zinoviev e Kamenev ficaram profundamente ofendidos com o
que escrevi, embora não tentassem contestar sua correção. Um fato é um fato:
Lenin não fez menção a qualquer um deles como seu sucessor, apenas a
Sverdlov e Bukharin. Nenhum outro nome passou por sua cabeça.”47
Contudo, não se devem tomar as palavras de Trotsky ao pé da letra,
sabendo-se quão ambicioso e sedento de poder ele era, e levando-se em conta
que se via como único “herdeiro” legítimo de Lenin. Pode-se dizer igualmente
que, em 1924, Trotsky também tentava consolidar sua própria posição e
reputação na luta pelo poder. Quanto a Stalin, era doentiamente sensível a
qualquer coisa publicada que pudesse obscurecer sua participação – não mais
que modesta – na Revolução de Outubro, ou exagerar a de Trotsky. Foi em
grande parte isso que provocou o discurso de Stalin, em novembro de 1924, na
reunião plenária da fração comunista dos sindicatos, e que só em 1928 foi
publicado pela editora estatal, a Gosizdat, como folheto em separado. Nele,
Stalin fez a seguinte análise sobre a atuação de Trotsky na revolta de outubro:

É verdade que o camarada Trotsky lutou bem no período de outubro. Mas não foi o único, outros
lutaram igualmente bem, como os SR de Esquerda, que se postaram ombro a ombro com os
bolcheviques. Mas por que razão Lenin, ao selecionar os integrantes do centro prático de operações
para o levante, não incluiu o nome de Trotsky, mas nomeou Sverdlov, Stalin, Dzerzhinsky, Bubnov e
Uritsky? Como se vê, o centro não incluiu o “inspirador”, “a figura central”, “o único líder do
levante”, o camarada Trotsky. Como é possível jogar tal fato com a opinião corrente sobre o papel
especial do camarada Trotsky?48

Aí há outro exemplo da prestidigitação de Stalin com os fatos: foi o Comitê


Revolucionário Militar que comandou a sublevação, não o centro prático.
Passados poucos anos da revolução, assistiu-se, então, ao esforço de dois
líderes do partido para engrandecer suas próprias participações no levante,
desprezando a contribuição do outro. Embora não se possa falar propriamente
de uma liderança de gabinete durante a Revolução de Outubro, o papel de
Stalin, repito, foi limitado à preparação de instruções do Comitê Central e à
circulação delas pelos órgãos revolucionários. Não há evidência de sua
participação nos combates, na organização de destacamentos armados ou nas
visitas aos navios e fábricas com o intuito de incitar as massas. Por força das
circunstâncias, ele ficou no quartel-general da revolução, certamente no palco
central, mas como figurante. Stalin não tinha dons intelectuais, atrativo moral,
entusiasmo flamejante ou energia efervescente, tão valiosos nessas ocasiões. No
vértice da revolução esteve Lenin. Abaixo dele ficou a figura de Trotsky, mais
abaixo, Zinoviev, Kamenev, Dzerzhinsky e Bukharin. Abaixo destes, uma legião
de bolcheviques da escola leninista e, em algum lugar no meio dela, Stalin.
Se bem que Stalin fosse filiado ao partido desde os anos 1890, membro do
Comitê Central a partir de 1912, integrante de vários sovietes, comitês e
conselhos editoriais, e comissário das Nacionalidades, tudo isso apenas lhe
conferia status oficial (ou seja, burocrático). Sua presença em reuniões e
conferências meramente atestava o fato de ele pertencer aos altos escalões da
liderança. Tal situação permitiu que conhecesse e estudasse uma ampla gama
de pessoas, penetrasse cada vez mais profundamente no mecanismo do aparato
partidário e adquirisse experiência política. Permitiu também que crescesse a
avaliação que Lenin dele fazia como operador político confiável, não apenas
capaz de tomar as decisões e empreender as ações naturais de um simples
executivo, como também de concretizar acordos hábeis, manobrando e
identificando os elementos principais de um vasto espectro de problemas. No
bolchevismo de Outubro, Stalin foi um centrista que soube sentar, esperar e se
adaptar.
Nota

* Em seguida à Revolução de Fevereiro, o novo governo foi pressionado a convocar uma assembleia
constituinte em que se determinasse a natureza do novo Estado. As eleições organizadas pelo Governo
Provisório acabaram ocorrendo depois da tomada do poder pelos bolcheviques, os quais receberam votos
de menos de um quarto das cadeiras da Assembleia, prontamente desfeita pela força depois de sua
primeira e única sessão em 18 de janeiro de 1918.
[5]
Salva por sorte

A Revolução de Outubro viu o rompimento das comportas russas, e a


enchente social arrasou tudo que estava à sua frente. O principal mês
do ano crucial da história russa foi excepcionalmente tormentoso e
triunfal para os bolcheviques. Em poucos meses, eles passaram de partido
relativamente pequeno a poderosa força política. No entanto, a lua de mel foi
breve. Problemas, adiados por muito tempo, vieram à tona como perigos
ameaçadores e mortais no fim daquele ano inesquecível. Ao tomar o poder, os
bolcheviques prometeram ao povo terra, paz e pão. Começaram dando terra, e
a terra suscitou a esperança de pão. Mas a paz não dependia só dos
bolcheviques. Da mesma forma que não se pode bater palmas com uma só
mão, não pode haver paz de um lado só, mormente uma paz justa,
democrática, sem anexações e reparações. Porém, como consegui-la com as
hordas dos Habsburgos e dos Hohenzollerns pisoteando territórios russos
ocidentais?
Ninguém entendeu o drama daquele momento melhor que Lenin. Com
poucos dias de presidente do Conselho dos Comissários do Povo (Sovnarkom,
Sovet Narodnykh Komissarov, o “ministério”), ele já dava instruções a A.A. Ioffe,
que deveria chefiar a delegação para negociar a paz com o alto comando
alemão.
De início, pareceu que a paz seria rapidamente alcançada porque fora
assinado um armistício já em 2 de dezembro de 1917, com validade até 1º de
janeiro de 1918. As conversações começaram logo. Ioffe tinha o apoio de
Kamenev e de outros bolcheviques e SR de Esquerda. Mas a situação mudara:
forças nacionalistas mandavam agora em Berlim e queriam os máximos ganhos
possíveis. Sabiam que as trincheiras russas já estavam quase desertas e que a
delegação soviética tinha por trás a mera sombra do que fora o poderio russo.
Os alemães apresentaram condições de paz que representariam a perda de
vastas extensões de território russo.
Lenin demonstrou visão e força de vontade singulares. Se não assinarmos o
tratado, disse ele, por mais duro e injusto que seja, “o exército de camponeses,
intoleravelmente exausto da guerra, logo depois das primeiras derrotas, que
devem acontecer em poucas semanas e não meses, derrubará o governo
socialista dos trabalhadores”.49 A sorte da revolução estava em jogo. Dois
pontos de vista diametralmente opostos colidiram no Comitê Central, no qual
os comunistas da extrema esquerda conseguiram maioria contra Lenin,
defendendo a ideia de uma “guerra revolucionária”.
Os esquerdistas, que incluíam Bukharin, Bubnov, Preobrazhensky,
Pyatakov, Radek, Osinsky e Lomov, argumentavam que a União Soviética
poderia contar com a ocorrência de um movimento revolucionário na Europa.
Pyatakov dizia que, de fato, sem um movimento desses, a revolução russa
estava liquidada. Uma sublevação revolucionária contra o imperialismo alemão
instigaria o proletariado a tomar seus próprios governos. Os sintomas
revolucionários, que já eram vistos em muitos países europeus, foram
interpretados pelos comunistas da esquerda como sinais do início de uma
conflagração continental, que, por sua vez, deflagraria a revolução mundial.
A segunda fase das negociações de Brest-Litovsk foi chefiada por Trotsky, o
qual, a despeito de uma mudança de tendência no Comitê Central em favor da
assinatura do tratado de paz, deu um passo inesperado. Em 10 de fevereiro de
1918, de repente, declarou encerradas as conversações de paz. Disse ele:
Nossos soldados-camponeses têm que retornar ao campo de modo que, na primavera vindoura e em
condições pacíficas, trabalhem a terra que a revolução tomou dos latifundiários e colocou nas mãos do
campesinato. Nossos soldados-operários têm que retornar às fábricas, não para produzir armas de
destruição, mas as ferramentas da criação. Estamos saindo da guerra. Expediremos um decreto para a
desmobilização total de nossos exércitos. Nessas circunstâncias, apresento a seguinte declaração
assinada:

Em nome do Conselho de Comissários do Povo, o governo da República Federativa Russa, por


intermédio deste, leva ao conhecimento dos governos e povos que estão em guerra conosco, bem
como dos países aliados e neutros que, ao declinar a assinatura de um tratado de anexação, a Rússia,
de sua parte, declara que o estado de guerra com a Alemanha, a Áustria-Hungria, a Turquia e a
Bulgária está terminado.
Decreto determinando a total desmobilização para as tropas russas em todo o front é expedido
juntamente com esta declaração.
Brest-Litovsk, em 10 de fevereiro de 1918
Comissário do Povo para Relações Exteriores L. Trotsky
Membros da delegação: V. Karelin, A. Ioffe, M. Pokrovsky, A. Bitsenko
Presidente Medvedev do TsIK de Toda a Ucrânia.50

Três dias mais tarde, numa reunião do Comitê Executivo Central de Toda a
Rússia, Trotsky tentou mostrar que sua decisão de “revolucionar” o movimento
revolucionário no Ocidente e que a palavra de ordem “nem paz nem guerra”
seriam apoiadas até pelas tropas alemãs. Na realidade, o slogan escancarou o
centro da Rússia para o agressor e, em poucos dias, tropas alemãs começaram a
avançar em toda a frente. Depois de um acalorado debate, o Comitê Central
aprovou, por sete votos contra quatro, a aceitação dos termos da Alemanha.
Nas palavras de Chicherin, o sucessor de Trotsky, a Alemanha ofereceu uma
paz predatória “com um revólver apontado para a testa da Rússia
revolucionária”. A Rússia perdeu Polônia, Lituânia, Estônia, Kurland, Kars,
Batum e algumas ilhas bálticas. O partido ainda teve que defender o tratado
perante o VII Congresso de Emergência do Partido e do IVº Congresso
Extraordinário de Sovietes de Toda a Rússia, ambos ocorridos em março com
uma diferença de uma semana.
Stalin permaneceu passivo em relação a este caso, não porque discordasse de
um lado ou do outro, mas por ser a questão complicada demais para ele. Por
exemplo, numa reunião do comitê central, em 23 de fevereiro, quando Lenin
ameaçou renunciar se não concordassem em fazer a paz, Stalin começou a
vacilar, mas sem antes chegar a perguntar se “a renúncia de alguém a um cargo
significa também demissão do partido?”. Lenin respondeu que não.
A confusão que, por vezes, assaltava Stalin ficou particularmente evidente
quando se formulou a ideia de que “a honra da revolução tem precedência
sobre sua morte”. Lomov, por exemplo, declarou: “Não deixem que a renúncia
de Lenin assuste vocês. A revolução é mais preciosa.” Uritsky disse que “essa
paz vergonhosa não salvará o regime soviético”. Em meio a tão diversificadas
opiniões, Stalin adotou uma posição indecisa: “Talvez não tenhamos que
assinar o tratado.” Ao que Lenin replicou: “Stalin está errado quando diz que
não temos que assinar. Precisamos sim assinar os termos. Se não o fizermos,
estaremos assinando a sentença de morte do regime soviético num prazo de três
semanas. O regime soviético não está temeroso de tais termos. Não tenho a
menor hesitação. Não estou dando um ultimato para que o tratado seja
retirado. Não é de uma ‘frase revolucionária’ que estou em busca.”51 Lenin
aparou todos os argumentos contra e, a partir do momento que os submeteu à
sua crítica, Stalin passou a se sentir melhor e alinhou-se com seu líder.
No Congresso do Partido, Lenin conseguiu demonstrar a necessidade vital
de se adotar a dura opção que fizera. Stalin sobrepujou suas dúvidas íntimas e
encontrou forças para seguir Lenin até o fim. Trotsky também ficou firme em
sua própria posição, declarando não considerar nenhuma das duas posturas
decisiva para a sobrevivência do regime.
Malgrado a versão oficial soviética, a opinião de Lenin sobre a posição de
Trotsky não foi de preto ou branco. Pronunciando o discurso de encerramento
sobre o relatório político do Comitê Central, em 8 de março de 1918, ele disse:

Ademais, devo tratar da posição do camarada Trotsky. Dois lados devem ser considerados sobre o que
ele tem feito: quando começou as negociações em Brest e explorou tão brilhantemente a oportunidade
para agitação, todos concordamos com ele. O camarada Trotsky citou parte da conversa que teve
comigo, mas posso adicionar que houve um acordo entre nós de que deveríamos sustentar a posição
até que os alemães dessem seu ultimato, quando então nos renderíamos. As táticas de Trotsky, já que
visavam a retardar as coisas, estavam corretas: tornaram-se incorretas quando o estado de guerra se
declarou encerrado sem que paz alguma fosse assinada.52

Subsequentemente, entretanto, os escritos soviéticos começaram a descrever a


posição de Trotsky como traição. Quanto a Bukharin, seu desacordo foi claro:

O ponto de vista que nos oferece o camarada Lenin é inaceitável para nós. [...] Mas, a mim parece
que, pelo menos, estamos propondo uma saída. Essa saída, que o camarada Lenin rejeita e que nós
consideramos necessária, está numa guerra revolucionária contra o imperialismo alemão.53

Esse romantismo revolucionário da esquerda, contudo, desfez-se no rochedo do


pragmatismo mais sóbrio de Lenin.
[6]
Guerra civil

A pausa para tomar fôlego proporcionada pela paz de Brest-Litovsk foi


curta. A intervenção militar estrangeira, dando esperança de desforra
para a burguesia e para os proprietários de terra, começou logo em
março-abril de 1918. Rebeliões e explosões contrarrevolucionárias foram
provocadas por oficiais brancos. Alastraram-se cossacos e nacionalistas. Já
arrasado por anos de guerra, o país estava de novo tomado das chamas do
conflito. A república não tinha fronteiras, apenas fronts.
A extinção do regime soviético parecia iminente, ainda mais pela impressão
de que se abrira uma temporada de caça aos comissários. Em Petrogrado, o SR
Leonid Kanegisser matou a tiros Moisei Uritsky; em julho, foi assassinado o
comissário dos Fuzileiros da Letônia, Semyon Nakhimson; o comissário para os
Alimentos da república do Turcomenistão, Alexander Pershin, morreu pelas
mãos de insurgentes em Tashkent; em maio de 1918, Fedor Podtelkov e
Mikhail Krivoshlykov, bolcheviques muito conhecidos da região do Don,
foram enforcados pelos cossacos; o tenente-general Alexander Taube, que se
bandeara do exército czarista para os bolcheviques e se tornara comandante do
quartel-general siberiano, caiu prisioneiro dos brancos e foi torturado. Porém,
o golpe mais duro ocorreu em Moscou quando, depois de falar aos
trabalhadores em frente à fábrica de Mikhelson, Lenin levou vários tiros da SR
Fanny Kaplan.
Uma fronteira de sangue dividiu então pelo meio a Rússia, rasgada pela
guerra interna. Em sua ferocidade implacável, a guerra civil russa refletiu o
profundo ódio de classes que rachou a nação em dois campos hostis. Como
regra, não se faziam prisioneiros. Os Russos Brancos matavam a golpes de
baioneta os feridos do Exército Vermelho em macas. A luta era sem quartel. O
tifo arrasava as linhas de frente. Reféns eram levados para fossas e mortos. A
vida não tinha qualquer valor. O apelo de classe era mais forte que a simpatia, a
piedade, a sabedoria ou a razão. O combate não era apenas entre forças
armadas das classes rivais, envolvendo, na verdade, a maior parte da população.
O país encharcou-se do sangue de compatriotas. O maior catalisador da guerra
civil foi a intervenção armada estrangeira. “Foi o imperialismo mundial”,
observou Lenin, “o verdadeiro provocador de nossa guerra civil e o responsável
por sua longa duração”.54 O governo declarou a República Soviética campo de
batalha e criou o Soviete Militar Revolucionário da República (o
Revvoensoviet, Revolutionniy Voennij Sovet), sob a chefia de Trotsky.
Stalin se tornou mais visível durante a guerra civil, ao cumprir as missões do
Comitê Central, crescentemente complexas e com diversificados encargos. Em
meados de março de 1918, quando o laço da fome começou a apertar as
artérias dos centros políticos e industriais da Rússia, a cidade de Tsaritsyn, no
sudeste do país à margem do Volga, assumiu grande importância, mais devido
à situação dos alimentos do que a considerações militares. Em 31 de maio,
Lenin assinou instruções do Sovnarkom, pondo Stalin e A.G. Shlyapnikov na
chefia geral dos alimentos para o sul e investindo-os de poderes especiais.55
Desde seu retorno a Petrogrado, em abril de 1917, Lenin tivera ocasião de
encontrar-se com Stalin por diversas vezes e já o considerava um executor
confiável. O georgiano taciturno raramente fazia perguntas ou levantava
dúvidas em público sobre as decisões do Comitê Central, desempenhava
qualquer tarefa e, de modo geral, demonstrava satisfação com o papel que lhe
cabia. Com a mesma calma, recebeu sua comissão para Tsaritsyn. Antes da
partida, foi informado de que Lenin, em adição à ordem do Sovnarkom,
instruíra A.N. Aralov, um membro responsável da equipe do comissariado da
Guerra, para selecionar um destacamento de quatrocentos homens, entre os
quais cem Fuzileiros da Letônia, a fim de seguir com Stalin.56
Tsaritsyn estava firmemente cercada pelos cossacos, e Stalin, mal chegou,
teve que tomar decisões militares. Juntou-se ao soviete militar regional, que
logo conseguiu reunir unidades Vermelhas dispersas, promoveu a mobilização e
organizou novas divisões e destacamentos especiais, bem como uma coluna de
trens blindados e alguns trabalhadores auxiliares. Por requisição de Stalin,
Lenin enviou um telegrama urgente para as autoridades locais encarregadas do
transporte fluvial, ordenando-lhes que seguissem, sem discutir, as instruções e
ordens expedidas pelo plenipotenciário especial do Sovnarkom – I.V. Stalin.57
A situação em Tsaritsyn passou a proporcionar maior segurança quando
unidades do antigo V Exército foram transferidas do Donbass* para lá, sob o
É
comando de Voroshilov. É interessante assinalar que Stalin não transmitia seus
relatórios via Trotsky, o comandante em chefe e presidente do Revvoensoviet, a
quem estava operacionalmente subordinado, mas o desbordava para chegar a
Lenin, mesmo nas questões mais triviais. Na maioria dos telegramas de Stalin
caracteristicamente faltam quadro geral e avaliações e prognósticos políticos;
são mensagens pragmáticas. Em consequência das medidas tomadas pelo
centro e pelo soviete militar, Tsaritsyn ficou pronta para suportar um sítio
prolongado. O assalto dos Brancos, sob o comando do general Denikin,
fracassou, embora recebesse o apoio do ex-oficial czarista coronel Nosovich,
que agira como especialista militar para o regime soviético, mas que, naquela
ocasião, mudara de novo de lado, tornando-se um traidor. Tsaritsyn, como
outros locais em que Stalin serviu durante a guerra civil, não só se transformou
em nome lendário como, de fato, adquiriu um significado mitológico na
história soviética.
Stalin mostrou tendências ditatoriais em momentos críticos. Numa nota
para o centro, escreveu: “Persigo quem merece, blasfemo contra eles, e espero
restaurar em breve a situação. Fiquem certos de que não pouparei ninguém,
nem a mim mesmo nem aos outros, mas todos terão comida. Se nossos
‘especialistas’ (uns remendões!) militares não estivessem dormindo ociosos, a
linha jamais teria sido rompida, e o fato de que ela está restabelecida não foi
por mérito deles, mas a despeito deles.”58 A traição de Nosovich e de diversos
outros ex-oficiais czaristas reforçou a suspeita de Stalin contra os especialistas
militares, suspeita essa que ele não fazia questão de esconder. Stalin prendeu
grande número deles e os encarcerou numa balsa especialmente adaptada, na
qual muitos foram fuzilados. Ele teve seguidores. Isso fez com que Lenin,
quando discursou no VIII Congresso do partido, condenasse a guerra de
guerrilha e declarasse, inequivocamente, que “um exército regular é nossa
prioridade principal, temos que constituir um exército regular com especialistas
militares”.59 Stalin não protestou publicamente contra esse ponto de vista,
porém, até mesmo no final dos anos 1930, a condição de ex-integrante do
corpo czarista de oficiais era fator agravante para os comandantes do Exército
Vermelho.
Constituído por Stalin, pelo presidente do soviete de Tsaritsyn, S.K. Minin,
e pelo comandante do front, P.P. Sytin, o Revvoensoviet da frente sul não
operou numa atmosfera amigável. Stalin era de opinião que todas as decisões
deveriam ser tomadas coletivamente, enquanto Sytin, como comandante que
aplica lógica militar, procurava evitar os intermináveis “entendimentos” e
“esclarecimentos” que acompanhavam o processo de tomada de decisões. Stalin
informou Moscou que Sytin não era confiável. Sytin respondeu com um
relatório escrito ao Revvoensoviet da República no qual asseverou que Minin,
Stalin e Voroshilov estavam emperrando sua ação como comandante do front
ao demandarem a aprovação do soviete militar para as questões mais
corriqueiras, e que isso complicava em demasia os procedimentos
operacionais.60 Stalin venceu a disputa e Sytin foi chamado de volta no início
de novembro de 1918.
Os especialistas militares – ex-oficiais do czar – sob o comando de Stalin
ficaram sujeitos a constantes monitorações e avaliações. Stalin sabia que
Trotsky estava ao lado deles, e os dois já tinham tido uma série de rixas
telegráficas, dando assim base para sua profunda e mútua antipatia, que se
transformou em hostilidade e, depois, em ódio.
Stalin não se preocupou em visitar trincheiras, enfermarias, pontos de
reunião ou postos de observação. Ficava sempre no posto de comando,
despachando incontáveis telegramas, convocando comissários e comandantes,
exigindo relatórios e sumários, distribuindo ameaças de cortes marciais e
mandando gente de volta para “serem observadas de perto”. Com frequência,
chegava à sanção extrema, dando ordens para que sabotadores ou militares
suspeitos – que, a seu ver, solapavam a causa – fossem mortos. No seu discurso
para o VIII Congresso do partido, Lenin fez uma referência direta às execuções
de Stalin em Tsaritsyn e ao desacordo que tinham nesse assunto.61 A guerra
civil, no entanto, era de fato sangrenta, e Stalin mostrava-se, então, mais
confiante do que estivera em 1917. Como Carrier, o comissário da Convenção
descrito por Jules Michelet na sua história da Revolução Francesa, Stalin
encarava como naturais as explosões desenfreadas de paixões e violência
selvagem em nome da consecução de fins. Ele já acreditava no grande efeito da
violência e no seu emprego justificado contra os inimigos.
Seu estilo era inquietante para muitos comandantes perspicazes que já então
sentiam que aquele homem tinha pulso de ferro, que era difícil empurrá-lo a
tomar uma decisão espontânea ou exercer influência sobre seus planos. Por
exemplo, em 19 de maio de 1919, Antonov-Ovseyenko queixou-se ao Comitê
Central contra uma atitude injusta tomada contra ele como comandante do
exército ucraniano. Ressaltando o frágil apoio dado a ele pelo centro, escreveu
que “Lev** Davidovich [Trotsky] entende isso” e “tão logo o camarada Stalin
começou a falar grosso, os camaradas ucranianos pararam com as intrigas e se
voltaram para suas atribuições”. Isso confirma, indiretamente, que Stalin, com
efeito, teve influência sobre o curso dos eventos no front.
Faltando-lhe conhecimento operacional e tático, Stalin confiou
principalmente na disciplina, no dever do proletariado, na consciência
revolucionária e nas frequentes ameaças de “castigo revolucionário”. Depois de
Tsaritsyn, ele se tornou mais autoconfiante entre os outros membros do
Comitê Central e do Sovnarkom. Já então, era bem mais conhecido pelos
líderes do partido e comandantes. Por certo, não revelou especiais talentos
militares ao executar as instruções de Lenin no front. Seus relatórios não
contêm avaliação da situação operacional, nem discussão sobre o
desdobramento das forças, ou ideias originais quaisquer. Suas ordens
operacionais eram extremamente simples, para não dizer primitivas. Por
exemplo, em outubro de 1919, Ordzhonikidze, que estava no XIV Exército do
Revvoensoviet, reportou que o Exército se preparava para retomar a cidade de
Kromy e precisava de reforços. Stalin replicou:

O objetivo de nossa última ordem era dar-lhe a oportunidade de reorganizar esses regimentos num só
grupo para destruir os melhores regimentos de Denikin. Repito, para destruir, porque estamos falando
de destruição. A captura de Kromy pelo inimigo não passa de um episódio que pode ser corrigido, ao
passo que nossa missão principal não é empregar os regimentos como unidades individuais de assalto,
mas investir sobre o inimigo como um grupo maciço e numa direção única e definida.62

Embora o que predominasse fosse o tom ameaçador em suas ordens, suas


habilitações como líder militar é que foram louvadas em prosa e verso nos
livros e nas dissertações doutorais dos anos 1930 e seguintes. Voroshilov, por
exemplo, escreveu sobre ele como “o maior chefe militar de todos os tempos”.
Mas Stalin não foi chefe militar e sim o representante político do centro e
membro de diversos sovietes revolucionários militares. Muitos outros membros
do Comitê Central contribuíram tanto quanto ele para a vitória na guerra civil.
O envolvimento pessoal de Stalin na guerra civil foi marcado não só por
seus deveres de dois comissariados – das Nacionalidades e do Controle do
Estado –, mas também no campo político, de propaganda e, digamos, militar.
Lenin frequentemente o fazia emissário do Comitê Central para uma inspeção,
uma verificação, ou para obter informações exatas. Assim, em junho de 1918,
Lenin telegrafou a Stalin dizendo que as ordens do governo concernentes ao
afundamento de navios da Esquadra do mar Negro eram para cumprimento à
risca sob pena de os responsáveis serem proscritos. Stalin foi aconselhado a
enviar alguém a Novorossiisk para cumprir a missão.63 Falando, mais tarde
naquele mês, numa conferência de sindicatos e comitês de fábricas, Lenin, em
resposta a uma pergunta sobre o destino da Esquadra do mar Negro, anunciou:
“Os comissários do povo Stalin e Shlyapnikov logo retornarão a Moscou e vos
dirão o que aconteceu.”64
Quando Lenin instruiu Stalin, que ia para o front, viu nele não só um
membro do Comitê Central, mas também o representante de um país
multinacional cuja sorte dependia da união da Rússia com as outras repúblicas.
Preparando seu decreto para o Politburo sobre a defesa do Azerbaijão, por
exemplo, Lenin expediu instruções a Stalin “para arrebanhar o maior número
possível de muçulmanos comunistas de todas as regiões para trabalharem no
Azerbaijão”.65
Stalin teve papel de líder político nas fases da guerra civil. Quando da
primeira tentativa de liquidar o regime soviético, por ocasião da rebelião do
general Krasnov, no inverno de 1917, Stalin participou da organização da
defesa de Petrogrado e da mobilização das forças, juntamente com
Dzerzhinsky, Ordzhonikidze, Podvoisky, Sverdlov e Uritsky. Ajudou a preparar
as guarnições para o combate, a construir linhas de defesa e a criar unidades da
Guarda Vermelha nas fábricas.
Mesmo naqueles estágios iniciais, muita gente se convenceu de sua energia e
inflexibilidade, quando ele emitia ordens e dava instruções num tom de voz
que não convidava a objeção. Ao mesmo tempo, os membros do partido
notaram sua natureza vingativa e rancorosa. Em dezembro de 1918, Stalin e
Voroshilov acusaram A.I. Okulov, um membro do front sul do Revvoensoviet,
de desorganização. Por insistência de Stalin, Lenin passou a seguinte resolução:
“Em vista das péssimas relações existentes entre Voroshilov e Okulov,
consideramos essencial a substituição de Okulov.”66 Depois de concordar com
Stalin, Lenin disse em seu discurso para o VIII Congresso, em defesa de
Okulov: “O camarada Voroshilov disse coisas tão terríveis que era de pensar
que Okulov havia destruído o Exército. Isso é uma monstruosidade. Okulov
seguia a linha do partido e informou-nos que a guerra de guerrilha ainda era
empregada.”67 Stalin bateu de frente de novo com Okulov em junho de 1919,
dessa vez quando este exigiu que o distrito militar de Petrogrado ficasse sob o
comando do front ocidental. Stalin, que então era do Comitê Central e
representante do Conselho de Defesa em Petrogrado, fez tamanha insistência
que obrigou Lenin a enviar um telegrama ordenando que Okulov fosse
mandado de volta “para evitar que o conflito crescesse”.68 Stalin lembrar-se-ia
de Okulov no final dos anos 1930.
Lenin, provavelmente, começou a utilizar Stalin a partir do momento em
que a revolta de Dukhonin foi esmagada. Em 9 de novembro de 1917, tendo
ao lado Stalin e Krylenko, Lenin se dirigiu diretamente ao QG de Dukhonin.
Comandante supremo do Exército russo imediatamente após o colapso do
governo de Kerensky, e monarquista por convicção, Dukhonin não deu
confiança às ordens do governo soviético. Depois de uma áspera troca de
palavras, Lenin deu um comando conciso: Dukhonin deveria deixar o cargo de
comandante em chefe e ser substituído pelo segundo tenente-alferes N.V.
Krylenko, como comissário da Guerra. No dia seguinte, o novo comandante
em chefe marchou para o quartel-general acompanhado por uma unidade com
quinhentos combatentes. A despeito dos esforços de Krylenko e de outros,
Dukhonin foi linchado.
Lenin e o Revvoensoviet também usaram Stalin para identificar as causas
das várias derrotas e catástrofes no front. Isso era necessário não apenas pelos
vários aspectos da desorganização típicos da atividade de tropa, como também,
ocasionalmente, pela traição manifesta de monarquistas e Guardas Brancos
fingindo-se de companheiros de viagem. Quando o III Exército sofreu uma
grande derrota na região de Perm, em dezembro de 1918, criando assim a
oportunidade para que o almirante branco Kolchak unisse suas forças do norte
com as unidades inglesas, francesas e americanas que ocupavam significativo
território em Murmansk e Archangel, o Comitê Central enviou uma comissão
especial a Vyatka, sob a chefia de Stalin e Dzerzhinsky, encarregada da missão
de descobrir as causas da derrota e de tomar as medidas necessárias para corrigir
a situação.
Os emissários agiram com determinação e rapidez. Um grupo identificado
como responsável pela derrota foi entregue a um tribunal militar.
Comandantes e comissários fracos foram removidos das funções. Ênfase passou
a ser dada ao trabalho político no Exército Vermelho, ao fortalecimento da
disciplina e à melhora dos suprimentos. Sempre desconfiado dos técnicos
militares, e armado com fatos reais de traição por parte de diversos ex-oficiais
czaristas, Stalin agiu com particular dureza e sem piedade.
Como resultado das providências tomadas, o III Exército, juntamente com
o II, foi capaz de restabelecer a situação com um contra-ataque em janeiro.
Stalin escreveu no relatório para o centro que “a capacidade combatente da
tropa foi restaurada. Um expurgo sério nas instituições soviéticas e partidárias
está sendo procedido na retaguarda. Comitês revolucionários foram
estabelecidos em Vyatka e cidades do distrito. As comissões extraordinárias
provinciais [Chekas] foram depuradas e recompletadas com novo pessoal”.
As avaliações de Stalin, como sempre, foram categóricas. Por exemplo, o
Revvoensoviet do III Exército “consiste em dois membros, um dos quais
(Lashevich) comanda, enquanto o outro (Trifonov), não se sabe bem o que faz
– não provê suprimentos ou educação política do exército e, em geral, não faz
coisa alguma. Na verdade, o III Exército não tem Revvoensoviet”.69
Sem citar Trotsky, o relatório de Stalin fala de “líderes fracos” no
Revvoensoviet da República, cujo trabalho é apenas expedir “ordens genéricas”.
Os exageros de Stalin, contudo, provocaram medidas corretivas. Por ordem
sua, muitos funcionários caíram num tribunal militar. Em 5 de fevereiro, o
Comitê Central, revendo os relatórios dos plenipotenciários, determinou:
“Todos os presos pela comissão Stalin-Dzerzhinsky no III Exército ficarão à
disposição das instituições apropriadas.” Stalin veio a conhecer melhor
Dzerzhinsky naquela viagem e este último, aparentemente, passou a respeitar
bastante sua meticulosidade e sua determinação.
Com o tempo, ele veio a revelar essa determinação até em suas
comunicações com o centro. Numa carta para Lenin, de 3 de junho de 1920,
exigiu uma solução imediata para o front da Crimeia: “Ou estabelecemos um
armistício verdadeiro com Wrangel e, ao fazê-lo, temos a oportunidade para
retirar uma ou duas divisões daquele front”, escreveu ele, “ou rejeitamos
qualquer negociação com Wrangel, não esperamos que ele se estabeleça
defensivamente e o atacamos agora para que, resolvido o problema, liberemos
forças para o front polonês. A situação atual, que não nos dá respostas claras na
Crimeia, está se tornando intolerável”.70 Lenin escreveu imediatamente para
Trotsky:

É, obviamente, utópico. Não nos custará muitas vidas? Estaremos matando uma multidão de nossos
soldados. Isso precisa ser treinado e testado dez vezes. Sugiro a seguinte resposta: Sua proposta para
uma ofensiva na Crimeia é tão séria que temos que fazer um balanço e pensar seriamente sobre ela.
Aguarde nossa resposta. Assinado Lenin e Trotsky.71

Trotsky replicou dizendo que, ao se dirigir diretamente a Lenin, Stalin


quebrara a ordem das coisas: o comandante do front sudoeste, A.I. Yegorov,
deveria ter feito o relatório. Lenin fez uma anotação: “É provável que isso tenha
sido feito por malícia. Mas o assunto tem que ser discutido urgentemente. Que
medidas extraordinárias são necessárias?”72
Malgrado o esforço de Lenin para aparar as arestas entre Trotsky e Stalin,
eles continuaram frios e desconfiados um com o outro. Ao futuro secretário-
geral contrariava observar a crescente popularidade de Trotsky, que considerava
imerecida. Nas raras visitas que fazia a Moscou, o pessoal do Revvoensoviet da
República mostrava a Stalin diversos telegramas de conteúdo semelhante. Por
exemplo:

Ao presidente Trotsky do Revvoensoviet


No primeiro aniversário da Revolução de Outubro [...] os cidadãos de Kochetovka, distrito de
Zosimov, província de Tambov, resolveram mudar o nome da vila em sua homenagem, chamando-a
de Trotskoe. Pedimos sua permissão para chamar nossa vila com o nome que nos é tão querido como
líder e inspirador do Exército Vermelho. Presidente do soviete S. Nechaev

Aliás, as primeiras cidades soviéticas a trocar de nome (hoje Gatchina e


Chapaevsk) foram chamadas Trotsk.
A correspondência de guerra entre Lenin e Stalin tem muitos exemplos de
irritação: em fevereiro de 1920, Lenin determinou ajuda para o front
caucasiano e Stalin respondeu: “Não sei por que devo fazê-lo. Isso é da
responsabilidade do Revvoensoviet da República, cujos membros, até onde sei,
são perfeitamente capazes, e não de Stalin, sobrecarregado de trabalho.”73 Lenin
disse-lhe para cumprir a missão e “parar de intrigar a respeito de
responsabilidades departamentais”.74
Todavia, sugestões maldosas de Stalin continuaram detectadas em seus
relatórios. Em 4 de agosto, Lenin pediu-lhe um relato da situação no sul e uma
apreciação geral.75 Stalin desalentou-se. De um lado, não queria
responsabilidade pelas “decisões políticas mais importantes”, mas tampouco
tinha capacidade para fazer prognósticos. Replicou então: “Realmente não sei
por que você precisa de minha opinião e, além do mais, não estou em
condições de descobrir o que você me pediu, portanto, vou me limitar
simplesmente ao relato, sem quaisquer comentários.”76 Ele era um autêntico
executor das ordens do centro, mas quando algo mais lhe era solicitado, sua
sensibilidade a ofensas e mal-entendidos aflorava e se mesclava com a
provocação de maldade que Lenin identificara.
Da mesma forma que os diversos fronts nos quais, como diversos outros
proeminentes bolcheviques, Stalin serviu durante a guerra civil, o distrito de
Petrogrado enfrentou uma situação grave na primavera de 1919. O general
branco Yudenich e forças aliadas de intervenção planejavam tomar a capital-
símbolo da revolução. O VII Exército e a Esquadra do Báltico foram
encarregados da defesa da cidade. Forças inimigas superiores se aproximavam
da Vermelha Selo (antes, Tsarskoye Selo) e de Gatchina. O comando do
Exército Vermelho começou a transferir unidades fortes de outras frentes para
Petrogrado. Sendo plenipotenciário, Stalin estava constantemente ou no soviete
de Petrogrado ou no QG da defesa. Como sempre, seus métodos eram
ditatoriais, quer estivesse substituindo pessoal incompetente, quer prendendo
quem considerava responsável pela situação, quer na organização dos
suprimentos, quer “sacudindo” a liderança local. Foi descoberta uma
conspiração no quartel-general do front ocidental e do VII Exército. Os
conspiradores foram, naturalmente, fuzilados. A lei dos bandos foi dando lugar,
gradualmente, a uma disciplina eficiente e à determinação revolucionária.
Entre os organizadores da defesa de Petrogrado estavam Remezov,
Tomashevich, Pozern, Shatov, Peters e Stalin, ao qual, como a Trotsky, foi
outorgada a Ordem da Bandeira Vermelha em reconhecimento aos serviços
prestados.
Relatos anteriores sempre afirmavam que, aonde Stalin fosse enviado, a
situação melhorava, mas isso estava longe da verdade. Ademais, Stalin sempre
seguia com um grupo, e sua principal atuação era como cumpridor das ordens
do centro e de Lenin. No campo militar, seus serviços foram mesmo muito
modestos. Porém, já em 1918, seus camaradas no centro sabiam que ele não
era simplesmente um executor dedicado, mas também um especialista em
medidas “extraordinárias”, ou seja, punitivas. E sabiam também que ele estava
começando a demonstrar sinais de autocongratulação. Num cabograma para o
centro, Stalin reportou a destruição de dois fortes defendidos pelos brancos,
acrescentando que “os especialistas da marinha estão dizendo que [as ações]
contrariaram toda a ciência naval. Só posso deplorar essa chamada ciência.
Considero meu dever declarar que devo, daqui por diante, agir como venho
operando, malgrado minha reverência pela ciência”.77
Quando Stalin retornou de uma de suas viagens rotineiras, recebeu uma
missão, no aparato do Comitê Central, de dirigir o dia a dia. Diversos
telegramas partidos dos fronts mostram que ele já fora alçado a um nível de
poder real. Por exemplo, em 15 de novembro de 1921, Trotsky enviou-lhe o
seguinte cabograma: “Temos que resolver, com firmeza e de uma vez por todas,
o problema das brigadas nacionais transcaucasianas e dos depósitos militares”, e
prosseguiu indagando como conseguir a aprovação de três decisões do
Politburo a esse respeito. É um dos raros telegramas de Trotsky para Stalin.
Cada um se esforçava ao máximo para não tomar conhecimento do outro. A
aversão mútua surgira à primeira vista e, no íntimo, Stalin continuava a
considerar Trotsky um menchevique. Não gostava da autoconfiança de Trotsky,
de sua eloquência e autoridade, de sua capacidade de manter-se em evidência.
Não apreciava a maneira pela qual Trotsky, como presidente do Revvoensoviet
da República, andava pelos fronts num trem especial, acompanhado por um
vagão blindado, às vezes dois, com um enorme destacamento de jovens
militares do Exército Vermelho envergando túnicas de couro. Stalin se sentia
provocado pelo conforto de que Trotsky se cercava, e tanto invejava como
desprezava o eloquente comissário, com sua fanfarronice e popularidade. Por
outro lado, não condenou Trotsky quando este declarou, mais tarde e
publicamente: “Não se pode criar um exército sem repressão. Não se pode
conduzir as massas para o combate mortal a menos que se tenha a pena de
morte no arsenal de comando.”78 Secretamente, Stalin concordava com essa
linha de raciocínio, e ele próprio recorreu a tais medidas em situações críticas –
e não foi o único a fazê-lo. Em 12 de maio de 1920, Berzin, um membro do
Revvoensoviet no front sudoeste, reportou que unidades do XIV Exército
desertaram no front polonês e que “foi dada ordem para fuzilamento de um
entre cada dez homens que haviam desertado”.79
A guerra civil foi rude para com seus inimigos, mas o foi também para seus
próprios. Nosovich, o ex-chefe do distrito militar caucasiano do norte, já citado
por ter se bandeado para os brancos, relembrou que Stalin não hesitava quando
seguro de que confrontava um inimigo. Assim, em Tsaritsyn, um engenheiro
chamado Alexeyev, seus dois filhos e uma boa quantidade de ex-oficiais
czaristas foram acusados de pertencer a uma organização contrarrevolucionária.
A decisão de Stalin foi sucinta: “Fuzilamento.” As pessoas eram sumariamente
executadas sem qualquer julgamento. Stalin reputava lógico tal procedimento,
uma vez que acreditava piamente na “universalidade” e implacabilidade das
ações punitivas que concorressem para a consecução do “resultado” político
adequado.
Numa reunião do Comitê Central de 25 de outubro de 1918, foi debatida,
entre outros assuntos, uma carta de Stalin relatando sabotagem nos
suprimentos do X Exército. Ele pedia, insistentemente, que o comandante do
front e membros do soviete militar fossem julgados por tribunal militar.
Todavia, o Comitê Central, sob a presidência de Sverdlov, decidiu “não julgar
ninguém, mas instaurar uma sindicância”. As solicitações de Stalin foram
rejeitadas.
Noutra ocasião, Stalin, então membro do Revvoensoviet do front sul,
discordou de Smilga, outro dos membros, a respeito da direção do ataque
principal sobre as forças de Denikin. Para Stalin, não bastava a correção de seu
argumento, era preciso humilhar o oponente. Em vez de debater calmamente
os prós e contras com seus camaradas, os quais, afinal de contas, eram todos
membros da mesma organização, ele se aferrava à posição com uma atitude que
beirava a hostilidade ácida. Três anos mais tarde, numa de suas últimas notas,
Lenin comentou sobre o amargor de Stalin quando lidava com questões
importantes. E “a amargura generalizada”, frisou, “normalmente desempenha o
pior papel na política”.80 Quando Stalin enfrentava um desacordo ou uma
argumentação desfavorável, apelava para a autoridade do centro, referia-se às
ordens de Moscou e expressava dúvidas quanto à confiabilidade política do
oponente. Na verdade, todos que entraram em conflito com ele durante a
guerra civil iriam pagar alto preço duas décadas depois. Stalin tinha uma
memória odiosa.
Como membro do Revvoensoviet do front sul por um tempo relativamente
longo, Stalin logo estabeleceu uma linguagem comum com seu comandante
A.I. Yegorov, futuro marechal da União Soviética. Chefe militar poderoso,
Yegorov seria alvo da repressão, com o conhecimento de Stalin, durante o
expurgo sangrento de 1937. Stalin não respondeu à carta de Yegorov na qual o
militar pedia clemência, a despeito de ser lembrado que, durante a guerra civil,
“os dois, mais de uma vez, comeram na mesma bandeja do rancho”. Ainda
assim, houve um episódio no qual Stalin intercedeu em favor de Yegorov, se
bem que de forma estranha. Uma proposta de Trotsky para a destituição de
Yegorov do cargo de comandante do front debatia-se em Moscou, e foi pedida
a opinião de Stalin. Em 4 de junho de 1920, ele enviou um cabograma a
Trotsky:

Faço veemente objeção à substituição de Yegorov por Uborevich, o qual não está pronto para tal
função, ou por Kork, que não tem condições para ser comandante de front. Foram Yegorov e o
comandante em chefe [S.S. Kamenev] que deixaram a Crimeia escapar por entre nossos dedos, porque
o comandante em chefe estava em Kharkov havia duas semanas antes do avanço de Wrangel e partiu
para Moscou sem entender que o exército [de Wrangel] estava desintegrado. Não acho que tenhamos,
no momento, alguém melhor que Yegorov. Seria melhor, então, substituir o comandante em chefe,
que flutua entre o extremo otimismo e o maior pessimismo, atrapalha todo mundo e confunde o
comandante do front, não tendo nada de positivo a oferecer.81
Stalin, provavelmente, defendeu Yegorov porque a ideia de sua substituição
partira de Trotsky. Quanto aos que “deixaram escapar a Crimeia por entre
nossos dedos”, Stalin fora um deles. Já em 1920, podia-se ver Stalin declarando
peremptoriamente que o comandante em chefe S.S. Kamenev “atrapalha todo
mundo”. O atributo vital de Stalin vinha sendo, por muito tempo, sua
capacidade de infligir dano moral. E, à proporção que sua posição se firmava,
tal qualidade se tornava mais perigosa e má.
Depois do sucesso inicial contra a Polônia, o Exército Vermelho teve uma
séria derrota em 1920 e, quase vinte anos depois, Stalin iria culpar Yegorov,
Tukhachevsky e outros líderes militares pelo “retardo criminoso decorrente de
seus esquemas traiçoeiros”. Jamais passaria por sua cabeça que, como membro
do soviete militar, ele era também responsável pelos sucessos e fracassos das
forças no front.
Em 2 de agosto de 1920, o Politburo decidiu separar uma parte do front
sudoeste e criar um front sul independente. O soviete militar do front tabelou
uma proposta de transferência dos XII e XIV Exércitos e do 1º Corpo de
Cavalaria para o front ocidental. Houve incapacidade de concluir tal operação
com rapidez. Em 13 de agosto, Stalin e Yegorov reportaram para Kamenev, o
comandante em chefe, que as forças do front já estavam por demais distendidas
e que a alteração nas missões básicas dos exércitos seria impossível naquelas
circunstâncias.82
Quando Kamenev deu nova diretriz para o comando do front sudoeste
referente à transferência dos XII e XIV Exércitos e do 1º Corpo de Cavalaria, a
ordem foi assinada por R.I. Berzin, pois Stalin se recusou a fazê-lo. Tempo
precioso se perdera com discussões e negociações. A retirada de forças para
Lvov só começou em 20 de agosto, e a chegada dessas forças foi muito tardia
para resultar em qualquer ajuda. É claro que a responsabilidade por tal erro
estratégico foi do Revvoensoviet da República e do comandante em chefe do
front. No entanto, afinal de contas, Stalin concordara, em 5 de agosto, com a
ideia da transferência dos três grandes comandos para o front ocidental, mas
depois emperrara tudo, com sérias consequências. Stalin não fez esforço
especial para que sua própria proposta fosse implementada, mesmo tendo sido
ratificada por Moscou. Ele foi tão culpado por esse importante fracasso quanto
Trotsky, Tukhachevsky, Yegorov e outros. Contudo, é evidente que Stalin
jamais sonharia em admitir sua própria omissão. Já começava a desenvolver
instintos de infalibilidade.
Ao analisar o resultado do erro, Lenin disse que “quando nos aproximamos
de Varsóvia, nossas tropas estavam tão exaustas que não tinham forças para
levar adiante sua vitória, enquanto as tropas polonesas, encorajadas como
estavam pelo levante patriótico em Varsóvia e vendo-se em seu próprio país,
encontraram apoio e renovada oportunidade para progredir. Ocorreu que a
guerra nos deu a chance de chegar quase à devastação completa da Polônia,
mas, no momento decisivo, carecemos de força”.83 Da maior significação é o
fato de os historiadores militares subsequentes procurarem realçar a
contribuição “especial” de Stalin para as iniciativas vitoriosas nos fronts sul,
leste e noroeste, sem jamais mencionarem seu papel na campanha da Polônia,
porque não teriam nada de bom a dizer.
Deixando-se de lado as coisas terríveis e imperdoáveis que ele iria fazer no
futuro, e supondo-se que Stalin não nasceu um patife, pode-se afirmar que ele
deu algumas contribuições para a guerra civil. Mas foram contribuições de um
emissário cumpridor de ordens. Não trouxe nenhum “marco decisivo” dos que,
mais tarde, lhe foram atribuídos. Ao mesmo tempo, deve-se lembrar que Stalin,
desde os primeiros estágios da revolução, foi membro dos mais altos órgãos do
partido: primeiro, no Comitê Central e, depois, no Politburo e no Orgburo.
Gradualmente, em especial quando a guerra civil chegava ao fim, a posição de
Stalin foi se tornando mais forte e ele se transformou numa das figuras-chave
do núcleo governante do partido.
O exame das atividades de Stalin durante esse período mostra que ele ficava
atrás de muitos outros líderes partidários. Como teórico, não passava de
superficial, e não tinha os dons da oratória, uma consideração importante num
tempo de convulsões revolucionárias históricas. Ninguém poderia dizer que
fosse homem “compreensivo” e “bom”. Manifestamente, faltavam-lhe as
qualidades morais que, de um modo geral, são associadas à virtude. No
entanto, possuía alguma coisa que seus correspondentes não revelavam, a saber,
um alto grau de firmeza de propósitos e a capacidade de perseguir
obsessivamente uma ideia concreta. Tais qualidades impressionaram as pessoas
que com ele operaram nas numerosas tarefas para as quais foi designado. Com
certeza, a formação de Stalin como líder deveu-se, em grande parte, aos anos de
guerra civil. Revelou faro pelo poder, entendia como ele funcionava, tanto no
centro como nas localidades, e se convenceu de que a aplicação de pressão nos
momentos críticos podia levar ao resultado desejado.
Muitos dos líderes do partido eram membros da intelligentsia, ou, como
Stalin realçou sarcasticamente em certa ocasião, no final dos anos 1920, eram
“escritores”. Nunca falou um pouco mais sobre esse tópico, principalmente
porque Lenin também era um “intelectual”, “escritor” e emigré. Mas o intelecto
de Lenin era tal que Stalin, tendo lançado o conceito de “segundo líder” que
estava “sempre junto a Lenin”, jamais expressou uma única observação crítica
sobre seu próprio mestre. Quando, entretanto, Lenin o criticava – sobre as
nacionalidades, o monopólio comercial do estrangeiro, os assuntos militares e
outras questões – Stalin, normalmente, em silêncio, concordava com ele. O
poder psicológico de Lenin sobre Stalin era claro.
O delgado stratum intelectual constituído pela “velha guarda de Lenin”
fracassou no momento crítico e permitiu que um homem com propensões
ditatoriais e cesaristas usurpasse o poder no partido e no Estado. Todos se
consideravam leninistas, porém foram incapazes de cumprir o testamento do
líder da revolução. Como e por que isso aconteceu? Por que não se buscou
outra alternativa? Essa pergunta desafiará os estudiosos da história soviética por
muito tempo ainda. O passado não é um teatro de sombras. O que lá impera
não é o efêmero e sim o irreversível.
Notas

* A bacia do Donetz. [N.T.]


** Forma russa de Leon mais o patronímico de Trotsky. Seu nome original era Leib Davidovich
Bronshtein.
PARTE II
O aviso do líder

A coragem mais rara é a coragem de pensar.


Anatole France
[7]
Camaradas em armas

L enin raramente se queixava da saúde e, enquanto ele esteve em forma,


jamais se discutiram nomes de possíveis sucessores. Contudo, tão logo
os primeiros sinais de desgaste e doença começaram a surgir, no final de
1921, começaram especulações sobre os camaradas mais próximos do líder.
Depois da morte de Lenin, seus médicos afirmaram no atestado que o mal
surgira nos últimos meses de 1921, mas é provável que já viesse aumentando
lentamente por algum tempo. Em março de 1922, os doutores não
conseguiram detectar qualquer desordem orgânica, no entanto, em vista das
constantes fortes dores de cabeça e da visível exaustão, ele foi aconselhado a
descansar por alguns meses e mudou-se para Gorky. No início de maio,
todavia, apareceram os incipientes sintomas de problema cerebral. O primeiro
ataque manifestou-se em prostração geral, perda da fala e grande redução no
movimento do braço e da perna do lado direito. Em julho, houve melhora
substancial, e o progresso foi tão grande em agosto e setembro que ele voltou a
trabalhar em outubro, embora em ritmo bem mais lento. Em novembro, fez
três discursos longos e programáticos.1
Com 51 anos de idade quando foi acometido pela doença, pelos padrões de
hoje, era um homem ainda novo, mas desde o retorno a Petrogrado, em 1917,
praticamente não descansara. Trabalhava de 14 a 16 horas por dia. Segundo
seus secretários, na doença, Lenin comentou que apenas duas vezes tivera um
intervalo, a primeira em Razliv, quando se escondia do Governo Provisório, e a
segunda por cortesia de Fanny Kaplan, que atirou nele.
No final de 1921, ao conscientizar-se da doença iminente, Lenin viu que,
ao sair de cena, poderia haver um racha na liderança do partido. Talvez lhe
tenha então passado pela cabeça a ideia de um “testamento” político. Em
novembro de 1922, como que prevendo outro derrame, devolveu os livros
lidos ao bibliotecário, Sh.M. Manucharyants, com o pedido especial para ficar
com Testamento político (de Cartas não publicadas) de Engels. Escreveu na capa:
“Deixar na estante. 30.11.1922. Lenin.”2
Menos de um mês mais tarde, na noite de 26 de dezembro, ainda não
refeito de um derrame sério, Lenin ditou para L.A. Fotieva a terceira parte de
sua “Carta ao Congresso”. Esta carta mostra que, mesmo sobrecarregado com
os problemas de então, Lenin se preocupava muito com o futuro e com o que
aconteceria quando faltasse. Ele era o líder por ter personificado o partido
bolchevique antes, durante e depois da revolução, mas não tinha status oficial.
Quem eram as pessoas próximas a ele? Como chegaram à crista da revolução?
Que conseguiram na vida? Como Stalin aparecia na galáxia dos camaradas de
Lenin?

É sempre difícil passar da guerra à paz, porém, nas condições da Rússia depois
da guerra civil, não se tratava de uma simples questão de ir da guerra para a
paz. Anarquia, devastação, fome – faltam palavras para descrever o grau de
sobressalto, deformação e esfacelamento da sociedade russa no início dos anos
1920. A Rússia era uma vasta ilha revolucionária num mar de estados hostis. O
país vivia uma convulsão, pois províncias e distritos se rebelavam abertamente
ou em resistência passiva à nova ordem. A revolução vencera, sobrevivera e
consolidara o poder dos sovietes, mas o novo regime quase nada podia fazer
pelos trabalhadores e camponeses. A política econômica do governo durante os
primeiros três anos – o chamado Comunismo de Guerra – significou a
nacionalização da indústria e do comércio, salários em mercadorias para
operários e empregados, tomada à força da produção do campo e trabalho
obrigatório para a classe média. Nada disso cumpria as promessas dos
bolcheviques: o direito ao trabalho, descanso, seguridade social e educação.
Para escapar à perspectiva do comunismo da pobreza, o país precisava daquelas
ideias ousadas e medidas enérgicas que só o partido podia produzir. Ele era o
eixo espiritual e político em torno do qual a vida ainda girava. No início de
1921, mais de 20 mil células congregavam acima de 730 mil membros do
Partido Comunista, quase um quarto deles no Exército Vermelho.
O Comitê Central, sob a chefia de Lenin, era o cérebro do regime. Tinha
poucos integrantes. Por exemplo, o X Congresso do partido indicou um
Comitê Central de 25, com 15 candidatos a membros. A composição foi
apenas marginalmente aumentada pelo XI Congresso, o último de Lenin, para
27 e 19. Enquanto Lenin viveu, os plenos em geral ocorriam duas vezes por
mês. O núcleo da organização eram os homens de Moscou, que arcavam com a
maior parte do trabalho, a saber, a solução dos problemas da construção
econômica e militar, a criação de vínculos com os elementos nacionais no
partido, a condução de problemas como o dos Centralistas Democráticos* e o
da Oposição dos Trabalhadores,** e a implantação da Nova Política
Econômica-NEP. Além do mais, alguns dos membros do comitê pertenciam a
essas mesmas facções ou plataformas que hoje seriam chamadas de “informais”
ou “não institucionais”. Tudo era estranho e novo. O partido se transformou na
força orientadora, e seu poder tornou-se real. Portanto, muita coisa dependia
da posição política, das qualidades morais e do profissionalismo dos que
operavam dentro do núcleo do partido.
Lenin foi a única pessoa indicada para o Comitê Central em todos os
congressos de pós-guerra – o X, o XI e o XII (embora não comparecesse ao
último). Seu exemplo, sua experiência e seus trabalhos teóricos tiveram
influência única sobre o Comitê Central e seu núcleo dirigente; e sua ausência
foi profundamente sentida. No relatório sobre a organização para o XII
Congresso, em 17 de abril de 1923, Stalin declarou:

Dentro do Comitê Central, há um núcleo de dez a 15 homens de tal forma capacitados em


equacionar o trabalho político e econômico de nossos órgãos que correm o risco de se transformar em
algo como sumo sacerdotes do governo. Isso pode ser uma boa coisa, mas tem também seu lado
perigoso, pois esses camaradas, ao acumularem grande experiência em governo, podem ser afetados
pelo convencimento, fechar-se em si mesmos e isolar-se do trabalho com as massas. [...] Se não se
cercarem de uma nova geração de futuros líderes bem ligados ao trabalho nas localidades, essas pessoas
altamente qualificadas têm tudo para se fossilizar e se afastar das massas.3

Lenin ainda era vivo quando Stalin pronunciou tais palavras, e essa parte do
discurso banhou-se na noção de Lenin de que o núcleo líder deveria ser
constantemente renovado. O transcurso de 15 anos mostraria tais pontos de
vista mudados para algo bem diferente, embora, por volta de 1937-38, Stalin
ainda fosse capaz de dizer belas coisas, se bem que praticando exatamente o
oposto. Mas no início dos anos 1920 tal dualismo de palavras e atos ainda não
se evidenciava. No congresso, ele assim falou sobre os companheiros e
discípulos de Lenin:
O núcleo do Comitê Central, tão bom em governança, está ficando velho e precisa de reposição.
Sabeis do estado de saúde de Vladimir Ilyich, sabeis que os outros membros do núcleo estão bastante
gastos. Porém, até o presente, não há ninguém para substituí-los, esse é o problema. É difícil criar
líderes de partido, leva tempo, de cinco a dez anos, ou mais. É mais fácil fazer a guerra com outro país
com a ajuda da cavalaria de Budyonny que forjar dois ou três líderes oriundos das fileiras que possam
se transformar realmente nos chefes futuros do país.4

Embora tal argumentação parecesse razoável, a média dos membros do Comitê


Central pelos padrões atuais era bastante jovem. Lenin, que ainda não chegara
aos cinquenta, era o mais idoso. Os integrantes do corpo principal estavam nos
quarenta, a idade considerada pelos gregos como ápice da glória existencial,
quando a fortaleza física e a força intelectual devem estar em harmonia.
O núcleo da liderança durante os primeiros anos depois da revolução
apresentava diferenças enormes em histórico, experiência revolucionária,
educação e, é claro, preferências e aversões pessoais. Praticamente metade dos
camaradas mais próximos de Lenin passara anos de exílio no exterior,
participara de incontáveis conferências, congressos e reuniões de caráter social-
democrata, socialista, humanitário e cultural. Stalin não se ajustava a esse
padrão. Sua esperteza e astúcia natural e sua precaução calculada provinham de
escola duvidosa. Vinte e poucos anos duros de educação religiosa e exílio
interno, e a falta de experiência de classe trabalhadora ou de qualquer instrução
profissional o transformaram no executor de uma ideia. Antes de qualquer
outro do entourage de Lenin, ele notara a importância e percebera o poder a
derivar de um aparato. A maioria dos colegas de Lenin subestimava claramente
o papel das estruturas anônimas da autoridade.
Gradualmente, Stalin arquitetou sua própria atitude para com cada
membro do núcleo mandante, que ele descreveu como “bom de governança” e
que era extremamente variado. O próprio Stalin, como dissemos, carecia de
autoafirmação quando confrontado com a atitude superior e autoconfiança de
Trotsky, mas entendeu mais tarde que seu rival muitas vezes apenas fazia pose
ou se deleitava com uma frase elegante. Durante a revolução e a guerra civil, os
atributos de Trotsky como orador ajudaram-no a brilhar. Sua popularidade
alastrou-se e granjeou-lhe seguidores, entre os quais pessoas que não o viam só
como “segundo”, mas como potencial líder futuro do partido. Acabou se
revelando um homem cujo talento principal não estava na organização e sim na
oratória e numa mente perspicaz, por vezes paradoxal. Foram tais qualidades
que lhe permitiram liderar pessoas, inspirar tropas no front e, artificialmente,
inflar sua própria popularidade. Quando chegou a hora de tarefas mundanas, o
chefe do Exército Vermelho começou rapidamente a murchar. Mesmo algumas
de suas boas ideias eram apresentadas de forma tão provocativa que lhe
causaram perda de apoio. Trabalho de debulhar nos bastidores não era para ele.
Precisava de um slogan e de um palanque onde pudesse falar e fazer gestos de
efeito.
Talvez antes que a maioria, Stalin identificou os pontos fortes e fracos de
Trotsky. Consciente da enorme popularidade do rival, Stalin tentou de início
estabelecer com ele relações, senão amistosas, pelo menos estáveis. Certa
ocasião, Stalin apareceu sem se anunciar na residência de Trotsky, situada em
Arkhangelskoe, nos subúrbios de Moscou, para cumprimentá-lo pelo
aniversário. Não foi um encontro caloroso. Cada um sentiu a antipatia do
outro. Doutra feita, com a ajuda de Lenin, Stalin tentou melhorar a relação.
Sabe-se disso por um telegrama de Lenin para Trotsky, datado de 23 de
outubro de 1918, no qual relata uma conversa que tivera com Stalin. Como
membro do Conselho de Defesa, Stalin deu sua estimativa da posição em
Tsaritsyn e mostrou desejo de trabalhar mais cerradamente com o
Revvoensoviet da República. Lenin acrescentou:

Ao transmitir a você as declarações de Stalin, Lev Davidovich, solicito que pense sobre elas e diga,
primeiro, se concorda em discuti-las pessoalmente com Stalin, para o que ele viria até aqui, e,
segundo, se você acha possível, em certas circunstâncias concretas, desprezar a fricção existente e
trabalhar em conjunto, coisa que Stalin deseja muito. Quanto a mim, creio ser necessário todo e
qualquer esforço para um bom trabalho conjunto com Stalin.5

No entanto, nada resultou. Trotsky não pôde esconder sua atitude superior.
Como ele próprio escreveu sobre Stalin:

Invejoso e ambicioso por demais, só podia perceber sua inferioridade intelectual e moral ao longo de
toda a jornada. [...] Só muito tarde, percebi que ele vinha tentando estabelecer alguma espécie de
relação de intimidade. Porém, repugnavam-me aquelas mesmas qualidades que poderiam favorecê-lo...
a saber, a estreiteza de seus interesses, seu pragmatismo, sua rudeza psicológica e o cinismo especial do
provinciano que foi liberado de seus preconceitos pelo marxismo, mas que não os substituiu por uma
visão filosófica bem refletida e mentalmente absorvida.6

Stalin chegou a realçar em alguns discursos o papel de Trotsky na revolução e


na guerra civil, mas não conseguiu melhorar a atitude distante de Trotsky em
relação a ele.
Luzes fulgurantes da galáxia foram Zinoviev (nome verdadeiro Radomyslsky) e
Kamenev (nome real Rozenfeld), que são geralmente tratados como um duo.
Partilhavam das mesmas opiniões e raramente discutiam um com o outro.
Zinoviev, que teve posição de destaque no partido por longo tempo, era a
figura mais importante do par. Sua carreira foi marcada por píncaros
retumbantes e abismos profundos. Membro do partido desde 1901, esteve
exilado por muitos anos no exterior, onde dedicou-se principalmente a
escrever. Durante o Outubro de 1917, tanto Zinoviev como Kamenev
mancharam bastante seus históricos revolucionários ao ficarem abertamente na
imprensa contra o levante armado. Lenin mais tarde escreveu: “o episódio de
Outubro não foi, evidentemente, acidental”.7
Zinoviev atingiu o ápice como presidente do comitê executivo do
Comintern, cargo que ocupou por sete anos. Escreveu inúmeros artigos,
providenciando diligentemente para que fossem publicados como brochuras
separadas e até mesmo como edição especial de suas obras compiladas,
ostentando a silhueta de sua cabeça na capa. Refinou muitas de suas melhores
qualidades vivendo próximo a Lenin, seja no exterior, seja depois da revolução.
Lunacharsky foi até o ponto de qualificar Zinoviev como um dos esteios de
Lenin, “um dos quatro ou cinco homens que representaram a preponderância
de mentes políticas no partido”. Segundo Lunacharsky, Zinoviev era visto por
todos como “o auxiliar mais próximo e mais confiável de Lenin”.8
Zinoviev possuía energia sobre-humana, mas sofria de mudanças de estado
de espírito, oscilando entre o mais desenfreado otimismo e o desespero que
podia chegar às raias da depressão ou da histeria “fria”. Com frequência,
necessitava de incentivo e sacudidas. Durante muito tempo, foi
condescendente, até arrogante, para com Stalin. No início dos anos 1920,
mexia com Stalin, um pouco em tom de brincadeira, sobre o estilo primitivo
de seus artigos, os quais, para ele, padeciam de tautologia e falta de colorido. O
próprio Zinoviev sabia escrever num estilo leve e aforístico, e alguns de seus
artigos são muito ricos em conteúdo. Em “Das primeiras batalhas pelo
leninismo”, por exemplo, demonstra sutilmente a inconsistência do pleito de
Trotsky por uma posição especial no partido.
Como líder da organização partidária em Petrogrado, Zinoviev tentou, ao
seu tempo, exibir firmeza e mesmo maneirismos ditatoriais, embora tenha
perdido a cabeça quando Yudenich se aproximou da cidade. Isso foi
testemunhado por Stalin, que acabara de chegar a Petrogrado, e Zinoviev, de
imediato, mentalmente registrado como um maricas vaidoso e ambicioso. Até a
morte de Lenin, Stalin tentou manter certo tipo de relações amistosas com
Zinoviev e Kamenev. Quando Lenin teve, no começo de novembro de 1922,
uma conferência com Zinoviev, Kamenev e Stalin, deu logo a impressão de que
o trio era extremamente chegado, unido e amigo. Essa impressão, todavia, não
durou muito, já que cada membro da troika tinha seus planos ambiciosos
próprios. Ninguém poderia prever que, precisamente por iniciativa de Stalin,
Zinoviev seria por duas vezes expelido do partido e readmitido, e que a
expulsão final, ocorrida em 1934, precedesse de pouco sua execução. Kamenev
teve destino semelhante.
Zinoviev foi um dos melhores oradores do partido e foi quem apresentou o
relatório político no XII e no XIII Congressos do partido. Foi dos que
aprovaram a existência de um núcleo na liderança. Falando ao XIV Congresso,
em 1925, afirmou:

Vladimir Ilyich estava doente e tivemos que realizar nosso primeiro congresso sem ele. Vocês sabem da
discussão havida sobre o núcleo que se formara no Comitê Central, e que o XII Congresso aceitou
silencioso a ideia de que esse núcleo, com o apoio total do Comitê Central, é evidente, continuasse a
liderar o partido até o restabelecimento de Ilyich.9

Zinoviev, como Kamenev, foi considerado por muito tempo um dos amigos
próximos de Stalin. Quando foi removido do Politburo, em 1926, achou que
seu afastamento não seria por muito tempo. Na noite de Ano-novo, ele e
Kamenev, levando garrafas de conhaque e champanhe, apareceram de surpresa
no apartamento de Stalin. A impressão foi de que a revolução mundial tinha
estourado. Eles conversaram da forma cordial de sempre e recordaram velhos
tempos e amigos, mas não trocaram uma só palavra sobre a saída do Politburo.
“Koba” foi hospitaleiro e deu uma calorosa recepção aos antigos “chapas”.
Dirigiu-se a eles com simplicidade e sinceridade, como se não fosse o
responsável pelo afastamento de ambos do Politburo no outubro anterior. O
duo sentiu-se flutuando no ar. Mas Stalin já decidira havia muito tempo que os
serviços daqueles dois, que muito sabiam sobre ele, não eram mais necessários.
Haveria outra oportunidade em que os dois viriam, ou melhor, seriam
trazidos à presença de Stalin. Como antigos companheiros de Lenin e ex-
membros do Politburo, que contaram com altas posições depois da morte do
líder, vinham escrevendo da prisão cartas a Stalin, em 1936, quando, de
repente, Stalin reagiu. Eles entraram no gabinete do homem que tanto
subestimaram e lá, além do próprio Stalin, encontraram Voroshilov e Yezhov.
Stalin não respondeu ao cumprimento nem os convidou a sentarem-se.
Andando de um lado para o outro, ofereceu-lhes um acordo: a culpa deles já
fora estabelecida e um novo julgamento poderia impor a sentença máxima.
Mas ele relembrava os serviços passados. Se confessassem tudo no julgamento,
especialmente a liderança direta de Trotsky sobre suas atividades subversivas,
salvaria a vida deles, ou melhor, tentaria salvar. Depois tudo faria para libertá-
los. Eles precisavam decidir. O caso exigia. Seguiu-se longo silêncio. Zinoviev,
que era o mais fraco e mais submisso dos dois, disse mansamente: “Está bem,
concordamos.” Estava acostumado a falar em nome de Kamenev. Dois meses
depois, foram fuzilados.
Esta história me foi relatada na Sibéria, em 1947, por um prisioneiro
conhecido como Boris Semyonovich. No vilarejo onde eu vivia com minha
mãe, irmão e irmã, foi apressadamente construído um campo de prisioneiros
em 1937. Alguns dos presos tinham a categoria “sem escolta”, isto é, podiam,
vez por outra, atravessar o perímetro do confinamento. Boris Semyonovich era
sapateiro e esteve em minha casa duas ou três vezes para consertar minhas botas
impermeáveis e as de meu irmão. Até sua prisão em 1938, integrara a força de
segurança do próprio presídio onde Zinoviev e Kamenev estavam detidos.
Acompanhara os dois para o encontro com Stalin. Na noite em que foram
levados para a execução, tiveram comportamentos diferentes. Embora ambos
tivessem escrito a Stalin várias vezes pedindo clemência e, aparentemente,
esperassem por isso (afinal, ele prometera), sentiram que era o fim. Kamenev
caminhou em silêncio pelo corredor, apertando nervosamente as mãos.
Zinoviev ficou histérico e teve que ser carregado. Em menos de uma hora, dois
outros antigos participantes do núcleo do Comitê Central cruzaram a fronteira
fatídica. Ao tempo em que estiveram no poder, fizeram mais do que ninguém
para consolidar a posição de Stalin. O pagamento pelo serviço foi o de suas
vidas.
Vale a pena lembrar que Stalin conheceu Kamenev muito bem durante o
tempo de exílio dos dois em Turukhansk, quando ouviram pela primeira vez as
notícias sobre a Revolução de Fevereiro. Stalin reconheceu então em Kamenev
uma mistura de erudição e certa impulsividade, uma capacidade de tomar
decisões rápidas e categóricas, e, com a mesma rapidez, rejeitá-las. A atitude de
Stalin em relação a Kamenev foi muito influenciada pelo fato de este ter sido o
vice de Lenin no Sovnarkom e presidir com frequência os plenos do Comitê
Central, assim como congressos do partido. Em princípio, durante a vida de
Lenin, Kamenev foi também presidente do Politburo.
Embora Zinoviev e Kamenev fossem bons tribunos e escritores, careciam de
“espinha” e eram capazes de súbitas mudanças de posição em momentos
cruciais, em função de ambição, prestígio ou interesses pessoais.
Intencionalmente ou não, foram infelizes em levar sua luta com Stalin para a
órbita do aparato partidário, onde, com todas suas capacidades, eram muito
pequenas suas chances de sucesso.

Conquanto conhecedor de suas fraquezas, Lenin apoiou-se muito em Zinoviev


e Kamenev, particularmente neste, que desempenhou muitas comissões
pessoais para o líder. Era reconhecida a capacidade de Kamenev de abrandar as
bulhas que ocorriam nas relações internas do partido. Embora menos popular
que Zinoviev, era mais sólido e mais intelectual. Tinha ideias próprias, era
competente em generalizações teóricas, corajoso e decidido. O discurso que
pronunciou em 21 de dezembro de 1925 (aniversário de Stalin) perante o XIV
Congresso do partido merece passar à história:

Somos contra a criação de uma teoria da “liderança”, somos contra a confecção de um “chefe”. Somos
contra um secretariado que, na prática, reúne a política e a organização, postando-se acima do órgão
político.
Somos a favor de um Politburo organizado internamente de forma tal que, enquanto congrega os
políticos do partido, seja genuíno detentor, órgão superior que é, de poder total; e somos a favor de
um secretariado subordinado ao Politburo e executor das instruções deste. Pessoalmente, digo que
nosso secretário-geral não é a pessoa para unir em torno de si a equipe do antigo QG bolchevique.
Precisamente por ter dito isso, em pessoa e inúmeras vezes, ao camarada Stalin, e por ter repetido
incontáveis vezes ao grupo de companheiros leninistas, é que reitero meu ponto de vista neste
congresso: cheguei à conclusão de que o camarada Stalin não pode desempenhar o papel de unificador
da equipe bolchevique. Comecei esta parte de meu discurso com as seguintes palavras: “somos contra
a teoria da liderança de um só homem, somos contra a criação de um chefe!”10

Palavras corajosas. E ditas em público, num tempo em que o mando pessoal de


Stalin começava a despontar, foram alertas de peso que devem ser creditados a
Kamenev. Ele parecia ter assimilado melhor que os outros o preceito
bolchevique do pensamento destemido. Por que nenhum dos membros do
“grupo de camaradas leninistas” saiu em apoio de observações tão sóbrias e
proféticas de um dos que faziam parte do núcleo governante? Mas não foram
só “leninistas” os culpados pela visão míope da situação, Kamenev também o
foi: suas negaças dissimuladas, afastando-se e aproximando-se de Trotsky na
batalha contra Stalin, criaram a justificada impressão de que seu
comportamento era em grande parte motivado por ambição pessoal. Em vez de
enfraquecido, Stalin ficou mais forte porque, afinal de contas, Kamenev atacara
o secretário-geral como membro de uma “oposição”.
As relações entre Trotsky, Zinoviev e Kamenev eram complicadas. Apesar de
ser casado com a irmã de Trotsky, Kamenev não tinha ligações chegadas com o
cunhado. A questão central era que ambos postulavam a liderança do partido,
em especial quando ficou claro que a saúde de Lenin entrava em estado crítico.
Trotsky publicou suas sensacionais Lições de Outubro que mostraram Zinoviev e
Kamenev em posição bem pouco lisonjeira. Os dois, por sua vez, exigiram a
expulsão de Trotsky do Politburo e do partido. Stalin ainda não era, entretanto,
o homem que seria nos anos 1920 e 1930. No XIV Congresso, quando o
Comitê Central limitou-se a demitir Trotsky do cargo de comissário da Guerra,
Stalin disse:

Não concordamos com Zinoviev e Kamenev porque sabemos que uma política de cortes vem
carregada de perigos para o partido, que o método da divisão, o do sangue quente – e é sangue que
eles demandam – é arriscado e contagioso: hoje, cortamos uma pessoa, amanhã, outra, no dia
seguinte, uma terceira pessoa – o que vai sobrar do partido?

O congresso aplaudiu, mas dois ou três minutos mais tarde, encerrando o seu
discurso, Stalin diria, comentando o fechamento do jornal Bolshevik de
Leningrado: “Não somos liberais. Para nós, os interesses do partido estão acima
da democracia formal. Sim, somos capazes de proibir a publicação de um órgão
de facção, e proibiremos essas coisas no futuro.”11 Tais palavras foram recebidas
com uma ovação. Os delegados gostaram da firmeza e da determinação de
Stalin, mas como poderiam adivinhar que logo Stalin estaria pronto para
exercitar o “método do corte”, ou que muitos deles viriam a subir o patíbulo da
guilhotina?
Vamos dar um pequeno salto à frente. Kamenev já fora expelido do núcleo
central e trabalhava como diretor do Instituto de Literatura Mundial. Numa
das rotineiras visitas de Yagoda a Stalin, o patrão disse: “Fique de olho em
Kamenev. Acho que ele está ligado a Ryutin.*** Lev Borisovich [Kamenev] não
é de desistir facilmente. Eu o conheço há mais de vinte anos. É um inimigo.”
Yagoda procedeu conforme orientado. Kamenev foi preso em 1934, julgado
em 1935 e sentenciado a cinco anos. Foi julgado de novo no mesmo ano e,
dessa vez, recebeu dez anos. No fim de 1936, seu caso foi cancelado, para
sempre. Naquela ocasião, no entanto, Stalin precisava de Zinoviev e Kamenev
para sua luta com Trotsky, a quem via como inimigo principal seu e do partido.
Stalin rapidamente revelou-se um administrador bastante bom. Ao cumprir
suas tarefas, deu especial atenção às necessidades dos membros do Politburo e
de outras figuras importantes do Comitê Central. Na sua cabeça, as pessoas
que considerava mais influentes eram as que, em particular, chamava os
“escritores”, ou seja, os ex-emigrados. Não podia negar que eles possuíam
elevado nível intelectual, fundamentação teórica e vasto conhecimento geral. E
isso despertava nele um certo ressentimento, como se quisesse dizer: “Enquanto
preparávamos a revolução, lá estavam eles lendo e escrevendo.”
Certa vez, quase se expressou abertamente a respeito. Um secretário
provincial estava para ser confirmado como representante do Comitê Central
quando deixou escapar que o companheiro mal sabia ler ou escrever. Stalin
resolveu o caso dizendo: “Ele jamais esteve no exterior, como poderia aprender?
Vai se sair bem.”
Entre os assistentes de Lenin havia muitas pessoas talentosas. Stalin logo
notou que Bukharin, Rykov e Tomsky, embora não formassem um grupo
especial, mostravam-se diligentes na solução dos problemas econômicos e
industriais do país. Eram bons economistas, ou tecnocratas, como diríamos
hoje. Infelizmente, nos anos 1930 e nas décadas que se seguiram à Segunda
Guerra Mundial, não havia lugar nos altos escalões do poder para economistas
e tecnocratas autênticos. De um modo geral, seus lugares eram ocupados por
administradores e burocratas como Kaganovich e Malenkov. Aliás, num
sistema de diretrizes a comando, os economistas eram de pouca utilidade, já
que muita coisa era feita ao arrepio das leis econômicas.
Nikolai Ivanovich Bukharin era, sem dúvida, a figura de proa desse trio. Seu
primeiro livro, A teoria econômica da classe do lazer, publicado antes da Primeira
Guerra Mundial, penetrou profundamente na origem das relações econômicas.
No primeiro volume do seu Economia, publicado em 1920, propôs-se a revelar
o processo de transformação de uma economia capitalista em socialista, porém,
assaltado pela luta e pelas circunstâncias mutantes, jamais preparou o segundo
volume. No Economia, escreveu que “as pessoas não construíram o capitalismo,
ele se fez por si mesmo. Quanto ao socialismo, ele é um sistema organizado que
estamos forjando. O principal para nós é encontrar um equilíbrio entre todos
os elementos do sistema”. Como o conhecimento de Stalin sobre economia era
apenas rudimentar, ele prestou bastante atenção em Bukharin.
As relações entre os dois naquele tempo não foram particularmente difíceis:
afinal, Bukharin era pessoa de fácil convívio, o tipo tranquilo de intelectual.
Por vezes, pareceu que eram amigos íntimos. Ao passarem a viver em
apartamentos vizinhos no Kremlin, Stalin percebeu de imediato que Bukharin
não tinha planos ambiciosos. Ao contrário, achava incompreensível e
desagradável a disputa pela liderança e os atritos que isso gerava entre os vários
membros do Politburo; levou muito tempo para que ele tomasse posição na
contenda entre o “triunvirato” e Trotsky. Este depois classificou as intervenções
de Bukharin no debate como “forma estranha de promoção da paz”. Bukharin
valorizava, em primeiro lugar, a autoridade de Lenin, conquanto muitas vezes
discutisse asperamente com ele, e, em segundo lugar, a autoridade coletiva do
Politburo.
A postura de Stalin em relação a Alexei Ivanovich Rykov era de cautela, não
apenas porque ele assumiu o lugar de Lenin como presidente, mas também por
ser excepcionalmente direto e franco. Por isso, nem sempre se deu bem com os
colegas. Smilga, por exemplo, pediu ao Comitê Central dispensa de suas tarefas
como vice-presidente do Conselho de Economia para Toda a Rússia e como
chefe da agência principal de combustíveis (Glavtop) por ser impossível
trabalhar com Rykov. Quando Lenin viu a carta de Smilga, escreveu a Stalin
dizendo que Smilga não deveria se afastar e que membros do partido sabiam e
deviam acertar os ponteiros entre eles mesmos.
Rykov normalmente dizia na cara das pessoas o que pensava, e escrevia da
mesma forma. Em 1922, publicou um trabalho intitulado “Situação
econômica do país e conclusões para o trabalho futuro”. Na verdade, passava a
dar apoio à NEP e se opunha às tentativas de resolver por comandos os
problemas econômicos. Envolveu-se com a Goelro (Comissão Estatal para a
Eletrificação da Rússia), com a Dneprostroy (Estação Geradora de Energia do
Dnieper), com a Turksib (Ferrovia Turquestão-Siberiana), com o crescimento
do movimento cooperativista, com o primeiro Plano Quinquenal e com outras
iniciativas importantes do Estado socialista. Foi Rykov quem, mais tarde,
tentou convencer Stalin e seus seguidores de que o socialismo deveria
desenvolver e melhorar as relações comerciais e financeiras, e não tolher a
independência econômica dos produtores diretos. Mas, que lástima, a conversa
era em línguas distintas.
Quando, no final dos anos 1920, Stalin já adquirira maior peso político,
Rykov certa vez disse diretamente: “Sua política não tem nem cheiro de
economia!” O secretário-geral ficou impassível, mas jamais esqueceu a
zombaria.
Na realidade, jamais esqueceu coisa alguma. Sua memória fria de
computador retinha milhares de nomes, fatos e eventos firmemente
armazenados nas células. E ele não esqueceu que Lenin tinha Rykov em
altíssima conta e que seu nome figurava nos trabalhos do líder com pouco
menos frequência que o de Stalin. Como presidente do Sovnarkom a partir de
1926, Rykov também presidia o Conselho do Trabalho e da Defesa, e os
comitês de ciência e de desenvolvimento do pensamento científico. Stalin não
esqueceu que Rykov fez um discurso no soviete de Moscou, em 1927, no qual
disse que não era permitido recorrer-se novamente aos métodos do
Comunismo de Guerra e criticou severamente os que se opunham à NEP,
classificando tais ataques de “inusitadamente nocivos e perigosos” e
demandando um fim para os métodos coercitivos no campo onde, em suas
palavras, era essencial manter a “legalidade revolucionária”. Seu primeiro cargo
no governo soviético fora o de comissário de Assuntos Internos, mas renunciou
poucos dias depois porque o governo era composto totalmente de
bolcheviques, não era uma coalizão. Muitos anos depois, ele falou pela última
vez num pleno do Comitê Central quando repudiou as monstruosas acusações
de espionagem, sabotagem e terrorismo imputadas a ele. Stalin sorriu
maliciosamente: “Ele foi sempre assim.”
Bukharin e Rykov se preocupavam com a sorte dos agricultores russos,
enquanto Trotsky – e Stalin que, em essência, concordava com ele –
considerava-os “material para a transformação revolucionária”. Era impossível
não notar a popularidade de Bukharin e Rykov. Eles andavam sem guarda-
costas, eram acessíveis e atenciosos. A gente comum sempre deu valor a tais
qualidades em seus líderes. Stalin chamava isso de “jogo para a plateia”.
Stalin também desconfiava de Mikhail Ivanovich Tomsky (nome real,
Yefremov). Participante de três revoluções e sindicalista, Tomsky sabia como se
dar valor. Stalin tolerou aquele “amigo de Rykov” até que Kaganovich e
Shvernik entraram para o presidium do Soviete Central dos Sindicatos e
depuseram Rykov das funções de presidente. Quando Tomsky cometeu
suicídio, em 22 de agosto de 1936, em sua dacha de Boltsevo, Stalin disse: “O
suicídio confirma sua culpa perante o partido!” Na verdade, fora um ato de
protesto extremo contra o mando de Stalin.
Posição notável na chefia foi ocupada por Felix Edmundovich Dzerzhinsky,
apelidado por Bukharin de “jacobino proletário”. Foi um dos primeiros
membros do partido e um dos organizadores da Democracia Social do Reino
da Polônia e Lituânia, no começo do século. Ao analisar, mais tarde, o papel
desempenhado por Dzerzhinsky, Karl Radek, membro do Comitê Central e
farol-guia no Comintern, observou:

Nossos inimigos inventaram a lenda sobre os olhos e ouvidos da Cheka**** que tudo via e tudo ouvia,
e sobre o onipresente Dzerzhinsky. Pintaram a Cheka como um exército enorme que cobria todo o
país, estendendo seus tentáculos ao seu próprio campo. Não entenderam a fonte do poder de
Dzerzhinsky. Ela derivava da força do partido bolchevique: da confiança total das massas trabalhadoras
e dos pobres.12

As relações de Stalin com Dzerzhinsky não foram ruins, em particular depois


que cumpriram juntos diversas missões no front da guerra civil. Após a morte
prematura de Dzerzhinsky, Stalin, que não era de derramar grandes elogios,
disse: “Ele foi consumido pelo trabalho apaixonado que fazia em prol da causa
proletária.”
Mikhail Vasilyevich Frunze tinha uma personalidade atraente, se bem que
sua figura não o realçasse. Stalin, que também experimentara prisão e exílio,
tinha por ele grande consideração, já que Frunze fora por duas vezes
condenado à morte em 1907, passara muitas semanas na cela dos sentenciados
à pena capital e passara por trabalho forçado diversos anos. Poucos sabiam em
detalhe o quanto ele fizera pela vitória nos fronts Oriental, do Turcomenistão e
do Sul. Até Stalin ficou impressionado com a liderança calma e com o alto grau
de determinação política e militar que demonstrou. Durante seu breve
mandato como comissário para as Questões Militares e Navais, em 1925,
Frunze destacou-se pela inteligência e pela abordagem original da doutrina
militar, pela reforma das forças armadas e pelas técnicas operacionais da guerra
moderna.
Sofria de úlcera estomacal, que preferia tratar com medicina conservadora e,
geralmente, conseguia controlar a dor rotineira e constante. Uma equipe de
médicos, no entanto, recomendou a cirurgia. De acordo com diversos
testemunhos, por exemplo, o do livro Tak bylo (“Eis como foi”) de I.K.
Gamburg, e o do conto Povest nepogashchennoy luny (“História de uma lua
inextinguível”) de Boris Pilnyak, Stalin e Mikoyan visitaram Frunze no hospital
e instaram para que o cirurgião professor Rozanov realizasse a operação. Pouco
antes da cirurgia, Frunze escreveu um bilhete à esposa: “Neste momento, sinto-
me completamente em forma, e é uma bobagem pensar em operação, muito
menos fazê-la. Ainda assim, as duas equipes insistem nela.”13
É difícil avaliar a veracidade dos rumores que correram depois da morte de
Frunze, se foi a mão do destino, ou a de alguém que o atacou. Muitos médicos
expressaram a opinião de que a operação, bastante simples até para os padrões
daquele tempo, não era necessária. No funeral, Stalin disse: “Talvez seja até
melhor que velhos camaradas cheguem à sepultura de forma tão quieta e
tranquila. Infelizmente, será bem mais difícil sua substituição pelos jovens
camaradas.”14 Houve quem detectasse um significado oculto naquelas palavras,
mas não há base para afirmativas categóricas. Frunze, caso sobrevivesse, teria,
por certo, um papel importante, e Stalin sabia disso.
Um dos mais destacados organizadores do Comitê Central foi Yakov
Mikhailovich Sverdlov, homem totalmente destituído de ambições pessoais,
como Lunacharsky a ele se referiu. Era o exemplo clássico do funcionário
dedicado. “Ele tinha ideias ortodoxas sobre tudo e foi não mais que um reflexo
da vontade geral da diretriz de cima. Pessoalmente, jamais emitiu orientações
próprias, meramente as transmitia, quer do Comitê Central, quer de Lenin.”
Quando falava, segundo Lunacharsky, parecia um editorial de jornal do
partido. Não obstante, era possuidor de algo que poucos tinham, ou seja, da
captação brilhante das pequenas nuances das atitudes no partido, e uma
extraordinária capacidade de organização. Com efeito, quando foi decidido que
o secretariado deveria ter um só chefe e que o secretário-geral do Comitê
Central deveria ocupar o cargo, Sverdlov já estava preenchendo aquela função.
Stalin gostava da maneira eficiente com que Sverdlov conduzia as reuniões do
comitê. Numa sessão memorável de março de 1918, a agenda era a situação na
Ucrânia, uma declaração dos Comunistas de Esquerda, a evacuação do Pravda,
a supervisão do segmento militar, uma declaração de Krylenko e o caso
Dybenko. O país fervia. Sverdlov pegou o livro de capa de oleado preto onde
registrava as minutas, olhou em torno para os presentes, inclusive Lenin,
Zinoviev, Artem Sergeyev, Sokolnikov, Dzerzhinsky, Vladimirsky e Stalin, e,
suavemente, solicitou a todos que não se afastassem da pauta.15 Depois de sua
morte inesperada, Lenin disse que uma tal pessoa não podia ser substituída;
para isso, seria necessário todo um grupo de funcionários.
Muitos aspectos do caráter são forjados no trabalho com um grupo de
colegas que pensam da mesma forma ou que até são competidores. Como um
dos integrantes da coorte de Lenin, Stalin iria absorver muita coisa valiosa e
duradoura do próprio líder ou de seu entourage. Mas nem todas as
características humanas são passíveis de mudança. Os atributos caldeados nos
primeiros anos de vida, tais como a mania do sigilo, o cálculo, a aspereza, a
desconfiança, a insensibilidade podem, com o correr do tempo, tornar-se mais
enraizados, e não abrandados. Stalin, bem cedo, começou a manifestar a
qualidade descrita por Hegel como “probabilismo”, isto é, o tipo de
personalidade que, tendo cometido um ato moralmente repreensível, tenta
justificá-lo mentalmente e representá-lo para si mesmo como bom. Assim era
Stalin. Uma vez certo de que o líder incontestável estava seriamente enfermo,
ele começou, passo a passo, seu grande jogo de maximizar a própria força
dentro da liderança. A princípio, tentou convencer a si mesmo de que aquilo
era necessário “para a defesa do leninismo”. Depois, tudo o que fez considerou
moralmente justificável em nome da “construção do socialismo num país”. O
probabilismo acabou ocupando lugar importante em seu arsenal de métodos
políticos. O povo tinha que saber, acreditava ele, que tudo que fazia era em
nome do povo.
Parece claro que muitos daqueles que cercavam Lenin por muito tempo não
enxergaram através de Stalin. Alguns o viam simplesmente como um executor,
outros, como o representante razoavelmente eficaz dos elementos minoritários
nacionais dentro do partido, enquanto para outros não passava de uma
mediocridade típica dos círculos governamentais de qualquer regime ou
sistema. Os camaradas de Lenin o subestimaram, ao passo que Stalin entendeu
perfeitamente todos eles. Mesmo os companheiros mais próximos de Lenin,
como Zinoviev, Kamenev, Bukharin, Rykov, Tomsky, Rudzutak e Kosior,
terminariam como “inimigos do povo” porque Stalin assim o decidiu. Afinal,
ele prestou muita atenção ao fato de o Exército Vermelho ter sido comandado
durante a guerra civil quase que exclusivamente por seus “inimigos”: Trotsky,
Blyukher, Yegorov, Tukhachevsky, Uborevich, Dybenko, Antonov-Ovseyenko,
Smilga, Muralov, mais centenas e milhares de outros “traidores”.
Lenin não percebeu, mas Stalin constatou com sagacidade que os “capitães
da indústria” eram, na sua quase totalidade, “sabotadores”, como Pyatakov,
Zelensky, Serebryakov, Lifshits, Grinko, Lebed, Semenov e milhares de outros.
Só Stalin entendeu que o serviço diplomático soviético estava infestado de
“espiões”, como Krestinsky, Rakovsky, Sokolnikov, Karakhan, Bogomolov,
Raskolnikov. Quantos “homens de duas caras” ele identificou e desmascarou
em praticamente todas as esferas do Estado! Pessoa assim seria realmente uma
“mediocridade”? Trotsky estava errado. Robespierre disse na Convenção em 5
de fevereiro de 1794 que “o primeiro princípio de nossa política tem que ser o
de governar o povo com ajuda da razão e tratar os inimigos do povo com a
ajuda do terror”.16 O sistema de Robespierre foi dualista, não universal. O
“princípio” político de Stalin foi monístico – todos tinham que ser governados
pelo método único da coação. Duvido que qualquer dos camaradas de Lenin
sonhasse, em seus pesadelos mais terríveis, que tal monstro era cevado em seu
meio, exatamente ali no núcleo da liderança.
Notas

* Facção do partido formada em 1920 pelos ex-Comunistas de Esquerda V.V. Osinsky, T.V. Sapronov,
V.N. Maximovsky. Eram pela gerência coletiva e não de um só homem, contra o controle do partido
central nas localidades, e exigiam liberdade para facções e grupos no partido.
** Formada em 1920 por A.G. Shlyapnikov, M.K. Vladimirov, A.M. Kolontal, Yu.Kh. Lutovinov, C.P.
Medvedev, considerava os sindicatos a forma mais elevada de organização da classe trabalhadora, e não o
partido, e propunha que a administração da economia nacional fosse entregue aos sindicatos.

*** Em 1932, Mikhail Ryutin distribuiu um longo documento pedindo um ritmo mais lento para a
industrialização e a coletivização, democracia partidária e a remoção de Stalin.

**** A Cheka, sigla do Comissariado Extraordinário para o Combate à Contrarrevolução e à Sabotagem,


fundada em dezembro de 1917, com Dzerzhinsky à sua frente, foi a precursora da GPU, da NKVD e da
KGB, isto é, da polícia política.
[8]
O secretário-geral

N os cerca de seis anos que restaram de vida a Lenin depois da


Revolução de Outubro, anos repletos de feitos, de esperanças e
desilusões, ele só conseguiu esboçar por alto o que estava por vir.
O XI Congresso do partido foi seu último. O relatório sobre a organização
foi feito por Molotov, cuja descrição do estado interno do partido mostrou
quão sobrecarregadas de trabalho estavam as várias seções do Comitê Central.
“Durante o ano”, disse ele, “22.500 trabalhadores do partido passaram pelo
Comitê Central, ou seja, quase sessenta por dia”. Levantou a questão da
movimentação dos quadros, mantendo registros adequados e introduzindo
mais organização no trabalho do aparato do comitê, e sublinhou que, no correr
do ano, o número de sessões e a quantidade de matérias apreciadas cresceram
50%, com o consequente aumento no número de conferências e de encontros
não partidários. Os delegados expressaram insatisfação com o trabalho do
centro. Osinsky, por exemplo, reprovou o Politburo por perder tempo com
assuntos tais como se deveria ou não passar o Palácio Boyar para o
Comissariado da Terra, ou sobre a distribuição de gráficas para essa ou aquela
instituição.17 O congresso propôs que a melhora na administração do partido e
do país fosse entregue a três órgãos do Comitê Central, a saber, o Politburo, o
Orgburo e o Ekonomburo.
As minutas dos primeiros congressos pós-revolucionários do partido são
caracterizadas pela sinceridade e franqueza dos debates. Imperava,
naturalmente, a crítica, enquanto elogio, deferência e adulação eram
desconhecidos. Ninguém buscava a unidade por ela mesma. Havia líderes, mas
não cultos. Por exemplo, malgrado a grande consideração em geral emprestada
às ideias e argumentações de Lenin, seu relatório para o XI Congresso foi
bastante criticado por diversos delegados. Para surpresa da assembleia,
Ryazanov (nome verdadeiro, Goldendakh) disse:

Nosso Comitê Central é uma instituição especial. Diz-se que o parlamento inglês pode tudo, só não
transforma homem em mulher. Nosso Comitê Central é muito mais poderoso: transformou mais de
um homem altamente revolucionário em mulher velha, e a quantidade delas vem crescendo
rapidamente. Enquanto o partido e seus membros não tomarem parte na discussão coletiva de todas
as matérias que são levantadas em seu nome, e enquanto tais iniciativas estiverem caindo como neve
na cabeça dos membros do partido, continuaremos com o que o camarada Lenin chamou de
mentalidade do pânico.18

Discussões francas sobre tudo o que pudesse afetar a vida do partido eram a
norma, ao passo que observações críticas semelhantes feitas nos anos 1930
seriam encaradas como “destrutivas”, e a aprovação unânime, o apoio irrestrito
e a bajulação passariam a ser a regra. As atas dos congressos ao tempo de Lenin
foram modelos de democracia, de camaradagem ideológica e de abertura da
mais alta – dentro do partido.
Já em 1920, o trabalho do dia a dia do aparato do Comitê Central mostrou
que o secretariado necessitava de alguém para cuidar de sua própria
organização. No pleno de 5 de abril de 1920 do Comitê Central ficou decidido
que Krestinsky, Preobrazhensky e Serebryakov seriam nomeados secretários,
que a indicação de um secretário-executivo não poderia tardar e que, em adição
aos três secretários, o Orgburo deveria incluir Rykov e Stalin.19 As atas do
Comitê Central (normalmente anotadas em blocos escolares) demonstram que
a questão da indicação de um só secretário-executivo foi levantada muito antes
de 1922. Depois do XI Congresso, um dos secretários foi especialmente
destacado, enquanto, antes disso, Stasova, Krestinsky e Molotov tinham sido
nomeados secretários-executivos. Agora, no entanto, tratava-se da elevação da
função ao status de secretário-geral. De quem foi a ideia, de onde havia
partido? A evidência é da origem em Kamenev e Stalin. Segue-se, portanto, que
Lenin era conhecedor da inovação iminente.
De acordo com a intenção manifesta no XI Congresso, o pleno de 3 de
abril de 1922 escolheu um Politburo, um Orgburo e um Secretariado.
Também decidiu adotar o cargo de secretário-geral, e Stalin foi nomeado
naquele mesmo dia. Isso, aliado ao fato de ele ser membro do Politburo e do
Orgburo, significou o desempenho simultâneo de três importantes funções no
partido. Ao mesmo tempo, Molotov e Kuibyshev, que eram membros
candidatos do Politburo, foram nomeados secretários. Hoje se pergunta por
que Stalin e não outro recebeu o cargo? Quem o indicou? Qual a participação
de Lenin na nomeação? A nomeação de Stalin para secretário-geral significou a
concessão a ele de poderes extras? A resposta a tais indagações nos encaminha à
história do partido e do país, mas também vai à raiz de males futuros. Voltemo-
nos, portanto, para os documentos imparciais.
Os membros do Comitê Central que participaram da sessão plenária foram
Lenin, Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Stalin, Dzerzhinsky, Petrovsky, Kalinin,
Voroshilov, Ordzhonikidze, Yaroslavsky, Tomsky, Rykov, A.A. Andreyev, A.P.
Smirnov, Frunze, Chubar, Kuibyshev, Sokolnikov, Molotov e Korotkov,
enquanto os candidatos a membros incluíram Kirov, Kiselev, Krivov, Pyatakov,
Manuilsky, Lebed, Sulimov, Bubnov, Badaev e Solts, que era membro da
comissão central de controle.
O primeiro assunto debatido no plenário foi a composição do Comitê
Central. Quanto à função de presidente, o plenário resolveu “confirmar a
aceitação unânime do costume de não ter presidente. Os únicos funcionários
oficiais do Comitê Central são seus secretários: o presidente é escolhido em
cada sessão”.
Foi levantada então a questão do porquê, na lista dos membros do Comitê
Central escolhidos pelo congresso, havia notas sobre indicação de Stalin,
Molotov e Kuibyshev como secretários. Kamenev explicou, e o pleno anotou,
que, “com a aprovação total do congresso, ele anunciara durante as eleições
que, a despeito de algumas cédulas estarem marcadas com nomes de candidatos
ao posto de secretário, o pleno não deveria ficar inibido quanto a fazer sua
própria seleção, porque aquilo indicava meramente as preferências de uma
seção particular de delegados”.20 Tais preferências derivavam acima de tudo de
Kamenev, Zinoviev e, às ocultas, de Stalin.
Oficialmente, o congresso nomeou apenas membros do Comitê Central,
mas há evidência de que Kamenev esforçou-se para assegurar a seleção de
futuros secretários. Em outras palavras, ele queria um “homem seu” chefiando
o aparato do Comitê Central. Suas relações eram excelentes com Stalin, o qual,
mais de uma vez, deu grande destaque a sua posição especial de ex-vice de
Lenin no Sovnarkom e havia grande deferência por ele como talvez a figura
mais alta da hierarquia. Muitos sinais indiretos indicam que Kamenev tentava
garantir o cargo para Stalin, com o conhecimento deste. Stalin gostava da
função e já tinha identificado as vantagens nela implícitas.
O pleno foi mais adiante em suas decisões: “O posto de secretário-geral e os
de dois secretários devem ser criados, o camarada Stalin como secretário-geral e
os camaradas Molotov e Kuibyshev como secretários.” Lenin propôs que
secretários não tivessem outra tarefa que seu papel de liderança e instruiu Stalin
para encontrar vices e assistentes que o aliviassem do trabalho nos sovietes e na
Inspetoria de Operários e Camponeses.21
Ao tempo da nomeação de Stalin, os médicos de Lenin insistiam para que
ele seguisse um regime de vida rigoroso. De fato, foi em abril de 1922 que eles
decidiram pela necessidade de um longo repouso e ar de montanha, e
propuseram uma viagem ao Cáucaso, mas essa cura teve que ser adiada e Lenin
continuou trabalhando. Ele desejava que o aparato do Comitê Central evitasse
a burocracia para não emperrar. Por proposta de Lenin, o Politburo reunia-se
uma vez por semana, mas havia trabalho diário a ser feito. O secretariado
preparava os documentos para as sessões do Politburo, transmitia suas decisões
para os encarregados pela execução e cumpria as ordens de seus membros.
Apesar de não se envolver diretamente com as questões relacionadas com
economia, defesa, administração do estado ou educação, desempenhava parte
importante na administração geral do aparato do partido. Uma vez que os
órgãos principais eram dirigidos por bolcheviques importantes, que não davam
muita atenção aos detalhes técnicos, ficou resolvido que um dos membros do
Politburo seria responsável por todo o trabalho do secretariado, com o cargo de
secretário-geral. Para firmar bem: a proposta concreta sobre a candidatura de
Stalin foi feita por Kamenev, o qual também presidiu o pleno que indicou o
secretário-geral. Tudo leva a crer que essas questões foram examinadas antes
com Lenin.
Stalin era qualificado para a função? Evidentemente que sim. Era membro
do partido desde 1898 e do Comitê Central desde 1912, como também
participava do gabinete do Comitê Central, do Orgburo e do Politburo. Único
integrante do Politburo a ocupar dois postos estatais – o de comissário das
Nacionalidades e a Inspetoria de Operários e Camponeses – representava
também o Comitê Central na junta da Vecheka-OGPU (Administração
Política Unificada do Estado) e era membro do Revvoensoviet da República e
do Conselho do Trabalho e da Defesa – e isso não esgota a lista de cargos que
exercia quando se tornou secretário-geral.
Indiscutivelmente, essas são provas de que sua contribuição para a
reestruturação da sociedade, sua experiência com as atribuições da
administração política e do Estado e sua inclinação pelo trabalho de
organização eram reconhecidos e acatados por muitos dos velhos bolcheviques.
Sua ascensão ao cargo de secretário-geral, portanto, não surpreendeu. Grande
parte dos outros líderes continuava a considerar o cargo como essencialmente
rotineiro. Tudo isso ocorria enquanto Lenin estava vivo e bem. A questão da
chefia do partido e do Estado simplesmente não era cogitada. Havia um líder
incontestável, que era Lenin. Na nova função, Stalin continuava pouco
conhecido pelo partido e pelo país. Dentro da liderança, contudo, suas
qualidades positivas e negativas passavam a ficar mais evidentes.
Para o traçado completo do caráter de Stalin serão necessárias décadas, se é
que um dia chegaremos a ele. Ele sabia disfarçar os sentimentos. Poucas pessoas
chegaram a vê-lo irado. Era capaz de tomar as decisões mais duras com
absoluta serenidade. Com o decorrer do tempo, seus auxiliares mais próximos
passaram a ver nisso grande sabedoria e perspicácia. Não conhecia a
comiseração, nem o amor filial ou o de um pai por filhos e netos. Destes,
poucas vezes viu os filhos de sua filha Svetlana e os filhos de seu primogênito
Yakov. Sua vida particular era totalmente segregada. Vivia para o trabalho.
Decisões, ordens, reuniões, discursos. O mundo era em preto e branco, e tudo
que não se coadunasse com a “linha” era ruim. Meios-tons eram
imperceptíveis. Sua forma preferida de raciocínio era a lógica binária, sim ou
não. Era categórico e de um fim só, não distinguia a grande faixa de
diversidade entre esses dois polos. Seu estilo, suas anotações, seus discursos e
relatórios eram concisos, quase telegráficos. Gostavam disso, consideravam
Stalin prático, homem que conhecia as obrigações, sem sentimentalismos,
homem de negócios. Ele não gostava da palavra “humanismo”. À época,
ninguém tinha ideia desses fatos. No Comitê Central, pensava-se que, para
Stalin, nada havia acima da disciplina partidária, do dever partidário, da
“linha” do partido.
Ao longo de 1922 e no início de 1923, quando a doença finalmente o
incapacitou, Lenin, preocupado com a solução política e organizacional de
muitos problemas, enviou dezenas de notas, projetos e cartas a Stalin.
Decorridos nove meses e depois de algumas decisões infelizes, Lenin percebeu
que Stalin não fora uma boa escolha para secretário-geral e que deveria ir para
outra função.
Uma das decisões equivocadas de Stalin, por exemplo, foi o apoio que deu,
em maio de 1922, a uma proposta de Sokolnikov e Bukharin para acabar com
o monopólio estatal do comércio exterior. Lenin opôs-se categoricamente a essa
medida.22 Em setembro de 1922 – Lenin recuperado do primeiro e sério
ataque –, Stalin saiu-se com a ideia da “autonomização”, isto é, a unificação das
repúblicas nacionais por meio da adesão à Federação Russa. Na realidade, essa
ideia não era a criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, mas a de
uma República Federativa Socialista Soviética Russa, na qual as outras
entidades nacionais teriam direito à autonomia. Stalin já fizera aprovar sua
proposta na comissão especial do Comitê Central criada para apreciar a
matéria. Lenin reagiu de imediato numa carta endereçada a Kamenev, mas
dirigida aos membros do Politburo:

Camarada Kamenev. Sem dúvida, você já recebeu a resolução da comissão do camarada Stalin sobre a
entrada de repúblicas independentes na RFSSR. [...]
Na minha opinião, essa é questão da maior importância. Stalin mostra certa tendência para apressar as
coisas. Você deve dar cuidadosa atenção a isso (certa vez, você teve intenção de tratar do assunto e
chegou mesmo a dar os primeiros passos), e Zinoviev também.23

Provavelmente, ninguém visitou Lenin em Gorky, durante a enfermidade, com


a frequência de Stalin. Por vezes, Lenin o convidava, a fim de se atualizar sobre
as questões correntes, noutras, o secretário-geral tomava a iniciativa. Na
miríade de assuntos levantados por Lenin, inquietava-o a saúde de
Dzerzhinsky, de Tsyurupa, e de outros camaradas que não estavam bem na
ocasião. Chegou mesmo a discutir o estado de saúde de Stalin, tendo primeiro
falado num telefonema com o médico do secretário-geral, V.A. Obukh.
Em 26 de setembro de 1922, Lenin chamou Stalin a Gorky, e tiveram uma
conversa de três horas,24 na qual o líder enfatizou que o problema da unificação
das repúblicas era importante demais e não podia haver açodamento. Propôs
uma nova base em princípio para a criação do Estado unido: a unificação
voluntária das repúblicas independentes, inclusive a Rússia, numa União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, com a preservação de direitos totalmente
iguais para todas. Stalin jamais divergiu publicamente de Lenin e, em geral,
aceitava logo seus argumentos, embora nessa questão nacional considerasse
“liberal” a posição do líder.25
Essas conversas frequentes não eram apenas uma maneira de Lenin obter
informações, dar conselhos e apresentar sugestões, mas serviam também para
instruir o chefe do aparato do Comitê Central. Durante os muitos encontros,
Lenin por certo formou boa ideia sobre os pontos fortes e fracos de Stalin, e os
comentários que fez sobre ele, no final de 1922 e início de 1923, resultaram de
análises e reflexões profundas. A questão nacional, em particular, e o modo de
Stalin equacioná-la abriram os olhos de Lenin para alguns novos aspectos da
personalidade do secretário-geral, e também para algumas facetas morais. Nas
anotações intituladas “Sobre a questão das nacionalidades ou Autonomização”,
Lenin descreveu a ideia de Stalin como um afastamento do internacionalismo
proletário. Na conclusão, fez uma avaliação política e moral de Stalin:
“Acredito que um papel crucial foi aqui representado pela pressa de Stalin e por
sua propensão a recorrer a métodos administrativos, bem como por sua
animosidade em relação ao infame ‘nacionalismo social’. Animosidade em
política, em geral, dá os piores resultados.”26
Ordzhonikidze foi também admoestado por usar a força física durante a
viagem que fizera ao Cáucaso. Ele chefiou a comissão que tentou pôr ordem no
conflito surgido com os líderes do partido comunista da Geórgia, mas se
revelou inadequado para a missão. Além do mais, quando a situação lhe estava
sendo explicada, agrediu Mdivani, um membro do Comitê Central local.
Lenin escreveu que “nenhuma provocação, nem mesmo insulto, podem
justificar tal violência russa, e o camarada Dzerzhinsky está irreparavelmente
errado ao tratar o ato com tanta superficialidade”.27 Foi o fato de Stalin não
tomar posição de princípio nesse conflito que permitiu a Lenin observar
publicamente que o secretário-geral não só agiu com açodamento e usou
métodos “administrativos”, ou seja, coercitivos, mas mostrou animosidade no
trato de assuntos políticos.
O diário dos secretários de Lenin mostram que ele voltou repetidamente à
questão. As anotações de L.A. Fotieva, por exemplo, indicam que Lenin
solicitou material adicional sobre o incidente. Stalin recusou o envio dos
subsídios argumentando que se deveria evitar qualquer tensão desnecessária ao
enfermo. Mas Lenin insistiu. Em 5 de março de 1923, portanto cinco dias
antes de sofrer o outro derrame que o privou da fala, escreveu a Trotsky:
“Solicito-lhe com veemência que tome a si a defesa do caso georgiano no
Comitê Central do partido. No momento, está sendo ‘processado’* por Stalin e
Dzerzhinsky, e não confio na imparcialidade deles. Para ser honesto, muito
pelo contrário!”28
No mesmo dia, Lenin ditou outra carta, dessa vez para Stalin. A missiva
parece ser de caráter pessoal, mas só parece. A razão para essa carta remontava a
dezembro de 1922 quando Lenin ditara para a esposa, Krupskaya, uma série de
cartas de enorme interesse para o futuro do partido. Durante a noite de 22 de
dezembro, aparentemente depois de ditar uma carta para Trotsky sobre o
monopólio do comércio exterior, a saúde de Lenin piorou. O braço direito e a
perna direita ficaram paralisados. Os membros do Politburo foram informados.
No dia seguinte, Stalin, pelo telefone, repreendeu Krupskaya nos termos mais
rudes por “quebrar o regime do líder enfermo”. Abalada pela aberta falta de
tato e de cortesia de Stalin, Krupskaya escreveu naquele dia a Kamenev:

Lev Borisovich, por eu ter escrito uma breve nota, ditada por Vladimir Ilyich com a permissão dos
médicos, Stalin permitiu-se atacar-me ontem da forma mais ofensiva. Não cheguei ontem no partido.
Ao longo de trinta anos, jamais ouvi grosserias de um membro do partido. O partido e Lenin não são
menos caros para mim do que para Stalin. Preciso agora de todo meu autocontrole. Sei melhor que
qualquer médico o que deve ou não ser dito para Ilyich, como também sei o que o incomoda ou não
e, de qualquer forma, sei melhor que Stalin.

Krupskaya prosseguiu solicitando a Kamenev que protegesse sua vida privada


contra “interferência tão crua e contra abusos e ameaças imerecidos”. E
concluiu:

Não duvido da unanimidade da decisão da comissão de controle que deu a Stalin o direito de
ameaçar-me, mas não tenho força nem tempo para desperdiçar com farsa tão estúpida. Também sou
humana e meus nervos foram esgarçados ao limite.
N. Krupskaya29

De acordo com a vontade do Politburo, Stalin estava “protegendo” o líder


contra perturbações, mas é fácil ver que o isolamento de Lenin quanto às
informações e sua influência limitada sobre a situação do partido entraram nos
planos de Stalin para fortalecer sua posição durante aquele período.
Kamenev levou o conteúdo da carta de Krupskaya ao conhecimento de
Stalin. Este, sem discutir, escreveu imediatamente a Krupskaya, desculpando-se
e explicando que seu procedimento se devera exclusivamente à preocupação
com Lenin. É difícil aquilatar se houve ou não sinceridade na desculpa. Stalin
era totalmente pragmático a respeito de princípios morais, e infringiria
qualquer um se lhe conviesse. Fosse como fosse, Lenin só soube do incidente,
por intermédio de Krupskaya, cerca de dois meses depois, em 5 de março de
1923. Ele viu o fato como algo mais que pessoal. Logo depois, convocou a
secretária, M.A. Volodicheva, e ditou o bilhete para Trotsky sobre o plenário do
Comitê Central que iria apreciar o caso georgiano. Disse à secretária para ler o
bilhete para Trotsky pelo telefone e trazer-lhe a resposta tão logo possível.
Então, ditou a seguinte carta para Stalin:
Respeitado camarada Stalin
Foi um insulto seu chamar minha esposa ao telefone e ofendê-la. Embora ela tenha dito a você que
está disposta a esquecer o que foi dito, ela contou a Kamenev e Zinoviev o que ocorreu. Não estou
disposto a esquecer com tanta facilidade o que é feito contra mim, porque nem é preciso frisar que o
que é feito contra minha mulher considero contra mim. Portanto, por favor considere se vai retirar o
que disse e vai se desculpar, ou estarão cortadas as relações entre nós.
Com respeito
Lenin, 5 de março de 1923.30

O tom de Lenin foi conciso e sóbrio. Ninguém ainda no partido sabia que ele
escrevera, em dezembro de 1922, sua “Carta ao Congresso” dando sua
avaliação das qualidades pessoais dos líderes do partido e recomendando a
remoção de Stalin do cargo de secretário-geral. A carta de 5 de março apenas
acrescenta detalhes da imagem política e moral que formara de Stalin. Lenin,
finalmente, chegara à conclusão de que, a despeito de o partido não ter escolha
senão a de tolerar tais comportamentos de membros de suas fileiras, as falhas
morais de Stalin eram absolutamente inconcebíveis num líder. Profeticamente,
ele viu no caráter de Stalin maus augúrios para a questão toda da liderança do
partido. No dia seguinte, ditou seu último documento em que Stalin figurou:

Aos camaradas Mdivani, Makharadze e outros.


Cópias para os camaradas Trotsky e Kamenev
Respeitados camaradas,
Acompanho a causa de vocês de todo coração. Fiquei horrorizado com a rudeza de Ordzhonikidze e
com a conivência de Stalin e Dzerzhinsky. Estou preparando notas e um discurso em favor de vocês.
Com respeito
Lenin, 6 de março de 192331

Lenin não conseguiu escrever nem notas nem discurso. Quatro dias depois,
outro derrame impossibilitou-o até mesmo de ditar. Toda evidência –
principalmente suas três últimas mensagens ditadas em 5 e 6 de março –
indica, porém, que as ações de Stalin na questão georgiana convenceram Lenin
por completo de que sua Carta ao Congresso estava bem fundamentada. Não
foi fácil para Lenin aceitar o desapontamento. A escolha que fizera em abril de
1922 fora má. Todos tinham errado, inclusive ele. Mas o erro podia ser
corrigido. Não lhes era possível ter uma pessoa completamente amoral à frente
do aparato do Comitê Central, um homem potencialmente tão perigoso para a
causa. Se Stalin fora capaz de ser insultuoso, hipócrita e ofensivo com uma
pessoa tão próxima a Lenin como Krupskaya, de que forma se comportaria
com os outros? Teria havido uma boa razão para o declínio tão acentuado da
saúde de Lenin durante os primeiros dez dias de março? Os eventos dramáticos
daquela ocasião – o caso georgiano e o desentendimento com Stalin – devem
ter acelerado a marcha de sua doença. O estado de espírito de Lenin pode ter
predisposto o líder para o derrame fatal.
No final, a ideia de “autonomização” de Stalin foi rejeitada, e a política de
Lenin sobre as relações de nacionalidade foi adotada. No Congresso dos
Sovietes, aberto em 30 de dezembro de 1922, foi proclamada a União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas-URSS. A carta de Lenin sobre o assunto –
que, aliás, só veio a público trinta anos mais tarde – foi a base do relatório
apresentado por Stalin. O relatório, bem como a “Declaração sobre a Formação
da URSS”, que ele também fez, centraram-se na ideia do internacionalismo
proletário, no compromisso de todas as nacionalidades com a amizade, a
solidariedade de classe e a dedicação aos ideais revolucionários. Reiterando as
ideias de Lenin, sem citá-lo, Stalin declarou que a tarefa especial da nova união
era a de fazer desaparecer a desigualdade nacional herdada do passado.
Lenin estava doente, porém, ainda assim, pôde insistir na perseguição de
uma solução mais equitativa para a questão nacional, num vasto país que
abarcava mais de cem nacionalidades. Stalin dificilmente desejaria solução
diferente, mas lhe faltavam perspicácia e inteligência para lidar com problema
tão difícil. Em suas memórias, Trotsky afirma que só a doença de Lenin “evitou
que ele destruísse Stalin politicamente”. Escreve também que a teimosia de
Stalin frequentemente causou perturbação em Lenin, agravando seu estado de
saúde. É eloquente o fato de, nove meses apenas depois da elevação de Stalin ao
cargo de secretário-geral, Lenin já expressar a urgente necessidade de sua
remoção. A esse respeito, a Carta ao Congresso e os últimos ensaios e cartas
que, juntos, são conhecidos como seu Testamento são de importância seminal
para o entendimento da personalidade política e moral de Stalin.
Nota

* Jogo de palavras com o idioma russo, em que “perseguido” e “processado” são iguais.
[9]
A carta ao Congresso

O destino dos últimos escritos de Lenin foi dramático. Parte


substancial foi envolvida num manto de sigilo stalinista e sonegada
ao partido. Só depois de 1956 e do XX Congresso que rascunhos
seus, como “Da outorga de poderes ao Gosplan”, “Sobre as nacionalidades ou
autonomização”, “Carta ao Congresso” e alguns outros lembretes vieram à luz.
Seu artigo “Como reorganizar o Rabkrin [Inspetoria de Operários e
Camponeses] – Propostas ao XII Congresso” foi impresso numa única cópia
para que ele a visse. Depois da publicação de versão cortada, uma carta especial
foi enviada aos comitês provinciais dizendo que se tratava de páginas do diário
de Lenin doente, que recebera permissão para escrever porque a ociosidade
mental tornara-se intolerável para ele. Essa peça de indelicadeza foi
conjuntamente assinada por Andreyev, Bukharin, Kuibyshev, Molotov, Rykov,
Stalin, Tomsky e Trotsky, em 27 de janeiro de 1923.
As preocupações de Lenin, despertadas pelos indícios de autoritarismo que
identificara, eram incompreensíveis para Stalin e muitos outros. O pensamento
principal dos últimos escritos de Lenin, entretanto, era fundamentalmente
otimista: que o socialismo tinha futuro na Rússia. As questões cardeais, como
industrialização, reestruturação da agricultura com base em princípios
cooperativos voluntários, transformação da cultura em propriedade do povo,
administração estatal, tudo era visto por ele pelo prisma da concessão de poder
às pessoas comuns do povo e da introdução da democracia em todas as facetas
da vida social. A evolução que tinha em mente também requeria novas pessoas,
e isso, para Lenin, era então a principal providência.
Antonio Gramsci, debatendo as origens do cesarismo, expressou certa vez a
interessante ideia de que quando forças contendoras se exaurem mutuamente,
uma terceira força pode emergir para então prevalecer sobre os dois lados.32 Na
Rússia, a questão, provavelmente, não foi tanto de grupos particulares de
pessoas como forças sociais – o operariado, os camponeses e o partido – e sim,
como Lenin expressou, “a vasta e ilimitada autoridade da mais fina das
camadas, a velha guarda do partido”.33 O socialismo só poderia ser construído
sobre as bases do sábio compromisso social proposto por Lenin: o da aplicação
da Nova Política Econômica-NEP* [Novaya Ekonomicheskaya Politika]
juntamente com o gradual alastramento no campo da agricultura cooperativa
voluntária. Qualquer outra política redundaria numa luta com os agricultores e
na consolidação dos métodos autoritários do governo. E o totalitarismo sempre
tem que ter seus Césares. Como outros líderes, Stalin não entendeu quando
Lenin disse que “nosso partido é um pequeno grupo de pessoas comparado
com a população do país”34 e que a NEP se tornaria a condição-chave do
movimento na direção do socialismo.
Os bolcheviques eram produto do proletariado urbano. A união com os
camponeses, mesmo que não em termos iguais, deveria vir da oportunidade de
os camponeses possuírem sua própria terra e exercerem o livre comércio. A
gente do campo só seria atraída para o socialismo por via do cooperativismo
voluntário, como Lenin anteviu, e a NEP destinava-se a cimentar as relações
entre eles e os operários. Mesmo dentro da “mais fina das camadas”, o topo do
partido, nem todos entenderam bem o que Lenin tinha em mente e o perigo
que o povo corria se fosse tomado outro caminho. Uma rota distinta implicaria
repressão e rápido desvio para o autoritarismo e o cesarismo.
Doente como estava, Lenin corria contra o tempo, temeroso de não poder
refletir sobre o futuro. No outono de 1922, teve uma réstia de esperança e pôde
retornar ao serviço ativo. Venceria ele de novo a enfermidade?
Bukharin relembra a satisfação de todos ao testemunharem a volta do líder
ao trabalho, no IV Congresso do Comintern, em 13 de novembro de 1922:

Nosso coração parou quando vimos Lenin subir ao pódio, pois sabíamos o enorme esforço que fazia.
Corri em sua direção e cobri-o com um sobretudo, pois ele transpirava de exaustão, camisa ensopada,
gotas de suor nas sobrancelhas, olhos cavados, mas com um brilho radiante, clamando por vida, como
se a grande alma entoasse loas ao trabalho.
Chorando de alegria, Clara Zetkin lançou-se para Ilyich e começou a beijar as mãos do velho.
Envergonhado e comovido, ele inverteu o movimento e tentou beijar as mãos dela. Ninguém percebia
que a doença havia lhe corroído o cérebro, e que o fim trágico e pavoroso estava perto.35
Evidentemente, Lenin sabia. Por isso, insistiu e fez apelos. Na manhã de 24 de
dezembro, Stalin, Kamenev e Bukharin discutiram a situação. Não tinham
direito de impor a Lenin que descansasse; no entanto, cuidado, atenções e
tranquilidade máxima eram essenciais. Decidiram que seria permitido a Lenin
ditar cinco a dez minutos por dia, sem corresponder-se ou esperar respostas de
seus bilhetes. Reuniões foram proibidas. Nem amigos nem empregados
domésticos poderiam levar a ele quaisquer notícias sobre a vida política, pois
isso poderia absorver sua atenção e perturbá-lo.36
Durante a doença, Lenin esteve cercado de secretários e secretárias. Ditava
notas para o Politburo, solicitava a transmissão de recados pelo telefone, pedia
dados e números, subsídios e documentos. Os secretários eram N.S. Alliluyeva
(esposa de Stalin), M.A. Volodicheva, M.I. Glyasser, Sh.M. Manucharyants,
L.A. Fotieva e S.A. Flakserman. Volodicheva estava de serviço em 23 de
dezembro de 1922, quando Lenin começou a ditar sua Carta ao Congresso.
Suas anotações no livro de serviço são concisas:

Ditou quatro minutos. Passou mal. Médicos presentes. Antes de começar, disse: “Quero ditar uma
carta para o Congresso. Escreva!” Ditou rápido, mas é óbvia sua péssima condição.37

O XII Congresso começaria em abril, e, se Lenin não estivesse em condições de


comparecer, sua carta poderia ser lida aos delegados. Suas frases foram bem
construídas e cuidadosamente refletidas. “Eu vos recomendaria com grande
empenho que sejam feitas pelo Congresso várias mudanças em nosso sistema
político.” Sem dúvida, sua cabeça estava voltada para pontos fundamentais:
democracia no partido, o poder do povo na sociedade e a maneira de atingir
esses objetivos. A democracia deveria ser a alavanca principal e o meio para se
atingir a nova ordem.

Desejo compartilhar convosco algumas considerações que reputo importantíssimas.


Encabeçando a lista, coloco o aumento em algumas dezenas ou mesmo até uma centena do número
de membros do Comitê Central. Penso que o Comitê Central enfrentaria grandes perigos se o curso
dos eventos se virar contra nós (o que não deve ser descartado) sem termos feito essa reforma.
Considero que o partido tem o direito de pedir da classe operária e obter sem grande esforço
cinquenta ou cem membros para o Comitê Central.
Essa reforma aumentaria enormemente a solidez de nosso partido e facilitaria muito sua luta em meio
aos estados hostis que, na minha opinião, podem e devem se tornar mais ativos no futuro próximo.
Creio que tal reforma multiplicaria por mil a estabilidade de nosso partido.38
Como primeiro passo para a concretização da ideia de Lenin, isto é, garantir a
democratização autêntica em todos os aspectos da vida do partido e do Estado,
os operários, constituindo a força principal da revolução, precisavam ser mais
bem representados no comitê central, o qual, em si, deveria crescer de duas ou
três vezes. Um comitê central completamente renovado, que incorporasse
representação mais ampla e se aproximasse mais das massas, diminuiria a
probabilidade de que conflitos entre pequenos grupos extravasassem e tivessem
efeito de vulto sobre todo o partido. Ademais, Lenin alertara que a situação
internacional poderia logo se agravar. Tinham que se apressar.
É importante relembrar que, com bastante frequência, Lenin não era bem
compreendido por seus camaradas. E quando o era, nem sempre recebia apoio
total: por exemplo, outubro de 1917, Brest-Litovsk, Nova Política Econômica,
ampliação do comitê central pelo recrutamento de operários. Mas fora capaz de
arrastar a caravana revolucionária atrás de si pela força avassaladora dos
argumentos e da determinação. Jamais saberia que seus alertas mais temíveis
seriam desprezados, e que seus últimos desejos em relação a Stalin não seriam
atendidos.
Voltemos à Carta.

Tenho em mente a estabilidade como garantia contra um divisionismo no futuro próximo, e


proponho que sejam avaliadas diversas considerações de ordem pessoal.
É minha opinião que membros do Comitê Central como Stalin e Trotsky são fundamentais, nessa
ordem de ideias, para a estabilidade. A meu ver, as relações entre eles constituem toda uma metade do
perigo de divisão a ser evitado e que, aliás, pode ser evitado aumentando-se o efetivo do Comitê
Central para cinquenta ou cem membros.39
Muitos acadêmicos soviéticos ainda persistem em dar peso político insuficiente a Trotsky, cujas
relações com Stalin perfaziam “toda uma metade do perigo”. Lenin percebeu que Trotsky era mais
popular que Stalin, mas tinha consciência do controle que o último adquirira. As relações estremecidas
entre as duas figuras centrais corriam o risco de transbordar para um conflito que dividiria o partido.
Tendo se tornado secretário-geral, o camarada Stalin concentrou ilimitado poder em suas mãos, e não
estou muito certo de que ele sempre usará tal poder com cuidado suficiente.40

De onde provinha o “ilimitado poder” do secretário-geral? Ele era responsável


por todos os problemas correntes, muitos deles de interesse vital para o partido.
Mas seu poder principal resultava de ter o comando da seleção e promoção de
membros do partido para o centro e para as localidades. Isso significava
milhares de membros. De início, a maioria das pessoas não viu as
possibilidades ligadas à distribuição de funcionários do partido. Stalin, no
entanto, logo fez a conexão entre aparato e partido. Lenin continuou:

Por outro lado, o camarada Trotsky, como seu conflito com o Comitê Central sobre o Comissariado
das Vias de Comunicação já mostrou, distingue-se por suas excepcionais qualificações. Pessoalmente,
talvez seja o homem mais capaz no Comitê Central de hoje, mas é excessivamente autoconfiante e por
demais atraído pelo lado puramente administrativo do trabalho.41

Ao preparar-se para dizer tais palavras, Lenin deve ter pensado que, se Trotsky
tivesse uma determinação revolucionária mais firme, poderia ser um líder com
calibre de estadista. Talvez tenha lembrado, sorridente, do discurso de Trotsky
sobre o Exército Vermelho, no último congresso, quando, em vez de enfeixá-lo
com conclusões gerais sobre a maneira de aprimorar a estrutura militar, ele
começou a falar sobre a “instrução básica militar-cultural dos soldados”. Para
uma plateia animada, ele disse:

Vamos tentar que os soldados não tenham piolhos. Trata-se de importante tarefa de instrução, porque
é necessário ser persistente, incansável, firme, exemplar e repetitivo para libertar as massas de pessoas
da sujeira em que cresceram e que as vem consumindo. Isso porque soldado com piolho não é
soldado, é meio soldado. Quanto ao analfabetismo, é um caso de piolheira espiritual. Provavelmente,
podemos liquidar com ela por volta de 1º de maio e, então, prosseguir com o trabalho sem diminuir a
pressão.42

Lenin gostou da expressão “analfabetismo é piolheira espiritual”. Trotsky era


bom em inventar, de improviso, aforismos brilhantes. Na realidade, o
publicista com frequência sobrepujava o político que existia nele, da mesma
forma que a vaidade muitas vezes dominava o bom senso, ou o desejo de
agradar a plateia punha a modéstia de lado. Não, ele e Stalin não aprenderiam
a conviver. Ambos eram ambiciosos e evidentes polos opostos. Prosseguiu:

Essas qualidades dos dois proeminentes líderes do atual Comitê Central podem, inadvertidamente,
conduzir a uma cisão.
Não me deterei nos atributos pessoais de outros membros do Comitê Central. Direi apenas que o
episódio de outubro envolvendo Zinoviev e Kamenev, embora não tenha sido acidental, não deve ser
pessoalmente imputado a eles, do mesmo modo que o não bolchevismo de Trotsky não deve ser
transformado em acusação pessoal.**
Dos membros mais jovens do Comitê Central, quero dizer umas poucas palavras sobre Bukharin e
Pyatakov. Eles são, no meu entender, as mais destacadas forças (entre as mais jovens), e se deve ter em
conta o seguinte sobre os dois: Bukharin não é apenas um teórico do partido muito valioso e
importante, mas é também legitimamente considerado o favorito de todo o partido, no entanto, é
altamente duvidoso que sua visão teórica possa ser considerada marxista por completo, já que existe
algo de escolástico nele (jamais estudou a dialética e jamais a entendeu, penso eu).43

A secretária de serviço naquele dia, depois de tomar o ditado, registrou:

No dia seguinte [24 de dezembro], durante o intervalo das seis às oito, Vladimir Ilyich chamou-me de
novo. Alertou-me de que tudo que ditara ontem (dia 23) e hoje (dia 24) era absolutamente secreto.
Repetiu isso várias vezes. Disse-me para guardar tudo que ditara em lugar especial, sob especial
responsabilidade, e considerá-lo como categoricamente secreto.44

Infelizmente, Fotieva, que era encarregada da secretaria do Sovnarkom e


também tomava os ditados de Lenin, ignorou suas instruções e logo informou
Stalin e alguns outros membros do Politburo sobre as notas de Lenin de
dezembro, de modo que sua “Carta” não surpreendeu a direção do partido.
Lenin continuou ditando no dia seguinte, 25 de dezembro:

Quanto a Pyatakov, é um homem de invulgar determinação e de notáveis capacitações, mas se inclina


demais pelo aspecto administrativo do trabalho para que a ele se confie uma matéria política séria.45

Em 26 de dezembro, Lenin ampliou suas ideias sobre o alargamento da


democracia interna no partido. Ele também via isso como um compromisso
com a melhora da administração do Estado que “na verdade, herdamos do
antigo regime, uma vez que foi impossível reformá-lo em tão curto tempo, em
particular, com a guerra, a fome, e tantas coisas”.46 Acrescentou que o comitê
central deveria ser aumentado pela convocação de camponeses, assim como de
operários, e considerava a presença deles nas sessões do Politburo como
essencial.
Junto com essas ideias, Lenin continuou voltando à sua inquietação
principal, a questão das personalidades. Quem deveria ser o líder se ele
morresse? Sabia que, em sua ausência, o cargo de secretário-geral, com seu
“ilimitado poder”, se tornaria decisivo. Como fora impedido pela doença de
presidir o comitê central, um dos membros do Politburo fora alçado,
automaticamente, ao posto de destaque. Stalin, como secretário-geral, era
responsável pela condução das questões do dia a dia do secretariado, e então
ficou patente que, se Lenin não melhorasse – o que o próprio Lenin não
acreditava, já que escrevia seu “testamento” –, Stalin tentaria reforçar sua
posição como chefe potencial. Mas Trostky poderia tentar o mesmo. Haveria
conflito, haveria divisão. Seu aconselhamento e seu alerta deveriam, pois, ser
mais específicos. Alguns dias depois, em 4 de janeiro, ele adicionou seu famoso
pós-escrito:

Stalin é por demais rude e este defeito, perfeitamente aceitável nas relações entre nós comunistas, não
é admissível num secretário-geral. Portanto, proponho que os camaradas encontrem a maneira de
retirá-lo dessa função e entreguem o cargo a alguém que seja superior ao camarada Stalin em todos os
aspectos, ou seja, mais paciente, mais leal, mais respeitoso e atencioso para com os camaradas, de
humor menos inconstante etc. Tais considerações podem parecer uma trivialidade, mas acredito que,
do ponto de vista da prevenção de um rompimento e em função do que eu disse sobre as relações
entre Stalin e Trotsky, não se trata de um assunto trivial, ou então é a espécie de trivialidade que pode
assumir significação decisiva.47

Stalin não revelara até então ambição política de vulto. Parecia ser fiel à grande
ideia, embora, talvez, a entendesse de forma diferente. Porém, como
bolchevique, o escudete de sua reputação política ainda estava incólume.
Política e moralidade, contudo, andam de braços dados e, quando entram em
descompasso, pode resultar a intriga ou a ditadura. O pós-escrito de Lenin
revela seu cuidado com o futuro, mas não demonstra animosidade pessoal.
Lenin estava acima dessas coisas. “Conquanto fosse um oponente político duro
e explorasse quaisquer instrumentos da luta política, exceto os golpes baixos”,
escreveu Lunacharsky sobre ele, “não se percebia rancor nas suas atitudes para
com adversários”.48
Lenin sentiu que os defeitos de Stalin podiam se tornar fontes de muitos
problemas, mas Trotsky também era motivo de preocupação, e não só por sua
arrogância acentuada no nível político. O fato de sua tardia adesão aos
bolcheviques poderia ter consequências. Seu extremismo de esquerda o
colocara, muitas vezes, em confronto com o comitê central, ao passo que suas
pretensões eram tão elevadas que chegara a se ofender, em setembro de 1922,
quando convidado a ocupar o cargo de vice-presidente do Sovnarkom – isto é,
ser o segundo de Lenin. Esperava uma posição especial. Mal escondia a própria
opinião de que era um gênio, e parecia mesmo acreditar que, se o desejo de
Lenin de que se removesse Stalin fosse atendido, ele se tornaria o líder do
partido.
Ao propor a substituição de Stalin, Lenin, sabiamente, deixou em aberto a
questão de quem o substituiria, porque, se indicasse um “príncipe herdeiro”,
estaria estabelecendo uma sucessão e, assim, expressando dúvida sobre a
capacidade de o comitê central encontrar o melhor candidato. Quando fez a
avaliação dos líderes mais conhecidos, Lenin deixou claro que nenhum deles
tinha as condições para liderar o partido. Nem um só. Todavia, também quis
deixar patente que o partido não deveria buscar seu líder noutro lugar.
Implicitamente, dizia que a “velha guarda” estava capacitada a exercer a
liderança coletiva, a qual, depois de criar salvaguardas para que o poder não
fosse capturado por um só homem, poderia selecionar qualquer um entre uma
dúzia ou mais de figuras bem conhecidas para servir de número um entre
iguais. Nesse caso, o fato de este ou aquele indivíduo ser mais ou menos
talentoso não teria tanta importância. Acima de tudo, o sistema democrático,
de acordo com as normas constitucionais e partidárias, estaria trabalhando em
apoio daquilo que servisse melhor aos interesses do país.
Mas seria precisamente com a ajuda da velha guarda que Stalin criaria seu
próprio sistema burocrático. Para entender por que, para estranheza
generalizada, Stalin foi alçado ao topo da pirâmide, têm-se que considerar
diversos fatores: o passado autocrático da Rússia e a ausência de hábitos
democráticos na nova sociedade, a baixa cultura política do povo e do partido,
a grande necessidade de maturidade das massas que o sistema de um só partido
impunha, a falta de proteção legal contra os abusos de poder e a peculiar
natureza da estrutura de classes da URSS.
Além do mais, havia o “segredo de invulnerabilidade” de Stalin, talvez a
característica mais importante de todas. Ele usurpou o direito de apresentar,
interpretar e comentar das ideias de Lenin a ponto de o povo acreditar, no
final, que ele caminhava lado a lado com o líder, que era, de fato, o camarada
em armas, pupilo e sucessor de Lenin. Stalin foi um fenômeno social, histórico,
espiritual, moral e psicológico. Lenin parece ter pressentido que o secretário-
geral usaria seu poder ilimitado para transformar o sistema emergente numa
burocracia totalitária, e concluído que Stalin não poderia ir adiante dentro do
núcleo governante do partido. Mas o alerta de Lenin só pode ser propriamente
entendido contra o pano de fundo do triunfo iminente de Stalin.
Dois meses antes do XII Congresso, um pleno do comitê central debateu
uma série de teses referentes à reorganização dos órgãos centrais do partido
com base no ensaio de Lenin “Como reorganizar a Inspetoria de Trabalhadores
e Camponeses” e num suplemento intitulado “Melhor menos, mas melhor”.
Decidiu-se que o tema da organização constituiria item especial da agenda do
congresso, tal como Lenin sugerira. As teses advogavam o aumento no
tamanho do comitê central de 27 para quarenta e instavam para que o
Politburo prestasse contas regulares aos plenos do comitê central. Três
representantes da comissão central de controle deveriam comparecer às
reuniões do Politburo, nas quais providenciariam para que “autoridade alguma,
nem mesmo a do secretário-geral ou a de qualquer membro do comitê central,
possa impedir que façam inquirições, inspecionem documentos e obtenham
informações essenciais, assegurando-se da estrita correção das atividades”.49
Afora essa supervisão do órgão eleito da liderança, Lenin queria uma
comissão especial para acompanhar o trabalho do comitê central e do
Politburo, no interregno entre os fóruns comunistas. O plenário aceitou,
efetivamente, os argumentos de Lenin e concordou em aumentar a comissão
central de controle (a CCC) e estreitar os vínculos entre os órgãos do partido e
o controle do Estado. Quem poderia prever que o papel da CCC seria reduzido
ao registro de questões partidárias insignificantes e que acabaria totalmente
abolida por Stalin no devido tempo?
Embora já havia um ano na função de secretário-geral, Stalin não
conseguira imprimir, para o público externo, qualquer marca particular. O
plenário submeteu o relatório dele sobre “Fatores nacionais no partido e na
construção do Estado” a uma crítica séria. Tomando suas teses apenas como
base, o plenário fez uma série de observações sobre questões de princípio. Ficou
resolvido que as teses seriam apresentadas a Lenin depois que sobre elas se
trabalhasse. Os textos de Stalin mostram muitas lacunas em seu conhecimento,
se bem que fosse considerado um especialista no assunto. O plenário nomeou
uma comissão constituída por Stalin, Rakovsky e Rudzutak para trabalhar nas
teses.50
Lenin sentia que a revolução vitoriosa requeria uma revisão, que seus
argumentos necessitavam de correção. Mas ele era também um homem de seu
tempo. Não tinha dúvida sobre a ditadura de uma classe que era parcela
insignificante comparada com os camponeses, e não voltou à ideia do
pluralismo revolucionário que advogara no final de 1917, nem condenou o
emprego da força como meio revolucionário para resolver problemas sociais.
Viveu as circunstâncias daquela ocasião; embora pudesse enxergar bem mais à
frente do que muitos e, de fato, percebesse o perigo para a democracia do
partido com a predominância de um só líder, não foi capaz de antever os riscos
para a sociedade toda ao se confiar na infalibilidade de um partido único. Fica-
se com a sensação de que ele não teve tempo de dizer tudo o que queria.
Embora não duvidasse da ortodoxia do dogma marxista do século XIX, a
importância de seus últimos escritos não pode ser exagerada.
Como frequentemente ocorria, Trotsky assumiu posição própria no
plenário. Na sua opinião, a ampliação do comitê central deixá-lo-ia pesado,
tirando-lhe a “estabilidade necessária” e, em última análise, “ameaçava causar
prejuízo extremo à precisão e à correção de seu trabalho”. Propôs que se
formasse um conselho do partido com duas ou três dúzias de pessoas. Esse
órgão daria diretrizes ao comitê central e fiscalizaria seu desempenho. Na
verdade, Trotsky estava propondo poder dual e centros duais no partido. O
plenário rejeitou a proposta depois de apenas um pequeno debate. Como
sabemos, o XII Congresso aceitou as proposições de Lenin e criou a Comissão
Central de Controle-Inspetoria de Trabalhadores e Camponeses como órgão
unificado. Algumas das ideias de seu Testamento começaram a entrar em vigor
enquanto ainda estava vivo, mas longe de serem todas.

As cinco cópias feitas da Carta foram lacradas em envelopes: uma para a


secretária de Lenin, três para Krupskaya e a quinta para o próprio Lenin. O
líder disse à secretária, M.A. Volodicheva, para escrever nos envelopes que só
poderiam ser abertos por ele ou, depois de sua morte, por Krupskaya, mas
Volodicheva não teve forças para escrever “depois de sua morte”. Somente a
primeira parte da Carta, referente à ampliação do comitê central, foi
transmitida a Stalin, e essa proposta foi levada ao congresso como parte do
relatório do secretário-geral sobre a atividade organizacional do comitê central,
sem que, no entanto, a autoria de Lenin fosse citada. Lenin ainda estava vivo, e
os envelopes permaneciam lacrados. Sob a presidência de Kamenev, o
congresso elegeu Lenin por unanimidade (e só ele!) para o novo comitê central
e enviou calorosas congratulações para o líder, para Krupskaya e para a irmã de
Lenin, Maria.51
Em março de 1923, Lenin foi arrasado por outro derrame cerebral que o
impossibilitou de exercer qualquer influência ulterior sobre as questões
partidárias, em especial para que as ideias contidas em seu “Testamento”
vigorassem. A questão de um futuro líder assumiu então absoluta importância.
Notas

* Política apresentada por Lenin no X Congresso do partido, em março de 1921. Permitia a empresa
privada na agricultura, no comércio e na maioria das pequenas indústrias para restaurar a economia
nacional e pacificar o campesinato.
** Na véspera da conquista do poder pelos bolcheviques, Zinoviev e Kamenev, acreditando que um
levante armado seria prematuro, publicaram na imprensa sua objeção. O “não bolchevismo” de Trotsky
refere-se ao fato de que ele só se filiou ao partido bolchevique em agosto de 1917.
[10]
Stalin ou Trotsky?

N ão fica bem claro para qual congresso Lenin enviou sua “Carta”. Ele
escreveu: “Eu vos recomendaria com grande empenho que sejam
feitas pelo Congresso várias mudanças em nosso sistema político” – e
parece ter tido em mente o XII, mas não o disse. Ademais, sua saúde, quando
aquele congresso foi aberto, em abril de 1923, de fato impediu que insistisse
para que a Carta fosse lida aos delegados. Surgira também uma situação
imprevista. As instruções que deixara insistiam que a abertura dos envelopes
ocorresse depois de sua morte. Portanto, é possível que a Carta fosse
endereçada ao XII Congresso e também ao XIII. Como a questão do
secretário-geral não foi levantada no XII, ela assumiu absoluta importância
depois do derrame sofrido por Lenin em março, a partir do qual ele não pôde
mais se comunicar.
Após março de 1923, Stalin, como secretário-geral, tomou providências
para fortalecer sua posição. A autoridade que detinha foi robustecida no XII
Congresso, em que ele teve maior visibilidade que qualquer outro delegado, já
que apresentou relatórios sobre a organização do comitê central e sobre fatores
nacionais nas estruturas do partido e do Estado, bem como pronunciou os
discursos de encerramento das duas matérias. Seus relatórios foram escritos na
forma notavelmente esquemática de seu estilo pessoal. Gostava de ordenar seus
pensamentos de acordo com a importância, o que tendia a causar boa
impressão por oferecer clareza e precisão. Assim, ele criou a expressão “rédeas
de condução” para a união do partido com o povo. “A rédea guia de
condução”, disse ele, eram os sindicatos, nos quais “não temos agora oponentes
fortes”. A segunda rédea era formada pelas cooperativas de agricultura e
consumo, se bem que, admitiu, “ainda não somos suficientemente fortes para
libertar os produtores primários da influência das forças que nos são hostis”,
querendo dizer os kulaks.* A terceira “rédea de condução” eram as organizações
da juventude, nas quais os ataques dos adversários eram particularmente
contundentes. Ele chegou a enumerar e categorizar, de acordo com o nicho que
ocupavam, diversas outras “rédeas”: o movimento das mulheres, as escolas, o
Exército, a imprensa. Tentou dar rótulos retóricos a cada um desses elementos:
a imprensa era “a língua do partido”; o Exército, “o ponto de reunião de
operários e camponeses”, e assim por diante.52 De modo tipicamente seu,
enquanto não dizia coisa alguma sobre o conteúdo do manejo dessas “rédeas de
condução”, era prolixo a respeito das forças hostis “que resistem a nós”. Sem
dúvida, a luta de classes prosseguia, embora, naquela ocasião, menos
ostensivamente; ainda assim, Stalin continuava a viver de rixas, embates e
confrontos com inimigos, espalhafatosos e efêmeros.
Depois do derrame de Lenin, em março, Stalin se tornou mais ativo,
passando a tratar menos com Zinoviev e Kamenev, menos ainda com
Bukharin, e rarissimamente com Trotsky. Sua autoridade política dentro do
partido cresceu lenta, mas consistentemente, e seu papel no Politburo começou
a ganhar destaque. Conseguiu-o mediante o paulatino isolamento de Trotsky,
coisa só alcançável com a ajuda de Zinoviev e Kamenev.
Numa entrevista com o autor, A.P. Balashov, um antigo bolchevique que
trabalhou no secretariado de Stalin, descreveu um incidente no Politburo
envolvendo uma colisão entre Zinoviev e Trotsky:

Todos estavam do lado de Zinoviev, que disparou contra Trotsky. “Você não vê que está cercado? Suas
artimanhas não funcionarão, você está em minoria, está sozinho.” Trotsky ficou furioso, e Bukharin
tentou colocar panos quentes. Era muito comum Stalin reunir-se com Zinoviev e Kamenev antes da
sessão para o acerto de uma posição. No secretariado, chamávamos esses encontros da troika “a
pandilha”. Nos anos 1920, Stalin teve sempre dois ou três assistentes. Em diversas ocasiões, eram
Nazaretyan, Kanner, Dvinsky, Mekhlis e Bazhanov. Todos sabiam da má vontade de Stalin em relação
a Trotsky e procediam de acordo.

Zinoviev e Kamenev nutriam planos ambiciosos e, por temerem mais Trotsky


que Stalin, foram facilmente atraídos para o lado deste. Quando, em 8 de
outubro de 1923, Trotsky escreveu uma carta aos membros do comitê central
com severas críticas à liderança partidária, Stalin, sentindo-se objetivamente em
seu direito, atacou os métodos políticos do rival.
Trotsky tinha o apoio de um grupo de bolcheviques que assinaram a
chamada “Plataforma dos 46”, figuras preeminentes como Preobrazhensky,
Pyatakov, Kosior, Osinsky, Sapronov e Rafail, entre outros. A principal crítica
de Trotsky ao comitê central era a de “o partido não ter planos de como fazer
novos avanços”. Reiterava ideias ligadas à “dura concentração industrial”, com
o fechamento de fábricas importantes, ao “endurecimento com os agricultores”
e insistia de novo na necessidade da “militarização do trabalho”. Esses pontos
merecem exame.
No seu discurso no IX Congresso, em março de 1920, Trotsky afirmara que
“as massas trabalhadoras não podem ser nômades; como os russos de tempos
passados, elas têm que ser transferidas, designadas e comandadas como
soldados. Esta é a base da militarização do trabalho e, sem ela, não pode haver
conversa séria sobre a industrialização em novas bases. Não podemos chegar a
ela em condições de ruína e fome”.53 Três anos mais tarde, ele ainda acreditava
que a aplicação de métodos militares para a indústria e para a agricultura não
perdera a oportunidade. Favorável ao “comunismo de quartel”, Trotsky caía
muitas vezes em contradição: gostava de falar sobre a ausência da democracia
no partido, porém insistia no emprego da militarização para o bem comum,
durante o período de mudança. Seja como for, ao lançar um debate sobre
questões econômicas no outono de 1923, quando Lenin estava seriamente
doente, ele, de certa maneira, colocou em xeque a política do comitê central
sobre o assunto e, pior, comprometeu a atuação de Stalin como secretário-
geral. Não obstante, a autoridade de Trotsky decaiu, ao passo que a de Stalin
aumentou.
Um pleno conjunto do comitê central e da CCC, em outubro de 1923,
condenou Trotsky. Ele só teve apoio de dois dos 114 participantes do encontro.
Com efeito, mesmo antes da reunião, já estava isolado na luta pela liderança do
partido. Foi completamente derrotado. Tentou então recorrer ao Exército, pois
ali ainda tinha considerável autoridade. Ajudado por um velho aliado,
Antonov-Ovseyenko, que chefiava a administração política do Revvoensoviet,
propôs que as forças armadas se manifestassem contra a linha do comitê
central. Todavia, com poucas exceções, os comunistas do Exército e da
Marinha recusaram-lhe apoio. O XIII Congresso de janeiro de 1924, que
debateu a matéria, não só condenou Trotsky como aprovou uma série de
resoluções no campo econômico. Em consequência, Trotsky admitiu que seus
ataques ao comitê central e a discussão que iniciara eram uma tentativa sua de
se tornar líder do partido. Não se pode deixar de notar, no entanto, que
Trotsky provocou os debates em ocasiões bastante desfavoráveis para ele e, na
verdade, sabia de antemão que seria derrotado. Ao superestimar sua própria
influência intelectual, subestimou o controle que Stalin conseguira e sua
capacidade de lançar mão de quaisquer meios.
Emblemático foi que, em outubro de 1923, justamente quando Trotsky
acendia o conflito interno no partido, Lenin visitava Moscou pela última vez.
Como a sentir que seus temores sobre um rompimento iam se concretizando,
ele se fez conduzir à capital em 18 de outubro, contrariando os médicos. No
último dia da estada, fitou através do vidro do carro, pela vez derradeira, a
Praça Vermelha, as cúpulas do Kremlin, as ruas de Moscou e os pavilhões da
exposição de agricultura. Antes de partir para Gorky, pegou alguns livros com
seu bibliotecário no Kremlin. Não se encontrou com nenhum de seus
camaradas. A silenciosa e quase secreta visita fora uma despedida particular da
capital dessa agitada terra.
Durante a revolução e a guerra civil, e por algum tempo depois, Trotsky só
perdia em popularidade para Lenin. Por exemplo, os nomes dos líderes nos
plenos do comitê central apareciam nesta ordem: Lenin, Trotsky, Zinoviev,
Kamenev, Stalin, Rudzutak, Tomsky, Rykov, Preobrazhensky, Bukharin,
Kalinin, Krestinsky, Radek, Andreyev. Mas a popularidade de Trotsky não se
refletia no número de seus seguidores pessoais. Situação paradoxal: Stalin, que
não era popular, personificava a linha do partido.
Contudo, fica claro nas obras de Trotsky que ele não partilhava na
totalidade as ideias de Lenin. Por exemplo, depois da morte de Lenin, Trotsky
tentou usar a ideia de democracia socialista como arma, enquanto ainda
defendia métodos autoritários. Deu a impressão de estar mais próximo do
bonapartismo, do cesarismo e da ditadura militar que da ideia de o povo
exercer poder genuíno. Com a mesma idade de Stalin (eles nasceram com
apenas duas semanas de diferença em 1879), Trotsky era um intelecto mais
refinado, mais brilhante, mais rico. Testemunhas da época e biógrafos, todos,
concordam que suas proposições eram vivazes, sua cultura solidamente
europeia, sua energia ilimitada, que era tribuno majestoso e amplamente lido.
Mas exagerava a importância de sua própria personalidade, mostrava-se
superior, era arrogante, autoritário e categórico com todos, exceto Lenin, e
parecia intolerante com as ideias de outros. Naturalmente, criaram aversão a
ele.
Stalin foi identificando os pontos fracos de Trotsky e passou a utilizá-los ao
máximo naquela briga particular. Trotsky não dava atenção especial à
“meticulosidade” de seus muitos discursos e observações, cuidando mais dos
aforismos que encaixava para torná-los mais paradoxais e notáveis. Certa vez,
numa conversa com Lenin, ele se saiu com uma incisiva advertência que
chegou aos ouvidos de Stalin: “O cuco em breve estará piando a morte da
República Soviética.” De outra feita, falando a delegados de um congresso do
Comintern, comentou que, se a revolução não explodisse logo na Europa e na
Ásia, “a tocha se apagava na Rússia”. Era o argumento realmente sólido de que
Stalin precisava para acusar Trotsky de capitulação e falta de fé. E quanto mais
Trotsky tentava se justificar, mais parecia acusar-se. Stalin começava a se
mostrar um lutador de tenacidade e habilidade incomuns; batê-lo não era fácil.
Como outros líderes do partido, Lenin, a despeito de reconhecer a
capacidade literária e o talento organizador de Trotsky, bem como sua extrema
vaidade, também via nele limitação política, decorrente da compreensão
esquerdista de muitas ideias marxistas importantes. Fica patente que Lenin
tentava levar Trotsky na direção que julgava recomendável e, sem dúvida, se o
líder vivesse mais, a vida de Trotsky teria sido diferente.
Mais tarde, no exílio, Trotsky tentou muito propagar a noção de que Lenin
buscara atraí-lo para um “bloco” contra Stalin e, com a ajuda do próprio
Trotsky, no XII Congresso, remover o secretário-geral de seu cargo. Em Minha
vida, Trotsky escreveu:

Lenin, sistemática e persistentemente, preparou a situação para que, no XII Congresso e na presença
de Stalin, um golpe maciço fosse desferido contra a burocracia, a proteção mútua entre os burocratas,
o arbítrio, a teimosia, a grosseria. [...] Com efeito, Lenin conseguiu declarar guerra a Stalin e seus
aliados, embora só os diretamente envolvidos soubessem disso, não o partido.54

Por que Trotsky faria tais confissões, até certo ponto sensatas? Sobretudo, para
mostrar que Lenin o considerava sucessor. Com tal objetivo, ele comentou a
Carta ao Congresso de Lenin, concluindo que “o propósito inegável do
Testamento era facilitar o trabalho da liderança para mim. Lenin queria
naturalmente conseguir isso com a menor fricção possível”. Essas palavras dão
todo o significado da longa batalha de Trotsky. Ele jamais aceitou a amargura
de sua derrota pessoal. Afinal de contas, chegara a ver-se líder.
A dubiedade da versão de Trotsky é revelada pelo que Lenin realmente
escreveu. Lenin não tinha a menor necessidade de formar qualquer espécie de
“bloco” com Trotsky contra Stalin. Sua autoridade era inconteste. O fato de, às
vezes, não ser entendido por alguns altos intelectuais é outra questão. Quando
adoeceu, houve tentativas de explicar os mal-entendidos como frutos da
enfermidade, da dificuldade de comunicação e do fato de o líder estar muito
distante e isolado. Mas não há dúvida de que, se ele estivesse bem de saúde, seu
único desejo pessoal e solidamente motivado, a saber, a substituição do
secretário-geral numa reunião do Politburo, teria sido concretizado. Lenin
podia considerar Stalin inadequado para o posto, mas a candidatura de Trotsky
não era muito melhor. Nenhum dos dois “líderes notáveis” deveria assumir o
leme da gigantesca nau do Estado russo.
As relações entre Trotsky e Stalin já eram complicadas antes da morte de
Lenin. Stalin sentira que Trotsky ambicionava a liderança. Tinha o adversário
como “aventureiro” e “impostor”, fazendo eco ao que Lenin dissera sobre o
passado menchevique de Trotsky. Com sua excelente memória, Stalin juntou os
muitos erros, zigue-zagues, desvios e voltas de Trotsky, organizando uma fieira
para futuro desmascaramento, argumentações, críticas, julgamentos. Não
esqueceu da fraseologia radical de esquerda de Trotsky em Brest-Litovsk, nem
de sua ordem para o fuzilamento de um grande número de trabalhadores
políticos no front oriental, por causa da traição de alguns militares, tragédia só
evitada pela intervenção de Lenin. Lembrou-se da proposta de Trotsky para o
envio de corpos de cavalaria à Índia para dar início à revolução, e não esqueceu
do cuco que iria piar o fim do regime soviético.
Stalin não gostou do fato de, logo depois da guerra civil, Trotsky cercar-se
de um batalhão de assistentes e secretários que o ajudaram a organizar vasto
arquivo, manter correspondência e preparar documentos e subsídios para
infindáveis artigos e discursos, facilitando seu impulso criativo. Stalin
acreditava que Trotsky via os incontáveis problemas da Rússia, em grande
parte, pelo prisma de seus próprios e estreitos interesses carreiristas, egoístas e
sedentos de poder, sem levar em conta as dificuldades da situação social e
política. A relação entre os dois logo se tornou mútua e profundamente hostil.
Trotsky, diga-se, não se dava mal só com Stalin. A rigor, não tinha aliados
próximos entre os outros líderes. Mesmo a curta aliança com Zinoviev e
Kamenev seria costurada sobre plataforma antistalinista e destituída de
princípios. Ademais, Trotsky subestimou Stalin seriamente, a “destacada
mediocridade”, como começou a chamá-lo depois de expulso do Politburo.
Após o derrame de Lenin, Stalin passou a considerar-se encarregado de
evitar que Trotsky se tornasse líder do partido. A derrota deste no debate
lançado por seus seguidores reduziu muito suas chances, independentemente
da decisão que o congresso pudesse tomar a respeito da Carta de Lenin. Stalin
se convenceu – e repetia isso nos círculos fechados, talvez como
autojustificativa – de que, se Trotsky assumisse a liderança do partido, as
conquistas da revolução correriam sério risco.
Trotsky não apenas desprezou a determinação e o intelecto de Stalin, mas
também, com seus incontáveis ataques, discussões e artigos polêmicos,
inevitavelmente fortaleceu a autoridade do secretário-geral, fazendo com que
este emergisse defensor da herança de Lenin e protetor da unidade do partido.
Quanto mais Trotsky investia contra Stalin, mais caía sua popularidade. O
fator da queda não foi tanto Stalin, mas o fato publicamente percebido de que
Trotsky estava, afinal, atacando a linha do partido, o centro. Assim, o próprio
Trotsky ajudou a consolidar a posição política de Stalin. Aos olhos do partido,
Stalin nunca pareceu oscilar para a esquerda ou para a direita, mas demonstrou
flexibilidade, e às vezes esperteza sutil, apoiando-se contra Trotsky em seus dois
futuros inimigos – Zinoviev e Kamenev. Janeiro de 1924 foi um tempo
dolorosamente triste. No dia 19 daquele mês, Kalinin informou ao Politburo
que os médicos de Lenin mostravam-se, então, decididamente otimistas quanto
a seu gradual retorno ao trabalho. Lenin já caminhava, e já eram lidos para ele
documentos sobre questões de Estado. Havia claros sinais de esperança, mas
que se esboroaram rapidamente.
A nenhum país semidestruído convém uma liderança em constante conflito
interno, no entanto, o XIII Congresso do Partido, que teve lugar em meados
de janeiro de 1924, apresentou exatamente esse paradoxo. Debateu questões
econômicas rotineiras e deu realce político à oposição trotskysta.
Em 19 e 20 de janeiro, Krupskaya leu em doses homeopáticas para Lenin
relatos sobre o andamento da conferência. Lembrou mais tarde que, quando ele
ficou agitado no sábado, dia 19, ela lhe disse que as resoluções tinham sido
aprovadas por unanimidade. O debate sobre a oposição foi cáustico. Zinoviev e
Kamenev, futuros aliados de Trotsky, exigiram sua expulsão do comitê central e
do Politburo. Terá Lenin visto aí os indícios de rachadura emanando da força
de uma única personalidade? Deve ter percebido que seus avisos tinham-se
tornado terrível realidade.
Suas condições pioraram sensivelmente no dia 21 de janeiro e ele faleceu às
18h50. O atestado de óbito confirmou a opinião dos médicos de que a causa
subjacente da doença fora esclerose pronunciada das células do cérebro
motivada pela tensão do esforço mental excessivo; a causa imediata da morte
foi hemorragia cerebral. Trotsky, que se encontrava no sul, por alguma estranha
razão não compareceu ao enterro, embora tivesse tempo suficiente para estar
presente. Da estação ferroviária de Tiflis, passou um telegrama, em 22 de
janeiro, contendo um artigo para o Pravda que continha as seguintes linhas:

E, pois, Ilyich não há mais. O partido está órfão. A classe trabalhadora está órfã. É este o sentimento
que traz a notícia da morte do professor, do líder.
Como prosseguir? Encontraremos o caminho, não nos desviaremos dele?
Nossos corações estão partidos pela dor sem limite porque, por uma grande graça da história,
nascemos contemporâneos de Lenin, com ele trabalhamos e dele aprendemos.
Como avançaremos? Com a flama de Lenin em nossas mãos...55

Foi convocada uma sessão plenária extraordinária do comitê central para a


noite de 22 de janeiro e, no dia 27, o corpo de Lenin foi entronizado no
Mausoléu da Praça Vermelha. O II Congresso dos Sovietes de Toda a União,
aberto em 26 de janeiro, aprovou a resolução de que a memória de Lenin devia
ser imortalizada. Uma cerimônia fúnebre teve lugar no Teatro Bolshoi, coberto
de negro para a ocasião.
Às 18h30 daquela noite, o presidente do comitê executivo central, Kalinin,
solicitou que os membros do presidium do comitê executivo e do comitê
central ocupassem seus lugares na plataforma. Conforme as autoridades
soviéticas descreviam até recentemente a ocasião, foi como se Stalin, ao proferir
seu “voto”, tivesse sido o único orador. A verdade é que muitos outros falaram.
O discurso de Stalin, como de hábito escrito de próprio punho, foi
pronunciado no estilo passional de um juramento e no formato catequista de
sempre. Tudo categorizado. Num hino à fortaleza e ao sacrifício que se tornaria
característico até o fim de sua vida, ele disse: “Nos esquivaremos de incontáveis
golpes [...] não pouparemos nossas vidas [...] na construção do reinado do
trabalho na terra, não no céu.”56 Em nome do partido, Stalin jurou honrar o
título de membro do partido, proteger sua unidade, reforçar a ditadura do
proletariado, fortalecer a união de operários e camponeses e das repúblicas
irmanadas, e permanecer fiel ao internacionalismo. Nada sobre o poder do
povo ou a democracia socialista ou a liberdade. Possivelmente, isso estava
implícito na promessa de reforço da ditadura do proletariado, que, afinal, tinha
seu lado não violento. É mais provável, porém, que Stalin não tenha,
simplesmente, sentido necessidade de tais sutilezas.
Começara um novo capítulo da história. O sucessor de Lenin como
presidente do Sovnarkom foi Rykov, enquanto Kamenev tornou-se presidente
do Soviete do Trabalho e da Defesa. Continuando secretário-geral, Stalin ficou
à espera do resultado do XIII Congresso onde seria lida a Carta do falecido
Lenin. Mas, que sabia ele da Carta? Os testemunhos são contraditórios.
Nota

* A palavra, cujo significado literal é punho, caracterizava, em termos soviéticos, os camponeses abastados.
Na realidade, qualquer agricultor relativamente bem-sucedido era assim rotulado.
[11]
As raízes da tragédia

S eguindo a vontade de Lenin, Krupskaya entregou a carta com o pós-


escrito ao comitê central em 18 de maio de 1924, cinco dias após a
abertura do XIII Congresso do partido, capeando-os com uma nota de
próprio punho, em que dizia que Lenin expressara o firme desejo de que, após
sua morte, suas anotações fossem levadas à atenção do congresso do partido
que se seguisse.57 Com base num relatório submetido pela comissão designada
para receber as anotações de Lenin, o plenário, que se reuniu na véspera do
congresso, concordou que os documentos fossem lidos “dentro das delegações,
ficando bem entendido que eles não devem ser reproduzidos”.58
Infelizmente, ninguém no Politburo se mostrou em condições ou quis
entender por completo as ideias de Lenin. O XIII Congresso lidou com muitas
questões importantes, mas todas relacionadas com assuntos da ocasião, não
com o futuro. A ideia central de Lenin, a do aumento do poder do povo, não
foi a preocupação principal do congresso. Nisso, talvez, assentou a semente das
desditas que viriam.
Embora tanto o XII quanto o XIII congressos tenham, de fato, ampliado o
comitê central, os nomeados, ainda que valiosos, eram predominantemente ex-
revolucionários profissionais, enquanto o cerne da ideia de Lenin era uma
expansão do comitê central pela entrada de operários e camponeses.
De forma parcial, Zinoviev discutiu a questão da democracia socialista, que
tanto inquietara Lenin. Citou um “engenheiro burguês” que ora servia ao
regime, o qual dissera que não bastava proporcionar as necessidades básicas, as
gentes tinham que desfrutar também dos “direitos do homem”. Enquanto não
gozarmos de tais direitos, afirmara o engenheiro, permaneceremos inertes. Se
não for reconhecido que “o homem é o mais alto valor no estado”, o povo
continuará com fraca iniciativa nas áreas social e trabalhista. No entanto, a
resposta de Zinoviev a esse estado de espírito que imperava na intelligentsia foi:
“Não devemos perder tempo com esse assunto. É óbvio que pessoas assim vão
ver tais direitos em nossa república como veem suas próprias orelhas num
espelho.”59 Zinoviev não era o único no comitê central que carecia de uma
concepção humanista profunda do socialismo. A ignorância daqueles homens
também alimentou as raízes de males futuros. É verdade que, passados apenas
seis anos e meio da revolução, sem o mando autoritário do partido a República
Soviética dificilmente teria resistido ao furioso assalto dos inimigos internos e
externos. Mas a negligência dos princípios democráticos viria à tona mais cedo
ou mais tarde.
A Carta de Lenin não foi tratada como deveria no congresso. Uns poucos
escolhidos deram conhecimento dela a um limitado número de delegações.
Kamenev mostrou-se particularmente ativo, indo de delegação em delegação. A
Carta não foi discutida, como tal, pelo congresso. Depois das “leituras”, a
comissão encarregada dos documentos de Lenin apresentou verbalmente uma
resolução preparada com antecedência, pela qual se impôs a Stalin tomar
conhecimento das críticas de Lenin, e deu-se por encerrado o assunto. Esse
procedimento com a Carta significou que seu conteúdo jamais foi totalmente
apreciado e, portanto, ela não foi utilizada para fortalecer as normas
democráticas da vida partidária, tampouco para imprimir mudanças estruturais
no escalão de comando, ou para elevar uma nova figura ao cargo de secretário-
geral. Por outro lado, quase um ano e meio decorrera desde a Carta ser escrita
e, naquele período, Stalin tivera que declarar guerra a Trotsky, o qual, pouco
antes da morte de Lenin, atacara acerbamente a linha do partido e a Nova
Política Econômica. Ao defender o partido daquela investida, Stalin, na
realidade, defendia a si mesmo, mas era apoiado pela maioria partidária e isso
fazia com que os delegados acreditassem que a remoção de Stalin seria o
reconhecimento de que Trotsky estava certo.
Muitos delegados não atinavam com os estratagemas da política e
confundiam muito a forma com a substância. Foi graças em grande parte a seus
memoráveis discursos que Trotsky manteve a popularidade por tanto tempo.
Em parte porque os delegados estavam submetidos a um certo grau de
“processamento” e pressão, mas também devido ao baixo nível de sua cultura
política, muitos não entenderam a razão de um documento vital como a Carta
não ter sido debatido abertamente no congresso, a necessidade de tamanho
sigilo e o porquê da não publicação das propostas de Lenin. Cultura política
subdesenvolvida, não só da maioria da população mas do partido, foi também
fonte importante de males no porvir. Entrementes, a consciência daqueles
bolcheviques de cultura política mais elevada, que entenderam que o
Testamento de Lenin merecia exame acurado, foi silenciada pelo slogan da
“unidade”. Não exerceram a faculdade de julgamento moral, e não foi a última
vez que isso ocorreu. A ascensão de um novo líder se processaria em condições
nas quais a democracia foi apequenada e emasculada, o partido transformou-se
numa máquina de poder e a consciência de muitos, que deveriam ter
protestado pública e ostensivamente contra a usurpação do poder por uma só
pessoa, permaneceu embotada. O fato é que expressar a própria consciência
demanda coragem intelectual e, como regra, a ansiedade medrosa revelou-se
mais forte. A liberdade não tinha grande prioridade no credo bolchevique.
Quando Stalin ouviu falar da Carta de Lenin, anunciou sua renúncia ao
cargo.60 Se fosse aceita, as coisas poderiam ter sido bem diferentes. Ele tomou a
decisão correta, como qualquer bolchevique em sua posição deveria ter feito,
mas não foi um ato decisivo. Na verdade, Stalin deu por duas vezes sua
demissão nos anos 1920. Na segunda vez, depois do XV Congresso, em
dezembro de 1927, ele agiu mais categoricamente. A oposição trotskysta-
zinovievista fora derrotada e o congresso assinalou formalmente o fato. No
primeiro pleno depois do congresso, Stalin apresentou uma solicitação ao
comitê central:

Considero que as circunstâncias recentes forçaram o partido a manter-me neste cargo, como alguém
rigoroso o suficiente para servir de antídoto à oposição. Agora, a oposição foi derrotada e expelida do
partido. Além do mais, temos instruções de Lenin e acho que chegou a hora de cumpri-las. Portanto,
solicito ao plenário que me desobrigue do cargo de secretário-geral. Asseguro-vos, camaradas, que o
partido só tem a ganhar com isso.61

Naquele instante, porém, sua autoridade havia crescido, e ele era visto no
partido como quem lutara pela unidade e se expusera contra os vários
facciosos. Sua renúncia foi recusada de novo. Stalin, sem dúvida, esperava por
isso, e encenou a demissão como um ato para fortalecer sua posição.
Voltando ao XIII Congresso, Kamenev e Zinoviev tomaram providências
para que as exortações de Lenin pela substituição de Stalin não fossem
atendidas. Persuadiram o secretário-geral a retirar sua declaração verbal e,
juntos, engendraram uma fórmula para que Stalin pudesse levar em conta as
observações do líder falecido. Pessoalmente, cabalaram junto às principais
delegações, praticamente desqualificando a ideia de Lenin, enquanto
reabilitavam seu futuro coveiro. A principal motivação dos dois foi impedir que
Trotsky ocupasse o posto mais elevado, que eles mesmos ambicionavam.
Estiveram menos preocupados com a sorte da revolução, a vontade de Lenin
ou o destino do país. O mais velho imperativo do mundo vigorou, a saber,
interesse pessoal, ambição, vaidade. Como Trotsky, no entanto, também eles
subestimaram Stalin grosseiramente. No início dos anos 1920, Zinoviev, por
exemplo, repetira para um círculo íntimo, “Stalin é um bom executor, mas
precisa sempre ser orientado e se deixa levar. Não tem qualificações para a
liderança”. Zinoviev e Kamenev esperavam, aparentemente, que Stalin
permanecesse na função de secretário-geral apenas para administrar o
secretariado, enquanto outro fazia o papel de primeiro violino no Politburo, e
esta pessoa, naturalmente, seria Zinoviev. Stalin percebeu a manobra da dupla
e, por algum tempo, passou-lhe a impressão de submissão. Providenciou que
ninguém, senão Zinoviev, apresentasse o relatório político ao congresso.
Temente de Trotsky, a dupla não encarava Stalin como perigo. De sua parte,
Trotsky mostrou-se passivo no congresso. Parecia só esperar ser convocado. Tal
era a situação no núcleo do comitê central.
Hoje, décadas depois, é possível ver que as pessoas que se interpuseram no
caminho dos desejos de Lenin foram Zinoviev e Kamenev, e, é claro, Stalin,
que não poderia ter feito coisa alguma sem eles. Aquele era o mesmo Zinoviev,
capaz de vangloriar-se publicamente do fato de que, durante dez anos
completos, de 1907 a 1917, fora o pupilo mais próximo de Lenin, e de que
ninguém apoiara Lenin com tanta assiduidade em Zimmerwald e Kienthal
quanto ele. Por seu turno, Kamenev era íntimo da família Ulyanov e não
escondia tal fato. De uma forma ou de outra, aqueles gêmeos políticos
passaram a crer que assumiriam papéis de destaque depois da morte de Lenin.
Foram eles, juntamente com Stalin, que tomaram a decisão de não tornar
pública a Carta de Lenin. E, conquanto esse documento tivesse sido publicado
num boletim de atividades do XV Congresso, por sugestão de Ordzhonikidze,
seu conteúdo não chegou a seções amplas do partido ou da nação.
Tão logo derrotou Trotsky, Stalin perdeu o interesse em Zinoviev e
Kamenev e, em mais 12 anos, iria calmamente ordenar-lhes o extermínio físico.
Quantas vezes, em desespero, os dois se recordariam da ocasião em que,
desdenhando a Carta de Lenin, eles próprios deram ao ditador e seu futuro
carrasco a ajuda necessária? Diga-se, em nome da honestidade, que quando
Stalin rompeu com eles, assumiram uma posição de “princípio” e se voltaram
contra o secretário-geral. Já durante o XIV Congresso, em dezembro de 1925,
Kamenev, um dos líderes na “nova oposição”, pronunciou palavras verdadeiras,
mas tardias: “Cheguei à convicção de que o camarada Stalin não preenche os
requisitos de um unificador do quartel-general bolchevique” – mas os
delegados tomaram tal pronunciamento apenas como ataque de rotina da parte
de um membro de facção. Todavia, nada altera o fato de que foram eles, contra
a vontade de Lenin, que mantiveram Stalin no cargo de secretário-geral.
Naquelas circunstâncias, tendo perdido o debate, Trotsky procurou salvar as
aparências adotando uma posição flexível. Zinoviev classificou seu
pronunciamento ante o XIII Congresso “não como um discurso de congresso”,
mas sim “parlamentar” – ele não se dirigiu aos delegados, mas ao partido como
um todo, e tentou “não dizer tudo o que pensa”. O discurso de Trotsky, com
efeito, foi inusitado. Sua crítica principal foi à burocracia do aparato do
partido. Reforçou sua argumentação citando Lenin e Bukharin, e atacou a
chefia do comitê central de sua posição de inovador e combatente em defesa
das tradições revolucionárias do partido. Segundo Trotsky, era a burocracia do
aparato, em todos os escalões, que gerava o facciosismo, e havia doses de
verdade em sua alegação.
Mas Trotsky pensava mais em si do que no partido. Continuava o mesmo;
precisava da toga da democracia como cobertura verbal para seus ataques à
linha adotada pelo comitê central. Porém, o partido não esquecera que ele fora
um dos iniciadores do “comunismo de quartel” que deflagrara a degeneração
burocrática. O XIII Congresso não fez progresso algum no desenvolvimento da
democracia visualizada por Lenin. Muitos talvez tivessem pensado que a
remoção de Stalin robusteceria a posição de Trotsky. E, caso este não se tivesse
comprometido com o desafio de outubro de 1923, suas chances na sucessão
seriam bastante altas, mesmo não contando com a maioria da velha guarda.
Pode-se, então, dizer que Stalin reteve o cargo graças à “ajuda” de Trotsky.
As fundações democráticas da estrutura do partido e do Estado foram
apenas delineadas por Lenin. Ele não teve tempo para produzi-las. Tome-se
apenas uma das facetas da democracia: a do rodízio entre os funcionários
governantes. Mesmo que Stalin tivesse permanecido no cargo, caso seu
mandato fosse limitado por um procedimento estabelecido, as deformações
aparecidas depois no seu culto à personalidade talvez não ocorressem. É
perfeitamente compreensível que a rainha Victoria, Catarina, a Grande, ou o
Xá do Irã pudessem permanecer no trono por décadas, já que eram monarcas.
Mas a presença prolongada de Stalin como chefe do partido e do Estado,
virtualmente sem ser cerceado por alguém ou algo, só poderia levar a
problemas. A proposta de Lenin ao XII Congresso, constante de sua nota sobre
a reorganização da Inspetoria de Trabalhadores e Camponeses, antevia a
renovação compulsória nos órgãos diretores do partido e limites nas funções do
comitê central e nos sovietes. Esses primeiros surtos de democracia não
despertaram atenção e cedo viram-se engolfados pelo emaranhado mais
poderoso do dogmatismo, da burocracia e do mando mecanizado via
administração. O futuro culto ao “grande líder” não surgiu por acidente.
No começo, não houve indícios externos de que a usurpação do poder
ocorria. Ao contrário, Stalin batalhou contra Trotsky sob a bandeira de uma
liderança coletiva em oposição ao bonapartismo, aos métodos ditatoriais, à
pretensão de liderança individual e à ambição desenfreada revelados pelo
adversário. Trotsky continuava explorando o capital político que amealhara na
guerra civil, sem perceber que ele minguava com rapidez. Ao atacar Trotsky,
Stalin propunha uma alternativa mais progressista e democrática, a liderança
coletiva, se bem que já planejasse transformá-la gradualmente em proveito
próprio. O primeiro a tirar do caminho era, naturalmente, Trotsky. No meio-
tempo, era mister não forçar a situação. A composição do Politburo depois do
XIII Congresso, por conseguinte, permaneceu a mesma, e até Trotsky ainda
manteve seu lugar. O único rosto novo foi o da estrela ascendente do partido –
Bukharin. A descrição que Lenin fez dele – “o favorito do partido” – acelerou
seu avanço para os postos mais elevados. Dzerzhinsky, Sokolnikov e Frunze
tornaram-se candidatos a membro do Politburo. O secretariado assumiu nova
feição com Stalin como secretário-geral, Molotov como segundo secretário e
Kaganovich como secretário – uma base de apoio bem mais segura, na
perspectiva do secretário-geral. Stalin, provavelmente, sobrevivera ao pior
momento de sua carreira política: não deixara o importante cargo, a despeito
dos anseios de Lenin, e sua posição na chefia fora revigorada.

A Carta de Lenin desapareceu das vistas do partido durante décadas. Ela não
foi publicada no Leninskii sbornik (“Miscelânea de Lenin”), malgrado a
promessa de Stalin de fazê-lo. É bem verdade que a Carta aflorou algumas vezes
nos anos 1920 em decorrência da luta interna no partido. Chegou mesmo a ser
publicada no Boletim nº 30 do XV Congresso do partido (tiragem: 10 mil
cópias), com o carimbo “Apenas para membros do VKP(b)”,* sendo
distribuída para comitês provinciais e para as frações comunistas do comitê
central dos sindicatos; parte dela foi impressa no Pravda de 2 de novembro de
1927. Portanto, não procede a afirmação de que o partido nada sabia a respeito
dela. Mas o não cumprimento imediato da vontade de Lenin tornou difícil
fazê-lo mais tarde, ainda mais porque Stalin, a princípio, tentou mudar seu
comportamento, ao menos para uso externo. O principal motivo, contudo, foi
que, aos olhos do partido, Stalin se transformara no líder da maioria do comitê
central que estava em conflito com os oposicionistas, mesmo que tal oposição,
como regra, só expressasse diferenças intelectuais, pontos de vistas distintos e
alternativas. Stalin, entretanto, empenhou-se para fazer com que os termos
“oposição” e “facção” fossem entendidos como sinônimos de hostilidade.
Gerações subsequentes de membros do partido só ouviram falar na Carta de
Lenin no XX Congresso, em 1956. Esse tipo de segredo foi pernicioso, já que
erodiu os elementos democráticos existentes e, inevitavelmente, criou a
impressão de que a verdade podia ser sequestrada. Vale a pena ressaltar que
Karl Radek escreveu em “Resultados do Décimo Segundo Congresso do RKP”,
publicado em 1923, que algumas pessoas desejaram “capitalizar” em cima das
últimas cartas de Lenin dizendo que “elas continham coisas secretas”, fato que
impossibilitou sua publicação.62
No final, a tentativa de esconder a verdade revelou-se inútil, não sem antes
danificar consideravelmente a conscientização pública, a cultura política e os
valores espirituais da sociedade soviética. A mania do segredo era inata em
Stalin e, em consequência dela, carimbos de sigiloso apareceriam em todos os
tipos de arquivos, até em documentos elementares. Claro que existem segredos
de estado – e continuarão existindo –, mas tornar secretas correspondência
comum e informações rotineiras passou a ser um estilo. Ninguém parecia
perceber que a imposição de segredo excessivo na vida social e do Estado
lavrava o solo para a corrupção. No centro de todos os segredos estava o
próprio Stalin, reagindo pessoalmente contra o fluxo constante das
informações.
O texto da Carta de Lenin foi, graças em parte aos esforços de Trotsky,
publicado repetidas vezes no Ocidente. Primeiro, nos Estados Unidos, com um
extenso comentário antissoviético feito por aliado de longa data de Trotsky,
Max Eastman. Depois, na França, nos anos 1930, Boris Souvarine, cidadão
francês de origem russa e colaborador do L’Humanité, também o analisou.
Trotsky trabalhou muito e com afinco para atrair atenção para a Carta, porém,
no final de sua vida, só tinha uma interpretação para ela: Lenin havia proposto
a remoção de Stalin do cargo e recomendara aos delegados que fizessem de
Trotsky, o mais capaz e inteligente dos candidatos, líder do partido. Repetiu
isso com tanta frequência em seus livros que é bem provável que passasse a
acreditar na história.
As ideias de Lenin, tal como expressas no Testamento, subentendiam um
amplo espectro de medidas democráticas. Ele propôs o aumento no fluxo de
sangue novo no partido e na liderança do Estado, o fortalecimento do papel
dos sindicatos, juntamente com o dos sovietes, das organizações sociais e dos
órgãos de segurança, e que a liderança prestasse mais contas aos operários.
Mesmo que não fizesse referências a plebiscitos, referendos, pesquisas de
opinião, fiscalização obrigatória da liderança ou rotação estrita nos quadros do
partido, e outras características similares da democracia, estava implícito um
sentido de equidade no que advogou no fim da vida.
O desleixo do partido quanto a esse princípio básico iria ter seu preço em
todas as esferas da vida. Não obstante, para dar ao sistema político o que lhe é
devido, grande atenção foi dispensada em instruir o povo e as gerações
sucessivas sobre a revolução, o socialismo e o comunismo. A imagem do “novo
homem” ideal foi propagada como modelo do indivíduo do futuro. Já nos anos
1920, a despeito do surgimento de tendências burocráticas, o lado ideológico
da reestruturação da sociedade recebeu importância primordial. Simplicidade,
parcimônia pública, ausência do sentimento de posse na vida comunitária
cotidiana, prontidão na resposta a todos os reclamos da sociedade, profunda
aversão à indiferença cultural, ao materialismo e ao consumismo, e um alto
nível de espiritualidade estranha aos valores comerciais: essas características nas
pessoas dos anos 1920, 1930 e 1940 testemunham que a burocracia não
sufocou o melhor que existia nelas. O povo manteve a fé na ideia.
Depois da morte de Lenin, Stalin, que não se dispunha a trocar a cabine de
comando por um mero ministério ou outro, tomou seu destino nas próprias
mãos. Mas o perigo do que estava por acontecer já estava lá, no sistema
centralizado. Os alertas de Lenin foram desprezados. A velha guarda, aferrada
que estava à luta interna, não aceitou o papel da liderança coletiva. A liberdade
conquistada enevoou-lhe a visão do porvir.
Como Nikolai Berdyaev escreveu: “A experiência da Revolução Russa
confirmou uma antiga ideia minha, qual seja, a de que a liberdade não é
democrática, é aristocrática. As massas sublevadas não se interessam pela
liberdade, não precisam dela, nem se dispõem a arcar com a responsabilidade
por ela.”63 Ideia discutível, sem dúvida, mas verdadeira quando aplicada às
massas e à velha guarda, que foram incapazes de lidar com a liberdade.
Nota

* No seu XIV Congresso, em 1925, o Partido Comunista de Toda Rússia (bolcheviques) – de sigla
RKP(b) – tornou-se o Partido Comunista de Toda União (bolcheviques) – de sigla VKP(b).
Parte III
Opção e luta

A verdade é filha do tempo, não da autoridade.


Francis Bacon
[12]
Construindo o Socialismo

A s dores do parto da nova sociedade continuavam. Depois do XIII


Congresso, Stalin começou a recuperar a confiança que esteve prestes a
perder. Antes da morte de Lenin, ele dificilmente podia cogitar sobre
ambições pessoais sérias. Mal se pode dizer com absoluta certeza que, mesmo
depois, acreditasse que o aparentemente impossível fosse se realizar.
Muitos dos livros da biblioteca que começou a organizar no pequeno
apartamento que ocupou no Kremlin, a partir de 1920, eram de edições pré-
revolucionárias. Faziam parte da coleção obras de Marx, Engels, Plekhanov,
Lafargue, Rosa Luxemburgo, Lenin, Tolstoy, Garshin, Tchekov, Gorky,
Uspensky, bem como de escritores menos conhecidos. Muitos contêm
anotações a lápis, palavras sublinhadas e marcas.
Pensamentos de Napoleão tem observações a lápis ao lado do parágrafo onde
o imperador relembra: “Foi precisamente naquela noite em Lodi,* que passei a
crer em mim como pessoa incomum, consumida pela ambição de concretizar
grandes coisas, até então apenas fantasias.”1 Será que Stalin acreditava que a
permanência no cargo de secretário-geral, contra o desejo de Lenin, era sua
Lodi? Provavelmente, foi, de fato, o ponto culminante de sua carreira política:
aos 45 anos de idade, ele não se sentia, de forma alguma, mais fraco que seus
colegas do Politburo e do comitê central.
Pensou cada vez mais a respeito disso nos raros momentos de folga que
desfrutava na sua dacha em Zabolovo, nas cercanias de Moscou. No início dos
anos 1920, havia centenas de mansões, villas e casas de subúrbio abandonadas
no entorno da capital. Seus ex-proprietários tinham fugido para o exterior,
submergiram no banho de sangue da guerra civil ou viram seu “luxo burguês”
simplesmente confiscado. Muitas dessas casas foram convertidas em hospitais e
orfanatos para crianças extraviadas ou abandonadas, depósitos de suprimentos,
ou sanatórios para as instituições que proliferavam no Estado. Não longe de
Usovo, havia cerca de uma dúzia dessas villas. A que pertenceu ao barão do
petróleo Zabolovo foi destinada a Stalin, enquanto as demais o foram para
Voroshilov, Shaposhnikov, Mikoyan, Gamarnik e outros líderes militares, do
partido e do Estado.
O filho de Stalin, Vasili, nasceu em 1921 e, alguns anos mais tarde, chegou
Svetlana. Pouco antes de ela nascer, Yakov, fruto do primeiro casamento do
secretário-geral, juntou-se à família. A esposa de Stalin, Nadezhda Sergeyevna
Alliluyeva, 22 anos mais nova que ele, lançou-se com zelo e dedicação à tarefa
de organizar um lar simples. Eles viviam modestamente com o salário de Stalin,
até que ela começou a trabalhar, primeiro no jornal Revolução e Cultura,
depois, na secretaria do Sovnarkom e, finalmente, a estudar na Academia
Industrial. Certa vez, durante o jantar, Stalin disse subitamente a ela: “Jamais
gostei de dinheiro porque, normalmente, nunca o tive.” Interessante é que os
arquivos contêm recibos, que ele passava a Stasova, de adiantamentos que
recebeu sobre “os salários do mês seguinte” nos valores de 25, 60 e 75 rublos.
Posteriormente, o casal contratou uma babá e uma empregada. Ainda não
existia a enorme equipe do pessoal de segurança, os mensageiros, as dezenas de
outros cargos depois criados. Os líderes daqueles dias iniciais evitavam o termo
“empregados”, de conotação burguesa, e chamavam o pessoal de “equipe de
serviço”. Como os líderes daquele tempo, Stalin vivia com simplicidade, no
orçamento familiar e nas normas do partido. Em outubro de 1923, o comitê
central e a CCC distribuíram um documento especial a todos os comitês do
partido. Listando as medidas adotadas pelo IX Congresso do partido de
setembro de 1920, o documento estipulava que não seria permitido usar
recursos do Estado para a melhoria de instalações particulares, para mobiliar
uma dacha, para dar bônus e recompensas em espécie a funcionários, e exigia
dos membros do partido a mais estrita observância da conduta moral. Os
salários dos “especialistas” e funcionários não podiam ser muito discrepantes
dos de operários comuns. Ignorar aquelas orientações, concluía a circular, seria
ir de encontro à democratização e levaria à “desmoralização do partido e ao
enfraquecimento da autoridade dos comunistas”. A circular sublinhava
também o princípio de Lenin de que “funcionários comunistas não têm direito
a gratificações pessoais, bônus e pagamento de horas extras”.2 Nos dias de
Lenin, existia mesmo uma lei não escrita para que os membros do comitê
central cedessem aos fundos do partido os direitos autorais por seus escritos.
Os líderes partidários de então não tinham posses de valor, e mesmo falar
sobre tais coisas era encarado como sinal de mau gosto, filistinismo, e até
mentalidade antipartidária. Stalin tinha uma propensão natural para a
austeridade material. Quando faleceu, descobriu-se que era proprietário de
diminutos bens pessoais – alguns uniformes, um par de botas de feltro bordado
e um sobretudo de couro de carneiro. Ele não ligava para objetos, amava o
poder.
Quando as circunstâncias permitiam, havia reuniões aos domingos,
frequentemente na dacha de Stalin. Bukharin e sua esposa compareciam, como
também Yenukidze, Mikoyan, Molotov, Voroshilov e Budyonny, quase sempre
com mulheres e filhos. Budyonny cantava canções russas e ucranianas
acompanhado por um acordeão, e podiam até dançar. Trotsky jamais visitou
Stalin em sua dacha.
O grupo reunia-se em torno de uma mesa e ficava horas debatendo a
situação interna e as questões internacionais. O sogro de Stalin, o antigo
bolchevique S.Ya. Alliluyev, que era muito respeitado, geralmente estava
presente, repetindo histórias dos “velhos tempos”. Era membro do partido
desde sua fundação e se orgulhava disso. Havia discussões, algumas vezes bem
acaloradas, mas existia bastante intimidade e os convivas tratavam uns aos
outros por “ty”, sem que ninguém sentisse necessidade de ser obsequioso,
muito menos bajulador ou insinuante. Stalin era mais um entre iguais.
Dez anos antes, aquelas pessoas eram párias da sociedade, e agora estavam à
frente de um Estado gigantesco cujas feridas provocadas pela guerra e pela
rebelião mal tinham cicatrizado. Muitas questões tratadas naqueles encontros
entrariam, mais tarde, na agenda do Politburo. Por exemplo, em certa ocasião
Molotov revelou a soma de dinheiro que o Tesouro vinha perdendo com a
quantidade de grãos utilizada na fabricação de bebidas ilegais. Poucos dias
depois, em 27 de novembro de 1927, saiu uma ordem do Politburo, assinada
por Stalin, formando uma comissão permanente encarregada do combate à
vodka destilada caseiramente, à cocaína e ao jogo (em especial a lotto).3
Igualmente, depois de um debate sobre as causas da doença e morte de Lenin,
ficou decidido que certas medidas deveriam ser tomadas melhorando os
cuidados médicos da liderança do partido. No pleno do comitê central de 31
de janeiro de 1924, foi aprovada a resolução que selecionava “um camarada
particular para monitorar a saúde e as condições de trabalho dos membros da
liderança”.4
Tudo começou com “trivialidades”. O pensamento elitista da liderança que
pregava o igualitarismo deu lugar a outros privilégios: diversas suplementações
(“envelopes”), vagões ferroviários privados, vilas no sul, enormes “equipes de
serviço”. Debatiam muito “como instilar o socialismo”. A direção fora bastante
clara no começo, mas como segui-la, a que velocidade, com que meios? Tudo
isso estava longe de ser evidente. Depois que os convidados se iam, Stalin
caminhava para cá e para lá durante muito tempo, pensando no dia seguinte.
Adquirira tanto responsabilidade como receio pelo futuro, mas também ficara
mais vaidoso, ganhara mais autoestima: seria, talvez, essa fase de luta e falta de
definição a sua Lodi?

O ideal ocorre quando poder e sabedoria entram em harmonia, coisa rara.


Como regra, o futuro é do mais forte e não, infelizmente, do mais sábio.
Sócrates disse que os filósofos deveriam ser governantes, e os governantes,
filósofos. Força sempre precisa da sensatez. A despeito de por longo tempo o
povo soviético confundir sua astúcia e seus métodos ladinos com sabedoria,
Stalin tinha poder, mas não era moderado, e quando chegou a hora de
selecionar os meios para levar as grandes ideias à vida cotidiana, tal
característica desempenhou papel trágico.
A energia das massas tinha sido liberada, a questão era como dirigi-la para o
objetivo, para o ideal, para as alturas, que mesmo Lenin achara que estavam
próximos. A imprensa partidária vivia apinhada de artigos escritos por
especialistas aconselhando maneiras de proceder. Tudo era tão novo. Por vezes,
parecia que um slogan era suficiente para fazer as coisas caminharem sozinhas.
No final de 1924, em Kislovodsk, Trotsky escreveu seu livro Lições de
Outubro, no qual tentou de novo amesquinhar o desempenho dos outros
líderes da revolução com o propósito de estabelecer a base “teórica” de sua
reivindicação pela liderança. Como o jornal Bolshevik (nº 14, 1924) assinalou,
ele deixara de ser um “cronista” para se transformar num perseguidor
preconceituoso. Tentou mostrar que, durante a revolução, “o comitê central
estava certo quando concordava com Trotsky e Lenin, e errado quando
discordava de Trotsky”. Uma revolução, escreveu Trotsky, tem suas marés, e
quando se perde uma delas, pode-se perder a revolução. Ele por certo sabia
pegar a onda bem no ponto mais alto. A revolução, para ele, acontecera porque
Lenin e Trotsky estavam à testa, a despeito da maioria dos “Velhos
Bolcheviques”.
Trotsky argumentou novamente que a Revolução dependia de forma
decisiva da “sequência com que ocorra revolução nos vários países da Europa”.5
Em A revolução permanente (refeito na forma de livro, em 1928, de artigo
originalmente publicado em 1905), ele escreveu com maior ênfase ainda que a
revolução socialista em um só país era impensável, que “manter a revolução
proletária dentro dos limites nacionais só poderia significar um regime
temporário, ainda que prolongado, como a experiência da União Soviética
demonstrou”. Para a questão de como construir o socialismo, Trotsky,
efetivamente, deu a resposta, “pela espera da revolução mundial,
impulsionando-a”. Trotsky acreditava que revoluções de outubro espocariam
no mundo, uma atrás da outra, e que o Exército Vermelho teria que ajudar
outros países para a grande sublevação. Isso poderia ser considerado bazófia
esquerdista, não o “crime” que mais tarde lhe foi imputado. Ao contrário de
Stalin, Trotsky tinha em si um poderoso traço de revolucionário romântico.
Sobre a teoria da “revolução permanente”, Trotsky escreveu: “A Rússia não
pode caminhar independentemente para o socialismo. Porém, tendo aberto a
era das transformações sociais, ela pode dar impulso ao desenvolvimento
socialista da Europa e, dessa forma, ser levada ao socialismo pelo rebocador dos
países avançados.”6 Essa era sua visão antes de 1917. Ele mudou um pouco de
posição depois da revolução e elaborou seu ponto de vista na forma de um
diálogo:

Stalin: “Então você nega que nossa revolução pode conduzir ao socialismo?” Trotsky: “Acredito, como
sempre acreditei, que nossa revolução pode e tem que levar ao socialismo ao assumir um caráter
internacional.”

Mais adiante, ele explica: “O segredo de nossas contradições teóricas repousa


no fato de que você se atrasou em relação ao processo histórico e agora tenta se
recuperar. De uma certa forma, tal fato também explica o segredo de nossos
erros econômicos.” A teoria da construção do socialismo em um só país,
segundo Trotsky, era incompatível com a teoria da revolução permanente. Só a
superindustrialização, à custa do setor agrícola, como escreveu Preobrazhensky
em apoio a Trotsky, poderia prover o Estado com a base industrial e a
possibilidade de socialismo.
O conhecimento de Stalin sobre economia era extremamente superficial,
mas ele podia perceber que o país atravessava estágio perigoso. Os debates e
argumentos no partido, que se processavam por quase uma década, não eram
apenas uma batalha sobre o nível e o caráter da sociedade democrática, mas
também uma busca da maneira de desenvolver a economia. Se Stalin tivesse
maior percepção econômica, seria capaz de ver nos últimos artigos de Lenin os
esboços de uma concepção de socialismo que incorporava um vínculo entre a
industrialização e a agropecuária cooperativa voluntária, um poderoso
crescimento da cultura das grandes massas, uma melhora nas relações socialistas
e o incondicional desenvolvimento dos princípios democráticos na sociedade.
Porém Stalin jamais entendeu adequadamente a profecia de Lenin de que a
NEP enfeixaria todos esses problemas com um só nó: que ao se ligar a cidade
ao campo, liberando-se as alavancas econômicas, e por intermédio do comércio
e da antiga industriosidade do homem de negócios, “a Rússia socialista
emergiria da Rússia da NEP”.7
De início, Stalin interessou-se pelas opiniões econômicas de Bukharin,
Preobrazhensky, Strumilin e Leontiev, mas achou a terminologia abstrusa que
empregavam difícil de acompanhar. Não tendo jamais pisado numa fábrica ou
sentido o cheiro da terra arada na primavera, e por nunca ter conseguido
dominar o “economês”, ele, finalmente, admitiu a possibilidade de uma
“escassez de bens” sob o socialismo – que ainda aí está hoje em dia. Falando
com honestidade, ele bem que tentou compreender alguma coisa de economia.
Por exemplo, leu o livro de O. Ermansky, A organização científica do trabalho e
o sistema de Taylor. Talvez o tenha lido porque Lenin elogiou a obra de
Ermansky (um menchevique cujo nome real era Kogan) por ser capaz de expor
“o sistema de Taylor, mostrando, e isso é por demais importante, seus lados
positivos e negativos”.8
No entanto, a julgar por seus trabalhos escritos, bem como por suas
anotações e assertivas, mas principalmente por suas medidas práticas, fica
patente que o credo econômico de Stalin era mais do que simples. O país tinha
que ser forte, não meramente forte, mas poderoso. Em primeiro lugar, ele
precisava ser totalmente industrializado; em segundo, o campo levado para
mais próximo do Socialismo. O método deveria ser a mais ampla confiança na
ditadura do proletariado, que Stalin entendia puramente em termos
coercitivos. Em 1926, escreveu no Bolshevik (nº 9-10, 1926): “Estamos
tentando equacionar tarefas maiores e mais sérias, cuja solução nos levará com
segurança e sucesso na direção do socialismo, porém, à proporção que as tarefas
se tornarem maiores, as dificuldades crescerão.” Essa fórmula teria um eco sinistro
no seu ditado de mais tarde: “A luta de classes se intensifica quanto mais rápido
progredimos para o socialismo.” Em meados dos anos 1920, Stalin tinha
apenas uma percepção embaçada do caminho para a construção do socialismo,
todavia, sem sombra de dúvida já tinha seu método na cabeça: força, comando,
diretrizes, ordens. Em outras palavras, ditadura.
Ao ler os intermináveis discursos de figuras de proa do partido sobre o
destino do socialismo na URSS, Stalin sentiu que a ampla gama de pontos de
vista provinha não só de diferenças nas posições intelectuais e teóricas dos
autores, mas também do fato de a realidade se revelar muito mais complexa do
que os bolcheviques previam. Como Bukharin escreveu francamente, em 1925:

Eis como nos acostumamos a ver o problema: conquistaríamos o poder, tomaríamos quase tudo em
nossas mãos, introduziríamos imediatamente a economia planejada, puniríamos os recalcitrantes
remanescentes e dominaríamos o restante, e isso seria tudo. Hoje, vemos com clareza que não é assim
que é feito.9

Stalin dificilmente discordaria disso, mas sentia que o grande perigo estava em
Trotsky. Acabara de saber que o rival declarara num círculo de seguidores que
“alguns novos grandes do partido não podiam perdoá-lo pelo papel que
desempenhara em outubro”. Saindo dos lábios de Trotsky, o termo “grandes”
só podia significar Stalin e, aparentemente, esse não era o pior epíteto que o
adversário e seus aliados vinham empregando contra ele.
Se bem que as relações com Kamenev e Zinoviev permanecessem, pelo
menos na fachada, satisfatórias, Stalin sentiu que suas maneiras francas e a
constante influência que exercia não eram muito do agrado da dupla. Passou a
perceber isso com mais intensidade depois do XIII Congresso. No relatório que
fez sobre cursos para secretários de comitês distritais, Stalin criticara Kamenev
por ter afirmado a existência de uma “ditadura do partido”, e concluiu dizendo,
acompanhado por expressões de apoio dos delegados: “Não temos uma
ditadura do partido e sim uma ditadura do proletariado.” Deve-se realçar que
Bukharin, que à época partilhava a ideia da “ditadura do partido”, declarou no
plenário do comitê central de janeiro de 1924:

Nossa tarefa é perceber dois perigos: o primeiro vem da centralização de nosso aparato. O segundo é o
da democracia política que pode resultar se a democracia for muito longe. A oposição, entretanto, só
vê o perigo da burocracia. Não enxerga o risco da democracia política além do risco da burocracia. [...]
Para apoiar a ditadura do proletariado, temos que dar suporte à ditadura do partido.
Ao que Radek acrescentou: “Nós somos um partido ditatorial num país
burguês trivial.”10
Mas Stalin, que não via necessidade de lutar contra muitos, criticou apenas
Kamenev. Para ele, o importante era não correr as frentes, mas tratar de cada
uma a seu tempo. De imediato, a parelha política contra-atacou. A crítica de
Stalin foi considerada, numa reunião do Politburo, inadequada ao
companheirismo e imprecisa quanto à verdadeira posição de Kamenev. Stalin,
de pronto, pôs seu cargo à disposição. Foi a segunda vez que o fez como
secretário-geral, e não seria a última. A demissão foi mais uma vez recusada, e
exatamente por Kamenev, com o apoio de Zinoviev. Stalin percebeu uma
crescente ambiguidade nos dois oponentes. Evidentemente, eles ainda temiam
Trotsky, porém, mais uma vez, mudavam de direção como um cata-vento. De
que valia o livro Leninismo de Zinoviev? Na verdade, ele tentava de novo
camuflar e justificar seu comportamento e o de Kamenev em outubro de 1917,
e o desacordo dos dois com Lenin. Stalin tinha memória maligna e iria usar
decididamente tais fatos no futuro.
Tão logo se visse livre de Trotsky, cuidaria daqueles “boquirrotos
inescrupulosos”. Até mesmo ele, que transformara a rudeza em uma de suas
virtudes, por vezes se enervava com a postura afirmativa de Zinoviev. Falando
no pleno do comitê central de 14 de janeiro de 1924 sobre o assunto “lista de
discussão”, Zinoviev fez comentários excessivamente francos sobre muitos
membros do comitê e sobre outros bolcheviques que tomavam parte no debate,
como se fosse um comandante de companhia avaliando subordinados.
“Pyatakov”, declarou ele presunçosamente, “é um bolchevique, mas seu
bolchevismo ainda é imaturo. Verde e imaturo”. De Sapronov, disse: “Ele tem
os dois pés no chão, porém não representa nada mais que leninismo.” Osinsky
“denota um desvio de tipo mais intelectual, não tendo absolutamente nada em
comum com o bolchevismo”. Tampouco deixou de atingir Trotsky de
passagem, o que deve ter sido muito agradável para Stalin, embora não
houvesse conexão óbvia: “Certa vez, quando chegamos em Copenhague para
um congresso, nos foi dada uma cópia do jornal Vorwärts na qual havia um
artigo anônimo afirmando que Lenin e seu grupo eram criminosos e
expropriadores. O autor do artigo foi Trotsky.”11
Enquanto, sentado, Stalin ouvia tudo aquilo, deve ter passado por sua
mente que Zinoviev já se via chefe. Não emitiu opinião sobre o discurso no
plenário, mas, dois anos mais tarde, iria desmantelar pedra por pedra a posição
de Zinoviev. Em maio de 1926, numa nota para os membros da delegação do
partido ao Comintern, Stalin escreveu:

Referindo-se aos seus 17 anos de atividade literária, o camarada Zinoviev se jacta de que não cabe aos
camaradas Stalin e Manuilsky ensinar-lhe a necessidade de combater a tendência de ultraextremismo
de esquerda. Não é preciso provar que o camarada Zinoviev se acha um grande homem, porém se o
partido também pensa assim, há dúvida.
De 1898 até a Revolução de Fevereiro de 1917, nós, os velhos ilegais, despende-mos tempo e trabalho
em todas as regiões da Rússia, mas jamais encontramos o camarada Zinoviev fosse na clandestinidade,
na prisão ou no exílio.
Nós, os velhos ilegais, sabemos que existe uma galáxia de antigos membros que entraram no partido
bem antes do camarada Zinoviev, e que o construíram sem fanfarronice ou espalhafato. Como
comparar aquilo que o camarada Zinoviev chama de atividade literária com o trabalho que todos os
nossos velhos ilegais empreenderam sub-repticiamente durante vinte anos?12

Em meados da década de 1920, os adversários de Stalin já entendiam que


aquela “destacada mediocridade” era um político excepcional, sagaz, ladino e
determinado. Os líderes do partido e do Estado que tiveram com ele qualquer
tipo de ligação logo se conscientizaram disso. Quando se examina esse período
da história, sente-se, inevitavelmente, que as grandes questões da opção
histórica eram, com frequência, empurradas para segundo plano pelas
ambições pessoais dos líderes, e que o debate sobre a maneira de construir o
socialismo foi severamente afetado pelas rivalidades pessoais. Os contendores
principais foram Stalin, Trotsky e Zinoviev. Por trás da rixa, existiam as
questões concretas de política e economia, de atitudes para com o camponês,
das formas de industrialização, da teoria e prática do movimento comunista
internacional. Vez por outra, a diferença sobre tais questões era, de fato, de
importância secundária e o acordo poderia sair com base no denominador
comum. Ainda assim, as ambições pessoais, a rivalidade, o combate
irreconciliável, em especial entre Stalin e Trotsky, imprimiam à disputa um tom
dramático que fazia com que quaisquer ideias que diferissem das suas fossem
logo descritas por Stalin como hostilidade de classe, capitulação, revisionismo,
traição, e assim por diante.
Deve-se também ressaltar que Stalin não se fixou de imediato em
determinado conceito sobre a forma de construir a nova sociedade. Nem
sempre entendia ou, talvez, não partilhava das ideias de Lenin, especialmente
aquelas dos últimos ensaios e cartas. Stalin, com frequência, voltava
mentalmente às concepções do Comunismo de Guerra, foi compelido a tolerar
por algum tempo a NEP e entendeu que, sem uma união cerrada e orgânica
entre a classe operária e os camponeses, seria impossível lidar com todos os
problemas. A escolha que fez foi marcada por uma gradual inclinação pelo
cesarismo, o mando de um só, a ditadura, sem que o povo pudesse manifestar-
se sobre seu próprio destino. Stalin não foi um teórico. Seus argumentos
normalmente se baseavam em citações, reforçadas pelo impulso da vontade.
Mentalmente, sintonizava com os métodos coercitivos de Trotsky e, a esse
respeito, foi, na realidade, o líder bolchevique que mais se aproximou dele. Tal
afinidade interna, adornada pela antipatia pessoal, sustentou, paradoxalmente,
a aversão e a repulsão mútuas entre os dois polos de ambições.
Meditando sobre as atitudes de Zinoviev e Kamenev, Stalin desdenhou: “E
são essas as pessoas que escrevem sobre leninismo?” Ele, sim, é que poderia
escrever sobre o assunto, mas para que todos sentissem seu entendimento
totalmente oposto ao de seus companheiros de viagem temporários. No meio-
tempo, precisava atacar Trotsky. Stalin preparou-se com particular cuidado para
o discurso que faria no plenário das frações comunistas dos sindicatos, em 19
de novembro de 1924. Falando depois de Kamenev, intitulou seu texto
“Trotskysmo ou leninismo?”
Todo o discurso foi devotado ao ataque a Trotsky, com referências de
passagem à defesa de Zinoviev e Kamenev, classificando como “acidental” o
episódio em que os dois se envolveram em outubro: “O desencontro durou
apenas uns poucos dias, isso porque, em Zinoviev e Kamenev, tínhamos
leninistas, bolcheviques de verdade.” Começou, então, a fazer perguntas
retóricas à plateia:

De que serviam os recentes discursos de Trotsky sobre o partido? Qual o significado, o objetivo, a
intenção de tais discursos quando o partido não quer o debate, está sobrecarregado de tarefas
prementes e precisa do trabalho conjunto para a restauração da economia, e não de uma batalha
renovada sobre velhas matérias? Por que Trotsky tem que puxar o partido de volta a novas discussões?

Dando sequência à sua tirada, Stalin passeou o olhar pelo salão e respondeu ele
mesmo, de forma áspera e num tom de voz profundo e uniforme:

A julgar por todos os fatos, a “motivação” é que Trotsky faz outra (mais uma!) tentativa de preparar o
terreno para substituir o leninismo pelo trotskysmo. Trotsky precisa, desesperadamente, desestabilizar
o partido e os quadros que tomaram parte no levante, para que então possa desbancar o leninismo.13
Havia certa verdade nisso. Ao mesmo tempo em que cobria Lenin e o
leninismo com adjetivos elogiosos, Trotsky, gradual e repetidamente, lançava
dúvidas sobre certos argumentos leninistas a respeito da construção do
socialismo. Segundo ele, socialismo na Rússia era uma impossibilidade sem o
apoio de outros países; a industrialização não podia ser concretizada apenas às
expensas do campo; a NEP era o primeiro passo para a capitulação; o plano das
cooperativas era prematuro; Outubro era mera continuação da Revolução de
Fevereiro; sem o treinamento em “exércitos de trabalho”, o povo não
entenderia as “vantagens do socialismo”, e vai por aí. Tendo-se em mente que
Zinoviev e Kamenev, ao formarem a “nova oposição” que “iria sitiar” Stalin, já
estavam encontrando Trotsky a meio caminho, o discurso de Stalin, primeiro
contra Trotsky e, depois, contra seus novos aliados, poderia àquela altura ser
qualificado como uma “defesa do leninismo”. Havia pouco pensamento
construtivo no que foi dito pelo secretário-geral, especialmente quando se
considera que Trotsky não estava de todo errado, em particular no que dizia
respeito aos perigos da burocracia. Stalin ainda lutava com meios lícitos,
embora o que “defendesse” fossem citações e não sua motivação intelectual.
Concluiu assim seu pronunciamento no pleno: “Eles falam de repressões contra
a oposição e da possibilidade de rompimento. Isso é um despropósito,
camaradas. Nosso partido é resistente e poderoso. Não permitiria rompimento
algum. Quanto a repressões, sou decididamente contra.”14
Naquela ocasião, Stalin revelou generosidade ao não criticar Zinoviev e
Kamenev, e mesmo ao protegê-los de Trotsky. Os fundadores da “nova
oposição”, no entanto, não aceitaram o ramo de oliveira. Numa reunião do
Politburo no início de 1925, Kamenev, apoiado pelo confrère, declarou que o
atraso tecnológico e econômico soviéticos em relação aos países capitalistas que
os circundavam representava um obstáculo insuperável para a construção do
socialismo. Com efeito, Zinoviev e Kamenev haviam formado um bloco com
Trotsky, o mesmo Trotsky ao qual endereçaram crítica devastadora poucos
meses antes, precisamente sobre o mesmo tema. O ataque da “nova oposição” à
política do partido necessitava de resposta e uma diretriz partidária sobre passos
adicionais a tomar na esfera da construção socialista. Para tanto, era de enorme
importância a XIV Conferência do partido no final de abril de 1925. Stalin,
naquela oportunidade, não apresentou relatório, tampouco participou do
debate. Os relatórios essenciais foram feitos por Rykov sobre cooperativas, por
Dzerzhinsky sobre a indústria metalúrgica, por Tsyurupa sobre imposto na
agricultura, por Molotov sobre estrutura do partido, por Solts sobre legalidade
revolucionária, e por Zinoviev sobre tarefas do Comintern. Por tradição ou
inércia, a conferência foi presidida por Kamenev, da mesma forma que presidia
o Sovnarkom e o Politburo. Mas aquela seria a última vez. Nem ele nem
Zinoviev jamais estariam de novo à frente de reuniões como aquela. É provável
que o assunto mais importante tratado pela conferência tenha sido a
proposição que declarou que, a despeito da tese de Zinoviev, a vitória do
socialismo era possível na URSS, mesmo no contexto de uma desaceleração da
revolução mundial. Todavia, a vitória do socialismo só poderia ser considerada
completa quando houvesse garantias internacionais contra a restauração do
capitalismo.
O debate sobre a legalidade socialista foi crucial. Solts, que abriu a discussão
e que partilhara o exílio com Stalin em Turukhansk em determinado período,
observou que, depois da vitória da revolução, “sentimos mais a necessidade de
aprimorar nossa economia que a de legalidade revolucionária”. Agora,
entretanto, disse ele com intenção manifesta, “os membros do partido [...] têm
que entender que nossas leis, em todas as suas manifestações, tanto confirmam
como reforçam o edifício que queremos construir e robustecer, e que,
desrespeitando essas leis, destruiremos tal edifício”.15
Alguns dias depois da conferência, Stalin fez um discurso para ativistas da
organização partidária de Moscou. Chamou uma parte do discurso de “Sobre o
destino do socialismo na União Soviética”. Mais uma vez, sujeitou Trotsky à
crítica vitriólica e zombou de novo de sua teoria da “revolução permanente”.
Falando com sentimento e convicção, explicou a essência da vitória final e
completa do socialismo na URSS. Os primeiros sinais do papel e do lugar
especiais que iria ter e ocupar no partido surgiram ali. Deixando a modéstia de
lado, citou, à exaustão, ideias e afirmativas de sua própria lavra. Ao expor suas
proposições corretas (até então), preparava o partido para aceitar a noção de
que ele tinha um direito particular de postular a verdade.
Stalin testou seus pontos de vista não só nos discursos para o comitê central
e na imprensa, como também nas poucas ocasiões diante de operários. Seu
assistente, Tovstukha, escreveu um dos discursos que o secretário-geral
pronunciou nas Oficinas Stalin da Ferrovia Outubro, em 1º de março de 1927.
Stalin, marcando o compasso com a mão, explicou pausadamente:

Estamos completando a mudança total de um país agrário em um industrial, sem o concurso do


mundo exterior. Como os outros países fizeram essa jornada?
A Inglaterra criou a indústria pelo roubo em suas colônias durante duzentos anos inteiros. Não há a
hipótese de enveredarmos pelo mesmo caminho.
A Alemanha arrancou cinco bilhões [de francos] da França derrotada. Porém, esse curso, o do roubo
mediante guerras vitoriosas, também não nos convém. Nossa causa é de paz.
Existe uma terceira rota, a escolhida pela Rússia czarista. E ela contempla empréstimos estrangeiros e
acordos secretos à custa dos operários e dos camponeses. Não podemos seguir tal rota.
Temos o nosso caminho, que é o da poupança própria. Não o percorreremos sem cometer enganos,
falhas haverá. Mas o edifício que estamos construindo é tão grande que esses enganos e falhas, no
final, não terão importância.16

No dia seguinte, o jornal Rabochaya Moskva publicava um relato:

Os aplausos surgem como rajadas de metralhadoras. O homem, envergando o cáqui dos soldados,
calçando botas surradas, e cachimbo na mão, posta-se diante da plateia. “Vida longa para Stalin! Vida
longa para o [comitê central]!” Bilhetes são passados a Stalin. Enroscando o bigode preto, ele os estuda
com atenção. O salão permanece silencioso, e Stalin, secretário-geral do partido e o homem que deu
nome à oficina, começa sua conversa com os operários.

Essas aparições de Stalin eram extremamente raras. Ele preferia discursar em


conferências, no Kremlin ou nos plenos do comitê central. E sua presença
pública foi se tornando ainda mais escassa. Quanto mais enigmático e
impenetrável é o chefe, mais combustível proporciona para as lendas a seu
respeito.
Os preparativos para o XIV Congresso do partido (distinto da XIV
Conferência) tiveram lugar com o pano de fundo dos primeiros sucessos na
construção econômica e cultural. Em 1925, a produção total do setor agrícola
chegou a 112% dos níveis de antes da guerra. Fato notável. A NEP começava a
dar frutos. A produção industrial, que durante cinco anos dera mostras de total
ruína, atingiu três quartos da situação anterior ao conflito. Surgiram as
primeiras instalações industriais, em especial usinas geradoras de energia. E
tudo isso quando os melhores economistas estrangeiros prediziam que os níveis
pré-guerra só seriam alcançados em 15 ou vinte anos.
Resultados substanciais foram também conseguidos na batalha contra o
analfabetismo. Uma rede de escolas foi criada, em particular nas repúblicas
nacionais. Medidas importantes foram tomadas para criar um sistema de
educação superior e uma série de providências de vulto adotadas para acelerar o
trabalho educacional e cultural. A Academia de Ciências para Toda a Rússia foi
transformada na equivalente para Toda a União. Naquela oportunidade, obras
de reputação mundial foram produzidas pelos historiadores M.N. Pokrovsky e
V.I. Vernadsky, pelo geneticista N.I. Vavilov, pelo agrogeólogo V.P. Vilyams
(Williams), pelo químico N.D. Zelinsky, pelos geólogos A.E. Fersman e I.M.
Gubkin, pelo físico A.F. Ioffe e muitos outros pioneiros da ciência soviética.
O Exército Vermelho foi organizado com sucesso para períodos de paz e, ao
mesmo tempo, foram empreendidas reformas militares. O trabalho ganhou
impulso especial quando Trotsky foi removido do cargo de comissário do povo
do Exército e da Marinha pelo pleno do comitê central de janeiro de 1925, e
substituído por M.V. Frunze.
Vale a pena lembrar um incidente que teve lugar naquele pleno. Zinoviev e
Kamenev nele tomaram uma atitude inesperada. Para o lugar de Trotsky como
comissário do Exército e da Marinha, e de presidente do Revvoensoviet,
Kamenev propôs Stalin. Essa jogada teve mais de uma interpretação. É possível
que Zinoviev e Kamenev, sentindo o crescente poder de Stalin, decidissem
transferi-lo para outra posição responsável e respeitada, de modo a tirá-lo do
posto de secretário-geral no congresso seguinte, mediante o ressuscitamento da
Carta de Lenin. Ou talvez esperassem matar dois coelhos com uma só
cajadada, afastando Trotsky definitivamente e desferindo, ao mesmo tempo,
forte golpe em Stalin. Ora, se Trotsky fez a parte de um coelho, Stalin não foi
tão cordato. O Secretário-Geral demonstrou clara surpresa, até mesmo
irritação, com a proposta de Kamenev, como muitos membros presentes do
comitê central puderam testemunhar. A proposta de Kamenev foi derrotada
por maioria de votos. A matéria foi discutida sem a presença de Trotsky, que
dera parte de doente. Esse pleno foi, em linhas gerais, importante para Stalin,
pois a posição de Trotsky ficou ainda mais enfraquecida e não houve apoio para
Zinoviev e Kamenev. No “jogo das combinações”, o secretário-geral se mostrou
capaz de fazer aquilo que os adversários não conseguiram, ou seja, debilitar
tanto Trotsky quanto a velha dupla. O influente trio Stalin, Zinoviev e
Kamenev estava, de fato, desfeito, porque o secretário-geral não via mais uso
para o mesmo.
O XIV Congresso do partido se aproximava. Seria um marco do debate
sobre as maneiras de industrializar a economia do país. Ainda assim, em
dezembro de 1925, quando ele teve lugar, era difícil acreditar na concretização
do que saía publicado nos jornais. O Dnieper ainda continuava rolando
mansamente sem que represa alguma domesticasse suas águas; no itinerário
previsto para a Ferrovia Turquestão-Siberiana tempestades de areia formavam
grandes dunas; o local da famosa Fábrica de Tratores de Stalingrado ainda era
um terreno baldio; ninguém poderia sequer sonhar que, no curso do Plano
Quinquenal, os altos-fornos de Magnitka estariam dominando as elevações
circundantes, nem que os pioneiros da ciência dos foguetes estivessem perto da
era dos voos espaciais – no início dos anos 1930, seria lançado o primeiro
foguete soviético, o Gird-X (Grupo para o estudo da propulsão de foguetes,
1932-34).
As condições, decididamente, melhoravam. A Nova Política Econômica deu
aos bolcheviques oportunidades históricas. Com efeito, era o primeiro modelo
de “socialismo de mercado” capaz de sustentar a máquina do empreendimento
sob novas circunstâncias. A NEP facilitou o rápido crescimento da agricultura.
A indústria se aproximava dos níveis pré-guerra. Os observadores viam na
comissão estatal de eletrificação não apenas um meio de eletrificar o país, mas
um caminho para a elevação da economia socialista às alturas de uma nova
estrutura política. Mas era apenas o começo e dependia da ultrapassagem de
muitos obstáculos.
Os preços foram estabelecidos pelos trustes industriais que começaram a
operar segundo princípios comerciais. Surgiram as distorções. Por exemplo, por
um bom pedaço de sabão, um corte de tecido de algodão ou um balde de
parafina, um camponês tinha que vender de três a quatro vezes mais grãos do
que em 1913. O descontentamento cresceu e tornou-se motivo de inquietação.
As esperanças na criação de subsídios não se concretizaram, empréstimos dos
Estados capitalistas não se materializaram, e o comércio de exportação nem
chegou a 50% do nível anterior à guerra. Um milhão e meio de desempregados
enchiam as divisões de oferta de ocupações. Um em cada dois adultos do sexo
masculino não sabia ler ou escrever. Não havia como comprar máquinas e
ferramentas. Na realidade, nenhuma construção de vulto estava em curso.
Mesmo assim, os jornais estampavam que o país vivia às vésperas de mudanças
enormes. Parecia que o jovem Estado não tinha escolha: para sobreviver num
mundo complexo e perigoso tinha que correr. Foi nessa atmosfera que o XIV
Congresso teve lugar. A figura dominante do encontro foi Stalin,
principalmente porque apresentou o relatório político, item principal da
agenda. Confirmando a posição assumida na XIV Conferência, o congresso
aprovou resolução asseverando que, “em geral, a vitória do socialismo (não no
sentido de sua vitória final) é definitivamente possível em um só país”. O
congresso afirmou que a mudança para a industrialização era a tarefa principal
para a reestruturação da sociedade, enquanto os delegados reconheceram que
tal caminho demandaria pressões e sacrifícios máximos. A questão do tempo foi
debatida, embora ninguém tivesse noção clara do que significava.
Afora o trato das principais questões econômicas, o congresso viu-se de
novo na luta contra a “nova oposição”, cujas forças mais expressivas estavam
representadas pela delegação de Leningrado chefiada por Zinoviev. E foi este
quem apresentou o relatório da oposição. Seu discurso para o congresso,
contudo, soou extremamente brando, seus argumentos e os de seus seguidores,
fracos e inconvincentes. Eles alertaram, com boas razões, para o perigo da
burocratização do partido, a qual, na perspectiva deles, já começara. Não
obstante, suas alegações tinham características por demais pessoais para
surtirem o efeito desejado sobre os delegados. Foi nessa ocasião que, como já
mencionamos, Kamenev afirmou abertamente: “Cheguei à conclusão de que o
camarada Stalin não pode desempenhar o papel de unificador do Estado-maior
bolchevique.” Porém, enquanto ele falava, a maioria dos delegados começou a
bradar “Stalin! Stalin!” numa ovação ao secretário-geral. Stalin sentiu que sua
“defesa do leninismo”, que não cansava de praticar, ganhava apoio dentro do
partido. Foi exatamente sobre o monopólio da “defesa do leninismo” e de sua
interpretação, combinado com o baixo nível de cultura política da maior parte
dos membros do partido, que repousou sua popularidade. A autoridade de
Stalin foi, aos poucos e quase sem ser notada, atingindo a extensão de todo o
partido. Um fator decisivo foi também o fato de Stalin, desde a morte de
Lenin, passar a falar em nome da “liderança coletiva” e a advogar que fossem
tornadas públicas as demandas urgentes de Lenin que as massas mais
entendiam: restauração da economia nacional, desenvolvimento de
cooperativas, reativação do comércio, aumento da alfabetização.
Stalin pareceu jamais inclinar-se para oposição alguma, mas tal impressão
foi apenas criada porque ele proclamava todas as suas medidas, decisões,
críticas e propostas como puramente “leninistas”. Na realidade, com frequência
apoiou grupos diversos e chegou a dar alguns passos em falso, mas “corrigiu”
rapidamente sua posição. Aprendeu como ninguém a projetar essa posição de
leninista. Em nome da verdade, deve ser dito que muitas das ideias que
defendeu (se bem que não todas) eram de fato leninistas, mas ficou óbvio que
sua noção de leninismo passou a ter um tom cada vez mais autocrático.
Diversos membros do partido muitas vezes ligaram a linha do partido ou o
trabalho do comitê central a um determinado indivíduo e, na ausência de
Lenin e de um líder evidente, Stalin, o “unificador do estado-maior
bolchevique”, emergiu como quem deu expressão pessoal aos primeiros
sucessos na economia, à política de unidade do partido e ao revigoramento do
setor agrícola. Ficou suficientemente claro para a maioria dos delegados que
Zinoviev, Kamenev e Trotsky eram impulsionados nos seus ataques ao comitê
central pelo desejo de se apoderarem da liderança. A derrota da oposição foi
irrestrita.
Essa fase de conflito no partido também se refletiu na organização. O
comitê central reconvocou Zinoviev para presidente do comitê executivo do
Comintern e, por iniciativa da delegação soviética, o cargo foi logo totalmente
abolido. S.M. Kirov substituiu Zinoviev como chefe da organização partidária
de Leningrado. Kamenev foi destituído dos cargos de vice-presidente do
Sovnarkom e presidente do Conselho do Trabalho e da Defesa. Tanto Zinoviev
como Kamenev retiveram suas posições no Politburo, enquanto Voroshilov e
Molotov ingressaram nele pela primeira vez, reforçando muito, dessa forma, a
posição de Stalin.
No discurso de encerramento do relatório político, que durou mais de uma
hora, Stalin sujeitou novamente Zinoviev, Kamenev, Sokolnikov, Lashevich e
seus seguidores a uma crítica cáustica e concluiu reafirmando a linha do
partido sobre a construção do socialismo e sobre o fortalecimento da unidade
nas fileiras partidárias. Por outro lado, não pôde passar despercebido o fato de
Stalin citar constantemente seus próprios discursos e artigos, e de fazê-lo sem o
mínimo acanhamento, enquanto aqueles de visão política –
desafortunadamente, muito poucos – não tinham como deixar de se
conscientizar sobre a maneira sem-cerimônia de o secretário-geral distribuir
críticas. Stalin respondeu de forma insultuosa a um discurso de Krupskaya,
tachando-o de “asneira definitiva”. Mais tarde, voltaria a Krupskaya,
declarando com certa dose de incitação de massas: “Em que aspectos, então, a
camarada Krupskaya é diferente de qualquer outro camarada com
responsabilidade? Pensa você que os interesses de alguns camaradas podem ser
colocados acima dos do partido e de sua unidade? Para nós bolcheviques, a
democracia formal é um recipiente vazio, e os interesses reais do partido são
tudo.” Chamou Lashevich de formulador de esquemas, disse que Sokolnikov
gostava de causar desordens com seus discursos, Kamenev era um desnorteado,
Zinoviev, um histérico, e por aí foi.17
Parece que Stalin começava a deslizar para a posição em que até a
democracia informal era considerada por ele um recipiente vazio. A
imperdoável aspereza em relação a Krupskaya não foi, é claro, apenas falta de
tato político contra sua pessoa e contra a memória de Lenin, mas também
vingança dissimulada pela rememoração de cartas, chamadas telefônicas e
conversas em que ela se envolveu durante o tempo de vida de Lenin. Stalin
jamais perdoou a alguém coisa alguma.
Evidentemente consciente de que tinha se excedido em algumas partes do
seu discurso de encerramento, Stalin recorreu a um expediente que iria utilizar
também em outras ocasiões. Justificou a rudeza na crítica ao artigo “A filosofia
de uma época” de Zinoviev, dizendo que ela era endereçada tão somente ao
hostil e ao estranho, e se devia apenas à maneira franca de seu temperamento.
Gradualmente, transformou o lado repulsivo de sua natureza em virtude do
partido, quiçá, numa qualidade revolucionária. Lamentavelmente, já àquela
época, a do XIV Congresso de 1925, não havia comunista, fosse delegado ou
membro do comitê central, capaz de avaliar, com calma e dignidade, a
personalidade de Stalin e sua propensão para a espécie de crítica insultuosa que,
na ocasião devida, passaria a funcionar como um julgamento.
Stalin, é evidente, não omitiu Trotsky no exame crítico que fez dos
oposicionistas. Sentindo o estado de espírito da maioria e livrando-se da
proposta de Kamenev de transformar o secretariado em simples organização
técnica, ele enfatizou ser contra o “banimento” de certos membros da liderança
do comitê central. Calculou, em função do ambiente, que era prudente
declarar mais uma vez que, se os camaradas insistissem, “estava pronto para
deixar o cargo sem qualquer estardalhaço”. “A expulsão significa sangue”,
declarou em meio a aplausos, “e é maneira perigosa e contagiante de proceder.
Hoje, afastamos uma pessoa, amanhã, outra, no dia seguinte, uma terceira –
que há de sobrar do partido?” Falou como político experiente, angariando cada
vez mais o apoio dos delegados e mostrando desinteresse pessoal e preocupação
com o futuro do partido. Ao mesmo tempo que escarnecia da oposição e a
criticava, revelava sua “magnanimidade” pelo uso de frases como “Bem, boa
sorte para eles!”. Conquanto já tivesse decidido que chegara a hora de
abandonar a companhia de Zinoviev e Kamenev, Stalin demonstrou querer a
paz: “Somos pela unidade, somos contra expulsões. A política da expulsão nos
repugna. O partido deseja a unidade e vai consegui-la, com Zinoviev e
Kamenev, se assim o quiserem; sem eles, caso não o desejem.”18
Dignas de nota no discurso de encerramento foram as diversas proposições
de Stalin que, se tivessem sido implementadas, evitariam o pior período da
história do partido. Por exemplo, cercado pelos aplausos e pela aprovação óbvia
dos delegados, anunciou:
O pleno decide tudo e chama a atenção dos líderes quando começam a perder o equilíbrio. Se alguém
sai da linha, o pleno o traz de volta, e isso é tanto essencial como necessário. O partido não deve ser
conduzido fora do coletivo. Depois de Ilyich, é uma asneira pensar assim, uma asneira falar nisso.
Trabalho coletivo, liderança coletiva, unidade no partido, unidade nos órgãos do comitê central e
subordinação da minoria à maioria – é disso que precisamos agora.19

Infelizmente, essas louváveis proposições não foram escoradas por


regulamentos que governassem o rodízio na liderança ou a duração do
mandato do secretário-geral e de outros postos elevados. Foi precisamente
sobre essas questões que Lenin escreveu suas teses referentes à melhora do
aparato. O XIV Congresso foi o último da era Stalin em que a crítica e a
autocrítica fizeram parte integral dos procedimentos da reunião. A crítica foi
declinando sem parar de congresso em congresso. Somente Stalin, e os que
agiam sob suas ordens, emitiram críticas a partir de então, e o resultado foi que
a estagnação intelectual, o dogmatismo e o formalismo burocrático viraram
regra.
Ao optar pela construção socialista e pela industrialização, o congresso
transformou-se em ponto de referência da história do país, mas os princípios
democráticos não foram, da mesma maneira, formulados para desenvolvimento
ulterior. Despercebida ao lado da grande ideia, nascia sua própria negação. A
batalha entre esses dois princípios sinalizou a origem do triunfo vindouro do
“Líder” e da tragédia do povo. Nem todos perceberam que pagariam o
fortalecimento econômico com as liberdades pessoais. Não era um paradoxo, e
sim da lei da autocracia.
Nota

* Vilarejo onde Napoleão conseguiu brilhante vitória na campanha italiana de 1796-1797.


[13]
Leninismo para as massas

V endo-se à frente do núcleo do comitê central, Stalin rapidamente


entendeu que, além de possuir dons de organizador e “pulso forte”,
características que se tornaram familiares para muitos no aparato, ele
tinha que se mostrar teórico. De um lado, a mudança de estágio para a criação
de uma sociedade renovada requeria a compreensão teórica de uma vasta gama
de questões. Tudo era novidade, fosse na esfera econômica, na social ou na
cultural. Embora os delineamentos do conceito da construção socialista
tornassem possível visualizar a direção geral para a qual a vida devia caminhar,
os argumentos de Lenin, no entanto, requeriam aplicação concreta na prática
imediata.
De outro lado, Stalin sabia que o líder do partido, que muito desejava ser,
precisava ter sólida reputação de marxista teórico. Sabia também que seus
artigos não tinham deixado grande impressão na opinião pública. A maioria
deles fora escrita com objetivos correntes e específicos, e nada mais era do que
uma série de peças entediantes na confusão de slogans, ideias e apelos que
foram regurgitados pela revolução. Na realidade, quando procurava se
consolidar no topo da liderança depois da morte de Lenin, ele publicou alguns
trabalhos teóricos, por exemplo, “Anarquismo ou bolchevismo?” Pode-se
aquilatar o nível filosófico deste artigo citando-se apenas um fragmento:

Os burgueses estão gradualmente perdendo o chão sob seus pés e recuam dia após dia. Por mais fortes
e numerosos que possam hoje ser, no final, serão derrotados. Por quê? Porque estão se desintegrando
como classe, tornando-se fracos e velhos, verdadeiros pesos mortos. Isso deu lugar a uma bem
conhecida posição dialética: tudo que existe, isto é, tudo que cresce de um dia para outro, é racional, e
tudo que se desintegra de um dia para outro é irracional e, portanto, não pode evitar a derrota.20
O primitivismo e a ingenuidade dessas deduções são depressivamente óbvios,
mas não evitaram que o acadêmico Mitlin as descrevesse como “um aspecto
clássico do novo”. Outros artigos de Stalin, como “O marxismo e a questão
nacional” (1913), “A revolução de outubro e a questão nacional” (1918),
“Sobre estratégia e tática dos comunistas russos” (1923), da mesma forma,
tiveram pouca repercussão. Cedo ele percebeu não ter feito contribuição
significativa para a teoria marxista, e que Lenin, por ter descerrado a cortina do
futuro, deixara sua marca em todas as esferas nas quais Stalin se viu envolvido,
e que, intelectualmente, ele, Stalin, não chegava aos pés do líder falecido.
A acirrada luta interna que continuava a sacudir o partido compeliu,
efetivamente, Stalin a propagar no front mais amplo possível a herança de
Lenin, suas ideias e argumentações. Ele se mostrou à altura da tarefa: sua
maneira categórica de pensar não poderia ter sido mais útil. Sentenças curtas e
telegráficas, nenhum termo sofisticado, nenhuma profundidade, e sim clareza,
clareza e mais clareza. As palestras publicadas se tornaram populares.
Agitadores as usaram na campanha para minorar a ignorância política da
população. Na ocasião adequada, Questões do leninismo e Fundamentos do
leninismo, de Stalin, foram canonizados e transformados por zelosos
propagandistas stalinistas em pequenos livros dogmáticos e revelaram-se ideais
para tal tipo de adaptação. De fato, sem as citações, pouco mais eram que
sinais de pontuação. As edições saíam uma atrás da outra.
A percepção de milhões de soviéticos foi condicionada por muitas
proposições dessas obras, ideias leninistas que o secretário-geral reformulou
segundo sua interpretação. Assim, ao definir a essência da ditadura do
proletariado, ele quase se restringiu ao seu aspecto coativo e o “limpou” de
qualquer conteúdo democrático. Nos dias de hoje, por exemplo, é impossível
ler “Sobre a política de liquidação dos kulaks como classe” sem estremecer em
pensar no que estava por trás daquilo.
O intelecto de Stalin – assunto que retomaremos mais adiante – foi
conformado sob influência da educação religiosa dogmática, da experiência na
luta revolucionária e da convivência seletiva com a obra dos fundadores do
socialismo marxista. É claro que ele não tinha um entendimento completo da
relação entre teoria e prática, entre fatores objetivos e subjetivos, e da essência
das leis do desenvolvimento social. Sua assertiva de que tudo na natureza e na
sociedade é programado a ferro tem, indubitavelmente, gosto de fatalismo: “O
sistema socialista seguir-se-á ao capitalista como o dia vem depois da noite.”
Para ele, a teoria marxista era como a bússola de um navio que, de qualquer
forma, chegará a outra praia, mas o fará mais rapidamente com a bússola.
Toda a história do partido, tal como apresentada no Curso resumido de
Stalin, nada mais é que uma cadeia de vitórias para uns e derrotas para outros,
os espiões, os agentes duplos, os inimigos, os criminosos. Ele colocava tudo no
leito esquemático de Procusto, em que o real deveria ser idêntico ao teórico,
segundo a teoria que expunha. Na lógica de Stalin, tudo o que acontecera era
esperado: o crescimento dos partidos comunistas, a derrocada da “aberração de
direita”, a “traição” dos socialdemocratas. A criatividade, o livre-arbítrio, o voo
da imaginação, a audácia intelectual – nada disso tinha vez.
A mente de Stalin era prisioneira da abordagem esquemática. Assim, por
exemplo, existiam três características básicas da dialética, quatro estágios no
desenvolvimento do bloco de oposição, três aspectos básicos do materialismo,
três características do Exército Vermelho, três raízes fundamentais do
oportunismo, e assim por diante. Talvez não fosse uma maneira ruim de
ensinar, porém, catalogar toda a teoria dessa forma e reduzi-la a alguns
aspectos, peculiaridades, estágios e períodos significa empobrecer os estudos
sociais e fomentar uma visão dogmática.
A certa altura, começaram a surgir elementos rituais no trabalho de Stalin.
É difícil encontrar nuances em seu pensamento, ou transições, reservas, ideias
originais ou paradoxos. Seu modo de pensar é uniforme, tudo o que fluiu de
sua caneta foi apresentado como desenvolvimento do marxismo-leninismo. O
que afirmava passava a ser um programa; o que não estivesse de acordo com
suas diretrizes era suspeito, senão adverso. Ao vulgarizar, simplificar e dar a
tudo uma qualidade direta e categórica, as opiniões de Stalin adquiriram uma
característica primitiva e ortodoxa. Provavelmente, jamais duvidou de que teria
inspiração de gênio, como indica seu gosto pela autocitação. A despeito de
tudo isso, entretanto, havia um forte atributo inerente ao seu pensamento
(além do mais, atributo que tinha em comum com Lenin): o seu lado prático.
Ele tentava ligar cada proposição teórica a necessidades concretas, o que não
pode ser dito de todos os teóricos marxistas. Por outro lado, a natureza
mecânica e automática de seu raciocínio, bordejando o fatalismo, muitas vezes
imprimiu um quê de caricatura aos seus escritos.
O debate dos anos 1920 sobre a forma de construir a sociedade socialista foi
acompanhado de renovada atividade teórica por parte dos líderes do partido. O
Pravda e o Bolshevik publicaram com regularidade artigos de Trotsky, Zinoviev,
Kamenev, Stalin, Kalinin, Yaroslavsky e outros. Alguns líderes que se tornaram
bastante ativos no assunto. Trotsky, por exemplo, nos dez anos que sucederam
a revolução, publicou com sucesso 21 volumes de suas obras. Em 4 de
dezembro de 1924, o Pravda anunciou que o ramo de Leningrado da agência
estatal de publicações estava prestes a começar a edição dos trabalhos de
Zinoviev em 22 volumes. O comitê responsável chegou a dizer que se tratava
de algo como uma “enciclopédia dos trabalhadores”. O Pravda também
noticiou a publicação de uma compilação intitulada Outubro, consistindo em
artigos selecionados de Lenin, Bukharin e Stalin. Muitos trabalhos de Bukharin
apareceram naquela oportunidade, tais como “As contradições do capitalismo
contemporâneo” e “Da Nova Política Econômica e nossas tarefas”.
Stalin deu o melhor de si para acompanhar o movimento, mas a maior
parte de seus escritos dos anos 1920 não foi devotada tanto à popularização do
leninismo como o foi à polêmica com os líderes dos vários grupos, oposições e
facções. Talvez tenha sido no curso do enérgico e sonoro arremesso de lama
que ele se tornou um “teórico”. Trotsky pensava assim. No seu livro A escola
stalinista da falsificação, ele observou que Stalin transformou-se em teórico na
batalha contra o trotskysmo. A mente de Stalin foi aguçada por todos aqueles
embates e “desmascaramentos”. Seus discursos nos congressos e conferências,
nas sessões plenárias e nas reuniões do Politburo eram ásperos, resolutos e
implacáveis, embora concedesse a si mesmo ocasionais expressões de “fraqueza”
liberal quando era taticamente prudente fazê-lo. Por exemplo, em 11 de
outubro de 1926, fez um relatório ao Politburo “Sobre medidas para mitigar a
luta interna no partido”, embora fosse também verdade que essas “medidas
mitigadoras” estavam formuladas em cinco pontos que os líderes oposicionistas
teriam que aceitar, caso desejassem continuar membros do comitê central.
A polêmica com os oponentes ideológicos forjou uma transformação em
Stalin. Ele aprendeu a utilizar a retórica e adicionou uma dimensão pessoal e
ofensiva à sua mordacidade costumeira, passando a qualificar os outros de
“tagarela”, “difamador”, “mentalmente confuso”, “ignorante”, “vaca de
presépio”. Divertia-o a reputação adquirida de combatente grosseiro, porém
impiedoso, pela unidade do partido, contra o facciosismo e pela pureza do
leninismo. No discurso de encerramento do XIV Congresso, em que, como já
ressaltamos, atacou Kamenev, Zinoviev e Sokolnikov, praticamente se apossou
do direito, como secretário-geral, de ser rude a seu bel-prazer. Rodeado de
gargalhadas de aprovação dos delegados, declarou: “Sim, camaradas, sou franco
e grosso, esta é a verdade. Não posso negá-la.”21
Sua franqueza grosseira, como vimos, com frequência era do tipo
insultuoso. Respondendo, por exemplo, ao jurista S. Pokrovsky, que tentara
esclarecer a atitude de Stalin em relação à revolução proletária, o secretário-
geral iniciou sua carta tachando-o de “descarado narcisista” e a terminou no
mesmo tom: “Você não entendeu coisa alguma, nada sobre a revolução
burguesa que se regenerou na revolução proletária. A conclusão a tirar é que é
necessário o descaramento de um ignorante e o gosto de um equilibrista
medíocre de corda bamba para inverter o sentido das coisas dessa forma.”22
Fazia juízos com absoluta certeza: aqui a verdade, lá, o engano. Como
Rabindranath Tagore observou: “Batemos a porta atrás de nossos erros. A
verdade fica confusa: como vai entrar agora?”
À proporção que cresciam sua autoridade e sua importância política, Stalin
fiava-se cada vez mais nas próprias assertivas para dar suporte à sua
argumentação, que passou a ser ministrada como verdade proveniente do alto.
E quanto mais isso ocorria, menos Stalin se dava conta. Assim, tendo feito uma
palestra na Universidade Sverdlovsk sobre a definição de leninismo, ele repetiu
tal definição praticamente como verdade perfeita e universal em seu trabalho
Questões do leninismo. Citando afirmações suas, ele adicionaria frases como:
“Tudo isso está correto, pois vem do leninismo.” Com o tempo, tornou-se
comum ele encaminhar os leitores a seus próprios artigos e livros. Numa
polêmica em 1926 sobre a possibilidade de construir o socialismo na URSS,
ideia que reivindicou ser de sua autoria, escreveu: “Você deve pegar o Bolshevik
[de Moscou] nº 3 e ler meu artigo. Facilitaria as coisas para você.” E aproveitou
a oportunidade para repisar um tema: “A classe operária, em união com os
laboriosos camponeses, pode dar um fim aos capitalistas em nosso país”; “a
oposição diz que não somos capazes de acabar com nossos capitalistas e de
construir a sociedade socialista”; “se não tivéssemos em mente que podíamos
liquidar com nossos capitalistas, a conquista do poder não teria sentido”.23 A
ênfase na “liquidação” dos remanescentes das classes exploradoras ficou muito
clara em 1926, embora não fosse o objetivo principal daquela ocasião. Com o
passar do tempo, ela iria maturar numa teoria profundamente errada sobre o
agravamento da luta de classes à medida que a sociedade caminhava para o
socialismo. “Surrar” e “liquidar” cedo se transformariam na ocupação
fundamental de Stalin.
A despeito do nível primitivo e vulgar das generalizações teóricas que saíam
da pena de Stalin, ele muito se orgulhava de dar definições e formular
interpretações. Aí se incluíam, por exemplo, a essência do leninismo, das
É
nações, da estratégia e tática política, dos desvios, para citar apenas algumas. É
possível que sua atividade tenha contribuído para a popularização do
leninismo, porém, inclinado que era pelo pensamento dogmático, Stalin
canonizou literalmente suas definições e se tornou capaz de devotar um
discurso inteiro à prova de que este ou aquele oposicionista não conseguira
entender determinada questão.
Talvez o aspecto mais negativo das contribuições teóricas de Stalin esteja no
fato de ele ter arrancado a essência humanista do socialismo e a substituído,
gradualmente, pelo que pode ser chamado de “socialismo sacrificial”. Com tal
perspectiva, no tempo devido, ele permitir-se-ia, com a maior descontração,
desencadear repressões sem precedentes e aplicar a força em amplo espectro
como principal alavanca na vida econômica. O stalinismo foi um misto de
burocracia e socialismo de quartel adornado com terminologia dogmática.
Hoje, sabemos que não se pode classificar uma sociedade de “socialista” pelo
simples fato de praticar um alto grau de propriedade pública, ou de priorizar
mais os valores do coletivo em relação ao individual, ou por planejar tudo de
cima para baixo. O socialismo autêntico ocorre quando o homem é o centro
das atenções, e onde a democracia, o humanismo e a justiça social são
propriedades intrínsecas. Uma abordagem dessas não tem lugar para a
violência, para o distanciamento do povo do poder, para líderes semideuses.
Deve-se ressaltar que Stalin trabalhava pessoalmente nos seus artigos e
discursos. Vários assistentes, que serviram em sua secretaria em ocasiões
diversas, testemunharam tal fato, malgrado a grande carga de trabalho que
pesava sobre ele. Apesar disso, Stalin também lia bastante. Diariamente, eram-
lhe encaminhados livros selecionados, extratos de artigos, resumos da imprensa
partidária local, resenhas de publicações estrangeiras e as cartas mais
interessantes.
Entre 1924 e 1928, Stalin consultou professores das academias Industrial e
Comunista sobre assuntos de ciências sociais. Achava-se particularmente fraco
em filosofia; em história, pisava em terreno firme; e não mostrava interesse
especial em expandir seus conhecimentos de economia. Com a prolongada
experiência no cargo, no qual lidou com problemas vastamente diversificados,
desenvolveu um senso sutil e uma mente extremamente prática, e tornou-se
capaz de avaliar rapidamente uma situação, de encontrar o caminho em meio a
um labirinto de variáveis e de identificar os vínculos importantes. Observador
por natureza, de excelente memória para fisionomias, nomes e fatos, a rica
experiência do convívio com larga faixa das pessoas mais cultas e preparadas do
entourage de Lenin não podia deixar de influenciá-lo e nele deixar algumas
qualidades. Embora não fosse um teórico, era superior a muitos de seus colegas
na abordagem pragmática da teoria, e na capacidade de ligar, para os melhores
resultados, a teoria com a prática.
Tendo escolhido um objetivo, Stalin podia mostrar extraordinária
persistência em persegui-lo. Isso fica evidente em seus trabalhos escritos.
Naturalmente, fez algumas emendas em seus artigos e panfletos, mas, em
princípio, repetia sem cansar o que antes dissera, produzindo um efeito
semelhante ao do livro didático. Por ter afirmado certa vez que “o leninismo é a
teoria e a prática da revolução proletária em geral, e a teoria e a prática da
ditadura do proletariado em particular”, ele transformou esta definição em
dogma. Sem dúvida, numa época em que o regime lutava pela sobrevivência,
tal postura serviu ao propósito de tornar os ideais e objetivos de Lenin mais
fáceis de entender. Não obstante, a redução das ideias de Lenin a não mais que
ditadura do proletariado foi o prelúdio dos muitos enganos cometidos na
prática subsequente do estadismo soviético.
Creio que foi Remarque que disse que os ditadores sempre começam
simplificando. Stalin foi um mestre da simplificação e o responsável pela
implantação de esquemas primitivos tanto na teoria como na história do
partido. Talvez, em função do baixo nível da cultura geral e política entre os
trabalhadores, isso fosse necessário, entretanto, já no início dos anos 1930,
estudos mais sérios e mais profundos simplesmente não podiam ser publicados.
Por décadas, a teoria da ciência social mergulhou na estagnação. O
dogmatismo medrou no solo de conceitos simplistas e frequentemente
errôneos. Dogmatismo é como um navio que fundeia: as ondas continuam, o
navio está firme, mas a sensação de movimento persiste. A atitude de Stalin
sobre ideologia era profundamente pragmática: a ideologia corrente tinha que
funcionar no país como cimento, não como explosivo. Muitos de seus
argumentos teóricos acabaram sendo fonte de grandes desditas sociais. Sediadas
num ambiente mental irremediavelmente cinzento, as ideias de Stalin careciam
de dinamismo e excluíram a inovação criativa da política.
O pleno do comitê central de 14 e 15 de janeiro de 1924 proporciona um
exemplo disso. O encontro tratou de várias questões. Zinoviev relatou a
situação internacional e, tanto ele como os que falaram depois, criticaram o
fracasso na Alemanha, onde, na opinião deles, perdera-se uma oportunidade
revolucionária. No seu discurso, Stalin focalizou o papel de Radek nos eventos.
“Sou contra a punição de Radek por seus erros na questão alemã”, disse.
“Cometeu muitos, dos quais destacarei sete.” Um dos truques favoritos de
Stalin era estender os erros dos adversários numa longa corda de reboque.
Segundo Radek, Stalin prosseguiu: “O inimigo principal na Alemanha é o
fascismo, e Radek diz que é necessário formar uma coalizão com os social-
democratas, ao passo que nossa conclusão é pela necessidade de uma batalha de
morte contra os social-democratas.”24 A miopia política de Stalin custaria caro
para os comunistas como também para as futuras forças democráticas. Sua falta
de imaginação impedia-o de analisar questões complexas.
Outro exemplo de sua falta de visão teórica ocorreu durante o pleno de
outubro de 1924 do comitê central, quando se debateu a questão do “trabalho
no campo”. Molotov relatou. Zinoviev, que era tão ignorante em questões
agrárias quanto Molotov e Stalin, pronunciou longo discurso no qual, apesar
de tudo, descreveu com relativa justeza a situação geral:

O que discutimos aqui não é apenas uma questão de trabalho no campo, mas uma atitude geral em
relação aos camponeses, ou seja, questão bem mais ampla que, sem dúvida, frequentará a agenda por
alguns anos vindouros, já que colide com o problema do exercício da ditadura nas circunstâncias
presentes.25

Stalin, no seu discurso, listou uma série de recomendações políticas e teóricas


nas quais se pode detectar o embrião de grandes erros do futuro. A primeira
coisa que devemos fazer, disse ele, “é vencer de novo os camponeses”. Em
segundo lugar, temos que entender que “o campo de batalha mudou”. Em
terceiro lugar, “temos que formar quadros nas aldeias”.26 O ano era 1924, mas
Stalin já falava como se estivesse em 1929.
[14]
Desalinho intelectual

O filósofo Evgeny Trubetskoy, discípulo de Vladimir Solovyov, expôs


em sua obra As duas bestas a ideia de que a Rússia foi ameaçada por
dois extremos, a “besta negra da reação e a besta vermelha da
revolução”. Para muitos expoentes culturais essas “bestas” não eram simples
figuras da imaginação. A flutuação artística e intelectual oscilou loucamente
entre a não aceitação pura e simples de qualquer ideia de revolução e sua
glorificação extasiada. Muitos outros, no entanto, não definiram de imediato
suas posições.
Kipling escreveu em belos versos que o poder da longa noite termina
quando ainda falta uma hora para o amanhecer. A força da antiga ordem fora
quebrada na Rússia, mas não era razoável esperar-se que todos os artistas se
erguessem para saudar o amanhecer que se aproximava. Os grandes bulevares e
as ruas laterais da literatura fermentavam. As principais questões que
inquietavam a intelligentsia diziam respeito ao lugar que a cultura ocuparia no
“novo templo”, ao problema da liberdade artística, à atitude em relação aos
valores do passado. Alguns escritores acreditavam piamente que o único futuro
da literatura russa estava em seu passado. Muitos outros temiam que a
tempestade revolucionária viesse a ameaçar não apenas a eles, mas também à
cultura russa como tal.
A maior parte da intelligentsia não aceitou a revolução, se bem que, da
mesma forma, nem todos se tornaram inimigos dela. Boa parte provavelmente
ficaria feliz em parar na Revolução de Fevereiro, com alguma forma de
parlamento e outras características do liberalismo pluralista. Seu desalento e sua
confusão intelectual persistiram por alguns anos, findos os quais emergiram
duas tendências diametralmente opostas: ou a aceitação total das ideias da
Revolução de Outubro, ou sua rejeição completa, com longas hesitações e
graduais mudanças mentais ao longo do caminho. A delgada antologia Smena
vekh (“Mudando os marcos”), publicada em Praga em junho de 1923, foi um
bom exemplo desse processo. A maioria de seus autores era de tendência
constitucional democrata, ou estivera ativa no campo Branco, e, agora, queria a
“capitulação”.
Klyuchnikov, Potekhin, Bobrishchev-Pushkin e Ustryalov declararam que,
por ironia da história, os bolcheviques tinham se transformado em “curadores
da causa nacional russa”. Aliás, Stalin se referiu com frequência, nos seus
discursos dos anos 1920, ao movimento Mudando os Marcos como indício de
que o lado inimigo se desintegrava. Os escritores do Smena vekh deixaram claro
que consideravam o bolchevismo utópico, mas reconheciam que, sendo
refugiados russos, “a história não perderia tempo com eles”. Seus pensamentos
nostálgicos, pintados em cores eslávicas, sinalizavam, contudo, algo mais
importante, ou seja, que uma parte da intelligentsia tinha se tornado defensora
da Rússia socialista. Os instintos corporativos foram abafados pelo sentimento
nebuloso de vinculação à pátria-mãe, e os intelectuais se harmonizaram, por
mais dolorosamente que fosse, com as novas realidades vigentes no país.
Todavia, como dissemos, a maioria deles não aceitou o bolchevismo. Uma
das mais extremadas nessa rejeição foi a poetisa Zinaida Gippius. Em Seraya
knizhka (“O livro cinzento”) e Chernyi bloknot (“Bloco negro de notas”),
condenou francamente as ideias revolucionárias que, para ela, sepultaram a
cultura russa:

É tudo em vão: a alma está cega


Estamos destinados aos vermes e larvas
Nem mesmo restam as cinzas
Na terra da justiça russa.

Sobre a posição política assumida pelo marido, Dmitri Merezhkovsky, e por ela
mesma, disse orgulhosamente: “Está bem, talvez estejamos apenas protegendo
o branco da roupa dos émigrés.” Eles tinham visto na Pátria “o reino do
Anticristo”.
Até mesmo Trotsky, que se mostrava bastante tolerante para com essa
dúvida intelectual e considerava inevitável a confusão da intelligentsia, fez uma
irritada sátira da “choradeira” de Gippius. Escreveu que a arte dela, que
mesclava cristianismo místico e erótico, mudara no momento em que “um
soldado do Exército Vermelho, com botas de tachões, pisou em seus graciosos
pés. De imediato, ela começou a lamúria na qual é possível identificar-se a voz
de uma bruxa obcecada com a ideia da santidade da propriedade”.27
A faixa de interesses estéticos de Stalin era incomensuravelmente mais
estreita que a de Trotsky, e, em particular, não se deixava excitar quer pelos
decadentes, quer pelos iconoclastas. Talvez tivesse pouca noção das obras de
Gippius, Balmont, Belyi, Lossky, Osorgin, Shmelyov e muitos outros que
deixaram sua marca na história cultural russa. Empírico e destituído de valores
emocionais, Stalin encarava todo o edifício da cultura em termos estritamente
pragmáticos: isso ajuda, ou não? É esse o caminho? Será perigoso? Critérios
estéticos, se é que os possuía, não tinham papel decisivo em seu modo de
pensar. Ele expressaria seu credo sobre literatura e arte duas décadas mais tarde
nos jornais Zvezda e Leningrad, no veredicto funestamente bem conhecido.
Para ele, as artes permaneciam encapsuladas no modelo binário primitivo:
“nossas” e “deles”.
Mesmo grande, o número de emigrados, excedendo talvez dois e meio
milhões de pessoas e abarcando todos os tipos de intelectuais, estava longe de
ser um caso de hostilidade generalizada à União Soviética. Além do mais, seus
destinos foram bem diversos. Alguns terminaram nas favelas de Xangai ou nas
pensões de Paris. Outros voltaram à Rússia e, desses, alguns até conseguiram
retomar suas carreiras literárias, enquanto outros não conseguiram se adaptar
ao novo ambiente social e, então, ou se calaram para sempre, ou caíram no
moedor de carne stalinista.
Os que permaneceram na Rússia soviética também reagiram de formas
diversas. Rapidamente, surgiram associações, entre elas a União dos Escritores
Camponeses, os Irmãos Serapion, a Pereval (“Travessia”), a Associação de
Escritores Proletários de Toda Rússia, a Associação de Artistas da Rússia
Revolucionária, a Kuznitsa (“a Forja”), a Frente Esquerda de Arte. Nos clubes
friorentos e nos palácios sem aquecimento houve debates sobre cultura
proletária, literatura, política e o uso ou não dos valores da cultura burguesa.
Surgira uma oportunidade única para criar e consolidar o pluralismo artístico.
Os métodos de comando, que marcariam o fenecer das artes, ainda não
predominavam.
Stalin não viu nada de perigoso nesse novo mosaico de escolas e tendências
literárias, especialmente porque muitos escritores falavam entre si sobre a
revolução, o novo mundo, o novo homem. Até mesmo as preocupações
sectárias e de vanguarda com os métodos radicais pareciam pouco mais que
ingênuas e divertidas. Como a arte em si, o pluralismo daqueles anos iniciais
era espontâneo e, por breve período de tempo, fez contribuições ao cinema, à
música, à literatura, à pintura e à escultura, que ocuparam lugar no tesouro da
herança cultural russa.
Muitos escritores e artistas amadureceram com rapidez na atmosfera de
estufa da revolução, e debates, contendas e competições entre as várias escolas
foram resultados naturais. Foi uma pena, para dizer o mínimo, que, em poucos
anos, tal ambiente de indagações se evaporasse no cadinho do estilo
burocrático do pensamento uniformizado e que, no clima que se seguiu,
emergisse uma pletora de livros de interesse absolutamente efêmero. Em dois
números do jornal Bolshevik, P. Ionov escreveu um artigo sobre a cultura
proletária no qual afirmou que “arte pura”, imune à influência das tormentas
sociais, dos choques econômicos e dos conflitos de classes, era uma
impossibilidade. Replicando, Leopold Averbakh perguntou: “Quem vai
reformar quem?”28
Um editorial do Bolshevik intitulado “Quadros de comando e a revolução
cultural” deu a resposta concisa: os assuntos culturais deveriam ser governados
por meios administrativos, isto é, pelos quadros, ou “construtores do
socialismo”.29 Porém, tão logo adquiriram alguma instrução, começaram a
demolir igrejas, ao passo que as associações criativas autônomas foram
desaparecendo, e a individualidade silenciando. Foi essa a triste sorte, por
exemplo, de todo um grupo de “poetas camponeses”, cuja chama mais
fulgurante fora Sergei Yesenin, e Bukharin, ainda um radical, concorreu para
tanto. A liberdade de criação foi se tornando cada vez mais programada e, em
consequência, mais estreita. E a arte, despida de espírito humano, já ia se
transformando em representante da cultura.
Stalin passou a acompanhar com atenção a efervescência no mundo
literário. Sabia que a revolução cultural, que despertara mudanças enormes na
consciência social, fatalmente estimularia também um acentuado interesse em
relação aos valores culturais em geral, e à literatura criativa em particular. Em
meados da década de 1920, a alfabetização crescera marcantemente. A
melhoria nas repúblicas nacionais foi especialmente surpreendente. Comparado
com 1922, o número de operários alfabetizados na Geórgia, em 1925, cresceu
15 vezes; no Cazaquistão, cinco vezes; no Quirguistão, quatro vezes; e assim foi
em outras regiões. As principais fontes de alfabetização e de cultura dos
trabalhadores surgiram nos clubes de operários das cidades e nas cabanas de
leitura das vilas. A impressão de periódicos triplicou a marca de 1913.
Começou em escala maciça a organização de bibliotecas. Montaram-se estúdios
cinematográficos em Odessa, Yerevan, Tashkent e Baku. Mais se editava
literatura criativa.
O Politburo discutiu repetidas vezes a maneira de criar condições para levar
cultura às massas e fortalecer a influência do bolchevismo sobre elas. Em junho
de 1925, aprovou a resolução “Sobre a política do partido no campo da
literatura criativa”, recomendando uma atitude atenciosa para com os velhos
mestres. Também adotou outra resolução, proposta por Stalin, que destacava a
necessidade de manter a pressão sobre o movimento Mudando os Marcos.
Ademais, a resolução ressaltou: “O partido tem que tomar todas as medidas
para desenraizar interferências incompetentes e não autorizadas da burocracia
nas questões literárias.”30
Os asseclas de Stalin mantinham-no informado sobre os novos livros e
artigos de autoria de escritores proletários. É claro que ele não podia ler tudo,
mas depois que sua biblioteca foi reorganizada, muitos dos livros de
encadernação barata do período permaneceram em sua coleção, com anotações
de próprio punho em vermelho, azul ou lápis comum. A maioria dos
comentários, por coincidência, foi feita em vermelho. A julgar por tais
anotações, parece que Stalin se familiarizou com Chapaev, de Furman, com A
rebelião e A corrente de ferro, de Serafimovich, com as histórias de Vsevolod
Ivanov, com Cimento, de Gladkov, com as obras de Gorky, que amava, e com a
poesia de Bezymensky, Bedny e Yesenin, entre outros. Evidentemente, fez
anotações também em À espera, de Platonov, porém, aparentemente irritou-se
com aquele talentoso escritor, como certa vez confessou a Fadeyev. Stalin
ignorava em grande parte os clássicos ocidentais, em geral suspeitoso do
Ocidente e de sua democracia “em desintegração”.
Amava o teatro e o cinema da mesma forma que os grandes latifundiários se
encantavam com o teatro de seus servos. Foi frequentador assíduo do Teatro
Bolshoi nos anos 1930 e 1940 e assistia, à noite e com regularidade, novos
filmes no Kremlin ou em sua dacha. De certa forma, eles proporcionavam uma
janela para sua vida reclusa. Não escondia o fato de não gostar muito de
pintura, a forma de arte que menos apreciava. Muitas vezes, debateu sobre a
arte com escritores como Gorky, Bedny, Fadeyev e, é claro, Lunacharsky, e
também com outros membros do Politburo, que entendiam tão pouco do
assunto quanto ele.
Em algumas manifestações públicas, Stalin aproveitou a oportunidade para
dar opinião sobre escritores e suas obras, normalmente em termos tão
categóricos que não encorajavam resposta. Por exemplo, numa carta a Bill-
Belotserkovsky, censurou o diretor do Bolshoi, D. Golovanov, por seu ataque à
prática de atualizar automaticamente o repertório à custa dos clássicos. Stalin
descreveu a situação como “golovanshchina” (ou seja, ditadura de Golovanov) e
como “expressão de um estado de coisas antissoviético”.31 Tal julgamento, nos
anos 1930, custaria a cabeça de alguém. Na mesma carta, comentou que as
peças de Bulgakov eram encenadas com tanta frequência “porque não há
quaisquer de nossas próprias peças suficientemente boas para apresentação. Na
terra de cego quem tem um olho é rei”. Este era o melhor de Stalin, não
mostrando qualquer dúvida sobre seu próprio conceito, confiante e desdenhoso
do processo intelectual dos artistas.
Ele podia também ser áspero com aqueles que, normalmente, tratava com
deferência, como Demyan Bedny, um bolchevique desde 1912 que logo
ganhou reputação como poeta proletário depois da revolução. A atualidade de
suas fábulas, poemetos, canções, livretos de rimas, contos e parábolas valeu-lhe
duradoura popularidade entre as massas. Porém, num certo número de obras
(“Separando pela força”, “Saia do fogão”, “Sem piedade”), ele criticava a inércia
e outras tradições negativas do passado que a sociedade soviética carregava
consigo. O departamento de propaganda do comitê central encarou tal opinião
como antipatriótica; Bedny foi convidado a comparecer ante o comitê central
para uma “conversa” e reclamou numa carta a Stalin. A resposta do secretário-
geral foi pronta: “De repente, você está bufando e se queixando de grande
pressão [...] Pensa que o comitê central não tem o direito de criticá-lo? Acha
que as decisões dele não se aplicam a você? Não acha que está atacado de
‘presunção,’ essa desagradável doença?” Stalin concluiu achando que a crítica de
Bedny era uma calúnia contra o operário russo, contra o povo soviético e
contra a URSS. “Esta é a verdade, e não as lamentações vazias de um
intelectual amedrontado que tagarela sobre pretensos desejos de isolar Demyan
ou de não mais publicar Demyan.”32
Apenas poucos anos antes, em junho de 1925, o próprio Stalin compilara a
regulamentação da política do partido sobre a literatura, que condenava
qualquer “vestígio de patrulhas literárias” e “a pretensiosa, semialfabetizada e
presunçosa arrogância comunista”. No fim daquela década, ele já tinha
esquecido as sábias diretrizes. Os “quadros de comando” operavam no campo
da cultura com crescente desenvoltura, e a efervescência e confusão intelectual
gradualmente desvaneceram em todos os níveis da administração.
Eram decorridos só três ou quatro anos da ocasião em que Stalin solicitara
que seus agradecimentos fossem levados a Bedny por seus versos “autênticos,
partidários” sobre Trotsky, publicados no Pravda de 7 de outubro de 1926 sob
o título “Tudo tem fim”, que diziam assim:

Nosso partido foi por muito tempo


Alvo de políticos acabados!
Por fim, chegou a hora
De dar um fim a este descalabro!

Stalin gostou do poema e telefonou a Molotov e outros para dizer isso. Todos
aprovaram a sátira política de Bedny, e o secretário-geral observou: “Há menos
leitores para o que escrevemos sobre Trotsky do que para esses versos”, o que,
sem dúvida, era verdade. E bastou o poeta mudar um pouco de tom, revelando
“ressentimento”, para que Stalin se tornasse frio, irritadiço, autoritário e censor.
Sabendo que o destino de seus trabalhos dependia do julgamento de Stalin,
os escritores pediam-lhe, com frequência, a opinião. Seus resumos eram
normalmente condescendentes e, quase sempre, apontavam “fraquezas”,
embora, ocasionalmente, distribuíssem elogios. Por exemplo, ele escreveu a A.
Bezymensky: “Li os dois: O tiro e Um dia em nossa vida. Não há nada de
‘burguesia trivial’ ou de ‘antiparidário’ neles. Ambos podem ser considerados
modelos para a arte revolucionária e proletária de nossos dias.”33
Testemunhas com acesso às informações afirmaram que Stalin estudava as
personalidades políticas de escritores, poetas, cientistas e expoentes culturais.
Ele sabia que nem todos aceitavam a revolução, como atestava a emigração em
larga escala que ocorrera. Tomou conhecimento de uma carta a Lunacharsky
(comissário do povo para a Educação e a Cultura) do escritor russo Vladimir
Korolenko, publicada postumamente em Paris, onde ele falecera em 1921, na
qual o intelectual expressava sua inquietação com o emprego da repressão na
Rússia pós-revolucionária, que iria desacelerar o crescimento da conscientização
socialista.34 Stalin decidiu que a carta era falsificação. Também ficou
perturbado com um artigo de Zamyatin, intitulado “Tenho medo”, publicado
num pequeno jornal de Leningrado, o Dom Iskusstv (“Casa das artes”).
Zamyatin recebeu permissão para deixar o país em 1932; ele foi para a França e
nunca mais voltou; de lá, em carta a Stalin, disse que não poderia continuar
escrevendo “atrás de grades”. Em 1920, ele afirmara, destemperadamente, mas
com exatidão:
A literatura só existe quando é criada por loucos, eremitas, heréticos, sonhadores, rebeldes e cépticos, e
não por funcionários confiáveis que apenas fazem seu trabalho. Temo que não teremos literatura
genuína alguma enquanto o povo russo for encarado como criança cuja inocência há que proteger.
Temo que não teremos literatura genuína alguma até que nos curemos desse novo tipo de catolicismo
que tem tanto receio da heresia quanto os antigos homens.35

A percepção de diversos escritores foi capturada num livro do filósofo marxista


Alexander Bogdanov, que competira em certa ocasião com Lenin pela liderança
dos bolcheviques. No livro ele asseverou que o trabalho criativo autêntico só
era possível sem coação, quando o sistema social não gerasse fé em fetiches,
mitos e clichês.36 Bogdanov estava, claramente, atacando o conceito da
ditadura sobre a literatura criativa. Foi demais para Stalin, que sentiu que
pessoas como Bogdanov sabiam que a interminável repetição dos mitos
revolucionários fazia com que eles se tornassem, no final, indistinguíveis dos
preceitos bíblicos. Com efeito, muitos dos mitos expostos por Stalin em seu
Curso resumido seriam tomados como verdadeiros sem qualquer consideração
crítica ou racional. Ele tinha que “cercar” esses intelectuais “espertinhos”.
Stalin começou a pensar em canalizar as ideias artísticas para o
aprimoramento do nível das massas, bem como para a solução da enorme soma
de problemas enfrentados pelo país. Raciocinou, porém, em termos de medidas
administrativas: regulamentos, expulsão dos que não servissem à causa,
censura. De fato, a esse respeito, ele concordava com Trotsky, conquanto não
desejasse tornar público tal entendimento comum. Em Literatura e revolução,
Trotsky declarara categoricamente que tinha que existir “censura severa” na
terra do proletariado vitorioso.37 Conselho que Stalin acataria. Ajudaria os
artistas a fazerem a escolha correta! Mas como? Precisava pensar sobre isso. A
censura política seria um elemento capital. Ele não entendeu que, nesse
particular, um papel importante seria desempenhado pela consciência
intelectual, um atributo invariável da democracia.
Durante a doença de Lenin, a GPU, com apoio de Stalin, tomara uma
providência inusitada: 160 pessoas – escritores, cientistas, filósofos, poetas,
historiadores, a fina flor da cultura russa – foram expulsas do país. Em 31 de
agosto de 1922, o Pravda publicou um artigo, com o significativo título “O
primeiro aviso”, no qual foram apresentados os motivos para a intensificação da
luta contra os inimigos da revolução no campo da cultura. A gênese e a
consolidação do princípio do realismo socialista foram acompanhadas de uma
falta de entendimento e de uma confusão espiritual por parte de muitos que
trabalhavam na esfera cultural. Em vez de ajudarem os artistas a
compreenderem seu lugar na reconstrução revolucionária do país, os que
labutavam no “front ideológico” destacaram apenas os aspectos pragmáticos do
princípio e os transformaram em diretrizes. A expulsão, indubitavelmente, teve
o intuito de servir como um sinal – métodos repressivos seriam aplicados ao
setor cultural.
Os assistentes de Stalin faziam-lhe, por vezes, relatos sobre o que os émigrés
estavam escrevendo. Quando lhe mostraram a obra em diversos volumes de P.
Krasnov, Da águia de dupla-cabeça à bandeira vermelha, publicada pelo ex-
general branco em Paris, em 1922, Stalin nem se dignou a tocar nos livros,
dizendo: “Quando o porco conseguiu escrever isso?” No entanto, com o apoio
de Stalin, diversos escritores e poetas, inclusive A. Kuprin e Alexey Tolstoy,
retornaram à União Soviética. Na ocasião em que o secretário-geral soube, em
1933, que Ivan Bunin se tornara o primeiro russo a receber o prêmio Nobel,
comentou: “Bem, agora ele jamais desejará voltar. Que disse ele no discurso?”
Ao ler um pequeno extrato do pronunciamento de Bunin em Estocolmo, em
que o laureado afirmara que “o principal para um escritor é ter liberdade de
pensamento e liberdade de consciência”, Stalin nada disse, mas ficou pensativo.
Não podia entender: não fora dada a Bunin a chance na URSS de pensar e
raciocinar de acordo com sua consciência intelectual? Não era verdade que ele,
Stalin, não se opunha à liberdade de pensamento, desde que servisse à ditadura
do proletariado? É certo que não podia se lembrar do que Bunin escrevera, mas
tinha uma noção vaga, não de todo imprecisa, de que “aquele escritor da
pequena nobreza profetizara algo sobre o mistério da morte e o reinado de
Deus”. Não pensou mais em Bunin. Quando, algum tempo depois, foi-lhe
passada uma pilha de jornais ocidentais, num dos quais – o Sovremennye
Zapiski (“Notas contemporâneas”) – estava a matéria “O general vermelho”, de
Bunin, dedicado à Revolução Russa, Stalin não o leu.
Outro émigré sobre o qual Stalin se mantinha informado era Vladislav
Khodasevich, que escreveu sobre “a seca da primavera criativa no exílio”.
Porém, o beco sem saída em que esses escritores estavam não interessava ao
secretário-geral. Ele conhecia um pouco melhor seus próprios poetas soviéticos.
Ouvira dizer que os “poetas kulaks” N. Klyuev, S. Klychkov e P. Vasiliev
tinham enveredado pelo caminho da balbúrdia e da contrarrevolução, mas
fosse Averbakh, fosse qualquer outro do departamento de propaganda política
do comitê central, já os tinha colocado na linha. Na realidade, Stalin, de
maneira geral, não dava muita atenção à poesia, a despeito de ter escrito
durante a juventude umas três dezenas de poemas ingênuos. Jamais teve tempo
para se familiarizar com a música e o ritmo da poesia, e menos ainda para ler
alguma, afora ter utilizado uns poucos versos de Pushkin, em Tsaritsyn, como
base para um código que informava o número de comboios de pão a caminho.
Stalin se preocupava mais com os escritores de Moscou, de Leningrado e de
outras regiões do país do que com os exilados. Tinha, por exemplo, opiniões
conflitantes sobre o Ano desnudo de Pilnyak, a Cavalaria vermelha de Babel, e
as obras de Platonov, Kin, Vesely, Tynyanov e Khlebnikov, ao passo que havia
aprovado de imediato os trabalhos de Furmanov, Fedin, Alexei Tolstoy e
Leonov. Gostava de alguns dos filmes de Vertov, Kuleshov, Eisenstein,
Pudovkin e Emler. Ouviu dizer que as peças Oliver Cromwell, de Lunacharsky,
Amor de primavera, de Trenev, O trem blindado 14-69, de Vsevolod Ivanov, e
Virineya, de Seifullina, estavam sendo bem recebidas. Sua esposa, Nadezhda,
assistiu-as na companhia de colegas do Comissariado das Nacionalidades. Era
confortador saber que grandes diretores, como Nemirovich-Danchenko e
Konstantin Stanislavsky, montavam peças soviéticas. A revolução no teatro
fortaleceria a revolução no mundo real.
Stalin tinha parca informação sobre o que ocorria no mundo das belas-artes
e da música. Zombava de todas as experiências em “arte industrial”, bem como
dos esforços dos vanguardistas, construtivistas, futuristas e cubistas. Quem
apoiava tais “excêntricos”, aos quais não entendia – e duvidava que outros
entendessem – não estava, na sua opinião, comprometido com uma causa séria.
Os próprios artistas viviam um infindável e rubro debate. Com frequência,
suas rixas não diziam respeito ao respaldo ou não à revolução, mas sim às
formas de arte, à liberdade de expressão, sobre como “ler o mostrador” da nova
cultura. Os nomes das incontáveis uniões e associações novas se espalhavam
pelas páginas dos jornais como um mosaico. Stalin achou que chegara a hora
de pôr alguma ordem naquele caleidoscópio. É verdade que não tratou
pessoalmente do assunto enquanto esteve ocupado com as sucessivas oposições
políticas. Mas julgava que o comissário do povo da Cultura, Lunacharsky,
estava dando “licença” demais.
O partido precisava de unidade, de uma linha de ação que fosse consenso
da maioria. O último congresso tinha conseguido muito nesse particular.
Ficava cada vez mais claro para Stalin que, sem a industrialização e o
coletivismo na agricultura, o partido não seria capaz de executar seu programa
social. Enquanto ainda existiam o czar, os proprietários de terra e os burgueses,
as dificuldades da batalha se justificavam. Mas, agora, decorridos dez anos
desde a revolução! Na realidade, acabara a exploração, a terra fora cedida aos
camponeses e os operários receberam a oportunidade de gerenciar as fábricas.
Então, por que tanto descontentamento? Por que as coisas não andavam com a
velocidade que todos queriam? Talvez a oposição não estivesse de todo errada.
Havia falatório generalizado sobre o aparato. O Pravda, por exemplo,
acabara de publicar um relatório de Lebed sobre “Medidas para melhorar o
aparato estatal e combater a burocracia”. Escrevia sarcasticamente:

Quais são as falhas de nosso aparato estatal? No fundo, o status inflado e a qualificação inferior dos
que nele trabalham, o que também é verdade para as organizações soviéticas das localidades.
Estruturas desajeitadas, duplicação de funções, burocracia demasiada, seleção ruim dos especialistas
com base no entendimento inadequado de habilitações e, finalmente, fiscalização deficiente, por vezes
de todo inexistente, dos escalões superiores sobre a execução das tarefas, ou sobre o trabalho das
próprias instituições.38

O poeta Mayakovsky escreveu na mesma linha. O germe da ideia de que devia


se ver livre dessa cansativa oposição ia se formando na cabeça de Stalin, e de
que ele teria que fazê-lo em defesa da aceleração do grande projeto de
reestruturação, embora, àquela altura, ainda não soubesse como proceder. Um
programa dessa natureza tornaria mais fácil a pressão sobre a intelligentsia, de
modo a encabrestá-la totalmente para a causa da industrialização e da
transformação da economia agrária. Ajudaria também a minorar a confusão
mental dos artistas. Não podia haver arte neutra numa sociedade de classe. Os
bem conhecidos velhos mestres teriam que ser utilizados para treinar escritores
operários e camponeses. Não deveria haver lugar para elementos antiproletários
na cultura soviética.
A incerteza intelectual dos artistas passou a ser vista por Stalin como nada
mais que heresia contrarrevolucionária, se bem que não tão perigosa, é verdade,
como a pregada por Trotsky. A luta neste front parecia ter chegado ao seu
ponto culminante. Antes de analisarmos a fase final da batalha com Trotsky,
entretanto, convém fazer observações ulteriores sobre a cultura, sobre a
intelligentsia e sobre a atitude de Stalin em relação a elas. A característica
principal desta atitude foi a total falta de respeito pela liberdade – liberdade de
criação, liberdade de expressão, liberdade de entendimento. E isso não foi
acidental. Stalin achava natural a negação da liberdade de pensamento em
nome da força e do poder.
[15]
A derrota do “Inimigo nº 1”

T rotsky gostava de viajar. Desfrutava dos feriados e tratava bem de si


mesmo. Na verdade, vários médicos o atendiam. Até mesmo durante
os piores anos seguintes à guerra civil, ele dava um jeito de escapar
para um refúgio de descanso a fim de caçar e pescar um pouco. Na primavera
de 1926, decidiu ir a Berlim para uma consulta médica. O Politburo tentou
dissuadi-lo da viagem por razões de segurança, mas ele insistiu. Seus
documentos de viagem foram preparados com o nome de Kuzmenko, um
membro da câmara ucraniana do Comissariado da Educação. Trotsky e a
esposa se despediram de Zinoviev e Kamenev na estação e seguiram viagem
acompanhados do ex-comandante de seu trem blindado, Sermuks. Trotsky não
era o mais astuto dos políticos. Na luta com Stalin, metia-se em dificuldades,
por exemplo, não comparecendo ao funeral de Lenin, ou não aparecendo nas
reuniões do Politburo. Cada período de férias ou estação de caça, bem como
sua atividade literária, o afastavam das questões políticas. Entrementes, Stalin
usava todas as ausências de Trotsky para fortalecer a própria posição.
Nos anos derradeiros, Trotsky teria tempo para refletir sobre sua vida e,
numa de suas obras, escreveu que, durante a viagem a Berlim, chegara à
conclusão de que não havia possibilidade de conciliação com Stalin, de que um
deles teria que desistir, e de que este seria Stalin. Lembrara-se de que Zinoviev e
Kamenev estavam então ao seu lado e de que tinham concluído que os três
juntos seriam capazes de arrancar a iniciativa do secretário-geral. Portanto,
pensara que ainda era possível evitar um Termidor, fazendo com que Stalin
cumprisse o testamento de Lenin.
Além dos ataques públicos a Trotsky, Stalin trabalhava nos bastidores para
reduzir a influência do rival. Como testemunhou A.P. Balashov, funcionário da
secretaria de Stalin, o secretário-geral quase sempre reunia seus aliados antes de
uma reunião do Politburo para discutir maneiras de solapar Trotsky.
“Sabíamos”, disse Balashov ao autor, “que Stalin cozinhava outro prato anti-
Trotsky”.
Quando o Secretário-Geral descobriu que Trotsky ainda era mencionado
nos programas de estudos políticos do Exército como “Chefe do Exército
Vermelho de Operários e Camponeses”, sua reação foi imediata. Escreveu a
Frunze, em 10 de dezembro de 1924, propondo uma correção imediata
daqueles programas. A resposta de Frunze, alguns dias depois, veio com um
relatório anexo do chefe do departamento político do Exército, Alexinsky,
estipulando: “Trotsky não mais figura nos programas de estudos políticos como
líder do Exército Vermelho”. Stalin tomou também providências para que, na
segunda metade de 1924, o nome de Trotsky não mais fosse adotado por
cidades e fábricas, e para que poucas notícias simpáticas sobre o rival
aparecessem na imprensa.
No intervalo entre o XIV e o XV congressos, Stalin organizou e presidiu
diversas reuniões – sessões combinadas do comitê central e da CCC, sessões do
comitê central do Politburo –, em que foram discutidas as atividades da
oposição e tomadas decisões. Diversas posições foram adotadas em relação a
Trotsky e seus seguidores: advertências foram expedidas, exigidas punições pelo
partido, houve expulsões dos conselhos editoriais de órgãos partidários. Rachas
enormes logo apareceram na oposição. Com o apoio de outros líderes do
partido, Stalin conseguiu a saída de Zinoviev do Politburo, em julho de 1926,
seguida da remoção de Trotsky, em outubro. Kamenev foi dispensado de suas
atribuições como membro candidato. Um pleno do comitê central decidiu pela
impossibilidade do desempenho de funções no Comintern por parte de
Zinoviev. Outros oposicionistas foram também retirados de seus cargos no
partido e no estado.
Num relatório à XV Conferência do partido, de outubro-novembro de
1926, “Sobre a oposição e a situação interna do partido”, Stalin criticou
acerbamente o trio oposicionista e seus aliados. Expôs as mesmas ideias no
mais amplo sétimo pleno do comitê executivo do Comintern, em dezembro do
mesmo ano. As anotações para esses discursos mostram que ele preparou o
“desmascaramento” dos faccionários com todo o cuidado. Fraquezas e
“pecados” foram listados:

1. Trotsky, Zinoviev, Kamenev: não apresentam fatos, só invenções e mexericos.


2. Fazer Trotsky explicar com quem estava alinhado antes de Outubro: com os mencheviques de
esquerda ou com os de direita?
3. Por que Trotsky não foi membro da Zimmerwald de Esquerda?*
4. Stalin realmente está perseguindo o meio-menchevique Mdivani? É boato.
5. No IV Congresso, Kamenev disse que foi um erro “abrir fogo sobre a esquerda”. Kamenev é
esquerdista?
6. Trotsky afirma que se “antecipou” às Teses de Abril de Lenin. Está comparando uma mosca com
uma alta torre de observação.
7. Telegrama de Kamenev a [o Grão-Duque] Mikhail Romanov.
8. Zinoviev insistiu na aceitação dos terríveis termos de Urqhart na concessão.**
9. Zinoviev: “ditadura do partido” etc.

Stalin coligiu meticulosamente todos os delitos dos adversários, de vulto e


insignificantes – que não eram poucos – e atirou-os incansavelmente na
fogueira da contenda. No plenário de dezembro, pronunciou um discurso com
o título “Uma vez mais sobre a tendência social-democrata em nosso partido”,
que durou cerca de cinco horas. A direção principal de seu ataque foi resumida
na pergunta, “Leninismo ou Trotskysmo?” Reuniu todos os reles e corriqueiros
deslizes cometidos pela oposição, mas não tentou responder a suas opiniões
com argumentos intelectuais. Para ele, bastava açoitá-los com insultos.
Naturalmente, a oposição teve a oportunidade de defender-se, mas não
convenceu. Por exemplo, gastou muito tempo tentando persuadir os delegados
a concederem uma hora para seus discursos, depois pediram mais meia hora, e
mais dez minutos, e mais 15. Os anais da conferência mostram que, afora uma
fieira de citações de Marx e Lenin, e deles próprios membros da oposição, não
houve uma linha de defesa contra a acusação de facciosismo.
Nem Trotsky, com sua reputação de orador, teve argumentos satisfatórios
para justificar os inúmeros ataques que fez ao comitê central e ao partido. Ao
fim de uma declaração longa e confusa, meramente disse: “Não admitimos as
opiniões que nos foram imputadas.” Yu.M. Larin (o nome verdadeiro era Lurie
e sua filha era a última esposa de Bukharin), que falou depois dele, observou
com sagacidade que todos estavam presentes numa ocasião em que “a revolução
superava alguns de seus líderes”. Acrescentou que os discursos da oposição
tinham sido “mera argumentação literária sobre citações e sobre interpretações
de diversas passagens de diferentes obras”. Trotsky, Zinoviev e Kamenev não
tinham “se comportado como líderes políticos, e sim como letrados sem
responsabilidades”.39 Outros oradores comentaram (com despercebida ironia,
em vista do que iria acontecer no futuro) que Trotsky e seus seguidores
queriam industrializar o país às expensas do campesinato e sem consideração
pelas consequências sociais.
O combate contra Trotsky não foi travado apenas no comitê central e na
CCC, mas também no Comintern. Trotsky era membro do comitê executivo
do Comintern e quando, em maio de 1927, a revolução chinesa foi alvo de
debate, Stalin resolveu atacar Trotsky também nesse campo. O discurso que fez
no X Pleno do comitê executivo do Comintern, em 24 de maio de 1927, não é
muito conhecido e merece uma citação mais longa:

Tentarei o mais possível evitar o elemento pessoal nessa polêmica. Os ataques pessoais desferidos por
Trotsky e Zinoviev contra membros individuais do Politburo e do Presidium do Comitê Executivo do
Comintern não merecem nossa atenção. Parece que o camarada Trotsky gostaria de se autodescrever
como algum tipo de herói nos encontros do comitê executivo, com o objetivo de transformar o
trabalho deste comitê – sobre o perigo de guerra, a revolução chinesa, e assim por diante – num
simples trabalho sobre a questão dele mesmo. Creio que o camarada Trotsky não é digno de tanta
atenção [voz na plateia: “Muito bem!”], em especial quando parece mais um ator que um herói, e não
devemos, de forma alguma, confundir heróis e atores. Não estou dizendo que Bukharin e Stalin não se
ofendem quando pessoas como os camaradas Trotsky e Zinoviev, cujos desvios social-democratas
foram detectados pelo mais amplo VII Pleno do comitê executivo, atacam os bolcheviques sem a
mínima razão. Pelo contrário, eu me sentiria profundamente insultado se meio-mencheviques como
os camaradas Trotsky e Zinoviev me elogiassem em vez de me atacarem.40

Por mais superficial que esse discurso possa ter sido, foi incisivo e irado, e
afixou rótulos nos oposicionistas, aviltando-os como políticos práticos. O
comitê executivo do Comintern preparou-se para a expulsão de Trotsky, o que
ocorreu em 27 de setembro daquele mesmo ano, 1927. Se bem que não
estivesse totalmente isolado, Trotsky continuou travando uma batalha perdida.
Depois do seu exílio da União Soviética e até 1940, ele seria o único a
continuar se arriscando, atacando e acusando Stalin, porém, quanto mais isso
se prolongava e mais encolerizada se tornava a voz solitária de Trotsky, mais
patente ficava que sua luta era menos pela revolução e seus ideais do que por si
mesmo. Até seu último dia de vida, jamais se conformou com o absurdo de ele,
o quase gênio, ter sido posto na chuva e no sereno pelo “velhaco da Ossetia”.
Logo passaria a usar conceitos marxistas para apequenar Stalin, enquanto, de
sua parte, o secretário-geral nunca deixaria de ver Trotsky com o mais
profundo ódio pessoal e como a incorporação do mal, símbolo da degeneração.
Entrementes, os oposicionistas não aprenderam a lição, e a luta prosseguiu.
Na primavera de 1927, enviaram um novo programa ao comitê central,
apoiado por 83 aliados de Trotsky. Depois de diversas reuniões do comitê
central e da CCC, Trotsky e Zinoviev foram expulsos do comitê central em
outubro de 1927, e do partido no mês seguinte, uma iniciativa ratificada pelo
XV Congresso do partido, quando se reuniu em dezembro do mesmo ano.
Entre os 25 membros ativos da oposição expulsos do partido na mesma ocasião
estava Kamenev, embora ele e Zinoviev fossem readmitidos mais tarde e
mesmo chegassem a fazer declarações de arrependimento no XVII Congresso
do partido.
Conquanto seja verdade que a batalha com a oposição teve lugar contra um
pano de fundo internacional de crescente tensão e um quadro interno de
desenvolvimento da industrialização, é também verdade que Stalin provocou a
refrega. Os debates infindáveis desviaram a atenção do partido de suas tarefas
vitalmente importantes, e a condição partidária interna foi discutida repetidas
vezes dentro do Comintern; mas lá também Trotsky e seus aliados não
conseguiram praticamente apoio algum. Sua aura de herói do partido havia se
dissipado. Passou a ser visto pelo partido e pelo movimento operário
internacional como discursador e pretenso líder.
Por mais paradoxal que possa parecer, foi Trotsky e ninguém mais quem
reforçou a posição de Stalin. Ao impingir ao partido um debate sem fim sobre
sua rixa com Stalin, Trotsky, sem querer, reforçou a autoridade do secretário-
geral como novo líder. Foi emblemático o fato de Stalin ter sido o único orador
do XV Congresso a receber estrondosa ovação tanto pelo relatório como pelo
discurso de encerramento. Ele não pode ser acusado de “encenação” ou de
“preparação de enredo” na condução do evento: a maioria dos delegados
simplesmente o viu como lídimo chefe emergente do partido, impressão
fortalecida pelos pouco convincentes discursos da oposição, que perdera o
vigor. Como Trotsky relembrou encolerizado: “A única preocupação de
Zinoviev e seus amigos foi a de render-se enquanto havia tempo. [...]
Esperaram comprar o perdão, até mesmo ser favorecidos de alguma forma, caso
demonstrassem seu afastamento de mim...”41
Ficou claro para todos que a aliança de Trotsky com seus antigos inimigos
surgira só para concentrar forças contra Stalin, enquanto este último, cuja
ambição e fé em seu próprio destino não paravam de crescer, não perdeu a
oportunidade de ouro que se lhe apresentou. Tendo começado a batalha no
plano ideológico, passou a agir então para a destruição política completa de
Trotsky.
Um pleno conjunto do comitê central e da CCC de 23 de outubro de 1927
foi convocado para discutir a agenda do XV Congresso que se aproximava.
Quando o plenário concordou que o congresso deveria debater a oposição de
Trotsky, gritos partiram da plateia e notas foram passadas para a mesa dos
trabalhos reclamando que o comitê central havia escamoteado o Testamento de
Lenin e descumprido sua vontade. Stalin não pôde mais silenciar sobre a
questão. Seu discurso de uma hora de duração foi rancoroso e pleno de
indisfarçável ódio por Trotsky. Mais uma vez, repassou todos os pecados do
líder rejeitado, remontando a 1904. Sabedor de que a arma principal de
Trotsky era o aviso de Lenin a respeito de suas deficiências pessoais, Stalin
contra-atacou na mesma linha:

A oposição pensa que pode “explicar” sua derrota dando como razão a rudeza de Stalin, a teimosia de
Bukharin e Rikov, e assim por diante. Isso é muito fácil. É apenas palavrório, não é explicação. [...] No
período entre 1904 e a Revolução de Fevereiro, Trotsky confraternizou com os mencheviques durante
todo o tempo, e se batia numa luta desesperada contra o partido de Lenin. Naqueles tempos, Trotsky
foi derrotado repetidas vezes pelo partido de Lenin. Por quê? Seria talvez por causa da rudeza de
Stalin? Mas Stalin não era, então, secretário do comitê central; naqueles dias, estava bem longe dos
exílios no exterior, conduzindo a luta na clandestinidade contra o czarismo, enquanto a batalha entre
Trotsky e Lenin era travada no exterior. Portanto, o que a rudeza de Stalin tem a ver com tudo isso?42

Stalin lançou seu ataque sob o estandarte da defesa de Lenin, a quem Trotsky,
naqueles dias, chamara – entre outras coisas – de “Maximilien Lenin”, clara
alusão aos métodos ditatoriais de Robespierre. Desferiu golpe contundente em
Trotsky ao realçar que um dos panfletos iniciais do rival, “Nossas tarefas
políticas”, fora dedicado ao menchevique P.B. Axelrod. Triunfalmente e
acompanhado de brados de aprovação da plateia, Stalin leu a dedicatória: “Ao
meu prezado professor, Pavel Borisovich Axelrod.”

Pois muito bem, faça bom proveito de nosso “prezado professor” Pavel Borisovich Axelrod! Bom
proveito! Agora, venerável Trotsky, é melhor correr, porque Pavel Borisovich está decrépito e pode
morrer a qualquer momento, e talvez você se atrase para o encontro com seu “professor”.43

Relembrando o pleno de julho-agosto de 1927, Stalin lamentou ter dissuadido


os camaradas da expulsão imediata de Trotsky e Zinoviev do comitê central.
“Fui talvez muito generoso e cometi um erro...” Mas agora, ao contrário, pedia
o apoio “daqueles camaradas que queriam expulsar Trotsky e Zinoviev do
comitê central”.44 Quanto à “Carta ao Congresso” de Lenin, Stalin deu sua
própria interpretação:

Ela foi mostrada vezes sem conta, e ninguém está tentando esconder coisa alguma, isso porque o
Testamento de Lenin foi endereçado ao XIII Congresso do partido, foi lido lá, e o congresso, por
unanimidade, concordou em não publicá-lo, porque, aliás, Lenin não solicitou sua publicação, nem
queria isso.45

Como mostrou nossa análise das últimas cartas de Lenin, Stalin estava
distorcendo a verdade histórica. Jamais ficou esclarecido se Lenin endereçou as
cartas ao XII ou ao XIII Congresso. O Testamento foi lido apenas para os
delegados, não para o congresso. E esse congresso não tomou decisão, muito
menos por unanimidade, sobre sua não publicação, e só havia a palavra de
Stalin afirmando que Lenin não desejara aquela publicação.
Durante o evento, sentindo sua crescente força e percebendo que tinha,
praticamente, o total apoio do plenário, Stalin decidiu-se pela batalha no
campo em que era mais vulnerável, e mentiu deslavadamente no decorrer do
processo. Explorou o fato de que, por insistência do Politburo (sobretudo por
sua própria), o Bolshevik de setembro de 1925 publicou uma declaração de
Trotsky referente ao Testamento. Cedendo à pressão de Stalin na ocasião,
Trotsky escrevera:

Desde que ficou doente, Vladimir Ilyich escreveu com frequência propostas, cartas etc. aos órgãos
dirigentes do partido e a seus congressos. Todas essas cartas etc. foram naturalmente sempre entregues
aos destinatários e levadas à atenção dos XII e XIII Congressos, e sempre, é claro, tiveram a influência
adequada sobre as decisões do partido. [...] Vladimir Ilyich não deixou testamento e, pela própria
natureza de suas relações com o partido, bem como pela natureza do partido em si, fica excluída a
possibilidade de um tal testamento, de modo que qualquer conversa sobre ocultação ou não
cumprimento de um testamento não passa de invenção maliciosa e, na verdade, vai contra a intenção
de Vladimir Ilyich.46

Poderia Trotsky ter adivinhado que, ao tentar se dissociar dos rumores que
circulavam no Ocidente, os documentos sigilosos de Lenin tinham alcançado o
Ocidente por suas mãos, ficaria totalmente encurralado num canto? Os sinos,
no final das contas, dobravam por ele. Aos olhos do plenário, o líder da
oposição revelou-se mais uma vez um político intrigante, e Stalin não perdeu a
chance de acabar com ele. Citando o artigo do Bolshevik, Stalin mirou
diretamente no alvo:

Isso foi escrito por Trotsky, por ninguém mais. Que fundamento podem ter agora Trotsky, Zinoviev e
Kamenev para tagarelarem sobre uma tal “ocultação” do Testamento de Lenin por parte do comitê
central e do partido? [...]
Tem-se dito que, em seu Testamento, Lenin sugeriu que, em face da “rudeza” de Stalin, o congresso
deveria considerar sua substituição no cargo de secretário-geral por alguma outra pessoa. Isso é
absolutamente verdadeiro. Sim, camaradas, sou rude em relação àqueles que, traiçoeira e rudemente,
destroem e dividem o partido. Jamais escondi isso, nem vou fazê-lo agora. Talvez se exija uma certa
gentileza para com esses divisionistas. Mas não consigo agir assim. Logo na primeira sessão do comitê
central que se seguiu ao XIII Congresso, solicitei ao pleno dispensa de minhas obrigações de
secretário-geral. O próprio congresso debatera o assunto. Todos os delegados, inclusive Trotsky,
Kamenev e Zinoviev, por unanimidade, forçaram Stalin a continuar no posto. Que deveria eu fazer?
Fugir de meu dever? Não é da minha natureza, jamais fugi de uma tarefa, não tenho direito a fazê-lo,
seria o mesmo que a deserção. Um ano mais tarde, solicitei novamente ao pleno que me dispensasse e,
mais uma vez, fui compelido a permanecer. Que mais poderia ter feito?
É significativo que o Testamento não contém uma só palavra, uma só pista, sobre erros de Stalin. Fala
apenas na rudeza de Stalin. Porém, a rudeza não é, nem pode ser, uma deficiência da linha política de
Stalin ou de suas posições.47

Sentado no salão, Trotsky sentiu que aquela tirada devastadora e triunfante de


Stalin representava sua morte política. Como escreveria mais tarde, no México,
depois do discurso de Stalin, ficou com a sensação de que a lâmina da
guilhotina pendia sobre sua cabeça. Como outros revolucionários daquela
ocasião, Trotsky conhecia bem a história da Revolução Francesa. Não podia
esconder a satisfação quando se lembrava das últimas palavras de Robespierre
para a Convenção: “A República pereceu! Vem aí o reinado dos salteadores!”
Naturalmente, só via a si mesmo como Robespierre. Contudo, diferentemente
do francês não podia contar com os sans-culottes parisienses. Trotsky era um
marechal de campo sem exército. O partido era hostil a ele, e já cansara de suas
intrigas. Estava tudo acabado.
O diálogo que deve ter passado pela cabeça do derrotado quase-líder e
quase-ditador deve ter sido autodestrutivo. Como pudera ele, Trotsky, ter
subestimado tanto o bigodudo da Ossetia? A sombria ideia de que tinha
perdido a vez o apoquentou mesmo em vida de Lenin. Mas não podia sonhar
que seria publicamente esmagado por alguém em tão pouca evidência naqueles
dias. Mais tarde, no exterior, Trotsky leria um livro do émigré Essad Bey que
explicava tudo:
Trotsky e Stalin eram dois pólos opostos no partido comunista. Nem em termos pessoais, nem
políticos, convergiam em ponto algum. Trotsky era o europeu brilhante, o jornalista experimentado e
conceituado, e Stalin, o típico asiático, um homem sem vaidades ou necessidades pessoais, com a
mente fria e calculista de um conspirador oriental. Dois homens assim só poderiam odiar um ao
outro. Stalin tinha uma aversão física por Trotsky, ao passo que este sentia enorme desprazer só em
olhar para Stalin, para seu rosto marcado de varíola.48

Trotsky pronunciou seu último discurso como figura do partido no pleno de


outubro de 1927. Depois escreveria que desejava, mas fracassou
completamente, alertar os “cegos” de que “o triunfo de Stalin não duraria
muito e que o colapso de seu regime viria subitamente. Os vitoriosos do
momento estavam muito confiantes na força. Vocês estão nos expulsando, mas
não evitarão nossa vitória”. Debruçando-se sobre a tribuna e tentando silenciar
o alarido que se instalara no salão, Trotsky leu rapidamente seu
pronunciamento, da mesma forma que os “coladores”, como frequentemente
chamara Stalin e outros líderes do partido. A audiência não prestou atenção,
interrompendo-o com gritos: “Calúnia!” “Mentiras!” “Falador!” “Abaixo o
faccioso!” Trotsky tentou se ver livre rapidamente do que tinha escrito sobre o
enfraquecimento do princípio revolucionário no partido, o domínio do
aparato, a criação da “facção mandante” que conduzia o país e o partido num
ambiente de reação política. A despeito do fato de que muito do que dizia
estava certo, ele não deu argumentos convincentes ou ideias socialistas claras.
O ódio que devotava a Stalin e ao comitê central ficou bem claro, mas não
encontrou eco no plenário, tampouco entre os comunistas que leriam o
discurso nos anais do XV Congresso.
Por ocasião do décimo aniversário da Revolução de Outubro, os seguidores
de Trotsky decidiram que tomariam parte nas comemorações como uma
passeata, em colunas próprias, carregando cartazes irrepreensíveis: “Abaixo o
kulak, o nepista e o burocrata!” “Abaixo o oportunismo!” “Pela vontade de
Lenin!” “Pela unidade bolchevique!” Foram feitas tentativas para levantar
retratos de Trotsky e Zinoviev, mas Stalin tomara medidas acauteladoras e a
milícia dispersou os grupos de Trotsky. Zinoviev, que fora a Leningrado para a
ocasião, e Trotsky, que desfilava de automóvel pelas ruas e praças de Moscou,
descobriram que tinham apenas apoio minúsculo. Talvez Trotsky tenha se
recordado do II Congresso dos Sovietes, dez anos antes, quando despedira a
figura de Martov que partia com as palavras: “Vá para o lixo da história, que é
seu lugar!” As mesmas palavras eram então disparadas contra ele, quando
tentou apelar para a multidão na Praça da Revolução, a caminho da Praça
Vermelha. Atiraram pedras e os vidros de seu carro estilhaçaram. Stalin o
despejava no esgoto da história. Em apenas dez anos, a meteórica carreira de
Trotsky no partido chegara a um fim catastrófico.

Depois da expulsão de Trotsky do partido, Zinoviev e Kamenev tentaram


convencê-lo à autocrítica, a admitir que estivera errado. Mas Trotsky, malgrado
o que sobre ele foi escrito e dito, sempre se viu pelo prisma do futuro, e como
era ambicioso e vaidoso, levou em consideração a forma com que os
historiadores pesariam um sucesso temporário na avaliação geral que dele
fariam.
As duas famílias de Trotsky teriam que beber do amargo fel. Sua primeira
esposa, Alexandra Sokolovskaya, e suas duas filhas, Zina e Nina, bem como os
maridos, eram seus zelosos aliados. Ele afastou-se da família por volta de 1902,
quando a filha mais nova tinha apenas quatro meses de idade. De início,
escrevia do exterior à esposa, mas o tempo e a constituição de nova família
lançaram Alexandra e suas filhas naquilo que ele mesmo chamava de “esfera do
irreparável”. Como escreveria em Minha vida, em 1929: “A vida separou-nos,
mas nada poderia destruir nossa amizade e nossa afinidade intelectual.” Depois
da revolução, as duas filhas desfrutaram da glória refletida do pai, para
partilharem com ele o ostracismo poucos anos mais tarde. O destino dos
membros dessa família foi triste. Por sua heterodoxia política e por
pertencerem a “um clã de inimigos” – ou por serem “elementos socialmente
perigosos de origem”, como foi dito nos anos 1930 – Stalin cobraria um preço
horroroso.
A segunda esposa de Trotsky, Natalya Sedova, também começou a vida
como revolucionária. Por algum tempo, viveram juntos em São Petersburgo
usando o nome falso Vikentiev. Ela esteve sempre ao seu lado, compartilhando
o triunfo de sua ascensão durante a revolução e a guerra civil, bem como as
infindáveis andanças do exílio.
Trotsky teve dois filhos no segundo casamento. O mais velho, Lev, que
estava sempre com o pai, foi trotskysta ativo e morreu muito jovem em
circunstâncias misteriosas, em Paris, depois que seu pai foi banido da URSS. O
mais jovem, Sergei, deixou o lar quando seu pai vivia no Kremlin, declarando
que achava a política “censurável”. Não se filiou à Konsomol, juventude
comunista, e mergulhou na ciência. Recusando-se a acompanhar o pai no
exílio, Sergei, como filho de Trotsky, estava, é claro, condenado. Em janeiro de
1937, apareceu no Pravda um artigo intitulado “Filho de Trotsky, Sergei Sedov,
tentou envenenar operários”. Já exilado em Krasnoyarsk, Sergei foi declarado
“inimigo do povo”. Numa reunião da fundição de uma planta industrial para a
fabricação de máquinas, um dos capatazes, de nome Lebedev, declarou:
“Tínhamos trabalhando conosco um engenheiro filho de Trotsky, Sergei Sedov.
Este adequado fruto de um pai que se vendeu ao fascismo tentou envenenar
um grande grupo de operários com o gás proveniente de um gerador.” No
mesmo encontro, foram feitas observações sobre o sobrinho de Zinoviev, Zaks,
e seu “protetor”, o gerente da fábrica, Subbotin. Estava selada a sorte de pessoas
que eram assim acusadas.
Todos os filhos de Trotsky pereceram no rodamoinho sangrento para o qual
foram tragados devido à luta do pai com Stalin, e isso cercou seu exílio com
uma aura de martírio aos olhos do Ocidente. Natalya sobreviveu tanto ao
marido como a Stalin e viveu para testemunhar o XX Congresso.
No começo, em nome da “história”, o secretário-geral prometeu
publicamente “não tocar na família de Trotsky”, mas o destino de seus
integrantes foi doloroso. Alguns parentes distantes conseguiram escapar
incólumes e ainda vivem, com nomes diversos em Moscou, onde conversaram
com o autor; todavia, a maioria deles passou uma vida dura após o banimento
do parente famoso.
Nos cerca de 15 livros que escreveu no exílio, Trotsky quase sempre
focalizou o próprio destino, em particular pouco antes de seu assassinato.
História da Revolução Russa, Que mais?, O testamento oculto de Lenin, A moral
deles e a nossa, Diário do exílio, Minha vida, A Terceira Internacional depois de
Lenin trazem a marca de um egocentrismo trágico. Achava intolerável que não
se falasse, escrevesse ou discutisse sobre ele. A fama, a popularidade e a glória
passaram a ter mais valor para ele que o alimento. Os mencheviques que, em
certa ocasião, partilharam suas opiniões, passaram a escrever artigos cáusticos
sobre sua pessoa.
David Dallin escreveria:

Trotsky faz o possível para garantir, Deus o livre, que as pessoas não comecem a se esquecer dele. Dia e
noite, escreve grandes livros e pequenos artigos, publica boletins de família e variações sobre o mesmo
tema em diversas línguas: a traição de Stalin, sua deslealdade com a revolução chinesa e a carinhosa
afeição de Lenin por Trotsky. Mas a humanidade é ingrata e, com o tempo, lembrará de Trotsky, mas
falará cada vez menos sobre ele.49
O Politburo debateu diversas vezes como lidar com Trotsky, cujos ataques
tinham mudado de forma – já não eram contra o partido, mas antissoviéticos
–, e decidiu afastá-lo de Moscou. Primeiro, ele foi obrigado a mudar-se do
Kremlin. Zinoviev, Kamenev, Radek e outros líderes também se mudaram.
Ioffe cometeu suicídio logo depois da derrota de Trotsky. Zinoviev e Kamenev
resolveram se retratar no congresso vindouro. “Lev Davidovich”, escreveram a
Trotsky, “chegou a hora de termos a coragem da rendição”. Haviam perdido de
forma decisiva o jogo e tentavam pegar um estribo do trem da história. Logo se
chegou à decisão de enviar Trotsky para Alma-Ata, no sul do Cazaquistão, e as
providências para isso, segundo alguns, ficaram a cargo de Bukharin.
Durante a partida, alguns aliados de Trotsky tentaram fazer um protesto
político. Trotsky recusou-se a deixar a casa e entrar no carro, e teve que ser
fisicamente arrastado e igualmente empurrado para dentro do trem, enquanto
seu filho mais velho bradava “Camaradas, vejam como levam Trotsky à força!”
Sua esposa descreveu a cena:

Houve uma tremenda manifestação na estação. O povo esperava, gritando “Vida longa para Trotsky!”,
mas ninguém o via em lugar algum. Onde estaria? Em torno do carro que fora reservado para nós,
juntara-se grande multidão. Jovens amigos colocaram um imenso retrato de L.D. em cima do carro.
As pessoas davam “hurrahs” de júbilo. O trem partiu, primeiro um solavanco, depois outro; moveu-se
lentamente um pouco à frente para logo depois parar subitamente. Os manifestantes se postaram
diante da locomotiva; penduraram-se aos vagões e interromperam o deslocamento, exigindo Trotsky.
Correu um boato pela multidão de que agentes da GPU tinham levado L.D. secretamente para o
interior do trem e impediam que ele aparecesse para os que vieram vê-lo. O nervosismo que tomou
conta da estação foi indescritível. Houve confrontos com a polícia e com agentes da GPU, com baixas
de ambos os lados. Prenderam gente.50

No Kremlin, Stalin seguia atentamente os acontecimentos, e se mantinha


informado sobre o que se passava por meio das constantes chamadas
telefônicas, durante as quais murmurava: “Nenhuma vacilação! Nenhuma
concessão! Os cúmplices de Trotsky têm que ser isolados! Faça isso
rapidamente e sem demora!” Ficou caminhando no gabinete para lá e para cá,
enquanto pensava. Algum tempo mais tarde, nos anos 1930, ao tomar
conhecimento dos recentes discursos de Trotsky no exterior, vociferou:
“Cometemos dois erros naquela ocasião. Deveríamos tê-lo deixado por algum
tempo em Alma-Ata e não permitir, absolutamente, que saísse do país. O outro
erro foi: como deixamos que viajasse levando tantos documentos?”
Em Alma-Ata, Trotsky continuou sua atividade política. Todo mês, enviava
centenas de cartas e telegramas para diversos endereços. As anotações de seu
filho mais velho mostram que a correspondência clandestina levada a efeito por
Trotsky em Alma-Ata, entre abril e outubro de 1928, chegou a cerca de 800
cartas políticas e 550 telegramas enviados, e mais de mil cartas e 700
telegramas recebidos.51 Além disso, cartas e outros itens iam e vinham por
mensageiros particulares. Ele tentava reativar a oposição. Seu papel de líder em
desgraça conferia-lhe certa autoridade moral. O exílio não mudou sua maneira
de pensar, nem ele se sentiu impelido a interromper a tentativa de semear a
dissensão dentro do partido. Para sua mente alerta, Stalin passara a personificar
o mal termidoriano e era o presságio de futuras desgraças.
Um ano mais tarde, em janeiro de 1929, o Politburo decidiu, depois de
longas discussões e várias opções, que Trotsky, a esposa e o filho Lev deveriam
ser banidos, via Odessa, para Constantinopla. Quando o vapor Ilyich se
aproximava de Constantinopla, em 12 de fevereiro, Trotsky resolveu chamar a
atenção da opinião mundial. Sua declaração para o presidente da Turquia,
Kemal Pasha, estava vazada nos seguintes termos:

Prezado Senhor
À porta de Constantinopla, tenho a honra de informar-lhe que cheguei à fronteira da Turquia não por
vontade própria, e que só cruzarei esta fronteira submetido à força.
Solicito-lhe, Senhor Presidente, que aceite meus votos de consideração.
L. Trotsky
12 de fevereiro de 192952

Dessa forma, Trotsky lançou-se em dez anos adicionais da mais ferrenha luta
contra Stalin e, por vezes e sem o querer, contra o próprio Estado que ajudara a
criar e defender.
A principal causa de seu drama pessoal repousou no fato de que, em última
análise, ele pôs suas ambições pessoais em primeiro lugar e por elas enfrentou
um oponente inescrupuloso. O desenlace foi acelerado pela colisão pessoal dos
“dois destacados líderes”. Dono de uma mente original e poderosa, e em
função de seu caráter altamente ambicioso, Trotsky aos poucos entrou nas
fileiras dos inimigos irreconciliáveis do socialismo stalinista. Seu ódio pessoal
pelo secretário-geral com frequência venceu a decência elementar, mesmo em
relação aos ideais e valores que tão recentemente proclamara.
Mal chegado à angra de Constantinopla, naquele plúmbeo fevereiro,
Trotsky passou à imprensa ocidental uma compilação de seis de seus ensaios
intitulada Que aconteceu e como. Num dos ensaios, fazia uma afirmativa que
tentara disfarçar apenas seis meses antes, a saber, que a teoria do socialismo em
um só país era uma maquinação reacionária, “o maior e mais criminoso
solapamento do internacionalismo revolucionário”. Era uma teoria, clamou ele,
com base administrativa, não científica.53 Quando Stalin leu essas declarações,
que chegaram na correspondência matinal duas semanas depois, disse, na
presença de um de seus assistentes: “Finalmente, o porco parou de fingir.”
Agora que estava no exterior, Trotsky preocupava-se constantemente em
preservar sua reputação de revolucionário. Continuou publicando coleções de
suas obras, muitas vezes apelando para invenções e interpretações forçadas,
tudo com o objetivo de atingir Stalin o mais dolorosamente possível, e de
apresentar-se ao espelho da história como o homem que Lenin queria como
sucessor, intenção frustrada pela traição de Stalin. Diga-se que Trotsky
enxergara através de Stalin antes dos outros e não se curvara a ele; mas
combatendo Stalin, Trotsky conseguira também insultar toda a nação. No
volume vinte da coleção de seus trabalhos, ele se permitiu alguns comentários
mordazes sobre o povo russo. Na sua opinião, “nenhum funcionário estatal na
Rússia jamais chegou a mais que uma imitação de terceira categoria do Duque
de Alba, de Metternich ou de Bismarck”, e nos campos da ciência, da filosofia e
da sociologia, “a Rússia deu ao mundo precisamente nada”. Só um político que
pensa ser um predestinado a desempenhar apenas papéis relevantes na história
seria capaz de assertivas tão chauvinistas e eslavofóbicas. No exterior, Trotsky
passou a se chamar o único homem para quem o planeta inteiro se tornara
acessível sem um visto. Como antes, tentou representar o papel de “segundo
gênio”:

Trouxeram Lenin para a revolução atravessando a Alemanha num trem lacrado. Contra a minha
vontade, arrastaram-me para Constantinopla no vapor Ilyich. Portanto, não considero meu exílio a
última palavra da história.

Ainda esperava voltar, mas o destino decidiu de forma diferente, e ele deveria
continuar banido para sempre.
Notas

* Na Primeira Guerra Mundial, ala radical do movimento socialista antiguerra, dominado por Lenin.
** Leslie Urqhart, negociante inglês que, em 1923, tentou um acordo sobre uma concessão soviética
importante em termos muito duros, que o Sovnarkom não aceitou.
[16]
A vida particular do líder

M uitos que conheceram e viram Stalin no que se pode chamar de


ambiente doméstico – médicos, seguranças, equipe de secretaria,
escritores, chefes militares – contaram-me que, de um modo geral,
sua vida privada e o trabalho se confundiam. Dias de folga não existiam para
ele, e o padrão de seus dias variava pouco. É verdade que, no final da vida,
quando a idade o obrigou a ser mais vagaroso, já não ia todos os dias ao
Kremlin, mas trabalhava em sua dacha. Ocasionalmente, era lá que tinham
lugar algumas reuniões do Politburo, e lá também que recebia ministros, altas
patentes das forças armadas e visitantes estrangeiros. Stalin criou o hábito de
trabalhar sem descanso nos anos difíceis logo depois da revolução. Na
realidade, houve ocasiões em que membros do Politburo e outros sentaram-se,
aos domingos, à mesa de jantar de Stalin e lá ficaram madrugada adentro.
Porém, mesmo então, por mais “livres” que fossem as conversas, sempre
recaíam nos problemas que o país e o partido enfrentavam.
A liderança dos anos 1920 vivia com bastante modéstia. Inicialmente,
Stalin ocupou um pequeno apartamento a ele distribuído por ordem de Lenin.
Uma carta de Lunacharsky, de 18 de novembro de 1921, pede que seja
encontrado algo mais confortável para Stalin. Quando Lenin leu a carta,
enviou um bilhete ao chefe da segurança, A.Ya. Belenky (nome real,
Khatskelevich): “Isso é novidade para mim. Não existe nada melhor?”54 Há
também uma nota de Lenin para A.S. Yenukidze solicitando que a questão do
apartamento de Stalin fosse resolvida com presteza e pedindo para ser
informado pelo telefone quando o caso estivesse solucionado. De fato, Stalin
logo mudou-se para as instalações de antigos serviçais, no Kremlin, um
ambiente pouco elegante, com alguma mobília original, assoalho gasto e janelas
pequenas.
O novo morador, no entanto, raramente era encontrado lá, pois chegava
tarde da noite e saía bem cedo. No início dos anos 1920, passou a ficar mais
tempo na dacha de Zabolovo e, nos anos 1930, em Kuntsevo. Mandou fazer
constantes reformas na dacha. Nos últimos anos, mandou construir um
pequeno chalé de madeira, próximo à grande villa, e para lá se transferiu.
Como me contou A.N. Shelepin, que foi chefe da KGB e membro do
Politburo no início dos anos 1970:

Quando Stalin faleceu, teve que ser feito inventário de seus bens, tarefa que se revelou bem simples.
Não havia antiguidades nem objetos de valor de qualquer espécie, afora um piano estatal. A mobília
era barata e o forro das cadeiras de braços estava bastante solto e gasto. Não havia nem mesmo um só
quadro “autêntico”, eram todos reproduções em simples molduras de madeira. Pendurada em posição
central na sala de estar ficava uma fotografia ampliada de Lenin e Stalin tirada em Gorky, em setembro
de 1922, pela irmã de Lenin, Maria.*
Havia dois tapetes no assoalho. Stalin dormia com um cobertor do Exército. Além do uniforme de
marechal, seu vestuário consistia em um par de ternos de confecção barata, um deles de lona, botas de
feltro bordado e um sobretudo de couro de carneiro.

Como já mencionamos, esse “ascetismo” era meramente externo, já que Stalin


utilizava também diversas villas na área de Moscou e no sul, bem como
desfrutava de uma vasta equipe de serviçais. Todos os seus desejos eram
prontamente atendidos, mas ele fazia o possível para sublinhar a simplicidade
“proletária” de seu estilo de vida. A aversão de Stalin pela “Europa” e pelas
coisas estrangeiras foi levada para sua vida doméstica; não gostava de objetos
importados, se bem que insistisse durante toda a sua existência que não havia
relação direta entre a postura política ou moral de um homem e sua atitude em
relação a valores, estilo de vida ou bens. O importante era saber concentrar no
principal, o que, para ele, era o poder, o poder como um objetivo, como um
meio e como um valor eterno. O enfeite doméstico desse poder não tinha
importância. Em 1938, ele escolheu outro apartamento no Kremlin, num
edifício soberbo construído no século XVIII por Kazakov para o Senado. Tinha
belas janelas, pé-direito elevado e escadarias amplas, quartos de hóspedes,
guardas e recepcionistas, e ocupava quase todo o andar, sendo o piso de cima
reservado para a equipe de serviços. Mas Stalin pouco o utilizou, preferindo a
dacha próxima. Tinha outra dacha um pouco mais afastada, que também não
usava.
No seu septuagésimo aniversário, Stalin recebeu de Beria uma dacha nas
margens de um reservatório próximo a Moscou e foi persuadido a conhecê-la.
O líder que envelhecia foi ver a bela casa, escondida entre pinheiros altos e
abetos vermelhos. “Que espécie de ratoeira é essa?”, disparou Stalin para Beria,
cheio de suspeitas. Passeou pelos aposentos sem mesmo tirar o casaco, deu uma
volta pela parte externa, olhou para as pessoas que o acompanhavam, entrou no
carro sem dizer uma palavra e foi embora. Nunca mais voltou àquele lugar.
O modo de vida de Stalin não era saudável. Notívago desde o início dos
anos 1920, dificilmente saía para uma caminhada, fumava desbragadamente, só
parou de fumar menos de um ano antes da morte, fato de que, aparentemente,
se orgulhava. Bebia um pouco de vinho georgiano seco antes do jantar. Não
tinha o costume de gastar longas horas no que chamava de passatempo
aristocrata da caça e pesca. O pensador do século XIX Alexander Herzen
escreveu certa vez ao amigo Nikolai Ogarev dizendo que o propósito da vida
humana era expressar todas as facetas da personalidade, aprendendo a “viver
em todas as dimensões”. Stalin viveu uma só dimensão, a do trabalho. Era
escravo do trabalho. Auxiliares lembravam que nas raras ocasiões em que
passeava pela propriedade, aquela figura vergada dava uma ou duas voltas pelo
caminho pavimentado, parava diante de um canteiro de flores ou de um
arbusto de lilases e parecia admirar o milagre da natureza, comparando talvez a
ordem eterna com o estado de seus assuntos.
Poderia ter recém-olhado uma pasta de Voroshilov com questões de todos
os tipos: pedindo sua permissão para que motoristas de tratores e de
colheitadeiras fossem isentos do serviço militar; solicitando-lhe revisão de uma
proposta para a construção de novas casas para o Exército; um relatório sobre o
discurso do líder polonês Pilsudski; extratos da imprensa tcheca; um relatório
sobre carta do comandante do 26º Regimento Caucasiano a respeito de um
mal-entendido com o emissário de Moscou, Gostintsev; uma carta de Ilyushin
sobre a necessidade de desenvolver a construção de dirigíveis e novas defesas
aéreas, e assim por diante. E quantos telegramas teria ditado hoje! Por exemplo:

Ao secretário do distrito de Sasov, vila Prosyanye Polyany, Ryazan.


Recebi telegrama da professora Shirinskaya, da escola tártara. Ela precisa ser protegida da aspereza
desnecessária e dos excessos do secretário Ivanov do comitê distrital de Kadom, que invadiu o
apartamento dela com o pretexto de retirar um guarda-louças desnecessário do pai da professora,
privando-a da paz necessária para o trabalho e fazendo-a até pensar em se matar.
Por favor, atue imediatamente para garantir Shirinskaya contra tais violações e informe ao Comitê
Central sobre o resultado.55
Pastas com tais assuntos eram-lhe diariamente entregues por Tovstukha, seu
assistente, se bem que, aos poucos, tais questões passassem a ser tratadas pela
secretaria. No final de sua vida, contudo, Stalin comprazia-se em lidar com
essas questões triviais, especialmente se tivessem relação com indicações para
funções ou com funcionários arrogantes, dissidentes ou teimosos.
Quanto mais sua influência crescia no partido e nas questões de Estado,
mais avidamente as pessoas levavam-lhe matérias para “sua atenção pessoal”.
Por que o comissário encarregado não resolvia o problema da convocação dos
motoristas de tratores ou da construção de novas casas? Um secretário não
poderia dar solução ao problema da desditosa professora? Mas o fato é que
Stalin acostumou-se à ideia de que as pessoas não podiam passar sem ele, que
tinha que fazer tudo.
Deve ter percebido que a centralização universal, emoldurada pelos ritos
burocráticos mais complexos, o estava transformando em prisioneiro do
sistema, e que isso poderia retardar ou até mesmo ser desastroso para a causa.
Para que serviam os comissários do povo, onde estava a flexibilidade deles? Que
faziam as incontáveis agências e escritórios para Toda a União? Ele sabia muito
bem, mas não queria que as coisas fossem diferentes. Se o governo de um só é
subdividido, deixa de ser de um só. Pouco a pouco, tudo convergiu para
depender de suas decisões; em certa medida, das decisões de seu entourage.
Cinema e teatro foram as únicas incursões a que se permitiu em sua vida de
trabalho. Tornou-se um hábito, desde o fim dos anos 1920, assistir a um ou
dois filmes por semana, em geral, depois da meia-noite. Qualquer filme que
fosse comentado era exibido na tela do pequeno cinema do Kremlin ou na sala
da dacha. Certa vez ele disse a líderes do departamento de propaganda do
partido que “o cinema nada mais é que ilusão, mas suas leis são ditadas pela
vida”. Via no cinema um instrumento educacional, como, aliás, encarava a arte
em geral.
Pelas mãos da esposa, passou a frequentar o teatro. Foram vistos juntos, em
muitas ocasiões, nos teatros de Moscou e, depois da morte de Nadezhda, o
teatro passou a fazer parte integral de sua vida, em particular o Bolshoi. Parece
que assistiu a todas as suas produções várias vezes. Como A.I. Rybin, um de
seus seguranças e, mais tarde, gerente do Bolshoi, relatou-me, Stalin assistiu ao
Lago dos cisnes na véspera do derrame fatal, talvez pela vigésima ou trigésima
vez. Normalmente ia sozinho, sentando-se, depois que as luzes do teatro eram
diminuídas, num canto de trás de seu camarote. Às vezes, ia ao ensaio geral e,
depois da encenação, invariavelmente, cumprimentava pessoalmente os
bailarinos. O cinema e o teatro foram os únicos desvios “líricos” em sua
existência, a qual, por sua vez, era totalmente dedicada ao alargamento de seu
poder e influência pessoais mediante o sistema da tomada de decisões.
Vida pessoal significa, acima de tudo, vida familiar. Nadezhda Sergeyevna
Alliluyeva era 22 anos mais nova que Stalin. Praticamente ao terminar o
ginásio tornou-se esposa do líder do partido. Os documentos, os relatos de
testemunhas, bem como as memórias da filha, Svetlana, concordam em que ela
tinha um temperamento bastante equilibrado. Na ocasião devida, filiou-se ao
partido, trabalhou no Comissariado das Nacionalidades e estudou. Foi também
uma das secretárias de plantão de Lenin, em Gorky. Quando foi decidido
mudar a capital de Petrogrado para Moscou, Stalin levou os pais da esposa e
todos passaram a residir juntos no pequeno apartamento do Kremlin.
Nadezhda logo habituou-se à atmosfera de consultas, reuniões, jornadas e
lutas intermináveis que faziam parte da vida do marido. Muitas das cartas,
telegramas, ordens e diretrizes encontradas entre os documentos de Stalin são
assinadas não apenas pelos secretários do líder, tais como Nazaretyan,
Tovstukha, Kanner, Mekhlis e Dvinsky, mas também por Nadezhda. Seus
grandes olhos de escolar perscrutaram avidamente o mundo do marido.
Percebeu que ele pertencia ao trabalho, e só a ele, porém, inicialmente, não se
deu conta do pouco tempo e pouco espaço que sobrariam para ela. Stalin não
necessitava de companhia. Quando o repreendia, o que era feito com
frequência, com a acusação “Você não se interessa pela família e pelas crianças”,
ele a interrompia asperamente, algumas vezes com palavras de baixo calão. Em
certa medida, Nadezhda encontrou consolo no trabalho, no estudo e nos
encontros com outras mulheres de líderes, como Polina Semenovna
Zhemchuzhina (esposa de Molotov), Dora Moiseyevna Khazan (de Andreyev),
Maria Markovna Kaganovich e Esfir Isayevna Gurvich (segunda mulher de
Bukharin). (Vale a pena ressaltar que, entre os líderes bolcheviques de origem
russa, muitos tinham esposas judias, o que pode ser, pelo menos, parcialmente
explicado pelo fato de que as judias intelectuais foram relativamente numerosas
e ativas no movimento revolucionário.)
Nasceram dois filhos do casamento de Stalin com Nadezhda: Vasili em
1922 e Svetlana em 1926. Foi então que Yakov, filho dele com a primeira
esposa, Yekaterina Svanidze, foi viver com eles. Era apenas sete anos mais
jovem que a madrasta, a qual, é claro, cuidou do rapaz, tão evidentemente
carente de amor paternal. Enquanto trabalhava, uma babá tomava conta das
crianças. Mas havia sempre muitos parentes em volta, fosse no apartamento do
Kremlin ou na dacha Zublovo. Além dos pais de Nadezhda, seus irmãos, Fedor
e Pavel eram também visitantes frequentes, bem como sua irmã, Anna, e os de
sua família. Vinham ainda os parentes da primeira esposa de Stalin. Depois da
morte de Nadezhda, em 1932, o barulho e a agitação foram esmorecendo e,
finalmente, cessaram de todo.
Stalin, claramente, não desejou tomar parte ativa na criação dos filhos, nem
era capaz de fazê-lo. Via-os muito raramente, talvez num domingo, quando
eles eram levados à dacha, ou no sul, em Sochi, Livadia ou Mukhalatka, onde
gostava de passar as férias, antes da guerra. Não é incomum os filhos de pessoas
famosas crescerem com problemas. Os filhos de Stalin pouco conheciam o pai,
e ele lhes dedicava tempo escasso. Segundo Svetlana, certa vez Vasili revelou-lhe
um “segredo” ao contar que “papai foi georgiano quando jovem”.
O destino do filho mais velho, Yakov, foi o mais trágico. Sua relação com o
pai era muito ruim. Stalin achava, erradamente como se viu mais tarde, que ele
tinha caráter fraco. Não gostava da escolha de esposas que o filho fizera, nem
da primeira nem da segunda, Iyulia Isaakovna Meltser. Ele teve dois filhos
desses casamentos. Svetlana Allilueyva relembra que, desesperado pela frieza
com que o pai o tratava, Yakov tentou até se matar, mas a bala o atravessou e
ele sobreviveu, embora tenha ficado doente por muito tempo. Quando Stalin o
viu, depois dessa expressão extrema de alienação, saudou-o com uma piada:
“Hah! Errou a pontaria!”
Com a permissão do pai, Yakov completou os estudos no Instituto de
Engenharia Ferroviária de Moscou, trabalhou na usina geradora da Fábrica
Stalin e, então, declarou que queria se alistar no Exército. De acordo com as
ordens dos assistentes de Stalin, Yakov Djugashvili foi matriculado para as
sessões noturnas de instrução e, depois, transferido para o curso de quatro anos
de formação da Academia de Artilharia do Exército Vermelho.
Consultando a folha de serviços do tenente Ya.I. Djugashvili, pode-se ter
uma ideia do questionário que todos os oficiais tinham que responder quando
compilavam o próprio curriculum vitae. Para que se respire a atmosfera
psicológica daqueles tempos, bastam algumas das dezenas de perguntas
formuladas:

Você já foi membro da Direita Trotskysta, dos nacional-chauvinistas ou de outras organizações


contrarrevolucionárias, quando e onde?
Você já se desviou da linha geral do partido, ou teve alguma hesitação? Se hesitou, sobre quais
questões e quanto tempo a hesitação durou?
Você serviu no Exército Branco ou no Exército da Intervenção, em unidades nacionalistas
antissoviéticas (partidários de assembleias constituintes, petliuristas, musavatistas, dashnaks,
mencheviques georgianos, ou os bandos de Makhno, de Antonov, ou outros quaisquer), quando,
onde, em que função, como chegou lá, em que unidades serviu, por quanto tempo?

Yakov passou no teste, mas nem todos se deixaram convencer. Por exemplo,
Ivanov, Kobrya, Timofeev, Sheremetov e Novikov (as iniciais não aparecem nos
arquivos), oficiais da academia, assinaram a seguinte avaliação do filho de
Stalin:

Desenvolvimento político satisfatório. Disciplinado, porém não adquiriu conhecimento adequado das
regras militares referentes à atitude perante os oficiais superiores. Não teve instrução prática. Pouco
treinamento em tática de infantaria. Seus trabalhos acadêmicos deixam muito a desejar. Conseguiu
menções “satisfatório” e “bom” nos exames.

A despeito da recomendação de seus superiores imediatos de que fosse


designado comandante de batalhão com o posto de capitão, o instrutor-chefe,
Sheremetov, foi de opinião diferente: “Concordo com a avaliação, mas penso
que o posto de capitão só deve ser concedido depois que ele servir um ano
como comandante de bateria.”
Todos concordavam que Yakov era pessoa honesta, decente e tímida, e que
parecia destruído pela hostilidade do pai. Yakov revelou-se nervosamente
desconfortável na função de comandante, talvez sentindo que patinava em gelo
fino: ele desbordara diversos cursos e seu rendimento não fora bom. Isso deve
ter influenciado de forma fatídica nos momentos críticos de seu serviço ativo.
Yakov serviu no front desde os primeiros dias da Segunda Guerra Mundial.
De acordo com os registros, lutou bravamente e cumpriu seu dever até o fim,
mas sua unidade foi cercada e ele caiu prisioneiro. Existe uma fotografia rara
que mostra um grupo de oficiais alemães olhando com ostensiva curiosidade
para o capitão Ya. Djugashvili. O mais interessante na fotografia é a expressão
de Yakov e sua postura: olhar fixo nos inimigos, com ódio estampado na face e
punhos cerrados. Os nazistas tentaram explorar o fato de ele ser prisioneiro de
guerra com propósito de propaganda, distribuindo panfletos com a fotografia,
mas ela foi em geral considerada falsificação.
Em vez de sofrer com a situação do filho, Stalin temeu que a força de
vontade de Yakov fosse quebrada no campo de concentração e que ele passasse
para os alemães. Nas memórias de Dolores Ibarruri, publicadas em Barcelona
em 1985, surge um fato desconhecido que ainda precisa ser desmentido ou
corroborado. Escreve ela que, em 1942, foi formado um grupo especial de
comando para ser lançado à retaguarda das linhas inimigas a fim de libertar
Yakov, então em Sachsenhausen. O grupo incluía o espanhol José Parro Moiso,
que portava documentos com nome de um oficial da Divisão Azul franquista.
A operação acabou em fracasso e o grupo foi aniquilado.56 Yakov acabou
mostrando caráter muito mais forte do que o creditado por seu pai. Ele
também receava que, sob tortura, lavagem cerebral e drogas, viesse a capitular e
se tornasse um traidor aos olhos do pai e da nação. Tal pensamento era pior
que a morte. Se bem que não se dobrasse nos infernos pelos quais passou –
Hammelburg, Lübeck e Sachsenhausen –, sua força começava a se esvair. Em
14 de abril de 1943, jogou-se na cerca de arame farpado e foi fuzilado por um
guarda.
Da mesma forma que com muitas outras pessoas, Stalin estava errado em
relação ao filho. Svetlana Alliluyeva afirma que, depois da vitória em
Stalingrado, seu pai lhe disse en passant: “Os alemães propuseram trocar Yasha
por um dos seus. [...] Como se eu fosse barganhar com eles! Não, guerra é
guerra...”
A sorte de seu outro filho não foi menos trágica. Stalin foi incapaz de fazer
dele um homem. Depois da morte da mãe, o menino foi praticamente criado
por Vlasik, chefe da segurança de Stalin. Porém, vivendo num ambiente de
bajulação e tolerância, o resultado foi uma pessoa amoral, caprichosa e fraca.
Na realidade, combateu bem, mas não tão bem para começar a guerra já como
capitão e terminá-la tenente-general. A folha de serviços do tenente-general
Vasili Iosifovich Stalin dá eloquente testemunho da farta distribuição de postos
e favores que ocorria no entourage de Stalin, com o conhecimento do
secretário-geral. Consideremos apenas alguns fatos do grosso arquivo sobre
Vasili: aos vinte anos de idade, V.I. Stalin atinge imediatamente o posto de
coronel (ordem nº 01192 do comissário do povo da Defesa, de 19 de fevereiro
de 1942); aos 24, torna-se major-general da Força Aérea (decreto do
Sovnarkom de 2 de março de 1946) e, um ano mais tarde, tenente-general.
Embora completamente “verde” e apenas piloto mediano, assume a Inspetoria
da Força Aérea. Em janeiro de 1943, passa a comandar o 32º Regimento de
Caças; um ano depois, o 3º Regimento; em fevereiro de 1945, é nomeado
comandante da 286ª Divisão de Caças; em 1946, comandante de Corpo e,
logo a seguir, subcomandante depois comandante da Força Aérea. A carreira
meteórica de Vasili não se deveu, é evidente, às suas habilitações especiais ou
qualidades pessoais. No curso da guerra, como atestam os relatórios de seus
superiores, participou de 27 sortidas e derrubou um avião inimigo, um Focke-
Wulf 190; foi agraciado duas vezes com a Ordem da Bandeira Vermelha, com a
Ordem de Alexander Nevsky, com a Ordem de Suvorov 2ª Classe e com
diversas outras condecorações.
O tenente-general E.M. Beletsky e o coronel-general N.F. Papivin, ambos
da Força Aérea, fizeram a seguinte avaliação de Vasili:

Irascível e nervoso por natureza, carece de autocontrole; têm havido incidentes de violência física
contra subordinados. Na vida privada, comportou-se de maneira incompatível com o posto de
comandante de divisão, registrando-se atitudes inconvenientes em festas das equipes de voo, grosseria
em relação a oficiais e mostra de irresponsabilidade quando dirigiu um trator do aeródromo à cidade
de Shiaulyai e entrou em conflito e pugilato com os guardas da NKVD do posto de controle. Não
goza de boa saúde, em especial no sistema nervoso, e é extremamente irritadiço, condição que revelou
recentemente quando participou de muito pouco treinamento de voo. [...] Todas as deficiências acima
diminuem significativamente sua autoridade como comandante e são inconciliáveis com as obrigações
de comandante de divisão.

Observações semelhantes estão registradas em outros relatórios, todos


concluindo que Vasili Stalin deveria ser mandado de volta à Academia para
mais estudo. Foi a única solução encontrada por destacados generais, como S.I.
Rudenko e E.Ya. Savitsky, para poupar seus subordinados das ações desse
“príncipe dissoluto”.
Coberto de honrarias e bênçãos por aduladores que só buscavam interesses
próprios, Vasili tornou-se, quase sem ser percebido, um consumado alcoólatra.
Pode-se bem imaginar os tormentos experimentados por suas esposas – as
quatro – nas mãos de um homem em constante degradação. Ele não era pessoa
especialmente interessante, mas foi prova concreta de que aquele que abusa do
poder corrompe todas as pessoas em que toca, inclusive os filhos. Os césares,
quando atingem o ápice do mando, deixam quase sempre para trás um rastro
de filhos com imperfeições no corpo e na alma, moralmente liquidados,
enquanto o ditador ainda vive e se compraz com sua própria imoralidade.
Depois que foram apresentados os relatórios sobre seu mau
comportamento, Vasili foi removido do cargo de comandante da aviação da
região militar de Moscou e deslizou, rapidamente, ladeira abaixo. Vinte e um
dias após a morte do pai, o tenente-general V.I. Stalin, de apenas 36 anos de
idade, foi excluído das forças armadas e proibido de usar uniforme militar pela
Ordem nº 10726 do ministro da Defesa. Todos haviam perdido a esperança, e
o ex-piloto terminou a vida ainda jovem, destruído pelo álcool.
A.N. Shelepin, minha principal fonte de informações sobre Vasili, disse-me
que ele foi preso depois da morte do pai. Algumas de suas faltas anteriores,
como abuso de poder e outras, foram desenterradas. A filha de Vasili,
Nadezhda, insiste que não houve julgamento ou investigação, porém, apesar
disso, o pai foi condenado a oito anos. Houve uma tentativa de mantê-lo fora
de circulação, já que dizia a todo o mundo que o pai fora envenenado.
Shelepin continuou:

Khruschev solicitou-me que fosse à prisão de Lefortovo para onde Vasili fora transferido da prisão em
Vladimir. O prisioneiro estava fazendo alguma coisa num torno – “trabalho educacional”, chamavam
eles. Quando o trouxeram à minha presença, ele se ajoelhou e soluçou. “Perdoe-me, perdoe-me, não o
deixarei mal de novo.” Conversei com Khruschev sobre a visita. Ele ficou silencioso, depois me disse:
“Traga-o aqui.”
No dia seguinte, Vasili foi levado à presença de Khruschev. De novo, caiu de joelhos, implorou e
chorou. Khruschev pegou-o nos braços e chorou também, e os dois conversaram por longo tempo
sobre Stalin. Depois disso, ficou decidido que Vasili seria solto imediatamente. A resolução foi
preparada e Vasili foi libertado. A permissão insistia que ele adotasse seu nome oficial de Vasiliev.

Era o nome que o próprio Stalin usara para assinar uma série de ordens durante
a guerra. Shelepin prosseguiu:

A despeito de sua falta de determinação, Vasili recusou-se veementemente a fazer isso. Foi para casa e
disse à filha que pensava em tornar-se gerente de uma piscina. Mas amigos logo o trouxeram aos
velhos dias. Um mês depois de sair da prisão, dirigindo um carro em estado de embriaguez, envolveu-
se num acidente. Xingando-o a não mais poder, Khruschev perguntou: “O que devemos fazer? Se o
prendermos de novo, morrerá, se não o fizermos, morrerá também.”
Foi decidido que Vasili deveria ser afastado. Kazan foi o local escolhido, e assim começou seu “exílio”,
acompanhado da esposa de então. Lá, num apartamento de um só cômodo, ele teve tempo para
revisar sua curta e exaltada vida. Lá também soube da notícia de que, em 31 de outubro de 1961, o
corpo de seu pai fora removido do Mausoléu [de Lenin]. A prisão, a doença, a vodka e a maldade dos
antigos “amigos” haviam-no transformado num completo inválido.

A vida de Vasili foi uma ilustração em miniatura da esterilidade moral do


stalinismo. Ele morreu em 19 de março de 1962. Na lápide, não foi gravado o
nome Stalin, que usou durante toda a vida, nem Vasiliev, que lhe quiseram
impingir, mas Djugashvili. Deixou sete filhos, quatro dele e três adotados.
O ditador, que podia ordenar o corte acelerado de um canal, a construção
de um palácio, ou o banimento de milhões de pessoas para o arame farpado
dos campos de concentração, revelara-se inútil como pai. E foi só ele o
responsável pela vida infeliz do filho mais novo. Por certo, a mesma acusação
pesará sobre Stalin quando os historiadores examinarem o destino de Svetlana.
Ao que tudo indica, ela ainda na escola, Stalin amou-a mais do que aos filhos
homens.
Embora difícil de imaginar, ele escrevia, com frequência, bilhetes amorosos
para a filha. Por exemplo:

Minha pequena dona de casa, Setanka, saudações!


Recebi todas as suas cartas. Obrigado por elas! Não as respondi porque ando muito ocupado. Como
tem passado, como vai seu inglês, você está bem? Eu estou muito bem e alegre, como sempre. Fico
muito solitário sem você, mas o que posso fazer senão esperar. Mando um beijo para minha pequena
dona de casa.

A guerra separou pai e filha, aparentemente para sempre. A intimidade e a


cordialidade familiares desapareceram. Svetlana crescia e, como todas as moças
de sua idade, arranjou o primeiro namorado. Alexander Yakovlevich Kapler era
jornalista e diretor de filmes (e judeu). Foi preso e sentenciado a cinco anos,
depois a mais cinco. Do campo, escreveu a Stalin:

Prezado Iosef Vissarionovich


Fui sentenciado por uma comissão especial sob a acusação de declarações antissoviéticas. Não admiti
isso na ocasião, nem admito agora. Fui condecorado com a Ordem de Lenin e a Ordem de Stalin
primeira classe. Trabalhei na produção dos filmes Ela defende a mãe-pátria, Kotovsky e Um dia de
guerra. Só admito minha falta de modéstia. Deixe-me ir para o front. Imploro-lhe.
27 de janeiro de 1944. A. Kapler

Stalin solicitou a Beria um relatório sobre Kapler e lhe relataram: “Kapler tem
uma irmã na França. Conheceu os correspondentes americanos Shapiro e
Parker. Não admite sua culpa, mas foi desmascarado pelos relatórios da
agência. 16 de março de 1944.”57 Não é difícil adivinhar em qual dos dois
documentos Stalin preferiu acreditar.
Os dois primeiros casamentos de Svetlana fracassaram, como também o
terceiro, quando ela escolheu um estrangeiro. Este terceiro marido faleceu em
Moscou e, na ocasião em que, em 1966, ela levou o corpo para ser enterrado
Í
na Índia, decidiu permanecer no exterior. Lá, também, não foi feliz e regressou
à URSS em 1984. De novo, não conseguiu se ajustar, partindo para o
Ocidente.
Talvez os filhos de Stalin tivessem crescido de maneira diferente se a mãe
não morresse. A evidência indica que nesse caso também Stalin foi a causa
indireta (ou, possivelmente, não tão indireta) de sua morte. Na noite de 8 de
novembro de 1932, ela, aparentemente, matou-se. O motivo de ação assim
trágica provavelmente foi uma discussão, muito pouco notada pelos que
estavam nas proximidades, ocorrida durante uma pequena celebração. Entre os
presentes, estavam Molotov e Voroshilov, com as esposas, e diversas outras
pessoas do círculo íntimo do secretário-geral. Nadezhda, ao que tudo indica,
não suportou outra das rudes invectivas do marido. Foi para o quarto e atirou
em si mesma. Foi encontrada na manhã seguinte quando a governanta,
Karolina Vasilievna Til, foi acordá-la. Uma pistola Walther jazia no assoalho.
Stalin, Molotov e Voroshilov foram chamados. Há suposições de que ela
deixou um bilhete sobre o suicídio, porém, como muitos segredos – grandes e
pequenos – isso permanece na penumbra.
Quando soube do ocorrido, Stalin ficou arrasado. Contudo, mesmo então,
continuou fiel a seu credo amoral: não se sentiu em absoluto responsável pela
morte da esposa, mas viu nela uma traição a si mesmo. Parece que jamais lhe
passou pela cabeça que sua insensibilidade e falta de afeto pudessem feri-la tão
profundamente a ponto de, num momento de maior perturbação mental,
provocar o ato extremo. Ele não compareceu à cerimônia fúnebre e, passado
pouco tempo, os amigos íntimos já tentavam arranjar outro casamento com
uma pessoa de suas relações. Tudo parecia certo, porém, por razões conhecidas
só por Stalin, o matrimônio não aconteceu. No fim da existência, viveu
solitário, confiando suas necessidades pessoais a uma governanta, Valentina
Vasilievna Istomina, que assumiu a responsabilidade de cuidar dele
permanentemente, acompanhando-o até nas férias na Crimeia. Quando Stalin
faleceu, ela jogou-se sobre seu peito na presença do Politburo e deu vazão em
voz alta ao seu pesar. Evidentemente, ele fora mais íntimo dela que de seus
camaradas em armas.
Bem no final da vida, Stalin começou a dar mostras de sinais de respeito
pela memória da esposa. Sua fotografia surgiu na sala de estar e no estúdio da
dacha, bem como no apartamento no Kremlin. É provável que, como muitas
outras pessoas, estivesse tomando consciência de que o fim se aproximava. Ou
seria esta mesma consciência atormentando-o nos anos de declínio?
Não há dúvida de que Nadezhda amou Stalin e de que tentou o melhor de
si para ajudá-lo em seu trabalho. Os familiares dizem que, durante os últimos
anos de vida, ela entrou em grande depressão. Talvez Stalin também a tivesse
amado ao seu modo, todavia, obcecado como era pela causa, por seus planos,
seu trabalho e pelo êxtase do poder, não tivesse lugar em seu coração para
esposa, filhos e parentes. No lugar de sentimentos, tinha fios de aço. Podia
passar semanas sem ver um membro sequer da família, embora quisesse saber
como eles estavam. Teve netos que jamais viu, ou tentou ver. Os filhos de Vasili
com a primeira esposa, Nadezhda e Alexander, por exemplo, passaram por
momentos dolorosos, pois foram ignorados pelo homem a respeito de quem
todos proclamavam “Stalin pensa em nós!”
Quando houve a prisão de Alexander Semenovich Svanidze, irmão da
primeira esposa e com quem o secretário-geral mantivera relações estreitas,
parece que Stalin não se surpreendeu com o fato de um homem que ele
conhecera durante toda a vida, literalmente desde a infância, poder se tornar
um “inimigo”. Todo o edifício de sua moralidade mostrava-se pontilhado de
lacunas. Era impossível encontrar e sensibilizar nele qualquer vestígio de
sentimento humano. Seu segundo filho representou meramente uma carga.
Stalin não encontrou outro meio que não os insultos para interromper a queda
de Vasili. Sua filha tornou-se completamente distante e estranha para ele depois
dos dois casamentos malogrados. Era indiferente aos netos, e quanto à mãe,
raramente dispensou-lhe atenção.
Talvez estas páginas não sejam as mais importantes para o retrato político
de Stalin, mas é significativa sua insensibilidade em relação à moral e à
“moralização”. Para ele, a política tinha sempre prioridade sobre a moralidade.
Porém, no exame da personalidade de figura tão singularmente complexa, é
precisamente aqui que se revela um dos segredos de seu caráter. O desprezo que
devotava aos valores humanos normais ficou evidente desde cedo. Ele
desdenhava da piedade, da simpatia, da comiseração. Só dava valor aos
atributos fortes. Sua mesquinhez espiritual, que evoluiu em excepcional
aspereza e, mais tarde, em crueldade, custou a vida da esposa e arruinou a
existência dos filhos.
Ainda pior, Stalin não teve também lugar para valores morais na política. O
“desmascaramento” de um colega como “inimigo do povo” era, aos seus olhos,
o mais nobre dos comportamentos. Quando, com a permissão de Stalin, Beria
prendeu Bronislava Solomonovna, esposa de seu assistente mais próximo,
Poskrebyshev, os pleitos que o inditoso marido fez ao chefe para que a
libertasse, segundo sua filha, Galina, invariavelmente tiveram a seguinte
resposta: “Não depende de mim. Nada posso fazer. Só quem pode resolver é a
NKVD.” A pobre mulher recebeu a usual e ridícula acusação de espionagem.
Mãe de dois filhos, ficou presa durante três anos e depois foi fuzilada. Ainda
assim, seu marido e pai de seus filhos trabalhava de 12 a 14 horas por dia ao
lado de Stalin, levando-lhe documentos, preparando sindicâncias, convocando
pessoas, transmitindo as ordens do chefe. “E Beria, que ordenara sua prisão”,
disse-me Galina, “ainda nos visitava em casa. Da mesma forma que éramos
visitados por pessoas bem conhecidas como Shaposhnikov, Rokossovsky,
Kuznetsov, Khruschev, Meretskov. Stalin conhecia pessoalmente minha mãe e,
é evidente, sabia que a acusação de espionagem era infundada. O irmão de
mamãe viajara ao exterior para comprar equipamento médico, o que foi a base
para a acusação, e ele também, é claro, foi fuzilado”.
Pode ser que, com a prisão das pessoas próximas e queridas daqueles que
trabalhavam mais cerradamente com ele, Stalin estivesse testando suas lealdade
e devoção. Nenhum deles – Kalinin, Molotov, Kaganovich, Poskrebyshev –
deixou extravasar o mais leve vestígio de que suas vidas familiares tinham sido
despedaçadas. Tal submissão deve ter proporcionado a Stalin grande satisfação,
enquanto os observava absorvidos com suas obrigações. Totalmente despido de
atributos apropriados, a monstruosa amoralidade de Stalin e a crueldade de
suas ações se ajustavam perfeitamente a um filme de terror. Incrível o fato de
Poskrebyshev ter acreditado no “Não depende de mim”. E, por certo, Beria
dizia algo parecido quando o visitava em casa. Aquelas pessoas viviam num
mundo de mentiras, cinismo e crueldade.
De alguma forma, habituamo-nos a pensar que o humanismo e as normas
universais do comportamento decente pertencem à província da moralidade
pequeno-burguesa. Não obstante, a moralidade surgiu bem antes da
conscientização política, legal, ou mesmo religiosa. Ela despontou tão logo as
pessoas começaram a viver em grupos e, sem ela, o homem jamais teria se
transformado em homem. Brecht certa vez observou: “Antes que um homem
possa se sentir homem, alguém tem que chamá-lo.” Stalin foi uma
personalidade forte que só buscou grandeza e poder ilimitado. Contudo, um
“reino do terror”, como escreveu Berdyaev, “não é apenas ação física, com
prisões, torturas, punições – é, sobretudo, ação mental”.58 A prática stalinista
gradualmente deificou a violência sem consideração por sua base moral. Para
Stalin, os parâmetros morais da revolução e a construção de um novo mundo
nada mais eram que moralidade burguesa. Nem tinha ele a menor dúvida sobre
a correção de sua própria moral. Num livro do século XIX do anarquista russo
Bakunin, Stalin sublinhou a frase: “Não perca tempo duvidando de si mesmo,
porque este é o maior desperdício de tempo jamais inventado pelo homem.”
Talvez Bakunin pudesse se permitir tais pensamentos, mas ele não era o
secretário-geral de um grande partido.
Nota

* Disseram tratar-se de fotomontagem.


Parte IV
Ditadura ou ditador?

Oh, maldita lisonja, quão doce a caçada!


Com seu laço, a captura é farta.
Eurípedes
[17]
O destino do campo

E m 21 de dezembro de 1929, Stalin fez cinquenta anos. A glorificação


interminável, a genuflexão diante do altar por parte de uma multidão
de aduladores, adorando-o como concedente de todas as bênçãos,
ainda não começara. As pastas com milhares de mensagens com aleluias e
dezenas de milhares de congratulações, e os artigos de fundo, começando e
terminando com loas ao seu nome ainda estavam por vir.
Mas já uma boa metade da edição “de jubileu” do Pravda era devotada a
Stalin. Havia artigos de Kaganovich, “Stalin e o partido”, de Ordzhonikidze,
“Rochedo bolchevique”, de Kuibyshev, “Stalin e a industrialização do país”, de
Voroshilov, “Stalin e o Exército Vermelho”, de Kalinin, “O timoneiro do
bolchevismo”, de Mikoyan jogando com as palavras, “O soldado de aço do
partido bolchevique”, e por aí vai. Tinham sido lançadas as bases da
glorificação. O Comitê Central e a CCC enviaram parabéns ao “melhor
leninista”. As manchetes dos jornais proclamaram Stalin “o autêntico
continuador da causa de Marx e Lenin”, “o organizador e líder da
industrialização e do coletivismo socialista”, “o líder do partido do
proletariado”, e outras mais. As celebrações não poderiam ser mais oportunas
para fixar a atenção pública no homem que tinha lidado de forma tão decisiva
com a oposição, ou, como era então chamada, “o desvio”. A popularidade de
Stalin passou a crescer rapidamente. Já estava então patente, para quem tinha
olhos de ver, que, no quinquagésimo aniversário, ele denotava mais confiança e
autoridade.
Molotov e Kaganovich desejavam celebrações mais espetaculares. Stalin os
conteve, não por modéstia, mas pela recordação dos cinquenta anos de Lenin
em 1920. Por mais de uma vez, lembrou-se das palavras de Lenin a seu
respeito, especialmente quando tinha que fazer uma opção entre coisas
essenciais. Só é possível fazer uma escolha verdadeira quando se tem a
capacidade de assumir a posição daqueles que dependem da decisão. Stalin não
tinha tal capacidade, mas sabia exercer moderação, em particular no início de
sua ascensão. A memória do cinquentenário de Lenin o deixava em
desconforto. A data foi comemorada no comitê do partido em Moscou, se bem
que Lenin não esteve presente. Stalin quis dizer alguma coisa inusitada e
inesperada e escolheu logo a capacidade do líder em reconhecer os próprios
erros, alguns dos quais o secretário-geral passou a enumerar, concluindo assim:
“Algumas vezes o camarada Lenin admitiu seus enganos em matérias de
enorme importância. Ficamos particularmente cativados por sua simplicidade.
É tudo o que tenho a dizer, camaradas.” Pelos aplausos tépidos da plateia ficou
demonstrado o sentimento dos camaradas a respeito daquele discurso de cinco
minutos que não teve nada de comemorativo.
Por que Stalin escolheu marcar a ocasião mencionando os erros de Lenin?
Estaria querendo mostrar que não era marionete de ninguém, ou desejaria ser
diferente? Qualquer que fosse a verdade, a lembrança daquela noite o
incomodava. Quando o vice-chefe dos arquivos centrais do partido, V.
Adoratsky, solicitou-lhe permissão para incluir o discurso numa antologia a ser
chamada Sobre Lenin, Stalin não deixou. Escreveu no memorando de
Adoratsky: “O discurso foi taquigrafado bem no essencial, mas precisaria de
edição. Preferiria que você não o publicasse: não é de bom-tom falar sobre
enganos de Ilyich.”1
O sentimento de desconforto logo evaporou. No início de 1925, Stalin
aceitou a proposta de Molotov para perpetuar seu nome na impressão de obras
coligidas, inclusive do discurso embaraçoso. Depois disso, Kalinin e Yenukidze,
respectivamente presidente e secretário do Comitê Executivo Central de Toda a
Rússia, assinaram uma ordem trocando o nome da cidade de Tsaritsyn para
Stalingrado; a província Tsaritsyn passaria a ser província Stalingrado; o distrito
Tsaritsyn, distrito de Stalingrado, o volost Tsaritsyn, volost Stalingrado; e a
estação ferroviária de Tsaritsyn, estação Stalingrado.2
Era 10 de abril de 1925, mal passado um ano da morte de Lenin, Stalin
fracassara num de seus primeiros julgamentos de consciência. Não que sofresse
a menor aflição ao dar seu “humilde” consentimento para a onda de troca de
nomes que começara. Em 1927, os jornais estamparam “congratulações ao
jornal Borba de Stalingrado”, assinadas por ele mesmo, e isso viraria norma.
Fábricas, parques, jornais, navios e palácios de cultura que levassem seu nome
personalizariam seu pleito por eternidade.
Nós, russos, quase todos temos raízes no campo. Quando as ensolaradas
memórias de infância nos vêm à mente, sentimo-nos de volta aos vilarejos, às
aldeias, com o cheiro da neve derretendo, os tordos empoleirados nas cercas, o
gelo escurecendo nos córregos, a estreita e amarronzada linha dos montes
Sayan ao sul, o chiado dos trenós deslizando pelas ruas da vila. E os rostos dos
que partiram há tanto tempo.
Raramente sabemos quem foram nossos ancestrais. Quem é capaz de
lembrar até mesmo os nomes dos bisavós? Eles desapareceram no passado
distante e obscuro. Caso fosse possível reunir de novo todos os nossos parentes
do passado em torno de uma grande mesa familiar, os ícones pendurados nas
paredes, escurecidos pela fumaça, estariam olhando para baixo e vendo
camponeses. Camponeses barbudos em camisas de morim, mãos calejadas pela
lida sem descanso, os doces e gentis olhos de suas esposas já envelhecidas aos
quarenta anos, que normalmente deram à luz ao lado de um campo, e muitas
crianças com cabelos cor de palha, metade das quais, pelo menos, não
sobreviveria à infância. Inevitavelmente, haveria um ou dois que fizeram a
campanha das guerras turca, japonesa e alemã, com as medalhas de São Jorge
orgulhosamente ostentadas. Essa gente analfabeta teria sido guiada na vida pela
moral da vila, ou seja, pela ortodoxia russa, como também pelo trabalho, pela
família e pela ideia da mãe-pátria. Um dos membros do grupo talvez soubesse
ler e talvez assinasse a revista ilustrada Niva. Tudo que nos restou desses mujiks,
desses camponeses, foi a lembrança. Ainda assim, no início dos anos 1930, a
avassaladora maioria de nossos concidadãos vivia no mundo camponês. E foi
nesse mundo que a verdadeira revolução ou, mais exatamente, algo como um
holocausto sancionado de cima, teve lugar.
É verdade que os primeiros embates ferozes ocorreram em 1917, quando as
terras que pertenciam à pequena nobreza, à coroa e aos mosteiros foram
tomadas. Em meados de 1918, comitês de pobres voltaram suas atenções para
os camponeses mais bem-sucedidos, os chamados kulaks, e expropriaram
metade de suas terras. Implementos agrícolas e gado foram distribuídos aos
camponeses pobres e de situação média, e os kulaks diminuíram em
quantidade. O setor agrícola passou a ser constituído, em sua maior parte, por
camponeses remediados. A Nova Política Econômica deu aos camponeses a
oportunidade de negociarem sua produção, depois do pagamento de uma taxa
fixa em espécie. No final de 1923, enquanto Lenin ainda vivia, a agricultura
soviética exportou pouco mais que dois milhões de toneladas de trigo.
Considerada ridícula a ideia de importar cereais, exportá-los era visto como
coisa perfeitamente normal.
Embora melhorasse muito a produção de grãos durante o período de
reconstrução, foi principalmente o abastecimento de cereais para consumo
interno que aumentou, ao passo que a utilização desses grãos para o comércio
estatal se atrasou, e a produção total tinha ainda um longo caminho para
alcançar os níveis de antes da guerra. Os baixos preços pagos aos camponeses e
a escassez de bens manufaturados para venda nas vilas perpetuavam essa
situação. A criação de cooperativas de produtores estava apenas em seus
primeiros estágios. A NEP proporcionava segurança para os camponeses pobres
e de situação mediana e, naturalmente, também fortalecia a posição dos kulaks.
Talvez seja interessante ressaltar que os ideais socialistas não são,
necessariamente, sinônimos de pobreza e de repúdio à riqueza. O marxismo só
condena a riqueza amealhada à custa do trabalho dos outros. Os kulaks deviam
as posses adquiridas ao suor do rosto.
Lenin havia antevisto que o campo apresentaria o maior obstáculo à
mudança socialista, mas acreditava na propaganda, na eletricidade, nos tratores
e nos livros. Disse que, para garantir a ampla participação dos camponeses nas
cooperativas, via NEP, “precisamos de toda uma época histórica. Chegaremos a
um final feliz dessa época em uma década ou duas”.3 Num de seus últimos
escritos, fez uma avaliação significativa: “Podemos agora dizer que, para nós, o
simples crescimento das cooperativas é o equivalente [...] ao crescimento do
socialismo. [...] Com o cooperativismo a pleno vapor estaremos pisando com
os dois pés em solo socialista.”4 O plano de Lenin para as cooperativas não foi,
infelizmente, totalmente detalhado, em especial no que concerne à sua
aplicação na prática.
O rebaixamento da taxa em espécie deixou mais do excedente agrícola, em
particular cereais, na mão dos camponeses remediados e bem-sucedidos, e o
poder de compra desses camponeses cresceu proporcionalmente. Havia, no
entanto, uma escassez de bens no país todo, e, portanto, era natural que os
camponeses não se mostrassem ávidos por vender grãos já que, no processo,
pouca coisa existia para comprar. O de que eles necessitavam não era papel-
moeda, mas máquinas e outros bens industriais, todos extremamente caros. Em
consequência, o suprimento de alimentos para as cidades começou a faltar e,
por volta de 1927, pairava no ar uma crise de grãos. Os kulaks e os camponeses
médios seguravam seus estoques, à espera de que os preços subissem e de que
houvesse mais bens no mercado.
A oposição tentou explorar as dificuldades surgidas entre o Estado e os
camponeses. Por exemplo, no XV Congresso do partido, Kamenev acusou a
liderança de subestimar o elemento capitalista no campo e, com efeito, pleiteou
medidas mais fortes contra os kulaks. Os oposicionistas tinham antes instado o
governo a utilizar a força para fazer a coleta do devido sobre uma antecipação
de safra de 2,5 a 3 milhões de toneladas de grãos. O Politburo, debatendo um
relatório que Stalin faria ao congresso do partido, teve bom senso para rejeitar a
proposta. Stalin disse ao congresso:

Aqueles camaradas que pensam que podemos nos livrar dos kulaks com meios administrativos,
empregando a GPU, estão errados. Eles acham que basta expedir uma ordem, carimbá-la e pronto.
Pode ser um método fácil, mas está longe de ser eficaz. Os kulaks só podem ser derrotados por meios
econômicos. E com base na legalidade soviética. E legalidade soviética não é uma expressão vazia.5

Mas as palavras manifestamente sensatas de Stalin e suas práticas eram dois


mundos à parte. Ele, simplesmente, não tinha conhecimento sobre o problema
agrário. Durante toda a vida, só uma vez visitou uma região agrícola, e isso
aconteceu em 1928 quando foi à Sibéria providenciar a entrega de grãos.
Nunca mais pôs os pés numa aldeia.
O XV Congresso adotou a política da coletivização da agricultura e
introduziu medidas ajuizadas para sobrepujar as dificuldades que o campo
experimentava com o suprimento de grãos. A.I. Mikoyan, por exemplo,
observou que os bens de consumo estavam empilhados nas cidades e nunca
alcançavam o campo, onde a demanda por eles era enorme:

Para que tenhamos um sucesso expressivo na entrega de grãos, precisamos de uma autêntica revolução.
Tal sucesso seria alcançado com o transporte de bens das cidades para o campo, mesmo ao custo
temporário do esvaziamento dos mercados das cidades (por uns poucos meses), para conseguirmos
tirar os grãos dos camponeses. Se não efetuarmos tal revolução, enfrentaremos dificuldades
extraordinárias que serão sentidas em toda a nossa economia.6

Assim, para fortalecer a união entre o camponês e a classe operária, a solução


para os problemas prementes da vila poderia ser encontrada com meios
econômicos, bem como políticos. Na realidade, essas eram as bases do plano
cooperativo de Lenin. Tratava-se, precisamente, de um sistema de
“cooperativados civilizados”, disse ele, que permitiria um máximo de unidade
para os interesses sociais e os pessoais. O importante seria não apelar apenas
para os métodos de comando, coação e diretrizes, mas sim observar as leis da
economia e aplicar as alavancas econômicas com eficiência. Todavia, não era
esta a opção de mais fácil adoção sob circunstâncias de rápidas mudanças
sociais.
O relatório do congresso sobre a atividade do partido no campo,
apresentado por Molotov, que era o secretário do Comitê Central responsável
pelas questões rurais, foi, no conjunto, sensato. Assinalou que “o progresso da
economia privada no caminho socialista é um processo lento e longo. Levará
alguns anos para que o indivíduo se desloque para a economia social
(coletiva)”. Sublinhou que a coerção era inadmissível:

Quem nos diz agora para aplicar uma política de [...] retirada compulsória de dois a quatro milhões de
toneladas de grãos, mesmo que tomemos isso de apenas 10% dos camponeses (isto é, não só dos
kulaks, mas também dos camponeses médios), essa pessoa é um inimigo dos camponeses e dos
operários, um inimigo da união entre camponeses e operários, por mais bem intencionada que seja a
proposta.

Neste ponto, Stalin gritou “Muito bem!” e continuou emitindo exclamações


semelhantes de encorajamento enquanto Molotov prosseguia com o discurso.7
O congresso pareceu tomar uma estrada de amplos métodos cooperativos
econômicos, seguindo o princípio do voluntariado. A resolução adotada
declarou que a experiência mostrava “a correção total do plano cooperativo de
Lenin, segundo o qual a indústria socialista conduziria a economia dos
pequenos proprietários do campo pela trilha do socialismo, exatamente por
intermédio das cooperativas”.8 Além disso, o congresso condenou
explicitamente os esforços para impor métodos de comando ao problema dos
camponeses. A despeito disso, logo depois do congresso, Stalin começou a falar
sobre a necessidade de “acelerar a catraca” da industrialização e da coletivização.
Ele apreciou bastante um artigo do futuro acadêmico, S.G. Strumlin, que
formulou o credo da economia “dirigida”, estipulando que a tarefa não era a de
estudar a economia, e sim alterá-la; o partido não estava amarrado por
quaisquer leis, nem existia fortaleza que os bolcheviques não fossem capazes de
tomar; são os seres humanos que determinam o tempo.9 Stalin, com
frequência, citou e adaptou essas frases em seus próprios discursos e artigos, já
que, melhor que outras, elas refletiam precisamente suas intenções. O
secretário-geral começou então uma mudança de rumo na direção de medidas
extremas.
No final de dezembro de 1927 e início de 1928, ordens agourentas com a
assinatura de Stalin começaram a aparecer nas vilas, exigindo que fosse
aumentada a pressão sobre os kulaks e que se começasse de imediato o trabalho
de coletivização da agricultura. É possível que tais decisões tenham sido
tomadas em função das dificuldades no suprimento de cereais, porém, a
tentativa de resolver artificialmente o problema dos alimentos forçando o
processo de nacionalização era um afastamento de vulto do plano cooperativo
de Lenin.
A impressão foi que a vasta maioria do partido se viu atraída para o lado de
Stalin pela própria natureza grandiosa de seu propósito de fazer uma revolução
social no campo. A tendência militante da ala de esquerda era muito mais ativa
e eficiente dentro da massa comunista. A ideia de que todos os problemas
muito antigos podiam ser resolvidos com um só golpe devastador era bem mais
atraente que a abordagem equilibrada e calma requerida pela situação.
Por natureza, Stalin era pessoa muito cautelosa; no entanto, lançou-se na
coletivização total de milhões de propriedades camponesas, sabendo que aquela
massa de gente semialfabetizada não estava preparada para ela. Sua visão
utópica e dogmática do problema camponês encontrou expressão em sua
intenção de tornar o produtor agrário em pouco mais que um dente inerte na
engrenagem da máquina agrícola. Para tanto, o camponês deveria ser afastado
dos meios de produção e distribuição dos alimentos. Com efeito, Stalin dispôs-
se a trocar o status social do camponês de produtor livre para trabalhador sem
direitos. E para conseguir isso, fez das medidas extremas um modo de vida. O
plenário do Comitê Central de julho de 1928 apoiou Stalin. O partido
concordou com a incorporação do uso da força ao sistema.
O método do comando na economia substituiu as leis econômicas e,
gradualmente, provocou a morte da NEP, juntamente com o desaparecimento
do interesse material do camponês, de seu espírito empreendedor e de seu
compromisso com o trabalho. Alguns dos esquerdistas que caíram em desgraça
pela ligação com Trotsky foram também favoráveis a “providências decisivas”
no campo e deram apoio a Stalin. Declarações de arrependimento foram feitas
por Pyatakov, Krestinsky, Antonov-Ovseyenko, Radek, Preobrazhensky e
outros, e houve sua readmissão no partido. Pyatakov tornou-se presidente do
Banco Estatal e, mais tarde, vice-comissário do povo para a indústria pesada.
O primeiro Plano Quinquenal previa que 85% das propriedades dos
camponeses seriam transformados em cooperativas no prazo de cinco anos,
sendo que até 20% destas últimas seriam fazendas coletivas. Por pressões vindas
de cima, porém, ficou decidido que na Ucrânia, no norte do Cáucaso e no
baixo e médio Volga o processo deveria estar completado em um ano. Stalin
causou o fim da NEP com o emprego de medidas draconianas.
Em janeiro de 1928, ele foi à Sibéria, onde, em seus discursos nas reuniões
locais do partido e de grupos que cuidavam da economia, deu ênfase especial
ao uso da força contra os kulaks. Sua viagem teve as características de uma
visita de inspeção do comandante às guarnições. Em cada escala, Stalin
convocava os funcionários do partido e dos sovietes, ouvia brevemente o que
tinham a dizer e então, invariavelmente, fazia o mesmo julgamento: “Vocês
estão trabalhando mal! Têm sido indolentes e indulgentes com os kulaks.
Cuidado; que não haja agentes kulaks entre vocês. Não permitiremos por
muito tempo esse descalabro.” Seguindo-se a essa tirada, vinham as inevitáveis
recomendações concretas:

Vão olhar as fazendas dos kulaks e verão que seus silos e celeiros estão abarrotados; observem que eles
têm que deixar grãos a céu aberto, cobertos com toldos, porque não há mais espaço interior para eles.
Os kulaks têm em torno de mil toneladas de excedentes em grãos por fazenda. Proponho que:
a. vocês exijam que os kulaks entreguem imediatamente seus excedentes a preços estatais;
b. se eles recusarem a submissão à lei, vocês os enquadrem no Artigo 107 do código criminal da
República Federativa Socialista Soviética Russa e confisquem o cereal para o Estado, 25% a serem
redistribuídos entre os camponeses pobres e os mais pobres dos remediados.
Vocês devem unificar firmemente em fazendas coletivas as menos produtivas propriedades individuais
de camponeses.10

O estilo repressivo alastrou-se e passou a ser encorajado. A base teórica e


política do slogan “Por um ritmo furioso na coletivização!” espalhado por
alguns dos mais zelosos administradores, seria encontrada no artigo de Stalin
“O ano da grande ruptura”. Uma certa mudança na opinião pública em favor
das cooperativas – se bem que não das fazendas coletivas, apenas de uma forma
de cooperativa – foi interpretada por Stalin como desejo por parte dos
camponeses médios de tentar a sorte na agricultura coletiva. Novas ordens e
instruções resolutas foram expedidas.
Uma semana depois de seu quinquagésimo aniversário, Stalin discursou
numa conferência de agricultores marxistas e declarou, antes mesmo que o
Comitê Central expedisse suas disposições: “De uma política de limitação das
tendências exploradoras dos kulaks, passamos a uma política de liquidação dos
kulaks como classe.”11
O ano de 1937 é considerado pela mente pública como o auge da repressão
e do terror na história soviética. Uma parte significativa da intelligentsia foi
atingida e, portanto, não surpreende que tanto se tenha escrito sobre a época.
Aquele ano tornou-se o epicentro da atenção pública. Contudo, no final dos
anos 1920 e começo dos 1930, o tacão de ferro pisoteou número bem maior de
pessoas, entre as quais, possivelmente, uma boa quantidade de genuínos
inimigos do regime, porém uma imensidade de inocentes completos:
camponeses médios misturados aos kulaks, e camponeses apenas teimosos,
juntamente com suas famílias. A cooperação entre pequenas propriedades
talvez fosse necessária, mas o seria a repressão em massa? Claro que não. Todo o
processo deveria ser conduzido em base voluntária.
Para facilitar a “deskulakização”, Stalin mandou preparar um documento
esboçando as características de um kulak: ele tem uma receita anual por cabeça
que excede 300 rublos, mas não menos que 1.500 por família; está envolvido
em comércio; negocia aluguel de equipamentos, máquinas e galpões de
fazendas; tem um moinho, batedeira de manteiga etc. E qualquer desses itens
caracteriza um camponês como kulak. Como se vê, os critérios não eram
sociais, mas de posses materiais, dificilmente uma base para determinação de
classe em termos marxistas. Na realidade, criava-se a possibilidade de incluir na
categoria de kulaks a faixa mais ampla de elementos sociais. A agricultura, em
seu conjunto, experimentou um trauma quase tão pernicioso quanto qualquer
outro que o século XX pudesse causar. Os camponeses mais laboriosos, mais
capazes, foram os mais duramente atingidos.
Por volta de janeiro de 1929, uma comissão especial do Comitê Central
preparara uma minuta de decreto com a ementa: “Dispõe sobre o ritmo da
coletivização e métodos para ajudar o Estado na construção dos kolkhozy.”* Os
prazos para a concretização, propostos pela comissão, a conselho escrito de
próprio punho por Stalin, foram reduzidos pela metade. Sem uma razão lógica
e sem levar em conta os prós e contras da argumentação, Stalin insistia que ela
fosse feita com rapidez, rapidez e mais rapidez. Indagações, relatórios e
panfletos inundavam os escritórios das secretarias provinciais e distritais. Uma
onda de comissários despencou sobre as vilas. Alguns prometiam “tratores,
querosene, sal, fósforos, sabão, você conseguirá tudo isso quanto mais rápido se
filiar ao kolkhoz!” Outros agiam mais rispidamente: “Quem não quer entrar
para o kolkhoz é inimigo do regime soviético!” Paixões se incendiaram,
aconteceram rusgas, apareceram armas de fogo, representantes do partido e
ativistas locais do kolkhoz foram assassinados, incontáveis cartas foram
enviadas a Moscou com queixas e pedidos de justiça. A necessidade objetiva da
agricultura coletiva, que começava a se materializar de diversas formas
voluntárias, passou então a ser vinculada a todo um sistema de duras medidas
administrativas, políticas e legais.
O abuso tornou-se padrão. A palavra “deskulakização” entrou no
vocabulário e cobriu o tratamento dispensado a mais de um milhão de
propriedades camponesas, nem todas kulaks. Segundo alguns cálculos, não
existiam mais que cerca de 900 mil fazendas kulaks no começo da
coletivização, uns 3% de todas as propriedades rurais. Muitas centenas de
milhares de famílias tiveram casas, ferramentas, bens móveis e valores
confiscados, e foram transferidas para áreas remotas. É pouco provável que o
número exato de pessoas arrastadas por aquele rodamoinho de ilegalidade
jamais seja conhecido. Além das providências econômicas para reduzir a
influência dos kulaks sobre as vilas, foram empregados os meios mais cruéis
para completar seu extermínio. De acordo com alguns números, em 1929,
mais de 150 mil famílias foram exiladas para a Sibéria e para o norte,
enquanto, em 1930, a quantidade cresceu para 240 mil e, em 1931, para mais
de 285 mil. Mas o processo tivera início em 1928 e se estendeu além de 1931.
Minhas próprias estimativas levam a um total de 8,5 a 9 milhões de homens,
mulheres, idosos e crianças afetados pela “deskulakização”, a maioria deles
totalmente desenraizados de seu hábitat nativo. Mataram muitos por
resistirem, e muitos pereceram no caminho. Em alguns locais, seja por zelo
irrestrito, seja por interesse pessoal, o processo envolveu em sua teia também
camponeses médios. Estimo que, de uma forma ou de outra, alguma coisa em
torno de 6 a 8% de todos os lares camponeses foram sugados na voragem.
Naturalmente, centenas de milhares de kulaks aceitaram humildemente o
que estava acontecendo, e poder-se-ia esperar que as medidas rigorosas fossem
apenas aplicadas àqueles que oferecessem ostensivamente resistência
antissoviética. Se assim fosse, a maioria das propriedades kulaks poderia ter
participado da nacionalização, ou processo cooperativo, por meios fiscais, tais
como taxação diferenciada ou obrigações de produção. Entretanto, não foi
assim, e a recusa em induzir o kulak ao processo deixou-o num desolador
dilema: ou lutava, ou esperava pela expropriação e o exílio. Foi a pressa e a
crueldade com que questões que envolviam milhões de pessoas foram tratadas
que conduziram à tragédia.
É reveladora uma conversa que Stalin teve com Churchill, em 14 de agosto
de 1942, sobre os kulaks. As negociações tinham terminado e o secretário-geral
convidou o primeiro-ministro inglês para jantar no apartamento do Kremlin.
Molotov e um intérprete estiveram presentes durante a longa conversa.
Churchill, em suas memórias, reproduz assim a ocasião:

“Diga-me”, [perguntou a Stalin] “as tensões desta guerra foram pessoalmente tão ruins para o senhor
quanto pôr em vigor a política das fazendas coletivas?”
O assunto inflamou de imediato o marechal.
“Oh, não”, disse ele, “a política das fazendas coletivas foi uma luta terrível.” “Imaginei que o senhor
achasse muito ruim”, disse eu, “porque o senhor não estava tratando com alguns milhares de
aristocratas ou grandes proprietários, mas com milhões de pessoas pequenas”.
“Dez milhões”, replicou ele, levantando as mãos. “Foi assustador. Demorou quatro anos. Era
absolutamente necessário para a Rússia, para evitarmos fomes periódicas, para arar a terra com
tratores. Tínhamos que mecanizar nossa agricultura. Quando dávamos tratores aos camponeses, eles
estragavam em poucos meses. Só as fazendas coletivas com oficinas poderiam manter os tratores.
Tivemos muita dificuldade para explicar isso aos camponeses. Não adiantava argumentar com eles.
Depois que se dizia tudo a um camponês ele respondia que tinha que ir para casa consultar a esposa e
consultar o cão pastor.” Esta última era expressão nova para mim com aquela acepção. “Depois das
consultas, sua resposta era sempre que não queria fazenda coletiva e que preferia ficar sem tratores.”
“Estes são os que o senhor chama de kulaks?”
“Sim”, respondeu, mas não repetiu a palavra. Depois de uma pausa: “Tudo foi muito ruim e difícil –
mas necessário.”
“Que aconteceu?”
“Oh, bem”, disse, “muitos deles concordaram em se juntar a nós. Alguns receberam terras próprias
para cultivar na província de Tomsk, ou na província de Irkutsk, ou mais para o norte ainda, mas a
maior parte deles era muito impopular e acabou liquidada por seus trabalhadores.”12

O número dez milhões passou a ter ampla circulação e, conquanto minha


estimativa seja menor, ela não apequena de forma alguma a escala da tragédia
humana. Foi o primeiro terror em massa imposto por Stalin a seu próprio país.
Os anos de coletivização constituíram o ponto de inflexão crucial nos
camponeses como na nação toda. A possibilidade de perseguir as cooperativas
voluntárias e o desenvolvimento segundo as linhas de mercado da Nova
Política Econômica estava perdida. A coação extrema tornou-se fator
determinante na conformação do sistema.
No meio-tempo, a coletivização continuou. Stalin recebeu dezenas de
milhares de cartas com reclamações, agonias, perplexidades, temores e ódios,
mas a máquina criminosa continuou triturando vidas humanas em poeira. Foi
só em 2 de março de 1930 que Stalin, sem poder mais demonstrar indiferença
ante o vulto do protesto e da resistência dos camponeses, publicou seu famoso
artigo no Pravda intitulado “Aturdidos com o sucesso”. O segundo parágrafo é
hoje lido como um hino à repressão: “O fato é que, pelo 20 de fevereiro deste
ano, 50% das propriedades rurais na URSS estavam coletivizados. Isto
significou que, em 20 de fevereiro de 1930, mais que dobramos o previsto no
Plano de Cinco Anos para a coletivização.” Parece que jamais passou por sua
mente a consideração da história humana que estava por trás daqueles números
frios. Tampouco produziu estatísticas sobre os que tinham sido exilados,
despojados e assassinados. Com frequência se ouve que uma operação daquela
magnitude não poderia ser efetuada sem dor, suavemente e sem erros. A
coletivização, afinal de contas, mexera com quatro quintos de toda a
população. Mas, quem deu a Stalin o direito de tirar a liberdade de escolha do
homem comum, e de tomar decisões em nome dele? Stalin esquecera suas
próprias palavras de alerta: “O kulak tem que ser conquistado por meios
econômicos e com base na legalidade soviética!” Numa só palavra, virou norma
para Stalin encarar qualquer decisão, situação ou argumento como ficção, caso
não correspondessem ao seu plano do momento.
Stalin chega à conclusão no seu artigo – como se um referendo nacional
tivesse sido realizado a respeito – de que o trabalho na terra por companhias ou
comunas não serviria às necessidades contemporâneas da mudança socialista na
vila. Só as fazendas coletivas poderiam fazê-lo. Para o “agrário” Stalin, que
nunca mais pisou numa vila, a fazenda coletiva era o único meio aceitável para
organizar a produção agrícola. Como Khruschev iria dizer no XX Congresso do
partido, em 1956, Stalin, a partir de então, “estudou agricultura só pelo
cinema”. Evidente exagero, mas é difícil imaginar qualquer outro líder
tentando equacionar todos os tipos de problemas sem sair de seu gabinete.
Uma das piores características de Stalin foi sua incapacidade de admitir seus
erros. Mesmo nesse artigo, os culpados pelos “excessos”, os “aturdidos com o
sucesso” e os tomados de “obsessão burocrática por decretos” existiam só nas
províncias.
Depois do “Aturdidos com o sucesso”, Stalin foi de novo afogado com
cartas dos camponeses e teve que explicar mais uma vez a posição do partido
sobre a coletivização. Suas generalizações, intencionalmente ou não, por vezes
tiveram o efeito de desacreditar a própria ideia de reestruturação da agricultura
pelo caminho das cooperativas. Por exemplo, ele escreveu para alguns
granjeiros coletivizados: “Alguns acham que o artigo ‘Aturdidos com o sucesso’
se refere ao resultado de uma iniciativa pessoal de Stalin. É evidente que isso
não faz sentido. Foi o resultado do reconhecimento do Comitê Central.” E

É
mais: “É difícil deter as pessoas quando estão num estouro selvagem na direção
do abismo, e voltá-las a tempo para o caminho certo.”13
Merece menção o fato de que, quando toca em questões sociais, econômicas
e culturais, Stalin emprega terminologia militar, como “reconhecimento”,
“front”, “ofensiva”, “retirada”, “reorganização de forças”, “cerrando a
retaguarda”, “empregando a reserva”, “destruição total do inimigo”. Lenin usara
termos semelhantes quando delineou sua tática para a organização do partido,
mas Stalin falava sobre a “aniquilação dos kulaks como classe”. Sintetizando seu
entendimento da essência e método da transformação da aldeia, disse aos
agricultores marxistas em dezembro de 1929 que, para transformar a pequena
vila de camponeses em cidade socialista, devemos “plantar grandes fazendas
socialistas no campo, tanto estatais quanto coletivas”.14 Na verdade, elas
serviriam de equipes para a liquidação de todo um grupo social dentre os
camponeses, sem necessidade de discussões num pleno do Comitê Central ou
do devido exame de todas as consequências. Dez anos mais tarde, um editorial
do Bolshevik diria o seguinte do discurso “agrário” de Stalin:

O partido bolchevique, sob a liderança do camarada Stalin, ofereceu um surpreendente modelo para
resolver a questão camponesa. [...] A coletivização completa, com base na liquidação dos kulaks como
classe, representou um triunfo do programa de Stalin para a economia no campo. O programa
militante [...] foi exposto pelo camarada Stalin num documento da maior força teórica – seu discurso
para a conferência de agricultores marxistas.15

Por deliberação de um Politburo chefiado por Molotov e sob pressão de Stalin,


o Comitê Central, em janeiro de 1930, aprovou uma resolução “Sobre medidas
para liquidação das fazendas kulaks em áreas de coletivização total”. Esta
diretriz do partido provocou tensão no campo por fechar as fazendas coletivas
aos kulaks, cuja situação então tornou-se desesperadora. Foram também usadas
contra eles as medidas mais impiedosas, inclusive o confisco total de suas posses
e a deportação das famílias para regiões distantes. Como reação, os ataques
kulaks ao regime soviético aumentaram, por vezes se estendendo por amplas
áreas. As ações contra o setor mais bem-sucedido dos camponeses resultaram
numa onda de protestos, banditismo e sublevações armadas contra as
autoridades.
A produção de grãos entrou imediatamente em declínio, logo seguida por
acentuada queda na criação de gado. A iniciativa inata do camponês foi cortada
pela raiz. A produtividade do trabalho no kolkhoz caiu abaixo do nível das
fazendas individuais, com sérias e inevitáveis consequências. Teve início uma
grande matança de animais em muitas regiões: comparado com 1928, o
rebanho chegou entre metade e um terço em 1933. Para evitar que a carne
fosse salgada, a venda de sal foi drasticamente reduzida. A área arada de terra
encolheu. Centenas de milhares de famílias foram arrancadas de suas terras e
ficaram sem teto.
Stalin foi informado sobre o que acontecia no campo, mas não se
sensibilizou. Certa vez, quando sentiu um laivo de dúvida sobre a escolha da
política, lembrou-se das palavras do velho rebelde anarquista Bakunin: “A
vontade é todo-poderosa; nada é impossível para a vontade.” O objetivo mais
elevado sempre justificou os meios que fossem necessários para alcançá-lo. Ele
acreditava que os camponeses simplesmente não sabiam o que os esperava.
Aqueles que se opunham à política eram, aos seus olhos, não camponeses
perplexos, mas políticos incapazes de ver as vantagens da ofensiva forçada sobre
a vila. Não importava para Stalin que tal ofensiva estivesse sendo montada
contra homens de macacões surrados, analfabetos, sustentados por suas
tradições e responsabilidades, presos por cordão umbilical aos seus tratos de
terra. Para Stalin, o camponês era um meio para a consecução de um objetivo
elevado, objetivo superior a qualquer coisa.
Entrementes, especialmente no início de 1928, quando Stalin visitou a
Sibéria (14 de janeiro a 6 de fevereiro), um conflito surdo ocorria dentro do
Politburo. De início com cautela, depois com crescente persistência, Bukharin,
apoiado por Rykov e Tomsky, fazia campanha contra a política de Stalin. Não
se tratava de um grupo “de direita”, como logo depois seria chamado, mas tão
somente um grupo de líderes cuja orientação para o problema do campo era
mais equilibrada e moderada.
Sem citar nomes e utilizando linguajar esópico, Stalin e Bukharin
começaram a se criticar mutuamente. Por exemplo, em 28 de maio de 1929,
Stalin fez um discurso no Instituto de Professores Vermelhos, onde Bukharin
gozava de considerável popularidade, já que, havia pouco, tornara-se o único
acadêmico entre a liderança. Foi esse exatamente o ambiente que Stalin
escolheu para lançar dúvida sobre Bukharin como “defensor dos kulaks”. Seus
ataques cuidadosamente preparados contra Bukharin foram camuflados, mas
ninguém tinha dúvida sobre quem estava na linha de tiro. Lendo discurso
escrito, Stalin disse:
Alguns veem a saída para a situação no retorno da agricultura dos kulaks. Sugerem que o regime
soviético se apoie em duas classes opostas: a classe kulak e a classe operária.
Por vezes se diz que o movimento das fazendas coletivas está em oposição ao movimento
cooperativista, como se a coletivização fosse uma coisa e o cooperativismo outra. É claro que isso não
está correto. Alguns vão ainda mais longe e insinuam que as fazendas coletivas contradizem o plano de
Lenin para as cooperativas. Nem é preciso dizer que tal contradição realmente não existe.16

Melhor do que ninguém, Bukharin sabia que Stalin forçava o processo de


coletivização porque ele tornaria mais fácil expropriar grãos. E, nisso, Stalin
estava certo: se a produção agrícola fosse incluída no sistema de comando, seria
mais simples retornar efetivamente ao Comunismo de Guerra. Como exemplo
disso, em 1928, ano em que a coletivização começou, os camponeses
entregaram cerca de 15% de sua produção total de grãos, enquanto em 1932 a
quantidade chegou pouco acima de 30%. Mas a que preço! No norte do
Cáucaso, na Ucrânia, no Volga e em outras regiões grassou a fome. Os
números exatos de vidas humanas perdidas não são conhecidos, mas não
podem ser muito menores que os dos mortos na coletivização em si.
A fome não foi causada apenas pela seca que assolou as principais áreas
agrícolas, mas também pela coletivização, que desorganizou a vida nas
fazendas, pela extração forçada da produção e pela natureza desbalanceada da
economia do país em geral. A população urbana crescia anualmente de 2 a 2,5
milhões de pessoas. Em função dos baixos preços pagos pelo estado, o setor de
fazendas coletivas não podia alimentar toda a nação. A partir do momento em
que começou a coletivização, o camponês perdeu todos os vestígios de
autointeresse material. Além do mais, o Estado continuou exportando grãos.
Eram necessárias divisas para comprar equipamentos e máquinas no exterior, e
Stalin, que tinha pressa, insistia nisso, e suas ordens tinham que ser cumpridas.
Em muitas áreas, em particular na Ucrânia, as cotas completas de grãos
continuaram sendo retiradas. A industrialização foi concretizada não apenas
pelo trabalho dedicado dos operários, mas também pelo sacrifício incalculável e
amargo dos camponeses.
A fome forçou pessoas a roubarem cereais, e Stalin pôs em vigor, em 7 de
agosto de 1932, uma nova lei de proteção da propriedade socialista. Fazendo
anotações na minuta, escreveu: “Quem quer que tente [apropriar-se] de
propriedade pública deve ser encarado como inimigo do povo.”17 O roubo de
propriedade no kolkhoz seria passível de execução ou dez anos em campo de
concentração. Stalin exigiu que a lei fosse cumprida incondicionalmente. No
início de 1933, mais de 50 mil pessoas, muitas famintas, haviam sido
sentenciadas.
Por instruções de Stalin, nada podia ser escrito sobre a fome que se
espalhara por uma população de 25 a 30 milhões de pessoas. As regiões da
Ucrânia e do Volga sofreram particularmente. A despeito do problema nas
safras, os requisitos estatais para a entrega de grãos e de outros produtos
permaneceram imutáveis. Além do mais, os kolkhozy, que mal estavam de pé,
receberam ordens para aumentar o suprimento de grãos, e qualquer decréscimo
de sua parte seria interpretado como sabotagem ou “solapamento da política do
partido no campo”. Enquanto milhares de vilas eram lançadas na confusão, os
camponeses faziam resistência passiva, não comparecendo, por exemplo, ao
trabalho.
A fome e a ausência de direitos nas fazendas coletivas faziam com que seus
membros infringissem a lei de várias formas, de modo a proporcionarem um
mínimo para os famintos. A situação viria a público da seguinte maneira. Um
jornal publicou que “Notícias chegadas do norte do Cáucaso dão conta de que
tendências autointeresseiras de kulaks estão aparecendo em algumas fazendas
estatais e coletivas no tocante à produção de grãos. No kolkhoz Khuton,
malgrado o fato de o plano de cotas de mil centners (10 mil kg) não ter sido
atingido, a administração decidiu por si própria armazenar grãos para
distribuição aos kolkhozniks”.
Falando em fevereiro de 1933 para o primeiro congresso de toda a URSS
dos “kolkhozniks de choque” – isto é, trabalhadores das fazendas coletivas que
tinham quebrado recordes de produção –, Stalin não fez menção à fome, muito
menos à necessidade de ajudar os que enfrentavam problemas, comentando
apenas sobre “deficiências e dificuldades” no campo. Ele esboçou a tarefa dos
kolkhozniks com total clareza:

Só exigimos uma coisa de vocês: que trabalhem com honestidade, dividam a receita da fazenda
coletiva de acordo com o trabalho realizado, cuidem dos tratores e da maquinaria, assegurem-se de
que os cavalos sejam adequadamente tratados, executem suas tarefas de operários e camponeses,
fortaleçam o kolkhoz e livrem-se de qualquer kulak ou seus lacaios que tiverem se infiltrado entre
vocês.18

Este era o modo de Stalin impor o socialismo na vila, mediante o poder do


Estado. Por certo que o grão era necessário para a aquisição de equipamento
industrial no exterior, para aumentar o suprimento das cidades que cresciam
rapidamente e para criar estoques estatais, mas não se impunham medidas tão
extremadas. Os métodos de comando substituíam então, por completo, os
econômicos. Não só o kulak foi eliminado; também o foi, no processo, o
granjeiro individual, e todos pelo uso da força. Reportando para o Comitê
Central, em 1934, Stalin foi bastante inequívoco: “Temos que criar uma
situação na qual o indivíduo, ou seja, o lavrador privado, enfrente dificuldades
maiores e tenha menos oportunidades que o kolkhoznik. Temos que dar mais
um aperto no parafuso das taxas.”19
Aumentou a pressão não só sobre os agricultores individuais como também
sobre as fazendas coletivas, transformando-as em elementos sem direitos, em
vez de donas de suas próprias terras. Uma nova espécie de camponês foi criada,
alienado da terra e dos frutos de seu trabalho. As pessoas perdiam o direito de
cuidar de si próprias. Com o tempo, a perplexidade e a confusão dariam lugar à
apatia, como Bukharin receava.
No discurso para o Instituto de Professores Vermelhos, distorcendo de tal
forma a posição de Bukharin a ponto de torná-la irreconhecível e chamando-o
de “o defensor dos kulaks” que não entendia o plano de Lenin para as
cooperativas, Stalin, pela primeira vez, revelou publicamente a controvérsia. De
sua parte, Bukharin, também sem citar nomes, atacou o uso do método de
comando na economia. Como principal teórico no Politburo, repetidamente
afirmou que sem uma economia rural florescente, um programa vitorioso de
industrialização era impossível. Pressão, requisição forçada e repressão no
kolkhoz eram inadmissíveis. O resultado de tal embate de opiniões não estava
claro no início de 1928. De início, os únicos aliados óbvios de Stalin eram
Molotov e Voroshilov, enquanto Bukharin tinha o apoio de Rykov e Tomsky.
Um terceiro elemento, constituído por Kuibyshev, Kalinin, Mikoyan e
Rudzutak, vacilava e tentava conciliar os dois principais antagonistas. A vitória
na batalha virtualmente dependia desse terceiro elemento “centrista”. Como de
hábito, Stalin demonstrou ser mais habilidoso e sofisticado nas manobras de
bastidores e, em consequência, os plenos do Comitê Central e da CCC em
abril, julho e novembro adotaram uma atitude dura em relação à proposta
alternativa de Bukharin para a questão no campo.
Stalin não podia deixar de saber que a política repressiva para a
nacionalização da agricultura conduziria, essencialmente, à restauração dos
princípios do Comunismo de Guerra. Em vez de uma taxa fixa sobre a venda
de grãos, foram impostas cotas compulsórias de produção. E esse sistema
persistiria por décadas.
Bukharin, ao contrário, propunha uma abordagem evolutiva para mudar o
campo, no curso da qual as cooperativas, ou o setor socializado, iria
gradualmente induzindo o agricultor individual pelo exemplo e pelos meios
econômicos. Bukharin não estava certo em tudo, especialmente na avaliação de
longo prazo tanto das mudanças em si como do ritmo delas, visualizando
apenas que o processo levaria muitos anos. O país não podia esperar tanto
tempo. Apesar disso, a luta de Bukharin contra o uso da coação sobre milhões
de camponeses, que eram cidadãos do Estado soviético, justificava-se em
termos morais e políticos.
Repetindo: a reestruturação da economia agrária poderia ter sido
concretizada por inteiro sem o recurso ao terror e à tragédia que, em escala e
consequências, excedeu as repressões de 1937-38. Nem é preciso mencionar
que, em ambos os casos, o emprego da força foi criminoso. A bem-sucedida
“liquidação dos kulaks como classe” inflou a autoconfiança de Stalin como
ditador, e ele não hesitou em arrasar todos os que ainda podiam, ou viessem a
poder, voltar-se contra ele.
A “revolução agrária” forçada de Stalin condenou a agricultura soviética a
décadas de estagnação. A experiência sangrenta, que custou milhões de vidas,
não trouxe alívio ao país. Embora ninguém pudesse dizer, as práticas do
Comunismo de Guerra haviam voltado às aldeias. Em reuniões sem conta,
Stalin pintou uma imagem triunfante na agricultura. Na realidade, o livre-
comércio definhou rapidamente, já que os kolkhozy não tinham excedentes de
grãos para vender. Mesmo assim, Stalin continuou buscando caminhos para
impor métodos ainda mais severos ao governo das vilas, já então amedrontadas
em atordoado silêncio. Conferências sem fim tiveram lugar e inúmeras
resoluções foram aprovadas com objetivo expresso de conseguir uma melhora
na agricultura, mas a situação só piorou. Tudo conspirava para afastar os
kolkhozniks da terra, dos meios de produção, e da distribuição e administração.
Medo e apatia se abateram sobre as vilas. Os kolkhozy viviam sob comando,
sem que ninguém se desse conta de que deveria imperar o princípio da
cooperação. A primeira vítima do stalinismo foi o camponês.
Assim, pereceu a Nova Política Econômica e, com ela, a linha moderada do
Politburo, e assim também começou a se dissolver a liderança coletiva no
partido. Passou a prevalecer o patente desejo de Stalin de decidir, ele mesmo,
todas as questões.
O enorme atrativo do socialismo, gerado pela Revolução de Outubro,
começou a esmaecer. Até hoje, os oponentes do socialismo referem-se às
questões camponesas quando querem tocar em nossas mais dolorosas feridas.
Não há como negar que Stalin deu muita munição e argumentos de peso para
o descrédito de uma ideia tão sedutora. Ao tomar a decisão sem precedente de
utilizar a força contra seu próprio povo, Stalin cortou as veias de um vasto
grupo social que tinha se beneficiado bastante com a revolução, e que poderia
continuar fazendo bom uso daquele benefício.
Um novo capítulo se abre na biografia de Stalin a partir do final de 1928.
Não apenas estavam afastados seus rivais pela liderança como tem início a fase
que nos acostumamos a chamar de “culto da personalidade”. A remoção de
Bukharin foi um importante marco nesse processo.
Nota

* Plural do russo kolkhoz, kollektivnoye khozyaynstvo, fazenda coletiva. [N.T.]


[18]
O drama de Bukharin

N enhum retrato político de Stalin estaria completo se não lançássemos


também luz sobre seu entourage, seus camaradas em armas, os
incondicionais da tolerância, o pessoal do sim e seus oponentes.
Outro lado do caráter de Stalin é revelado no drama de Bukharin, que se
desenrolou nos anos 1920 com o ato final da tragédia ocorrendo na década de
1930.
Stalin e Bukharin tiveram longa e estreita ligação que parecia ser para
sempre. A partir de 1927, por insistência de Stalin, Bukharin mudou-se para o
Kremlin e, depois da morte da esposa, Stalin chegou mesmo a trocar de
apartamento com Bukharin porque o secretário-geral, segundo sua própria
explicação, queria escapar das recordações daquela noite fatídica. Nikolai
Ivanovich Bukharin, uma pessoa sensível, cultivava os sentimentos de amizade,
decência e sinceridade em suas relações. Os dois dirigiam-se um ao outro pelo
tratamento familiar de “ty”. Stalin chamava Bukharin de “Nikolai” e Bukharin
sempre tratava o secretário-geral pelo seu antigo apelido de revolucionário,
“Koba”. No período de 1924 a 1928, Stalin ouviu com atenção os pontos de
vista de Bukharin, asseverando frequentemente em público “que Lenin tinha
em altíssima conta aquela mente teórica superior” e que o partido reverenciava
suas qualidades inatas. Bukharin encarava a amizade como algo de valor
espiritual, até sagrado, e não a desprezaria como fez Stalin em abril de 1929,
num pleno do comitê central e da CCC.
Stalin abriu seu discurso naquela reunião referindo-se exatamente a sua
amizade com Bukharin:

Camaradas, não vou tratar de assuntos pessoais, muito embora o elemento pessoal desempenhe papel
impressionante nos discursos de alguns do grupo do camarada Bukharin. Não o farei porque o
elemento pessoal é trivial e não vale a pena perder tempo com insignificâncias. Bukharin falou sobre
nossa correspondência pessoal. Leu diversas cartas nas quais fica claro que, ontem, éramos amigos, mas
que agora nos distanciamos politicamente. Acho que todas essas queixas e lamúrias não valem um
tostão furado. Não constituímos um círculo familiar ou uma côterie de amigos do peito, somos o
partido político da classe trabalhadora.20

Ao, praticamente, parafrasear as observações de Marx sobre Danton, Stalin


tentava convencer o Politburo e o comitê central de que, embora Bukharin
estivesse no pico da montanha, ele era, em certa medida, o líder do lodo, dos
indecisos. Pareceu razoável dizer que os interesses da causa estavam acima das
relações pessoais, mas achar que a amizade não valia um tostão furado foi uma
afirmação repulsiva. O ingênuo idealista Bukharin acabara de receber uma aula
de maquiavelismo: sua amizade e seus pontos de vista nada mais eram que
trivialidades para Stalin. Mas nem sempre fora assim.
A.P. Balashov, que trabalhou no gabinete de Stalin, disse-me que quando
eram distribuídas cédulas de votação ao secretário-geral no Politburo, ele
frequentemente perguntava, sem sequer levantar a cabeça: “Bukharin é a
favor?” Segundo Balashov, Stalin levava muito em consideração a opinião de
Bukharin quando era necessário chegar a uma conclusão sobre matéria
específica.
Que tipo de homem era Bukharin? Por que, de todos os camaradas em
armas de Lenin que estavam na liderança após sua morte, é Bukharin o que
desperta memórias afetuosas mescladas com tristeza? Por que Lenin o chamou
de “favorito do partido”, e por que Stalin destruiu essa figura de tanto relevo?
Nascido em Moscou em 1888, filho de um mestre-escola, Nikolai
Bukharin, como a maioria dos líderes bolcheviques, não tinha origem
proletária. E como eles, Bukharin era a prova de que para ser um líder era
preciso possuir alguns dos adornos de cultura mundial. De um modo geral, só
os das classes mais preparadas podiam adquirir, desenvolver e aplicar tais
qualidades à prática social.
Como estudante do departamento de economia da faculdade de direito de
Moscou, engajou-se na propaganda entre operários e estudantes, tornando-se
membro do partido bolchevique em 1906. Pouco encorpado, mas ágil e
esperto, com pouca barba e cabelos ruivos sobre a testa larga, era visto tanto no
distrito industrial do outro lado do rio como nos encontros estudantis. Preso
em 1910, escapou de Onega, na província de Archangel, e ficou no exterior até
depois da Revolução de Fevereiro.
Os seis anos que passou no exterior foram-lhe extremamente valiosos. Lá,
conheceu Lenin, que lhe dedicava não só cordialidade mas grande afeição, a
despeito das acesas discussões que os dois travavam. O acadêmico Bukharin
passava a maior parte de seu tempo nas bibliotecas e dominou rapidamente o
inglês, o francês e o alemão. Ainda no exterior, escreveu dois importantes
trabalhos, A teoria econômica da classe do lazer e Imperialismo e economia
mundial.
Em Nova York, durante a Primeira Guerra Mundial, Bukharin conheceu
Trotsky, com quem, malgrado as muitas diferenças nos campos teórico e
político, manteve relações cordiais por quase dez anos. Foi em Nova York que
ouviu a notícia da Revolução de Fevereiro. O caminho de casa foi longo: preso
no Japão, foi depois colocado sob guarda em Vladivostok por se engajar na
agitação entre os soldados, só chegando a Moscou em maio de 1917. Logo se
tornou editor do Pravda, cargo que reteve por quase 12 anos, com apenas um
breve intervalo. Como editor do principal jornal do partido, desempenhou
papel de destaque nas decisões sobre política partidária e propaganda.
Bukharin não era bom em intrigas, fingimento ou “diplomacia”. Por
exemplo, em 1918, durante as semanas dramáticas em que o novo Estado
negociou em Brest-Litovsk a paz com a Alemanha, ele se tornou o virtual líder
da oposição a Lenin. Ao longo de dois meses, chefiou vários grupos de
“esquerdistas” que eram contra o tratado e a favor de deflagrar uma guerra
revolucionária.
Seu sentimento comunista de esquerda não era uma fantasia passageira.
Durante a guerra civil, foi a personificação de uma política radical de esquerda
e, na realidade, foi um dos principais proponentes da política do Comunismo
de Guerra. Em Economia do período de transição, escreveu que elementos de
repressão e comando na economia eram “o custo da revolução”. Tal “custo” era,
de fato, uma “lei revolucionária”. De acordo com Bukharin, a revolução
proletária primeiro destrói a economia, depois a reconstrói em ritmo acelerado.
Suas opiniões como teórico do Comunismo de Guerra foram melhor
expressas no ABC do comunismo, livro que escreveu com a colaboração de E.
Preobrazhensky, outro jovem e talentoso teórico. Nos anos 1920, Stalin tinha
em alta conta este “catecismo” comunista. O ABC descrevia de forma
enciclopédica as proposições elementares sobre revolução, guerra de classe,
ditadura do proletariado, papel da classe operária, programa comunista etc. Fez
enorme sucesso, foi reeditado vinte vezes e vendido no exterior. Graças à sua
publicação, que explanou os principais problemas do movimento
revolucionário vistos de uma posição radical de esquerda, Bukharin ficou tão
conhecido quanto Trotsky, Zinoviev ou Kamenev. Sua reputação no exterior,
por muito tempo, foi de “sumo sacerdote da ortodoxia marxista”.
Boas razões havia para tanto. Por exemplo, na sua coleção de artigos
teóricos Ataka, publicada em 1924, escreveu que a revolução mundial iminente
ocorreria num país atrás do outro, e que o processo não seria interrompido por
“todas essas ‘ligas das nações’ e asneiras com que os social-traidores* estão
sintonizados”.21 Bukharin parecia ser, durante a revolução e a guerra civil, um
revolucionário radical, talvez um tanto romântico, que era pelas medidas mais
extremadas. Naquele tempo, entretanto, quaisquer ideias supraestado,
supranacionais ou universais eram descartadas como burguesas, e não só pelos
marxistas ortodoxos.
A rápida mudança que ocorreu na cabeça de Bukharin poucos anos depois
foi, por isso, ainda mais surpreendente. Ele não fez segredo do fato de que sua
evolução mental foi influenciada sobretudo pelos últimos artigos de Lenin.
Bukharin analisou a Nova Política Econômica em profundidade. Com Lenin
enfermo, Bukharin o visitou com frequência, e os dois passaram horas
discutindo questões de teoria e a prática da construção socialista. Embora seja
muito difícil achar pistas e fazer certas suposições sobre aquelas conversas, o
fato é que, a partir de 1922-23, Bukharin se tornou membro da ala moderada
da liderança.
Enquanto Trotsky via a NEP como primeiro sinal da “degeneração do
bolchevismo”, para Bukharin ela era a oportunidade perfeita para que o
socialismo desse novas possibilidades à economia e à sociedade, com base no
potencial para empreendimentos das antigas estruturas abandonadas. Falando
numa reunião da organização partidária de Moscou, em abril de 1925,
Bukharin asseverou:

O que temos que fazer agora é dar estímulo para que a atividade econômica da pequena burguesia se
combine com a crescente riqueza privada para assegurar que nossa economia se torne mais forte. [...]
Quanto maior a capacidade de nossas fábricas, maior será nossa produção e, a partir dela, mais a
cidade guiará a vila; a classe operária ficará em condições de orientar, de forma gentil, conquanto
firme, o camponês para o socialismo.22

Numa determinada ocasião, pelo início de 1925, Stalin e Bukharin tiveram


uma conversa séria sobre economia. Ela se resumiu às dúvidas de Stalin sobre a
NEP e à defesa de Bukharin da política. Em suas anotações, Bukharin registrou
a conversa. Stalin repisou com ênfase o ponto de que depender muito tempo
da NEP “sufocaria os elementos socialistas e ressuscitaria o capitalismo”. Ele
não entendia de leis econômicas e só acreditava em “pressão do proletariado”,
“diretrizes do partido”, “linha resolvida”, “limitação dos potenciais
exploradores” e coisas do gênero. Foi uma longa conversa, mas, mesmo assim,
Bukharin percebeu que Stalin não entendia nem confiava na NEP, e que, como
Trotsky, via nela uma ameaça para as conquistas da revolução. Desanimado
com o que ouvira, Bukharin decidiu tornar público pela imprensa seu próprio
entendimento da NEP. Usando a argumentação que utilizara no discurso para a
organização de Moscou, publicou um longo artigo no Bolshevik, intitulado “Da
Nova Política Econômica e nossas tarefas”, do qual são os dois seguintes
fragmentos:

O ponto da NEP, que Lenin descreveu como a política econômica correta [...] é que toda uma série de
fatores econômicos que não podiam até agora fertilizar-se mutuamente, trancados que estavam a sete
chaves pelo Comunismo de Guerra, já podem realizar a fertilização e, assim, impulsionar o
crescimento econômico.
A NEP significa menos pressão, mais liberdade nas trocas, porque a liberdade não é mais uma ameaça
para nós. Significa menos reação administrativa e mais luta econômica, maior desenvolvimento nas
trocas econômicas. Significa lutar contra o empreendedor privado, não pisoteando-o ou fechando sua
loja, mas tentando produzir bens nós mesmos e vendê-los mais baratos, melhores e de mais alta
qualidade.23

Stalin não destacou o artigo para fazer comentários, embora o pontilhasse de


observações nas margens. Não podia entender como era possível dar liberdade
ao setor privado. Não representaria isso, seguramente, solapar a ditadura? Foi
sua estreiteza mental e a natureza primitiva de seu pensamento econômico que,
no final, empurraram-no para a opção pelo método burocrático de comando
da economia nacional e para a rejeição das grandes oportunidades criadas pela
NEP. Ele ouvia e lia Bukharin, mas em algum lugar lá no fundo, crescia a
irritação com a “capitulação econômica” de Bukharin.
Depois da morte de Lenin, Bukharin foi promovido de candidato a
membro do Politburo a membro titular. Sua autoridade se baseava,
primordialmente, na reputação como novo teórico marxista, no sentimento
humano e em ser pessoa excepcionalmente acessível. Neste particular, era o
oposto absoluto de Stalin.
Durante muito tempo, ficou de fora das lutas entre facções. Zinoviev
tachou-o, sarcasticamente, de “pacificador”, depois que não teve o apoio de
Bukharin contra Stalin. Até 1928, foi leal com todos e procurou situar-se
acima da contenda. Para ele, o importante era mapear as principais tendências
para o desenvolvimento social e econômico do país e o caminho para sua
reconstrução. Neste sentido, ficou veementemente contra a Lei
Preobrazhensky, cujo ponto principal era que a superindustrialização num país
como a Rússia só se conseguiria “espremendo-se” ao máximo os recursos do
campo. Devemos creditar a Preobrazhensky o fato de se opor ao emprego da
força contra os camponeses, advogando em vez disso que taxas desiguais nas
relações de mercado entre indústria e agricultura deveriam ser impostas em
base ampla.
Era convicção de Bukharin que “a cidade não deve roubar o campo”, que
apenas uma aliança política, combinada com uma econômica, poderia ajudar a
acelerar o desenvolvimento da economia industrial e agrícola. Em outras
palavras, o teórico da NEP era favorável às relações harmônicas entre cidade e
campo, embora admitindo certo viés no estágio inicial da extração de recursos
do interior. O que significava dizer: embora a indústria devesse crescer mais
rapidamente, os modos de transferir recursos do setor rural deviam ser
moderados.

Alguns loucos podem sugerir que desencadeemos uma Noite de São Bartolomeu contra a burguesia
agrícola, e podem até tentar provar que isso corresponderia à linha de classe e seria perfeitamente
possível. O problema é que se trata de uma enorme estupidez. Não temos a menor necessidade de
fazer isso. Não ganharíamos coisa alguma e perderíamos bastante. Preferimos deixar que o camponês
burguês desenvolva sua economia e tomar dele muito mais do que tomamos do camponês médio.24

Note-se que Bukharin, ao falar na limitação do “camponês burguês” no


processo de dispor a economia agrária em bases cooperativas, tinha em mente
métodos econômicos, não administrativos. Na essência, era o plano de Lenin
da coletivização sem repressão, requisições, pressões ou ameaças. Em 1928 e
mais especificamente em 1929, contudo, Stalin classificava as ideias de
Bukharin como afastamento do leninismo e de “planos diversionários hostis do
desvio de direita”, uma heresia oportunista de “elementos contrários ao
socialismo”.
Bukharin tentou mostrar que não existiam mais na União Soviética forças
políticas hostis importantes e organizadas capazes de constituir ameaça séria ao
Estado socialista. Se a violência fosse empregada contra o camponês,
argumentou ele, teria consequências dolorosas e de longo alcance. Embora
tudo isso se revelasse verdadeiro no devido tempo, Bukharin esqueceu dois
fatores. Primeiro, um ritmo lento de coletivização, que levasse décadas, poria
em risco a própria existência do socialismo na Rússia; em segundo lugar, a
industrialização exigia vultosos recursos e o campo era a única fonte. A linha de
ação ótima deveria estar nalgum ponto entre as duas posições.
De 1925 a 1927, Stalin e Bukharin foram as duas figuras mais influentes do
partido. E foi, de fato, Bukharin quem ajudou Stalin em seu conflito com
Trotsky, Zinoviev e Kamenev, se bem que tentasse, ao mesmo tempo, ser leal
com eles. Quando os três deixaram o Politburo, a influência de Stalin e
Bukharin sobre questões correntes e estratégicas cresceu visivelmente. Não
tardou para que Stalin se enraivecesse com os oposicionistas que atacavam
Bukharin, dizendo: “Então querem o sangue de Bukharin? Pois é bom que
saibam que não o daremos!” A imagem, não menos que a defesa em si, foi
memorável.
Os dois líderes de ponta do Politburo, em certo sentido, se
complementavam. Enquanto Stalin se ocupava com os assuntos políticos e
organizacionais, Bukharin se esforçava pela formulação e pelo estabelecimento
de princípios políticos que dessem base à política partidária. Não seria exagero
dizer que, até o começo de 1928, Stalin apoiava-se firmemente em Bukharin
nas questões econômicas e seguia seus pontos de vista. É claro que uma das
características de Stalin era pegar as ideias de outros líderes e fazer com que
parecessem suas. Da mesma forma que se apropriou de muitos slogans de
Trotsky sobre métodos de comando, também valeu-se de Bukharin para
preencher as lacunas de seu conhecimento do problema agrário. Como então se
explica o fato de, em 1928, ele começar a distanciar-se de Bukharin? Por que,
subitamente, começou a rotular opiniões que já esposara de “desvios da
direita”? Por que a amizade pessoal se deteriorou tão rapidamente
transformando-se em ódio completo?
Parece que foram diversas as razões. Em primeiro lugar, Stalin se alarmou
com o crescimento da popularidade de Bukharin como teórico, figura política
e líder charmoso, no partido e no país em geral. Naqueles tempos, a autoridade
de Bukharin dentro do partido era quase igual à do próprio secretário-geral.
Stalin ficou em alerta quando leu um artigo de Bukharin, dedicado a Lenin,
que dizia o seguinte:

Porque não temos Lenin, também não temos autoridade unitária. Só podemos ter, no presente,
autoridade coletiva. Não há ninguém que possa dizer: “Sou indene de faltas e consigo interpretar os
ensinamentos de Lenin com 100% de correção.” Todos tentam, mas quem reivindica os 100% está
concedendo à sua pessoa um papel demasiado grande.25

Stalin achou que o alvo daquelas palavras era ele. Afinal de contas, em todas as
palestras que proferiu sobre as fundações do leninismo na Universidade
Sverdlov falara como intérprete dos ensinamentos de Lenin. E, de qualquer
forma, que história era aquela da não existência de autoridade unitária? O que
dizer da autoridade do secretário-geral? Stalin ficou também inquieto com a
quantidade de seguidores de Bukharin, entre os quais Astrov, Slepkov,
Maretsky, Tseitlin, Zaitsev, Goldenburg e Petrovsky, que começavam a se
destacar na imprensa, nas universidades e no aparato do partido. Slepkov e
Astrov tinham se tornado editores do Bolshevik, Maretsky e Tseitlin
trabalhavam no Pravda, Zaitsev estava na comissão central de controle, a CCC,
e assim por diante. Stalin temeu que a influência política e ideológica de
Bukharin crescesse demais no partido e no país.
Outro motivo residia no caráter arbitrário e obstinado do secretário-geral. A
coletivização – isto é, a revolução real no campo executada pela força vinda de
cima – começara vitoriosamente no conjunto, melhor, pelo menos, do que
Bukharin imaginara. Pelos relatórios recebidos, Stalin se convenceu de que,
exercida a medida apropriada de pressão, as expectativas preliminares poderiam
ser radicalmente aumentadas. De qualquer forma, acreditava que aquela
política resolveria rapidamente a crise dos cereais.
Mas a crise se aprofundou. Stalin disse repetidas vezes ao círculo mais
íntimo: “Sem uma ruptura decisiva no campo, não teremos pão.” Molotov e
Kaganovich concordaram avidamente com ele. Stalin, aos poucos, se
convenceu de que o cronograma para a reestruturação da economia agrária
deveria ser encurtado duas ou três vezes. Então, quando a pressão provocou
uma resistência amortecida, porém alastrada, dos camponeses, em especial dos
kulaks, ele subitamente viu, num lampejo de “gênio”, que a solução estava em
apressar a “liquidação da classe”, por métodos puramente administrativos e
políticos.
As discussões no Politburo sobre esta questão se tornaram mais acaloradas.
Stalin recebeu o apoio de Molotov, Kaganovich e Voroshilov, enquanto
Bukharin tinha Rykov e Tomsky ao seu lado. Os aliados de Bukharin eram
também favoráveis à coletivização e à “ofensiva contra os kulaks”, mas sem
expropriações ou repressão. Acreditavam que, no final, o método econômico de
pressão surtiria efeito. Kalinin, Rudzutak, Mikoyan e Kuibyshev estavam
indecisos. Se entendessem melhor a situação, teriam dado o apoio a Bukharin,
e tudo poderia ter sido bem diferente. Afinal, o próprio Bukharin não era
contra a industrialização nem contra a coletivização: era, sim, contra o emprego
da força no cumprimento dessas tarefas históricas. E como vidas humanas
estavam em jogo, não se tratava de questão trivial. Na opinião de Bukharin,
todas as transformações, no fim, deveriam servir à humanidade e ao socialismo,
e não o caminho inverso. A consciência moral dos membros do Politburo que
decidiam sobre a linha de ação ótima, não necessariamente a mais radical, não
era, infelizmente, tão refinada quanto a de Bukharin. E, assim, perdeu-se outra
oportunidade de agir com consciência. Até mesmo Trotsky, que olhava o
conflito de fora, disse a seus seguidores que “a direita pode derrubar Stalin”,
levando em conta que tinha em suas fileiras os chefes de governo, os sindicatos
e a liderança intelectual. Parecia haver uma chance. Todavia, o equilíbrio
instável não durou muito, embora tivesse parecido por um breve momento que
a linha moderada de Bukharin fosse prevalecer. Àquela altura, Stalin já era um
mestre imbatível na condução dos casos à sua maneira.
Rykov, sucessor de Lenin como presidente do Conselho de Comissários do
Povo, e Tomsky, líder praticamente perpétuo dos sindicatos, não encaravam
Stalin como líder inconteste, porém deram apoio a Bukharin por convicção,
não por motivos pessoais. Stalin não conseguira influenciar sua opinião.
Pyatakov certa vez chamou Rykov e Tomsky de “nepistas convictos” com
alguma razão. O problema foi que a batalha contra Stalin se desenrolou a
portas fechadas e num círculo restrito. Além do mais, o risco que Bukharin e
seus seguidores corriam de ser considerados facciosos não era desprezível. Por
mais que Bukharin estivesse convencido da natureza desastrosa da política de
Stalin, não conseguiu criar uma base mais ampla de apoio entre os que não
aceitavam a repressão, a ditadura ou as medidas “extraordinárias”. Tentou
voltar a ter um diálogo pacífico com Stalin, mas o secretário-geral só aceitava a
rendição completa. O líder em desgraça entrou em agonia: “Algumas vezes fico
pensando à noite: temos o direito de continuar silenciosos? Não é falta de
coragem?”26 Mas não ousou esbravejar. Respeitando e, ao mesmo tempo,
desprezando Stalin, esperou até o dia de sua morte – em vão, como sabemos –
que Stalin recuperasse a racionalidade, a decência e a tolerância.
A relação entre os dois líderes deteriorou-se rapidamente depois que o
famoso artigo de Bukharin “Observações de um economista” saiu no Pravda,
em 30 de setembro de 1928. Persistentemente, Bukharin bateu na tecla da
necessidade e da possibilidade de se fomentar o desenvolvimento da indústria e
da agricultura numa atmosfera livre de crises, e pela mobilização de todos os
meios econômicos disponíveis: “Supercentralizamos tudo.” Passada uma
semana, o Politburo condenou o artigo, e Stalin lançou-se ao ataque decisivo.
Debates prolongados e veementes ocorridos no Politburo não chegaram a um
meio-termo. Muitas das sessões não tiveram atas, anotando-se apenas as
decisões. Estas mostram que Stalin ganhava terreno paulatinamente. Bukharin
ficou em minoria. Rykov cedeu em diversos pontos e Tomsky cambaleou.
Stalin começou a exigir que Bukharin “abandonasse sua linha de raciocínio de
desacelerar a coletivização”. Numa ríspida troca de palavras, Bukharin, irado,
chamou Stalin de “insignificante déspota oriental”. Stalin não respondeu.
Porém, internamente, deveria estar pensando: “Não preciso mais dele.”
A relação já conturbada ficou ainda pior. Porém, mesmo antes desses
acontecimentos, Bukharin, sentindo que a posição dos moderados enfraquecia,
tomara uma atitude que se revelaria desastrosa: de repente, na noite de 11 de
junho de 1928, visitou Kamenev em seu apartamento e tentou estabelecer
ligação com a antiga oposição que ele mesmo ajudara Stalin a destruir. Visitou
Kamenev em outras duas oportunidades. Em todas as ocasiões, ficaram a sós.
O que esses dois camaradas de Lenin conversaram, provavelmente nunca
saberemos com certeza. De acordo com Trotsky, Kamenev anotou que
Bukharin estava furioso e deprimido. Repetia sem cessar, “a revolução está
arruinada”, “Stalin é um intrigante da pior espécie”, e parecia achar que nada
havia a fazer para melhorar as coisas. Os aliados de Trotsky fizeram circular esta
suposta conversa num panfleto clandestino datado de 20 de janeiro de 1929.
Não há como se possa confirmar sua veracidade.
Nesse meio-tempo, Stalin foi seguramente informado daqueles contatos e,
no plenário de abril de 1929, usou-os da maneira mais convincente contra
Bukharin. Tais contatos não foram bons para os moderados e permitiram que
Stalin colasse em Bukharin o rótulo de “faccioso”. Àquela altura, o teórico
decidiu apelar para a opinião pública. No aniversário da morte de Lenin, 24 de
janeiro de 1929, publicou um artigo no Pravda intitulado “Testamento político
de Lenin”, que constituía o relatório a ser feito na sessão comemorativa do
quinto ano do falecimento de Lenin.
O artigo descrevia o plano de Lenin para a construção do socialismo, a
importância da NEP, a necessidade de que as decisões fossem tomadas
democraticamente, e assim por diante. Bukharin escreveu que os artigos de
Lenin recomendavam “a industrialização do país com base na poupança, no
aprimoramento da qualidade do trabalho, juntamente com a organização dos
camponeses em linhas cooperativas, ou seja, com os meios mais simples e mais
fáceis, a fim de atrair os camponeses para a construção socialista, sem recorrer a
qualquer forma de repressão”. Esta fórmula era, em quase todas as suas
palavras, a essência da opinião de Bukharin sobre as questões enfrentadas pelo
partido no momento.
Porém, o ponto principal estava no próprio título do artigo, pois ele
lembrava aos comunistas (os que sabiam e os que se recordavam) que o
Testamento pedira a remoção de Stalin do cargo de secretário-geral para outra
função qualquer. Era o último fio de esperança, em particular porque Bukharin
escreveu que “a consciência não pode ser desprezada na política, como alguns
pensam”.
É preciso realçar que, com toda sua inteligência e por mais profética que
fosse sua visão do porvir, Bukharin tardou muito a entender Stalin. A
destruição do “grupo Bukharin”, iniciada por Stalin, foi completada pelos
plenos de abril e novembro de 1929 do comitê central e da CCC, que
revisaram a questão dos “desvios de direita” no partido. Stalin fez um discurso
de três horas no qual desancou Bukharin por recusar-se a aceitar o meio-termo
oferecido pelo Politburo, em 7 de fevereiro de 1929, meio-termo que seria o
equivalente à rendição total. Isso, de acordo com Stalin, significava que o
partido tinha então “a linha do comitê central e a linha do grupo Bukharin”. A
despeito das relações amistosas que mantiveram antes de janeiro de 1928,
Stalin optou por registrar na ocasião as “fases de diferença” entre eles,
pontilhando sua fala com expressões depreciativas como “asneira”, “lixo”,
“livrinho de Bukharin”, “abordagem não marxista”, “palavrório”, “marxista
impostor”, “boquirroto”, “confusão semianárquica de Bukharin”.
Houvera boas razões para que Bukharin fosse considerado o teórico de proa
do partido desde a morte de Lenin, e agora Stalin decidira retirar a coroa de sua
cabeça: “Como teórico, não é um marxista completo, é um teórico que precisa
estudar um pouco mais se deseja ser teórico marxista.”27 E, aqui, Stalin não
perdeu a oportunidade de citar o que Lenin dissera sobre Bukharin, em
especial na segunda parte de seu pronunciamento, quando afirmou haver “algo
de escolástico nele (jamais estudou dialética e creio que nunca a entendeu
completamente)”. Portanto, era um “teórico sem dialética, um teórico
escolástico”. Stalin passou a enumerar todos os desacordos que Bukharin tivera
com Lenin, caracterizando-os como “tentativas de ensinar ao professor”.
Aquilo, prosseguiu sarcasticamente, era inteiramente compreensível,
considerando-se quão recentemente o “teórico escolástico” tornara-se “pupilo
de Trotsky [...] e ainda ontem procurara alianças com os trotskystas contra os
leninistas, correndo para eles pela porta dos fundos!”28 – referência às visitas de
Bukharin a Kamenev.
Todo o discurso foi nessa linha, distribuindo críticas devastadoras contra
Rykov, Tomsky e contra o alvo principal. Bukharin e Rykov foram destituídos
de seus cargos, embora permanecessem membros do Politburo. O discurso só
foi publicado alguns anos mais tarde na coleção de obras de Stalin, mas como a
resolução do plenário circulou por todas as organizações locais do partido, o
processo de punição dos “direitistas” começou a ocorrer em todas as regiões. O
Pravda e outros jornais passaram a estampar com regularidade matérias com
acusações pesadas contra a “direita”. Com efeito, estava sinalizada a
coletivização forçada, com seus excessos e com o fim violento do antigo modo
de vida dos camponeses. Ninguém mais falava no princípio do voluntariado.
Mesmo então, Bukharin continuava achando que 20% de crescimento
industrial era o máximo que a economia agrícola podia garantir. Stalin tinha
expectativas bem mais altas.
Em novembro de 1929, a linha geral do partido para a agricultura foi
confirmada quando Stalin escreveu que “os camponeses estão agora se juntando
às fazendas coletivas não como grupos individuais, como costumavam fazer,
mas como vilas inteiras, grupos de vilas, distritos e até regiões”.29 Contudo,
Bukharin recusava o “arrependimento” que vinha sendo instado a mostrar e,
em 17 de novembro de 1929, foi removido do Politburo. No entanto, uma
semana mais tarde, atormentados pela dor de consciência da própria
pusilanimidade, Bukharin, Rykov e Tomsky escreveram uma carta breve para o
comitê central na qual condenavam a posição assumida por eles mesmos:
“Consideramos ser nosso dever afirmar que o partido e o comitê central
estavam certos nesta discussão. Nossas opiniões acabaram se revelando
errôneas. Reconhecendo nossos enganos, devemos conduzir uma batalha
decisiva contra todos os afastamentos da linha geral do partido e, acima de
tudo, contra o desvio de direita.”30
Stalin não gostou de não ver na declaração menção específica ao fato de ele
estar certo, mas não tinha importância. Bukharin estava acabado.
É muito pouco provável que, por aquela ocasião, muitas pessoas fossem
capazes de antever o que o futuro reservava para Bukharin, ou mesmo apenas
de prever a derrota, de um modo geral, daquela ala moderada da liderança do
partido. Por outro lado, os críticos e analistas de fora da União Soviética foram
um pouco mais perspicazes. Em abril de 1931, saiu um artigo na edição do
jornal menchevique Sotsialischeskii Vestnik** com os resultados da Nova Política
Econômica, no qual se dizia que Stalin fazia o máximo para “destroçar
qualquer sonho de um retorno à NEP e para acabar com qualquer sonho de
evolução”.

O secretário-geral tentou várias vezes submeter os comunistas de direita, mas, devido a uma série de
razões internas, a punição não foi levada ao extremo, e o fim violento de Rykov, Tomsky e Bukharin
foi adiado. O processo de expeli-los tanto do aparato como do partido ainda não se completou. Os
defensores da NEP, que são sensíveis às necessidades dos camponeses (embora psicologicamente
incapazes de romper com a ideia da ditadura), já foram destituídos de seus cargos, mas ainda não
foram declarados inimigos do povo. A ditadura já os está encarando e logo tratará deles.31

Tendo-se “retratado”, Bukharin passou a sofrer terrivelmente como resultado


de sua própria inconsistência. Por que, agonizava ele, não fui capaz de
convencer o Politburo? Ele sabia que não estava certo em tudo. Uma
arremetida para industrialização era, sem dúvida, o certo a ser feito. Sacrifícios
não poderiam ser evitados, mas que forma deveriam tomar? Seguramente não
de vidas humanas. Até o fim, ele não conseguiu se conformar com os métodos
de violência total empregados contra os camponeses: a “liquidação” ou controle
dos kulaks poderia ter sido feita com métodos puramente econômicos. O
drama de Bukharin ainda não entrara na fase trágica. Ninguém no partido
poderia prever os sangrentos anos da década de 1930. E que tudo aconteceria
quase dez anos depois de Bukharin capitular, em novembro de 1939.
Notas

* Jargão comunista para os partidos socialistas, a maioria no Ocidente, organizados na Segunda


Internacional.

** Fundado em Berlim por Martov em 1920, o Jornal Socialista, órgão da ala menchevique do RSDRP
Rossijskoj Social-Demokraticeskoj Rabocej Partii – Partido dos Trabalhadores Social-democrata Russo –
foi transferido em 1933 para Paris. Depois, de 1940 até 1963, passou a ser publicado em Nova York.
[19]
Ditadura e democracia

N o início dos anos 1930, ficou claro para os que tinham capacidade
de perceber que as palavras de Lenin – “O aparato não nos pertence,
nós pertencemos a ele”32 – tornaram-se realidade. A ditadura da
burocracia, a burocracia coletiva, nascera. E ela, gradualmente, gerou uma elite,
toda uma hierarquia de chefes. O governo por decretos passou a ser o principal
meio de inter-relacionamento social. Tudo era decidido dentro dos gabinetes.
Reuniões, sessões, congressos e plenários meramente “aprovavam” ou “davam
apoio”. O poder do povo nada mais era que uma expressão vazia. As
engrenagens da máquina burocrática não se movimentavam com rapidez, mas
eram inexoráveis. Stalin manejava o principal painel de controle, observando o
produto de sua inspiração através das janelas do Kremlin. A mudança para o
socialismo fora deformada em mudança para o stalinismo.
Stalin jamais entendeu, ou quis entender, a essência da democracia
proletária, o próprio significado de poder do povo. Em seus arquivos, podemos
ver que a democracia para ele nada mais era que liberdade para dar apoio – e
apenas dar apoio – às decisões do partido. E como Stalin acreditava que
personificava o partido, a democracia autêntica consistia em aprovar suas
argumentações, suas deliberações, suas intenções. Nem todos logo se deram
conta de que, ao lidar com Trotsky, Zinoviev, Kamenev e com outros que
pensavam de forma diversa, Stalin não fazia menção às diferenças em relação a
si, e sim ao afastamento do leninismo. A identificação de suas próprias opiniões
e atitudes com as de Lenin foi um dos instrumentos mais inteligentes utilizados
por Stalin. Nem todos tiveram de imediato a percepção de que, graças a essa
estratégia, ninguém parecia ter razão quando discutia com ele. Para que isso
acontecesse, era preciso que, primeiro, Lenin fosse destronado.
Ademais, Stalin também conseguia apresentar seus erros sobre a questão
nacional, sua atitude negativa a respeito da continuação da NEP, sua falsa
concepção de luta de classes, seu entendimento deturpado sobre a essência da
coletivização e seu exagero sobre o papel do aparato como se fossem
interpretações corretas do leninismo. Certa vez, durante o embate que travaram
antes da expulsão de Bukharin do Politburo, Stalin trocou com ele as seguintes
palavras:

Stalin, irado: “Vocês são um bando de não marxistas, uns curandeiros, charlatões. Nenhum de vocês
entendeu Lenin!”
Bukharin: “E você foi o único que entendeu?”
Stalin: “Repito, você não entendeu Lenin. Já se esqueceu das tantas vezes que o atacou por
esquerdismo, oportunismo e desorganização?”

Com quase as mesmas palavras, Stalin iria coagir Bukharin no pleno de abril de
1929 do comitê central e da CCC. A fonte de muita infelicidade futura pode
ser encontrada na usurpação que Stalin procedeu da interpretação de Lenin, e
ninguém se mostrou capaz de revelar a profunda impropriedade do pleito
dogmático do secretário-geral pela exclusividade nesse papel.
No pleno de janeiro de 1933, ao sintetizar os resultados do Primeiro Plano
Quinquenal, Stalin incluiu uma seção especial sobre as tarefas e o efeito da luta
contra “os remanescentes das classes hostis”. A despeito de dizer
“remanescentes”, conclamou uma “luta implacável contra eles”. E nenhuma
palavra quanto à reeducação ou quanto à possibilidade de que “ex-pessoas” e
suas famílias fossem levadas para o novo estilo de vida, o que talvez ajudasse
mais efetivamente a mudança de suas visões e de seus “instintos de classe”. Ao
descrever o cenário social, ele disse:

Os remanescentes das classes moribundas – industriais e seus serventes, negociantes privados e seus
títeres, ex-nobres e ex-párocos, kulaks e seus lacaios, ex-oficiais e ex-soldados Brancos, milícias e
policiais – infiltraram-se em nossas fábricas, nossas instituições e agências, nossas ferrovias e empresas
de transporte fluvial e na maior parte de nossas fazendas estatais e coletivas. Esgueiraram-se e lá estão
escondidos, disfarçados de “operários” e “camponeses”, e alguns chegaram a se infiltrar até mesmo no
partido.
O que trouxeram consigo? É claro que trouxeram o ódio contra o regime soviético, seus sentimentos
de hostilidade feroz às novas formas de economia, modo de vida, cultura. [...] Só lhes resta fazer o jogo
sujo e prejudicar os operários e os agricultores coletivos. E o fazem da maneira que podem, na surdina.
Incendeiam depósitos e quebram máquinas, e alguns deles, inclusive professores, vão tão longe em sua
atividade destruidora que injetam vírus da peste e antrax no gado de nossas fazendas coletivas e
estatais, e forçam o alastramento da meningite em nossos cavalos, e assim por diante.33

Depois de ouvirem uma descrição tão sombria da situação no início de 1933,


as pessoas decentes ficaram aturdidas. Só havia inimigos, destruidores,
remanescentes de classes exploradoras ainda tão perigosos quanto tinham sido
nos anos iniciais do poder soviético. É evidente que ainda existiam muitas
pessoas hostis ao regime, mas nada parecido com a ameaça que Stalin pintara.
Mas ele o fez para ficar em condições de dizer: “Uma ditadura forte e poderosa
do proletariado se faz necessária agora para transformar em pó os últimos
remanescentes das classes agonizantes e para destroçar seus esquemas
desonestos.”34 Jogava na intensificação da função punitiva e coercitiva da
ditadura do proletariado.
Stalin fez muitos discursos assim no fim dos anos 1920 e início de 1930.
Começou a se formar, gradualmente, um estado de espírito na população que,
ao lado do zelo revolucionário, do entusiasmo e do otimismo coletivo,
mostrava os primeiros indícios de suspeita, desconfiança em relação a
concidadãos e propensão para acreditar nos mitos mais grotescos sobre
“inimigos do povo”. A insanidade absoluta de 1937-38 não teria ocorrido se a
população não viesse sendo preparada por muito tempo. Milhões de pessoas,
vivendo, de fato, num Estado cercado pelo mundo capitalista, foram se
acostumando aos poucos à ideia de que entre seus amigos, concidadãos e
colegas de trabalho, na universidade, na unidade do exército ou no grupo
cultural, escondiam-se inimigos que só esperavam a hora. Uma convocação,
um slogan, uma diretriz seriam capazes de aprestar muitas delas para “esmagar
os últimos remanescentes do capitalismo”. Dali para o terror era só um passo
ou, no mínimo, para a predisposição a desencadeá-lo. De sua parte, Stalin
acreditava que o uso da violência era elemento orgânico da construção pacífica
do socialismo. “A repressão”, disse no XVI Congresso do partido em 1930, “é
um elemento necessário para o progresso”.35 Stalin não podia entender por que
as pessoas que escreviam na imprensa social-democrata do exterior, e Trotsky,
que estava em desacordo com elas, eram tão veementes nos ataques ao aparato
do partido e à ditadura. Não saberiam que, obviamente, esses eram os
instrumentos mais importantes do poder? Vezes sem conta Stalin persuadia a si
mesmo de que o aparato, historicamente, fora a arma da ditadura. Não se
podia falar de socialismo ou democracia sem a ditadura. É claro que era a
ditadura do burocrata, não do proletariado, que Stalin consolidava.
Ele falou bastante sobre igualdade e interesses sociais como premissas
básicas da democracia socialista. Numa conversa, em 1936, com um grupo da
equipe do comitê central responsável pelos livros didáticos escolares, sublinhou
que:

Nossa democracia tem que colocar sempre o interesse geral em primeiro lugar. O pessoal quase não
vale nada comparado ao social. Enquanto existirem ociosos, inimigos e ladrões da propriedade
socialista, isso significa que ainda existirão pessoas estranhas ao socialismo, e significa também que
temos que persistir na luta.

“O pessoal quase não vale nada...” e o que pertence a todos não pertence a
ninguém. O senso de propriedade simplesmente se evaporou quando o
igualitarismo foi imposto. Um trabalhador não poderia receber milhares por
uma invenção, mesmo que ela desse lucro de milhões, porque seria “demais”
para uma pessoa. Paulatinamente, surgiu um tipo de trabalhador receoso da
“sobrecarga” de trabalho, que encarava com naturalidade folhas falsas de serviço
e roubos à luz do dia. “Ora, o Estado não vai sentir falta disto”, raciocinaria ele.
“O pessoal quase não vale nada...” E era a “democracia” de Stalin que
sustentava tal tipo de atitude. As pessoas, quase sempre, se motivavam pela
necessidade, pelo medo e por outras alavancas do sistema em cujo vértice se
postava o autocrata.
Stalin não proferia discursos contra a democracia, porque o seu
entendimento de democracia era o de um déspota. Afinal de contas, existiram
imperadores romanos que não tiveram pejo em criar parlamentos obedientes
com os atributos apropriados, tais como eleições, juramentos e representações
formais. A democracia, como expressão do poder socialista do povo, era
aceitável por Stalin, desde que reforçasse sua ditadura pessoal. Numa conversa
com H.G. Wells, o secretário-geral colocou o poder no centro de seu raciocínio
como “uma alavanca da mudança”, alavanca da nova legalidade e da nova
ordem. Nada ele amava mais que o poder, o poder completo, ilimitado,
consagrado pelo “amor” das multidões. E nisso foi bem-sucedido. Nenhum
outro homem no mundo jamais conseguiu um sucesso tão fantástico:
exterminar milhões de seus próprios concidadãos e receber em troca a adulação
cega de todo o país. Não obstante, isso fazia parte do entendimento stalinista
da relação entre ditadura e democracia.
Com o correr do tempo, a noção de “sacrifício”, ou de “custo”, tornou-se
para Stalin um dos atributos essenciais do socialismo. Quando um novo
projeto foi formulado para a Sibéria Setentrional, a “ordem de planejamento”
incluiu um elemento para cobrir as “perdas naturais”. A NKVD chegou a
prever “dotações” para as regiões, reservas especiais de trabalho forçado para os
“locais socialistas”. A partir do fim dos anos 1920, não havia escassez do barato
trabalho escravo. Todas as iniciativas para o emprego de prisioneiros
encontravam apoio em Stalin. Bastava que resmungasse para um assistente, ou
que rabiscasse “de acordo” no documento, para que a proposta de uma agência
referente à utilização de centenas ou milhares de “inimigos”, numa região ou
noutra, ganhasse aprovação oficial.
Dando um salto à frente, seria interessante frisar que, em suas notas para
Stalin, Beria frequentemente afirmava que as tarefas de construção da NKVD
eram tão grandes que os “recursos humanos” se mostravam inadequados.36
Stalin captou a ideia. Em 25 de agosto de 1938, o Presidium do Soviete
Supremo da URSS reuniu-se para debater a libertação antecipada de
prisioneiros de bom comportamento. Stalin objetou:

Não podemos dar um jeito para que essa gente permaneça nos campos de prisioneiros? Se isso não
acontecer, nós os liberamos, eles voltam para casa e retomam a antiga vida. O ambiente no campo de
prisioneiros é diferente, lá é mais difícil o mau comportamento. Afinal, já temos o empréstimo
[estatal] voluntário-compulsório. Então, tenhamos também a permanência voluntária-compulsória.37

Stalin fora bastante claro e, em consequência, foi aprovado um decreto “sobre


campos da NKVD” segundo o qual “quem quer que esteja sentenciado em
campos da NKVD da URSS tem que cumprir toda a pena fixada pelo
tribunal”.
Voltando ao início dos anos 1930, o resultado do definhamento dos
princípios democráticos foi a criação de uma máquina de repressão e de um
poderoso aparato punitivo. O dogmatismo nas ciências sociais, na ideologia e
na propaganda se alastra rapidamente. A falta de democracia logo levou aos
primeiros vestígios de inchamento do papel de uma só pessoa, de exaltação de
seus méritos, do traço da figura de Stalin como Messias mítico.
A reação de Stalin a tudo isso foi interessante, veja-se o extrato de uma
conversa que teve com Emil Ludwig, em 13 de dezembro de 1931:

Ludwig: De um lado, as pessoas do exterior sabem que a URSS é um país onde, supostamente, tudo é
decidido coletivamente, porém, de outro lado, também sabem que tudo é decidido por um homem
só. Quem decide na verdade?
Stalin: As decisões tomadas por uma só pessoa são sempre, ou quase sempre, decisões unilaterais. Em
qualquer coletividade, há pessoas cujas opiniões têm que ser levadas em conta. Nossos operários jamais
tolerariam o mando de um homem só sob quaisquer circunstâncias.
[Ludwig pergunta como Stalin encara os métodos jesuítas.]
Stalin: Seus principais métodos abarcam a campana, a espionagem, a infiltração na mente das pessoas,
o escárnio – que há de bom nisso?
Ludwig: O senhor esteve constantemente em risco e correndo perigo. Foi perseguido, tomou parte em
batalhas. Alguns de seus amigos mais próximos morreram. O senhor ainda está vivo. O senhor
acredita em destino?
Stalin: Não, não acredito. Isso é apenas bobagem supersticiosa e uma ressaca da mitologia. Outro
poderia estar em meu lugar, e deveria mesmo estar. [...] Não acredito em misticismo.38

Dizer uma coisa e fazer outra passou a ser norma para Stalin: condenar o culto
à liderança enquanto o reforçava, criticar as práticas jesuítas ao mesmo tempo
em que as encorajava na vida soviética, falar sobre liderança coletiva ao passo
que a reduzia ao mando de um só homem. A deificação dos autocratas
normalmente é feita com base na falsidade.
No início da década de 1930, Stalin interrompeu por completo suas raras
visitas às províncias, fábricas e unidades do exército. Por um lado, seu
conhecimento era diminuto sobre a produção e não desejava imiscuir-se com
assuntos terrenos tais como tecnologia, rendimentos, produtividade etc. Por
outro lado, vivia assaltado pela sensação permanente de que se engendrava um
atentado contra sua vida. Afinal de contas, inimigos não faltavam, e Trotsky, ou
qualquer outra das “ex-pessoas”, poderia chegar a extremos. Seus órgãos de
segurança não paravam de alertá-lo. Por exemplo, Ulrikh informou:

Em 16 de dezembro [1935], depois de duas semanas de investigação feita a portas fechadas pelo
collegium militar da Suprema Corte da URSS, foi sentenciado um grupo de espiões e terroristas que
planejava um ato terrorista [terakt] na Praça Vermelha, em 7 de novembro de 1935, sob as ordens de
um cidadão alemão. Foram condenados à pena de morte G.I. Sher, V.G. Freiman, S.M. Pevzner, V.O.
Levinsky...39

Stalin não precisava continuar lendo. “Estão atrás de mim”, pensou. Mas não
conseguiriam, seriam todos desentocados.
Stalin raramente fazia aparições públicas porque, segundo sua natureza
sutil, sabia que quanto menos fosse visto pelo povo, mais fácil seria cultivar a
espécie de imagem que queria projetar. O enigmático, o misterioso e o fechado
guardavam equivalência com o sagrado, o lendário e o sobre-humano.
Portanto, em vez de visitar fábricas, ele estudava cuidadosamente os
documentos, assistia com regularidade aos noticiários do cinema, ouvia
numerosos relatórios e punha-se de pé por longos períodos de tempo,
cogitando diante de mapas.
Ele gostava de olhar mapas e examinar seu vasto país como um soberano.
Isso, mesmo de forma inadequada, dava-lhe uma ideia da maneira com que
milhões de pessoas laboravam para dar vida aos seus decretos. Podia correr com
o dedo sobre a Transiberiana, ou localizar Magnitogorsk, a represa hidrelétrica
do Dnieper, o canal ligando o mar Branco ao Báltico, a bacia produtora de
carvão de Kuznets, e deixava os olhos correrem até as regiões de Kolyma, mas,
para tanto, tinha que dar diversos passos diante do mapa. Depois de um desses
rotineiros exames do território russo, subitamente, telefonou a Voroshilov e
perguntou se o Exército Vermelho estudava geografia. Os militares conheciam
bem a geografia de seu próprio país? Na sua cabeça, o simples olhar num mapa
para a mãe-pátria provocaria orgulho, bem como dedicação à causa e à ideia.
Voroshilov, que não estava preparado para aquela pergunta, deu uma resposta
um tanto desencontrada e prometeu investigar. No dia seguinte, o
departamento de política do Soviete Militar Revolucionário preparou um
memorando que Voroshilov transmitiu a Stalin como se segue:

Em resposta à sua indagação sobre o estudo da geografia no Exército Vermelho, posso informar que a
geografia é obrigatoriamente estudada por todos os integrantes do Exército Vermelho em programas
especiais. Além do estudo de geografia como parte do programa de instrução geral, ela é também
ministrada nos cursos políticos. Atenção especial é dada ao estudo de mapas.
No corrente ano, o departamento político do Revvoensoviet distribuiu 220 mil mapas, 10 mil atlas, 8
mil mapas nas línguas nacionais das repúblicas e 10 mil globos, que foram se juntar ao material já
existente nas unidades.40

Stalin leu satisfeito o relatório e olhou de sua cadeira para o mapa na parede:
enquanto a distância permitiu, pôde distinguir as localidades de Stalingrado,
Stalino, Stalinsk, Stalinabad.
Logo depois da morte de Lenin, cresceu a prática duvidosa de dar o nome
de figuras do Estado e do partido a cidades e regiões, fábricas, institutos
educacionais, teatros, e assim por diante. Tornou-se norma os jornais
publicarem relatórios sobre a consecução das metas do plano trimestral da
Fábrica Stalin de Produtos Químicos, de Moscou, da Tecelagem Voroshilov,
em Tver, das Fábricas de Papel Zinoviev Nº 1 e Nº 2, em Leningrado, da
Fábrica de Vidros Bukharin, em Gus-Khrustalnyi, e outras. No fim dos anos
1920 não havia, praticamente, distrito em que o nome de Stalin não fosse
adotado por um ou outro corpo administrativo, cultural ou de produção.
Deste modo, o povo ficava subliminalmente imbuído da ideia de que Stalin
desempenhava papel excepcional no destino da nação. A glorificação do líder
podia ser ouvida em qualquer relatório ou discurso corriqueiro, e o “líder” local
providenciava para que parcela dessa glória se refletisse sobre ele.
Juramentos de devoção transformaram-se em partes inevitáveis da vida
social ao tempo de Stalin e, sendo de importância tão vital para os que os
proferiam, sobreviveram por décadas após sua morte. O processo fazia mais
que deificar o líder, também insultava toda a população, já que, embora
criadora de tudo o que existia no país, era forçada a se colocar na posição de
agradecida. A impressão que, inevitavelmente, ficava era que, tendo desistido
da crença de Deus no céu, o povo o recriava na terra.
E era de fato um ato de criação. As vozes mais elevadas e mais exaltadas na
glorificação eram as de Molotov, Voroshilov e Kaganovich, e, por mais
paradoxal que pareça, também as de Zinoviev, Kamenev, Bukharin e alguns
outros velhos bolcheviques em desgraça. Os artigos e discursos de Zinoviev,
penitenciando-se por pecados passados e louvando a “perspicácia e a sabedoria
do líder do partido, camarada Stalin”, incomodam um pouco quando lidos.
Nem Bukharin conseguiu evitar algumas observações lisonjeiras. Teriam eles
perdido realmente a fé na causa pela qual lutaram, ou o senso de
autossobrevivência tomara conta de seus sentidos?
Em paralelo com a glorificação na literatura oficial, começou um quase
imperceptível processo de revisão da história e de criação da noção de que
teriam havido dois líderes na Revolução de Outubro, Lenin e o onipresente
Stalin, que estava sempre ao seu lado. No prefácio da coleção em seis volumes
das obras de Lenin, seu editor, Adoratsky, anotou que os escritos de Lenin
deveriam ser lidos em conjunto com os de Stalin, porque o secretário-geral
havia exposto de maneira concentrada as ideias de Lenin no seu livro
Fundamentos do leninismo, e por aí seguiu seu raciocínio.
Em agosto de 1931, antes que o culto à personalidade atingisse o zênite,
foram feitas tentativas para imortalizar Stalin em biografias políticas. Existe
uma carta no arquivo de Stalin escrita por Yaroslavsky, que diz o seguinte:
“Hoje, antes de partir, Sergo [Ordzhonikidze] telefonou-me para dizer que
falara com você sobre um livro chamado Stalin que ele deseja escrever...” As
habituais anotações a lápis na carta registram: “Camarada Yaroslavsky, sou
contra. Acho que ainda não chegou a hora das biografias.”41
Decisão sensata. O campo ainda não fora dobrado de todo, a floresta de
fábricas estava em crescimento, a maioria dos integrantes da velha guarda de
Lenin ainda estava viva e, entre eles, alguns que bem conheciam o que Stalin
fora havia apenas dez anos. Panegíricos começavam a aparecer. O principal era
agir gradualmente, com consistência e sem volta. Era importante comportar-se
publicamente com modéstia e moderação. Acabara de testemunhar os aplausos
que explodiram com renovado vigor quando ocupara uma cadeira na segunda
fila da plataforma, e não na primeira como todos esperavam. A plateia ficou na
ponta dos pés para poder ter rápida visão dele. A hora das biografias chegaria
logo.
No meio-tempo, eram tomadas providências para que cartas e relatórios de
devoção fossem enviados ao líder. Por exemplo, a Comuna Stalin, na vila de
Tsasuchey, no distrito de Olovyannikovsk da Sibéria Oriental, informou de sua
intenção de semear 320 hectares em vez dos propostos 262,5. “Somos
favoráveis à linha geral do partido sob a liderança do comitê central
bolchevique e do melhor dos leninistas, o camarada Stalin! Somos pela
concretização total do Plano de Cinco Anos em quatro anos e pela liquidação
dos kulaks como base para a coletivização completa!”42
Tais cartas passaram a ser adotadas nas reuniões de todas as empresas,
institutos e fazendas estatais e coletivas. Era o início da deformação da mente
pública que, a partir de então, passaria a ser nutrida apenas com o culto a
mitos. A propaganda emprestou ênfase crescente à fé: qualquer coisa que fosse
formulada ou dita por Stalin tornava-se imutável e verdadeira e não necessitava
de provas. Em outras palavras, Stalin era um semideus. No fim, esses mitos,
que se transformaram em base de toda a vida social, foram reduzidos a duas
proposições simples.
Primeira, o líder do partido e da nação é um homem sábio ao grau mais
elevado. A força de seu intelecto é capaz de dar resposta a todas as questões do
passado, de entender o presente e de perscrutar o futuro: “Stalin é o Lenin de
hoje.”
Segunda, o líder do partido e da nação é a personificação total do bem
absoluto e se preocupa com todos. Repudia o mal, a ignorância, a traição, a
crueldade. Ele é aquele homem de bigodes, sorridente, que carrega ao colo uma
menininha agitando a bandeira.
[20]
O Congresso dos Vitoriosos

O fim dos anos 1920 e o início da década de 1930 limitaram uma fase


importante na ascensão de Stalin. Sua autoridade cresceu
acentuadamente e os antigos oposicionistas, inclusive Bukharin,
buscaram de todas as formas provar sua lealdade a ele, bem como suas novas
“avaliações” e a “concordância total com a linha geral do partido”. Por exemplo,
Zinoviev e Kamenev tentaram diversas vezes restabelecer as boas relações com
Stalin e foram visitá-lo na dacha para selar a paz.
É normal tomar-se como tragédia pessoal a experiência da demissão de um
alto cargo, e aquelas figuras políticas não foram exceção. Kamenev, embora
apenas perto dos 45 anos de idade, pareceu ter desistido de tudo, envelheceu e
os cabelos ficaram grisalhos antes do tempo. Ao telefone ou em conversas
frente a frente com Stalin procurava sempre uma oportunidade para fazer
referências cautelosas ao tempo que passaram juntos, ociosos, às margens do rio
Kureika, ou ao fato de que os três – ele, Zinoviev e Stalin – foram camaradas
em armas próximos de Lenin, ou aos eventos dramáticos que cercaram a
indicação de Stalin para o cargo de secretário-geral. Tanto Zinoviev quanto
Kamenev, mas especialmente o último, jamais perderam a esperança de um dia
retornar aos altos escalões da hierarquia do partido.
Stalin sabia perfeitamente o que se passava e sua atitude era de
condescendência. Por vezes, até encorajava os camaradas em desgraça. Porém,
estava ciente de que as pessoas às quais devia, em boa medida, sua posição de
então não eram mais necessárias, e poderiam até se transformar mais tarde em
perigo. Zinoviev e Kamenev o conheciam muito bem, e ele não gostava de
quem sabia mais sobre ele do que o prescrito pela propaganda oficial. Com a
aproximação do XVII Congresso do partido, no início dos anos 1930, toda a
sua atenção estava concentrada na revolução da agricultura, na avalanche da
indústria e em garantir a consolidação de seus seguidores.
O congresso que ocorreu em fevereiro de 1934 ficou conhecido na
propaganda stalinista como o “Congresso dos Vitoriosos”. O próprio Stalin, no
seu relatório para o comitê central, descreveu as vitórias obtidas pelo partido e
pelo país como “grandes e inusitadas”. A nação, de fato, dera um grande salto
para a frente em 1934. A minuta do relatório de Stalin, por ele mesmo
rascunhado e revisado cuidadosamente, mostra em cada página e em cada
parágrafo que procurou inflar tais conquistas. Acreditava que os enormes
sacrifícios feitos pelo país mereciam a demonstração de resultados. Páginas
inteiras foram reescritas pelo secretário-geral com a intenção de mostrar ao
partido e ao povo que sua liderança era profícua, eficiente e vitoriosa.
Stalin destacou o fato de que, nos cerca de três anos decorridos desde o
congresso anterior, a produção industrial havia dobrado. Novos ramos da
indústria estavam instalados: fabricação de máquinas-ferramentas, automóveis,
tratores, produtos químicos. Motores, aviões, máquinas agrícolas, borracha
sintética, nitratos, fibras artificiais eram fabricados na URSS. Orgulhoso,
anunciou que milhares de projetos estavam contratados, inclusive alguns
gigantescos, como a hidrelétrica do Dnieper, as indústrias de Magnitogorsk e
Kuznets, os caminhões dos Urais, os tratores de Chelyabinsk, os automóveis de
Kramatorsk, e muitos outros. Nenhum relatório anterior feito por Stalin
continha tantos fatos, números, tabelas e planos. Ele tinha o que dizer ao
congresso.
Os anos 1930 são conhecidos como os da grande tragédia, mas foram
também tempos de entusiasmo sem precedentes, conquistas e enormes esforços
dos trabalhadores. Fica até difícil hoje imaginarmos como milhões de pessoas, a
grande maioria sustentada apenas pelas necessidades mais comezinhas da vida,
acreditaram estar genuinamente criando um futuro comunista e que não
apenas seus destinos, mas o do proletariado do mundo, dependiam de seu
sacrifício. Alguns extratos do Pravda – que Stalin sempre lia por completo, sem
fazer seleção alguma, marcando trechos ocasionais a lápis – são ilustrativos:

Um relatório coletivo dos trabalhadores de petróleo de Baku, discutido em 40 reuniões por cerca de
20 mil empregados da indústria petrolífera e suplementado por 53 relatórios locais e 254 cartas de
operários, diz: “Graças ao esforço dos trabalhadores e especialistas, e sob a experimentada liderança do
partido leninista, o Plano Quinquenal para o petróleo foi completado em dois anos e meio.”
Magnitogorsk relatou:

Uma espécie completamente nova de equipe emergiu na seção de construção da oficina de alto-fornos
– uma equipe de escavação totalmente autofinanciada. A mudança para essa escavação autofinanciada
deu excelentes resultados, pois foram batidos recordes mundiais no carregamento de caminhões.

Da Tartária:

A colheita e a distribuição de grãos vêm sendo procedidas concomitantemente com o anúncio da


preparação do segundo congresso de Kolkhozniks de Toda a Tartária e da conquista do direito de
incluir um representante local na delegação que levará o relatório ao camarada Stalin. Ocupar o
primeiro lugar no placar de Toda a União é o slogan mais popular no kolkhozy da Tartária.

Tudo isso pode parecer a fé ingênua e de olhos radiantes em Stalin, por parte
de milhões de pessoas simples que construíram as bases do que temos hoje. No
entanto, não se pode deixar de admirar o indomável entusiasmo, o orgulho
pelas conquistas e a certeza de que o futuro estava em suas mãos. A força sem
paralelo do esforço heroico, o alto nível de espírito cívico e a fé na justiça e
num futuro melhor, mesmo mesclados com o culto à personalidade, derivaram
da gigantesca energia social liberada por Outubro de 1917. Aquela gente,
aqueles criadores, normalmente descritos por Stalin como “as massas”, por
vezes como “as engrenagens”, são parte da história soviética que não deve ser
esquecida.
Ao mesmo tempo, os jornais publicavam matérias que hoje, com o que
sabemos, provocam calafrio. Em meados de julho de 1933, o Pravda disse que
“os camaradas Stalin e Voroshilov chegaram a Leningrado e, na companhia do
camarada Kirov, foram no mesmo dia visitar o canal mar Branco-mar Báltico.
Depois de inspecionarem as obras do canal e as instalações de hidroengenharia,
navegaram pelo mar Branco do porto de Soroka até Murmansk”. Duas
semanas mais tarde, o governo anunciou a abertura do Canal Stalin mar
Branco-mar Báltico e a condecoração dos que se destacaram na construção.
Foram agraciadas oito pessoas com a Ordem de Lenin: G.G. Yagoda, subchefe
da OGPU; L.I. Kogan, chefe do projeto do Canal do mar Branco; M.D.
Berman, chefe do soviete de campos corretivos de trabalhos forçados da
OGPU; N.A. Frenkel, vice-chefe do projeto; Ya.D. Rapoport, vice-chefe do
projeto; S.G. Firin, chefe do campo corretivo de trabalhos forçados dos mares
Branco-Báltico; S.Ya. Zhuk, vice-chefe engenheiro do projeto; e K.A.
Verzhbitsky, vice-chefe da construção.43
Falando mais tarde ao XVII Congresso, Kirov diria: “Construir esse canal,
em tão pouco tempo e naquele local, foi realmente trabalho heroico, e temos
que creditá-lo aos nossos chekistas que supervisionaram a obra e, literalmente,
fizeram milagres.”44 Teria sido mais correto dizer que o milagre foi feito por
centenas de milhares de presos. Não havia falta deles. Depois da
“deskulakização” de mais de um milhão de lares e da política dura contra os
“remanescentes das classes exploradoras”, a OGPU tinha à sua disposição
vastos recursos humanos para construir bem mais que o Canal do mar Branco.
A nominata dos condecorados com a Ordem de Lenin não deixa dúvida de
como e por quem o canal, que recebeu o nome de Stalin, foi construído. A
ideia de usar presos na economia não era nova. Em meados da década de 1920,
Trotsky, em sua proposta de trabalho militarizado, aconselhou que “os
elementos hostis ao Estado deveriam ser mandados em escala maciça para os
locais de construção do Estado proletário”. O conselho de um “líder
destacado”, evidentemente, não passaria despercebido pelo outro.
Não foi tão fácil para Stalin relatar sucessos na agricultura. Honestamente
falando, foram criadas mais de 200 mil fazendas coletivas e 5 mil estatais, mas
tinha que ser admitido que o desenvolvimento da agricultura fora “muitas vezes
mais lento que o da indústria”. Ele também reconheceu que “na realidade, o
período sob avaliação foi menos de crescimento rápido e decolagem que da
criação de condições para crescimento e decolagem no futuro próximo”.45
Tendo desbaratado, em dez anos desde a morte de Lenin, inúmeras
“oposições”, Stalin acabou ficando “sem trabalho”. Chegou a falar sobre isso:
se, no XVI Congresso, ele ainda teve que liquidar discípulos de vários
agrupamentos, no atual não havia a quem derrotar. Embora também naquela
ocasião, “se baixarmos a guarda”, disse em clara contradição, “os resíduos da
ideologia renascerão na mente de alguns membros do partido” e temos que
estar prontos para esmagá-los. Mas Stalin raramente “esmagava” ideologia,
apenas aqueles que esposavam uma ideologia. Tendo proclamado que o país
caminhava para a criação de uma “sociedade socialista sem classes”, ele tirou a
conclusão imediata de que a ausência de classes só seria alcançada “por meio do
fortalecimento dos órgãos da ditadura do proletariado, por intermédio da
expansão da luta de classes”.46
Pode parecer que, acreditando no valor universal dos métodos repressivos e
vendo a ditadura do proletariado, sobretudo, como arma de coação, Stalin
simplesmente não percebeu quão ruinosa essa política poderia ser. Pelo
contrário, no “Congresso dos Vitoriosos”, pleiteou mais um aperto nos
parafusos. Quanto a democracia, ele entendia muito bem que qualquer
acréscimo no poder do povo corresponderia a uma redução em sua autoridade
pessoal. Era autoritário por natureza, um déspota com alguma pitada do
oriental de seu passado distante. Em 1928, Bukharin o chamara de Genghis
Khan.
Como secretário-geral do partido, ele tomou providências para que, entre os
1.225 delegados ao congresso, houvesse uns tantos representantes das várias
facções, “oposições” e “desvios”. Fazia tempo que eles já tinham se arrependido
ou retratado, e buscavam maneiras de se colocar à disposição de Stalin. Nem
todos eram oportunistas ou pessoas sem princípios. Muitos tinham se
arrependido sinceramente de seus erros insignificantes porque não queriam
ficar fora do partido e também apoiavam a linha da construção forçada do
socialismo.
Stalin encorajou Kaganovich com especial desvelo para que garantisse que,
entre os delegados, houvesse alguns cuja retratação fortalecesse ainda mais o
poder do líder. Quando se leem, décadas depois, os discursos desses delegados,
pode-se imaginar a humilhação sentida por tais pessoas enquanto se
penitenciavam, como que em êxtase religioso, simplesmente para gratificar a
vaidade de um homem. Muitos delegados perceberam isso. Kirov foi um dos
que disseram que esses antigos oposicionistas “estão agora tentando [...] pegar o
bonde da celebração geral, procurando dançar a mesma música, apoiar nosso
desenvolvimento generalizado. [...] Bukharin, por exemplo. A mim parece que
tenta entoar a mesma melodia, mas desafina. Nada direi sobre o camarada
Rykov ou sobre o camarada Tomsky”.47
Que disseram no congresso esses antigos membros do Politburo e discípulos
de Lenin?
Bukharin, o ex-favorito e teórico do partido:

Por sua brilhante aplicação da dialética de Marx-Lenin [sic], Stalin estava inteiramente certo quando
destroçou toda uma série de premissas teóricas do desvio de direita, formuladas sobretudo por mim.
[...] É dever de todo membro do partido congregar-se em torno do camarada Stalin como
incorporação pessoal da mente e da vontade do partido, como seu líder, teórico e prático.48

É difícil acreditar-se que tais palavras saíram da boca de um homem de


consciência perfeitamente limpa.
Rykov, primeiro presidente do Sovnarkom depois de Lenin:

Quero descrever o papel do camarada Stalin nos primeiros anos seguintes à morte de Vladimir Ilyich.
[...] Como, na qualidade de líder e organizador de nossas vitórias, ele se sobressaiu naquela ocasião.
Quero descrever a maneira como o camarada Stalin imediatamente se destacou entre os líderes de
então.49

E este fora o homem que sempre primara pela franqueza, por ser incorruptível
e por ter grande coragem cívica.
Tomsky, líder dos sindicatos:

É meu dever declarar diante do partido que só pelo fato de o camarada Stalin ser o mais coerente e o
mais brilhante dos pupilos de Lenin, só por ser o camarada Stalin o mais perspicaz e o de melhor
visão, e porque ele conduziu firmemente o partido pelo correto caminho leninista, esmagando-nos
com punho forte, já que melhor equipado, teórica e praticamente, para a luta contra a oposição – só
por causa disso foram disparados ataques contra o camarada Stalin.50

Tomsky tinha a reputação de ser um membro do partido que se aferrava até o


fim aos seus princípios.
Zinoviev, depois de repetidas derrotas, era de novo membro do partido:

Sabemos agora que na luta conduzida pelo camarada Stalin, travada exclusivamente num alto nível de
princípios e num elevado nível estratégico, não houve o mínimo laivo de qualquer coisa pessoal.

Ele chamou o relatório de Stalin chef d’oeuvre, e prosseguiu então de maneira


exaustiva e insinuante relatando “o triunfo da liderança, o triunfo daquele que
está à testa dessa liderança”.

Quando fui readmitido no partido, Stalin me disse: “O que prejudicou você, e ainda prejudica aos
olhos do partido, não foram tanto os enganos sobre princípios, mas a falta de franqueza em relação ao
partido que se evidenciou em você com o passar dos anos.”

Ouviram-se então gritos partidos da assembleia de “Muito bem! Muito bem


dito!” Zinoviev prosseguiu:
Podemos hoje ver como os melhores dentre os camponeses avançados das fazendas coletivas
empenham-se para vir a Moscou, ao Kremlin, batalhando para ver o camarada Stalin, para vê-lo com
os próprios olhos, talvez tocá-lo com as próprias mãos, esforçando-se por receber as ordens
diretamente dele, de modo a poder levá-las de volta às massas.51

Só o temor de ser lançado para sempre no lixo político poderia induzir


Zinoviev a fazer tais declarações humilhantes. Da mesma forma, desapontando
a própria dignidade intelectual e suas consciências, Kamenev, Radek,
Preobrazhensky, Lominadze e outros, derrotados por Stalin na guerra de
facções, manifestavam agora submissão completa a ele.
Sentado na segunda fileira, seu lugar então costumeiro, Stalin olhou com
evidente indiferença quando Kamenev subiu à tribuna. Lembrou-se do modo
com que Kamenev, como presidente de vários congressos e sessões do
Politburo, costumava orientar o debate para a direção desejada fazendo
observações impacientes. Certa vez, quando a relação entre os dois já não era
boa, Stalin tentava listar da tribuna os erros da oposição quando Kamenev
disparou: “Camarada Stalin! Você está contando ovelhas: uma, duas, três? Seus
argumentos não são mais inteligentes que as ovelhas.” Ao que Stalin replicou:
“Levando-se em conta que você é uma das ovelhas...”
Que diria Kamenev agora? Naquele evento, sua retratação foi uma súplica
indecente de auto-humilhação:

Esta era em que vivemos e na qual ocorre o presente congresso é uma nova era [...] passará à história,
sem dúvida, como a era de Stalin, da mesma forma que a anterior foi a era de Lenin, e cada um de
nós, especialmente nós, tem a obrigação de resistir com todos os meios e com toda nossa energia à
mais leve oscilação de sua autoridade. [...] Quero declarar desta tribuna que o Kamenev, aquele que
lutou com o partido e sua liderança de 1925 a 1933, é um defunto político, que desejo progredir sem
arrastar a velha pele atrás de mim, se me perdoam a expressão bíblica. Vida longa para nosso, nosso
líder e comandante, o camarada Stalin!52

Enquanto ouvia com indisfarçável satisfação todos aqueles louvores, Stalin


recordou-se que Kamenev, numa conversa com Trotsky, o chamara de
“selvagem feroz”, que Zinoviev o alcunhara “o sanguinário da Ossetia”, que
Bukharin frequentemente o ferira ao citar seu desconhecimento de línguas
estrangeiras, que Radek, na primeira edição de seu livro Retratos e panfletos
nada tivera absolutamente para falar sobre ele, e que Preobrazhensky, que se
tinha como grande teórico, o chamara em 1922 “o ignoramus”.
Então aquela era sua revanche? Não, pensou ele, isso seria pensar pequeno.
Bastava que o partido soubesse que ele estivera certo em todos os assuntos
palpitantes, em todos os debates e em todos os pontos de inflexão. E quem
dizia não era ele, e sim seus antigos adversários. Dali por diante, todos ficariam
sabendo que ele não só tinha determinação política e capacidade de
organização – o que se sabia havia muito tempo – mas que também era
portador de sabedoria especial, de visão longínqua, capacidade para se
antecipar aos eventos e pulso firme.
Congresso dos Vitoriosos? Talvez Congresso do Vitorioso fosse mais certo.
Todavia, Stalin esperava ter mais de um novo título generosamente
concedido à sua pessoa. Khruschev e Zhdanov, por exemplo, chamaram-no
“líder genial” pela primeira vez, Zinoviev foi o primeiro a expressar a fórmula
“Marx, Engels, Lenin, Stalin”. Kirov o chamou “o maior estrategista da
emancipação dos labutadores de nosso país e do mundo inteiro”. Voroshilov
disse que “pupilo e amigo” de Lenin, Stalin era também seu “escudeiro” – uma
contradição absurda.
Cansado de ouvir loas à sua genialidade, saber, grandeza, larga visão e
punho de ferro, Stalin prestou especial atenção ao que os delegados do exército
iriam dizer, e ficou desapontado com a falta generalizada de elogios no discurso
de Tukhachevsky. Mais uma vez, o herói da guerra civil soava sua própria
trombeta, expondo os planos de sua autoria para a reestruturação técnica do
exército. Já lhe fora dito que suas ideias eram por demais fantasiosas, mas lá
estava ele novamente... Stalin lembrou-se da longa carta que Tukhachevsky lhe
escrevera, em 1930, queixando-se de que o Estado-Maior do Exército
Vermelho tachara suas propostas para a modernização do exército de
“memorando de um louco”.53 Stalin soubera então que a carta de
Tukhachevsky era voltada contra ele, como secretário-geral, e não contra
Voroshilov, o comissário do povo para a Defesa, com quem as relações de
Tukhachevsky estavam estremecidas. Stalin não gostou de ouvir um
julgamento tão independente vindo de um líder militar que, evidentemente,
via mais longe que Voroshilov, cujo conhecimento militar ficara congelado com
a experiência na guerra civil. Stalin já sabia o que Tukhachevsky ia dizer porque
Voroshilov entregou-lhe uma cópia do discurso na véspera do congresso.
No seu discurso, Voroshilov ainda conseguiu cunhar nova expressão: “O
Stalin de Aço”.54 Stalin ficou também contente em ouvir Dolores Ibarruri,*
Bela Kun** e outras figuras estrangeiras do Comintern declararem que ele era
agora o líder não só dos bolcheviques, mas de todo o proletariado mundial.
Foi no último dia do congresso que Stalin, subitamente, sentiu a fragilidade
e a qualidade transitória de tudo na vida. Os eventos decorriam suavemente, e
tudo parecia dentro da normalidade, seja na escolha dos membros do comitê
central e dos novos órgãos do partido e do controle soviético, seja pela
nomeação do Politburo, embora tudo isso tivesse sido “acertado” de antemão.
A celebração triunfal do líder parecia caminhar sem esforço para sua conclusão
prefixada. A comissão de auditoria estava fechando seu trabalho quando
ocorreu o inesperado. Kaganovich e o presidente da comissão, Zatonsky, ambos
muito ansiosos e alarmados, vieram correndo se encontrar com Stalin.
A.I. Mikoyan, candidato a membro e depois membro pleno do Politburo
de 1926 a 1966, descreveu com detalhes o trabalho do congresso em suas
memórias, e diversas outras figuras registraram de forma semelhante aqueles
acontecimentos. Em A história do PCUS (em russo), publicado em 1962, há
uma nota relatando que “a situação anormal surgida dentro do partido causou
alarme a uma seção dos comunistas, em particular entre os antigos grupos
leninistas. Muitos, especialmente os que estavam familiarizados com o
Testamento de Lenin, sentiram que chegara a hora de deslocar Stalin do cargo
de secretário-geral para outra função qualquer”. Segundo Mikoyan (que fora
informado pelos velhos bolcheviques A. Snegov, O. Shatunovskaya e N.
Andreasyan, um membro da comissão de auditoria), Kaganovich participou
nervosamente a Stalin o inesperado resultado da votação: dos 1.225 delegados,
três votaram contra Kirov e perto de trezentos, quase um quarto, votaram
contra Stalin. Era inacreditável!
Ninguém pode agora dizer exatamente qual a reação de Stalin às notícias,
porém, de acordo com Mikoyan, foi tomada rapidamente a decisão de se deixar
apenas três votos contra Stalin, de se continuar com os três votos contra Kirov
e de se destruir todas as outras cédulas de votação. A prática de então consistia
na distribuição de tantas cédulas quantos fossem os postos a preencher, cada
cédula com um só nome; em outras palavras, tratava-se de uma eleição sem
escolha, onde era necessária apenas a maioria simples. Mesmo que os trezentos
votos contrários fossem computados, Stalin ainda seria eleito para o comitê
central e, sem dúvida, continuaria como secretário-geral.*** Mas pareceu
impossível avaliar naquela ocasião os efeitos políticos que a publicação dos
resultados poderia provocar. Todos veriam de imediato que a grandeza de
Stalin era efêmera – que o rei estava nu.
Segundo os mesmos relatos, um grupo de velhos bolcheviques, conhecedor
do resultado, procurou Kirov e propôs que ele anuísse em ser colocado como
secretário-geral. Kirov recusou e, aparentemente, informou Stalin do que se
passara. Malgrado sua natureza dramática e sua falta de precisão, a história é
bem plausível. Em primeiro lugar, existiam muitos antigos oposicionistas entre
os delegados que tinham se voltado contra a personalidade de Stalin. Depois,
existiam muitos que tinham experimentado pela primeira vez a rudeza
descuidada de Stalin e seu modo ditatorial. Contudo, a posição dentro do
partido era tal que ninguém ousava criticar Stalin ostensivamente, muito
menos propor sua remoção para outro cargo. A oportunidade de dar expressão
à consciência apresentou-se, no entanto, sob a forma de votação secreta. Se a
acusação feita por Mikoyan vier um dia a ser consubstanciada, explicará mais
completamente a mudança de atitude de Stalin em relação a Kirov que, aos
olhos do secretário-geral, passou a ser um verdadeiro rival. Noutro capítulo,
testemunharemos o destino trágico que se abateu sobre a esmagadora maioria
dos delegados no Congresso dos Vitoriosos, isso porque, depois daquela
votação, Stalin passou a ver em cada um deles um inimigo potencial.
Notas

* Conhecida como La Pasionaria, a líder dos comunistas na Guerra Civil Espanhola refugiou-se na URSS
de 1938 a 1977 e morreu na Espanha em 1989.

** Líder comunista da fracassada revolução soviética húngara. Refugiado na URSS desde 1920, ele tomou
parte na guerra civil, assumiu postos soviéticos e foi figura destacada no Comintern. Foi preso como
trotskysta em 1938 e morreu num campo de prisioneiros em 1939.
*** Depois desse congresso, o secretário-geral não mais se apresentou candidato à reeleição. Aliás, para o
fim de sua vida, os documentos de Estado e do partido já não o listavam como secretário-geral.
[21]
Stalin e Kirov

D iscursando no XVII Congresso, A.S. Yenukidze frisou o fato de


Stalin ter se cercado de pessoas com quem podia discutir qualquer
questão surgida,55 e era verdade, de fato, que o entourage do
secretário-geral incluía diversas figuras interessantes, entre as quais Sergei Kirov.
Talvez ele não devesse ser incluído no entourage, pois trabalhou na
Transcaucásia e depois em Leningrado, mas Stalin o considerava do círculo
próximo. Yenukidze, que também era amigo íntimo de Stalin, exagerou
quando disse que o líder estava cercado “pelos melhores de nosso partido”.
Eram pessoas talentosas, camaradas em armas de longa data e decentes, mas
havia também os que concordavam com tudo, jamais contradiziam o chefe e
cuja principal preocupação era adivinhar sua vontade e fazê-la. Ao lado de
Stalin, em especial no final da década de 1930 e início da de 1940, existiam
também alguns que não mereciam classificação diferente de criminosos.
Stalin não era estúpido. Queria amigos confiáveis e leais, porém, em
particular, executivos que não o questionassem e entendessem com um gesto
suas intenções. Tentou dar a impressão para consumo público, é claro, de que
as relações baseadas em lealdade pessoal não eram compatíveis com as questões
de Estado. Por exemplo, respondendo à carta de Shatunovsky, membro do
partido, escreveu:

Você fala em sua “devoção” a mim. Talvez a expressão tenha escapado. Talvez... Mas se não escapuliu,
aconselho-o a descartar o “princípio” da devoção a indivíduos. Este não é o jeito bolchevique. Devote-
se à classe operária, ao partido dela, ao Estado. Isso sim é necessário e é bom. Mas não misture com
devoção a pessoas, que é mania supérflua de intelectuais.56
Belas palavras, mas, pena, não condiziam com sua prática. Antes de tudo, ele
era um grande hipócrita e, como regra, cercava-se de gente que não lhe
trouxesse problemas. Isso se aplicava principalmente aos assistentes, entre os
quais Nazaretyan, Bazhanov, Kanner, Maryin, Dvinsky, Tovstukha e
Poskrebyshev. Stalin era mais ligado a estes dois últimos.
Tovstukha podia adivinhar as intenções de Stalin ao menor sinal. Bem
versado em teoria, era capaz de formular uma ideia e detectar as falhas
intelectuais num documento. Stalin o apreciava particularmente pela devoção
ao trabalho. Existe uma anotação no arquivo de Stalin para Zinoviev, Kamenev
e Bukharin, datada de 1923, especificando que “Tovstukha não deseja tirar
férias. Está registrada uma solicitação minha de férias imediatas para o
camarada Tovstukha que ele não levou para apreciação”.57 Depois disso, Stalin
admoesta Tovstukha por ter falado com Kamenev sobre as férias que não tirou.
No fim de tudo, o infeliz assistente ainda teve que escrever uma carta a Stalin,
com cópia para Kamenev, declarando que “jamais falei ao camarada Kamenev
ou a qualquer outra pessoa que desejava entrar em férias, e que o camarada
Stalin não deixou”.
Quase a título de piada, Kamenev rascunhou: “Confirmo que o camarada
Tovstukha jamais, em qualquer lugar, a qualquer tempo e de nenhuma forma
falou comigo sobre suas férias, mas disse que poderia desenvolver trabalho
maior sobre Lenin se começasse mais cedo seu expediente no comitê central.
Rogo que não me seja imputada a responsabilidade pela morte de
Tovstukha.”58
B. Bazhanov trabalhou para Stalin pouco tempo. Oriundo de família com
histórico intelectual, logo conquistou o respeito do secretário-geral. A tarefa de
Bazhanov era preparar a ata das reuniões do Politburo, mas tinha dificuldade
em esconder suas próprias opiniões. Conseguiu fugir para a Pérsia em 1928 e
de lá para a Inglaterra. Durante algumas décadas, ganhou a vida publicando
comentários sobre o que sabia, mas quando o material escasseou, inventou
bastante.
Durante muitos anos, Stalin manteve em sua equipe Lev Zakharovich
Mekhlis, que chegou, por breve tempo, a ser o chefe dos assistentes. Mekhlis
nasceu em Odessa, de início foi menchevique, entrou para o partido comunista
em 1918 e conheceu Stalin durante a guerra civil. Desempenhou importantes
funções no aparato e no Pravda, foi comissário do povo para Controle do
Estado e chefe da administração política principal do Exército Vermelho. Se
bem que não fosse de todo destituído de capacidade, seu modo de pensar se
assemelhava, decididamente, ao de um policial, e, com regularidade, era um
dos que mantinham Stalin “fielmente informado” sobre os outros líderes do
partido. Não se pode dizer que fosse homem de ideias. Certa vez pediu o
autógrafo de Stalin em Sobre Lenin e leninismo, que acabara de ser publicado.
O secretário-geral escreveu: “Ao meu jovem companheiro de trabalho,
camarada Mekhlis, do Autor. 23.05.24.” Mekhlis jamais abriu o livro: as
páginas ressecadas e amareladas permaneceram intocadas.
A influência de Mekhlis deve ser medida não pelos cargos que ocupou, mas
pela atitude de Stalin em relação a ele. O assistente o acompanhava com
frequência, e os dois passavam juntos longos períodos. Stalin atribuiu-lhe
missões altamente confidenciais. Os arquivos contêm um volume inteiro de
relatórios pessoais de Mekhlis sobre diversos locais. Centenas de comentários,
telegramas e mensagens em código tratam de um único assunto: “o inimigo
está tentando tomar o poder”, “falta de cuidado por todo o lado”, “a
benevolência está matando a causa”, “precisamos de métodos mais rigorosos”.
Talvez Stalin tenha confiado mais em Mekhlis que nos outros. O assistente
sabia farejar “inimigos” em todos os cantos, por mais absurdos que pudessem
parecer. Em julho de 1937, quando o conjunto Bandeira Vermelha de canto e
dança excursionava pelo leste, Mekhlis passou um telegrama em código para
Stalin:

Informo: a situação do conjunto Bandeira Vermelha é difícil. Concluí que um grupo de espiões e
terroristas tenta tomar o controle. Demiti no ato 19 pessoas. Fazendo uma investigação sobre ex-
oficiais, filhos de kulaks, elementos antissoviéticos. Convoquei o chefe da agência especial. Deve o
conjunto continuar se apresentando?59

Boa pergunta, pois metade do conjunto já estava presa. Esse era o homem que
agia à sombra de Stalin, desempenhando papel especial e sinistro.
No entanto, o assistente que desfrutou da maior confiança e,
provavelmente, o colaborador mais próximo de Stalin foi A.N. Poskrebyshev,
que Khruschev chamou no XX Congresso de “fiel escudeiro de Stalin”. Ex-
assistente hospitalar e filho de um sapateiro de Vyatka, trabalhou no aparato do
comitê central por volta de 1922 e, a partir de 1928, passou a ser assistente de
Stalin, encarregado de uma seção especial. Já membro do comitê central e vice
no Soviete Supremo, foi feito major-general por Stalin durante a guerra.
Poskrebyshev era conhecido por sua assiduidade e extraordinária capacidade de
trabalho. Sua filha mais velha, Galina Alexandrovna Yegorova, disse-me que seu
pai trabalhava dezesseis horas por dia. Embora, pouco antes da morte de Stalin,
Beria tivesse conseguido afastar Poskrebyshev do Kremlin, até o fim de sua vida
ele permaneceu devotado servo do patrão. A propósito, sua primeira esposa era
parente distante de Trotsky, fato que, no fim, teve trágica influência.
Sua filha disse-me também que ele se arrependeu amargamente de não ter
feito um diário, mas calculou que uma tal indiscrição iria adicionar risco
desnecessário à sua já insegura existência.
Todas as informações que Stalin recebia, fosse qual fosse o caráter, vinham
de Poskrebyshev, que sabia tanto quanto o mestre o que acontecia no partido e
no país todo. Foi o funcionário perfeito: não raciocinava, não questionava e
estava sempre presente no trabalho. Sua tarefa nos corredores do poder era, no
entanto, bem mais significativa do que indica sua posição oficial, graças à
distinção que Stalin lhe conferia. Conquanto Poskrebyshev não fosse um
homem cruel, as pessoas procuravam agradá-lo, já que muito dependia de
como e quando ele apresentasse o assunto delas.
O antigo comissário do povo para as Ferrovias, I.V. Kovalev, que ao longo
de toda a guerra informava duas a três vezes por dia a Stalin sobre o
movimento de tropas, chamava Poskrebyshev de “castanha dura de quebrar”,
sempre à disposição das convocações de Stalin, a cabeça calva inclinada sobre
um montão de papéis. “Tinha memória de computador, a resposta exata para
qualquer pergunta. Era uma enciclopédia ambulante.”
Havia gente que Stalin classificava como de sua equipe, mas também
outras, como Malenkov, Kaganovich e Voroshilov, que se distinguiam por
concordar sempre com Stalin sobre qualquer assunto.
Voroshilov, por exemplo, tentou em tudo o que fez, por trivial que fosse,
apoiar o líder. Quando o destacado chefe militar I.E. Yakir, preso e condenado
à morte, escreveu a Stalin jurando ser absolutamente inocente dos crimes a ele
imputados, a resposta do secretário-geral foi um lacônico rabisco na pasta: “Ele
é um patife e pessoa venal”, ao que Voroshilov acrescentou: “Definição
totalmente acurada.”60 Yakir, um dos mais talentosos líderes do exército, era
subordinado de Voroshilov, que, pessoalmente, o conhecia muito bem.
Enquanto Molotov, Kaganovich e Voroshilov eram pessoas próximas a
Stalin que faziam quaisquer de suas vontades, outros havia igualmente
próximos que conseguiram preservar um bom nome. Um deles foi Sergei
Mironovich Kirov, bolchevique com histórico leninista totalmente dedicado à
causa, o tipo de homem simples e de respostas prontas. Onde trabalhava, era
apreciado como líder acessível e afável. Quando Stalin o enviou ao Azerbaijão,
seu dossiê do partido registrou: “Estável em todos os aspectos [...] Trabalhador
vigoroso [...] Mais que persistente no cumprimento de suas atribuições.
Equilibrado e com grande tato político [...] Excelente jornalista [...] Orador
magnífico, de primeira classe...”61
O partido na Transcaucásia guardou boas lembranças dele. Em seguida ao
XIV Congresso, em que a “nova oposição” tentou usar a organização partidária
de Leningrado como base de apoio, o comitê central enviou Kirov à segunda
capital para servir como secretário da cidade e dos comitês regionais. Segundo
seu biógrafo Yu. Pompeyev, um dos amigos mais íntimos de Kirov, Sergo
Ordzhonikidze, escreveu o seguinte ao comitê regional:

Caros amigos. A rixa de vocês nos custou muito: ela nos tirou o convívio com o camarada Kirov.
Grande perda para nós, mas que lhes dará a força de que vocês precisam. Tenho certeza de que tudo
será resolvido para vocês dentro de poucos meses. Kirov é um camponês excepcionalmente bom, mas
não conhece ninguém além de vocês. Não tenho dúvidas de que o cercarão com amigável confiança.
Almejo-lhes completo sucesso.
P.S. Favor cuidar bem de Kirych,* pessoal, senão ele ficará perambulando sem teto e sem o que
comer.62

Stalin conhecia Kirov desde outubro de 1917. É difícil saber o que o atraiu
naquele homem de sorriso constante, saudavelmente vigoroso. Normalmente,
passavam juntos as férias, suas famílias se davam, embora, de modo geral,
trabalhassem a considerável distância um do outro. Numa nota para
Ordzhonikidze, escrita em Sochi, Stalin perguntou sobre o estado de saúde de
Kirov, uma raridade de fato, já que Stalin não se interessava pela saúde de
ninguém, só pela própria:

Caro Sergo
Então, o que está Kirov fazendo por aí? Tomando a água medicinal Narzan para a úlcera? Essa
beberagem pode acabar com vocês. Qual foi o impostor que “receitou” isso?
Saudações à Zina
Cumprimentos a todos da Nadya. Do amigo Stalin
Sochi, 30 de junho de 1925.63

Provavelmente, não existia outra figura a quem Stalin dedicasse tanta atenção,
afeição mesmo, como Kirov. Gostava daquela pessoa aberta e descomplicada.
Sempre que Kirov aparecia em algum lugar logo muita gente o rodeava. Ele era
a vida e a alma do partido. Comparado com o inescrutável Molotov, o
carrancudo Kaganovich, ou com o bajulador Voroshilov, Kirov era alguém com
quem era possível manter uma relação autenticamente humana.
Stalin deu exemplares de seus livros com dedicatórias a muito poucas
pessoas. Kirov, no entanto, recebeu um exemplar do Sobre Lenin e o leninismo
com uma mensagem que ninguém poderia supor que o secretário-geral fosse
capaz de expressar: “Para S.M. Kirov, meu amigo e amado irmão, do autor.
23.05.24. Stalin”
Todo ditador tem suas fraquezas. Talvez Stalin gostasse do sorriso de Kirov,
de sua face russa jovial, de sua falta de malícia, sua obsessão pelo trabalho.
Certa vez, num domingo, quando jogavam boliche na dacha de Stalin – o
secretário-geral tinha um ajudante de cozinha chamado Khorvosky como
parceiro, e Kirov jogava com o general Vlasik –, Stalin perguntou ao seu
convidado: “Do que você mais gosta, Sergei?”
Kirov pareceu surpreso, mas respondeu: “Um bolchevique deve gostar mais
do trabalho que de sua esposa!”
“Mas o que mais?”
“Bem, ideias, claro”, disse Kirov falando sério.
Stalin balançou o braço num gesto vago, mas não perguntou mais nada.
Provavelmente, conjeturando como se podia “gostar de uma ideia”. Será
possível que Kirov tivesse dito aquilo só para impressionar? Contudo, Stalin
sabia muito bem que Kirov não era homem de dissimulações. Sabia também
que Kirov, mais do que ninguém, podia exercer influência, até sobre ele. O
caso Ryutin fora um bom exemplo. Em 1918, M.N. Ryutin comandara o
distrito militar de Irkutsk, em 1920, fora secretário distrital do partido em
Irkutsk, e na segunda metade da década de 1920, secretário do comitê
partidário do distrito de Krasnaya Presnya, em Moscou, membro do conselho
editorial do Krasnaya Zvezda (“Estrela Vermelha”) e um dos candidatos a
membro do comitê central. Depois, foi afastado das funções. Em 1932,
disseram a Stalin que Ryutin estava fazendo circular um longo documento
intitulado “A todos os membros [do partido]”, cujo alvo era primordialmente
Stalin, descrito como nada menos que um ditador, com uma arma antileninista
na mão. Stalin não só demandou ao Politburo a expulsão do partido de Ryutin
como também a pena de morte. Foi a primeira vez que tentou decidir o destino
de alguém antes do resultado de um julgamento. O Politburo ficara em
silêncio. Diante dos membros parecia estar uma tentativa de Ryutin de criar
uma “organização contrarrevolucionária”, mas pena de morte... A liderança do
partido ficou confusa. Naquele ponto, Kirov se agigantou: “Não devemos fazer
isso. Ryutin não é um caso sem esperança, simplesmente saiu dos trilhos. [...]
Quem sabe quantas mãos teriam escrito aquela carta. [...] Seremos mal
entendidos...” Por alguma razão, Stalin concordou imediatamente. Ryutin
pegou dez anos e faleceu em 1938. Todavia, Stalin não deixou de notar que
Kirov expressara sua opinião corajosamente, sem mesmo cogitar se deveria
consultá-lo primeiro.
Quando P.P. Postyshev, presidindo o XVII Congresso, anunciou: “Com a
palavra o camarada Kirov”, o salão explodiu numa ovação. Todos se
levantaram, até Stalin. A assembleia aplaudiu aquele outro “favorito do
partido” por longo tempo. Só Stalin tinha sido festejado assim. O discurso de
Kirov foi extremamente vivaz e informativo e, como todos os outros no
congresso, generosamente salpicado de louvores ao secretário-geral. Neste
particular, Kirov até sobrepujou muitos dos tribunos. Lamentavelmente – e
isso deve ser entendido – embora sempre exista a oportunidade para que se
exercite a consciência, por vezes, ou quase sempre, só se pode fazê-lo ferindo as
normas do comportamento comum. E quase sempre no limite de um ato
cívico. Nem Kirov nem ninguém estava preparado para esse ato no congresso
onde, aos olhos dos delegados e com a ajuda deles, o culto à personalidade de
Stalin era uma realidade.
Não obstante, como vimos, na relativa privacidade do voto secreto, as
eleições para os cargos mais elevados do partido deram uma desagradável
surpresa a Stalin. Seu triunfo foi bastante ofuscado, mas ele não deu mostras de
desapontamento; tinha a capacidade de manter uma máscara de equanimidade
nas situações mais críticas, pois aprendera havia muito tempo que isso causava
maior impressão no povo do que o alvoroço, a energia ostensiva e a imponente
pose de “líder”. Tendo feito a leitura de que um significativo número de
delegados não estava satisfeito por ele ter se tornado um líder autocrático,
manteve uma calma exterior. Depois daquele momento, tudo correu segundo o
planejado. No pleno do comitê central que teve lugar depois do congresso,
Kirov foi eleito membro do Politburo e do Orgburo, e secretário do comitê
central, permanecendo como secretário da organização do partido em
Leningrado. Stalin pensava em transferi-lo de Leningrado para Moscou, mas
mudou de ideia.
A partir do XVII Congresso, em janeiro de 1934, a carga de trabalho de
Kirov aumentou. Sua responsabilidade como membro do comitê central era
com a indústria pesada e a madeireira, e, dessa forma, foram muitas as
oportunidades para que fosse a Moscou. Como antes, Stalin telefonava para ele
nas ocasiões de suas meteóricas visitas e os dois se encontravam para debater as
questões do momento. Tudo parecia ter voltado à situação anterior e indicava
que Kirov ainda era “amigo e amado irmão”. Podia ser que a atitude de Stalin
tivesse esfriado, que a relação dos dois assumisse caráter mais oficial, e que o
secretário-geral chegasse a repreender Kirov diversas vezes por algum engano
trivial ou outro, mas nem a documentação disponível nem as pessoas que
entrevistei, e que bem conheciam os dois, confirmaram tal versão. Por outro
lado, Stalin era mestre em disfarçar seus sentimentos e intenções.
A notícia de que Kirov fora assassinado no Instituto Smolny de Leningrado,
em 1º de dezembro de 1934, causou grande surpresa. Em 3 de dezembro, o
relatório de uma investigação preliminar apontou Leonid Vasilyevich Nikolaev,
nascido em 1904 e ex-empregado da Inspetoria de Operários e Camponeses de
Leningrado, como o assassino.64
Eram decorridos apenas dois dias desde que Kirov e outros delegados de
Leningrado tinham retornado do pleno, onde fora feito o anúncio importante
e bem-vindo de que o racionamento de pão e de outros alimentos ia terminar.
Na viagem de trem, foi animadamente debatida a medida de há muito
esperada. Toda a população ficaria aliviada com a notícia! Houve troca de
opiniões também sobre a peça Dias dos Turbins, de Bulgakov, a que tinham
assistido, e debates sobre o próximo encontro do grupo partidário de
Leningrado, marcado para 1º de dezembro. De um modo geral, Kirov chegou
em casa entusiasmado e pronto para retomar o trabalho.
No dia da reunião com o grupo do partido, Kirov terminou seu relatório e
se dirigiu ao Smolny. Passou pelo corredor, trocando comentários e
cumprimentos com diversas pessoas, virou à esquerda e entrou numa estreita
passagem que levava ao seu escritório. Um homem de aparência comum
caminhou na sua direção. Quando Kirov chegou à porta do escritório, dois
tiros foram ouvidos. As pessoas acorreram e o encontraram estirado no chão de
bruços; o assassino tremia histericamente ainda com a arma na mão.
Duas horas mais tarde, Stalin, Molotov, Voroshilov, Yezhov, Yagoda,
Zhdanov, Agranov, Zakovsky e alguns outros estavam a caminho de
Leningrado em trem especial. Ao chegarem na estação, Stalin ofendeu com
palavras de baixo calão o pessoal da NKVD local que fora recebê-lo e chegou a
dar uma bofetada em Medved, o chefe da agência. Medved e seu assistente,
Zaporozhets, foram em seguida transferidos para o Extremo Oriente e, em
1937, executados. De acordo com alguns relatos, o próprio Stalin conduziu o
primeiro interrogatório de Nikolaev na presença daqueles que o tinham
acompanhado de Moscou. De imediato, ficou claro que havia muitos aspectos
misteriosos no crime. Khruschev aludiu a isso no XX Congresso, quando
descreveu as circunstâncias da morte de Kirov como enigmáticas e que ainda
precisavam ser adequadamente examinadas. Disse haver motivo para pensar
que o assassino, Nikolaev, tivera ajuda de um dos seguranças de Kirov. Um mês
e meio antes do assassinato, Nikolaev fora preso por comportamento suspeito,
mas logo libertado sem mesmo ter seu apartamento revistado. Também foi
altamente suspeito, continuou Khruschev, o fato de, em 2 de dezembro, um
chekista, guarda-costas de Kirov, ter morrido num acidente de carro quando
era conduzido para interrogatório, acidente em que nenhum dos outros
passageiros sofreu qualquer ferimento. Depois do assassinato, os chefes da
NKVD de Leningrado foram sentenciados a penas leves e, depois, fuzilados em
1937. Khruschev conjeturou que os chefes foram mortos para encobrir
qualquer pista que pudesse levar aos verdadeiros cabeças do atentado. Borisov,
o chekista que morreu no acidente, era o chefe dos seguranças de Kirov e,
segundo algumas fontes, alertara Kirov sobre a possibilidade de uma tentativa
de assassinato. Fosse como fosse, o homem que prendera Nikolaev duas vezes
por seguir Kirov portando uma arma, e que depois foi solto por ordem de
alguma autoridade, não mais existia.
Os arquivos que pesquisei não fornecem outras indicações para que se possa
ser conclusivo a respeito do caso Kirov. O que fica patente, no entanto, é que o
assassinato não foi executado por ordens de Trotsky, Zinoviev ou Kamenev,
como foi logo a seguir publicado na versão oficial. Pelo que sabemos de Stalin,
por certo houve um toque seu no evento. A remoção de duas ou três camadas
de testemunhas indiretas leva sua marca registrada.
O julgamento de Nikolaev foi extremamente rápido. Apenas 27 dias após a
ocorrência, foi publicada a sentença oficial, descrevendo Nikolaev como
membro ativo de uma organização trotskysta-zinovievista clandestina. A
declaração foi assinada pelo vice-procurador da URSS, A.Ya. Vyshinsky, e pelo
investigador especial L. P. Sheinin. Como era de se esperar, todos os envolvidos
no atentado, inclusive Nikolaev, foram fuzilados.
Mas, por que “como era de se esperar”? Porque no próprio dia do
assassinato, por iniciativa de Stalin (e sem ser discutido pelo Politburo), foi
editado um decreto governamental introduzindo certas emendas no Código
Penal. Stalin estava com tanta pressa que não houve “tempo suficiente” até para
que o decreto fosse assinado por Kalinin, presidente do Comitê Executivo
Central – ou seja, o chefe de governo. O documento, incorporando o credo do
mando arbitrário, foi assinado pelo secretário do comitê executivo A.S.
Yenukidze e estabeleceu que:

1. As autoridades investigadoras são instruídas a acelerar os casos daqueles acusados do planejamento


ou da execução de atos terroristas.
2. Os órgãos do judiciário são instruídos a não retardar as sentenças dos envolvidos em crimes desta
categoria com a suposição de uma possível clemência, já que o Presidium do Comitê Executivo
Central considera inaceitável a clemência em tais casos.
3. As agências do Comissariado das Questões Internas são instruídas a executar as penas de morte dos
criminosos da categoria acima com a brevidade possível, após pronunciada a sentença.65

Diversos casos que estavam sendo revistos em Moscou e em outras regiões


foram acelerados sob a nova regulamentação. Como Kirov foi assassinado em
Leningrado e a investigação vinculou o crime aos zinovievitas, uma grande
quantidade de “conspiradores” foi presa no final daquele mês e levada a
julgamento em janeiro de 1935. Entre eles estavam Zinoviev e Kamenev,
Yevdokimov, Bakaev, Kuklin, Gessen e outros. Nenhuma prova foi conseguida
que ligasse os acusados ao crime. Depois do XVII Congresso, Zinoviev, a
despeito de não ter sido reeleito para o comitê central, reviveu de alguma forma
e pensou que a tempestade havia passado e que dias melhores viriam. Chegou a
escrever e publicar um artigo no Bolshevik intitulado “O significado
internacional da última década”. Seria seu último. Quando menos esperava, foi
preso. Depois que leu nos jornais o relatório sobre o assassinato, juntamente
com os comentários sobre os “canalhas trotskystas-zinovievistas”, sofreu total
colapso interno. Soube então que o pior o esperava. Interrogado pela NKVD e
de novo nas mãos do procurador, teve que “confessar” que, “de uma forma
geral”, o antigo grupo antipartido podia ter alguma “responsabilidade política”
pelo que havia ocorrido. E isso foi suficiente. Não houve necessidade de
argumentação ulterior ou de “provas judiciais”. Estava acabado o primeiro
ensaio dos julgamentos políticos. Zinoviev recebeu dez anos, Kamenev, cinco, e
o restante foi condenado a sentenças semelhantes, todas com aprovação
antecipada de Stalin. Desta maneira, continuou o drama dos dois antigos
camaradas de Lenin. Presunçosos, inconsistentes, provavelmente insinceros no
arrependimento, perturbados, tudo isso eles podiam ser, mas certamente não
eram criminosos.
O assassinato de Kirov sinalizou a aproximação de uma era sinistra. O povo
acreditou que ex-revolucionários estavam envolvidos com atividades terroristas
e subversivas, que, aparentemente, havia destruidores, ladrões e generalizados
inimigos de classe na sociedade. Como não existia informação objetiva nem o
menor grau de abertura, as condições eram favoráveis à manipulação da mente
de milhões de pessoas. Em milhares de reuniões, exigiram-se providências mais
decisivas contra os terroristas. Nos anos 1930, o povo ainda não perdera a fé na
grande ideia e era, portanto, possível mobilizá-lo com um slogan, ou inflamá-lo
com uma visão. Contudo, também era possível fazê-lo acreditar em “espiões,
inimigos, diversionistas e terroristas”. A imprensa concorria constantemente
para aumentar a tensão “revelando” e relatando sobre novo “centro inimigo”,
“conspiratório” ou “tergrup” (grupo terrorista), um atrás do outro.
O 1º de dezembro de 1934 aumentou consideravelmente, como Stalin iria
dizer, a “importância” do pessoal punitivo da NKVD, que começou a crescer
em efetivo. Como órgãos estatais, eles logo se rivalizariam com os comitês do
partido e, no final, os eclipsariam totalmente. O tópico mais popular dos
jornais seria a “necessidade de redobrar a atenção”, enquanto a propaganda pela
imprensa lançaria as sementes da suspeita em todas as cabeças. Muitos líderes
passariam a ser seguidos por agentes da NKVD. Stalin que, como já
mencionamos, demonstrava extrema ansiedade quanto à possibilidade de um
atentado contra sua vida, redobrou a segurança pessoal e reduziu a um mínimo
suas aparições públicas. As pessoas comuns ficaram com a impressão de que
havia inimigos disfarçados em cada fábrica, kolkhoz e instituto universitário.
Qualquer falha, desastre, interrupção ou acidente passou a ser associado à
sabotagem. Criou-se uma atmosfera na qual Stalin pôde empreender seu
expurgo sangrento contando com o apoio das massas desinformadas.
Mesmo antes da morte de Kirov, Stalin providenciara pessoalmente a
nomeação de diversos indivíduos que iriam desempenhar papel de relevo na
luta contra os “inimigos do povo”, personagens cruciais na ilegalidade dos anos
que se aproximavam. Os dois mais destacados seriam: N.I. Yezhov, membro do
Orgburo e, desde o início de 1935, secretário do comitê central, um dos
organizadores do expurgo de 1935-36; e A.Ya. Vyshinsky, um ex-menchevique
que se tornou vice-procurador e, depois, procurador da URSS, a cujo nome
ficaram ligados os infames e vergonhosos julgamentos políticos de 1937-38.
Ordens, circulares e a imprensa clamavam pela erradicação e o
desmascaramento dos “inimigos”. Que não eram poucos, como ficou depois
demonstrado. Numerosos relatórios sobre a descoberta e o desvendamento de
“inimigos” inundaram o centro do poder. Por exemplo:

Ao camarada I.V. Stalin, Comitê Central VKP(b)


Ao camarada V.M. Molotov, Conselho do Comissariado do Povo
A Câmara de Segurança Estatal da Administração do Comissariado do Povo das Questões Internas
completou sua investigação do caso de um grupo terrorista contrarrevolucionário que preparava a
execução de um ato terrorista contra o camarada Vladimir Ivanov, membro do Comitê Central,
secretário do Comitê Regional Norte e membro do Comitê Executivo Central.
São acusadas as seguintes sete pessoas: N.G. Rakitin, P.V. Zaostrovsky, P.N. Popov, G.N. Levinov, N.I.
Ivlev, A.V. Zaostrovsky, N.A. Koposov. Destas, apenas P.N. Popov admitiu culpa completa.
Propomos que o caso Rakitin seja apreciado na sessão itinerante do collegium militar da Suprema
Corte da URSS, em Archangel, de acordo com o Ato de 1º de dezembro de 1934.
Achamos que os principais acusados Rakitin, P.V. Zaostrovsky e Levinov devem ser sentenciados ao
fuzilamento e que o restante tenha a liberdade privada por diversificados períodos. Solicitamos
instruções.
23 de janeiro de 1935
A. Vyshinsky V. Ulrikh

Ao secretário do Comitê Central I.V. Stalin


L.I. Belozir foi sentenciada à morte. Como membro de uma organização clandestina
contrarrevolucionária de nacionalistas ucranianos, ela recrutou Shcherbin e Tereshchenko que
deveriam executar um ato terrorista contra os camaradas Postyshev e Balitsky durante as celebrações
de outubro de 1934 em Kiev.
Sob interrogatório, Belozir recusou-se obstinadamente a prestar qualquer informação e também
declarou que não solicitaria clemência. Em vista disso, solicito permissão para executar a sentença de
Belozir.
Os camaradas Vyshinsky e V. A. Balitsky consideram permissível que se execute a sentença.
3 de fevereiro de 1935 V. Ulrikh
Ao secretário do Comitê Central I.V. Stalin
Em 9 de março deste ano, na cidade de Leningrado, a sessão itinerante do collegium da Corte Suprema
da URSS, sob minha presidência, examinou a portas fechadas o caso dos cúmplices de Leonid
Nikolaev, Milda Draule, Olga Draule e Roman Kuliner.
Em resposta à minha pergunta sobre a razão por que obtivera permissão para comparecer ao encontro
do partido em Leningrado, em 1º de dezembro, onde o camarada Kirov discursaria, Milda Draule
respondeu que “desejava ajudar Leonid Nikolaev”. “Como?” “Isto dependeria das circunstâncias.”
Estabeleceu-se assim que a acusada tencionava ajudar Nikolaev na execução do ato terrorista.
Os três foram sentenciados à pena máxima do fuzilamento. A sentença foi executada na noite de 10 de
março.
Solicito instruções para o envio ou não de uma declaração à imprensa.
11 de março de 1935 V. Ulrikh66
A “justiça” tinha a velocidade do raio: julgamento no dia 9, execução na noite
de 10 e comunicação ao sacerdote supremo no dia 11. O relatório de Ulrikh
mostra quão superficial era todo o processo. Isso iria tornar-se a regra.
Este último “caso” merece que nos estendamos um pouco. Cerca de um ano
antes do evento, correu um boato de que a ex-mulher de Nikolaev, Milda
Draule, estava tendo um caso amoroso com Kirov. Gente que conheceu Kirov
nega isso vigorosamente. Provavelmente, alguém desejava inflamar o neurótico
Nikolaev contra Kirov. Quando Ya. Agranov e L. Sheinin deram início às
investigações, Nikolaev primeiro declarou que o motivo do assassinato fora
vingança, mas depois admitiu que agira para o grupo clandestino trotskysta-
zinovievista. Aparentemente, o nome de Draule fora utilizado pelos
planejadores do crime para tornar Nikolaev “mais determinado”. De qualquer
forma, tanto Milda como Olga Draule representavam um risco, e foi decidido
que deveriam ser eliminadas, o que foi convenientemente feito.
Stalin manteve a pressão. Em meados de 1935, foi publicada, com
intenções óbvias, sua entrevista com H.G. Wells, realizada um ano antes. Nela,
Stalin asseverou que o ponto principal da ditadura do proletariado era a
repressão.
À pergunta de Wells – “Sua propaganda não está fora de moda, sendo como
é a propaganda dos métodos coercitivos?” –, Stalin replicou:

Os comunistas não idealizam em absoluto o emprego da coação. Mas não podem ser apanhados de
surpresa, não podem contar que o mundo antigo deixe a cena por vontade própria, podem sim vê-lo a
defender-se pela força e, portanto, os comunistas dizem aos operários: “Preparem-se para responder à
força com a força...” Que bem faz um chefe militar que distrai o aprestamento de seu exército, um
chefe militar que não entende que o inimigo não se renderá e, pois, tem que ser liquidado?67

Como ele gostava do verbo “liquidar”. Em inúmeros discursos, pleiteou que a


oposição, ou os remanescentes das classes exploradoras, ou os kulaks, os
degenerados, os agentes duplos, os espiões e terroristas fossem liquidados. E
liquidados foram, bem como os inimigos potenciais. Enquanto as resoluções
do XIII Congresso, expressando a vontade dos que eram familiarizados com a
Carta de Lenin, e enquanto os alertas de Lenin sobre sua pessoa estivessem
vivos na mente de Stalin, sua atitude com os oposicionistas seria idêntica à que
assumia contra inimigos ideológicos. Todavia, como vimos, os congressos do
partido continuaram demonstrando certo grau de independência. Os que se
retratavam eram normalmente readmitidos com relativa rapidez, recebiam
atribuições responsáveis e recomeçavam a publicar seus artigos. Por exemplo,
Zinoviev e Kamenev, reintegrados ao partido em junho de 1928, expressaram
abertamente a esperança de que “o partido requisitasse de novo sua
experiência”, sem dúvida pensando em altos cargos. Bukharin, Rykov e Tomsky
ainda eram alcunhados pela imprensa de “cúmplices dos kulaks”, mesmo assim
foram eleitos para o comitê central pelo XVI Congresso. Tal tolerância não era
só meritória, representava também um resquício de democracia partidária.
Stalin achava extremamente irritantes aquelas intermináveis “oscilações” de
certas pessoas a esse respeito. Para ele, ditadura e democracia eram
incompatíveis.
Logo ele se decidiria por manter a sociedade num estado de permanente
“guerra civil”. Era mais fácil manipular e governar um povo em constante
alerta, sempre observando o próximo. E, com a ajuda de seu entourage,
manteria a sociedade nesse estado de tensão política até o fim de sua vida.
O assassinato de Kirov proporcionou um pretexto excelente para
intensificar o curso que a política doméstica ia tomando. Stalin não podia
esquecer que um quarto dos delegados presentes ao XVII Congresso votara
contra ele. Quantos mais da mesma espécie existiriam no país todo? Poucos
naquela ocasião poderiam supor que, dos 1.225 delegados daquele congresso,
1.108 logo seriam presos, e que a maioria pereceria nas celas e campos de
prisioneiros da NKVD. Dos 139 candidatos a membro do Comitê Central
eleitos no congresso, 98 seriam presos e fuzilados. E grande parte deles era
constituída dos mais ativos participantes da Revolução de Outubro, bem como
da reconstrução do país depois de seu colapso e do grande salto da foice para o
estado industrial moderno. A “velha guarda” leninista foi conscientemente
liquidada porque sabia demais. Stalin queria executivos devotados, funcionários
de uma geração mais nova, pessoas que não conhecessem sua vida pregressa.
Por isso, em meados de 1935, ele aboliu a Sociedade dos Antigos
Bolcheviques e a Sociedade dos Ex-Presos Políticos. Os arquivos dessas
associações ficaram sob responsabilidade de uma comissão constituída por
Yezhov, Shkiryatov e Malenkov. Tais arquivos poderiam muito bem ter servido,
no pesadelo do final dos anos 1930, para dar suporte às acusações contra
muitos Velhos Bolcheviques de “crimes” cometidos quarenta anos antes.
Esse período assinalou também o começo da ascensão de L.P. Beria,
primeiro secretário do Comitê Central do Partido Comunista da Geórgia. Lá
pelo meio de 1935, o Comitê Central do partido para Toda a Rússia publicou
uma “obra” de Beria intitulada “Sobre a questão da história das organizações
bolcheviques na Transcaucásia”. Impresso em bom papel e desfrutando de capa
dura, uma raridade naqueles dias, metade do livro consistia de citações de
Stalin e de ilimitadas exaltações ao “líder”. Porém, mais significativo, ele
continha uma denúncia política ostensiva contra dois proeminentes
bolcheviques, Yenukidze e Orakhelashvili. A despeito do fato de o primeiro
deles ser amigo pessoal de longa data de Stalin e membro do Comitê Central e
do Comitê Executivo Central, o destino de ambos foi selado. Stalin sempre
acreditou em denúncias, e Beria assimilou rapidamente tal característica. Na
verdade, Orakhelashvili tentou protestar escrevendo para Stalin e anexando a
minuta de uma réplica para publicação no Pravda. A resposta de Stalin pode
ser considerada uma rejeição da declaração do Velho Bolchevique:

Ao camarada Orakhelashvili,
Recebi sua carta.
1. O comitê central não pretende (e não tem razão para isso) levantar essa questão de seu trabalho no
IMEL [o Instituto Marx-Engels-Lenin]. Você ficou superexaltado e decidiu levantá-la. Pura perda de
tempo. Fique no Instituto e continue fazendo seu trabalho.
2. Uma carta ao Pravda poderia ser publicada, mas não acho satisfatório o texto de sua carta. Em seu
lugar, eu retiraria dela toda a sua “beleza polêmica” e todas as “excursões” à história, e mais os
“protestos decisivos”, e diria simples e brevemente que tais e tais enganos foram cometidos, mas que as
críticas do camarada Beria a tais enganos foram, digamos assim, demasiado duras e não se justificam
pela natureza dos enganos. Ou alguma coisa nesta linha. 08 VIII 35 I. Stalin68

O país e o partido postavam-se no limiar de eventos terríveis. O homem que


santificara apenas os aspectos repressivos da ditadura do proletariado tornara-se
um ditador. Encômios tais como “amado chefe”, “líder militar genial”, “sábio
arquiteto” não podiam esconder o fato de que ele era um ditador bem pintado.
As pessoas não o viam assim à época e passariam décadas para que entendessem
desta forma. No meio-tempo, 1934 findou com um trágico presságio.
Primeiro, o “Congresso dos Vitoriosos”, depois, a preparação para o Terror.
Teria talvez, desafiando o calendário histórico, 1937 começado em 1º de
dezembro de 1934?
Nota

* Contração de Kirov e Mironych, sobrenome e patronímico abreviados.


Parte V
O manto do líder

Sejam os falsos deuses repudiados, mas não só!


Procure-se sob as máscaras a razão de existirem.
Alexander Herzen
[22]
Personalidade dominante

E nquanto crescia o culto a Stalin no período que se seguiu ao XVII


Congresso, o secretário-geral tomou medidas para reduzir
drasticamente a característica coletiva da tomada de decisões. Ele não
necessitava mais da opinião dos outros. Entre 1934 e sua morte em 1953,
houve apenas dois congressos e uma conferência do partido, e só vinte e duas
reuniões plenas do comitê central. Treze anos se passaram entre o XVIII e o
XIX congressos, e o comitê central não se reuniu uma só vez nos anos de 1942,
1943, 1945, 1946, 1948, 1950 e 1951. Este comitê não era mais o “Areópago
da sabedoria” que fora em 1931, apenas uma chancelaria do partido, um
instrumento conveniente para a execução das decisões de Stalin. De fato, o
partido transformara-se numa máquina obediente para a execução das ordens
da “personalidade dominante”. E dizer que, em 1925, enquanto preparava o
XIV Congresso e editava as minutas dos estatutos do partido, Stalin frisara a
especial importância de convocar anualmente congressos regulares e instara
para que o comitê central tivesse pelo menos uma sessão plenária a cada dois
meses.
O crescimento das tendências burocráticas fortaleceu a noção peculiar que
Stalin tinha sobre unidade partidária. Como vimos, nos anos 1920 a política
do partido sofrera oposição de grupos significativos de comunistas que estavam
longe de ser “inimigos”. Algumas vezes, as discordâncias surgiam de uma
avaliação particular da situação, e noutras, deviam-se a características
individuais. Rememorando tais “oposições” e “agrupamentos”, parece que, na
essência, preocupavam-se com as seguintes questões: como a democracia
deveria ser desenvolvida em termos de política concreta, qual deveria ser a
relação entre o líder e o partido, e qual o papel a ser desempenhado pelas
massas no processo revolucionário? Em muitos casos, os oposicionistas eram
simplesmente contra o autoritarismo e não desejavam aceitar a posição
unilateral sobre uma determinada ideia, ou seja, a psicologia uniforme pela
qual Stalin se batia.
Havia naqueles primeiros dias muita gente que não subscrevia o programa
do partido. Como regra, cogitavam de outros ideais ou programas sociais. No
X Congresso de março de 1921, que teve como pano de fundo o caos
econômico, a ameaça externa e a proliferação de vários grupos de oposição no
partido, Lenin instituiu sua notória resolução que baniu as facções. Depois de
seu relatório, o congresso resolveu que todos os grupos facciosos deveriam ser
desfeitos imediatamente. Enfrentando a crescente inquietação e o
descontentamento da classe operária com as ações do partido, a resolução
deixou claro que a unidade partidária era particularmente necessária naquela
ocasião, e que era essencial a total confiança entre os membros do partido e a
avant-garde amistosa do proletariado.1 Ao mesmo tempo em que tal regra
desempenhava papel importante para a congregação partidária, seu propósito
não era sufocar o pensamento alternativo ou evitar o embate de opiniões. Ela
fora concebida para não deixar que essas diferenças de pontos de vista
resultassem na formação de grupos rivais que ameaçassem a existência do
partido como tal.
Stalin explorou essa resolução com frequência quando atacava os vários
“desvios” e “oposições”, porém, gradualmente, os termos “oposição” e
“oposicionista”, quando usados por ele, adquiriram a conotação de “inimigo”.
Com o passar do tempo, qualquer opinião que divergisse da de Stalin, mesmo
que fosse particular e de uma figura de destaque do partido, seria condenada
como “luta contra o partido”, ou “atividade hostil”. Na perseguição da
unidade, como dogmaticamente entendida pelo secretário-geral, ele matou aos
poucos a salutar troca de opiniões, a livre expressão de ideias por parte dos
comunistas e a crítica que estes podiam fazer aos órgãos partidários do alto
escalão. A igualdade sem pensamento tornou-se norma na vida partidária.
Stalin destruiu sistematicamente o princípio democrático das discussões
internas do partido. Para ele, unidade significava dedicação, obediência sem
questionamentos, presteza para apoiar quaisquer decisões partidas dos órgãos
superiores, e, ao forçar o estabelecimento dessas características, ele próprio
encorajou o hábito do pensamento dogmático no partido enquanto destruía a
iniciativa criativa das massas.
No entanto, o afastamento do cânone “ortodoxo”, por mais insignificante
que fosse, não era condenado apenas em termos dogmáticos. Discursando para
o pleno do comitê central, em janeiro de 1938, Malenkov citou a expulsão do
partido de um certo Kushchev, na organização partidária de Sarachinsk, em
Kalmykia. O seguinte diálogo acontecera durante uma sessão de educação
política:
Pergunta: “Podemos construir o socialismo num só país?”
Kushchev replicou: “O socialismo pode ser construído num só país e nós o
estamos construindo.”
“Mas será que construiremos o comunismo num só país?”
“Sim, construiremos o comunismo num só país.”
“E quanto ao comunismo total?”
“Sim, também o construiremos.”
“E construiremos o comunismo final?”
Kushchev parou para pensar: “Sem uma revolução mundial, o comunismo
final é um pouco mais duvidoso. Mas preciso examinar Questões sobre leninismo
e ver o que o camarada Stalin diz sobre isso.”2

Por expressar dúvida, o infeliz Kushchev foi expelido do partido e perdeu o


emprego. Mas não era o dogmatismo nem a expressão do culto a Stalin que
exigiam uniformidade partidária tão rigorosa, que preocupavam Malenkov: era
a trama dos “inimigos” entrincheirados “em cada fábrica, em cada fazenda
coletiva ou estatal”. Kushchev escorregara levemente e os “inimigos” logo
exploraram a situação expulsando-o do partido. Esta foi a lógica de Malenkov.
Tal interpretação distorcia qualquer entendimento de unidade que
pressupusesse uma síntese da vontade coletiva e a oportunidade de expressar
livremente a opinião que se pudesse ter. Afinal de contas, a resolução do X
Congresso sobre unidade tinha considerado que o partido continuaria a lutar
incessantemente contra todas as formas de burocracia, que tentaria novos
métodos para ampliar a democracia e o empreendimento.3 Agora, qualquer
comunista que ousasse apresentar uma nova proposta ou iniciativa, ou
discordasse em qualquer aspecto da política partidária, corria o risco de ser
insultado ou classificado no conjunto dos “inimigos”. Dos comunistas,
esperava-se que cada vez mais “apoiassem” ou “aprovassem”, e cada vez menos
participassem do debate sobre questões importantes do partido e da vida social.
E, no processo, o “líder” foi se colocando automaticamente acima do partido e
se transformando em “personalidade dominante”.
Por sugestão de Stalin, o XVII Congresso aboliu a Comissão Central de
Controle-CCC que vinha supervisionando o trabalho do comitê central e do
Politburo. Suas atribuições foram transferidas para os órgãos centrais e para o
próprio Stalin.
Aos poucos, as decisões de Stalin passaram a ser aceitas por todos como
decisões do partido. A partir de meados da década de 1930, suas diretrizes
eram registradas como ordens do comitê central ou como instruções gerais. Seu
poder tornou-se praticamente ilimitado. Por exemplo, antes e durante a guerra,
tempo em que o “plantão noturno” virou norma para os líderes do partido,
Stalin convidava com frequência diversos membros e candidatos a membro do
Politburo para jantar em sua dacha de Kuntsevo. Os mais assíduos eram
Molotov, Voroshilov, Kaganovich, Beria e Zhdanov. Convidados menos
regulares àquelas sessões noturnas eram Andreyev, Kalinin, Mikoyan, Shvernik
e Voznesensky. Questões de Estado e do partido, bem como assuntos militares,
eram debatidos por todos, mas Stalin os resumia conclusivamente. Malenkov e,
por vezes, Zhdanov registravam os debates como minutas do Politburo.
Dissensões não ocorriam. Os camaradas tentavam de todas as formas adivinhar
de antemão a opinião de Stalin e dizer “sim” na ocasião oportuna. Jamais
ocorria um desacordo de princípios com Stalin, o qual, de vez em quando,
chegava a se irritar com tamanha submissão. Por exemplo, na véspera do XVIII
Congresso, em 1939, o relatório que Stalin preparava foi apreciado e todos em
torno da mesa foram unânimes em expressar sua aprovação. Stalin, sentado, a
tudo ouvia e, de repente, explodiu: “Ah! Mostrei a vocês uma versão que joguei
fora e todos entoaram aleluias. O discurso que na verdade vou fazer é
completamente diferente!”
Todos pararam de pronto e desceu um silêncio incômodo. Beria recuperou-
se de pronto. “Mas se pode sentir sua mão nesta versão. Então, se você ainda a
reviu é de imaginar quão forte o relatório final vai ficar!”
O Politburo eleito no XVII Congresso consistiu de Andreyev, Voroshilov,
Kaganovich, Kalinin, Kirov, Kosior, Kuibyshev, Molotov, Ordzhonikidze e
Stalin. Ele se reuniu com razoável frequência, embora nem sempre completo. A
maioria das questões era decidida por um pequeno grupo que incluía Stalin,
Molotov, Kaganovich e Voroshilov, mais, a partir de certa data, Zhdanov e
Beria. Na ocasião azada, Stalin criaria vários comitês dentro do Politburo,
chamados “os cinco”, “os sete”, “os nove”. Como Khruschev revelou no XX
Congresso, tal sistema foi institucionalizado por um decreto especial do
Politburo. É evidente que, mesmo nos dias de Lenin, o comitê central criara
comissões especiais para lidar com questões surgidas, em geral, num contexto
político mais ou menos complexo. Não obstante, por mais importantes que
pudessem ser, suas decisões só podiam ser ratificadas em sessão formal do
Politburo ou do comitê central. Sob Stalin, era, é claro, sua opinião que
orientava as pequenas comissões e, em consequência, o partido todo. Ele
gostava de ouvir os outros membros da liderança expondo seus pontos de vista,
e esperava até o fim para dar o seu, que, normalmente, enfeixava o assunto.
Nos numerosos documentos que reviu, Stalin simplesmente rabiscava “De
acordo”, “A favor”, “Talvez” e, por vezes, encaminhava um documento para os
colegas-membros, deste ou daquele órgão, a fim de que emitissem opinião,
embora pouca atenção desse a elas.
Por exemplo, em 1936, Pyatakov escreveu a Stalin solicitando permissão
para o voo experimental do balão estratosférico CO-35-1, “dependendo de
condições meteorológicas favoráveis”. O secretário-geral anotou na carta, como
se pedisse assessoramento: “Ao camarada Voroshilov. Que acha você?”
Voroshilov respondeu: “Acho que a permissão pode ser concedida. 7.4.36.” Um
pouco mais abaixo, aparece um despacho bastante categórico: “Sou contra. I.
Stalin”4
Em tais circunstâncias, o colegiado logo se transformou em aprovação
coletiva automática do que o líder quisesse, ficando então muito bem lançadas
as verdadeiras fundações do absolutismo burocrático.
Examinando o resultado de muitos referendos que circularam pela
liderança, seja por votações nominais ou votos postais sobre diversos assuntos,
não encontrei um só exemplo de alguém que, mesmo indiretamente,
questionasse as propostas gritantemente erradas ou até mesmo criminosas
apresentadas por Stalin. Adiante, detalharei mais este problema. Por ora, repito
que ninguém da liderança do comitê central fez qualquer tentativa para agir
com a consciência quando a oportunidade se apresentou, por mais tardia que
fosse. Ninguém quis fazer objeção a Stalin, nem de forma delicada. Mesmo às
portas do ostracismo, eles concordavam docilmente com a opinião do líder,
embora sabendo que nada mitigaria seu destino. E, ainda assim, o Comitê
Central não era composto inteiramente de submissos concordantes promovidos
por Stalin.
A relação entre o partido e seu líder, acreditava Stalin, deveria consolidar-se
por meio de publicações de massa, acessíveis ao partido e ao povo. Assim eram
o livro didático História do Partido Comunista de Toda a Rússia (bolcheviques), o
curso resumido, publicado em 1938 e, dez anos mais tarde, a Biografia resumida
de I.V. Stalin. No Bolshevik nº 9, de 1937, Stalin publicou uma carta aos
compiladores do tão falado Curso resumido. A principal ênfase do livro,
escreveu ele, deveria ser na luta do partido contra as facções e grupamentos,
contra as tendências antibolcheviques. Evidentemente, a história do partido
consistia de muito mais que a luta contra facções, mas em qualquer livro
didático escrito sobre este princípio, Stalin, inevitavelmente, ocupava o centro
do palco.
Tampouco hesitou em instruir os compiladores a recorrerem às próprias
ideias dele, Stalin. Por exemplo, sugeriu que se referissem à “carta de Engels a
Bernstein de 1882, a qual cito em meu relatório sobre o desvio social-
democrata no partido para o Sétimo Pleno do Comitê Executivo do
Comintern, juntamente com meu comentário sobre ela”. Sem os comentários,
acrescentou ele, “a luta contra as facções e tendências no [partido] parecerá
mera arruaça, e os bolcheviques poderão ser tachados de incorrigíveis e
infatigáveis arruaceiros e criadores de caso”.5 A equipe de autores, agindo sob as
ordens do comitê central, logo terminou o Curso resumido que permaneceu por
longo tempo como principal, senão o único, guia para a educação política do
povo soviético. Lançado com quase 43 milhões de exemplares, o livro saiu
repleto de referências à “genialidade”, à “sabedoria” e à “visão” de Stalin.
A primeira edição declara: “A comissão do comitê central, sob a liderança
do camarada Stalin e com sua ativa participação, planejou o Curso resumido da
história do [partido].” Esta fórmula não agradou a Stalin, e a Biografia resumida
do secretário-geral, cuidadosamente editada por ele e publicada mais tarde,
contém uma variante “melhorada”: “Em 1938, a História do [partido]: curso
resumido apareceu, escrita pelo camarada Stalin e aprovada por uma comissão
do comitê central do [partido].”6
Não o envergonhou nem um pouco o fato de um livro tão laudatório a seu
respeito ter sido escrito por ele mesmo. Isso meramente confirmou a base
ideológica de seu papel absoluto como líder e de seu controle sobre o partido e
o Estado. Tendo se livrado fisicamente de todos os mais renomados camaradas
de Lenin, cuidava agora de apagá-los também da história. Afora Lenin e Stalin,
o Curso resumido não menciona concretamente qualquer outro indivíduo como
criador da revolução e do socialismo. Ele só cita “inimigos”.
O livro se tornou leitura fundamental para os comunistas, estudantes
universitários e todo o amplo sistema estatal de educação política. Consistia
quase integralmente de uma série de “axiomas” de Stalin: houve dois líderes na
revolução, Lenin e Stalin; o principal crédito pela construção do socialismo na
URSS era de Stalin; depois de Lenin, só houve um líder e este foi o “sábio”,
“visionário”, “corajoso”, “decisivo” etc. etc. Stalin. Por intermédio dessa maciça
publicação, a versão stalinista correu toda a população. Estilo simples e
argumentos primitivos tornaram-no acessível a todos como meio auxiliar de
instrução e passou a ocupar posição central no sistema educacional que
emergiu em meados da década de 1930.
Depois da publicação em 1º de outubro de 1938, Stalin convocou uma
reunião dos propagandistas de Moscou e Leningrado e disse-lhes, entre outras
coisas, que “uma das razões para a publicação desse livro é acabar com o fosso
entre o marxismo e o leninismo”. Prosseguiu, sem o menor sinal de embaraço:
“O livro Fundamentos do leninismo de Stalin apresenta a nova e particular
contribuição que Lenin fez ao marxismo. Eu não diria que ele inclui tudo, mas
proporciona todas as contribuições essenciais feitas ao marxismo por Lenin.”7
Ali estava a mais elevada homenagem que podia ser prestada ao livro, e ele o
fazia a uma obra de sua autoria. Àquela altura, já se considerava tanto um líder
singularmente sábio como um grande teórico.
O imperador Tibério, segundo Suetônio, conhecia com antecedência seu
futuro e havia muito tempo antevira o ódio e a ignomínia que esperavam por
ele.8 Stalin não se preocupava com tais pensamentos. Seus documentos contêm
ampla evidência de que ele acreditava estar imortalizado na mente das pessoas.
Depois do XVII Congresso, ao contrário de Tibério, ele tomou providências
para consolidar sua glória por séculos. Seu mando autocrático foi sendo
gradualmente reforçado por uma série de atos e ritos de culto. Por exemplo,
foram instituídos os Estipêndios Stalin e os Prêmios Stalin. A ordem, expedida
em agosto de 1925 pelo governo e com a participação de Stalin, para a
instituição do Prêmio Lenin foi simplesmente esquecida e só reviveu em
setembro de 1956. O hino nacional, para o qual Stalin concorreu
pessoalmente, falou em seu papel no destino da Pátria:

Stalin nos fez leais ao povo,


Ao trabalho e ao feito heroico nos inspira.

S. Mikhalkov e El-Registan, compositores do hino, submeteram a letra a Stalin,


o qual fez emendas que ainda podem ser vistas nos arquivos. No lugar de
“União nobre de povos livres”, Stalin inseriu “União indestrutível de repúblicas
livres”. A segunda parte da letra foi bastante emendada. Foram-lhe
apresentados os seguintes versos:

O sol da liberdade brilhou através da tempestade,


Lenin iluminou-nos o caminho do futuro,
Fomos alçados por Stalin, o eleito do povo,
Ao trabalho e ao feito heroicos nos inspirou.

Depois que o lápis de Stalin trabalhou sobre os versos, o segundo e o terceiro


ficaram assim:

O grande Lenin iluminou nosso caminho,


Stalin nos fez leais ao povo...

Mikhalkov e El-Registan naturalmente concordaram de imediato com as


alterações feitas por Stalin, como também o fizeram Molotov, Voroshilov,
Beria, Malenkov e Shcherbakov, reunidos por Stalin na noite de 28 de outubro
de 1943. Dessa forma, o secretário-geral fez mais que meramente “aprovar” a
letra final. Por exemplo, sem explicar por que não gostou, ele rejeitou toda uma
estrofe:

Viva por século, oh, terra do socialismo,


Faça com que nossa bandeira leve paz ao mundo,
Viva e seja forte gloriosa pátria-mãe,
Nosso grande povo a defenderá.9

O hino não fazia menção ao partido, malgrado a dose requerida de referências


ao seu secretário-geral. A ideia de que Stalin não era somente o líder do
partido, mas de toda a nação, foi sendo gradualmente inculcada na mente do
povo, uma ideia publicamente expressa de forma concentrada, em dezembro de
1939, por um membro do Politburo – Nikita Khruschev:

Todos os povos da União Soviética veem Stalin como seu amigo, seu pai e líder.
Stalin, em sua simplicidade, é o amigo do povo.
Stalin, em seu amor pelo povo, é o pai do povo.
Stalin, em sua sabedoria como líder da luta dos povos, é o líder dos povos.10
Num capítulo intitulado “O líder dos povos”, o menestrel de Stalin,
Yaroslavsky (nome real, Gubelman), escreveu: “Começando nos anos 1890, o
camarada Stalin percorreu o mesmo caminho de Lenin, sempre junto a Lenin e
jamais se desviando daquela rota.”11
Ao lado dos elogios, o autor, talvez inadvertidamente, deixou escapar
algumas verdades. Por exemplo, em diversas passagens Yaroslavsky realça “a
inclemência de Stalin com os inimigos”.
Ao ler aquelas efusões, Stalin sentiu cada vez mais que ainda tinha algo a
percorrer antes de chegar ao pináculo de sua ascensão. Nenhum czar foi alvo de
tantos louvores. No fim, ele passou a crer em seu papel terrestre messiânico,
como todo-poderoso infalível que tudo via. Quanto mais seu triunfo como
líder era celebrado com cerimônias, mais profundas se tornavam as raízes da
tragédia nacional no solo social.
Deve-se frisar que esses rituais de culto, além do suporte que davam a Stalin
como governante absoluto, também desempenhavam uma função
estabilizadora e unificadora, ainda que baseada no dogma. Na ausência da
democracia socialista, a instilação da fé no líder e de sua infalibilidade e
sabedoria cedo produziu resultados. A despeito da horrível repressão dos anos
1930, do totalitarismo estatal e da ditadura, os alicerces da sociedade soviética
permaneceram firmes.
[23]
O intelecto de Stalin

A descrição que Trotsky faz de Stalin de “uma destacada mediocridade”


foi amplamente aceita como exata, mas seria realmente plausível?
Poderia alguém com tão pequena capacidade mental ter sido membro
dos mais altos órgãos do partido desde 1912, ou merecer a descrição de Lenin
como um dos “destacados líderes”, ou sair do emaranhado complexo de
contradições políticas dos anos 1920 como vitorioso sobre pessoas mais
habilitadas que ele em muitos aspectos?
O fato é que seus crimes, suas artimanhas, sua crueldade e sua inclemência
com aqueles a quem considerava inimigos acabaram dominando qualquer
avaliação de sua personalidade. E traços como estes põem em relevo o caráter
moral de um homem, não sua inteligência. Nesse sentido, o intelecto
excepcional de Stalin – acredito que tinha – foi emoldurado por atributos que
só podem ser definidos como anti-humanos; no senso moral, ele foi quase
anulado pela vinculação inextricável às manifestações do mal. Poder-se-ia dizer,
em suma, que Stalin tinha uma “mente excepcionalmente malévola”. Qualquer
falha moral representa em si mesma enorme lacuna no intelecto, criando uma
zona cinzenta na mente, desprovida de qualquer vestígio do bem. É possível
afirmar que uma carência moral na personalidade é capaz de reduzir até uma
mente poderosa às funções de máquina calculadora, um mecanismo lógico em
nível racional, porém um equipamento impiedoso.
Tendo sentido com frequência uma inadequação humilhante na conversa
com seus oponentes antes da revolução, Stalin dispôs-se a não desempenhar o
papel de figurante nas discussões futuras e fez de tudo para ampliar ao máximo
o escopo de seu conhecimento político e teórico. Em paralelo com sua enorme
carga de trabalho, esforçou-se por elevar seu plano intelectual. Os arquivos
contêm documentos bastante interessantes os quais, a despeito de seu tamanho,
merecem citação mais completa.
Em maio de 1925, Stalin encarregou Tovstukha de organizar uma boa
biblioteca pessoal para ele. Hesitante, o assistente perguntou que espécie de
livros ele tinha em mente. Stalin preparou-se para ditar uma lista mas,
subitamente, sentou-se em sua escrivaninha e, sob o olhar de Tovstukha e
quase sem pensar, levou de dez a quinze minutos para escrever às pressas o rol
abaixo, anotado a lápis num caderno escolar comum de exercícios:

Nota para o bibliotecário. Minha sugestão (e pedido):

1. Os livros devem ser organizados por assunto, não por autor: a) filosofia; b) psicologia; c) sociologia;
d) economia política; e) finanças; f ) indústria; g) agricultura; h) cooperativas; i) história russa; j)
história de outros países; k) diplomacia; l) comércio exterior e interno; m) assuntos militares; n)
questões nacionais; o) congressos e conferências do partido, do Comintern e outros (com resoluções,
sem decretos e sem códigos jurídicos); p) posição dos operários; q) posição dos camponeses; r)
Komsomol (tudo o que existe em edições separadas); s) história da revolução em outros países; t)
1905; u) Revolução de Fevereiro de 1917; v) Revolução de Outubro de 1917; w) Lenin e leninismo;
x) história do RKP e do Comintern; y) sobre discussões no RKP (artigos e panfletos); z) sindicatos; aa)
literatura criativa; ab) crítica artística; ac) periódicos políticos; ad) periódicos científicos; ae) diversos
dicionários; af ) memórias.
2. Livros a destacar da lista acima e arrumar em estantes separadas: a) Lenin; b) Marx; c) Engels; d)
Kautsky; e) Plekhanov; f ) Trotsky; g) Bukharin; h) Zinoviev; i) Kamenev; j) Lafargue; k)
Luxemburgo; l) Radek.
3. Todos os demais livros devem ser classificados por autor (exceto quaisquer livros didáticos, revistas
populares, literatura antirreligiosa de baixa qualidade, e assim por diante, que devem ser colocados
num lado).12

Levando-se em conta que isso foi rabiscado quase sem reflexão, e também em
função da “cultura de livro” daquela época, uma certa amplitude de visão fica
aqui claramente demonstrada. No topo da pirâmide, ele pôs os fundamentos
do marxismo, a história e diversas áreas específicas do conhecimento
diretamente relacionadas com a atividade política e com a luta contra as
oposições.
A execução de ideias por meio de ação e de comportamento dá certa
medida de um intelecto. A biblioteca de Stalin e as marcas que deixou nela,
portanto, oferecem algum material a respeito.
Muitos dos livros do Kremlin, da dacha ou do apartamento, alguns dos
quais com o ex-líbris “Biblioteca nº... I.V. Stalin”, apresentam anotações,
marcas e comentários à margem. Obras coligidas de Lenin, por exemplo, está
repleto de trechos sublinhados, tiques e pontos de exclamação nas margens.
Fica também claro que certas passagens foram examinadas mais de uma vez, já
que marcadas em vermelho, azul e lápis comum. Os tópicos que parecem ter
despertado maior interesse são as opiniões de Lenin sobre ditadura do
proletariado, sua luta com os mencheviques e os socialistas revolucionários, e
seus discursos nos congressos do partido.
Dos escritos de contemporâneos seus, Stalin consultou com mais frequência
os de Bukharin e os de Trotsky. Por exemplo, o panfleto de Bukharin “A
técnica e a economia do moderno capitalismo”, publicado em 1932, está
coberto de marcas do lápis vermelho de Stalin, em especial o que o autor diz
sobre forças da produção e relações na produção. O livro de M. Smolensky,
Trotsky, publicado em 1921 em Berlim, está sublinhado nos trechos em que o
autor critica seu arqui-inimigo: “Trotsky é irritadiço e impaciente”, tem “uma
natureza imperial que adora dominar”, “gosta do poder político”, “Trotsky é
um genial aventureiro político”.13 De todas as fontes disponíveis, Stalin buscava
munição contra seus rivais, tais como: o panfleto de Trotsky “Terrorismo e
comunismo”, de 1920; “A guerra e a crise do socialismo”, de Zinoviev; “N.G.
Chernyshevsky”, de Kamenev; “Principais estágios do desenvolvimento do
Partido Comunista na Rússia”, de A. Bubnov; “Sobre a história da luta do
bolchevismo contra o luxemburguismo”, de I. Narvsky; “Sobre a estabilização
do capitalismo”, de Jan Sten, e outros. Tudo que se relacionava com “luta”
parecia despertar sua atenção.
Ele teve a vida toda um interesse por literatura histórica, sobretudo
biografias de imperadores e czares. Fez um estudo cuidadoso do Curso de
história russa, de I. Bellyarminov, de História do Império Romano, de R. Vipper,
de Ivan, o Terrível, de Alexei Tolstoy e de uma miscelânea intitulada Os
Romanovs. Todos os livros didáticos de faculdades e universidades por ele
colecionados nos anos 1930 e 1940 ostentam marcas de minucioso exame.14
Evidentemente, viu na história russa, como interpretada por ele, um meio para
formar a espécie de opinião pública que aceitaria seu mando autoritário.
Os assistentes assinalavam tudo que achavam pudesse interessá-lo nos
periódicos sérios e, na pausa de trinta a quarenta minutos que diariamente fazia
na condução dos negócios oficiais, ele passava os olhos pelos artigos e folheava
os últimos romances publicados. Ocasionalmente, acionava a campainha para
chamar um assistente e pedia ligação com um escritor ou com o chefe de um
dos sindicatos de criação, de modo a poder dar pessoalmente congratulações ou
fazer comentários. Por vezes, pegava a caneta para fazê-lo. Depois de ler Nas
estepes da Ucrânia, de Korneichuk (1940), por exemplo, logo escreveu o
seguinte bilhete:

Respeitado Alexander Yevdokimovich


Li o seu livro Nas estepes da Ucrânia. Trata-se de obra maravilhosa, artisticamente inteira, jovial e
alegre. Só me preocupo se não é um pouco alegre demais. Existe o perigo de o excesso de alegria numa
comédia desviar a atenção do leitor em relação ao conteúdo.
Aliás, inseri algumas palavras à página 68. Elas tornam as coisas mais claras. Cumprimentos!
I. Stalin

Ele adicionara o seguinte:

1 - “a taxa seria então cobrada não em função do número de cabeças de gado, mas sim da área do trato
de terra do kolkhoz...”
2 - “crie quanto gado quiser no kolkhoz, a taxa permanecerá a mesma...”15

Sempre atento para as oportunidades práticas, aproveitou a obra de


Korneichuk para esclarecer uma regulamentação recente do comitê central.
Também não se fazia de rogado para comentar o que não gostava. Depois de
ler a peça O suicida, de N. Erdman (1931), escreveu ao produtor, Stanislavsky:

Respeitado Konstantin Sergeyevich


Não considerei muito boa a peça Suicídio.* Meus camaradas mais próximos acham-na vazia e até
perigosa. Não digo que a representação não atinja seu objetivo. O Kultprop** (ou seja, o camarada
Stetsky) o ajudará nisso. Existem camaradas que entendem de questões artísticas. Sou um diletante
nessas coisas.
Saudações
9 XI 31 I. Stalin16

Querendo passar a impressão de “liberal” para os círculos artísticos, Stalin aqui


alardeia diletantismo, porém, na verdade, seus julgamentos sobre peças, livros,
filmes, música e arquitetura eram categóricos ao extremo. Fazendo declarações
sobre praticamente tudo, como primeira pessoa do Estado, ele, na realidade,
tornou-se um diletante universal, o que, por sua vez, fortaleceu sua imagem de
líder onisciente.
Stalin também acompanhava de perto o que era publicado no exterior.
Quase tudo sobre Trotsky e da autoria de Trotsky foi traduzido para ele em
uma só cópia. Lia também as publicações dos emigrados. Em dezembro de
1935, quando B. Tal, gerente da seção de imprensa e publicações do comitê
central, pediu ao Politburo que especificasse quais subscrições deveriam ser
assinadas, em 1936, da lista seguinte de publicações de émigrés brancos,
Poslednie novosti, Vozrozhdenie, Sotsialisticheskii vestnik, Znamya Rossii,
Byulleten’ ekonomicheskogo kabineta Prokopovicha, Kharbinskoe vremya, Novoe
Russkoe slovo, Sovremennye zapiski, Illustrirovannaya Rossiya,*** Stalin disparou:
“Assine todas!”17
Havia um armário especial em seu gabinete no qual guardava grande
quantidade de literatura totalmente hostil de emigrados, inclusive praticamente
todos os trabalhos de Trotsky, intensamente comentados e com muitos trechos
destacados. Qualquer entrevista dada ou declaração feita por Trotsky no
Ocidente eram imediatamente traduzidas e entregues a Stalin.
Por mais que se possa dizer dele, o fato é que sua criação religiosa
evidentemente teve efeito duradouro, testemunhado em sua atitude para com a
literatura antirreligiosa, que ele chamava simplesmente sem valor, e também
em alguns de seus discursos e escritos, por exemplo, seu dramático
pronunciamento pelo rádio, em 3 de julho de 1941, quando se dirigiu ao povo
soviético como “irmãos e irmãs”, um vocativo que aquele povo não costumava
ouvir. Depois da celebração de seu quinquagésimo aniversário, em 1929, ele
enviou a seguinte nota de agradecimento, redigida de próprio punho, ao
Pravda: “Recebo suas congratulações e cumprimentos em nome do grande
partido da classe trabalhadora que me deu à luz e me criou à sua imagem e
semelhança.”18
Numa conversa entre Stalin e Churchill em Moscou, em agosto de 1942, o
assunto caiu em Lloyd George que (como o próprio Churchill) fora um dos
instigadores da intervenção aliada contra os bolcheviques durante a guerra civil.
Stalin fez um silêncio, depois suspirou, como se resumisse tudo o que
acontecera naqueles tempos distantes: “Tudo isso está no passado, e o passado a
Deus pertence.”19 Ninguém está querendo sugerir que o elemento religioso
desempenhou parte central no comportamento de Stalin, mas sua mente
dogmaticamente moldada indica fortemente uma origem religiosa. Ele adorava
fórmulas, definições e interpretações fixas. Para fazer calar ou esmagar
“inquestionavelmente” seus oponentes, passava horas procurando a palavra ou
expressão correta nos clássicos marxistas. Assim, no pleno conjunto do comitê
central e da CCC de abril de 1929, acusou Bukharin de “não saber seu Lenin”.
Numa reunião anterior ao pleno, Bukharin argumentara com bastante
racionalidade que a transferência de recursos excessivos da agricultura para a
indústria imporia um “tributo insuportável” sobre o campo. Stalin anotou
rapidamente: “exploração feudal militar dos camponeses” e “tributo”; depois,
passou grande parte da noite em sua biblioteca com Tovstukha explorando os
trabalhos de Lenin. Após muita pesquisa, encontrou o que queria – uma série
de argumentos “devastadores”, assim pensava. No plenário, declarou:

Bukharin destruiu a si mesmo quando alegou que a literatura marxista não tolerava a palavra
“tributo”. Ele se irritou e se surpreendeu com o fato de o comitê central e o marxismo em geral
permitirem-se o uso da palavra “tributo”. Mas, qual o motivo de tanta surpresa, se se pode mostrar
que, há muito tempo, foram conferidos direitos civis a esta palavra nos artigos de um marxista,
ninguém menos que o camarada Lenin? [Pausa] A não ser que Bukharin ache que Lenin não preenche
os requisitos de marxista?

Stalin passou então a citar “Do infantilismo e da mentalidade pequeno-


burguesa da ‘esquerda’”, “Sobre o imposto em espécie”, “Tarefas rotineiras do
poder soviético”, onde Lenin empregou a palavra “tributo” num contexto
completamente diferente. Uma voz no salão protestou. “Mas Lenin jamais
aplicou o conceito de ‘tributo’ ao camponês médio.” Stalin respondeu
calmamente:

Pensaria você talvez que o camponês médio está mais próximo do partido que a classe operária? Então
você é um marxista falsificado. Se é possível falar em “tributo” em relação à classe operária – a classe
operária que o nosso partido representa –, então por que não se pode dizer o mesmo a respeito do
camponês médio que, no fim das contas, é nosso aliado?20

A questão original, sobre o uso da palavra “tributo”, foi assim enterrada sob
uma típica troca de opiniões sobre “ortodoxia”.
Os infindáveis debates dos anos 1920 sem dúvida afiaram o intelecto de
Stalin como polemista. Na verdade, ele em geral recorria a um truque que
encurralava o oponente: apresentava-se como defensor de Lenin,
argumentando como se só ele soubesse como interpretar o líder corretamente.
Em quase todos os debates, encontrava de imediato uma citação ou expressão
adequadas de Lenin, quase sempre de um contexto inteiramente diverso. Há
muito entendera que, armando-se com citações de Lenin, tornar-se-ia
praticamente invulnerável. Certa vez, quando debatia questões do Comintern,
Zinoviev, cujas relações com Stalin já estavam abaladas, provocou: “Você usa
citações de Lenin como um certificado de sua própria infalibilidade. Devia
procurar os significados!” Stalin disparou de volta: “E o que há de mal em ter
um ‘certificado’ de socialismo?”
No fim, o pensamento rígido, a agressividade, a militância e a rudeza
permitiram que Stalin levasse vantagem sobre seus oponentes. É estranho, mas
quanto mais sutis e frequentemente mais convincentes eram os argumentos de
Trotsky, Zinoviev, Kamenev e Bukharin, menos apoio encontravam entre os
delegados no salão, enquanto as invectivas abusivas, cruéis e quase sempre
primitivas de Stalin, estreitamente ligadas ao seu pleito de estar “defendendo
Lenin”, a linha geral do partido, a unidade do comitê central, e assim por
diante, eram rapidamente absorvidas pelos membros partidários. Possuidor de
uma mente pragmática, ele não se preocupava muito, ao contrário de Trotsky,
com o estilo elegante; ao contrário de Zinoviev, com os aforismos retóricos; ou
de Kamenev, com a racionalidade intelectual; ou de Bukharin, com a
argumentação teórica. A principal arma de Stalin era acusá-los de querer uma
revisão de Lenin, enquanto ele resguardava o líder. E, a partir do início dos
anos 1930, esta passou a ser a versão oficial.
O modo de pensar de Stalin era esquemático. Como vimos, ele gostava de
ter tudo no devido “escaninho” e era levado a reduzir as ideias à sua forma mais
simples e a popularizá-las quase ao ponto de pastiches primitivos. Se os
oponentes divulgavam suas proposições de forma diferente, ele os ofendia pela
“abordagem não marxista”, pela “demonstração de tendências pequeno-
burguesas” ou pelo “escolasticismo anárquico”. Seus relatórios e discursos eram
sempre estruturados dentro de uma moldura rigorosa de enumerações,
particularidades, características, níveis, direções, tarefas. Esta foi uma das razões
pelas quais seus trabalhos eram populares, uma vez que, acessíveis pela
simplicidade, podiam ser captados pelo povo. Todavia, ao mesmo tempo em
que tal modo de pensar talvez pudesse ter facilitado a popularização das ideias
de Stalin, ele algemou severamente a capacidade criativa do povo, pois não
demandava análise profunda ou entendimento da complexidade e
interdependência do mundo.
É provável que Stalin não tenha pensado, como Nero, que o estudo da
filosofia “era um estorvo para o futuro governante”, contudo, parece que ele foi
intelectualmente incapaz de conseguir o menor domínio sobre o assunto. O
ponto mais fraco de seu intelecto era a impossibilidade de entender a dialética.
Ele tinha consciência disso, já que devotou muito tempo e esforço na tentativa
de enriquecer seu conhecimento filosófico. Por recomendação dos diretores do
Instituto dos Professores Vermelhos, convidou, em 1925, Jan Sten, filósofo de
renome entre os Velhos Bolcheviques, para ministrar-lhe aulas particulares
sobre dialética. Sten, que era subdiretor do Instituto Marx-Engels e foi, mais
tarde, executivo do aparato do comitê central, fora delegado em diversos
congressos do partido, era membro da CCC, e homem de opinião
independente. Nomeado tutor filosófico de Stalin, Sten planejou um programa
especial que incluía o estudo de Hegel, Kant, Feuerbach, Fichte e Schelling,
bem como de Plekhanov, Kautsky e Bradley. Duas vezes por semana, numa
hora determinada, ia ao apartamento de Stalin e tentava elucidar seu pupilo
nos conceitos hegelianos da substanciação, da alienação, da identidade entre
realidade e razão. Tentava, em outras palavras, passar-lhe um entendimento do
mundo real como manifestação de uma ideia. A abstração irritava Stalin, mas
ele se controlava, sentava-se e ouvia a voz monótona de Sten, perdendo por
vezes a paciência e o interrompendo com perguntas tais como “O que tudo isto
tem a ver com a luta de classes?” ou “Quem emprega toda essa bobagem na
prática?”
Lembrando a seu aluno que a filosofia de Hegel, como a de outros
pensadores germânicos, se tornara uma das fontes do marxismo, Sten
prosseguia imperturbável. “A filosofia de Hegel”, afirmava ele, “é, com efeito,
uma enciclopédia de idealismo. O método dialético é desenvolvido em seu
sistema metafísico com alto grau de genialidade. Marx disse que Hegel pusera a
dialética de cabeça para baixo, e que era hora de pô-la em pé, para que fosse
vista racionalmente.” Visivelmente agastado, Stalin interrompia: “Mas o que
tudo isso tem a ver com a teoria do marxismo?”
Sten, pacientemente, tentava resumir e explicar a sutileza da filosofia de
Hegel ao seu pupilo pouco perceptivo, porém, apesar de seus melhores
esforços, Stalin não se mostrava capaz de captar as noções básicas daquela
filosofia, como testemunharam seus próprios “trabalhos filosóficos”. Parece que
tudo o que restou daquelas lições foi a hostilidade ao professor. Juntamente
com N. Karev, I.K. Luppol e com outros filósofos que eram discípulos do
acadêmico A.M. Deborin, Sten foi declarado um teórico “adulador de Trotsky”
e, em 1937, acabou preso e executado. A mesma sorte parecia destinada a
Deborin, que fora muito ligado a Bukharin no final dos anos 1920 e que, em
1930, foi rotulado por Stalin como “idealista militante menchevique”. No
entanto, ele foi poupado, se bem que proibido de desenvolver qualquer
trabalho científico ou público.
Um encontro da Academia Comunista teve lugar em outubro de 1930 para
debater “as diferenças no front filosófico”. Na realidade, foi uma longa
condenação de Deborin por sua “subestimação do estágio leninista no
desenvolvimento da filosofia marxista”. Deborin apresentou uma valente
defesa, mas Milyutin, Mitin, Melonov e Yaroslavsky “firmaram” sua culpa,
juntamente com as de Sten, Karev e Luppol, por “subestimação da dialética
materialista”. As paixões no mundo acadêmico continuaram a fervilhar depois
daquele encontro. Os acadêmicos não podiam aceitar o emprego de métodos
policiais em seu trabalho. A filosofia foi, provavelmente, a primeira vítima da
“pesquisa científica” stalinista. O secretário-geral deixou bem claro que só
deveria haver um líder nas ciências sociais e que este era o papel do líder
político, quer dizer, dele mesmo.
Dois meses mais tarde, em dezembro de 1930, ele falou sobre “o front
filosófico” no birô do partido do Instituto de Professores Vermelhos, cujo
diretor era Abram Deborin. O discurso é exemplo eloquente de seu
pensamento filosófico, do nível de sua racionalidade e, simplesmente, de sua
falta de tato. De acordo com a ata da reunião, ele disse:

Temos que virar de pernas para o ar e revolver o monte de estrume que se acumulou na filosofia e nas
ciências sociais. Tudo o que foi escrito pelo grupo de Deborin precisa ser destruído. Sten e Karev
podem ir às favas. Sten jacta-se bastante, mas é apenas um pupilo de Karev. Sten é um rematado
preguiçoso. Só o que sabe fazer é falar. Karev tem uma cabeça enorme e pavoneia-se por aí como uma
bexiga inflada. Na minha opinião, Deborin é caso perdido, mas deve permanecer como editor do
periódico**** para que tenhamos alguém para derrotar. O conselho editorial ficará com dois fronts,
mas teremos a maioria.

As perguntas começaram a chover tão logo Stalin parou de falar: “Pode-se


comparar a batalha sobre a teoria com o desvio político?”
Stalin respondeu: “Não só pode, deve, sem dúvida.”
“E que dizer dos ‘esquerdistas’? Você lidou com os ‘direitistas’.”
“O formalismo vem surgindo sob camuflagem esquerdista”, replicou Stalin.
“Anda servindo seus pratos com tempero esquerdista. Os jovens têm um fraco
pelo esquerdismo. E estes senhores são bons cozinheiros.”
“Em que o Instituto deve se concentrar na área da filosofia?”
“Em derrotar, esta é a questão principal”, replicou Stalin. “Derrotar em
todos os lados, e onde não tenha havido derrota antes. Os deborinitas encaram
Hegel como um ícone. Plekhanov tem que ser desmascarado. Ele sempre olhou
com certo desdém para Lenin. Até Engels não está correto em tudo. Existe um
lugar neste comentário sobre o Programa Erfurt a respeito do crescimento
dentro do socialismo. Bukharin tentou utilizá-lo. Não seria mau se pudéssemos
implicar Engels em algum lugar dos escritos de Bukharin.”21
Dessa forma, Stalin, que não sabia praticamente nada de filosofia, “instruía”
os filósofos. A questão principal era “derrotar”. Quanto à filosofia marxista,
explicou o que deveria constar numa seção especial do Curso resumido: uma
série de frases curtas e incisivas dividindo a filosofia em diversas características
básicas, como muitos soldados cobertos e alinhados. Talvez esse “ABC
filosófico”, mais algumas outras fontes, ajudassem na campanha contra o
desconhecimento, mas depois que apareceram os trabalhos de Stalin, a filosofia
murchou, pois ninguém mais teve coragem de escrever coisa alguma sobre o
assunto. Não se passara um mês e o comitê central já aprovava uma resolução
sobre o periódico Pod znamenem marksizma. Os adeptos de Deborin, que
estavam congregados em torno do editor do periódico, foram alcunhados
“grupo de mencheviques idealistas”.
A.P. Balashov disse-me que Stalin absorvia uma quantidade colossal de
informações diariamente, inclusive relatórios, telegramas, cifras e cartas, e que,
em quase todos os documentos, ele apunha instruções ou comentários
expressando concisamente sua atitude e, assim, estabelecendo decisões
definitivas sobre grande variedade de questões. Depois de examinar por alto
uma pilha de cartas e de nelas escrever seus comentários habitualmente
lacônicos – tais como “Grato por seu apoio”, “Ajudem este homem”,
“Bobagem” –, ele quase sempre selecionava uma ou duas e preparava respostas
com alguma substância. Por exemplo, em 1928, um veterano bolchevique que
vivia em Leningrado escreveu perguntando sobre o perigo da restauração do
capitalismo e se havia quaisquer desvios no Politburo. Stalin destacou uma
folha de um bloco de anotações e escreveu com sua letra grande e clara:

Camarada Shneer,
O perigo da restauração do capitalismo existe. O desvio de direita subestima a força do capitalismo. E
a esquerda nega a possibilidade da construção do socialismo em nosso país. Eles propõem executar seu
fantasioso plano de industrialização ao custo de uma divisão com os camponeses.
No Politburo não há desvios, nem de direita nem de esquerda.
Com saudações camaradas.
I. Stalin22

No auge do Stakhanovismo,***** nos anos 1930, os mineiros de carvão


Stakhanov e Grant mandaram uma proposta ao governo “sobre a formação de
engenheiros e técnicos”, segundo a qual deveria haver a dispensa dos
stakhanovitas, durante um ou dois dias da semana de trabalho de seis dias, para
que pudessem estudar. Como era nova e revolucionária, a ideia foi discutida
pela imprensa e granjeou considerável apoio. Stalin leu a proposta e escreveu
sinteticamente a Ordzhonikidze: “Este não é um assunto sério.”23
É difícil retraçar as qualidades intelectuais que permitiram que Stalin lidasse
criativamente com problemas à proporção que surgiam. Ele sempre tentava agir
de acordo com um plano, ou um dogma, ou algum postulado de noção
preconcebida. Ao mesmo tempo, era capaz de exercitar o pensamento intuitivo
e podia ver o ponto em que as coisas chegariam vários estágios à frente. Nessas
ocasiões, o seu processo mental ficava obscurecido e apenas o resultado era
visível, fosse uma decisão, uma generalização, uma conjetura, ou uma suspeita.
O processo intuitivo desborda o pensamento lógico e produz de imediato uma
“saída” de forma sumária. É claro que uma suspeita sem fundamento
frequentemente surge quando existe deficiência na consciência moral. E isso
ocorria com Stalin. Ele podia virar-se para um camarada e afirmar: “Você está
evitando olhar nos meus olhos!” A suspeita patológica neste caso era menos
uma manifestação de pensamento intuitivo do que o fato de que suas suspeitas
careciam de base na realidade e eram, em vez disso, expressão de uma postura
profundamente errônea e paranoica que deu lugar ao surgimento de uma
propensão a ver potenciais inimigos em todos os cantos.
O conhecimento permite que um homem se torne competente, as emoções
têm possibilidade de enobrecê-lo e a força de vontade pode transformar suas
convicções e iniciativas em realidade por intermédio da ação. A vontade
assemelha-se aos músculos da mente, a força motivadora do intelecto. Uma
vontade forte tem capacidade de tornar um intelecto ativo e determinado – a
espécie de intelecto que pode ser encontrada entre os comandantes militares.
Não surpreende que tenham sido exatamente estes últimos os primeiros a notar
que Stalin era dotado de um intelecto forte.
Um capítulo próprio trata de Stalin como comandante militar, porém, com
o propósito de descrever suas qualidades intelectuais, o testemunho de dois
destacados chefes militares, os marechais G.K. Zhukov e A.M. Vasilievsky, que
trabalharam muito próximos a Stalin, merecem atenção. Zhukov detectou em
Stalin “a capacidade para formular uma ideia concisamente, uma mente
naturalmente analítica, grande erudição e memória prodigiosa”. Tinha também
um caráter fechado e dado a caprichos. Normalmente calmo e racional, ele
podia ter lapsos de aguda irritação. Em tal estado, perdia a objetividade e
transformava-se visivelmente: empalidecia e seu olhar se tornava carregado e
ameaçador.24
Relembrando traços de Stalin, o marechal Vasilievsky destacou sua memória
fenomenal:

Jamais conheci outra pessoa com tamanha memória. Ele conhecia pelo nome todos os comandantes
do exército e do front, dos quais havia mais de uma centena, e sabia até o nome de alguns
comandantes de corpos e de divisões. [...] Durante toda a guerra, Stalin guardou na cabeça a
composição das reservas estratégicas e podia citar qualquer formação a qualquer hora.25

A capacidade de Stalin de apreender rapidamente a essência de uma situação


também causou profunda impressão em Winston Churchill: “Pouquíssimas
pessoas neste mundo podiam compreender em tão poucos minutos as razões
com as quais todos nós vínhamos batalhando havia meses, e ele viu tudo num
piscar de olhos.”26
Parece inquestionável que Stalin era dotado de consideráveis poderes
intelectuais, além de objetividade e determinação altamente desenvolvidas, e
que, mais do que a força das circunstâncias ou a mera chance, foram essas
qualidades que fizeram dele um dos camaradas em armas de Lenin durante a
revolução e a guerra civil. Ele foi capaz de demonstrá-las na ocasião em que elas
eram mais necessárias, e talvez tenha sido por isso que tanto se evidenciaram.
Talvez como consequência, Stalin passou a acreditar em si mesmo, e talvez
também tenha se tornado capaz de fazer coisas que os outros julgavam
impossíveis. Por outro lado, quando Zhukov e Vasilievsky escreveram sobre
Stalin, havia muita coisa que eles ainda não sabiam e, mais importante, muita
coisa que não podiam dizer.
Conquanto seja possível afirmar-se que Stalin teve um intelecto
excepcional, a verdade é que ele estava bem longe de ser um gênio. Nem era em
absoluto realista a respeito de sua própria capacidade, mas emitia julgamentos
em quase todos os campos do conhecimento, de política e economia à
linguística, dando aulas tanto a diretores de cinema quanto a agrônomos, e
impondo opiniões peremptórias tão facilmente nas questões militares quanto
na preparação de textos históricos. Na maior parte, seus pontos de vista eram
os de um amador, se não de um completo ignorante, mas o coro de elogios que
saudava quaisquer de suas assertivas elevava aquelas opiniões às raias da
revelação do alto.
Por exemplo, por iniciativa de um grupo de arquitetos (e de acordo com
decisão tomada já em 1922), Molotov e Kaganovich apresentaram a Stalin a
proposta de construção de um Palácio dos Sovietes no lugar da soberba catedral
de Cristo Salvador. Stalin aprovou o plano de pronto, desvendando totalmente
sua imensa falta de consideração pelos monumentos importantes da cultura
russa. Ninguém pensou em consultar a população russa, que tinha contribuído
com dinheiro para a construção da catedral havia apenas cinquenta anos, o que
ela desejava, e o edifício foi devidamente explodido em 5 de dezembro de
1931. Quando ocorreram as explosões, Stalin, no seu escritório no Kremlin,
tremeu e perguntou ansiosamente: “Onde é o bombardeio? Que explosões são
essas?” Poskrebyshev explicou que, segundo a decisão de julho sobre o local do
Palácio dos Sovietes, que Stalin aprovara, a catedral de Cristo, o Salvador,
estava sendo demolida. Stalin relaxou e não prestou mais atenção às explosões
que continuaram por mais uma hora; mas voltou à leitura de relatórios locais
sobre o progresso da coletivização. Provavelmente nem sabia que a catedral fora
construída com a contribuição dos centavos da gente comum, e que o interior
e as esculturas eram obras de Vereshchagin, Makovsky, Surkov, Pryanishnikov,
Klodt, Ramazanov e outros mestres famosos. A catedral, construída para ficar
de pé por séculos, foi demolida por razões “ateístas” e arquiteturais.
O arquiteto do Palácio dos Sovietes, B. Iofan, escreveu sobre o evento:

Era 1931. A catedral de Cristo, o Salvador, ainda estava de pé no centro de uma grande praça às
margens do rio Moscou. Com uma cúpula dourada, enorme e desajeitada, parecendo um bolo ou um
samovar, dominava as casas e as pessoas em torno com sua arquitetura oficial, fria e sem vida, um
reflexo da autocracia russa sem talento e dos construtores “muito bem-postos” que tinham criado
aquele templo para os mercadores e os latifundiários. A revolução proletária está levantando
corajosamente sua mão contra esse incômodo edifício que simboliza o poder e o gosto dos lordes da
velha Moscou.

Iofan descreveu, extasiado, os “comentários de gênio” que Stalin fizera sobre o


plano para o Palácio. Suas sugestões “audaciosas” visualizavam um palácio que
se ergueria a mais de 300 metros, com uma figura de Lenin de 100 metros de
altura no seu topo, enquanto o grande salão não teria menos que 21 mil
lugares. A megalomania de Stalin ficou patente em seus comentários sobre o
projeto. Por que o pódio era tão pouco elevado em relação ao salão? Tem que
ser bem mais alto! Não deve haver candelabros, a iluminação tem que vir da luz
refletida. Os motivos artísticos principais deveriam expressar as seis partes do
juramento prestado por Stalin depois da morte de Lenin. Ele deixou
perfeitamente claro que o projeto não era apenas de um Palácio dos Sovietes,
mas de um monumento à sua glorificação, à glorificação do líder, por séculos.
Toda a grandiosa estrutura cívica deveria espelhar a “ideia da criatividade da
democracia soviética de muitos milhões...”27 E que democracia! Onde tudo,
desde a forma do edifício à sua fachada, passando pela iluminação, a altura dos
pilares, os motivos das esculturas e mosaicos, suas próprias proporções e muitos
outros aspectos estritamente profissionais, era determinado por um só homem
que, em sua “genialidade”, achava perfeitamente normal que fosse o único a
dar as ordens finais!
A política sempre teve prioridade quando a discussão era sobre história,
cultura ou arte. Por exemplo, quando Khruschev anunciou, no pleno de
fevereiro-março de 1937, que “na reconstrução de Moscou, não devemos temer
a remoção de uma árvore ou de uma pequena igreja, ou de uma catedral ou
outra”,28 recebeu a aprovação silenciosa de Stalin. Os valores culturais tinham
importância secundária e, em qualquer caso, ele era o árbitro definitivo sobre o
que era valioso. A sorte de muitas obras de arte dependeu tão somente de sua
decisão.
A mente de Stalin era desprovida do adorno de qualquer característica
nobre, de um traço de humanismo, para não falar do amor pela humanidade.
Em julho de 1946, por exemplo, Beria reportou que seus campos de correção
estavam com mais de 100 mil presos incapacitados para o trabalho e cuja
manutenção custava uma fortuna ao Estado. Recomendou que os portadores
de doenças incuráveis e os mentalmente perturbados fossem libertados de
imediato. Stalin concordou, mas insistiu que os criminosos especialmente
perigosos e os condenados a trabalhos forçados, por mais doentes que
estivessem, deveriam permanecer presos.29
Notas

* O nome da peça é O suicida, a pessoa que se mata. Stalin chamou de Suicídio, o ato em si.
** Departamento de Cultura e Propaganda.
*** Jornais publicados em Berlim, Paris, Nova York, Praga e Harbin por grupos de emigrados que iam da
extrema direita aos conservadores, liberais e socialistas.
**** Pod znamenem marksizma (“Sob a bandeira do marxismo”).

***** Campanha publicitária enganosa, com base no desempenho quebrador de recordes de um mineiro
chamado Stakhanov, usada para aumentar a produção pela criação de condições artificiais de trabalho.
[24]
Cesarismo

N o início de 1937, Lion Feuchtwanger, o escritor alemão, visitou


Moscou. O resultado foi o livro Moscou 1937 (relato de minha
viagem para meus amigos), publicado em Amsterdam. Ele não
escondeu o fato de que escreveu como simpatizante, e seu livro, com efeito, foi
uma verdadeira coonestação do sistema soviético. Sua simpatia pela URSS
cresceu com a visita, mas o que ele não pôde deixar de notar – e ao que
devotou grande parte do livro – foi o lugar ocupado por Stalin na vida do povo
soviético:

A adoração e o culto ilimitado com que a população cerca Stalin é a primeira coisa que causa
admiração no visitante estrangeiro à União Soviética. Em todos os cantos, em cada intercessão de ruas,
em lugares adequados e inadequados, podem-se ver gigantescos bustos e estátuas de Stalin. Os
discursos ouvidos, não apenas os políticos, mas até sobre assuntos científicos e artísticos, são
preparados como glorificação a Stalin e, por vezes, tal deificação toma formas de mau gosto.30

Quando Feuchtwanger conversou com Stalin sobre isso, o secretário-geral


simplesmente sorriu maliciosamente e deu de ombros, observando que “os
operários e camponeses estão muito ocupados com outras questões para se
preocuparem com bom gosto”, e pilheriou sobre as centenas de milhares de
retratos daquele homem bigodudo ampliado a tamanhos monstruosos, que,
nas procissões, ficavam olhando para ele.31 Indo um pouco além de Stalin na
tentativa de explicar as origens e precondições daquela maciça adoração ao
ídolo, Feuchtwanger escreveu que a veneração ao líder
aumentou organicamente com o sucesso da construção econômica. O povo era grato a Stalin pelo pão
e pela carne, pela ordem em suas vidas, por sua educação e pela criação de um exército que velava por
seu bem-estar. O povo tinha que ter alguém a quem expressar sua gratidão pela inquestionável
melhora nas condições de vida e, para tanto, não selecionara algo abstrato, como o “comunismo”, mas
algo real, um homem, Stalin. [...] A reverência sem limites a ele, pois, não é ao homem Stalin, mas ao
símbolo de uma construção econômica patentemente vitoriosa...32

Essa ingênua explanação agradou tanto a Stalin que ele fez com que o livro
fosse traduzido para o russo com velocidade espantosa e publicado com uma
enorme tiragem. O livro foi talvez o único jamais publicado na União Soviética
sob o mando de Stalin que reconhece a existência do culto ao líder e oferece
alguma explicação para ele. Stalin personificava tanto os ideais socialistas
quanto a realidade e, portanto, de acordo com o autor, o povo devia ao líder
sua gratidão.
O culto à liderança era humilhante para o povo, até mesmo insultuoso. Era
o cesarismo no século XX, a usurpação do poder por uma pessoa mantidos os
símbolos formais da democracia. Como tal prática surgiu e em que ambiente
prosperou?
Ao identificar as fontes do culto à liderança é possível entender-se o porquê
de Stalin ter sido tão popular, a despeito de sua crueldade e de seu desprezo
pelas normas humanas elementares. Como vimos, o principal esteio do culto
foi a falta de princípios democráticos no partido e no Estado. Um povo que
vivera séculos à sombra da coroa czarista não podia em poucos anos livrar-se de
velhos hábitos. O czar, a dinastia e a pompa czarista foram destruídos, mas o
antigo modo de pensar, com tendência à idolatria de uma poderosa figura
soberana, persistira.
Nikolai Berdyaev escreveu em 1918 em O destino da Rússia:

A Rússia é, culturalmente, um país atrasado. Há trevas bárbaras lá, um primarismo asiático sombrio e
caótico. O atraso russo tem que ser sobrepujado pela atividade criativa e pelo desenvolvimento
cultural. A Rússia mais original será a vindoura, a nova Rússia, e não a velha Rússia atrasada.33

Foi este atraso que veio à tona em muitos dos processos sociais desencadeados
depois da revolução, quando a democracia não estava em evidência. Mesmo
enquanto Lenin viveu, houve muita glorificação aos líderes, demasiado
reconhecimento de seus “méritos especiais”. O sistema em si não contemplava
restrições ou mecanismos críticos do tipo que só seria genuinamente
encontrado no pluralismo revolucionário. Se os socialistas revolucionários de
esquerda tivessem permanecido em cena, seria difícil imaginá-los juntando-se
ao coro de louvação de Stalin.
O primeiro a notar o perigo de se transformar um líder em conceito
ideológico foi Trotsky que, em 1927, escreveu suas reminiscências de Lenin sob
o título “Da santimônia”:

O falecido Lenin, parece, renasceu: talvez esteja resolvido o caso da ressurreição de Cristo. Mas o
perigo começa com a burocratização da estima e a automação de atitudes em relação a Lenin e seus
ensinamentos. N.K. Krupskaya disse, recentemente, boas e simples palavras, contra os dois perigos.
Ela disse que não deveriam existir tantos monumentos em homenagem a Lenin nem deveriam ser
fundadas instituições desnecessárias e inúteis com seu nome.34

A erradicação do ambiente aberto no partido e nas funções do estado que se


seguiu ao XVII Congresso marcou o fim formal de uma era. Os anos 1920
foram muito mais convenientes, tudo podia ser debatido. Por exemplo, foi
considerado normal o Pravda publicar que, no XIV Congresso, a resolução
sobre o relatório de Stalin e Molotov recebera 559 votos a favor e 65 contra, ou
que, em 1º de setembro de 1926, havia 1.026.000 desempregados registrados
no país. O povo podia descobrir a maior parte do que desejava saber sobre as
questões sociais, econômicas, culturais, financeiras ou históricas.
A partir do início da década de 1930, a verdade começou a ser distribuída
em doses limitadas, e o resultado foi que as pessoas ficaram incapacitadas de
julgar sua liderança. Com o passar do tempo, Stalin e seu entourage, bem
como suas ações, estariam separados do povo por uma cortina impenetrável.
Os exemplos mais gritantes, é claro, foram os expurgos e o terror. Que se sabia
deles? Publicamente eram aplicados apenas às figuras importantes, cientistas
bem conhecidos, destacados líderes militares “desmascarados” como inimigos
do povo e cuja exposição tinha a intenção de, em parte, servir como exemplo.
Os milhões de desventurados, que foram a grande massa das vítimas,
desapareciam sem ser notados, na calada da noite, com frequência para sempre.
A monstruosa sentença imposta a tantas pessoas – dez anos sem direito a
correspondência – era em si um ato de censura. Que se sabia a respeito das
“reuniões especiais” promovidas pela NKVD em julho de 1934? Acreditava-se
naquele tempo que sua autoridade não ia além da condenação ao exílio ou à
pena de cinco anos, porém, mais tarde, soube-se que ela sentenciava pessoas
inocentes ao fuzilamento ou a 25 anos de trabalhos forçados.
Gradualmente, o povo aprendeu a se contentar com apenas parte da
verdade. Assim, por exemplo, em 20 de fevereiro de 1938, foi-lhe dito que os
quebra-gelos Taimyr e Murman haviam resgatado quatro exploradores
soviéticos aprisionados pelo gelo flutuante no mar da Groenlândia, mas nada
lhes foi revelado sobre os preparativos para o julgamento de Bukharin que
deveria ocorrer no prazo de duas semanas.
Quando a verdade era um luxo, uma palavra ou ato descuidados podiam ser
vistos como ataque ao monopólio da verdade como proclamada pelo líder.
Assim, falando no pleno de fevereiro-março de 1937, o delegado Mogushevsky
detectou perigo no trabalho da rádio de Minsk:

A rádio de Minsk vem difundindo programas antissoviéticos. Em 23 de janeiro, transmitiu as


acusações contra o centro trotskysta. Depois da irradiação das acusações e de um relatório sobre a
sessão matutina do tribunal, foi posto no ar um concerto de Chopin que incluía a conhecida Sonata
em si menor. Não foi coincidência, e sim uma grande sutileza: a marcha fúnebre não foi transmitida
porque isso seria muito óbvio, então tocaram toda a sonata. Nem todos captaram que ela abarcava a
marcha. Não, não foi coincidência.35

Para os que dependiam de Stalin, demonstrar tal tipo de “vigilância” em relação


aos “inimigos do povo” era uma maneira de manter o emprego e mesmo a vida.
Por exemplo, foi em tais circunstâncias que Kabakov,* secretário do partido em
Sverdlovsk, achou “danos” numa área diferente. Ele disse no pleno:
“Descobrimos uma tenda em que as compras eram embrulhadas em cópias do
relatório de Tomsky.** Pesquisamos e chegamos à conclusão de que
organizações comerciais haviam comprado substancial quantidade de tal
literatura. Quem pode dizer se esse material impresso está sendo utilizado
apenas como papel de embrulho?”36
Stalin não teria sido capaz de envergar a toga de imperador – mesmo que
ela fosse uma modesta túnica do exército – se não tivesse conseguido primeiro
dominar a mente do povo. Ele bem sabia que precisava garantir a fé como líder
todo-poderoso e estimular o entusiasmo das gentes, trombeteando suas vitórias
e censurando seus fracassos, em sua maior parte devidos “ao esforço dos
inimigos e destruidores”. Foi bem-sucedido neste particular. O entusiasmo das
pessoas não era artificial: o trabalho delas era quase sempre de autossacrifício.
Quando exigiam a pena de morte ou punições severas para os traidores,
estavam sendo sinceros. Até Alexei Stakhanov escreveu:
Quando os julgamentos tiveram lugar em Moscou, primeiro de Zinoviev, depois de Kamenev e, ainda
depois, de Pyatakov e sua quadrilha, nós pedimos que eles fossem fuzilados. Mesmo as mulheres de
nosso assentamento, que jamais se interessaram por política, cerraram os punhos quando leram o que
os jornais publicavam. Dos mais idosos aos jovens, todos exigiam que os bandidos fossem
destruídos.37

Gerações eram formadas com a crença fundamental de que tudo que seu
grande líder fazia estava certo, e muito poucos tinham quaisquer dúvidas.
Hoje, quando quase todos os inimigos políticos de Stalin foram reabilitados, a
história do partido naqueles anos aparece sob uma luz bastante diferente.
Ocorrera uma luta pela liderança e pela escolha dos meios para a construção de
uma vida nova. Algumas pessoas fizeram opções erradas, muitas tinham
opiniões que divergiam das adotadas pelo partido, mas poucas eram, como
Stalin as descrevia, inimigas. Ainda assim, o tênue vestígio de suspeita contra
elas desenvolveu-se em pesadas acusações e resultou num fim trágico.
Stalin frequentemente tratava dos assuntos sem dar uma decisão escrita.
Devo ter examinado alguns milhares de itens de correspondência endereçada
pessoalmente a ele sobre as questões mais diversas: relatórios sobre o progresso
da safra, deportação de povos inteiros, notificação de sentenças executadas,
remoção de membros dos altos escalões, construção de fábricas para o exército,
cabogramas decodificados de fontes de inteligência, traduções de artigos da
imprensa ocidental, cartas pessoais para ele e todas as espécies de esquemas,
invenções e ideias loucas. Estimo que li entre cem e duzentos documentos por
dia, que iam de uma simples folha a pastas completas. Na maioria dos casos,
ele simplesmente apunha suas iniciais no papel. Antes de levar o material para a
apreciação do chefe, Poskrebyshev anexava um pequeno pedaço de papel com
uma proposta de decisão e o nome de seu autor. Stalin raramente dava
despachos longos. Se concordava com um plano, só rubricava a folha de papel,
ou escrevia “De acordo”, e a devolvia ao assistente para a pilha de despachos.
Ocasionalmente, Stalin dava a entender ao partido e ao povo que era contra
a glorificação e a idolatria. Tais atitudes, no entanto, eram apenas jogo para a
plateia. Existe, por exemplo, a seguinte carta nos arquivos:

Para os camaradas Andreyev (Detizdat***) e Smirnova.****


Sou decididamente contra essa publicação de Histórias da infância de Stalin. O livro tem muitos erros
factuais. Mas isto não é o principal. O importante é que o livro tem a tendência de instilar na mente
do povo soviético (e do povo em geral) um culto a personalidades, a líderes e a heróis infalíveis. Isto é
perigoso e nocivo. A teoria de “heróis” e a “multidão” não é bolchevique, é própria dos SR [socialistas
revolucionários]. [...] O povo cria heróis, os bolcheviques rejeitam heróis.
Aconselho-vos a queimar o livro.
16 de fevereiro de 1938. I. Stalin38

Essa nota cuidadosamente escrita, na verdade, foi calculada para fortalecer a


glorificação de Stalin, não para interrompê-la. Quem seria então capaz de dizer
que ele não era modesto? Mas havia um outro lado naquela história, ou seja,
ele não gostava de menções à sua infância. Tamanho abismo se abrira entre ela
e o pináculo da posição atingida que ficava atordoado só em pensar nele. De
qualquer forma, por que as pessoas precisavam saber o que ele fora no passado,
quando tudo que necessitavam era conhecer o que era agora?
Stalin se deleitava em ouvir outras observações sobre sua modéstia. No
plenário de fevereiro-março de 1937, Mekhlis disse que “já em 1930, o
camarada Stalin enviou-me a seguinte carta para o Pravda, que vou me
permitir ler sem sua permissão”:

Camarada Mekhlis,
Existe uma recomendação para que se publique a instrutiva história anexa sobre um kolkhoz. Cancelei
tudo o que se referia a “Stalin” como o “vozhd do partido”, “o líder do partido” e coisas semelhantes.
Creio que esses ornamentos laudatórios só causam males.
A carta deve ser publicada sem tais epítetos.
Com saudações comunistas. I. Stalin39

Tais observações só tencionavam criar lendas sobre “a excepcional modéstia do


camarada Stalin”, homem “totalmente desprovido de vaidade”.
Stalin sabia que qualquer grau de descentralização ou de robustecimento do
papel dos órgãos do partido e de elevação da importância das organizações
sociais podiam, mais cedo ou mais tarde, levar a uma crise intelectual e política
para a própria ideia do culto à liderança. Portanto, era essencial para ele manter
a mente pública algemada pelo dogmatismo, alimentando-a com trabalhos de
sua lavra. O povo acreditava nos artigos e discursos de Stalin (cada vez menos
frequentes) e olhava seus retratos onipresentes com fé no coração. Desde a
infância sabiam: “Stalin pensa em nós.”
Esta lavagem cerebral continuada fez mais do que condicionar a mente dos
jovens, resultou também na degeneração dos quadros. A partir de então, o
único trabalhador útil passou a ser aquele que desejava concordar com as
ideias, argumentos e decisões mais absurdos, contanto que levassem o nome de
Stalin. Mikoyan não poderia ter acreditado em suas próprias palavras quando,
por ocasião do vigésimo aniversário da Cheka (OGPU-NKVD), em 1937,
disse: “Aprendam o estilo stalinista de trabalho com o camarada Yezhov, da
mesma forma que ele aprendeu com o camarada Stalin!”40 No entanto, este
passou a ser o modo com que todos tinham que falar, exercessem funções no
alto ou no baixo escalão, ou não tivessem cargo algum. A consciência, a
oportunidade de exercitá-la, foi sufocada. Como Yevtushenko escreveu em seu
poema “Medo”:

O povo foi domado aos poucos,


E tudo foi lacrado.
Ensinado a gritar quando deveria estar silente,
Quieto ficou quando devera esbravejar.
Notas

* Logo seria executado.


** Tomsky já havia sido declarado inimigo do povo, e suicidara-se.
*** Editora de livros infantis.

**** Autora de Rasskazy o detstve Stalina (Histórias da infância de Stalin).


[25]
À sombra do chefe

D epois do XVII Congresso, o Politburo era um órgão profundamente


alterado, já que a velha guarda fora praticamente varrida pela
tempestade interna. Stalin sentia-se desconfortável com a
proximidade dos antigos companheiros porque o conheciam em todos os seus
diferentes estados de espírito – firme e hesitante, imperturbável e confuso,
afável e deplorável. Também sabiam que só existira um líder na revolução –
Lenin – e que Stalin fora apenas terceiro ou quarto violino. Sabiam que em
tudo, menos determinação, Stalin era inferior a muitos. Não havia espaço
suficiente na cabine de comando para Trotsky, que o via como uma
mediocridade, ou para Bukharin, que o considerava um déspota asiático, ou
para Rykov, que não respeitava ninguém a não ser Lenin, ou para Zinoviev e
Kamenev, pois ambos pensavam que, como amigos mais próximos de Lenin,
um deles deveria sucedê-lo. Ademais, não viam Stalin como seu líder. O
secretário-geral precisava de novos camaradas em armas.
Entre os sobreviventes, novas caras surgiam ao lado de Stalin, seja no
Mausoléu, na plataforma das assembleias ou na mesa do Politburo: A.A.
Andreyev, K.Ye. Voroshilov, L.M. Kaganovich, M.I. Kalinin, S.M. Kirov, S.V.
Kosior, V.V. Kuibyshev, V.M. Molotov, G.K. Ordzhonikidze, bem como A.I.
Mikoyan, G.I. Petrovsky, P.P. Postychev, Ya.E. Rudzutak, V.Ya. Chubar e, mais
tarde, A.A. Zhdanov e R.I. Eikhe. Do grupo, Stalin rapidamente separou um
núcleo constituído por Molotov, Kaganovich e Voroshilov. No entanto, cedo
começaram a aparecer lacunas nas fileiras: Kirov assassinado, Kuibyshev faleceu
em 1935, Ordzhonikidze cometeu suicídio, enquanto Kosior, Postyshev,
Rudzutak, Chubar e Eikhe foram eliminados no grande expurgo. Entre 1937 e
1939, seis membros do Politburo e um candidato a membro estiveram num
dos mais angustiosos episódios da história russa, mas não foram meras
testemunhas; todos, particularmente o núcleo dos três, se envolveram
cerradamente nos eventos. Nas palavras de Goethe, o mal seguiu-se ao mal, e a
ilegalidade se tornou a lei em todo o império.
Mas não era um império, tratava-se do primeiro Estado socialista dos
operários e camponeses, o primeiro em que eles haviam conquistado o poder e
o primeiro em que cederam tal poder para um “grande líder”. Contudo,
ninguém do círculo de Stalin teve a coragem para arremessar as palavras de
Goethe sobre o líder, ou para tentar interromper o processo. Que espécie de
gente era aquela que borboleteava à sombra do chefe?
Em Zhukovka, subúrbio de casas de verão nas cercanias de Moscou, ainda
podia ser visto, na primavera de 1986, um senhor idoso, de testa alta e com o
indefectível pincenê, arrastando vagarosamente os pés ao compasso das
pancadinhas de sua bengala e voltando seus olhos castanho-amarelados para os
raros passantes. O sobretudo surrado e as botas gastas do velho eram provas de
que seu dono tinha visto e experimentado muitas coisas. Mas ninguém poderia
supor que ele chegaria aos 97 anos de idade e que era nada mais nada menos
que o ex-presidente do Sovnarkom, o ex-membro do Politburo, o ex-
comissário do povo das Questões Internas e um dos cúmplices mais próximos
de Stalin, Vyacheslav Mikhailovich Molotov.
Molotov fora secretário do Comitê Central e candidato a membro do
Politburo sob Lenin e, embora a história tenha registrado observações
desagradáveis feitas por Lenin a seu respeito – uma delas, que “sob seu nariz
gerava-se a mais vergonhosa e estúpida burocracia”41 –, ele foi um dos últimos
dos moicanos que trabalharam com Lenin havia todos aqueles anos. O poeta F.
Chuev encontrou-se frequentemente com Molotov e, nas conversas comigo,
em 1985, descreveu-o como “modesto, preciso e frugal. Providenciava para que
nada fosse desperdiçado, para que nenhuma luz ficasse acesa em salas vazias.
Quando faleceu em 1986, um envelope continha sua caderneta de poupança
com 500 rublos para o funeral”.
Era o homem que trabalhara com Trotsky, Bukharin e Rykov. Churchill e
Roosevelt o conheceram bem, e ele se sentou durante horas em negociações
com Hitler e Ribbentrop como um dos arquitetos do Pacto Nazi-Soviético de
Não Agressão e do Tratado sobre as Fronteiras. Muitos cidadãos soviéticos se
recordam das palavras dramáticas que proferiu, ele e não Stalin, ao meio-dia de
22 de junho de 1941: “Nossa causa é justa. O inimigo será esmagado. A vitória
será nossa.” Este episódio será examinado em detalhes mais adiante. Por ora,
notemos que Stalin estava tão pasmo com o começo catastrófico da guerra que
recusou os apelos do Politburo para que ele mesmo discursasse e, em vez disso,
encarregou seu “braço direito” da tarefa.
Por muitas décadas, Molotov foi a sombra de Stalin, sempre ao seu lado nas
reuniões do Politburo, no Mausoléu, nos artigos de jornal, nas conferências
internacionais. Mesmo quando o Pravda publicava seus artigos estampava ao
lado um grande retrato de Stalin.
Em que pensava aquele homem nos anos de declínio, vivendo no
apartamento de Moscou na rua Granovsky ou na vila oficial de Zhukovka? O
que lhe vinha à mente? Talvez a reunião do Comitê Central de dezembro de
1930, quando Rykov foi afastado da função de presidente do Conselho de
Ministros e o próprio Stalin propôs Molotov para substituí-lo? Naquela
oportunidade, Molotov declarou que “passara na escola do bolchevismo sob a
supervisão direta de seu melhor professor, Lenin, e sob a supervisão do
camarada Stalin. Tenho orgulho disto”.
Nada o mudou nas décadas pós-Stalin. Pouco antes de falecer, Molotov
disse a Chuev que “se não fosse Stalin, não sei o que teria sido de nós”. No fim
da vida, considerava Stalin um gênio e estava convencido de que Tukhachevsky
fora a força armada dos “direitistas” e de que Rykov e Bukharin arquitetaram
uma conspiração. Afirmava que “1937 permitiu que evitássemos uma quinta-
coluna na guerra”. Admitia que houve muitos erros, “que muitos comunistas
honestos pereceram, mas que, com métodos suaves, não manteríamos aquilo
que conquistáramos”. Tendo sobrevivido às mais violentas tempestades da
história, a mente daquele homem parara de funcionar. Como executor
obediente, zeloso e sofisticado dos desejos de Stalin, Molotov teve imensa
responsabilidade pela corrupção da legalidade e pela repressão como
instrumento do poder.
No famoso pleno de fevereiro-março de 1937, Molotov apresentou um
relatório sobre as “lições da sabotagem, ação diversionária e espionagem
praticadas por agentes nipo-germano-trotskystas”. Todo o discurso nada mais
foi que a conclamação por um massacre social:

As hesitações de ontem de comunistas vacilantes já se transformaram em atos de sabotagem, de ação


diversionária e de espionagem pelo acordo com os fascistas e para vantagem destes últimos. Temos que
responder golpes com golpes, temos que esmagar em todos os lugares estes destacamentos precursores
de subversivos do lado fascista. Temos que nos apressar para concluir esta tarefa e não devemos nos
atrasar nem demonstrar hesitação.42
Molotov não mostrou hesitação. Tampouco seu brado pela conclusão da tarefa
caiu no vazio. Em junho daquele ano, um informante reportou a Stalin que
G.I. Lomov, velho bolchevique e membro da equipe do Sovnarkom, parecia ser
ligado a Rykov e Bukharin. Stalin perguntou a Molotov: “O que você acha?” A
resposta foi rápida e incisiva: “Sou pela prisão imediata do porco Lomov.”43
Estava selada a sorte de Lomov: prisão, interrogatório, sentença, execução.
Membro do partido desde 1903, delegado da histórica Conferência do Partido
de abril de 1917, membro do Comitê Executivo Central da URSS, Lomov foi,
como tantos outros milhares de bolcheviques honestos, listado como “inimigo
do povo” com uma penada. Foi Molotov quem sancionou a prisão de Kabakov,
primeiro secretário do comitê partidário regional de Sverdlovsk, de Ukhanov,
comissário da Indústria Leve, de Krutov, presidente do comitê executivo
regional do Extremo Oriente, e de muitos outros. Dos 28 membros do Soviete
de Comissários do Povo, que ele presidiu, mais da metade foi fuzilada.
Era um homem duro. Em março de 1948, Rodionov, presidente do
conselho de ministros da Rússia, pediu-lhe algum tipo de auxílio a fim de
encontrar acomodações para 2.400 exilados doentes e muito idosos. A resposta
de Molotov foi áspera: “O comissário das Questões Internas da URSS
acomodará 2.400 exilados inválidos e muito idosos em campos de
concentração.”44
Molotov foi muito útil a Stalin. Podia captar as intenções do chefe ao
menor sinal, e sua capacidade de trabalho tornou-se lendária, como o próprio
Stalin ressaltou várias vezes na presença de outros membros do Politburo. No
quinquagésimo aniversário de Molotov, em 1940, Stalin propôs que o nome da
cidade de Perm mudasse para Molotov, embora já existissem muitas outras
cidades, vilas e fazendas com este nome.
Por volta dos anos 1930, Stalin já se livrara de todos os teóricos. É claro que
ele mesmo era o “teórico-chefe”, mas condescendia que, em certas ocasiões, um
de seus auxiliares, normalmente Molotov, tentasse alguma coisa. Adoratsky
instou Stalin a escrever um artigo sobre estratégia e tática do leninismo para a
Enciclopédia filosófica que era preparada pela Academia Comunista. A resposta
de Stalin foi a seguinte: “Estou terrivelmente ocupado com questões práticas e,
portanto, impossibilitado de atender sua solicitação. Tente Molotov, ele está de
férias e talvez encontre tempo disponível.”45
Claro que Molotov não era um teórico, porém, comparado com
Kaganovich, Andreyev, Voroshilov e o restante, a preferência tinha que recair
sobre ele. Sem a presença de Bukharin, o único “intérprete” e “gerador de
ideias” era o próprio Stalin. Por conseguinte, não surpreende o fato de que,
durante os anos 1930 e 1940, os estudos sociais tivessem pequeno espaço no
que concerne às inovações. Elas, simplesmente, não podiam ocorrer. Não causa
igualmente admiração que, em tais circunstâncias, Molotov se considerasse até
um pouco teórico.
Por trás da fachada imperturbável, extremamente reservada e inescrutável
do polido decoro oficial de Molotov se escondia uma determinação forte e
malévola. Assíduo no apoio a Stalin nas questões internas, ele foi também
porta-voz diligente e expedito da política externa soviética. Sem cúmplices
como Molotov, o stalinismo não teria sido possível.

Não menos zeloso que Molotov foi Lazar Moiseyevich Kaganovich, outro
sobrevivente até a grande idade dourada. Em novembro de 1988, comemorou
seu nonagésimo quinto aniversário no seu apartamento na Orla Frunze, à
beira-rio em Moscou e, provavelmente, esperou sobrepujar Molotov vivendo
até os cem anos.* S.I. Senin, que trabalhou para N.A. Voznesensky depois da
guerra, disse-me sobre Kaganovich:

Ele era o chefe da comissão das indústrias de guerra certa ocasião em que tive que lhe entregar alguns
documentos. Eu calçava um novo par de botas. Kaganovich pegou os papéis e começou a olhar
fixamente para minhas botas.
“Tire-as”, ordenou.
“Por quê?”, gaguejei confuso.
“Tire-as, e rápido!” Não estava disposto a dar explicação.
Kaganovich pegou as botas, virou-as para um lado e para outro, depois passou a mão pelos canos.
Finalmente, jogou-as no chão e disse num tom satisfeito: “Você tem, de fato, um bom par de botas.
Vi logo, fui sapateiro.”

Ele teria se saído melhor se continuasse sapateiro, mas fez uma opção em 1911,
quando acompanhou o irmão mais velho para se filiar ao partido comunista.
Conheceu Stalin em Moscou, em 1918, quando trabalhava na comissão de
Toda a Rússia para a organização do Exército Vermelho. Foi enviado ao
Turquestão em 1920, mas, quando Stalin se tornou secretário-geral, foi
chamado de volta a Moscou e encarregado da seção do Comitê Central
responsável pela instrução dos organizadores. Com um grau mínimo de
educação formal, porém de elevada capacidade administrativa, Kaganovich
começou sua rápida ascensão através das fileiras do partido e dos serviços.
Stalin gostava de Kaganovich por três motivos: sua capacidade sobre-
humana de trabalho; sua total falta de qualquer opinião – antes mesmo de
conhecer o assunto em pauta, ele dizia: “Estou de absoluto acordo com o
camarada Stalin” – sobre questões políticas; e sua incondicional disposição para
executar instruções, especialmente as do secretário-geral. Em determinada
ocasião, depois do XVIII Congresso do partido e antes da reunião do
Politburo, Stalin perguntou-lhe:
“Lazar, você sabia que nosso Mikhail** anda de conchavos com os
direitistas? As evidências são fortes”, acrescentou Stalin com o olhar de quem
está testando.
“Ele deve ser tratado de acordo com a lei”, conseguiu dizer Lazar com a voz
trêmula. Depois da sessão, ele telefonou ao irmão e falou-lhe sobre a conversa.
O processo foi acelerado. Mikhail decidiu não esperar pela prisão e suicidou-se
no mesmo dia.
Stalin dava valor a tais pessoas, aquelas que julgavam ter que persistir
provando sua lealdade a ele, e não com trivialidades ou bajulação servil.
Kaganovich deu uma demonstração de tal lealdade no pleno agonizantemente
longo de fevereiro-março de 1937. A máquina de punição ainda não estava
totalmente pronta, acabara de ser estabelecida e era ajustada com o
trituramento de membros do partido, da intelligentsia, da classe operária, dos
camponeses, dos militares; ainda assim, Kaganovich já estava superando a si
próprio. Num discurso de duas horas, o comissário para as Ferrovias informou
sobre os primeiros resultados do “teste”:

No aparato político do comissariado para as Ferrovias, desmascaramos 220 pessoas. Na divisão de


transportes, demitimos 485 ex-milicianos, 220 SR e mencheviques, 572 trotskystas, 1.415 oficiais
Brancos, 285 saqueadores, 443 espiões. Todos eles ligados ao movimento contrarrevolucionário.46

Não é difícil imaginar o que Kaganovich quis dizer com “demitimos espiões e
saqueadores” das ferrovias. Stalin deve ter ficado satisfeito com a “análise” de
seu comissário quando ele, ardorosamente, continuou a expor aos delegados:

Estamos lidando aqui com uma gangue de desesperados agentes de informações. Seus métodos em
relação às ferrovias são particularmente sofisticados. Serebryakov, Arnoldov e Lifshits exploraram o
baixo nível de segurança do acesso, organizaram descarrilamentos e estorvaram os esforços do
movimento stakhanovista. Dano especial foi causado por Kudrevatykh, Vasiliev, Bratin, Neishtadt,
Morshchikhin, Bekker, Kronts e Breis que atrasaram a entrada em serviço da locomotiva FD. O
edifício da linha Moscou-Donbass foi sabotado. Pyatov sabotou a construção da linha TurkSib;
Mrachkovsky sabotou a linha Karaganda-Petropavlovsk; Barsky e Eidelman sabotaram a linha Eikhe-
Sokur.47

A despeito de os jornais publicarem a concretização dos planos sobre fretes,


sobre invenções e sobre o movimento Krivonos,*** Kaganovich manteve a
pressão: “Shermergorn, o chefe da construção ferroviária, cometeu sabotagem.
O Camarada Stalin disse-nos mais de uma vez que ele era homem mau e um
inimigo. O camarada Stalin fez-nos um alerta claro e aconselhou que
mantivéssemos o olho nele e o checássemos bem.”
“Era um homem bastante suspeito”, aparteou Mikoyan.
“Aquele porco do Serebryakov”, continuou Kaganovich, “deu informações
precisas sobre os centros industriais de defesa e traçou os planos de
sabotagem.”48
Todo o discurso foi neste mesmo tom, nomeando e imprecando contra
bandos inteiros de saqueadores que estavam, aparentemente, engajados por
completo na destruição, na criação de gargalos, na confecção de planos falsos e
na desorganização do frete:

O patife do Yeshmanov foi o chefe da linha Moscou-Donetsk a partir de 1934. Depois que este cargo
lhe foi retirado e ele não conseguiu qualquer outra função, dirigiu-se diretamente ao camarada Yezhov
na NKVD para uma permissão de residência. Falou com Arnoldov sobre as reprimendas, houve muita
conversa, mas ninguém o quis. Ele agora está sob o cuidado e o controle do camarada Yezhov.49

Como o restante do círculo de Stalin, o profundamente ignorante Kaganovich


tentou conseguir alguma reputação como teórico. O Comitê Central expedira
uma diretriz ordenando que os chefes de instituições, empresas e agências
conduzissem estudos sobre o marxismo-leninismo para suas equipes dirigentes.
I.V. Kovalev, ex-membro da equipe do comissariado para as Ferrovias durante a
guerra, disse-me o seguinte:

Kaganovich reuniu um grupo de gerentes e abriu o seminário. Logo pediu para que eu tomasse a
palavra. Ressaltei o fato de o proletariado, em função de sua posição e de sua capacidade para agir
apenas espontaneamente, só ser capaz de desenvolver consciência sindical. Kaganovich dirigiu-me um
olhar feroz e então explodiu: “Que bobagem! E daí que eles tenham consciência sindical? O
proletariado pode desenvolver qualquer coisa! Consciência proletária!”
Olhamos uns para os outros. Por mais que eu tentasse explicar, citando Lenin, a necessidade de se
incutir a teoria científica na cabeça do proletariado, ele não conseguiu absorver a ideia. Olhando-me
com suspeita, logo deu o encontro por encerrado e nunca mais empreendeu tarefa tão espinhosa.

Kaganovich firmou sua autoridade por meio das viagens para “eliminação de
dificuldades” que fez por ordem de Stalin. Estas visitas, por exemplo, às
organizações partidárias em Chelyabinsk, Ivanovo, Yaroslavl e a outros centros
provinciais, resultaram na remoção por atacado e na investigação de
funcionários locais que normalmente acabaram em tragédia. Stalin estava
muito satisfeito com o trabalho do seu “Lazar de Ferro”, como o chamava.
Kaganovich agia totalmente por iniciativa própria, guiado tão somente pelas
instruções de Stalin para “investigar bem um local e ser decisivo. Não amoleça”.
Os documentos mostram que, mesmo antes do processo completo, Kaganovich
fixava pessoalmente as sentenças, ou alterava arbitrariamente as palavras de um
testemunho para revelar uma trama contra ele, como comissário.
Tornou-se chefe da seção do Comitê Central responsável pela nomeação
para cargos importantes. Stalin logo percebeu seu zelo, sua dureza e seu
comprometimento com a função. Aos 33 anos de idade, em 1926, foi feito
candidato a membro do Politburo. Em 1925, por recomendação de Stalin, fora
enviado à Ucrânia para chefiar a organização partidária da república, onde se
instalara uma situação difícil. Suas relações com o chefe do soviete ucraniano
de comissários do povo, V.Ya. Chubar, se deterioraram, o que, na ocasião
oportuna, teria consequências fatais para este último. Os conflitos de
Kaganovich com os outros líderes ucranianos do partido continuaram e, em
1928, ele retornou a Moscou para se tornar primeiro-secretário da cidade e dos
comitês provinciais do partido. No XVI Congresso do partido, em 1930, foi
nomeado membro titular do Politburo.
Sua influência foi particularmente grande na primeira metade da década de
1930. Como comissário do povo das Ferrovias, visitava constantemente as
províncias onde a coletivização não caminhava bem, e logo depois de suas
aparições, as coisas começavam a andar rapidamente. Stalin não mostrava a
menor preocupação com os métodos utilizados pelo “Lazar de Ferro”. Cruel e
extremamente grosseiro por natureza, Kaganovich foi o tipo de homem clássico
do sistema, o burocrata que se imiscuía em qualquer função sem a menor
cerimônia. Sua visita ao Cáucaso Setentrional resultou num aumento dos
camponeses “deskulakizados” enviados ao norte. Em Moscou, ele removia
sumariamente quem quer que não cumprisse uma ordem; impulsionado pela
ignorância, proibia a encenação de peças teatrais; como chefe da comissão do
Comitê Central para o expurgo no partido foi impiedoso. Sob o pretexto da
reconstrução de Moscou, Kaganovich foi um dos responsáveis pela destruição
de muitos monumentos históricos, tais como a Catedral de Cristo Salvador, a
Torre Sukharev, o Mosteiro da Paixão, os Portais Iversk. Numa só palavra, ele
foi um “sucesso” completo, e para demonstrar seu reconhecimento àquele
decidido camarada, Stalin fez dele um dos primeiros condecorados da Ordem
de Lenin, quando ela foi criada, em 1930.

Outro dos camaradas próximos de Stalin nos anos 1930 foi Kliment
Yefremovich Voroshilov. Ele se juntou bem cedo ao movimento revolucionário
e, em 1906, foi um dos delegados ao IV Congresso do partido, onde conheceu
Lenin, Stalin e outras figuras de destaque. Depois de anos de prisões e períodos
de exílio, estava em Petrogrado para a Revolução de Fevereiro. Lutou em vários
fronts na guerra civil e foi notado na batalha por Tsaritsyn, quando se
estabeleceu sua amizade com Stalin. Sua reputação como herói da guerra civil
deveu-se em grande parte ao patronato de Stalin. Para falar a verdade, ele
combateu com grande coragem, mas sem muita reflexão. Falando no VIII
Congresso, Lenin declarou: “O camarada Voroshilov diz: ‘Não tínhamos
especialistas militares e sofremos 60 mil baixas.’ Isto é terrível. As massas
tomarão conhecimento do heroísmo do exército de Tsaritsyn, mas dizer que
manobramos sem especialistas militares não é nada defensável para a linha do
partido.”50
Durante a guerra civil, Voroshilov serviu no 1º Corpo de Cavalaria,
combatendo no front norte, no Cáucaso, na Crimeia, contra as forças
anarquistas de Makhno e tomando parte na repressão ao levante de Kronstadt,
em março de 1921, quando os soldados e marinheiros da Esquadra do Báltico
se rebelaram contra o governo bolchevique, que eles mesmos ajudaram a
conquistar o poder. Por tudo isso, foi duas vezes condecorado com a Ordem da
Bandeira Vermelha. Membro permanente do comitê central logo após o X
Congresso de 1921, tornou-se membro do Politburo depois do XIV
Congresso. Com a morte de Frunze, foi nomeado comissário do povo do
Exército e para Questões Navais. Seu sucesso nesta esfera pode ser em parte
explicado pelo fato de que, durante seu tempo de comissariado, bem como nas
academias militares e em diversos círculos, existiram muitos teóricos militares
intelectualmente criativos, tanto os que subiram com a revolução quanto os
que foram oficiais do antigo exército. Entre eles, estavam B.M. Shaposhnikov,
que escreveu Os cérebros do exército, M.N. Tukhachevsky, autor de Questões de
estratégia moderna, K.B. Kalinovsky, K.I. Velichko, A.I. Verkhovsky, A.M.
Zaionchkovsky, V.F. Novitsky, A.A. Svechin, R.P. Eideman, I.E. Yakir, e muitos
outros.
Já pelo fim dos anos 1920, existiam biografias, livros e artigos sobre
Voroshilov. Havia um distintivo de peito chamado “Fuzileiro Voroshilov” e o
carro de combate pesado KV recebeu tal designação em sua homenagem (seu
substituto, o IS, homenageou Stalin). A glória de Voroshilov foi, de fato, de
âmbito nacional, mas Stalin pouco se preocupava com isso porque, nos anos
1930, ele era saudado como “o homem que executa a vontade do líder”, ou
como um “marechal Vermelho sob a orientação do camarada Stalin”, ou ainda
“comissário de Stalin”. O secretário-geral o conhecia melhor do que ninguém;
sabia de seu verdadeiro valor. A ideia generalizada é que os dois eram autênticos
amigos, mas na amizade genuína não pode haver devedores, e Voroshilov
sempre se julgou em débito com Stalin por sua glória, status, cargos,
recompensas e a posição ocupada.
Na década de 1930, Voroshilov foi um executor completamente irrefletido,
sem opinião própria. Não tinha a capacidade sobre-humana de trabalho de
Kaganovich, nem o intelecto e a astúcia de Molotov, tampouco a cautela e a
ponderação de Mikoyan, e era inferior a muitos outros membros do Politburo
em diversos aspectos. Mas Stalin o valorizava pela aura de lenda que se formara
em torno do “líder do Exército Vermelho”. Stalin estava seguro de que, no
momento crucial, o comissário lhe daria apoio sem pestanejar. E não estava
errado. Quando Stalin desencadeou seu expurgo, Voroshilov postou-se,
inabalável, ao seu lado, enquanto as chamas consumiam três marechais da
União Soviética e centenas, até milhares, de oficiais do Exército Vermelho. No
seu discurso para o pleno de fevereiro-março de 1937, Voroshilov citou pelo
nome muitos “inimigos do povo” que haviam se infiltrado no Exército
Vermelho e demonstrou isso mencionando saqueadores trotskystas que não
estavam entre os altos escalões. Leu a seguinte carta que recebeu em agosto de
1936 de um tal major Kuzmichev:

Para o Comissário da Defesa


K.E. Voroshilov
Estou sendo acusado de ser membro de um grupo terrorista contrarrevolucionário que planeja um
atentado contra sua vida. A verdade é que entre 1926 e 1928 fiz parte de uma organização trotskysta.
Desde 1929, venho tentando me acertar. Em você, vejo não apenas o chefe do Exército Vermelho,
mas também um homem extremamente responsável. Sou possuidor de duas condecorações da Ordem
da Bandeira Vermelha. Como poderia eu ser incluído numa gangue de fascistas assassinos?
Não há dúvida de que irão me fuzilar. Talvez dentro de uns poucos anos, os trotskystas expliquem
porque caluniaram um homem honesto, e quando a verdade for revelada, solicito que você restaure
meu bom nome junto à minha família. Desculpe os rabiscos, mas eles não me cederam mais papel
algum.

Nesse ponto, Voroshilov correu o olhar pela audiência e concluiu


dramaticamente: “E, dez dias mais tarde, ele confessou que tencionavam
executar o ato terrorista no distrito de Belaya Tserkov durante as manobras.”51
Voroshilov sabia perfeitamente bem como tais confissões eram arrancadas.
Disse ao plenário, dirigindo-se, é claro, a Stalin, que, com frequência “falou
com Yezhov sobre as pessoas que estavam sendo exoneradas do exército”. Por
vezes, disse ele, “defendo indivíduos. Mas a realidade é que, nos dias de hoje,
pode-se ficar numa situação desagradável: defende-se alguém que depois se
revela um inimigo real, um fascista”. Evidentemente, isto estava por trás de sua
reação a uma carta que Yakir escreveu na véspera de sua execução, em junho de
1937:

Para K.E. Voroshilov


Em memória dos muitos anos de trabalho honesto no Exército Vermelho, peço-lhe que cuide de
minha família e que ela seja ajudada, uma vez que está desamparada e não tem culpa de nada. Solicitei
o mesmo a N.I. Yezhov.

Em 10 de junho, Voroshilov rabiscou na carta: “Duvido por completo da


honestidade de um desonesto.”52
Existem diversos volumes de documentos assinados ou minutados por
Voroshilov. Um deles contém cartas de oficiais que conseguiram escrever a ele,
antes de serem julgados ou executados, solicitando, implorando, clamando por
ajuda. Há cartas de Goryachev, Krivosheyev, Sidorov, Khakhanyan,
Bukshtynovich, Prokofiev, Krasovsky. A carta de M.G. Yefremov,**** que
escreveu em linha semelhante para Stalin e Mikoyan, diz o seguinte:

Camaradas
De posse de todas as evidências para reverter a acusação a mim imputada pelos fascistas Dybenko e
Levandovsky para minha vergonha, fiquei tão confuso na reunião do Politburo de 18.iv.38, que
esqueci de revelar a prova de minha inocência e de minha lealdade ao partido de Lenin e de Stalin. O
comandante do exército Dybenko disse algo inacreditável a respeito dele mesmo. Deve ter
enlouquecido depois das manobras, porque, de outra forma, não consigo entendê-lo, já que isso foi
em 1934! De acordo com Dybenko, ele me “recrutou”, mas diz que a tarefa era de recrutar os oficiais.
Todos os meus irmãos são comunistas, quatro deles oficiais do Exército Vermelho. Meu filho de 17
anos é membro do Komsomol. Minha mãe, minhas irmãs e seus 12 filhos vivem no kolkhoz
“Caminho da Liberdade”, na região de Orel. Meu tio foi enforcado em 1905 por ter tomado parte em
um motim naval, meu pai foi assassinado por kulaks. Eu mesmo fui operário em Moscou. Combati na
China durante a guerra. Fui ferido. Recebi a Ordem de Lenin, três condecorações da Ordem da
Bandeira Vermelha e a Ordem da Bandeira Vermelha do Trabalho.
Rogo-lhes que terminem logo com meus sofrimentos e tormentos.
Para sempre ao dispor, Mikhail Yefremov53

Como milhares de outras, esta carta não teve resposta. Na realidade, Yefremov,
assim como Bukshtynovich e Krasovsky, tiveram sorte e sobreviveram, mas não
graças a Voroshilov. Nem ele nem ninguém tinha interesse em interromper o
trabalho do moedor de carne. No despacho de sindicâncias, ele sancionava
laconicamente prisões, punições e execuções. Cito abaixo os textos de alguns
telegramas, dos quais existem, literalmente, milhares entre 1937 e 1938:

Khabarovsk. Re-Blyukher. Número 88. Julgar.


Sverdlovsk. Re-Gorbachev. Número 39. Prender.
Polyarnoe. Re-Comandante da Frota Polar do Norte. Número 212. Julgar e sentenciar
convenientemente.
Sverdlovsk. Re-Gailit. Procurar, prender e dar a sentença mais rigorosa.
Leningrado. Re-Dybenko e Mager. Número 16758. Prender e julgar.
Tbilisi. Re-Kuibyshev e Apse. Número 344. Julgar e fuzilar.54

Entre abril e maio de 1937, Voroshilov enviou a Stalin uma nota atrás da outra
do seguinte tipo: “Solicito que as seguintes pessoas, que foram dispensadas do
Exército Vermelho, sejam exoneradas do Conselho de Guerra do Comissariado
de Defesa da URSS: M.N. Tukhachevsky, R.P. Eideman, R.V. Longva, N.A.
Yefimov, E.F. Appog.”55 Ele então riscou a palavra “exoneradas” e a substituiu
por “expelidas”, muito embora soubesse muito bem para onde seriam
“expelidas”. Nos dias seguintes, ele mandou para Stalin notas semelhantes, mas
com outros nomes: Gorbachev, Kazansky, Kork, Kutyakov, Feldman, Lapin,
Yakir, Uborevich, Germanovich, Sangursky, Oshley e muitos outros. Parece
que não dava a mínima para o fato de o soviete de guerra do Comissariado de
Defesa ser constituído quase que totalmente de “espiões”, “fascistas” e
“trotskystas-bukharinistas”. O importante era não contrariar, e sim fortalecer, a
linha do camarada Stalin. Como estava mais em evidência para a opinião
pública do que os outros, Voroshilov foi o membro da troika menos ofuscado
por Stalin. Não obstante, isso não teve o menor efeito sobre sua falta de
julgamento independente ou sobre suas ações.

Juntamente com Beria, esses três – Voroshilov, Kaganovich e Molotov – têm


enorme responsabilidade pelos crimes cometidos por Stalin, mas uma
responsabilidade que tem que ser também partilhada pelos muitos que
simplesmente votaram a favor das “sábias decisões” de Stalin e disseram “sim” a
elas. A gradação das faltas varia, mas a história decidirá quem foi mais ou
menos culpado. Andreyev, Zhdanov, Kalinin, Mikoyan, Malenkov, Khruschev
e algumas outras figuras dos escalões elevados da liderança do partido e do
Estado nada fizeram para limitar o mando pessoal de Stalin.
Notas

* Kaganovich faleceu em 1991. [N.T.]


** Irmão de Kaganovich, bolchevique desde 1905, foi comissário da indústria de fabricação de aviões.
*** P.F. Krivonos, maquinista do depósito Slavyansk, teve desempenho sem precedentes com sua
locomotiva e deu seu nome ao movimento dos operários ferroviários congêneres. Cf. Stakhanov.
**** Yefremov foi oficial que sobreviveu, chegou aos altos escalões e lutou na Segunda Guerra Mundial.
Morreu em combate em 1942.
[26]
O fantasma de Trotsky

T rotsky não estava mais presente, contudo Stalin passou a odiá-lo ainda
mais em sua ausência, e o espectro do rival voltava com frequência
para assombrar o usurpador. Stalin passou a se recriminar por ter
concordado que Trotsky se exilasse. Nem para si mesmo admitia temer Trotsky
naqueles tempos, porém, por certo, temia pensar nele. O pensamento de que
jamais seria capaz de resolver o “problema” de Leib Davidovich (como tendia a
se dirigir a Trotsky em sua mente, usando a forma ídiche para Lev), fazia-o
ferver de ira violenta. Em determinada ocasião, perdeu o controle e quase
revelou publicamente seus sentimentos. Conversando com Emil Ludwig sobre
o assunto da autoridade, declarou subitamente:
“Trotsky também teve grande autoridade, mas, e daí? Tão logo voltou as
costas para os trabalhadores foi esquecido.”
“Completamente esquecido?”, perguntou Ludwig.
“Ocasionalmente se lembram dele... com hostilidade.”
“Todos com hostilidade?”
“Quanto a nossos operários, eles se lembram de Trotsky com hostilidade,
irritação e ódio.”56
É possível que muitos operários lembrassem de Trotsky de forma pouco
generosa, mas era Stalin, sobretudo, quem se recordava dele com hostilidade,
irritação e ódio. Pensava em Trotsky quando sentava e ouvia Molotov,
Kaganovich, Khruschev e Zhdanov. Trotsky tinha intelectualidade de calibre
diferente, com suas percepções de administrador e seus talentos como orador e
escritor. Era muito superior em todos os aspectos a esse bando de burocratas,
mas também superior a Stalin, que sabia disso. “Como pude deixar um inimigo
desses escapulir entre meus dedos?” – quase gemia ele. Em dada oportunidade,
confessou a um círculo íntimo que aquele fora o maior engano que cometera
na vida.
Outro motivo para o ódio crescente derivava do fato de que – embora não
admitisse nem para si mesmo – descobria muitas vezes que seguia a abordagem
de Trotsky em política prática. Lembrava-se de que, certa vez, quando o
Politburo debatia a NEP, Trotsky declarara que “a classe trabalhadora só
caminhará para o socialismo à custa de grandes sacrifícios, canalizando todas as
suas energias, e dando seu sangue e sua coragem”. Afirmara em outubro de
1922 num congresso do Komsomol e vivia repisando que, sem “exércitos de
trabalhadores”, “militarização do trabalho” e “total abnegação”, a revolução
corria o risco de jamais caminhar do “reino da necessidade para o reino da
liberdade”. Quase a totalidade dos 15 volumes das obras de Trotsky é devotada
à “militarização do trabalho”. Falando em 12 de janeiro de 1920 num encontro
das frações comunistas dos sindicatos, ele reivindicou que “batalhões de
choque” fossem enviados a locais especialmente importantes “de modo que eles
possam aumentar a eficiência pelo exemplo pessoal e pela repressão”. Era
necessário aplicar “métodos coercitivos, estabelecer condições militares em [...]
áreas imprescindíveis. Temos que nos valer da conscrição pelo emprego de
métodos militares”.57 Eis a expressão clássica do comunismo de quartel. E
Trotsky, que foi um de seus defensores no início dos anos 1920, jamais o
abandonou por completo, embora deva ser lembrado que tais ideias foram
expressas sob condições de guerra civil.
Stalin sempre se impressionou por qualquer ideia que implicasse o povo,
voluntariamente, “dando seu sangue e sua coragem” pela causa. No exílio,
Trotsky se referia com frequência a Stalin como um “imitador”, querendo
presumivelmente indicar sua tendência em se apoderar das ideias dos outros no
campo da metodologia social. Mas a principal razão para Stalin temer o
fantasma de Trotsky foi que este criou sua própria organização, a Quarta
Internacional, e pôs Stalin no mesmo nível de Hitler, fato intolerável para o
secretário-geral. O espectro criava uma vingança mais dolorosa que qualquer
outra que pudesse ser arquitetada por Stalin. Por vezes, parecia que a batalha
que julgara terminada, quando o Ilyich deixou despercebidamente o porto de
Odessa levando Trotsky a bordo, em 10 de fevereiro de 1929, apenas
começava.
Apesar de tudo, era uma batalha desigual. Num canto, o líder ascendente
que se propôs a inculcar no partido e no povo um sentimento de ódio contra
Trotsky, como traidor e assecla fascista. No outro canto, o líder derrotado que
não economizava retórica para mostrar que Hitler e Stalin se mereciam
mutuamente.
Apoiado por pequenos grupos nos vários países em que esteve exilado,
Trotsky foi capaz de influir na opinião pública. Seus discursos, ao vivo ou
impressos, foram sempre eficientes. Como antes, seu alvo principal era Stalin, a
quem alcunhou de “coveiro da revolução”. Trotsky sabia muita coisa. Durante
a revolução e a guerra civil atuara mais próximo de Lenin que Stalin. Mais de
uma vez, Lenin saiu em sua defesa, conhecedor que era dos talentos de Trotsky
como organizador e propagandista. Stalin se lembrava de que, quando a relação
entre os dois ainda era tolerável, ele tinha concordado fundamentalmente com
muitas das ideias esquerdistas de Trotsky. Por exemplo, quanto ao avanço sobre
Varsóvia para acelerar a conflagração revolucionária e quanto à organização da
campanha na Ásia. Trotsky também acreditava que a Ásia era mais
revolucionária que a Europa e que, portanto, se uma organização
revolucionária fosse criada ao sul dos Urais, uma marcha sobre a Ásia para dar
velocidade à revolução naquele continente era política realista. Em tais
circunstâncias, a revolução na China e na Índia seria definitivamente vitoriosa.
Stalin não fazia objeção a esta análise.Trotsky desejava aumentar o ritmo: ele
não mais pensava numa escala russa, mas em termos da revolução mundial.
Num certo sentido, era um romântico da sublevação mundial e muitos de seus
planos de longo prazo nos anos 1920 estavam ligados a este objetivo. Todavia,
Stalin entendeu que falar publicamente sobre tais “pecados” de Trotsky
significava nublar um pouco sua própria pessoa, já que era então o “herdeiro”
das causas revolucionárias do Outubro de 1917.
A ideia de que Trotsky não falava só em seu nome, mas também dos
silenciosos aliados e dos oposicionistas dentro da URSS, era particularmente
dolorosa para Stalin. Quando lia as obras do rival, tais como A escola stalinista
da falsificação, Carta aberta aos membros do partido bolchevique ou O Termidor
stalinista, o líder quase perdia o autocontrole. Fora tão cego! Poderia estar
errado quando disse às frações comunistas dos sindicatos, em novembro de
1924, que Trotsky funcionara bem durante o levante revolucionário, mas
perdera o azimute e caminhava para a derrota?58 Afinal de contas, o rival sofrera
derrota total, mas não se rendia, ainda continuava lutando. Vezes sem conta
Stalin se atormentava ao pensar em seu erro: por que deixara Trotsky sair do
país? Agora, tinha que pagar pelo lapso de descuido. Os cúmplices de Trotsky
preparavam uma trama contra ele, montando ações diversionárias, executando
atos de espionagem, organizando uma clandestinidade, e ele, Stalin, nada fizera
durante todos aqueles anos.
No seu discurso para o pleno de fevereiro-março de 1937 “sobre as
inadequações no trabalho do partido e as medidas para a liquidação dos
trotskystas e outros agentes duplos”, Stalin destacou o “elo principal”, ou seja, o
“trotskysmo contemporâneo”. Dirigindo-se à plateia como se fosse constituída
de escolares, perguntou: “Que é o trotskysmo?” E deu a resposta: “O
trotskysmo contemporâneo é um bando desesperado de saqueadores. Sete ou
oito anos atrás”, continuou, “era uma equivocada tendência antileninista. Mas
agora é uma gangue de saqueadores fascistas.” E continuou:

Kamenev e Zinoviev negaram que tivessem uma plataforma política. Estavam mentindo. Durante o
julgamento de 1937, Pyatakov, Radek e Sokolnikov não negaram a existência de tal plataforma. A
restauração do capitalismo, o desmembramento territorial da União Soviética (a Ucrânia para os
alemães, as províncias marítimas para os japoneses); na eventualidade de um ataque de nossos
inimigos – sabotagem e terror. Tudo isto é a plataforma do trotskysmo.59

Dessa forma, Stalin amarrou todos os seus inimigos, derrotados ou potenciais,


com a mesma corda trotskysta.
Está na hora de os historiadores chegarem a uma avaliação mais acurada
sobre Trotsky. Já me referi a suas qualidades intelectuais e morais, por
contraditórias e controversas que fossem. Ele tinha uma fraqueza incurável, isto
é, a convicção de que era um gênio, crença que era incapaz de esconder. Suas
ambições derivavam disso. Aqueles que dizem que, se Trotsky tivesse derrotado
Stalin, a União Soviética não seria governada por ditadura diferente, não estão
necessariamente errados. Contudo, em função da grande inteligência e da
cultura de Trotsky, é muito duvidoso que cometesse os crimes de Stalin.
A verdade é que, durante a revolução e a guerra civil Trotsky só perdia em
importância para Lenin. É impossível saber o que Trotsky seria se Lenin
vivesse. Uma coisa é certa: entre 1917 e 1924, ele não foi hostil à revolução e
ao socialismo. Foi, isso sim, inimigo consistente de Stalin. Os ataques
antissoviéticos aos quais recorreu em seus últimos anos foram resultado lógico
de sua batalha contra Stalin. Provavelmente, tais ataques foram nocivos à causa
soviética, mas a seu crédito deve-se dizer que não se dobrou ao despotismo do
secretário-geral. Dos primeiros a perceber que Stalin preparava um terror
reacionário soviético, ele acertou em muitas coisas. Como Lunacharsky
escreveu:
Trotsky foi homem arrogante e irritadiço. No entanto, depois que se associou aos bolcheviques, foi só
em sua atitude em relação a Lenin que Trotsky sempre revelou – e continua a revelar – uma docilidade
prudente que chega a ser tocante. Com a modéstia de todos os grandes homens, ele reconhece a
primazia de Lenin.60

Porém, como já mencionei alhures, Trotsky gostava bem mais de se ver na


revolução do que da ideia da revolução em si. A raiz de sua tragédia não foi
tanto a luta contra o stalinismo e sim a disputa com Stalin pela sucessão, e o
desapontamento pelas esperanças frustradas meramente reforça o elemento
pessoal de seu modo de pensar.
Que perigo real representava Trotsky nos anos 1930? Que influência tinha
no progresso social e político da URSS? É importante esclarecer essas questões
porque o “perigo trotskysta” serviu como desculpa para uma grande tragédia na
história do país.
Enquanto Stalin fortalecia seu mando pessoal, Trotsky perambulava pelo
mundo, da ilha de Prinkipo ao mar de Mármara, à França, à Noruega e,
finalmente, ao México. De início, esperava um breve retorno à URSS,
acreditando que Stalin não duraria muito. As deficiências intelectuais do
Secretário-Geral, sua ignorância, rudeza e astúcia eram por demais óbvias,
raciocinava Trotsky, e tendiam a gerar crescente oposição e a multiplicar
inimigos. Este foi outro dos erros de Trotsky. Acreditava que, em função de sua
popularidade generalizada, todos os elementos hostis a Stalin se grupariam em
torno dele. Enquanto vagava pelos montes marrons de Ada, em Prinkipo,
lembrava que aquele era o lugar para onde os governantes bizantinos exilavam
seus inimigos, e ele agora abrigava um dos “arquitetos da revolução russa”,
como descrevia a si mesmo em seu diário.
No começo, a imprensa ocidental reagiu um tanto cautelosamente ao exílio
de Trotsky. Por um breve momento, correram rumores de que Stalin o
deportara intencionalmente para que sublevasse os trabalhadores dos países
capitalistas. A imprensa alemã e a inglesa chegaram a entrar em detalhes,
referindo-se a Trotsky como o “detonador revolucionário”; por causa disso, não
lhe ofereceram de imediato asilo político. Entretanto, aos poucos foi ficando
claro que, embora continuasse a condenar veementemente o fascismo, a
burguesia filistina e a expansão imperialista, a força principal de sua ira estava
dirigida, acima de tudo, contra Stalin e contra o regime stalinista.
Com a ajuda de seus seguidores, que faziam a peregrinação a Prinkipo
vindos de vários países, Trotsky começou a estabelecer contato com vários
grupos hostis ao Comintern, ao regime stalinista e a Stalin pessoalmente, e logo
lançou O boletim da oposição em diversas línguas. Conseguiu até mesmo
introduzir, antes de 1935, alguns poucos exemplares na União Soviética,
deixando claro que desejava restabelecer o contato com os antigos aliados,
como observa seu biógrafo, Isaac Deutscher. No terceiro volume de sua
biografia, escreve Deutscher que, por exemplo, por intermédio de Sobolevicius-
Senin (pseudônimo de Jack Soble), um correspondente alemão em Moscou,
Trotsky obtinha importantes informações soviéticas, inclusive estatísticas, para
seus livros e artigos. Sobolevicius e seu irmão administravam a correspondência
de Trotsky com seus seguidores na URSS, providenciando cifras, cartas por
canais especiais, números de caixas postais, e coisas do gênero.61 Malgrado a
precariedade de tais contatos, até 1935 Trotsky foi capaz de obter informações
sobre a URSS e de enviar suas próprias cartas por meios ilegais.
Quando deixou a União Soviética, Trotsky levou consigo trinta caixas com
arquivos e livros, descuido que, mais tarde, Stalin imputou aos órgãos de
segurança que cuidaram da deportação. Os quatro longos anos passados em
Prinkipo foram tempos de espera, de análise e determinação da futura linha de
ação. Gradualmente, foi se conscientizando de que não seria chamado de volta
a Moscou e então decidiu que a única maneira de “se manter à tona” era por
meio da luta contra Stalin, embora não tivesse ainda uma ideia clara de como
fazê-lo. Mas não aceitava por completo a ideia de que aquele era seu exílio final
e de que jamais poria de novo os pés na pátria-mãe.
Sentado no pequeno quarto que lhe servia de estúdio, janela voltada para o
mar, Trotsky folheava as páginas de suas obras coletadas. Se bem que
pontilhada de gritante egoísmo do autor, a melhor delas, como ele mesmo
reconhecia, era a História da Revolução Russa, que escreveu depois do
rompimento com Stalin. Outro volume, devotado a retratos de figuras
políticas, de escopo extraordinariamente amplo, e escrito, como sempre, de
forma engajada, não inclui um estudo separado de Lenin, embora ele seja
bastante mencionado.62 Ele leu de novo o discurso que pronunciara havia tanto
tempo, no VII Congresso: “O congresso do partido, a mais alta instituição
partidária, rejeitou indiretamente a política que eu, entre outros, seguia [...]
portanto, estou abrindo mão de todos os cargos, qualquer que seja sua
importância, com que o partido me distinguiu.”63
Até aquela ocasião, Stalin era pouco mencionado nos trabalhos de Trotsky,
com a possível exceção do volume sobre cultura, onde havia referências
indiretas. Quanto à democracia e à burocracia, ele escreveu que “a construção
socialista só é possível com o crescimento da democracia genuína e
revolucionária das massas laboriosas. Onde existe a burocracia, inevitavelmente
surge o mochalinstvo. O princípio principal do mochalinstvo* é a
obsequiosidade no obedecer. Obedecer a quem? Ao chefe...”64 Concluiu que
tudo que lhe restava era lutar contra Stalin, não tanto contra o sistema mas
contra o homem.
Segundo Deutscher, antes da derrota final e da deportação, Trotsky,
juntamente com Zinoviev e Shlyapnikov, tentou organizar grupos
insignificantes de aliados no exterior em partidos comunistas e de
trabalhadores. Na França, eles foram liderados por homens como Albert
Rosmer, Boris Souvarine e Pierre Monatte, na Alemanha, por Arkadi Maslov e
Ruth Fischer (ex-camaradas de Zinoviev), na Espanha, por Andrés Nin, na
Bélgica, pelos ex-comunistas Van Overstraaten e Lesoil. Pequenos grupos de
trotskystas surgiram em Xangai, Roma, Estocolmo e em diversas outras cidades
e capitais. Foi com tal composição fragmentária que Trotsky esperava erigir um
novo movimento de credo anti-stalinista. Mas não tinha uma base social séria,
nem um programa sério. O anti-stalinismo não possuía muito atrativo para
uma organização de âmbito mundial. Portanto, Trotsky começou de novo a
ruminar a ideia da “revolução permanente” e de suas variantes, mostrando que
“a doutrina do socialismo em um só país era uma distorção nacional-socialista
do marxismo”. Todavia, o elemento constante de seu “programa” continuou
sendo o anti-stalinismo fanático, sem poder esconder sua animosidade pessoal
pelo homem, a injúria provocada pelas ambições frustradas e sua dor interna
pela perda da família na Rússia. Trotsky esperava que seu anti-stalinismo
ostensivo encontrasse amplo eco nos partidos comunistas, mas isto não
aconteceu.
Para muitos comunistas de diversos países, as conquistas soviéticas na
economia, cultura e educação estavam associadas ao nome de Stalin. Os
infames julgamentos políticos ainda não haviam começado e pouco se conhecia
de Stalin para que o Ocidente tivesse alguma percepção de seu caráter. A
tentativa de Trotsky de exercer pressão sobre a União Soviética e sobre Stalin e
sua política estava fadada ao fracasso, enquanto qualquer esperança de
“levantar” os antigos aliados dentro da URSS contra Stalin era ainda menos
realista. Por meio de artigos, comunicados à imprensa, discursos e entrevistas,
no entanto, ele conseguiu, quase inadvertidamente, criar uma impressão
provocativa de que o número de seus seguidores crescia e de que as forças anti-
stalinistas se consolidavam. Desafortunadamente, isto não ocorria, mas Stalin,
homem agudamente desconfiado, levou a sério muitas daquelas declarações
sem compromisso.
Stalin se consumia de ódio, mas nada podia fazer. Muitas das obras de
Trotsky eram dirigidas contra ele, mesmo em seus títulos: A escola stalinista da
falsificação, Crimes de Stalin e Stalin, sendo que este último não pôde ser
completado por causa de sua morte. A coletânea das obras de Trotsky foi
publicada em dezenas de países, e foi delas que a opinião mundial formou a
imagem de Stalin, não dos livros de Feuchtwanger e Barbusse. O sombrio
déspota asiático saiu das páginas de Trotsky manhoso, cruel, fanático, estúpido
e vingativo. Trotsky pegou pesado, e só em pensar nele Stalin era incendiado
pelo desejo da vingança. Em cada trotskysta, via um fragmento de Trotsky e,
então, exigiu que não houvesse piedade com eles.
Enquanto estava na Noruega, em 1936, Trotsky escreveu A revolução traída.
Nele, apela para que comunistas, ex-membros da oposição, antigos
mencheviques, SR e dissidentes de outros partidos organizem um coup d’état,
ou o que chama de “revolução política”. Seu ódio por Stalin e o desespero de
sua própria posição tornavam impossível uma avaliação sóbria da situação
política dentro da URSS. O livro contém não só um relato do passado, visto
através das lentes de Trotsky, como também um prognóstico de longo prazo
para o desenvolvimento social na União Soviética. Todavia, sua análise é
defeituosa, porque a predição de uma revolução política contra Stalin se baseia
tão somente em seu desejo apaixonado de derrotar o “líder”. Prevê também
que, se a Alemanha desencadeasse uma guerra contra a URSS, Stalin
dificilmente evitaria a derrota.
Stalin leu a tradução de A revolução traída numa só noite, espumando de
raiva. Foi a gota d’água. Por alguns anos, vinha alimentando duas decisões em
sua mente e, então, decidiu executá-las. Em primeiro lugar, precisava remover
Trotsky a qualquer custo da arena política. Sabia que qualquer tentativa de
assassinato, por mais dissimulada que fosse, teria sua inspiração e organização
ligadas a ele. Em segundo lugar, estava ainda mais convencido então da
necessidade de uma liquidação final e obstinada de todos os inimigos
potenciais de dentro do país. É possível que nem ele soubesse o alcance de tal
decisão. Sentia que chegara a hora em que não poderia haver mais hesitação,
ainda mais que Yezhov – muitas vezes transpirando vodka – trazia-lhe
constantes relatos de que ex-oposicionistas estavam ativos.
Stalin lembrou-se do quase esquecido affair Blyumkin. Blyumkin foi o
revolucionário socialista que assassinou o embaixador alemão, conde Mirbach,
em Moscou, em 1918, na tentativa de descontinuar as conversações de paz que
se realizavam em Brest-Litovsk. Foi sentenciado ao fuzilamento, mas graças à
intercessão de Trotsky, a pena foi comutada para “penitência por ter lutado em
defesa da revolução”. Blyumkin trabalhou por algum tempo na equipe de
Trotsky, tornou-se íntimo dele e depois foi servir na GPU. Quando retornava à
URSS, vindo da Índia via Constantinopla, em 1929, visitou Trotsky em
Prinkipo. De acordo com Deutscher, Trotsky entregou ao ex-auxiliar o texto de
um discurso para seus seguidores em Moscou e também lhe deu alguns
conselhos sobre como lutar contra Stalin. Blyumkin foi imediatamente preso à
sua chegada na URSS; talvez tivesse sido seguido em sua viagem a Prinkipo, ou
talvez tivesse falado descuidadamente a alguém sobre sua viagem. Entretanto, é
provável que o relato de I.A. Sats, secretário de Lunacharsky, esteja mais
próximo da verdade. Segundo ele, Blyumkin entregou a Radek um pacote que
Trotsky lhe havia endereçado, e também transmitiu uma mensagem verbal.
Quando Blyumkin saiu, Radek, sem abrir o pacote, chamou Yagoda e falou-lhe
sobre a visita. Yagoda fez um relato a Stalin e o “mensageiro” foi preso de
pronto. Radek gozou de uma indulgência de curta duração. Blyumkin foi
fuzilado depois de rápido julgamento. A sorte não iria lhe sorrir duas vezes.
Existiriam outros Blyumkins por perto, seguindo instruções de Trotsky?
Quem seriam? Quem poderia avaliar a escala total da ameaça? Até aonde
Trotsky estendera sua teia? Talvez muitos trotskystas tivessem ficado
intimidados com a execução de Blyumkin, mas quem poderia garantir que
todos os seguidores de Trotsky estavam aterrorizados até a passividade?
Em diversos discursos, Stalin proclamou que o trotskysmo era a principal
plataforma hostil sobre a qual todos os inimigos da União Soviética estavam
grupados. O fantasma de Trotsky expandiu todas as proporções, levando-as ao
ponto de ameaça ao Estado. Stalin via “a mão de Trotsky” em todos os fiascos e
desastres. Nos julgamentos políticos de 1937-38, as acusações principais eram a
manutenção de vínculos diretos com Trotsky, a recepção de suas ordens ou
instruções, ou mesmo o encontro com ele em Berlim ou Oslo, e assim por
diante. No pleno de fevereiro-março de 1937 e em similares – ocorreram
quatro deles naquele ano – as expressões “Trotsky”, “trotskysmo”, “espiões e
assassinos trotskystas” foram ouvidas mais que quaisquer outras. Fosse qual
fosse o tópico em discussão, o espectro de Trotsky pairava sobre o salão.65 Para
Stalin, Trotsky tornara-se a personificação do mal universal.
A situação real era bem diferente. Mesmo no ponto mais alto, em meados
dos anos 1920, Trotsky tinha poucos aliados no partido. Depois da deportação,
alguns permaneceram leais, mas no máximo eram uns cem. Uns achavam que
Trotsky há muito deixara de lutar pelo socialismo e conduzia uma vendetta
pessoal que beirava o antissovietismo. Outros condenaram o trotskysmo e
abandonaram de todo a vida política. Os que Stalin “perdoou” e permitiu que
retornassem a Moscou – inclusive Rakovsky, Preobrazhensky, Muralov,
Sosnovsky, Smirnov, Boguslavsky e Radek – receberam cargos de terceiro
escalão nos comissariados do povo da Economia e da Educação, mas não lhes
foi permitido voltar à cena política. A avassaladora maioria deles se retratou
publicamente por intermédio da imprensa, e nenhum representava o mínimo
risco para o sistema ou para a estabilidade interna da sociedade.
Stalin sabia que emasculara todos intelectualmente ao forçá-los a renunciar
ao esquerdismo, a condenar a teoria da revolução permanente e a aceitar o
leninismo segundo a interpretação do secretário-geral. Mas sabia também que,
no fundo de seus corações, não estavam totalmente reconciliados e isso, para
ele, era um grande perigo. Em sua natureza insincera, supunha naturalmente
que todos nutrissem qualidades semelhantes.
Na verdade, a ameaça representada pelo trotskysmo não era nada de vulto.
Depois de 1935, como mostram suas cartas e publicações, Trotsky perdeu
quase todo o contato com a URSS. Os jornais e as rádios eram suas principais
fontes de informações. Enquanto filtrava e espremia os dados necessários,
continuava a pensar que era capaz de influenciar o processo social, político e
econômico na URSS. Stalin forçava-se a acreditar que isto era possível porque
precisava de um pretexto para acabar de uma vez por todas com aqueles que
não compartilhavam suas opiniões ou com os que pudessem agir de forma
hostil no futuro. Pensar sobre as predições de Trotsky o perturbava
mentalmente, e só o título do último livro do rival, Crimes de Stalin (publicado
poucos meses depois do julgamento político, de janeiro de 1937 em Moscou,
de Pyatakov, Radek, Sokolnikov, Serebryakov e outros), era suficiente para tirá-
lo do sério.
Ao afirmar que a União Soviética não suportaria um embate com os países
capitalistas, Trotsky apenas proclamava que a posição de Stalin não tinha a
menor esperança. Suas palavras ecoavam nos ouvidos de Stalin como presságio
agourento:

Amanhã, Stalin pode se transformar em carga pesada para o grupo governante. [...] Stalin está prestes
a concretizar sua trágica missão. Quanto mais parece que não precisa de ninguém, mais perto está a
hora em que ninguém precisará dele. Nessa ocasião, Stalin dificilmente ouvirá palavras de gratidão
pelo que fez. Sairá de cena levando nos ombros o peso de todos os seus crimes.66

Ao movimentar-se para liquidar os remanescentes da antiga oposição e, assim,


retirar de Trotsky qualquer esperança de concretização de suas profecias, Stalin
também procurava desferir um golpe mortal no adversário.
Nas leituras que fez de Trotsky, Stalin não viu apenas apelos políticos à
ação. Ao longo de toda a sua obra, Trotsky afirmava que a presença de Stalin
no Olimpo do poder era puro acidente, um gracejo de mau gosto da história.
Isso feria o “líder” mais que qualquer outra coisa. Em História da Revolução
Russa, Stalin leu:

Da extraordinária significação que teve a chegada de Lenin, deve-se inferir que os líderes não são
acidentalmente criados, que são gradualmente selecionados e mui treinados ao longo de décadas, que
não podem ser caprichosamente substituídos, que sua exclusão mecânica da luta deixa o partido com
uma ferida aberta e, em muitos casos, pode paralisá-lo por um período longo.67

O fantasma estava sempre lá, ao lado do homem que envergava o manto do


imperador, mesmo que o espectro ainda fosse de uma pessoa viva e distante de
Moscou. Talvez, ao pensar naquele fantasma, Stalin tenha se recordado do
congresso do partido em Londres, ocorrido havia tanto tempo, quando viu
Trotsky pela primeira vez, com sua cabeleira ruiva, movimentos enérgicos, o
pincenê, o discurso eloquente, os gestos teatrais. Trotsky atraíra a atenção de
todos. Em diversas ocasiões, o olhar de Trotsky recaiu sobre o sombrio
caucasiano que ainda era conhecido pelo nome de Djugashvili. Naquela
oportunidade, fora Trotsky quem dera as cartas e Stalin quem constituíra o
espectro silencioso. Poderia o jovem revolucionário ter imaginado então que
aquele misterioso membro de um grupo de combate no Cáucaso iria se
transformar em acompanhante e inimigo até o fim de sua vida, uma vida que
seria interrompida, para grande alegria de Stalin, em 21 de agosto de 1940?
Nota

* Mochalin é um personagem da peça de Griboyedov, O infortúnio da esperteza, que emprestou seu nome
ao carreirismo bajulador.
[27]
Um vencedor popular

M esmo com a artificialidade dos meios empregados para consegui-la,


a popularidade de Stalin era autêntica entre as massas, cujas
opiniões sobre ele e sobre as questões da nação se baseavam em
aparências, normalmente porque não tinham nem a oportunidade nem a
inclinação para sondar mais profundamente o que acontecia. Tratava-se de um
tempo em que a uniformidade de pensamento era imposta por todos os meios
disponíveis. Desde o jardim de infância, as crianças eram ensinadas a entoar
versos pela saúde do grande líder. Ninguém podia se dar ao luxo de não amar
Stalin; mesmo assim, ainda surge a pergunta: por que ele era tão popular?
Uma das razões pode ser que, apesar das enormes falhas morais e do
sacrifício físico, a sociedade não se degradara, e diversas conquistas foram
consumadas nas esferas econômica, social e cultural. Sem dúvida, se o líder
tivesse calibre moral mais apurado, as conquistas teriam sido maiores, mas a
verdade é que a natureza patológica do culto a Stalin não retardou por inteiro o
desenvolvimento da sociedade.
Mudanças de vulto foram empreendidas no desenvolvimento industrial. As
estatísticas, se bem que exageradas, indicam que o plano de Lenin para a
eletrificação da indústria foi concretizado. Por volta de 1935, a produção bruta
da indústria pesada era 5,6 vezes maior que antes da guerra.68 Tendo vivido a
derrocada industrial provocada pela Primeira Guerra Mundial e pela guerra
civil, o povo não poderia deixar de ficar admirado com a enorme energia e a
espantosa impulsão liberadas pela Revolução de Outubro. Podia dizer para si
mesmo: “Somos capazes de muita coisa! Vamos completar o Plano de Cinco
Anos em quatro anos!” E, como que confirmando as palavras de Stalin – “A
vida ficou melhor, ficou mais alegre!” – no fim da década de 1930, centenas de
novas fábricas e oficinas industriais, estradas, cidades, palácios da cultura, casas
de repouso, hospitais, escolas e laboratórios haviam surgido, modificando o
cenário.
As coisas estavam consideravelmente piores no interior, onde os atos
criminosos da “deskulakização” danificaram por décadas o setor agrário. Se,
antes da coletivização, existiam 25 milhões de pequenos lares rurais, dos quais
35% eram de camponeses pobres, 60% de camponeses remediados e 5% de
kulaks, em meados dos anos 1930, 90% dessas unidades rurais estavam
coletivizadas. Contudo, isso não significou um aumento decisivo na produção.
Entre 1909 e 1940, a safra de cereais cresceu apenas 19%, a produção de carne,
15%, a de leite, apenas 14%, enquanto a de lã caiu 20%.69
O emprego da repressão como instrumento principal da coletivização não
só deu nascimento a prolongada tensão social, como também foi
historicamente “vingado” pelo crônico atraso nesta esfera. Os alardes feitos por
Stalin a respeito de conquistas na agricultura eram todos sem fundamento.
Técnica, especialistas, educação e cultura podem muito bem ter chegado às
fazendas coletivas, mas a substituição das antigas estruturas pelas novas provou
ser dificílima.
As estatísticas da educação impressionavam mais. Existiam cerca de sete
vezes mais especialistas com nível superior do que em 1913, enquanto a
educação secundária cresceu quase vinte e oito vezes.70 O analfabetismo caiu
drasticamente. A imprensa, o rádio e o cinema tiveram influência direta sobre
uma população, a qual dedicava todas as suas energias na construção da
sociedade socialista.
A maioria do povo sentia que aquele era apenas o início, que amanhã ou
depois de amanhã novos horizontes se abririam para uma melhora no modo de
vida, nas condições de trabalho e na previdência social. Quando terminou o
racionamento de comida, tanto os bens industriais quanto os itens de
alimentação passaram a ser mais fartos nas lojas e, embora comparada com a
dos dias presentes a vida fosse mais dura, mais abarrotada de pessoas e com
maiores carências, a atmosfera geral era de otimismo. A mídia proclamava que
todos os sucessos presentes e futuros se deviam à “orientação sábia do líder”.
Desde a tenra idade, as crianças aprendiam que “Stalin pensa em cada um de
nós”, “se não fosse Stalin, não seríamos uma potência industrial, não teríamos
um teto sobre nossas cabeças e a certeza de um pedaço de pão”. Assim, a
despeito dos crimes que campeavam, o povo prosseguia construindo, criando,
esforçando-se. Paradoxalmente, numa ocasião em que milhares e milhares de
inocentes pereciam no esmeril de Stalin, aqueles poupados desta sorte amarga
frequentemente surpreendiam o mundo com suas conquistas.
Em junho de 1937, quase ao mesmo tempo em que Tukhachevsky e outros
chefes militares eram sumariamente julgados, o Pravda informou que V.
Chkalov, G. Baidukov e A. Belyakov haviam feito o primeiro voo sem escalas
entre Moscou e a América do Norte, via Pólo Norte, em seu ANT-25. Em
março de 1937, o Pravda publicou que Alexei Stakhanov estabelecera um novo
recorde em seu trabalho ao extrair 102 toneladas de carvão em seis horas na
Mina Central Stalin, ou seja, 16 vezes o normal para um mineiro de sua seção!
Num turno apenas, ele ultrapassara a meta de sua seção em 83 toneladas.71 Mas
até isso tinha que ser, de alguma forma, vinculado a Stalin. No livro História de
minha vida, Stakhanov escreveu:

Quando me lembro de tudo, quando organizo meus pensamentos, só consigo dizer uma coisa:
obrigado, camarada Stalin! O camarada Stalin proporcionou a mim, um trabalhador comum, mais
apoio do que jamais imaginei. Agora, acostumei-me com a expressão, “movimento Stakhanovista”.
Vejo com frequência meu nome nos jornais e me ouço mencionado nas reuniões. Francamente, no
início eu não entendia nada. Mas agora acho correto chamar nosso movimento de stalinista, pois foi a
classe trabalhadora que se pôs em marcha na campanha stalinista pelo avanço técnico, o que acabou
resultando no meu recorde e no de meus camaradas. Foi o camarada Stalin quem aumentou a
amplitude de nosso movimento.72

Os pioneiros do trabalho, os inovadores, os entusiastas e os patriotas recebiam


publicidade não por seus feitos, mas através do prisma da liderança e da
participação e preocupação de Stalin com cada um deles; os sucessos
alcançados robusteciam a popularidade do líder, algumas vezes das formas mais
inesperadas. Recebi uma carta de S.E. Plost, um membro do partido cujo pai,
oficial político do Exército Vermelho, dera-lhe o nome de Stali atendendo uma
solicitação de seus estudantes na Academia Político-Militar Lenin. Seu pai foi
preso em 15 de maio de 1937 como “inimigo do povo” e fuzilado em 4 de
novembro do mesmo ano. Stali Plost sobreviveu carregando o nome do déspota
que assassinara seu pai.
A campanha de desmascaramento e destruição de “inimigos” foi também
ligada à autoridade e à popularidade de Stalin. A imprensa repisava
constantemente a ideia de que “saqueadores trotskystas-zinovievitas”
planejavam atos terroristas contra a liderança do partido e do Estado e,
sobretudo, “queriam matar o camarada Stalin”, insistia também em que “o
camarada Stalin, que está em constante perigo, atenderá quem quer que tenha
cometido enganos mas se disponha a melhorar”. No pleno de fevereiro-março
de 1937, Molotov leu uma das cartas do líder como exemplo da “atitude
solícita do camarada Stalin para com os quadros”.

Ao secretário do comitê da cidade, camarada Golyshev, Perm.


O comitê central recebeu informação concernente à perseguição e à difamação do gerente da fábrica
de motores, Poberezhsky, em função de seus pecados passados como trotskysta. Considerando que
tanto Poberezhsky quanto seus companheiros de trabalho laboram agora conscientemente e têm a
confiança total do comitê central, solicito que o camarada Poberezhsky e seus companheiros de
trabalho sejam protegidos contra tal difamação e que uma atmosfera de total confiança seja criada em
torno dele.
Informe imediatamente o comitê central sobre as medidas tomadas.73

“Esta é a forma de tratar antigos camaradas trotskystas que agora trabalham


honestamente em seus cargos”, concluiu Molotov. Mesmo no auge da
repressão, Stalin esforçava-se por passar a imagem de pessoa justa e atenciosa. A
população, de seu lado, aceitava de bom grado suas conclamações pelo
aumento da vigilância e pela necessidade de uma luta mais vigorosa contra os
“inimigos do povo”, e respondia favoravelmente à “exposição” evidente,
desconsiderando qualquer mitificação ou fingimento.
Stalin era meticuloso nos detalhes, caso tivessem relação com sua imagem
pública. Sua maneira simples de trajar e discursar causava uma grande
impressão.
Segundo Feuchtwanger:

Definitivamente, Stalin não é um grande orador. Fala lentamente e sem brilho algum, numa voz um
tanto abafada que sai com dificuldade. Desenvolve seus argumentos com lentidão, atentando para o
senso comum popular, a fim de que eles sejam captados devagar, mas com firmeza. Quando o
secretário-geral ergue seu dedo indicador e exibe um sorriso atraente e malicioso, não cria uma
distância entre ele e a audiência, como ocorre com outros tribunos.74

Stalin preparava-se cuidadosamente para suas raras aparições públicas.


Tovstukha, depois, Poskrebyshev eram instruídos a encontrar uma dúzia de
citações interessantes nos clássicos, na literatura e no folclore marxistas. Como
Antonov, membro da equipe de Voroshilov, reportou: “Os pesquisadores para
os discursos de Stalin ajudam-no a selecionar estatísticas convenientes para o
assunto. Os comissários adequados recebem ordens para proporcionar
informações. O camarada Stalin escolhe o que quer no material coligido.
Nenhum pesquisador sugere texto algum.”75
O secretário-geral sempre adotou um tom litúrgico em seus discursos.
Gostava da forma catequizadora da pergunta e a resposta, da pergunta e a
explanação. Frequentemente, utilizava refrões ou a repetição consciente para
conseguir o efeito hipnótico, assim pensava. E, com efeito, esse estilo contido,
pormenorizadamente ensaiado, causava impacto. Acima de tudo, convencia as
pessoas quanto à sua sabedoria, e nada torna um líder tão popular quanto a
crença do povo em suas qualidades intelectuais.
Nenhuma fotografia de Stalin podia ser publicada sem sua aprovação, e
mais tarde a de Poskrebyshev. Stalin gostava de aparecer em uniforme militar
como personificação da “austeridade proletária”, segurando uma criança no
colo como “o pai do povo”, no seu uniforme de generalíssimo como “grande
líder e vencedor da guerra”. Todas as fotografias oficiais primam pela monótona
falta de expressão, enquanto aquelas em que não posou, como as tiradas com
N.S. Vlasik ou Nadezhda Alliluyeva, por exemplo, são mais espontâneas e
interessantes, se bem que quase todas de péssima qualidade para reprodução.
Ao consolidar seu mando pessoal, Stalin criou uma hierarquia completa de
líderes em todo o país. Podia-se estabelecer uma precedência oficiosa de postos
só em olhar os jornais dos anos 1930. É claro que no topo da pirâmide estava o
“melhor pupilo de Lenin”. As reportagens seguiam um padrão: diziam que as
plateias recebiam de pé o líder; os aplausos ganhavam intensidade e se
transformavam em ovação; ouviam-se alguns “hurrahs!” obrigatórios; o
autocrata só conseguia falar depois de muito tempo de explosão de verdadeiro
êxtase; o ambiente era de exaltação, de idolatria real, e os epítetos não tinham
limite.
Os jornais também escreviam sobre Molotov, Kaganovich e Voroshilov em
termos de “glorioso camarada em armas de Stalin”, “obstinado bolchevique-
leninista”, “comissário stalinista”, “líder da escola stalinista” e assim por diante.
Os chefes dos escalões menores, como os secretários regionais do partido ou
chefes de agências importantes, eram citados como “equilibrados”, “verdadeiros
bolcheviques”, “chekistas excepcionais”, “líderes dedicados”. Porém, conquanto
essas pessoas ficassem nos degraus significativamente inferiores da escada, eram
responsáveis por repúblicas, regiões ou comissariados inteiros e, até 1934, eram
mencionados como líderes em escala regional. Mais abaixo ainda, ficavam os
que executavam os planos do “gênio” para a industrialização ou a coletivização,
ou organizavam subscrições para a força aérea, planejavam encontros e
manifestações, participavam da “deskulakização” e cobriam os quadros de
honra ao mérito com seus retratos. Os que conseguiam sobreviver a uma
década eram promovidos ao nível imediatamente superior. As vagas eram
muitas. Esta precedência de postos representava uma das fundações do sistema
stalinista: menos poder do povo significava mais chefes.
Stalin sabia que a população, particularmente o camponês, nutria ocultas
tradições “czaristas”. Oprimida e mantida na ignorância por séculos, ela só
poderia ficar com marcas profundas, com uma fé irracional na onipotência de
qualquer mandante, em especial o da capital. A predisposição dos camponeses
ao culto idólatra não era restrita a Stalin, aplicava-se a qualquer autoridade.
As pessoas simples escreviam com frequência para Stalin. As respostas eram
preparadas por um dos secretários, ordenando que os chefes locais tomassem
providências quanto às solicitações. Muitas vezes, Stalin respondia de próprio
punho. Fotocópias de tais respostas são encontradas às dezenas nos arquivos.
Como esta:

À família Klimkin. Leningrado.


Prezados camaradas!
Por causa do trabalho excessivo, estou atrasado na resposta, pelo que me desculpo. Já tomei medidas
em relação à solicitação de vocês. Ordens de pagamento já foram enviadas: de 100 rublos para o
comitê central para a Organização Internacional de Auxílio aos Combatentes da Revolução (MPOR) e
de 300 rublos para o kolkhoz “Chama da Revolução” no distrito de Khoper, um pioneiro na
coletivização de massa.
Anexo uma foto que as crianças pediram.
Saudações! 7.04.30 I. Stalin76

Tais cartas foram mais tarde utilizadas em maciças campanhas de propaganda


como “exemplos da simplicidade do líder e de sua consideração com o povo”.
Fica claro que Stalin não estava preocupado apenas com o que hoje
chamamos de problemas de administração, mas também com a “técnica do
governo de um só homem”. Ele fez um estudo cuidadoso dos livros Sobre a
natureza do absolutismo, de V. Vorovsky, O Estado, a burocracia e o absolutismo
na história da Rússia, de M. Alexandrov, O destino do governante, de Yu.
Kazmin, e de obras similares. Sua abordagem da literatura histórica não era,
evidentemente, a de um leitor desinteressado; buscava analogias, estudava
“receitas” sobre a técnica do poder e suas sutilezas psicológicas. Aprendeu, por
exemplo, que seus discursos nas reuniões importantes do Kremlin causavam
grande impacto nas cabeças e muita emoção na plateia. Ao longo de todo o ano
de 1935, falou no Kremlin numa reunião de construtores ferroviários (30 de
julho), para mulheres “trabalhadoras de vanguarda” na colheita de beterrabas
(10 de novembro), para destacados motoristas de máquinas agrícolas (1º de
dezembro), para homens e mulheres kolkhozniks do Tadjiquistão e do
Turcomenistão (4 de dezembro), para motoristas de tratores (20 de dezembro),
e assim por diante. Cada encontro desses era amplamente divulgado pelos
meios e apresentado nos noticiários do cinema. À medida que sua popularidade
crescia, entretanto, Stalin decidiu reduzir a frequência de tais eventos: quanto
menos aparecesse, mais significativas seriam suas aparições, e sua reclusão daria
margem ao aparecimento de mitos, lendas oficiais e clichês enfeitados sobre sua
pessoa.
Um país que vivera séculos sob a autocracia não podia trocar sua pele
psicológica apenas com a sedução. Era necessário algum tempo. Portanto,
Stalin colocou ênfase especial na criação da fé no líder, no cuidado e
preocupação com o povo e na sua equidade. Transferiu a culpa de todos os seus
erros e crimes para os ineptos e os destruidores, para a estupidez dos
funcionários e para os líderes locais, os quais ou não entenderam ou
deturparam suas instruções. Esta tática funcionou às mil maravilhas. Ainda
hoje há gente com a opinião de que a tragédia de Stalin deveu-se “à confiança
que depositou em Yezhov”, e mais tarde em Beria, que “havia muita coisa que
ele não sabia” e que “ele não tinha ideia da extensão da repressão”. Tudo isso foi
resultado da impecável campanha de muitos anos de lavagem cerebral. Para fins
externos, sua essência era simples: todos os sucessos e vitórias se deviam a
Stalin; todos os excessos, abusos e derrotas eram consequências do não
cumprimento adequado de suas ordens.
A popularidade de Stalin pode também ser explicada, como já mencionei,
pelo baixo nível de cultura política das massas. Tão logo entendeu que podia se
transformar num líder de longo prazo – o primeiro indício surgiu em 1927 e
foi confirmado no XVII Congresso de 1934 –, Stalin dispôs-se em fazer disso
uma proposição atraente para o povo. Filmes e livros começaram a aparecer
que tratavam de personalidades fortes, ditadores, czares “progressistas”. Em
paralelo com a arte genuinamente revolucionária, foram produzidas obras que
apresentavam o papel do indivíduo como absoluto. Stalin consultou
pessoalmente Sergei Eisenstein e Nikolai Cherkasov sobre a imagem de Ivan, o
Terrível, no filme de mesmo nome.
O entourage do Secretário-Geral muito concorreu para fortalecer sua
popularidade, endeusando-o para cair nas suas boas graças. Sempre
desconfiado, Stalin via intenções e significados em cada palavra ou gesto
descuidado. Ele mesmo analisou escrupulosamente os gentis artigos de
adulação – que só diferiam nos títulos – escritos para comemorar seus
sexagésimo e septuagésimo aniversários. Examinou pilhas de livros e revistas
que continham referências à sua pessoa. Sua vaidade era insaciável, embora
pudesse disfarçá-la em público para realçar o mito da “modéstia
extraordinária”. Para fins de propaganda e, por certo, para angariar simpatia e
ganhar favores, os membros de seu entourage competiam entre si na busca dos
melhores qualificativos, de comparações elevadas, de analogias históricas. Neste
mister, perderam todo o senso da medida. Em 1939, com o moedor de carne
em pleno funcionamento, os assistentes de Stalin, Poskrebyshev e Dvinsky,
escreveram sobre ele como um homem adornado com as mais altas qualidades
humanitárias. O artigo, intitulado, “Professor e amigo da humanidade”, inclui
trechos como o abaixo:

Stalin entrou na revolução com a imagem de Lenin em sua mente e em seu coração. Ele pensa em
Lenin o tempo todo. Mesmo quando seus pensamentos estão imersos em problemas que exigem
decisão, sua mão rabisca mecanicamente palavras como “Lenin [...] professor [...] amigo...” Quantas
vezes, depois de um dia de trabalho, nos desfizemos de páginas escritas em toda a sua extensão com
essas palavras.77

Esses confeitos açucarados, acreditavam os autores, não só influenciariam as


pessoas como também seus sentimentos. Há provas de que, durante as
reuniões, Stalin não rabiscava nada parecido com “Lenin [...] professor [...]
amigo...” em seu canhenho. Os arquivos contêm registros que vão de
documentos de importância histórica até notas insignificantes, de relatórios de
congressos até mensagens rabiscadas como “Camaradas Andreyev, Molotov,
Voroshilov: hora de parar. Deem um fim aos discursos. O pleno tem que
terminar às quatro. I.S”. Enquanto ouvia distraidamente os pronunciamentos
numa reunião do Politburo, escrevinhava na capa de um livro com o título O
perigo direitista em nosso partido:

Stalin. Reconhecimento. Professor. Sobre o perigo direitista. Sobre o perigo direitista em nosso
partido. Mukhalatka. Reunião privada. Tóquio. Professor. Sokolnikov. Editora “Priboi” dos
trabalhadores. Fogo. Discussão. Molotov.78
Os rabiscos de Stalin no final dos anos 1920 só nos dizem uma coisa: que
aquilo que Poskrebyshev e Dvinsky relatam sobre os pensamentos subliminais
de Stalin, além de muitas outras coisas, não faz o menor sentido.
Por outro lado, a popularidade de Stalin era uma forma, por contorcida que
fosse, de autodefesa social. Quem não desejasse atrair suspeitas tinha que evitar
qualquer “escorregão da língua” nas suas referências ao líder. O respingo mais
insignificante e não intencional sobre o papel de Stalin como líder poderia
terminar em tragédia. O sociólogo A. Fedorov contou-me que, no fim da
década de 1940, na fábrica de motores de tratores perto de Vitebsk, aconteceu
o seguinte: o escritório fora recentemente pintado e chegara a hora de pendurar
os retratos nas paredes; um jovem operador de tratores entrou na sala e
derrubou sem querer um dos retratos de Stalin que estava encostado, tentou
recuperar o equilíbrio e, acidentalmente, pisou no rosto do líder; um silêncio
assustador desabou sobre as pessoas que estavam na sala, e um dos gerentes
passou uma descompostura no motorista; três dias mais tarde, o jovem infeliz
foi apanhado e só voltou a ser visto depois do XX Congresso.
Embutida na popularidade estava uma permanente camada oculta de medo.
Nem todos a sentiam constantemente. Os que sabiam da existência da
repressão e a tinham experimentado continuavam a elogiar Stalin enquanto
escondiam seu conhecimento do que se passava. A popularidade do secretário-
geral era assim sustentada tanto pela manipulação da opinião pública, com base
nas conquistas do povo, quanto pelo medo frequentemente incerto da punição
real em caso da menor crítica a ele. Como consequência natural da suspeita e
da mania de espionagem implantadas na mente pública, a delação generalizada
passou a ser a norma.
Contudo, seria errado supor-se que todos os cidadãos soviéticos amavam
Stalin fanaticamente e que ele era popular para todos. Havia uma camada
substancial de comunistas pré-revolucionários conhecida como velha guarda
leninista. Eles conheciam a história do partido e a contribuição real que cada
líder fizera para a Revolução de Outubro, não as contadas pelo secretário-geral
no Curso resumido, e a maioria deles só veio a saber da existência de Stalin
depois da revolução e da guerra civil, quando, como vimos, ele não esteve na
linha de frente. Portanto, a atitude do “líder” em relação a esses antigos
leninistas era bastante “parcial”. Ele sabia que, embora os da velha guarda não
dissessem nada, a imagem que tinham do secretário-geral era diferente da que
desejava passar. Aquelas pessoas com passado revolucionário eram uma pedra
no seu caminho.
Stalin via que, apesar do progresso, muita coisa não estava sendo
conseguida. A agricultura era o caos, se bem que a safra de 1936 tivesse sido
boa. Como antes, o país enfrentava sérias dificuldades econômicas e sociais. A
despeito do tempo que transcorrera desde a revolução e do slogan “a vida é
melhor e mais alegre”, Stalin ainda conclamava pelo aperto dos cintos pelo
bem do amanhã. O padrão de vida não melhorara tanto assim. Se Stalin dizia
que a culpa era dos destruidores, o povo – evidentemente não propenso a se
autoacusar – acreditava, em particular porque existiam muitos ex-
oposicionistas e pessoas com reputações manchadas para pagar a conta. Todos
podiam ver evidências de solapamento na economia e na administração.
Molotov, Kaganovich, Yezhov e Malenkov, este último fazendo carreira
acelerada, perceberam rapidamente a direção do pensamento de Stalin e
captaram as ideias contidas em suas assertivas. Curvado sob o peso de seu
casaco de soldado, como que encolhido ante o olhar de seus inimigos
potenciais, Stalin parecia sinalizar que só a completa erradicação destes tornaria
sua posição inflexivelmente segura. Era necessária ação decisiva. Um golpe
maciço contra seus inimigos indistintos serviria, no seu modo de ver, para
justificar os desastres e enganos de sua política econômica, como também para
livrar-se daqueles que torciam por sua derrota. Depois da guerra, Molotov
acrescentou que, ao acabar com seus inimigos, Stalin estava olhando bem para
o futuro: ele exterminara aqueles que, numa guerra contra o fascismo,
poderiam ter ficado ao lado de Hitler.
Para Stalin, pareceu que sua hora havia chegado. Dali por diante, ninguém
seria capaz de desafiar seu mando pessoal. A tragédia se aproximava. A decisão
amadureceu e foi finalmente tomada quando estava em Sochi, bem distante de
Moscou. Em 25 de setembro de 1936, enviou um telegrama a Molotov,
Kaganovich e outros membros do Politburo em Moscou. Estava assinado por
Stalin e Zhdanov, o qual, no XVII Congresso, tornara-se secretário do comitê
central e passara a gozar rapidamente da confiança do secretário-geral. O
telegrama foi o seguinte:

Consideramos de absoluta necessidade e urgência que o camarada Yezhov seja nomeado Comissário
do Povo para as Questões Internas. Yagoda mostrou-se totalmente incapaz de desmascarar o bloco
trotskysta-zinovievista. A OGPU está atrasada quatro anos a este respeito. Isso foi notado por todos os
trabalhadores do partido e pela maioria dos representantes da NKVD.79
Fora dado o terrível e monstruoso sinal. Não era possível imaginar a
quantidade enorme de “espiões, saqueadores e terroristas” que seria descoberta.
Pareceu que eles não estavam entre nós, mas que nós estávamos entre eles!
Stalin fora bastante encorajado pelo indiscriminado apoio público à acusação
estatal no recente julgamento de Zinoviev e Kamenev. Antes mesmo de o
julgamento ter lugar e de as circunstâncias do caso terem sido publicadas, a
imprensa e o rádio já entoavam jubilosamente “Destruição para as víboras”,
“Morte aos inimigos”, “Sem piedade com agentes duplos”. Stalin sentiu que
conseguira bastante: ao escamotear a verdade do povo, transformara-o numa
massa pela qual ele próprio assumiria a responsabilidade. Entre seus outros
crimes, este talvez tenha sido o pior.
Parte VI
O epicentro da tragédia

Tudo entender
Não é tudo perdoar.
Erich Kästner
[28]
Inimigos do povo

A no-novo de 1937. A habitual azáfama das celebrações corria solta nas


cidades e vilas do vasto país. Nos clubes e nos apartamentos
abarrotados, enfeitavam-se pinheiros. Os homens já estavam de posse
de uma ou duas garrafas de vodka e, nas grandes cidades, adquiriam algum
vinho decente para as mulheres. Nos últimos dois anos, as vitrines e prateleiras
das mercearias tinham sido uma verdadeira festa. A edição de Ano-novo do
Pravda, por exemplo, publicou uma pequena nota sob o título “Compras de
festas” dizendo:

Os moscovitas compraram ontem enormes quantidades de uma grande variedade de vinhos, da


champanhe ao moscatel soviéticos, bem como centenas de tipos de linguiças, peixes defumados, bolos,
tortas e frutas. Milhares de funcionários da “Gastronomia”, da “Mercearias” e de outras lojas de
alimentação estavam entregando as compras de seus consumidores para as comemorações do Ano-
novo.

Nos comissariados e birôs do partido tomavam-se as últimas providências para


o relatório anual. E muito havia a relatar. No ano que passara, a Planta
Industrial de Máquinas de Kharkov entrara em funcionamento, a Fábrica de
Celulose de Kama fora oficialmente inaugurada, começara a construção da
Indústria de Processamento do Magnésio de Solikamsk, entrara em operação a
Usina Hidrelétrica de Konakar, na Armênia, começara também a operação da
Indústria de Processamento de Peixe, em Murmansk, simultaneamente com
centenas de outros empreendimentos de diversas dimensões. Tudo isso
impressionava pela quantidade, se não pela qualidade. Até o comissariado da
indústria de defesa, só constituído em 1936 e que não concretizara o
planejamento em uma série de itens, enviou um relatório que abria dizendo “A
indústria de defesa será a melhor do país”. Stalin ficara satisfeito com os
relatórios dos comissários Kaganovich, Mikoyan e Lyubimov: o transporte
ferroviário, o comércio e a indústria leves e locais finalmente apresentavam
pequenos excedentes. Era bom que o povo visse que Stalin não jogava palavras
ao vento. Ele decretara que 1936 seria o ano do trabalho duro: o planejado era
um crescimento de 22% nos meios de produção e de 23% nos bens de
consumo. Por ordem sua, o Pravda publicou um artigo de fundo com o título
“Um plano para elevar o bem-estar do povo”, realçando que as palavras do
grande líder, “a vida está melhor, está mais alegre”, seriam verdadeiras para
sempre.1
A pulsação do país era mais forte e mais rápida. O povo ainda vivia
pobremente, vestia-se mal, a existência era contida e dura, se bem que o país
como um todo batalhasse com vistas ao futuro. Era considerado de mau gosto
falar em interesses individuais; todos estavam envolvidos com a causa comum.
Os objetivos do Estado excluíam o completo e harmonioso desenvolvimento
da pessoa, ainda assim os valores socialistas de todo o sistema de relações
dependiam da vontade e do modo de pensar de um só indivíduo, e era
obrigatória a adoração em seu altar ideológico. Um editorial no Pravda de 1º
de janeiro de 1937 intitulado “O grande timoneiro nos conduz”, fechava com
o seguinte panegírico: “A nau do Estado soviético está bem equipada e armada.
Não teme tempestades. Mantém o curso. Foi brilhantemente planejada para
enfrentar elementos hostis em tempo de guerra e na revolução proletária. É
dirigida por um gênio, o timoneiro Stalin.” O artigo era acompanhado por um
enorme retrato de Stalin encimando um mar de pessoas. Alguém na multidão
portava um retrato de Lenin.
Os jornais do início de 1937 repassavam mais do que a atmosfera
frequentemente tensa da vida dos trabalhadores: também alertavam sobre o
perigo da ameaça que vinha do exterior. Traziam matérias de Mikhail Koltsov
transmitidas da Espanha, detalhes do afundamento do navio soviético
Komsomol perpetrado pelos fascistas, a outorga do título de Herói da União
Soviética a um grupo de oficiais do Exército Vermelho “pela exemplar execução
de missões especiais e muito difíceis do governo”. Todos sabiam que se tratava
de heróis “espanhóis”.
Nos primeiros dias de dezembro de 1936, o XVIII Congresso
Extraordinário dos Sovietes adotou uma nova Constituição Soviética que
proclamava liberdades e direitos democráticos amplos e fundamentais,
inclusive a liberdade de consciência, de expressão, de imprensa e de reunião,
acentuando a inviolabilidade da pessoa e a privacidade da correspondência.
Stalin tinha a capacidade de se transformar instantaneamente. No silêncio
de seu gabinete, um Stalin assinava listas de nomes de pessoas que deveriam ser
presas e executadas, e também aprovava planos para sentenças desumanas; ao
passo que, na tribuna, movendo o braço num amplo movimento de
decapitação, outro Stalin declarava que a nova Constituição “não se limita à
fixação de direitos civis formais, porém muda o centro de gravidade para a
questão da garantia de tais direitos”.2 Apenas poucos meses antes, na sua última
reunião com Zinoviev e Kamenev, de acordo com alguns relatos, ele declarara:

Nossos princípios não permitem que derramemos sangue de antigos membros do partido, por maiores
que tenham sido seus pecados. Os líderes de nosso partido não olvidam nem direitos nem
responsabilidades. O julgamento, no qual vocês ajudarão o Estado, não é dirigido contra vocês, e sim
contra Trotsky. Tudo isto é necessário ao regime soviético.3

Stalin poderia ter lembrado de pelo menos uma dúzia de cartas de Zinoviev
implorando clemência. Poderia recordar a carta que Yagoda lhe entregara, em
17 de dezembro de 1934, quando Zinoviev foi investigado e preso, na qual o
velho bolchevique escreveu, entre outras coisas:

Não sou culpado de nada, nada, nada em relação ao partido, em relação ao comitê central e em
relação a você pessoalmente. Juro por tudo que é mais sagrado a um bolchevique. Juro pela memória
de Lenin.
Não posso nem imaginar a causa das suspeitas sobre minha pessoa. Rogo-lhe que acredite em minha
palavra de honra. Estou abalado até o fundo de minha alma.4

A resposta de Stalin foi a ordem para acelerar o julgamento de Zinoviev e,


exatamente um mês depois, em 16 de janeiro de 1935, o velho companheiro
de partido foi sentenciado a dez anos, tendo sido obrigado, preliminarmente, a
confessar crimes não cometidos e a denunciar os nomes de todas as pessoas que
pôde lembrar como “antigos participantes da luta antipartidária”. Stalin jamais
fazia as coisas pela metade. Um ano mais tarde, Zinoviev e Kamenev estavam
de novo nas barras do tribunal e sorveram o fel até o fim. O de que Stalin se
lembrava não era a sentença e sim a humilhação que Zinoviev experimentara
ao implorar compaixão. Stalin era o tipo de sádico que não se satisfaz por

É
completo com a morte de sua vítima. É necessária a capitulação total. Talvez se
recordasse da carta de Zinoviev de 14 de abril de 1935:

Cheguei a um ponto em que me sento, fico olhando para seu retrato nos jornais e o dos outros
membros do Politburo, e penso: meus caros, olhem dentro de meu coração que por certo verão que
não sou mais seu inimigo, que sou de vocês, de corpo e alma, que entendi tudo e estou pronto a fazer
qualquer coisa para merecer seu perdão e sua generosidade.5

Poderia Stalin ter pensado, enquanto estivera sentado ao lado de Zinoviev no


Politburo (de 1919 a 1926), que a vida daquele homem como a de milhões de
outros passaria a não significar nada para ele? Poderia Zinoviev ter sonhado,
enquanto discutia questões russas com Lenin em Genebra, nas vésperas da
revolução ou em seus momentos mais sombrios, que, num determinado dia,
um desconhecido exilado interno, nada menos que um companheiro de
partido, iria decidir, sem a mínima comiseração, se ele deveria viver ou morrer
numa masmorra em 25 de agosto de 1936?
“Garantias”? As afirmações de Stalin de que os direitos do povo seriam
garantidos pela nova constituição não tinham valor. Será que os autores da
constituição entendiam assim? Entre os que trabalharam em sua redação
estavam Akulov, Bubnov, Bukharin, Gamarnik, Yegorov, Krylenko,
Tukhachevsky, Eideman, Uborevich, Yakir e outras figuras destacadas do
partido, militares e vultos sociais. Quando criaram a lei fundamental do
Estado, colocando no papel o poder do povo soviético, não sabiam que, a
despeito de estarem sacramentados no documento, todos aqueles direitos e
garantias seriam impiedosamente desrespeitados. No governo de Stalin, a
Constituição não daria proteção. Quase na mesma ocasião, o procurador da
URSS, A.Ya. Vyshinsky, dava os retoques finais na peça acusatória de duração
fantasticamente longa que proferiria com tanta emoção no segundo
julgamento-espetáculo dos “conspiradores trotskystas”, em 28 de janeiro de
1937.

Enquanto desejavam Feliz Ano-novo uns aos outros, os cidadãos soviéticos não
podiam imaginar quão sangrento seria o ano que começava. Por mais paradoxal
que possa parecer, passariam cerca de vinte anos para que se conscientizassem
disso, já então muito distantes no tempo de tudo que ocorrera. Entrementes,
precisaram expressar indignação e maldizer os “fascistas degenerados”, “espiões”
e “terroristas”. Stalin já alertara o povo quando, em janeiro de 1933, disse que,
em certas circunstâncias, “os grupos desbaratados dos velhos partidos
revolucionários, os SR, mencheviques, nacionalistas burgueses do centro e da
periferia, poderiam ter sobrevivido e causar novas agitações, bem como os
remanescentes dos trotskystas contrarrevolucionários e dos diversionistas de
direita”.6 Parecia agora que causavam novas agitações! Tendo o sucesso como
pano de fundo, os desastres – que não eram poucos – de fato pareciam
“sabotagens”. E não havia Stalin dito que o inimigo oculto estava apenas
ganhando tempo? Quanto maiores as vitórias do povo soviético, mais forte a
resistência. Era isto que ele tinha em mente ao aguçar a luta de classes, levando
ao limite a ameaça da resistência!
Na véspera do XVII Congresso do partido, foi publicado um livro sobre a
construção do Canal do mar Branco (com trabalho escravo). Trinta e seis
escritores soviéticos, sob a direção editorial de Gorky, Averbakh e Firin,
contribuíram com louvores para a primeira tentativa de reeducar “inimigos do
povo em amigos”. Foi, escreveram eles, “um esforço vitorioso sem precedentes
para converter antigos inimigos do proletariado [...] e da sociedade soviética em
representantes qualificados da classe trabalhadora e mesmo entusiastas do
trabalho nacionalmente importante”. “É extraordinariamente mais difícil”,
continuaram, “retrabalhar material humano do que madeira, pedra ou metal.”
Engenheiros, acadêmicos, professores e milhares de outros intelectuais foram
assim transmudados em “camaradas em armas” do proletariado. Seu único
crime fora o de pensar diferentemente de Stalin, o qual, como afirmaram os
autores, era dotado de

uma determinação brilhantemente organizada, da mente penetrante de um grande teórico, da


coragem de um líder talentoso, da intuição de um autêntico revolucionário que tinha sutil
compreensão das qualidades dos outros e que, enquanto cultivava as melhores dessas qualidades,
batalhava incessantemente contra aquelas que impediam que tais pessoas as desenvolvessem ao limite
máximo.7

Mas não eram certas “qualidades” que estorvavam Stalin. Eram pessoas. Muita,
muita gente. Toda esta gente “não abatida” estava (potencialmente) impedindo
que ele se consolidasse como único líder ilimitada e universalmente amado. Ele
não esquecera que Bukharin e outros haviam sido companheiros de partido: o
infortúnio daquelas pessoas era que tampouco elas tinham esquecido e muito
sabiam sobre ele. Ele lera em algum lugar, possivelmente em Cosimo de
Medici: “Existe um preceito de que não devemos perdoar nossos inimigos. Mas
não existe um sobre o perdão para nossos antigos amigos.” Stalin não pensava
em perdoar qualquer das duas categorias.
Quem primeiro empregou a aterradora expressão “inimigos do povo”? Já
vimos que, em seu desterro na Sibéria, Stalin ficara impressionado com o que
lera sobre a Revolução Francesa, em particular com a determinação de
Robespierre, o qual, no momento crítico, conseguiu uma lei para simplificar os
processos jurídicos contra os “inimigos da revolução”. Mas, ao contrário de
Robespierre, Stalin padecia de um medo mortal de atentados contra sua
própria vida. Portanto, as acusações imputadas a incontáveis desafortunados
tiveram fulcro no famoso Artigo 58 sobre “atos terroristas dirigidos contra
representantes do regime soviético”. A julgar pelos procedimentos legais
daquela ocasião, pensar-se-ia que milhares e milhares de cidadãos soviéticos não
pensavam noutra coisa que em dar cabo do líder e de seu entourage.
Se bem que a expressão “inimigo do povo” fosse usada antes de 1934, foi a
partir daquele ano que Stalin conferiu-lhe conteúdo definido. Uma “carta
secreta” do comitê central para as organizações partidárias nas regiões e nas
repúblicas, datada de 29 de julho de 1936 e claramente de autoria de Stalin,
salientou que um inimigo do povo normalmente se mostrava “dócil e
inofensivo”, que fazia de tudo para se “infiltrar furtivamente no socialismo”,
que não aceitava o socialismo e que, quanto mais desesperançada ficasse sua
posição, mais inclinado “se tornaria a medidas extremadas”.8
A.A. Yepishev, que trabalhou no Ministério da Segurança Estatal de 1951 a
1953, disse-me que Beria exultava em citar a ideia, que atribuía a Stalin, de que
“um inimigo do povo não é apenas aquele que realiza sabotagem, mas o que
duvida da correção da linha do partido. Existem muitos deles entre nós e temos
que liquidá-los”. Yepishev, que não era muito expansivo a seu próprio respeito,
disse com franqueza:

Consegui, com muita dificuldade, escapar do covil de Beria. Depois de repetidas solicitações para
retornar ao trabalho no partido, Beria zombou maliciosamente e disse: “Você não quer trabalhar
comigo? Tudo bem, faça o que quiser.”
Poucos dias depois, fui enviado para Odessa, nomeado novamente como primeiro-secretário do
comitê regional do partido, mas o chefe local do MVD logo chegou-se a mim e disse que eu deveria
permanecer em casa no dia seguinte. Eu sabia que isso significava prisão a qualquer momento. E entre
os que trabalharam com Beria, aqueles que tinham dúvidas eram encarados como os piores inimigos
do povo. Fui salvo por um milagre: o próprio Beria foi preso naquela ocasião.
Inimigo do povo era, portanto, quem não se encaixasse no padrão de Stalin
e nada tinha em comum com o mesmo conceito aplicado à Revolução
Francesa, na qual Stalin fora visivelmente buscar a noção. Robespierre, ao
estabelecer a ditadura revolucionário-democrática, viu inimigos na “aristocracia
tirânica e naqueles que amealharam suas fortunas por meios injustos”, ao passo
que, para Stalin, inimigo era quem quer que não partilhasse, ou pudesse não
partilhar, de seu ponto de vista. Na realidade, ninguém se opunha ao mando
pessoal de Stalin, mas ele sentia que muitos, especialmente a velha guarda de
Lenin, não aprovavam secretamente seu tipo de socialismo. Isso foi suficiente
para que o secretário-geral chegasse à terrível decisão. Com a ajuda do aparato
ideológico, Stalin criou gradualmente uma atmosfera de suspeição no país,
preparando o povo para o iminente e sangrento expurgo.
A esmagadora maioria dos cidadãos acreditava piamente tratar-se de uma
luta de vida e morte contra quem ainda queria restaurar o capitalismo. Já em
janeiro de 1937, os jornais publicavam matérias como “Espiões e assassinos”,
“Mercadores da mãe-pátria”, “Trotskysta, destruidor, diversionário, espião”, “O
mais abjeto dos abjetos”, “Quadrilha trotskysta de restauradores capitalistas”.
Estas constantes massagens na mente pública produziram resultados, e o povo
se indignava ao ouvir referências à torpeza daqueles que tinham conseguido se
esconder por tanto tempo.
Como tudo isto aconteceu? Por que Stalin e seus asseclas foram capazes de
convencer o povo e o partido de que estavam cercados de inimigos? De que
forma surgiu a mania de espionagem e sabotagem? Em boa medida, o pleno de
fevereiro-março do Comitê Central dá uma resposta.
Muitos relatórios foram apresentados no pleno que durou duas semanas. O
secretário do Comitê Central, A.A. Zhdanov, abriu a reunião com seu relatório
sobre o trabalho nas organizações partidárias para o preparo das eleições para o
Soviete Supremo sob novo sistema eleitoral, e sobre a reestruturação do
trabalho político do partido. Zhdanov, que desfrutava naquela oportunidade
das boas graças do líder, expressou algumas ideias aparentemente sensatas. Por
exemplo, sublinhou o fato de que “o novo sistema eleitoral significou muito
maior abertura [glasnost] na atividade das organizações soviéticas”.
Adequadamente, levantou a questão da democracia interna no partido como
condição importante para o bem-estar moral partidário. Porém, àquela altura,
citou Stalin, dizendo que “embora nos surpreenda o trabalho cultural da
ditadura”, os órgãos repressivos continuavam tão necessários naquela ocasião
quanto foram ao tempo da guerra civil. Temos que estar alertas, continuou,
porque, “enquanto nosso povo adormecido apenas se arrasta, nossos inimigos
já estão ativos”. A situação no partido, acrescentou, não era simples. Os
quadros estavam se estreitando; muitos inimigos haviam emergido neles. “A
prática perigosa da cooptação enraizou-se e está indo longe demais. Tal prática
infringe o direito legítimo de os membros do partido tomarem parte na eleição
de seus órgãos diretores.”
Expôs então alguns números interessantes. Até cerca de 59% dos membros
e candidatos a membros dos birôs dos comitês dos distritos e das cidades
haviam sido cooptados. Em Kiev, por exemplo, em 19 de outubro de 1934,
quatorze pessoas tinham sido cooptadas de uma só vez para o comitê da cidade;
muitas delas, descobriu-se, eram inimigas do povo. Em Kharkov, dos 158
membros e 34 candidatos a membros eleitos para o comitê da cidade, durante
a IV Conferência do partido da cidade, 61 foram cooptados e só restaram 59
do total. E o birô do comitê da cidade fora totalmente cooptado, com uma só
exceção. Em 4 de abril de 1936, continuou Zhdanov, o comitê do Distrito
Lenin, em Kharkov, discutiu a “expulsão de todo um grupo de pessoas”. Até o
grupo ativista fora convidado. Por quê? Para que existissem dez pessoas na
reunião do comitê distrital na qual seria debatida a expulsão de 12 pessoas!
Então, dez engoliram outros 12! Isto provocou gargalhadas entre os delegados.9
Zhdanov prosseguiu por bom tempo citando exemplos similares. Eles não
eram apenas sintomáticos das práticas antidemocráticas do partido. A
organização estava dominada por uma situação na qual a ilegalidade era a regra,
bem como por uma atitude permissiva em relação ao emprego disseminado da
repressão. Stalin e sua equipe haviam criado um clima moral que possibilitava o
desvio das soluções administrativas para o emprego franco da força contra
potenciais oponentes.
Quando houve o pleno, Stalin já efetuara um “reconhecimento em força”
ao lidar com Zinoviev, Kamenev e outros bolcheviques. Aquela gente postava-
se no seu caminho, sabia muito sobre ele. Sabia, por exemplo, das reuniões em
seu estúdio quando tramou com Zinoviev e Kamenev contra Trotsky; conhecia
as incontáveis intrigas, as adulterações que introduzira em antigos documentos
do partido (por exemplo, arquitetara a distribuição de uma nota, por
intermédio de Vladimir Sorin e Yelena Stasova, pedindo alterações nas minutas
de uma reunião do comitê central de 23 de fevereiro de 1918 sobre a paz de
Brest-Litovsk);10 sabia da misteriosa enfermidade e morte de Frunze, e assim
por diante. Zinoviev e Kamenev estavam na prisão, mas Stalin almejava
despachá-los para o esquecimento final.
Em 15 de agosto de 1936, por intervenção pessoal de Stalin, Zinoviev e
Kamenev foram submetidos a novo julgamento. O tribunal não estava ainda
organizado, tampouco as acusações tinham sido esclarecidas, e os jornais e o
rádio já bradavam que não deveria haver complacência com os “inimigos do
povo”. A vingança de Stalin não teve meio-termo: seus antigos camaradas
foram sentenciados à morte e executados. As cartas a ele enviadas implorando
perdão restaram sem respostas. Ele esperava que, com Kamenev, fossem
enterradas as palavras que aquele bolchevique pronunciara no XIV Congresso,
“Cheguei à conclusão de que o camarada Stalin não preenche os requisitos de
um unificador para a equipe do quartel-general bolchevique”, e que Zinoviev
levasse consigo sua avaliação de que Stalin, “o sanguinário da Ossetia [...] não
tem ideia do significado de consciência”. Fossem quais fossem as acusações,
nem Kamenev, nem Zinoviev eram inimigos do socialismo ou do povo. Stalin
não gostava de ficar restrito a apenas uma faixa dos inimigos desarmados e,
portanto, como centenas e milhares de outros, os familiares de Kamenev e
Zinoviev ou foram exilados ou também exterminados. A esposa de Kamenev,
seus dois filhos (um deles ainda menor), seu irmão e a mulher deste irmão,
todos pereceram.
Os relatórios apresentados no pleno por Molotov, Kaganovich e Yezhov
trataram de um só assunto: “As lições de sabotagem, diversionismo e
espionagem dos agentes nipo-germano-trotskystas.” Careciam de qualquer
análise racional ou compreensão real da situação pela simples razão de que o
assunto em si era uma miragem, uma aparição. Palavras fortes foram ouvidas,
juramentos feitos, e os primeiros “resultados” divulgados.
Abrindo seu relatório, Molotov disse que estava substituindo Sergo
Ordzhonikidze que, em 18 de fevereiro, uma semana antes da abertura do
plenário, suicidara-se. O boletim governamental noticiou que ele falecera de
ataque cardíaco. Segundo muitas pessoas que bem conheciam a família,
Ordzhonikidze estava deprimido com a mania de espionagem e a caça às
bruxas, motivos de ásperas discussões com Stalin. Em represália, Stalin enviou
ao camarada relatórios recebidos da NKVD sobre sua pessoa, sinalizando às
claras que onde havia fumaça havia fogo. Ordzhonikidze sentiu que Stalin
demandava sua completa subserviência sob pena de partilhar a trágica sorte dos
outros. Para enfeixar tudo isto, Stalin solicitou-lhe um relatório para o XVII
Congresso sobre a “Sabotagem na indústria pesada”. Ordzhonikidze devia
incriminar com a própria voz muitos chefes da indústria, e tomar parte direta
naquele mando arbitrário que nenhum bolchevique autêntico podia aceitar. Ele
aproveitou a chance de agir com a consciência, embora não da forma mais
eficiente, mesmo que, naquelas circunstâncias, tenha sido a mais honrosa. A
turma de Yezhov enviara a Ordzhonikidze um dossiê sobre seu irmão, Papuli.
Diversos outros parentes seus foram presos, e ele foi literalmente induzido à
decisão fatídica.
Stalin chegou ao apartamento de Ordzhonikidze e deu instruções para que
um relato “substancial” do suicídio fosse divulgado para os jornais. De acordo
com os parentes, o secretário-geral confiscou o bilhete deixado pelo suicida,
cujo conteúdo provavelmente jamais saberemos. Ao encurralar Ordzhonikidze,
Stalin liquidou o único membro de seu entourage que não compartilhava da
sua abordagem de terror. (Tornou-se norma para Stalin perseguir um homem
até a morte, depois pegar a alça de seu caixão, ou o cofre das cinzas, fazer uma
oração fúnebre e confortar os parentes.) O funeral de Ordzhonikidze retardou
a abertura do pleno. Ele não foi o único a se retirar daquela maneira: houve
também Tomsky, Gamarnik, Sabinin e Lyubchenko, para citar apenas alguns.
Molotov pontilhou seu relatório com números e com uma imensa lista de
nomes de “inimigos do povo” escondidos na indústria pesada. Toda a
quadrilha, disse ele, era liderada por Pyatakov. Para provar que a sabotagem se
alastrara pela economia e que havia também uma luta aberta sendo montada
contra ela, Molotov apresentou uma estatística sinistra sobre a quantidade de
gente que trabalhava na burocracia dos seguintes comissariados do povo e fora
condenada até 1º de março de 1937: Indústria Pesada – 585, Educação – 228,
Indústria Leve – 141, Ferrovias – 137, Terra – 102,11 e por aí foi, citando 21
ministérios. Em todo o relatório, Molotov deu ênfase especial à noção de que
todos aqueles destruidores tinham agido por instrução do “centro trotskysta”.
Explicou a estratégia da sabotagem citando o slogan de Trotsky: “Golpes
sensíveis devem ser desferidos em pontos sensíveis.”
Mesmo que fossem aceitos os fatos sobre os malfeitores, Molotov não podia
deixar de saber que empreendimentos industriais de enorme vulto vinham
sendo realizados em velocidade alucinante, por “carga de cavalaria”. A
tecnologia atrasada, baixa produtividade, cultura técnica e disciplina
deficientes, e a incompetência só poderiam resultar em interrupções de todos
os tipos, inclusive incêndios e desastres. Tudo aquilo, porém, tinha de ser
explicado como “ação dos destruidores trotskystas”.
O relatório de Kaganovich sobre a situação no setor ferroviário teve tom
idêntico e também listou nomes. Não querendo ficar atrás de Molotov, ele
igualmente relatou que o comissariado das ferrovias não estava inerte nem
perdia tempo na caçada ao inimigo. Não é difícil imaginar os meios que
empregou para “desmascarar” e “mandar embora” (nas suas palavras) milhares
de indivíduos. O mais surpreendente é uma variedade tão grande de “inimigos”
vir trabalhando nas ferrovias em cooperação aparentemente amistosa. Eles eram
ex-milícias, SR, mencheviques, trotskystas, oficiais Brancos, demolidores e
espiões.
Yezhov seguiu o padrão estabelecido por Molotov e Kaganovich, revelando
que, praticamente, havia inimigos por todos os lados. Um pigmeu físico e
moral, Yezhov foi agraciado na véspera do pleno com o novo título de
Comissário Geral da Segurança do Estado, título que apenas Beria iria também
ostentar. O relatório de Yezhov foi abertamente dirigido para a intensificação
da campanha de denunciar “inimigos internos”:

No período de diversos meses, não me recordo de uma única ocasião em que alguém, fosse um gerente
industrial ou um chefe de comissariado, tivesse me telefonado por iniciativa própria para dizer:
“Camarada Yezhov, há algo estranho a respeito de fulano ou sicrano, alguma coisa não está certa,
encarregue-se dele.” Simplesmente isto não aconteceu. O normal, quando alguém levanta a questão da
prisão de um sabotador ou de um trotskysta, é o rápido aparecimento de camaradas para defendê-
los.12

Num memorando especial aprovado pelo pleno sobre o relatório de Yezhov foi
anotado que o comissário das Questões Internas estava atrasado pelo menos
quatro anos na luta contra os inimigos. Em outras palavras, Stalin achou que o
expurgo deveria ter começado nas vésperas do XVII Congresso do partido. A
NKVD foi encarregada de “realizar a tarefa de desmascarar e atacar os
trotskystas e outros agentes até a última instância, de modo a esmagar a menor
manifestação de sua atividade antissoviética”.13 Mas isto foi apenas o prelúdio.
Os participantes do pleno, em sua maioria homens de bom senso, ficaram mais
alarmados com o modo de Molotov, Kaganovich e Yezhov apresentarem os
fatos investigados do que convencidos da existência de sabotagem generalizada.
Faltava o histórico político e teórico. Os oradores tinham desvendado o
panorama em que os inimigos operavam, mas o que estavam realmente fazendo
e o porquê de suas ações não ficaram esclarecidos. Pode-se agora apenas
especular o que passou pela mente dos delegados. Já tinham decorrido três anos
desde o “Congresso dos Vitoriosos” e vinte anos de poder soviético e, de novo,
estavam frente ao quase universal “perigo de restauração do capitalismo”.
Tendo em grande parte livrado o comitê central da velha guarda leninista,
Stalin recorria uma vez mais às medidas extremas.
Era necessário um programa preciso. O líder o formulou. Fazia-se mister
uma base teórica para o terror contra os “inimigos”. Stalin a criou. O povo
tinha que ser levantado para liquidar os “trotskystas e outros agentes duplos”, o
secretário-geral também planejou este encargo. Considerando-se as cuidadosas
formulações, e a estrutura impecável do relatório que ele apresentou como
discurso de encerramento, que compôs de próprio punho, fica patente que
Stalin via o sangrento expurgo que estava a ponto de sobrevir como da maior
importância.
Seu relatório recebeu o título de “Inadequações do trabalho do partido e as
medidas para a liquidação dos trotskystas e outros agentes duplos”. Os
frequentes trechos sublinhados, as inserções e as notas à margem com sua
caligrafia clara testemunham o cuidado em sua preparação. Ele não se permitiu
a listagem individual de funcionários hostis, à maneira destemida de Molotov,
Kaganovich e Yezhov. Como orador principal, colocou cada coisa em sua
prateleira apropriada. Primeiro, definiu a noção de “segurança política” e
depois enfocou as consequências do cerco capitalista realçando que ele
representava uma ameaça real que tinha que ser constantemente levada em
conta durante a construção do socialismo, e ligou-o ao “perigo trotskysta”. Os
próprios trotskystas foram por ele caracterizados como “um bando de
destruidores desesperados e sem escrúpulos, diversionistas, espiões e assassinos
que operavam sob as ordens de serviços estrangeiros de informações”.
Potencialmente, classificou o trotskysmo como principal ameaça ao socialismo,
e chegou à seguinte conclusão de longo alcance:

Quanto mais avançarmos, quanto mais sucesso conseguirmos, mais exasperados se tornarão os
remanescentes das classes exploradoras destruídas, mais cedo apelarão para formas extremadas de luta,
mais difamarão o Estado soviético e mais recorrerão aos meios desesperados como a solução última
dos condenados.14

Desde o fim dos anos 1920 e de novo em 1934 e 1937, Stalin vinha pregando
que a luta de classes se aguçaria com o progresso do socialismo, um conceito na
verdade paradoxal em seu tom e irracional no conteúdo. Mas Stalin era um
pragmático. Tinha de encontrar uma base teórica para o processo de expurgo
total que preparava. Ninguém, afora ele, estava capacitado para a missão, e era
ele quem precisava da fundamentação. Em 1934, garantira que as classes
exploradoras estavam liquidadas na URSS e agora, três anos depois, mostrava
de repente que a luta estava se “aguçando”. Disse ao plenário que isso era
possível porque ex-oposicionistas tinham se camuflado e vinham executando
atividades subversivas clandestinas, consolidando suas forças e ganhando
tempo. Citou “seis teorias podres” que evitavam que o partido destruísse
completamente os trotskystas: não se deveria pensar que cumprir o plano antes
do tempo derrotaria os destruidores; ou que o movimento stakhanovista por si
só acabaria com a sabotagem; era errado supor, como alguns, que os trotskystas
não estavam congregando forças, e por aí prosseguiu.
Enquanto os outros relatores se concentraram em fatos concretos de
sabotagem, Stalin, como sempre, encaixou tudo dentro de um quadro bem
estruturado. No seu pronunciamento final de 5 de março, declarou que “há
sete pontos que o pleno não aclarou”. Entre eles, fez alguns julgamentos
corretos, por exemplo, que diversos ex-trotskystas tinham assumido posições
boas e “não deveriam ser desacreditados”. Fez diversas declarações “típicas de
líderes” como a de que, vez por outra, dever-se-ia dar ouvidos à voz das
“pessoas comuns”, externou algumas palavras de ordem tais como “no futuro,
esmagaremos nossos inimigos, como o fazemos agora e fizemos no passado”.
Valendo-se de sua forma preferida de aforismos simples que todos podiam
entender, declarou: “Para ganhar uma batalha são necessários diversos exércitos.
Para perdê-la bastam uns poucos espiões. Para construir uma grande ponte
ferroviária há necessidade de milhares de operários. Para destruí-la, bastam
apenas alguns homens.”15
A resolução adotada concernente ao relatório de Stalin abrangeu 27 pontos
categóricos, aos quais acrescentou detalhes finais com seu próprio lápis. Entre
eles:

— condenar a prática de subestimação do front da propaganda;


— condenar a prática de transformação dos plenos em ocasiões aparatosas;
— condenar a cooptação e a transformação das eleições em ocasiões vazias;
— condenar agrupamentos [artelnost] na distribuição das forças do partido;
— condenar a prática de uma atitude insensível em relação ao destino de membros individuais do
partido.16

Infelizmente, o aparente bom senso desses postulados não desempenhou


papel algum no tratamento dispensado aos membros do partido, nem evitou
rachaduras posteriores nas fundações partidárias. Por exemplo, dois dias antes
de concordar com a “condenação da atitude insensível”, a sorte de Bukharin e
Rykov foi selada e, no mês anterior, Pyatakov, Radek, Sokolnikov e outros
tinham sido condenados. Já de muito tempo àquela parte, o fosso entre palavra
e ação não tinha relevância para Stalin. Na prática, o que se destinava ao
consumo geral era mais ou menos respeitável, razoavelmente democrático no
tom e legal em termos contemporâneos. O que ele dizia no círculo íntimo era
para ser mantido em segredo estrito. E foi exatamente assim quanto a Bukharin
e Rykov.
O pleno aprovou resolução para o caso de Bukharin e Rykov, que ainda
eram candidatos ao comitê central na ocasião. O decreto foi rascunhado por
uma comissão de 36 membros chefiada por Mikoyan e que incluía Andreyev,
Stalin, Molotov, Kaganovich, Voroshilov, Kalinin, Yezhov, Shkiryatov,
Krupskaya (viúva de Lenin), Kosior, Yaroslavsky, Zhdanov, Khruschev, Yakir,
Beria, Eikhe, Bagirov, Budenny, Chubar, Kosarev, Postyshev e Gamarnik.17
Antes de a comissão se reunir, Bukharin preparou um longo e apaixonado
memorando desmentindo cada acusação. Também escreveu diversas cartas a
Stalin tentando convencê-lo de que a “prova” se inspirava num grupo de
“inimigos do povo” presos, e de que não tinha nada a ver com terrorismo,
espionagem ou qualquer atividade dessas. Conseguiu também falar duas ou três
vezes com Stalin pelo telefone que ainda era mantido em seu apartamento.
Stalin o tranquilizou: “Nikolai, não entre em pânico. Vamos resolver tudo. [...]
Não acreditamos que você seja inimigo. Mas como você foi implicado por
Sokolnikov, Astrov, Kulikov e outros agentes duplos, que admitiram ser
sabotadores, temos que examinar tudo com calma. Não se preocupe!”
Bukharin explodiu:“Como é possível sequer imaginar que sou cúmplice de
grupos terroristas?”
“Não se afobe, Nikolai, não se afobe. Vamos resolver tudo.” Stalin tirava
baforadas de seu cachimbo.
A comissão não deu atenção às explicações de Bukharin e Rykov. Seus
“argumentos” principais foram como antes: participantes de um “centro
trotskysta paralelo” declararam que Bukharin, Rykov e futuros “operadores
isolados” sabiam sobre as destruições e atividades terroristas do “centro” e as
apoiaram. Bukharin entrou em desespero enquanto Rykov manteve a
compostura, ao entenderem que enfrentariam o mesmo fado de Zinoviev e
Kamenev, recentemente fuzilados, e o de Pyatakov, Muralov, Drobnis, Shestov
e outros “traidores torpes” liquidados logo a seguir. Bukharin começou uma
greve de fome contra as acusações monstruosamente injustas.
Na noite de 26 de fevereiro e novamente na manhã de 27, Bukharin
telefonou a Poskrebyshev e informou que ele e Rykov desejavam comparecer
ante a comissão que já começara a funcionar, mas que, apesar de os dois serem
candidatos a membro do Comitê Central, não os convocava para todas as suas
sessões. Só Uborevich e Akulov apertaram-lhes a mão. A comissão plenum
sobre o caso de Bukharin e Rykov abriu os trabalhos. Mesmo antes de Yezhov
começar o relato, Stalin exclamou:
“Bukharin está em greve de fome. A quem seu ultimato é dirigido, Nikolai,
ao Comitê Central?”
“Vocês estão prestes a me expulsar do partido...”
“Peça perdão ao Comitê Central.”
Como acontecera antes, Bukharin perdeu o autocontrole. Pensou detectar
um laivo de esperança nas palavras de Stalin. Mas também sabia que a revisão
de seu caso envolveria material coletado pela NKVD em sua investigação, e
que sua justificativa, tanto escrita quanto verbal, seria meramente interpretada
como tentativa de “iludir o partido”. É possível apenas imaginar o que
Bukharin e Rykov sentiram ao se chocarem com uma parede de incompreensão
e de hostilidade programada. Os membros da comissão tinham diante deles
fatos que se baseavam em “evidências” e “testemunhos” obtidos por meios
inadmissíveis de homens já condenados.
Quando Mikoyan, presidente da comissão, sugeriu que fizesse uma
confissão completa e admitisse sua participação em atividade antissoviética,
Bukharin deu uma resposta áspera sem levantar-se:
“Não sou Zinoviev ou Kamenev e não mentirei sobre mim mesmo.”
“Se você não confessar”, respondeu Mikoyan com malevolência, “estará
apenas provando que é um fascista mercenário. Já estão escrevendo nos jornais
que nossos julgamentos são uma provocação. Você está preso! Confesse!”
Bukharin prosseguiu: “Há gente na NKVD cometendo arbitrariedades sem
precedentes com cobertura da autoridade partidária.”
“Sim, e é para lá que vamos mandar você”, interrompeu Stalin. “Espere só
para ver.”
É provável que só Stalin, Yezhov e o círculo mais próximo soubessem que as
acusações eram falsas. Bukharin e Rykov sempre levaram uma vida aberta e
dificilmente seriam inimigos. Stalin percebeu hesitação nos outros membros da
comissão quando apreciaram a justificativa escrita de Bukharin e, portanto,
procurou encerrar o debate apresentando uma decisão preparada com
antecedência. Uma resolução de Yezhov foi posta em votação mediante
chamada nominal. Eram propostos “a destituição de Bukharin e Rykov como
candidatos a membro do comitê central e o julgamento por tribunal militar
com a penalidade extrema da morte por esquadrão de fuzilamento”. Postyshev
disse que era “favorável à expulsão e ao julgamento, mas não à execução”;
Antipov, Khruschev, Nikolaev e Shkiryatov foram da mesma opinião;
Budenny, Manuilsky, Shvernik e Kosarev apoiaram a “expulsão, julgamento e
execução”.
Stalin percebeu que não haveria decisão unânime e, então, fez um lance
cuidadosamente calculado. “Proponho”, declarou, “que Bukharin e Rykov
sejam expulsos do partido, mas que o caso seja repassado à NKVD para
investigação.” Ele sabia que isso era tão monstruoso quanto “expulsão,
julgamento e execução”, mas desejava passar a impressão de conciliador
humanitário. Possivelmente, sua proposta deu a Bukharin e Rykov um tênue
fio de esperança. Foi natural que, depois da sugestão de Stalin, os demais da
comissão emitissem declarações brandas. Krupskaya, Vareikis, Molotov e
Voroshilov apoiaram a proposta do secretário-geral. Kosior, Petrovsky e
Litvinov reiteraram a fórmula de Postyshev do julgamento sem execução. Os
registros históricos mostram que, no entanto, mesmo depois da proposição de
Stalin, Kosarev e Yakir, que seriam as próximas vítimas da ilegalidade, votaram
pela expulsão, julgamento e fuzilamento. Como se pode ver, diversos membros
da comissão estabeleceram a sentença mesmo antes do julgamento, enquanto
outros deram opiniões que, aparentemente, não iam à pena fatal. Como
presidente, Mikoyan não emitiu seu ponto de vista. Foi decidido depois da
primeira chamada que deveria haver nova rodada, e a proposta de Stalin
recebeu apoio unânime:

1. Bukharin e Rykov deverão ser destituídos da função de candidatos a membro do Comitê Central;
não deverão ser julgados, mas seu caso deve ser encaminhado à NKVD;
2. Comissão constituída pelos camaradas Stalin, Molotov, Voroshilov, Kaganovich, Mikoyan e Yezhov
preparará uma minuta de resolução com base nesta decisão.18

A resolução aprovada para o caso Bukharin-Rykov contém anotações e


emendas de Stalin por todos os lados. Com efeito, foi uma instrução política e
um modelo metodológico para a abordagem de casos semelhantes. O plenário
não só aprovou a tese de Stalin sobre o agravamento da luta de classes como
proporcionou um exemplo de como responder aos atos “hostis”. A resolução
era composta de três pontos que podem ser assim resumidos:
1. Com base nas evidências da investigação, o Comitê Central concluiu que os camaradas Bukharin e
Rykov, no mínimo, sabiam da atividade criminosa, terrorista, de espionagem e diversionária do centro
trotskysta, mas a encobriram, cometendo, portanto, ato criminoso.
2. Com base nas evidências da investigação e em função das acareações, o Comitê Central concluiu
que os camaradas Bukharin e Rykov, no mínimo, sabiam da organização de grupos terroristas
criminosos por seus discípulos e seguidores Slepkov, Tseitlin, Astrov, Maretsky, Nesterov, Rodin,
Kulikov, Kotov, Uglanov, Zaitsev, Kuzmin, Sapozhnikov e outros, e não só nada fizeram para barrá-los
como os encorajaram.
3. O Comitê Central concluiu que o memorando do camarada Bukharin ao comitê central, no qual
tenta repudiar o depoimento dos acima citados trotskystas e terroristas de direita não passa de um
documento injurioso. Levando-se tudo em consideração e tendo-se em conta o fato de que, durante a
vida de Lenin, Bukharin teve uma luta contra o partido e contra o próprio Lenin (como Rykov
também o fez), todo o acontecido não foi nem acidental nem inesperado, e, portanto [o restante está
com a caligrafia de Stalin], Bukharin e Rykov devem ser expulsos de membros candidatos do Comitê
Central e das fileiras do [partido]. Seja seu caso remetido à NKVD.19

Mal Bukharin e Rykov deixaram a sala ao término da audiência da comissão,


foram presos. Todavia, eram por demais conhecidos pelo povo e pelo partido
para serem despachados com rapidez. Um julgamento era indispensável e para
assegurar que os acusados estivessem prontos para ele era necessário algum
tempo. Seguiu-se um longo intervalo de 13 meses entre o pleno e o último ato
da tragédia.
A decisão do pleno deu um poderoso impulso a todo o processo. Já em
março de 1937, nas regiões e nas repúblicas, comitês do partido se reuniram
para ouvir as instruções de Stalin e também para a apresentação dos primeiros
resultados de seu cumprimento. O relatório de Zhdanov, em Leningrado, em
15 de março de 1937, serve como bom exemplo:

Em vista do acontecido, Bukharin e Rykov não se revelaram diferentes dos zinovievitas e trotskystas.
São todos uma gangue de bandidos. Não me recordo de comportamento tão vergonhoso ou mais
desprezível que o de Bukharin e Rykov. Foram necessários quatro dias para que arrancássemos deles a
verdade, mas esperamos em vão que demonstrassem um lampejo ou um vestígio de atitude humana
com o partido. Como eles disseram, não éramos seus juízes.

Zhdanov prosseguiu aviltando ainda mais Bukharin perante os comunistas de


Leningrado dizendo-lhes que sua greve de fome não passou de uma encenação.
“Por volta da meia-noite, ele ingeriu uma refeição bem mais nutritiva que a
habitual e às dez da manhã anunciou sua greve de fome.”20
Zhdanov tinha alguns fatos a relatar sobre o “trabalho” que já fora feito em
Leningrado para revelar “inimigos”. “Oito grupos de sabotadores tinham sido
descobertos nas ferrovias Kirov e Outubro, dez grupos em fábricas, na NKVD,
na defesa antiaérea e no aparato do partido.” “Ninhos de inimigos” foram logo
desvendados no distrito Vyborg (13 pessoas), no distrito Vasilievsky (12) e no
distrito Kirov (12). No total, 223 funcionários do partido. “Vocês bem podem
imaginar a confusão no aparato do partido!”, advertiu.
Acompanhado de urros de indignação, Zhdanov pintou um quadro lúgubre
do domínio do inimigo na cidade que era o berço da revolução: “Entre 1933 e
1936, 183 pessoas foram graduadas pelo Instituto dos Professores Vermelhos,
32 delas já foram presas. Das 130 que restaram em Leningrado, 55 foram
declaradas inimigas do povo.”21 Cenas semelhantes de destempero ruidoso
tiveram lugar por toda parte no país, enquanto a perplexidade, a infelicidade e
o medo permaneciam silenciosos e sem meio de expressão.
[29]
Farsa política

E m seguida ao julgamento de Zinoviev e Kamenev, começou em


Moscou, em 23 de janeiro de 1937, o dos chamados “17”, ou seja, de
Pyatakov e 16 outros. O objetivo era mostrar que Trotsky usara os
acusados para organizar atos de destruição e para preparar o retorno do
capitalismo na URSS. O julgamento foi tão bem encenado que Pyatakov, a
despeito de sua força de vontade, chegou a descrever com eloquência um
encontro que tivera com Trotsky em Oslo (onde jamais fora) e declarou que
Trotsky

na sua diretriz, estabeleceu duas possíveis variantes para nossa chegada ao poder. A primeira seria antes
da guerra e a segunda durante a guerra. Trotsky via a primeira variante como resultado de um golpe
terrorista concentrado. O que ele tinha em mente era a execução simultânea de atos terroristas contra
alguns líderes do partido e do Estado, especialmente contra Stalin e seus auxiliares mais próximos. A
segunda variante, que Trotsky considerava a mais provável, viria na derrota militar.22

Stalin derrotara Zinoviev e Kamenev pela exaustão e pela fraude. Dobrou


Pyatakov e seus “parceiros” pela tortura.
Outro julgamento foi particularmente deprimente. Tratou-se do chamado
“julgamento dos 21”, cujas vítimas foram Bukharin, Rykov, Krestinsky,
Rakovsky, Rozengolts e outros. Stalin usava os tribunais para exterminar
fisicamente os últimos oponentes, mas o alvo político, como sempre, era
Trotsky. O duelo entre os dois prosseguiu. Nas poucas páginas do sumário de
culpa contra Pyatakov e os outros, Trotsky foi mencionado nada menos que 51
vezes. Os documentos do julgamento de Bukharin e seus coacusados seguiram
a mesma linha. Quando os procedimentos judiciais começaram, Trotsky, do
México, fez constar que os réus, de fato, partilhavam seus pontos de vista, mas
que só estavam sendo julgados pelas ideias deles. Em quase todas as edições do
seu Boletim, ele publicou matérias sobre Rakovsky, Krestinsky e Rozengolts,
demonstrando a “incompatibilidade” deles com Stalin, e frisando sua
solidariedade aos mesmos. Publicou protestos regulares contra a perseguição de
seus “seguidores”. A defesa que fez dos “inimigos do povo” foi muito útil a
Stalin e proporcionou argumentos “suplementares”.
Stalin pressentiu a aproximação da guerra. Ele não podia deixar de perceber
que via o mundo exterior através dos olhos de Trotsky. Conquanto temesse
admitir até para si mesmo, sabia, quando lia os trabalhos de Trotsky, que o rival
não profetizava em vão. Em Revolução traída, por exemplo, Trotsky escreveu:

Será possível esperarmos que a União Soviética saia da guerra que se aproxima sem derrota? Para esta
indagação franca, dou uma resposta igualmente franca: se a guerra permanecer apenas uma guerra,
então a derrota será inevitável para a União Soviética. Nos campos tecnológico, econômico e militar, o
imperialismo é incomparavelmente mais forte.23

Soava como uma sentença de apocalipse não só para o socialismo como


também para Stalin. O secretário-geral, no entanto, não entregaria os pontos
com tanta facilidade. Antes que a guerra começasse, precisava livrar-se de todos
os possíveis cúmplices do fascismo. Enquanto se preparasse para a guerra, tinha
que sumir com qualquer potencial quinta-coluna. Hitler não poderia encontrar
apoio local na União Soviética. Segundo F. Chuev, Molotov, pouco antes de
falecer, confirmou que, na véspera da guerra, Stalin dispôs-se a acabar com
qualquer colaboracionista soviético no seio da sociedade.
Noutro nível, Stalin precisava explicar a razão do padrão de vida
relativamente baixo e das incontáveis dificuldades experimentadas pela
economia do país. “Saques e sabotagem” era a resposta. Funcionários
obedientes logo captaram a mensagem, e seus relatórios diários continham
informações apropriadas. Por exemplo, em 19 de outubro de 1937, foram
apresentados os seguintes relatórios:

Na vila de Tabory, nos Urais, por danos causados ao kolkhoz, cinco homens foram sentenciados ao
fuzilamento.
Minsk. Pela contaminação intencional da farinha de trigo, cinco homens foram sentenciados à morte.
Saratov. Um grupo trotskysta-direitista despejou grande quantidade de óleo no Volga. Nove homens
receberam pena de morte, inclusive o professor N.A. Orlov, da Universidade de Saratov.
Leningrado. Seguindo ordens da Gestapo, foram provocadas interrupções sistemáticas no sistema
regional de energia de Leningrado, resultando em trabalhadores feridos. Dez homens receberam a
pena de fuzilamento.24

A lista de relatórios semelhantes é longa. Acima da assinatura de V. Ulrikh,


aparecia a anotação lacônica: “Todas as sentenças cumpridas.” Com frequência,
havia também um rabisco no canto rubricado por Poskrebyshev: “Camarada
Stalin foi informado.”
Tais tragédias em massa tornaram-se regra depois dos julgamentos-shows de
janeiro de 1937 e março de 1938. Stalin estava então seguro de que todos no
país sabiam exatamente quem estava prejudicando o progresso, vendendo a
pátria-mãe ao inimigo, organizando tentativas para assassiná-lo e ao seu
entourage, e executando ordens de Trotsky. Os julgamentos políticos agiram
como detonadores de uma explosão de terror generalizado não só contra
potenciais inimigos de Stalin, mas também, como aconteceu na indiscutível
maioria dos casos, contra vítimas acidentais, em particular administradores de
fábricas e instituições que tinham passado por algum infortúnio, tais como um
incêndio, explosão, uma interrupção ou parada total da produção. A certa
altura de 1937, a repressão saiu do controle. Em muitos comissariados e outras
agências a delação tornou-se forma de sobrevivência. Tudo isso foi
consequência dos primeiros e grandes julgamentos políticos.
Stalin concordou com o extermínio de pessoas, evidenciando excepcional e
aterradora falta de sentimentos. Listas imensas de indivíduos e grupos eram a
ele enviadas. Encontrei apenas um documento nos arquivos de Stalin que
mostra um certo grau de compaixão de sua parte:

Ao Camarada I.V. Stalin


O escritório do Procurador foi procurado pela esposa de A.S. Kuklin, que foi sentenciado em 18 de
janeiro de 1936 a dez anos de prisão. Kuklin está preso na penitenciária Butyrki. Segundo um
relatório médico de 7 de janeiro deste ano, Kuklin tem um tumor maligno no esôfago. Ele está
clinicamente desenganado.
Solicito suas instruções.
22 de março de 1936 A. Vyshinsky

Na parte de baixo, Vyshinsky anotou: “O Camarada Ulrikh tem ordem do


Camarada Stalin para libertar Kuklin imediatamente.”25
Por outro lado, ele sancionou a execução de seu ex-assistente, A.
Nazaretyan, do ex-secretário de Lenin, N. Gorbunov, de seu amigo e ex-
secretário do comitê executivo central, A. Yenukidze, de A. Kosarev, a quem ele
mesmo descrevera como “líder autêntico da juventude”, de seu próprio tutor
filosófico, Jan Sten, de A. Solts, com quem partilhou a clandestinidade pré-
revolucionária, de Semen Uritsky, oficial de informações por ele muito
considerado, de L. Karakhan, ex-vice-comissário do povo de Relações
Exteriores, que o secretário-geral apresentava como exemplo para os outros, de
Ya. Agranov, um chekista e antigo amigo, de A. Bubnov, ao lado de quem
cumpriu as ordens de Lenin durante a guerra civil, de I. Vareikis, “um
bolchevique duro”, em suas próprias palavras, e concordou com a prisão de G.
Broido, seu ex-vice no comissariado para as Nacionalidades.
Ao repassar as infindáveis listas de indivíduos presos ou executados, Stalin
podia ver todos os chefes do partido, regionais e das repúblicas, com quem se
dera, cientistas com quem tivera contatos pessoais, dúzias de escritores e outras
figuras culturais cujo destino só foi definitivamente conhecido nestes últimos
anos. Havia listas de pessoal do Comintern e de muitos militares, milhares
deles. Milhares de nomes, milhares de vidas, milhares de pessoas que o
glorificavam, que estavam prontas a cumprir quaisquer de suas ordens. Muitos
conseguiram escrever cartas de despedidas a ele, diversas das quais foram lidas.
Mas isto nada alterou. Ele não conhecia piedade ou condescendência,
tampouco camaradagem ou senso de honra. Bastava que escrevesse ou
balbuciasse “De acordo” a Poskrebyshev para que todas essas pessoas
desaparecessem. E bem cedo, Vyshinsky, Ulrikh e Yezhov azeitaram tão bem a
máquina punitiva que Stalin passou apenas a tomar conhecimento de
estatísticas impessoais.
Na véspera dos julgamentos, evidentemente, Stalin fazia diversas reuniões
com Vyshinsky e Ulrikh. Tais encontros, que, sem dúvida, serviam para o
secretário-geral dar instruções, não foram minutados e não há vestígio deles nos
arquivos. Stalin gostava de Ulrikh, talvez devido ao estilo lacônico daquele
advogado do exército, à brevidade bastante concisa de seus relatórios sobre a
safra sangrenta que batia diariamente na mesa de Stalin em grandes
quantidades nos anos de 1937 e 1938. Alguns têm nada mais que as iniciais de
Stalin; na maioria, abundam as de Poskrebyshev.
O fluxo constante de relatórios, que se transformou em avalanche, teria
afetado o moral de qualquer pessoa, aterrorizando-a e abalando-lhe o íntimo.
Stalin, no entanto, no auge da repressão, não deixou de ir ao teatro, de assistir
filmes em sua dacha, de receber os comissários, de expedir decretos e outros
documentos, de organizar ceias à meia-noite, de ditar cartas, de comentar os
artigos do Pravda e do Bolshevik. Mesmo que acreditasse piamente que o terror
estava eliminando inimigos reais do povo, ainda assim surpreende ao extremo
sua falta absoluta de sentimentos e sua crueldade. Ele ficava observando
enquanto Ulrikh assinava centenas e centenas de sentenças de morte com total
indiferença, um juiz desprovido de emoções, ideal para Stalin e componente
vital da guilhotina.
Baixo, atarracado e de óculos, Vyshinsky era um tipo completamente
diferente. Stalin admirava a eloquência do procurador-geral, as tiradas
mortíferas com as quais paralisava literalmente suas vítimas no banco dos réus.
No final, a maioria dos acusados só podia encontrar palavras de concordância
com ele. Stalin agraciou-o com a Ordem de Lenin por sua atuação no
julgamento de Bukharin. Seu discurso de encerramento naquela ocasião, em 11
de março de 1938, deve ter causado viva impressão:

Todo o país, dos mais jovens aos mais idosos, espera e exige só uma coisa: que os traidores e os espiões
que venderam nossa pátria ao inimigo sejam exterminados como cães raivosos!
O povo só requer uma coisa: que os vermes abomináveis, os traidores odiados, sejam exterminados.
O tempo passará. Os túmulos dos execrados vendilhões ficarão cobertos de ervas daninhas e do
desprezo eterno do honesto povo soviético, de todo o povo soviético.
Ao passo que sobre nossa terra feliz, brilhante e clara como sempre, o sol lançará seus raios
fulgurantes. Nós, o povo, continuaremos como antes palmilhando nosso caminho já então livres de
qualquer traço da vileza e da podridão do passado, e liderados pelo amado líder e mestre, o grande
Stalin.26

O líder e mestre ficou encantado com tanto entusiasmo, e Vyshinsky tornou-se


vice-presidente do Conselho de Ministros,* depois ministro das Relações
Exteriores, vencedor do Prêmio Lenin e alvo de outras provas do favor de
Stalin.
Não menos que o próprio Stalin, Vyshinsky entendeu a importância da
farsa política cuja representação dele se esperava. O último julgamento, em
março de 1938, assistiu à consumação do processo de lavagem cerebral pública.
As acusações foram as de sempre: execução das ordens de Trotsky, ações de
espionagem e sabotagem, preparação do país para a derrota vindoura,
desmembramento da União, atentados contra Stalin e outros líderes
destacados.
Para garantir o sucesso, os julgamentos tiveram um longo “tempo de
ensaio”. Diversos meses foram gastos na tentativa de dobrar os acusados. Os
investigadores usaram vasta gama de meios para obter a confissão desejada, a
qual, contrariando as normas jurídicas, serviria como prova principal da culpa.
Alguns depoimentos duraram até três meses, outros, apenas alguns dias.
Vieram então os ensaios humilhantes. Uma vez vergados, os réus eram forçados
a memorizar a versão adequada, a fazer declarações preparadas
“desmascarando” pessoas nomeadas. Depois de incontáveis repetições do
vergonhoso embuste, os “diretores” eram informados de que tal ou qual “ator”
estava pronto para sua “performance”. Houve contratempos ocasionais.
Por exemplo, no resumo que o meirinho leu para a corte em 2 de março de
1938, foi dito que o acusado, N.N. Krestinsky, “entrou em contato pérfido
com a intelligentsia alemã em 1921”, e chegou a um acordo com os generais
Seekt e Hasse sobre a colaboração com o Reichswehr por 250 mil marcos
anuais de trabalho trotskysta. Quando o presidente da corte perguntou se
Krestinsky era culpado, o acusado, contrariando seu testemunho anterior,
começou a negar tudo. Houve comoção nos corredores. A corte suspendeu os
trabalhos. Stalin foi informado. Explodiu de ódio. “Prepararam tudo muito
mal.” E deixou claro que não queria o fato repetido. Providências foram
tomadas e, na mesma noite, Krestinsky voltou ao “normal”.

Krestinsky: “Confirmo completamente o testemunho que dei na investigação preliminar.”


Vyshinsky: “Nesse caso, qual foi o significado de sua declaração de ontem, que só pode ser vista como
uma provocação trotskysta ao tribunal?”
Krestinsky: “Ontem, sob a influência de grave e momentânea vergonha interior, causada pelo fato de
estar no banco dos réus e de ouvir a leitura das acusações, com o agravante de meu péssimo estado de
saúde, eu não estava em condições de dizer a verdade, nem em condições de dizer que era culpado.”
Vyshinsky: “Esta é uma resposta definitiva?”
Krestinsky: “Solicito que a corte registre a declaração de que reconheço total e completamente que sou
culpado de todas as sérias acusações pessoalmente a mim imputadas e que me responsabilizo por
inteiro pela traição que cometi.”27

Afora uns poucos desencontros como o citado, os julgamentos correram sem


problemas. Os réus concordavam com o promotor, aceitando as acusações
monstruosas com espírito desarmado, e acrescentavam de moto próprio um
detalhe aqui e ali referente aos seus descaminhos. Deve ter sido um momento
sem paralelo de colaboração entre corte e acusados. Quase ninguém contra-
argumentava a respeito de coisa alguma. Quase todos só se autoacusavam.
O caso de Bukharin foi particularmente doloroso de assistir. Seis meses
antes da prisão, ele escrevera a Stalin e a outros membros do Politburo. O
julgamento de Zinoviev, Kamenev e seus 14 “cúmplices” estava para começar.
Durante tal processo, no qual os acusados denunciariam Bukharin, Tomsky e
Rykov, o promotor, Vyshinsky, anunciaria investigações sobre o “caso
Bukharin”. Quando Bukharin voltou da Ásia Central, onde passara as férias,
soube que tinha sido aberto um “processo” contra ele. O ex-“favorito do
partido” ficou aflito. De imediato, sentou-se e escreveu uma carta a Stalin. Foi
impossível encontrar esta carta, mas ele escreveu missivas semelhantes a outros
membros do Politburo e a Vyshinsky, e duas de tais cartas, endereçadas a
Voroshilov, foram achadas e dão uma ideia da forma com que o drama de
Bukharin se transformou em tragédia:

Prezado Kliment Yefremovich


Você,** sem dúvida, recebeu a carta que dirigi aos membros do Politburo e a Vyshinsky. Escrevi na
noite passada ao secretariado do Camarada STALIN e solicitei que ela fosse circulada, já que contém
tudo o que de importante se relaciona com as acusações monstruosamente chocantes de Kamenev.
(Como escrevi, estou tendo uma sensação de semirrealidade; será um sonho, uma miragem, uma
loucura, uma alucinação? Não, é realidade.) Gostaria de perguntar a todo o mundo: Vocês de fato
acreditam nisto? Realmente?
É verdade que escrevi um artigo sobre Kirov. Aconteceu que, por acaso, quando eu estava
(merecidamente) em desgraça e doente, ele me visitou, conversamos o dia inteiro, colocamos tudo em
pratos limpos; ele me cedeu seu vagão ferroviário particular, enviou-me de volta a Moscou e tratou-me
com tal consideração que não esquecerei até o dia de minha morte. Portanto, poderia eu ter escrito
alguma coisa que não fosse sincero a respeito de Sergei [Kirov]? Pergunte honestamente a si mesmo. Se
eu demonstrasse insinceridade, deveria ser preso e exterminado de pronto, porque não precisamos de
vilãos desse tipo. Se vocês acharam que fui “insincero”, e me deixaram solto, então vocês são uns
covardes que não merecem respeito...
É verdade que pensei – e que continuarei pensando enquanto tiver um cérebro dentro de minha
cabeça – que seria uma insensatez, do ponto de vista internacional, ampliar a base da burrice (o que
significaria ir ao encontro do desejo do poltrão Kamenev! Tudo o que ele queria era tentar provar que
não estavam agindo sozinhos). Mas não falarei sobre isso, senão vocês pensarão uma vez mais que
estou usando a alta política como desculpa para pedir tolerância.
Mas quero a verdade; e a verdade está do meu lado. Pequei muito contra o partido durante meu
tempo e sofri muito por causa disto. Porém declaro, quantas vezes forem necessárias, que, nos anos
recentes, defendi a política partidária e a liderança de KOBA com grande convicção, sem jamais ter
sido subserviente.
Foi muito bom voar acima das nuvens anteontem: oito graus abaixo de zero, claridade de diamante,
respirando a paz da vastidão.
É provável que o que escrevi não faça sentido. Não se irrite. Talvez não seja muito agradável para você
receber uma carta minha neste momento. Sabe Deus, tudo é possível.
Contudo, “apenas por garantia”, eu gostaria de assegurar-lhe (já que você tem tido uma atitude correta
em relação a mim), que sua consciência pode ficar absolutamente tranquila: eu não o deixei mal. Não
sou absolutamente culpado de coisa alguma e, mais cedo ou mais tarde, isto ficará patenteado, por
mais que queiram enodoar meu nome.
Pobre Tomsky! Pode ser que ele “tenha se envolvido”. Não sei. Não descarto a possibilidade. Ele vivia
isolado. Talvez se eu o tivesse visitado ele não ficasse tão deprimido e não se envolvesse. A vida
humana é tão complicada! Mas tudo isto é poesia e estamos tratando de política, não de questões
poéticas, e política bastante dura.
Fico terrivelmente feliz que os cães [Zinoviev e Kamenev] foram fuzilados. Trotsky foi destruído pelo
julgamento e isto logo ficará totalmente claro. Se eu ainda estiver livre quando a guerra irromper, vou
me alistar para lutar (palavra feia), e você me fará um último favor deixando que eu ingresse no
exército mesmo como soldado raso (nem que seja para ser atingido por uma bala envenenada de
Kamenev).
Certa vez, recomendei que você lesse o drama sobre a Revolução Francesa escrito por Romain
Rolland.
Desculpe esta carta confusa: milhares de pensamentos correm por minha cabeça como cavalos bravios,
e não possuo rédeas fortes para contê-los.
Envio-lhe um abraço porque me considero limpo.
Nik. Bukharin 1.IX.36

Depois de ler a carta, Voroshilov decidiu que devia enviá-la imediatamente


para Stalin, como também respondê-la, deixando que Stalin e os outros
tomassem conhecimento do conteúdo de sua resposta. De qualquer forma, ele
tomou o cuidado para estabelecer um álibi político envolvendo seus assistentes.
Dois documentos foram rapidamente preparados:

Ultra-Secreto. PESSOAL. Para os Camaradas


STALIN
MOLOTOV
KAGANOVICH
ORDZHONIKIDZE
ANDREYEV
CHUBAR
YEZHOV
Com referência à carta de BUKHARIN a vós enviada em 1.IX.36, de nº 2389ss, anexo ao presente,
por ordem do Camarada K.YE. VOROSHILOV, a resposta de VOROSHILOV a BUKHARIN e
uma cópia da resposta de BUKHARIN.
Anexos: 3 páginas.
Comandante Divisionário Khmelnitskii
Ajudante do Comissário para a Defesa da URSS
4.IX.36

A resposta de Voroshilov ao ex-camarada foi condizente com o espírito da


moralidade que vigorava entre os auxiliares mais próximos do autocrata.

Ao Camarada BUKHARIN
Respondo à carta em que você se permitiu fazer ataques vis à liderança do partido. Se você esperava
com tal carta convencer-me de sua completa inocência tudo o que fez foi convencer-me de que devo,
a partir de agora, afastar-me ao máximo de você, independentemente do resultado de seu caso. E se
você não repudiar por escrito os inqualificáveis epítetos contra a liderança partidária vou considerá-lo
um ser desprezível.
K. Voroshilov 3.IX.36***

Pode-se bem imaginar o choque que Bukharin deve ter tido ao receber esta
carta, embora, no íntimo, soubesse que a lâmina da guilhotina de Stalin estava
suspensa sobre sua cabeça. É possível que tenha se lembrado das palavras de
Robespierre para a Convenção de 8 do Termidor, na véspera de sua execução:
“Eles chegaram à tirania com a ajuda de canalhas, onde chegarão aqueles que
lutam contra eles? Aos seus túmulos e à imortalidade.” Bukharin lutou? Ao ler
a devastadora carta de Voroshilov, encontrou forças para responder ao
comissário de Stalin:

Camarada VOROSHILOV
Recebi sua missiva consternadora.
Minha carta foi fechada com “Envio-lhe um abraço.”
A sua termina com “ser desprezível”.
O que pode ser escrito depois disto?
Todo homem tem, ou deveria ter, seu orgulho pessoal. Mas eu gostaria de acabar com um mal-
entendido político. Escrevi-lhe uma carta de natureza pessoal (que agora lamento muito) enquanto
experimentava um grave transe psicológico: considerando-me perseguido, escrevi para um grande
homem; eu estava enlouquecendo e só pensava no que poderia acontecer, ou que alguém pudesse
acreditar que eu era culpado.
Por isso, esbravejei e escrevi: “Se vocês me acharam ‘insincero’ (por exemplo, que escrevi
insinceramente meus artigos sobre Kirov), e ainda assim me deixaram livre, então foram covardes etc.”
E mais: “E se você mesmo não acredita que Kamenev andou armando... etc.” Bem, então, segundo você,
isso significa que penso que você é covarde ou que estou chamando nossos líderes de covardes? Ao
contrário: o que quero dizer é que, uma vez que todos sabem que vocês não são covardes, isso significa
que não acreditam que escrevi artigos insinceros. Por certo, esta parte é clara em minha carta!
Porém, se minha carta foi tão confusa que pôde ser tomada como um ataque, então – não por um
temor do tipo de Judas, mas genuinamente – por três vezes, por escrito ou da maneira que lhe
aprouver, retiro aquelas frases, embora não quisesse dizer o que você pensou.
Considero maravilhosa a liderança do partido. E em minha carta a você, a despeito da possibilidade de
que nós dois tenhamos cometido enganos, escrevi: “Houve ocasiões na história em que pessoas
maravilhosas e políticos superlativos também incorreram em erros de natureza honesta.” Não era assim
a minha carta? É exatamente o que penso sobre nossa liderança. Admiti isso no passado e não canso de
repeti-lo agora. Ouso até achar que provei tal atitude com a atividade que desenvolvi nos últimos
anos.
Seja como for, peço-lhe que desfaça esse mal-entendido. Desculpo-me muito por minha última carta e
não mais o incomodarei com outra. Ando extremamente nervoso. Foi isso que fez com que escrevesse
a carta. Na realidade, tenho que permanecer o mais calmo possível enquanto aguardo o desfecho da
investigação que, seguramente, provará minha completa falta de envolvimento com os bandidos.
Porque aí reside a verdade.
Adeus.
Bukharin 3.IX.3628

Bukharin escreveu “Adeus”, porém, uma vez mais, Stalin afrouxou o nó em


torno do pescoço da vítima sufocada. O Pravda de 10 de setembro de 1936
publicou que, na ausência de provas incriminadoras, o caso estava encerrado.
Mas foi apenas um pequeno alento, e chegara então a hora para que Bukharin
seguisse o script que lhe fora preparado.
No seu julgamento, por mais patéticos que tivessem sido seus apelos a
Voroshilov, lutou para se mostrar à altura da situação em seus próprios termos.
Percebendo que estava condenado, tentou, por vezes diretamente, noutras
usando linguagem esópica, e ainda noutras em forma de sátira trágica, lançar
dúvida sobre as acusações. É provável que, ao se despedir da vida, estivesse
visualizando o futuro. Naquele que foi o momento mais trágico de sua
existência, ele foi capaz de preservar a presença de espírito e o intelecto
aguçado. Foi sua última tentativa de externar dignidade:

Vejo-me [...] política como juridicamente, um responsável por sabotagem, conquanto pessoalmente
não me recorde de ter dado ordens para que fosse cometida sabotagem.
O cidadão Procurador afirma que, juntamente com Rykov, sou um dos mais importantes
organizadores da espionagem. Qual a prova? Teria sido o testemunho de Sharangovich, do qual não
ouvi falar antes do sumário de culpa?
Nego categoricamente que tenha tomado qualquer parte nos assassinatos de Kirov, Menzhinsky,
Kuibyshev, Gorky ou Maxim Peshkov.**** Segundo o depoimento de Yagoda, Kirov foi assassinado
por ordens partidas do “Bloco Trotskysta-Direitista”. Eu nada soube disto.
A lógica severa da luta foi acompanhada pela degeneração de nossa psicologia, de nossa própria
degeneração, da degeneração do povo.29

Stalin recebia, por intermédio de Yezhov, de Vyshinsky e de outros, relatórios


diários sobre o andamento do julgamento. Perguntava sobre alguns pontos e
dava diversos conselhos. Foi o primeiro que viu o filme e fotografias do júri
com os acusados. Por ordens suas, o “show” foi amplamente divulgado pela
imprensa escrita e pelo rádio; jornalistas estrangeiros e até diplomatas foram
convidados a acompanhá-lo. Todos ficaram surpresos com o fato de os
criminosos “confessarem” em termos ideais. Não foram necessárias peritagens
nem investigações suplementares, tampouco argumentações forenses ou
diálogos entre acusação e defesa. O promotor fazia seu solo e o restante
simplesmente fazia um obbligato. Até Feuchtwanger, malgrado a
tendenciosidade de seu livro Moscou 1937, teve que admitir:

Se um diretor fosse chamado a levar para o palco aquele julgamento, teria que gastar alguns anos e um
bom número de ensaios para conseguir tal trabalho de equipe dos acusados; eles foram bem
conscientizados, ficaram bastante alertas para não cometer quaisquer deslizes em relação uns aos
outros e demonstraram preocupação com muito comedimento. Em suma, os hipnotizadores,
envenenadores e funcionários da corte que preparam os acusados, a par de outras qualidades
excepcionais, com certeza foram extraordinários diretores e psicólogos.30

Feuchtwanger estava certo em parte; os organizadores da farsa, em especial o


diretor-chefe, eram mestres no ofício, mas, além da intimidação e dos atos de
violência na investigação, houve outra razão para os acusados não se queixarem.
Durante semanas e meses disseram-lhes que a confissão era necessária para o
partido e para o povo. Só “uma confissão nos ajudará finalmente a desmascarar
os criminosos”. Significava não só confessar mas delatar outros. Parece que
muitos acusados foram movidos por tal motivação, se bem que ela aflorasse de
forma diferente em cada declaração final. O acusado G.F. Grinko disse: “Aceito
como adequadas a sentença mais severa e a punição mais rigorosa.” O acusado
N.N. Krestinsky afirmou: “Meus crimes contra a pátria e contra a revolução
são imensos, e recebo sua sentença mais dura como totalmente merecida.” O
acusado A.I. Rykov: “Desejo que todos aqueles que ainda não foram
desmascarados ou desarmados o sejam imediata e ostensivamente. Gostaria de
servir de exemplo para eles sobre a inevitabilidade do desarmamento.” O
acusado N.I. Bukharin: “Ponho-me de joelhos diante do país, do partido e de
todo o povo.”31
Stalin deve ter ficado satisfeito em saber que, embora enfrentassem a morte,
os inimigos do povo e do partido não se rebelaram, mas disseram o que deles
foi pedido. Encarou as “confissões completas” como vitória pessoal, sem
suspeitar que elas continham as sementes de sua inevitável derrota moral. Mas
sabia também que Bukharin resistira por três meses depois da prisão. Eles o
ameaçaram e pressionaram, porém o acadêmico em desgraça, mesmo na prisão,
tentou uma série de cartas para convencer Stalin, como o fizera no pleno de
fevereiro-março, de que “há uma conspiração e existem inimigos do povo, mas
os principais devem ser procurados dentro da NKVD”.
Stalin não reagiu a tais sinais. Talvez, ao considerar o gélido silêncio
resultante de suas cartas a Stalin, Bukharin pensasse na oportunidade que tivera
recentemente para escapar daquele destino. Ele passara de fevereiro a março de
1936 no exterior, com uma pequena delegação, para comprar material de
arquivo sobre Marx e Engels. Já naquela ocasião, tinha ideia sobre qual poderia
ser sua sorte, porém, como Robespierre, achou que só atingiria a imortalidade
em sua terra natal.*****
Algum tempo antes, Stalin enviara a seguinte instrução do comitê central às
autoridades locais da NKVD:

O comitê central [...] autoriza o emprego da coação física pela NKVD, a começar em 1937. É bem
sabido que os serviços burgueses de informações usam a coação física do tipo mais revoltante contra
representantes do proletariado socialista. Por que então os órgãos socialistas devem ser mais humanos
com os agentes fanáticos da burguesia e inimigos declarados da classe trabalhadora e das fazendas
coletivas? O comitê central julga que a coação física deve ser utilizada excepcionalmente e, de agora
em diante, empregada contra inimigos conhecidos e revelados do povo, mas, nestes casos, encarada
como método permitido e correto.32

Essa “exceção” tornou-se regra e foi utilizada tão logo um acusado dava os
primeiros sinais de resistência nas “conversas” com os investigadores.
Como Bukharin ainda não estava revelando coisa alguma e a “investigação”
ameaçava se estender bastante, Stalin ordenou que Yezhov utilizasse “todos os
meios”. Já vimos, das cartas que enviou a Voroshilov (e Stalin) em setembro de
1936, que o estado emocional de Bukharin tornara-se precário com o progresso
do terror. Então, com as ameaças feitas contra sua jovem esposa e o filho
recém-nascido, ele desabou completamente. Passou a assinar qualquer invenção
monstruosa que os investigadores arquitetassem, rotulando-o de “trotskysta”,
“líder do bloco”, “conspirador”, “traidor”, “organizador da sabotagem”, e assim
por diante. É dolorosa a leitura de suas palavras:

Confesso que sou culpado dos crimes mais abomináveis que podem existir: traição contra a mãe-pátria
socialista, organização de levantes kulaks, preparação de atos terroristas, filiação a uma organização
subversiva antissoviética. Confesso ainda mais que sou culpado de tramar um “golpe palaciano”...33

Conquanto Stalin se mostrasse bem radiante, deve ter percebido, ao ler alguns
relatórios dos interrogatórios, o sarcasmo disfarçado dos acusados enquanto
respondiam aos organizadores do “espetáculo” com ironia macabra:
Vyshinsky: “Acusado Bukharin, é ou não é fato que seu grupo de cúmplices no
Cáucaso Setentrional teve ligações com círculos no exterior de emigrados
cossacos Brancos? Rykov falou sobre isto. Slepkov falou sobre isto.”
Bukharin: “Se Rykov falou sobre isto, não tenho motivos para desacreditar
nele.”
Vyshinsky: “Como conspirador e líder, este fato era do seu conhecimento?”
Bukharin: “Do ponto de vista da probabilidade matemática, pode-se dizer
com probabilidade alta que se trata de um fato.”
Vyshinsky: “Deixe-me perguntar de novo a Rykov: este fato era do
conhecimento de Bukharin?”
Rykov: “Pessoalmente, calculo pela probabilidade matemática que ele deve
ter sabido disto.”34

Stalin captou a zombaria: perguntaram sobre vínculos com emigrados Brancos


e eles falaram sobre “probabilidade matemática”! Depois de cada sessão do júri,
os réus eram lembrados de que não apenas sua sorte estava em jogo, como
também a de seus mais próximos e queridos dependia da inteireza e da
correção de seus depoimentos.
Stalin estava decidido a evitar qualquer escorregão no julgamento dos 21;
Bukharin e seus cúmplices tinham que estar completamente “maduros”. Além
do mais, tal julgamento precisava ser o sumário do primeiro estágio do expurgo
maciço e do terror. Ele via aquele júri não apenas como um ato penal,
coroando o extermínio dos inimigos mais perigosos, mas também como uma
lição de âmbito nacional sobre a vigilância, a irreconciliabilidade e o ódio de
classe por quem resistisse a ele e, por consequência, ao socialismo. Ordenou,
portanto, que o julgamento tivesse ampla difusão pelos jornais e pelo rádio, e
que fossem organizados comícios para exigir “o extermínio dos vermes
fascistas”.
Ele sabia que os julgamentos-shows fortaleceriam ainda mais seu poder,
uma vez que o povo e o partido não poderiam deixar de tirar a lição de que
qualquer oposição não tinha a mínima chance. Usou aqueles júris para instalar
um sistema de controle social mútuo pelo qual todos vigiavam todos, e apenas
ele permanecia acima da espreita e dos informantes. Mesmo as pessoas mais
próximas a ele não deveriam se sentir seguras, como o destino de Kosior,
Postyshev, Rudzutak, Chubar e muitos outros provaram eloquentemente.
Por outro lado, os julgamentos eram montados de forma a deixar Stalin na
sombra. Poucos foram seus pronunciamentos públicos sobre os júris e, para a
maioria da população, seu verdadeiro papel passou despercebido. Ele criou a
ilusão de que os inimigos e espiões estavam sendo julgados pelo próprio povo.
Mas na realidade, se toda a nação tivesse ficado responsável pelos
procedimentos dos tribunais, é certo que o resultado teria sido o mesmo. O
país não tinha arrefecido da luta de classes, da revolução, da guerra civil e da
coletivização. Qualquer relato sobre um terakt despertava viva indignação. O
fascismo testava sua força na Espanha, a Alemanha se militarizava, montavam-
se pactos anti-Comintern, o mundo capitalista olhava para a “Rússia
Bolchevique” pelo tubo dos canhões.
Como escreveu o Vechernyaya Moskva de 15 de março de 1938:

A história não conhece crimes e atos diabólicos como os cometidos pela quadrilha do “Bloco
Trotskysta-Direitista” antissoviético. A espionagem, a sabotagem, os saques do bandido-chefe Trotsky
e seus asseclas Bukharin, Rykov e outros provocam um sentimento de raiva, ódio e desprezo não só no
povo soviético mas em toda a humanidade progressista.
Tentaram matar nosso querido líder, o Camarada Stalin. Em 1918, atiraram no Camarada Lenin,
interromperam a vida promissora de Sergei Mironovich Kirov, assassinaram Kuibyshev, Menzhinsky e
Gorky. Traíram a mãe-pátria.
O glorioso serviço soviético de informações, liderado pelo comissário stalinista Nikolai Ivanovich
Yezhov, esmagou o ninho de víboras desses vermes.

Desta forma, a Nação se transformou num bando de linchadores. Foi assim


que a manipulação da opinião pública criou o fenômeno da unidade em torno
de uma ideia falsa; que Stalin procedeu a lavagem cerebral em milhões de
pessoas.
Os destruidores eram vistos por todos como inimigos, e não poderia ser de
outra forma. Em 13 de março, dia em que terminou o julgamento, o carro ZIS
número 200.000 saiu da linha de montagem da Fábrica de Automóveis Stalin,
em Moscou, o plano trimestral das minas de carvão de Karaganda foi
cumprido dentro do previsto, e os moscovitas e visitantes da cidade puderam
viajar pela primeira vez na linha circular Pokrovsky do Metrô L.M.
Kaganovich. Os melhores kolkhozes da região de Tula começavam a instalar
água corrente. Cada república, cada região, queria prestar seus respeitos ao líder
pelas novas conquistas. A atmosfera ia ficando elétrica à medida que novas
cidades e estradas eram construídas e o povo sentia que a vida começava a
melhorar. Mais e mais recordes eram atingidos e quebrados, enquanto esses
“inimigos” tinham planejado destruir tudo o que era mais caro à nação.
A manipulação tornou-se mais fácil com a falta de abertura e de informação
genuína. Sem uma impressão dos primeiros vinte anos de regime soviético, sem
o clima mental dos anos 1930 e sem os imperativos que ditavam o
comportamento do povo, é impossível entender-se o drama social e a
convulsão trágica que se apossaram do país.
Não é só hoje que se mostra incredulidade e se pergunta por que tantos
acusados confessaram crimes não praticados. Este foi um dos maiores mistérios
para a imprensa ocidental daquele tempo, e Stalin, que sondava o estado de
espírito interno e estrangeiro, reagiu imediatamente. Seguindo sua
determinação, o Pravda publicou o artigo “Por que eles confessam?” Nele dizia
que quando Vyshinsky perguntava aos acusados se houvera alguma pressão
para que confessassem, eles negavam veementemente. Confirmavam que a
investigação fora a mais correta possível e que não houvera qualquer tipo de
coerção direta ou indireta. O acusado Muralov, por exemplo, asseverou que
durante sua prisão fora tratado o tempo todo “de maneira educada e
civilizada”. Eles haviam conspirado. Havia provas. As acusações foram
estritamente baseadas nos fatos. Os acusados se sentiam humilhados com o
peso das evidências inquestionáveis.35 Enquanto esperava que a opinião
internacional se formasse, Stalin antevia o pior. Naturalmente, todos se
entreolhavam com a predisposição dos réus para não se defenderem e para
endossarem as acusações de maneira amistosa, porém, sem qualquer
conhecimento histórico, a imprensa ocidental jamais foi além de uma
condenação abstrata à “antidemocracia”. Stalin enfureceu-se com Trotsky
porque ele publicava comentários e refutações quase diários na imprensa
ocidental e anunciava que pretendia encenar seu próprio “antijulgamento”.
O artigo de Trotsky crítico e denunciador no Boletim da oposição nº 65, de
1938, levou Stalin à loucura. Com sarcasmo e perspicácia característicos,
Trotsky expôs a natureza absurda dos julgamentos:

Nessa atividade criminosa, os comissários do povo, funcionários, embaixadores e secretários


invariavelmente recebem suas ordens de uma agência, não de seu líder oficial, mas de um exilado.
Basta Trotsky piscar um olho na direção dos veteranos da revolução para que eles se transformem em
agentes de Hitler e do Mikado. Seguindo “instruções” de Trotsky, expedidas por meio do melhor
correspondente da TASS, os chefes da indústria, da agricultura e dos transportes destroem os recursos
produtivos do país. Por ordem do “Inimigo Público nº 1”, seja da Noruega seja do México, os
ferroviários desarticulam os transportes militares no Extremo Oriente, enquanto médicos altamente
respeitados envenenam seus pacientes no Kremlin. Este é o quadro fantástico pintado por Vyshinsky,
mas aí surge uma dificuldade. Sob o regime totalitário é o aparato que implementa a ditadura. Então,
se meus cúmplices estão ocupando os postos principais do aparato, como é que Stalin está no Kremlin
e eu no exílio?

Stalin descompôs Yezhov pela fabricação “cretina” dos casos e, mais uma vez,
especulou se não era hora de dar um fim a toda a campanha. Decidiu que,
enquanto existissem pessoas que vissem, mesmo que apenas mentalmente,
Trotsky como uma alternativa, ele deveria continuar.
Os julgamentos políticos tinham ainda outro objetivo. Com ajuda deles,
Stalin queria mostrar que todos os antigos oposicionistas – trotskystas,
bukharinistas, zinovievistas, mencheviques, dashnaks, SR, anarquistas,
bundistas – foram antissocialistas, e que tinham infectado os cidadãos
soviéticos que trabalhavam no exterior, tais como diplomatas, figuras culturais,
gerentes industriais, cientistas, até mesmo os que cumpriam seu dever
internacional na Espanha. Muitos emigrados que retornaram à terra natal e
comunistas estrangeiros que trabalhavam no Comintern ou em suas
organizações em Moscou foram também rotulados como “inimigos do povo”,
juntamente com quem quer que tivesse sido anteriormente expelido do
partido, tivesse qualquer relutância em relação ao partido ou expressasse dúvida
política. Os parentes dos acusados eram automaticamente considerados
“inimigos”. Mesmo na NKVD houve grande número de vítimas, alguns por
tentarem sabotar as encenações jurídicas criminosas, enquanto outros foram
tachados na categoria de “inimigos” por zelo excessivo. Seus líderes se
transformaram também em tipos perigosos porque sabiam demais. Assim,
Yagoda, Frinovsky e Berman, entre muitos outros, foram acusados de cometer
excessos, distorções e “atividades destruidoras nos órgãos da NKVD”. Da
mesma forma, tornou-se um risco ter conhecido Lenin, ou ter combatido o
czarismo e, portanto, ainda que instintivamente, conhecer os valores da
liberdade e da democracia. E, é claro, existiram pessoas que sabiam mais sobre
Iosef Djugashvili do que era bom para elas.
A suspeita aumentou o momentum da violência. V. Zakharov, M. Motsiev e
outros trabalhadores ferroviários em Arzamas dificilmente entendiam as ideias
de Trotsky, porém foram exatamente aquelas ideias, combinadas com a
“intenção de cometer sabotagem terrorista” que os levaram à sentença de morte
em 31 de outubro de 1937. Como Ulrikh reportou a Stalin, “todos os acusados
confessaram inteiramente sua culpa”.
Uma característica dos julgamentos foi o desejo de Stalin de não apenas
destruir seus oponentes, reais ou imaginários, mas primeiro arrastá-los pelo
lamaçal da amoralidade, da delação e da traição. Todos os júris foram exemplos
sem precedentes de autodegradação, autoperjúrio e autoacusação. Quase
sempre, os fatos assumiam um tom ridículo quando os acusados afirmavam
insistentemente ser traidores, espiões e assassinos. Kamenev, por exemplo,
afirmou nada menos que: “Servimos ao fascismo, organizamos a
contrarrevolução contra o socialismo.” Promessas de benevolência, ameaças de
repressão contra as famílias e a tortura física sistemática acabaram por vergar
essas pessoas e forçaram-nas a desempenhar seu papel humilhante de acordo
com a cena armada pelos “sumos sacerdotes da justiça”. Stalin permaneceu nos
bastidores enquanto seus assistentes, Vyshinsky e Ulrikh, apresentavam o cínico
espetáculo.
Quando aqueles irmãos de infortúnio, Bukharin e Rykov, foram destituídos
da condição de candidatos a membro do comitê central, Stalin deu-lhes um fio
tênue de esperança dizendo-lhes que a “NKVD esclareceria tudo”. Ao
enfrentarem o colegiado militar da Corte Suprema da URSS um ano mais
tarde – “do outro lado da muralha”, como disse Bukharin – sentiram que a taça
da velhacaria estava cheia até a borda, e eles foram forçados a sorvê-la toda.
Notas

* Os comissários do povo passaram a se chamar “ministros” em 1946.


** Bukharin emprega a forma familiar de tratamento.
*** Voroshilov dirigiu-se a Bukharin pela forma familiar de tratamento ao longo de toda a carta.

**** Filho adotivo de Gorky.

***** Boris Nicolaevsky, em Power and the Soviet Elite (Nova York, 1965), descreve seus encontros com
Bukharin nessa viagem. Bukharin estava acompanhado da esposa grávida, mas quando sugeriram que ele
ficasse no exterior, diz-se que respondeu: “Não acho que seria capaz de viver sem a Rússia. Estamos todos
acostumados com as coisas de lá e com as tensões da vida.”
[30]
Quadros no banco dos réus

E m 4 de maio de 1935, no Kremlin, Stalin discursou para uma turma


de formandos do Exército Vermelho. Os jovens oficiais e comissários
políticos, com seus talabartes estalando de novos, distintivos novos de
colarinho e modernas platinas de posto orgulhosamente ostentadas nos
ombros, fixaram o olhar na figura baixa e encorpada. Uns poucos gestos
acompanharam a voz branda que ecoou no absoluto silêncio do salão do
Kremlin. Stalin discursou lentamente, olhando ocasionalmente para o texto
escrito que tinha diante de si:

Lembro-me de uma ocasião na Sibéria, onde estive exilado. Era primavera e as águas corriam altas.
Trinta e poucos homens saíram para recolher madeira que o grande rio carregava. Retornaram à vila
pelo anoitecer, mas faltava um deles. Quando perguntei o que tinha acontecido, simplesmente
disseram: “Ficou por lá.” Então perguntei: “Como assim? Ficou por lá como?” Eles responderam com
indiferença: “Provavelmente se afogou. E daí?” E um deles saiu às pressas resmungando alguma coisa a
respeito da forragem da égua. Quando os recriminei por se importarem mais com os animais do que
com as pessoas, um deles disse, com aprovação geral: “Por que nos preocuparmos com gente; podemos
fazê-las a qualquer momento. Agora, tente fazer uma égua...”

A plateia se entreolhou. Erguendo o dedo indicador encurvado, como a marcar


o paradoxo daquela resposta, Stalin continuou:

A atitude indiferente em relação ao povo demonstrada por alguns de nossos líderes e sua incapacidade
de dar valor aos seres humanos são uma ressaca da atitude idêntica com respeito às pessoas que acabo
de mencionar.
Então, camaradas, se quisermos vencer a fome do povo das regiões e desejarmos que nosso país tenha
quadros capazes de fazer avançar a tecnologia, colocando-a em ação, temos primeiro que aprender a
valorizar gente, apreciar os quadros, prezar todo o trabalhador que seja capaz de fazer o bem por nossa
causa. Temos, finalmente, que entender que o capital mais valioso do mundo e o mais decisivo são as
pessoas, os quadros. Entender que, nas presentes circunstâncias, “os quadros determinam tudo”.36

Desta forma, já em 1935, Stalin estava consciente da escassez de pessoal, mas o


extermínio dos quadros estava ainda por ocorrer. Grandes lacunas logo
surgiriam nos escalões elevados do partido, do Estado e da administração
econômica, no exército profissional e na intelligentsia técnica e criativa, bem
como nas organizações, nas províncias e nas repúblicas. Centenas de milhares
de pessoas seriam aniquiladas como se atingidas por uma praga terrível. No
início de 1939, Stalin ordenou que o conselho superior dos quadros do
Exército Vermelho apresentasse detalhes estatísticos sobre o corpo de oficiais do
exército e da marinha. Estudou as tabelas em silêncio por algum tempo: quase
85% dos oficiais tinham menos que 35 anos de idade. Folheou vagarosamente
os relatórios. Talvez pensasse nos marechais e outros oficiais que tinha
despachado. Vira muitos deles ali no Kremlin. Estaria lembrando o discurso de
Voroshilov de 26 de novembro de 1938? O comissário, parecendo anunciar
grande vitória, dissera: “No curso do expurgo efetuado no Exército Vermelho
em 1937-1938, nos livramos de mais de 40 mil homens. [...] No período de
dez meses, em 1938, mais de 100 mil novos oficiais foram formados.”37
Restavam apenas dez dos cinquenta e tantos membros do antigo Conselho de
Guerra. Qualquer que tenha sido o pensamento que ocorreu ao contemplar as
lacunas assustadoras, Stalin decidiu aumentar o número de academias e escolas
militares. Mas tais lacunas, no entanto, não se restringiam aos militares.
O ex-comissário de Vias de Comunicação, I.V. Kovalev, disse-me:

Em 1937, fui nomeado chefe da Ferrovia Ocidental. Cheguei em Minsk e fui direto ao escritório da
administração. Estava vazio. Não havia ninguém para me passar a função. Meu antecessor, Rusakov,
fora preso e fuzilado. Chamei os vices. Não havia nenhum. Tinham sido presos. Procurei qualquer
pessoa e só encontrei um estranho e terrível silêncio. Pareceu que um tornado passara por ali. Fiquei
admirado que os trens ainda rodassem e imaginei quem poderia estar controlando aquela gigantesca
operação. Fui ao apartamento de um conhecido que trabalhava na administração da ferrovia. Para
minha surpresa, encontrei-o em casa com a esposa, que estava em lágrimas.
“Por que não está trabalhando?”, perguntei mesmo antes de cumprimentá-lo. “Estou esperando. Eles
disseram que vêm me pegar hoje. Olhe só, botei na mala algumas camisas limpas. Nasedkin, da
NKVD, está expurgando um em cada dois. Provavelmente, vai paralisar a ferrovia.”
Depois de formar uma ideia da situação e de recuperar a compostura, telefonei a Stalin em Moscou –
afinal de contas, se a ferrovia não funcionasse como se esperava, eu seria o próximo da fila.
Poskrebyshev atendeu. Relatei-lhe a situação. De uma forma ou de outra, a turbulência terminou
rapidamente. Também não era para menos, não sobrava ninguém para ser preso.
Era este o padrão em todo o país, como ilustram os extratos do pleno de 1937.
Durante o debate sobre o relatório de Molotov, que tratou da campanha
eleitoral (que de eleições teve muito pouco, pois centrou-se mais nos inimigos
do povo), o secretário Sobolev do comitê regional do partido de Krasnoyarsk
disse:

Estamos agora desmascarando e destruindo inimigos: bukharinistas, rikovistas, trotskystas,


kolchakistas, sabotadores; estamos esmagando todos esses porcos de nossa região. Eles estão nos
atacando abertamente. Posso dizer que a forma favorita de sabotagem é o incêndio provocado.

Peskarev, da região de Kursk, deu um quadro semelhante, de ângulo distinto:

Como os vilões, saqueadores e inimigos do povo estão ativos há muito tempo na liderança de nossos
tribunais e procuradorias regionais, aconteceu que eles lançaram o peso da política punitiva sobre
pessoas totalmente inocentes; em três anos, 18 mil ativistas de kolkhozes e de vilarejos foram
condenados, quase sempre apenas porque um cavalo mancou ou porque chegaram atrasados no
trabalho.38

Não possuo números oficiais da quantidade de vítimas de 1937-38. É


improvável que ainda existam. As estatísticas mais precisas são as do
comissariado da Defesa. Com base no material existente, tais como listas dos
delegados, estatísticas parciais, relatórios locais, arquivos das cortes de justiça e
diversas declarações de Stalin, Molotov e Beria, entre outros, pode-se fazer uma
estimativa prudente entre 4,5 e 5,5 milhões de pessoas presas, das quais entre
800 mil e 900 mil foram sentenciadas à morte. Quantidade incalculável
morreu nos campos de concentração. A imprensa publicou diversos números,
porém, até que os arquivos relevantes sejam totalmente abertos e um estudo
completo seja feito, nenhuma extrapolação ou trabalho especulativo dará uma
estimativa confiável. Os documentos que examinei testemunham que, depois
da guerra, o número de campos de concentração e de colônias de trabalhos
corretivos não foi reduzido, ao contrário, aumentou, e que a quantidade de
presos permaneceu mais ou menos constante por vários anos. Portanto, a
quantidade de prisioneiros, digamos, em 1947 ou 1948, dá uma indicação
sobre a de 1937-38. Por exemplo, em 18 de fevereiro de 1948, V. Abakumov e
S.N. Kruglov escreveram a Stalin: “De acordo com suas instruções, estamos
anexando uma minuta de plano para a organização de campos e de prisões de
regime fechado para a detenção de criminosos de Estado particularmente
perigosos.”39 Kruglov deu prosseguimento ao assunto em 7 de março de 1948
com outro relatório onde era afirmado que “em 1º de janeiro de 1948, existiam
2.199.535 prisioneiros em campos e colônias. Vinte e sete novos campos foram
construídos”.40
A isto deve ser adicionada a população presa, sobre a qual não existem
dados, mas que estimo não superior a 30% dos presos em campos e colônias de
exílio. Um relatório de Kruglov para Stalin, datado de 23 de janeiro de 1950,
acrescenta que: “Em 1º de janeiro de 1950, existiam 2.550.275 presos, 22,7%
dos quais por atividades contrarrevolucionárias. 366.489 estão condenados a
mais de dez anos de prisão. Dois novos campos de regime fechado foram
construídos para espiões, sabotadores, terroristas, trotskystas, direitistas,
mencheviques, SR, anarquistas, nacionalistas, emigrados brancos. O espaço
médio para cada preso é de 1,8m2.”41
Tais números, repito, não incluem a população presa. Além do mais, os
campos estavam consideravelmente abarrotados àquele tempo com cidadãos
soviéticos que tinham servido na polícia nazista, ou que tinham sido
sentenciados em virtude de levantes nacionalistas contra o regime soviético nos
territórios ocidentais ao fim da guerra, bem como com os deportados de áreas
liberadas e aprisionados só por isso.* Assim, se incluirmos a população presa, o
número de encarcerados fica entre três e quatro milhões, e não apenas em
1948-49. É pouco provável que as quantidades de 1937-38 fossem muito
maiores que as de 1948-49. Nem poderia ter aumentado muito naqueles anos
amargos aquilo que Kruglov chama eufemisticamente de “espaço útil para
viver”. Os prisioneiros dos campos “viviam” em beliches de três camas. É
também importante notar que o efetivo dos gulags era constantemente
completado com as chegadas diárias, que muitos não suportavam as condições
e morriam, e que determinada percentagem era regularmente libertada.
Contudo, é pequena a possibilidade de a máquina punitiva ter recebido mais
de quatro a cinco milhões de pessoas num dado ano, porém, enquanto os
números oficiais não forem conhecidos tudo é especulação.
A principal responsabilidade pessoal por tais fatos horríveis recai, é evidente,
em Stalin. Ele deu pessoalmente instruções a Yezhov sobre a direção e a escala
da repressão, muitas vezes indicando pessoas a “verificar”. Para evitar o
emprego da expressão “pena de morte” em comunicações escritas ou
telefônicas, ele falava em “punição da primeira categoria”. Os documentos
mostram que ele foi diretamente responsável pela prisão e execução de R.
Eikhe, Ya. Rudzutak, V. Chubar, S. Kosior e P. Postyshev, entre muitos outros.
Na relação de dúzias de outras pessoas do comitê central por ele indicadas para
“verificação”, estavam: A. Stetsky, chefe da seção de agitação e propaganda, B.
Tal, chefe da seção de imprensa, Ya. Yakovlev, chefe da seção rural, K. Bauman,
chefe da seção de ciência, e F. Zaitsev, um funcionário da comissão de controle.
A “verificação” levava ao fuzilamento.
Quando a situação atingiu proporções maciças, Stalin aprovava penas de
morte por listas, mas, em 1938, cansado de tal procedimento, delegou às cortes
e aos tribunais o direito de decisão própria. No XX Congresso, Khruschev disse
que, em 1937-38, Yezhov enviou a Stalin 383 listas com milhares de nomes do
partido, do Estado, do Komsomol, do exército e da área econômica. Todas as
sentenças foram confirmadas por Stalin. É improvável que o secretário-geral
tenha se restringido a essas listas. Deve ter havido muitas mais. Como os
carimbos e assinaturas de outros líderes estavam nelas, muitas desapareceram
depois do XX Congresso. Em abril de 1988, A.N. Shelepin disse-me que uma
série completa de listas que ostentavam a assinatura de Khruschev foi retirada
dos arquivos por I.A. Serov, então vice-ministro da Segurança Estatal,
cumprindo ordens do próprio Khruschev. Elas foram entregues a este, o qual, a
despeito dos passos corajosos para expor os crimes de Stalin, desejou, em
qualquer caso, dissociar-se completamente deles.
Stalin também se preocupou bastante para que seu nome não aparecesse
sancionando as “punições de mais alto grau”. Existem muitas cartas
endereçadas a ele, bem como a Voroshilov, Molotov e outros, implorando
clemência. Todos os que escreveram tais cartas pereceram. Uma vez que elas
eram frequentemente lidas sem que fossem rubricadas ou assinadas, Stalin deve
ter optado por proferir verbalmente sua decisão e, em alguns casos, não
autorizar em absoluto a revisão de um caso, de vez que a sorte do solicitante já
estava de qualquer forma decidida. Foi esta ocultação de seu papel que levou à
lenda, ainda hoje vigorante, de que “ele nada sabia” da repressão. Somente a
ignorância da situação real pode explicar a ingenuidade de D.A. Lazurkina,
uma bolchevique da velha guarda, que disse no XXII Congresso, em 1961,
que, durante todo o tempo em que esteve na prisão ou em campos de
concentração, jamais blasfemou contra Stalin: “Ao longo de todo aquele
período, defendi Stalin, a quem outros presos e companheiros acusavam. Eu
dizia para eles: ‘Não, não é possível que Stalin tenha permitido o que está
acontecendo no partido. Não é possível.’”42
Stalin e seus sequazes fizeram da violência um modo de vida. Como
Khruschev disse: “O mando arbitrário de um só encorajou e permitiu a
emergência do mando arbitrário de outros. As prisões em série e o exílio de
muitos milhares de pessoas, sem julgamento ou qualquer investigação normal,
criaram um clima de insegurança e de medo generalizados.”
Diversos plenos do comitê central tiveram lugar durante 1937, nos quais,
além das eleições para o Soviete Supremo, dos erros cometidos nas expulsões de
membros do partido, ou das medidas para melhorar a produtividade das
Fábricas de Tratores e de Máquinas, e de outros assuntos, os delegados
invariavelmente debatiam a composição do comitê central. Isto significava que
o expurgo no órgão mais elevado era contínuo. Por exemplo, no pleno de
outubro, 24 membros e candidatos a membro foram removidos, inclusive
Zelensky, Lebed, Nosov, Pyatnitsky, Khataevich, Ikramov, Krinitsky, Vareikis,
Grinko, Lyubchenko, Yeremin, Deribas, Demchenko, Serebrovsky, Rozengolts,
Ptukha e Shubrikov. Tachados, então, de “inimigos do povo”, todos foram
bolcheviques de grande reputação e espinha dorsal dos quadros do partido.43 O
padrão era o mesmo em todos os plenos. Por exemplo, a seguinte resolução foi
aprovada no de dezembro:

Com base em evidência incontestável, o pleno considera necessário expelir do comitê central e prender
como inimigos do povo: Bauman, Bubnov, Bulin, Mezhlauk, Rukhimovich e Chernov, que se
transformaram em espiões alemães e agentes da okhranka [polícia secreta] czarista; Mikhailov,
vinculado às atividades revolucionárias de Yakovlev; e Ryndin, ligado ao trabalho
contrarrevolucionário de Rykov e Sulimov.

Uma anotação com a caligrafia de Stalin aparece um pouco abaixo: “Todos


estes admitiram sua culpa.”44
Mais da metade do comitê central era constituída de “espiões” e “agentes da
polícia secreta czarista”! Vinte anos depois do colapso da dinastia Romanov, seu
departamento de polícia ainda funcionava como se nada tivesse acontecido!
Pesquisei nas listas amareladas que circularam entre os membros do comitê
central para que votassem e não encontrei um só voto negativo, uma só objeção
ou qualquer expressão de dúvida. Somente achei “De acordo”, “Sou favorável”,
“Concordo decididamente”, “Uma decisão correta”, “Uma medida necessária”,
e assim por diante. As consciências estavam embotadas pela mentira e pelo
medo.
No final de 1938, praticamente não havia candidatos para preencher o
assustador número de vagas. Dos 139 membros e candidatos a membro do
comitê central, eleitos no XVII Congresso, 98, ou seja, 70% tinham sido
presos e executados em 1937-38. Na verdade, esta não foi a sorte apenas do
comitê central, mas dos delegados em geral. E 80% dos que tinham direito a
voto haviam sido bolcheviques desde antes de 1921. Stalin não podia esquecer
que perto de 300 delegados haviam votado contra ele. Quem eram? O ditador
viu um inimigo em cada um.
As repúblicas e regiões cedo se viram drenadas de seus recursos humanos.
Muitos comitês de oblasts** perderam simplesmente seus primeiros-secretários;
todos os secretários do partido viram-se, nas palavras de Kaganovich,
“morando” com Yezhov. Apenas Stalin tinha as estatísticas oficiais. Seja o que
for que ele fez com essa gente, demonstrou grande coerência, e tendo decidido
pela linha de ação, resolveu segui-la até as últimas consequências.
De acordo com I.D. Perfilyev, um bolchevique da Velha Guarda que passou
muitos anos em campos de concentração e que me contou a história, certa vez,
na companhia de Molotov, enquanto apreciava uma lista de rotina com Yezhov,
Stalin resmungou sem se dirigir a ninguém em particular: “Quem irá se
lembrar de todos esses desclassificados em dez ou vinte anos? Quem se recorda
dos nomes dos boyars*** de quem Ivan, o Terrível, se livrou? Ninguém... O
povo tinha que saber que estava se vendo livre de todos esses inimigos. No
final, todos tiveram o que mereciam.”
“O povo entende, Iosef Vissarionovich, entende e o apoia”, replicou
Molotov automaticamente. Ambos sabiam que o povo estava silenciado. Os
gritos de apoio eram as vozes da ignorância, da ilegalidade e da intimidação.
O preceito de Stalin sobre “aprender a apreciar as pessoas, valorizar os
quadros” constituía o auge da blasfêmia. Yezhov, nomeado candidato a
membro do Politburo em outubro de 1937, propôs que a NKVD começasse a
preparar listas de pessoas que, em qualquer ocasião, tivessem sido investigadas
por tribunal militar. O relatório de Ulrikh mostra como tais casos foram
tratados e quantos foram “desvendados”:

Ao Comissário de Segurança Estatal, Primeira Classe, Camarada Beria, L.P. Durante o período de 1º
de outubro de 1936 e 30 de setembro de 1938, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS e o
colegiado itinerante em sessenta cidades sentenciou:
30.514 ao fuzilamento
5.643 à prisão
36.157 no total
15 de outubro de 1938 V. Ulrikh45

Naqueles dois anos, Yezhov e, mais tarde, Beria enviaram a Stalin incontáveis
listas de “espiões”, juntamente com a sugestão de sentença (a maioria
fuzilamento), mesmo antes de os tribunais se reunirem. Primeiro, eles recebiam
um relatório de Ulrikh, dos quais o seguinte é um exemplo:

Em setembro de 1938, o colegiado militar da Suprema Corte da URSS, em Moscou, Leningrado,


Kiev, Kharkov, Khabarovsk e outras cidades sentenciou:
1.803 ao fuzilamento
389 à prisão
2.192 no total 45a

Para o mês de outubro, seriam mais 3.588, mas isso só se aplicava aos tribunais
militares. As cortes comuns também estavam funcionando.
Khruschev não tinha o direito moral de dizer, como o fez no XX
Congresso: “Não podemos encarar os atos de Stalin como comportamento de
um déspota louco. Ele considerou necessário agir daquela forma no interesse
do partido e das massas laboriosas, em nome da defesa de nossas conquistas
revolucionárias. Esta foi a tragédia!” Isto não é verdade. Stalin não poderia
deixar de saber que o terror que desencadeou prosseguiria com base na total
violação da legalidade socialista. Não poderia deixar de saber que os
julgamentos eram farsas do início ao fim. É bem possível que, genuinamente,
quisesse uma sociedade florescente e o bem-estar de seus concidadãos, e, sem
dúvida, desejava um Estado forte. Porém, o que não quis foi perguntar aos
membros daquela sociedade como eles desejavam chegar à consecução dos
ideais socialistas.
A despeito de sua determinação em alcançar os objetivos que estabelecera
para si mesmo, por vezes chegou a hesitar quando, de repente, o volume da
repressão começou a repercutir. Isto explica o debate travado no pleno de
janeiro de 1938 sobre os enganos cometidos pelas organizações do partido na
expulsão de membros. Foi Stalin quem levantou a questão. Ao ouvir relatórios
de Malenkov, Bagirov, Postyshev, Kosior, Ignatiev, Zimin, Kaganovich, Ugarov,
Kosarev, teve que ficar admirado com a amplitude do terror, com a ilegalidade
e com a efetiva destruição dos quadros. Postyshev relatou que, ao chegar a
Kuibyshev, encontrou todos os órgãos do partido paralisados pelo expurgo; em
nada menos que trinta comitês distritais permaneciam apenas dois ou três
membros, o que significava que não mais funcionavam. De imediato, Stalin,
Beria, Yezhov, Malenkov e Molotov acusaram Postyshev!
Os documentos indicam que a decisão de “afundar” Postyshev fora tomada
antes do plenário. Quase todos os oradores realçaram seus erros. Acompanhado
por comentários de aprovação de Stalin, Kaganovich, o crítico principal, disse
entre outras coisas:

Conheço bem Postyshev. O Comitê Central enviou-me a Kiev no ano passado quando descobriu que
o Camarada Postyshev cometera os maiores erros na liderança das organizações partidárias de Kiev e
ucranianas. Em Kiev, Postyshev revelou-se um trabalhador que violou, na prática, as ordens do
partido, daí a razão de o comitê central tirá-lo de lá. A cegueira de Postyshev em relação aos inimigos
do povo chega a ser quase criminosa. Não foi capaz de vê-los mesmo quando todas as evidências
apontavam para eles. [...] Ao observá-lo nos corredores e ao ouvi-lo discursar neste plenário não posso
deixar de dizer que você não está sendo leal com o comitê central.

“Sempre fui leal em toda a minha vida”, tentou protestar Postyshev.


Kaganovich continuou:

O que Postyshev disse aqui no pleno é a repetição de conversas hostis ao partido. Ele parece não
querer ver que promovemos mais de 100 mil novas pessoas. Esta é uma grande vitória stalinista.46

Ao falar da “grande vitória stalinista”, Kaganovich deixou inadvertidamente


escapar a escala das reposições causadas pelos líderes colocados fora de ação.
Discursos de Yaroslavsky, Kosarev e Ugarov escalaram as críticas a Postyshev
com acusações e condenações diretas. Ele estava claramente escolhido como a
vítima da vez. Kaganovich conseguiu transferir sua aversão pessoal a Postyshev
para o restante da liderança, mas os eventos subsequentes no pleno mostraram
que o cenário tinha sido preparado com antecedência por Stalin. Foi deixado
para Ignatov, segundo secretário do comitê regional de Kuibyshev, o disparo do
tiro de misericórdia, quando ele disse com todas as letras que o que Postyshev
fizera fora “antipartidário”. Kaganovich, de pronto, fez o ataque final:
“Você não está sendo leal com o comitê central neste momento. Está
tomando uma linha hostil. Postyshev está acabado como líder político.”
“Reconheço total e completamente que o discurso que hoje fiz aqui”, disse
Postyshev levantando-se, “foi incorreto e antipartidário. Mesmo enquanto o
pronunciava não podia entender o que fazia. Peço que o pleno me perdoe. Não
apenas jamais estive com os inimigos como sempre lutei contra eles.”
Agora, só Stalin poderia salvar Postyshev. Porém, depois de esperar pela
humilhação plena do velho bolchevique que tentara fazer seu próprio
julgamento, o secretário-geral assentou sua sorte:

Formamos uma opinião aqui no Presidium do Comitê Central ou, se preferirem, no Politburo, que,
depois de tudo o que aconteceu, medidas têm que ser tomadas com respeito ao Camarada Postyshev.
Na nossa opinião, ele deve ser removido da filiação como candidato ao Politburo, mas permanecer
como membro do comitê central.47

Foi realizada uma votação que, é claro, resultou unânime. Postyshev ficou em
liberdade por apenas um mês. Por ordem de Stalin, a comissão de controle do
partido, em fevereiro, minutou um decreto sobre ele que foi baixado pelo
Politburo. Seu conteúdo principal foi formulado e aprovado pelo próprio
Stalin. Postyshev foi acusado das seguintes transgressões:

Dissolução de 35 comitês distritais do partido.****


Provocação contra sovietes. (Trinta e quatro deputados tinham sido removidos numa só sessão do
soviete da cidade.)
Recrutamento de quadros para trabalhar no campo, desmantelamento de edifícios públicos,
destruição por deitar fogo na safra.
Enquanto em serviço em Kuibyshev, Postyshev estorvou o trabalho da NKVD no desmascaramento
de inimigos ao desferir golpes contra comunistas honestos.
Assistentes de Postyshev, tanto na Ucrânia como em Kuibyshev, tornaram-se inimigos (espiões).
Postyshev sabia da existência de uma organização contrarrevolucionária trotskysta de direita no
território.
Todas as ações acima de P.P. Postyshev devem ser consideradas antipartidárias e tendentes a beneficiar
inimigos do povo. P.P. Postyshev deve ser expulso do [partido].48

Todos os restantes 49 membros e candidatos a membro do comitê central


votaram por escrito nessa resolução, mas não existe uma cédula com o nome de
Stalin. Como sempre, ele cuidou para não deixar vestígios.
Postyshev foi preso e executado. A “preocupação de Stalin com os quadros”
foi bem ilustrada com o caso deste bolchevique de velha cepa que não leu pela
cartilha do líder. O secretário-geral precisava apenas ouvir um item de
informação, uma conversa, uma única frase para decidir sobre um indivíduo.
Segundo Perfilyev, depois de “verificar” Postyshev, Molotov relatara a Stalin:
“Postyshev é politicamente perigoso.”
“Por que mantê-lo então?”, perguntou Stalin.
Nem todo o mundo notou, ou melhor, prestou a devida atenção à rixa entre
Kosarev e Mekhlis no plenário de janeiro. No seu discurso, Kosarev criticou
efetivamente a administração política do Exército Vermelho, chefiada por
Mekhlis, por sua fraca organização do trabalho entre o Komsomol: “Existem
500 mil membros de organizações da juventude no exército, no entanto apenas
uns poucos milhares deles se filiam ao partido anualmente.”
Mekhlis, imediatamente, esquivou-se da acusação com uma resposta azeda:
“O Comitê Central do Komsomol não trata dos Komsomols do exército.
Sugeri a Beloborodov***** que entrasse no exército para operar os Komsomols
de lá, mas ele recusou. Só querem fazê-lo a partir do Comitê Central.”49
Esta troca de palavras sem dúvida exacerbou a hostilidade entre os dois e
pode muito bem ter sido responsável pelo destino posterior de Kosarev.
Ao debater os erros cometidos no campo do pessoal, o pleno tomava o
conhecido caminho de culpar “inimigos” ocultos por enganos e excessos. Esta
foi, de fato, a conclusão do próprio pleno: “Chegou a hora de desmascarar
todas as organizações partidárias e seus líderes, e de destruir de uma vez por
todas a totalidade dos inimigos camuflados que se infiltraram em nossas
fileiras.”50 A diretriz de Stalin, expedida no pleno de fevereiro-março de 1937,
ainda prevalecia: os excessos e desacertos na luta contra os inimigos do povo
eram causados por trotskystas e outros saqueadores ainda não desvendados.
Como vemos, então, a cintilação para uma abordagem sensata daquilo que
resultou no massacre de 1937-38 ainda era muito pálida. Consoante o modo
de pensar de Stalin, o único defeito no sistema de violência era
responsabilidade de seus executores.
Em vez de buscar a causa dos excessos no tratamento criminoso de
comunistas, novo ímpeto foi dado à procura de “inimigos”. Quando o
secretário regional Kudryavtsev do partido comunista ucraniano, em Kiev,
falava nas reuniões do partido, invariavelmente perguntava: “Vocês não fizeram
denúncia escrita sobre ninguém?” O resultado de tantos reclamos pela
vigilância foi uma enxurrada de denúncias enviadas sobre quase metade dos
membros regionais do partido. Uma das primeiras vítimas foi o próprio
Kudryavtsev.
A destruição dos quadros e a onda de denúncias e informes que a
acompanhou significaram que diversas pessoas inescrupulosas, afora a
possibilidade de acerto de contas, ainda se promoveram e, muitas vezes, fizeram
boas carreiras no partido, em cargos estatais e no exército. O pleno de janeiro
de 1938 aprovou resolução estabelecendo que “alguns comunistas-carreiristas,
que buscam destaque pessoal e benefícios com a expulsão de membros do
partido, estão se protegendo contra possíveis acusações de vigilância
inadequada por meio do engajamento na repressão indiscriminada de filiados
ao partido”.51 Este reconhecimento perfeitamente correto do perigo para o
partido decorrente desses carreiristas e informantes não foi, contudo, vinculado
à linha geral de repressão do partido, e aí residiu outra fonte profunda de
distorções e da tragédia.
Uma mentira leva a outra; e as mentiras tendem a se transformar em bolas
de neve. Ao “aguçar” arbitrariamente a luta de classes, Stalin provocou uma
onda de falsidades contra a qual a sociedade revelou-se indefesa. As mentiras
dos órgãos de segurança de Yezhov acopladas às falsidades das cortes e da
procuradoria, às mentiras da imprensa e aos incontáveis discursos em prol de
“sentenças justas”, criaram uma situação singular. Onde achar as causas do
massacre? Em lugar algum. Para quem seria possível apelar? Para ninguém.
Seria possível revelar os vilões? Não era permitido.
Tomemos um exemplo típico. Existe um grande número de denúncias de
todas as espécies no arquivo de Beria. Vou citar uma delas sem nomear seu
autor porque ele já deve ter filhos e netos crescidos. (De passagem, devo dizer
que, ao fazer referência a muitos nomes no texto deste livro, procurei não
causar desconforto às pessoas mencionadas, se bem que a história não seria
história se tudo fosse contado de forma codificada.) Eis a denúncia:

Camarada Malenkov,
Sou subcomandante de uma unidade de tropas do interior da NKVD. Foi organizada uma reunião
para a outorga ao Camarada Stalin da Medalha da Vitória. Porém, apenas oficiais foram convidados
para a reunião, as praças não. Coisa estranha. O general Brovkin conduziu o encontro. Três ou quatro
pessoas discursaram e, com isso, a reunião foi encerrada. Depois, foi-nos dito que a unidade seria
empregada na colheita da safra e que o chefe da seção política, Kuznetsov, fora transferido para outra
função alhures.
Uma ocasião politicamente tão importante, como um encontro dedicado à condecoração do
Camarada Stalin com a Medalha da Vitória, foi perdida, desperdiçada, apequenada.

Malenkov adicionou uma nota para Beria: “A reação do destinatário foi a


‘natural’.”52
O pleno de fevereiro-março de 1937 não apenas decidiu que “o
comissariado do Interior deve completar sua tarefa de desmascaramento e
aniquilação dos trotskystas e outros agentes, e esmagar as menores
manifestações de sua atividade antissoviética”. Também estipulou que os
quadros fossem fortalecidos.53 Naqueles dias, isso só poderia significar o
cumprimento cego e fanático das ordens do líder. Quem possuísse um traço,
pequeno que fosse, de consciência não poderia sobreviver na NKVD. Homens
como Abakumov, Kruglov, Merkulov, Yezhov, Beria, Kobulov, Mamulov e
Rukhadze, entre outros arrivistas, não subiram na NKVD por mérito, mas
exatamente por não o possuírem.
Notas

* Essas categorias são tratadas com maior detalhe em capítulo posterior.


** Províncias. [N.T.]
*** Aristocracia medieval russa. [N.T.]

**** Na realidade, eles simplesmente pararam de funcionar, uma vez que 3.500 comunistas de Kuibyshev
foram expulsos do partido no período de cinco meses, em 1937.

***** Secretário do comitê central do Komsomol.


[31]
A “trama” Tukhachevsky

S talin amava tudo o que se relacionava com o Exército. As Forças


Armadas eram sua preocupação especial. Ele gostava de se olhar num
grande espelho quando envergava a farda de marechal; uma túnica
cuidadosamente engomada com platinas douradas era sua ideia de perfeição
estética. Lembrava com orgulho dos anos de guerra civil: com exceção de
Trotsky, provavelmente, estivera em maior número de fronts que qualquer
outra pessoa.
Em termos pessoais, sabia que quase todos os oficiais, de comandante de
corpo para cima, a maioria dos marechais e comandantes do exército desde a
guerra civil, e, a partir de meados dos anos 1930, todas as nomeações dos altos
escalões do Exército Vermelho, haviam sido feitas por ele. Quando um
candidato era entrevistado, Stalin ouvia atentamente seu breve relato, olhando
diretamente nos olhos do pretendente, permanecia silencioso e depois
conversava por sete a dez minutos. Seu interesse era pela experiência pessoal,
conhecimento do campo de batalha, opiniões sobre a reestruturação do
exército à luz do progresso técnico. Fazia perguntas inesperadas, tais como:
“Seriam necessários distritos fortificados nas atuais circunstâncias?” ou “O que
você acha do novo Estado-maior de campanha?” No fim da conversa,
cumprimentava o nervoso oficial com um aperto de mão meio frouxo,
desejava-lhe sorte na nova função e dizia que esperava contar com a firme
execução da linha do partido. Fixava então, de novo austeramente, os olhos nos
do interlocutor; precisava saber se o oficial era pessoalmente leal a ele.
Stalin passava muitas horas com comissários, projetistas, cientistas e
fabricantes cujo ofício fosse a produção de material bélico. Normalmente,
inspecionava em pessoa os novos modelos em teste. Convocava reuniões sobre
vários aspectos militares e pouco falava, mas conduzia a reunião com as
perguntas e comentários que fazia. Em 1939, por exemplo, passou um dia
inteiro discutindo com o Estado-maior de Serviços os modelos e a qualidade
dos uniformes de combate e de passeio para oficiais e praças.
Tal preocupação, evidentemente, não era apenas motivada pelo amor às
questões militares. Como qualquer outro líder, Stalin sabia que a posição de
um país no mundo, seu regime político e sua autoridade internacional
dependiam em grande parte não só do poderio econômico como também da
força militar. Todos os seus discursos daquela época expressam alarme com a
ascensão do fascismo e o crescimento da ameaça imperialista tanto no
Ocidente como no Oriente. Sem exagero, pode-se dizer que suas maiores
prioridades então eram o Exército Vermelho e a NKVD. E foi precisamente
por meio da NKVD que, a partir do fim de 1936, ele começou a receber
notícias alarmantes.
Os primeiros sinais de uma colisão iminente entre Stalin e os militares
foram percebidos na Alemanha. O chefe do serviço de informações do Exército
Vermelho, S. Uritsky, relatou a Stalin e Voroshilov, em 9 de abril de 1937, que
circulavam rumores em Berlim sobre a existência de oposição à liderança
soviética entre os generais e acrescentou com segurança que ninguém acreditava
nos boatos, citando como prova a afirmativa de um tal Arthur Just, no jornal
Deutsche Algemeine Zeitung de que “hoje, a ditadura de Stalin desfruta de total
apoio. Seria muito estranho um abalo nos alicerces do exército nesta ocasião.
Nada é mais importante no presente para Stalin do que a confiança irrestrita no
Exército Vermelho”.54 Tudo indica que o secretário-geral também pensava
assim, mas rumores semelhantes de uma conspiração de generais estavam
começando a chegar de outras fontes, de modo que ele decidiu “sacudir os
alicerces” do exército para testar a “confiança incondicional”.
Primeiro, Yezhov enviou uma nota a Stalin de uma organização de
emigrados brancos em Paris, Russkii Obshchevoinskii Soyuz (União Geral
Militar Russa), que afirmava estar sendo preparado na URSS um coup d’état
por um grupo de oficiais dos altos postos. Dizia-se que o grupo era liderado
pelo marechal M.N. Tukhachevsky. Stalin repassou a nota para Ordzhonikidze
e Voroshilov “como informação” sobre seu conteúdo. Não se conhece a reação
dos que a leram. O mais provável é que a natureza claramente inverossímil da
nota não tenha impressionado nenhum deles, nem o sempre desconfiado
Stalin, que tendia a acreditar em qualquer documento ou arquivo da NKVD.
Uma digressão se faz necessária.
De acordo com A.I. Rybin, que trabalhava àquela época numa seção da
NKVD e mais tarde foi um dos seguranças de Stalin, quando foi feito um
relatório verbal ao secretário-geral sobre os “contatos” de M.Ye. Koltsov com
“agências de informações estrangeiras”, ele deu pouca atenção. Stalin conversara
recentemente com o escritor e tivera boa impressão dele. Todavia, quando lhe
mostraram um arquivo contendo denúncias sobre duas pessoas relacionadas
cerradamente com Koltsov, ele ordenou que fossem tomadas providências. Não
concebia ser enganado havendo alguma coisa escrita. Yezhov e mais tarde Beria
exploraram esta propensão em acreditar em qualquer coisa posta no papel. As
denúncias mais absurdas e fantásticas encontravam campo fértil na mente de
Stalin.

Muita gente que teve relação estreita com Stalin no ápice de seu mando me
falou de sua atitude extraordinariamente suspeitosa, que se estendia até o
círculo imediato, seus assistentes e pessoas chegadas. Segundo A.N. Shelepin,
Stalin determinou que Beria checasse sua equipe de segurança. Beria
demonstrava estar atento “descobrindo” periodicamente um “espião” ou um
“terrorista” entre o pessoal de Stalin. Vez por outra, relatava sobre sinais ou
fatos suspeitos que recebera. Foi assim que, certa vez, ordenou a prisão de um
servente da limpeza, Fedoseyev, e de sua esposa por arquitetarem um terakt. Até
as gardênias que ficavam no exterior das janelas tinham que ser mantidas
podadas à altura de cinquenta centímetros ou menos, para evitar que alguém se
escondesse por trás delas. Ninguém sabia se Stalin passaria a noite dormindo
no divã do estúdio ou na cama do pequeno quarto, portanto, as camas
permaneciam disponíveis e arrumadas nos dois lugares. Ninguém, exceto Beria,
ousava entrar no quarto de Stalin sem ser chamado.
Quando se dirigia à dacha na limusine blindada, acompanhada por um
comboio de outros veículos, Stalin sabia que cada viagem daquelas representava
uma operação completa para a segurança. Ao lado do motorista, Mitrokhin, ia
um dos seguranças, Tukov ou Starostin (nos anos 1940). Se Stalin detectasse
uma expressão que não fosse do seu gosto no olhar de qualquer deles, a pessoa
jamais voltava a trabalhar para ele. Deve ser ressaltado que, apesar dos mitos
fabricados por Beria e seu círculo sobre atentados contra a vida do secretário-
geral, nada há registrado a este respeito.
Khruschev referiu-se à desconfiança patológica de Stalin que se estendeu aos
membros do Politburo. Provavelmente, só confiava em Vlasik e Poskrebyshev, e
talvez em Valya Istomina, sua “empregada”, a jovem que se mudou para sua
casa logo depois da morte da esposa, Nadezhda Alliluyeva. Ela cuidou dele até
o fim da vida e tentou proporcionar-lhe os maiores confortos possíveis. A
despeito do temperamento um pouco ríspido de Stalin, ele frisou mais de uma
vez o cuidado simples e sincero que ela lhe devotava. Porém, a suspeita quase
maníaca foi um dos traços dominantes de sua personalidade.
Por conseguinte, a informação a ele remetida pelo presidente Benes da
Tchecoslováquia aumentou sensivelmente suas dúvidas sobre Tukhachevsky.
Várias fontes – inclusive Winston Churchill – acreditam que Stalin foi fisgado
por um documento arquitetado em Berlim sobre uma trama de Tukhachevsky
e dos generais. O serviço alemão de contrainformação, chefiado pelo almirante
Canaris, copiara a assinatura de Tukhachevsky e a apôs num documento em
Berlim, nos idos de 1926, sobre a cooperação com uma empresa alemã de
tecnologia aeronáutica.
O objetivo de tal medida ardilosa era passar a ideia de que Tukhachevsky
mantinha contatos secretos com alguns generais alemães para derrubar Stalin
pela força. Um incêndio na noite de 1º de março de 1937 e o roubo de
documentos foram encenados em Berlim para explicar o aparecimento em
Praga daquele documento específico.
Benes, sem dúvida, agiu com a melhor das intenções ao enviar o
documento para Moscou, onde Stalin, embora alertado, não fez mais do que
encaminhá-lo a Yezhov naquela ocasião. Foi feita uma investigação sigilosa
sobre Tukhachevsky e recolhido mais “material” a seu respeito. Os eventos,
então, provavelmente ganharam maior impulsão, como B.A. Viktorov, ex-vice-
chefe da procuradoria militar, relatou-me. Ele dirigiu um grupo especial de
promotores e investigadores militares que foi organizado depois do XX
Congresso para reabilitar os injustamente condenados por Stalin.
Entre muitos outros itens interessantes, Viktorov lembrou o caso de um
investigador chamado Radzivilovsky, que foi sentenciado em 1937 por violar a
legalidade, cujo depoimento contém o seguinte trecho:

Eu trabalhava na administração da NKVD da região de Moscou. Frinovsky [um assistente de Yezhov]


chamou-me à sua presença para saber se eu estava envolvido com os casos de quaisquer militares
importantes. Disse-lhe que trabalhava no caso de um ex-comandante de brigada chamado Medvedev.
Frinovsky afirmou que eu tinha que “desenvolver uma linha sobre uma trama importante e arraigada
no Exército Vermelho, e que o papel e o serviço de Yezhov para o comitê central deveriam parecer
enormes”. Comecei a trabalhar. Naturalmente, não foi de imediato que consegui de Medvedev a prova
necessária de uma trama no Exército Vermelho. Yezhov foi informado sobre o depoimento. Ele
interrogou Medvedev pessoalmente, que lhe disse e a Frinovsky que seu testemunho fora falsificado.
Yezhov deu ordens para que todos os meios fossem empregados a fim de Medvedev retornar à história
original. As notas sobre o depoimento de Medvedev, obtidas por meio de tortura física, foram levadas
às instâncias superiores.

Tukhachevsky e os outros “conspiradores” foram presos logo depois disso.


Literalmente no dia seguinte, foi dito a Stalin que Trotsky anunciara na última
edição do Boletim da oposição que “a insatisfação entre os militares com a
ditadura de Stalin indica uma possível revolta”. Antes de tomar medidas contra
Tukhachevsky, que era muito popular, Stalin queria ouvir o que Molotov,
Voroshilov e Yezhov tinham a dizer. Molotov acreditou na história (e, diga-se
de passagem, continuou acreditando até o fim de seus dias), enquanto
Voroshilov extravasou sua antiga aversão a Tukhachevsky, e Yezhov mostrou
que desejava se promover à custa do caso. Todos os três foram favoráveis à
prisão dos conspiradores. Em 24 de maio, o seguinte documento, assinado por
Stalin, circulou entre os membros do comitê central requisitando seus votos:

Com base em fatos que denunciam Rudzutak, membro do Comitê Central, e Tukhachevsky,
candidato a membro, como participantes de um bloco conspirativo antissoviético trotskysta de direita
[sic!] e responsáveis por trabalho de espionagem contra a URSS para a Alemanha fascista, o Politburo
do comitê central coloca em votação a proposta de expulsão de Rudzutak e Tukhachevsky do partido,
e de encaminhamento de seus casos ao comissariado de Questões Internas.55

A votação foi a favor por unanimidade. Ninguém teve qualquer dúvida,


ninguém saiu em defesa das vítimas. Líderes militares que bem conheciam
Tukhachevsky dos dias de guerra civil tomaram cegamente por verdadeiras as
palavras dos provocadores, sem mesmo tentarem ouvir o que o marechal tinha
a dizer. O momentum da ilegalidade já era muito forte. Ninguém expressou
desejo de conhecer o que estava por trás da expressão “com base em fatos que
denunciam...” Alguns membros foram além da resolução de Stalin. Budenny,
por exemplo, escreveu na cédula de votação: “Definitivamente, sim. Estes
patifes têm que ser punidos.” Mekhlis, como de hábito, sublinhou várias vezes
o seu “sim”. Nem Voroshilov, nem Yegorov, que serviram com Tukhachevsky,
nem Khruschev ou Mikoyan, que iriam mais tarde condenar este ato ilegal,
tiveram coragem para se abster do fatídico “sim”. Por razões não explicadas,
Stalin, como sempre, deixou sua cédula de votação em branco.
Stalin conhecia Tukhachevsky desde a guerra civil, sabia da excelência de
seu comando do V Exército e se lembrava da ordem do Revvoensoviet de 28 de
dezembro de 1919: “Seja o Comandante do V Exército, Camarada M.N.
Tukhachevsky, agraciado com a Honraria da Arma Dourada por bravura
pessoal, ampla iniciativa, energia, eficiência e conhecimento da profissão, tudo
isto demonstrado nas vitoriosas ações do Exército Vermelho no Oriente, na
captura de Omsk.”56
Enquanto ouvia os relatos de Yezhov sobre os interrogatórios de M.N.
Tukhachevsky, I.E. Yakir, I.P. Uborevich, A.I. Kork, P.E. Eideman, B.M.
Feldman, V.M. Primakov e V.K. Putna, Stalin meditava sobre o mais jovem
daqueles oficiais dos altos escalões, cinco deles marechais da União Soviética. O
secretário-geral sempre reconheceu a alta qualificação profissional de
Tukhachevsky, a originalidade de seu pensamento estratégico e seu indubitável
talento como teórico. Por outro lado, desde a guerra civil, sempre guardou uma
desconfiança hesitante nos “especialistas burgueses” e veio a desgostar do
marechal por sua independência e pela coragem de suas opiniões, como
também tinha conhecimento das más relações entre Tukhachevsky e
Voroshilov. Recordou-se de uma nota de Gamarnik, chefe da seção política do
Exército Vermelho, informando que Tukhachevsky propusera o afastamento
dos chefes das administrações políticas distritais, proposta que tanto Gamarnik
quanto Stalin consideraram “absolutamente incorreta e prejudicial em tempo
de paz e de guerra”.57 Naquela oportunidade, Stalin apoiara Gamarnik. Tinha
também conhecimento de que Voroshilov alimentava uma opinião invejosa
sobre as teorias de Tukhachevsky58 porque elas o tornavam mais consciente de
que, por sua falta de preparo, ele estava se apegando a noções ultrapassadas de
organização militar. Portanto, a posição de Tukhachevsky como primeiro vice
de um comissário que lhe era incomensuravelmente inferior em termos
intelectuais, de qualquer forma, dificilmente poderia perdurar. Era improvável
que Voroshilov desse o devido valor a Tukhachevsky, e a transferência deste
último para um cargo de menor realce veio na ocasião oportuna quando foi
nomeado para comandar o distrito militar do Volga. Tal comissão não durou
muito.
Também estava claro para Stalin que Tukhachevsky era superior a
Voroshilov em todos os aspectos. Mas isto era comum. Um chefe não precisa
ser mais inteligente que seus subordinados. O importante era a “linha”, e nisto
Voroshilov se mostrava melhor, enquanto Tukhachevsky... Era difícil acreditar
em tudo que Yezhov reportava, porém até Trotsky dera algumas pistas em seu
livro A Revolução traída. Numa recente entrevista em Oslo, o “cidadão sem um
visto” dissera: “Nem todo o mundo no Exército Vermelho é dedicado a Stalin.
Eles ainda se lembram de mim.” E Trotsky e Tukhachevsky conheciam um ao
outro. [...] À proporção que lia os documentos, Stalin forçou-se a crer que a
história da conspiração não só era verdade como constituía verdadeira ameaça.
Fosse como fosse, Yezhov relatara que os “conspiradores haviam confessado”.
Stalin ordenou que um julgamento fechado fosse rapidamente feito. Todos
deveriam ser fuzilados. Acenou com a cabeça para sua mesa onde um exemplar
do Bolshevik estava aberto num artigo de Tukhachevsky “Sobre o novo Estado-
maior de campanha do Exército Vermelho”. Os eventos se movimentaram com
tal rapidez que o editor não tivera tempo de excluí-lo da publicação. No início
de junho de 1937, antes do julgamento, o conselho de defesa (cujos membros
foram todos executados no espaço de seis meses) ouviu o relatório de Yezhov e
Voroshilov sobre o desvendamento de “uma infame organização militar
contrarrevolucionária e fascista”. Os maquinadores operavam havia muito
tempo, dizia o relatório, e suas atividades eram cerradamente relacionadas com
círculos militares alemães. Além disso, eles planejaram o assassinato de líderes
do partido e do Estado para conquistar o poder com a ajuda da Alemanha
fascista. O destino de Tukhachevsky estava definido. Em 11 de junho de 1937,
menos de duas semanas depois de sua prisão, teve lugar o julgamento fechado,
que só foi mencionado pela imprensa naquele mesmo dia. A sentença foi
anunciada no dia seguinte.
O júri foi conduzido com rapidez extrema e com extrema falta de justiça.
Foi aberto às nove da manhã e a sentença lida pouco depois do almoço. O
tribunal foi constituído pelo advogado militar V.V. Ulrikh, pelos marechais do
exército S.M. Budenny e V.K. Blyukher, pelos comandantes de exército,
primeira classe, B.M. Shaposhnikov e I.P. Belov, comandantes de segunda
classe do exército Ya.I. Alksnis, P.Ye. Dybenko e N.D. Kashirin, e pelo
comandante divisionário Ye.I. Goryachev. Aos acusados foram negados o
conselho de defesa e o direito à apelação, determinados pela lei de 1º de
dezembro de 1934.
Tukhachevsky, Yakir, Uborevich, Putna, Primakov, Kork, Eideman e
Feldman sentaram de frente para os antigos camaradas de exército. Todos se
conheciam bastante bem. Ninguém naquele tribunal poderia supor que havia
ali conspiradores e espiões. Os réus devem ter sentido uma ponta de esperança,
pois seus juízes, que com eles serviram por 25 anos sob a mesma bandeira,
poderiam dar ouvidos, se não à voz da justiça, pelo menos a um senso de
espírito de corpo.
Ya.B. Gamarnik estava também previsto para o julgamento, seja como
acusado, seja como membro do júri. Sua filha V.Ya. Kochneva descreveu o
último dia dele para mim:

Meu pai caiu doente no fim de maio, ou porque sentiu que as coisas caminhavam para um desenlace
ou por causa de um ataque de diabetes. Segundo minha mãe – eu tinha apenas 12 anos – ele sabia que
Tukhachevsky fora preso em 27 de maio e que Uborevich, Yakir e o restante tinham sido apanhados
dia 29, no trem.
Blyukher foi visitar meu pai no dia 30. Eram velhos amigos dos dias de Extremo Oriente.
Conversaram por longo tempo. Depois, meu pai disse à minha mãe que fora convocado para juiz do
caso Tukhachevsky.
“Mas como posso fazer isso?”, exclamou. “Sei que eles não são inimigos. Blyukher disse que se eu não
for poderei ser preso.”
Blyukher voltou para uma conversa rápida no dia 31. Depois vieram outras pessoas e selaram a sorte
de meu pai. Disseram-lhe que tinha sido transferido de função e que seus assistentes, Osepian e Bulin,
já estavam presos. Recebeu ordens para permanecer em casa. Tão logo os agentes da NKVD saíram,
ouviu-se um tiro no escritório. Quando minha mãe e eu corremos, estava tudo acabado.
Acho que o tiro foi uma resposta à proposta de Stalin para que meu pai fizesse parte do júri sobre seus
amigos do exército. Uma resposta à ilegalidade. Ele não achou outra maneira de fazê-lo. Minha mãe
foi presa e sentenciada a oito anos de prisão como “esposa de um inimigo do povo”, e a mais dez anos
em campo de concentração “por ajudar um inimigo do povo”. Jamais a vi de novo e, aparentemente,
morreu no campo em 1943. Fui mandada para um abrigo de jovens. Quando fiz 16 anos, em 1941,
recebi uma pena de seis anos por ser “elemento socialmente perigoso”. Assim começaram meus
tempos de exílio...

Eis a história típica de milhares e milhares de famílias inocentemente


reprimidas.
O julgamento foi feito com velocidade relâmpago. Tudo tinha sido
combinado de antemão. Ulrikh ligou principalmente a “trama” aos contatos
dos acusados com os militares alemães. Como sabemos, Tukhachevsky, em
1926, chefiara uma delegação militar soviética a Berlim. Yakir fizera cursos na
Alemanha em 1929. Kork fora adido militar lá. Muitos outros tinham se
encontrado com representantes alemães em recepções diplomáticas, manobras e
diversas reuniões. Todos eles, com exceção de Primakov, negaram
veementemente qualquer “vínculo de espionagem” com a Alemanha.
Tukhachevsky, por exemplo, disse à corte que “os encontros e conversações
com representantes militares alemães foram puramente oficiais e tinham
acontecido antes que Hitler chegasse ao poder”.
Os réus confessaram uma certa medida de “danos”, não como ato
premeditado, mas como deficiências e omissões na instrução militar, na
construção de instalações bélicas e em questões de mobilização. Uma das
principais acusações se baseou na exigência de Tukhachevsky pela rápida
constituição de unidades blindadas e mecanizadas em detrimento da cavalaria.
Foi a este respeito que Ulrikh se aliou firmemente a Budenny, o comandante
da Cavalaria Vermelha na guerra civil. Como os réus se recusavam a confirmar
os resultados da investigação preliminar, o presidente do tribunal perguntava
insistentemente: “Você confirma o depoimento que fez à NKVD?” – indagação
que os compelia a aderir à versão preparada de caso pensado antes do
julgamento. Como hoje está perfeitamente estabelecido, todos os réus foram
submetidos à tortura física.
A acusação final foi que “para garantir o sucesso da trama, os acusados
tencionaram se livrar de Voroshilov”. A isto, Tukhachevsky, Kork e Uborevich
replicaram que, juntamente com Gamarnik, desejaram levantar junto ao
governo a questão da remoção de Voroshilov do cargo de comissário, uma vez
que ele era incompetente. Tal fato foi tomado pela corte como evidência de
“atividade conspirativa”. Mas os réus repeliram com vigor qualquer noção de
espionagem para a Alemanha fascista ou de preparo de um golpe
contrarrevolucionário. Em suas declarações finais, juraram devoção à pátria-
mãe, ao povo, ao exército e, em particular, realçaram a lealdade ao “Camarada
Stalin”. Solicitaram leniência à corte em relação aos enganos e imperfeições que
pudessem ter cometido no desempenho de suas atribuições.
Contudo, as palavras finais de Primakov introduziram uma nota dissonante
nos procedimentos. Ele confirmou por completo as acusações oficiais e
declarou que “todos os conspiradores estavam unidos sob a bandeira de Trotsky
e pela dedicação ao fascismo”. Disse que dera aos investigadores os nomes de
setenta pessoas que ele sabia com certeza que estavam envolvidas na
conspiração militar-fascista. De acordo com Primakov, os líderes do golpe
tinham uma “segunda pátria”: Putna, Uborevich e Eideman possuíam parentes
próximos na Lituânia, Yakir tinha família na Bessarábia, e a família de Eideman
estava nos Estados Unidos. Depois de meses de tortura, Primakov diria o que
os investigadores quisessem. Enquanto os outros ficaram presos apenas duas
semanas antes do julgamento, Primakov, um herói da guerra civil, passara mais
de um ano em Lubyanka, e era um homem arrasado.
Somente investigadores com determinadas características serviam então na
NKVD: cínicos, cruéis e sádicos. O general do exército A.V. Gorbatov, que
experimentou os círculos do inferno stalinista, relembra:

Por acaso, descobri que o nome de meu investigador-monstro era Stolbunsky. Não sei onde ele se
encontra agora. Se estiver vivo, gostaria que lesse estas linhas e sentisse o desprezo que lhe devoto,
embora eu ache que já sentisse àquela época. Posso ainda ouvi-lo sussurrando perversamente enquanto
me arrastavam, exausto e coberto de sangue: “Você vai assinar, vai assinar.” Sobrevivi ao tormento por
duas sessões, mas quando começou a terceira eu só queria morrer.

O investigador do caso Tukhachevsky, que particularmente se superou, foi


Ushakov (nome real, Ushminsky). Ele era o responsável pelos casos especiais.
No seu depoimento para a comissão de reabilitação depois do XX Congresso,
escreveu:

Feldman foi o primeiro a ser preso. Negou categoricamente qualquer participação na trama, em
especial contra Voroshilov. Peguei seu arquivo pessoal e, depois de lê-lo, cheguei à conclusão que
Feldman tinha laços de amizade com Tukhachevsky, Yakir e diversos generais de destaque. Convoquei
Feldman a meu gabinete, tranquei a porta e, na noite de 19 de maio, ele já estava assinando uma
declaração sobre um golpe que implicava Tukhachevsky, Yakir, Eideman e os outros. Depois me
deram Tukhachevsky para interrogar, e ele confessou no dia seguinte. Sem deixá-lo dormir, arranquei
dele fatos e mais fatos, nomes e mais nomes dos conspiradores. Até mesmo no dia do julgamento,
consegui testemunho adicional de Tukhachevsky incriminando Apanasenko e outros na
conspiração.59

O próprio Vyshinsky participou de uma das sessões do interrogatório de


Tukhachevsky, forçando-o a assinar as seguintes palavras: “Confesso minha
culpa. Não tenho queixas.” Na realidade, todos os acusados escreveram cartas
com reclamações e pleitos de clemência a Stalin, Molotov e Voroshilov.
Os camaradas de Tukhachevsky também passaram pelo tratamento
“vigoroso”, pela intimidação, pela ameaça aos familiares e pela tortura física. Ao
longo dos interrogatórios, era-lhes dito que só salvariam suas vidas com a
confissão.
Antes que as sentenças fossem pronunciadas, Ulrikh e Yezhov mantiveram
Stalin informado sobre o progresso do julgamento e o comportamento dos
réus. Ulrikh depositou obsequiosamente a minuta das sentenças sobre a mesa
do secretário-geral. Sem mesmo olhar para os auxiliares, Stalin declarou: “De
acordo.” Então, depois de breve silêncio, perguntou:
“Quais foram as últimas palavras de Tukhachevsky?”
“A víbora disse que era dedicado à pátria-mãe e ao camarada Stalin. Pediu
clemência”, respondeu Yezhov de pronto. “Mas ficou claro que não estava
sendo sincero, ele não baixou a guarda.”
“E quanto à corte? Como se comportaram os membros do júri?”
“Só Budenny tomou parte ativa, o restante ficou em silêncio a maior parte
do tempo. Alksnis, Blyukher e talvez Belov fizeram uma ou duas perguntas.”
Stalin tivera, desde o início, dúvidas sobre os membros da corte e decidiu de
imediato vigiá-los de perto. Exceto Budenny e Shaposhnikov, todos seriam
presos logo depois. Kashirin e seus dois irmãos, literalmente, no espaço de
poucos dias.
Os apelos por perdão não foram respondidos. Stalin não era chegado a
“branduras”. Na noite de 12 de junho de 1937, todos os acusados foram
fuzilados, inclusive Primakov, malgrado as promessas de que sua vida seria salva
em troca de admissões “de coração aberto”. “Nenhuma compaixão para os
traidores e espiões da mãe-pátria” foi o título de um artigo do Bolshevik sobre o
julgamento de “Tukhachevsky e Cia.”, descritos como se “desempenhassem o
mesmo papel de Franco, o desprezível inimigo do povo espanhol”.60
O massacre dos quadros militares estava apenas começando. A NKVD
trabalhava a todo o pano. Cada chamada telefônica, cada telegrama, cada
relatório do órgão disparava todo um processo, mais vítimas, mais sofrimento.
Dois dos telegramas de Mekhlis são ilustrativos:

Comissariado da Defesa, Shchadenko,


Administração Política do Exército Vermelho, Kuznetsov.
O chefe do Estado-maior Lukin é pessoa extremamente duvidosa, que se mistura com inimigos e tem
seus vínculos com Yakir. O comandante de brigada Fedorov deve ter bastante material a respeito dele.
Meu relatório sobre Antonyuk contém muita coisa sobre Lukin. Não seria um grande erro se vocês
expulsassem Lukin de imediato.
27 de julho Mekhlis

Ao Camarada Stalin
Despedi 215 trabalhadores políticos, dos quais uma boa parcela foi presa. Mas estou longe de terminar
o expurgo do aparato político, particularmente nos escalões inferiores. Penso que não devo sair de
Khabarovsk antes de, pelo menos, fazer uma boa triagem nos quadros comunistas.61

Com aprovação de Stalin, Mekhlis e os seus forjaram as derrotas de 1941 que


iriam resultar em milhões de novas vítimas. As listas de comandantes militares
e trabalhadores políticos que pereceram se assemelham a um inacreditável,
terrível e infindável obituário. Entrementes, a tragédia continuou. O
comandante de brigada Medvedev, o qual, sob tortura, fizera o depoimento
requerido contra Tukhachevsky, foi fuzilado. Da mesma forma que Yagoda
antes dele, Yezhov dispôs-se a apagar qualquer vestígio. A maioria dos membros
da corte especial que condenara Tukhachevsky e os outros foram eles próprios
despachados. Vale ressaltar uma carta de Dybenko para Stalin:

Prezado Camarada Stalin


Parece que o Politburo e o governo concluíram que eu sou um inimigo de nossa mãe-pátria e de nosso
partido. Politicamente isolado, sou um cadáver ambulante. Mas, por que e qual a causa? Como
poderia eu saber que aqueles americanos que apareceram na Ásia Central na qualidade de
representantes oficiais da NKVD e do OGPU eram agentes especiais de informações? No caminho
para Samarkand, jamais fiquei sozinho com eles por um segundo sequer. De qualquer forma, nem falo
inglês.
Sobre a provocação de Kerensky publicada na imprensa da Guarda Branca, afirmando que sou um
agente alemão, será possível que os Guardas Brancos de Kerensky querem se vingar de mim depois de
vinte anos de trabalho honesto e devotado ao partido? Isto é simplesmente monstruoso.
Duas notas que estão com Yezhov, escritas pelos empregados do Hotel Nacional, contêm uma ponta
de verdade – quando conhecidos vinham me visitar no hotel, eu bebia com eles. Mas nunca houve
orgias alcoólicas.
Supostamente, fiquei num quarto próximo ao dos representantes da embaixada. Esta é mais uma de
toda uma gama de provocações.
Espalha-se que eu tenho tendências kulaks a respeito da reconstrução agrícola. Este despropósito só
pode ter sido divulgado pelos camaradas Gorkin, Yusupov e Yevdokimov, com quem trabalhei durante
os nove últimos anos.
Camarada Stalin, rogo-lhe que reveja todos estes fatos e remova de mim tal nódoa vergonhosa, porque
não a mereço.
P. Dybenko62

Poucos dias mais tarde, o comandante de exército Dybenko, membro do


partido desde 1912, presidente do Tsentrobalt,* foi preso, “julgado” e fuzilado.
Stalin meramente anotou na carta de Dybenko “Para Voroshilov”. Nem Stalin
nem Voroshilov, no entanto, quiseram se aborrecer com o destino do
bolchevique da Velha Guarda.
Convencido, senão da existência, pelo menos da possibilidade de uma
conspiração “militar-fascista”, Stalin já especulava sobre quem, na ausência de
Tukhachevsky, poderia liderá-la. Acabara de ler um relatório da Alemanha
enviado por Alexandrovsky, vice-chefe de informações militares. Continha uma
avaliação da liderança do Exército Vermelho feita por militares germânicos. Por
alguma razão, eles achavam que Blyukher era um russo de ascendência alemã e
que era o mais influente e competente dos líderes militares soviéticos.
Consideravam Yegorov um “comandante extremamente forte” com “uma
mente analítica”. Stalin não precisava de pessoas assim. Preferia os submissos
Voroshilov e Budenny, com suas mentes comuns.
Enquanto caminhava pelos jardins da dacha de Kuntsevo, pode ser que
Stalin tenha se lembrado de que, pouco depois de editar o decreto de 20 de
fevereiro de 1932, privando Trotsky e os que o seguiram da cidadania soviética,
o rival publicara uma carta aberta ao Presidium e ao comitê executivo central
asseverando que “a oposição passou por cima do decreto de 20 de fevereiro da
mesma forma que um operário pula sobre uma poça d’água a caminho da
fábrica”, e terminou com o brado de “Livrai-vos de Stalin!”. Logo após, Trotsky
declarou num discurso que “mesmo nos mais altos escalões da chefia do
exército há gente que não está satisfeita com Stalin e que apoia meu pleito por
sua derrubada. E a quantidade não é pequena”.
Agora, sem Tukhachevsky, restavam quatro influentes militares, quatro
marechais. Stalin não tinha dúvidas sobre Voroshilov. Sua vida fora toda
baseada num mito passado e sempre dependera de Stalin. Budenny era um
veterano severo e nada mais. Ainda assim, Yezhov reportou que a esposa de
Budenny tinha contatos com estrangeiros de alguma espécie. Seria melhor ficar
de olho. Porém, nenhum dos dois seria capaz de se rebelar contra o secretário-
geral. Mas Blyukher e Yegorov, os quais conhecia desde a guerra civil, tinham
mudado flagrantemente. Estavam diferentes. Os alemães haviam feito
comentários específicos sobre eles. E Voroshilov não se satisfizera com Yegorov
como chefe do Estado-maior. Era necessário que Yezhov investigasse uma carta
sobre Yegorov que Stalin recebera. Ela dizia:

Na minha opinião, diversas das mais importantes matérias sobre a organização do Exército Vermelho e
sobre o desdobramento estratégico-operacional de nossas forças armadas foram decididas erradamente
e é possível que causem danos. Isto poderia implicar grande fracasso e numerosas baixas extras na
primeira fase da guerra.
Solicito-lhe, Camarada Stalin, que verifique a atuação do marechal Yegorov como chefe do Estado-
maior, já que, de fato, ele é responsável pelos erros cometidos na instrução e no desdobramento
estratégico-operacional de nossas forças armadas, e na estrutura organizacional.
Não conheço nem o presente nem o passado político do Camarada Yegorov, mas sua atividade prática
como chefe do Estado-maior desperta dúvidas.
7 de novembro de 1937
Membro do partido desde 1912 Ya. Zhigur63
Yan Matisovich Zhigur era comandante de brigada e trabalhava num dos
departamentos da Escola de Estado-Maior do Exército Vermelho. Muitos
homens honestos saíram dos trilhos devido aos continuados reclamos por
vigilância, e à desordem causada pela ilegalidade que se transformou em norma
naqueles anos de pesadelo. Ex-alferes do exército czarista, Zhigur aceitou a
revolução e tomou parte na guerra civil. Foi ferido duas vezes e ganhou a
Ordem da Bandeira Vermelha, mas sua carta a Stalin não o salvou. Foi logo
preso e executado.
Não obstante, Stalin determinou a Poskrebyshev que dissesse a Yezhov para
verificar Yegorov e, passados poucos meses, este último já tinha cumprido a
missão, no curso da qual um dos antigos colegas de Yegorov, que mais tarde se
tornaria importante líder militar, foi compelido a escrever uma carta. Nela, o
camarada em armas do marechal afirmou:

Em novembro de 1917, num congresso do I Exército em Stokmozgof, ouvi um discurso do então


tenente-coronel SR de direita A.I. Yegorov, no qual ele chamou Lenin de aventureiro e emissário dos
alemães. Em suma, o discurso conclamava os soldados a não acreditarem em Lenin.64

Se bem que o destino de Yegorov já estivesse determinado, a carta “confirmou”


que ele era um “destruidor”. Quando os resultados da investigação foram
debatidos por um pequeno grupo que incluía Molotov e Voroshilov, ficou
decidido que Yegorov seria afastado do Comitê Central e que seu caso seria
encaminhado à NKVD, especialmente à luz de outro fato comprometedor que
surgira em relação à sua esposa.
Entre 28 de fevereiro e 2 de março de 1938 circulou entre os membros do
comitê central a seguinte resolução assinada por Stalin:

Em vista do fato, estabelecido durante a acareação entre o Camarada Yegorov e os conspiradores


presos Belov, Gryaznov, Grinko e Sedyakin, de que o Camarada Yegorov está politicamente mais
manchado do que se pensava antes daquela ocasião, e levando-se em consideração que sua esposa,
nascida Tseshkovskaia, à qual ele é muito unido, revelou-se espiã polonesa de longa data, como foi
evidenciado no próprio depoimento dela, o comitê central reconhece a necessidade de remover o
Camarada Yegorov da função de candidato a membro do Comitê Central.65

Mais uma vez, a votação foi unânime e, de novo, a cédula de votação de Stalin
foi deixada em branco.
Restava ainda um marechal “duvidoso”, Vasily Konstantinovich Blyukher,
talvez o mais destacado líder militar de antes da guerra. Ele foi o primeiro a ser
condecorado com a Ordem da Bandeira Vermelha, da qual possuía quatro
graus, recebeu a primeira Ordem da Estrela Vermelha, e uma de suas duas
Ordens de Lenin foi das primeiras a serem outorgadas.
Stalin não ficou satisfeito com a atuação de Blyukher durante a campanha
da Mongólia, em julho-agosto de 1938, quando os japoneses capturaram
território soviético na fronteira acima do lago Khasan. Voroshilov expedira uma
ordem para que o inimigo fosse destruído, mas Blyukher, como comandante
do Exército Separado da Bandeira Vermelha no Extremo Oriente, recusou
lançar-se de afogadilho sobre o inimigo, preferindo preparar-se
cuidadosamente. Foi chamado na linha direta para falar com Stalin. Tiveram
um diálogo curto, porém áspero:

Stalin: “Como é, Blyukher, diga-me por que ignorou a ordem do comissário da Defesa para um
bombardeio aéreo sobre todo o nosso território ocupado pelos japoneses, inclusive os montes
Zaozernaya?”
Blyukher: “Relatando. A Força Aérea está pronta para decolar. Só houve um pequeno atraso na
decolagem devido a condições meteorológicas desfavoráveis. Neste exato minuto, dei ordem a
Rychagov [comandante da Força Aérea] para colocar os aviões no ar, independentemente de qualquer
coisa, e efetuar o ataque. Os aviões estão decolando agora, mas temo que seja inevitável atingirmos
nossas próprias unidades bem como assentamentos coreanos.”
Stalin: “Diga-me com honestidade, Camarada Blyukher, você quer mesmo combater os japoneses? Se
não quiser, declare logo, como um bom comunista, mas se quiser, acho que você tem que chegar lá
sem retardos. Não entendo sua preocupação com a possibilidade de bombardeio de assentamentos
coreanos, nem seu temor de que a força aérea seja incapaz de cumprir a missão por causa da neblina.
Quem disse que você não pode atingir a população coreana durante uma confrontação armada com os
japoneses? Por que se inquietar com os coreanos quando nosso povo está atirando nos japoneses? O
que significa um pouco de neblina para a aviação soviética, quando ela deseja realmente defender a
honra da pátria-mãe soviética? Estou esperando por sua resposta.”
Blyukher: “A Força Aérea recebeu ordem para decolar, e o primeiro grupo de caças o fará às 11h20.
Rychagov promete começar o ataque às 13h. Voarei para Voroshilov [a localidade] com Mazepov e
Bryandinsky [oficiais de Estado-maior da Força Aérea] tão logo comece a operação. Aceitamos suas
ordens e as cumpriremos com precisão bolchevique.”66

Mekhlis, que fora enviado para o Leste, instigara a liderança em Moscou


com relatórios sobre um comando supostamente indeciso no Exército do
Extremo Oriente, comprometendo assim Blyukher.
Stalin logo convocou Blyukher a Moscou, embora não tivesse a intenção de
conversar com ele. O marechal ficou sem função por algum tempo e depois,
em 22 de outubro de 1938, foi preso. A ordem de prisão levou a assinatura de
Yezhov, o qual, em poucas semanas, iria, ele próprio, se juntar aos milhares que
consignara ao esquecimento.
Blyukher foi lançado no moedor de carne exatamente na ocasião em que
este desacelerava. De início, ficou a impressão de que poderia sobreviver. Uma
instrução, expedida em novembro de 1938 pelo conselho de ministros e pelo
Comitê Central, fez referências às violações grosseiras da legalidade no processo
investigativo, mas Beria, que já estava encarregado do caso Blyukher, a ignorou.
O marechal foi interrogado durante diversos dias, mas resistiu bravamente,
negando vinculação com qualquer “golpe trotskysta-fascista”. Será que,
enquanto era torturado, lembrou-se de sua participação no ardiloso julgamento
de Tukhachevsky? Naquela ocasião, desperdiçara a oportunidade de
demonstrar probidade para mitigar o destino do primeiro marechal soviético;
agora, estava no lado mais fraco.
Segundo B.A. Viktorov, que também conduziu esta reabilitação, Blyukher
foi visto pela última vez em 5 e 6 de novembro, irreconhecível depois de ser
impiedosamente espancado. Seu rosto era uma posta de sangue e um dos olhos
fora arrancado. Os inquisidores de Beria se esmeraram para terminar sua
terrível tarefa antes do grande feriado nacional de 7 de novembro. Em 9 de
novembro, Blyukher morreu nas masmorras de Beria devido às torturas
sofridas. Morreu, mas não cedeu: não assinou as monstruosas mentiras.
A lista dos oficiais que pereceram é infindável; constituíam a flor do corpo
de oficiais, com experiência da guerra civil, e a maioria deles relativamente
jovem. O golpe nas forças armadas soviéticas foi imenso. Quem poderia pensar
que as sementes da provocação lançadas pela Gestapo, pelos emigrados Brancos
e, inadvertidamente, por Trotsky encontrariam solo tão fértil? Quase todos os
vice-comissários distritais, a maioria dos membros do conselho de guerra, quase
a totalidade dos comandantes de distritos militares e comandantes do exército
foram expurgados. Pelas estatísticas disponíveis, em 1937-38, cerca de 45% das
equipes políticas e de comando do exército e da marinha, de comandante de
brigada para cima, foram exterminados. Como o próprio Voroshilov reportou
ao conselho de guerra, no fim de novembro de 1938, o Exército Vermelho fora
“depurado de mais de 40 mil homens... Alterações enormes foram efetuadas na
liderança do exército: permaneceram apenas dez dos membros originais do
conselho de guerra”. Não é difícil imaginar a situação experimentada pelos
distritos militares.
No seu relatório para Moscou do início de março de 1938, o comandante
do distrito militar de Kiev, S.K. Timoshenko, e o membro do conselho de
guerra N.S. Khruschev descreveram como grande vitória o fato de 3 mil
“inimigos” terem sido expurgados das tropas do distrito, dos quais mais de mil
foram presos. Praticamente todos os comandantes de corpos e de divisões
foram substituídos. “Como consequência do extermínio dos elementos
trotskystas-bukharinistas, cresceu o poderio das forças distritais.”67
Silêncio e inação não foram as únicas respostas ao expurgo no exército.
Incontáveis relatórios passaram a chegar dos departamentos políticos
descrevendo a dúvida, a confusão e a pura descrença que campeavam nas
unidades. Por exemplo:

Tenente Shkrobat, não membro do Partido, 101º Regimento de Artilharia: “Não posso acreditar em
Stalin quando afirma que Yakir e Tukhachevsky são inimigos do povo.”
Zubrov, integrante do Exército Vermelho: “Sob Nicolau, eles não puderam enforcar número suficiente
de pessoas; agora, podem fuzilar. Mas não vão conseguir exterminar todos.”
Trushinsky, instrutor da escola de artilharia: “Seria o próprio Stalin um trotskysta?”
Comandante Naval Kirilov: “Não creio que Bukharin e outros sejam inimigos do povo e do
socialismo. Eles só quiseram mudar a liderança do partido.”68

Tais relatórios eram normalmente acompanhados de uma nota especificando:


“cópias foram remetidas à NKVD para investigação”. Enquanto muitos viam e
não diziam nada, existiram vozes de protesto às autoridades. Por exemplo, o
comandante de brigada S.P. Kolosov escreveu ao comissário de defesa
Voroshilov:

Dois comandantes encontram-se num bonde. “Então, como vão as coisas? Conosco é como um
massacre tártaro. Prenderam fulano e sicrano...” O outro diz: “Tenho medo de abrir a boca. Fale o que
falar, se você diz algo errado, é logo tachado de inimigo do povo. A covardia passou a ser a norma.”
Investigue quantos você já expulsou do Exército Vermelho em 1937 e tome consciência por si próprio
da dura verdade.
Você pode me chamar de inimigo-do-povo-trotskysta-alarmista etc. Não sou um inimigo, mas acho
que caminhamos para um beco sem saída.
5 de dezembro de 1937 Kolosov69

Não sei o que aconteceu com Kolosov, mas sua carta mostra que nem todos
permaneceram silenciosos. Muitos se alarmaram com a sangria sofrida pelo
exército às vésperas de tempos de provação, porém a ânsia de Stalin em
preservar seu poder a qualquer custo, mesmo que a ameaça a ele fosse
puramente imaginária, sobrepujou a preocupação principal com a segurança do
país.
Nota

* Comitê central da Esquadra do Báltico em 1917-18, a organização revolucionária bolchevique dos


marinheiros.
[32]
O monstro stalinista

A violência chegou ao máximo no início de 1938. Stalin recebia mais e


mais relatórios sobre a situação catastrófica nas fábricas, nas ferrovias,
nos comissariados. A repressão prosseguia com impulsão própria. As
prisões geravam “cúmplices”; a chance para os carreiristas subirem degraus
produzia denúncias em cascata, quase sempre vingança de parentes. A situação
saiu do controle. No verão de 1938, Stalin decidiu que era tempo de se livrar
de seus funcionários, acusando-os de “excessos”, “exorbitâncias” e “abusos de
autoridade”. Responsabilizou os executores de sua política por todos os
pecados, pensáveis e impensáveis. Yezhov, a quem começou a observar mais de
perto quando o fez membro candidato do Politburo, perdeu toda a sua
importância. Infelizmente, àquela altura, a imprensa criara uma imagem de
Yezhov como “chekista talentoso”, “o mais leal pupilo de Stalin”, “um homem
que conhece as pessoas”. Escrevendo para o Pravda, até Mikhail Koltsov
descreveu o degenerado como “maravilhoso e implacável bolchevique que dia e
noite, sem se levantar da cadeira, está desvendando e cortando as ligações da
conspiração fascista”.
Stalin descobriu rapidamente que Yezhov era um alcoólatra carente por
completo de flexibilidade e percepção políticas. Ele não ligava para o total
cinismo de Yezhov, ou para sua má índole ou crueldade – Yezhov
frequentemente conduzia os interrogatórios em pessoa –, mas não gostava de
pessoas sem força de vontade trabalhando com ele. E alcoolismo era, ao seu ver,
a marca registrada da falta de determinação. Os homens que cercavam o
secretário-geral, tais como Molotov, Kaganovich, Zhdanov, Voroshilov,
Andreyev, Khruschev, Poskrebyshev e Mekhlis, além da absoluta lealdade
tinham que ter vontade forte para mostrar tal lealdade. A fim de testá-la, sem
ser municiado por Yezhov ou Beria, que não ousariam fazer isso, Stalin prendeu
alguns parentes de quase todos eles. Se algum tentasse defender os familiares
estaria demonstrando intolerável fraqueza política. Determinação política
significava estar disposto a sacrificar qualquer coisa em nome da lealdade a
Stalin.
Assim, necessitando um bode expiatório, Stalin selecionou Yezhov. Por volta
de setembro-outubro de 1938, com Yezhov ainda nominalmente no cargo, era
Beria quem, de fato, dirigia a NKVD, como indicam os relatórios de Ulrikh,
datados de outubro de 1938 e endereçados ao “comissário das Questões
Internas Beria”. Yezhov, destituído da função de comissário em 7 de dezembro
de 1938, veio à tona novamente como comissário do povo do Transporte
Hidroviário. Em 21 de janeiro de 1939, sentou-se ao lado de Stalin durante as
comemorações dos 15 anos da morte de Lenin, mas, depois disto, evaporou-se.
Não pertencia a qualquer órgão de direção do partido por ocasião do XVII
Congresso, em março de 1939. Foi preso durante uma reunião no
comissariado do Transporte Hidroviário. Dois homens entraram
apressadamente na sala e ficaram na porta; Yezhov entendeu de imediato que o
fim chegara; caiu de joelhos e implorou perdão. Foram-lhe concedidas umas
poucas semanas. Sabe-se que ele foi fuzilado, mas – como ocorreu com muitos
milhares de suas vítimas – quando, onde e com base em que acusações
permanecem indeterminados.
Com as bênçãos de Stalin, Beria estava firmemente estabelecido no cargo no
fim de 1938. Sua primeira tarefa foi se livrar da equipe de Yezhov. Homens
pervertidos como Frinovsky, Zakovsky e Berman, que faziam seu horripilante
trabalho desde o tempo de Yagoda, foram condenados, executados e
substituídos pelo bando de Beria, igualmente pervertido, que incluía Merkulov,
Kobulov, Goglidze, Tsanava, Rukhadze e Kruglov.
Por que Stalin escolheu Lavrenti Pavlovich Beria? Já o conhecia bem
anteriormente? Como Beria conquistou a confiança de Stalin com tanta
rapidez? Como foi que um oportunista como Beria galgou os mais altos
degraus da escada em tão pouco tempo, tornando-se membro do Politburo,
primeiro vice-presidente do conselho de ministros, marechal da União
Soviética e Herói do Trabalho Socialista?
Stalin conheceu Beria por volta de 1929-30 quando tratava de sua saúde em
Tskhaltubo. Beria, como chefe do GPU transcaucasiano, ficou responsável pela
segurança pessoal do secretário-geral. Conversaram diversas vezes e Beria
revelou grande intuição para captar os desejos de Stalin. No início de sua
carreira, explorou o conhecimento que sua esposa, Nina Gegechkori, e o irmão
dela, um revolucionário, tinham com Sergo Ordzhonikidze. Isto deve tê-lo
ajudado no começo, mas Ordzhonikidze logo percebeu as características de
Beria e se mostrou extremamente hostil à sua promoção. Beria contou também
com a oposição séria de diversos outros bolcheviques da velha guarda. Por
exemplo, Tite Illarionovich Lordkipanidze, comissário das questões internas
para a Transcaucásia e membro da NKVD desde que fora Cheka nos dias de
Lenin, tentou abrir os olhos de Moscou para aquele lobisomem. Stalin, no
entanto, afastou Lordkipanidze da função e, em 1937, Beria livrou-se dele para
sempre. O caminho de Beria para o topo ficou crivado de vítimas como esta.
Beria impressionou Stalin pela capacidade de apreensão e autoridade, pelo
comportamento decisivo e pelo excelente conhecimento da situação nas
repúblicas do Cáucaso. Foi possivelmente o secretário do comitê partidário
transcaucasiano L. Kartvelishvili quem disse a Stalin que Beria tivera ligações
com vários movimentos nacionalistas locais na guerra civil. Stalin também foi
alertado acerca do acentuado carreirismo de Beria, mas encarou tais fatos como
positivos, uma vez que pessoas assim podiam ser sempre controladas. Foi o caso
de Vyshinsky que, tendo sido menchevique, assinara a ordem de prisão de
Lenin expedida pelo Governo Provisório chefiado por Kerensky em 1917. Pois
não era de se ver como agora mostrava vontade! Ou de Mekhlis, outro ex-
menchevique, dedicado como poucos a Stalin.
Em outubro de 1931, Stalin providenciou para que Beria trabalhasse para o
partido como segundo secretário do comitê regional e, apenas dois ou três
meses mais tarde, propôs sua promoção a primeiro secretário. Na verdade, teve
que transferir Kartvelishvili, Oralkhelashvili, Yakovlev e Davdaryani da região
porque eles se opunham à candidatura de Beria. Em poucos anos, aos olhos de
Stalin, Beria botou “ordem” no Cáucaso. Mostrava-se satisfeito com o fato de
que, em todos os plenos de 1937-38, os eficientes comentários e observações de
Beria se alinharam perfeitamente com seu pensamento e seus discursos, em
especial no pleno de fevereiro-março de 1938: “Como você aceitou Vardanin
quando o expulsamos da Transcaucásia?”, despejou contra Yevdokimov,
secretário da organização partidária nos mares Aral e Negro. “Por que
promoveu Asilov”, continuou, “quando já o tínhamos expulsado do partido?”
E mais: “No cumprimento das instruções do Camarada Stalin sobre o trabalho
com os quadros, desmascaramos sete membros do comitê central da Geórgia e
dois membros do comitê da cidade de Tbilisi. Só em 1936, prendemos 1.050
trotskystas-zinovievistas.”70 Sua nomeação para comissário veio três semanas
depois de uma instrução do comitê central e do Sovnarkom, de 17 de
novembro de 1938, “Sobre prisões, a diretoria de promotoria pública e a
conduta dos interrogatórios.”
Em seguida ao XVIII Congresso, algumas pessoas condenadas injustamente
foram reabilitadas, mas tratou-se de uma operação cosmética quando
comparada aos números totais: quanto mais se responsabilizasse Yezhov e se
admitisse a prática de atos maciços de ilegalidade, mais nódoas seriam lançadas
sobre Stalin. E isto não seria permitido. Primeiro, se fez justiça a todas as
pessoas ligadas à defesa. Stalin sabia que o exército estava enfraquecido às
vésperas da guerra, por conseguinte, ordenou a libertação de alguns oficiais
ainda não derreados pela NKVD, bem como de diversos cientistas e projetistas.
A loucura de 1937-38 perdia impulsão, mas os órgãos de segurança não
estavam ociosos. Mais de 23 mil integrantes da NKVD pereceram no fim dos
anos 1930, entre os quais muitos que tentaram – e fracassaram – colocar um
freio no volante da violência.
Fica claro que homens como Yagoda, Yezhov, Beria, Vyshinsky e Ulrikh
constituem um modelo de abuso, criminalidade e degeneração moral. Quanto
às tentativas para abrir os olhos de Stalin sobre essa natureza de seus sicários,
ele já bem a conhecia, pois foi ele mesmo que apoiou seus piores excessos. Com
Molotov ao seu lado, Stalin aprovou cerca de quatrocentas listas com nomes a
serem processados, só pelos tribunais militares. Com um simples “De acordo” e
sua assinatura ele enviava para o esquecimento final centenas de pessoas de
uma só vez.
O falecido marechal K.S. Moskalenko, que tomou parte na prisão e
julgamento de Beria, disse-me que, quando o degenerado foi sentenciado em
23 de dezembro de 1953, ajoelhou-se em lágrimas, contorcendo-se e rogando
clemência, na sessão especial da Suprema Corte da URSS que teve lugar no
edifício do quartel-general do distrito militar de Moscou.
Existem depoimentos não documentados de que Beria pretendia usurpar o
poder à medida que Stalin envelhecesse. É provável que Stalin soubesse disso,
uma vez que a relação entre os dois esfriou consideravelmente no ano e meio
finais da vida do ditador. Entre as muitas pessoas que me fizeram relatos sobre
tal possibilidade, muito interessante foi o testemunho de M.S. Vlasik, esposa
do tenente-general N.S. Vlasik, ex-chefe da administração principal do
Ministério da Segurança do Estado (a KGB). Por mais de 25 anos, Vlasik
chefiou a segurança pessoal de Stalin; sabia muita coisa e gozava da confiança
do secretário-geral. Beria o odiava, mas Stalin não permitia que fosse tocado.
Contudo, poucos meses antes da morte de Stalin, Beria conseguiu
comprometer Vlasik, bem como Poskrebyshev, afastando-os do entourage do
líder. Vlasik foi preso e condenado a dez anos e ao exílio. Quando retornou,
após a morte de Stalin, disse que estava totalmente convencido de que Beria
“ajudara” Stalin a morrer, separando-o, primeiro, de seus médicos. Vlasik
colocou isto nas memórias que ditou para a esposa pouco antes de falecer.
Se Stalin teve ou não morte natural, o sistema daquele tempo era tal que a
substituição de um ditador por outro era uma possibilidade real. A liderança,
todavia, encontrou finalmente coragem e perspicácia para desarmar o monstro.
Um importante fator para tanto foi a conscientização de que Beria poderia
muito bem tentar se livrar de todos. Sua única relação mais estreita era com
Malenkov. Como o marechal Moskalenko me contou, o julgamento de Beria
ocorreu no gabinete de um oficial do distrito militar de Moscou, enquanto
Malenkov, Khruschev, Molotov, Voroshilov, Bulganin, Kaganovich, Mikoyan,
Shvernik e alguns outros, sentados no Kremlin, ouviam-no através de uma
ligação telefônica instalada especialmente para a ocasião.
Stalin fez ouvidos de mercador para os alertas quanto ao caráter malévolo
de Beria; aquele assassino era conveniente a seus propósitos. Num dos plenos
de 1937, Kaminsky, o comissário do povo para a Saúde, tentou revelar a
verdadeira personalidade de Beria, mas foi preso e executado logo depois da
reunião. Kedrov, um velho bolchevique, fez tentativa semelhante, com o
mesmo resultado: a acusação contra ele fabricada depois de seu fuzilamento. O
homem cuja tarefa exigia o maior apego à lei, e a nada fora dela, foi, de fato, a
personificação da ilegalidade e do mando arbitrário. Nada era sagrado para
Beria. Ele só venerava a violência. Quase sempre satisfazia suas necessidades
sádicas conduzindo pessoalmente os interrogatórios, muitos dos quais
terminaram em tragédia. Ainda assim, amava a música, e conta-se que possuía
uma coleção única de discos clássicos; um prelúdio de Rachmaninof levava-o às
lágrimas. Stalin que, aparentemente, era ascético e puritano, não podia deixar
de saber que Beria era também um devasso repugnante. O chefe da segurança
pessoal de Beria, o coronel Nadoraya, trazia-lhe qualquer moça que fosse do
seu agrado, e a menor resistência convertia-se em consequências trágicas tanto
para a moça quanto para sua família.
Ye.P. Pitovranov, que trabalhou na NKVD desde antes da guerra e que
depois se tornou chefe da administração e vice-comissário, disse-me que apenas
sobreviveu porque foi preso por ser “brando com os inimigos do povo”.
Segundo ele, Beria não era só absolutamente imoral como também apolítico
por inteiro. Pitovranov achava que Beria não entendia nada de marxismo e não
conhecia nenhuma das obras de Lenin. A política não significava nada;
somente o poder sobre outras pessoas lhe interessava. É difícil entender como
ele permaneceu no topo por tanto tempo, em função do muito que Stalin dele
sabia. Talvez com Beria Stalin sentisse uma “química” especial que não seria
fácil substituir.
De sua parte, Beria gostava de demonstrar a relação especial com Stalin na
frente dos outros membros do entourage e, muitas vezes, trocava impressões
com o chefe em georgiano, o que só agravava o medo dos outros em relação ao
monstro. O que poderiam estar falando os dois? Seria sobre algum deles?
Durante a guerra, Stalin deu ao ministério de Beria a missão de reconstruir
pontes, construir ramais ferroviários, perfurar galerias de minas, tudo isto feito,
é claro, com trabalho escravo, em tempo recorde. A atuação de Beria em
“tempo de guerra” consistiu em duas viagens ao Cáucaso como membro do
Comitê de Defesa do Estado. A primeira vez foi em agosto de 1942, a segunda,
em março de 1943. Os documentos mostram que, mesmo então, em nome de
Stalin, ele se livrara de pessoas que não lhe convinham, ordenando execuções e
aterrorizando os militares. Se fez acompanhar de Kobulov, Mamulov,
Milshtein, Piyashev, Tsanava, Rukhadze, Vlodzimirsky e Karanadze. Criou
uma atmosfera de tensão, nervosismo, suspeita e denúncias mútuas nos vários
quartéis-generais. Protestos débeis dos comandantes locais a Stalin foram
ignorados em Moscou. Só a presença de Beria era capaz de paralisar a
capacidade dos generais de pensarem criativamente, já que ninguém queria ser
a próxima vítima. Quando ele foi embora com sua enorme comitiva, todos
suspiraram aliviados.
Beria não era só poderoso por operar a maquinaria punitiva, mas porque
também controlava o vasto sistema dos gulags. Quando os americanos lançaram
as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, Stalin ordenou que a
pesquisa nuclear soviética fosse acelerada e deu a Beria a responsabilidade pela
gerência da tarefa. Com a ajuda de obedientes subordinados e a aprovação de
Stalin, ele estabeleceu laboratórios científicos e técnicos dentro dos campos de
prisioneiros. O fato de a bomba atômica soviética ter sido inventada em curto
período de tempo não se deveu, é evidente, a Beria. As mentes não tolhidas
trabalhando em condições normais teriam, sem dúvida, resolvido o problema
bem mais rápido.
A crueldade de Beria não conhecia limites. Milhares de apelos foram
ignorados. Um exemplo é a seguinte carta escrita a ele em fevereiro de 1944:
Da prisioneira Alexandra Ivanovna Gerasimova.
Campo de Trabalho Corretivo de Temnikov.
Fui sentenciada em 1937 a oito anos de prisão. Estou pagando por meu marido V.I. Gerasimov [ex-
vice-comissário de questões internas do Azerbaijão que foi fuzilado]. Não sei até hoje qual a sua culpa.
Vivi com ele 12 anos e sei que ele foi honesto, trabalhador incansável que se dedicou ao partido e ao
país. Sinto que sou absolutamente inocente. Jamais cometi um crime, mesmo em pensamento.
Trabalhei dos 16 anos até o dia de minha prisão.
No dia de minha prisão, deixei dois bebês com minha mãe, que é totalmente desprovida de meios
para sustentá-los. As crianças estão crescendo. Elas precisam da mãe e da ajuda que uma mãe pode
proporcionar.
Rogo-lhe que aprecie meu caso e dê-me o direito de viver com meus filhos, de trabalhar e de criá-los.
Tenho vivido todos esses anos em campos, mas conservo a esperança de que a verdade e a justiça
vencerão as mentiras e as injustiças em nosso país. Tal crença tem-me dado forças para viver separada
de meus bebês.

Anexada à carta há uma nota do detetive Lyubimov da NKVD do Azerbaijão,


que fora o encarregado do “caso”: “Ela não confessou coisa alguma. Uma sessão
especial em 1939 manteve a sentença em vigor.”71 Beria simplesmente
confirmou a sentença sem tomar qualquer outra providência.
[33]
Culpa sem perdão

N em verbalmente nem por escrito, Stalin jamais ordenou


publicamente que a repressão de 1937-38 fosse intensificada.
Mesmo o discurso que fez no pleno de fevereiro-março de 1937,
publicado de forma resumida no Pravda, conclamou apenas por uma maior
vigilância contra o perigo do trotskysmo, e seguiu por esta linha. Este e os
outros discursos no mesmo pleno criaram uma atmosfera opressiva quando
foram divulgados, já que Stalin orientara dos bastidores os procedimentos. Sua
assinatura pode ser encontrada em muitos dossiês de “inimigos do povo”
presos. Por exemplo, ele editou a resolução sobre o relatório de Yezhov para o
pleno, inclusive os seguintes pontos:

b. Anotamos a fraca situação do processo investigativo. As investigações com frequência dependem


dos criminosos e de sua boa vontade em prestar ou não testemunhos completos.
c. O sistema que foi organizado para os inimigos do regime soviético é intolerável. Suas acomodações
mais parecem casas de repouso compulsório do que prisões (eles escrevem cartas, recebem encomendas
e assim por diante).72

A NKVD recebeu ordem para equacionar tais deficiências de imediato, e não é


difícil imaginar como a missão foi cumprida.
Mesmo depois da instrução de 1938, que resultou num certo
arrefecimento, Stalin determinou que alguns casos ainda em aberto fossem
completados. Em vez de uma revisão calma e racional, seguida da libertação
dos inocentes com pedidos de desculpas, as últimas ondas de prisões levaram
mais e mais pessoas para o confinamento e para os campos. Num relatório
importante endereçado a Stalin, datado de 16 de março de 1939, Ulrikh
escreveu:
De 24 de fevereiro a 14 de março de 1939, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS, em
Moscou, fez julgamentos fechados de 436 pessoas; 413 foram sentenciadas ao fuzilamento. As
sentenças se fundamentaram na Lei de 1º de dezembro de 1934.
Os acusados seguintes confessaram culpa total: S.V. Kosior, V.Ya. Chubar, P.P. Postyshev, A.V. Kosarev,
P.A. Vershkov, A.I. Yegorov, I.F. Fedko, L.M. Khakhanyan, A.V. Bakulin, B.D. Berman, N.D.
Berman, A.L. Gilinsky, K.V. Gei, P.A. Smirnov [ex-comissário da Marinha], M.P. Smirnov [ex-
comissário do Comércio] e outros.
No tribunal, alguns réus negaram os depoimentos dados na investigação preliminar, mas ficaram
completamente expostos por outras provas.73

O memorando afirma que A.I. Yegorov confessou e foi sentenciado. Isto é


falso. Yegorov não confessou e morreu quando era interrogado.
Stalin lembrou-se de que, em julho de 1938, depois do escrutínio para
membros e candidatos a membro do comitê central, Vlas Yakovlevich Chubar
fora afastado do cargo de candidato a membro do Politburo, função que
ocupava desde o XV Congresso. Ele escrevera um longo e analítico memorando
a Stalin sobre o aprimoramento da indústria de material bélico. Stalin o leu
cuidadosamente e percebeu o tom profissional dos argumentos e das propostas,
mas o fim do documento não foi do seu agrado. Chubar escreveu:

Estava me preparando para fazer um relatório sobre todas estas considerações, porém, mais uma vez,
as coisas saíram do controle, e, de novo, sem que eu tivesse culpa. Ofende e dói admitir que, por causa
da torrente de difamações e intrigas criadas pelos inimigos do povo, tive que me afastar da função,
mas caso você resolva me dar uma missão estarei, como sempre e em qualquer lugar, lutando honesta e
conscientemente pela causa, pelo florescimento da URSS e do comunismo.74

Stalin, evidentemente, achou que Chubar estava armando alguma coisa e


enviou a carta a Yezhov. Quando leu o relatório de Ulrikh sobre a execução de
Chubar e outros, colocou-o calmamente de lado e voltou sua atenção para a
solicitação de M. Mitin e P. Pospelov de permissão para escreverem uma Breve
biografia de I. V. Stalin.
Ye.P. Pitovranov confirmou que era inútil tentar convencer Stalin à
compaixão:

Quando fui preso por ser “brando com os inimigos do povo”, disse para mim mesmo que estava tudo
acabado. Nenhum membro dos altos escalões da NKVD jamais saiu vivo de Lefortovo. Dividia minha
cela com L. Sheinin, o investigador que mais tarde virou escritor. Sentado, dia após dia, esperando
pelo golpe final, também lutava dolorosamente por encontrar uma saída. E aconteceu que consegui.
Pedi um pedaço de papel e escrevi uma carta a Stalin. Como chefe de uma das principais divisões da
NKVD, eu havia me encontrado diversas vezes com ele em recepções. Não pedi coisa alguma, nem
complacência nem perdão. Escrevi apenas que tinha algumas ideias para melhorar o serviço de
informações. Dei um jeito para que o diretor da prisão viesse a minha cela e lhe disse: “Eles sabem
sobre esta carta ‘lá em cima’, portanto, se ela não chegar ao destinatário certo, será pior para você.”
Soube que falaram com Stalin sobre a carta. Ele telefonou para minha divisão e perguntou por que eu
estava preso. Foi-lhe dito. Depois de uma pausa, mandou: “Tragam-no de volta para a função. Ele
parece ser um homem inteligente.” Poucos dias depois, fui subitamente libertado. Arranquei poucas
palavras de Stalin, mas sabia que fora bem-sucedido ao lidar com a psicologia do ditador: não implorei
compaixão como os outros, simplesmente formulei ideias novas.

Mas o que funcionou para Pitovranov não teve o mesmo resultado para
Chubar e outros. Por exemplo, Eikhe escreveu para Stalin:

Cheguei à mais humilhante fase de minha vida: minha culpa genuinamente séria perante o partido e
perante você. Confessei minha culpa em atividade contrarrevolucionária. Mas eis a situação: não fui
capaz de suportar a tortura a que fui submetido por Ushakov e Nikolaev, principalmente o primeiro.
Ele sabia que minhas costelas quebradas não tinham sarado e usou isso para infligir terrível dor
durante o interrogatório, fazendo com que eu traísse outros e a mim mesmo.
Peço-lhe que reveja meu caso, não para poupar-me, mas para desvendar toda a pútrida provocação
que, como uma serpente, enleou tantas pessoas por causa de minha fraqueza e minha criminosa
injúria. Jamais traí você ou o partido. Sei que devo morrer devido a uma miserável e torpe provocação
fabricada contra mim por inimigos do partido e do povo.75

A carta ressoava a agonia da morte inescapável, mas deixava transparecer


também um delgado fio de esperança. Ao ler a carta de Eikhe, Stalin sabia que
fora ele, o homem mais importante do partido e do Estado, quem soltara a
serpente da provocação. Nem mesmo consultou outros membros do Politburo.
Uma vez dada a ordem para a prisão de Eikhe, a sorte estava lançada. Nunca
mudava de ideia.
Foi também mostrado a Stalin o depoimento de Rudzutak em seu
julgamento – um julgamento, ressalte-se, que só durou vinte minutos:

Minha única solicitação à corte é que ela notifique ao Comitê Central que ainda existe na NKVD um
centro que fabrica inteligentemente casos e força pessoas inocentes a confessarem crimes não
cometidos: os acusados não têm a oportunidade de provar que não tiveram participação nos crimes
que são mencionados nas confissões, arrancadas sob tortura. Os métodos utilizados são tais que as
pessoas têm que mentir e difamar inocentes.76
Rudzutak requereu uma audiência com Stalin, mas a resposta foi ultrajante. Ele
não esquecia que Rudzutak visitara-o em maio de 1937, pouco antes de sua
prisão. Não prestou atenção ao que Rudzutak tinha a dizer, mas ficou tentando
detectar se o alerta de Yezhov de que o interlocutor fora recrutado pela
inteligência estrangeira na conferência de Gênova de 1922 tinha alguma
validade.
Naquela noite, no ato de assinar a concordância soviética com a expedição
ao Polo Norte, notou, entre outras, a assinatura de Rudzutak e, após um
momento de hesitação, riscou-a com seu lápis. No dia seguinte, 24 de maio de
1937, ditou o texto de um memorando a ser distribuído aos membros do
comitê central. O documento especificava que existiam provas incontestáveis
de que Tukhachevsky e Rudzutak eram espiões germano-fascistas.
Tukhachevsky só viveu mais duas semanas, Rudzutak, cerca de um ano.
Incontáveis documentos atestam a monstruosa impiedade de Stalin. Na
nota de Yezhov anexada à lista de pessoas que aguardavam julgamento pelo
colegiado militar por crimes capitais, Stalin rabiscou rapidamente: “Fuzilem
todos os 138” – e Molotov adicionou sua assinatura. Ou na solicitação de
Yezhov pela execução por fuzilamento de quatro listas de 313 inimigos do
povo, 208 homens e 15 mulheres, e de duzentos militares, Stalin escreveu, “De
acordo”, e tanto ele como Molotov assinaram.77 Em 12 de dezembro de 1938,
Stalin e Molotov aprovaram a execução de 3.167 pessoas.78
O impacto de tanta desumanidade com as vidas de pessoas comuns vem
sendo muito bem descrito em outros lugares, nas publicações ocidentais e
soviéticas. Recebi numerosas cartas de cidadãos soviéticos descrevendo seus
sofrimentos. Citarei apenas duas, a primeira de Vera Ivanovna Deryuchina, de
Belaya Tserkava, que tem quase noventa anos de idade:

Quando vieram prender meu marido, que era mineiro, um stakhanovista que trabalhava em quatro
turnos, pensei que se tratava de engano. Eles disseram: “Não se lamente, sua tola. Seu marido estará de
volta em uma hora.” Mas ele só voltou 12 anos depois. E estava aleijado. O que passei, com crianças
pequenas e uma mãe idosa, é difícil de descrever. Nos expulsaram do apartamento. Por todos os lados,
éramos rotulados como a família de um inimigo do povo. Todos teríamos morrido se não contássemos
com pessoas generosas. Mencione minha história num canto qualquer de seu livro.

E outra de um moscovita, Stepan Ivanovich Semenov, que passou 15 anos nos


campos. Dois de seus irmãos foram fuzilados e sua esposa morreu na prisão.
Hoje, ele é um idoso sem filhos ou netos. Escreveu:
A pior coisa é não ter ninguém esperando por você, ninguém que precise de você. Eu e meus irmãos
poderíamos ter tido filhos e netos, famílias. O maldito Tamerlão esmagou e pisoteou tudo. Acabou
com o futuro de cidadãos que nem tinham nascido. Não permitiu que nascessem, matando mães e
pais. Levo minha vida solitária e ainda não consigo entender como não vimos que nosso “líder” era
um monstro, como o povo deixou que aquilo acontecesse?

Todos lembramos de Stalin pelas fotografias, estátuas e monumentos onde ele


frequentemente é mostrado com o braço erguido, apontando o caminho, com
um sorriso caloroso e olhos cintilantes. Poucos podem imaginar a
profundidade de sua crueldade patológica, a ausência de bondade, a astúcia que
se escondia por trás daquela fachada. Além dos líderes, políticos e de outros
campos, e dos milhões de anônimos que sofreram em suas mãos, os próprios
parentes não escaparam de sua insanidade. Um dos mais minuciosos
pesquisadores da vida de Stalin, V.V. Nefedov, descobriu muitas coisas acerca
do destino da família do tirano. No lado de sua primeira esposa, Yekaterina
Semenovna Svanidze, os seguintes foram vítimas:

1. Alexander Semenovich Svanidze, irmão de Yekaterina. Membro do partido desde 1904, foi
comissário das finanças na Geórgia e, até 1937, trabalhou no comissariado de finanças da URSS. Um
dos amigos mais próximos de Stalin, foi acusado de espionagem e fuzilado.
2. Maria Anisimovna Svanidze, esposa de Alexander. Cantora de ópera, foi presa em 1937 e recebeu a
pena de dez anos de prisão. Morreu no campo de prisioneiros.
3. Ivan Alexandrovich Svanidze, filho de Alexander. Preso como “filho de um inimigo do povo”,
retornou do exílio em 1956.
4. Maria Semenovna Svanidze, irmã de Yekaterina. Foi secretária particular de A.S. Yenukidze de
1927-34. Presa em 1937, morreu na prisão.
5. Iyulia Isaakovna (Meltser) Djugashvili, esposa do filho de Stalin, Yakov, foi presa e libertada em
1943.

No lado de sua segunda esposa, Nadezhda Sergeyevna Alliluyeva:

1. Anna Sergeyevna (Alliluyeva) Redens, irmã de Nadezhda, presa em 1948, recebeu dez anos por
“espionagem” e foi libertada em 1954.
2. Stanislav Frantsevich Redens, marido de Anna, foi comissário para as questões internas na
Transcaucásia e no Casaquistão, delegado aos XV, XVI e XVII congressos do partido, membro da
CCC e da comissão central de revisão. Preso como “inimigo do povo” em 1938 e executado em 1941.
3. Ksenia Alexandrovna Alliluyeva, esposa do irmão de Nadezhda, Pavel, foi presa em 1947 e libertada
em 1954.
4. Evgenia Alexandrovna Alliluyeva, esposa do tio de Nadezhda, P. Ya. Alliluyev, foi sentenciada a dez
anos por “espionagem” e solta em 1954.
5. Ivan Pavlovich Alliluyev (Altaisky), filho de P.Ya. Alliluyev. Membro do partido desde 1920 e editor
do jornal Sotsialisticheskoe zemledelie (“Agricultura socialista”), foi preso em 1938 e sentenciado a cinco
anos. Libertado em 1940, com a ajuda de S.Ya. Alliluyev, sogro de Stalin.

O prontuário de Ivan Alliluyev sobreviveu. Ele foi sentenciado por “filiação a


uma organização contrarrevolucionária” e cumpriu pena no “Sorok-lager”.
Descreveu seus companheiros de prisão: comandante de brigada Kholodkov,
chefe da administração do distrito militar de Moscou chamado Lapidus, e um
ingênuo homem chamado Zhilu, que se tornara “inimigo do povo” por ter,
certa vez, sentado ao lado de Kosarev na mesa diretora de uma reunião do
Komsomol na Ucrânia. Soube-se depois que o idoso sogro de Stalin decidiu
ajudar Ivan, mas não teve coragem de pedir a Stalin. Dirigiu-se, então, a Beria
e Kobulov e, provavelmente só naquela vez, Beria foi piedoso.
Stalin foi imparcial na sua crueldade: todos foram tratados igualmente, e ele
se desinteressava pela pessoa tão logo ficasse “exposta”. É provável que só tenha
havido uma exceção. Quando foi informado de que Alexander Svanidze, irmão
de sua esposa, fora sentenciado à morte como espião alemão, vociferou:
“Vamos esperar que ele peça perdão.” Antes de sua execução, contaram a
Alexander o que Stalin dissera, ao que ele replicou: “Perdão de quê? Não
cometi crime algum.” Foi devidamente fuzilado. Quando Stalin soube da
maneira como o amigo de infância e cunhado morrera, disse: “Vejam como ele
era teimoso: preferiu morrer a pedir perdão.”
PARTE VII
No limiar da guerra

O maior dos erros é imaginar que nunca erramos.


omas Carlyle
[34]
Manobras políticas

E ra uma escura noite de inverno, em 1939. A laboriosa Moscou dormia.


As únicas luzes amortecidas vazavam pelos postigos cerrados das janelas
dos comissariados, do prédio do Estado-maior e da Lubyanka, o vasto
e monolítico quartel-general da NKVD. Membros do Politburo, comissários e
líderes militares debruçavam-se, como sempre, sobre o trabalho noturno. O
hábito de trabalhar até altas horas surgira gradualmente. Stalin já tinha o
costume de não ir para a cama antes da meia-noite, porém, com o agravamento
da situação internacional, passou a ficar no escritório até duas ou três da
manhã, às vezes, até mais tarde. Quanto à NKVD, seu período usual de maior
atividade era à noite.
Stalin burilava o discurso que faria no XVIII Congresso do partido a ser
realizado em 10 de março de 1939 por decisão do pleno de janeiro. O
rascunho inicial para o discurso, preparado pelo aparato do Comitê Central, já
estava irreconhecível. Stalin reescrevera algumas vezes dezenas de páginas.
Queria transmitir duas ideias. A primeira, que o mundo estava prestes a
experimentar novas convulsões. O sistema pós-guerra de tratados seria
desmantelado. As nuvens de uma nova guerra mundial baixavam no horizonte:
“Uma nova guerra imperialista tornou-se um fato”, como ele escreveu. Em
segundo lugar, queria destacar o sucesso do socialismo. Na sua opinião, o país
tornara-se mais forte com o esmagamento dos “capitulacionistas e
destruidores”. Depois de ler diversas vezes as páginas de estatísticas, escreveu:

Sobrepujamos os principais países capitalistas em tecnologia de produção e no ritmo de


desenvolvimento industrial. Isto é muito bom. Mas não é suficiente. Temos que ultrapassá-los
também no sentido econômico. Podemos e vamos fazê-lo. Temos que forjar novos quadros para a
indústria. Mas leva tempo, e muito tempo. Não podemos superar economicamente as nações
capitalistas mais importantes em dois ou três anos. Isto demandará mais tempo.1

Chamou então Poskrebyshev e pediu a lista dos delegados do último


congresso e os nomes dos que tinham sido eleitos para o Comitê Central. Ao
abrir a pasta delgada, viu que talvez mais da metade dos nomes eram-lhe bem
conhecidos; alguns, dos dias do comissariado para as nacionalidades, outros, da
coletivização, e assim por diante. Conhecia praticamente todos os delegados do
Exército. Pesquisou mais e sublinhou os nomes de ex-membros e ex-candidatos
a membros do Politburo: Rudzutak, Kosior, Chubar, Postyshev. Estava feliz por
ter se livrado deles, que viviam insistindo para que ele investigasse a NKVD e
“seus ninhos de provocadores”.
Notou ao folhear o arquivo que muitos nomes estavam assinalados com um
“vn”, feito a lápis por Poskrebyshev, algumas vezes com uma data ao lado.
Percebeu que a data indicava quando a sentença, normalmente a morte, fora
executada e, aos poucos, deu-se conta de que “vn” significava “inimigo do
povo”*. Começou a especular sobre quem ficara de fora, mas tranquilizou-se ao
lembrar que três em cada dez delegados do XVII Congresso votaram contra ele.
No dia seguinte, disse a Molotov: “Acho que nos livramos completamente do
peso-pesado da oposição. Precisamos de novas forças, de sangue novo no
partido.” Uma declaração branda que não casava com a realidade. Desde o
XVII Congresso, o partido perdera cerca de 330 mil membros. Agora,
precisava ser recompletado por uma geração jovem stalinista. Em 1939, mais
de um milhão de pedidos de filiação seriam aceitos pelo partido. Tornava-se
um partido stalinista.

Voltando ao relatório, Stalin acrescentou:

Nos meios ocidentais, afirmam alguns que o expurgo dos espiões, assassinos e saqueadores das
instituições soviéticas – da laia de Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Yakir, Tukhachevsky, Rozengolts,
Bukharin e outros – “abalou” o sistema soviético e causou desintegração. Mexericos baratos como esses
só merecem nosso desprezo. Em 1937, Tukhachevsky, Yakir, Uborevich e outros patifes foram
executados. Houve, então, eleições para o Soviete Supremo da URSS. O governo soviético recebeu
98,6% de todos os votos. No começo de 1938, Rozengolts, Rykov, Bukharin e outros da mesma
escória foram fuzilados. Tiveram lugar, em seguida, eleições para os sovietes supremos das repúblicas.
O governo soviético recebeu 99,4% dos votos. Onde, então, os sinais da “desintegração” e por que não
se revelaram nas eleições?2
A despeito da situação evidentemente enfraquecida do partido e do extermínio
de seu elemento intelectual juntamente com os quadros técnico e militar, Stalin
continuava a sustentar que a “liquidação persistente dos trotskystas e de outros
agentes duplos” seria justificada com o tempo.
De qualquer forma, desde os primeiros meses de 1939, ele voltara a se
preocupar mais com os assuntos externos. Acertadamente, não achava que a
Segunda Guerra Mundial começara em 1º de setembro de 1939 com a invasão
da Polônia por Hitler; o Japão já vinha combatendo na Coreia; a Itália havia
invadido a Etiópia e a Albânia; alemães e italianos tinham intervindo contra a
Espanha republicana; a Alemanha anexara a Áustria e, exatamente no dia em
que foi aberto o XVIII Congresso, ocupou a Tchecoslováquia. A conflagração
se alastrava em todas as direções. Stalin perguntou por que tantos países faziam
concessões sistemáticas aos agressores, e respondeu à sua própria indagação: “A
principal razão é porque a maioria dos países não agressivos, sobretudo
Inglaterra e França, não subscreve a segurança coletiva e a resistência conjunta
aos agressores, e mudou da posição de não intervenção para a de
‘neutralidade.’”3
Ao ouvir as notícias, durante o XVIII Congresso, de que a Alemanha
tomara a província de Memel, na Lituânia, e de que o presidente Hacha da
Tchecoslováquia assinara o Pacto de Berlim, que marcava o fim do Estado
tchecoslovaco, Stalin determinou que Litvinov, comissário das relações
exteriores, enviasse uma nota a Berlim por intermédio de Schulenburg, o
embaixador alemão em Moscou, condenando fortemente as ações germânicas e
chamando a atenção dos líderes alemães para o fato de que “o governo soviético
não pode reconhecer a inclusão das terras tchecas no império alemão,
tampouco de terras da Eslováquia, de forma alguma”.4
Nas condições de um conflito mundial, era essencial ter uma estratégia que
permitisse à URSS dar continuidade aos planos de desenvolvimento social e
econômico do país, buscando ao mesmo tempo garantir sua defesa. Segundo
Stalin, os advogados da não intervenção “ingressavam num jogo grande e
perigoso”. A URSS viu-se compelida a tomar parte nessas manobras políticas
mesmo sem ter um objetivo definido em vista. A questão normalmente
discutida, com a presença de Litvinov em diversas ocasiões, foi sobre que linha
assumir. O período de lua de mel das frentes populares na Europa chegara ao
fim. O continente parecia silenciar à espera das hordas de Hitler. Franco
triunfou na Espanha, e os partidos marxistas, muitos deles esmagados ou na
clandestinidade, olhavam cheios de expectativa para Moscou. Mas a influência
do Comintern, graças a Stalin, havia minguado.
Ao identificar a política do partido com a do Comintern e ao impor seus
ditames ao corpo internacional de comunistas, Stalin desacreditara aquele
órgão. O Comintern e suas organizações irmãs – a Juventude Internacional
Comunista, o Sindicalismo Internacional e o Comitê Internacional de
Assistência ao Trabalho – foram aniquilados pela criminosa repressão de 1937-
38. Os líderes dos partidos comunistas de Áustria, Hungria, Alemanha,
Letônia, Lituânia, Polônia, Romênia, Finlândia, Estônia e Iugoslávia, que
tinham sido banidos de seus países e buscaram asilo em Moscou, foram os mais
atingidos. A lista de vítimas é longa, mas alguns nomes devem ser
mencionados: os líderes alemães H. Remmele, H. Eberlein, H. Neumann; os
poloneses E. Pruchniak, J. Lenski, M. Koszutska; o secretário-geral grego A.
Kontas; o iraniano A. Sultan-Zade; os iugoslavos M. Gorkic, V. Copic, M.
Filippovic; os finlandeses E. Hülling, A. Shotman e G. Rovio; Fritz Platten, o
amigo suíço de Lenin; os húngaros Bela Kun e L. Gavro; e o búlgaro P.
Avramov.
Stalin foi particularmente cínico no tratamento ao partido comunista
polonês, cuja liderança ele praticamente eliminou por completo. Bielewsky, o
último membro do Politburo do partido polonês, foi preso em setembro de
1937. Embora os arquivos não contenham provas documentais, evidências
secundárias indicam que, quando foi mostrada a Stalin a minuta do decreto do
Comintern abolindo o partido polonês porque “agentes do fascismo polonês
trabalhavam nele”, sua resposta foi da maior eloquência: “Isto já deveria ter
sido feito há dois anos. Tinha que ser abolido, mas não vejo a menor
necessidade de que isto seja mencionado para a imprensa.” Na realidade, o
decreto nem sequer foi discutido em uma sessão plenária do Comitê Executivo
do Comintern, recolheram apenas os votos de seis de seus 19 membros.
Ao fazer da organização do Comintern um braço de seu próprio aparato,
Stalin provocou acentuado aumento dos métodos repressivos daquele órgão, o
que, por sua vez, enfraqueceu muito o controle do comunismo internacional
sobre as massas, favorecendo de forma substantiva a ascensão do fascismo.
Quanto à social-democracia, Stalin colocou-a no mesmo nível do fascismo;
mais ainda, culpou o “reformismo” e a “traição” dos social-democratas pelo
declínio da onda revolucionária no Ocidente. Este foi outro erro que teria
consequências sérias e que emergiu de raízes profundas. Temos que retornar
brevemente aos anos 1920. Em janeiro de 1924, pouco antes da morte de
Lenin, houve um pleno do Comitê Central no qual foi discutido, entre outros
assuntos, um relatório de Zinoviev sobre a situação internacional. Ao criticar
Radek por enganos cometidos na “questão alemã”, Stalin apareceu com a ideia
tremendamente falaciosa, a qual permeou aos poucos o pensamento do
Comintern, de que a social-democracia era a principal inimiga dos
movimentos trabalhista e comunista, de que ela proporcionava as condições
para o fascismo e, por isso, deveria ser combatida até a morte.5 Aferrou-se a tal
ideia e, assim, em vez de unir a classe operária na luta contra Hitler, Stalin
jogou o partido comunista contra os social-democratas e enfraqueceu a
resistência ao fascismo, que era a verdadeira ameaça aos movimentos trabalhista
e comunista.
Voltando a 1939, entre as opiniões formuladas por seu entourage sobre
questões internacionais, Stalin talvez só tenha considerado as de Molotov. Só
Molotov, considerou ele, tinha a exata combinação de flexibilidade e firmeza, e
foi com Molotov que montou a posição apresentada ao XVIII Congresso.
Faltavam poucas horas para a abertura do congresso, quando Stalin reformulou
quatro pontos que expressavam duas ideias correlatas.
Primeira, a de que deveria continuar a busca de caminhos pacíficos para
impedir, ou ao menos adiar, o estalar da guerra, essencialmente pela aplicação
do plano soviético para a segurança coletiva da Europa. Não se deveria permitir
a formação de uma frente ampla antissoviética. Fazia-se necessário observar a
máxima segurança e desviar as provocações inimigas.
Segunda, a de que todas as medidas necessárias, até mesmo as mais
extremas, deveriam ser tomadas para preparar e aperfeiçoar a defesa do país, em
especial o aprestamento do Exército Vermelho e da Marinha. (Questões sobre
maior reforço da defesa do país seriam debatidas na Décima Oitava
Conferência do Partido, em fevereiro de 1941.)
Stalin se preocupava com o aprimoramento das agências de política exterior
do país pela maximização das oportunidades diplomáticas. Litvinov, que tinha
ideias próprias, não era do agrado de Stalin, e, logo depois das festividades do
Primeiro de Maio de 1939, Beria voltou a atenção para aquele comissário.
Surgiram os sinais de prisão iminente: um vácuo criou-se em torno de Litvinov,
ele não foi convidado para reuniões importantes, a NKVD fez “visitas”
noturnas a seus assistentes e a pessoas de suas relações, e ele foi afastado do
Comitê Central. O pior parecia inevitável. Seus arquivos foram lacrados no
comissariado. A NKVD esquadrinhou as anotações que ele fazia em seus
diários diplomáticos. Entre elas, estava um de seus últimos relatórios para
Stalin, que dizia:

Anexo um relato de minha conversa de hoje com o embaixador inglês e uma tradução da minuta da
declaração inglesa. [...] Ela só convida para uma reunião de consulta, ou seja, exatamente a mesma
coisa que estamos propondo. A impressão é a de que um novo pacto dos quatro, excluindo Alemanha
e Itália, terá alguma importância política. Não creio que Beck** concorde em assinar nem mesmo essa
declaração.6

Litvinov tinha esperança de formar uma aliança antifascista com as


democracias ocidentais. Numa carta de março de 1939 a Ya.Z. Surits,
plenipotenciário soviético na França, comunicou que “demonstramos nossa
concordância explícita com a proposta direta de uma declaração dos quatro.
[...] Decidimos, por nós mesmos, não assiná-la sem a Polônia”. A resposta da
Polônia, foi, no entanto, “suficientemente clara para percebermos que era
negativa”.7 Com o intuito de oferecer a melhor proteção contra uma guerra
mundial, Litvinov também acreditava que uma aliança entre a URSS e as
democracias ocidentais protegeria os pequenos estados prestes a ser engolidos
pela Alemanha nazista. Depois de receber Baltrushaitis, o enviado lituano a
Moscou, Litvinov anotou em seu diário que este lhe trouxera uma cópia do
acordo germano-lituano sobre Memel e lhe descrevera os detalhes. Ribbentrop
fora extremamente rude com Ju, o ministro do Exterior lituano, Urbshis,
entregando-lhe a minuta do acordo e exigindo sua assinatura imediata.
Quando Urbshis protestou, Ribbentrop declarou que a cidade de “Kovno
[Kaunas] seria totalmente varrida do mapa se o acordo não fosse logo assinado,
e que os alemães estavam com tudo preparado para cumprir a ameaça.
Ribbentrop, no final, concordou em deixar que Urbshis fosse a Kovno,
contanto que retornasse imediatamente com o acordo assinado”.8
Como Litvinov era de descendência judia – seu nome de origem era Vallakh
– deve ter ficado óbvio para Stalin que seu comissário de relações exteriores não
poderia confiar em Hitler e que continuaria a insistir em uma aliança com as
democracias ocidentais. Nessas circunstâncias, Stalin não poderia ter confiança
nele e, de fato, disse a Beria para cerrar a observação sobre o comissário, mas,
talvez num capricho de tirano, ordenou que nada de pior fosse feito. Como
não existem provas documentais, Stalin deve ter dado instruções orais para que
Litvinov fosse destituído e substituído por Molotov, um russo “de verdade”. A
remoção de Litvinov foi interpretada em Berlim como “bom sinal”. O enviado
soviético temporário a Berlim, G.A. Astakhov, informou a Moscou que os
alemães viam agora possibilidade de melhorar as relações com a URSS: “As
precondições para tanto foram melhoradas com a saída de Litvinov.”9 Stalin
achou que ao colocar naquela função o homem considerado a segunda pessoa
do Estado, mostrava ao mundo a importância que a URSS emprestava às
questões internacionais. Talvez, também, o russo Molotov fosse mais palatável
para Hitler que o judeu Litvinov, e vice-versa. A documentação disponível,
todavia, nada diz a respeito de tal suposição.
Em 1938, enquanto Hitler se preparava para tomar conta da
Tchecoslováquia, Stalin deu ordens a Litvinov em diversas oportunidades (em
março, abril, maio, junho e agosto) para procurar maneiras de tornar pública a
disposição e presteza da União Soviética em defender aquele país. Em 20 de
setembro, Moscou respondeu afirmativamente a uma consulta de Praga que
perguntava se a URSS estava disposta a defender a Tchecoslováquia contra a
invasão iminente.10 O comissário da Defesa assinou uma ordem para que
tropas fossem concentradas no distrito militar de Kiev, enquanto
deslocamentos operacionais de forças eram executados no distrito militar
especial bielorrusso para a formação do grupamento apropriado. Os distritos
fortificados e a defesa antiaérea foram postos em prontidão para o combate. No
fim de setembro, o chefe do Estado-maior, B.M. Shaposnikov, enviou um
telegrama aos distritos militares do oeste: “Integrantes do Exército Vermelho e
oficiais subalternos temporários que estejam servindo não deverão ser
licenciados até que haja notificação específica.”11 A mobilização parcial foi
desencadeada em diversos distritos. Mais de setenta divisões foram colocadas
em aprestamento operacional. Foi nessa ocasião que se assinou o Acordo de
Munique, e Stalin entendeu que o medo do “contágio comunista” era mais
forte que a voz da razão. Ele estava certo.
Sob pressão inglesa e francesa, o governo tcheco capitulou a Hitler. A
França praticamente renegou seu acordo com os tchecos. Naquelas condições,
raciocinou Stalin, era crucialmente importante evitar que os estados
imperialistas formassem um bloco contra a União Soviética. Primeiro Litvinov
e depois Molotov foram instruídos a explorar maneiras de desarticular a trama
imperialista contra a URSS. Stalin se inquietava bastante com o conteúdo do
Acordo de Munique, com o texto da declaração anglo-germânica de não
agressão assinada em setembro de 1938 e com os termos do acordo similar
franco-germânico assinado em dezembro. Tais entendimentos, na realidade,
conferiam liberdade de ação a Hitler no leste e poderiam servir de base para
uma aliança antissoviética. Stalin sabia que, se isso acontecesse, seria difícil
imaginar posição pior para o país.
Mesmo antes do XVIII Congresso, o secretário-geral determinou que o
comissário das relações exteriores abordasse Inglaterra e França para que se
estudasse a proposta de conversas tripartites com o objetivo de procurar
maneiras de barrar novas agressões nazistas. Para colocar pressão sobre Hitler, a
Inglaterra e a França concordaram, mas suas verdadeiras intenções logo
afloraram. Diversas fontes indicam que Londres e Paris desejavam, sobretudo,
dirigir a agressão de Hitler para o leste; portanto, ouviram com relutância a
proposta soviética de um baluarte defensivo. Litvinov escreveu a I.M. Maisky, o
enviado soviético em Londres: “Hitler, no momento, dá a impressão de não
entender os sinais ingleses e franceses de liberdade de movimento no leste, mas
talvez entenda, se Inglaterra e França fizerem mais do que insinuações em suas
propostas.”12
Os diários de Molotov e de seu assistente, V.P. Potemkin, ambos partícipes
de frequentes encontros com os embaixadores William Seeds e P. Naggiar,
inglês e francês, respectivamente, mostram que, em termos gerais, aqueles
diplomatas não descartavam a possibilidade de uma aliança militar com a
URSS, mas se recusavam claramente a discutir questões concretas. Repetidas
vezes perguntaram se a remoção de Litvinov como comissário do Exterior
significava uma mudança na política externa soviética.13 Durante uma conversa
em 11 de maio de 1939, G. Pailliard, chargé d’affaires francês interino,
perguntou a Molotov:
“A política externa soviética será a mesma que era com Litvinov?”
“Sim”, replicou Molotov. “Alterações ocorrem com mais frequência nos
governos inglês e francês sem causar dificuldades especiais.”
“Devemos supor que o artigo no Izvestiya intitulado ‘Sobre a Situação
Internacional’ expressa a opinião do governo?”
“É a opinião do jornal. O Izsvestiya é o órgão dos sovietes, dos
representantes dos trabalhadores, que são órgãos locais. O Izsvestiya não deve
ser encarado como oficial.”14 O cinismo de Molotov ia a esse ponto.
Oficialmente, ele não se afastou da linha de Litvinov, mas observadores
mais perspicazes sabiam que a Alemanha tinha agora uma oportunidade
melhor para obstar a formação de uma aliança entre a URSS e as democracias
ocidentais, e a Alemanha tudo fez para explorar tal possibilidade. Na véspera
das conversas tripartites, Schulenburg conseguiu uma audiência com Molotov
e disse a ele com todas as letras que a URSS e a Alemanha não tinham
diferenças políticas e que as chances eram muito grandes para que seus
interesses mútuos fossem pacificamente compatibilizados. Molotov, ainda
inseguro sobre o rumo que as conversações tripartites tomariam, respondeu
evasivamente que “o governo soviético é favorável às gestões do governo alemão
para melhorar nossas relações”.15 As missões inglesa e francesa chegaram então
a Moscou, e Stalin aprovou a linha que seria seguida pela delegação soviética
naquelas conversações.
Nos primeiros dias de agosto de 1939, a equipe de Beria preparou dossiês
extensos sobre os membros das missões militares inglesa e francesa, inclusive
Drax, Barnett, Heywood, Doumenc, Valin e Vuillaume. Resultou que Drax
fora recentemente nomeado assistente do rei e recebera a Ordem de São
Estanislau czarista; Doumenc seria membro do conselho supremo francês de
defesa em novembro e era especialista na mecanização do Exército, mas nunca
se envolvera com a política.16 Stalin não se interessou por informações deste
tipo, mas logo viu que, afora uns poucos generais, as delegações eram
compostas em sua maioria por oficiais relativamente novos. Disse a Molotov e
Beria:

“Eles não estão sendo sérios. Essa gente não tem autoridade de decisão. Londres e Paris estão de novo
jogando pôquer, mas gostaríamos de saber se eles são capazes de levar adiante manobras europeias.”
“Ainda assim, acho que as conversações devem ter lugar”, disse Molotov encarando Stalin.
“Bem, se têm que acontecer, que aconteçam”, concluiu Stalin brandamente.
Enquanto prosseguiam os encontros das três delegações militares, o quadro real logo se revelou. As
potências ocidentais não desejavam estender suas garantias aos estados bálticos. Ademais, estavam
facilitando a reaproximação destes últimos com a Alemanha. Ao mesmo tempo em que as
conversações ocorriam, Hitler impunha condições à Letônia e à Estônia. Sob o governo do almirante
Horthy, a Hungria começou a tomar uma linha hostil em relação à URSS. A política do governo
polonês permaneceu praticamente inalterada. Nas reuniões que teve com Hitler, em janeiro de 1939,
o coronel Beck afirmara que “a Polônia não atribui significação aos chamados sistemas de segurança”,
que estavam de todo falidos. Ribbentrop respondeu que Berlim esperava que “a Polônia tome uma
posição mais francamente antissoviética, caso contrário não teremos provavelmente interesses
comuns”.17 Sabe-se hoje que o rei Carol II da Romênia, durante uma visita secreta à Alemanha,
dissera a Hitler que “a Romênia é predisposta contra a Rússia, mas não podemos dizer isto
abertamente porque somos vizinhos. Não obstante, a Romênia jamais permitirá a passagem de tropas
russas, embora frequentemente se afirme que uma promessa de permissão foi feita à Rússia. Não é o
caso”.18

Como chefe da delegação soviética, Voroshilov tinha diretrizes a seguir,


aprovadas por Stalin em 4 de agosto, de título “Considerações para as conversas
com a Inglaterra e a França”, que apontavam a Alemanha como agressor
principal e listavam cinco situações em que “nossas forças deverão se
movimentar”. Os comissariados da Defesa e do Exterior tinham computado
com precisão a quantidade de carros de combate, de artilharia e o número de
divisões que Rússia, Inglaterra e França teriam que desdobrar, “dependendo do
cenário”, também previram a direção dos ataques principais, a ordem de
operações para a coordenação das ações, e assim por diante. A URSS estava
disposta a entrar com 120 divisões:

Na eventualidade de um ataque contra nós por parte do agressor principal, devemos exigir a
apresentação pela Inglaterra e pela França de 86 regimentos de infantaria, seu avanço decisivo por
volta do décimo sexto dia de mobilização, a mais ativa participação da Polônia na guerra e também a
passagem irrestrita de nossas tropas, trens e caminhões através do corredor de Vilna*** e da Galícia. O
cenário no qual o principal agressor pode atacar a URSS envolveria o uso pela Alemanha dos
territórios finlandês, estoniano e letão, e possivelmente o romeno.19

Bem cedo ficou patente, no entanto, que as missões ocidentais tinham ido a
Moscou para emitir impressões gerais e para informar Londres e Paris a respeito
dos “planos em grande escala de Moscou”, e não para chegar a um acordo
concreto e exequível.
Mas Stalin sentiu necessidade de abordar novamente a Inglaterra e a França
com uma proposta definida para um acordo de cinco ou dez anos de assistência
mútua, incluindo de obrigações militares. Na essência, tal assistência significava
que, em caso de agressão contra qualquer dos signatários, os outros se
obrigavam a prestar auxílio. A URSS definiu com exatidão quais países entre o
mar Báltico e o mar Negro tinha em mente. Londres e Paris não deram
resposta. Stalin enviou mensagens para apressá-los, mas os representantes
ocidentais não tinham autoridade para tomar decisões tão importantes. Como
Stalin acabou sabendo, seus parceiros de negociação estavam, além do mais,
dando continuidade ao esforço secreto para chegar a um entendimento
aceitável com Hitler. Estava claro que Inglaterra e França procuravam apenas
ganhar tempo enquanto buscavam o resultado mais favorável para suas
perspectivas, sem levar em conta os interesses soviéticos. Com efeito, as
potências ocidentais não apresentaram ideias concretas para uma ação conjunta
contra a Alemanha. Sua intenção era claramente deixar que a URSS
desempenhasse o papel principal na resistência a uma possível agressão alemã,
sem dar garantias de que assumiriam uma parcela das dificuldades.
Stalin perdeu a paciência. Como regra, ele chegava aos seus objetivos dando
pequenos passos seguros, mas, naquela ocasião, comportou-se como um
jogador de xadrez que corria contra o tempo. Ele acabou de uma vez por todas
com as conversações tripartites na manhã de 20 de agosto, quando Voroshilov
mostrou-lhe uma nota do almirante Drax, ao qual, como ao seu
correspondente francês, fora pedida uma resposta rápida às propostas
soviéticas. Drax escreveu:

Caro marechal Voroshilov


Lamentamos ter que informar que, até agora, as delegações inglesa e francesa não receberam resposta
alguma para a questão política que o senhor solicitou que transmitíssemos aos nossos governos.
Em vista do fato de que devo presidir a próxima sessão, sugiro que nos encontremos às 10h de 23 de
agosto, ou mesmo antes, se uma resposta chegar nesse meio-tempo.
Atenciosamente
Drax, almirante-chefe da delegação inglesa.20

“Chega desse jogo”, disparou Stalin irritado. Naquele momento, ele


dificilmente achou que haveria qualquer reunião em 23 de agosto. Mas houve
uma, embora com participantes totalmente diferentes. Reuniões com membros
do Politburo, militares e diplomatas ocorriam todos os dias no espaçoso
escritório de Stalin, no Kremlin. Pelo fim do verão de 1939, ficou evidente
para a liderança soviética que, com a Alemanha nazista a oeste e o Japão
militarista a leste, não havia em quem se apoiar. O argumento do secretário-
geral no XVIII Congresso parecia justificado: o anticomunismo e a falta de
vontade inglesa e francesa para seguir uma política de segurança coletiva
abriram as comportas para a agressão por parte do pacto anti Comintern.
Londres e Paris pareciam cegas para o perigo real, movidas pelo interesse
próprio e pelo ódio ao socialismo. Políticos míopes diziam: deixemos que
Hitler faça sua cruzada anticomunista no leste. Para eles, Hitler era o mal
menor.
A União Soviética foi deixada com uma opção muito limitada, mas Stalin
conscientizou-se de que a devia aceitar, por mais negativa que fosse a reação em
outros países. Pragmático como era, abandonou os princípios políticos e, uma
vez seguro de que as conversações anglo-franco-soviéticas não dariam em nada,
recorreu à opção alemã assiduamente oferecida por Berlim. Seu raciocínio foi o
de que não havia outra escolha. A alternativa era pôr a URSS em confrontação
com a ampla frente antissoviética, o que seria bem pior. Ele não tinha tempo
para considerar o que as futuras gerações diriam. A guerra chegava e ele
precisava adiar sua deflagração a qualquer custo.
Depois de debater com o Politburo as providências para ativar o contato
com Berlim, e que instruções deveriam seguir para o enviado soviético lá,
determinou que Dvinsky, assistente de Poskrebyshev, descobrisse toda a
literatura disponível sobre Hitler, fascismo e suas origens sociais. Queria
entender melhor o fenômeno do nacional-socialismo, sobre o qual tinha dito
no XVII Congresso: “Por mais profunda que seja a investigação, é impossível
achar um átomo de socialismo nele.”21 Naquela noite, passou um bom tempo
com Mein Kampf de Hitler, sublinhando as passagens em que o autor escreveu
sobre a impulsão eterna da Alemanha para o sul, seu novo interesse no leste e
na colonização de novas terras: “E quando se fala em terras novas na Europa, só
se pode pensar na Rússia e em suas áreas fronteiriças. [...] O objetivo futuro de
nossa política externa não deve ter uma orientação para o Ocidente ou para o
Oriente, mas uma política para leste no sentido da aquisição do território que
necessitamos para nossa nação germânica.” Ao ler aquelas linhas, Stalin viu que
nada deteria Hitler. A pergunta era: quando ele daria a partida?
Stalin leu também o livro de Conrad Heyden, e History of German
Fascism, e grifou as observações espalhafatosas que Hitler fizera, já em 1922,
sobre a posição de poder que os judeus, supostamente, tinham conseguido na
Alemanha. Stalin sabia que, algum dia, combateria aquele degenerado.
Portanto, o primeiro homem no Estado socialista, investido de todo o poder
político, estava lidando com um líder que personificava um Estado extremista e
militarista. Tudo resultaria na colisão de dois ditadores ou na sua aliança?
Estaria Trotsky certo ao dizer que Stalin era igual a Hitler? O secretário-geral
continuou a leitura do livro de Heyden e anotou o trecho em que o autor
afirma: “Hitler não sabe o que promete, suas promessas não podem ser as de
um parceiro confiável. Ele as quebra de acordo com seus interesses...”22 Era este
o homem que lhe oferecia um pacto de não agressão? Motivado, como Hitler
dizia, pelo “clamor da Providência”, consideraria um pacto com Stalin como
um pacto com o diabo, sem qualquer obrigação ou restrição.
No material trazido por Dvinsky havia relatórios de Berlim. O serviço
soviético de informações levantara o poderio das Forças Armadas alemãs no
verão de 1939: a força terrestre tinha um efetivo aproximado de 3,7 milhões de
homens e quase metade dela era mecanizada, 3.195 carros de combate, mais de
26 mil canhões e morteiros, um efetivo de quase 400 mil na Força Aérea, com
mais de 4 mil aviões, e um efetivo naval de cerca de 160 mil homens, com 107
navios de guerra. Sem dúvida, a Força mais poderosa no mundo capitalista.
Milhares de antifascistas haviam sido executados, enquanto cerca de um milhão
de alemães definhavam nas prisões e campos de concentração – números,
afinal, que não impressionariam Stalin.
Os comentários zombeteiros que Stalin fizera sobre a guerra iminente
pareciam agora fora de propósito e ingênuos. Em 1934, em meio a aplausos
estrondosos, ele dissera que a guerra seria

mais perigosa para a burguesia, porque seria travada não apenas nos fronts, mas também na retaguarda
do inimigo; os burgueses não deveriam duvidar de que os incontáveis trabalhadores amigos da URSS,
na Europa e na Ásia, atacariam a retaguarda dos opressores que dessem início a uma guerra criminosa
contra a pátria-mãe dos operários de todas as terras.23

Deixando de lado os relatórios de informações, ele abriu um livro chamado


Germany Arms, da escritora inglesa Dorothy Woodman, e ficou
particularmente impressionado com o capítulo sobre a preparação ideológica
para a guerra. A simples escala do condicionamento ideológico do povo alemão
e das Forças Armadas foi uma revelação. Os apelos e as palavras de ordem eram
dirigidos menos à razão e ao intelecto que ao instinto e ao sentimento
nacionalista. Os rituais e o fanatismo cego de toda uma hierarquia de führers
eram concebidos para obumbrar a consciência das massas e para treinar
executantes irracionais e cruéis. Os ideólogos fascistas haviam criado uma
atmosfera de exaltação psicológica, histeria nacionalista e psicose política, e
utilizavam-na para seus próprios objetivos. Stalin sabia que seria perigoso
entrar num acordo com pessoas assim. Porém, sem um acordo com a Inglaterra
e a França, ele, simplesmente, não estava pronto para enfrentar Hitler.
Stalin estava maduro para uma decisão. Ou fazia um tratado com a
Inglaterra e a França, ou um pacto com Hitler, ou, a pior hipótese, permanecia
no isolamento. A primeira opção era a mais desejável, já que faria a URSS
partícipe de uma coalizão antifascista, com enorme potencial material e
vantagem moral. Mas, premido pelo tempo, ele não podia esperar mais,
particularmente porque Londres e Paris não se mostravam muito inclinadas a
uma reaproximação com a URSS. O erro de Stalin foi exagerar a possibilidade
de que a Inglaterra e a França formassem um bloco com a Alemanha nazista.
Uma situação muito peculiar surgira em agosto. As conversações tripartites
não progrediam. Ao mesmo tempo, Moscou fazia desesperadamente contato
com Berlim. Poucas pessoas sabiam que conversas secretas anglo-germânicas
também ocorriam em Londres. O embaixador alemão, Dirksen, e o
representante do primeiro-ministro, Horace Wilson, tentavam “construir
pontes”. Stalin leu o despacho de Astakhov enviado de Berlim em 12 de
agosto: “O conflito com a Polônia está em uma escalada em ritmo crescente,
eventos decisivos podem ocorrer a qualquer momento. [...] A imprensa está
sendo perfeitamente correta conosco. Em contraste, o ridículo em relação à
Inglaterra tem ultrapassado os limites do decoro.”24 No dia seguinte, Astakhov
reportou que “o governo alemão aceitou nossa oferta de conversações para
melhorar as relações e deseja iniciá-las o mais breve possível”.25
Em 15 de agosto, Schulenburg entregou a Molotov sua nota, que dizia:

O governo alemão é de opinião que, entre o mar Báltico e o mar Negro, não existe questão que não
possa ser resolvida em completo acordo pelos dois países. Isto inclui a questão marítima do Báltico, os
Estados bálticos, a Polônia, o Sudeste, e outras.26

Em 17 de agosto, Molotov recebeu Schulenburg, o qual declarou que as


conversações deveriam começar com Ribbentrop naquela semana. Falando em
nome de Stalin, como deixou claro, Molotov asseverou que “antes de
começarem as conversações sobre a melhora das relações políticas, devem ser
concluídas as conversações sobre o acordo de crédito e comércio”.27
Em 19 de agosto, Schulenburg voltou a se encontrar com Molotov e relatou
que “há medo em Berlim de um conflito entre Alemanha e Polônia. Os
acontecimentos futuros não dependem da Alemanha”. Insistiu em que
Ribbentrop fosse imediatamente convidado a Moscou para concluir o tratado
de não agressão. Molotov concordou com uma visita em 26-27 de agosto.28 O
acordo sobre crédito foi assinado com velocidade relâmpago. Hitler pressionava
bastante; 26 de agosto era muito tarde para ele. Aquela era a data em que
pretendia atacar a Polônia. Stalin, de maneira nada característica, concordava
com Berlim ponto após ponto. Hitler, finalmente, perdeu a paciência e enviou
seu famoso telegrama de 20 de agosto, do qual seguem alguns trechos:

Ao Sr. Stalin
Moscou
20 de agosto de 1939
1. Saúdo sinceramente a assinatura do novo acordo de comércio germano-soviético como um primeiro
passo para a reestruturação das relações germano-soviéticas.
2. Assinar um pacto de não agressão com a União Soviética significa para mim a consolidação da
política alemã de longo prazo...
3. Aceito a minuta de pacto de não agressão que vosso ministro do Exterior Molotov transmitiu, mas
considero urgentemente necessário elucidar diversas questões relacionadas com ele da forma mais
rápida possível ...
4. A tensão entre a Alemanha e a Polônia tornou-se insuportável. O comportamento da Polônia em
relação a uma grande potência é tal que uma crise pode ocorrer a qualquer momento...
5. Penso que, se é intenção dos dois estados agirem em conjunto nas novas relações, seria bom não
perder mais tempo. Assim, novamente proponho que o senhor receba meu ministro do Exterior na
terça-feira, 22 de agosto, ou, o mais tardar, na quarta-feira, 23 de agosto [...]

Ficaria muito satisfeito em receber sua resposta imediata.


Adolf Hitler29

O Führer tomara a peito a iniciativa. O tom de ultimato era evidente. Stalin


leu o telegrama diversas vezes, sublinhando com de azul a frase “uma crise pode
ocorrer a qualquer momento” e a sentença final.
Notas

* Vrag naroda, em russo.


** Joseph Beck, ministro do Exterior polonês.
*** Vilna é a forma russa de Wilno em polonês e Vilnius em lituanês.
[35]
Reviravolta

S talin e Molotov passaram um longo tempo olhando a mensagem,


ouviram de novo o que Voroshilov pensava sobre as conversações com
ingleses e franceses e tentaram verificar informes sobre contatos de
Berlim com Paris e Londres que ameaçassem a formação de uma ampla aliança
antissoviética. Pesaram prós e contras e chegaram a uma decisão final. Stalin se
levantou, caminhou de um lado a outro algumas vezes, olhou para Molotov e
começou a ditar:

Ao Chanceler da Alemanha A. Hitler

21 de agosto de 1939
Meus agradecimentos por sua carta. Espero que o pacto germano-soviético de não agressão seja um
ponto de inflexão na direção do sério progresso nas relações políticas entre nossos países.
O povo de nossos países precisa de relações pacíficas. A concordância do governo alemão em assinar
um pacto de não agressão criará a base para o fim da tensão política e para o estabelecimento da paz e
da cooperação entre nossos países.
O governo soviético instruiu-me a informar-lhe que concorda com a visita a Moscou do Sr.
Ribbentrop em 23 de agosto.
I. Stalin30

Ribbentrop voou para Moscou em 23 de agosto e, no mesmo dia, o Pacto de


Não Agressão foi assinado. Sua duração estava prevista para dez anos
(Ribbentrop, já em 19 de agosto, propusera vinte e cinco anos). Durante a
discussão, Ribbentrop insistiu em inserir no preâmbulo uma nota sobre “o
carácter amistoso das relações soviético-alemãs”. Quando Molotov o informou
de tal insistência, Stalin rejeitou-a: “O governo soviético não poderia
honestamente afirmar ao seu povo que mantém relações amistosas com a
Alemanha, já que por seis anos o governo nazista vem jogando baldes de lama
sobre o governo soviético.”31 Um mês depois, Stalin cederia também neste
ponto.
Simultaneamente, as conversações anglo-franco-soviéticas foram
interrompidas. Voroshilov disse à imprensa: “As conversações com a Inglaterra
e a França não foram suspensas por causa do pacto de não agressão com a
Alemanha, e sim, ao contrário, a União Soviética assinou o pacto de não
agressão com a Alemanha porque as conversações militares com a Inglaterra e a
França chegaram a um impasse.”32 A última reunião das delegações ao encontro
tripartite ocorrera na tarde de 21 de agosto, justamente quando Schulenburg
entregava a nota alemã a Molotov. O chefe da delegação francesa, general J.
Doumenc, relatou ao primeiro-ministro Daladier:

A sessão programada ocorreu de manhã. Uma segunda sessão aconteceu à tarde. Durante as duas
reuniões trocamos observações polidas sobre o retardo no problema político da passagem [através da
Polônia]. Um novo encontro, cuja data não foi fixada, só haverá se formos capazes de responder
afirmativamente.33

O governo polonês, entretanto, não permitiria a passagem das tropas soviéticas


na eventualidade de uma guerra; não que sua decisão fosse mudar algo, uma
vez que a ampulheta da política mundial escorria rapidamente. Stalin ganhou
dois anos. Hitler chegou mais perto do próximo estágio de seu plano. A notícia
da viagem de Ribbentrop a Moscou, de acordo com Maisky em Londres,
“causou [...] a maior preocupação nos círculos políticos e governamentais.
Sentimentos despertaram: espanto, confusão, aborrecimento, medo [sic!]. O
clima de hoje chegou à beira do pânico”.34
Depois do inesperado acordo com Hitler, Stalin foi mais além. Concordou
com diversos tratados suplementares, conhecidos como “os protocolos
secretos”, que deram um caráter distintamente negativo a um passo que, não
fora isso, teria sido um passo forçado e talvez necessário. O entendimento de
Stalin com Hitler sobre o destino das terras polonesas foi particularmente
impudente, pois equivalia à liquidação de um Estado independente. Os
originais desses protocolos, ao que parece, não foram vistos por ninguém, e o
que tem circulado por anos, provavelmente, são cópias do que Ribbentrop
trouxe a Moscou. Todavia, não pode haver qualquer dúvida de que um acordo,
documentado ou verbal, relativo às fronteiras dos “interesses de Estado”
alemães e soviéticos, de fato existiu. Mais adiante, voltaremos ao assunto.
Olhando de hoje, o Pacto de Não Agressão parece extremamente
deslustrado, e uma aliança com as democracias ocidentais seria, em termos
morais, imensamente preferível. Mas nem a Inglaterra nem a França estavam
dispostas a uma aliança. Do ponto de vista do interesse de Estado, a União
Soviética não tinha outra alternativa aceitável. A recusa em tomar qualquer
atitude dificilmente teria detido a Alemanha. A Wehrmacht e a nação estavam
sintonizadas em tal grau de aprestamento que a invasão da Polônia era uma
conclusão predeterminada. A assistência à Polônia foi dificultada não só pela
atitude de Varsóvia, mas também pela falta de preparo da União Soviética. A
rejeição ao pacto poderia conduzir à formação de uma ampla aliança
antissoviética e ameaçar a própria existência do socialismo.
De qualquer forma, Inglaterra e França tinham assinado pactos semelhantes
com a Alemanha, em 1938, e estavam em conversações secretas com Hitler no
verão de 1939 com o objetivo de criar um bloco antissoviético. É comum a
afirmativa de que o pacto deflagrou a Segunda Guerra Mundial, enquanto
também é comumente esquecido que, naquela ocasião, as potências ocidentais
já tinham sacrificado a Áustria, a Tchecoslováquia e Memel no altar de Hitler,
e que a Inglaterra e a França não tinham feito coisa alguma para salvar a
República da Espanha.
Não se faz menção ao fato de que a Polônia, outra das vítimas de Hitler,
também assinou um pacto de não agressão com ele. O Führer planejara seu
ataque à Polônia para 11 de abril de 1939, bem antes que Molotov e
Ribbentrop rabiscassem suas assinaturas no Pacto. Na verdade, Hitler chegou a
discutir a tomada da Polônia numa reunião bastante anterior, em 22 de janeiro
de 1939, e seus projetos em relação àquele país eram conhecidos por todos. A
liderança soviética, em particular Stalin, já no início de 1939, tinha
conhecimento do ataque à Polônia concebido por Hitler. Em junho daquele
ano, um agente soviético de informações teve um encontro com o doutor
Kleist, chefe da seção do leste de Ribbentrop, e foi-lhe dito que:

O Führer não permitirá que o resultado das conversações afete sua intenção de resolver a questão
polonesa de uma forma radical. O conflito germano-polonês será equacionado por Berlim sejam as
conversações bem ou malsucedidas. [...] A ação militar contra a Polônia está planejada para o fim de
agosto ou início de setembro.35
A data do ataque planejado era conhecida em Washington, Londres e Paris,
mas lá havia a esperança de que a captura da Polônia por Hitler só acelerasse
sua invasão da URSS.
Stalin não podia esquecer que em Munique, em setembro de 1938,
representantes da Inglaterra, França, Alemanha e Itália reuniram-se sem pensar
um só instante na União Soviética. O arranjo pragmático com Hitler naquela
ocasião significou mais que a traição à Tchecoslováquia. Em 4 de outubro,
poucos dias depois do vergonhoso acordo, o embaixador francês em Moscou,
R. Coulondre, examinou francamente a essência do acordo dizendo: “Depois
da neutralização da Tchecoslováquia, a Alemanha abrirá o caminho para o
leste.” No mesmo dia do acordo, 30 de setembro, Chamberlain e Hitler
assinaram sua declaração sobre não agressão e sobre consultas.
Evidentemente, Stalin sabia bem das falhas morais e ideológicas do pacto
que acabara de assinar. Trotsky exultou de satisfação no México: “Stalin e
Hitler deram as mãos. O stalinismo e o fascismo formaram uma aliança.”
Muitos partidos comunistas se angustiaram com o pacto, pois achavam difícil
aceitar qualquer tipo de acerto com os fascistas. Para muitos cidadãos soviéticos
também ficou a impressão de que Stalin e as democracias ocidentais não eram
tão sábios quanto deveriam ser.
Mas a máquina de guerra de Hitler já estava girando e só precisava de um
pequeno toque. Muitos jornais europeus e americanos abordaram o assunto.
Em 24 de agosto de 1939, o presidente Roosevelt fez um apelo para que Hitler
e o presidente polonês Mosticki chegassem a um acordo, e o rei Leopoldo III
dos Belgas fizera pedido semelhante no dia anterior. Em 26 de agosto, August
Daladier incitou Berlim à razão e a dar início ao diálogo com Varsóvia. O papa
fez dois apelos similares. Stalin nada disse. Na ausência de outras opções,
apostara todas as fichas em Hitler. No meio-tempo, não podia fazer coisa
alguma, apenas se preparar e esperar pelo ataque inevitável.
Stalin não tinha ainda partido para a dacha quando, às duas horas da
manhã de 1º de setembro, lhe entregaram um telegrama cifrado enviado de
Berlim informando que, na noite de 31 de agosto, pretensas tropas polonesas
invadiram uma estação de rádio alemã na cidade de Gleiwitz, na Alta Silésia,
mataram alguns funcionários alemães e passaram a transmitir uma declaração
conclamando a população polonesa à guerra. Stalin entendeu de imediato que
se tratava do pretexto de Hitler para iniciar as hostilidades e enviou instruções
ao embaixador soviético em Berlim para que reportasse os acontecimentos
ulteriores. Veio a resposta de que a rádio de Berlim estava tocando música
marcial e que não havia nova informação oficial. Stalin concluiu que o golpe
seria desferido a qualquer momento.
Ele foi acordado por Poskrebyshev bem cedo na manhã seguinte com a
notícia de que tropas alemãs haviam entrado na Polônia. Stalin se lembrou da
recente conversa que Molotov tivera com o embaixador polonês, W.
Grzibowski, na qual ouvira: “A Polônia considera impossível assinar um pacto
com a URSS por causa da impossibilidade prática de prestar ajuda à União
Soviética do lado polonês.”36 Stalin e Molotov concluíram que o governo
polonês simplesmente não queria ficar de mãos amarradas por qualquer acordo
com a URSS sobre garantias para a segurança polonesa.
Entre os despachos que Poskrebyshev lhe trouxe, Stalin leu: “Esta manhã, 4
de setembro, Hitler partiu para o front no leste. Cruzou a antiga fronteira do
corredor polonês e parou próximo a Kulm.” No período de uma semana,
pensou Stalin, as tropas de Hitler poderiam estar próximas à fronteira soviética.
Uma nova situação estratégica viera à tona. As tropas da fronteira já tinham
recebido ordens para elevar a prontidão para o combate. De acordo com os
planos existentes e o entendimento germano-soviético, as forças da URSS
deveriam ficar em condições de invadir a Polônia oriental.
Apesar da bravura dos poloneses, foi uma batalha desigual. Hitler empregou
no ataque 62 divisões, inclusive 11 blindadas e mecanizadas, com 3 mil carros
de combate e 2 mil aviões. Ficou patente que o Führer não esperava que a
campanha polonesa durasse mais que um par de semanas. A Inglaterra e a
França não estavam em condições de ajudar. Em 17 de setembro de 1939, o
primeiro-ministro Molotov falou no rádio:

Ninguém conhece a atual situação do governo polonês.* A população polonesa foi abandonada à
própria sorte por seus infelizes líderes [...] O governo soviético encara como dever sagrado oferecer
ajuda aos seus irmãos ucranianos e bielorrussos na Polônia [...] O governo soviético instruiu o
comando do Exército Vermelho para mandar suas tropas cruzarem a fronteira para proteger a vida e os
bens da população da Ucrânia ocidental e da Bielorrússia ocidental.37

Stalin ordenou que uma nota de conteúdo semelhante fosse entregue ao


embaixador polonês em Moscou. Analisando-se com a perspectiva de hoje e do
ponto de vista soviético, tal providência era justificada: o território em que as
forças soviéticas entraram era, de fato, habitado por ucranianos e bielorrussos.
As unidades dos distritos militares especiais bielorrusso e de Kiev não
encontraram resistência para cruzar a fronteira polonesa. Stalin leu despachos
de Timoshenko, Vatutin, Purkaev, Gordov, Khruschev e outros. Um de
Mekhlis despertou sua atenção especial:

A população ucraniana está recebendo nossas tropas como autênticos libertadores [...] As pessoas
saúdam nossos oficiais e praças, trazem maçãs, tortas, água potável e tentam colocá-las nas mãos de
nossos soldados. Como regra, até as unidades mais avançadas são recebidas por populações inteiras
que saem às ruas. Muitos choram de alegria.37ª

Timoshenko e Borisov informaram que o encontro com as tropas alemãs nem


sempre transcorreu bem. Em Lvov, “nossas tropas foram recebidas à bala pelos
alemães. Em consequência, dois carros blindados foram incendiados, um
terceiro foi posto fora de ação, três homens nossos foram mortos e cinco
ficaram feridos. Nossos blindados destruíram dois canhões alemães, matando
um oficial e três praças”.38
Dois dias depois da invasão alemã da Polônia, o enviado soviético à
Alemanha, A. Shkvartsev, apresentou suas credenciais a Hitler e depois
reportou para Stalin:

Li na cerimônia o discurso que escrevi em Moscou e que o senhor aprovou. Hitler replicou: “O povo
alemão está feliz com a assinatura do tratado germano-soviético de não agressão. Este pacto servirá à
causa da cooperação entre os dois povos. Como consequência da guerra, a situação existente desde o
Tratado de Versalhes de 1920 será revogada. Com a revisão, Rússia e Alemanha estabelecerão de novo
as fronteiras como eram antes da guerra.39

Stalin sublinhou as últimas linhas com traços grossos de lápis vermelho. Na


tentativa de evitar o envolvimento imediato com a guerra, ele acabou se
tornando um participante da “revisão”.
Na esteira da derrota da Polônia, surgiu a dolorosa questão da deportação
de um grande número de cidadãos poloneses para a URSS. A imprensa
ocidental e a polonesa forneceram números pouco precisos sobre as
quantidades envolvidas em tais deportações. Trabalhando nos documentos de
Molotov, encontrei um que fora preparado para Beria pelo vice-comissário das
questões internas Chernyshev. O documento era destinado a figurar num
relatório para Stalin e diz:
No período de 1939 a junho de 1941, 494.310 ex-cidadãos poloneses chegaram à União Soviética.
No mesmo período saíram do país:
42.492 ex-prisioneiros de guerra que foram entregues aos alemães; 42.400 que foram soltos e enviados
à Ucrânia e à Bielorrússia.

As expressões “ex-cidadãos poloneses” e “ex-prisioneiros de guerra que foram


entregues aos alemães” causam certa estranheza. Afinal de contas, se a União
Soviética não estava em guerra, de onde vinham esses “prisioneiros de guerra”?
O mesmo documento declara:

No momento da conclusão do tratado de amizade entre o governo da URSS e o de W. Sikorski (30 de


julho de 1941) existiam 389.382 homens mantidos em prisões, campos e locais de exílio. Destes, de
acordo com o decreto de 12 de agosto de 1941 do Presidium do Soviete Supremo da URSS, 339.041
foram anistiados. Em 1942, 119.865 homens foram evacuados para o Irã (com o Exército de Anders,
de 76.110 militares e 43.755 civis). No momento há 218.000 poloneses na URSS.40

Este memorando para Stalin foi assinado em 2 de novembro de 1945. Diversos


documentos atestam o retorno para a Polônia de praticamente todos os
poloneses. Por exemplo, Beria escreveu a Molotov, em 24 de novembro de
1945:

Em 20 de outubro, os campos da NKVD detinham 27.010 cidadãos poloneses presos e internados em


território polonês durante o período 1944-45, no curso da operação de limpeza realizada na
retaguarda do Exército Vermelho. De acordo com as instruções do Camarada Stalin, 12.289 deles
deverão ser libertados e retornar à Polônia. O restante, pelo final deste ano. Um certo número dos
detidos por espionagem e sabotagem continuará preso.41

Em 1943, próximo à estação ferroviária de Katyn, na floresta das cercanias da


vila de Kozy Gory, foi descoberta uma enorme vala comum com os restos
mortais de milhares de oficiais poloneses. Os nazistas logo afirmaram que
aquilo era coisa de “mãos soviéticas”, enquanto uma comissão especial em
Moscou declarava que aquele era simplesmente mais um exemplo da
brutalidade nazista. Documentos encontrados numa seção especial dos
arquivos centrais soviéticos deixam claro que Katyn foi, de fato, trabalho da
agência de Beria, embora não tenha ainda sido achado até agora documento
algum com sua assinatura ou com a de qualquer um de seus asseclas ordenando
o massacre. Ou a ordem foi destruída depois do ato, ou foi dada verbalmente.
O fato é que o caminho para o Gólgota foi encontrado.
Existe uma prova documental do departamento da NKVD responsável
pelos prisioneiros de guerra, chefiado àquela época pelo capitão P. K.
Suprunenko. Depois dos eventos de setembro de 1939, Beria expediu a Ordem
nº 0308 sobre a organização deste departamento especial. Os oficiais do
Exército polonês estavam presos em três campos: 6.287 homens em Ostakhov,
4.404 em Kozelsk e 3.891 em Starobelsk. Nos meses de abril e maio de 1940,
15.131 poloneses foram removidos desses campos, mas jamais chegaram a
lugar nenhum. É, no entanto, sabido que, em 1941, os alemães não
capturaram campos que contivessem prisioneiros poloneses; nenhum vestígio
desses homens foi encontrado em outros campos, tampouco foram construídos
novos campos para oficiais poloneses. Outro documento, porém, assinado em
21 de maio de 1940 pelo coronel Stepanov, vice-chefe da seção especial
responsável por tropas de guarda, menciona a “bem-sucedida execução das
medidas apropriadas para esvaziar o campo da NKVD de Kozelsk”.
Nenhum dos documentos que vi sobre cidadãos poloneses, que estavam em
território soviético à disposição de Stalin, contém números precisos dos
mortos. Mas estamos nos adiantando muito.

Enquanto observava o crescimento da ameaça representada pela expansão da


Alemanha para o leste, nos meses que se seguiram à invasão da Polônia, Stalin
tomou uma série de decisões objetivando a consolidação política do flanco
ocidental do país. Na época que vacilou entre chegar a um entendimento com
as potências ocidentais ou fazer um pacto com o diabo, ele também teve
considerações nacionais e territoriais em mente. Stalin tomara parte na guerra
civil e fora implicado na derrota do Exército Vermelho para os poloneses em
virtude de sua recusa em deslocar o XII Exército e o 1º Corpo de Cavalaria do
front sudoeste. Este episódio foi causa de permanente aborrecimento e Stalin
chegou a providenciar a erradicação da evidência documental. Em 1925,
Brezanovsky, membro de seu secretariado, enviou um telegrama para o arquivo
de Kiev solicitando o despacho dos “arquivos de Stalin” que ele tinha triado e
coletado.42 Os arquivos foram devidamente despachados pelo prazo de seis
meses como determinavam os regulamentos. Passados os seis meses, os arquivos
centrais de Kiev começaram a bombardear Brezanovsky solicitando o retorno
da documentação. Em 24 de dezembro de 1925, Brezanovsky telegrafou: “A
Administração do Secretariado do Comitê Central, por meio deste, notifica
que nenhum material foi recebido pelos Arquivos do Comitê Central.”43 E não
fora recebido mesmo; os arquivos foram entregues diretamente a Stalin e, como
aconteceu com outras pastas de documentos do secretário-geral, nenhuma pista
sobre eles foi encontrada até os dias de hoje.
O Tratado de Paz de Riga, de 1921, que pôs fim à guerra soviético-
polonesa, cedeu territórios ocidentais da Ucrânia e da Bielorrússia à Polônia e
marcou a fronteira a leste da chamada Linha Curzon. Como Ribbentrop tocou
cautelosamente por várias vezes na velha ferida, fica claro que o fracasso das
conversações com a Inglaterra e a França teve ainda outra dimensão. Stalin
visava recuperar as terras perdidas pela União Soviética depois da guerra civil.
Com base nos distritos militares especiais bielorrusso e de Kiev, foram
criadas duas frentes com os exércitos III, IV, V, VI, X, XI e XII. A tropa só
poderia disparar suas armas quando atacada. Ocorreram apenas combates
isolados. Na realidade, não houve resistência. A maioria étnica de ucranianos e
bielorrussos recebeu de bom grado a chegada das forças soviéticas.
Em uma semana, por volta de 25 de setembro, as tropas russas tinham
progredido de 250 a 350 quilômetros e chegado à linha dos rios Bug Ocidental
e San, como rezava o entendimento secreto alemão-soviético, que, mais
adiante, examinaremos em detalhe. Em novembro de 1939, esses territórios
tornaram-se oficialmente partes das Repúblicas Socialistas Soviéticas Ucraniana
e Bielorrussa. Em junho de 1940, o governo soviético conseguiu reaver a
Bessarábia e a Bukovina do Norte por meios pacíficos e, por intermédio de um
acordo com o governo da Romênia, a fronteira foi restabelecida ao longo dos
rios Prut e Danúbio. Formara-se assim a República Socialista Soviética da
Moldávia.
Stalin acreditava que Hitler não recuaria no acordo a que tinham chegado
sobre os estados bálticos. Absolutamente cínico na sua atitude em relação aos
povos e governos da região, os quais, ingenuamente, confiavam nele, Stalin
manipulou essa confiança dizendo que, uma vez que os regimes soviéticos lá
instalados em 1917-18 haviam sido derrubados, seria adequado falar em sua
“reinstalação”. No final de setembro e início de outubro, Stalin mandou que
Molotov propusesse a Lituânia, Letônia e Estônia a assinatura de um tratado de
assistência mútua. Depois de breve hesitação, algumas rixas internas e consultas
a Berlim, os governos bálticos assinaram tratados permitindo a entrada de
unidades do Exército Vermelho. Por solicitação dos governos bálticos, o efetivo
da força soviética era menor que o dos exércitos de Lituânia, Letônia e Estônia.
Os contingentes militares soviéticos deveriam permanecer em seus quartéis e
não interferir nas questões internas daqueles países, embora Stalin soubesse
muito bem que a presença do Exército Vermelho fatalmente influiria no
ambiente político.
Centenas de documentos referentes a esses eventos estão preservados nos
arquivos centrais do Exército Vermelho. A responsabilidade pelo acerto dos
efetivos e dos locais de desdobramento das tropas soviéticas, dos aeródromos e
bases navais, das ferrovias, do pagamento dos alojamentos, terrenos, linhas de
comunicações e assim por diante, de acordo com os protocolos e acordos
secretos suplementares, Stalin pôs nas mãos de Molotov e de Potemkin, seu
vice-comissário do Exterior, do vice-comissário da defesa Loktyonov, do vice-
comissário de comércio Exterior Stepanov, do vice-comissário do Exército e da
Marinha Levchenko, e de diversos outros funcionários, cuja tarefa foi negociar
todas as questões financeiras, diplomáticas, militares e de organização com os
representantes locais.
Para além de alguma discordância inevitável, cada um dos lados seguiu, de
maneira geral, o espírito e a letra dos tratados. Por vezes, os parceiros bálticos
iam além. Por exemplo, quando estalou a guerra soviético-finlandesa, o adido
militar em Riga, coronel Vasiliev, reportou para Moscou: “Em 1º de dezembro,
o general Hartmanis declarou que, ‘Se, pelas circunstâncias da guerra, vocês
precisarem de pistas de pouso para seus aviões, podem utilizar nossos
aeroportos, incluindo o de Riga.’”44 O governo lituano informou Moscou de
que “foi constituído um comitê para garantir a produção de alimentos e de
forragem para as Forças Armadas [do Exército Vermelho] na Lituânia”.45 No
início de dezembro de 1939, durante a visita a Moscou do comandante em
chefe do Exército estoniano, general Johan Laidoner – um ex-tenente-coronel
do Estado-maior czarista – ficou a impressão de que relações amistosas surgiam
entre os dois Estados e suas Forças Armadas.46
Quando Hitler tomou Paris, em junho de 1940, Stalin sentiu que, se o
Führer não invadisse logo a Inglaterra, ficaria propenso a voltar seus olhos para
o leste, e então, consciente do despreparo e fazendo esforços esporádicos para
compensar o tempo perdido, deu um novo passo. Em meados de junho de
1940, Moscou solicitou permissão aos governos da Lituânia, da Letônia e da
Estônia para ter contingentes adicionais em seus territórios. O tom utilizado
foi de ultimato. Encorajado pelo recente sucesso, ele já estava falando grosso
com os Estados bálticos, como atesta o fato de ter enviado Zhdanov, Vyshinsky
e Dekanozov para a região. Em outubro de 1940, Pozdnyakov, que
acompanhara Dekanozov, reportou para Stalin e o Politburo: “A composição
política do principal órgão lituano ainda é desfavorável, isto é, a diferenciação
de classe ainda não teve lugar naquele órgão, ou seja, o elemento hostil não foi
derrubado da sela e faz trabalho antissoviético congregando as tropas em linhas
nacionalistas.”47 É fácil imaginar o que Dekanozov e os outros propuseram para
derrubar o elemento hostil da sela. Tais são as páginas amargas que enchem a
crônica criminosa do stalinismo.
Ao passo que o aspecto moral da anexação dos Estados bálticos era
distintamente negativo, o ato em si era positivo, em função das ameaças que
pairavam sobre a URSS e sobre aqueles mesmos Estados. Porém, como de
hábito, Stalin utilizou a força e a coerção, e a presença das tropas soviéticas foi
o principal fator que permitiu atingir o objetivo político da “reunificação”.
Dekanozov, apesar de tudo, reportou a Stalin e Molotov, nos primeiros dias de
julho de 1940:

Um grande comício e manifestação teve lugar em Vilna em 7 de julho. Cerca de 80 mil pessoas
participaram. Os principais slogans eram “Vida longa para a 13ª república soviética!”, “Proletários do
mundo todo, uni-vos!”, “Vida longa para o Camarada Stalin!”, e outros assim. A manifestação
aprovou um voto de boas-vindas à União Soviética e ao Exército Vermelho. Foi realizado um concerto
da banda do Exército da Lituânia, ao qual compareceram o presidente e diversos membros do governo
e do Estado-maior. [...] Seria oportuna uma visita à Lituânia de artistas soviéticos. Solicito uma ordem
urgente para que sejam enviados Mikhailov, Lemeshev, Nortsov, Shpiller, Davydova, Ruslanova,
Kozolupova** e uma companhia de balé com Lepeshinskaya.48

É razoável supor que, se as tropas soviéticas lá não estivessem, os alemães


teriam entrado nos estados bálticos mesmo antes de junho de 1941, uma vez
que já tinham um plano para “germanizar” parte da população e liquidar o
restante, como mostra um memorando de 1940 de Rosenberg. A esmagadora
maioria da população báltica era favorável, em agosto de 1940, à incorporação
de seus países à União Soviética. Stalin participou pessoalmente das
conversações e do trabalho para o acerto dos detalhes, resultando que, embora
a vontade das populações bálticas tenha se expressado, o processo inteiro foi
manchado por diversas ações tipicamente stalinistas. O secretário-geral
concentrou todo o esforço no fortalecimento da posição estratégico-militar da
URSS, sem se preocupar com os métodos empregados.
Animado com o sucesso de suas medidas nas fronteiras ocidentais, Stalin se
concentrou então no noroeste. Inquietava-se com a proximidade da fronteira
finlandesa em Leningrado e com a óbvia inclinação da Finlândia pela
Alemanha. Houve conversações com o objetivo de compelir os finlandeses a
afastarem a fronteira de Leningrado em troca de compensações territoriais, mas
o ministro do Exterior da Finlândia, V. Tanner, tinha instruções de seu chefe de
Estado, o marechal de campo C. Mannerheim, um ex-general do Exército
czarista, para não ceder ante os russos. Desta forma, o normalmente cauteloso
Stalin perdeu o senso da realidade e decidiu apelar para a pressão política e até
militar, a fim de chegar ao que não obtinha com diplomacia. No fim de
novembro, começaram as recriminações mútuas a respeito de troca não
provocada de tiros, em particular nas proximidades da aldeia soviética de
Mainilo. Molotov entregou ao representante finlandês A.S. Irne-Koskinen uma
nota que continha uma exigência com sabor de ultimato, “pela imediata
retirada de vossas tropas para uma distância de 20 a 25 quilômetros da
fronteira, na península da Karélia”. Dois dias mais tarde, o enviado respondeu
que seu governo estava “pronto para negociar retiradas mútuas de tropas até
alguma distância da fronteira”. A Finlândia aceitara o desafio, e sendo
igualmente inflexível, anunciou sua mobilização. Em 28 de novembro de 1939,
a URSS denunciou o tratado finlandês-soviético de não agressão de 1932. Para
dizer o mínimo, nem Moscou nem Helsinki esgotaram todos os meios a fim de
evitar a guerra.
Stalin imaginara bastar-lhe o ultimato e, ainda mais, deslanchar ações
militares para que o governo finlandês concordasse com todas as suas
reivindicações. Foi encorajado pelos relatórios otimistas do soviete do distrito
militar de Leningrado e pelos relatórios de Beria. Em 5 de outubro, por
exemplo, Beria informara Stalin e Voroshilov sobre dados de inteligência
recebidos de Londres:

O enviado inglês na Finlândia reportou por duas vezes que o marechal de campo Mannerheim lhe
pedira para comunicar ao governo inglês que, em breve, a Finlândia espera dos soviéticos demandas
semelhantes às feitas à Estônia, ou seja, acesso às bases navais e aos aeródromos das ilhas finlandesas.
De acordo com sua declaração, a Finlândia terá que atender às exigências soviéticas.49

Stalin confiava em que os finlandeses logo capitulariam. As operações militares


tiveram início em 30 de novembro e continuaram por quase quatro meses. Um
alerta de Shaposnikov para que não se subestimassem os finlandeses mostrou-se
totalmente justificado. No meio disso, Stalin cometeu outra tolice política
importante: autorizou a formação em Moscou de um “governo da República
Democrática Finlandesa” chefiado pelo comunista finlandês Otto Kuusinen.
Em 2 de dezembro, Kuusinen e Molotov assinaram um tratado de assistência
mútua e amizade entre a União Soviética e a “República Democrática
Finlandesa”.50 No estilo tipicamente stalinista, tais decisões e a guerra inglória
levada a efeito pela URSS causaram o isolamento internacional do país. Em 14
de dezembro, a União Soviética foi expulsa da Liga das Nações. A declaração
da agência de notícias TASS sobre o acontecido leva a marca registrada da mão
de Stalin: “Na opinião dos círculos soviéticos, esta decisão absurda da Liga das
Nações provoca um sorriso irônico e só escandalizará seus patéticos autores.”51
Mas não era caso de sorrisos. As forças do distrito militar de Leningrado se
atolaram em longas e desgastantes batalhas. Os finlandeses tinham organizado
defesas brilhantes e resistiram aos ataques com algum sucesso. Finalmente,
Stalin percebeu a situação e, numa reunião do Soviete Principal de Guerra,
conclamou que “passos decisivos sejam dados”. Dois exércitos, sob o comando
de K.A. Meretskov e V.D. Grendal, foram empregados na península da Karélia.
S.K. Timoshenko recebeu o comando da frente, A.A. Zhdanov foi nomeado
membro do soviete de guerra e I.V. Smorodinov foi feito chefe do Estado-
maior. O papel de Stalin, no que os finlandeses chamaram a Guerra do
Inverno, foi o de membro do Soviete Principal de Guerra. Os volumes de
documentos sobre aquela campanha inglória mostram de forma clara que a
chefia militar e política soviética perdeu simplesmente a cabeça, a ponto de,
certa altura, Moscou passar a expedir ordens táticas diretas para as forças,
desbordando os quartéis-generais do comando.52
Depois de um mês de preparação para romper a Linha Mannerheim, as
forças soviéticas entraram em ação em 11 de fevereiro de 1940. A superioridade
em equipamento e efetivos, no final, prevaleceu. Uma das ordens de operações
de 9 de fevereiro de 1940 para as tropas soviéticas, assinada por Timoshenko,
Zhdanov e Smorodinov, falava na “glória perpétua” com que se cobriria o
Exército Vermelho naquela campanha.53 Mas não haveria glória perpétua. A
Linha Mannerheim foi penetrada a um custo muito alto para a União
Soviética. Assinou-se um tratado de paz no início de março de 1940.
Stalin ficou visivelmente desconcertado. O mundo inteiro testemunhara o
baixo nível de preparo do Exército Vermelho. Tão logo a guerra acabou, ele
decidiu substituir Voroshilov, não sem antes ouvir o relatório do marechal para
o Soviete Principal de Guerra e para um pleno do Comitê Central. O longo
relatório de Voroshilov, que carrega as marcas das anotações e emendas de
Stalin, foi intitulado “Lições da Guerra com a Finlândia”. Entre outras coisas, o
marechal afirmou:
Tenho a dizer que nem eu como comissário da Defesa, nem o Estado-maior, tampouco o comando do
Distrito Militar de Leningrado tínhamos qualquer ideia sobre as peculiaridades e dificuldades
envolvidas nesta guerra [...] O Exército finlandês, bem organizado, equipado e treinado para as
condições e fainas locais, demonstrou grande capacidade de manobra, defensiva obstinada e muita
disciplina.
Desde o início da ação militar, o centro estabeleceu um QG do Soviete Principal de Guerra
consistindo dos Camaradas Stalin e Voroshilov, do chefe do Estado-maior Camarada Shaposhnikov e
do comissário naval Camarada Kuznetsov (que comparecia apenas para as questões navais). Um
participante ativo e permanente do QG foi o Presidente do Sovnarkom Camarada Molotov, embora
não fosse membro efetivo. O QG, ou mais precisamente, seu membro ativo, o Camarada Stalin,
conduziu efetivamente todas as operações e todo o trabalho organizacional do front.

Voroshilov percorreu várias páginas para descrever as inadequações das


informações no Exército Vermelho, o pobre suprimento técnico, a desajeitada
organização das comunicações, as inapropriadas condições da alimentação e
dos uniformes para o inverno, e por aí foi:

Muitos comandantes dos altos escalões não estiveram à altura dos cargos. O QG teve que afastar
muitos oficiais antigos e integrantes de Estados-maiores não só porque suas lideranças nada traziam de
bom, mas também porque elas causavam danos perceptíveis. O Exército Vermelho conseguiu sua
vitória relativamente rápida sobretudo porque, desde a deflagração da guerra até o final vitorioso, a
conduta efetiva do conflito armado foi assumida pelo Camarada Stalin...54

No discurso de encerramento, Stalin afirmou, com correção, que era hora de


“renunciar ao culto da guerra civil que apenas reforça nosso atraso”. Reclamou
que ainda existiam muitos participantes da guerra civil nas chefias, estorvando
o caminho de “engenheiros da guerra” mais jovens e mais criativos.55 Embora
fosse verdade que o culto da guerra civil constituía um obstáculo, não se podia
dizer que a velha guarda mantinha alguma influência: ela fora toda (exceto
Voroshilov) aniquilada pelo expurgo. De qualquer maneira, Stalin passou a
saber então que espécie de comandante guerreiro era Voroshilov. O Exército
Vermelho revelou enormes deficiências. Hitler ficou a um só tempo surpreso e
deleitado. Suas estratégias tinham se baseado em cálculo acurado. Uma vitória
a grande custo era equivalente a uma derrota moral. Tanto Stalin como Hitler
entenderam assim e cada um tirou suas próprias conclusões. Stalin, contudo,
dispunha de menos tempo para reflexões. Assaltou-o uma falta de
autoconfiança não muito comum. A partir daquele momento, ficou obcecado
pela ideia de que, se Hitler não fosse provocado, não atacaria. Quando as forças
de defesa da fronteira soviética derrubaram uma aeronave alemã que penetrara
o espaço aéreo soviético, Stalin deu ordens pessoalmente para que fosse enviado
um pedido de desculpas. A Alemanha beligerante tinha, na realidade, um
aliado não beligerante na URSS, e Berlim tomou, rapidamente, nota de tal
fato. Nas manobras de grandes efetivos, Stalin exercitava o aspecto defensivo.
Enquanto isto, Hitler estava quase pronto para começar sua campanha do leste.
Embora hoje tenhamos razão para condenar Stalin, temos que reconhecer
também que, em vista das circunstâncias daquela ocasião, muitas das medidas
que tomou para retardar a guerra e fortalecer as defesas ocidentais da URSS
foram, de certa forma, impostas a ele. Acreditou por demais na palavra de
Hitler e cometeu diversos erros que preferiu não lembrar mais tarde, embora
tenha dito aos comandantes do Exército Vermelho no Kremlin, em 24 de
junho de 1945, que “nosso governo cometeu muitos enganos”. Para ser mais
exato, houve erros não apenas no curso da guerra mas também antes dela.
Talvez o maior e mais sério tenha sido a assinatura do tratado alemão-soviético
de amizade e segurança das fronteiras de 28 de setembro de 1939. Segundo o
tratado, as fronteiras e esferas de influência dos dois estados ficaram definidas
com um mapa anexado. A fronteira era diferente daquela acertada pelos
“protocolos secretos” do pacto de 23 de agosto de 1939. Ela ficava estabelecida
ao longo dos rios Narev, Bug e San.
A “amizade” entre o Estado socialista e o fascista foi adotada nas
conversações Molotov-Ribbentrop de 27-28 de setembro de 1939, em
Moscou, com Stalin tomando parte direta nelas, tal como fizera em agosto. Há
evidências sinalizando que Stalin estava consciente, mesmo antes da guerra, de
que cometera um erro. No desespero por evitar ou, pelo menos, retardar a
guerra, ele cruzara a última fronteira ideologicamente justificável, e isto teria
consequências de longo alcance.
Notas

* Naquela noite, a cúpula do governo polonês deixou o país, e o alto-comando do Exército partiu no dia
seguinte.

** Todos eles cantores populares e músicos.


[36]
Stalin e o Exército

À s vésperas da guerra, o Exército contava com a afeição do país. Heróis


nacionais surgiram nas campanhas da Mongólia, na Espanha e na guerra
finlandesa, e não havia falta de candidatos ao ingresso nas academias militares.
O serviço militar era considerado uma carreira honrosa. As lideranças política e
militar não tinham contrariedades com a disciplina e a conscientização política
dos soldados, os quais acreditavam em Stalin e no partido, embora as feridas
abertas pelo expurgo ainda não estivessem completamente cicatrizadas. Mesmo
assim, a guerra finlandesa, a despeito de ser apresentada como uma vitória,
deixava o povo curioso sobre o porquê de um Exército tão poderoso como o
descrevia a imprensa ter demorado quatro meses para subjugar as forças de um
país pequeno como a Finlândia. Stalin ficou mais envergonhado que os outros
com a Guerra do Inverno, mas é evidente que não pôs a culpa em si mesmo.
Em março de 1940, deixou claro que alguém teria que responder pelo
acontecido. O escolhido foi Voroshilov.
Apesar de não ser militar, Stalin gradualmente passou a ver que Voroshilov
não era capaz de comandar o Exército. Não conduzira bem o quartel-general
durante a campanha de Khalkin Gol, nem na guerra finlandesa. Segundo
Zhukov, depois de Khalkin Gol, quando foi nomeado para comandar o distrito
militar de Kiev, de repente Stalin começou a falar sobre Voroshilov: “Ele se
jactava em afirmar que responderíamos pelo triplo toda a vez que fôssemos
atingidos. ‘Está tudo bem, tudo ótimo, Camarada Stalin, está tudo pronto’ –
mas depois, o que houve?”56
Voroshilov deixou a função de comissário da Defesa em maio de 1940,
embora tenha se tornado vice-presidente do soviete de comissários e presidente
do Comitê de Defesa da URSS. Seu cargo de comissário da Defesa foi
assumido por S.K. Timoshenko, feito também marechal da URSS. A primeira
grande decisão do novo comissário, ratificada por um decreto do Sovnarkom
de 6 de junho de 1940, foi a organização do corpo mecanizado com duas
divisões blindadas e uma divisão motorizada. Apenas seis meses antes, a
administração do corpo blindado fora desmantelada. Stalin não tinha opinião
própria nesses assuntos, valendo-se do que achavam os generais D.G. Pavlov e
G.I. Kulik, que automaticamente recaíam em suas experiências na Espanha, e
da opinião de Shaposhnikov, chefe do Estado-maior, e de seu vice Smorodinov,
que confirmaram a importância daquele tipo de grandes unidades.
No final dos anos 1930, ao reconhecer que o Exército estava muito
embebido pela guerra civil, Stalin nomeou Zhdanov e N.A. Voznesensky para
chefiarem uma comissão de análise da situação do Exército e da Marinha. Eles
chegaram à sensata conclusão de que o “comissariado ainda não resolvera o
problema do emprego operacional das Forças na guerra moderna” e de que a
situação fora agravada pelo grande número de jovens e inexperientes
integrantes dos quadros. É evidente que isso se devia, em grande parte, à
repressão em massa de 1937-38, que atingira principalmente os oficiais mais
antigos, a administração política e a organização central do comissariado. Os
números mostram que, de maio de 1937 a setembro de 1938, 36.761 homens
foram expurgados do Exército e mais de 3 mil da Marinha,57 alguns deles, é
verdade, meramente licenciados das fileiras. Como resultado da repressão,
foram afastados todos os comandantes de distritos, 90% dos chefes e vice-
chefes dos Estados-maiores regionais, 80% dos comandantes de corpos e de
divisões e 90% dos oficiais de Estado-maior. A consequência foi uma sensível
queda na qualidade intelectual dos oficiais. No início de 1941, somente 7,1%
dos oficiais em comando tinham frequentado uma escola de altos estudos
militares, 55,9% só tinham formação secundária, 24,6% haviam sido formados
em cursos comprimidos e 12% dos oficiais e do pessoal político não tinham
qualquer instrução militar.58
Vyshinsky e Ulrikh propuseram que o processo de expurgo fosse
simplificado de forma que uma conferência especial da NKVD tivesse
competência para retirar a carta patente de um oficial, o que, previamente, só
podia ser feito mediante sentença judicial. Em abril de 1938, Ulrikh
demonstrou a necessidade de “aprovar a remoção do colegiado militar da
Suprema Corte, e de organizar o Tribunal Militar da URSS”.59 Stalin vivia
num mundo em que novos “inimigos” tinham que ser encontrados todos os
dias, e sua paranoia contagiava o entourage, seus carrascos e o país de modo
geral. Os distritos militares e as academias receberam ordens como esta,
enviada à administração política do Exército Vermelho em Moscou:

Nomeie uma comissão para investigar e rever a equipe de instrutores da Academia Lenin. Se alguém
do grupo Tolmachev ainda estiver por lá, transfira todos imediatamente.
5 de julho de 1938 Mekhlis60

Embora a repressão tenha arrefecido no início de 1939, em 14 de junho Ulrikh


reportou para Stalin e Molotov que “um grande número de casos estava
pendente contra membros de organizações trotskystas-direitistas, nacionalistas
burgueses e de espionagem: 800 casos no distrito militar de Moscou, 700 no
distrito do Cáucaso setentrional, 500 no distrito de Kharkov, 400 no distrito
da Sibéria. Por questões de segurança, sugerimos que não se permita a presença
dos acusados nos julgamentos. Aguardo suas ordens”.61 Não existe registro da
resposta de Stalin neste documento, porém, em vista da enorme lacuna no
efetivo de oficiais e do fantasma da guerra, é possível que Stalin tenha rejeitado
a proposta como um exemplo de “erros e calúnias”. A partir daquele instante, o
definhamento do Exército e da Marinha começou a diminuir. Mesmo assim, a
situação em alguns distritos militares era simplesmente catastrófica e, no
Exército em conjunto, o segmento mais vulnerável era o corpo de oficiais. Pelo
verão de 1941, cerca de 75% dos oficiais e 70% dos comissários políticos
estavam em suas funções havia menos de um ano. A espinha dorsal do Exército
não tinha a necessária experiência de comando.
Stalin sabia que a séria escassez de oficiais era agravada pelo inadequado
treinamento para a guerra moderna. O discurso que proferiu em 5 de maio de
1941 no Kremlin para formandos do Exército Vermelho refletiu esses
pensamentos. Foi um pronunciamento de rara franqueza e revelou muitos
segredos de Estado. Por exemplo, para elevar o moral dos jovens oficiais, ele
falou sobre a reestruturação fundamental do Exército e do aumento substancial
no seu efetivo. Naquele início de 1941, Stalin disse-lhes que o Exército tinha
300 divisões, das quais um terço era de divisões mecanizadas, mas não
complementou a informação esclarecendo que mais de um quarto do número
total de divisões estavam em processo de organização e que muitas tinham
acabado de ser criadas.
Como sempre, destacou a vocação ofensiva do Exército: “O Exército
Vermelho é uma organização moderna, e um Exército moderno significa um
Exército ofensivo.” Ali estava um grande erro, pois negligenciava a importância
da defesa estratégica e das operações defensivas. A doutrina militar oficial da
URSS era defensiva, mas Stalin e os comandantes, que repetiam como
papagaios seus pontos de vista, proclamavam que a melhor defesa era o ataque.
Os regulamentos, ordens, diretrizes, os discursos do comissário e, agora, o
próprio Stalin expressavam só uma ideia: “A guerra seria travada no território
do inimigo e a vitória seria alcançada com pouco derramamento de sangue.”
Por que a Alemanha derrotava seus inimigos? Seria ela invencível? Neste
ponto do discurso, Stalin explicou com muita sinceridade o triunfo da
Wehrmacht na Europa Ocidental: “Os alemães foram capazes de afastar os
Aliados da Inglaterra e da França.” É evidente que o único aliado nessas
circunstâncias fora a própria União Soviética. “O Exército alemão não é
invencível. Ele marcha agora sob a bandeira da expansão, sua autoconfiança e
sua arrogância crescem. Mas isto prenuncia o pior.” Falsas ideias tornaram-se
parte do pensamento militar soviético, como se pode ver numa revisão
operacional do Estado-maior do Exército Vermelho onde está afirmado que a
Alemanha saiu-se vitoriosa em 1940 “por causa das circunstâncias que lhe
foram muito favoráveis” e “não sem a intervenção de acidentes fortunosos”.62
Uma minuta de projeto sobre propaganda política para o Exército Vermelho
declarava que “o Exército alemão não mais se interessava por aprimoramentos
na técnica militar. Parte significativa do Exército alemão está cansada da
guerra”.63
Contudo, alguns argumentos de Stalin faziam sentido, muito embora o
Exército não tivesse tempo para fazê-los vigorar. As academias militares do
Exército Vermelho, afirmou, estão defasadas no tempo e treinam para a “guerra
de ontem”. A experiência de Khalkin Gol não foi válida, disse ele, porque os
japoneses não tinham um Exército moderno. Era uma guerra ocidental, a
guerra finlandesa, que deveria servir de lição sobre guerra moderna. Pouco
antes do período de formaturas, Stalin convocara o Soviete Militar Principal
para ouvir palestras de G.K. Zhukov, K.A. Meretskov, I.V. Tyulenev, D.G.
Pavlov, G.M. Shtern, P.V. Rychagov e A.K. Smirnov, entre outros. Ênfase
especial foi dada ao melhor aprestamento operacional, à execução de operações
ofensivas e à concentração de forças e meios para a consecução do sucesso
estratégico. O problema da fase de abertura das hostilidades não foi tratado.
Bastante interessante foi o pronunciamento do chefe do Estado-maior, P.S.
Klenov, o qual comentou que “a primeira fase da guerra era da maior
importância, uma vez que o inimigo aplicaria todo o seu poderio para evitar
que nos conduzíssemos de forma organizada”.64
Stalin registrou o comentário de Meretskov de que os regulamentos do
Exército Vermelho estavam desatualizados65 e ordenou uma revisão imediata,
embora não tenha sido possível terminá-la antes do início da guerra. Mas nem
Stalin nem o comissário da defesa notaram que, com exceção de Tyulenev,
ninguém levantou a questão das operações defensivas modernas.66 Todos
tinham aprendido sobre estratégia ofensiva e aqueles militares intelectuais que
entendiam da profissão com uma perspectiva mais ampla e com abordagens
mais modernas e flexíveis haviam sido exterminados por Stalin.
A despeito do Pacto, o secretário-geral começou a ver então nuvens de
tempestade no horizonte ocidental. Ao mesmo tempo, acreditava
equivocadamente que Hitler não atacaria no leste antes de vencer no ocidente:
ele jamais se engajaria numa guerra de duas frentes, e Stalin enfatizou esta
noção nos seus discursos da ocasião, notavelmente o de 5 de maio de 1941, no
Kremlin. Entretanto, ele também estava encantado com a facilidade com que a
Wehrmacht esmagara os exércitos ocidentais, mas não achava que o Exército
Vermelho aprenderia as lições devidas com suficiente rapidez. Estudou a análise
sobre a operação das forças alemãs preparada para ele pelo Estado-maior e, em
conversas com Timoshenko, realçou a necessidade de intensificar a instrução.
No entanto, havia muita coisa que ele não sabia. Por exemplo, não tinha
conhecimento da avaliação alemã do Exército Vermelho feita no início de
1941. Só depois da guerra ficou esclarecido que Hitler, assim que soube dos
expurgos de 1937-38, determinou a preparação de um relatório de informações
sobre a situação do corpo de oficiais do Exército Vermelho. Seis meses antes da
guerra, com base nos relatos do coronel Krebs, adido militar alemão em
Moscou, e em outras fontes, o Führer concluiu que o Exército Vermelho era
quantitativa e qualitativamente fraco. “Causa uma impressão pior que a de
1933. A Rússia vai precisar de anos para recuperar o nível anterior...”67
Seria difícil encontrar um precedente na história em que um dos lados, às
vésperas de um conflito mortal, tenha infligido tanto dano a si próprio.
Zhukov se lembrou deste particular nos jogos de guerra com grandes efetivos
realizados em dezembro de 1940, quando recebeu o comando dos “Azuis”, ou
seja, do lado alemão, enquanto Pavlov, general de exército e comandante em
chefe do distrito militar especial do Ocidente, comandou os “Vermelhos”. De
acordo com Zhukov, o general executou suas operações exatamente nas linhas
em que as batalhas reais iriam se desenrolar, seis meses depois. Afirmou que sua
tática foi ditada pela configuração das fronteiras, pelo terreno e pelas
circunstâncias. Deduziu que os nazistas fariam os mesmos cálculos. Ainda que
os árbitros dos jogos de guerra retardassem artificialmente a progressão dos
“Azuis”, em oito dias eles avançaram até o distrito de Baranovichi. Quando, em
janeiro de 1941, Zhukov apresentou seu relatório sobre os exercícios ao Soviete
Principal de Guerra, alertou quanto ao desfavorável sistema de distritos
fortificados ao longo da nova fronteira, sugerindo que eles recuassem cerca de
100 quilômetros. Tal comentário era uma crítica a uma decisão tomada por
Stalin, porém o secretário-geral ouviu com atenção a proposta, mas ficou
intrigado com o poderio dos “Azuis” e por que forças tão poderosas como as
alemãs tinham sido consideradas na regra de nossos próprios jogos? Zhukov
replicou que aquilo correspondia às reais possibilidades da Alemanha e se
baseava numa avaliação autêntica das forças que ela poderia empregar contra
nós na fase de abertura das hostilidades, ganhando, desta forma, flagrante
superioridade com o primeiro ataque.
Stalin considerou abrangente o relatório de Zhukov, ficou admirado com a
maneira desassombrada com que o militar defendeu sua posição e, em fevereiro
de 1941, nomeou-o chefe do Estado-maior, uma das melhores decisões que
tomou nesse campo, como os eventos futuros iriam confirmar.
Completados os lances diplomáticos de 1939 que descrevemos, o raciocínio
de Stalin ficou dividido. De um lado, os tratados eram favoráveis aos alemães
pois ajudavam Hitler a evitar uma luta em duas frentes, o que possivelmente
faria com que respeitasse seus termos. De outro lado, sendo um oportunista
por natureza, o Führer poderia não seguir necessariamente a lógica normal.
Toda a sua estratégia impulsiva se baseava no cálculo de fatores de curto prazo,
tais como surpresa, astúcia e imprevisibilidade. Por conseguinte, Stalin seguiu
de perto cada passo político e militar de Hitler, bem como o curso de sua
blitzkrieg de 1940 no oeste. Também ordenou que Timoshenko tivesse a
responsabilidade total pelo aprestamento da tropa.
Ao longo de 1940, Timoshenko visitou todos os distritos militares do oeste,
pôs diversas unidades em prontidão e avaliou os cursos de treinamento e as
manobras. Todas as suas visitas foram noticiadas pela imprensa, como também
as de outros chefes militares. As viagens de inspeção revelaram muitas
deficiências de vulto. Os militares e os oficiais políticos careciam de experiência
e demonstravam lerdeza no domínio dos novos elementos para o treinamento
do combate. Os componentes básicos da força combatente estavam abaixo do
nível médio, o que se aplicava também à força aérea.68
Nos dois anos que decorreram antes que a URSS entrasse na guerra, Stalin
tentou claramente aumentar a qualidade e o efetivo das Forças Armadas, mas
seu trabalho baseou-se na premissa falaz de que ele seria capaz de evitar, ou
pelo menos de adiar, a guerra. Como o escritor Konstantin Simonov recorda de
uma conversa com Zhukov: “Stalin estava convencido de que, com o Pacto,
dera um tombo em Hitler. Mas aconteceu justamente o contrário.” Zhukov
disse que “a maioria dos que o cercavam apoiou os julgamentos políticos que
Stalin fizera antes da guerra, especialmente a noção de que, se não fizéssemos
nenhuma provocação, nem déssemos um passo em falso, Hitler não romperia o
Pacto e não nos atacaria”.69 Esta linha de pensamento era ardentemente
defendida por Molotov, o qual, depois de sua viagem a Berlim em novembro
de 1940, continuou insistindo em afirmar que Hitler não atacaria a URSS.
[37]
O arsenal de defesa

E m meados de novembro de 1940, o Izvestiya publicou que “no


contexto das relações amistosas que existem entre nossos dois países e
da atmosfera de confiança mútua, uma troca de opiniões tivera lugar
entre V.M. Molotov, o chanceler A. Hitler, o ministro do exterior J.
Ribbentrop, o marechal Goering e o vice de Hitler no partido, R. Hess”. Na
realidade não havia tal “confiança mútua”. Molotov chegou em Berlim em 12
de novembro parecendo apreensivo, e a tensão e a desconfiança entre os
“amigos” foi crescendo a olhos vistos.
No seu gabinete cavernoso, Hitler encarou intensamente o visitante e
passou de imediato ao seu tema preferido: as potências do Eixo estavam à beira
do triunfo, o Império Britânico logo seria martelado e era hora de decidir que
tipo de mundo se seguiria à proclamação da Nova Ordem. A Alemanha tinha
interesse nisso e, esperava ele, a Rússia também. Molotov ouviu sem
interromper, enquanto Hitler dividia o mundo em esferas de influência. Mas
quando o Führer fez uma pausa e virou-se para o representante soviético à
espera de uma reação, Molotov observou friamente que não via sentido na
discussão de tais pontos. Hitler empertigou-se visivelmente, mas Molotov não
se intimidou e começou a fazer perguntas incômodas: por que existia uma
missão militar alemã na Romênia; por que a Alemanha estava deslocando
tropas para a Finlândia. Hitler perdeu o interesse pela conversa e sugeriu
suspendê-la até o dia seguinte. Os dois lados falavam claramente línguas
diferentes e ambos entenderam que os acordos de um ano antes estavam
mortos. Tinham cumprido sua finalidade: com eles, a Alemanha blefara a
URSS e ganhara liberdade de ação; a URSS ganhara tempo. Sentindo a
desconfiança dos alemães, Molotov retornou ao seu hotel, o Bellevue, e tentou
se consolar imaginando que Hitler não incorreria no mesmo erro cometido
pela Alemanha na Primeira Guerra Mundial, lutando em duas frentes. De sua
parte, de acordo com os relatos de Beria, os governos ocidentais acreditavam
que a aliança militar germano-soviética era para valer.70 Stalin, no entanto,
tinha dúvidas crescentes a respeito da política alemã. E ainda não sabia que,
enquanto Molotov estava em Berlim, o general F. Halder, chefe do Estado-
maior das forças terrestres germânicas, expunha ao marechal de campo
Brauchitsch, comandante em chefe das mesmas forças, a última versão da
Ordem nº 21, ou Operação Barbarossa, para a invasão da URSS. Hitler
pretendia não ser emboscado, como Napoleão, pelo inverno russo, portanto
fixou a data da invasão para 15 de maio de 1941.71 A campanha estava
planejada para durar oito semanas.
A despeito de continuar aferrado, como Molotov, ao mito de que Hitler
manteria o Pacto e evitaria a guerra em duas frentes, Stalin pôs mãos à obra na
intensificação das defesas do país. Existia potencial para tanto. O país contava
então com uma das mais vigorosas bases industriais do mundo, apesar do baixo
nível da qualidade, gerida por comissários fortes como I.F. Tevosyan, V.A.
Malyshev, A.I. Shakhurin, I.A. Likhachev, D.F. Ustinov e B.L. Vannikov.
Haviam encontrado chefes industriais que podiam trabalhar juntamente
com as organizações do partido para conseguir o impossível nos momentos
críticos, para fabricar material de emprego militar em tempo fantasticamente
curto. Stalin conhecia pessoalmente todos os seus comissários e muitos gerentes
de fábricas e, com frequência, convocava-os para consultas. Vannikov lembrava
de que o próprio Stalin participou diretamente do desenvolvimento da
indústria de defesa, se bem que o membro do Politburo oficialmente
responsável pela missão fosse N.A. Voznesensky (cujo importante papel
durante a guerra tem sido muito desprezado). Não sendo um especialista,
Stalin, nos seus contatos com os projetistas, valia-se mais da “pressão”, ou
mesmo das ameaças, que da ciência. Vannikov recorda de Stalin dizendo:
“Projetistas guardam sempre alguma coisa em reserva, nunca lhe mostram
todas as possibilidades: você tem que pressioná-los duramente.” E Stalin sabia
fazer isso. Ustinov relembrou em suas memórias que todo um sistema de
artilharia foi criado no curtíssimo prazo sem precedentes de dezoito dias.72 O
envolvimento de Stalin com as questões de defesa, no entanto, muitas vezes
resultava em efeitos danosos. Por exemplo, nas vésperas da guerra, o marechal
Kulik, então chefe da administração principal da artilharia, juntamente com
Zhdanov propuseram aumentar o calibre dos canhões dos carros de combate de
45mm e 75mm para 107mm. Stalin concordou de pronto, lembrando-se dos
canhões deste último calibre durante a guerra civil. Contudo, ele estava
raciocinando com a artilharia de campanha, enquanto o que estava sendo
proposto requeria blindados muito mais pesados. O comissário de armamentos
Vannikov e os gerentes de fábricas Elyan e Fradkin protestaram timidamente
com Stalin, Zhdanov e Kulik, mas foi em vão. Os argumentos dos engenheiros
não convenceram Stalin. Uma reunião foi convocada e, de acordo com as
lembranças de Vannikov, a conversa assumiu um tom ameaçador. Stalin
vociferou para os presentes: “Vannikov não quer fazer canhões de 107mm para
os carros de combate.” Zhdanov logo o apoiou: “Vannikov é contra tudo, é seu
modo de trabalhar.” Não adiantava e era perigoso argumentar.
A ordem de Zhdanov, sancionada por Stalin, interrompeu no limiar da
guerra a produção de canhões de calibres menores para os blindados. Foi um
engano terrível, e o curso da guerra logo tornou necessária a revogação daquela
ordem e o retorno à fabricação dos antigos canhões. Mas perdera-se tempo.
Um mês depois da deflagração da guerra, Stalin achou seus bodes expiatórios,
Zhdanov e Kulik, a quem acusou diretamente ante o Politburo, incapaz de
admitir seu próprio erro.
A Décima Oitava Conferência do Partido, em fevereiro de 1941, foi
devotada quase que por inteiro às questões de defesa. O relatório de Malenkov,
secretário do Comitê Central que estava muito ativo na ocasião, foi sobre “A
missão das organizações do partido no campo da indústria e dos transportes” e
tratou da conversão da indústria para a produção de guerra. Stalin propôs que,
em 1941, a produção industrial aumentasse em 17 a 18%. Aquilo não parecia
fora da realidade. Em 1940, por exemplo, a fabricação de material bélico
crescera 27% em relação à de 1939. É fácil esquecer-se, quando se pensa nos
horrores do stalinismo, que existia também o surpreendente fenômeno
socialista de devoção ao trabalho e orgulho pelas conquistas. É verdade que,
muitas vezes, as pessoas eram motivadas pelo medo, porém, apesar disso,
tornavam realidade planos que hoje seriam considerados fantasias. A nação
estava preparada para um período de sacrifício desde que fosse pela salvação da
Mãe Pátria. E não se trata de palavras vazias. Se o orçamento da defesa no
período de 1928 a 1933 foi de apenas 5,4% do produto nacional bruto, em
1941 cresceu para 43,4%,73 o que representou sérias provações para o povo. O
descumprimento das ordens de Stalin podia ter consequências desastrosas, e
todos sabiam disso. Mas a influência não foi só das ameaças. O povo sabia que
uma guerra se aproximava e que teria de fazer o impossível. Quando Hitler
invadiu a URSS, 2.700 aviões de modelos novos e 4.300 carros de combate,
metade deles também de um novo modelo, tinham sido fabricados.74
A maior produção foi acompanhada de severa disciplina em todos os
campos, com medidas administrativas e penais extraordinariamente duras
aplicadas aos que prejudicavam a produção. O nível de ausência no trabalho
caiu drasticamente, mas Stalin dizia repetidas vezes a Poskrebyshev que era
necessário mais esforço: “Diga aos comissários que a batalha pela disciplina
apenas começou!”
Ao mesmo tempo, Mekhlis, o novo comissário para o Controle do Estado,
conduziu a campanha de Stalin para extrair mais esforço por parte dos líderes
do partido. Na Décima Oitava Conferência do Partido, por exemplo, seis
membros do Comitê Central, incluindo M.M. Litvinov e Ye.A. Shchadenko,
foram rebaixados a membros suplentes; quinze perderam suas posições como
membros candidatos, entre eles a mulher de Molotov, Polina Zhemchuzhina;
nove pessoas foram afastadas da comissão central de revisão. A razão
apresentada foi a de que elas “não cumpriram a missão”. Os comissários M.M.
Kaganovich, M.F. Denisov, I.P. Sergeev, Z.A. Shashkov, A.A. Ishkov e V.V.
Bogatyrev foram todos alertados de que “se não se comportassem corretamente,
se não concretizassem as tarefas a eles atribuídas pelo partido e pelo governo,
seriam rebaixados de seus cargos nos órgãos de direção partidária”. Tal alerta
revelou-se fatal para alguns. Entrementes, as funções vagas foram
principalmente assumidas por militares, incluindo-se Zhukov, A.I.
Zaporozhets, I.V. Tyulenev, M.P. Kirposonov, I.S. Yumashev e I.P. Apanasenko,
entre outros. O próprio Stalin passou a trabalhar de dezesseis a dezessete horas
por dia, e o reflexo amarelado de seus olhos esmaeceu pela falta de sono e
excesso de trabalho.
Ele sabia que só com mobilização total dos recursos do país poderia
enfrentar o desafio que se avizinhava, embora não o esperasse para muito breve.
Em maio de 1941, o Comitê Central decretou, “com o objetivo de coordenar
completamente a ação dos sovietes e dos órgãos do partido, e para a garantia da
unidade absoluta de suas atividades”, que Stalin passava a ser o presidente do
Sovnarkom, acumulando com a função de secretário-geral.
Suas decisões demandavam sacrifícios. Por exemplo, para superar o atraso
na indústria aeronáutica, o Politburo, em setembro de 1939, determinou a
construção de nove fábricas de aviões novas, que deveriam estar prontas entre
1940 e 1941, e a remodelação de outras tantas fábricas. A indústria começou
então a funcionar em ritmo frenético. Diariamente, seu comissário reportava a
Stalin sobre o número de aviões e de motores fabricados. As pessoas tinham
que permanecer nos laboratórios e nas oficinas dias e dias seguidos. A produção
deu um salto, se bem que os novos modelos só ficaram disponíveis na segunda
metade de 1940.
Tal produção forçada teve também um preço. A qualidade dos aviões, com
frequência, deixou a desejar, e passou a ocorrer um vergonhoso aumento no
número de avarias e de desastres. Stalin, é claro, acusou o pessoal da força aérea
de sabotagem e, depois de ler a última lista de desastres, ordenou que fosse
feito um relatório pelo comissário da Defesa. Em 12 de abril, Timoshenko e
Zhukov reportaram:

O Soviete Principal de Defesa do Exército Vermelho examinou a questão das panes e acidentes na
Força Aérea e concluiu que, longe de diminuir, o número deles vem crescendo devido à falta de
disciplina por parte das tripulações e da equipe de comando, que leva a violações elementares das
regras de segurança de voo. Esta falta de disciplina causa uma perda média diária de dois a três aviões,
totalizando de 600 a 900 por ano. Só no primeiro trimestre incompleto de 1941 houve 71 panes e
156 desastres, matando 141 tripulantes e destruindo 138 aeronaves.

O memorando pedia o afastamento do chefe da administração da força aérea,


Rychagov, e que diversos oficiais comandantes fossem julgados por corte
marcial. Stalin aprovou a proposta, acrescentando: “Concordo, com a única
observação de que o Camarada Proskurov seja também incluído na lista e
julgado juntamente com o Camarada Mironov [ambos altos oficiais antigos de
Estado-maior da força aérea]. Esta é a coisa honesta e justa a fazer.”75
Houve também dificuldades na produção de tanques, artilharia e munição.
Os projetistas Koshkin, Morozov e Kucherenko criaram o excelente tanque
médio T-34 em curto tempo, porém, juntamente com o tanque pesado KV,
apenas cerca de 2 mil carros de combate estavam prontos quando a guerra
começou. Os foguetes foram inventados pelos cientistas soviéticos antes da
guerra, mas a produção em série de quantidades significativas só começou
durante a guerra, quando a Katyusha, uma plataforma capaz de lançar dezesseis
granadas em dez segundos, proporcionou poder de fogo muito eficiente às
forças soviéticas.
A produção de novas armas mal tinha iniciado, na véspera das hostilidades.
No seu livro sobre economia de guerra, publicado em 1948, N.A. Voznesensky
escreveu: “A guerra pegou a indústria bélica soviética em pleno processo de
domínio da tecnologia, e a produção em massa de equipamento moderno de
emprego militar ainda não estava organizada.”76 Em março de 1941, disseram a
Stalin que só havia peças sobressalentes para suprir 30% de todas as unidades
blindadas e mecanizadas do Exército,77 e que seriam necessários mais três ou
quatro anos para completar o trabalho. A posição não era melhor na aviação,
onde só haviam sido fabricados 10 a 20% dos novos modelos, e o quadro era
mais ou menos o mesmo em todos os aspectos da indústria militar. Como
Timoshenko e Zhukov reportaram um mês antes de a guerra começar: “A
concretização do plano para o suprimento de tecnologia militar que o Exército
Vermelho necessita com tanta urgência é extremamente insatisfatória.” Stalin, o
Politburo e os comissários buscaram uma solução e a encontraram levando ao
limite máximo o esforço da população soviética. A produção passou a
aumentar em um setor e diminuir em outro, passando de uma arma para
outra, como, por exemplo, dos canhões da artilharia para as armas dos aviões e
dos carros de combate, a despeito das críticas feitas ao processo. Em função das
circunstâncias, no entanto, pode-se entender por que tais métodos foram
adotados.
Stalin também se preocupou com a agricultura. A eficiência do trabalho no
setor agrícola era extremamente baixa, comparada com a da indústria, e a
explicação que sempre davam ao secretário-geral era a de que os kolkhozniks
passavam a maior parte do tempo nas hortas de fundo de quintal ou nos tratos
de terra próximos às suas casas e não na produção coletiva. A.A. Andreyev
recebeu ordem para estudar o problema, e o relatório que fez para um pleno do
final de maio de 1939 foi intitulado “Sobre as medidas para proteger as terras
das fazendas coletivas públicas contra o esbanjamento em benefício dos tratos
privados dos agricultores coletivos”. O ponto forte do relatório de Andreyev foi
que métodos drásticos deveriam ser impostos limitando a área dos tratos de
terra privados e fixando um mínimo absoluto de dias de trabalho a ser ganho
por cada membro do grupo de camponeses, o artel.* Mais uma vez, então, a
força das ameaças, e não medidas econômicas, foi empregada para resolver o
problema.
O pleno foi presidido por Molotov. Não houve ata, mas diversos extratos,
diálogos e anotações sobreviveram nos arquivos, mostrando que Stalin e outros
líderes confiavam na técnica das diretrizes e na coação para administrar a
agricultura. Andreyev relatou que, no oblast de Kiev, 5,8% dos integrantes do
artel não trabalhavam no kolkhoz e que 18% dos kolkhozniks ganhavam apenas
cerca de cinquenta dias de trabalho, enquanto Shcherbakov relatou que, no
distrito de Nogin do oblast de Moscou, 32% das famílias não faziam qualquer
trabalho coletivo.78 O silêncio pesado do auditório foi quebrado pela voz de
Stalin:

“As pessoas que não trabalham no kolkhoz foram identificadas?”


Andreyev: “Não foi possível identificá-las, Camarada Stalin. Alguns são trabalhadores por temporada,
outros são parasitas que exploram o kolkhoz.”
Stalin: “Existem alguns que não ganham dia de trabalho em absoluto?”
Andreyev: “Sim, nem um só dia de trabalho. Vivem totalmente de seus tratos privados.”
Stalin: “Eles podem trabalhar ou são inválidos?”
Andreyev: “São trabalhadores sazonais muito idosos, mas desorganizam. Seu comportamento
confunde os kolkhozniks que trabalham honestamente.”
Pelo restante do pleno, os participantes só debateram maneiras de “compelir”, “obrigar”, “limitar”,
“forçar” os camponeses a produzirem mais. Bagirov, de Baku, propôs a nacionalização de todas as
hortas de fundo de quintal, ao que Stalin replicou: “Temos que pensar sobre isso. Você deve apresentar
planos detalhados.”
Bagirov: “Deveríamos formular uma resolução?”
Stalin: “Sim.”

Zhdanov escreveu de imediato uma resolução pedindo que Bagirov submetesse


uma proposta de nacionalização das hortas caseiras. Apresentou também para
apreciação do plenário uma emenda proposta por Stalin no sentido de que
“todos os administradores de fazendas coletivas que permitirem que kolkhozniks
e forasteiros depositem feno nas matas em bases individuais deverão ser
demitidos do kolkhoz e julgados por infringir a lei”. Como resultado, grandes
extensões de pradarias permaneceram sem cultivo e os kolkhozniks foram
proibidos de ter feno até em ravinas e matas fechadas. Houve apenas uma
objeção, a de Kulikov – as iniciais não eram normalmente anotadas naquele
tempo – que disse: “Tenho que fazer o seguinte comentário: aqui na página 3
está especificado imposto em espécie que os granjeiros particulares têm de
pagar em grãos. A região de Krasnoyarsk tem de pagar 15% em cereais. Onde
obterão esses grãos para julho? Com que reservas ficarão?” Até Stalin deu
mostras de dúvida: “Se publicarmos a diretriz em nome do Comitê Central e
do Sovnarkom”, perguntou, “não causaremos confusão para os kolkhozniks?”
“Não, pelo contrário, eles passarão a se comportar”, vieram algumas vozes
inseguras do salão. “O povo espera por isso há muito tempo.”
Nos últimos meses que antecederam a guerra, como mencionamos, a
pulsação do trabalho foi acelerada. Jornais e rádios davam notícias sobre a
guerra, a Batalha da Inglaterra, a suspensão temporária dos bailes de salão na
Alemanha, a transformação da Polônia num Governo Geral e sobre as
conquistas econômicas da URSS. Difundiram também as instruções de Stalin
ao Gosplan para que fosse feito um plano geral econômico para os 15 anos
seguintes a fim de atingir o objetivo principal de “sobrepujar os países
capitalistas na produção per capita de ferro gusa, aço, combustíveis, energia
hidroelétrica, máquinas e bens de consumo”.79
Nota

* O dia de trabalho era uma unidade de produção, e o artel, um grupo de operários ou camponeses.
[38]
O assassínio do exilado

E m meio ao esforço geral para elevar o potencial de defesa da União


Soviética, subitamente, Stalin recebeu a muito esperada notícia do
exterior de que Trotsky fora assassinado. A caça ao exilado durara
alguns anos, mas Trotsky vinha sendo bem protegido por seus seguidores e pela
polícia. Stalin criara uma unidade especial para lidar com o “problema” e, por
diversas vezes, mostrara a Beria sua insatisfação com a indecisão de seus agentes
e sua falta de desenvoltura. Agora estava feito. O duelo acabara. Ainda assim,
Stalin não sentiu qualquer alegria especial. Se acontecesse em 1937-38, teria
sido diferente, pois então via a sombra de Trotsky por trás de qualquer inimigo
importante, a mão do rival parecia estar em tudo, e suas predições tornavam-se
realidades. Trotsky fora o principal acusado em todos os grandes julgamentos,
mas, depois da insanidade daqueles anos, o ódio de Stalin de alguma forma
tinha arrefecido. Com a liquidação dos aliados de destaque do rival, o próprio
Trotsky começou a parecer menos perigoso. O fantasma da guerra era bem
mais sombrio e ameaçador que o “cidadão sem visto”.
Stalin ordenou que a informação fosse confirmada e, em 22 de agosto de
1940, apareceu uma breve notícia no Pravda:

Nova York, 21 de agosto (TASS). Segundo jornais dos EUA, em 20 de agosto, houve um atentado
contra Trotsky, que estava morando no México. O assassino disse chamar-se Jacques Mortan
Vandendraish e pertence ao círculo dos seguidores mais próximos de Trotsky.

Em 24 de agosto, o Pravda publicou que Trostky fora sepultado. O homem


que planejara o assassinato de Kirov, Kuibyshev e Gory acabara sendo morto e
por sua própria gente. Stalin leu com atenção o artigo. Ênfase demasiada em
espiões. Será que ele batalhara apenas com um espião durante todos aqueles
anos? E por que evidenciar tanto quem o matara? Como se o crime tivesse
ocorrido em Moscou e soubéssemos tudo sobre ele. A escolha infeliz de
algumas palavras poderia pôr tudo a perder.
Mas pouco a pouco, o significado da notícia foi se entranhando e Stalin
passou a saborear a ideia de que seu inimigo mais perigoso, mais inteligente e
mais persistente não mais existia, e desfrutou do triunfo dos vitoriosos. Livrara-
se de todos os velhos inimigos. Do núcleo original, sobrara apenas ele.
Logo depois da notícia sobre a morte de Trotsky, Beria, com o
conhecimento de Stalin, determinou a “liquidação de todos os trotskystas nos
campos de prisioneiros” e, na véspera da guerra, outra onda de terror varreu o
país, quase despercebida pelo sistema judiciário. Pechora, Vorkuta, Kolyma e
Solovki tornaram-se testemunhas silenciosas de uma vingança sangrenta
executada “tendo em mira” o líder assassinado da Quarta Internacional.
Apenas os títulos dos artigos de Trotsky já eram suficientes para irritar
Stalin: “Stalin, o intendente de Hitler”, “Os gêmeos celestiais: Hitler e Stalin.”
Enquanto os lia, Stalin podia ouvir claramente a voz de Trotsky recitando: “A
URSS está à beira do abismo. Todos os trunfos de Stalin de nada valerão contra
os recursos e o poderio que Hitler possui e usará contra a União Soviética.”
Ao predizer catástrofe para Stalin, Trotsky expressava a esperança de que o
“estado dos trabalhadores tivesse a chance de sobreviver”. Ele não desejava a
derrota da União Soviética, apenas que Stalin perecesse, o que esperava
acontecer com a guerra. Stalin lembrava a maneira como fora decidido o exílio
de Trotsky para o exterior. O Politburo levantara o assunto em diversas
ocasiões. Em discussões oficiosas, Kirov, Rykov, Tomsky, Kuibyshev, Mikoyan e
Petrovsky adotaram posição de cautela: talvez Trotsky tivesse mudado de ideia?
E se ele confessasse? Talvez pudesse receber uma função no segundo escalão?
Afinal de contas, ainda era muito popular. Mas Stalin não se dispunha a tal
tipo de reconciliação. Sabia que, enquanto Trotsky estivesse vivo e na URSS,
ele, Stalin, estaria em desconforto. Depois desta espécie de troca de opiniões,
que ainda era possível àquele tempo, decidiram sondar Trotsky. Um emissário
foi de Moscou a Alma-Ata. Uma ou duas semanas mais tarde chegou um
telegrama: Trotsky não tinha consciência de qualquer culpa ou de qualquer
motivo para conciliação com Stalin. O secretário-geral leu o telegrama e
passeou o olhar por seus camaradas: pois não lhes tinha dito! Tinha certeza de
que Trotsky ainda era um inimigo armado. Ninguém se opôs à decisão de
mandar o rebelde para fora do país.
Segundo os registros de Trotsky sobre este evento, publicados
postumamente em Diários do exílio, ele dissera ao emissário que não queria a
reconciliação e que Stalin era incapaz disso, de modo que todo o affair tenderia
a acabar num banho de sangue. E que ao ser reportada tal declaração ao
Politburo, Stalin teria dito que o exílio no exterior era a única solução.
Quando, mais tarde, o secretário-geral soube que Trotsky trabalhava num livro
cujo título seria simplesmente Stalin, previu uma obra particularmente
venenosa. Porém, transcorreu o ano de 1938 sem qualquer sinal do livro,
depois 1939 e já se chegara a 1940; será que o livro ia sair? Mesmo assim,
pressionou Beria para que executasse sua missão.
Todavia, não poderia saber que Trotsky, tendo decidido ser o biógrafo de
seu inimigo mortal, condenara-se a um fracasso de criação. Stalin foi seu livro
mais fraco, que só transmitiu bílis, raiva e vingança. Exercitando sua férrea
força de vontade, conseguiu escrever sete capítulos, no centro dos quais estava
Caim com as máscaras de Soso e Koba, o revolucionário, líder poderoso do país
e do povo. Mesmo sem lê-lo – e foi a única entre as obras publicadas de
Trotsky que Stalin jamais folheou – é de imaginar seu conteúdo, sabendo-se da
relação entre o autor e o objeto do livro. Foi escrito com a tinta negra do ódio.
Napoleão certa vez observou que tudo tem um limite, até o ódio. Quando se
ultrapassa o limite, algo se perde, seja a verdade, a razão ou a tranquilidade.
Nesta obra não acabada, Trotsky perdeu seu talento como publicista,
escritor e, mais importante, como historiador objetivo. Muito do que escreveu
sobre Stalin é verdade, mas também há muita suposição e muita especulação,
tudo na tentativa de mostrar como Caim se transformou em Super Caim.
Segundo o autor, Stalin nasceu vilão; desde a infância foi um monstro moral.
Nem é preciso provar a deficiência científica de tal abordagem. Ninguém pode
ser considerado um criminoso nato. Não se pode observar Stalin sob o mesmo
prisma em 1918, em 1924 ou em 1937. É a mesma pessoa, mas também não é.
Em dez anos, depois que sucedeu Lenin, mudou acentuadamente. E é aí que
reside a dificuldade para que se trace seu perfil político: enquanto,
aparentemente, batalhava pelos ideais do socialismo – por mais tortuosa que
fosse sua interpretação – cometeu crime atrás de crime.
No esforço para destronar o líder da Quarta Internacional, Stalin, é claro,
foi ajudado e encorajado pelo Comintern. Mesmo durante o período de reação
que se seguiu ao colapso das Frentes Populares, muita gente ainda pensava que
a URSS era o único bastião contra o fascismo e contra a guerra que se
aproximava. A propaganda soviética no exterior, feita por numerosos e
diversificados canais, difundia a ideia de que Trotsky era um cúmplice do
capitalismo, um espião e organizador de atos diversionários contra a URSS.
Martelada de diversas formas, a ideia surtiu algum efeito. Onde Trotsky
estivesse, fosse na França, na Noruega ou no México, enfrentava numerosos
inimigos intelectuais e políticos. Não eram apenas membros de partidos
comunistas, de sindicatos ou de organizações progressistas, mas também os
próprios seguidores, que se frustraram com a futilidade de seu programa.
A Confederação dos Trabalhadores do México e o Partido Comunista
Mexicano, sob a liderança de Lombardo Toledano, protestaram acerbamente
contra a ida de Trotsky para o México e, durante toda a sua permanência no
país, diversas organizações fizeram campanhas por sua expulsão. Temendo o
assassinato, Trotsky reduziu drasticamente suas excursões pelas montanhas ou
pela cidade e passou a receber pouquíssimas visitas. Gradualmente, diversos de
seus familiares e amigos desapareceram ou o abandonaram. Entre os que
permaneceram próximos estavam Alfred e Margarita Rosmer, que conheciam
Trotsky e sua esposa Natalya Sedova desde a Primeira Guerra Mundial. Certa
vez, numa conversa com os Rosmers, Trotsky afirmou que Stalin envenenara
Lenin. Com a falta de provas adequadas, ele criava novas e mais horríveis
máscaras para o retrato que pintava. Sustentou que, ao saber da Carta de Lenin
para o Congresso, Stalin decidira acelerar os acontecimentos. Mas até os
Rosmers ficaram em dúvida. Trotsky argumentou que, como Stalin matara
todos os camaradas em armas de Lenin, por que não mataria o próprio líder?
As organizações trotskystas do México, ajudadas pelo governo mexicano,
conseguiram encontrar uma grande casa para Trotsky no subúrbio de
Coyoacán. Ela virou verdadeira fortaleza, com portões de ferro, um sistema
especial de alarme e uma alta muralha de concreto com guarita. Pelo menos dez
policiais e agentes especiais vigiavam a residência 24 horas por dia. Trotsky até
vestia colete à prova de balas quando saía de casa. De sua praça fortificada, fez
declarações e deu entrevistas prevendo a morte rápida de Stalin e a provável
vitória alemã sobre a URSS. Os dois últimos anos de sua vida foram dedicados
à guerra ideológica contra sua antiga terra natal. Em abril de 1940, escreveu
uma conclamação intitulada: “Carta aos trabalhadores soviéticos: Vocês estão
sendo enganados!” Foi, praticamente, um apelo pela deposição de Stalin.
Quatro meses antes de morrer, Trotsky escreveu:

A Revolução de Outubro foi feita no interesse dos trabalhadores soviéticos, não no dos novos
parasitas. Por causa do retardo da revolução mundial, da fadiga e, em grande medida, do atraso dos
trabalhadores soviéticos, especialmente dos camponeses, uma nova casta de parasitas, repressora e
contra o povo, chefiada por Stalin, paira sobre a república soviética.

Trotsky perde, então, o senso da realidade e apela para que o povo se levante
contra essa “nova casta”. Para tanto, “um novo partido é necessário, uma
organização revolucionária honesta e corajosa de trabalhadores destacados. A
Quarta Internacional se dispõe a criar tal partido na URSS”. E a conclamação
termina com a reiteração das constantes prioridades de Trotsky:

Abaixo o Caim Stalin e sua camarilha!


Abaixo a burocracia predatória!
Vida longa para a URSS, fortaleza dos trabalhadores!
Vida longa para a revolução socialista mundial!
Com saudações fraternas. 25 de abril de 1940. 80

Depois de ler isso, Stalin convocou Beria e alertou-o de que estava cansado de
tudo aquilo e de que estava começando a duvidar se a NKVD queria mesmo
cumprir a missão. Beria fez várias reuniões e redobrou o esforço para liquidar
Trotsky. Parece que foi tomada a decisão de explorar toda a insatisfação sentida
por diversos organismos públicos com as atividades trotskystas, em particular
durante a guerra civil na Espanha. Como o pintor mexicano comunista David
Alfaro Siqueiros escreveu no seu livro ey called me the Dashing Colonel,
mesmo enquanto ainda estavam na Espanha, ele e seus amigos decidiram que
“fosse como fosse, o quartel-general de Trotsky no México tinha que ser
destruído, ainda que à força”.81
A guerra de palavras entre Trotsky e as organizações comunistas de vários
países era música para os ouvidos de Berlim, se bem que não externasse sua
imensa satisfação. Em diversos documentos, o Comintern condenou
vigorosamente a Quarta Internacional e seu líder “por fazerem o jogo das forças
da guerra”. Foi neste cenário que aconteceram dois atentados contra a vida de
Trotsky, o segundo, bem-sucedido. O primeiro ocorreu em 24 de maio de
1940 induzido por um grupo disfarçado de policiais e liderado por Siqueiros.
Eles crivaram de balas o quarto de dormir de Trotsky, mas o alvo e sua esposa
conseguiram se refugiar num canto do aposento e ninguém saiu ferido. Ficou
claro, então, que os perseguidores estavam decididos. Trotsky não tinha os
meios nem o desejo de fugir. Não se esconderia nem se calaria. A polícia
mexicana não conseguiu encontrar os criminosos e começaram até a circular
histórias nos jornais mexicanos e americanos de que todo o drama fora
encenado pelo próprio Trotsky para comprometer o partido comunista
mexicano e Stalin. Quando o inspetor de polícia perguntou se tinha ideia de
quem poderia ser o responsável, Trotsky respondeu: “É claro”, e cochichou no
ouvido do inspetor – “o autor do ataque é Iosef Stalin.”
O verdadeiro assassino, no entanto, estava exatamente lá. “Jacques
Mornard” era amigo da trotskysta americana Sylvia Agelof, uma das secretárias
de Trotsky. Fora um visitante regular da casa de seu alvo desde 1939, embora
só tenha se encontrado com Trotsky pela primeira vez em maio de 1940. Tinha
contatos nos círculos de negócios onde se passava por canadense de nome
Frank Jacson. De alguma forma, ganhou a confiança de Trotsky e conversaram
em diversas ocasiões, normalmente sobre “personalidades fortes”. A esposa de
Trotsky mais tarde se lembrou de que ela e o marido chegaram a especular se
não se tratava de algum tipo de fascista. Na realidade, “Jacson” era Ramon
Mercader del Rio, um espanhol a serviço de Stalin.
Em meados de agosto, “Jacson” pediu a Trotsky para corrigir um artigo de
sua autoria. Trotsky fez alguns comentários. Na noite de terça-feira, 20 de
agosto, “Jacson” voltou com o artigo corrigido e dirigiu-se ao estúdio de
Trotsky para mostrar a versão. Trotsky lia atentamente um manuscrito.
“Jacson” entrou no aposento e, como mais tarde demonstrou, colocou a capa
de chuva sobre uma cadeira, tirou uma picareta de gelo de alpinista do bolso
dela e, com os olhos fechados, atingiu com toda a força a cabeça de Trotsky. A
vítima, como “Jacson” relatou no tribunal durante seu julgamento, “emitiu um
terrível e lancinante grito que escutarei por toda a minha vida”. A agonia de
morte de Trotsky durou quase 24 horas.
Uma carta foi encontrada com “Jacson” na qual ele se dizia “um seguidor
desiludido de Trotsky que viera ao México com objetivo diferente”. A ideia de
“matar o criminoso” amadurecera enquanto estava no país. A carta explicava
que ele não podia perdoar Trotsky por “conspirar com os líderes dos países
capitalistas”. A imprensa cedo começou a indagar quem seria realmente aquele
homem. Quem guiara sua mão? E logo em coro deu a resposta: foram Stalin, a
NKVD e os comunistas. “Jacson” Mercader, entretanto, durante todo o
cumprimento da pena de vinte anos em prisão mexicana, questionado por
médicos e psiquiatras, jamais se afastou da história original.
Na verdade, ele fora o instrumento de uma operação que deveria ter sido
realizada por um grupo maior de pessoas sob a direção de um homem da
NKVD chamado Eitingon. A escolha final do autor do atentado recaiu no ex-
tenente do Exército republicano espanhol, Ramon Mercader, de 27 anos àquela
época. Ele não só tinha experiência de combate como também estava convicto
de que o levante anarquista e trotskysta contra o governo republicano em maio
de 1937 havia recebido a bênção de Trotsky. Mercader ainda estava “quente” da
guerra e viu o assassinato de Trotsky como um nobre ato revolucionário.
Depois da morte de Trotsky, Beria foi promovido, tornando-se comissário
geral da segurança do estado, sete meses mais tarde. Ele passou a administração
para V.N. Merkulov, enquanto retinha o posto de comissário para as Questões
Internas, ao qual foi adicionado o de vice-presidente do Sovnarkom.
Stalin mal se continha em esperar a divulgação do conteúdo do testamento
e da última vontade de Trotsky. A maior parte foi escrita em 27 de fevereiro de
1940 e tinha principalmente relação com o bem-estar material da esposa, mas
Trotsky encontrou espaço para escrever alguma coisa sobre Stalin:

Este não é lugar apropriado para que eu, de novo, refute a injúria torpe e estúpida de Stalin e de suas
agências: não existe mancha em minha honra revolucionária. Nem direta nem indiretamente entrei
em conchavos, tampouco conversei com inimigos da classe trabalhadora. Milhares de oponentes de
Stalin pereceram como vítimas de tais acusações falsas.82
[39]
Diplomacia secreta

P ara Stalin, diplomacia significava chegar a decisões e, se necessário, a


meios-termos que garantissem condições externas favoráveis à
consecução dos planos grandiosos que ele anunciara no último
congresso. Como chefe, podia dizer que dirigia o país para a meta de alcançar e
ultrapassar os países capitalistas desenvolvidos, mas precisava de tempo e de
paz, paz a qualquer preço. Por causa disso, tirou Litvinov do cargo de
comissário do exterior, já que o julgava por demais antifascista, substituindo-o
por Molotov. Todos os caminhos tinham que ser explorados para evitar que a
URSS entrasse em guerra. Ele não era pelas formas clássicas de diplomacia,
com visitas, congressos, conferências internacionais e cimeiras, preferindo, em
vez disso, a correspondência confidencial, os emissários especiais e as conversas
particulares, participando pessoalmente se a situação exigisse um relevo
importante. Mas era crucial que apenas um reduzido número de pessoas ficasse
engajado na diplomacia como um dos braços da política externa do país. Os
comissariados do Interior e do Exterior tinham que supri-lo com fatos e
informações necessários sobre a real situação, sobre as implicações e tendências
ocultas, a fim de que ele pudesse tomar as decisões. Dando valor especial ao
sigilo, há muito esquecera o primeiro decreto do Estado soviético, ou seja,
aquele sobre a “Paz”, que condenara a diplomacia secreta; entre dezembro de
1917 e fevereiro de 1918, enquanto Trotsky foi o comissário do Exterior, o
governo divulgara mais de uma centena de documentos sigilosos dos arquivos
do ministério czarista das relações exteriores.
Stalin, com frequência, pensou em tentar envolver os EUA na crise mundial
que se avolumava, mas não estabeleceu um contato construtivo com o
presidente dos Estados Unidos até a guerra. Fortemente desconfiado do colosso
transatlântico, tinha também dúvida se havia muita coisa que os EUA
pudessem fazer na Europa. Quando, em 15 de abril de 1939, Roosevelt
escreveu a Hitler e Mussolini – a sua chamada “surpresa de sábado” –
oferecendo-se como intermediário imparcial de todas as questões importantes e
apelando para que os líderes fascistas prometessem uma trégua de dez ou
quinze anos sem atacar trinta países de uma lista da Europa e do Oriente
Médio,83 Stalin de pronto se mostrou surpreso e cético. Debatendo a questão
com Molotov, disse: “Somente um idealista poderia imaginar que tais
propostas seriam mesmo discutidas. Hitler pegou o freio nos dentes e não será
fácil detê-lo agora.”
“Ainda assim foi uma iniciativa nobre”, replicou Molotov, “mesmo que o
mundo não esteja preparado para reconhecer isso.”
Decidiu-se que a URSS divulgaria sua opinião sobre a atitude de Roosevelt,
e um telegrama foi imediatamente enviado com a assinatura de M.I. Kalinin, o
qual, como chefe de Estado, só tinha, é claro, tomado parte formal na
deliberação:

Senhor Presidente
É meu agradável dever expressar profunda simpatia e sinceras congratulações que sinto pelo nobre
apelo que o senhor fez aos governos da Alemanha e da Itália. Esteja certo de que sua iniciativa
encontrará a mais calorosa acolhida no coração dos povos da União Socialista Soviética que se
preocupam sinceramente com a preservação da paz no mundo inteiro.
16.v.v.39 Kalinin84

Quando o enviado especial aos EUA, K.A. Umansky, foi recebido pelo
presidente em 30 de junho de 1939, Roosevelt limitou-se a expressar o desejo
de que as conversações anglo-franco-soviéticas chegassem a bom termo.
Umansky passou um cabograma para Moscou dizendo que o presidente “não se
dispunha a usar seu considerável poder moral e material para exercer influência
sobre a política inglesa e francesa”.85 A política externa foi, ocasionalmente,
debatida no Politburo, mas sempre depois de assentada por Stalin e Molotov.
Por vezes, eles convocavam especialistas dos comissariados interno e externo,
bem como pessoal de informações do Exército, para assessorá-los sobre
questões específicas, porém a política era determinada por Stalin com
aconselhamento e sugestões de Molotov, cujos pontos de vista nem sempre
coincidiam com os de seu chefe.
Entrevistado pelo escritor Konstantin Simonov, Zhukov contou que esteve
presente no gabinete de Stalin durante o debate de matérias importantes com
seu círculo mais próximo: “Testemunhei discussões, altercações e resistência
obstinada sobre alguns pontos, especialmente da parte de Molotov, e a situação
chegava a tal ponto que Stalin se via obrigado a elevar a voz, extremamente
excitado, enquanto Molotov simplesmente se levantava, com um sorriso
estampado no rosto, e mantinha sua posição.”86 Stalin ficou impressionado
com o que Molotov contou de seus encontros com Hitler. O próprio Stalin só
conheceu Ribbentrop. Frequentemente se referia aos líderes nazistas como
“desonestos”. De acordo com F. Haus, chefe do departamento jurídico do
departamento alemão do exterior, mesmo durante as negociações sobre a
conclusão do Pacto, Stalin não se conteve e resmungou sarcasticamente para a
delegação alemã alguma coisa relacionada com “fraude”. E, na ocasião da
própria assinatura, Stalin disse: “É evidente que não esquecemos que o objetivo
final de vocês é atacar-nos.” Nas discussões que sustentava com Molotov sobre
a possibilidade que tinha de retardar a guerra, o secretário-geral várias vezes
voltou ao assunto da figura de Hitler, sabendo muito bem o quanto, num
Estado totalitário, dependia da vontade do ditador. Mas, no trato com os
alemães, Stalin mal escondia seu maquiavelismo. Quando o Pacto foi assinado,
Stalin levantou sua taça de champanhe e brindou sem ironia: “Bebamos em
hora do novo Stalin anti Comintern! Bebamos pela saúde do líder do povo
alemão, Hitler!”
Ribbentrop, de pronto, correu para o telefone do escritório de Molotov,
onde as negociações ocorreram, e reportou para Hitler que o Pacto fora
assinado e o que Stalin dissera. Como um jubiloso Ribbentrop disse
imediatamente a Stalin, Hitler replicara: “Oh, meu grande ministro do
Exterior! Você não sabe quanto conseguiu! Transmita minhas congratulações a
Herr Stalin, o líder do povo soviético.” Quando ouviu isto, Stalin voltou-se
para Molotov e deu-lhe uma quase imperceptível piscadela.
O Pacto poderia não ter sido assinado em 23 de agosto pois, naquele dia, os
dois gigantescos aviões de transporte Condor, que conduziam a delegação de
Ribbentrop a Moscou, receberam tiros quando sobrevoavam a região de Velikie
Luki. As unidades de defesa antiaérea que vigiavam o espaço aéreo daquela rota
não receberam alertas específicos e só por sorte os aviões alemães não foram
abatidos. Este fato foi confirmado por M.A. Liokumovich, que servia na
unidade que abriu fogo, numa entrevista com o autor. Naturalmente, no
mesmo dia, um encorpado grupo de agentes da NKVD voou de Moscou para
investigar o incidente e encontrar os autores da “provocação”.
A segunda ação com que Stalin se envolveu foi o deslocamento da fronteira
soviética mais para oeste, assunto que já apreciamos, mas que vamos detalhar
um pouco mais. A decisão de tomar a Ucrânia e a Bielorrússia ocidentais, em
face do avanço dos exércitos alemães, foi, a meu ver, justificável e, de um modo
geral, veio ao encontro do desejo da classe trabalhadora da população local.
Porém, infelizmente, a ação de Stalin, violando o Tratado de Riga de 1921, foi
influenciada por seus acordos com Hitler sobre fronteiras futuras e “rearranjos”
territoriais. Na ausência de originais, podemos citar diversos outros
documentos que confirmam plenamente que houve um entendimento.
Em 10 de setembro de 1939, Beria enviou uma nota a Molotov: “Em
conexão com futuras alterações no desdobramento das tropas de fronteira da
NKVD dos distritos militares bielorrusso e ucraniano, a linha de fronteira do
Estado soviético fica aumentada de 1.412 para 2.012 quilômetros, ou seja, de
600 quilômetros.” Beria propôs que um novo distrito militar fosse formado por
cinco unidades de fronteira.87 Quando as tropas soviéticas entraram na Ucrânia
e na Bielorrússia ocidentais, a linha demarcatória entre elas e as forças alemãs
foi estabelecida segundo um mapa secreto acertado pelos dois lados nas
negociações de agosto. Isto se deduz do seguinte documento:

Do adido militar alemão em Moscou, general Köstring, para o Estado-maior do Exército Vermelho:
1. Solicito que o Chefe do Estado-maior do Exército Vermelho, Shaposhnikov, seja informado de que,
às 22h30, recebi a resposta de meu governo pela qual, seguindo as negociações, a cidade de
Drogobych foi entregue hoje, 24 Set 39, às 18h, sem dificuldades, a unidades do Exército Vermelho.
2. Ficou acertado também que a cidade de Sambor será entregue na manhã de 24 Set. Repito que não
surgiram dificuldades durante as conversações e estou muito satisfeito com o fato de tudo ter corrido
tão bem.
3. É meu dever reportar que, segundo o pessoal de nossa Força Aérea, grandes reservatórios de
petróleo estão queimando em Drogobych há dez dias. Circulam rumores locais de que eles foram
incendiados por alemães, mas peço que não acreditem, já que tal material também era necessário para
nós.
4. No que respeita a vagões ferroviários, o Estado-maior do Exército Vermelho sabe que agimos de
acordo com os protocolos.
Isto é tudo o que eu desejava reportar de imediato. Köstring
Recebido pelo ajudante do Chefe do Estado-maior do Exército Vermelho, comissário regimental
Moskvin.88

Outros documentos semelhantes mostram que Stalin achou necessário


concordar com esses e outros “detalhes”, tais como a entrega a Hitler de
diversos grupos de alemães e austríacos antifascistas que haviam sido detidos
nos anos 1930, e que agora estavam em prisões ou sob investigação. Durante as
reuniões de agosto entre Molotov e Schulenburg, o embaixador alemão
levantou várias vezes a questão dos “cidadãos alemães presos na URSS”, e sua
entrega ao Reich.89 Depois da assinatura do Pacto, e mais ainda depois dos
protocolos secretos, Hitler não teve dificuldade em conseguir o que queria.90
A recusa da Inglaterra, nas conversações tripartites, em dar garantia mais
ampla de segurança aos Estados bálticos não deixou sombra de dúvida de que
aqueles Estados seriam presas fáceis para Hitler. Como consequência das
negociações de 28 de setembro de 1939, um acordo de assistência mútua foi
assinado com a Estônia, em 5 de outubro com a Letônia, e em 10 de outubro
com a Lituânia, à qual Vilna e a região de Vilna estavam incorporadas. Stalin
tomou parte em todas as conversações e cerimônias ligadas aos tratados
bálticos, demonstrando a importância que a URSS emprestava a tais acordos.
Outro passo significativo foi a nota soviética à Romênia, de 26 de junho de
1940, exigindo a devolução da Bessarábia, cuja tomada pela força a URSS
jamais reconhecera.
Mas Stalin não seria Stalin se as providências que tomou não fossem
também acompanhadas de sofrimento e dor. Em todos os territórios anexados,
na Ucrânia e Bielorrússia ocidentais, no Báltico e na Moldávia (Bessarábia), ele
determinou de imediato a “triagem dos elementos hostis”: kulaks, burguesia,
negociantes, ex-guardas brancos, nacionalistas ucranianos em geral, todos
categorias “suspeitas”. Muitos deles tomaram o conhecido caminho da Sibéria.
Os acordos econômicos, comerciais e de fronteiras tinham a intenção de
reafirmar o entendimento germano-soviético sobre neutralidade e, levando-se
em conta a natureza desconfiada de Stalin, surpreende que ele não tenha se
posto em estado de alerta em função de algumas ações de Berlim. Por exemplo,
em janeiro de 1941, os alemães se recusaram a assinar o chamado “Acordo
Econômico” por um prazo longo, depois limitaram-no a 1941. Stalin foi
também informado de que, na véspera da assinatura do tratado que estabelecia
a fronteira alemã-soviética do rio Igorek até o mar Báltico, os funcionários
alemães fizeram grandes concessões, sem brigar por onde passaria a linha
divisória em cada colina, desavenças normais em qualquer negociação sobre
fronteiras. Como o Pravda ressaltou, o tratado sobre fronteiras “foi negociado
em tempo extremamente curto, como jamais ocorreu na prática mundial”.
Stalin e os outros líderes soviéticos deveriam ter percebido que os alemães não
se preocupavam com a exatidão da demarcação porque a estavam considerando
puramente temporária. O Plano Oldenburg, que acompanhou a Operação
Barbarossa, visualizava a fronteira do futuro império bem mais para o leste.
Hitler não concebia suas ideias sobre o Lebensraum alemão em cima de
abstrações, mas Stalin carecia do estadismo e da perspicácia para dar o devido
valor a estas e outras noções. Em vez disso, manteve-se prisioneiro de seu
próprio cálculo errado sobre a oportunidade da invasão alemã.
Durante esse período pré-guerra, houve uma ação diplomática final pela
qual Stalin foi responsável, que foi o tratado de neutralidade assinado com o
Japão. No final de março de 1941, o ministro nipônico do Exterior, I.
Matsuoka, chegou em Moscou. A primeira rodada de negociações não
produziu resultados, uma vez que os japoneses insistiam em que a URSS lhes
vendesse a Sakalina do Norte. Stalin, que participou das conversações,
permaneceu em silêncio enquanto o ministro japonês falava, mas logo golpeou
a demanda com uma frase simples: “O senhor está brincando?” Pareceu que as
negociações seriam rompidas. Matsuoka despediu-se friamente dos anfitriões
soviéticos e partiu para Berlim, retornando depois em 8 de abril para novas
conversas. Um tratado afigurava-se inviável, pois os japoneses continuavam
com seus pleitos inaceitáveis. Porém, naquela ocasião, a firmeza de Stalin deu
frutos porque, no dia previsto para a partida de Matsuoka, este recebeu novas
instruções de Tóquio, retirou as reivindicações e o tratado sobre neutralidade
foi assinado na mesma noite. A posição da URSS no Extremo Oriente
melhorou sensivelmente com aquele ato. Os japoneses concordaram também
com o respeito à integridade territorial e à inviolabilidade da República Popular
da Mongólia. O tratado, porém, não deixou de trazer inconveniências para o
lado soviético. O governo chinês se opôs abertamente a ele. Já em 27 de agosto,
em seguida à assinatura do Pacto Molotov-Ribbentrop, o embaixador chinês
em Moscou, Sung Fo, solicitou uma audiência com o vice-comissário de
relações exteriores, S.A. Lozovsky, e declarou francamente: “Estamos
preocupados com duas questões: 1) os rumores de um pacto de não agressão
entre a União Soviética e o Japão, e 2) os rumores de um acordo entre
Inglaterra e Japão. Da perspectiva dos interesses nacionais da China, nenhum
dos dois é bom. Se a URSS fizer um pacto de não agressão com o Japão, isso
levaria inevitavelmente a uma diminuição de sua assistência à China.” Lozovsky
respondeu: “No que tange a um acordo de não agressão entre Japão e URSS,
de nada sabemos. Houve uma ocasião em que a URSS propôs tal medida, mas
o Japão declinou. A questão agora não está na agenda.”91
Essa fora a posição dezoito meses antes, mas agora Stalin estava ávido por
reduzir a pressão no seu flanco oriental.
Durante os últimos cinco anos, as relações entre Japão e URSS vinham
sendo marcadas pelo conflito, pela fricção, pela frequente e áspera troca de
notas e por importantes escaramuças armadas. A mais séria delas – envolvendo
um milhão de soldados! – ocorrera na Mongólia, em Khalkin Gol e no lago
Khasan, e, sem dúvida, foi a razão para que, finalmente, os japoneses
decidissem assinar o tratado. Stalin sabia que proporcionava liberdade de ação
aos japoneses para o desencadeamento do Plano Tanaka, de 1927, para a
conquista do Pacífico, mas não tinha escolha – Hitler era ameaça maior.
Matsuoka partiu naquela mesma noite e, poucos minutos antes de o trem
deixar a estação, Stalin surgiu, acompanhado de um grande número de
seguranças, para apresentar despedidas pessoais, deixando o ministro japonês
em total estupefação. Ao apertar a mão dos convidados que partiam, Stalin
reiterou a importância que conferia ao tratado recém-assinado, bem como à
declaração de respeito mútuo pela integridade territorial e a inviolabilidade de
Manchukuo e da República Popular da Mongólia. Aproveitou também a
oportunidade para agradecer aos diplomatas alemães que acompanhavam
Matsuoka.
Stalin estava dividido: sabia que a guerra seria inevitável, mas, apesar disso,
recusava-se a acreditar que era iminente. Por isso, repetia com insistência que
“não podemos ser provocados”. Os alemães, nesse ínterim, percebendo que o
único objetivo de Stalin era ganhar tempo, tornaram-se mais atrevidos. Por
exemplo, a partir do início de 1941, aviões alemães passaram a violar às
dezenas a fronteira, avançando cada vez mais no espaço aéreo soviético. Mesmo
se forçados a aterrar, os aviões e as tripulações eram imediatamente devolvidos
à Alemanha. Quando, pouco antes da guerra, uma unidade soviética de
fronteira abateu um avião de reconhecimento matando dois tripulantes, Stalin
ordenou a punição dos responsáveis enquanto passou um telegrama ao enviado
soviético em Moscou, Skornyakov, determinando: “Vá imediatamente a
Goering e expresse pesar pelo incidente.”92
Quando Mussolini viu que não podia se estabelecer nos Bálcãs sem ajuda,
apelou para o Führer, que concordou, desde que o exército italiano fosse
colocado totalmente sob comando alemão. Na oportunidade em que as forças
de Hitler começaram a se concentrar para a invasão da Grécia e da Iugoslávia,
esta última propôs um tratado de não agressão e de amizade com a URSS. Já
em 17 de janeiro de 1941, Stalin dissera a Berlim que a URSS considerava a
parte oriental da península balcânica como zona de segurança soviética, e que
não poderia ficar indiferente aos eventos que ocorressem na região. Como um
sinal a mais a Hitler de que a URSS não desejava espraiar a guerra pelos Bálcãs,
Stalin assinou o Pacto URSS-Iugoslávia, em 5 de abril de 1941. Hitler,
contudo, decidiu humilhar Stalin e ignorou os dois sinais; poucos dias depois
da assinatura do tratado aludido, forças alemãs invadiram a Iugoslávia.
Ficou claro desde meados de 1940, tanto para Stalin como para Hitler, que
as relações entre eles estavam se deteriorando. Hitler convidou Stalin a visitar
Berlim, mas Moscou decidiu enviar Molotov no lugar do secretário-geral. Na
véspera da partida de Molotov, em novembro de 1940, ele e Stalin, com a
presença de Beria, gastaram longo tempo tentando decifrar o que Hitler
poderia querer e o que os soviéticos poderiam fazer para que a paz persistisse
por pelo menos mais um par de anos.
Molotov foi recebido na estação ferroviária de Berlim por Ribbentrop,
Keitel, Ley, Himmler e outros nazistas do alto escalão, cuja presença deixava
patente o grande significado que Hitler emprestava à visita. Com a derrota
inevitável da Inglaterra, como eles supunham, desejavam atenuar o temor de
seu poderoso vizinho e deixá-lo desprevenido.
Como já mencionamos, durante as negociações, Hitler e Ribbentrop
passaram mais de duas horas tentando distrair Molotov com conversas sobre
“esferas de influência”, “iminente desmoronamento do Império Britânico” e
coisas assim. Molotov, por seu lado, demonstrava completo desinteresse pelos
planos globais germânicos e insistia em conseguir respostas para questões
concretas, tais como: por que havia tropas alemãs na Finlândia; quando seriam
as tropas alemãs retiradas da Bulgária e da Romênia; por que a Hungria se
juntara ao Pacto Tripartite [de Alemanha, Itália e Japão]. Hitler ficou muito
desapontado. Nada que dissesse desviaria o rumo de Molotov, que continuava
deixando claro que a única preocupação de Moscou naquele momento eram as
suas relações com a Alemanha. Quando Hitler acompanhou Molotov ao
Grande Salão da nova Chancelaria, pegou o soviético pelo braço e disse: “Eu sei
que a História se lembrará de Stalin. Mas também se lembrará de mim.”
Molotov, impassível como de hábito, replicou: “Sim, senhor, claro que se
lembrará.”
Poucas semanas mais tarde, em 18 de dezembro, Hitler sancionou o plano
da Operação Barbarossa, especificando que “o poder fundamental das forças
terrestres da Rússia desdobradas no oeste daquele país tem que ser destruído
por meio de operações decisivas que utilizem o emprego do movimento rápido
e profundo dos blindados como pontas de lança. A retirada e a dispersão das
tropas combatentes inimigas pelas vastidões do território russo têm que ser
evitadas”.93 Mas Molotov não percebeu nada disso e continuou acreditando
que, embora fosse acontecer, a guerra não viria imediatamente.
Stalin foi muito cuidadoso na observância dos termos do Pacto de Não
Agressão com a Alemanha e, no primeiro aniversário de sua assinatura, a
imprensa soviética abriu considerável espaço para o Pacto. Por sua vez, os
alemães mal assinalaram a ocasião. Entretanto, um mês depois, em 27 de
setembro, eles assinaram o Pacto Tripartite com Japão e Itália, que permitia que
os dois países continentais criassem a “nova ordem na Europa”, enquanto o
Japão ficava livre para fazer o mesmo no Extremo Oriente. No dia seguinte,
quando o tratado alemão-soviético sobre amizade e fronteiras completava um
ano, os alemães o comemoraram. Ao ler os relatórios da embaixada soviética
em Berlim, Stalin ficou admirado com a audácia de Hitler.
Discutindo os últimos eventos com Molotov, Stalin, que então já deveria
estar ciente da realidade com que se defrontava, persistiu em sua crença de que
a guerra, apesar de inevitável, ainda estava dois ou três anos longe. Em vez de
consultar seus líderes militares e seus diplomatas, confiou no próprio
julgamento, embora soubesse que, de qualquer forma, aqueles auxiliares
tentariam concordar com ele. A burocracia que cultivara com tanta assiduidade
só era capaz de aprovar suas decisões. Ele colhia então os frutos do mando de
uma só pessoa. Zhukov se lembrou de certa ocasião em que Stalin esbravejou
para dois funcionários qualificados de seu secretariado:
“De que adianta falar com vocês? A tudo que eu digo vocês só sabem
responder ‘Sim, Camarada Stalin’, ‘É claro, Camarada Stalin’, ‘O senhor tomou
a decisão mais sábia, Camarada Stalin.’”
Afora Molotov, Voznesensky e Zhdanov, que, se não discordavam realmente
de Stalin, pelo menos ofereciam a oportunidade de algum debate, todos os
outros membros do Politburo nada mais faziam que, obedientemente,
concordar com ele. Para Stalin, aqueles ocupantes de altos cargos eram meros
executores de suas ordens. Ninguém duvidava do seu juízo de valor. Mesmo
quando suas decisões, às vésperas da guerra, pareciam confrontar a realidade,
ninguém se permitia pensar que o líder estivesse errado. Eles simplesmente
achavam que não tinham entendido por completo tudo o que se passava na
mente do mestre. Zhukov recordava-se da enorme fé que depositava na
sapiência política de Stalin e na sua capacidade de adiar a deflagração da
guerra.94
Nos últimos dois meses que antecederam a guerra, Stalin recebeu alguns
relatórios de diferentes fontes, não só de informações e diplomáticas, alertando-
o quanto ao iminente ataque de Hitler à URSS. Os governos inglês e
americano também mandaram avisos. Churchill, já então primeiro-ministro,
enviou um relatório afirmando que os alemães deslocavam consideráveis
efetivos de suas tropas para o leste. Stalin descartou o alerta como outra
tentativa inglesa de empurrar a URSS ao confronto com Hitler. Mais tarde, em
Moscou, em 1942, ele disse a Churchill que não precisou de tais avisos porque
sabia perfeitamente que Hitler atacaria. Só esperava ganhar mais uns seis meses
ou algo perto disso.95 Alertas semelhantes se acumularam a tal ponto que Stalin
julgou prudente checá-los com a própria Berlim. Em 14 de junho de 1941,
ordenou à TASS que publicasse um desmentido sobre rumores de
concentração de tropas germânicas nas fronteiras da URSS, tachando-os de
tolice e de propaganda canhestra de forças hostis à Alemanha e à URSS:

A Alemanha está observando os termos do Pacto de Não Agressão com tanto escrúpulo quanto a
URSS e, portanto, os rumores sobre intenções da Alemanha de violar o Pacto e atacar a URSS não
têm fundamento, devendo o deslocamento de forças alemãs dos Bálcãs para áreas a leste e nordeste da
Alemanha estar vinculado a outros motivos não ligados às relações germano-soviéticas.

Uma declaração estranha como esta foi explicada, depois da guerra, por um
funcionário soviético importante como uma sondagem diplomática normal,
mas foi lida por milhões de cidadãos soviéticos e por todas as Forças Armadas,
resultando num efeito profundamente desorientador. Tal “sondagem” deveria
ter sido conduzida secretamente e os resultados divulgados pelo menos aos
comandantes superiores das forças armadas, ao comissariado de Defesa e aos
distritos militares. Por toda parte, ela foi entendida da mesma maneira, de
acordo com L.M. Sandalov, oficial de Estado-maior durante a guerra:

Vinda de um órgão estatal competente, uma declaração daquelas tendeu a entorpecer a vigilância das
forças. Os oficiais se convenceram de que havia circunstâncias desconhecidas que faziam com que o
governo se despreocupasse e ficasse seguro quanto às nossas fronteiras. Os oficiais deixaram de
pernoitar nos quartéis. Os soldados começaram a se desequipar para dormir.96

Enquanto Berlim ignorava a declaração, o povo soviético, treinado para


acreditar em tudo, ficou ainda mais convicto de que a guerra era improvável.
Ao passo que o tempo escoava e as tropas alemãs progrediam obviamente para
o leste, Stalin ainda se valia da diplomacia, do envio de notas, da publicação de
comunicados da TASS, deixando de tomar a decisão de pôr as forças armadas
em prontidão total para o combate.
Moscou esperou a resposta alemã com inquietação crescente. Todavia, a
embaixada soviética em Berlim reportou que os alemães se recusavam
peremptoriamente a responder. Uma nota relatando uma violação de espaço
aéreo foi passada a Berlim, mais uma vez sem provocar resposta. Em Moscou,
Molotov convocou o embaixador alemão para explicar o incidente e também
para forçar uma resposta à nota da TASS, ao mesmo tempo em que, em
Berlim, o embaixador soviético tentava um encontro com Ribbentrop. Tudo
em vão. Enquanto Stalin esperava por garantias alemãs sobre o Pacto, Hitler
escreveu em 21 de junho a Mussolini para dizer que esperava completo sucesso
em sua campanha no leste:

O que quer que aconteça, Duce, nossa posição não vai piorar com esse passo, só pode melhorar...
Agora que tomei a decisão, sinto-me mais livre. Considerei a cooperação com a União Soviética, a
despeito da tentativa sincera de encontrar uma détente, por demais onerosa. Porque a mim ela parecia
um rompimento com meu passado, minha visão e meus compromissos anteriores. Estou satisfeito por
sacudir esse peso moral.
[40]
Omissões fatais

U m mês antes do ataque alemão, Stalin, falando a um grupo de


auxiliares mais próximos, disse: “O conflito é inevitável, talvez em
maio do ano que vem.” Pelo início do verão de 1941, reconhecendo
que a situação ficava explosiva, aprovou a formatura antecipada de cadetes, e
foi assim que jovens oficiais e comissários políticos, quase sem direito à licença
de trânsito, foram classificados diretamente nas unidades que estavam com
efetivos desfalcados. Depois de muita hesitação, Stalin decidiu também
convocar 800 mil reservistas, completando as dotações em pessoal de 21
divisões dos distritos militares da fronteira. Infelizmente, isso foi feito duas ou
três semanas antes do ataque.
Em 19 de junho, as tropas receberam ordem para começar a camuflar pistas
de pouso, instalações de transportes, bases e depósitos de combustíveis, e
dispersar as aeronaves pelos campos de pouso. As ordens foram dadas
desesperadamente tarde e, mesmo assim, Stalin temia que “todas essas medidas
provoquem as forças da Alemanha”. Timoshenko e Zhukov tinham que lhe
solicitar duas ou três vezes para que aprovasse ordens operacionais. Embora
concordasse com os militares, ele se apegava à ideia de que Hitler não arriscaria
lutar em duas frentes e não percebia que, de fato, não havia uma segunda
frente real, em meados de 1941.
A natureza dos erros de cálculo de Stalin não residia somente em suas
avaliações equivocadas, em suas previsões erradas, ou mesmo na determinação
do agressor, embora, evidentemente, todos esses fatores estivessem presentes.
Seus enganos imperdoáveis derivaram do mando pessoal. É difícil acusar os
comissários ou o Soviete Principal de Guerra, quando a imagem do chefe era a
de um líder infalível e sábio. A lembrança dos julgamentos políticos ainda era
muito recente, e qualquer “mal-entendido”, “objeção” ou sinal de “imaturidade
política” poderia resultar e ainda resultava em sérias consequências.
Para agradar Stalin, todos falavam sobre a “invencibilidade do Exército
Vermelho”, o “endurecimento das atitudes do proletariado na Alemanha” e
sobre como as dificuldades internas do capitalismo fariam com que aquelas
nações “implodissem”. A imprensa escrita, o rádio e até os especialistas
acadêmicos diziam coisas semelhantes. Por exemplo, Ye. Varga, renomado
assessor econômico de Stalin (que mais tarde caiu em desgraça), disse durante
uma palestra proferida na Academia Político-Militar Lenin, em 17 de abril:

Levanta-se a questão: haverá vitoriosos e derrotados nesta guerra, ou ela perdurará por tanto tempo
que nenhum dos lados será capaz de derrotar o outro? Os interesses da URSS demandam a
preservação da paz até que uma crise revolucionária amadureça nos países capitalistas. Se surgir uma
situação assim, os regimes burgueses se enfraquecerão, o proletariado conquistará o poder e a União
Soviética terá de ir, e irá, em ajuda das revoluções proletárias de doutros países.97

Tais opiniões estavam disseminadas pelo país naquela ocasião e tinham sido
herdadas da guerra civil. Por outro lado, mesmo àquele tempo, funcionavam
mentes mais sóbrias e corajosas. Por exemplo, em 1940, um grupo da academia
acima citada preparou um documento de 35 páginas sobre “Ideologia militar”
que foi mostrado a Stalin. Em paralelo com o pensamento ortodoxo que
vigorava, uma série de questões heréticas foi levantada. Os autores enfrentaram
de peito aberto as causas do fracasso da URSS na guerra soviética-finlandesa: o
baixo nível cultural dos oficiais, a propaganda falsa sobre a invencibilidade do
Exército Vermelho, a “apresentação incorreta das missões internacionais do
Exército Vermelho”, o “preconceito prejudicial e profundamente arraigado,
inevitável e praticamente sem exceção, de que as populações dos países em
guerra com a URSS supostamente se levantariam e bandeariam para o lado do
Exército Vermelho”. Conversas sobre “invencibilidade levam à arrogância, à
superficialidade e à negligência da ciência militar; no campo da tecnologia,
conduzem ao atraso; e no campo da teoria militar, ao desenvolvimento
unilateral de noções de combate em detrimento de outras”. O estudo da teoria
estrangeira de guerra, segundo o memorando, fora suprimido por completo,
enquanto as melhores tradições do exército russo não foram popularizadas. A
experiência de Khalkin Gol e do lago Khasan era desconhecida da chefia
militar: “O material sobre essas batalhas permanecia envolto em mistério pelo
Estado-maior.” O despacho de Stalin não passou de um “Arquive-se”.98 A sorte
dos autores do trabalho não é conhecida.
Na minha opinião, o maior erro de Stalin foi a assinatura do tratado de
amizade e fronteiras com Hitler, em 28 de setembro de 1939. Seria suficiente –
e há justificativa para tanto – assinar o Pacto de Não Agressão do mês anterior,
menos os protocolos secretos. Nas resoluções do Comintern e nas do XVIII
Congresso do partido, o nazismo foi adequadamente definido como um regime
terrorista, militarista e ditatorial, e como a falange mais perigosa do
imperialismo mundial. Nas mentes soviéticas, ele era a personificação do
inimigo de classe em forma concentrada. E agora, não mais que de repente,
eram seus melhores amigos!
É difícil explicar o desvio cínico de Stalin para uma política de coonestação
do fascismo. Pode-se até entender a tentativa de escorar o Pacto de Não
Agressão com acordos de comércio e laços econômicos. Mas negar todas as
anteriores premissas ideológicas antifascistas foi demais. Os planos
expansionistas da Alemanha não eram entendidos com propriedade por Stalin.
Por exemplo, a “Declaração dos Governos Soviético e Alemão” assevera que “o
acordo mútuo é de opinião que o fim da guerra entre Alemanha, de um lado, e
a Inglaterra e a França, do outro, viria ao encontro dos interesses de todos os
povos”.99 No entanto, estes povos poderiam muito bem perguntar como isso
seria possível. Deveriam aceitar e se conformar com a tomada da maior parte
da Europa por Hitler? Como poderia a Polônia, em ruínas que estava, aprovar
a “assistência mútua” assinada por Molotov e Ribbentrop?
Em sua busca desesperada para evitar a guerra, Stalin foi longe demais, pois
as concessões que fez nada adicionaram ao Pacto em si, exceto o atrevimento
nazista e a confusão soviética. É verdade que Stalin foi muito influenciado em
sua política alemã por Molotov, cujas muitas afirmações tontearam tanto o
público soviético quanto nossos aliados no exterior. Exemplificando, o discurso
que pronunciou – aprovado por Stalin – no Soviete Supremo, em 31 de
outubro de 1939, inclui o seguinte trecho:

A Alemanha está na posição de um estado que se esforça pelo fim rápido da guerra e pela paz,
enquanto a Inglaterra e a França, que ontem clamavam contra a agressão, são agora pela continuação
do conflito armado e contra a paz [...] Círculos governantes na Inglaterra e na França tentaram
recentemente se apresentar como lutadores pelos direitos democráticos dos povos contra o hitlerismo,
com o governo inglês declarando que seu objetivo na guerra era, nem mais nem menos, a “aniquilação
do hitlerismo” [...] Não faz o menor sentido, como é também criminoso, travar tal guerra para
“aniquilar o hitlerismo” sob o falso estandarte da luta pela “democracia” [...] Nossas relações com a
Alemanha melhoraram fundamentalmente. Isto aconteceu pelo fortalecimento de nossas relações de
amizade, nossa colaboração prática, e por meio de nosso apoio político à Alemanha no esforço que faz
pela paz.100

Afora o fato de tal mudança de linha política e ideológica causar perplexidade


na mente pública, ela também revelava uma total falta de princípios. Stalin,
que mandara milhões de pessoas para a morte ou para os campos de trabalho
pela mais tênue suspeita de “impureza” ideológica, demonstrava uma
excepcional falta de escrúpulo ao confraternizar com o fascismo. Embora
muitos membros do Comintern não entendessem as razões de mudança
ideológica tão súbita, não havia o que pudessem fazer para alterar a linha oficial
do Comintern. Até junho de 1941, a organização conflitou com os partidos
comunistas e trabalhistas europeus quanto à avaliação do caráter antifascista da
luta de seus países. Como no final dos anos 1920 e início dos 1930, as setas
mais afiadas do Comintern foram reservadas para o ataque aos
socialdemocratas como “cúmplices do militarismo”. O slogan “Fim para a
guerra!” deixou de ter sentido. Como dar um fim à guerra se Hitler dominava
metade da Europa? Moscou não tinha resposta. A palavra “fascista” desapareceu
do vocabulário da liderança soviética. Berlim estava feliz. No seu discurso para
o Reichstag, em 1º de setembro de 1939, Hitler pôde dizer com toda razão: “O
Pacto foi ratificado em Berlim e Moscou. [...] Faço minhas cada uma das
palavras que o comissário do exterior Molotov disse sobre este assunto.”101
Os propagandistas do país, de um modo geral, e do Exército Vermelho em
particular, estavam numa posição incômoda. Por exemplo, como
propagandista-chefe do Exército, Mekhlis expediu uma ordem para as agências
políticas e para as organizações partidárias, declarando:

A instrução política dos jovens oficiais deve incluir a “lei sobre o serviço militar universal”, o discurso
do Camarada Voroshilov na quarta sessão do Soviete Supremo, o juramento militar, a lei sobre
punição para a traição, regras e regulamentos, o relatório do Camarada Molotov “sobre a ratificação
do Tratado Alemão-Soviético de Não Agressão”.102

Este último tópico da instrução foi acrescentado à mão por Mekhlis. Quando
ele submeteu a minuta a Stalin no dia anterior, o líder disparou: “Não irrite os
alemães. O Krasnaya Zvezda* anda sempre escrevendo sobre fascistas e
fascismo. Acabe com isso. A situação está mudando. Não devemos ficar
apregoando a questão. Cada coisa a seu tempo. Hitler não deve ficar com a
impressão de que tudo o que fazemos é nos prepararmos para a guerra contra
ele.”103
Stalin confiava em que Mekhlis encontraria uma maneira de sufocar os
comentários antifascistas na imprensa e, ao mesmo tempo, de ordenar a injeção
de desconfiança nos nazistas na instrução política do Exército. Relatórios
recebidos pela administração da propaganda no Exército, depois de alcançados
os entendimentos germano-soviéticos, contêm alguns exemplos concretos do
modo distorcido com que os instrutores estavam avaliando a situação:

Engenheiro Militar de 2ª classe Nechaev: “Com a ratificação do Pacto [...] não podemos mais chamar
a instrução de tiro de ‘fogo no fascismo’. Não deve haver mais agitação e propaganda contra o
fascismo, já que nosso governo não tem mais diferenças com ele.”
Karatun, instrutor de Engenharia Militar da Academia: “Não temos ideia do que e como escrever
agora – fomos criados antifascistas, agora é o inverso.”
Primeiro-tenente Gromov, Distrito Militar de Kiev: “Pensando bem, a Alemanha parece que enganou
todo o mundo. Ela agora vai se servir dos pequenos países, porém, em face do Pacto de Não Agressão,
não poderemos fazer coisa alguma.”104

Hoje é difícil estabelecer com precisão quem sugeriu a introdução da palavra


“amizade” no título do tratado. Se foi o lado soviético, fica evidenciado o seu
descuido político. Se foram os alemães, tratou-se de um ataque calculado à
consciência nacional de toda a nação. Em qualquer caso, Stalin não estava a
cavaleiro da situação, e é duvidoso que Molotov estivesse correto quando disse
mais tarde que Stalin “adivinhou a tempo a intenção de Hitler”.
A forma como foi preparado o plano para a defesa do país e para o
desdobramento das Forças Armadas representa outra omissão séria. Pouco
depois da assinatura do Pacto, o Estado-maior recebeu instruções pessoais de
Stalin para a formulação deste plano. Sob a chefia de Shaposhnikov, o
planejador-chefe foi o futuro marechal, então coronel, A.M. Vasilievsky, cuja
ideia básica era a de que o Exército deveria estar preparado para lutar em duas
frentes: na Europa contra a Alemanha, e no Extremo Oriente contra o Japão,
“sendo o teatro ocidental a principal área de operações”. Esperava-se que o
inimigo concentrasse seu esforço principal nos setores oeste e noroeste, regiões
em que o Exército Vermelho deveria, portanto, grupar suas forças.105 Contudo,
o plano foi rejeitado pelo comissário da Defesa por não ter levado
suficientemente em consideração o que as forças soviéticas poderiam fazer para
destruir o inimigo.
O plano de defesa revisado ficou pronto para apreciação por volta de agosto
de 1940. Fora preparado sob o chefe do Estado-maior K.A. Meretskov, mas
tendo, de novo, Vasilievsky como encarregado do planejamento, o qual, mais
uma vez, sustentou que as forças soviéticas deveriam ser concentradas no setor
ocidental. O plano foi submetido a Stalin em 5 de outubro. O Secretário-Geral
ouviu com atenção as explicações do comissário da Defesa e do chefe do
Estado-maior, olhou para o mapa diversas vezes, caminhou pela sala por algum
tempo e finalmente disse:

Não compreendo bem a insistência do Estado-maior em concentrar nossas forças no setor oeste. Eles
dizem que Hitler desfechará seu ataque principal na direção de Moscou pela rota mais curta. Mas eu
acho que a coisa mais importante para os alemães são os cereais da Ucrânia e o carvão da bacia do
Donets. Agora que Hitler está instalado nos Bálcãs, é ainda mais provável que lance seu ataque
principal do sudoeste. Quero que o Estado-maior pondere de novo e apresente um novo plano no
prazo de dez dias.106

Enquanto definia o plano de defesa, o Estado-maior trabalhava


simultaneamente num documento de avaliação intitulado “Opiniões sobre os
princípios do desdobramento estratégico das Forças Armadas no oeste e no
leste, em 1940-1941”. Nele, a Alemanha era identificada como a grande
ameaça, e a missão principal era criar uma defesa sólida de fronteira com
fortificações de campanha para impedir a penetração do inimigo em território
soviético, dando assim tempo para a mobilização total. A partir de então,
montar contra-ataques fortes para empurrar de volta o inimigo e levar a luta ao
seu território.
Pouco antes de estalar a guerra, Stalin, de forma característica, mandou que
lhe trouxessem um exemplar do manual de campanha do Exército Vermelho.
O volume apresenta todos os sinais de sua leitura muito atenta. Entretanto, as
observações que ele fez no Soviete Principal de Defesa e nas reuniões com
figuras militares importantes indicam que, em vez da doutrina militar e
estratégica, ele confiava no bom senso matizado de cautela. Entrou na guerra
como um político confiante e não como um pensador militar.
O novo plano de defesa foi apresentado a Stalin para outra avaliação em 14
de outubro de 1940. Suas sugestões, evidentemente, haviam sido incorporadas,
significando que a orientação básica das forças fora alterada para o sudoeste.107
Entrementes, o serviço militar de inteligência sabia muito bem que a força
principal da Wehrmacht, consistente de três de seus quatro exércitos blindados,
estava direcionada para Smolensk e Moscou. Ainda assim, nenhum dos chefes
militares teve coragem ou argumentos para persuadir Stalin. Os altos cargos do
Estado-maior, além do mais, se encontravam ocupados por homens
promovidos do distrito militar especial de Kiev: S.K. Timoshenko, comissário
da Defesa; Zhukov, que se tornou chefe do Estado-maior em fevereiro de
1941; N.F. Vatutin, primeiro-vice de Zhukov; S.K. Kozhevnikov, chefe da
seção política do Estado-maior. Todos consideravam o sudoeste de primordial
importância, a par de, é evidente, conhecerem o pensamento de Stalin. Um
documento de 1940, relativo ao desdobramento e preparado pelo novo chefe
do distrito militar especial de Kiev, M.A. Purkaev, afirmava sem reservas que o
ataque principal do exército alemão deveria ser esperado no sudoeste.108
A aprovação do plano por Stalin foi acompanhada da nomeação de Zhukov
para chefe do Estado-maior. No período de seis meses, três generais haviam
ocupado a função: em agosto de 1940, Shaposhnikov fora substituído por
Meretskov, que agora passava o cargo a Zhukov.
Por natureza homem determinado e resoluto, Zhukov acreditava que, uma
vez que Hitler atacaria primeiro, os alemães teriam uma vantagem decisiva.
Discutiu suas ideias e suas dúvidas com Timoshenko e, em 15 de maio de
1941, enviou a seguinte nota manuscrita a Stalin:

Como a Alemanha está agora totalmente mobilizada e com sua retaguarda organizada, ela tem a
capacidade de nos surpreender com um ataque inopinado. Para evitar isso, penso ser essencial que
tiremos a iniciativa do comando alemão, surpreendendo suas forças durante o desdobramento, por
meio de um ataque exatamente no estágio de desdobramento, sem dar tempo a eles para organizar
uma frente ou coordenar suas forças.

Zhukov concluiu declarando que o primeiro e absoluto objetivo do Exército


Vermelho era a destruição da força principal do inimigo nos setores central e
norte.109
Assim, pois, cinco semanas antes da catástrofe, Zhukov propunha a Stalin
uma mudança radical, ou seja, que a União Soviética lançasse um ataque contra
os alemães. Não existem indicações no memorando de Zhukov sobre a forma
com que Stalin reagiu. Ao contrário, no início de junho, o secretário-geral
ordenou o reforço do setor sudoeste com mais 25 divisões. No fim de abril de
1941, fontes de informações da NKVD reportaram que “a invasão alemã da
União Soviética foi finalmente decidida e ocorrerá em breve. O plano
operacional prevê um ataque relâmpago na Ucrânia seguido de rápida
progressão para o leste”.110
Foi uma tentativa alemã para desorientar a chefia soviética. Como Zhukov
escreveu muito tempo depois: “Hoje sabemos dos alertas sobre um ataque
iminente à União Soviética e sobre a concentração de forças inimigas em nossas
fronteiras. Porém, na ocasião, conforme documentos alemães capturados iriam
revelar, Stalin recebia relatórios de espécie bem diferente.”111 Todavia, o
secretário-geral não repassava ao seu Estado-maior todas as informações que
pousavam em sua mesa. Por exemplo, como já citamos, ele descartou o
telegrama de aviso de Churchill como uma provocação, e o telegrama só foi
conhecido pelo Estado-maior bem depois de ter chegado a Moscou.
Seguindo o mesmo pensamento, soube pelo acadêmico B.N. Ponomarev,
antigo integrante do Comintern e secretário do partido, que, a certa altura da
primavera de 1941, provavelmente no final de maio, dois comunistas austríacos
chegaram a Moscou “vindos de lá”. Mostravam-se alarmados com a enorme
escala dos preparativos militares que tinham visto na Alemanha e nas fronteiras
ocidentais da União Soviética, e com as infindáveis colunas de carros de
combate, artilharia e caminhões que se deslocavam dia e noite para o leste.
Ponomarev passou essa informação a Georgi Dimitrov,** que a levou a Stalin.
Dimitrov disse a Ponomarev no dia seguinte: “Stalin recebeu calmamente a
notícia dos austríacos e disse que já conhecia muitos daqueles sinais, mas que
não via razão para qualquer inquietação específica.” Ainda no dia anterior, por
exemplo, o Politburo apreciara o esquema de férias e a maioria dos membros e
candidatos a membro estava aproveitando a oportunidade para usufruir do
descanso de verão. “O primeiro a ir para o sul [em férias] será A.A. Zhdanov, e
ele, afinal de contas, é membro do soviete de guerra do distrito da fronteira.”
“E, com essa observação”, disse Dimitrov, “Stalin considerou o assunto
encerrado.”
A perplexidade de Ponomarev quanto à razão de Stalin não poder ou não
querer ver o perigo foi expressa por muitos outros. Zhukov, provavelmente, foi
quem melhor a colocou quando disse que todas as ações e ideias de Stalin às
vésperas do conflito estavam subordinadas ao esforço para evitar a guerra, o que
gerou nele uma certa crença de que ela não ocorreria. Porém, não teria o chefe
do serviço militar de informações, F.I. Golikov, seguramente informado Stalin
de que, pelo início de março de 1941, a Wehrmacht era constituída por oito
milhões de homens, 12 mil carros de combate, 52 mil canhões e cerca de 20
mil aviões? Era óbvio que a Alemanha não manteria forças de tal expressão
inativas por muito tempo. E Stalin não podia deixar de saber que a força
principal daquele Exército estava então concentrada na sua fronteira ocidental.
Por outro lado, Stalin recebia relatórios de tipo diferente como, por
exemplo, sobre a relutância ao combate do povo germânico, deserções no
Exército alemão, ambiente derrotista, conversas que se processavam nas tropas
do leste a respeito de pacifismo, com comentários de que, se a Alemanha
entrasse em guerra com a Rússia, acabaria derrotada, e sobre sentimentos
semelhantes.112 Existissem tais opiniões realmente ou fossem forma sutil de
desinformação, o fato é que elas se ajustavam ao estado de espírito de Stalin.
Zhukov disse a Simonov que, no começo de 1941, quando cresceu
acentuadamente o fluxo de relatórios sobre a concentração de tropas alemãs na
Polônia, Stalin escreveu uma carta pessoal a Hitler para dizer que estava
surpreso com aqueles eventos, porque passavam a impressão de que o Führer se
preparava para lutar com a URSS. Hitler respondeu com uma carta também
pessoal, frisando que ela era confidencial, na qual disse que a informação era
correta, que muitas unidades de tropa estavam, de fato, grupadas na Polônia.
Seguro de que o conteúdo da missiva não passaria de Stalin, queria, no
entanto, explicar que suas tropas na Polônia não objetivavam ataque à União
Soviética, e que tencionava observar estritamente o Pacto com a honra devida a
um chefe de Estado. Encontrou um argumento no qual, segundo Zhukov,
Stalin deve ter acreditado, a saber, que os ingleses estavam efetuando pesados
bombardeios no centro e no oeste da Alemanha e que, como o inimigo, do ar,
podia observar livremente o terreno, ele se via obrigado a deslocar um grande
efetivo de tropas para o leste. Ao mesmo tempo, Köstring, o adido militar
alemão em Moscou, dizia a funcionários soviéticos que as forças germânicas
estavam entrando em licença – “deixemos que descansem”.113
Na diretriz do comissário de Defesa “Sobre os resultados da inspeção da
instrução para o combate para o período de inverno e ordens para o período de
verão”, assinada por Timoshenko e Zhukov em 17 de maio de 1941, não há
em absoluto menção a missões para os distritos militares ocidentais, nem a um
aumento da vigilância e do aprestamento, tampouco a organização da defesa e
da preparação para repelir ataques aéreos maciços ou penetrações de grande
número de carros de combate. As diretrizes repisam observações de rotina sobre
“inadequações da instrução individual do soldado” e sobre a “ausência
completa de ordens de operações”.114
Não obstante, os serviços militares de informações continuaram remetendo
relatórios alarmantes. No fim de maio de 1941, o coronel Bondarev, de Kiev,
relatou a incessante chegada de novas unidades blindadas, de artilharia e de
infantaria na Polônia Oriental: “Continua a concentração de forças na fronteira
soviética. A preparação para a guerra segue em ritmo acelerado.”115 No setor
ocidental, o coronel Blokhin do serviço de informações reportou que,
“especialmente a partir de 25 de maio, as preparações da Alemanha contra a
URSS foram intensificadas” e que um espião alemão submetido a
interrogatório revelou que devia retornar com suas informações à cidade de
Ciechanow não depois de 5 de junho, porque lhe fora dito que as operações
militares contra a União Soviética eram uma possibilidade para breve.116 O
comissário da Defesa enviou diversas missões para inspecionarem as unidades
blindadas nos distritos de fronteira, e os resultados foram coligidos num
relatório datado de 17 de junho. Mas ele contém apenas críticas normais como:
1) a instrução é intermitente e não coordenada; 2) o quadro de trabalho do
treinamento da artilharia está defasado de dois a três meses; 3) a coordenação
entre as diferentes categorias de tropas dentro das unidades é deficiente; 4) os
regimentos mecanizados estão treinando como tropa a pé e não têm
conhecimento adequado sobre sua missão; 5) as comunicações por rádio
carecem de instrução; e assim por diante, totalizando 17 itens.117
O chefe da propaganda política do Exército, A.I. Zaporozhets, fez um giro
de inspeção pelas fortificações ao longo da nova fronteira ocidental e seu
relatório para Stalin não foi nada animador: “A maioria dos distritos
fortificados nas nossas fronteiras ocidentais não está preparada para o combate.
As posições preparadas de artilharia não têm canhões. Os distritos fortificados
não contam com a quantidade necessária de instalações permanentes e
especialmente construídas.”118 Stalin repassou o relatório a Timoshenko com a
sugestão de que os engenheiros de construção trabalhassem com mais afinco.
Zhukov disse depois que Stalin resistiu a todas as tentativas do comando
militar para pôr a tropa em prontidão na fronteira ocidental. Seu temor de
“provocar” Hitler tornou-se quase uma obsessão. É possível até entender o
desejo de não dar a Hitler um pretexto para atacar, mas é difícil que Stalin
imaginasse que o Führer atacaria caso provocado, se a invasão da URSS já não
figurasse em seus planos. Nesse meio-tempo, Hitler consultou seus especialistas
militares, ouvindo deles que o transporte ferroviário das tropas alemãs para o
leste estaria completado em 19 de junho, e que, pela noite de 21 de junho, os
primeiros aviões de ataque voariam em baixa altitude para novos aeródromos
próximos à fronteira soviética, a leste do Vístula. Hitler alterou apenas um
detalhe do plano: fixou a Hora-H para às três da manhã, e não 3h30, de 22 de
junho. Relatórios chegaram na noite de 20 para 21 de junho a respeito da
retirada do arame farpado na fronteira e também do grande número de aviões
alemães violando o espaço aéreo soviético.119
Talvez possamos entender melhor o drama daquelas últimas horas se
atentarmos para um importante traço da personalidade de Stalin que era o da
grande prudência. Naturalmente, nos assuntos corriqueiros do dia a dia a
questão da audácia não se fazia sentir, mas nos importantes ele era
extremamente circunspecto. Por exemplo, em outubro de 1917, sua iniciativa
foi mínima porque ele não compreendia por completo o que estava ocorrendo.
Em 1934, não explorou a morte de Kirov da maneira que, de imediato,
pretendeu, mas esperou até 1937-38 para “desenraizar os inimigos do povo”, o
que, nas suas próprias palavras deveria ter sido feito quatro anos antes. Teve
paciência e aguardou que a mente pública chegasse à condição necessária, gota
a gota. Bukharin chegou mesmo a chamá-lo de “o grande administrador de
doses”.
Contudo, sua hipercautela no trato com Hitler foi contraproducente
porque o Führer o sobrepujou em esperteza. O comportamento de Stalin foi
ditado não só pela visualização das consequências de uma guerra “prematura”,
mas também por uma profunda insegurança pessoal. A Rússia enfrentava
sozinha o mundo capitalista. Qualquer passo em falso poderia conduzir a
resultados irreparáveis. Berlim notou que Stalin evitava de forma obsessiva as
“provocações” e concluiu que a URSS estava fraca. Quando Stalin ordenou que
as tropas do setor ocidental e as unidades de fronteira não empregassem o
armamento contra os aviões alemães que violassem o espaço aéreo, os
germânicos concluíram de pronto que a cautela se transformara em indecisão.
Na véspera do estalar da guerra, o coronel-general M.P. Kirponos,
comandante do distrito de Kiev, reportou diversos casos de desertores alemães
que tinham passado a fronteira. Eles revelaram que os germânicos iriam atacar
naquela noite. Timoshenko telefonou imediatamente para Stalin. Depois de
uma pausa, Stalin requisitou sua presença, juntamente com Zhukov e Vatutin.
Zhukov relembrou mais tarde que, quando chegaram, todo o Politburo já
estava reunido. Stalin, como de hábito, caminhava de um lado para outro e,
tão logo os viu, perguntou: “Bem, e então?” Houve completo silêncio.
Finalmente, a voz de Timoshenko quebrou a tensão: “Temos que dar ordens
imediatas para que todas as tropas dos distritos de fronteira entrem em alerta
total para o combate.” Stalin retrucou: “Leia isto.” Zhukov leu a minuta de
uma ordem do Estado-maior que acentuava a necessidade de ação decisiva de
acordo com o plano para repelir o inimigo. Stalin interveio:

Seria prematuro expedir agora esta ordem. Talvez seja possível resolver a situação por meios pacíficos.
Devemos soltar uma ordem breve dizendo que um ataque pode ocorrer se provocado por ação alemã.
As unidades de fronteira não devem se deixar provocar por qualquer coisa que possa causar
dificuldades.120

Enquanto os militares se retiravam para cumprir suas determinações, Stalin


resmungou, como se falasse consigo mesmo: “Acho que Hitler está tentando
nos provocar. Seguramente, não decidiu começar a guerra.”
O Politburo dispersou-se às três horas da manhã. Era a noite mais curta do
ano. Stalin olhava para as ruas vazias através das janelas de sua limusine, sem
saber que as aeronaves alemãs já estavam voando para bombardear cidades e
aeródromos soviéticos. Mal tinha encostado a cabeça no travesseiro quando
bateram cautelosamente na porta. Saiu do quarto e o oficial de serviço lhe
disse: “O general Zhukov solicita uma conversa telefônica com o senhor sobre
um assunto que não pode esperar!” Stalin tirou o telefone do gancho e ouviu o
breve relato de Zhukov sobre os ataques de aviões inimigos a Kiev, Minsk,
Sebastopol, Vilna e a outras regiões. O general disse então: “Entendeu o que eu
disse, Camarada Stalin?” O ditador ficou calado. Zhukov perguntou de novo:
“Camarada Stalin, entendeu o que eu disse?” Stalin, finalmente, entendeu.
Eram quatro horas da manhã de 22 de junho de 1941.
Notas

* Estrela Vermelha, o jornal do Exército Vermelho.


** Líder comunista búlgaro do Comintern.
PARTE VIII
Início catastrófico

As nações pagam pelos erros de seus estadistas.


Nicolai Berdyaev
[41]
Choque paralisante

S talin, por fim, conseguiu murmurar: “Venha ao Kremlin com


Timoshenko. Diga a Poskrebyshev para convocar todos os membros do
Politburo.” Retornou ao Kremlin e subiu ao seu escritório pela entrada
privativa. Ao passar pelo empalidecido Poskrebyshev, disse rispidamente:
“Mande todos para cá, agora!”
Em silêncio e com cautela, os membros do Politburo foram entrando,
seguidos de Timoshenko e Zhukov. Sem cumprimentar ninguém, Stalin foi
logo dizendo, não se dirigindo a qualquer dos presentes em particular:
“Ponham o cônsul alemão ao telefone.” Molotov deixou a sala. Caiu pesado
silêncio. Em torno da mesa, sentavam-se Andreyev, Voroshilov, Kaganovich,
Mikoyan, Kalinin, Shvernik, Beria, Malenkov, Voznesensky e Shcherbakov.
Quando voltou, Molotov percebeu todos os olhares convergindo para sua
pessoa. Ocupou seu lugar e gaguejou: “O embaixador informou que o governo
alemão nos declarou guerra.” Olhou para um pedaço de papel que empunhava.
“A razão formal é a de sempre: ‘A Alemanha Nacionalista decidiu se antecipar a
um ataque dos russos.’”
O silêncio parecia quase palpável. Stalin se sentou e encarou Molotov com
olhos enraivecidos, como se estivesse lembrando da confiante predição do
auxiliar, feita seis meses antes, de que Hitler jamais travaria uma guerra em
duas frentes, e que a URSS tinha bastante tempo para reforçar suas fronteiras
ocidentais. “Bastante tempo...” Stalin sentiu-se traído. Os outros ficaram
esperando que falasse e expedisse suas ordens.
Timoshenko quebrou o silêncio:
“Camarada Stalin, posso fazer um relatório da situação?”
“Sim.”
O 1º vice-chefe do Estado-maior, major general N.F. Vatutin, entrou na
sala. Seu breve relato revelou pouca informação nova: depois de uma
tempestade de artilharia e de ataques aéreos sobre diversos alvos nos setores de
oeste e noroeste, grandes efetivos de tropas alemãs haviam invadido o território
soviético. As unidades de fronteira, que receberam o impacto do ataque
principal, tiveram pesadas baixas, mas não desertaram de seus postos. O
inimigo efetuava constante bombardeio dos aeródromos soviéticos. O Estado-
maior não tinha mais informações a prestar.
Stalin nunca tivera um choque tão grande na vida. Sua confusão era óbvia,
como também a raiva por ter sido enganado e o medo ante o desconhecido.
Os membros do Politburo permaneceram ao seu lado no escritório durante
todo o dia, esperando por notícias da fronteira. Só deixavam a sala para fazer
uma chamada telefônica, tomar um chá ou esticar as pernas. Pouco falaram,
esperando que os reveses fossem apenas passageiros. Ninguém duvidava de que
Hitler receberia uma resposta à altura.
Malenkov tinha na pasta uma minuta de decreto para a administração
principal da propaganda política no Exército Vermelho, que Zaporozhets lhe
entregara em meados de junho. (Zaporozhets foi substituído no segundo dia de
guerra por Mekhlis.) Malenkov entregara a minuta a Stalin em 20 de junho; ela
vinha sendo preparada desde o discurso de Stalin, de 5 de maio de 1941, para
os formandos militares, quando o secretário-geral disse que a guerra era
inevitável e que tínhamos que nos preparar incondicionalmente para destruir o
fascismo. Os pontos importantes do decreto, que Stalin não tivera a
oportunidade de aprovar antes da deflagração da guerra, eram que a situação
estava repleta de surpresas e que a determinação revolucionária e a presteza
constante para passar ao ataque mostravam-se essenciais. Toda a propaganda
deveria focar na instrução para a capacitação política, moral e combatente dos
militares, de modo que pudesse ser travada uma guerra justa, ofensiva e
abrangente.1
Além de Malenkov, somente Zhdanov vira a minuta. Ela fora concebida
dentro do espírito do plano de desdobramento que Zhukov apresentara a
Stalin em maio, onde também fora citada a necessidade de “surpreender o
inimigo e esmagar sua força principal na ex-Polônia e na ex-Prússia Oriental”.2
O Estado-maior e a administração principal política acreditavam que a defesa
deveria ser de curto prazo, uma vez que as tropas estavam sendo treinadas para
o ataque. Por causa disso, a ideia de que um ou dois dias do início da guerra
estavam sendo catastróficos não passou pela cabeça da liderança política e
militar.
O decreto estava atrasado em um dia. Stalin não entendia, e ninguém lhe
explicou – Timoshenko temia por demais o secretário-geral – que a preparação
para a guerra implicava um cronograma muito apertado. O tempo necessário
para pôr uma divisão em alerta total variava de quatro a vinte e quatro horas.
O distrito militar ocidental, por exemplo, precisava de quatro a vinte e três
horas.3 O decreto da defesa foi emitido pelo Estado-maior aos vinte minutos de
22 de junho de 1941. Recebido nos distritos militares à 1h20, demandou dos
comandantes locais mais uma hora ou hora e meia para que acionassem seus
dispositivos, e isso significou que as tropas tiveram menos que uma hora para a
execução das ordens.
Muitas divisões só entraram em alerta total quando já estavam sob ataque
aéreo. Diversas unidades e companhias foram forçadas a enfrentar colunas de
carros de combate alemães sem mesmo ter chegado às suas posições
predeterminadas. A penetração conseguida pelas unidades alemãs altamente
móveis, que atingiu cinquenta ou sessenta quilômetros no primeiro dia, foi
uma surpresa total. A segunda linha soviética que se deslocou para a fronteira
se viu também sob ataque de aviões alemães, os quais conseguiram a
supremacia aérea desde o início das hostilidades. As tropas soviéticas passaram
por um fluxo infindável de refugiados. Todas as comunicações estavam
cortadas. Os comandantes ficaram sem ideia da situação e, enquanto isso,
Stalin esperava por notícias animadoras.
Quando, na manhã de 22 de junho, surgiu a questão de quem deveria
comunicar à nação o ataque alemão, todos, naturalmente, se voltaram para
Stalin. Quase sem hesitar, ele deixou claro que se recusava. Tem sido
geralmente aceito que Stalin agiu daquela forma porque, como Mikoyan, por
exemplo, relembrava, estava em tal estado depressivo que “não sabia o que dizer
ao povo, uma vez que o ensinara a pensar que não haveria guerra, mas, caso ela
viesse, o inimigo seria batido em seu próprio território e, agora, seria forçado a
admitir que estávamos sendo derrotados nas primeiras horas”.4
Acredito que tudo se passou de forma um pouco diferente. A questão do
comunicado à nação foi decidida bem cedo naquela manhã quando ninguém
em Moscou ainda sabia que “estávamos sendo derrotados”. Todos entendiam
que haveria guerra, mas ela chegou muito de repente. Stalin não tinha ideia
clara do que acontecia na fronteira. Provavelmente, não quis se dirigir à nação
enquanto a situação não ficasse esclarecida. No dia 22, não chegaram notícias
de vitórias, e ele ficou alarmado e confuso, mas confiava em que, no prazo de
duas ou três semanas, daria o troco a Hitler pela violação do acordo e, então,
apareceria diante do povo. O choque paralisante só o atingiu depois de quatro
ou cinco dias quando, finalmente, compreendeu que a invasão era uma ameaça
mortal para ele, não só para o país. Isto se deduz das duas ordens que aprovou,
às 7h15 e às 21h15 do dia 22 de junho, assinadas por Timoshenko, Malenkov
e Zhukov.
De manhã, depois de decidido que Molotov se dirigiria à nação e que
também seria declarada a mobilização de todos os 14 distritos militares, Stalin,
ainda desconhecedor da escala da catástrofe, exigiu que os militares
“destruíssem o inimigo invasor com golpes devastadores”. Timoshenko, de
imediato, passou a compor o documento, conhecido pela história como
Ordem nº 2 do Soviete Principal de Guerra, endereçado a todos os distritos
militares ao longo da fronteira do oeste e do sudoeste, com cópia para o
comissário da Marinha:

Em 22 de junho, às 4h, a Força Aérea alemã desencadeou incursões de bombardeio totalmente não
provocadas sobre nossos aeródromos e cidades ao longo da fronteira ocidental. Simultaneamente,
forças alemãs abriram fogo de artilharia sobre várias localidades e cruzaram nossa fronteira.
Em vista da audácia do ataque alemão à União Soviética, determino que:
1. As forças utilizem todo o seu poderio e todos os meios para cair sobre as tropas inimigas e destruí-
las onde elas violarem a fronteira soviética. Até segunda ordem, nossas tropas terrestres não deverão
cruzar a fronteira.
2. Aviões de reconhecimento e de combate deverão identificar os locais em que o inimigo concentrou
seus aviões e sua força terrestre. Bombardeiros de grande altitude e bombardeiros de mergulho têm de
destruir totalmente a força aérea inimiga no solo e suas principais concentrações de forças terrestres.
Os ataques aéreos devem ser executados até a extensão de 100 a 150 quilômetros do território alemão.
Königsberg e Memel devem ser bombardeadas. O território finlandês e o território romeno não
deverão, até ordem em contrário, ser bombardeados.
22.6.41, 7h15. Timoshenko, Zhukov, Malenkov5

A diretriz mal parece um documento militar, mas leva a marca registrada de


Stalin. É um ato de vontade política, de determinação em punir o vizinho
pérfido, e revela pouco indício de uma intenção de acabar rapidamente com a
guerra. Por outro lado, fica difícil explicar o porquê de as tropas terrestres não
poderem cruzar a fronteira até segunda ordem. Ao expedir a determinação para
que as principais concentrações de tropas inimigas fossem destruídas, Stalin
ainda não sabia que, no primeiro dia de combate, as forças do distrito ocidental
perderiam 738 aviões, dos quais 528 seriam destruídos no solo. O quadro era
semelhante nos outros distritos. Nas primeiras horas da guerra, os alemães
conseguiram supremacia aérea total, destruindo, num só dia, 1.200 aeronaves
soviéticas.
Stalin pressionou seus militares para obter informação consistente, porém,
de lado algum chegavam boas notícias. A situação na frente noroeste era
desastrosa. O comandante do VIII Exército, do distrito militar do Báltico, P.P.
Sobennikov, lembrou de que não havia um plano preciso para a defesa da
fronteira. As tropas estavam principalmente engajadas no trabalho de
construção nos distritos fortificados ou nos aeródromos. As unidades tinham
efetivos incompletos. As instalações permanentes não estavam prontas. Pela
manhã, praticamente todos os aviões do distrito militar do Báltico tinham sido
destruídos no chão e restavam apenas quatro ou cinco para apoiar as operações
do VIII Exército. Acrescentou com amargura que:

Ordens conflitantes começaram a chegar para levantar barreiras, lançar campos de minas, e assim por
diante, para, em seguida, uma contraordem cancelar tudo, mas, logo depois, a ordem era repetida para
que tudo fosse feito de imediato. Pessoalmente, recebi uma ordem do chefe do Estado-maior distrital,
o tenente-general P.S. Klenov, na noite de 22 de junho, dizendo categoricamente que, pelo amanhecer,
eu deveria retirar minhas tropas da fronteira. Era possível sentir um nervosismo extremo, a falta de
coerência e o medo de provocar a guerra. Da mesma forma que as tropas, os Estados-maiores também
estavam desfalcados. Tinham comunicações e meios de transporte inadequados. Não estavam prontos
para o combate.6

Enquanto isso, Stalin esperava ansiosamente, levantando a cabeça cheio de


expectativa a cada pessoa que entrasse na sala. No primeiro dia, um copo de
chá foi sua única refeição. Achava os comandantes muito morosos, sem
determinação e sem entenderem direito a diretriz expedida naquela manhã.
Acostumado a conseguir que as coisas fossem feitas pela pressão e pela ameaça
aos que comandavam, a inação teve um efeito depressivo sobre ele. Finalmente,
perdeu a paciência e, pondo fim a uma discussão com Molotov, Zhdanov e
Malenkov sobre uma proposta de Timoshenko para a criação de um Quartel-
General Principal de Comando, levantou-se de súbito, começou a caminhar de
um lado para outro e, segundo Zhukov, ordenou que oficiais antigos do
quartel-general do Estado-maior fossem despachados urgentemente para os
fronts oeste e sudoeste. “Naquele mesmo dia, de pronto”, Shaposhnikov e
Kulik deveriam voar para se juntarem a Pavlov, enquanto Zhukov iria para
junto de Kirponos. Voltou à mesa e, encarando ameaçadoramente os outros,
repetiu: “Imediatamente!”
Convencido de que novos impulsos a partir do centro, urgentes e enérgicos,
se faziam necessários, Stalin ordenou que Vatutin formulasse outra ordem,
expedida naquele dia pelo Soviete Principal de Guerra (no dia seguinte, o
quartel-general sob a chefia de Timoshenko seria criado), e que emergiu,
fortemente editada por Stalin, como Ordem nº 3. Ela especificava que, entre
23 e 24 de junho, as forças soviéticas teriam que destruir o inimigo no setor
Suvalki das frentes noroeste e oeste por meio de “ataques concentrados
concêntricos”, e, utilizando táticas semelhantes, todos os corpos blindados
soviéticos e a Força Aérea do setor sudoeste, bem como os V e VI Exércitos,
deveriam envolver e destruir o inimigo nos setores de Vladimir-Volynia e
Brody, e deveriam capturar Lublin por volta de 24 de junho. “Do Báltico, até a
fronteira com a Hungria, permito o cruzamento da fronteira, e as operações
devem desconsiderar tais fronteiras.”7
Às dez horas daquela noite, Vatutin trouxe a notícia de que a infantaria do
Exército Vermelho repelira ataques na maior parte da fronteira com pesadas
baixas para o inimigo.8 A vida pareceu recomeçar e o ânimo melhorou
bastante. Stalin e seu entourage ainda não tinham conhecimento de que as
forças germânicas tinham feito uma penetração profunda em território
soviético. As ilusões só começaram a se dissipar na manhã de 23 de junho,
quando fracassaram as tentativas de contato com as equipes dos quartéis-
generais de campanha, e baixou um crescente sentimento de que o comando
estava perdendo o controle das tropas. Foi exatamente isso que aconteceu na
frente oeste ao longo do dia. O general Pavlov enviou dois telegramas, um ao
comandante do X Exército, perguntando quem era responsável pelo fato de o
corpo blindado não ter atacado: “Sem retardo, ative a operação, não entre em
pânico, assuma a chefia. O inimigo deve ser assaltado de forma organizada, não
como uma carga sem liderança. Você tem de conhecer sobre cada divisão, onde
ela está, quando e o que está fazendo e o que conseguiu.”9 A segunda ordem de
Pavlov, assinada também por Ponomarenko e Klimovskikh, foi para os
comandantes dos III, IV, X e XIII Exércitos, sendo a última que expediria. No
prazo de um mês, ele estaria diante do pelotão de fuzilamento:

Não mais tarde que 21h desta noite, 25 de junho, prepare as unidades para a retirada. Carros de
combate na vanguarda, cavalaria e forte defesa antiaérea na retaguarda.
A retirada deve se processar rapidamente, dia e noite, sob a cobertura de uma retaguarda firme. O
movimento retrógrado deve ser efetuado em larga frente. O primeiro lance deverá ser de 60
quilômetros, ou mais, num dia. A tropa deverá ter liberdade para prover sua própria subsistência,
retirando o que for necessário dos recursos locais e fazendo uso do que for preciso para tanto.10
Pavlov parecia não saber que os alemães já tinham capturado ou destruído os
depósitos de combustível e os meios de transporte de que o Exército necessitava
para realizar uma retirada com ordem, e o resultado foi que a operação teve
lugar em condições pavorosas e à completa mercê da Força Aérea alemã e das
rápidas manobras de desbordamento das unidades mecanizadas alemãs.
Nos últimos dias de junho, Stalin se conscientizou da amplitude da ameaça
fatal e, por algum tempo, simplesmente perdeu o autocontrole e caiu em
profundo choque psicológico. Entre 28 e 30 de junho, segundo testemunhas,
Stalin ficou tão deprimido e abatido que não mais agiu como líder. Em 29 de
junho, ao deixar o Comissariado da Defesa na companhia de Molotov,
Voroshilov, Zhdanov e Beria, soltou o verbo aos gritos: “Lenin nos legou uma
grande herança e nós, seus herdeiros, fodemos tudo!” Perplexo, Molotov,
voltou-se para ele, mas, como os outros, não disse coisa alguma.11
O choque foi grande, porém não durou muito. Antes que ele o atingisse,
Stalin procurou fazer alguma coisa, expediu ordens e tentou inspirar as agências
governamentais para demonstrarem energia. Em 23 de junho, durante um
debate sobre a criação de um QG do chefe do Estado-maior, Stalin
surpreendeu a todos quando interrompeu bruscamente as discussões para
propor: “Um Instituto de assessores permanentes deve ser criado em associação
com o Quartel-General, consistindo dos Camaradas marechal Kulik, marechal
Shaposhnikov, Meretskov, chefe da força aérea Zhigarev, Vatutin, chefe da
defesa antiaérea Voronov, Mikoyan, Kaganovich, Voznesensky, Zhdanov,
Malenkov, Mekhlis.”12
Malenkov e Timoshenko, que tinham preparado o documento sobre o
novo quartel-general, trocaram olhares, mas, é evidente, nada disseram, e a
ordem de Stalin foi enviada aos distritos militares com a assinatura de
Poskrebyshev. O Instituto, entretanto, morreu quietamente em duas semanas,
sem ter na realidade funcionado.
Outra omissão de Stalin e do Estado-maior às vésperas da guerra foi a de
não terem formulado a criação de um órgão especial para liderar o país em
tempo de guerra, ou seja, o Comitê de Defesa do Estado, e um órgão superior
de liderança militar, o QG do Comando Supremo. Órgãos deste porte só
foram organizados com a guerra começada. E, como já observamos, o Estado-
maior estava enfraquecido pela sucessão rápida de chefes. Tais falhas cobraram
alto preço.
Boas notícias não havia. Os tanques alemães se aproximavam de Minsk.
“O que você disse? O que está acontecendo em Minsk? Será que entendeu
direito? Como você sabe disso?”
“Não, Camarada Stalin, não entendi errado”, murmurou Vatutin em
resposta: “O front oeste entrou praticamente em colapso.”
Na verdade, o caos se instalara na maioria das frentes. Ordens eram
expedidas, por exemplo, esperando que tropas atacassem depois de marcharem
em retirada cerca de 300 quilômetros. Quando os contra-ataques tinham
sucesso, a manobra perdia impulsão por falta de combustível. Se não eram
dados os meios a um comandante para que cumprisse uma ordem impossível,
ele podia ser ameaçado de execução por seu superior, e a própria ordem, com
toda a probabilidade, seria, de qualquer forma, revogada. No ar, os alemães
tinham total liberdade de ação, porque a Força Aérea soviética não era vista em
parte alguma.13
Stalin sentiu que o olhar do povo caía sobre ele. Proclamara com frequência
a invencibilidade do Exército Vermelho e, agora, a ele parecia não haver
esperança para a situação. Quando Vatutin mostrou no mapa que o VIII e o XI
exércitos recuavam em direções divergentes, Stalin viu claramente que o
colossal fosso entre as frentes oeste e noroeste chegara a 130 quilômetros. As
forças principais do front oeste ou estavam cercadas ou tinham sido destruídas.
As da frente sudoeste, ao contrário, pareciam sustentar razoavelmente bem suas
posições. Por que não ouvira os especialistas e construíra defesas no front oeste?
Em todas as suas campanhas europeias, Hitler fora direto à capital para
conseguir a capitulação rápida do país. Por que os estrategistas não ressaltaram
tal característica?
Em estado de aflição, Stalin se comportou de forma hesitante, dividindo o
tempo entre a dacha próxima e o Kremlin, mas, em geral, aparecendo muito
pouco. Timoshenko, então também chefe do Estado-maior, estava claramente
em má situação. Todo mundo sabia que Stalin ainda detinha poder e
autoridade, mas agia impulsivamente e seu estado depressivo era visível. Isso,
naturalmente, se refletia em certo grau sobre o comando militar, e algumas de
suas ordens traziam a marca do desespero, como, por exemplo, mandando que
regimentos de infantaria a pé destruíssem os carros de combate das formações
inimigas que ficassem sem combustível,14 ou dando instruções detalhadas sobre
o emprego de unidades blindadas que deveria ser deixado à decisão dos
comandantes locais.15
Stalin foi para a dacha naquela noite e deitou-se sem tirar a roupa. Incapaz
de pegar no sono, levantou-se e foi à sala de jantar, onde havia sempre uma luz
acesa acima do retrato de Lenin. Os painéis escuros de carvalho que cobriam as
paredes casavam com seu ânimo acabrunhado. Vagando de sala em sala,
olhando para os telefones instalados em três locais distintos, esperando que
tocassem a qualquer momento trazendo mais notícias ruins, abriu a porta da
sala do oficial de serviço e deparou com o major general V.A. Rumyantsev. O
general se aprumou rapidamente no aguardo de ordens do chefe. O olhar do
secretário-geral perdeu-se pela sala, sem se fixar no militar, e, então, Stalin
fechou vagarosamente a porta e voltou para seu quarto.
Mikoyan deixou interessantes memórias sobre aquela ocasião. Recordou-se
de que ele, Molotov, Malenkov, Voroshilov, Beria e Voznesensky resolveram
propor a Stalin a criação de um Comitê de Defesa do Estado, que assumiria
todo o poder estatal. Seria chefiado por Stalin:

Decidimos procurá-lo. Ele estava na dacha próxima.


Molotov disse que Stalin se encontrava em tal estado de prostração que não se interessava por coisa
alguma, perdera a iniciativa e não estava nada bem. Voznesensky, assustado ao ouvir aquilo, disse:
“Você toca o barco, Vyacheslav, e nós o apoiaremos.” A ideia era de que, se Stalin continuasse a se
comportar daquela maneira, Molotov iria nos liderar e nós o seguiríamos. Tínhamos certeza de que
poderíamos organizar a defesa e conduzir uma guerra adequada. Nenhum de nós estava desanimado.
Chegamos à dacha de Stalin. Ele estava sentado numa cadeira de braços da pequena sala de jantar.
Levantou o olhar e disse: “O que vocês vieram fazer aqui?” Tinha um ar estranho estampado no rosto,
e a pergunta também era muito estranha. Afinal de contas, ele deveria ter nos convocado.
Falando em nosso nome, Molotov disse que o poder tinha que ser concentrado para garantir rapidez
no processo de tomada de decisões e, de alguma forma, colocar o país de novo nos trilhos. Stalin
deveria chefiar esta nova agência. O secretário-geral não fez objeção e disse apenas: “Ótimo.”16

O QG e o Estado-maior começaram então a tentar a organização de novas


linhas de defesa para substituir o front oeste que os alemães haviam varrido. O
ânimo de Stalin mudou rapidamente da apatia para uma agitação nervosa e,
em 29 de junho, ele apareceu por duas vezes, inesperadamente, no
Comissariado da Defesa e disse poucas e boas à liderança militar. Com a face
acinzentada pela fadiga, olhos intumescidos, ele, por fim, ficara ciente da escala
do perigo que pairava sobre seu país. Se nada de extraordinário fosse feito, se
não fossem mobilizadas todas as forças, os alemães poderiam chegar em poucas
semanas a Moscou. Os primeiros passos para assumir o controle, não só de si
mesmo como da situação, foram talvez típicos: começou a demitir seus chefes
militares.
Em 30 de junho, criou-se formalmente o Comitê de Defesa do Estado,
tendo Stalin como chefe. Sua primeira providência foi livrar-se do general
Pavlov como comandante da frente oeste, substituindo-o por Timoshenko. No
mesmo dia, o coronel-general F.I. Kuznetsov, comandante do front noroeste,
ordenou a retirada do rio Dvina ocidental e a ocupação dos distritos
fortificados de Ostrov, Pskov e Sebezh. Tão logo soube da ordem, Stalin
demitiu Kuznetsov e determinou que seu substituto, major general P.P.
Sobennikov, restaurasse a posição anterior no Dvina. As tropas, que então
executavam desordenada retirada, não estavam em condições nem de atacar
nem de prover a autodefesa. Sentindo a desordem soviética, os alemães
atacaram o ponto de junção do VIII e do XXVII exércitos e foram bem-
sucedidos.
Stalin ficou arrasado com a notícia de que Minsk havia caído. Foi para a
dacha e lá ficou o dia inteiro sem retornar ao Kremlin. Molotov e Beria foram
vê-lo, mas não há registro da conversa que tiveram.
Certa ocasião, perguntei ao marechal K.S. Moskalensko, com quem servi
em meados da década de 1970, por que omitira em suas memórias qualquer
menção ao encontro que Stalin, Molotov e Beria tiveram com o embaixador
búlgaro Ivan Stamenov, em julho de 1941. Ele replicou que ainda não chegara
a hora para tais revelações e, ainda mais, não existiam provas concretas.
Indaguei então se ele achava confiável o que Beria dissera sobre o fato. O
marechal respondeu: “Tudo o que ele disse sobre o assunto quase não tem
justificativa. De qualquer forma, em função da posição de Stalin naquele
momento, é difícil pensar em qualquer coisa que pudesse ajudá-lo.”
O que aconteceu foi que, em 2 de julho de 1957, houve uma reunião do
grupo partidário do Comissariado da Defesa para debater uma carta do
Comitê Central sobre “o grupo antipartido de Malenkov, Kaganovich,
Molotov e outros”. Zhukov leu o relatório, e diversos militares antigos tiveram
também a oportunidade de se pronunciar, inclusive I.S. Konev, R.Ya.
Malinovsky, F.F. Kuznetsov, M.I. Nedelin, I.Kh. Bagramyan, K.A. Vershinin,
F.I. Golikov, K.A. Meretskov e A.S. Zheltov. Ao chegar a vez de Moskalenko
falar, ele disse:

Quando o procurador-geral Rudenko e eu tratávamos do caso Beria, descobrimos que ele havia dito
que, já em 1941, Stalin, Beria e Molotov discutiram em particular a questão da rendição à Alemanha
fascista, concordando com a entrega a Hitler das repúblicas soviéticas bálticas, da Moldávia e de
grande parte da Ucrânia e da Bielorrússia. Eles tentaram contatar Hitler por intermédio do
embaixador búlgaro. Nem um czar russo jamais fizera isso. É interessante notar que o embaixador
revelou ter maior calibre do que esses líderes e disse que Hitler nunca derrotaria os russos, e que Stalin
não deveria se preocupar com aquilo.17

Ao me relatar o caso, Moskalenko acrescentou que, segundo Beria, Stalin


permanecera calado durante o encontro com o embaixador búlgaro. Só
Molotov falara, solicitando ao embaixador que contatasse Berlim. De acordo
com Beria, Molotov descrevera a oferta de território em troca de uma cessação
de hostilidades como um “possível Segundo Tratado de Brest-Litovsk” e dissera
que, se Lenin tivera a coragem de dar tal passo, nós agora tínhamos a intenção
de fazê-lo. No entanto, o embaixador declinou da ação de mediador, e disse
mais: “Mesmo que vocês recuem para os Urais, ainda assim ganharão a guerra.”
Moskalenko terminou dizendo que era difícil concluir quanto daquilo
correspondia à verdade. “Sabemos que Stalin entrara num estado de colapso
nos primeiros dias da guerra. Não havia sentido para que Beria inventasse tudo
aquilo, especialmente porque o ex-embaixador confirmou os fatos numa
conversa conosco.”
O povo esperava um pronunciamento de Stalin. Ainda acreditava no líder;
nele depositava sua confiança. Foi possivelmente isso que o tirou do estado de
colapso mental. Decidiu falar pelo rádio em 3 de julho, mas estava difícil
encontrar palavras para explicar o que acontecera, as derrotas, a derrocada dos
tratados germano-soviéticos. As margens das folhas em que foi escrito o
discurso contêm anotações tais como: “Por quê?” “A destruição do inimigo é
inevitável.” “O que tem que ser feito?” Um pronunciamento com aparência
inusitada para ser o discurso do primeiro homem do país. Contém as
principais ideias formuladas em 29 de junho pelo Comitê Central e pelo
Sovnarkom.
No discurso, Stalin tentou explicar, ou melhor, justificar, por que as forças
alemãs tinham tomado a Lituânia, a Letônia, parte da Ucrânia, a Bielorrússia e
a Estônia. Tudo podia ser resumido numa única frase: “O fato é que as forças
alemãs, como as de um país já em guerra, estavam totalmente mobilizadas, e
170 divisões, estacionadas perto da fronteira soviética, foram lançadas contra
nós; encontravam-se inteiramente preparadas e só esperavam pelo sinal para
atacar, enquanto as soviéticas tiveram que ser mobilizadas e deslocadas para as
fronteiras.”
Foi então que ele mentiu, ao dizer que as melhores divisões alemãs haviam
sido destroçadas. Naturalmente, quando mencionou o Pacto Nazi-Soviético,
não disse coisa alguma sobre os vergonhosos tratados “de amizade e fronteiras”.
Mas sua voz adquiriu um tom mais confiante quando afirmou ser necessário
“colocar todo o nosso esforço em pé de guerra”. Foi então que descreveu pela
primeira vez a guerra como “patriótica”, admitiu a necessidade da “formação de
unidades de guerrilheiros” e “a deflagração de uma batalha implacável
empregando todos os meios, quaisquer que sejam, desorganizadores de
retaguardas, desertores, semeadores do pânico”, e foi quando, também pela
primeira vez, expressou a esperança de unir os esforços dos povos da América e
da Europa na luta contra os exércitos de Hitler. Fechou o discurso declarando
que “o Comitê de Defesa do Estado está trabalhando com denodo e conclama
o povo todo a se congregar em torno do partido de Lenin e de Stalin”.18
O discurso teve efeito poderoso ao dar respostas simples às muitas
perguntas que atormentavam o povo. Paradoxalmente, a principal causa do
começo catastrófico da guerra, ou seja, o mando pessoal de Stalin, incorporava
então as esperanças da população. A fé funcionava.
[42]
Tempos cruéis

E m 10 de julho, o QG do Estado-maior transformou-se em Quartel-


General do Alto Comando e, em 8 de agosto, passou a ser QG do Alto
Comando Supremo, sob a liderança do secretário-geral. Daquele dia
até o fim da guerra, Stalin foi o Comandante Supremo. Desde 30 de junho,
chefiara o Comitê de Defesa Estatal e, em 19 de julho, tornou-se comissário
para a Defesa. Trabalhando de dezesseis a dezoito horas por dia, passando
noites sem dormir, ele acabou ainda mais áspero, intolerante e, com frequência,
malvado. Todos os dias, assinava ordens referentes à orientação militar, política,
econômica e ideológica, e deve ser dito que esse grau de concentração de poder
num único par de mãos teve seus aspectos positivos, bem como seu lado
negativo. A centralização tornou possível consolidar esforços em circunstâncias
extremas. Por outro lado, a persistência da autocracia enfraquece a
possibilidade de pensamento independente e de iniciativa em todos os níveis.
Na realidade, apenas duas ou três pessoas trabalhavam em contato direto
com Stalin. Dos membros do Politburo, afora Stalin, um papel destacado era
desempenhado por Voznesensky, Zhdanov e Khruschev. Voznesensky foi muito
ativo no trato dos problemas econômicos do país. Zhdanov e Khruschev, como
membros de conselhos de guerra, constituíam canais eficientes dos propósitos
de Stalin. Quanto a Voroshilov, depois da primeira débâcle, perdera a confiança
operacional do secretário-geral. Era da responsabilidade de Kalinin o ato de
transformar as intenções de Stalin em ordens e ele fazia também parte da
propaganda. Mikoyan e Kaganovich lidavam com os transportes e com o
suprimento de alimentos, porém, embora fossem também membros de
conselhos de guerra dos fronts, raramente se envolviam com questões militares,
se descontarmos o breve período de serviço de Kaganovich na frente sul.
O executor verdadeiro dos desejos de Stalin no Comitê Central era
Molotov. Em diversas ocasiões, visitou o front, notavelmente o de Stalingrado,
cumprindo determinações do secretário-geral, contudo, por lhe faltar
competência militar, não deixou qualquer vestígio de sua presença na esfera
castrense. De 30 de junho de 1941 até o fim da guerra, Molotov foi vice-
presidente do Comitê de Defesa do Estado e se ocupou, em particular, com as
questões internacionais. As responsabilidades de Beria incluíam a “limpeza” da
retaguarda, a organização de campos para prisioneiros alemães de guerra e a
indústria de material bélico que funcionava nas prisões e nos campos de
concentração. Por ordem de Stalin, ele foi duas vezes ao front do Cáucaso
Setentrional. Andreyev cuidava da agricultura e dos suprimentos para o front.
Como o papel de Stalin no conflito foi se tornando tão vasto, o Comitê
Central praticamente saiu de cena, e suas funções foram assumidas por seu
próprio aparato, enquanto o papel desempenhado pelas organizações locais do
partido, nas frentes e na retaguarda, foi enorme. Durante a guerra, ocorreu
apenas um pleno, em janeiro de 1944. Em outubro de 1941, os membros
foram convocados para um pleno em Moscou e esperaram dois dias por ele,
mas Stalin e Molotov não tiveram tempo para reuni-lo. De qualquer forma,
Stalin não viu por que delimitar as funções dos órgãos da alta administração,
uma vez que dirigia todos eles, fosse o Comitê Central, o Sovnarkom, o Alto
Comando Supremo, o Comitê de Defesa do Estado, o Quartel-General do
Estado-maior ou o Comissariado da Defesa, e ele assinava documentos
empregando todos e qualquer um desses títulos.
Até a batalha de Stalingrado, suas ordens tenderam a ser um tanto
impulsivas e erráticas, superficiais e incompetentes. Normalmente, eram
punitivas, em especial depois de uma derrota. Em 10 de julho, por exemplo,
quando ficou claro que o front noroeste não poderia ser mais mantido, e
chegaram relatos da atuação de grupos diversionários na retaguarda, Stalin agiu
de imediato:

O Quartel-General do Alto Comando e o Comitê de Defesa do Estado estão totalmente insatisfeitos


com o trabalho da equipe do quartel-general do front noroeste.
Em primeiro lugar, oficiais que não cumprem ordens, abandonam suas posições e deixam o perímetro
defensivo sem permissão, ainda não foram punidos. Com tal atitude liberal em relação a covardes, os
esforços da defesa serão infrutíferos.
As unidades de ataque não fizeram nada até agora, não vemos resultados de seu trabalho e, como
consequência da inação dos comandantes divisionários, de corpos e de fronts, partes da frente noroeste
vêm constantemente recuando. Chegou o momento de dar um basta nesta situação vergonhosa. O
comandante, um membro do conselho de guerra, o promotor e o chefe do 3º departamento [isto é, a
NKVD] devem se dirigir às unidades mais avançadas e tratar in loco do problema dos covardes e dos
traidores.19

Nada havia sido feito antes da guerra para a construção de um abrigo antiaéreo
no QG do Estado-maior, se bem que Timoshenko e Zhukov tivessem insistido
nessa providência. Nem no Kremlin, tampouco nas dachas, Stalin contava com
quaisquer abrigos. Nos primeiros meses da guerra, todavia, ele muitas vezes
passou parte do tempo numa casa da rua Kirov, vizinha de alguns escritórios do
Estado-maior. A estação de metrô Kirov, que fora isolada da rede principal,
constituiu um excelente abrigo contra bombardeios aéreos. No inverno de
1941, um abrigo antiaéreo foi construído na dacha mais próxima, equipado
para o contato direto com os fronts.
Nos mapas preparados pelo Estado-maior, Stalin podia ver claramente as
três direções pelas quais Hitler desenvolvia seu avanço: no noroeste, para
Leningrado, no oeste, para Moscou, e no sudoeste, para Kiev. É provável que a
primeira decisão importante de guerra que Stalin tomou tenha sido a criação
de três QGs, um para cada setor, e por volta de 10 de julho, eles estavam
montados: o comando noroeste foi dado a Voroshilov, com Zhdanov como
membro do soviete de guerra; o comando oeste foi para Timoshenko, com
N.A. Bulganin como membro do soviete de guerra; no comando sudoeste ficou
S.M. Budenny, com Khruschev como membro do soviete de guerra. A ideia
dos três comandos separados foi boa, mas eles tiveram dificuldades para agir
efetivamente porque Stalin não se dispôs a delegar-lhes o poder necessário. As
ordens iam diretamente às forças sem passar pelos comandos, e as equipes de
Estado-maior eram ignoradas. Ademais, como a criação não fora
adequadamente planejada, faltou pessoal e apoio técnico aos comandos, e eles
logo se transformaram em alvos dos insultos de Stalin por “passividade e falta
de determinação”.
A frente norte não deu motivo de grande preocupação porque as ações só
começaram lá no fim de junho. A situação no front noroeste foi bem diferente.
Em pouco mais de duas semanas, as forças soviéticas recuaram cerca de 450
quilômetros, abandonando as repúblicas bálticas e deixando de explorar as
valiosas posições defensivas proporcionadas pelos rios Neman e Dvina
Ocidental. O novo comandante, Sobennikov, não se mostrou à altura da
expectativa e Stalin o substituiria no prazo de seis semanas.
Mas foi a frente oeste que causou o maior alarme. Por volta de 10 de julho,
as tropas soviéticas tinham recuado quase 500 quilômetros. Com 44 divisões,
Pavlov não fora capaz sequer de fazer frente ao ataque inimigo. Stalin estava
resolvido a investigar e colocar sob julgamento imediato o comando ocidental.
As perdas soviéticas eram colossais. Algo como 30 divisões haviam sido
praticamente aniquiladas, enquanto 70 delas perderam mais da metade dos
efetivos; aproximadamente 3.500 aviões tinham sido destruídos, juntamente
com mais da metade dos depósitos de combustíveis e de munições. E isso
depois de apenas três semanas de guerra! É claro que os alemães pagaram
também alto preço, ou seja, cerca de 150 mil oficiais e praças, mais de 950
aeronaves e várias centenas de carros de combate. Porém, mais tarde veio à tona
que as baixas soviéticas eram artificialmente reduzidas, enquanto as alemãs
eram aumentadas. Depois de duas semanas de batalha, a seguinte estatística foi
apresentada a Stalin:

Perda de aviões:
O mínimo do inimigo 1.664
Nossas perdas 889
Perdas de carros de combate:
Inimigo 2.625
Nossos 901
Perdas humanos do inimigo: Mortos 1.312.000

Na luta acirrada dos diversos setores, além do mais, o inimigo teve pesadas baixas, mas como nossas
tropas retraíam, foi impossível contabilizar as perdas. Muitas baixas não computadas foram infligidas
aos paraquedistas em ações isoladas.
Existem 30.004 prisioneiros, mais um número indeterminado de paraquedistas.
Nossos desaparecidos e aprisionados, até 29 Jun, eram de cerca de 15 mil.
Cinco submarinos inimigos foram afundados no Báltico e um no mar Negro.
Duas aeronaves inimigas de apoio ao combate naval foram destruídas.20

Com tais relatórios era impossível conhecer a posição real, a relação de forças e
o número de aviões, carros de combate e homens disponíveis. Mas aquelas
estatísticas eram propositalmente distorcidas por gente acostumada a mentir
para Stalin em função do culto ao líder, e ele as tomava por dados concretos
sem jamais imaginar que estava sendo enganado. Mas mesmo assim, o poderio
alemão declinou consideravelmente depois da força do primeiro ataque, e os
exércitos de Hitler não atingiram seu principal objetivo, que era a destruição
do Exército Vermelho.
O Exército lutava. Estava retraindo, mas estava lutando. Estudando os
mapas, Stalin aos poucos chegou à conclusão de que seria uma longa guerra e
que, se a URSS pudesse sobreviver à primeira fase, haveria uma chance de
vitória. Já em 5 de julho, quando ordenou que o Estado-maior condecorasse os
que se distinguissem por bravura especial, inclusive com a primeira comenda
de tempo de guerra de Herói da União Soviética, disse ao departamento de
propaganda que espalhasse as histórias sobre o heroísmo soviético. “Lembrem-
se da conclamação de Lenin: A Pátria Socialista corre perigo! Façam o povo saber
que é possível e é preciso esmagar o porco fascista!”
Além dos assuntos militares, Stalin também passava várias horas por dia nas
questões econômicas. Em 4 de julho, Voznesensky e Mikoyan submeteram à
apreciação do Comitê de Defesa do Estado a minuta de um plano de economia
de guerra que Stalin assinou quase sem ler. Voznesensky conseguiu relatar
apressadamente que, em 30 de junho, o Sovnarkom aprovara um plano de
mobilização econômica geral que previa a colocação da economia em pé de
guerra no mais curto tempo possível. Shvernik, responsável pelo soviete de
evacuação, acabara de reportar que, até então, só as fábricas próximas à
fronteira haviam sido deslocadas, mas que a derrocada militar exigia agora uma
abordagem mais abrangente.
Na prática, por volta de janeiro de 1942, 1.523 fábricas, das quais 1.360
dedicadas à produção de material de emprego militar, seriam transferidas
totalmente para o leste e postas em operação, uma conquista extraordinária da
maior importância. No setor agrícola, hoje sabemos que, em novembro de
1941, foi tomada a decisão de criar alguns milhares de seções políticas nas
estações de máquinas e tratores e nas fazendas estatais. A gigantesca perda de
terras e o fluxo da mão de obra rural para o Exército impuseram pesada carga
sobre a agricultura para que ela alimentasse o Exército e o país.
Homem central de todo este esforço, Stalin fez da guerra um modo de
confirmar plenamente sua ditadura absoluta. O ex-comissário dos Transportes,
I.V. Kovalev, fez-me o seguinte relato daquele período:

Lembro de ter sido chamado, como chefe da administração dos transportes militares, para uma
reunião no Kremlin. Lá, vi chefes ferroviários, militares e membros das equipes do Comitê Central.
Kaganovich estava, como também Beria, encarregado temporariamente dos transportes. Stalin entrou
na sala. Todos nos levantamos. Sem qualquer preâmbulo, ele disse: “O Comitê de Defesa do Estado
tomou a decisão de criar o Comitê dos Transportes. Proponho o Camarada Stalin para chefe desse
comitê.” Foi exatamente assim que ele falou. Recordo de mais alguma coisa que ele disse naquele
encontro: “Transporte é uma questão de vida ou morte. O front está na mão dos transportes.
Lembrem-se, descumprimento das ordens do Comitê de Defesa do Estado significa tribunal militar.”
Disse isto calma, mas deliberadamente, e um calafrio percorreu minha espinha.
No curso da guerra, tive que me reportar dezenas de vezes, senão centenas, a Stalin sobre a
movimentação de trens para os diferentes setores do front. Algumas vezes, quando era o caso de uma
carga especial, tinha que mantê-lo informado de duas em duas horas. Em dada ocasião, um trem
“perdeu-se”. Pensei que tinha sido em determinada estação, mas não foi lá. Stalin mal pôde conter a
raiva: “Se você não encontrá-lo, general, será mandado para o front como soldado.”* Ao sair do
gabinete, branco como uma folha de papel, ainda ouvi Poskrebyshev acrescentar: “Cuide para não se
enganar. O chefe está no fim da sua corda.”
Quando eu ia ao Kremlin, normalmente Molotov, Beria e Malenkov estavam na sala de Stalin.
Naquela época, achei que eles só atrapalhavam. Não perguntavam coisa alguma, ficavam apenas
sentados e ouviam, fazendo ocasionalmente anotações. E, durante o tempo todo, Stalin se ocupava
dando instruções, falando ao telefone, assinando documentos, chamando Poskrebyshev para lhe dar
ordens, e os três lá sentados, olhando para Stalin ou para quem entrasse. Testemunhei a cena dezenas e
dezenas de vezes. Era como se Stalin precisasse deles, fosse para cuidar de qualquer coisa que viesse a
surgir, fosse como testemunhas para a história.
Como regra, Kaganovich não estava presente; aquele trabalhava dezoito horas por dia, xingando e
ameaçando todo mundo e não poupando ninguém, nem mesmo a si próprio. Mas jamais o vi sentado
no escritório de Stalin, como os outros três. Quando Stalin falava ao telefone, emitia apenas umas
poucas frases e colocava o aparelho no gancho. Era lacônico e esperava que os outros também o
fossem. Não era de bom alvitre dar-lhe dados aproximados: ele baixava ameaçadoramente o tom da
voz e dizia: “Você não sabe? Que está fazendo, então?”
A despeito dos muitos encontros que tive com ele, comparecia a cada um deles em estado de pavor.
Meu temor era que perguntasse alguma coisa e eu não soubesse a resposta. Ele era uma pessoa
inacreditavelmente fria. Em vez de dizer “olá”, acenava simplesmente com a cabeça. Fazia meu relato
e, se não houvesse perguntas, deixava rapidamente a sala com um suspiro de alívio. Era o mais breve
possível. Poskrebyshev aconselhou-me a agir assim. As pessoas sentiam-se oprimidas pelo poder de
Stalin, também por sua memória fenomenal e pelo fato de que sabia muita coisa. Ele fazia com que
todos se sentissem ainda menos importantes do que na verdade já eram.

Nos primeiros meses da guerra, Stalin passou muito tempo tratando de


detalhes irrelevantes, tais como distribuição de minas e fuzis, construção de
valas antitanques pela população civil, exame de comunicados à imprensa para
o Informburo. Certa vez, aconteceu que um documento do Estado-maior para
as Forças Armadas permaneceu sem ser notado por oito horas e quinze minutos
no departamento de codificação. Quando Stalin soube disso, determinou que o
coronel I.F. Ivanov e o primeiro-tenente B.S. Krasnov fossem punidos e
afastados do Estado-maior Geral, e que o departamento passasse a operar como
devia.21 Enquanto isso, havia decisões de crucial importância a serem tomadas
nos dias terríveis daquele agosto quente. Porém, era hábito que Stalin
desenvolvera ao longo dos anos decidir e fazer tudo ele mesmo, e pelos outros.
A situação nos fronts, contudo, cedo iria acarretar uma mudança no estilo e
nos métodos de trabalho do Supremo.
Ao aprovar ou desaprovar as propostas do Estado-maior, ele buscava
constantemente meios de dar maior impacto a suas ações. Por exemplo,
quando soube que não existiam armas para equipar os reforços, ordenou aos
quartéis-generais que expedissem a seguinte instrução para as forças:

Tem que ser explicado a todo comandante, oficial político ou soldado que perder armas no campo de
batalha é uma violação séria do juramento militar, e que os culpados devem responder de acordo com
as leis de tempo de guerra. As equipes de civis encarregadas do recolhimento de armas devem ser
reforçadas com militares e ser responsabilizadas pela coleta de qualquer armamento abandonado no
campo de batalha.22

Sua resposta a uma situação difícil era sempre torná-la ainda mais difícil.
Exemplificando, Zhdanov e Zhukov no relatório sobre a situação em
Leningrado mencionaram o fato de que, no ataque às posições soviéticas, os
alemães empurravam mulheres e crianças, homens e mulheres idosos para a
frente, colocando os defensores em situação mais delicada ainda. As mulheres e
crianças gritavam: “Não atirem! Somos dos seus!” As tropas soviéticas não
sabiam o que fazer. A reação imediata de Stalin foi típica de seu caráter:

Dizem que os porcos alemães que avançam sobre Leningrado empurram velhos, mulheres e crianças
na frente. Ouço que há bolcheviques em Leningrado que consideram impossível empregar suas armas
contra essas pessoas. Acho que, se existirem tipos assim entre os bolcheviques, eles devem ser logo
destruídos porque são mais perigosos que os fascistas alemães. Aconselho não serem sentimentais,
arrasem o inimigo e seus cúmplices forçados ou não. Atirem nos alemães e nos seus acompanhantes,
sejam quem forem, com o que tiverem à mão, acabem com os inimigos, não importa se compelidos
ou voluntários. Ditado às 4h de 21 Set 41 pelo Camarada Stalin. Assinado B. Shaposhnikov23

O pensamento de Stalin nos primeiros meses da guerra ainda era claramente


influenciado pela guerra civil – talvez mesmo pela guerra de 1812! Em
setembro de 1941, por exemplo, depois de uma conversa com Budenny, ele
demonstrou um súbito e renovado interesse pela cavalaria. Na ocasião em que
o Estado-maior completava seu trabalho sobre as lições dos dois primeiros
meses de guerra, para ser enviado aos comandantes de frente e de exércitos,
Stalin mandou acrescentar o seguinte:

Ponto Quatro.
Nosso exército subestima um pouco a importância da cavalaria. Na situação atual do front, quando a
retaguarda do inimigo está distendida por algumas centenas de quilômetros em terreno com muita
vegetação, e se encontra totalmente incapaz de proteger-se contra ações diversionárias importantes de
nossa parte, ataques rápidos da Cavalaria Vermelha podem ter um papel relevante na desorganização
da administração e do suprimento das forças inimigas. Se unidades de nossa cavalaria, que se
encontram dispersas e ociosas, puderem ser empregadas contra a retaguarda do inimigo, ele ficaria em
situação crítica, enquanto nossas forças seriam aliviadas de muita pressão. O Estado-maior Geral
acredita que tais incursões devem ser executadas por algumas dezenas de divisões de cavalaria ligeira
das forças com vocação para o ataque, cada uma delas com efetivo aproximado de 3 mil homens em
transportes leves, sem sobrecarregar nossos serviços de retaguarda.24

Não de todo desprovida de sentido, a ideia, todavia, era muito ultrapassada,


mas a situação chegara a tal ponto de desespero que Stalin procurava panaceias
em quase qualquer método.
Pavlov não saía da cabeça de Stalin. Antes de se tornar comandante em
chefe da frente oeste, ele causara uma boa impressão. É verdade que não tinha
muita experiência, e sua ascensão depois da Espanha fora rápida. Por que seu
quartel-general se comportara com tanta negligência? Stalin,
convenientemente, esqueceu que, em meados de junho, Pavlov enviara dois ou
três despachos codificados urgentes requisitando permissão para deslocar tropas
a fim de ocuparem posições no terreno, sugerindo a mobilização parcial e
realçando a necessidade do fortalecimento do distrito com comunicações e
carros de combate novos. Mesmo assim, a pergunta importunava Stalin: como
pôde Pavlov perder tudo de forma tão miserável? Chamou Poskrebyshev e
perguntou: “Quem, além de Pavlov, foi mandado ao tribunal militar? Quando
será o julgamento? Onde está a minuta de sentença? Chame Ulrikh!”
Poskrebyshev trouxe uma pasta fina e a deixou em cima da mesa. Seu título era
“(Minuta) Sentença”:

Pela URSS, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS, constituído de: Presidente: advogado
militar V.V. Ulrikh;
Membros: advogados militares divisionários A.A. Orlov e D.Ya. Kandybin; Secretário: advogado
militar A.S. Mazur.
Numa sessão fechada em Moscou, em .... de julho de 1941, os seguintes casos foram julgados:
1. Pavlov, Dmitri Grigoryevich, nascido em 1897, ex-comandante do front oeste, general de exército.
2. Klimovskikh, Vladimir Yefimovich, nascido em 1895, ex-chefe do Estado-maior do front oeste,
major-general. Ambos acusados de crimes capitulados nos Artigos 63-2 e 76 do Código Penal
Bielorrusso.
3. Grigoryev, Andrei Terentyevich, nascido em 1889, ex-chefe das comunicações do front oeste, major
general.
4. Korobkov, Alexander Andreyevich, nascido em 1897, ex-comandante do IV Exército, major
general. Ambos acusados de crimes capitulados no Artigo 180, parágrafo b, do Código Penal
Bielorrusso.

A minuta prosseguia dizendo que as investigações preliminares estabeleceram


que:

Os acusados Pavlov e Klimovskikh participaram de uma conspiração militar antissoviética e que se


valeram de suas posições para trabalhar para o inimigo por não treinarem o pessoal sob seu comando
para a ação militar, e que, com seus objetivos conspiratórios em mente, enfraqueceram a preparação
para a mobilização das tropas no distrito militar, perturbaram a organização das forças e entregaram
armas ao inimigo sem luta, causando grande dano à capacidade combatente do Exército Vermelho.

Stalin pulou grande parte do documento que continuava nesta linha, mas leu a
seção final:

Desta forma, a culpa de Pavlov e Klimovskikh [...] e de Grigoryev e Korobkov [...] foi estabelecida.
Em consequência do acima exposto e de acordo com os Artigos 319 e 320 do Código do Processo
Penal da URSS, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS sentencia que:
1. Pavlov, Dmitri Grigoryevich
2. Klimovskikh, Vladimir Yefimovich
3. Grigoryev, Andrei Terentyevich
4. Korobkov, Alexander Andreyevich
sejam despojados de seus postos, Pavlov como general de exército e o restante como major generais, e
sujeitos todos os quatro à mais alta forma de punição, ou seja, o fuzilamento, e que seus bens pessoais
sejam confiscados. A sentença é final e não comporta apelação.25

Stalin voltou-se para Poskrebyshev e disse: “Aprovo a sentença, mas diga a


Ulrikh para retirar toda esta bobagem de ‘atividade conspiratória’. O caso não
deve se prolongar. Nada de recursos. E, depois, os fronts devem ser informados
para que saibam que os derrotistas serão punidos sem clemência.”
Tudo fora decidido antes do julgamento, de modo que, quando ele ocorreu,
em 22 de julho, necessitou apenas cumprir formalidades. Os réus pediram para
ser enviados ao front em qualquer situação; mostrariam sua lealdade à pátria-
mãe e seu dever militar com derramamento do próprio sangue. Instaram para
que a corte acreditasse que todo o ocorrido se devera às condições
extremamente desfavoráveis. Não negaram suas culpas. Eles as expiariam na
batalha. Ulrikh bocejou e disse: “Vamos com isso!” Os acusados foram
fuzilados naquela noite. (A sentença seria anulada pelo Estado-maior Geral,
com quinze anos de atraso, em 5 de novembro de 1956.)26 Korobkov foi
especialmente desafortunado. De acordo com o relatório do coronel-general
L.M. Sandalov ao general V.V. Kurasov, embora o exército de Korobkov tivesse
sofrido pesadas perdas, ainda operava e não tinha, como muitos outros
comandos, perdido a ligação com o quartel-general do front. No fim de junho
de 1941, ficou decidido que um dos oficiais comandantes do front oeste
deveria ser “pinçado” para julgamento pelo desastre, e como se sabia onde
Korobkov estava, sua sorte foi selada.27
Pavlov e os outros tinham progredido rapidamente na carreira graças à
dizimação no corpo de oficiais ocorrida em 1937-38, e, sem dúvida, careciam
de treinamento e experiência adequados, mas eram totalmente devotados ao
seu país. Foram muitos os casos assim. Kirponos e Kuznetsov, como Pavlov,
tiveram carreiras meteóricas e, da mesma forma, seu patriotismo foi
inadequadamente sustentado por qualidades de liderança. Stalin foi o
verdadeiro responsável pelo início catastrófico da guerra, porém, como de
hábito, precisou de bodes expiatórios, exacerbando a natureza já cruel da guerra
com sua própria crueldade.
Muitos homens da estatura de Korobkov poderiam ter chegado ao topo,
mas não conseguiram. Muitos morreram em combate; muitos outros, tendo
exaurido todas as possibilidades de continuar combatendo e não desejando cair
prisioneiros ou ficar sujeitos à justiça de Stalin, cometeram suicídio. Existem
numerosos casos registrados em documentos.28
A história de alguns outros generais não foi menos trágica. Em agosto de
1941, os órgãos de segurança reportaram a Stalin que dois generais, o
comandante do XXVIII Exército, tenente-general V.Ya. Kachalov, e o
comandante do XII Exército, major general P.G. Ponedelin, tinham se rendido
voluntariamente e trabalhavam então para os alemães. Stalin ordenou que
fossem julgados. Nem todas as ordens eram cumpridas de imediato: se tivessem
sido, talvez os alemães não chegassem às portas de Moscou no outono! Mas
aquela ordem foi logo executada, e os dois generais foram julgados in absentia
em outubro de 1941, e sentenciados ao fuzilamento, “privados de todos os seus
bens pessoais e despojados de suas condecorações soviéticas”.29
Jamais ocorreu aos miseravelmente cínicos informantes de Stalin que
Kachalov fora morto, em 4 de agosto de 1941, pelo impacto direto de uma
granada, mas, até 1956, sua família teve que carregar o estigma do parentesco
com “um inimigo da pátria-mãe”. O destino do major general Ponedelin foi
ainda pior. Cercado em agosto de 1941, ele foi seriamente ferido e caiu
prisioneiro inconsciente. Quatro longos e amargos anos nos campos de
concentração de Hitler não o dobraram. Serviu como suporte para os
camaradas mais fracos e se recusou a colaborar com os nazistas. Depois da
libertação e da repatriação em 1945, foi preso e condenado a cinco anos nos
campos soviéticos, mesmo tendo sido sentenciado à morte in absentia, em
1941. O general fez um apelo pessoal a Stalin em 25 de agosto de 1950 e foi de
novo condenado à morte. Desta vez, a sentença foi executada.
Dos milhões de militares soviéticos que caíram em mãos dos alemães, os
que conseguiram escapar e voltaram às linhas amigas foram imediatamente
colocados em “campos especiais para averiguação”. Existem muitos relatórios
assinados por Beria sobre a maneira com que estes campos funcionavam.
Depois de “checados”, alguns militares foram enviados para destacamentos
recém-formados, outros foram executados no ato, e ainda outros foram
sentenciados a longos anos em campos de concentração.30 Conquanto o caso
de Pavlov seja o mais conhecido, a verdade é que, ao mesmo tempo, Stalin
sancionou a prisão de um grande número de outros generais, alguns dos quais,
no final, retornaram ao front, enquanto outros terminaram nos campos ou
foram fuzilados.31
A suspeita de Stalin em relação a seus generais tampouco se restringiu à fase
de abertura das hostilidades. Em agosto de 1942, por exemplo, ele passou um
cabograma para Vasilievsky e Malenkov em Stalingrado:

Surpreendo-me com o fato de o inimigo ter feito precisamente o mesmo tipo de avanço por trás de
nossas linhas no front de Stalingrado que o realizado no ano passado no front de Bryansk [...] Deve
ser ressaltado que o comandante do front de Bryansk era o mesmo Zakharov e que o ajudante do
Camarada Yeremenko era o mesmo Rukhle. Vale a pena pensar sobre isso. Ou Yeremenko não
entende a ideia de um segundo escalão enquanto as divisões da vanguarda não estão sob fogo, ou
estamos lidando aqui com alguém que alimenta sentimentos inamistosos e dá aos alemães detalhes
exatos de nossos pontos fracos.32

O major general Rukhle foi imediatamente preso, mas a sorte lhe sorriu e ele
sobreviveu. Stalin não podia se livrar do costume de apelar para medidas
severas e cruéis, mas todos àquela época acreditavam que providências duras se
justificavam em tempos difíceis.
Nota

* Não era ameaça vazia. O major-general N.A. Moskvin foi rebaixado por ordem de Stalin e mandado
para a frente de combate como soldado. (TsAMO, f.33. op. 11 454, d. 179.l.1)
[43]
Desastres e esperanças

N o início de agosto de 1941, Shaposhnikov foi chamado à dacha, por


volta da meia-noite, para fazer um relato a Stalin sobre a situação em
todos os fronts. Para Stalin, foi a mais sombria das exposições,
casando muito bem com o gosto de fel – disse a Poskrebyshev – que tinha na
boca desde que a guerra começara. Referindo-se ao mapa que estendeu na mesa
de Stalin, Shaposhnikov começou:
“Podemos dizer que perdemos por completo a primeira fase da guerra.
Ainda são travadas batalhas nas vias de acesso a Leningrado mais distantes, no
distrito de Smolensk e na área defensiva central de Kiev. Nossa resistência ainda
não é forte. Temos que desdobrar nossas tropas ao longo do front mais ou
menos sem saber onde o inimigo, amanhã, atacará com força concentrada. O
inimigo está com toda a iniciativa estratégica. O problema aumenta com a
inexistência de tropas em segundo escalão e de reservas poderosas em muitos
setores. No ar, o inimigo tem total supremacia, embora tenha perdido muitos
aviões.* Das 212 divisões do exército ativo, apenas noventa têm 80% ou mais
de seu efetivo. A defesa das vias de acesso a Leningrado está adquirindo alguma
‘elasticidade’ e o dinamismo da progressão alemã pode não dar em nada. Parece
que devemos deslocar toda a esquadra do Báltico para Kronstadt.** Pesadas
baixas são inevitáveis.”
“O engajamento em Smolensk permitiu que detivéssemos o inimigo no
front mais perigoso, o de oeste. De acordo com nossos cálculos, cerca de
sessenta divisões alemãs participaram da ação, totalizando algo em torno de
meio milhão de homens. Como sabe o Camarada Stalin, para consolidar a
frente, os exércitos XIX, XX, XXI e XXII foram deslocados para lá ainda no
início de julho. Porém, ainda existe sensível falta de tropas e, muitas vezes, as
divisões constituem apenas uma linha. Nossa tentativa de montar um contra-
ataque com os exércitos XXIX, XXX, XXIV e XXVIII foi apenas parcialmente
bem-sucedida, já que permitiu que o XX Exército e o XVI Exército rompessem
o cerco e voltassem à linha de defesa. Nosso contra-ataque interrompeu o
ataque inimigo.”
Stalin interveio: “Que papel teve o front central nesse engajamento?”
“Temos razões para achar que o ataque principal do agrupamento alemão
será desviado para lá”, replicou Shaposhnikov. “Mas uma única linha de frente,
com 24 divisões incompletas, causa séria preocupação. É provável que
tenhamos que constituir outro agrupamento de frentes naquela região.”
De tudo aquilo, Stalin tirou a conclusão de que o Exército Vermelho era
capaz de deter o inimigo, mesmo onde ele concentrasse seu esforço principal.
Shaposhnikov continuou:
“Não tivemos capacidade para manter a antiga fronteira [...] Os alemães, na
realidade, cortaram o front em dois, separando o V Exército dos exércitos VI,
XII e XXVI, e, amanhã, o VI e o XII Exércitos também estarão cortados.”
“Estou apreensivo com o Dnieper e com Kiev. Temos que fazer alguma
coisa”, disse Stalin.
“Já foram expedidas ordens para se formar uma linha de defesa forte na
margem leste do Dnieper.”
“Podemos entrar em contato agora com o QG do sudoeste?”, perguntou
Stalin.
“Se Kirponos e Khruschev não estiverem junto às tropas, o contato é
possível.”
Poucos minutos mais tarde, Kirponos e Khruschev estavam ao telefone e
tiveram uma longa conversa na qual Stalin insistiu que a linha fosse mantida a
qualquer preço e fez-lhes sugestões sobre como grupar as forças, empregando
temporariamente a cavalaria como infantaria com esse objetivo. Kirponos e
Khruschev responderam que estavam fazendo o possível para evitar que os
alemães atravessassem o rio e tomassem Kiev, e pediram urgentes reforços.
Algumas de suas divisões estavam reduzidas a uns dois ou três mil homens.33
A defesa de Kiev foi um fracasso. O VI e o XII exércitos combateram,
cercados, até 7 de agosto e, então, deixaram de existir. Um grande número de
combatentes caiu prisioneiro. Percebendo que as tropas do front sul corriam o
risco da captura, Budenny solicitou permissão a Stalin a fim de recuá-las para o
corte do rio Ingul. Stalin ficou furioso e negou a permissão, indicando, em vez
disso, outra linha de defesa.34 Ordenou a transferência para o setor sudoeste de
19 divisões de infantaria e 5 de cavalaria, as quais, embora criadas, não estavam
bem organizadas nem treinadas. Tampouco estavam bem armadas. Não se
saíram bem em combate. No caos resultante, muitas entraram em pânico e
abandonaram suas posições sem autorização.
Quando Stalin tomava conhecimento de que uma posição defensiva
recentemente ocupada fora abandonada, ou explodia de raiva ou ficava apático.
Contrariando seu hábito de não tirar conclusões rápidas ou julgar as pessoas
prematuramente, fazia, então, as duas coisas simultaneamente. Numa
determinada ocasião, foi I.V. Tyulenev, comandante do front sul e bem
conhecido de Stalin dos velhos tempos, que se transformou em alvo. Stalin
enviou um telegrama a Budenny:

O comandante de front Tyulenev acabou se tornando incompetente. Não sabe como avançar nem
como recuar sua tropa. Perdeu dois exércitos de uma forma com que não se perderiam nem dois
regimentos. Sugiro que você vá de imediato ao encontro de Tyulenev, veja por si mesmo como está a
situação e reporte prontamente sobre o plano de defesa. Acho que Tyulenev está desmoralizado e não
é capaz de comandar o front. Ditado por telefone às 5h50 de 12 Ago 41.35

A despeito das ordens enérgicas de Stalin, a situação no front sul piorou,


chegando a uma crise no fim de agosto. Stalin tentou contato com um
comandante atrás do outro, nem sempre com sucesso. Em dada oportunidade,
tendo sido recém-informado de outra retirada não autorizada, ditou a Ordem
nº 270, de 16 de agosto de 1941. Em total desespero, recorreu à habitual
orientação punitiva. Esta ordem pouco conhecida retrata bem o estilo pessoal
de Stalin. Ela menciona comandantes, oficiais políticos e simples soldados que
se saíram honrosamente de situações difíceis, mas continua:

Por outro lado, o tenente-general Kachalov, comandante do XXVIII Exército, demonstrou covardia e
se entregou, enquanto seu QG e suas unidades romperam o cerco; o major general Ponedelin se
rendeu, como também o major general Kirilov do 13º Corpo de Fuzileiros. Foram fatos vergonhosos.
Covardes e desertores devem ser destruídos.
Ordeno que:
1. Quem quer que remova seu distintivo de posto durante a batalha e se renda deve ser considerado
desertor mal-intencionado, cuja família tem que ser presa por parentesco com o violador do
juramento e traidor da pátria. Tais desertores têm que ser fuzilados no ato.
2. Os que forem cercados têm que lutar até o fim e tentar chegar às linhas amigas. Os que preferirem a
rendição têm que ser aniquilados por quaisquer meios disponíveis, e suas famílias privadas de toda a
assistência e subsídios estatais.
3. Os corajosos e os bravos devem ser promovidos com mais assiduidade.
Esta ordem é para ser lida em todas as companhias, esquadrões, baterias.36
Tendo ditado o texto impulsivo sem hesitação alguma, Stalin deixou-o
como estava, não o editou, mas determinou que os nomes de Molotov,
Budenny, Voroshilov, Timoshenko, Shaposhnikov e Zhukov fossem
acrescentados na assinatura, embora nem todos estivessem presentes.
Em torno do fim de agosto, Stalin recebeu uma carta do escritor Vladimir
Stavsky, que acabara de passar dez dias no front próximo a Yelnya. Um trecho
da carta é o seguinte:

Prezado Camarada Stalin,


Diversas de nossas unidades operam maravilhosamente e desferem poderosos golpes sobre os fascistas.
Depois que o fulgurante e enérgico major Camarada Utvenko assumiu o comando da 19ª Divisão, os
regimentos destruíram o 88º Regimento de Infantaria e repeliram muitos contra-ataques alemães [...]
As unidades passam por treinamento de combate, acumulam experiência nas batalhas, estudam as
táticas alemãs e derrotam os germânicos.
Mas aqui, no XXIV Exército, as coisas foram longe demais. Segundo o Estado-maior e a seção
política, de 480 a 600 homens foram fuzilados por deserção, pânico e outros crimes. Oitenta homens
foram indicados para condecorações. Anteontem e hoje, o comandante do Exército Camarada
Rakutin e o chefe da seção política Camarada Abramov enfrentaram corretamente a situação.37

O único comentário de Stalin sobre a carta foi assinalar o dado das execuções
para a atenção de Mekhlis. Nesse ínterim, uma das maiores tragédias da guerra
se aproximava. Em 8 de agosto de 1941, Stalin estava de novo na linha com
Kirponos:

Stalin: “Chamou a atenção o fato de que o front decidiu entregar logo Kiev ao inimigo, supostamente
por falta de tropas capazes de defender a cidade. Isso é verdade?”
Kirponos: “Alô, Camarada Stalin. Você foi mal-informado. O conselho de guerra e eu estamos
fazendo o possível para não deixar que Kiev seja capturada em hipótese alguma. Todos os nossos
pensamentos e nossas energias estão voltados para que o inimigo não conquiste Kiev.”
Stalin: “Muito bom. Envio meus cumprimentos e o desejo de sucesso. Isto é tudo.”38

Em 15 de setembro, o primeiro e o segundo grupos alemães de carros de


combate fecharam o círculo no distrito de Lokhvitsa, cercando assim a força
principal do front sudoeste. Os exércitos V, XXVI, XXXVII e partes do XXI e
XXVIII acabaram numa armadilha. Quatro dias antes, enquanto o laço era
apertado em torno das unidades minguantes, Stalin e Kirponos tiveram sua
última conversa:
“Priluki, Alô. Kirponos, Burmistenko e Tupikov na linha.”
“Moscou, Alô. Stalin, Shaposhnikov e Timoshenko aqui. Sua proposta para recuar as tropas para o
corte do rio, cujo nome você sabe [o Psyol], me parece perigosa. Você deve lembrar que, quando
recentemente retirou as tropas do distrito de Berdichev-Novgorod-Volynsky, conseguiu uma posição
bem melhor no rio Dnieper, porém, mesmo assim, perdeu dois exércitos, e o inimigo se reagrupou na
margem leste do Dnieper. Segue-se a conclusão de que:
1. Você tem que reconstituir imediatamente seu poder de combate, mesmo ao custo do distrito
fortificado de Kiev e de outras forças, e, em coordenação com Yeremenko, desencadear ataques
desesperados sobre o grupo inimigo de Konotop.
2. Você tem que organizar imediatamente uma posição defensiva no rio Psyol, ou em algum lugar
daquela linha, formando uma frente ao norte e a oeste, forte em artilharia, e então retirar cinco a seis
divisões para trás de tal posição.
3. Somente depois disso, isto é, após a formação de um punho contra o grupo inimigo de Konotop e
o estabelecimento da posição defensiva no Psyol, você deverá começar a evacuação de Kiev.
Kiev não deverá ser abandonada, nem suas pontes destruídas, sem permissão do QG do Estado-maior.
Isso é tudo. Adeus.”
Kirponos: “Suas ordens são claras. Isso é tudo. Adeus.”39

Seria o último “adeus” de Kirponos. Enquanto o círculo não se fechasse, seria


possível romper o cerco. Em 17 de setembro, às 5h, o soviete de guerra
solicitou mais uma vez permissão de Stalin para que isso fosse feito e, de novo,
ele recusou a retirada e sancionou apenas o recuo do XXXVII Exército, sob o
comando de A.A. Vlasov, para a margem leste do Dnieper. A posição tornou-se
crítica. Malgrado as determinações de Stalin, no anoitecer de 17 de setembro, o
soviete de guerra decidiu tirar tropas do cerco. Mas perderam tempo. Além
disso, o QG do front ficou sem contato com os exércitos. As companhias e
unidades dispersas travaram batalhas violentas durante dez dias na tentativa de
rasgar a armadilha na direção do leste. Isso ajudou um pouco, mas o QG do
Estado-maior, sem o controle da situação, ainda enviava, em 22 e 23 de
setembro, telegramas animadores a Kirponos. Por exemplo:

Mais determinação e mais calma. A vitória está garantida. Só existem forças inimigas triviais contra
você. Concentre sua artilharia nos pontos de penetração. Nossa aviação opera em seu apoio. Nossas
tropas estão atacando Romny. Repito: mais determinação e mais calma. Reporte com mais
frequência.40

Foi uma catástrofe apavorante. Foram cercados 452.720 homens, incluindo


cerca de 60 mil oficiais.41 O inimigo apoderou-se de enormes quantidades de
armamento e de equipamento. Kirponos, seu chefe de Estado-maior, Tupikov,
e o membro do conselho de guerra, Burmistenko, pereceram nas últimas
batalhas, juntamente com milhares de outros soldados. Mesmo que Kirponos
tivesse conseguido romper o cerco, Stalin jamais o perdoaria. Na realidade,
Stalin e o Estado-maior foram os principais responsáveis pela tragédia, se bem
que também seja verdade que o quartel-general do front não conseguiu
administrar as forças que, sob melhor liderança, talvez evitassem o triste
destino. Muitas vezes, a valentia não era apoiada pela capacidade, pela
organização e pela competência. A derrota em Kiev inclinou rapidamente a
balança em favor do inimigo ao longo de todo o front.
Sem sinais de emoção, Stalin simplesmente ordenou a Shaposhnikov.
“Feche a brecha imediatamente. Imediatamente!” Shaposhnikov disse: “Penso
que o necessário nessa difícil situação é um pulso forte e uma cabeça com
experiência. Provavelmente, o melhor candidato para a missão seja
Timoshenko.” Stalin concordou. “E Khruschev deve ser nomeado para o
conselho de guerra, com o major general A.P. Pokrovsky como chefe do
Estado-maior.” “Que seja”, concluiu Stalin.
As perdas no primeiro ano de guerra foram verdadeiramente monumentais,
mesmo levando-se em conta a manipulação que os números experimentaram.
Só em Kiev, cerca de meio milhão de homens, de uma forma ou de outra,
desapareceram em ação. Certo dia, Stalin escreveu um bilhete para
Shaposhnikov solicitando detalhes sobre as baixas soviéticas nas proximidades
de Vitebsk.42 Normalmente não muito preocupado com a família, de súbito,
seu filho Yakov veio-lhe à mente. Em meados de agosto, Zhdanov, que estava
no conselho de guerra do front noroeste, enviara-lhe um envelope
especialmente selado. Ele continha uma folha de propaganda com uma
fotografia de Yakov em conversa com dois oficiais alemães, acompanhada do
seguinte texto:

Este é o filho mais velho de Stalin, Yakov Djugashvili, comandante de bateria do 14º Regimento de
Artilharia de Campanha da 14ª Divisão Blindada, que se rendeu próximo a Vitebsk em 16 de julho,
juntamente com milhares de outros oficiais e praças. Por ordem de Stalin, Timoshenko e seus
comissários políticos andam dizendo a você que os bolcheviques não se entregam. Mas os homens do
Exército Vermelho estão se bandeando para o lado alemão o tempo todo. Para amedrontá-lo, os
comissários lhe dizem que os alemães tratam muito mal seus prisioneiros. O exemplo do próprio filho
de Stalin mostra que isto é uma mentira. Ele se rendeu porque qualquer resistência ao Exército
Alemão é inútil.43

A sorte de Yakov só preocupava Stalin de um único ponto de vista. O pai


achava que teria sido melhor o filho morrer em combate do que cair
prisioneiro e, possivelmente, ser usado pelos nazistas, pessoa fraca que era, para
difundir sua propaganda contra o próprio pai e contra seu país. Era
insuportável pensar nisso. Naquela noite, quando estavam sozinhos, Molotov
lhe disse que o chefe da Cruz Vermelha Sueca, conde Bernadotte, enviara uma
mensagem verbal por intermédio do embaixador da Suécia, perguntando se
Stalin lhe delegaria poder, ou a qualquer outra pessoa, para negociar a
libertação de Yakov. O secretário-geral ponderou por um minuto ou dois,
olhou para Molotov e, então, começou a falar sobre um assunto totalmente
diferente. Molotov jamais levantou de novo a questão.

Stalin esperava receber informações precisas sobre o que ocorria, mas quando
seus comandantes lhe relatavam francamente os fatos, sua reação, quase
sempre, era a de acusá-los de alarmismo. Durante a crise de Kiev, por exemplo,
Tupikov reportou: “A situação no front torna-se mais difícil a cada minuto. É o
começo da catástrofe que vocês sabem, e é só uma questão de dias.”44 Stalin
telegrafou de volta dizendo que a mensagem de Tupikov denotava pânico.45
Dali por diante, os comandantes mostraram cautela em dizer a verdade para
Stalin, caso ela não fosse agradável. A conversa de 4 de setembro de 1941 entre
Zhukov e o major-general K.I. Rakutin, comandante do XXIV Exército, é
típica do período. Zhukov censurou Rakutin por ter lançado seus tanques na
batalha “sem raciocinar”, perdendo-os, como também por fazer relatórios
falsos.
Rakutin: “Vou sair esta manhã para investigar o problema, já que acabei de
receber o relatório...”
Zhukov: “Você é um general, não um detetive. Mande-me um relatório
escrito para que eu possa apresentá-lo ao governo. Shepelovo foi ocupada ou
isso é lorota também?”
Rakutin: “Shepelovo não foi ocupada. Eu mesmo vou verificar amanhã e
relatarei para você. Não mentirei.”
Zhukov: “O principal é: acabe com essas mentiras que saem do seu Estado-
maior e lide adequadamente com a situação, ou não será nada bom para
você.”46
Rakutin fora iludido pelos subordinados que reportaram sucesso não
existente. Isto aconteceu com frequência, pois as pessoas mentiam com medo
da punição. Rakutin não investigou o problema porque, afinal de contas,
morreu em combate apenas um mês depois.
Em meados de setembro de 1941, Shaposhnikov observou para Stalin que,
se todas as divisões tivessem lutado tão bem quanto as melhores unidades, o
inimigo teria sido barrado bem antes. Stalin, que estava louco para elevar o
moral da tropa, determinou que o Estado-maior encontrasse uma forma de
distinguir as melhores unidades, a fim de estimular e dar exemplo para o
restante do exército. Resultou a Ordem nº 308, de 18 de setembro, criando as
Guardas Soviéticas e renomeando as 100ª, 127ª, 156ª e 161ª divisões de
infantaria como Divisões de Guardas por suas bravura, disciplina e
organização, aumentando pela metade o soldo de seus oficiais e dobrando o das
praças.47
Em março de 1942, Stalin convocou uma reunião para discutir propostas
do QG do front sudoeste. Compareceram Voroshilov, Timoshenko,
Shaposhnikov, Zhukov e Vasilievsky. Timoshenko sugeriu um ataque amplo no
sul, com o emprego de forças dos três fronts e partindo da linha Nikolaev-
Cherkassy-Kiev-Gomel. Shaposhnikov objetou dizendo que as reservas eram
insuficientes e que seria mais prudente manter uma defensiva ativa ao longo de
toda a frente, dando-se especial atenção ao setor do centro. Stalin observou:
“Não podemos ficar sem fazer alguma coisa, esperando que o inimigo ataque
primeiro.” A ideia de Zhukov foi atacar no setor ocidental e manter a defesa
ativa no restante do front. Timoshenko firmou posição e Voroshilov o apoiou,
mas Vasilievsky se opôs. As opiniões ficaram divididas e todos esperaram pela
palavra de Stalin. Chegara o momento de ele tomar uma decisão genuinamente
estratégica, mas optou por um meio-termo tíbio: as forças do setor sudoeste
executariam um único ataque local contra o grupo inimigo em Kharkov, como
um passo na direção da libertação total da bacia do Donets. Ninguém fez
qualquer objeção. Raramente isso ocorria no QG do Estado-maior Geral.
Stalin supôs que um ataque em direções convergentes – a partir do distrito
ao sul de Volchansk e da cabeça de ponte de Barvenkovo – deixaria o inimigo
em situação difícil. O que não sabia era que os alemães preparavam um ataque
às forças soviéticas no saliente de Barvenkovo. O plano de Stalin, portanto, era
risco puro.
A ofensiva de Kharkov teve lugar em 12 de maio e começou bem. As tropas
avançaram 50 quilômetros em três dias quando, de repente, os alemães
desencadearam poderoso ataque do sul contra o flanco da força soviética que
progredia. Uma série de ordens contraditórias foi expedida. Aparentemente,
por volta de 18 de maio, Timoshenko solicitou a Stalin que parasse a ofensiva
(não foi encontrado registro documental da conversa dos dois). Stalin recusou:
“Vamos enviar duas divisões de infantaria e duas brigadas blindadas. O front
sul tem que ser mantido. Os alemães em breve estarão desgastados.”
Mais tarde, durante o XX Congresso do partido, Khruschev culpou
diretamente Stalin pelo desastre de Kharkov. Lembrou-se de que procurou
contato com o Kremlin a partir do front. Malenkov pegou o telefone e
Khruschev exigiu falar com Stalin, o qual, a poucos passos de distância, disse
para Malenkov continuar atendendo a chamada. Khruschev disse para solicitar
a Stalin que suspendesse a ofensiva, ao que o secretário-geral replicou: “Deixe
as coisas como estão!”
Zhukov dá uma versão diferente para os eventos, colocando a culpa nas
lideranças dos setores sul e sudoeste. Escreve em suas memórias que o Estado-
maior teve consciência do perigo iminente antes dos fronts. Já em 18 de maio,
argumenta, o Estado-maior era favorável à interrupção da ofensiva. “Naquela
noite, houve uma conversa com Khruschev no front, que assumiu a mesma
linha da equipe do QG do sudoeste, ou seja, que o perigo representado pelo
grupo inimigo em Kramatorsk era exagerado e que não havia necessidade de
suspender a ofensiva.” Foi nesse relatório que Stalin confiara, ignorando as
preocupações do Estado-maior Geral. Zhukov descarta os pleitos de Khruschev
quanto ao envio de relatórios alarmantes: “Posso servir de testemunha, pois
participei das conversações com o comandante-supremo.”48 Zhukov repete
várias vezes que Stalin fiou-se nos relatórios de Khruschev e Timoshenko,
deixando de dar o devido peso às análises mais ponderadas do Estado-maior
Geral.
À proporção que o exército blindado de Kleist intensificava o ataque e
alargava a brecha no front, Stalin foi se conscientizando de que, em um dia ou
dois, as tropas soviéticas ficariam presas na “ratoeira” de Barenkovo; portanto,
finalmente, deu a ordem para que o saliente de Barenkovo fosse mantido. Mas
já era tarde. O VI e o LVII exércitos e o Corpo de Exército do general L.V.
Bobkin, que avançavam sobre Krasnograd, caíram no cerco e foram
praticamente aniquilados. Se Stalin entendeu as causas daquilo que foi outra
grande tragédia da guerra, ou se ficou consciente de sua falibilidade como
estrategista e tático, é difícil dizer. De qualquer forma, tanto ele quanto o
Estado-maior estavam aprendendo as lições sangrentas da guerra.
Em decorrência das funestas derrotas na Crimeia e em Kharkov, Stalin
concluiu que era hora de aumentar a atividade guerrilheira. No fim de maio de
1942, assinou a Ordem nº 1.837 criando a equipe do QG central guerrilheiro
a ser vinculada ao Estado-maior. QGs de guerrilhas deveriam ficar adidos
também aos sovietes de guerra dos fronts sudoeste, de Bryansk, oeste, de
Kalinin, de Leningrado e da Karélia. A importância política e militar do
movimento foi demonstrada pelo fato de que seu Estado-maior do QG central
deveria incluir P.K. Ponomarenko, do Comitê Central, V.T. Sergienko, da
NKVD, e G.F. Korneyev, da divisão de informações do Comitê de Defesa.
Quando pareceu que o front sul estava mais ou menos estabilizado, Stalin
sentiu que era hora de intervir novamente. Às 2h de 26 de junho de 1942,
tendo ouvido o relatório rotineiro de Vasilievsky, Stalin não deixou que saísse e
disse:
“Espere um momento, quero dizer mais alguma coisa sobre a derrota de
Kharkov. Hoje, quando perguntei ao Estado-maior do sudoeste se o inimigo
fora detido em Kupyansk e como ia a formação das defesas no rio Oskol, não
consegui nada de sensato da parte deles. Quando essa gente aprenderá a
combater? Os QGs, por certo, já deveriam ter tirado algumas lições da derrota
de Kharkov. Quando começarão a cumprir as ordens do Estado-maior? Eles
têm que ser lembrados disso. Aqueles que merecerem deverão ser punidos e,
enquanto isso, eu gostaria de mandar uma carta pessoal para a liderança de lá.
O que você acha?”
“Acho que seria útil”, replicou Vasilievsky, e Stalin começou a ditar a carta
seguinte em nome do Comitê de Defesa, sem se dar ao trabalho de consultar
nenhum de seus membros:

Nós aqui em Moscou, os membros do Comitê de Defesa do Estado e o Estado-maior, decidimos


substituir o Camarada Bagramyan no cargo de chefe do Estado-maior do comando sudoeste. O
Estado-maior considera o Camarada Bagramyan insatisfatório não só como chefe do Estado-maior
que foi convocado para reforçar as ligações e as lideranças dos exércitos, como também como simples
provedor de informações cuja responsabilidade é a de dar conhecimento ao Estado-maior, de forma
honesta e confiável, sobre a situação no front. Além do mais, o Camarada Bagramyan provou ser
incapaz de aprender com a catástrofe que ocorreu na frente sudoeste. No curso de umas três semanas,
o front sudoeste, graças à sua atitude negligente, não apenas perdeu a operação ganha pela metade em
Kharkov, como também conseguiu entregar ao inimigo outras 18 ou 20 divisões.

Stalin fez uma pausa e perguntou: “Como é o nome daquele general que foi
derrotado juntamente com Samsonov em 1914? Aquele com o nome alemão?”
“Rennenkampf ”, respondeu Vasilievsky.
“Sim, é isso. Correto, vamos continuar.”
Esta catástrofe é tão fatal em suas consequências como o foi a sofrida por Rennenkampf e Samsonov
na Prússia Oriental. Depois de tudo o que aconteceu, o Camarada Bagramyan poderia ter aprendido
alguma coisa, se quisesse. Infelizmente, não há indício disso. Agora, como antes da catástrofe, a ligação
do Estado-maior com os exércitos não é satisfatória, nossa informação é de pobre qualidade.
Estamos enviando o Camarada Bodin, vice-chefe do Estado-maior, para servir como seu chefe
temporário de Estado-maior. Ele conhece esse front e pode fazer um bom trabalho. O Camarada
Bagramyan é nomeado chefe de Estado-maior do XXVIII Exército. Se ele se sair bem nessa função,
levantarei o assunto de sua indicação para a promoção.
Obviamente, o Camarada Bagramyan não é todo o problema. Ainda existem os erros cometidos pelo
soviete de guerra, sobretudo pelos Camaradas Timoshenko e Khruschev. Se tivéssemos que contar ao
país a escala total do revés sofrido, e por que ainda passa o front, temo que o povo iria tratá-los de
maneira bem áspera. Boa sorte.
26 Jul 42, 2h. Stalin49

O ano começara bem. O contra-ataque fora de Moscou, de 5 de dezembro de


1941 a 7 de janeiro de 1942, constituiu a primeira grande ofensiva soviética
coordenando todos os três fronts. O país vibrou. O inimigo fora empurrado
entre 100 e 250 quilômetros. Parecia ser o ponto de inflexão. Então, houve um
desembarque bem-sucedido na Crimeia, vitória em Tikhvin, o cerco de um
grande grupamento inimigo em Demyansk. Porém, como escreveu Suetônio:
“Nenhuma vitória traz tanto quanto uma derrota leva”, e houvera mais de uma
derrota...
Stalin ficara abalado com os reveses, mas bem menos do que com a ameaça
que pairou sobre a capital em outubro de 1941, quando foi atormentado por
pressentimentos alarmantes. O Comitê de Defesa declarara o estado de sítio.
Naqueles dias sombrios, o inimigo desferiu golpe atrás de golpe, e Stalin sentiu
que só um milagre poderia salvá-lo. Mas foi o povo que o salvou, o povo que
encontrou forças para resistir firme.
Em 17 ou 18 de outubro de 1941, Stalin convocou uma reunião matinal
no Kremlin com Molotov, Malenkov, Mikoyan, Beria, Voznesensky,
Shcherbakov, Kaganovich, Vasilievsky e Artemiev. Quando todos se
acomodaram, Stalin começou a listar as providências para a evacuação das
figuras importantes do Estado e do partido, e para a instalação de explosivos
nos edifícios mais relevantes, na eventualidade da captura de Moscou. Defesas
anticarro e contra infantaria deveriam ser montadas em todas as vias de acesso
que conduzissem à cidade. Foi preparado um plano de deslocamento do
governo para Kuibyshev, e do Estado-maior para Arzamas. O secretário-geral
disse que ainda havia esperança de uma boa solução, uma vez que divisões
chegariam em breve da Sibéria e do Extremo Oriente.50
“Não entregaremos Moscou!”, “Não recuaremos mais!”, eram os slogans
bradados pelos cidadãos soviéticos quando, depois do primeiro sentimento de
pânico, uma determinação calma retornou, em meados de outubro, às ruas da
capital. Diversas baterias antiaéreas foram instaladas em torno da dacha
próxima de Stalin e a segurança foi reforçada. Certa ocasião, quando, nas
primeiras horas da madrugada, saltava do carro para entrar em casa, ele ouviu o
forte ronco de inúmeros aviões no céu, e permaneceu parado de pé ao lado do
veículo. Poderia ele ter imaginado, quatro meses antes, que sua dacha ficaria a
menos de um dia de deslocamento dos tanques alemães? Alguma coisa caiu ao
lado do caminho.Vlasik abaixou-se e pegou um fragmento shrapnel ainda
quente de granada, passando-o a Stalin. O chefe da segurança tentou persuadir
o líder a entrar em casa (um abrigo seria construído mais tarde), mas ele
permaneceu lá por alguns minutos, como se estivesse sentindo pela primeira
vez a proximidade do hálito mortal da guerra. E foi então que, também pela
primeira vez, teve desejo de visitar o front.
No final de outubro, uma comitiva de vários carros deixou Moscou pela
autoestrada Vokolamsk, entrando por uma estrada vicinal depois de alguns
quilômetros. Stalin queria apreciar o disparo de uma salva de tiros, mas o chefe
da segurança não permitiu que a coluna avançasse mais. Eles esperaram. Stalin
ouviu as explicações de um oficial do front oeste, olhou por longo tempo os
lampejos avermelhados no horizonte e depois foi embora. No caminho de
volta, um blindado pesado salpicou de lama a limusine de Stalin. O motorista,
A. Krivchenko, se desesperou, e Beria insistiu para que Stalin trocasse de carro.
Pelo amanhecer, a excursão “ao front” havia terminado.
Certa vez, em meados de outubro, quando o secretário-geral se preparava
para se deslocar para a dacha, Beria informou-o, um tanto nervoso, que não
deveria ir, explicando em georgiano, quando Stalin lhe lançou um olhar
irritado, que a dacha fora minada e se encontrava pronta para ser explodida.
Stalin ficou raivoso, mas logo acalmou-se. Beria também lhe disse que um trem
especial estava pronto para ele numa das estações de Moscou, bem como
quatro aviões, inclusive o seu Douglas DC-3 privativo. Stalin nada disse.
Ponderou sobre o assunto, mas uma coisa dentro de si lhe disse que, enquanto
o exército e o povo soubessem que ele, Stalin, ainda estava em Moscou, iam se
sentir mais seguros; portanto, depois de longa deliberação, decidiu permanecer
até o amargo fim. Sabia que a evacuação da capital prosseguia a pleno vapor e
que os objetivos militares estavam sendo preparados para explosão. Beria
sugeriu que, se eles tivessem que sair, o metrô também fosse destruído.
Stalin tampouco tinha certeza se Leningrado resistiria. Em 25 de outubro
de 1941, enviou um telegrama para Fedyuninsky, Zhdanov e Kuznetsov
dizendo que eles pareciam não estar cientes da situação crítica das forças no
front de Leningrado:

Moscou está em posição delicada e não pode fornecer novas reservas. Ou vocês rompem o cerco nos
próximos dois ou três dias e dão um escape para o leste para nossas tropas, caso Leningrado não possa
ser mantida, ou serão feitos prisioneiros. Exigimos uma ação rápida e decisiva. Concentrem oito ou
nove divisões e abram caminho para leste. Isto é essencial, possa Leningrado ser mantida ou render-se.
Para nós, o Exército é mais importante. Exigimos ação decisiva.

Isto foi repetido numa mensagem posterior de Vasilievsky para o tenente-


general M.S. Khozin, comandante do LIV Exército, que foi nomeado
comandante do front de Leningrado quatro dias depois: “Peço que você leve
em consideração que, neste caso, não estamos falando tanto em salvar
Leningrado mas em salvar e retirar o exército.”51
No discurso pelo rádio de 9 de novembro de 1941, do qual Stalin recebeu
uma transcrição de interceptação, Hitler disse que o Exército Alemão avançara
sobre Leningrado o suficiente para manter e completar o cerco da cidade,
enquanto “o inimigo morre de inanição. Se uma força com poder suficiente
ameaçar o rompimento de nosso cerco darei ordem para que Leningrado seja
tomada de roldão. Mas a cidade está firmemente sitiada, e tanto ela como seus
habitantes estão em vossas mãos”.52
A reação de Stalin à notícia da tragédia de Leningrado, onde centenas de
milhares, de fato, morriam de fome, foi digna de nota. O general Fedyuninsky
me relatou uma conversa que ele e um grupo de líderes da cidade tiveram com
Stalin depois que o bloqueio foi levantado. O general disse a Stalin que
Leningrado se transformara em cidade-fantasma. Corpos jaziam nas ruas
porque não havia gente para recolhê-los. A pior coisa, disse Fedyuninsky, é que
a pessoa que morre de inanição permanece consciente até o fim. Inclusive o
medo desaparece. “É como apreciar a aproximação da própria morte. O sítio
de Leningrado foi uma das grandes tragédias da história humana.” Stalin
replicou: “A morte não ceifava só os de Leningrado. Morria gente também nos
fronts e nos territórios ocupados. Concordo que a guerra é horrenda quando
não há saída para a situação, e a inanição é uma dessas situações. Nada mais
havia que pudéssemos fazer por Leningrado. A própria Moscou estava por um
fio. Morte e guerra são inseparáveis. Leningrado não foi o único local a sofrer
nas mãos de Hitler, aquele porco.”
Mas Moscou resistiu, e o segundo furioso assalto alemão à cidade entrou
em colapso. Stalin logo determinou a Zhukov que preparasse a contraofensiva
e, quando os alemães chegaram, literalmente, aos subúrbios de Moscou, caindo
de exaustos, a ordem foi dada e, desta vez, a vitória chegou. Os nazistas
experimentaram a primeira derrota importante na Segunda Guerra Mundial.
Pareceu que chegara o ponto de inflexão. Foi possível, então, restaurar a fé do
povo na possibilidade de vitória e acabar com o clima fatalista de fracasso, ante
o mito da invencibilidade alemã. Em alguns aspectos, Stalin revelou-se um
bom psicólogo. Sabia que não deveria deixar Moscou, que o Informburo não
deveria publicar boletins que denotassem pânico e que os jornais deveriam
difundir os atos de bravura e os sucessos das Forças Armadas. Na véspera do
aniversário da Revolução, em 1941, perguntou a Molotov e Beria: “Como
vamos realizar o desfile militar? Talvez duas ou três horas mais cedo?” Os dois
pensaram que tinham entendido errado. Uma parada, com os alemães,
literalmente, às portas de Moscou? Como se desconhecesse as dúvidas deles,
Stalin continuou:
“As defesas antiaéreas em torno de Moscou devem ser reforçadas. Os
principais chefes militares estão no front. Budenny comandará o desfile e
Artemiev estará à frente da tropa. Se houver um ataque aéreo durante a parada
e resultarem mortos e feridos, eles deverão ser rapidamente removidos e o
desfile deve prosseguir. Um noticiário cinematográfico será preparado e
distribuído em grandes quantidades por todo o país. Os jornais farão grande
cobertura. Lerei um relatório na reunião cerimonial e farei um discurso do
palanque. O que vocês acham?”
Molotov ponderou: “E quanto ao risco? Há um risco, embora eu admita
que a repercussão política, aqui e no exterior, será enorme.”
“Então, está decidido. Tome as providências devidas”, disse Stalin a Beria,
“mas ninguém, a não ser Budenny, Artemiev e uns poucos indivíduos
confiáveis, deverá ter conhecimento da parada até o último minuto.”
Foi, sem dúvida, uma iniciativa corajosa e de longo alcance, refletindo a
mão segura com que Stalin influenciava a opinião pública e guiava o estado
mental da população, e isso numa ocasião em que muitos duvidavam do
resultado da guerra. Os nazistas tinham encontrado inúmeros cúmplices nos
territórios ocupados, e Stalin sabia que os fracassos soviéticos solapavam a fé.
Encarava a rendição em massa como traição, embora jamais reconhecesse em
público que existiam tantos prisioneiros soviéticos nas mãos dos alemães.
Quando falou na reunião cerimonial do soviete de Moscou, no metrô
Mayakovsky, em 6 de novembro de 1941, declarou que “nos quatro meses de
guerra, perdemos 350 mil mortos e 378 mil desaparecidos em ação”.53 Já então,
Stalin era um mestre na manipulação e, na verdade, na invenção de fatos com
fins de propaganda. Ele sabia que existiam bem mais “desaparecidos em ação”,
mas não era o catastrófico começo da guerra que ele via naqueles números, e
sim os erros políticos no treinamento das pessoas, a inadequação dos órgãos
punitivos, a influência do inimigo, os sobreviventes da luta de classes. A este
respeito, ele não era nem o psicólogo sutil, nem o político sóbrio, tampouco o
“sábio pai da nação”. Era, isto sim, o Stalin de 1929-33, 1937-38. O íntimo de
um homem muda lentamente. No caso de Stalin, o medo do cerco do inimigo
permaneceu com ele durante toda a vida. De outra forma, ele simplesmente
não teria sido Stalin.
Notas

* Em 30 de setembro de 1941, a Força Aérea soviética tinha perdido 96,4% dos aviões que possuía
quando a guerra começou. (TsAMO, f.35. op. 11 285. d. 9. l. 324)

** Ilha fortificada a cerca de 20 milhas fora de Leningrado.


[44]
O cativeiro e o general Vlasov

A invasão nazista causou muitas infelicidades, entre elas os prisioneiros, o


cativeiro. Um homem tendo que escolher entre a vida e a morte na
guerra, normalmente escolhe a vida, mesmo que isto signifique a perda
da liberdade e do seu senso de dignidade social. No último conflito de âmbito
mundial, o cativeiro foi quase equivalente à morte porque a avassaladora
maioria dos prisioneiros de guerra soviéticos pereceu, de fato, nos campos
alemães. Em maio de 1918, o governo soviético informara à Cruz Vermelha
Internacional e aos governos do mundo que as convenções sobre vítimas da
guerra, como “todos os outros acordos e convenções internacionais relativos à
Cruz Vermelha e respeitados pela Rússia antes de 1917, são agora reconhecidos
e serão honrados pelo governo soviético russo”. A nova Convenção de Genebra
sobre prisioneiros de guerra, de 1929, não foi, no entanto, ratificada pela
União Soviética.54
Milhões de soldados soviéticos caíram em mãos alemãs nos primeiros
dezoito meses da guerra. Quantidades exatas sobre as baixas e prisioneiros
soviéticos ainda não foram publicadas na URSS. Chegaram a níveis fantásticos.
Farei meus próprios cálculos num capítulo adiante.
Em diversas ocasiões dos primeiros meses da guerra, Stalin quis saber a
escala das perdas. O Estado-maior e a divisão de pessoal do Comissariado da
Defesa produziram relatórios, mas, claramente, faziam pouca ideia da posição
real. Os arquivos contêm gráficos mostrando quantos foram mortos e feridos,
quantos adoeceram e quantos desapareceram em ação, quantos cavalos ficaram
incapacitados, quantos aviões, armas e carros de combate foram perdidos. Mas
não há tabelas com as quantidades de prisioneiros de guerra. Um dos relatórios
afirma que, em junho e julho de 1941, 72.776 homens estavam desaparecidos
em todos os fronts.55 Os números dobram se acrescentarmos os números de
agosto e setembro, mas também sabemos que, só no distrito de Kiev, 452.720
homens foram cercados e que a maioria deles foi aprisionada. Existem alguns
cálculos oficiosos que são mais precisos. Por exemplo, o procurador-chefe do
Exército Vermelho, V.I. Nosov, informou a Mekhlis, em 24 de setembro de
1941, que, dos 7 mil combatentes da 299ª Divisão de Infantaria do L Exército,
que combatia na autoestrada Bryansk-Roslavl, restavam menos de 500. Cerca
de 500 haviam morrido, 1.500 estavam feridos e 4 mil tinham desaparecido
em ação.56
O próprio Stalin admitiu, indiretamente, a grande quantidade de soldados
“desaparecidos” num telegrama a Timoshenko, Khruschev e Bodin:

O Estado-maior considera intolerável e inadmissível que, por diversos dias, o soviete de guerra não
tenha mandado notícias sobre o destino do XXVIII e do LVII Exércitos e do 22º Corpo Blindado. De
diversas fontes, o Estado-maior tem conhecimento que os Estados-maiores destes exércitos recuaram
para trás do Don, mas nem tais Estados-maiores nem os sovietes de guerra informaram ao Estado-
maior para onde essas forças foram e o que lhes aconteceu, se ainda combatem ou caíram prisioneiras.
Eram cerca de quatorze divisões nestes exércitos e o Estado-maior deseja conhecer seu paradeiro.57

Em novembro de 1941, Hitler proclamou que o sucesso da Alemanha na


guerra era evidente, uma vez que a nação já tinha feito 3,6 milhões de
prisioneiros, “e proíbo que qualquer inglês estúpido diga que isso não foi
provado. Quando uma instituição militar alemã calcula alguma coisa o
resultado é sempre correto”.58 Existem várias estimativas sobre o número de
prisioneiros de guerra soviéticos nos estudos ocidentais, algumas baseadas em
cálculos da Wehrmacht de junho de 1941 a abril de 1945, que totalizam 5,16
milhões.59 Acredito que tal número resultará exagerado quando todos os fatos
forem conhecidos. No entanto, fundamentados no que agora sabemos, nos
primeiros dezoito meses de guerra, cerca de três milhões de homens, ou seja,
65% das Forças Armadas soviéticas, foram feitos prisioneiros.
Qual a atitude de Stalin em relação a esses prisioneiros? Além da proibição
oficial da rendição, ele também suspeitava de provável traição. Qualquer
militar que tivesse sido aprisionado não era, aos seus olhos, digno de confiança.
Se voltasse ao país, era transferido para uma unidade de lançamento de campos
de minas ou enviado a campos especiais de concentração onde a NKVD
pudesse “checá-lo”. Em agosto de 1942, Stalin sancionou a construção de três
destes campos.60
O secretário-geral interessava-se particularmente pela sorte dos generais
desaparecidos, e expediu instruções especiais para investigar o que acontecera
com Kachalov, Ponedelin, Vlasov, Yefremov, Potapov, Rakutin, Samokhin e
Lukin. Já apreciamos os casos de Kachalov e Ponedelin. Quando Yefremov e
Vlasov desapareceram, Stalin ordenou que Beria fizesse uma sindicância, e
existe um telegrama de Zhdanov ao general Sazonov solicitando informar
imediatamente ao Estado-maior o que sabia sobre Vlasov.61
Eles não encontraram Vlasov, porém o próprio general logo deixou
conhecida sua posição, como veremos mais adiante. Quanto a Yefremov, seu
destino foi descoberto por acidente. Uma mulher do vilarejo de Slobodka, no
distrito Temkinky de Smolensk, deu parte de que no fim de abril de 1943 vira
alguns soldados “enterrando um general”. O fato foi levado às autoridades
superiores, onde se suspeitava que o general havia se rendido. Em
consequência, a sepultura foi escavada, o corpo identificado, seus ferimentos
confirmados como incapacitantes e um relatório submetido a Stalin, que
acabou por reabilitar Yefremov, efetivamente, por ter atirado em si próprio para
evitar a captura iminente.
Muitos generais desapareceram em ação entre 1941 e 1942, a maioria
morta na tentativa de romper os cercos. Os que sobreviveram, ou definharam
ou morreram nos campos alemães. Alguns, como o major general P.V. Sysoev,
preso em julho de 1941, conseguiram escapar em 1943, mas tiveram que
passar três anos num campo soviético sendo “checados”. Outros foram
executados por traição. Uns poucos, como Rikhter, Malyshkin e Zhilenkov,
passaram, de fato, para o lado alemão.
Pode-se imaginar que Stalin, tendo “limpado” toda a sociedade entre 1937 e
1939, não esperava que alguém colaborasse com os ocupantes. Como vimos,
décadas mais tarde, Molotov afirmou que Stalin havia “destruído a quinta-
coluna” antes da guerra. É claro que não foi assim. Antes de tudo, a gente que
Stalin liquidou não era inimiga. Os Quislings e Lavals não estavam todos no
Ocidente: a União Soviética teve também seus próprios colaboradores e
traidores. Haviam decorrido apenas 21 anos desde a revolução e existiam
muitas pessoas que se sentiam prejudicadas pelo regime. Muitas outras foram
motivadas pelo temor aos nazistas e pelo desejo de se adaptar e sobreviver,
enquanto outras, especialmente em 1941, acharam que os alemães tinham
chegado para ficar. Por fim, existiram os fracos, os venais, os tipos
simplesmente criminosos que estavam prontos para cometer a traição.
Exemplificando, Beria relatou a Malenkov, em dezembro de 1941, que um tal
A.I. Ulyanov caíra prisioneiro como soldado raso e fora enviado para a
retaguarda pelos alemães como capitão duas vezes condecorado como Herói da
União Soviética. Foi logo desmascarado.62
Eram casos isolados, mas houve também diversas formas organizadas de
colaboração, das quais o caso mais gritante foi o do tenente-general A.A.
Vlasov, comandante do II Exército de Assalto, no front de Volkhov. Quando
Stalin soube, em junho de 1942, que aquela força fora cercada no distrito de
Masnoy Bor, recebeu calmamente a notícia. Afinal de contas, quantos outros
exércitos haviam sido isolados! Todavia, a partir da batalha de Moscou, ele
ficou mais confiante em que o resultado da guerra não dependia mais de uma
vitória aqui ou uma derrota ali: a causa Aliada estava a caminho da vitória.
Também sabia que em Vlasov, o segundo na hierarquia do front, o II Exército
de Assalto tinha um chefe experiente; além do mais, Stalin o havia promovido
a tenente-general havia três meses como um dos melhores oficiais de alta
hierarquia do front.
Poucos dias mais tarde, Stalin perguntou a Vasilievsky como os eventos
tinham transcorrido e o que ocorrera desde então. Vasilievsky lembrou-lhe que,
em 21 de maio, ele ordenara que o agrupamento de Volkhov do front de
Leningrado atacasse o inimigo a partir do oeste, enquanto o LIX Exército
atacaria do leste, destruindo assim as tropas inimigas no saliente de Priyutin-
Spasskaya Polist. As forças combinadas do LIX Exército e do II Exército de
Assalto, mais o flanco direito do LII Exército, garantiriam uma cabeça de ponte
na margem oeste do rio Volkhov e fechariam a rodovia e a ferrovia Leningrado
para evitar a junção das forças inimigas com seus agrupamentos de Novgorod e
Chudov, restaurando, assim, a linha Novgorod-Leningrado.63
“Então, como você deixou que o II Exército de Assalto fosse cercado?”,
perguntou Stalin.
“Quando forças inimigas importantes começaram a ameaçar o II Exército
de Assalto pelo norte, solicitei repetidamente que Khozin enviasse reforços para
o setor de Volkhov.”
“O que fez Khozin?”, indagou Stalin, rispidamente.
“O front só deu a ordem em 25 de maio, tarde demais. Em três ou quatro
dias, as linhas de suprimento do Exército foram cortadas e ele se viu isolado.”
Vasilievsky explicou que passou telegrama a Khozin para que agisse com maior
determinação e acelerasse o deslocamento de suas forças.64
Stalin então perguntou se fora feito contato com Vlasov.
“Não”, respondeu Vasilievsky. “Seu último relatório foi por volta do início
de junho.”
“Talvez o agrupamento operacional de Volkhov devesse organizar um front
separado?”, sugeriu Stalin.
Vasilievsky concordou: “Há seis exércitos naquele agrupamento. Eles devem
ser capazes de resgatar o II Exército de Assalto.”
“Tire Khozin e nomeie Govorov comandante em chefe do front de
Leningrado. O comandante do novo front de Volkhov deve ser Meretskov. Se
você não faz objeção, redija as ordens”, concluiu Stalin.*
Outros eventos logo desviaram de Vlasov a atenção de Stalin, se bem que,
quando a rádio alemã começou a divulgar rumores de que “um dos maiores
exércitos soviéticos” fora cercado, Stalin determinou que o Sovinformburo
preparasse um comunicado especial que dizia:

Em 28 de junho, o bureau alemão de informações divulgou nota do QG de Hitler sobre a destruição


do II Exército de Assalto e dos exércitos LII e LIX do front de Volkhov, alegando que eles foram
cercados por tropas fascistas alemãs na margem oeste do rio Volkhov. De fato, os exércitos LIX e LII
atacaram do leste e o II Exército de Assalto do oeste, cortando as ligações entre unidades inimigas que
foram, em sua maior parte, destruídas, sendo que só umas poucas foram jogadas para posições de
onde puderam escapar. Portanto, não se justificam comentários sobre a destruição do II Exército de
Assalto.

Stalin deu uma olhada no comunicado e o passou a Poskrebyshev, dizendo: “É


melhor não falar nada.” Poucas horas mais tarde, em 29 de junho de 1942,
entretanto, o Sovinformburo foi instruído para divulgar um comunicado
diferente:

Os escribas nazistas estão citando cifras astronômicas de 30 mil supostos prisioneiros de guerra e
falando em maior quantidade ainda de mortos. Nem é preciso dizer que se trata de típica mentira
nazista. Segundo dados ainda não confirmados, pelo menos 30 mil alemães foram mortos [...] Partes
do II Exército de Assalto recuaram para posições preparadas. Perdemos aproximadamente 10 mil
mortos e 10 mil desaparecidos em ação.

A simetria destes dados já era bastante suspeita àquela época e agora sabemos
que milhares e milhares de combatentes soviéticos foram tragados pelos
pântanos na operação malplanejada e que ainda estão listados como
“desaparecidos”.
Em determinada ocasião, poucas semanas depois, Beria, que juntamente
com Molotov ainda se encontrava tarde da noite na dacha de Stalin, tirou um
documento de sua indefectível pasta e o mostrou a Stalin.
“O que é isso?”
“Dê uma olhada. Veja onde está o desaparecido comandante do II Exército
de Assalto”, replicou Beria.
Stalin passou os olhos pelo documento que era “Uma proclamação do
comitê russo dos soldados e oficiais do Exército Vermelho para todo o povo
russo e todas as nações da União Soviética”:

O Comitê Russo tem os seguintes objetivos: derrubar Stalin e sua súcia, concluir uma paz honrosa
com a Alemanha, criar uma Nova Rússia. Convocamos você a se juntar ao Exército Russo de
Liberação que luta em aliança com a Alemanha.
Presidente do Comitê Russo tenente-general Vlasov
Secretário do Comitê Russo tenente-general Malyshkin65

Havia passes para o cruzamento das linhas, “Uma carta aberta de Vlasov sobre
os motivos pelos quais tomei o caminho da luta contra o bolchevismo”, e
publicações semelhantes.
Stalin pôs de lado os documentos e perguntou a Beria: “Podem ser
falsificações? O que se sabe sobre Vlasov? Há confirmação?”
Beria replicou: “Há, sim. Vlasov está trabalhando para os alemães.”
“Como deixamos que escapasse antes da guerra?”, interveio Molotov.
Como resposta, Beria tirou a ficha pessoal de Vlasov de sua pasta. Stalin leu
que ele nascera na província de Nizhni Novgorod (Gorky) no seio de uma
família mediana (isto é, nem rica nem pobre) de camponeses. Não tinha
parentes além da esposa e do pai idoso. Beria sublinhou a anotação de que
Vlasov completara a escola religiosa e estudara durante dois anos num
seminário teológico antes de 1917. Combatera na guerra civil e todos os seus
serviços posteriores foram bem-sucedidos: a 99ª Divisão de Infantaria, sob seu
comando, estivera entre as melhores no distrito de Kiev. Antes, desempenhara
missão especial na China. Comandara o 4º Corpo Mecanizado que combateu
com bravura em Przemsyl e Lvov, e fora promovido para comandar o XXXVII
Exército que defendia Kiev. Saíra-se muito bem naquela missão, recebera o XX
Exército e, finalmente, o II Exército de Assalto.
Em 20 de abril de 1942, o próprio Stalin assinara a ordem nomeando-o
comandante “combinado” – um termo raro no vocabulário militar – do II
Exército de Assalto e vice-comandante em chefe do front de Volkhov.66 Fora
condecorado com a Ordem de Lenin e a da Bandeira Vermelha. Tinha um
histórico irretocável. O relatório de 1938 do partido a seu respeito afirmava
que “ele está fazendo muito para liquidar os remanescentes da sabotagem nas
unidades”. Seus avaliadores foram oficiais renomados como Kirponos,
Muzychenko, Parusinov e Golikov. O único comentário numa certidão datada
de 19 de novembro de 1940 referia-se a um desejo “de dedicar atenção ao
emprego e à manutenção dos cavalos”. Ao longo de toda a ficha havia
observações como “Dedicado à causa do partido de Lenin-Stalin e à da Pátria-
Mãe”. Numa avaliação de 24 de janeiro de 1942, o general Zhukov escrevera
que Vlasov era bem treinado operacionalmente e estava totalmente capacitado
para comandar um exército. Receber um “totalmente capacitado” de Zhukov
não era façanha pequena naqueles tempos sisudos.
Stalin não acreditava que Vlasov pudesse fazer muita coisa importante para
os alemães, mas entendeu que, depois do anúncio da formação do Exército
Russo de Liberação, poderia esperar o surgimento de outras organizações
nacionais como aquela, e estava certo.
Em 1942, as autoridades germânicas começaram a explorar os
acampamentos à procura de desertores que desejassem não apenas servir no
exército de Vlasov, como também nas diversas legiões nacionais: georgiana,
armênia, turquestã, caucasiana, báltica e outras. Muito esforço foi feito com
esse intuito, mas pouco resultou. Alguns prisioneiros de guerra se filiaram a
estas legiões como meio de sobrevivência e como uma possível maneira de
voltarem às suas forças, mas também existiram aqueles que se deixaram levar
pela propaganda nacionalista. Alguns “legionários” chegaram mesmo a tentar
cruzar as linhas em uniformes confeccionados pelos alemães, sem saber ao certo
o destino que os esperava. Por exemplo, em 3 de outubro de 1942, Bergenov,
Khasanov e Tulebaev, três soldados da legião turquestã, procuraram
companheiros durante quatro dias, toparam com unidades soviéticas e disseram
que grande parte de seu batalhão desejava retornar à sua unidade. Em 8 de
outubro,Tsulaya e Kabakadze apareceram numa zona de defesa da 2ª Divisão
de Guardas e pediram ajuda para que um destacamento da legião georgiana
cruzasse a linha.67
Os alemães eram bastante otimistas em relação às legiões que formaram nas
repúblicas bálticas, cujas populações só viviam sob mando soviético por apenas
um ano antes da guerra. O comando alemão, contudo, apenas as empregou
como auxiliares, na guarda de instalações e estradas e, ocasionalmente, em
expedições punitivas. Depois da guerra, esses legionários foram julgados e
exilados. O governo báltico solicitou às autoridades soviéticas que decretassem
uma anistia. Em 16 de março de 1946, V.T. Latsis, primeiro-ministro da RSS
da Letônia, e Ya.E. Kalberzin, primeiro-secretário do partido letão, escreveram
a Moscou:

Durante a ocupação temporária da RSS da Letônia, os agressores germânicos mobilizaram


obrigatoriamente toda a força de trabalho, sendo que alguns de seus integrantes foram deportados
para campos de trabalho forçado na Alemanha, enquanto outros foram recrutados para as chamadas
legiões do Exército alemão. Estes últimos foram depois exilados por seis anos para regiões do norte.
Solicitamos que seja permitido àqueles que apenas serviram nas legiões que retornem à RSS da
Letônia.68

Stalin normalmente repassaria tais tipos de comunicações a Molotov e Beria,


mas sua atitude em relação a quem havia se bandeado para os alemães era
invariável. Depois da liberação do Cáucaso Setentrional, Beria reportou que:

A NKVD acha que seria sensato deportar de Stavropol, Kislovodsk, Pyatigorsk, Mineralnye Vody e
Essentuki as famílias de bandidos, cúmplices ativos dos alemães, traidores da Pátria-Mãe e aqueles que
passaram voluntariamente para o lado germânico, e assentá-los permanentemente na RSS do
Tadjiquistão como colonos especiais. As quantidades envolvidas são 735 famílias ou 2.238 pessoas.
Solicito suas ordens.69

Stalin deu sua aprovação. Mantinha-se informado sobre as legiões por


intermédio da NKVD. Entendia que, a despeito de aquelas unidades não
representarem uma grande força, poderiam ser politicamente significativas. Sua
posição para com elas, demonstrada nos documentos, foi uniformemente
irreconciliável, muito embora elas constituíssem efetivos pequenos.
Por exemplo, Kobulov reportou a Beria que, nos distritos do Cáucaso
Setentrional, na semana anterior, houvera seis incidentes. Oito bandidos foram
mortos, inclusive dois paraquedistas alemães, 46 bandidos foram presos e 37
armas capturadas. O Exército Vermelho perdeu oito homens. O chefe do
bando Kayakent, Ilyasov-Nadzmuddin, foi morto, e o bando de S.Kh.
Temirkanov, aniquilado.70 De forma semelhante, Beria enviou o seguinte
relatório de Kobulov para Stalin, em 20 de julho de 1944:
Como resultado da varredura nas florestas do distrito de Kazburun, na RSS Autônoma de Kabardino-
Balkária, em 12 de julho, um paraquedista alemão foi capturado, de nome Kh.Kh. Fadzaev (ex-
membro do Konsomol, caucasiano, que trabalhou para a polícia alemã no vilarejo de Urukh, alistou-
se no Exército alemão em 1943 e tem a graduação de sargento-maior). Diversos outros paraquedistas
estão presos, dois deles ainda estão sendo procurados. O restante ou morreu ou está preso.71

Relatórios similares chegavam da Crimeia e de outras regiões. Em vez de lidar


com criminosos e traidores individuais, Stalin e Beria agiram de acordo com os
planos preparados por Serov, Kobulov, Momulov, Tsanava e outros mestres em
tais assuntos, e deportaram nações inteiras do Cáucaso Setentrional, da
Kalmíkia e da Crimeia para o leste. Os documentos testemunham que
existiram muitos vira-casacas, mas quantos heróis saídos desses povos serviram
com distinção no Exército Vermelho! Só os chechênios e os inguches deram
trinta e seis Heróis da União Soviética.
No curso de 1944, por ordem de Stalin, centenas de milhares de
chechênios, inguches, balkares, karachays, tártaros da Crimeia, kalmyks e
turcomenos foram deportados. Um dos poucos estudos acadêmicos sobre o
assunto é o do historiador Dr. Kh.M. Ibragimbeili.72 No meio-tempo, Beria
reportou para Stalin que 26.359 famílias kalmyks, totalizando 93.139 pessoas,
haviam sido deportadas para as regiões de Altai e Krasnoyarsk, e para os oblasts
de Omsk e Novosibirsk.73
Stalin acompanhava estes desenvolvimentos com a mesma assiduidade que
dedicava às posições dos fronts. Mas, no caso das deportações, não encontrava
resistência porque os envolvidos eram normalmente idosos, mulheres e
crianças, e Beria chegou a relatar que “durante a operação de despejo e
transporte não houve incidentes”. Stalin ficou satisfeito e ordenou a Beria que
“destacasse aqueles que tinham executado as ordens de deportação de maneira
exemplar”. Beria agiu rapidamente e respondeu:

De acordo com suas instruções, submeto à sua apreciação uma minuta de decreto do Presidium do
Soviete Supremo da URSS sobre condecorações e medalhas para os participantes que mais se
destacaram na deportação de chechênios e inguches. Dezenove mil membros da NKVD, da KGB e da
Smersh** tomaram parte, mais cerca de 100 mil oficiais e membros das forças da NKVD, dos quais
uma parcela substancial participou da deportação dos karachays e kalmyks, e serão envolvidos na
próxima deportação dos balkares. Como resultado destas três operações, cerca de 650 mil chechênios,
inguches, kalmyks e karachays já foram enviados para as regiões orientais da URSS.74
Stalin chegara a ponto de acusar nações inteiras de traição, e mais de 100 mil
soldados foram empregados para deportar velhos, mulheres e crianças. Se ele
tivesse seguido esta lógica até o extremo, depois da formação do Exército Russo
de Liberação, teria deportado todos os russos e todos os ucranianos – na
realidade, todas as nações da URSS!
O movimento Vlasov surgiu por uma série de razões: as grandes derrotas, os
sentimentos de injustiça nacional e social entre alguns representantes (e seus
filhos) de antigas classes privilegiadas, o medo da reação de Stalin por cair
prisioneiro. Quanto mais o Exército Vermelho era vitorioso em fazer o inimigo
refluir, menor a quantidade dos prisioneiros de guerra soviéticos que se
juntavam aos alemães e, pelo final de 1942 e em 1943, a quantidade minguou
para praticamente zero. Falando aos agitadores que trabalhavam no seio das
tropas não russas, o chefe da administração política do Exército Vermelho, A.S.
Shcherbakov, observou que em agosto de 1942, no front de Leningrado,
ocorreram 22 casos de homens que passaram para o lado alemão, enquanto em
janeiro de 1943 foram apenas dois. Depois, não houve mais caso algum.75
No seu livro Die Geschichte der Wlassow Armee, História do Exército Vlasov,
Joachim Hoffmann afirma, aparentemente com base nos arquivos de Vlasov,
que, por volta de maio de 1943, a Wehrmacht contava com noventa batalhões
russos e quase outras tantas legiões nacionais à sua disposição.76 Tais
quantidades são grosseiramente infladas, e a tentativa de retratar o movimento
Vlasov como alternativa viável para o bolchevismo é inconvincente ao extremo.
As formações de Vlasov não eram compostas de “combatentes ideológicos” e
sim de uma mistura de criminosos e nacionalistas, essencialmente de pessoas
que se encontravam em situação desesperadora e estavam convencidas de que
ali estava uma possível forma de sobrevivência. O fato de Vlasov recorrer a
emigrados brancos da estatura do comandante cossaco P.N. Krasnov, do
general A.G. Shkuro, do general Sultan-Girei Kluch e de outros bem atesta a
pobreza ideológica do movimento.
Foi principalmente o sucesso militar soviético que solapou o movimento
Vlasov, dissipando-o como fez à depressão, ao pânico e à apatia que tinham
provido solo fértil para as defecções. Não obstante, Stalin preferiu explicar o
movimento Vlasov como evidência de que nem todos os “inimigos do povo”
haviam sido desmascarados antes da guerra. Uma supervisão estrita foi mantida
sobre os que retornaram do cativeiro, medidas especiais seriam introduzidas
nos fronts, com ação punitiva contra os que manifestassem dúvida sobre a
capacitação de seus comandantes. A checagem nos territórios liberados e a
vigilância sobre a retaguarda do Exército Vermelho ficaram a cargo da NKVD
e, como demonstram seus relatórios regulares, Beria fez seu trabalho em grande
escala. Por exemplo:

Em 1942, as tropas da NKVD responsáveis pela segurança na retaguarda do Exército Vermelho, no


processo de limpeza do território liberado das mãos do inimigo, prenderam 931.549 pessoas para
averiguações. Destas, 582.515 eram militares e 349.034, civis.
Do número total, 80.296 foram desmascaradas e presas (como espiões, traidores, membros de
esquadras punitivas, desertores, bandidos e elementos criminosos semelhantes).77

Beria e sua equipe não se limitaram a trabalhar no lado soviético, mas também
tentaram descobrir o que acontecia nas unidades de prisioneiros de guerra
formadas pelos alemães. Beria, que normalmente despachava sozinho com
Stalin ou na companhia de Molotov, em certa ocasião mostrou a Stalin as
anotações feitas durante o interrogatório do major general A.E. Budykho, que
escapara de um campo de concentração alemão e se juntara a um grupo de
guerrilheiros. Ele então definhava num campo de concentração soviético em
Oranienburg, onde a maioria de seus colegas de prisão era constituída por
oficiais que tinham sido prisioneiros de guerra dos alemães. Budykho fez um
relato detalhado, descrevendo a chegada ao campo do representante pessoal de
Vlasov, o general Zhilenkov, e de outros oficiais do Exército Russo de
Liberação.
Zhilenkov fora secretário de um comitê do partido do distrito de Moscou
antes da guerra e progredira rapidamente na carreira, graças ao expurgo nas
organizações partidárias. Como membro do soviete de guerra do XXXII
Exército no front oeste, ele fora cercado e caiu prisioneiro. Oportunista
bajulador, ao se ver, subitamente, entre oficiais antigos do partido, logo se
transformou em colaborador. O mesmo aconteceu com outro dos auxiliares de
Vlasov, o tenente-general Malyshkin, chefe do Estado-maior do XIX Exército.
Fora preso em 1938 e libertado no começo da guerra. Quando Beria reportou
sobre diversos generais que tinham sido condenados e depois libertados, Stalin
quis saber quem tinha feito a petição em favor de Malyshkin. Lamentou o
tempo perdido para ouvir relatos sobre todos os traidores desconsiderados nos
anos 1930.
Em fevereiro e março de 1943, foram realizados julgamentos in absentia,
nos quais Vlasov e outros foram condenados à morte. As sentenças foram
executadas em agosto de 1946, depois que os sentenciados foram capturados
pelas forças soviéticas e repatriados.
No fim, Stalin deve ter pensado que tudo que os Vlasovs armaram não fez a
menor diferença. O país já tinha passado pelo pior. Seria difícil encontrar um
início de guerra mais melancólico que o de junho de 1941. Todas as
autoridades civis e militares de proa achavam que a URSS, na melhor das
hipóteses, sobreviveria por três meses. Mas o povo soviético as desmentiu.
Contudo, a inacreditável resistência e a obstinação sem limites seriam
creditadas à “sábia liderança” de Stalin, o responsável mais direto pela
catástrofe.
Notas

* Surgiram também informações de que Khozin era muito dado à bebida e de que levava mulheres para
seu apartamento — ele alegou que elas iam lá para assistir filmes (TsPA IMI. F.77. op. 3 . d. 133. 1. 1-4.)

** Sigla russa de Smyert Shpiona, “Morte aos Espiões,” um apelido da Voyenna Kontra Razvedka, a
contrainteligência militar.
PARTE IX
O comandante supremo

Aos olhos do povo, general que vence não fez erros.


Voltaire
[45]
O quartel-general

S talin não foi o líder militar genial descrito em tantos livros, filmes,
poemas, monografias e histórias. Tampouco era dotado do grande poder
de prognosticar que lhe atribuem. Dado o molde dogmático de sua
mente, seria até de admirar que o tivesse. Mais significativo ainda, embora
determinado e inflexível, carecia de habilitações profissionais militares. Chegou
a alguma sapiência estratégica à custa de tentativa e erro salpicada de sangue.
Seu histórico civil era totalmente inadequado ao posto de Supremo
Comandante em Chefe e, na verdade, sua reputação como líder guerreiro foi
sustentada pela capacidade coletiva do Estado-maior Geral e pelos excepcionais
talentos de algumas das personalidades que trabalharam próximo a ele durante
a guerra. Entre elas, sobretudo Shaposhnikov, Zhukov, Vasilievsky e Antonov.
Destituído de real experiência militar, Stalin, em especial durante os primeiros
dezoito meses de guerra, não dominava a concepção do trabalho da máquina
militar, o sentido de tempo operacional, as distâncias reais, ou mesmo o que as
tropas podiam ou não executar. Em consequência, muitas de suas ordens não
foram cumpridas, já que eram irrealistas, apressadas ou irrefletidas.
Por exemplo, em 28 de agosto de 1941, ele determinou que a força aérea de
dois fronts destruísse algumas formações de carros de combate com o emprego
de não menos que 450 aeronaves, e a operação deveria começar ao amanhecer
do dia seguinte.1 Até em termos de informações, para não falar em logísticos,
esta ordem revela completa ausência de percepção do que é esperado que tal
força consiga. Como Supremo, era como se supusesse que bastava expedir a
ordem para que o sistema entrasse em ação, sem ideia de como ele funcionava.
Pouco a pouco, no entanto, foi aprendendo e, ao tempo de Stalingrado,
segundo Zhukov, “ele tinha uma boa compreensão das questões estratégicas
amplas”.2 Contudo, uma boa compreensão não corresponde a conhecimento
estratégico. Aí sim foi que entrou a contribuição coletiva do Estado-maior, cujo
papel foi excepcional.
Na véspera da guerra, Zhukov e Timoshenko levantaram para Stalin a
questão da criação de um ou dois centros de controle especialmente equipados
para a direção das Forças Armadas. Em maio de 1941, pela segunda ou terceira
vez, eles propuseram a formação do Quartel-General do Estado-maior Geral, o
qual, entre outras coisas, instituiria o treinamento em todo o país com o
propósito de colocar a economia em pé de guerra. Stalin, em princípio,
considerou boa a ideia de um QG do comando supremo, mas não tomou
decisão concreta e ninguém mais tocou no assunto, ainda mais porque todos
sabiam que ele permaneceria apenas em dois locais – no Kremlin ou na dacha
próxima. Raramente ia à outra dacha em Semenovsky e acabou por
transformá-la, em novembro de 1941, em casa de feridos de guerra. O QG do
Supremo Comandante em Chefe foi, portanto, a sala de Stalin no Kremlin, na
dacha das proximidades, na casa da rua Kirov ou no edifício do Estado-maior.
Como Stalin desempenhava diversas funções — não havia ordem do
Comitê Central, do Sovnarkom ou do Soviete Supremo que não passasse por
seu crivo —, e por causa do fluxo constante de funcionários para consultá-lo
sobre qualquer questão a qualquer hora do dia ou da noite, ninguém sabia ao
certo qual era o órgão específico que estava “operacional” em determinado
momento. Podia ser o Politburo, com seus militares cooptados, ou o Comitê
de Defesa do Estado, juntamente com outros comitês, ou o Estado-maior, com
alguns membros do Politburo. Por vezes, Stalin aclarava a situação dizendo
“Registre isso como ordem do Comitê de Defesa”, ou “Isso deve ser formulado
como uma diretriz do Estado-maior”. Em algumas ocasiões, Malenkov anotava
as minutas de uma discussão como ordens do Politburo. Praticamente tudo que
Stalin pronunciava era final e decisivo, a despeito da maneira com que a ordem
fosse redigida. A impressão é que ele dava pouco valor à sua filiação formal a
este ou àquele comitê. Não obstante, isso causava dificuldades para os
funcionários que tinham que decidir, para o cumprimento das determinações,
qual agência deveria desempenhar a tarefa.
Como regra, não eram tomadas anotações ou preparadas minutas. Os
arquivos de Stalin estão repletos de documentos contendo relatórios,
inquéritos, ordens e prescrições, mas não há praticamente nada sobre debates
do Estado-maior a respeito de questões estratégicas. Depois de recuperado do
choque inicial, Stalin reunia dois ou três membros do Estado-maior e, juntos,
equacionavam e resolviam problemas operacionais. Desde o início, os oficiais
dos altos escalões do Estado-maior aprenderam que, quando convocados,
deveriam chegar com propostas e argumentos totalmente preparados. Isso
fortalecia o papel de Stalin como árbitro superior e sumo sacerdote.
Os integrantes da equipe do secretário-geral sabiam que cada membro do
Comitê de Defesa do Estado era responsável por determinado setor: munições,
aviões, transportes, relações exteriores, e assim por diante. Não havia tal divisão
de responsabilidades no QG de Stalin, o qual dirigia os fronts na base do dia a
dia com a ajuda do Estado-maior Geral, do Estado-maior da Força Aérea e de
repartições do Comissariado de Defesa. No lugar de assessores servindo na
equipe de Stalin, um instituto de representantes dele começou a funcionar “de
forma espontânea” dentro das Forças Armadas. Em geral, Stalin não retinha os
homens do Estado-maior em Moscou, parecia preferir vê-los em missão em
diferentes locais. Assim, Zhukov, Timoshenko, Vasilievsky, Voronov e, no
começo, Mekhlis, todos responsáveis por tarefas cruciais, faziam frequentes
visitas às tropas.
Stalin esperava que reportassem diariamente, fosse por escrito fosse por
telefone, e os recriminava, por vezes com veemência, quando não o faziam no
devido tempo. Nas suas memórias, Vasilievsky, com quem Stalin mantinha,
pode-se dizer, boas relações, cita parte de um dos telegramas recebidos do
chefe, datado de 17 de agosto de 1943. O texto completo merece citação:

São quase 3h30 de 17 de agosto e você ainda não se dignou em reportar para o Estado-maior sobre os
resultados da operação de 16 de agosto e em fazer sua avaliação da situação.
Faz muito tempo que o responsabilizei, como um plenipotenciário do Estado-maior, a enviar
relatórios ao fim de cada dia de operações. Quase sempre, você tem se esquecido desta
responsabilidade.
Dia 16 de agosto foi o primeiro de uma operação importante no front sudoeste, onde você é o
representante do Estado-maior. E parece que fica satisfeito por esquecer seu dever para com este
Estado-maior, e não envia relatório.
Você não pode usar a desculpa da falta de tempo, porque o marechal Zhukov faz exatamente o mesmo
no front e remete relatórios diários. A diferença entre você e Zhukov é que o marechal é disciplinado e
conhece suas obrigações. Enquanto você é indisciplinado e descura destas obrigações.
Vou alertá-lo pela última vez que, se você, uma vez mais, se permitir esquecer seu compromisso com o
Estado-maior, será afastado do cargo de chefe do Estado-maior e enviado para o front.3

Seria difícil encontrar um único marechal ou oficial de alto posto que servisse
no Estado-maior, ou inspecionasse as tropas como representante deste Estado-
maior, ou comandasse um front, que não tivesse experimentado este tipo de
tratamento da parte de Stalin, quase sempre imerecido.
Igualmente, se, depois da visita de um emissário do Estado-maior, a
situação naquele setor do front não melhorasse, Stalin tiraria as “conclusões
adequadas”. Em fevereiro de 1942, ele enviou Voroshilov ao front de Volkhov.
A reputação do marechal como líder militar inferior já estava estabelecida e, ao
não conseguir coisa alguma também naquela ocasião, Voroshilov se viu em
posição embaraçosa quando Stalin propôs através da linha direta que ele
assumisse o comando do front. O marechal começou a recusar. Isto foi demais
para o Supremo e, um mês depois, quando Voroshilov já tinha retornado de
Volkhov, Stalin ditou um memorando “sobre o trabalho do Camarada
Voroshilov” que iria acabar como uma decisão do Politburo, tomada em 1º de
abril de 1942. Vale a pena citá-la, mesmo de forma abreviada:

Primeiro. A guerra contra a Finlândia, em 1939-40, revelou grandes deficiências e atrasos na liderança
do comissariado de Defesa. Faltaram morteiros e metralhadoras ao Exército Vermelho, inexistiram
inventários precisos sobre aviões e carros de combate, os uniformes de inverno da tropa eram
inadequados, como também os produtos alimentícios concentrados. Seções importantes como
artilharia, instrução militar, administração da Força Aérea, foram negligenciadas. Tudo isso fez com
que a guerra se arrastasse, causando baixas desnecessárias. Como comissário da Defesa naquela
oportunidade, o Camarada Voroshilov foi compelido, no pleno do final de março de 1941, a admitir a
inadequação — que ficara exposta — de sua liderança do comissariado. O Comitê Central se viu
obrigado a afastá-lo da função.
Segundo. No começo da guerra contra a Alemanha, o Camarada Voroshilov foi indicado para o
comando do front noroeste, com a missão principal de defender Leningrado. Como se demonstrou
mais tarde, ele foi incapaz de cumprir a missão e não organizou a defesa da cidade. O Camarada
Voroshilov cometeu vários erros no desempenho de suas atribuições: expediu ordens para que
comandantes de batalhões da Guarda do Interior fossem eleitos, ordens revogadas pelo QG do
Estado-maior, já que poderiam levar à desorganização e ao enfraquecimento da disciplina no Exército
Vermelho; estabeleceu um soviete de defesa de Leningrado, mas não se incluiu nele: tal ordem foi
igualmente revogada pelo QG do Estado-maior por ser incorreta e prejudicial, uma vez que os
trabalhadores da cidade poderiam pensar que o Camarada Voroshilov não se juntara ao soviete de
defesa por não acreditar na possibilidade de defender Leningrado; perdeu tempo com batalhões de
trabalhadores armados com armas leves tais como espingardas, lanças, facas e coisas semelhantes, e
negligenciou as defesas de artilharia da cidade...
Terceiro. Por sua própria solicitação, o Camarada Voroshilov foi enviado, em fevereiro, como
representante do Estado-maior, ao front de Volkhov para cooperar nas ações, e ficou lá cerca de um
mês. Sua estada, no entanto, não produziu os resultados esperados. Desejando, mais uma vez, dar ao
Camarada Voroshilov a chance de empregar sua experiência no trabalho da linha de frente, o Comitê
Central sugeriu que ele próprio assumisse o comando direto do front. Mas o Camarada Voroshilov
recebeu negativamente a proposta e não quis arcar com a responsabilidade, apesar de este front ter
agora importância crucial para a defesa de Leningrado, apresentando a desculpa de que o front de
Volkhov era difícil e ele não queria fracassar na missão.
Em vista do acima citado, o Comitê Central:
Primeiro: reconhece que o Camarada Voroshilov não esteve à altura da missão que lhe foi confiada no
front.
Segundo: está transferindo o Camarada Voroshilov para trabalhos de retaguarda na guerra.4

Ao se referir constantemente ao “Camarada Voroshilov” neste zombeteiro e


sarcástico “decreto”, Stalin deixava patente que o antigo “primeiro marechal”
estava completamente acabado. A despeito do estilo tipicamente stalinista,
aquela foi, no entanto, uma decisão sensata. Mas Voroshilov teve sorte: não foi
cassado, como o marechal Kulik, e voltaria à tona depois da morte de Stalin,
tornando-se chefe de estado em 1953. Outros enfrentaram julgamento mais
rigoroso. Uma derrota no front ou um relatório de insucesso poderiam
representar demissão imediata, prisão e as piores consequências. Darei dois ou
três exemplos.
Em 22 de fevereiro de 1943, o XVI Exército do front oeste começou sua
ofensiva, atacando em Bryansk a partir do sudoeste de Sukhanichi e pelo norte.
Contudo, as defesas inimigas aguentaram firmes e o ataque perdeu força. Com
base num relatório rotineiro do Estado-maior de 27 de fevereiro, Stalin chegou
à conclusão de que o Exército deveria estar marcando passo. Sem procurar
obter esclarecimentos e sem consultar ninguém, Stalin ditou a Ordem do
Estado-maior nº 0045, demitindo o coronel-general I.S. Konev do comando
do front oeste por incompetência.5 Konev pelo menos teve a chance de provar
seu valor em combate, outros não foram tão venturosos. O comandante do
front caucasiano, Kozlov, por exemplo, recebeu ordem de prender o major
general Dashichev, comandante do XLIV Exército, por falta de capacidade
profissional, e de enviá-lo imediatamente a Moscou.6
Jamais hesitando no trato de oficiais em termos individuais, Stalin
movimentava constantemente os comandantes de um posto a outro, muitas
vezes sem justificativa plausível. Afastado de uma função e nomeado para outra
em fevereiro de 1943, Konev desapontou Stalin, em junho, por algum motivo
e foi de novo transferido.7 O secretário-geral parecia achar que essas
“movimentações laterais” melhoravam a liderança e, é claro, ninguém pensava
em contradizê-lo.
A falta de conhecimento militar de Stalin logo ficou evidente para os
integrantes do Estado-maior e eles começaram a fazer tentativas próprias para
dar uma certa ortodoxia às ordens do líder. Os chefes militares encaravam
como normal a incompetência militar de um político, mas não podiam
expressar seu pensamento quanto a Stalin a este respeito. Zhukov, depois que
passou para a reserva, disse ao historiador militar N.G. Pavlenko que Stalin
“sempre, de alguma forma, permaneceu um civil”.
O planejamento estratégico era desenvolvido por Stalin de acordo com as
ideias de Shaposhnikov, Zhukov e Vasilievsky. De início, ele apenas expressava
sua opinião sobre propostas do Estado-maior. Mais tarde, entretanto, quando
Shaposhnikov deixou o Estado-maior para ser diretor da Academia Militar
Voroshilov, Stalin o convidaria para as reuniões, a fim de ouvir as propostas das
várias seções. O método de Shaposhnikov consistia em escutar as opiniões dos
comandantes de fronts, fossem verbais ou escritas, e só então abordar o
problema da preparação de um plano final de operações. Stalin, no começo,
ficou desanimado com o enfadonho, “longo e rotineiro trabalho”, como
definiu. Mas Shaposhnikov, cujo trabalho como professor de Zhukov,
Vasilievsky, Antonov e do próprio Stalin ainda não foi reconhecido, explicou
pacientemente que aquilo era o mínimo necessário, dizendo que “algumas
operações demandavam apenas dias de concepção, enquanto outras precisavam
de meses”. Stalin sabia que Shaposhnikov estava certo, mas sentia ainda mais
sua falta de experiência naquele campo. Todavia, logo encontrou uma linha de
conduta apropriada para o planejamento operacional que, enquanto preservava
sua imagem de chefe guerreiro, permitia que minimizasse o risco para sua
reputação. Os arquivos mostram que ele trabalhava, normalmente, suas ideias
em dois níveis. Um deles era geral, como na reunião do Estado-maior de
janeiro de 1942, quando disse: “Não podemos permitir que o inimigo recupere
o fôlego, temos que persegui-lo na direção oeste.”8 Este pensamento expressava
um desejo que espelhava o estado de espírito do povo, mas carecia de qualquer
conceito estratégico preciso. Era a intenção de um estadista, não a de um líder
militar. O outro nível no qual contribuía era o do ajuste ou refinamento de um
plano concreto, de uma ideia ou de um cronograma, porém, como ali suas
observações em geral tinham aspecto conclusivo ou sumariante, tendiam a
deixar sua marca. O plano todo era trabalhado em seus detalhes pelo Estado-
maior, mas os toques cosméticos de Stalin no quadro final criavam a impressão
de que era autor da obra completa.
Completamente insensível em relação às incontáveis tragédias causadas pela
guerra, Stalin era guiado pelo desejo de infligir o maior dano possível ao
inimigo, independentemente do custo humano para o povo soviético. Os
milhares e os milhões de vidas humanas tornaram-se para ele estatísticas oficiais
e frias. Duas ordens terríveis ditadas por Stalin ilustram tal fato. A primeira, nº
0428 de 17 de novembro de 1941, determinava que:
1. Todos os locais habitados até uma distância de 40 a 60 quilômetros na retaguarda das tropas
alemãs, e de 20 a 30 quilômetros de cada lado das estradas, deverão ser destruídos e reduzidos a cinzas.
Tal objetivo deve ser alcançado pelo emprego imediato da Força Aérea, do fogo de artilharia e de
morteiros em grande escala, de equipes de reconhecimento, de tropas equipadas com esquis e de
guerrilheiros diversionistas armados com bombas a petróleo.
2. Cada regimento deve ter uma equipe de voluntários de 20 a 30 homens para destruir e incendiar
locais habitados. Os que se distinguirem na missão da destruição de assentamentos populacionais
deverão ser indicados para honrarias do governo.9

Os incendiários puseram mãos à obra. É possível que tal política de terra


arrasada tenha provocado dificuldades para o inimigo, mas as criou também
para muitos cidadãos soviéticos cujos tetos eram as únicas e frágeis esperanças
de sobreviver, de esperar que seus entes queridos e mais próximos retornassem e
de salvar seus filhos. Se a decisão foi tomada à luz da necessidade militar ou por
crueldade insana permanece em aberto, porém, em qualquer caso, foi um ato
caracteristicamente stalinista e impiedoso. O general N.G. Lyashchenko me
descreveu um episódio desta aterradora história:

No fim de 1941, eu comandava um regimento de uma posição defensiva. Havia dois vilarejos à nossa
frente, Bannovskoe e Prishib, se bem me recordo. Recebemos ordem da divisão para incendiar as
aldeias que estivessem ao nosso alcance. Estávamos no interior do abrigo e eu explicava como iríamos
cumprir a missão quando, subitamente, infringindo todos os regulamentos, o rádio-operador, um
sargento de meia-idade, intercedeu.
“Camarada Major. Aquele é meu vilarejo! Minha esposa e meus filhos, e minha irmã e seus filhos estão
todos lá. Como podemos incendiá-lo? Todos morrerão!” “Não se meta, cabe a nós resolver”, eu disse.
Mandei que o sargento se retirasse e conferi com os comandantes de batalhões. Lembro-me de chamar
a ordem de “estúpida”, o que quase me complicou, uma vez que ela partira de Stalin. Mas fui salvo da
polícia de segurança pelo general R.Ya. Malinovsky e pelo membro do soviete de guerra I.I. Larin.
Quanto aos dois vilarejos, nós os capturamos na manhã seguinte com a permissão do comandante
divisionário Zamortsev, e demos um jeito de não destruí-los.

A segunda instrução, nº 170 007, foi enviada ao comandante do front de


Kalinin, em 11 de janeiro de 1942 e determinava a captura de Rzhev, uma
cidade de 54 mil habitantes:

No curso do dia 11 e, o mais tardar, no dia 12 de janeiro, a cidade de Rzhev tem que ser capturada. O
Estado-maior recomenda para este objetivo o emprego de toda a artilharia, morteiros e Força Aérea a
fim de que a cidade inteira seja destroçada, sem que haja qualquer hesitação em destruí-la.
Confirme o recebimento desta ordem e informe quando ela foi cumprida. I. Stalin10

É
É evidente que fazia sentido destruir, durante a retirada, tudo aquilo que o
povo construíra, tais como pontes, ferrovias, fábricas e objetivos semelhantes
estrategicamente importantes. Mas de que valia para os alemães uma pobre
choupana de camponês?
[46]
Amanhecer em Stalingrado

J á se escreveu o suficiente sobre a grande campanha de Stalingrado para que


eu tenha que entrar aqui em grandes detalhes. Em vez disso, proponho-me
a focalizar o papel do Supremo Comandante em Chefe naquela batalha crucial.
No começo de junho de 1942, tendo o inimigo rompido através das defesas
soviéticas em grande profundidade, no limite entre os fronts de Bryansk e
oeste, o XXI e o XL exércitos ficaram cercados. Stalin enviou Vasilievsky às
pressas para o sul, mas os relatórios que ele mandou não foram nada
animadores. Os alemães alargaram a brecha para cerca de 300 quilômetros no
curso da semana seguinte e, em poucos dias, a força atacante penetrou de 150 a
170 quilômetros, flanqueando pelo norte os principais exércitos do front sul.
Os alemães, então, atacaram de novo, dessa vez na direção de Kantemirovka.
Analisando a ameaça em seu mapa, Stalin ficou assustado com a visão
catastrófica de o front sudoeste ser cercado, como em 1941, pela segunda vez.
No entanto, já então aprendera alguma coisa e, tendo assimilado as questões
estratégicas concretas que estavam em jogo, não foi contra a retirada dos
exércitos IX, XXVIII, XXXVII e XXXVIII. O Estado-maior expediu a ordem
urgente para que fosse preparada a defesa de Stalingrado.
Stalin teve então a oportunidade de julgar sua própria falta de visão. Em
maio, seguindo-se à débâcle de Volkhov, Vasilievky propusera o reforço das
reservas estratégicas nos setores sudoeste e sul. Stalin discordou. Ele se
preocupava com Moscou. Agora, enormes efetivos de tropas precisavam ser
deslocados urgentemente para enfrentar nova crise estratégica. A situação
piorou porque muitas unidades recuavam em completa desordem, e muitas
divisões e unidades haviam perdido as ligações com seus quartéis-generais já
por diversos dias. Mais uma vez, os Junkers e Messerschmidts alemães eram
donos do céu e podiam castigar a seu bel-prazer as tropas que se retiravam aos
milhares. Por vezes, parecia que o caos e a confusão de junho de 1941 estavam
se repetindo. Stalin passava telegramas um atrás do outro, ordenando que os
comandantes de fronts restaurassem a ordem entre as forças que se retiravam,
que lutassem até o último homem, que não recuassem sem autorização, e assim
por diante. Eis alguns exemplos:

O inimigo penetrou em sua frente com pequenos efetivos. Você tem boa chance de destruí-lo. Reúna
os aviões dos dois fronts e jogue-os contra o inimigo. Mobilize os trens blindados e os ponha na linha
circular em torno de Stalingrado. Use cortina de fumaça para desorientar o inimigo. Faça contato com
o inimigo também à noite, não só de dia. Utilize ao máximo o fogo de artilharia e de foguetes.
Mais uma vez, por incompetência e ineficiência, Lopatin deixou o front de Stalingrado em má
situação. Exerça uma supervisão efetiva sobre ele e organize uma segunda linha por trás do exército
dele.
Mais importante, não entre em pânico, não tema esse audacioso inimigo e mantenha a fé em nossa
vitória.
23 de agosto de 1942.11

Quando ia se encontrar com Stalin, naqueles dias de julho e agosto de 1942, o


chefe do Estado-maior, Vasilievsky, sentia-se um carneiro a caminho do
matadouro. Stalin não escondia a irritação, tomava decisões impulsivas, passava
sucessivos telegramas com a mesma mensagem. Começaria, de novo, a mudar
generais de um lado para o outro, exigia entrar em ligação com quartéis-
generais em sucessão, e sempre dava a mesma ordem: lutar até a morte.
Entrementes, as tropas recuavam. Em 29 de julho de 1942, depois de um
despacho rotineiro com Vasilievsky, Stalin de repente parou de caminhar pela
sala e lançou-se em outro assunto: “Esqueceram a Ordem do Estado-maior nº
270 de 16 de agosto de 1941. Eles se esqueceram! Redija outra na mesma
linha: ‘A retirada sem autorização é um crime que será punido com todo o
rigor de tempo de guerra...’”
“Quando quer que eu traga a nova ordem?” “Ainda hoje. Venha tão logo
esteja pronta.”12
Naquela noite, ele assinou a famosa Ordem nº 227 do Comissariado da
Defesa da URSS, com muitas mudanças e emendas de próprio punho. O
documento, que permaneceu cuidadosamente escondido nos arquivos militares
por muitos anos, tornou-se acessível recentemente e tem sido reproduzido em
diversas publicações. Eu gostaria de citar aqui apenas aquelas partes que
refletem a interferência direta de Stalin, seu modo de redigir as sentenças, seu
estilo pessoal:
O inimigo está lançando no combate mais e mais tropas descansadas e, independentemente das baixas
que sofre, avança lentamente pelas profundezas do território soviético, capturando novos distritos,
devastando nossas cidades e vilas, violando, saqueando e assassinando nossa população. Parte das
forças do front sul deixou-se influenciar pelos boateiros do pânico e abandonou Rostov e
Novocherkassk sem grande resistência, cobrindo seus estandartes com a desonra.
Algumas pessoas pouco inteligentes no front consolam-se dizendo que podemos recuar ainda mais
para o leste porque temos muito território, muita terra, muita gente, e que não chegaremos à escassez
de grãos; usam isto para justificar seu comportamento vergonhoso na linha de frente. Mas este tipo de
conversa é totalmente falso, mentiroso e só serve para ajudar o inimigo.
Depois da perda da Ucrânia, da Bielorrússia, do Báltico, da bacia do Donets e de outras regiões,
ficamos com território menor do que tínhamos. Segue-se daí que existe menor população, menos
cereais, menos metais, menos fábricas e moinhos. Perdemos mais de 70 milhões de habitantes, mais de
12 milhões de toneladas de grãos e 10 milhões de toneladas de metais por ano. Perdemos até nossa
superioridade em reservas humanas e de cereais sobre a Alemanha. Recuar mais significaria nossa
destruição e, conosco, a da Pátria Mãe.
Nem mais um passo para trás! Esta é a palavra de ordem daqui por diante.
Não mais toleraremos que oficiais e comissários, pessoal político, unidades e destacamentos
abandonem suas posições de combate por vontade própria. Não mais toleraremos que oficiais,
comissários e pessoal político permitam que boateiros do pânico determinem a situação no campo de
batalha e induzam outros combatentes a recuarem, deixando o front aberto ao inimigo. Tais boateiros
e os covardes deverão ser eliminados no ato.
a) a mentalidade da retirada tem que ser decisivamente banida.

b) os comandantes de exército que permitirem o abandono voluntário das posições deverão ser
afastados e enviados de imediato ao QG do Estado-maior para enfrentar de pronto o tribunal militar.
c) formem-se de um a três batalhões punitivos (com cerca de 800 homens cada) dentro dos limites do
front, para os quais devem ser enviados oficiais antigos e dos postos intermediários e oficiais políticos
de postos correspondentes.13

Stalin então voltou à ideia, formulada num telegrama de setembro de 1941


para todos os fronts, de que cada exército devia formar um grupo de tropa de
confiança, com efetivo não maior que divisão, cuja missão seria deter o fluxo de
soldados em pânico, utilizando as armas se necessário.14 A velha ideia veio de
roupa nova:

De três a cinco destacamentos bem armados (até 200 homens cada) deverão ser organizados dentro de
um exército e colocados diretamente à retaguarda das divisões inconfiáveis, e devem atirar, no ato, em
boateiros do pânico e covardes, na eventualidade de retiradas desordenadas e causadas por esse pânico.
Dependendo das circunstâncias, de cinco a dez companhias de presos (efetivo de 150 a 200 homens)
devem ser formadas dentro do exército e posicionadas em locais perigosos, a fim de que eles possam
expiar com seu sangue os crimes que cometeram contra a Pátria Mãe.
Esta ordem deve ser lida para todas as companhias, esquadrões, baterias, tripulações e quartéis-
generais.15
Pânico reinava em muitas unidades. A instrução psicológica fora negligenciada
antes da guerra e, é claro, o próprio corpo de oficiais fora dizimado pelos
expurgos. Sabe-se bem que, sob tensão e quando a confiança é perdida, uma
reação emocional negativa ao perigo pode escalar para o comportamento
descontrolado. O instinto de multidão se alastra e solapa a capacidade de
pensamento racional. Stalin tentou enfrentar este problema com o emprego de
unidades de “vigilância” e companhias de presos, mas nada fez para elevar o
perfil dos comandantes e oficiais políticos naquelas condições extremas. Nem
se policiou na expedição de regulamentos ameaçadores. Em 1942, como em
1941, grande número de soldados escapou do cerco, quer em grupos, quer
individualmente. Os oficiais eram imediatamente despachados para campos da
NKVD. E como a posição em julho-agosto ficou ainda mais delicada, Stalin foi
além. Os oficiais que permanecessem em território ocupado pelo inimigo por
qualquer período de tempo e não servissem com os guerrilheiros, e que
estivessem naquela ocasião em campos especiais da NKVD, deveriam receber a
oportunidade “de pegar em armas para provar sua lealdade à Pátria Mãe”.
Unidades especiais de infantaria de assalto deveriam ser organizadas com
exatamente 929 desses oficiais para combater nas partes mais ativas do front.16
Enquanto isso, os eventos foram se sucedendo e avolumando no período de
agosto a novembro de 1942, quando atingiram o ponto mais alto. Ainda assim,
na oportunidade em que a sorte de Leningrado estava por um fio, Vasilievsky
determinou que uma equipe do Estado-maior, constituída por A.A. Gryzlov,
S.I. Teteshkin e N. Boikov, concebesse um cenário para a captura do
agrupamento de ataque da vanguarda inimiga por meio de uma ação
combinada partindo do norte e do sul. Existe um mapa que mostra os
primeiros esquemas de Boikov para a futura e famosa operação. Stalin ainda
não sabia o que se passava. O ano que ele descrevera como o “da destruição do
ocupante alemão” parecia se transformar em outro grande desastre para a
União Soviética. Ficou no escritório por diversos dias seguidos, adormecendo
por curtos períodos, sempre advertindo Poskrebyshev para acordá-lo depois de
duas horas de descanso. De uma vez, penalizado com a carga de trabalho do
chefe, Poskrebyshev deixou-o dormir por mais meia hora.
Stalin olhou para o relógio e censurou mansamente o auxiliar: “De repente,
virou filantropo! Vá, coloque-me Vasilievsky na linha. Rápido! O filantropo
careca...”
Vasilievsky, que voara de Stalingrado dois dias antes, atendeu a chamada.
Stalin logo perguntou se a 1ª de Guardas e os exércitos XXIV e LXVI já
tinham engajado o inimigo e se a munição tão esperada havia chegado.
Vasilievsky reportou a situação existente na noite de 3 de setembro: uma das
formações alemãs de tanques havia penetrado até os subúrbios de Stalingrado.
Stalin interveio furioso: “Que é que há com eles? Será que não entendem que,
se entregarmos Stalingrado, o sul do país ficará isolado do centro e que,
provavelmente, não teremos capacidade para defendê-lo? Não entendem que
não se trata de uma catástrofe só para Stalingrado? Perderíamos nossa principal
hidrovia e, logo depois, também nosso petróleo!”
Vasilievsky replicou calmamente, mas a tensão estava clara em sua voz:
“Estamos deslocando tudo o que pode combater para os locais ameaçados.
Penso que ainda há uma chance de não perdermos a cidade.”
Stalin telefonou de novo para Vasilievsky alguns minutos mais tarde, e este
não foi encontrado. Boikov atendeu. Stalin ordenou-lhe que achasse Zhukov
em Stalingrado e lhe passasse a mensagem que começou a ditar:

A situação em Stalingrado piorou. O inimigo está a dez quilômetros da cidade. Stalingrado pode ser
capturada hoje ou amanhã se o agrupamento norte não der ajuda imediata. Diga aos comandantes das
forças ao norte e noroeste da cidade que eles têm que atacar o inimigo e prestar assistência ao povo de
Stalingrado. O atraso é indesculpável. Equivale ao crime. Empregue todos os aviões para defender a
cidade. Existe agora pequena quantidade deles dentro da cidade.
3.9.4217

Zhukov logo foi obrigado a reportar que as forças do front não tinham
conseguido abrir um corredor para realizar a junção com as forças da frente
sudeste dentro da cidade. A linha de defesa alemã foi substancialmente
reforçada com forças deslocadas das cercanias de Stalingrado. Continuar
atacando com as mesmas tropas soviéticas não fazia sentido e poderia causar
pesadas perdas. Stalin convocou Zhukov e Vasilievsky a Moscou.
Lá, debruçados sobre mapas e com assessores do Estado-maior, resolveram
adotar a tática do desgaste do inimigo pela resistência obstinada e pelo atrito,
enquanto era preparado um contra-ataque de vulto. O ataque principal foi
planejado para cair sobre os flancos das forças alemãs que estavam sendo
cobertas por soldados romenos, tropa menos ameaçadora. O plano foi
apresentado a Stalin em 13 de setembro e estava destinado a se tornar um dos
clássicos da Segunda Guerra Mundial. Foi como um despertar e não foi Stalin,
e sim seus dois chefes militares que o conceberam. A princípio, o secretário-
geral não se impressionou muito, ressaltando que o principal era manter
Stalingrado e não permitir que os alemães avançassem mais na direção de
Kamyshin. Parece que não gostou muito da audácia do plano ou o considerou
inexequível. Toda a sua atenção estava voltada para a defesa de Stalingrado.
Entrementes, em Stalingrado, os alemães investiram a cidade e, por mais de
dois meses, dia e noite, o combate prosseguiu com um nível de ferocidade sem
precedentes. Enquanto os alemães, no começo da batalha, mediam sua
progressão a partir do sudoeste em termos de dezenas de quilômetros, depois
passaram a alguns quilômetros; em setembro, tiveram que raciocinar em apenas
centenas de metros por dia e, a partir de outubro, consideraram um avanço de
40 a 50 metros como uma grande vitória. Em meados de outubro, pararam de
vez. A Ordem nº 227 de Stalin era então cumprida à risca. Apesar de os
alemães terem 22 divisões em Stalingrado, mais outras tantas formações de seus
aliados, a máquina de guerra nazista emperrara.
Em novembro, Stalin passou quase todos os dias pensando sobre a operação
futura nos três fronts – Stalingrado, sudoeste e Don. O plano recebeu a
denominação provisória de “Uranus” e Stalin insistiu em que ele permanecesse
do conhecimento apenas de um número restrito de pessoas. A responsabilidade
pela coordenação das três frentes foi entregue a Vasilievsky. Quando o contra-
ataque foi desfechado em 19 de novembro, é provável que tenha aumentado a
confiança de Stalin na vitória, não por causa da superioridade soviética em
homens e armamento, mas porque nenhuma operação anterior fora preparada
com tanto esmero e precisão. É verdade que, uma semana antes do início,
Stalin foi tomado de dúvida, particularmente porque o poder aéreo soviético
equivalia ao do inimigo, e ele sempre atribuíra enorme importância a este vetor
do combate. Ficou tão preocupado que chegou a pensar em adiar a operação,
telegrafando em 11 de setembro a Zhukov para dizer que, se Yeremenko e
Vatutin tivessem aviação inadequada, a ação fracassaria: “A experiência nesta
guerra tem mostrado que só se pode vencer os alemães com superioridade
aérea.” Se isto não pudesse ser garantido, continuou, “seria melhor adiar a
operação por algum tempo”.18 No entanto, confiando totalmente na
possibilidade de Zhukov levar o plano a bom termo, quatro dias antes do
previsto para o desencadeamento da operação passou outro telegrama dizendo
que ele, Zhukov, tinha total liberdade de ação para julgar quando a ofensiva
deveria ser lançada.19
Zhukov exercitou seu critério e, em 19 de novembro, as forças combinadas
das frentes sudoeste e do Don entraram em ação, seguidas no dia seguinte pelas
do front de Stalingrado. Por volta de 23 de novembro, o agrupamento inimigo
que se encontrava em Stalingrado foi cercado. Stalin sempre gostou de
geografia e de esquadrinhar mapas do mundo. Já então, aprendera a interpretar
uma carta militar, marcada pelo Estado-maior com símbolos azuis e vermelhos,
linhas denteadas, círculos em torno de reservas de distritos e linhas tracejadas
assinalando o deslocamento de carros de combate. Quando, em 23 de
novembro, ele viu um enorme anel vermelho mostrando as forças soviéticas
formando uma linha fechada, ficou excitado e nervoso; excitado porque,
finalmente, as forças soviéticas o haviam conseguido, e logo na simbólica
cidade chamada Stalingrado. Ainda não sabia a quantidade de tropa alemã que
estava dentro do laço – 330 mil, como se viu depois – mas sabia que, se a
operação chegasse a uma conclusão vitoriosa, seria um ponto de inflexão na
guerra. Ficou nervoso porque esperava que o comando alemão fizesse tudo ao
seu alcance para tirar as 22 divisões da Wehrmacht da armadilha. As forças
soviéticas tinham certa vez fechado um cerco, em Demyansk, mas não
conseguiram destruir o inimigo sitiado. Agora, a iniciativa estratégica estava
com o Exército Vermelho, embora algum tempo ainda iria se passar até que o
general Paulus fosse dobrado. Em 24 de dezembro, Paulus expediu uma ordem
para suas forças cercadas, da qual foi encaminhada uma transcrição para Stalin.
Dizia:

Ultimamente, os russos vêm fazendo incessantes tentativas para entrar em negociações com o exército
ou suas unidades. Seu objetivo é muito claro: querem quebrar nossa determinação em resistir por
meio de promessas nessas conversas de rendição. Todos sabemos o que nos espera se o exército parar
de resistir: a morte certa nos aguarda, seja por uma bala inimiga, seja de fome e sofrimento em
vergonhoso cativeiro siberiano. Uma coisa é certa: quem se render jamais verá de novo seus entes mais
próximos e queridos. Só temos uma saída: lutar até o último cartucho, a despeito do frio e da fome
crescentes. Portanto, qualquer tentativa de negociação deverá ser repelida, deixada sem resposta, e os
emissários com bandeiras de paz, rechaçados à bala. Enquanto isto, continuemos no aguardo da
libertação, que já está a caminho.20
[47]
O comandantes e seus generais

D urante a guerra, Stalin pouco tempo teve para ler outra coisa que
não despachos, telegramas codificados, planos operacionais e
correspondência diplomática, mesmo assim os arquivos contêm um
memorando de Poskrebyshev para ele com uma lista de 15 livros sobre a arte
da liderança militar. Os que Stalin marcou com uma estrela incluem Kutuzov,
de S. Borislov, o primeiro volume das obras de Napoleão, e Science of
Winning, de Suvorov, e e Brains of the Army, de Shaposhnikov. Nem foi por
acaso que, no começo das hostilidades, ele mandou pendurar em sua sala
retratos de Suvorov, o maior soldado da Rússia no século XVIII, e de Kutuzov,*
o herói da derrota de Napoleão na Rússia. Da mesma forma, quando discursou
brevemente para as tropas na Praça Vermelha, em 7 de novembro de 1941,
disse: “Sejamos inspirados nesta guerra pela imagem corajosa de nossos grandes
antepassados – Alexander Nevsky, Dimitry Donskoy, Kuzma Minin, Dimitry
Pozharsky, Alexander Suvorov, Mikhail Kutuzov! Que o estandarte vitorioso do
grande Lenin vos proteja!”21
Stalin frequentemente recorria aos grandes líderes guerreiros do passado
russo, evocando neles a fé na vitória, e criou as Ordens de Suvorov, Kutuzov,
Bogdan Khmelnitsky, Alexander Nevsky, Nahkimov e Ushakov – todos heróis
de guerra da velha Rússia – para condecorar seus generais. Entendendo por
instinto o valor da tradição militar para estimular o orgulho e a honra
nacionais, determinou que fossem escritos panfletos sobre estes antigos líderes
guerreiros para distribuição no front.
Como já vimos, a maior influência sobre Stalin como líder militar foi
exercida por Shaposhnikov, Zhukov, Vasilievsky e Antonov, e foi por
intermédio deles que Stalin aprendeu as exigências fundamentais da tática, a
respeito da qual permaneceu no nível da mediocridade, e as da estratégia, onde
se saiu bem melhor. Dos quatro, que foram, todos, em algum momento, chefes
do Estado-maior ou vices-Supremo Comandante em Chefe, pode-se dizer que,
provavelmente, a contribuição de Shaposhnikov foi a maior. Ele não teve a
ventura de ver a culminância das grandes vitórias soviéticas porque faleceu em
março de 1945, mas sua influência intelectual sobre a chefia militar está fora de
dúvida.
Como marechal e professor, Shaposhnikov, que fora coronel do exército
czarista, combinava elevada cultura militar com excelente educação, muita
experiência como comandante, profundidade teórica e imenso charme pessoal.
Não acostumado a se curvar à vontade dos outros, quando Stalin conheceu
melhor Shaposhnikov, percebeu com mais acuidade sua própria falta de
conhecimento e de lógica. Shaposhnikov não tinha personalidade dominadora,
expressando-se por meio de sua mente sutil, flexível e de amplo discernimento,
e Stalin, evidentemente, achou Shaposhnikov irresistível. Todos notaram isto, e
Zhukov escreveu sobre o grande respeito de Stalin pelo marechal: “Ele sempre
se dirigiu a Shaposhnikov como Boris Mikhailovich, seu nome e patronímico,
e jamais levantou a voz enquanto conversavam, mesmo que discordasse.
Shaposhnikov foi a única pessoa autorizada a fumar em seu escritório.”22
Foi um raro exemplo de confiança de Stalin em especialistas militares do
antigo regime, o restante dos quais ele liquidara antes da guerra. Shaposhnikov
foi um dos poucos aos quais Stalin recorreu sem ficar envergonhado em busca
de uma explicação, um conselho, uma ajuda. Era típico de Stalin dar atenção
àqueles em quem reconhecesse a presença de grande inteligência. O
comandante da artilharia, marechal N.N. Voronov, recordou-se de certa vez em
que presenciou Shaposhnikov reportando para Stalin. O chefe do Estado-maior
mencionou que, a despeito das providências tomadas, nenhuma informação
chegara de dois fronts. Stalin perguntou-lhe: “Você já puniu essas pessoas que
não querem nos contar o que acontece em seus fronts?” Shaposhnikov replicou
que já tinha dado uma repreensão aos dois comandantes, mas, a julgar por seu
tom de voz, assemelhava uma repreensão à forma mais extrema de punição.
Stalin deu um sorriso triste e lhe disse: “Qualquer célula do partido distribui
reprimendas. Isto nem constitui punição para um militar.” Shaposhnikov então
lembrou-lhe de uma antiga tradição militar, a saber, quando o chefe do Estado-
maior censura um general comandante, este último tem que pedir na hora
demissão do comando. Stalin olhou para Shaposhnikov como se estivesse
diante de um idealista incorrigível, mas não disse coisa alguma. A inteligência
do ex-coronel czarista desarmava Stalin e foi essa qualidade que o ajudou, com
tato, a ensinar ao líder o pensamento estratégico, a habilitação militar e até a
tática.
Se Shaposhnikov repassou a Stalin a dura lógica do conflito armado, a
importância das linhas de defesa e de ataque, o papel das reservas estratégicas
durante as operações, foi Zhukov quem inspirou Stalin como homem de
determinação inquebrantável e cuja liderança militar não admitia meios-
termos. O general A.A. Yepishev, oficial político de elevada posição durante a
guerra e, mais tarde, chefe da administração política do exército, disse-me que
Stalin alimentara a ideia de pôr funcionários da alta administração no front já
durante a guerra civil, e daí a razão de mandar constantemente tais pessoas para
a frente de combate durante a Segunda Guerra Mundial. Stalin considerava
Zhukov seu representante principal porque confiava em que o militar
cumpriria suas ordens, por mais duras que fossem e dessem no que dessem. A
formidável contribuição de Zhukov para a derrota dos alemães em Moscou,
para a salvação de Leningrado, também em Stalingrado e numa série de outras
operações é amplamente reconhecida. Foi natural, portanto, que, com a
continuação da guerra, a popularidade de Zhukov crescesse e aí, então, a
atitude de Stalin para com ele tornou-se mais reservada; na arrancada final para
Berlim, Stalin não o encarregou da coordenação da campanha nas três frentes,
reservando-a formalmente para si mesmo, e enviando Zhukov para comandar o
front bielorrusso. O secretário-geral não pretendia partilhar a glória da vitória
com ninguém, ainda mais com um líder guerreiro tão popular como Zhukov.
Stalin sabia que o marechal Zhukov não lhe deixava nada a dever em dureza
de caráter. Notou isto em particular no início da guerra. Por exemplo, nos
primeiros dias de setembro de 1941, o comandante do front de Leningrado,
Voroshilov, e o membro do soviete de guerra do front, Zhdanov, pediram
permissão a Stalin para preparar os navios de guerra da Esquadra do Báltico da
Bandeira Vermelha para serem afundados, caso a rendição de Leningrado se
tornasse uma possibilidade. Stalin consentiu e, por volta de 8 de setembro,
Voroshilov e Zhdanov assinaram a instrução devida. Foi então que, na ocasião
em que o soviete de guerra dava os últimos retoques na ordem, Zhukov chegou
num voo de Moscou com plenos poderes delegados por Stalin. “Eis meu
mandato”, disse, mostrando a Voroshilov que era o novo comandante em chefe
do front. “Proíbo a destruição dos navios. Existem neles quarenta tripulações
completamente prontas para a batalha.”
Recordando o episódio em 1950, Zhukov escreveu: “Por que explodir as
belonaves? Sua destruição era provável, mas se assim fosse, que afundassem em
combate, disparando seus canhões. Quando os alemães progrediam ao longo
da costa, os marinheiros atiraram, e eles simplesmente correram. E também
correriam dos canhões de 16 polegadas. Imaginem o poder!”23 Ao saber por
intermédio de Zhdanov que Zhukov tinha, de fato, revogado uma das ordens
expedidas por ele, o Supremo, Stalin não fez qualquer comentário: não pôde
deixar de admirar a audácia e a visão do comandado, e deixou claro que
delegava a Zhukov a autoridade para decidir o que deveria ser feito. Stalin sabia
que, numa crise, Zhukov seria impiedoso e não tergiversaria. Tal característica
o impressionava e estava em harmonia com seu próprio modo de ser. Zhukov
era implacável com os alarmistas do pânico e com os covardes, e era capaz de
tomar as providências mais duras contra eles, se as circunstâncias assim o
ditassem. Num momento crítico de setembro de 1941, durante a defesa de
Leningrado, ditou a Ordem nº 0064, divulgando para todos os oficiais
políticos e do exército, bem como para as praças, que quem abandonasse seu
posto sem permissão por escrito seria fuzilado sem tergiversação.24
Stalin muitas vezes explodiu com Zhukov, em especial no começo da
guerra. Em julho de 1941, quando a situação no distrito de Vyazma era crítica,
Zhukov propôs a montagem de um contra-ataque no distrito de Yelnya para
evitar que os alemães alcançassem a retaguarda do front oeste. Sem esperar que
ele completasse a ideia, Stalin esbravejou: “Que contra-ataques? Para que falar
bobagens? Nossas tropas não são capazes nem de organizar uma defesa
adequada e vem você falar em contra-ataques!”
Zhukov replicou: “Se você acha que eu, o chefe do Estado-maior, falo
bobagens, solicito que me dispense e mande para o front, onde posso ser mais
útil do que sou aqui.”
Mekhlis, que estava presente, protestou: “Quem lhe deu o direito de falar
com o Camarada Stalin desta forma?”
Em consequência daquela dura troca de palavras, Zhukov foi nomeado
comandante das reservas, porém, malgrado os esforços de Beria e Mekhlis para
indispor o marechal com ele, Stalin não pôde prescindir da ajuda do destacado
militar como seu principal solucionador de problemas. Nos primeiros dias de
outubro de 1941, quando uma série de atabalhoadas iniciativas do
agrupamento central do exército soviético levou ao cerco de significativa parte
do front oeste e das reservas, Stalin enviou Zhukov para lidar com a desastrosa
situação. O marechal lembrava-se de que Stalin lhe dissera: “Veja a confusão
em que Konev nos meteu. Em três ou quatro dias os alemães podem chegar a
Moscou. O pior é que nem Konev nem Budenny sabem onde estão as tropas
deles nem o que o inimigo pode fazer. Konev tem que ser punido. Vou enviar
amanhã uma comissão especial chefiada por Molotov.”
Com poderes extraordinários, Zhukov conseguiu estabilizar a posição e,
graças a ele, Konev escapou do tribunal militar, pois o interventor o resgatou
ao nomeá-lo seu vice para o front oeste. Stalin logo viu que não eram apenas a
autoconfiança, a decisão e o pulso firme que permitiam a Zhukov conseguir de
imediato mudanças na organização das operações militares; sua mera presença
no front sempre empolgava a tropa e aumentava o espírito combatente. O
general I.F. Minyuk disse-me que, quando Golikov e Khruschev perderam o
controle de seus homens em Belgorod, no front de Voronezh, “Zhukov,
praticamente, assumiu o comando e, de forma surpreendente, a tropa percebeu
que na mente do marechal não havia lugar para dúvidas. Quando tudo parecia
perdido, e a situação se tornava desesperançada, ele permanecia calmo,
composto, decisivo e determinado. O perigo não o amedrontava; pelo
contrário, ficava mais resoluto, transformava-se numa mola fortemente
comprimida.”
Stalin não tinha favoritos. Simplesmente confiava mais em algumas pessoas
que em outras. Afora ao que vinha, em certo grau, de Beria, ele dava pouca
atenção ao que seu entourage lhe contava sobre indivíduos. É bem conhecido o
fato de que, depois da guerra, Beria e Abakumov engendraram um caso contra
Zhukov. Usaram até álbuns de fotografias onde o marechal aparecia ao lado de
militares e políticos americanos, ingleses e franceses. Grampearam seus
telefones, vasculharam seus arquivos pessoais e interceptaram sua
correspondência. Numa ordem assinada por Stalin em 9 de junho de 1946, há
uma referência ao que um alto chefe da guerra escrevera à liderança sobre “fatos
concernentes ao desonroso e pernicioso comportamento do marechal Zhukov
para com o governo e o Supremo Comandante em Chefe”. Fora dito que
Zhukov perdera a modéstia, “creditando a si mesmo o mérito de ter
conquistado as maiores das grandes vitórias” e tornando-se o centro de um
grupo de descontentes.25 Mas Stalin não era desprovido de bom senso e
interrompeu o processo em vez de afastar o líder guerreiro que tinha se coberto
de tanta glória. Não há dúvida de que a prisão de Zhukov foi planejada. Stalin
convocou uma sessão especial, à qual compareceram Beria, Kaganovich e
outros membros de proa do partido, bem como militares dos altos escalões, e,
com base em testemunhos de alguns generais presos, Zhukov foi acusado de
“ter concedido a si mesmo o laurel de grande vitorioso”. Alguns generais,
como, por exemplo, P.S. Rybalko, falaram em defesa de Zhukov. Stalin hesitou
e decidiu que, em vez de prendê-lo, mandaria Zhukov para algum posto
remoto, primeiro Odessa e depois os Urais. A decisão final foi de Stalin e de
mais ninguém.
Por vezes, diz-se que Stalin era duro, mas justo. Cita-se o caso do
tratamento que dispensou ao filho mais novo, Vasili, removido sem meias
medidas do posto por Stalin por não cumprir sua missão, mas, na verdade, por
Vasili ter desmerecido o pai. Stalin demitiu seu filho duas vezes, antes e durante
a guerra. Em 26 de maio de 1943, Beria relatou a Stalin que o alcoolismo de
Vasili, então comandante de um regimento da força aérea, estava de novo
causando problemas. Furioso, Stalin ditou imediatamente a seguinte ordem ao
marechal do ar Novikov:

1. V.I. Stalin deve ser imediatamente afastado do cargo de comandante de regimento da força aérea e
não deve ser comissionado para outro comando sem minha ordem.
2. Tanto ao regimento quanto ao seu ex-comandante, coronel Stalin, deve ser dito que o coronel Stalin
está sendo afastado por alcoolismo e libertinagem e porque está levando o regimento à ruína e à
perversão.
3. Você deve me informar que estas ordens foram cumpridas.26

Depois de uma demissão simbólica, no entanto, contemporizadores reportaram


que o coronel Stalin “recobrara o bom senso” e estava novamente pronto para
desempenhar suas atribuições de comandante. Pelo final de 1943, ele foi
promovido para o comando de uma divisão aérea.
Stalin, invariavelmente, era desapiedado e inexorável em suas decisões sobre
questões de pessoal. Por certo, era capaz de mudar de opinião, quase sempre
depois do fato e sem influência externa. De hábito, não explicava suas
deliberações. Podia criar, desta forma, a impressão de que sua opinião sobre
candidatos era determinada pelas necessidades da função e pelas qualidades
individuais. Substituiu todos os seus chefes militares em uma ocasião ou outra,
normalmente por boas razões, mas também lhes deu a oportunidade de
demonstrar que o erro anterior fora acidental. Dar-lhes a chance, contudo, não
significava que esquecera o deslize passado. Exemplificando, quando surgiu a
questão de quem deveria executar a aniquilação final do inimigo em
Stalingrado, as opiniões ficaram divididas. Beria propôs Yeremenko, enquanto
Zhukov preferiu Rokossovsky. Como lembrou Zhukov, Stalin ouviu os dois
lados e depois decidiu:
“Na minha avaliação, Yeremenko está abaixo de Rokossovsky. A tropa não gosta de Yeremenko.
Rokossovsky tem maior autoridade. Yeremenko foi muito mal como comandante do front de
Bryansk. É pretensioso e fanfarrão.”
“Yeremenko ficará terrivelmente sentido”, comentou Zhukov.
“Não somos meninas de ginásio. Somos bolcheviques e devemos colocar chefes valorosos no
comando.”27

Stalin sabia que Zhukov era muito rígido como chefe. Quando comandava as
operações ofensivas no front oeste, no verão de 1942, ele deu uma ordem da
qual não podia se orgulhar e à qual jamais se referiu mais tarde. Seu relatório
para Stalin sobre os resultados da operação deixa claro que espécie de ordem
exarou:

De modo a alertar os destacamentos quanto à retirada, à covardia no combate e aos alarmistas do


pânico, a primeira linha de cada batalhão de assalto era seguida por um carro de combate
transportando oficiais especialmente selecionados pelos sovietes de guerra do exército. Em
consequência dessas medidas, o XXXI e o XX exércitos romperam com sucesso as defesas inimigas.
7 de agosto de 1942.28

Zukhov foi nomeado comandante do primeiro front bielorrusso quando se


preparava o ataque a Berlim, em abril de 1945, uma operação que Stalin
estudou com intenso interesse e preocupação. O Supremo quase não interferiu
na conduta da operação de Zhukov e Antonov, mas seus dias começavam e
terminavam com relatórios tanto dos preparativos como da ofensiva em si.
Zhukov informou que os alemães tinham praticamente cessado de combater
no Ocidente, mas lutavam desesperadamente de casa em casa no leste. A
resposta de Stalin, datada de 17 de abril de 1945, foi característica:

Recebi seu despacho com a informação dos prisioneiros alemães de que [lhes estava sendo dito] para
não cederem aos russos e lutar até o último homem, mesmo que os americanos estivessem
imediatamente à retaguarda deles. Não dê atenção ao que os prisioneiros alemães dizem. Hitler está
tecendo uma trama no distrito de Berlim para criar a discórdia entre as tropas soviéticas e os Aliados.
Temos que desmanchar esta trama capturando Berlim com as tropas soviéticas. Arrase os alemães sem
piedade e você em breve estará dentro de Berlim.29

Enquanto acompanhava os eventos que se desenrolavam na capital alemã,


Stalin mostrava interesse especial pela questão da captura de Hitler. Seu triunfo
seria completo se pudesse pegar o líder nazista vivo e levá-lo ao julgamento de
uma corte internacional. Porém, embora Zhukov relatasse combates no
Reichstag e nos acessos à Chancelaria, a notícia esperada não chegava.
Finalmente, em 2 de maio de 1945, Zhukov enviou a cópia de uma ordem
expedida pelo general Weidling, comandante das forças de defesa de Berlim,
afirmando que Hitler cometera o suicídio e solicitando um armistício
imediato.30
À proporção que o conflito prosseguia, a vitória parecia certa e as questões
do pós-guerra começavam a causar preocupação, Stalin delegou a outros,
sobretudo a Antonov, a autoridade para assinar instrumentos operacionais.
Quando chegou a ocasião do ato mais simbólico da guerra – a ratificação da
rendição germânica –, ele, evidentemente, não titubeou em conferir o
privilégio a Zhukov.31 O general Antonov foi encarregado de mandar a
mensagem, e Stalin, depois de ditá-la, levantou-se e deu-lhe um rijo aperto de
mão.
Ainda assim ele teve motivo para considerar Zhukov ingrato quando, com a
aprovação de Moscou, o marechal deu uma entrevista coletiva aos jornalistas
ocidentais. Descreveu com detalhes a preparação para a campanha de Berlim e
falou sobre a cooperação aliada, a desmobilização do Exército Vermelho, o
tratamento soviético para os criminosos de guerra, a superioridade do soldado
alemão em comparação com o japonês, mas não proferiu uma só palavra sobre
Stalin. Coube a Ralph Parker,** correspondente do e Times, “resgatar”
Zhukov ao lhe perguntar se Stalin tinha tomado parte no dia a dia das
operações. Zhukov replicou concisamente: “O marechal Stalin liderou todos os
setores do front germano-soviético de forma ativa e diária, inclusive o front
onde eu me encontrava.” Para Stalin, pareceu que Zhukov estava começando a
exibir tendências napoleônicas, e ele tomou providências para que o marechal
assumisse cargos distantes e sem importância, quando a guerra acabou.
Um dos vínculos principais entre o front e Stalin foi Alexander
Mikhailovich Vasilievsky, que era vice-chefe da administração operacional do
Estado-maior Geral quando a guerra começou, tornando-se chefe daquela
administração e vice-chefe do Estado-maior em 1º de agosto de 1941 e, depois,
de junho de 1941 a fevereiro de 1945, chefe do Estado-maior e vice-comissário
da Defesa. Vasilievsky comandou o terceiro front bielorrusso e, mais tarde,
serviu como comandante em chefe das forças soviéticas no Extremo Oriente.
Seu papel no Estado-maior refletiu o estilo de trabalho original de Stalin no
órgão militar mais elevado, o QG do Estado-maior. Grande parte da missão de
Vasilievsky foi executada como representante do Estado-maior no front, onde
dava cumprimento às ordens de Stalin, mais do que em Moscou, lidando com
questões do Estado-maior. Quando uma operação importante era preparada ou
uma crise ocorria, Stalin sempre enviava Zhukov ou Vasilievsky para lidar com
elas ou, como em Stalingrado, mandava os dois. Em outras palavras,
Vasilievsky era o líder militar e comandante versátil que se destacava tanto nas
operações como nas funções de Estado-maior. Stalin percebeu também que
Vasilievsky se mantinha calmo nas situações críticas, quer nas campanhas
ofensivas e defensivas, quer em Moscou, no planejamento estratégico como
representante do Estado-maior, quer como comandante de front.
“A educação religiosa o ajudou em alguma coisa?”, perguntou ele, certa vez,
a Vasilievsky. “Você já pensou sobre isto?”
Vasilievsky não esperava aquela pergunta, mas rapidamente saiu-se com
uma resposta inteligente: “Nenhum conhecimento é totalmente perdido. Algo
dele acabou sendo útil para a vida militar.”
Stalin olhou para o marechal com interesse – Minsk acabara de ser
recuperada e o Supremo demonstrava bom estado de espírito – acrescentando:
“O que os padres ensinam melhor é como entender as pessoas.” E mudou
abruptamente de assunto.
Stalin podia sempre contar que Vasilievsky materializaria no front os desejos
dele sem recorrer a medidas extremas. O marechal raramente fazia objeções e
não era temperamental como Zhukov; ainda assim, mostrava-se perfeitamente
capaz de perseguir calmamente uma linha de raciocínio na argumentação com
Stalin. Com raras exceções, em todos os dias da guerra, fosse frente a frente, se
estivesse em Moscou, fosse pelo telefone, durante suas incontáveis viagens,
Vasilievsky concedeu a Stalin o benefício de seu aconselhamento, sempre
paciente e econômico nas palavras, como se estivesse pensando em voz alta.32
As atividades do Estado-maior durante a segunda metade da guerra estão
mais associadas ao nome de Alexei Innokentievich Antonov. A maioria dos
documentos operacionais, a partir do final de 1943, foi assinada ou por
Antonov e Stalin juntos, ou por Antonov em nome de Stalin. Pouco depois de
ser levado à presença do Supremo como chefe do Estado-maior, o observador
Antonov notou que Stalin tinha alguns hábitos ritualísticos. Por exemplo,
durante o relato de Antonov, normalmente na presença de Molotov, Malenkov
e Beria, Stalin interrompia o despacho e acionava a campainha para chamar
Poskrebyshev, o qual surgia trazendo um copo de chá. Todos observavam em
silêncio enquanto Stalin cumpria um cerimonial: espremia lentamente o limão
no chá, ia até o banheiro, que ficava por trás de sua escrivaninha, abria um
armário embutido na parede e tirava uma garrafa de conhaque armênio.
Misturava uma ou duas pequenas colheres de conhaque no chá e guardava a
garrafa no armário, então voltava à sala, sentava-se à mesa e, mexendo o chá,
murmurava: “Continue.”
Tendo servido como vice de Vasilievsky por muitos meses, Antonov estava
perfeitamente consciente, quando se tornou chefe do Estado-maior, de que
tinha mais sorte que seu antecessor na função. As cenas piores da guerra já
tinham sido representadas no primeiro ato. Quando ele entrou para o QG do
Estado-maior, este já tinha adquirido uma certa ordem na sua atividade do dia
a dia e algum grau de experiência. Porém, sendo um pouco pedante, no bom
sentido da palavra, Antonov, como ninguém antes, trouxe algo de novo para as
práticas de trabalho do Estado-maior Geral. Estabeleceu prazos exatos para a
submissão de relatórios pelo serviço de informações e pelos representantes da
retaguarda, do front e das reservas. Fixou limites precisos para as
responsabilidades de seus subchefes, A.A. Gryzlov, N.A. Lomov e S.M.
Shtemenko. Para garantir que os procedimentos fossem irreversíveis, colocou-
os em três folhas de papel e levou-as a Stalin. Tais procedimentos incluíam:
uma norma para despacho com o Comandante Supremo três vezes a cada 24
horas e, com mais frequência, pelo telefone; sumários para Stalin; um
regulamento para preparação e ratificação de documentos contendo ordens; e a
criação de um sistema de contatos entre os vários órgãos da administração.
Depois de expor um de seus sumários diários, indicou que Stalin talvez
quisesse olhar os procedimentos que prescrevera para o Estado-maior e para o
QG do Estado-maior, e dar sua aprovação. Stalin olhou-o surpreso, mas
estudou cuidadosamente o documento e, sem uma palavra, nele escreveu: “De
Acordo. I. Stalin.” O Supremo deve ter pensado que Antonov não era nenhum
tolo: não apenas conseguira que Stalin regulasse o trabalho dos outros, como o
dele próprio. Se, até então, Stalin era capaz de convocar qualquer pessoa para
fazer relato, e a qualquer hora, agora tinha que aderir às normas que ele mesmo
acabara de aprovar. Antonov conseguiu definir as principais missões do Estado-
maior Geral como, primeiro, seu trabalho para o Supremo, proporcionando-
lhe informações essenciais para a tomada de decisões e, segundo, a preparação
de ordens e a supervisão da condução operacional dos fronts em estreita
colaboração com o Comissariado da Defesa.33 Ele deve ter impressionado
Stalin tanto quanto Shaposhnikov, Zhukov e Vasilievsky, porque o líder
adorava a ordem, a catalogação e a classificação dos assuntos, e ali estava um
homem cujo principal talento residia exatamente nisto. Antonov progrediu de
maneira bastante rápida até os altos postos. Chegou ao Estado-maior em 1942
como tenente-general, em abril de 1943 já era coronel-general e ascendeu ao
generalato pleno naquele mesmo ano. Mas não foi promovido a marechal, a
despeito da inclinação favorável de Stalin por sua pessoa. Beria se colocou no
caminho. A posição de Beria entre os altos escalões da hierarquia militar não
era muito forte e ele desejou colocar pessoas suas no topo daquela hierarquia.
Agora sabemos que os oficiais mais antigos sempre guardaram de Beria uma
certa distância e não confiavam nele. De sua parte, Beria procurou recrutar
apoio no meio destes militares, e deve ser dito a seu crédito que nenhum
sucumbiu. O fato de que a prisão de Beria, seu julgamento e sua execução
foram obras de militares é, em si, prova eloquente desta atitude.
Beria era uma criatura odiosa. As pessoas o temiam e ninguém tinha
simpatia por ele. Mas ele precisava de apoio no exército. Podia observar Stalin
envelhecendo a olhos vistos e, já pelo fim da guerra, alimentava planos de
grandeza para si mesmo, os quais, num sistema em que a democracia era ficção,
seriam de impossível concretização sem o suporte do exército. Os esforços de
Beria para estabelecer uma relação especial com Antonov não deram em nada.
O general portou-se com fria correção. Beria, fiel a seus hábitos, dispôs-se a
enredar o militar. Se bem que Stalin não acreditasse naquilo que Beria
sussurrava ao seu ouvido a respeito de Antonov, não concedeu ao general o
posto de marechal, o que planejava fazer quando a vitória fosse proclamada. E
mais, em 1946, rebaixou Antonov para o cargo de vice-chefe do Estado-maior
e, em 1948, nomeou-o para a função menos importante ainda de primeiro
vice-comandante do distrito militar transcaucasiano.
A guerra terminara e Stalin ascendera à glória, como César, na carruagem
triunfal. Contudo, enquanto César quebrou a cabeça para encontrar maneiras
de recompensar seus leais legionários, Stalin, gradualmente, distanciou-se
daqueles cuja presença pudessem lembrá-lo da contribuição que haviam dado à
vitória. Antonov, cuja assinatura aparece mais que a de qualquer outro ao lado
da assinatura do Supremo Comandante em Chefe nos dois últimos anos de
guerra, e o único general a ganhar a mais elevada Ordem da Vitória, não foi,
em última análise, totalmente apreciado por Stalin. A guerra acabara e, para
Stalin, o que valia era o resultado. Quanto ao custo da vitória, ele preferiu falar
apenas nas atrocidades nazistas. Seus próprios erros jamais foram mencionados.
À longa lista de louvores – grande líder, professor sábio, guia inigualável,
estrategista genial – outro foi acrescentado, “o maior líder guerreiro”. Por esta
razão, devemos abordar seu pensamento estratégico.
Notas

* O Generalíssimo Conde Alexander Suvorov foi o grande soldado russo do século XVIII; o Marechal
Mikhail Kutuzov foi o responsável pela derrota de Napoleão na Rússia.

** Ralph Parker foi o correspondente do Times em Moscou durante a guerra, encarregado de promover a
compreensão anglo-soviética. No fim da guerra, fixou residência em Moscou, onde mais tarde morreu.
Seu caso é contado em History of the Times, de Iverich McDonald, vol. 5.
[48]
Ideias de um estrategista

Q uando famosos líderes guerreiros soviéticos escreveram suas memórias,


só mencionaram o que era permitido, e qualquer comentário negativo
sobre Stalin era encarado como difamação. Por cerca de vinte anos, trabalhei na
administração política principal do Exército e Marinha soviéticos. Foi durante
o período em que o departamento de publicações da administração tinha que
examinar todas as memórias, de acordo com as instruções de Suslov. Conversei
com pessoas que analisaram as memórias militares nos anos 1950, 1960 e mais
tarde. Os manuscritos daquela época circulavam entre as altas autoridades, e os
autores logo aprendiam o que era permitido dizer. Em consequência, a história
soviética reteve sua imagem totalmente vitoriosa, porque nem a Glavlit* nem
os numerosos leitores de manuscritos podiam ignorar as prescrições de um
sistema ideológico aferrado a uma única visão do passado.
Também sei que nem tudo o que os generais escreveram entrou nas obras
impressas. Similarmente, e também sob pressão externa, alguns deles tentaram
encontrar espaço e razão para mencionar em seus trabalhos pessoas influentes
cujo lugar no esforço de guerra necessitariam mais que uma lupa poderosa para
ser reconhecido. Por exemplo, foi necessário ter paciência e zelo para localizar a
posição no front que K.U. Chernenko iluminou com seus talentos, bem como
a unidade em que L.I. Brejnev serviu. Muitos livros que, afora isso seriam
respeitáveis, foram manchados pela referência compulsória aos serviços de
Brejnev. Jamais seria mencionado, por exemplo, um relatório de agosto de
1942 do comissário político Sinyansky especificando que Brejnev, entre outros
oficiais políticos do XVIII Exército, foi “incapaz de conseguir a melhora
desejada no estado de espírito e no comportamento dos trabalhadores políticos
no front”. Brejnev e os outros foram considerados “um bando de negligentes,
complacentes e beberrões que viviam se protegendo mutuamente”.34
É
Éramos prisioneiros de conscienciosidades falsas. Tinha-se, quase sempre,
de optar entre incluir num livro o que era “requerido”, ou não vê-lo publicado.
E não foi tudo. A verdade é que a maioria das memórias dos líderes guerreiros
foi obra de outros redatores, ghost writers com muito pouco conhecimento, se é
que tinham algum, dos eventos que descreveram. Para falar a verdade,
incorporaram ao trabalho entrevistas e material suprido pelos memorialistas,
porém, no final das contas, foram esses redatores, e não os autores, que
escreveram as obras. A percepção pessoal do autor foi, portanto,
frequentemente perdida, mesmo que sem intenção. Como I.Kh. Bagramyan
colocou: “Dependia em boa parte de com quem terminava o coronel.”
Ao examinar o pensamento estratégico de Stalin, tenho a dizer, de pronto,
que ele era superior a muitos de seus auxiliares em diversos campos, enquanto
em outros jamais passou do amadorismo, da unilateralidade, da incompetência
e dos clichês, do lugar-comum.
Se, por “líder militar” queremos dizer aquele cujos talentos incluem o
pensamento criativo, a visão estratégica profunda, a experiência de guerra, a
intuição e a determinação, então Stalin não se encaixa no conceito. Todavia, ele
foi um chefe político duro, enérgico, obstinado e ávido pelo poder que, por
circunstâncias históricas, se viu compelido a lidar com questões militares.
Como Supremo Comandante em Chefe, sua força derivou do poder absoluto.
Mas não foi só isto que o elevou acima dos outros líderes militares.
Diferentemente deles, Stalin podia ver a extrema dependência que a luta
armada tinha de um espectro completo de outros fatores não militares:
econômico, social, técnico, político, diplomático, ideológico e nacional.
Melhor que os outros do QG do Estado-maior, ele conhecia as possibilidades
reais do país em termos de agricultura e indústria. Seu pensamento era mais
global, e foi isto que o destacou entre os líderes castrenses. A faceta militar era
apenas uma de muitas.
No curso de 1943-45, e com a ajuda de assessores militares, Stalin, o
estrategista, aprendeu diversas verdades sobre a arte operacional. Aprendeu, por
exemplo, que se pode e se deve passar à defensiva não apenas quando o inimigo
assim o determina, mas também, como em muitas operações de 1942, por
iniciativa própria e, subsequentemente e com premeditação, com o objetivo de
preparar operações ofensivas. Como vimos, Stalin não gostava em absoluto de
operações defensivas. Suas piores recordações vieram de tais momentos.
Lembrou-se de 16 de setembro de 1942 quando, logo depois do jantar,
Poskrebyshev entrou silenciosamente e colocou diante dele um relatório
especial do departamento de Informações do Estado-maior, assinado pelo
general Panfilov, sobre a interceptação de um radiograma de Berlim. O
relatório dizia que “Stalingrado foi conquistada por brilhantes forças alemãs. A
Rússia está cortada em duas partes, norte e sul, e cedo entrará em colapso com
estertores de morte”.
Stalin leu a mensagem resumida diversas vezes, ficou de pé por alguns
instantes junto à janela, com o olhar vagando na direção sul onde o desastre se
desenrolava e, então, disse a Poskrebyshev para colocá-lo imediatamente em
ligação com o Estado-maior. Um minuto mais tarde, ditava ao general
Bogokov um telegrama para Yeremenko e Khruschev:

Reportem alguma coisa do que está acontecendo em Stalingrado. É verdade que a cidade foi capturada
pelos alemães? Deem uma resposta direta e verdadeira.
Aguardo contestação imediata.
16.9.42.35

Para ele, o que interessava era o resultado. Jamais foi atormentado por crises de
consciência ou de pesar pelas baixas enormes. As notícias referentes à
destruição de grande número de divisões, corpos ou exércitos o alarmavam,
mas não existe um só documento nos arquivos do Estado-maior mostrando
preocupação sua com o número de vidas humanas perdidas. Não levava em
conta um dos princípios fundamentais da arte militar, o de que o objetivo deve
ser conquistado com a mínima perda de vidas humanas. Acreditava que tanto
as vitórias quanto as derrotas inevitavelmente colhiam safras amargas, fato
inescapável da guerra moderna. Talvez pensasse desta forma porque, como
Supremo, tinha expressivo número de exércitos à sua disposição. No fim da
guerra, as forças armadas desdobravam cerca de 500 divisões, sem contar
artilharia, blindados e aviões. Era o dobro do que existia antes da guerra. Na
realidade, os alemães possuíam quantidade maior, mas isto aconteceu porque
Stalin resistiu aos repetidos pleitos dos assessores para que dividisse as
formações em maior número e com efetivos menores. Em função do vasto
poderio militar e do organizado sistema de reservas, pareceu desnecessário a
Stalin tornar a conquista de objetivos estratégicos dependente da escala das
perdas. Ao mesmo tempo, ele era atraído pelas novas formas de ação estratégica
tais como as operações com forças de fronts combinados. Isto resultava no mais
complicado e maciço complexo de batalhas, enquadrado em um só conceito e
tudo coordenado para objetivo, tempo e lugar. Algumas destas operações
envolveram, entre cem e 150 divisões, às vezes mais, dezenas de milhares de
canhões, três a quatro mil carros de combate, cinco a sete mil aviões. Esta
colossal força era colocada em movimento de acordo com um cenário de
cálculos e deslocamentos estratégicos concebido pelo Estado-maior Geral e
pelos QGs, com base em inúmeros fatores e opções tanto nossos como do
inimigo. Foi precisamente durante tais operações combinadas que Stalin
sentiu-se mais como líder militar. Uma escala tão vasta significava não só a
expressão quantitativa da força empregada. Também representava sua própria
autoexpressão e autoafirmativa como um estrategista.
Depois das batalhas de Moscou e Stalingrado, ele buscou acoplar os esforços
de vários fronts em combinações cada vez mais novas. Kursk, Bielorrússia,
Prússia Oriental, Vístula-Oder, Berlim e Manchúria representaram o curso
objetivo da guerra, mas também corresponderam à predileção de Stalin por
essas operações maciças e em escala avassaladora. A extensão da frente de
combate naqueles casos chegava, com frequência, a 500-700km, com
profundidades que iam de 300 a 500km, e podiam durar até um mês. Como
regra, Stalin se impacientava por seu início, ficava insatisfeito com o ritmo da
progressão e se irritava com as dificuldades. Apreendia com rapidez o conceito
geral de uma operação ofensiva e, ocasionalmente, fazia sugestões relevantes
visando a intensificar a força do ataque.
Muito raramente, no entanto, sugeria alternativas para a ideia principal
concebida e burilada pelo Estado-maior, o cérebro do exército. Stalin tendia a
enfatizar o papel da força aérea, porém, depois do verão de 1942, quando os
exércitos blindados começaram a entrar em ação, ele dava opinião detalhada
sobre seus objetivos e acompanhava as poderosas formações de ataque
enquanto executavam suas missões. Embora não existam provas nos arquivos
indicando que as sugestões de Stalin tiveram influência importante sobre o
planejamento, curso, desenvolvimento e conclusão das operações estratégicas,
manda a verdade que se diga que, no período de 1943-45, ele foi capaz de
avaliar os valores relativos. Se demonstrou alguma “genialidade”, foi durante
este último estágio da guerra, quando aprovou os planos formulados e
submetidos à sua apreciação por Zhukov, Vasilievsky, Antonov e pelos
comandantes de fronts.
Por outro lado, deu grande atenção ao incremento do espírito combatente
da tropa, normalmente por métodos radicais. A decisão de realizar a parada de
7 de novembro de 1941 na Praça Vermelha foi uma dessas ideias, e também,
no verão de 1944, de repente propôs que um enorme efetivo de prisioneiros de
guerra alemães desfilasse pelas ruas de Moscou.
“Isto levantará ainda mais o moral do povo e do exército e acelerará a
derrota dos fascistas. O que vocês acham?”
Após um breve momento de silêncio confuso, Molotov, Beria, Voroshilov e
Kalinin começaram a tagarelar ao mesmo tempo e começaram a competir uns
com os outros para expressar sua total concordância.
“Uma iniciativa inteligente, Iosif Vissarionovich!” “Só você poderia ter
pensado nisto!”
“Uma decisão de gênio!”
Passada uma semana, em 13 de julho, Beria submeteu à aprovação de Stalin
uma operação inusitada de levantamento moral: “De acordo com sua proposta,
Iosif Vissarionovich, dia 17 de julho, 55 mil prisioneiros de guerra desfilarão
pelas ruas de Moscou. Entre eles, estarão 18 generais e 1.200 oficiais. Vinte e
seis trens especiais os trarão a Moscou dos três fronts bielorrussos. Os generais
Dmitriev, Milovsky, Gornostaev e o comissário de segurança Arkadiev já
tomaram as providências. A segurança e a escolta em Moscou serão da
responsabilidade dos Camaradas Vasiliev e Romanenko da NKVD. Os
prisioneiros serão concentrados no hipódromo, e a NKVD fará a segurança
motorizada da área na noite de 16 de julho. Dos 26 trens formaremos 26
colunas de marcha. Itinerário: Hipódromo de Moscou, autoestrada
Leningrado, rua Gorky, praça Mayakovsky e ao longo de Sadovaya; depois, de
Sadovaya-Triumfalnaya para Karetnaya, Samotechnaya, Sukharevskaya,
Spasskaya, Chernogryazskaya, rua Chkalov, estação Crimeia, bulevar
Smolensk, ao longo das ruas Barricade e Krasnaya Presnya de volta ao
Hipódromo. A marcha começará às 9h e deverá terminar às 16h.”36
“Vocês conseguirão manter as colunas intactas?”, interrompeu Stalin. “Sim,
Camarada Stalin.”
“Que acontecerá depois?”
“Bem cedo na manhã seguinte, eles sairão de 11 pontos de partida para
acampamentos no leste.”
Beria estava disposto a prosseguir com a explanação do plano, mas Stalin
não quis ouvir mais nada. “Eu dou uma ideia e aí fazem. Por que vocês não
pensam em alguma coisa por si mesmos?”, disse Stalin, olhando em volta com
menosprezo para seu entourage. (Ocorreu que tanto a hora como o itinerário
foram modificados.) Como parte de sua preocupação com a elevação do moral,
particularmente dos oficiais, Stalin foi bastante criativo na questão das
condecorações. Por exemplo, em 9 de setembro de 1943, deu ordem para que:

No caso dos oficiais que completarem com sucesso a travessia forçada de um rio difícil como o Desna:
1. Comandantes de exército devem receber a Ordem de Suvorov, 1ª Classe.
2. Comandantes de corpos, divisões e brigadas a Ordem de Suvorov, 2ª Classe.
3. Comandantes de regimentos e os de batalhões de engenharia, de sapadores e de pontoneiros
deverão receber a Ordem de Suvorov, 3ª Classe.
Para a travessia forçada de rios como o Dnieper, ou da mesma dificuldade, os comandantes de
unidades e de formações devem ser feitos Heróis da União Soviética.37

De um modo geral, ele era escrupuloso com a concessão de recompensas. Por


exemplo, em 1949, não concordou com a sugestão de Molotov de que o
transcurso de seu septuagésimo aniversário fosse marcado com seu próprio
recebimento da segunda Estrela de Ouro de Herói da União Soviética. Decidiu
que já bastava quando recebeu a Ordem da Vitória, e interrompeu o fluxo de
condecorações ao perceber que um excesso de tais recompensas as desvalorizava
e podia, portanto, minar sua autoridade. Um homem que ocupa a posição mais
destacada de um estado não democrático pode outorgar a si mesmo a
condecoração que lhe aprouver, mas isto não lhe aumenta a autoridade – muito
pelo contrário. Aí está uma coisa que Brejnev e Chernenko não entenderam.
No cômputo geral, Stalin recebeu tantas condecorações quanto, digamos,
Mekhlis, e cerca de um quarto ou um quinto das que recebeu Brejnev.
Também era meticuloso na concessão de medalhas a outros, chegando a
cancelar condecorações quando as considerava imerecidas. “Medalhas são para
os combatentes que se distinguiram na batalha contra os agressores alemães, e
não para serem distribuídas a quem aparecer”, escreveu ao comandante em
chefe do primeiro front báltico, em 16 de novembro de 1943, quando soube
que o general Yeremenko estava concedendo medalhas sem a concordância do
soviete de guerra.38

Nas suas memórias e End of the ird Reich, e em diversas outras publicações
e discursos, o marechal V.I. Chuikov expressa a opinião de que teria sido
possível tomar Berlim em fevereiro de 1945, em vez de se esperar até maio.
Zhukov, A.Kh. Babadzhanyan e outros contestaram essa opinião em
documentos impressos como em outras ocasiões, e Chuikov quis publicar uma
resposta na Voenno-istoricheskii zhurnal (“Revista de História Militar”).
Recusada a permissão, ele escreveu ao Comitê Central do partido, no qual se
decidiu que alguma coisa deveria ser feita para controlar o teimoso marechal.
Em 17 de janeiro de 1966, o chefe da Administração Política Principal, general
A.A. Yepishev, convocou uma reunião de destacados marechais, generais e
especialistas para “injetar bom senso” em Chuikov.39 Em sua exposição,
Chuikov, mais uma vez, insistiu:

Em fevereiro, as forças soviéticas, tendo progredido 500 quilômetros, pararam a 60 quilômetros de


Berlim [...] Quem nos deteve? O inimigo ou a liderança? Tínhamos mais do que o suficiente em
tropas para avançar sobre Berlim. Os dois meses e meio de fôlego que concedemos ao inimigo
ajudaram-no a preparar a defesa da capital.

Os oponentes de Chuikov, que incluíam o general Yepishev e os marechais


Konev, Zakharov, Rokossovsky, Sokolovsky e Moskalenko, tentaram convencê-
lo de que a ofensiva perdera impulsão, que a retaguarda se distanciara bastante,
que as tropas estavam exaustas e de que se faziam necessárias munição e
reservas descansadas. É possível que a maioria estivesse certa, mas acho que
aquela reunião deve ser vista de maneira diferente: ela teve lugar numa ocasião
em que já começara uma certa moratória sobre as críticas a Stalin. Ao
examinarem a questão da possibilidade ou não de o ataque a Berlim ser
realizado antes, os participantes, como que de comum acordo, não fizeram
conexão absolutamente alguma entre a decisão do Estado-maior e Stalin. Até
mesmo o levantamento da questão em si foi condenado. Na conclusão,
Yepishev disse que as opiniões de Chuikov sobre o problema “careciam de base
científica” e que não deveríamos “enodoar nossa história, senão ficaremos sem
nada para orientar a juventude”.

Mas voltemos à guerra. Quando Stalin se convenceu de que a vitória pendia


para o lado dos Aliados, começou a dedicar trinta ou quarenta minutos,
normalmente à noite, para assistir aos noticiários cinematográficos do front, os
quais, ocasionalmente, o levavam a tomar decisões de escala muito grande. Um
de tais filmes, por exemplo, exibiu cenas de um vilarejo perto do front, quase
que totalmente destruído, onde dois membros da polícia local patrocinada
pelos alemães, que não conseguiram se esconder nem se entregar, foram
apanhados. Stalin enviou de imediato uma diretriz, com cópia para Beria, para
todos os comandantes de front exigindo obediência estrita à ordem do Estado-
maior de 14 de outubro de 1942. Tal ordem estabelecera a zona do front da
qual toda a população, sem exceção, deveria ser evacuada para garantir que nela
não permanecessem agentes inimigos ou espiões. De próprio punho,
acrescentou:

“Isto é especialmente importante. A zona da linha de frente tem que ser inacessível a espiões e agentes
inimigos. Já é tempo de entender que os locais habitados próximos à retaguarda constituem um
refúgio conveniente para espiões e para a espionagem.”40 Nada há na diretriz sobre a remoção dos
cidadãos soviéticos do perigo ou sobre a proteção deles.

Ao longo de toda a guerra, Stalin manteve Malenkov ao seu lado. Malenkov


executou muitas de suas ordens no aparato do Comissariado de Defesa e no do
Comitê Central, bem como na supervisão da indústria aeronáutica. Quando a
produção de aviões adquiriu bases sólidas, a partir de setembro de 1943, Stalin
fez de Malenkov Herói do Trabalho Socialista e presidente de um comitê do
Sovnarkom para a reconstrução da economia nas áreas liberadas. Decidiu
também testar Kaganovich em missões de guerra. Em julho de 1942, enviou-o
ao Cáucaso como membro do soviete de guerra do front caucasiano do norte.
Kaganovich, entretanto, não marcou sua passagem por lá. Como Malenkov,
sentiu-se como um civil brincando de guerra, ao desempenhar a função de
“olhos” de Stalin no QG do front e na administração política. E foi alvo da
crítica de Stalin quando, em meados de agosto de 1942, o front abandonou sua
linha de defesa sem autorização do Estado-Maior:

De que vale uma posição defensiva se não é defendida? E parece que você não conseguiu reverter a
situação, embora não houvesse pânico e a tropa estivesse combatendo muito bem. Suvorov disse: “Se
atemorizei o inimigo, mesmo sem lhe olhar nos olhos, já ganhei metade da batalha: levo minhas
tropas para o front a fim de aniquilar um inimigo amedrontado.”41

Entre outras coisas, Beria foi empregado por Stalin para ajudar no suprimento
da área de retaguarda do front, para “peneirar” nos campos aqueles que
escapavam do cerco inimigo e para mobilizar centenas de milhares de
prisioneiros para trabalhos relacionados com a guerra. Envolveu-se também
com a organização de diversos destacamentos e unidades. Por exemplo, em 29
de junho de 1941, recebeu do Estado-maior a missão de formar 15 divisões
com base em unidades da NKVD.42 Em agosto de 1942 e março de 1943,
esteve no Cáucaso para cooperar com a defesa da região. Foi de lá que enviou
uma série de telegramas a Stalin informando que estava afastando chechênios e
ingushes do exército como inconfiáveis, fazendo sua avaliação de Budenny,
Tyulenev e Sergatskov, reportando suas decisões sobre várias nomeações
militares, algumas delas patentemente inadequadas. Foi de Beria a sugestão
para que Stalin, em 20 de agosto de 1943, telegrafasse a Shchadenko,
comandante do front caucasiano, determinando:

1. A remoção de 3.767 armênios, 2.721 azerbaijanos e 740 membros de grupos étnicos do Daguestão
das fileiras da 61ª Divisão de Infantaria.
2. Que os militares assim removidos fossem enviados para postos da reserva do front oeste e que as
vagas criadas pela transferência fossem preenchidas com tropas reservas do front constituídas de
russos, ucranianos e bielorrussos.43

Inveterado causador de problemas durante seus giros pela linha de frente, Beria
tentou complicar a vida dos generais Tyulenev, Maslennikov, Sergatskov, I.E.
Petrov e Shtemenko, entre outros, fazendo com que todos eles telegrafassem a
Stalin solicitando que suas equipes fossem protegidas contra a horda de Beria.
Parece que Beria só foi bem-sucedido com Maslennikov, seu subordinado por
certo tempo. Os generais Pokrovsky e Platonov, que pesquisaram este assunto
em 1955, chegaram à mesma conclusão no seu “Relatório sobre a atividade
criminosa de Beria durante a defesa do Cáucaso em 1942-43”. Escreveram:

Para defender a parte leste da área do Cáucaso, foi criado um agrupamento norte do front caucasiano,
em 8 de agosto, sob o comando, parece que por insistência de Beria, do general Maslennikov, o qual
até então vinha sendo o desafortunado comandante do front de Kalinin. O general Maslennikov, que,
sem dúvida gozava da proteção de Beria, frequentemente ignorou as ordens do comandante do front e
prejudicou o reagrupamento das forças com suas ações.44

Embora seja possível que Maslennikov não fosse “homem de Beria”, a


correspondência mantida entre os dois, em 1942, sinaliza uma relação especial.
Como comandante do XXXIX Exército, Maslennikov desbordou seus chefes
militares para fazer solicitações diretas a Beria, “lembrando a você a promessa
de dar a assistência possível”.45 Quando Maslennikov viu um artigo intitulado
“A batalha no Cáucaso”, da autoria de dois oficiais, Zavyalov e Kalyadin, em
agosto de 1952, para a revista Voennaya Mysl (“Pensamento Militar”), escreveu
(24 de novembro de 1952) para o chefe da Administração dos Estudos sobre a
Guerra do Estado-maior expressando seu desacordo com a avaliação sobre o
papel de Beria apresentada naquele artigo:

Ao apresentarem, na página 56, as medidas do Estado-maior do Supremo Comandante em Chefe da


URSS, os autores mencionam só de passagem e muito brevemente o enorme trabalho criativo e as
medidas políticas e organizacionais fundamentais introduzidas pelo Camarada Lavrenti Pavlovich
Beria que revolucionaram em profundidade toda a posição, a despeito das circunstâncias
extremamente difíceis experimentadas pelo front caucasiano em agosto de 1942.
A descrição das atividades do Camarada L.P. Beria não contém o relato abrangente de todas as
medidas que foram executadas sob a supervisão pessoal do Camarada Lavrenti Pavlovich Beria.
L.P. Beria, que praticava o estilo stalinista de liderança, foi, por seu exemplo pessoal, um modelo de
liderança bolchevique estatal, militar, político-partidária e econômica no front transcaucasiano (agosto
de 1942 a janeiro de 1943), e pôs em prática as ordens de Stalin de maneira brilhante.46

Bem no íntimo, Stalin seguramente tinha desprezo por Beria, mas não podia
passar sem ele. Beria era seu inquisidor, seu braço direito, seu espião. Foi ele,
por exemplo, quem lhe informou que Berlim, havia muito tempo, vinha
planejando um ato terrorista contra o líder soviético. De acordo com alguns
informes recebidos, um Messerschmitt Arado-332 especial lançaria um grupo
treinado de terroristas do Exército Russo de Liberação, de Vlasov, enquanto
outras informações diziam que os alemães deixariam para trás um grupo de
comandos na retirada. Quase a cada mês, Beria relatava a Stalin as novas
medidas que tomara para aumentar a segurança do seu chefe. Mas Stalin
precisava de Beria para uma série de outras tarefas. Por exemplo, saber por que
140 dos 400 aviões de caça designados para emprego nos fronts de Kalinin e de
oeste tinham sido retirados da ação após três ou quatro dias de serviço.47 Por
outro lado, não gostava quando Beria metia o bedelho nos assuntos do QG do
Estado-maior e nos do próprio Estado-maior.
Quando Beria retornava de suas visitas ao front e dava suas opiniões sobre a
situação, sobre bombardeios e sobre o pobre desempenho de alguns generais
“suspeitos” e de outras pessoas, Stalin sentia uma certa vulnerabilidade. Não
estivera perto da linha de frente desde outubro de 1941, quando foi à
autoestrada Volokolamsk assistir ao fogo antiaéreo no céu e, ainda mais, tinha
que ficar ouvindo as descrições de Malenkov e Beria sobre seus “batismos de
fogo”. Portanto, resolveu que deveria ir ao front, nem que fosse para registro
pela posteridade. E teve lugar uma viagem cuidadosamente preparada. Stalin
passou algum tempo nos fronts Kalinin e oeste, em agosto de 1943, e sentiu
que sua imagem como líder guerreiro estava preservada.
Em 1º de agosto, deixou Kuntsevo num trem especial que consistia em uma
velha locomotiva e vagões bem avariados. Tanto a plataforma como o pequeno
trem foram camuflados com galhos de árvores. Stalin se fez acompanhar por
Beria, por seu assistente especial Rumyantsev e por seguranças em trajes civis.
Ao chegar em Gzhatsk, foi recebido pelo comandante do front oeste,
Sokolovsky, e por Bulganin, que era um dos membros do soviete de guerra.
Ouviu seus relatos, desejou-lhes felicidades, foi para a cama e seguiu no dia
seguinte na direção de Rzhev, no front Kalinin, que era comandado por
Yeremenko. Lá, instalou-se numa cabana simples de camponês na vila de
Khoroshevo, algo isolada das outras residências rurais. (A camponesa residente
fora despachada com armas e bagagem.) A pequena cabana, com sua cornija
ornamental e uma placa comemorativa, ainda hoje existe, como monumento
da “explorações” de Stalin do front. Diz-se que, durante sua permanência na
modesta instalação, ele preparou a ordem para uma salva de tiros de canhão a
fim de comemorar a retomada de Orel e Belgorod. Mas não mostrou desejo de
ir à linha de frente para confraternizar com as tropas e seus oficiais. Depois da
noite em Khoroshevo, o pequeno comboio fez a viagem de volta a Moscou sem
quaisquer tropelias, onde Stalin pôde se confortar com o sentimento de que
ninguém mais poderia dizer que ele só conhecia o front pelos documentários
do cinema.
Haveria mesmo necessidade da visita à linha de frente? Afinal de contas,
jamais estivera nas fábricas, se bem que tivesse levado o país a dar um salto
quantitativo na produção industrial. Só uma vez fizera um giro pelos vilarejos,
e que revolução causara naquele setor! Por que o campo de batalha seria uma
exceção, quando podia acompanhar todos os eventos que ocorriam e, na
realidade, dirigir tudo de sua sala no Kremlin? A visita foi necessária para a
“história”. Sua biografia tinha que incluir uma descrição da chegada do
Supremo no seio das tropas combatentes para elevar o moral. Ele também fez
questão de que os Aliados tomassem conhecimento do fato. Escreveu a
Roosevelt em 8 de agosto de 1943:

Recém-chegado do front, só agora tenho condições para responder à sua carta de 16 de julho. Não
tenho dúvida de que o senhor está consciente de nossa situação militar e, portanto, entenderá o atraso.
Tenho que fazer visitas pessoais aos vários setores do front com cada vez maior frequência e subordinar
tudo o mais aos interesses da linha de frente.
E, para Churchill, escreveu no mesmo dia seguindo linha idêntica,
acrescentando que a provável eventualidade de novos ataques alemães tornava
as visitas pessoais mais assíduas ao front uma necessidade premente.48
Para falar a verdade, estas cartas também serviram para explicar por que
Stalin declinara do convite para se encontrar com os outros dois líderes em
Scapa Flow, nas ilhas Orkney. Mas foram úteis também para dissipar qualquer
noção de que conduzia a guerra de sua poltrona. Para sua grande satisfação, nas
respostas dos dois líderes, de 19 de agosto de 1943, tanto Roosevelt quanto
Churchill comentaram que “entendiam perfeitamente as ponderáveis razões
que o obrigam a permanecer em proximidade cerrada dos fronts de combate
onde sua presença pessoal tem contribuído tanto para as vitórias”.49
Nota

* Sigla russa de Glavnoe upravlenie po delam literatury i izdatv, a “Repartição para a Proteção dos Segredos
de Estado Impressos,” agência de censura responsável pela revisão de todas as matérias antes da
publicação. No fim da década de 1980, era responsável pela proteção de segredos de Estado. Foi abolida
em julho de 1990.
[49]
Stalin e os Aliados

N o final de abril e início de maio de 1945, Poskrebyshev reportava


diariamente a Stalin os encontros que ocorriam entre tropas
soviéticas e aliadas. Para Stalin – e não só para ele – a Aliança
representara um aspecto da guerra repleto de expectativas e desapontamentos,
rixas, regateios, suspeitas e desconfiança, depois, de esperanças e desilusões, e,
finalmente, transformara-se em razoável cooperação militar funcional. Na
primavera de 1945, parecia que ela estava firme e seria duradoura. Em prol da
coalizão antifascista, Stalin sacrificara o Comintern, colocara de lado
postulados ideológicos, fechara os olhos para os habituais e persistentes
sentimentos anticomunistas de Churchill e das democracias ocidentais, e
assumira uma linha puramente pragmática.
De regra, lia apenas documentos do Estado-maior, relatórios do front e
memorandos do QG do Estado-maior. Contudo, então, começou a analisar
outro tipo de material. Por exemplo, leu um relatório de S.R. Rudnik, chefe do
Estado-maior da 58ª Divisão de Infantaria de Guardas, dando conhecimento
de que “às 15h30 de 25 de abril de 1945, perto da ponte, em Torgau, ocorreu
um encontro entre oficiais do 173º Regimento de Infantaria de Guardas e
patrulhas da 60ª Divisão de Infantaria do 5º Corpo de Exército do I Exército
americano. Cinco homens liderados pelo oficial Robinson do Exército dos
EUA atravessaram para a margem leste do rio Elba a fim de manter contato”.50
Stalin deve ter ficado imaginando como homens do tipo de Rudnik se
comportariam com os soldados Aliados de um outro mundo. Haveria
confraternização ou fricção? Apenas três semanas antes, recebera um cabograma
de Abakumov, classificado “Muito Importante”, dando conta de que, segundo
fontes da Smersh, na base aérea soviética de Poltava, a qual os americanos
estavam utilizando como ponto de reabastecimento, o major-general Kovalev
declarara que “não estamos nos dando muito bem com os americanos, e tudo
pode dar mesmo em conflito armado”. Kovalev tomara medidas acauteladoras.
Stalin explodiu quando leu o telegrama de Abakumov. “Onde arranjamos
idiotas assim? Este Kovalev preparou até um plano de ataque!” Escreveu uma
mensagem para o comandante da força aérea, Falaleev, com letras maiúsculas
bem no meio da página. “Determino a você apaziguar o Camarada Kovalev e
proibir qualquer nova ação de sua parte.”
Por outro lado, ele também recebia relatórios de encontros com forças
inglesas e americanas que ocorriam num clima de entusiasmo. Durante uma
reunião entre o comandante da 58ª Divisão de Infantaria, general Rusakov, e o
comandante da 69ª Divisão de Infantaria dos EUA, general Reinhardt, foram
levantados brindes, proferidos discursos e trocados presentes. O chefe da seção
política do V Exército de Guardas, general Katkov, reportou que os americanos
queriam estrelas, platinas e botões como suvenires. Os soldados soviéticos
ficaram aparentemente surpresos ao verificarem que era difícil distinguir um
general dos EUA entre os de outros postos. “Todos usam o mesmo uniforme,
ao passo que se pode identificar a distância um general nosso.” Katkov também
mencionou que o escritor Konstantin Simonov estava presente no encontro.51
Era hora agora de acabar com o longo período de desconfianças mútuas
entre a União Soviética e as democracias ocidentais. O que parecia impraticável
antes da guerra, Hitler tornara possível. Ao travar a guerra em duas frentes, o
Führer tinha, inadvertidamente, transformado a URSS e o Ocidente em
aliados. Stalin podia muito bem agora recordar a visita do embaixador inglês,
Stafford Cripps, e seus auxiliares, em 12 de julho de 1941. Ainda em choque
com a notícia que recebera meia hora antes de que os alemães estavam no
Dnieper, Stalin apertou mecanicamente a mão do inglês e, absorto, ficou
olhando as costas de Molotov e Cripps enquanto os dois assinavam o acordo de
assistência mútua. Uma semana mais tarde, o enviado soviético em Londres,
Ivan Maisky, e o ministro do exterior tcheco, Jan Masaryk, assinaram acordo
semelhante e, depois, no mesmo mês de julho e ainda em Londres, foi
celebrado um tratado de assistência mútua entre a URSS e o governo polonês
no exílio. Por insistência polonesa, a primeira cláusula estabelecia: “O governo
da URSS reconhece que os tratados germano-soviéticos de 1939 relacionados
com mudanças territoriais na Polônia não têm validade.”52 Naquele dia, Stalin
conheceu o enviado pessoal de Roosevelt, Harry Hopkins, que disse: “Quem
luta contra Hitler está no lado certo do conflito, e pretendemos ajudar este
lado.”53 Stalin fez perguntas ligeiras sobre a ajuda técnica e expressou a
esperança de que o presidente entendesse a posição soviética. O acordo de
assistência seria concluído algum tempo depois, porém, entrementes, a visita de
Hopkins servira para lançar as bases da cooperação.
Ainda em julho, Stalin enviou uma missão especial a Londres, chefiada pelo
general F.I. Golikov. Stalin instruiu o general pessoalmente, assim como
fizeram Shaposhnikov, Timoshenko e Mikoyan, sobre detalhes das questões.
Golikov tinha duas missões principais: primeira, despertar o interesse
estratégico inglês no desembarque de tropas na Europa ou no Ártico, e,
segunda, extrair assistência técnica mais rápida da parte dos ingleses. Logo após
seu retorno a Moscou e seu despacho de meia hora com Stalin, Golikov foi
mandado para os Estados Unidos, levando o principal foco da atenção de
Stalin: o recebimento de uma vasta gama de suprimentos no mais curto espaço
de tempo possível.
Enfrentando a ameaça da derrota, Stalin descartou os antagonismos
ideológicos como de importância secundária. Por ser pragmático, venceu
facilmente seus preconceitos em termos de ideologia e lançou-se, com decisão,
em busca do apoio das potências ocidentais. Na prática, suas opções eram
poucas, mas ele acabou desempenhando papel de destaque na coalizão
antinazista. Desde o início da guerra, depois de recuperar o equilíbrio
emocional, Stalin procurou o suporte do maior número possível de países e fez
o que estava ao seu alcance para que Turquia e Japão permanecessem neutros
em relação à URSS. Mas era na Inglaterra e nos EUA que depositava suas
maiores esperanças.
Lançou-se a colocar a nova cooperação em bases práticas, de negócios, não
emocionais. Assim, praticamente na sua primeira mensagem a Churchill,
datada de 18 de julho de 1941, declarou: “A mim parece que a situação militar
da União Soviética, como a da Inglaterra, seria significativamente melhorada se
uma frente contra Hitler fosse aberta no Ocidente (norte da França) e no
Norte (o Ártico).” E, como se justificando as anexações soviéticas de 1939,
acrescentou: “Teria sido muito melhor para os alemães se as forças soviéticas
tivessem que aguentar o peso de seus ataques não em Kishinev, Lvov, Brest,
Belostok, Kaunas e Vyborg, mas em Odessa, Kamenets-Podolsk e
Leningrado.”54
Stalin persistiu, em todas as suas mensagens para Churchill, em reclamar a
abertura de uma segunda frente, e sabemos que, já em 26 de julho de 1941,
Churchill declarara que ainda não era possível. Quando a situação se agravou
em agosto, Stalin enviou outra mensagem pessoal e comovida. Referindo-se às
recentes pesadas derrotas sofridas pelas forças soviéticas, apelou: “Como
poderíamos encontrar uma saída para esta situação mais que desagradável?” E
ele mesmo respondeu:

Penso que a única saída é a abertura, neste mesmo ano, de uma segunda frente, em algum lugar dos
Bálcãs ou na França, capaz de puxar trinta ou quarenta divisões alemãs da frente leste e,
simultaneamente, a garantia para a União Soviética de 30 mil toneladas de alumínio pelo início de
outubro deste ano, e uma ajuda mínima de 400 aviões e 500 tanques (pequenos ou médios) por mês.
Sem estas duas espécies de socorro, a União Soviética ou será derrotada ou restará tão enfraquecida
que perderá sua capacidade de auxiliar seus aliados por um longo período.
Sei que esta mensagem causará aflição a Vossa Excelência. Mas que posso fazer? A experiência ensinou-
me a olhar a realidade de frente, por mais desagradável que ela seja, e a não ter medo de dizer mesmo a
verdade indesejável.55

Embora tenha conseguido ajuda militar dos Aliados em escala maciça – ajuda
consistentemente ignorada ou depreciada pelos historiadores soviéticos –,
Stalin foi menos bem-sucedido no esforço para que abrissem uma segunda
frente. Até meados de 1944, esta questão ocupou lugar central no palco de suas
iniciativas diplomáticas. É verdade que, quando os ventos da vitória
começaram a inflar suas velas, ele se tornou menos insistente, e, de fato, a
frente na Europa Ocidental só foi aberta quando ficou óbvio que a União
Soviética era capaz de destruir sozinha a Alemanha nazista.
A persistência de Stalin e a posição inglesa sobre a segunda frente chegaram
a um ponto tal que foi necessário aos dois líderes se encontrarem pessoalmente.
Em consequência, Churchill foi a Moscou, em agosto de 1942 e, na presença
do embaixador americano Averell Harriman, tentou convencer Stalin da
impossibilidade da abertura de uma frente na Europa Ocidental ou no Ártico
naquele momento. Stalin não teve outra escolha senão aceitar a
argumentação,56 mas deixou claro que considerava a posição inglesa uma
quebra de promessa.57 Considerando que a URSS estava aguentando o maior
impacto da agressão nazista, Stalin se achava no direito de reivindicar um lugar
especial na aliança. Isto se aplicava particularmente às solicitações da União
Soviética – que soavam mais como exigências – de auxílio. No interesse do
país, Stalin comportou-se como um político duro que não aceitava meios-
termos e, no processo, granjeou o respeito de seus parceiros. Roosevelt,
Churchill e de Gaulle o consideravam um ditador esperto e cruel. Ele sabia
disto e não fez qualquer tentativa de alterar esta imagem.
Ansioso pela máxima quantidade possível de assistência da parte dos
Aliados, em especial ajuda militar, Stalin buscou maneiras de desbordar as
diferenças ideológicas. Enquanto conversava com Churchill no Kremlin,
madrugada adentro, estava consciente de que, apenas a alguns blocos de
distância, ficava a sede do comitê executivo da Internacional Comunista – o
Comintern –, instituição que identificava o inimigo de classes não só em
Hitler, mas também no primeiro-ministro inglês. A decisão de Stalin de
desmantelar o Comintern – por um decreto do próprio Comintern, é claro –
não causou espanto aos observadores inteligentes que se lembravam de que,
muito recentemente, em 1939, o secretário-geral demonstrara o quanto estava
disposto a abandonar um princípio ideológico em favor de um objetivo
particular. Tampouco fez questão de camuflar sua decisão. Falando numa
cerimônia comemorativa do 25º aniversário da Revolução de Outubro,
ressaltou o fato de que as diferenças ideológicas não eram obstáculo para a
cooperação militar e política com os Aliados.58 Na verdade, o que ele estava
dizendo era que a lógica das classes não tinha lugar na luta pela sobrevivência.
O destino do Comintern estava selado. Na primavera de 1943, ele dissolveu
a si próprio e, em 28 de maio de 1943, respondendo a uma pergunta do
correspondente da Reuters, Stalin disse:

A dissolução da Internacional Comunista é adequada e oportuna, pois facilitará a organização da


pressão por parte das nações amantes da paz contra o inimigo comum, o hitlerismo, e desmascara a
mentira dos hitleristas de que Moscou, supostamente, pretende interferir na vida dos outros estados e
“bolchevizá-los”.59

Outra área na qual Stalin aplicou sua abordagem pragmática foi a da Igreja
Ortodoxa Russa, instituição com a qual o ex-seminarista, até então, não vinha
sendo muito pródigo em atenção. Pelo contrário, em 1925, por sua iniciativa, a
Igreja foi proibida de eleger um novo patriarca. Seu chefe temporário, ou locum
tenens, ficou sendo o eclesiástico metropolitano Sergius. Stalin nem permitiu
que o conselho local da Igreja se reunisse, tornando assim impossível completar
o número de membros do Sínodo Sagrado, o qual deixou de funcionar por um
longo período. Subitamente, em 4 de setembro de 1943, Stalin convidou G.G.
Karpov, presidente do conselho para as Questões da Igreja Ortodoxa Russa, à
sua dacha. Durante a conversa, e com a presença de Malenkov e Beria, foi
debatido o papel que a igreja poderia desempenhar no esforço de guerra. Deve-
se frisar que ela já vinha dando uma grande contribuição em dinheiro vivo com
tal objetivo e repassara para os cofres públicos substanciais partes de sua
riqueza, ao mesmo tempo que os sacerdotes faziam o possível para fortalecer a
fé do povo na vitória final sobre o invasor.
Tendo ouvido Karpov, Stalin decidiu, na hora, receber os líderes da Igreja e,
poucas horas depois, chegaram os eclesiásticos metropolitanos Sergius, Alexei e
Nikolai, algo surpresos com o inusitado da ocasião. Durante a longa discussão,
concordaram em convocar o conselho da Igreja, nomear um patriarca e abrir
instituições de ensino religioso. Entusiasmado com a própria generosidade,
Stalin prometeu também ajuda material à Igreja e várias indulgências, dando
para Beria um olhar significativo enquanto dizia isto. Stalin, o seminarista
falhado, deve ter sentido imensa satisfação pela inimaginável oportunidade de
influir não apenas na sorte dos dignitários de posição mais elevada da Igreja,
mas na própria religião. E a maioria das promessas que fez foi cumprida.
No dia seguinte, 5 de setembro, o Pravda publicou notícias sobre a reunião
– a única entre a liderança do país e o chefe da Igreja até 1988 – e anunciou
que o eclesiástico metropolitano Sergius iria convocar o conselho dos bispos
para a eleição de novo patriarca. “O chefe de governo, Camarada I.V. Stalin,
demonstrou simpatia em relação a tais propostas e declarou que o governo não
estorvaria sua concretização.”
Stalin tomou essa atitude por duas razões. Primeiro, porque reconhecia o
valor patriótico da Igreja e queria encorajá-lo. A segunda razão estava ligada à
situação internacional. Ele se preparava para a conferência de cúpula em Teerã
no final do ano, e era sua intenção pressionar pela abertura da segunda frente e
pleitear também um aumento da assistência. Neste particular, papel
importante, acreditava ele, poderia ser desempenhado pela Ajuda Britânica
para o Fundo Russo, comitê do qual faziam parte a senhora Churchill e o Deão
de Canterbury, Hewlett Johnson. Já tendo recebido diversas mensagens do
deão, Stalin concluiu que era chegado o momento de fazer um gesto público
para demonstrar sua lealdade à Igreja. Estava convencido de que o Ocidente
reconheceria aquele sinal e que ele provocaria a resposta desejada. Sua principal
motivação, portanto, não foi a gratificação da vaidade do seminarista
malsucedido, mas o exercício de pragmatismo puro nas relações com os
Aliados.
Tais relações chegaram ao ápice com os encontros dos Três Grandes em
Teerã (28 de novembro a 1º de dezembro de 1943), em Yalta (4 a 11 de
fevereiro de 1945) e em Potsdam (17 de julho a 2 de agosto de 1945). O
resultado destas reuniões é bem conhecido. Meu propósito aqui é apenas tocar
na atitude de Stalin em relação a algumas das questões debatidas.
Stalin era um “homem caseiro”. Embora desejasse encontrar os líderes
Aliados, relutava em viajar, seja para longe, seja por muito tempo fora da
URSS. Churchill e Roosevelt sugeriram locais como Cairo, Asmara, Bagdad,
Basra e outros mais ao sul. Churchill até pensou que Stalin concordaria com
um encontro no deserto, onde seriam armados três acampamentos de tendas e
eles poderiam conversar segura e sigilosamente. Stalin insistiu em Teerã
porque, segundo suas palavras, de lá seria capaz de continuar “dirigindo o dia a
dia do Estado-maior”. Depois de alentada troca de correspondência, Churchill
e Roosevelt concordaram. Naturalmente, Stalin não revelou que tinha um
pouco de medo de voar. Aquele viria a ser seu primeiro voo, e o último. Nunca
fora de correr riscos, e não viu por que haveria de começar agora. Estava no
auge da glória, e qualquer possibilidade de aborrecimentos, por menores que
fossem, o perturbava. Dois dias antes da viagem, telegrafou a Roosevelt e
Churchill, ambos já no Cairo, dizendo que estaria “à vossa disposição” em
Teerã na noite de 28 de novembro. Partida dele, era uma expressão desusada,
que, sem dúvida, objetivava passar a imagem de um gentleman.
Aquela foi a primeira conferência internacional de Stalin fora de seu próprio
país, e ele cuidou de observar atentamente seus parceiros. Tudo era novo.
Churchill não despertava tanto interesse, pois já havia se encontrado com ele e
sabia tratar-se de um político invulgarmente inteligente e arguto. Mas havia
alguma coisa em Roosevelt, com seus olhos penetrantes e a evidente marca da
fadiga e da doença, que logo o atraiu. Talvez fosse sua franqueza. Na última
conversa que tiveram, em 1º de dezembro, o presidente disse-lhe com toda a
sinceridade que não desejava discutir publicamente questões de fronteira
polonesa, uma vez que era muito provável que fosse candidato a presidente no
ano seguinte. Existem “seis ou sete milhões de cidadãos americanos de origem
polonesa”, e ele, sendo um “homem prático, não queria perder aqueles votos”.
Stalin não estava acostumado com tais expressões de autointeresse político,
mesmo assim admirou esta qualidade de Roosevelt.
O presidente era o mais novo dos “Três Grandes” e, no seu discurso de
abertura, chamou o trio de “membros de uma nova família”. Churchill
acrescentou que eles representavam “a maior concentração de poder jamais
havida na história da humanidade”. Os dois, então, esperaram pelas palavras de
Stalin. “Acho que a história está sendo condescendente conosco”, começou ele
abruptamente. “Ela colocou em nossas mãos poderes muito grandes e mui
grandes oportunidades. Espero que tomemos todas as medidas para que esta
conferência use do poder e da força que nos foram confiados por nossos povos,
adequadamente e dentro de um espírito de cooperação. E agora, vamos ao
trabalho.”
A questão da segunda frente foi, por fim, resolvida. No café da manhã de
30 de novembro, Roosevelt sacudiu seu guardanapo, virou-se para Stalin com
um sorriso e disse: “Hoje, Mr. Churchill e eu tomamos uma decisão com base
em propostas de nosso estado-maior combinado: a Operação Overlord começará
em maio, juntamente com um desembarque no sul da França.”
“Fico satisfeito com esta decisão”, replicou Stalin tão calmamente quanto
pôde. “Mas também quero dizer a Mr. Churchill e a Mr. Roosevelt que, no
momento em que os desembarques começarem, nossas tropas estarão
preparando um ataque de grande vulto contra os alemães.” Estas novas foram
do agrado dos outros líderes.
Como em Yalta e, mais tarde, em Potsdam, a questão polonesa preocupou
os Três Grandes em Teerã. Na última sessão, Churchill leu uma proposta,
evidentemente combinada antes com Roosevelt, estabelecendo que “o torrão
do estado e do povo polonês deve ser localizado entre a chamada Linha Curzon
e o rio Oder, com a inclusão na Polônia da Prússia Oriental e da província da
Silésia”. Stalin replicou: “Se os ingleses concordarem em transferir para nós [os
portos de águas quentes de Königsberg e Memel], aceitamos a fórmula
proposta por Mr. Churchill.”60
Durante as negociações sobre o futuro da Polônia que tiveram lugar mais
tarde na Conferência de Yalta, apenas três meses antes da destruição da
Alemanha de Hitler, Stalin apresentou a fórmula em que trabalhava havia
muito tempo, ou seja, que a questão da Polônia não era só de honra, mas
também de segurança:

É uma questão de honra porque os russos cometeram muitos pecados contra os poloneses no passado,
e o governo soviético deseja fazer reparações. E é uma questão de segurança porque a Polônia
apresenta o mais grave dentre os problemas estratégicos para a União Soviética. Ao longo da história, a
Polônia tem servido de corredor para os inimigos que chegam para atacar a Rússia. Por que os
inimigos acharam tão fácil, até agora, passar através da Polônia? Principalmente porque a Polônia era
fraca. Essa passagem polonesa não poderia ser fechada pela parte de fora apenas com a força russa. Isto
só poderia ser bem feito por dentro, pela ação da própria Polônia. O que significa que a Polônia tem
que ser forte. Daí a razão de a União Soviética estar interessada na criação de uma Polônia poderosa,
livre e independente. A questão polonesa é um problema de vida ou morte para o estado soviético.61
Stalin deixou patente que estava mais inquieto com governos do que com
fronteiras. Aceitou imediatamente a Linha Curzon, com alguns ajustes em
favor da Polônia, mas não faria concessões quanto à questão do governo
polonês, a despeito do fato de, no início da guerra, ter se mostrado desejoso de
cooperar com ele. Em 18 de agosto de 1941, determinara que o major-general
Vasilievsky assinasse um tratado militar entre o Alto-Comando Soviético e o
Alto-Comando Polonês. Concordaram em que o lado soviético arcaria com
todos os custos da manutenção de um exército polonês em território soviético e
abriria uma missão militar soviética no Alto-Comando Polonês, em Londres.62
E agora Churchill e Roosevelt estavam chamando o governo legítimo de
“governo de Lublin”, como se não fosse mais que uma autoridade provincial,
não obstante já estar instalado em Varsóvia e controlar a situação no país.
Na última fase da guerra, e depois dela, Stalin viu-se afogado em questões
de caráter diplomático. É claro que ele contava com a assistência de Molotov,
A.Ya. Vyshinsky, S.I. Kavtaradze e I.M. Maisky, entre outros, porém, ao mais
das vezes, tomava decisões por si próprio. Ficou irritado quando Churchill
meteu o nariz nas questões da Europa Oriental: uma vez que as forças
soviéticas estavam lá, cabia à URSS solucionar a questão do futuro da região,
assim pensava ele.
Mais uma vez, Stalin viu o tipo de executivo fiel que era Molotov. Para este,
uma ordem de Stalin tinha precedência sobre qualquer estatuto do partido. Em
15 de outubro de 1945, Averell Harriman quase “bateu nele”, como iria dizer a
Stalin no mês seguinte. O secretário-geral se preparava para suas primeiras
férias de pós-guerra e não queria receber o embaixador dos EUA, que
pressionava por uma audiência. Stalin dissera a Molotov: “Você o recebe. Não
vou fazê-lo. Diga-lhes o que eles precisam saber.”
De acordo com Molotov, o embaixador Harriman e o primeiro-secretário
Page foram visitá-lo, e a conversa mantida foi registrada em seu diário assim:

Harriman: “Recebi um telegrama do presidente para o generalíssimo. Tenho instruções para entregá-lo
pessoalmente e, na ocasião, discutir uns certos assuntos.”
Molotov: “Stalin entrou em férias por cerca de mês e meio. Informarei Stalin sobre o desejo do
presidente.”
Harriman: “O presidente sabe que Stalin está de férias, mas espera que, assim mesmo, ele concorde
em receber o embaixador. É sobre a Conferência de Londres. Estou disposto a ir a qualquer lugar.”
Molotov: “O generalíssimo Stalin não está trabalhando no momento, o que quer dizer que está de
férias longe de Moscou.”
Harriman: “O presidente espera que Stalin receba o embaixador.”
Molotov: “Informarei Stalin.”
Harriman: “O presidente acha que o generalíssimo merece férias.”
Molotov: “Todos achamos que Stalin deve fazer uma pausa adequada para um descanso.”
Harriman: “Durante o desfile esportivo, notei que Stalin parecia em forma.” Molotov: “Stalin é um
homem muito disposto.”
Harriman: “No noticiário cinematográfico sobre o desfile esportivo, o generalíssimo me pareceu
bastante vigoroso e entusiasmado.”
Molotov: “Nós, as pessoas soviéticas, ficamos muito felizes em ver Stalin com bom estado de espírito.”
Harriman: “Eu gostaria de ter uma cópia daquele filme.”
Molotov: “É claro, o senhor terá uma.”
Harriman: “Não tenho mais nada a dizer para explicar o propósito de minha visita.”
Molotov: “Informarei a Stalin, que está no gozo de completo repouso.” Harriman: “Nem preciso falar
quão importante a questão é...”
Molotov: “Isto está entendido.”
Harriman: “Eu gostaria de visitar Stalin como um amigo...”
Molotov: “Direi a Stalin, mas ele está de férias.”63

Talvez fosse este episódio que Harriman lembrou quando escreveu em suas
memórias que “Stalin permanece para mim a pessoa mais inescrutável,
enigmática e contraditória que jamais conheci”.64 As anotações sobre a
conversa, feitas pelo assistente de Molotov, V. Pavlov, refletem muito bem a
persistência obstinada dos dois homens. Nenhuma conferência importante,
nenhum apelo do presidente abalariam Molotov, para quem a vontade do chefe
era soberana. E, assim, ele executou suas instruções à risca. Nada de
flexibilizações. Molotov era da escola stalinista. Mas quando ele acabou seu
monólogo interminável, Stalin disse: “E se Harriman tivesse, de fato, algo
importante para me dizer do presidente?” Molotov e Beria trocaram um olhar.
Não sabiam se Stalin estava brincando ou lamentava sinceramente uma
oportunidade perdida.
Entre as numerosas pastas que Poskrebyshev colocava em cima da mesa de
Stalin, muitas requeriam sua atenção: tratavam dos países liberados, que eram
em bom número. As lembranças ainda eram recentes das maquinações do
presidente Risto Ryuti em Helsinque. Chegavam sinais por intermédio da
embaixadora soviética em Estocolmo, Alexandra Kollontal, de que os
finlandeses aprestavam-se para abandonar a guerra quando, subitamente, em
26 de junho de 1944, em seguida a uma visita de Ribbentrop a Helsinque,
Ryuti declarou que a Finlândia jamais faria a paz, nem permitiria que
quaisquer negociações de armistício fossem encetadas com a URSS sem a
concordância do império alemão.65 Stalin reagiu determinando a imediata
aceleração das operações ofensivas no front da Karélia. Já então aprendera que
golpes firmes tornavam o inimigo mais tratável. A manobra funcionou, embora
a operação não tivesse sido tão bem-sucedida como ele esperava. Em 4 de
setembro de 1944, os finlandeses aceitaram as condições soviéticas para pôr um
fim na guerra, e um armistício foi assinado no dia 19 do mesmo mês.
Em agosto de 1944, Stalin recebera relatórios de que aviões Aliados estavam
aterrando em crescentes quantidades nos territórios ocupados pelos soviéticos,
e admoestou Voroshilov na Hungria, Susaikov na Romênia e Shatilov em
Varsóvia pela “complacência perigosa, credulidade desnecessária e falta de
vigilância que permitiam que elementos hostis aterrissassem para infiltrar
terroristas, sabotadores e agentes poloneses a serviço do governo polonês de
Londres”.66
Em 18 de outubro de 1944, teve ocasião de enviar um cabograma “Muito
Importante” ao marechal Tito, com uma cópia para o marechal Tolbukhin:

O senhor solicitou ao marechal Tolbukhin que retirasse as forças búlgaras da Sérvia e as deixasse
apenas na Macedônia. Além do mais, queixou-se a Tolbukhin do comportamento incorreto das tropas
búlgaras na divisão do butim tomado aos alemães. Sobre as duas questões, considero necessário
informar-lhe o seguinte:
1. As tropas búlgaras operam em território sérvio segundo o plano geral da assistência substancial às
tropas soviéticas, de acordo com o senhor e por sua solicitação, como estabelecido em seu telegrama
número 337 de 12.10.44. Enquanto um considerável efetivo alemão permanecer em território
iugoslavo, não teremos condições de retirar as tropas búlgaras da Sérvia.
2. Quanto ao butim, a lei da guerra é a de quem o toma e fica com ele.67

Para o comandante do terceiro front ucraniano, o cabograma de 4 de abril de


1945 recomendou que confiasse no socialista austríaco Karl Renner – eleito
chanceler naquele mês – e que deveria lhe dizer que as forças soviéticas na
Áustria ajudariam a implantação de um regime democrático no país. “Diga-lhe
que as tropas soviéticas não cruzaram a fronteira austríaca para ocupar
território, e sim para perseguir e expelir os ocupantes nazistas.”68
No dia da vitória na Europa, Beria trouxe um decreto a Stalin, que foi
assinado dois dias depois. Era dirigido aos comandantes dos 1º e 2º fronts
bielorrussos, aos 1º, 2º, 3º e 4º fronts ucranianos e aos chefes da segurança:

Para garantir a recepção organizada e a contenção dos ex-prisioneiros soviéticos de guerra e dos
cidadãos soviéticos liberados pelas forças aliadas no território da Alemanha Ocidental, e também para
a entrega de ex-prisioneiros de guerra e de cidadãos dos países Aliados liberados pelo Exército
Vermelho, o Supremo Alto-Comando determina:
Que os sovietes de guerra organizem campos na área de retaguarda para acomodar e reter ex-
prisioneiros de guerra e cidadãos soviéticos que estão sendo repatriados, alocando 10 mil pessoas para
cada acampamento. As necessidades são: 2º front bielorrusso – 15 campos; 1º front bielorrusso – 30;
1º front ucraniano – 30; 4º front ucraniano – 5; 2º front ucraniano – 10; e 3º front ucraniano – 10.
Alguns campos devem ser criados em território polonês.
Que a checagem de ex-prisioneiros de guerra e de cidadãos liberados seja executada da seguinte
maneira: os órgãos de contrainformação da Smersh deverão ficar encarregados dos militares, enquanto
comissões de averiguação da NKVD, da NKGB e da Smersh, sob a coordenação da NKVD,
verificarão os civis. A checagem não deverá durar mais que um ou dois meses.
A entrega de ex-prisioneiros Aliados de guerra e de cidadãos às comissões do comando aliado deverá
ser administrada pelos sovietes de guerra e por um representante do Sovnarkom da URSS.
11 de maio de 1945. 24h.69

Uma centena de campos? Stalin ficou imaginando quantos prisioneiros de


guerra soviéticos haviam sobrevivido, qual seria seu total, mas não era hora de
se pensar nisso naquela ocasião de triunfo. Ao folhear os papéis que assinara,
Stalin deteve-se num que ditara quase no final da guerra sobre os encontros
entre as forças aliadas e as soviéticas:

1. O oficial mais antigo [...] deve fazer contato com o oficial Aliado mais antigo e estabelecer com ele
a linha divisória. Nada sobre nossos planos e objetivos de batalha deve ser divulgado a quem quer que
seja.
2. Nenhuma iniciativa deve ser tomada para a organização de encontros de confraternização. As forças
Aliadas devem ser recebidas de maneira amistosa.70

Stalin já estava irritado com as notícias de uma enxurrada de confraternizações,


reuniões e festas. Zhukov e Vyshinsky tinham voado, a convite de Eisenhower,
para Frankfurt, e agora Zhukov passara um telegrama solicitando permissão de
Stalin para condecorar dez oficiais do Estado-maior de Eisenhower com a
Ordem da Bandeira Vermelha e outros dez com a medalha do Mérito
Combatente.71 Primeiro, queriam condecorar os americanos, pensou ele,
depois iam querer medalhas para eles mesmos. Já estavam comemorando, mas
as questões do pós-guerra ainda não estavam resolvidas. Ele pensava na
próxima Conferência de Potsdam, que iria discutir as difíceis questões da
ordem do mundo de pós-guerra.
Não procrastinaria, cumpriria a promessa feita em Yalta de entrar na guerra
contra o Japão dois ou três meses após o término da guerra na Europa.72 Em 28
de junho, assinou a ordem para a preparação da ofensiva. “Todos os
preparativos para as operações deverão ser executados com o maior sigilo. As
ordens deverão ser repassadas, pessoal e verbalmente, aos comandantes de
exército, sem quaisquer diretrizes escritas.”73
PARTE X
Clímax do culto

A pior tirania é a que age sob o manto


da legalidade e a bandeira da justiça.
Montesquieu
[50]
O preço da vitória

S talin tinha consciência de que a autoridade que desfrutara no país antes


da guerra e, é claro, no Comintern tinha agora adquirido estatura
mundial. Os líderes ocidentais, tanto nos encontros pessoais quanto na
extensa correspondência mantida, entoavam loas ao Supremo Comandante em
Chefe das forças armadas soviéticas. O novo presidente dos EUA, Harry
Truman, frisou numa carta pessoal que havia “demonstrado o talento de um
amante da paz, com o mais elevado nível de coragem, para derrotar as forças
maléficas do barbarismo, por mais fortes que fossem. Na oportunidade de
nossa vitória comum, saudamos o povo e o exército da União Soviética e sua
liderança esplêndida”.1 Churchill remeteu mensagem quase tão efusiva,
transmitida pelo rádio em 9 de maio por sua esposa, Clementine, augurando a
continuação da amizade em tempo de paz.2 O general de Gaulle, considerado
pomposo e arrogante por Stalin, disse em seu telegrama da vitória que Stalin
“fizera da URSS um dos principais elementos da luta contra os estados
opressores, e exatamente por causa disto a vitória viera. A Grande Rússia e o
senhor pessoalmente granjearam a gratidão de toda a Europa...”3
Congratulações semelhantes chegaram de todos os líderes mundiais.
Comparado com Churchill e com o semiparalítico Roosevelt, Stalin foi um
corpo estacionário durante a guerra. Afora seu primeiro e único voo para Teerã,
o encontro com Churchill e Roosevelt na Crimeia em 1945 e sua visita secreta
ao “front” em agosto de 1943, ele limitou-se a ir e vir do Kremlin para a dacha
próxima e restringiu o contato ao seu círculo fechado do Politburo e a alguns
comissários e chefes militares. Em breve, no entanto, estaria fazendo a última
viagem ao exterior de sua vida. Aos 65 anos de idade, era um homem exausto e
já estava planejando um longo repouso ao sol quando a guerra com o Japão
terminasse. No entanto, por meio do assessor especial do presidente dos EUA,
Harry Hopkins, com quem se encontrou em 26 de junho, ele propôs aos
líderes Aliados um encontro de cúpula em Berlim.
Truman e Churchill concordaram e fixaram a data para 15 de julho de
1945, quando então Truman já esperava conhecer o resultado dos testes com a
bomba atômica, sobre a qual Stalin nada sabia. (A União Soviética fazia
também experiências sob a supervisão de Beria. Em março, Stalin perguntara
ao chefe da administração política do exército, coronel-general F.I. Golikov, se
os físicos estavam sendo dispensados do exército para trabalhar no instituto de
pesquisas de D.V. Skobeltsyn e outros. Beria já reportara que diversos
laboratórios tinham sido instalados nos gulags pela NKVD, onde prisioneiros
políticos trabalhavam como cientistas.) Em Potsdam, quando Truman
informou a Stalin sobre o teste bem-sucedido no Novo México, o líder
soviético não expressou qualquer sinal de interesse, como Gromyko, que estava
presente, atesta em suas memórias.4 Os Aliados não podiam imaginar que,
naquela mesma noite, Stalin passaria um telegrama a Beria para que acelerasse
o trabalho. Mas isto seria em 24 de julho em Potsdam. Enquanto isto, Stalin se
preparava para a viagem.
Rejeitou decididamente a ideia de voar para a cidade alemã num Dakota.
Citando especialistas, Beria tentou convencê-lo de que o voo seria seguro, mas
Stalin foi inflexível na negativa. Ainda lembrava bem dos incômodos da viagem
aérea para Teerã, quando o avião atravessou diversas áreas de turbulência ao
sobrevoar as montanhas. Ele agarrara-se aos braços da cadeira com uma
expressão de horror estampada no rosto e nem olhava para Voroshilov, sentado
de frente, para ver se o marechal notava o estado do chefe. Quando olhou,
percebeu que o marechal experimentava o mesmo desconforto. Ficou então
decidida a ida a Berlim de trem. Beria escolheu o itinerário, mais para o norte
que o normal, e organizou uma composição especial, com vagões blindados,
guardas e escoltas especiais.
Aquela viagem, que foi planejada com mais meticulosidade que muitas
operações militares, merece ser descrita com algum detalhe. Dezenas de
milhares de pessoas trabalharam nela. Em 2 de julho, duas semanas antes da
partida, Beria enviou a Stalin o detalhamento das providências que tomara:

A NKVD da URSS reporta que os preparativos estão completados para a recepção e acomodação da
conferência vindoura. Sessenta e duas vilas foram aprontadas (10.000m2, mais uma casa afastada de
dois andares para o Camarada Stalin, com 400m2 de área construída: 15 cômodos, uma varanda
externa e água-furtada). A casa está completamente equipada. Possui um centro de comunicações.
Foram feitos estoques de carne de caça, aves, guloseimas, mantimentos e bebidas. Três depósitos
suplementares de suprimento foram criados a sete quilômetros de Potsdam, com fazendas de gado e
aviários e reservas de vegetais; duas padarias estão funcionando. Todas as equipes são de Moscou. Dois
aeródromos especiais foram preparados. Sete regimentos de tropas da NKVD e 1.500 militares
operacionais proverão a segurança, que será feita em três círculos concêntricos. O chefe da segurança
na residência será o tenente-general Vlasik. Kruglov será o encarregado da segurança na conferência.
Uma composição ferroviária especial foi montada. O percurso é de 1.923 quilômetros (1.095 na
URSS, 594 na Polônia e 234 na Alemanha). A segurança ao longo do itinerário será proporcionada
por 17 mil homens da NKVD e 1.515 operacionais. Entre seis e 15 homens estarão postados a cada
quilômetro de trilhos. Oito trens blindados com tropas da NKVD patrulharão a extensão total do
caminho ferroviário.
Uma casa com dois pavimentos e 11 cômodos foi preparada para Molotov. Existem 55 vilas, inclusive
oito casas separadas, para a delegação.5

Tudo isto estava, de fato, muito distante do “ascetismo” de Stalin dos anos
1920. Quanto mais idoso ficava, mais temia por sua vida. Com a aproximação
da viagem, passou a consultar Beria mais amiúde, chegando a algumas vezes
por dia – sobre o sigilo a respeito da data da partida, a espessura da blindagem
dos vagões, a rota através da Polônia.
Em Potsdam, ao trocar cumprimentos com Truman, ao meio-dia de 17 de
julho, Stalin disse: “Por favor, desculpe-me pelo atraso de um dia. Fiquei
ocupado com as conversações com os chineses. Queria voar, mas os médicos
proibiram.” Truman replicou: “Entendo perfeitamente. Tenho muito prazer em
conhecer o Generalíssimo Stalin.”*
Stalin atrasou simplesmente para acentuar sua própria importância. Não foi
a última vez que utilizou tal artifício, como William Hayter, um dos membros
da delegação inglesa e mais tarde embaixador em Moscou, recordou.6
Naquela noite, os Três Grandes começaram a dividir os frutos de sua
vitória, trabalho mais fácil que o de preservar a aliança, que cada um deles sabia
viver seus últimos dias.

A partir de 17 de julho e durante duas semanas, os Três Grandes participaram


de 13 sessões, enquanto seus ministros do exterior se encontraram 12 vezes.
Nestes encontros, eles resolveram o futuro da Alemanha, discutiram sobre o
destino dos países da Europa Oriental, buscaram uma solução para a “questão
polonesa”, dividiram a esquadra alemã, fixaram o valor das reparações,
concordaram em levar a julgamento os criminosos de guerra, avaliaram a
duração da guerra contra o Japão e debateram uma série de outras matérias.
Por estar na Alemanha, Stalin deve ter se lembrado de Ernst älmann,
líder do partido comunista alemão antes da guerra. No final de 1939, Molotov
reportou que o enviado soviético em Berlim, Kobulov, relatou que a esposa de
älmann, ao ouvir a respeito do tratado de amizade, fora à embaixada
solicitar auxílio para tirar o marido de uma prisão nazista. Segundo Kobulov,
ela não tinha meios para se sustentar e estava, literalmente, passando fome.
Kobulov dissera-lhe que nada podia fazer. Em lágrimas, ela replicara: “Será que
todo o trabalho que ele fez pelo comunismo não valeu alguma coisa?” Kobulov
reportou também que ela perguntara se deveria ou não apelar para Goering.
“Disse-lhe que aquilo era problema dela. Foi embora muito deprimida.”7
älmann conseguiu escrever muitas cartas da prisão pedindo ajuda a
Moscou, mas Stalin não lhes deu atenção. Não desejava pedir favores a Hitler,
embora pudesse ajudar älmann e outros com facilidade, considerando-se que
entregara um grupo de alemães antifascistas por solicitação do Führer. Em
maio de 1945, contudo, Beria reportou que tropas da NKVD haviam
encontrado Rosa älmann, que escapara de um campo de concentração,
escondida na cidade de Fürstenberg, e também que a filha de älmann, Irma
Fester, fora liberada por forças do Exército Vermelho do campo de
concentração de Brandenburg. Rosa älmann disse que a última vez que vira
o marido fora em 27 de fevereiro de 1944, na presença da Gestapo, na prisão
de Beuthen. Ele lhe dissera que vinha sendo constantemente torturado para
que abjurasse seus pontos de vista.8 Stalin determinou que Poskrebyshev
tomasse as devidas providências a fim de que fosse dada assistência à família de
älmann.
Casos assim emergiam, então, diariamente.** Por exemplo, Serov reportou
que a 1ª Divisão de Infantaria polonesa liberara o ex-primeiro-ministro da
república espanhola, Francisco Caballero, do campo de concentração de
Oranienburg, onde foi encontrado em precárias condições físicas e desejoso de
que sua família soubesse que estava vivo.9 Kruglov informou que o rei Miguel
da Romênia ajudara seu primo, major Hohenzollern, e o filho do industrial
alemão Krupp, Oberleutnant von Bolen und Holbach, a escaparem do
cativeiro.10 Stalin deixou estes casos com Molotov e Beria: ele tinha questões
mais importantes com que se preocupar.
A guerra, achava ele, o transformara numa figura militar e, dali em diante,
seria sempre visto envergando o uniforme de marechal. Na verdade, o
uniforme fora objeto de grandes elucubrações. Três jovens e imponentes
oficiais, trajando uniformes com detalhes dourados e com calças exibindo listra
lateral também dourada, foram trazidos por A.V. Khrulev, chefe da
administração da retaguarda do Exército Vermelho, para desfilar diante de
Stalin.
“O que é isto?” perguntou Stalin.
“Três exemplos de uniformes para o Generalíssimo da União Soviética”,
replicou Khrulev.
Stalin deu uma olhada e ordenou que todos se escafedessem de seu
escritório. Será que queriam que ele parecesse um porteiro de restaurante de
luxo ou um palhaço? Por outro lado, Khrulev fizera um bom trabalho na
concepção da Ordem da Vitória. O primeiro esboço, que Stalin vira em 25 de
outubro de 1943, tinha silhuetas dele e de Lenin no centro. Não gostou da
ideia de milhares daquelas medalhas nas quais ele só podia ser identificado pelo
grosso nariz e pelo bigode. Sugeriu que a condecoração contivesse a muralha do
Kremlin e a torre Spasskaya, sobre um fundo azul-claro, fosse confeccionada
em platina e exibisse boa quantidade de diamantes.
Enquanto ouvia as traduções dos pronunciamentos em Potsdam, mantinha
o hábito de ficar rabiscando com os lápis coloridos distribuídos ou com a
caneta-tinteiro. Por vezes, repetia sem parar a mesma palavra, como se buscasse
seu significado intrínseco: “reparações”, “contribuições”, “partes, parcelas de
reparações”. Ou, como Beaverbrook observou, desenhava um grande número
de lobos e coloria o fundo com lápis vermelho.11
Em 26 de julho, foi anunciado que os conservadores tinham perdido a
eleição na Inglaterra. Churchill foi substituído por Clement Attlee. Stalin
dissera a Truman em 17 de julho que “o povo inglês não esqueceria o
vencedor”,12 e, agora, não podia entender o que ocorrera. As “democracias
apodrecidas” pareciam solapar-se por si mesmas. Esse “jogo da carniça” era
impossível no sistema soviético. Ele permaneceria no poder enquanto sua saúde
permitisse. Da mesma forma que o “Rei-Sol” francês, Stalin há muito se
identificara com o estado. Como presidente do Soviete dos Comissariados do
Povo, estava acostumado a falar em nome deste povo. Quanto mais majestoso
o estado, mais soberbo o seu governante. A guerra colocara a URSS na mais
alta posição e, para Stalin, significava que ele também atingira o píncaro. Nos
primeiros meses depois da guerra, começou a atingir o apogeu de sua fama
mundial, de seu poder e de seu culto sagrado.
Ele percebeu os resultados da vitória não apenas pela destruição do fascismo
e pela transformação da URSS num dos estados mais influentes. Sentiu
também os primeiros tremores na aliança antifascista que logo demoliria o
edifício até suas fundações. Mas nem ele poderia imaginar a rapidez com que
aquilo iria acontecer. Só os olhos mais perspicazes perceberiam que os Aliados
na mesa em Cecilienhof eram, na realidade, tanto amigos quanto inimigos.
Stalin não acreditou na observação de Truman, quando se conheceram, de que
ele, Truman, desejava ser “amigo do Generalíssimo Stalin”. Sentiu isso em
especial durante a discussão sobre as reparações. Os americanos abandonaram a
posição assumida em Yalta e se aliaram à Inglaterra, a qual tentava uma solução
altamente desvantajosa para a URSS. Uma vasta área da URSS fora ocupada e
muitas instalações industriais tinham sido destruídas. A Inglaterra e os EUA
não haviam sofrido nada semelhante. Stalin sublinhou que a URSS, como a
Polônia e a Iugoslávia, tinha não só o direito político mas o direito moral à
compensação de tais perdas. Americanos e ingleses, no entanto, fizeram
ouvidos de mercador aos pleitos de Stalin. Apenas na décima terceira e última
sessão, Stalin cedeu e aceitou as condições desfavoráveis oferecidas, tendo
corrido o risco de receber bem menos. Todavia, vingou-se na “questão
polonesa”, notavelmente ao fazer da linha Oder-Neisse a fronteira. Na verdade,
empurrou a Polônia para oeste, criando, assim, um poderoso estado eslavo na
fronteira da Alemanha.
O fato de o presidente e o primeiro-ministro esforçarem-se por discutir a
Europa Oriental, enquanto nada falavam sobre a Ocidental, deu a Stalin
justificados motivos de preocupação. Quando ele levantou a questão do regime
fascista na Espanha, só encontrou incompreensão. Os Aliados ocidentais se
inquietavam com a posição da Bulgária e da Romênia, mas não viam nada de
errado na ajuda a um dos lados da guerra civil grega que irrompera. Por vezes,
Stalin sentia que não tratava com aliados, mas com antigos rivais que queriam
um pedaço maior da torta que todos tinham ajudado a confeitar. E não estava
errado. À proporção que os problemas da guerra diminuíam, os políticos iam
ocupando o palco principal, e política é um jogo hipócrita e impiedoso. No
cenário político, as posições ocupadas pelos parceiros eram muito díspares para
dar o tipo de resultado que fora alcançado, por exemplo, em Yalta. Naquela
ocasião, a guerra constituía um perigo comum, e estratégias comuns uniram os
Aliados. Tão logo tais objetivos foram atingidos, os interesses políticos
afloraram de novo. Por mais especializados que fossem os intérpretes em
Potsdam, não foram capazes de fazer os líderes falarem a mesma linguagem
política, o idioma dos Aliados.
De modo geral, contudo, Stalin ficou satisfeito com os resultados da
conferência, como também ingleses e americanos. Foi ainda possível chegar, no
verão de 1945, àquilo que parecia bastante impossível havia apenas dois anos.
Os Três Grandes lograram concordar com a desmilitarização da Alemanha e
em várias outras questões importantes. Truman insistiu para que a URSS
expressasse publicamente sua intenção de declarar guerra ao Japão, o que Stalin
fez de forma adequada.
Na véspera da campanha soviética contra os nipônicos, Stalin ordenou que
Vasilievsky, comandante das forças soviéticas no Extremo Oriente, não só
libertasse a metade sul da ilha Sakalina e as ilhas Kurilas, como também
ocupasse metade da ilha de Hokkaido, ao norte de uma linha entre as cidades
de Kusiro e Rumoi, desdobrando duas divisões de infantaria, uma ala de caças
e uma de bombardeiros. Quando as tropas soviéticas atingiram a parte
meridional da ilha Sakalina, em 23 de agosto de 1945, Stalin ordenou que o
87º Corpo de Infantaria embarcasse para um posterior desembarque em
Hokkaido.13 A ordem ainda não tinha sido cumprida quando, no dia 25, o sul
da Sakalina foi libertado. Stalin fez uma pausa: o que ganharia com o
desembarque? Provavelmente desgastaria as já deterioradas relações com os
Aliados. Cancelou a ordem de invasão de Hokkaido. O chefe do estado-maior
das forças do Extremo Oriente, general S.P. Ivanov, repassou suas instruções:
“Para evitar conflitos e mal-entendidos com nossos aliados, qualquer emprego
de navios ou aviões na direção de Hokkaido está terminantemente proibido.”14
Tudo isto, no entanto, teria lugar diversas semanas mais tarde.
Na sessão de encerramento da Conferência de Potsdam, ocorrida na noite
de 1º de agosto com a presença dos chefes de delegação, as palavras finais de
Stalin foram: “Creio que podemos considerar a conferência um sucesso.”
Truman fechou a conferência manifestando a esperança de um próximo
encontro para breve. “Se Deus quiser”, respondeu Stalin.15
Para o povo soviético, a vitória sobre o fascismo deu frutos amargos, pois
consolidou ainda mais o papel de Stalin como árbitro messiânico infalível do
seu destino. A vitória acabou transformando-o em verdadeiro deus. Tendo
defendido a liberdade contra o nazismo, o povo soviético teria que esperar
décadas para ficar livre do stalinismo. Como seus antepassados depois da
derrota de Napoleão, as pessoas esperavam por melhoras em suas vidas. O
triunfo, conseguido à custa de milhões de vidas, fez com que nascessem
esperanças vagas. O povo queria viver sem medo e sem ser espicaçado. Se bem
que continuasse a louvar Stalin, a exaltá-lo e glorificá-lo, acreditava que não
haveria mais terror, não mais campanhas sem fim, não mais a escassez
constante em termos de necessidades elementares, que se tornara a grande
calamidade da vida soviética.
Não obstante, a vitória convenceu Stalin de que o estado soviético e suas
instituições eram inabaláveis, de que o sistema soviético era decididamente
viável e de que suas políticas doméstica e externa eram corretas. Cedo deixou
claro que não haveria mudanças na vida interna da nação. O povo deveria
trabalhar para reconstruir a devastada economia do país segundo regras ditadas
por Stalin. Seu discurso aos votantes nas eleições de 10 de fevereiro de 1946
para o Soviete Supremo não contém uma só palavra sobre democracia, vontade
do povo ou participação do cidadão comum nos negócios de estado. Foi um
pronunciamento só com as antigas fórmulas para que o povo confiasse em que
o partido formularia a política acertada, e, praticamente, um alerta para que
todos votassem.16
A máquina burocrática começou a funcionar a todo o pano, produzindo
um regulamento do partido atrás do outro. Se, antes da guerra, o sistema
stalinista ia a passos largos, depois da guerra, não só se recuperou como
aumentou o ritmo. A linha de ação então adotada por Stalin foi a da burocracia
total. Muitas repartições começaram a pôr galões e dragonas no ombro de seus
funcionários, sendo o setor ferroviário o primeiro a fazê-lo. Novos órgãos
foram criados cuja única função era verificar se as ordens eram cumpridas. Para
garantir que os fazendeiros coletivos permanecessem fixos, seus passaportes
internos foram retirados. Os exílios e as deportações continuaram até o final
dos anos 1940, e a organização de Beria jamais ficou ociosa.
Os cientistas sociais acabaram se transformando em comentaristas sem
ideias próprias dos “grandes” dogmas, enquanto, mais uma vez, eram
relançados os debilitantes e entorpecentes rituais de glorificação do líder. De
novo, tornou-se extremamente perigoso falar com franqueza até nos círculos
mais íntimos. O policiamento intelectual de Zhdanov matou a liberdade de
pensamento. O regime burocrático reforçado logo resultou na indiferença e na
apatia, no desejo de apenas cumprir ordens. Alastrou-se uma degradação moral
que se expressou na personalidade dividida soviética de dizer uma coisa e fazer
outra. O partido e o estado transformaram-se em sombras um do outro. A
ninguém era permitido ter opinião que diferisse do ponto de vista oficial.
Malgrado os slogans igualitários do socialismo, uma elite burocrática começou
a emergir.
Stalin utilizou a vitória, consciente e resolutamente, para preservar o
sistema. A fim de robustecer seu já ilimitado poder, demitiu regularmente
secretários do partido, comissários, marechais ou outros funcionários,
acusando-os de falta de espírito partidário, de abuso do poder, de não
cumprimento de ordens superiores ou de negligência para com os interesses do
povo. Aos olhos deste povo, Stalin já era o “bom czar”, e tais atos só elevaram
ainda mais sua autoridade. Transformou-se no salvador, no arquiteto da grande
vitória, no líder guerreiro sem igual, e uma fé tão cega resultou no
enfraquecimento ainda maior de um povo de há muito privado da verdade e da
justiça. Ainda assim, as pessoas julgaram que o triunfo justificara o socialismo
e, a despeito dos obstáculos e das agruras, das mentiras e dos crimes,
conservaram sua confiança num futuro melhor.
Em tempo inacreditavelmente curto, o potencial econômico do país
ressurgiu das cinzas da guerra. Quando, no final de 1945, Stalin tomou
conhecimento da extensão do dano econômico, perguntou a Voznesensky se
não se tratava de exagero. O economista respondeu que os números eram até
subestimados e que ainda era cedo para se fazer uma avaliação acurada. Em 21
de maio, Stalin dissera aos oficiais dos altos escalões que as primeiras tropas a
serem desmobilizadas seriam as de defesa antiaérea e de cavalaria, enquanto as
unidades blindadas e a esquadra não seriam afetadas. De 40 a 60% das
unidades de infantaria seriam extintas, exceto as forças do Extremo Oriente e
os comandos transbaikal e transcaucasiano. Para cada soldado desmobilizado
deveriam ser vendidos bens capturados a preços baixos e pago um soldo de
acordo com o tempo de serviço.17 Stalin ficou imaginando quando a nova força
de trabalho poderia pôr de novo a economia de pé.
O povo vivia numa situação desesperadora. Chegavam relatórios de Beria e
de outros funcionários do ministério do interior sobre fome nas províncias.18
Notícias vindas da província de Chita davam conta de que as pessoas estavam
comendo animais mortos e cascas de árvores caídas, e correu uma história de
uma pobre camponesa e seus filhos que mataram a irmã menor para se
alimentarem com seu cadáver.19 Beria rapidamente garantiu ao seu chefe que
“uma certa quantidade de farinha de trigo fora reservada antes da nova safra.
Eles terão que ser pacientes”.
Voznesensky, que era candidato a membro do Politburo, tinha consciência
mais profunda que qualquer integrante daquele órgão sobre a enormidade da
tarefa. Stalin sempre tivera sentimentos ambivalentes a seu respeito,
reconhecendo que ele era, sem sombra de dúvida, o mais capaz do entourage,
mas considerando inaceitáveis sua independência e sua propensão a expressar
julgamentos bruscos. Apesar disso, no pleno de fevereiro de 1947, surpreendeu
a todos fazendo de Voznesensky membro pleno do Politburo.
O sumário de Voznesensky e o primeiro relatório compilado pela Comissão
Estatal Extraordinária sobre os danos causados pelos nazistas enumeraram
1.710 cidades e municípios destruídos, 70 mil vilas e aldeias queimadas
totalmente – embora muitas delas por mãos soviéticas –, 32 mil explodidas ou
postas fora de serviço, 65 mil quilômetros de trilhos ferroviários destruídos,
cerca de 100 mil fazendas coletivas e estatais devastadas, juntamente com
milhares de máquinas agrícolas e estações de tratores. Vinte e cinco milhões de
pessoas ficaram sem teto e estavam então morando em abrigos, celeiros e
estábulos. O custo direto da invasão era orçado aproximadamente em 700
bilhões de rublos, a preços pré-guerra. Na realidade, o país perdera 30% de sua
riqueza.20 O padrão de vida era o mais baixo que se pode imaginar.
Stalin já era de opinião que só mantendo o estado de espírito do povo em
permanente tensão e mobilização, algo como uma guerra civil, seria possível
vencer as dificuldades. Um relatório de Khruschev seguiu linhas semelhantes.
Em 31 de dezembro de 1945, ele reportou que os nacionalistas ucranianos do
oeste da república estavam em grande atividade ligada às eleições vindouras
para o Soviete Supremo da URSS e solicitou reforços para os distritos militares
dos Cárpatos e de Lvov, o que Stalin prontamente aprovou.21 Bulganin
submeteu a proposta de formação de batalhões de assalto para lidar com a
“bandidagem” na Letônia, forças a serem pagas, diga-se de passagem, com
recursos locais.22 Merkulov e Kruglov relataram sobre a “atividade fortalecida
da clandestinidade nacionalista antissoviética” na Lituânia, envolvendo
sequestro e assassinato de muitos funcionários soviéticos encarregados das
eleições.23 O derramamento de sangue na região báltica estava fadado a durar
diversos anos. Além destes “inimigos”, Stalin estava convicto de que muitos
soldados haviam retornado do front com ideias revolucionárias.
Ficava patente do relatório de Voznesensky e de outros preparados por
militares que as perdas soviéticas só podiam ser estimadas aproximadamente.
Ao contrário dos alemães, que mantinham dados precisos sobre todas as suas
ações, as estatísticas soviéticas, em particular nos estágios iniciais da guerra, não
foram adequadamente registradas. De acordo com Voznesensky, não seria
possível estabelecer com exatidão, por muitos meses, o custo em vidas
humanas, porém, com os dados que possuía, indicou que ele ultrapassava 15
milhões. O Estado-maior calculou o número de mortos e desaparecidos em
ação em torno de 7,5 milhões e foi esta quantidade que Stalin resolveu aceitar
em 1946, por não desejar falar de um custo mais alto e, assim, macular sua
imagem de líder guerreiro.
Qual foi, então, o custo real? Na sua carta de 1956 ao primeiro-ministro
sueco T. Erlander, Khruschev menciona pela primeira vez um número maior
que 20 milhões. Qual a base para tal cálculo que agora se tornou a versão
corrente? A única coisa certa na declaração de Khruschev foi a expressão “maior
que”. O cômputo total só agora está sendo trabalhado.
Meus próprios cálculos, baseados que são em estatísticas dos arquivos
militares, inclusive aquelas sobre prisioneiros de guerra, na análise das listas e
dados do exército sobre perdas nas operações importantes, e levando em
consideração o trabalho de pesquisadores como I.Ya. Vyrodov, Yu.Ye.
Vlasievich, A.Ya. Kvasha e B.V. Sokolov, levaram-me a um número de perdas
de militares em serviço, partisans, guerrilheiros subterrâneos e civis da ordem
de 26 a 27 milhões, dos quais algo em torno de 10 milhões caíram nos campos
de batalha ou morreram no cativeiro. As piores baixas ocorreram entre os
primeiros, em 1941, sobretudo no corpo de oficiais, quando cerca de 3 milhões
de homens foram feitos prisioneiros. As perdas em 1942 foram apenas
ligeiramente menores.
A categoria mais nebulosa e politicamente ambígua foi a dos
“desaparecidos”. Nela estão incluídos os que caíram em combate, mas não
constaram das listas oficiais ou das informações sobre baixas, e os que foram
capturados ou se juntaram aos partisans e foram depois reunidos. Alguns deles
sucumbiram à tentação e se alistaram no Exército Russo de Liberação, de
Vlasov, ou na polícia alemã local. No entanto, formaram uma minoria. O
destino da grande maioria dos que desapareceram em ação foi profundamente
trágico: ou morreram de forma desconhecida em combate, ou em campos de
concentração, ou então caíram nas teias das incontáveis “checagens” dos
campos da NKVD e por lá ficaram por muitos e longos anos.
Estimo que a comparação entre perdas alemãs e soviéticas é de 3,2 para 1,
em favor dos alemães. É claro que não se deve perder de vista a bárbara política
alemã de exterminação sistemática da população civil, especialmente eslavos,
judeus, ciganos e outros grupos étnicos. É uma das razões das astronômicas
quantidades soviéticas. As perdas mais significativas ocorreram, com efeito,
entre a população civil, porém, mesmo desconsiderando o início catastrófico da
guerra, as baixas militares soviéticas foram um pouco maiores que as alemãs, e
isto se deveu, pelo menos em parte, à insistência de Stalin em que os objetivos
fossem alcançados “independentemente das perdas”. O socialismo stalinista
sacrifical demandava uma vitória também sacrifical. Tal fato indiscutível
sublinha a grande paciência e tolerância do povo soviético, mas é também
testemunho do fato de que o povo soviético permitiu que Stalin se
transformasse na figura que foi. O papel das massas neste processo não deve ser
subestimado.

Agora que a guerra estava ganha, Stalin podia pensar em relaxar no ar puro do
Cáucaso, e Beria pôs mãos à obra para os preparativos, embora eles fossem bem
menos complicados que os de levar seu líder a Potsdam. O chefe da segurança
em Krasnodar reportou para Merkulov que o elemento antissoviético em Sochi
estava sob vigilância e seria preso na ocasião oportuna. As matas entre os rios
Golovinka e Psou eram vasculhadas. Cento e quarenta e oito postos de
segurança tinham sido estabelecidos entre a estação ferroviária e a dacha, e todo
o itinerário estava protegido. Um trem de força máxima estava em reserva.24
Mesmo em seu país, o “pai do povo” temia atentados contra sua vida.
Parte da jornada foi feita de carro. Como sempre, quando entrava em férias,
Stalin era acompanhado por Vlasik, Poskrebyshev, Istomina, inúmeros
serventes, guardas e outros empregados. Foi de fato depois dessa viagem que ele
ordenou a construção de uma estrada para Simferopol. Ao passar por Orel,
Kursk e outras cidades e vilas, a comitiva parava para contatos locais. O
sacrifício por que as mulheres e crianças sobreviventes passavam era
indescritível. Por todos os lados, as cidades estavam em ruínas; mesmo assim,
quando as autoridades chegaram ao sul, Stalin foi informado de que novas
casas de verão para funcionários estatais estavam sendo construídas segundo
ordens urgentes das agências de Beria.
Stalin logo se cansou do contato próximo com as massas; chegava de hurras
leais, de lágrimas de alegria das mulheres, de brados confiantes dos homens de
“Tudo acabou bem, Camarada Stalin!” e de olhares admirados de idosos e
crianças, perguntando se aquele era mesmo Stalin. Ademais, ele tinha
consciência de que era bem melhor para sua imagem acenar para as multidões a
partir do Mausoléu, ou sorrir para elas das telas dos cinemas, que tinha maior
efeito sua aparição diária em retratos, estátuas e bustos. Em vez disso, agora, as
pessoas olhavam para um homem de baixa estatura, tronco
desproporcionalmente curto, pernas e braços um tanto longos, barriga
pronunciada, cabelos ralos, rosto pálido e com sinais deixados pela varíola, e
dentes amarelados. Em Kursk, uma mulher mais atrevida chegou mesmo a
tocar na manga de sua túnica como para se certificar de que aquele era o
mesmo homem que conhecia por retratos. Para as perguntas curtas que ele
fazia, as pessoas respondiam com exclamações também curtas, expressando
embevecimento, adoração entranhada e esperança por um milagre. Não
esperavam que ele falasse, simplesmente banqueteavam-se olhando, incapazes
de acreditar que aquele era seu Líder. Stalin começou a perceber na expressão
das pessoas não só alegria e êxtase, mas também um certo e indisfarçável
desapontamento com a figura que viam. Sabedor de que era impossível para
qualquer deus terreno não causar desilusão pelo contato direto, Stalin decidiu
que não repetiria aquela prática insensata, e sim, dali por diante, sustentaria a
quimera da onipresença, tornando-se majestosamente distante do povo. As
pessoas tinham que continuar vendo nele o homem que erigira o socialismo,
destruíra todos os inimigos, derrotara o fascismo e que logo teria que
conclamar o povo para voltar à “grande construção do comunismo”. Aquele era
o sistema que ele edificara e que não podia prescindir de sua liderança. Os que
esperassem mudanças, aguardariam em vão. O sistema tinha que ser
fortalecido, o poder do estado, reforçado, e todos aqueles de que não precisasse
deveriam ser afastados. A grande vitória fora prova de que ele sempre estivera
certo.
Embora toda esta descrição pareça imaginária e muito fantasiosa, ela se
baseia na dedução lógica das evidências. As ações e decisões de Stalin indicam
que ele não desejou alterar nada que tivesse significação. As pessoas podiam e
deviam mudar, mas não a ordem que o elevara ao cume do poder. Estava
convencido de que o sistema que queria preservar chegara então, depois da
guerra, mais próximo daquele visualizado pelos fundadores do socialismo
científico. Tudo era planejado, programado, prescrito e determinado. Portanto,
ao se dispor a reconstruir o edifício do socialismo assolado pela guerra,
relançaria o slogan “Temos que alcançar e ultrapassar!”.
Stalin poderia razoavelmente julgar que, depois da guerra, o mundo se
encaminharia perceptivelmente para a esquerda. A luta antifascista unira as
massas, revigorara a democracia e fizera a reação bater em retirada. Os feitos
heroicos do povo soviético despertaram profunda e genuína simpatia pelo
Estado soviético. Existiam até mesmo emigrados brancos, bem como
intelectuais e ex-russos comuns que estavam ávidos para retornar. Stalin estava
especialmente interessado nos indícios partidos dos mencheviques georgianos
de Paris, muitos dos quais conhecia pessoalmente. Tão logo a guerra terminou,
enviou à capital francesa o chefe da propaganda do Comitê Central georgiano,
P.A. Shariya, e leu com atenção seu relatório quando chegou pelas mãos de
Beria e Merkulov.
Shariya reportou que os emigrados georgianos entregaram-lhe antigos
manuscritos, artefatos de ouro e prata, moedas raras e tesouros arqueológicos
para que fossem repatriados à Geórgia. Por instruções de Moscou, Shariya
encontrou-se com Noah Zhordaniya, Yevgeni Gegechkori, Iosif Gobechiya e
Spiridon Kediya – todos nomes que devem ter evocado em Stalin lembranças
de sua vida como revolucionário na clandestinidade, bem como o período duro
em que as repúblicas foram formadas depois da guerra civil. No começo da
reunião, Zhordanyia reafirmou seu ponto de vista de que não havia
democracia, liberdade de expressão e de imprensa, eleições livres e iniciativa
privada na URSS. Não obstante, declarou então – e foram palavras sublinhadas
por Stalin – que:

Stalin ganhou a guerra. Acho que ele é o maior dos homens. Seria uma idiotice negar sua grandeza por
causa de nossas diferenças políticas. A história ainda terá muito a relatar sobre tal grandeza.
Desvendará aspectos de suas atividades ainda desconhecidos por seus contemporâneos.25

Quanta verdade! Porém, como muitos ex-oponentes políticos manifestavam o


desejo de voltar para casa, Stalin pode ser muito bem perdoado por pensar que
o vitorioso está sempre certo.
Como a vitória fortificou substancialmente a posição mundial da União
Soviética e granjeou-lhe amigos e aliados, pareceu que o país adquirira um
segundo fôlego. Mas o deflagrar da Guerra Fria, sinalizado pelo discurso de
Churchill em Fulton, Missouri, em 5 de março de 1946, interrompeu o
processo. Os problemas internos também ficaram mais agudos. Em 1946,
grandes extensões do país foram atingidas por severa seca e intensificou-se a
escassez de bens essenciais. A Ucrânia Ocidental e os estados bálticos foram
palcos de embates, pouco noticiados, porém ferrenhos, entre forças do governo
e grupos de oposicionistas. A despeito de diversas ordens pessoais de Stalin para
a “aceleração do desbaratamento das gangues”, passaram-se alguns anos até que
fosse conseguido. Na Ucrânia Ocidental, ocorreram choques ocasionais de
grupos armados até 1951.
Os apertos econômicos se juntaram à tensão psicológica provocada pelo
adiamento para um futuro indefinido das expectativas de mudanças iminentes
e das esperanças por uma vida melhor. No seu discurso de eleição, no Teatro
Bolshoi, Stalin pediu ainda maiores sacrifícios e paciência. Isto também
representava parte do preço que o povo teria que pagar pela grande vitória.
Notas

* Esse novo título fora conferido a Stalin apenas recentemente, em 27 de junho de 1945.
** Mesmo buscando com muito interesse nos arquivos, nada achei sobre o destino de Raoul Wallenberg.
[51]
Cortina de segredos

S omente agora começamos a nos perguntar como um homem tão pouco


atraente em termos físicos e politicamente repelente como Stalin pôde
fazer toda uma nação amá-lo e transformar a tragédia experimentada
pelo país em triunfo pessoal, e por que milhões de pessoas fora do país o
adoravam.
É natural o desejo de separar a ideia de Stalin do socialismo e do povo, e, de
fato, muitos escritores soviéticos tentam agora fazê-lo. Comecei com intenção
semelhante, mas cheguei à conclusão de que era impossível a tentativa sem
distorcer a verdade histórica. Como avaliar os anos 1930 e 1940 imaginando
que o povo e o partido estivessem de alguma forma afastados do líder que
veneravam? Stalin conseguiu se transformar no próprio símbolo do socialismo
quando, na realidade, as conquistas positivas do povo soviético foram
concretizadas a despeito dele, e não graças a ele. Determinado em recorrer à
força para resolver os problemas econômicos, sociais e ideológicos, Stalin sabia
que era vital recrutar a opinião pública, caso desejasse permanecer no centro do
sistema. O aparato do sistema foi o meio que utilizou para a manipulação de
tal objetivo.
O ex-secretário do Comitê Central (e, por breve período, ministro do
Exterior) D.T. Shepilov contou-me que Stalin tinha o costume de convidar
figuras importantes dos estamentos científico e cultural para conversar e que
sempre aproveitava a oportunidade para fazer declarações ideológicas. Certa
noite, foi dito a Shepilov para telefonar para determinado número que era o do
secretário-geral.
“Camarada Shepilov”, ouviu ele, “você está com tempo? Poderia vir até aqui
de imediato?”

É
Shepilov quase não teve tempo para dizer “É claro”, antes que Stalin
desligasse. Imaginava para onde deveria ir quando o telefone tocou de novo e
lhe foi dito que um automóvel estava a caminho para buscá-lo. Logo depois,
era conduzido através de corredores silenciosos e intermináveis no Kremlin,
passando por seguranças a cada virada.
A conversa demorou mais de uma hora. Stalin começou com um
comentário vago sobre os novos tempos que requeriam nova economia. Os
líderes da indústria, disse ele, tinham nível muito baixo de conhecimento
econômico. Havia necessidade premente de um livro didático bom e popular
sobre economia do socialismo. Shepilov entendeu que lhe era solicitado que o
escrevesse com a ajuda de dois renomados economistas. De forma obviamente
ensaiada, Stalin recitou então as recomendações que o livro deveria conter: a
nacionalização dos meios de produção deveria ser incrementada, o
planejamento melhorado, o plano transformado em lei férrea, a eficiência do
trabalho aprimorada, e diversos outros aspectos de características similarmente
coercitivas.
Stalin falara. Um cronograma apertado foi imposto. Shepilov e seus colegas
foram “encarcerados” numa dacha fora de Moscou. No final de cada semana,
Suslov telefonava para perguntar como as coisas andavam e quando seria
possível ler o manuscrito. “O Camarada Stalin está esperando, não esqueça!”
Manter um estado de tensão permanente na mente pública foi um dos
métodos mais usados por Stalin. Um estado de “guerra civil” potencial ou,
melhor, uma luta permanente contra os “inimigos do povo”, “espiões”,
“céticos”, “cosmopolitas”, “degenerados”, “destruidores”, criava uma atmosfera
na qual sua prescrição de constante vigilância encontrava solo fértil. Ele
pressentiu que, depois da guerra, as pessoas, em especial as que constituíam a
intelligentsia, alimentavam indefinida expectativa por mudanças. Era como se a
guerra as tivesse liberado em parte. De acordo com Shepilov, Stalin, em
consequência, determinou que Zhdanov “desferisse um golpe contra todas as
obras que não apresentassem conteúdo ideológico. Houve marcante
afastamento dos princípios de classe na literatura criativa. Cheque uma ou duas
revistas. Especialmente em Leningrado”.
O Comitê Central expediu as devidas instruções para as revistas Zvezda e
Leningrad, e Zhdanov voou para a antiga capital. Lá, declarou que a questão
tinha sido levantada por Stalin no Comitê Central, “o qual vem
acompanhando o fato nas revistas, propôs que discutíssemos as deficiências nas
lideranças de tais revistas, participou dos debates e, incidentalmente,
proporcionou a base para a decisão”. Ao nomear os escritores cujas obras
encarava como “estranhas à literatura soviética”, Stalin estava levando a
sociedade pós-guerra de volta ao clima de suspeita e medo, e reativando a caça
às bruxas que grassara nos anos 1930.
Para ele, a ideia da luta de classes era uma regra primordial. Depois da
destruição dos capitalistas e dos proprietários de terra, ele descobriu outra
classe para aniquilar, a dos kulaks. Posteriormente, sem inimigos a enfrentar,
engendrou uma fórmula que garantiria a existência de tais inimigos. Sentado
no Kremlin já bem tarde da noite, na semana que antecedeu o sinistro pleno de
fevereiro-março de 1937, ele buscou a definição ou a argumentação que faria
da condição de luta dentro da sociedade uma característica permanente. As
incontáveis alterações e emendas na minuta do discurso mostram o quão
exaustivamente trabalhou naquilo. Como já vimos, o resultado ficou registrado
nas seguintes palavras:

Quanto mais avançarmos, quanto maior o sucesso, mais exasperados se tornarão os remanescentes das
classes exploradoras destruídas, mais cedo apelarão para formas extremadas de luta, mais difamarão o
estado soviético e mais recorrerão aos meios desesperados como solução última dos condenados...
Esmagaremos nossos inimigos no futuro, como o fazemos agora e o fizemos no passado.26

Malgrado ter obtido inquestionável obediência do povo, Stalin não sossegou.


Em janeiro de 1948, chamou seu ministro do interior, Kruglov, e ordenou que
formulasse “medidas concretas” para a construção de novos campos de
concentração e também de prisões com objetivos especiais. Detectara quase
imperceptíveis sinais de descontentamento, de tentativa de cruzar certos
limites, quando alguns escritores permaneceram silenciosos em protesto contra
a sufocação de seu mando. “Submeta minutas de decretos em fevereiro”, disse a
Kruglov. “Precisamos de condições especiais para conter os trotskystas,
mencheviques, SR, anarquistas e brancos.” “Isto será feito, Camarada Stalin,
será feito”, garantiu-lhe Kruglov.
Stalin estaria realmente pensando, em 1948, em trotskystas e
mencheviques, ou será que neotrotskystas e neomencheviques povoavam então
seus pensamentos? Fosse como fosse, Kruglov agiu prontamente e, em meados
de fevereiro, submeteu sua proposta de decreto estipulando o encarceramento
de “trotskystas, terroristas, mencheviques, SR, anarquistas, nacionalistas e
brancos” em dezenas de novos campos e prisões em Kolyma, Norilsk, na
República Autônoma de Komi, Yelaburg, Karaganda e em outros locais. Além
do mais, “métodos chekistas” deveriam ser empregados nos condenados a fim
de desvendar inimigos semelhantes ainda à solta. Períodos de isolamento e
outras punições não deveriam ser reduzidos e, “quando necessário”, a libertação
de prisioneiros deveria ser adiada, em conformidade retroativa com a lei.27
Como qualquer absoluto, a luta de classes, também um absoluto, era um
conceito destrutivo que pisoteava os melhores valores socialistas – justiça social,
humanismo, liberdade do indivíduo. O absolutismo stalinista era uma
degeneração. Trotsky estava certo quando previu que Stalin lideraria o terror
reacionário. Da mesma forma, o pensador russo Dmitri Merezhkovsky
escreveu, em 1921:

Se a luta de classes é boa ou má, nobre ou desprezível, nós, seres viventes, que tomamos parte nessa
luta, seja como carrascos seja como vítimas, sabemos alguma coisa sobre ela de que Marx jamais teve
conhecimento e com que nenhum dos sábios da democracia social jamais sonhou. Para eles, a luta de
classes não passa de uma ideia em suas mentes, enquanto para nós significa sangue e ossos;
derramamos nosso sangue e quebramos nossos ossos em função dela.28

Stalin, de fato, fez tudo o que era possível para transformar a ideia da luta de
classes em força dominante na política, ideologia, cultura e na vida comum.
Era como se não pudesse descansar caso não ouvisse as convulsões das vítimas
de tal ideia. Depois da guerra, quando o mundo deu sensível virada para a
esquerda, a impressão foi a de que a história justificara Stalin. Muitos acharam
que o arado de ferro do socialismo ia começar de novo a revolver o solo. As
pessoas não pensavam ainda globalmente, tampouco estavam conscientes por
completo da espada de Dâmocles nuclear suspensa sobre suas cabeças.
Os primeiros discursos pós-guerra de Stalin foram sobre a recuperação da
economia, como sempre fazendo da indústria pesada a principal entre as
prioridades, e sobre a retomada da agricultura, cuja condição era extremamente
precária. A safra do primeiro ano depois da guerra foi ruim. A interrupção da
importação de grãos dos EUA, acoplada com a baixa produção da parte
europeia do país, criou uma situação crítica. A abolição dos cartões de
racionamento foi adiada até o outono de 1947. As safras também não tinham
sido boas em 1943, mas, naquela ocasião, os americanos abasteciam o front, ao
passo que a população civil, como sempre, aguentava estoicamente o sacrifício.
Em abril de 1944, Beria mostrou a Stalin um relatório de oito páginas sobre a
situação em Chita, Cazaquistão. O comissário do interior daquela república,
Bogdanov, declarou que a má colheita de 1943 causara dificuldades sérias:
milhares de pessoas estavam com os abdomens inchados de fome e muitas
morriam, particularmente os exilados políticos. O relato de Bogdanov
descreveu histórias de suicídios, de camponeses se alimentando de animais
mortos e lixo, comendo gatos e cães, e até mesmo de camponeses de uma
fazenda coletiva esquartejando um cavalo morto para dividir entre eles algo
para comer.29 Apesar disto, naquele ano, 1.300 quilos de cereais por hectare
foram coletados pelo estado. Nem o rádio nem a imprensa escrita
mencionavam a fome, e entre a pilha de documentos que consultei, não existe
um só que indique qualquer comentário de Stalin sobre atitude construtiva em
relação às agruras enfrentadas pelo país.
O secretário-geral, aparentemente, não mantinha um diário e era cuidadoso
com o que escrevia. Muitos documentos foram destruídos por ordens suas,30
como, por exemplo, nas oportunidades em que relatórios foram feitos sobre a
execução de ordens que expediu à NKVD. Por outro lado, restaram muitos
documentos no arquivo pessoal de Stalin. Existe a cópia de um deles, datado de
1923 e intitulado “Detalhes Biográficos de I.V. Stalin”, localizado no
Comissariado das Nacionalidades. Não há indicações sobre o autor e o objetivo
do documento, mas parece provável que foi preparado sob a orientação de
Stalin.
A pasta oferece um relato minucioso dos “serviços revolucionários” de Stalin
antes da Revolução de Outubro de 1917:

Durante os dias de outubro, I.V. Stalin foi um de um grupo de cinco (um coletivo) cuja tarefa era
proporcionar liderança política ao levante. [...] Da mesma forma que seu trabalho pré-revolucionário,
a obra revolucionária atual de Stalin é de enorme importância. Distinguindo-se por sua incansável
energia, mente excepcional e privilegiada e determinação implacável, o Camarada Stalin é uma das
molas principais, despercebidas e realmente de aço da revolução, a qual, com sua força invencível, está
transformando a revolução russa num Outubro de âmbito mundial. Antigo seguidor de Lenin, ele
absorveu melhor do que ninguém os métodos e ideias do líder sobre a atividade prática.
Graças a isto, ele hoje secunda brilhantemente Lenin na esfera não só da atividade partidária como
também na construção do Estado.31

Seria muito improvável que um documento destes fosse escrito enquanto Lenin
vivia. Quem foi o autor? O que tem a ver “a mola realmente de aço da
revolução” com “detalhes biográficos”? Será que Stalin, percebendo que Lenin
não voltaria a empunhar o leme político, já se preparava em 1923 para assumir
o poder?
A.A. Yepishev, que foi vice-ministro da segurança estatal, disse-me que
Stalin mantinha um caderno de exercícios escolares, com capa de oleado preto,
no qual fazia anotações ocasionais e que, por determinado período de tempo,
guardou cartas de Zinoviev, Kamenev e mesmo de Trotsky. Fracassaram todos
os esforços para localizar quer o caderno de capa negra quer as cartas, e
Yepishev não revelou sua fonte. Somente Beria, Poskrebyshev e Vlasik tinham
acesso direto a Stalin, e só eles poderiam saber sobre tais anotações, mas os dois
últimos foram implicados por Beria pouco antes da morte de Stalin. Só Beria
permaneceu ao lado do líder e, quando os médicos foram finalmente chamados
para atender Stalin, já em estado de coma e depois de um intervalo de 12 a14
horas, o auxiliar percebeu que tudo acabara também para ele. Deixando
Khruschev, Malenkov e outros membros do Politburo ao lado do moribundo
Stalin na dacha, Beria correu para o Kremlin onde, é bastante razoável que se
suponha, esvaziou o cofre, removendo as anotações pessoais do chefe e com
elas, presume-se, o caderno de capa preta.
Beria deve ter notado que a atitude de Stalin em relação a ele esfriara
consideravelmente no último ano, ou nos últimos 18 meses. De sua parte, o
secretário-geral deve também ter percebido as intenções de Beria. Será que
Stalin deixou instruções ou uma espécie de última vontade que seu
subserviente entourage cumpriu ao pé da letra? Beria tinha razões para correr.
Somente ele tinha permissão para entrar no escritório de Stalin, e, é claro, os
seguranças de Stalin estavam a postos, porém, quando o cofre foi oficialmente
aberto, descobriu-se que quase não continha nada, apenas a carteira de filiação
do líder ao partido e alguns documentos insignificantes. Ao destruir o caderno
de anotações de Stalin, se é que de fato estava lá, Beria abriria o caminho para
sua própria ascensão. Talvez a verdade nunca seja conhecida, mas Yepishev
estava convencido de que Beria limpou o cofre antes que os outros chegassem.
Stalin tinha o hábito de arquivar documentos que lhe interessavam
pessoalmente como, por exemplo, o da última vontade de Hitler, no qual o
Führer fala em dar um fim à sua “vida terrena”, como se esperando chegar a um
lugar melhor.32 Ou uma carta endereçada a Stalin, de 27 de outubro de 1935,
da classe de formandos do Instituto dos Professores Vermelhos, queixando-se
de que estavam sendo despejados da hospedaria, enquanto “elementos hostis à
classe, como a princesa Bagration,* recebem permissão para permanecer”.33
Outro arquivo era referente à dissolução da Sociedade dos Ex-Prisioneiros e
Exilados. Ya. Peters e P. Pospelov escreveram que a “Sociedade consiste
primordialmente em SR e mencheviques com estreitas conexões. De quarenta a
cinquenta membros da Sociedade foram presos depois da morte de Kirov”. Um
de seus afiliados teria dito “que deveriam defender os membros que tinham
sido presos pelo regime soviético”.34 Quando Stalin viu o relatório, o destino da
Sociedade ficou decidido.
Existia uma carta de um amigo da filha de Stalin, A.Ya. Kapler, sentenciado
a dez anos de prisão, solicitando ser enviado para o front. Havia um bilhete de
Beria contendo informação dada pelo general iugoslavo Stefanovic sobre o filho
de Stalin, Yakov, com o qual partilhara o cativeiro por determinado tempo; um
relatório de Kruglov a respeito da transferência do Arquivo Russo de Relações
Exteriores de Praga;35 e muitas outras cartas mandadas a Stalin que mostram
quão diligentes foram os auxiliares, como Zhdanov e Suslov, no trabalho para a
garantia de que o povo em geral recebesse apenas o mínimo absoluto de
informação sobre seu governo.
Um dos mistérios indecifrados da história, e que provavelmente
permanecerá assim, é a morte da esposa de Stalin. Nenhuma das bem
conhecidas explicações, oficiais e oficiosas, convence de forma alguma. Em
ligação com o fato, um dos documentos do arquivo merece menção. Escrito
em tinta carmim em diversas páginas de um caderno de exercícios escolares e
datado de 22 de outubro de 1935, trata-se de um apelo a Kalinin por
clemência para Alexandra Gavrilovna Korchagina, prisioneira no campo de
concentração de Solovki. Deduz-se do documento que Korchagina, filiada ao
partido, trabalhara por cinco anos na casa de Stalin como empregada
doméstica. Ela fora detida quando um prisioneiro de nome Sinedobov,
também ex-membro da equipe do Kremlin, testemunhou que ela havia dito
que Stalin atirara na esposa. Korchagina nega o fato em sua carta, de modo
bastante inconvincente, e cita a versão oficial, ou seja, que sua patroa morrera
de ataque do coração. Escreve que Burkov, Sinedobov (ambos sem iniciais),
residentes na casa juntamente com Korchagina, o guarda de segurança Ya.K.
Glome e um secretário da célula do partido, cujo nome não foi citado, todos se
admiraram com o fato de a causa da morte não ter sido mencionada pela
imprensa. Parece que muitas pessoas questionavam a explicação oficial de um
mal súbito, especialmente, como Korchagina escreve, porque Stalin
acompanhou sua esposa de volta ao Kremlin naquela noite. Essas conversas
foram do conhecimento de Stalin e causaram algum alarme, pois a decisão de
afastar Korchagina deve ter sido tomada para silenciar qualquer pessoa que
pudesse saber alguma coisa.
Korchagina relata que o investigador, um tal de Kogan, a intimidou durante
o interrogatório, fazendo com que confessasse, após o que foi deportada sem
julgamento para Solovki. Anexado à carta está o julgamento, assinado por
Lutsky, funcionário da NKVD, especificando que Korchagina envolvera-se
com “grupos terroristas contrarrevolucionários na biblioteca do governo, na
equipe de segurança do Kremlin e noutros lugares”. Kalinin escreveu na pasta:
“Recusado.”36
Outro mistério que persiste é o destino do filho mais velho de Stalin. Existe
uma variedade de evidências que sinalizam a organização de diversas tentativas
para que escapasse do cativeiro alemão, inclusive o depoimento de Dolores
Ibarruri já citado. Os alemães, no entanto, passaram a falar cada vez menos
sobre Yakov e acabaram silenciando por completo. Stalin, provavelmente, não
estava inteiramente seguro sobre a sorte do filho até que recebeu um relatório,
datado de 5 de março de 1945 e assinado por Beria, que dizia:

No final de janeiro deste ano, um grupo de oficiais iugoslavos foi libertado do campo de concentração
alemão pelo primeiro front bielorrusso. Entre eles estava o miliciano iugoslavo general Stefanovic, que
fez o seguinte relato:
“O primeiro-tenente Yakov Djugashvili e o capitão Robert Blum, filho do ex-primeiro-ministro
francês, dividiam uma cela no campo em Lübeck. Stefanovic esteve com Djugashvili várias vezes
oferecendo ajuda material, que foi declinada por ele ser independente e orgulhoso. Por recusar
perfilar-se diante de oficiais alemães, foi posto na solitária. Djugashvili disse que os boatos divulgados
sobre ele pela imprensa germânica eram falsos. Estava convicto da vitória soviética. Deu-me seu
endereço em Moscou: Rua Granovsky, nº 3, apartamento 84.”37

Quando os militares informaram a Stalin, logo depois da guerra, que o governo


tcheco desejava presentear a URSS com o Arquivo Russo de Relações
Exteriores de Praga, ele deu ordem para que o arquivo fosse recebido e os
documentos examinados. Em 3 de janeiro de 1946, Kruglov reportou que nove
vagões repletos de documentos haviam sido despachados para Moscou,
inclusive os arquivos dos governos de Denikin e Petliura da guerra civil, bem
como documentos pessoais dos generais Alexeyev e Brusilov e dos políticos
Savinkov, Milyukov, Chernov e muitas outras figuras pré-revolucionárias que
deixaram a Rússia durante ou logo depois da guerra civil.38 O trabalho de
revisão de todo este material foi levado a efeito por especialistas da Academia
de Ciências, entre os quais estavam I. Nikitinsky, S. Bogoyavlensky, I. Mints e
S. Sutotsky, mas eles estavam sob controle de funcionários dos altos escalões da
NKVD, que também se reportavam diretamente a Stalin, e que seriam
responsáveis pelo futuro dos arquivos. Alguns documentos permaneceram por
longo tempo nos armários e cofres de Stalin.
Entre estes havia um manuscrito de A.A. Brusilov, ex-general do Exército
czarista que ficara famoso na Primeira Guerra Mundial por sua penetração no
front sudoeste. Ele servira no Exército Vermelho em 1920 como um inspetor
de cavalaria e, em 1924, fora comissionado para serviço ativo especial. O
manuscrito, intitulado “Minhas reminiscências”, foi escrito enquanto Brusilov
era submetido a tratamento médico em Carlsbad, em 1925, e ele faleceu no
ano seguinte. Num bilhete apenso ao manuscrito, escreveu:

Todos entenderão que eu não podia escrever coisa alguma na URSS. Deixo estas anotações aos
cuidados de amigos no exterior e peço-lhes que não as publiquem antes de minha morte. Se as pessoas
da Europa quiserem salvar seu modo de vida, a família, suas pátrias amadas, deixem que conheçam
meus erros e não os repitam. Nossos partidos políticos discutiram e lutaram até que destruíram a
Rússia!39

Stalin tinha que saber sobre tudo. Até os formulários recebidos de volta a
respeito do censo de 1930, exibindo os nomes das famílias dos funcionários
mais categorizados, tinham que lhe ser mostrados. Só ele sabia por que ticou
certos nomes com fortes sinais em vermelho:

Beria, Nina Teimuradovna; georgiana, cientista, filho Sergei de 14 anos. Kaganovich, Maria
Markovna; filha Maya e filho Yuri.Voroshilova, Yekaterina Davidovna. Zhemchuzhina, Polina
Semenovna; e as filhas Svetlana Vyacheslavovna, Rita Aronovna Zhemchuzhina. Andreyeva – Dora
Moiseyevna Khazan; filha Natalya Andreyevna.

Vendo tramas e inimigos potenciais por todos os lados, Stalin assegurou-se de


que havia sempre “munição” em seu arsenal para repelir qualquer ataque.
Durante toda a vida esperou por um atentado contra sua existência, o que
jamais aconteceu. Perfeitamente ciente do medo patológico do chefe, seu
círculo mais íntimo também se mostrou patologicamente receoso de despertar
qualquer suspeita.
Nota

* A família Bragation era da nobreza georgiana. A esposa do grão-duque Vladimir Kirillovich, um dos
pretendentes ao trono imperial russo, é uma princesa Bragation que deixou a URSS em 1935.
[52]
Um acesso de violência

B em antes do septuagésimo aniversário de Stalin, em 1949, Malenkov


instigou o Politburo a considerar uma longa lista de medidas tendentes
a marcá-lo com uma celebração notável. Não seria apenas a
oportunidade para a perpetuação do líder com novos monumentos ou com seu
nome em mais fábricas e construções, mas também para relatórios de todos os
setores.
Por esses relatórios, Stalin ficou sabendo que quase todas as fábricas
destruídas estavam reconstruídas e centenas de novas instaladas. A economia
progredia em ritmo acelerado. Caracteristicamente, Stalin havia exigido cada
vez maiores esforços na indústria, para a qual foi alocada grande parte dos
investimentos financeiros e da qual se esperava substancial produção, embora
não de melhor qualidade. Nem a agricultura nem os bens de consumo tinham
prioridade, na avaliação de Stalin. A agricultura, portanto, declinou. Não
foram oferecidos incentivos aos granjeiros coletivos, mas eles eram forçados a
pagar taxas crescentes em espécie ou em dinheiro por qualquer coisa viva que
existisse na coletividade, inclusive árvores frutíferas; a área de cultivo particular
foi reduzida. Os camponeses constituíam um grupo sem direitos, sem
possibilidade de protesto ou de mudar o que quer que fosse. Toda a safra era
simbólica ou ridiculamente paga. Os jovens passaram a encontrar desculpas
para abandonar o campo, apinhando as escolas técnicas e constituindo mão de
obra barata para a construção civil e o trabalho nas madeireiras. As fazendas
coletivas não decidiam nada por si mesmas, tudo era resolvido pelas
autoridades, do tempo da colheita até a eleição do novo presidente da fazenda.
Durante o ano de seu septuagésimo aniversário, por outro lado, Stalin
tomou uma providência que ainda é popular entre os mais idosos que dela se
lembram. Reduziu os preços de uma lista de bens de consumo: 10% em pão,
farinha de trigo, carne e derivados e lã; 28% na vodka; 20% nos artigos de
toucador e nas bicicletas; 25% nos aparelhos de televisão; e 30% nos relógios
de pulso e de mesa. Os preços nos restaurantes, nas casas de chá e noutros
locais públicos de alimentação foram reduzidos correspondentemente.40
O padrão de vida era baixo. Os órgãos de segurança reportavam que em
diversas regiões, notavelmente no leste, a fome voltara a se propagar e as
pessoas andavam pobremente vestidas. Na opinião de Stalin, todavia, dar ao
povo algo mais que o mínimo necessário significava corrompê-lo. Não que
fosse possível dar mais alguma coisa ao povo, já que a defesa precisava ser
reforçada e a indústria pesada fortalecida. O país tinha que ser forte, e para isso
o povo precisava apertar o cinto. A população deveria esperar que o padrão de
vida caísse ano após ano, e foi o que aconteceu. De acordo com alguns
indicadores, no início dos anos 1950, mal se comparava com o nível de 1913 e,
mesmo que esta não seja uma avaliação acurada, não diminui a crença em que
os infindáveis experimentos conduzidos pelo regime resultaram em
pouquíssima coisa para o povo.
Ao mesmo tempo, deve-se reconhecer que o nível cultural da população
cresceu, que as relações de amizade com outros países foram aprimoradas e que
foi garantido às pessoas um certo grau de seguridade social, com pensões, férias
remuneradas, manutenção para as famílias dos mortos na guerra e para as mães
com grandes proles. Tudo isto, entretanto, estava em nível do mínimo
absoluto, espelhando a pobreza generalizada do país. O estabelecimento de
uma linha de ação que privilegiava o desenvolvimento da indústria em
detrimento da agricultura sinalizou, na realidade, uma perspectiva tenebrosa.
Por vezes, argumenta-se que, pelo menos, tínhamos ordem, disciplina,
respeito à lei, enquanto agora só nos restam a prostituição e as drogas, como se
estes e outros males não existissem ao tempo de Stalin. A diferença é que,
naqueles dias, todos esses fatos eram escondidos como estatísticas ultrassecretas
de criminalidade. A delinquência imperava. O treinamento de operários era
considerado uma grande conquista, mas Kruglov reportou que, em 1946, a
polícia de segurança prendeu 10.563 alunos que fugiram das escolas de
treinamento fabril, bem como das escolas técnicas e ferroviárias: “Muitos
crimes foram cometidos, inclusive roubos, gangsterismo. As condições das
escolas são insatisfatórias, em geral são frias e com instalações sanitárias
deficientes, e muitas não têm luz elétrica.”41
A disciplina do tipo militar e a coerção mais tendiam a causar que erradicar
a criminalidade, e não era da natureza de Stalin acreditar que o respeito à lei, as
relações civilizadas e os princípios democráticos ajudassem a combater o crime.
O poder absoluto de uma só pessoa e a falta de liberdade de muitas, o reforço
da burocracia e a falta vital da ação civil, a imposição da unidade de
pensamento e a necessidade natural do raciocínio criativo – todas estas
contradições, fomentadas pelo mando autocrático de Stalin, lançaram as
fundações de crises futuras. Pretendesse ou não, entendesse ou não as
consequências provocadas, Stalin aplicou persistentemente a alavancagem
ideológica, em vez da econômica. Como antes, confiava então na “competição
socialista”, enquanto congelava o espírito criativo e apelava cada vez mais para
métodos experimentados e testados de ameaças e instruções impositivas.
Todos os seus “triunfos” foram associados à violência. Mesmo os programas
socioeconômicos foram executados sob condições de “guerra civil”, até os de
escala local. Não causou surpresa o fato de que o ápice do culto stalinista,
ocorrido durante o transcurso de seu septuagésimo aniversário, coincidisse com
o chamado “caso de Leningrado”.
Um decreto de 1946 dirigido contra as revistas literárias Zvezda e Leningrad
da antiga capital foi expedido pelo próprio Stalin. Como resultado, uma série
de filmes e peças populares entrou na lista negra e repertórios teatrais foram
condenados. Stalin sentiu que, no campo da arte e da literatura, tentava-se,
ainda que de forma incipiente, ultrapassar certos limites estabelecidos pelo
partido, isto é, por ele mesmo. Aquilo representava uma ameaça à
uniformidade de pensamento e, em consequência, ao mando de uma só pessoa.
O mundo intelectual do secretário-geral baseava-se em postulados rígidos para
os quais a liberdade de pensamento constituía risco intolerável. As matérias do
escritor satírico Mikhail Zoshchenko e da poetisa Anna Akhmatova para as
revistas foram atacadas, e os dois expulsos do sindicato dos escritores. Foi o
sinal para o início de um expurgo ideológico. Recém-recuperada do sofrimento
desumano que experimentou durante a guerra, Leningrado era então
estigmatizada como uma cidade herética. Stalin mostrava ao país que, se não
havia afrouxamento nem para a heroica cidade de Lenin, o restante podia
esperar bem menos.
Os arquivos de Zhdanov contêm uma longa carta, datada de 4 de setembro
de 1947, da esposa de Zoshchenko, Vera, onde ela solicita a Poskrebyshev que
a repasse a Stalin, “e se for muito cansativo para ele, transmita-lhe, por favor, o
conteúdo”. A carta tem trechos com a deferência estatutária comum àqueles
tempos, hoje difíceis de tragar: “A maior alegria de minha vida tem sido pensar
que você existe neste mundo e meu maior desejo é que continue vivendo pelo
tempo máximo possível.” Continua ela:

Fiquei literalmente arrasada com o decreto do Comitê Central sobre as revistas Zvezda e Leningrad.
[...] Como pôde isto acontecer, quando todos gostavam tanto de Zoshchenko? Gorky, Tikhonov,
[Marietta] Shaginyan, A.A. Kuznetsov, Maisky, todos eles diziam que o amavam. Nunca houve a
questão de ele abandonar Leningrado [...] Trabalhava num livro sobre partisans ao longo de todo o
verão de 44. Não há vestígio de injúria ou malevolência em seus livros.

Enquanto defendia o marido das acusações contra ele, a corajosa mulher,


em desespero, revelou que Zoshchenko era:

Altamente neurótico [...] e tem estranhas obsessões. Temia por demais enlouquecer, como Gogol.
Começou um tratamento pela autoanálise e teve certo sucesso. Sua doença provocou nele o
sentimento da sátira, e aí está o problema. Mas ele é incapaz de se submeter à vontade dos outros, não
consegue agir sob as ordens de ninguém.42

Evidentemente, Stalin leu a carta, pois ela exibe suas marcas em lápis vermelho,
e deve ter percebido que a esposa não era a única pessoa que rejeitava sua
opinião sobre Zoshchenko. Contudo, surpreendentemente, afora a expulsão do
sindicato dos escritores – punição severa em si mesma, de vez que o sindicato
proporcionava o acesso de um escritor à publicação, ou seja, ao seu ganha-pão
– Stalin não foi além do terror psicológico sobre Zoshchenko e sua família.
Dois anos depois do lançamento da campanha ideológica em Leningrado,
Stalin deu-lhe continuidade com um violento ataque político e punitivo, que
muitos viram como primeiro ato da reencenação da repressão em massa dos
anos 1930. Em meados de fevereiro de 1949, Malenkov foi instruído por Stalin
e enviado a Leningrado. O pretexto da missão foi uma alegada inadequação de
procedimentos durante a conferência do partido na cidade. Acontecera uma
situação típica: a despeito de terem recebido votos contrários, alguns líderes
partidários provinciais, como P.S. Popkov, G.F. Badaev, Ya.F. Kapustin e P.G.
Lazutin, foram declarados eleitos por unanimidade pelo presidente da
conferência A.Ya. Tikhonov. Um dos membros do comitê eleitoral, por causa
disto, escreveu uma carta anônima ao Comitê Central, motivando uma ríspida
resposta de Stalin, ele mesmo um mestre do passado na manipulação de
eleições, como ocorreu, por exemplo, em 1934, no XVII Congresso do partido.
Disse a Malenkov que “têm sido muitos os sinais de perigo a respeito da
liderança de Leningrado para que não reajamos”. Malenkov deveria “ir para lá e
dar uma boa olhada no que se passava. O Camarada Beria tem mais
informações”. Malenkov tomou o trem naquela mesma noite.
Os “sinais” partidos de Leningrado alegavam que, com a conivência do
secretário do Comitê Central, A.A. Kuznetsov, o chefe do partido local não
estava levando em conta as autoridades centrais do partido. O principal fato era
que, em janeiro de 1948, fora organizado um mercado por atacado em
Leningrado sem a permissão do centro. Numa sessão conjunta do birô regional
do partido e do comitê partidário da cidade, Malenkov, pupilo diligente de
Stalin que era, enumerou um “erro” atrás do outro numa fieira de acusações. A
plateia ouvia em silêncio depressivo, enquanto Malenkov, crescentemente
inflamado, disparava incriminações. Descreveu o mercado por atacado como
iniciativa antipartidária, inspirada por um grupo em oposição à organização
local do Comitê Central. O pior estava por vir. Seguindo a linha estabelecida
em Moscou, Malenkov citou declarações infelizes de P.S. Popkov, um líder
local, dizendo que elas representavam a tentativa de criar um Partido
Comunista da Rússia com objetivos de longo alcance. Todos no salão
perceberam que o discurso de Malenkov era indicação de maus augúrios.
Contudo, eles não sabiam que seu ex-secretário Kuznetsov, recentemente
promovido a secretário do Comitê Central, já fora destituído da função havia
uma semana. Naturalmente, toda a liderança local perdeu os cargos depois do
pronunciamento de Malenkov, mas aquilo foi só o começo. Um “caso” foi
rapidamente fabricado contra cada funcionário suspeito, e efetuadas prisões.
“Espiões” foram identificados, por exemplo Kapustin, bem como
“degenerados”, como Popkov, e “inspiradores de linha antipartidária”, como
Kuznetsov.
Em março de 1949, N.A. Voznesensky, outro comunista de Leningrado, foi
afastado do Politburo. Organizador fundamental da economia de tempo de
guerra, acadêmico, sem papas na língua e homem de caráter impoluto,
Voznesensky passara a ser considerado muito perigoso para Stalin e, com a
ajuda de Beria, um processo gigantesco e totalmente sem fundamento foi
engendrado contra ele por Kruglov, Abakumov e Goglidze. Foram procedidos
interrogatórios com o único propósito de arrancar uma confissão de atividade
antipartidária e antiestado. Depois de lançar a enorme provocação, Malenkov
podia esfregar as mãos satisfeito: a vontade de Stalin fora concretizada, ele
fizera um trabalho completo. Tal como seu amigo íntimo Beria, Malenkov não
gostava de Voznesensky e de Kuznetsov. Estava em curso a caça às bruxas e
todos esperaram o pior, especialmente quando ex-funcionários de Leningrado
começaram a ser apanhados em outras repúblicas, para onde haviam sido
transferidos a fim de desempenharem diversas funções.
Por que Stalin desencadeou esta ação criminosa? Por que na véspera de seu
septuagésimo aniversário? Por que dava seguimento à campanha ideológica de
agosto de 1946 com outra mais aterradora e punitiva, dois anos e meio mais
tarde? Só ele sabia a resposta correta para tais perguntas, porém, com base em
documentos, podemos deduzir o seguinte.
Stalin não tolerava o pensamento livre e independente. Voznesensky e
Kuznetsov o haviam glorificado, tanto verbalmente como por escrito, mas o
fato de se mostrarem mais independentes que os outros deixava Stalin em
guarda contra eles. Por algum tempo, ignorou as calúnias levantadas por
Malenkov e Beria e, na verdade, fez até referências públicas elogiosas aos dois
leningradenses, e é mesmo possível que eles tenham se considerado prováveis
sucessores, em vista da avançada idade do líder. Mas isto não era aceito pelos
membros da camarilha stalinista de Moscou. Em sucessivos relatórios secretos a
Stalin, realçaram que, antes da guerra, Voznesensky não descobrira um só
“inimigo” no Gosplan e talvez os tivesse protegido, enquanto Beria queixava-se
de que, na ocasião em que ficara encarregado das indústrias química e
metalúrgica como presidente do Gosplan, Voznesensky rebaixara patentemente
as normas de produção daqueles setores, ao passo que ele, Beria, elevara as da
indústria madeireira.
Na ocasião, Stalin não deu atenção a tudo aquilo. No entanto, não ficou
satisfeito com o discurso que Voznesensky fez no Politburo, apresentando uma
série de argumentos convincentes contra a imposição de novas taxas sobre os
fazendeiros coletivos. Não lhe agradou também o fato de Kuznetsov,
responsável pelos quadros do Comitê Central, ter expressado sua intenção de
exercer controle mais cerrado sobre o comissariado das Questões Internas e
Segurança Estatal. Chegou igualmente ao conhecimento de Stalin que
Kuznetsov dissera que a investigação sobre o caso Kirov não revelara os
verdadeiros inspiradores do crime.
Para Stalin, os principais atributos de qualquer funcionário, não importasse
quão valioso ou essencial, eram a confiança que infundiam e a lealdade a ele. Já
então, não só duvidava dos obstinados leningradenses, mas os via como
potenciais inimigos. De acordo com S.I. Semin, que era gerente departamental
no Gosplan, Voznesensky empenhou extraordinária energia e cuidadosa
preparação no planejamento da economia nacional. Malgrado o caráter
severamente administrativo do sistema econômico, Voznesensky procurara
sempre que possível levar os trabalhadores para o processo de planejamento e
administração, como também estabelecer objetivos para cada empreitada.
Jamais gozara de dispensas ou férias. Até então, fora provavelmente o maior
economista da liderança soviética depois de Bukharin.
Embora, antes de sua prisão, Voznesensky e outros leningradenses tivessem
enviado uma nota a Stalin declarando total inocência, o líder não hesitou. De
início, é verdade, desejou transferir Voznesensky para a chefia do Instituto
Marx-Engels-Lenin, mas depois mudou de ideia, decidindo, em vez disto,
deixar que todo o grupo de Leningrado experimentasse junto a taça de fel. O
julgamento, que teve lugar em setembro de 1950 na Casa dos Oficiais, no
Bulevar Liteiny, em Leningrado, foi conduzido de acordo com as ordens de
Stalin. Quase duzentas pessoas foram implicadas, inclusive N.A. Voznesensky,
A.A. Kuznetsov, P.S. Popkov, Ya.F. Kapustin, M.I. Rodionov, todos os quais
foram mortos, sorte pouco depois partilhada por G.F. Badaev, I.S. Kharitonov,
P.I. Kabatkin, P.I. Levin, M.V. Basov, A.D. Verbitsky, N.V. Solovyov, A.I.
Burlin, V.I. Ivanov, M.N. Nikitin, V.P. Galkin, M.I. Safonov, P.A. Chursin e
A.T. Bondarenko.43
O tribunal não ouviu declarações de arrependimento de Voznesensky ou
Kuznetsov, tendo o último declarado: “Fui um bolchevique e continuarei
sendo; qualquer que seja a sentença que eu receba, a história nos inocentará.”
Em abril de 1954, a Corte Suprema da URSS, sob A.A. Volin, invalidou o
processo, citando a seguinte prova de setembro de 1950:

Os acusados se declararam culpados quanto à formação de um grupo antissoviético em 1938,


executando atividade diversionária no partido com o objetivo de minar a organização do Comitê
Central em Leningrado e transformando-o em base de operações contra o partido e seu Comitê
Central. [...] Com este propósito, tentaram instigar o descontentamento local em relação às medidas
do Comitê Central, difundiram alegações caluniosas e se envolveram em tramas traiçoeiras [...] Eles
também venderam propriedades estatais [...] Como os documentos demonstram, todos os acusados
fizeram confissões completas quanto a tais acusações, na investigação preliminar e na corte.44

O meio pelo qual tais confissões foram extraídas foi revelado, em 29 de janeiro
de 1954, por Turko, enquanto ainda cumpria a pena:

Não cometi crimes nem me considerei culpado, tampouco o faço agora. Produzi meu depoimento
depois de ser sistematicamente espancado por negar minha culpa. O investigador Putintsev começou
o espancamento no interrogatório [...] Batia-me na cabeça, no rosto e nas pernas. De certa feita,
atingiu-me com tal força que o sangue saiu-me pelos ouvidos. Depois das surras, ele me enviou para o
confinamento solitário, ameaçou matar minha esposa e filhos e disse que me daria vinte anos se não
confessasse. Como resultado, assinei qualquer coisa que quisessem.45

Neste acesso de violência, Stalin se livrou de três bolcheviques com vínculos


familiares: os irmãos de Voznesensky, Nikolai, membro do Politburo, e
Alexander, reitor da universidade de Leningrado, e a irmã deles, Maria,
trabalhadora do partido. O absurdo gritante do caso foi revelado pelo fato de
Maria ter sido acusada de partilhar as opiniões da Oposição dos Trabalhadores
nos anos 1920. Seja também ressaltado que as razões para a reabilitação de
1954 foram igualmente ridículas, a saber, que “não há prova de que
Voznesenskaya partilhou as opiniões da Oposição dos Trabalhadores”.46 E se
tivesse partilhado? Tal era a justiça stalinista.
Todos foram fuzilados em Leningrado, exceto Nikolai Voznesensky, o qual,
segundo Semin, deve ter sido mantido na prisão por mais três meses depois da
sentença. Então, em dezembro, por ordem de alguém, foi levado de caminhão
a Moscou trajando roupas leves. Ou morreu de frio no caminho, ou foi
executado.
O massacre de Leningrado foi seguido por ondas de mais violência não só
contra os que conheciam os condenados, mas também contra o pessoal de
segurança. O hábito da coerção e da agressão estava profundamente arraigado
em Stalin, o qual se sentia encorajado devido à passividade dos sentenciados e à
timidez do partido e da população. O espasmo de violência que acompanhou a
escalada de sua glória pessoal não é facilmente explicável. O país cicatrizara
rapidamente suas feridas de guerra. A situação interna parecia segura. Ninguém
fazia discursos oposicionistas. A solidariedade nacional em torno da liderança
política, personificada por Stalin, era real. As relações internacionais se
mostravam estáveis. A influência ideológica do partido não conhecia divisão.
Ainda assim, com tudo isto, Stalin recorreu de novo à violência e à coação,
voltando então seus olhos para determinada região, não para um grupo social
ou agência específicos. Tendo permanecido no pináculo do poder por um
quarto de século graças à coação, ele não podia mais passar sem ela. Só isto
pode explicar a atenção que passou a emprestar aos órgãos de segurança e ao
comissariado das Questões Internas.
Beria, Kruglov, Serov, Abakumov e outros funcionários destas agências
reportavam regularmente a Stalin sobre a situação no Gulag,* o qual, além de
sua função punitiva e de isolamento, era também fonte de mão de obra barata.
Certa ocasião, Malenkov conseguiu persuadir Stalin a realizar um ato
“humanitário”. Mostrou ao chefe um relatório do diretor do Gulag, Dobrynin,
onde constava que, em 1949, existiam 503.375 mulheres em campos e colônias
de exílio. Malenkov sugeriu que ele considerasse a libertação das mulheres com
filhos com menos de sete anos de idade, uma vez que o custo da manutenção
de crianças nos campos estava em torno de 166 milhões de rublos por ano.
Depois de meticuloso escrutínio dos números, Stalin concordou, e foi além,
decretando que aquelas mães deveriam, dali por diante, ser empregadas em
trabalhos forçados em suas cidades natais. No entanto, qualquer mulher que
tivesse sido sentenciada por atividade contrarrevolucionária deveria ser excluída
da categoria.47
Em setembro de 1951, uma delegação de mulheres inglesas – uma
ocorrência bastante rara naqueles dias – solicitou permissão para visitar um
campo de mulheres. Os anfitriões, naturalmente, ficaram confusos. Recorreram
a um departamento do Ministério das Questões Internas, que, é claro, não
pôde ajudar. Apelaram então ao vice-ministro da Segurança Estatal, Serov, mas
também lhe faltou autoridade para tanto. Contataram Kruglov, com os
mesmos resultados. Finalmente, chegaram a Suslov, o qual, por sua vez, foi a
Malenkov e apenas ele, sendo membro do Politburo, e depois de consultar
Stalin, foi capaz de carimbar sua aprovação da solicitação. O campo,
evidentemente, foi preparado com esmero, limpo e arrumado, e a cada um foi
dito o que deveria fazer. Os 70% das habitantes do campo que estavam em
piores condições foram enviados para trabalho externo, enquanto as internas
observadas pelas mulheres inglesas eram, em sua maioria, cidadãs comuns que
lá estavam temporariamente, e não internas típicas. A delegação chegou a
deixar um comentário escrito num livro de visitantes rapidamente
providenciado: “Ficamos muito impressionadas com a franqueza com que as
pessoas se dirigiram a nós. Tudo é muito limpo. Consideramos que se trata de
uma experiência valiosa e que será bem-sucedida.”48
De todas as instituições estatais, Stalin devotou a maior parte de seu tempo
e de sua atenção aos órgãos punitivos que estavam, efetivamente, fora do
controle do estado e sob sua supervisão pessoal. Só durante a guerra, talvez, ele
dedicou mais tempo ao exército que à NKVD e, durante todo o tempo a partir
do final dos anos 1930, consagrou mais atenção à NKVD que aos órgãos do
partido.
Qual foi o custo do regime stalinista? Quantas vítimas ele fez? Quantas
pessoas pereceram pela vontade do tirano e por sua máquina do terror? Duvido
que um dia saibamos a quantidade exata. Os números mais completos talvez
sejam os proporcionados pela comissão para estudos ulteriores de dados
referentes às repressões dos anos 1930, 1940 e 1950, criada pela Corte
Suprema da URSS. Diversas estimativas já foram feitas por especialistas. Meus
próprios cálculos provisórios decorrem do que garimpei nos arquivos. Custo da
coletivização de 1929-33: de 8,5 a 9 milhões de vidas de camponeses. Entre
1937-38, o número de cidadãos presos esteve entre 4,5 e 5,5 milhões. De
permeio com estas duas grandes ondas, entretanto, a NKVD não ficou ociosa,
e cerca de mais um milhão de pessoas foram presas. Depois da guerra, em
particular no final dos anos 1940, o número de campos foi acentuadamente
aumentado, simultaneamente com a quantidade de prisioneiros e deportados
que atingiu de 5,5 a 6,5 milhões. É possível argumentar corretamente que tais
números abarcam os criminosos comuns, porém, segundo os próprios dados de
Beria, até a morte de Stalin, entre 25 e 30% das pessoas sentenciadas por
“atividade contrarrevolucionária” estavam nos campos.49 Assim, entre 1929 e
1953, pode-se dizer que as vítimas de Stalin totalizaram de 19,52 a 22 milhões,
e esta quantidade, é evidente, não inclui as baixas de guerra. Deste total, não
menos que um terço foi sentenciado à morte ou pereceu nos campos ou no
exílio. Admito a possibilidade de meus números serem considerados
conservadores, mas se baseiam no que descobri, e sou o primeiro a concordar
que existe muita coisa que não fui capaz de apurar.
Depois da guerra, o sistema social e político não foi meramente preservado,
adquiriu diversos novos e sinistros aspectos de um caráter burocrático e
policial. Stalin foi capaz de combinar o incombinável, mantendo, por todos os
meios possíveis, o entusiasmo e o zelo do povo soviético pela crença de que a
terra da promissão estava logo ali, atrás da linha do horizonte, enquanto, ao
mesmo tempo, ameaçava seus concidadãos com o terror individual e de massa.
E, mesmo assim, o povo o adorava. Vale a pena citar que Voznesensky, pouco
antes de ser preso, escreveu o último capítulo de seu livro A economia política
do comunismo no qual, até ele, um dos mais sofisticados homens da liderança,
conseguiu afirmar que, liderada por Stalin, a sociedade se aproximava de um
futuro brilhante. Ironicamente, Voznesensky foi acusado, entre outras coisas,
de “compilar e publicar obras politicamente perniciosas”.50
Nota

* Sigla em russo da Glavnoye Upravleniye Ispravitelno-trudovykh Lagerey, repartição central dos campos de
trabalho corretivo. [N.T.]
[53]
O líder envelhece

A proximava-se o septuagésimo aniversário de Stalin. Ele sabia que, do


Politburo para baixo, todos tomavam providências frenéticas. Chamou
Malenkov e disse: “Nem pense em me outorgar outra Estrela!”
“Mas, Camarada Stalin”, protestou Malenkov, “num jubileu como este, o
povo não entenderia...”
“Deixe o povo fora disto. Não tenho intenção de discutir o assunto. Não
insista! Entendeu?”
“É claro, Camarada Stalin, só que os membros do Politburo...”
Stalin o interrompeu, deixando claro que a questão estava encerrada e
determinou, em vez disso, que ele lhe mostrasse o cenário da celebração que
teria lugar no Teatro Bolshoi.
A menção à “Estrela” não foi acidental. Depois do Desfile da Vitória e da
recepção aos comandantes de front, em junho de 1945, um grupo de
marechais sugeriu que deveriam assinalar a “extraordinária contribuição do
líder” conferindo-lhe a mais alta distinção do país, a de Herói da União
Soviética. Referiram-se ao fato de que, por ocasião de seu sexagésimo
aniversário, Stalin fora agraciado com o título de Herói do Trabalho Socialista,
e que, durante a guerra, recebera três condecorações, a Ordem da Vitória nº 3
– as de nº 1 e nº 2 tinham sido para Zhukov e Tolbukhin –, a Suvorov de 1ª
Classe e a Bandeira Vermelha, que lhe foram conferidas “por serviço no
Exército Vermelho”.
Durante o dia seguinte e metade do outro, Molotov e Malenkov haviam
debatido a matéria com seus colegas e, em 26 de junho, dois decretos foram
expedidos pelo Soviete Supremo ordenando que o título de Herói da União
Soviética e uma segunda Ordem da Vitória fossem conferidos ao Marechal da
União Soviética I.V. Stalin. No mesmo dia, o título de Generalíssimo da União
Soviética foi criado e, no dia 27, outorgado a Stalin. Aquela foi, provavelmente,
a única ocasião em que desobedeceram a seu chefe. Como de hábito antes do
café, naquela manhã Stalin abriu seu exemplar do Pravda e ficou enfurecido.
Não fora consultado! Nada lhe perguntaram! Tão logo chegou ao Kremlin,
convocou Molotov, Malenkov, Beria, Kalinin e Zhdanov e passou-lhes uma
descompostura. Kalinin, cuja repartição era nominalmente responsável, e
Malenkov, que fracassou em conter o impulso de lealdade dos camaradas,
foram os que ficaram mais nervosos. Beria e Zhdanov sabiam que a raiva do
chefe era falsa.
Stalin fora alçado a glória tão elevada que as condecorações destinadas aos
mortais comuns, ávidos por recebê-las, nada significavam para ele, ou melhor,
o colocavam no mesmo nível dos outros. Detentor do poder supremo, o líder
que se cobrisse de medalhas e ordens só se desvalorizaria.
Beria, que sabia melhor que os outros o que seu mestre gostava de ouvir, no
seu artigo “O grande inspirador e organizador das vitórias comunistas”
escreveu: “Nosso líder genial combina simplicidade, modéstia, excepcional
atração pessoal, implacabilidade para com os inimigos do comunismo,
sensibilidade e preocupação paternal com o povo. Ele demonstra extrema e
inerente clareza de pensamento, calma grandeza de caráter, desprezo e
impaciência com qualquer espécie de espalhafato ou efeitos exteriores.”51 O
desditoso e ingênuo Kalinin, que jamais levantara objeção a qualquer coisa ou a
qualquer pessoa, pensara que simplesmente cumpria sua obrigação ritualística
sem perceber que medalhas que outros receberiam não deviam ser conferidas a
Stalin.
“Digam o que quiserem”, disse Stalin conclusivamente, “não aceitarei a
condecoração. Ouviram-me, não aceitarei!”
Os camaradas tentaram mais umas duas ou três vezes convencê-lo,
recrutando até Poskrebyshev e Vlasik para sua causa. Mas em vão. Então, certa
noite, na dacha, cerca de cinco anos mais tarde, Stalin de repente começou a
falar sobre suas antigas condecorações, notavelmente sobre as duas estrelas de
Herói e as duas Ordens da Vitória que ainda apareciam em seus retratos e
fotografias. Finalmente, na véspera das celebrações do 1º de Maio de 1950,
Shvernik conseguiu entregar-lhe as medalhas que lhe foram concedidas em
1945, mais a Ordem de Lenin pelo seu septuagésimo aniversário de 1949.
“Vocês estão envaidecendo demais um homem idoso”, murmurou Stalin.
“Isto não fará nada bem à minha saúde.”
Por trás destas palavras, estava um novo temor que o assaltara na véspera
dos seus setenta anos. Preparava-se certa noite para se dirigir à dacha quando,
ao levantar-se para vestir o sobretudo, sentiu uma tontura. Círculos cor de
laranja dançaram diante de seus olhos, mas ele se recuperou rapidamente.
Poskrebyshev agarrou-o firmemente pelo braço com ambas as mãos e pediu
assustado: “Deixe-me chamar os médicos, Camarada Stalin. O senhor não deve
sair de imediato. Precisa de um médico.” Stalin disse-lhe para parar com o
alvoroço.
A tontura logo passou. Stalin esperou um pouco e tomou uns goles de chá.
Sentiu uma pressão na nuca, porém não autorizou a convocação dos médicos.
Na realidade, não confiava neles, e muito menos em Beria, que era o
responsável pela 4ª Repartição Principal do Ministério da Saúde. Não queria
que se espalhassem rumores de que não se sentira bem. Em breve, estaria na
dacha onde beberia uma infusão que Poskrebyshev lhe recomendara havia
muito tempo. Ela sempre ajudara, e funcionaria de novo.
O Politburo resolveu celebrar o aniversário de Stalin com estardalhaço.
Shvernik ficou encarregado das festividades. Cedo recebeu um memorando
assinado por P. Ponomarenko, V. Abakumov, N. Parfenov, A. Gromyko e V.
Grigoryan fixando o custo das celebrações em torno de 6,5 milhões de rublos.
Shvernik, no final, assinou um pedido de 5.623.255 rublos para os gastos com
recepção e serviços para as delegações e para organizar uma exibição dos
presentes de aniversário de Stalin.52
Os organizadores prepararam também uma surpresa sob a forma do Prêmio
Stalin, cujo custo foi calculado em 7 rublos e 64 copeques por medalha,
enquanto a quantidade total de metal para um milhão de medalhas foi
estimada em 24 toneladas de bronze e 6 toneladas de níquel. Haveria também
um Prêmio Stalin da Paz Internacional.53 Treze versões da medalha foram
submetidas à aprovação de Stalin pelos artistas N.I. Moskalenko, A.I.
Kuznetsov e I.I. Dubasov.54 Tudo estava pronto para a entrega dessa
prestigiosíssima condecoração quando, no último minuto, Stalin fincou pé, a
despeito de ter dado sua aprovação inicial à ideia.
Tendo examinado todos os projetos e lido todas as minutas de decretos
(enquanto seus camaradas em armas esperavam ser os primeiros a receber o
novo prêmio), Stalin subitamente declarou: “Só aprovarei o decreto do prêmio
internacional.” Depois de uma pausa, acrescentou: “E ordens deste tipo só
devem ser concedidas postumamente.” De imediato, começou um burburinho,
mas Stalin levantou a mão e calmamente disse ao grupo: “Há hora para tudo.”
Talvez pensasse que, como todo o país estava coberto de imagens suas, de
grandes documentos a nomes de cidades e vilas, alguma coisa deveria ser
deixada para quando morresse, e o que melhor do que um prêmio com seu
nome?
No grande dia, o líder levantou-se na hora normal, 11 da manhã, sentindo-
se bem. O episódio do dia anterior fora insignificante. Mas o dia que o
esperava seria pesado. Depois da celebração no Politburo, haveria uma noite
toda de intermináveis louvores e discursos em sua homenagem. Todos estariam
competindo para encontrar novos e grandiloquentes epítetos. Durante o mês
de dezembro inteiro, o Pravda publicara artigos e relatos sobre os preparativos
que corriam em todo o país. A onda de glorificação aumentava a cada dia.
Chegavam relatórios de todas as repúblicas e regiões, e notícias não menos
entusiasmadas do Gulag, onde havia a expectativa de uma anistia. Mas não
eram os prisioneiros que enviavam os relatórios, e sim funcionários do
Ministério do Interior em nome daqueles que estavam sob seus “cuidados”.
Cerca de uma hora antes do previsto para o início da cerimônia, uma
plateia cuidadosamente selecionada e inspecionada já lotava o Teatro Bolshoi.
Meia hora mais tarde, Stalin deu entrada numa sala separada para o Presidium
(como era agora o nome do Politburo), onde trocou cumprimentos com
luminares do mundo comunista tais como Palmiro Togliatti, Mao Tse-tung,
Walter Ulbricht, Dolores Ibarruri e Mátyias Rákosi, entre outros.
Quando o Presidium ocupou o palco, a plateia não pôde se conter. No dia
anterior, Stalin alterara o plano de lugares de Malenkov, que o colocava no
centro, mas cedeu quanto ao seu costume de sentar-se “modestamente” na
segunda fileira em reuniões assim. Postou-se bem para a direita do presidente,
colocando Mao à sua direita e Khruschev à sua esquerda.
Os discursos tiveram início depois de uma curta declaração de abertura de
Shvernik, que foi interrompida por “estrondosos aplausos” toda vez que o
nome de Stalin era citado. Afora Mao, que classificou Stalin como “grande”, os
oradores se revezaram chamando-o de “gênio”, “pensador e líder genial”,
“professor genial”, “chefe guerreiro genial”, enquanto representantes das
repúblicas, dos partidos comunistas, das organizações da juventude e culturais
fizeram coro ao seu “amor pelo povo” sem qualquer atenuação. No final da
noite, todos estavam exaustos. Fotografias da ocasião mostram Voroshilov,
Molotov e Malenkov totalmente alquebrados com o senta-levanta.
Canções e poemas de glorificação abundaram, até mesmo de homens
talentosos e decentes como Alexander Tvardovsky, cujas loas devem ter sido
sinceras, já que representavam a expressão da adulação universal e cega ao
ídolo. Nos louvores ao líder, o povo entrou numa espécie de êxtase religioso.
Stalin personificava o socialismo. Acreditando no líder, as pessoas acreditavam
também nos ideais que ele supostamente encarnava.
No dia seguinte, enquanto lia os telegramas de congratulações dos líderes
estrangeiros, Stalin virou-se repentinamente para Poskrebyshev e perguntou: “E
quem lhe deu a ideia de escrever sobre frutas cítricas?” Poskrebyshev
respondeu: “Foram Suslov e Malenkov. Eles leram sobre isso no departamento
de propaganda e Suslov se interessou.” O assunto da conversa era um artigo de
Poskrebyshev para a edição do Pravda daquele dia, intitulado “Pai amado e
grande professor”. O autor escrevera que Stalin não apenas ajudara a escola
Michurin de geneticistas a esmagar a escola de Weissmann e Morgan, como
mostrara como os métodos científicos avançados podiam ser aplicados na
prática.

O Camarada Stalin, que esteve envolvido por muitos anos com o estudo e o cultivo da cultura cítrica
na costa do mar Negro, demonstrou ser um inovador científico. Outros exemplos incluem a
introdução de árvores de eucalipto no litoral daquele mar e dos melões na região de Moscou.

Durante todo o mês de dezembro, os jornais estamparam artigos leais e


devotados ao aniversário. A humilhação de uma grande nação seguia a pleno
vapor e, é claro, parecia perfeitamente natural a Stalin. Já em 1931, o social-
democrata alemão e oponente de longa data do bolchevismo, Karl Kautsky,
perguntara: “O que falta a Stalin para chegar ao bonapartismo? Pode-se dizer
que o caso não atingirá sua essência enquanto ele não se autocoroar czar.”55 O
estado totalitário burocrático necessitava de, pelo menos, um primeiro-cônsul,
senão um imperador; o sistema burocrático em si, por trás da fachada da
democracia, não poderia existir sem uma figura política do tipo despótico.

Stalin começou a declinar mais rapidamente depois do seu septuagésimo


aniversário. Sua pressão arterial era constantemente alta, mas ele não queria
médicos, não confiava neles. Ainda ouvia com certo desânimo o acadêmico
Vinogradov, mas Beria convenceu-o gradualmente de que “o velho era
suspeito” e tentou impingir-lhe outros doutores. Stalin, contudo, não quis
qualquer deles. Quando soube que Vinogradov fora preso, esbravejou bastante,
mas nada fez a respeito. Por fim, parou de fumar, mas continuou com seu estilo
de vida pouco saudável em outros aspectos, levantando-se tarde e trabalhando
até altas horas. A despeito da pressão alta, manteve o hábito dos banhos a vapor
que adquirira na Sibéria e, depois do jantar, bebericava vinho aromático
georgiano e evitava remédios. A conselho de Poskrebyshev, ocasionalmente
ingeria umas pílulas e, antes do jantar, bebia um copo de água fervida, à qual
adicionava umas gotas de iodo. Desconfiado de todos, não iria se entregar na
mão de médicos.
Tinha medo da morte, como sempre temera atentados contra sua vida,
tramas e sabotagens. Receava que seus atos diabólicos se tornassem conhecidos
após sua morte. Preocupava-se com o destino de sua criação, e não queria que
ela se transformasse em algo diferente. E, na verdade, depois que ele se foi, seu
mundo e seu culto não sobreviveram por muito tempo.
O tirano a envelhecer vivia perpetuamente temeroso. Sua filha escreveu que,
ao se aproximar do fim, ele sentiu-se vazio: “Negligenciara todas as relações
humanas, era torturado pelo medo que, nos últimos anos de vida, se
transformou em autêntica mania de perseguição, e, no final, seu ânimo forte o
abandonou. Mas a mania não era imaginação doentia: ele sabia e tinha
consciência de que era odiado, e também sabia por quê.”56 Sua velha crença na
longevidade georgiana foi abalada por uma série de tonturas que o
desequilibravam.
No passado, raramente dera atenção aos filhos. Simplesmente não tinha
tempo. Mal os conhecia. Quando Yakov morreu, com ele se foi a irritação que
Stalin sentia à simples menção de seu nome. Jamais foi capaz de ter uma
conversa serena com Vasili, o qual, tinha certeza, só era mantido no cargo por
causa do nome e dos “amigos” bem colocados, que constantemente
borboleteavam em torno dele. Svetlana, nesse meio-tempo, fazia o que queria.
Depois que ela deixou outro marido, o pai conseguiu-lhe um novo
apartamento, e lavou as mãos. Ocasionalmente, ela o visitava na dacha e ouvia
seus resmungos, ou pedia dinheiro, o que fazia com que Stalin lhe desse um
maço de notas de seu salário de deputado.
[54]
Ventos gélidos

N a noite de 6 de março de 1946, justamente quando Stalin se


preparava para sair para a dacha, Poskrebyshev entrou às pressas e
entregou-lhe um cifrado da embaixada em Washington reportando
um discurso feito por Churchill em Fulton, Missouri, na presença do
presidente Truman, natural daquele estado. Apesar do considerável respeito
pelo conhecimento enciclopédico de Churchill, Stalin nunca confiara nele, mas
ficou surpreso com o tom áspero utilizado pelo ex-primeiro-ministro. Embora
expressasse sua admiração pelo “heroico povo russo e por meu companheiro de
guerra marechal Stalin”, Churchill prosseguiu alertando contra um “Perigo
Vermelho” que pendia sobre as democracias ocidentais. “De Stettin, no Báltico,
a Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro desceu através do continente.”
Isto era verdade. Logo depois da guerra, Stalin tomou medidas enérgicas
para reduzir todos os contatos com o Ocidente e com o resto do mundo. Uma
cortina, fosse de ferro ou ideológica, decididamente descera e, dali por diante e
por muitos anos, o povo soviético só teria conhecimento sobre o Ocidente
daquilo que funcionários da laia de Suslov achassem que deveria saber. O
gigantesco fosso de informação que se abriu entre os dois mundos empobreceu
a vida intelectual soviética e privou a União Soviética do contato com a cultura
mundial.
Stalin pôs de lado o relatório e ficou olhando fixamente através da janela
para a noite escura de março. O discurso de Churchill era um sinal e uma
ameaça. Stalin telefonou para Molotov, que estava a postos – como regra, os
membros do Politburo só saíam depois de ter certeza de que Stalin já fora para
a dacha. Molotov chegou, e os dois arquitetos da política externa conversaram
por uma boa hora. Não sabiam que o discurso de Churchill fora precedido por
um longo telegrama para Washington de George Kennan, encarregado de
negócios dos EUA em Moscou, contendo uma avaliação tendenciosa sobre o
discurso de fevereiro de Stalin. Kennan reportara que líderes soviéticos
consideravam “inevitável” a Terceira Guerra Mundial.57
Stalin ficou numa posição difícil. Os EUA haviam se tornado imensamente
mais fortes que a URSS. Ademais, possuíam a bomba atômica. O potencial
industrial da América crescera 50% no curso da guerra. Isto contrastava de
forma acentuada com a posição da URSS, onde milhares de centros
populacionais estavam em ruínas, onde a fome de 1946 era iminente, onde,
praticamente, toda a parte ocidental do país estava engolfada em uma guerra de
partisans que ameaçava se alastrar pelos territórios circundantes. Esse aspecto
da história soviética moderna ainda não recebeu a devida atenção. Depois da
expulsão das forças alemãs da Ucrânia ocidental e da região báltica,
destacamentos armados entraram em luta contra o regime soviético. Em
diversas ocasiões, Stalin ordenou a Beria que desse um fim aos “fora da lei no
mais curto tempo possível”, mas não podia imaginar que a situação perduraria
por mais cinco anos depois da guerra mundial, com maior vigor no oeste da
Ucrânia.
Em 12 de abril de 1946, Kruglov, o ministro do Interior, enviou longo
relato dos eventos de março. Mencionou que na região ocidental da Ucrânia
8.360 partisans tinham sido ou mortos ou capturados, juntamente com oito
morteiros, 22 metralhadoras, 712 submetralhadoras, 2.002 fuzis, 600 pistolas,
1.766 granadas, quatro impressoras e 33 máquinas de escrever. Foram também
capturados diversos líderes locais da Formação Nacionalista Ucraniana,
enquanto 200 integrantes das tropas dos ministérios do Interior e da
Segurança, como também do Exército Vermelho, haviam sido mortos. Na
Lituânia, 145 partisans foram mortos e 1.500 aprisionados. Quarenta e quatro
metralhadoras, 289 fuzis, 122 pistolas, 182 granadas e 12 copiadoras tinham
sido capturados, com perdas de 215 soldados do governo. O relatório
mencionava também embates armados na Bielorrússia, na Letônia e na
Estônia.58 Stalin disse a Beria e Kruglov que estava muito insatisfeito com a
ineficiência das tropas regulares.
Enfrentando múltiplos problemas domésticos, a URSS também estava
totalmente isolada das Nações Unidas, embora lá, ao menos, tivesse o poder de
veto no Conselho de Segurança. Stalin sentiu que começara uma difícil e
desigual confrontação. Ele transformaria seu país numa fortaleza. Na sua
opinião, a Doutrina Truman anticomunista tornava impossível que a URSS
aceitasse o Plano Marshall. Se bem que a URSS se desesperasse por ajuda
econômica, e pudesse se beneficiar do Plano Marshall, só poderia fazê-lo ao
custo de aceitar o controle virtual dos EUA sobre a economia soviética. Por
meio de Molotov, na conferência de Paris de 27 de junho a 2 de julho de 1947,
Stalin disse não.
A percepção que Stalin tinha do Plano Marshall não estava errada. Truman
mais tarde escreveu francamente em suas memórias que “a ideia de Marshall era
liberar a Europa da ameaça de escravização que era preparada para ela pelo
comunismo russo”.59 Começara a longa Guerra Fria. A única saída, acreditava
Stalin, estava em acabar com o monopólio americano da bomba atômica. Às
expensas de enorme esforço, por volta de 1952, a URSS dobrou sua produção
pré-guerra de aço, carvão e cimento, e aumentou sensivelmente a produção de
petróleo e eletricidade. Stalin jamais cansou de declarar que a prioridade
absoluta da indústria pesada era uma “lei perene” do socialismo. A redobrada
energia aplicada à indústria pesada e à ciência criou as precondições para o
salto quantitativo na esfera nuclear. Como já mencionamos, Stalin confiou a
tarefa dessa empreitada secreta a Beria e exigia relatórios semanais sobre o
progresso da atividade.
A experiência soviética nesse campo tinha um histórico sólido. Antes da
guerra, as ideias de A.F. Ioffe, I.V. Kurchatov, G.N. Flerov, L.D. Landau e I.E.
Tamm tornaram possível a construção do primeiro reator a urânio. O trabalho
foi interrompido e só retomado em 1942 sob a supervisão de Kurchatov. Stalin
pressionou por resultados e disse que não deveriam ser poupados recursos para
o projeto. Kruglov, M. Pervukhin e Kurchatov informaram a Stalin, em
outubro de 1946, que, de acordo com instruções do comitê especial do
conselho de ministros, Kurchatov e Kikoin tinham examinado locais
específicos e tomado providências para o aumento, por estágios, do ritmo de
construção, requisitando 37 mil operários.60
Ao mesmo tempo, Kruglov e A. Zavenyagin informaram a Stalin e Beria
que os trabalhos seriam acelerados com o emprego de especialistas que no
momento cumpriam penas de dez anos, entre eles S.A. Vosnezensky, N.V.
Timofeyev-Resovsky, S.R. Tsarapkin, Ya.M. Fishman, B.V. Kyrian, I.F. Popov,
A.S. Tkachev, A.A. Goryunov e I.Ya. Bashilov.61
Em dezembro de 1946, os cientistas soviéticos conseguiram a primeira
reação em cadeia e, no ano seguinte, inauguraram o primeiro reator nuclear,
tornando possível que Molotov anunciasse, em novembro de 1947, que o
segredo da bomba atômica estava desvendado. A primeira bomba atômica
soviética foi testada no verão de 1949, seguida, em 1953, pela primeira bomba
de hidrogênio. Afora a economia, Stalin então devotava a maior parte de sua
energia para as questões da defesa, e uma seção substancial do Gulag foi
empenhada nesse objetivo. Ministros, agora, em geral, iniciavam o
cumprimento de suas missões com requisições a Beria.
Por exemplo, uma solicitação datada de julho de 1946 para a construção de
um campo dentro de outro na Sibéria, a fim de abrigar mil prisioneiros
engajados em pesquisa científica.62 Ou, ainda mais cínico, um requerimento do
ministro de construções da indústria de combustíveis A. Zademidko, em
março de 1947, para relocar 5 mil prisioneiros de campos de concentração da
Sibéria, mais recursos para a aquisição de 30 mil metros de lona para a
construção de barracas e 50 toneladas de arame farpado.63 Tal foi a
profundidade a que afundou a moral do sistema stalinista, ou seja, cientistas
que já definhavam em campos tinham que ser mantidos em barracas cercadas
de arame farpado enquanto trabalhavam em projetos mais avançados e
importantes para a defesa do estado.
Cerca de quarenta anos depois destes eventos, consegui encontrar
Zademidko e mostrei-lhe o documento com sua assinatura – ocorrência
bastante comum naquela oportunidade. Perguntei-lhe como se sentia a respeito
daquela nota. Replicou: “Era assim que as coisas se passavam [...]
Construíamos o socialismo com a ajuda de um vasto exército de prisioneiros. É
claro que agora considero aquilo uma brutalidade.” Fez uma pausa e depois
relatou-me um exemplo da “tecnologia” da força utilizada na construção:

Certa vez, já tarde da noite, fui convocado com meu vice para um encontro com Beria. Com os olhos
brilhando ameaçadoramente por trás do pincenê, ele perguntou com disfarçada calma a respeito de
uma construção especial: “Por que vocês não informaram que a oficina está pronta?”
Respondi: “Eles ainda não terminaram com a instalação do equipamento.” “Quem não terminou?” E,
sem esperar pela resposta, disparou para um assistente: “Ligue-me com o gerente do projeto.”
Três ou quatro minutos mais tarde, uma voz distante foi ouvida ao telefone diretamente da bacia do
Donets. Beria, de pronto, vociferou: “Alô, aqui é Beria. Por que o trabalho não terminou a tempo? A
instalação tem que estar completa às oito horas da manhã! Boa noite!” Pode-se bem imaginar que tipo
de boa noite o gerente teve! Beria disse então ao assistente para colocar na linha o chefe da
administração, a quem disse: “Já determinei ao fulano (Zademidko não conseguiu lembrar-se do
nome) para terminar o trabalho às oito da manhã. Se ele não completar, prenda-o no seu porão.
Adeus!”
Meu vice e eu evidentemente conhecíamos os métodos de trabalho de Beria, mas ao ouvi-lo
distribuindo ordens frias e sucintas nossa pele ficou arrepiada. Era assim que as coisas funcionavam
naquele tempo...
A despeito da baixa produtividade do trabalho forçado, Stalin acreditava que o
uso disseminado de prisioneiros nos projetos da defesa não era apenas uma
forma barata de aumentar o potencial militar da União Soviética, como
também um método testado de “reeducar” centenas de milhares de “inimigos”
e “traidores”.
Seja o que for que pensemos de Stalin, sua impiedosa determinação, aliada
ao enorme custo para o povo soviético, resultou no impossível salto para a
frente: fora quebrado o monopólio nuclear norte-americano e lançada a pedra
fundamental da paridade estratégica. Stalin estava disposto a empregar
qualquer meio, inclusive os movimentos trabalhistas e comunistas
internacionais e o emergente movimento pela paz, desde que conseguisse
vantagens para a União Soviética na sua luta competitiva com o colosso
transatlântico. Depois de uma longa discussão com Molotov e Zhdanov,
decidiu por uma medida que tinha tudo para ser vista pelo Ocidente através de
uma perspectiva altamente negativa. Resolveu estabelecer uma agência para
coordenar as atividades dos partidos comunistas. Na Europa e nos EUA, tal
passo foi interpretado como a aceitação oficial de Stalin do desafio da Guerra
Fria.
Ele fora persuadido a dissolver o Comintern logo no início da guerra, mas
tivera o bom senso tático de ver que a iniciativa seria encarada como fraqueza
e, portanto, adiou a decisão e escolheu um bom momento para fazê-lo, isto é,
na primavera de 1943, esperando que os Aliados ficassem assim encorajados a
abrir a segunda frente. Sabia muito bem que o Comintern era uma agência
puramente soviética e porta-voz dele próprio, mas sua dissolução, considerou,
traria vantagens e desvantagens. E agora, subitamente, criava um novo centro
internacional comunista. Que estaria pensando?
Quando o Comintern foi criado, em 1919, seus líderes – principalmente
Lenin, Trotsky e Zinoviev – acreditavam numa revolução mundial iminente.
Mas quando a onda da revolução recuou, verificou-se que os alicerces do antigo
mundo continuavam intactos. Ficou patente que o papel do Comintern era
tanto limitado quanto subordinado ao país onde se encontrava seu quartel-
general, ou seja, a União Soviética. O fato de ser dirigido a partir de um centro
minou seriamente o movimento comunista e permitiu aos críticos e inimigos a
fácil e justificável acusação de que era manipulado pela “mão de Moscou”.
Agora, no entanto, com a emergência de um mundo bipolar, de dois lados,
Stalin ponderou que a colaboração entre os partidos comunistas estava de novo
na ordem do dia, embora não no antigo estilo ou na velha forma de
organização.
De 22 a 27 de setembro de 1947, os comunistas poloneses, encorajados por
Stalin, organizaram um encontro de nove partidos comunistas europeus na
cidade polonesa de Szklarska Poreba. Na véspera da reunião, Zhdanov, que
recebera a delegação de Stalin para representar o partido comunista soviético,
enviou um telegrama codificado para Moscou delineando os resultados
preliminares de uma reunião de trabalho do partido:

Foi proposto começar com relatórios de informações de todos os partidos comunistas participantes.
Seria então trabalhada uma pauta. Vamos sugerir: 1) a situação internacional, apresentação feita por
nós, 2) coordenação das atividades dos partidos. O resultado deve ser um centro coordenador com
sede em Varsóvia. Creio que ênfase especial deve ser dada ao voluntariado nesta questão. Aguardo suas
instruções.64

Stalin deu sua aprovação. Em consequência do encontro de Szklarska, e quatro


anos após a dissolução do Comintern, veio à luz, como Informburo, o Birô de
Informação dos Partidos Comunistas e Trabalhistas, o Cominform, no linguajar
ocidental. Segundo Zhdanov, os participantes mais ativos e positivos foram os
iugoslavos. Pelo conteúdo, propósito e abordagem construtiva, Zhdanov
classificou como melhores relatórios os do iugoslavo Eduard Kardelj e o do
tcheco Rudolf Slansky.65 No decorrer de um ano, Zhdanov iria considerar
Kardelj um espião imperialista, em novembro de 1949; o Cominform
denunciaria os comunistas iugoslavos como assassinos e espiões; e, em 1951,
Slansky seria julgado e executado como líder de uma trama sionista para
derrubar o estado tcheco.
O discurso de Zhdanov sobre a situação internacional abordou a tese que
iria, praticamente, transformar-se na pedra de toque da propaganda soviética,
isto é, a divisão do mundo em dois campos opostos, uma resposta, com efeito,
à Doutrina Truman. O Plano Marshall foi descrito como “um programa para a
escravização da Europa”. Zhdanov foi especialmente sarcástico em suas
referências aos sociais-democratas, refletindo o ódio de Stalin e a desconfiança
responsável pelo enfraquecimento não só das forças progressistas no Ocidente,
como também do movimento em prol de relações pacíficas Leste-Oeste.
O encontro seguinte era planejado para Belgrado, mas os acontecimentos
tornaram-no impossível. Os povos da Iugoslávia haviam contribuído de
maneira importante para a derrota do fascismo, e o primeiro tratado de
amizade, ajuda mútua e colaboração de pós-guerra com um novo país socialista
foi o assinado por Tito, quando visitou Moscou, em abril de 1945. Stalin
encontrou-se com ele diversas vezes e os dois se deram muito bem. Foi acertado
que a União Soviética repassaria à Iugoslávia tecnologia militar e armamento
para doze divisões de infantaria e duas aeromóveis.66 Os dois países pareciam
ter começado suas relações de maneira auspiciosa. Um grande contingente de
especialistas militares soviéticos trabalhava na Iugoslávia, enquanto milhares de
militares iugoslavos recebiam instrução na URSS. De repente, tudo começou a
dar errado.
Uma série de questões foi debatida sem consulta prévia a Stalin: por
exemplo, um tratado de amizade búlgaro-iugoslavo, o envio de um regimento
iugoslavo aerotransportado para a Albânia, e a declaração do líder búlgaro
Dimitrov, numa entrevista coletiva, de que uma federação de estados socialistas
europeus era uma possibilidade. Stalin ficou furioso. Ditador todo-poderoso
em casa, acreditava ser também o árbitro supremo da vida dos Aliados.
Um encontro de delegações soviética, búlgara e iugoslava teve lugar, por
sugestão de Stalin, em Moscou, em 10 de fevereiro de 1949. As missões foram
respectivamente chefiadas por Stalin, Dimitrov e Kardelj; o lado soviético
incluía Molotov, Malenkov, Zhdanov e Suslov; o búlgaro, T. Kostov e V.
Kolarov; e o iugoslavo, Milovan Djilas e V. Bokaric.
Stalin expressou sua insatisfação de maneira claramente irritada,
admoestando iugoslavos e búlgaros por “seguirem uma linha particular de
política externa”. Os iugoslavos e búlgaros estavam protestando que não havia
motivo para tais imprecações e que as recriminações eram de natureza pessoal,
quando, subitamente, Stalin declarou necessária a criação de uma federação da
Bulgária com a Iugoslávia. Acostumado a ter suas manifestações tomadas como
ordens, Stalin sentiu então um certo grau de resistência. Tanto Kardelj como
Dimitrov, sem repudiar em princípio a ideia da federação, argumentaram que a
situação ainda não estava madura para uma iniciativa como aquela. Kardelj,
além do mais, disse que não podia dar uma resposta definitiva até que a
liderança política de seu país manifestasse sua opinião. Aquela era a primeira
resistência séria que Stalin experimentava em anos e, ademais, vinha da parte
de comunistas. Ele não estava preparado para recebê-la. O fluxo da raiva
ensandecida precisava de uma válvula de escape.
Djilas mais tarde recordou em suas bem conhecidas memórias que Stalin
passou a atacar Dimitrov e Kardelj por ocultarem de Moscou seus assuntos e,
além do mais, de o fazerem por princípio. “Fomos embora depois de três ou
quatro dias. Levaram-nos ao amanhecer para o aeroporto de Vnukovo,
empurraram-nos para dentro de um avião e nos despacharam para casa sem-
cerimônia.”67 A reunião dificilmente poderia ser classificada como diálogo.
Stalin comportou-se como se os visitantes fossem líderes partidários de uma de
suas próprias repúblicas. As sanções não se fizeram esperar. Os assessores
militares soviéticos foram chamados de volta da Iugoslávia, e uma carta áspera,
assinada por Stalin e Molotov, enviada aos líderes em Belgrado. Tito respondeu
com ponderação, rechaçando as acusações de ações inamistosas e de
trotskysmo, e acrescentando: “Por mais que admiremos a URSS como a terra
do socialismo, nenhum de nós pode amar menos nossos próprios países, que
também constroem o socialismo.”
A réplica de Stalin foi mandada em maio sob forma de uma carta de 25
páginas. Em vez da argumentação fria e composta, que era de se esperar do
estilo normal de Stalin, Yepishev recordou que a reação de Stalin foi grosseira e
impulsiva, sem uma pausa para análise da realidade da situação. A gente de
Beria reunira uma coleção de “fatos” que demonstravam “desvios” e “traição”
de Tito e de toda a liderança iugoslava. Stalin ainda não entendera que havia
sofrido sua primeira derrota de pós-guerra.
Decidiu arrastar o Cominform para o conflito. Duas notas foram enviadas
de Moscou para Belgrado convidando os iugoslavos a mandarem delegação
para um encontro do Cominform em Bucarest. Os iugoslavos responderam
com uma firme e polida recusa, argumentando que aquilo era uma
interferência em seus assuntos internos. Contudo, expressaram o desejo de
normalizar as relações. Stalin decidiu prosseguir com o encontro sem os
“acusados”, mas o racha já era um fait accompli. Antes da reunião, em 15 de
junho de 1948, Stalin leu o relatório de Zhdanov que seria apresentado em
Bucarest, intitulado “Sobre a posição do partido comunista da Iugoslávia”, um
texto já do conhecimento de Malenkov e Suslov. Os três soviéticos foram
despachados para Bucarest levando a declaração com emendas de próprio
punho de Stalin. O discurso de Zhdanov continha trechos como este:

Tito, Kardelj, Djilas e Rankovic devem ser inteiramente responsabilizados pela presente situação. Eles
buscaram seus métodos no arsenal do trotskysmo. Sua política para a cidade e o campo está errada.
Um regime vergonhoso e de puro estilo terrorista turco é intolerável num partido comunista [...] Há
que se ver livre de um regime desses. O partido comunista da Iugoslávia tem o elevado dever de
cumprir a honrosa tarefa de acabar com ele.68
Stalin confiava que, como disse Khruschev no XX Congresso, bastava mover
um dedo e Tito estaria acabado. Tal confiança ainda era mais reforçada pelo
que Zhdanov escreveu em seu relatório de Bucarest. Os outros líderes –
Chervenkov, Togliatti, Duclos, Rákosi, Gheorghiu-Dej – tinham “todos, sem
exceção, assumido uma posição irreconciliável com respeito aos iugoslavos”.69
Exibindo-se como campeã do internacionalismo proletário, uma grande
potência exercitava os músculos para intimidar os vizinhos mais fracos e assim
saciar os sentimentos rixentos do irritado ditador. Stalin não hesitou em
denunciar o tratado de amizade, retirar o embaixador soviético e cortar os laços
econômicos. O conflito chegou ao ponto máximo em novembro de 1949, em
Budapest, com a resolução do Cominform intitulada “O partido comunista
iugoslavo está em poder de assassinos e espiões”. Suslov trabalhou sobre o texto
da resolução e ela abarcou todos os tipos de acusações. Os líderes iugoslavos
foram comparados aos nazistas e responsabilizados, entre outras coisas, por
espionagem, aliança com o imperialismo e fomento ao renascimento dos
kulaks.
Os poucos anos que Stalin teve depois da guerra foram tão turbulentos
quanto sua vida após a Revolução de Outubro, e agora suas preocupações iam
bem além das fronteiras soviéticas. Nos países socialistas, que, segundo
Zhdanov, agora formavam um “campo”, os problemas se avolumaram. Em vez
de deixar que cada país desenvolvesse o socialismo à sua maneira, de acordo
com as tradições nacionais, experiência histórica e situação corrente, Stalin
insistiu em adotar o mesmo modelo, os mesmos padrões burocráticos e
dogmáticos da União Soviética em suas estruturas políticas, causando, no
processo, considerável dano à causa geral.
Há razões para que se acredite que, antes da morte, Stalin duvidasse do
“centro unificado”. A derrota que sofrera nas mãos dos iugoslavos fez com que
reexaminasse seus métodos dogmáticos. Isto é demonstrado pelo seu declinante
interesse no Cominform. Em seguida à débâcle iugoslava, o Cominform
reuniu-se apenas uma ou duas vezes e, despercebido, deixou de existir. A
tentativa de transplantar o método de comando para o movimento comunista
internacional fracassara redondamente.
Stalin só pôde considerar dois eventos como luminosos naqueles anos
sombrios: a criação da República Popular da China e o crescimento de um
poderoso movimento internacional da paz. O final dos anos 1940 e início dos
50 foi um período de ansiedades e, por vezes, pareceu que os líderes mundiais
haviam perdido o bom senso. Até o Papa declarou que qualquer católico que
apoiasse os comunistas seria excomungado. A caça às bruxas alastrou-se. Era
difícil conceber que, em questão de dois ou três anos depois da grande vitória,
os Aliados estivessem diante de outra guerra, desta vez uns contra os outros. A
percepção soviética era de que os Estados Unidos não podiam aceitar o
surgimento de outro colosso, e foram feitos até planos pelo Pentágono para o
bombardeamento nuclear da URSS. Naquelas circunstâncias, Stalin adotou
uma política cautelosa, desenvolvendo o poderio militar enquanto evitava
qualquer provocação ao antigo aliado. Embora não fosse tão longe quanto
Mao, que declarou que a força nuclear era um “tigre de papel”, repetidamente
deixou claro que a missão decisiva na guerra futura seria desempenhada pelas
massas.
Houve, é verdade, um breve momento em que pareceu possível que a
ameaça retrocedesse. Em 1º de fevereiro de 1949, o chefe europeu do
International News Service, Kingsbury Smith, enviou o seguinte telegrama de
Paris para Stalin: “O representante oficial da Casa Branca, Charles Ross,
anunciou hoje que o presidente Truman gostaria de ter a oportunidade de se
encontrar com o líder soviético em Washington. Estaria Vossa Excelência em
condições de ir a Washington com este propósito? Caso contrário, onde
gostaria de encontrar o presidente?” No dia seguinte, Stalin respondeu:

Sou grato ao presidente Truman pelo convite para ir a Washington. Uma viagem à capital americana é
um desejo que acalento há muito tempo, que mencionei ao presidente Roosevelt em Yalta e ao
presidente Truman em Potsdam. Infelizmente, neste momento, estou impossibilitado de concretizar
meu desejo de viajar a qualquer distância considerável, em especial por mar ou pelo ar, pois os
médicos proíbem terminantemente que o faça.70

Em vez de Washington, Stalin sugeriu que o encontro tivesse lugar em


Moscou, Leningrado, Kaliningrado, Odessa, Yalta, Polônia ou
Tchecoslováquia, sabendo que Truman recusaria. Não havia nada que os dois
pudessem debater. Truman acreditava que os Estados Unidos tinham maior
chance de fazer com que a URSS dissesse o que ele queria ouvir, mas parece
que, ao mesmo tempo, chegara à conclusão de que tais esperanças eram
infundadas. Nem passava pela cabeça de Stalin ceder ao que o outro ditasse.
Foi então que, num mundo acostumado ao pisar das botas de soldados e ao
tinir de sabres, subitamente ouviram-se as primeiras vozes débeis chamando à
razão. Em 1948, os pacifistas dos dois “lados” haviam se reunido na cidade
polonesa de Wroclaw e fora marcado o Congresso Mundial da Paz, em Paris.
De início, Stalin encarou aquela “tendência intelectual” com o típico
ceticismo, porém, aos poucos, viu que ela encerrava muitas possibilidades. Em
função da vantagem nuclear dos EUA e da correspondente desvantagem do
campo socialista, era essencial fazer o máximo uso possível da opinião pública
mundial contra aqueles que buscavam resolver a confrontação fundamental por
meios nucleares. A propaganda oficial soviética, portanto, apoiou a ideia da
coexistência pacífica, e Stalin, juntamente com Molotov, selecionou
pessoalmente os representantes soviéticos ao Congresso Mundial da Paz, que
compareceram à sua abertura na Salle Pleyel, em Paris.
Na perigosa confrontação entre os dois mundos, Stalin recebeu considerável
ânimo com a revolução chinesa, que alterou fundamentalmente a correlação de
forças. A luta de vinte anos do povo chinês por sua libertação social e nacional
culminou com a triunfal proclamação da República Popular da China, em 1º
de outubro de 1949.
Stalin acompanhava de perto os eventos na China. Quando soube que o
novo embaixador dos EUA em Pequim declarara apoio total a Chiang Kai-
Shek, entendeu que, se os americanos ganhassem posição de influência
predominante na China, a situação da URSS ficaria mais difícil. No começo,
não compreendia muito bem o conflito entre Mao Tse-tung e Chiang Kai-
Shek, e chegou mesmo a dizer certa vez que o levante de milhões de
camponeses famintos não tinha coisa alguma em comum com um movimento
socialista ou democrático. Quando teve conhecimento que, em outubro de
1945, Chiang e Mao apertaram-se a mão em Chunking, com respeito às
questões internas da China, achou que os comunistas chineses estavam se
comportando mais realística e progressistamente.71
Naquela época, Stalin escreveu bastante sobre a China, e suas obras
coligidas contêm cerca de uma dúzia de peças sobre a revolução chinesa,
algumas delas politicamente muito primitivas. Por exemplo, escreveu que “a
revolução no Oriente dará um impulso decisivo à crise revolucionária no
Ocidente. Atacado dos dois lados, bem como pela frente e pela retaguarda, o
imperialismo terá de ver que está fadado a perecer”.72 De forma característica,
ele adotava frequentemente o tom didático quando escrevia para os chineses:
“Os comunistas da China têm que prestar atenção ao trabalho no exército, têm
realmente que estudar as questões militares, pois elas tomarão parte no futuro
regime revolucionário da China ...”73
Deve ser mencionado que a posição de Stalin sobre a questão chinesa foi
vigorosamente atacada por Trotsky. Na minuta de seu discurso para o 8º Pleno
do comitê executivo do Comintern, em maio de 1927, Trotsky escrevera: “As
teses de Stalin só podem sobreviver enquanto o partido for privado da
oportunidade de ouvir críticas a elas, mas a imprensa partidária sob Bukharin,
em vez de publicar opiniões genuínas, impinge-nos seu próprio pensamento
[...] As teses de Stalin, falsas no âmago, são declaradas praticamente
inatacáveis.”74 O próprio Trotsky não estava certo a respeito de tudo, mas
identificara as fissuras no entendimento de Stalin sobre as questões do Oriente,
enquanto outros bolcheviques tentavam adorná-las com retórica revolucionária
de significação “universal”.
Depois da guerra, Stalin deu substancial ajuda à revolução chinesa. Armas e
equipamento de todos os tipos foram enviados para o Exército Popular de
Libertação, e, no segundo semestre de 1947, os ventos da vitória começaram a
soprar a favor do movimento revolucionário, sendo Chiang forçado a fugir
com seus remanescentes para Taiwan. Em vista da oposição permanente dos
EUA, Mao inclinou-se pela amizade com a União Soviética e, depois da
revolução chinesa, as relações entre os dois países se desenvolveram em diversas
esferas, culminando com o convite para que Mao participasse em Moscou das
celebrações do septuagésimo aniversário de Stalin.
O secretário-geral esperou, não muito seguro, pela chegada do líder chinês.
A despeito de ter escrito sobre a China, sabia pouco sobre a história e a cultura
daquele país, e sua noção era limitada a respeito da psicologia nacional chinesa
ou, na verdade, do próprio Mao. Stalin encontrou-se com ele diversas vezes
depois de sua chegada a Moscou, em 16 de dezembro de 1949. Como a
maioria de suas conversas não foi registrada, as memórias do sinólogo soviético
N.T. Fedorenko, que serviu como intérprete, e as de Andrei Gromyko, que as
presenciou, são de particular valor.75
A situação foi também um tanto inusitada para Mao, que jamais saíra da
China, não participara do trabalho do Comintern e cujos vínculos com os
outros partidos comunistas eram mínimos. Os dois homens que se
defrontaram na mesa de negociações também pensavam de forma diferente,
tinham escalas de valores desiguais e representavam civilizações diferentes. Até
mesmo seu marxismo tinha pouco em comum, uma vez que Mao gostava de
mesclar o seu com confucionismo, ao passo que Stalin se restringia a citar suas
próprias obras. Todavia, ambos eram pragmáticos.
Enquanto Stalin observava seu convidado com curiosidade e mal escondida
desconfiança, Mao, de súbito, desviava a conversa sobre os problemas correntes
para regalar o anfitrião com parábolas do mundo misterioso e mágico do
folclore chinês. Contou a Stalin a lenda de Yui-Gun que moveu montanhas.
Em tempos passados, disse ele, vivia nas montanhas do norte da China um
homem muito idoso chamado Yui-Gun, que quer dizer “o velho tolo”. O
caminho de sua casa para o sul era bloqueado por duas montanhas muito altas
e Yui-Gun decidiu removê-las com a ajuda dos filhos e utilizando enxadas.
Outro homem idoso de nome Dzhi-Sou, ou seja, “o velho sábio”, os viu
trabalhando e, sorrindo, disse-lhes: “Isto é uma tolice, como você pensa que irá
acabar com montanhas tão altas?” Yui-Gun replicou: “Vou morrer, mas meus
filhos ficarão, eles morrerão e meus netos permanecerão, e assim as gerações se
seguirão em sucessão interminável. Estas montanhas são de fato altas, mas não
crescerão mais do que isto; ficarão menores seja qual for a quantidade que delas
retiremos, então, por que não seremos, afinal, capazes de acabar com elas?” E
Yui-Gun trabalhou todos os dias na escavação. Tal fato sensibilizou Deus que
enviou seus santos à Terra e eles levaram embora as montanhas.76
A história tinha a intenção de ilustrar o fato de que a China estava sob o
peso de duas montanhas – o imperialismo e o feudalismo – e o partido
comunista da China se dispunha a removê-las. Deus era representado pelo
povo chinês que fora sensibilizado para ajudá-lo. Stalin e Mao concordaram
que mais deveria ser feito além da mera remoção dessas montanhas. Segundo
Fedorenko, as conversas eram longas e sem pressa, enquanto os dois líderes
saboreavam excelente comida, sorvendo goles de vinho seco e discorrendo
sobre as questões internacionais, econômicas, ideológicas e militares. No curso
destas refeições noturnas, também debateram o tratado de amizade, união e
assistência mútua que estava sendo preparado. De acordo com Gromyko,
entretanto, os dois conseguiram apenas uma troca esporádica de ideias, e sua
impressão foi a de que tinham pouco a dizer um ao outro.
Stalin desconfiava de Mao havia muito tempo, influenciado sem dúvida
pelos relatórios de que o líder chinês era hostil aos comunistas chineses
treinados por Moscou, e também pelo fato de Mao nada ter feito quando
Moscou e Stalingrado ficaram sob ameaça durante a guerra. Contudo,
gradualmente, a atitude de Stalin em relação aos chineses foi se alterando, à
proporção que Pequim se mostrava mais antiamericana. A Guerra da Coreia,
por certo, fortaleceu a confiança de Stalin em Mao, colocando assim as relações
sino-soviéticas como um todo numa situação positiva. Sem dúvida, os
sucessores de Stalin e o próprio Mao poderiam ter feito bem mais para
preservar as boas relações dos anos 1950, e uma das razões da deterioração foi
certamente a reação negativa de Mao à denúncia que Khruschev fez de Stalin,
em 1956.
A Guerra Fria foi sentida não apenas no Ocidente, mas também no
Oriente. O desdobramento de tropas americanas e soviéticas na Coreia, logo
após a guerra, predeterminou a criação de estruturas políticas diferentes nas
duas partes da península, norte e sul. Depois das eleições na Coreia do Sul, em
10 de maio de 1948, foram criados órgãos legislativos e executivos e, em 25 de
agosto do mesmo ano, foram realizadas eleições na Coreia do Norte. Dois
estados surgiram, dividindo assim, artificialmente, a nação coreana em duas. As
tropas soviéticas se retiraram do norte, seguidas pela retirada das forças
americanas no sul. Cada um dos lados achava que, nos dois casos, o governo
era apoiado pela maioria da população. Infelizmente, parece claro que o
conflito começou porque cada um deles pretendia estender sua autoridade
sobre toda a península.
De fontes indiretas, pude estabelecer que Stalin tinha uma opinião
extremamente cautelosa sobre os eventos na Coreia e, desde o início, fez todas
as tentativas para evitar a confrontação direta entre URSS e EUA. Mao foi mais
decidido. Durante os encontros entre novembro de 1949 e fevereiro de 1950,
os dois líderes debateram com frequência sobre a Coreia. O ponto de vista de
Stalin era o de que os americanos tinham se afastado tanto do acordo de
Potsdam sobre a Coreia que seria difícil criar um estado unitário sem grandes
dificuldades. Era particularmente cético a respeito da ideia de protetorado
sobre a Coreia, da mesma forma que o era quanto a eleições “livres”. Afinal de
contas, existia uma população significativamente maior no sul, onde estavam
sediadas as forças americanas. O paralelo 38 foi fixado sem qualquer base
política, uma mera demarcação entre as tropas soviéticas e americanas.
Quando, no entanto, trinta divisões chinesas se movimentaram, a situação
na península se alterou marcadamente. As forças chinesas e norte-coreanas não
só expulsaram as tropas dos EUA ao norte do paralelo 38 como também
conseguiram avançar cerca de 100km ao sul do paralelo. À medida que o moral
americano declinava, Stalin sentia que o momento mais perigoso se
aproximava, ou seja, os EUA poderiam recorrer à medida extrema do ataque
nuclear. O general MacArthur propugnou pelo bombardeio da Manchúria, e
Truman insinuou que a opção nuclear não estava descartada. A ameaça de uma
Terceira Guerra Mundial parecia viável, mas nem Stalin nem Mao queriam
enfrentar os Estados Unidos havendo a possibilidade de derrota. Começaram as
negociações tendo como pano de fundo a batalha constante. Stalin reconheceu
que a única saída para o impasse seria alguma forma de meio-termo. Todavia, o
acordo só foi alcançado em julho de 1953, seis meses depois de sua morte.
Se Stalin absorveu as lições da Guerra da Coreia é difícil dizer. Não
obstante, uma coisa é certa: no mundo moderno, o conflito armado tende
sempre para o impasse. Isto ficou demonstrado na Coreia, no Vietnam e no
Afeganistão. A Guerra da Coreia mostrou ainda que a América não era
onipotente e também levou Stalin, depois do “banho de água fria” que recebeu
dos iugoslavos, a reverter para sua cautela costumeira.
PARTE XI
As relíquias do stalinismo

César não quis celebrar seu triunfo por sobre o sofrimento de seu país.
Plutarco
[55]
Anomalia histórica

S talin, com frequência, pensou em ter sua Breve biografia substituída por
um estudo monumental. Diversos sinais indicam-no, inclusive suas
ordens para que os arquivos fossem “pesquisados”, seus comentários
ocasionais com Zhdanov e Poskrebyshev, e suas constantes solicitações a G.F.
Alexandrov, M.B. Mitin e P.N. Pospelov, compiladores de suas biografias
oficiais, para que dessem realce à historiografia partidária e ao “papel dos
pupilos de Lenin”. Cada vez mais, então, se recordava do passado, voltando em
diversas ocasiões à virada do século, à luta pós-Outubro, ao nome das pessoas
cujas vidas havia destruído. Por vezes, era levado ao passado por parentes de ex-
camaradas. Em determinadas ocasiões, depois de despachos de rotina, Beria
mostrava-lhe uma lista de cartas pessoais de parentes de “inimigos do povo”
executados ou exilados. Stalin, normalmente, lia por alto a lista e a devolvia
sem uma palavra. Beria olhava para o mestre como quem tinha entendido,
recolhia os papéis e se retirava.
Noutras oportunidades, ele solicitava informações a Beria sobre um
determinado suplicante. Por exemplo, existe carta de uma Jadwiga Iosifovna,
parente de Felix Dzerzhinsky, o fundador da Cheka, indagando sobre sua mãe,
Jadwiga Genrikhovna Dzerzhinskaya, que fora condenada pela Corte Especial e
que definhava havia anos em campos de Karaganda. A filha escreveu que sua
mãe “se encontrava muito doente, acometida de tuberculose, escorbuto e
brucelose. Estava em condições muito precárias”.1 Caso semelhante foi o da
filha de Radek, Sofia, que escreveu a Stalin dizendo que um ano depois que seu
pai fora condenado, em 30 de janeiro de 1937, ela e sua mãe tinham sido
exiladas para Astrakhan por cinco anos. “Em Astrakhan, minha mãe foi presa
de novo e sentenciada a oito anos nos campos de Temnikov [no norte] onde
morreu.” Em novembro de 1941, Sofia foi exilada de Astrakhan para o
Cazaquistão. Seu exílio terminou em junho de 1942. Continuou ela: “Também
sou um ser humano: se sou filha de um inimigo do povo isto significa também
que sou inimiga? Eu tinha 17 anos quando meu pai foi condenado, em 1937,
e, desde então, sou rotulada de inimiga. Sou formada, mas não tenho onde
aplicar meus conhecimentos em Chelkar. Ainda não possuo passaporte interno.
O chefe da NKVD em Chelkar, o Camarada Ivanov, não responde aos meus
requerimentos. Ajude-me a resgatar os crimes de meu pai!”2 Stalin deixava que
Beria administrasse estes problemas da forma que lhe parecesse conveniente.
Em menos de três décadas, ele elevara o país ao status de grande potência e,
mesmo assim, ainda havia tanta gente descontente. O ministro do Interior
reportara que, em abril de 1949, existiam 180 mil internos em campos
especiais e pedira permissão para aumentar a capacidade de tais campos em 70
mil, para chegar ao quarto de milhão.3 Tratava-se de uma categoria especial de
prisioneiros, contudo, Beria continuava lhe dizendo que não era possível
satisfazer a todas as demandas dos ministérios por mão de obra proveniente
desses campos.
Como se encaixava a ideologia marxista-leninista neste quadro? Por mais
remotos que fossem em relação às preocupações do século XX, muitos de seus
dogmas foram tomados como verdades pelo regime soviético desde o momento
de sua formulação. Nos anos 1920, era dito com frequência que “a classe
operária não pode cometer erros”, ou que “o partido não pode cometer
enganos”, mas ambos cometiam.
Muitos de tais erros foram apontados bem cedo. Em novembro de 1917, no
seu jornal Novaya Zhizn (“Vida Nova”), Gorki publicou um artigo intitulado
“Para a atenção dos trabalhadores”, no qual escreveu:

Tendo forçado o proletariado a concordar com a destruição da liberdade de imprensa, Lenin e seus
adeptos tornaram legal para os inimigos da democracia calar a boca dos outros, ameaçando com a
fome e a perseguição quem não concordasse com o despotismo de Lenin e Trotsky; esses “líderes”
estão justificando um despotismo de autoridade do tipo contra o qual os melhores elementos do país
vêm lutando com veemência por tanto tempo.4

Desafortunadamente, tais alertas contra “o despotismo de autoridade” não


foram ouvidos, então ou mais tarde. Stalin não fez qualquer contribuição para
a teoria do marxismo. Adotou, sem criticar, as ideias marxistas, algumas delas
velhas de meio século, e poucas foram as pessoas que levantaram objeções de
princípios. Apoiado pelo partido e aferrando-se ao pé da letra à doutrina, Stalin
esmagou quem ousou dela se afastar. Enquanto reivindicava estar
“confirmando” o socialismo, transformou os preceitos de Marx, Engels e Lenin
em dogmas, e os usou para fortalecer sua própria posição de autocrata. Pode-se
então falar do stalinismo como nascido no solo do marxismo e nutrido pelas
distorções de seus argumentos, mas daí não se conclua que o marxismo foi
responsável pelo stalinismo. Como sistema intelectual de opiniões filosóficas,
econômicas e políticas sobre sociedade, natureza e pensamento, o marxismo
não pode ser culpado pela maneira como foi interpretado. O marxismo não é
um livro de receitas culinárias nem um plano de ação, embora tenha sido
exatamente assim que Stalin o entendeu. A forma rígida, mecânica e primitiva
com que expressou o marxismo, já perfeitamente evidente no final dos anos
1920, foi o arauto dos infortúnios que viriam, infortúnios com os quais ele iria
adornar o estandarte do marxismo como grandes vitórias do socialismo.
No entanto, a propensão para canonizar tudo o que os primeiros
pensadores marxistas disseram e para fazer disto a base da propaganda soviética
já estava estabelecida bem antes da ascensão de Stalin. Ele herdou e
desenvolveu essa tradição. Se bem que não tenhamos a intenção de justificar
Stalin e o stalinismo, muita coisa tem sido recentemente publicada tentando
vincular todas as deformações, erros e crimes a uma só pessoa. Se fosse este o
caso, teríamos nos libertado do stalinismo há muito tempo.
O stalinismo foi uma forma – forma extremamente negativa – de entender
as ideias contidas na doutrina marxista. O imemorial desejo de alcançar a
liberdade, a felicidade, a igualdade e a justiça foi manifestado pelo marxismo de
forma bastante atraente. Porém, bem antes da revolução, Lenin atacou outros
marxistas, tachando-os de heréticos e revisionistas, por terem interpretado o
marxismo ao seu modo, e o resultado foi que qualquer perspectiva “não
autorizada” passou a ser estigmatizada como “hostil”. O marxismo russo
adquiriu, assim, o caráter de doutrina política que não procurou se adaptar às
condições mutantes, e sim adaptar as condições para que se ajustassem aos seus
postulados. Já com algum retardo, Lenin tentou reverter a situação no partido,
fazendo com que os bolcheviques do início dos anos 1920 tivessem uma visão
prática da situação que surgira no país predominantemente agrícola. Estes
bolcheviques não se mostraram à altura da tarefa e permitiram que a tendência
dogmática florescesse.
O stalinismo explorou ao máximo o amor dos revolucionários russos pelo
radicalismo, sua presteza em sacrificar tudo – história, cultura e seres humanos
– em nome de uma ideia. A deificação de uma ideia ossificada desaguou na
indiferença para com as necessidades das pessoas nos tempos em que viviam. O
radicalismo russo vestiu o manto do romantismo revolucionário e rejeitou as
noções burguesas de felicidade, juntamente com a cultura burguesa. Stalin,
sobretudo, proclamou a opinião de que tudo era permitido em prol da ideia.
Ninguém jamais objetou que se tratava de uma ideia profundamente anti-
humana em si mesma e um crime social contra o povo. O importante era
“ultrapassar”, “derrubar”, “destruir”, “esmagar”, “quebrar”, “vencer”. Este
radicalismo revolucionário, que nutria Stalin, criou decididamente uma nova
pseudocultura na qual suas ideias ocuparam lugar de honra.
Existe outro aspecto do conflito intelectual, tanto antes como depois da
Revolução de Outubro, que não deve ser descurado. Lenin atacou os
mencheviques como politicamente impotentes, mas as críticas deles lançaram
luz sobre o fenômeno do stalinismo, e eles persistentemente se posicionaram
contra o bolchevismo dogmático que desumanizava e minava por dentro o
marxismo.
Os mencheviques no exílio – Martov, Abramovich, Dan, Nicolaevsky,
Dallin, Schwartz – tentaram por muito tempo conduzir uma batalha em duas
frentes, isto é, defenderam os ideais da revolução na Rússia e, simultaneamente,
criticaram sua degeneração. Até 1965, ainda possuíam seu jornal em Nova
York, o Sotsialisticheskii Vestnik (“Mensageiro Socialista”), no qual os líderes
mais influentes eram Fedor Dan, que se inclinou cada vez mais pela URSS e
que faleceu em 1947, e Rafail Abramovich, mais firmemente antissoviético,
que morreu em 1963.
Depois que Lenin faleceu, os mencheviques apontaram suas baterias para os
métodos antidemocráticos de Stalin, realçando, entre outras coisas, seu
afastamento das posições de Lenin. Por exemplo, enquanto saudaram a Nova
Política Econômica, em 1921, alguns mencheviques também advogaram uma
nova linha política que evitasse a emergência de uma tendência bonapartista no
partido.5 Observaram que um pequeno número de pessoas exercitava o poder
em nome do partido bolchevique, ao passo que o crescente papel de um só
homem à sua frente ameaçava com a degeneração. De acordo com
Abramovich, só um estado que contemplasse o pluralismo poderia ser o
garantidor da democracia. Os mencheviques anteviram duas possibilidades
negativas no desenvolvimento da URSS, ou a contrarrevolução ou a falsa
revolução, e perceberam claramente que Stalin optara pela segunda alternativa.
A essência do stalinismo, asseveraram, repousava em sua rejeição às tradições da
social-democracia.
Contudo, depois da revolução, os mencheviques não constituíram uma
força unida política ou ideológica. Sua influência decaiu continuadamente. Ao
longo do processo, Dan afastou-se da maioria, fundou seu próprio jornal, o
Novyi Mir (“Novo Mundo”), em 1939 e, durante a guerra, propagou a ideia de
que, depois da derrota do fascismo, a União Soviética retornaria ao socialismo
autêntico. No seu trabalho principal, As origens do bolchevismo, escrito pouco
antes de sua morte, afirmou que Stalin fracassou em combinar socialismo e
democracia, mas também defendeu a ideia de que o socialismo não começava e
terminava com Stalin e que era capaz de trazer liberdade para o povo.6
Os inúmeros “desvios”, “oposições” e “frações” que irromperam depois da
Revolução de Outubro, por mais inconsistentes que fossem algumas de suas
proposições, tiveram pelo menos o mérito de oferecer alternativas e, sem
dúvida, foi a abolição desse pluralismo revolucionário que privou a sociedade
da possibilidade de renovação histórica. Mencheviques internacionalistas como
Martov, Ermansky e Astrov não foram inimigos da revolução, e o mesmo se
pode dizer dos revolucionários socialistas, que formaram seu partido no final de
1917. Foi precisamente a negação de qualquer outro ponto de vista que lançou
as sementes do dogmatismo futuro e do mando monolítico. Muitas ideias
sobre democracia, Nova Política Econômica, campesinato, comércio, estruturas
do partido e do estado não foram aplicadas porque a maioria partidária fixou-se
naquilo que foi considerado a linha ortodoxa. As visões sobre a realidade foram
enquadradas numa dicotomia de preto e branco. Porém, no início, houve
pluralismo revolucionário, como quando os bolcheviques e os SR concordaram
em formar uma coalizão, em dezembro de 1917.
A verdade é que tal pluralismo revolucionário era insuficiente na política
prática e o que restou dele foi logo impiedosamente destruído. Stalin foi o
homem certo para a consecução desta tarefa, mas, como vimos, não houve uma
verdadeira batalha para resistir ou mudar a direção do processo político.
Bukharin veiculou diversas ideias interessantes, se bem que fosse mais tarde
forçado a renegá-las. No entanto, isto não indica que Stalin e o stalinismo
estavam de alguma forma “predeterminados” a emergir. Pelo contrário, o que
sinalizamos aqui é que o stalinismo floresceu quando as ideias formuladas por
Marx em meados do século XIX, e na ausência de outras alternativas
revolucionárias, foram transformadas em dogmas e em absolutos. A abolição
do pluralismo revolucionário deslanchou o monopólio da verdade social e do
poder político. A metamorfose de aliados e de críticos construtivos em
inimigos conduziu à substituição da democracia revolucionária pela burocracia
totalitária.
Enquanto o partido não deteve o poder, tal abordagem não ameaçou causar
grande dano, porém, ao se tornar o partido governante sob Lenin, a aplicação
do dogma teve seus efeitos destrutivos. Stalin foi além, pervertendo os
princípios socialistas, promovendo uma visão unidimensional do mundo e
sancionando o emprego dos meios mais radicais para a concretização de
objetivos definidos, os quais, eles mesmos, se deformaram no processo.
A consolidação do stalinismo como um fenômeno passou por diversos
estágios. O primeiro foi a “surdez” dos camaradas de Lenin em relação ao seu
“Testamento”. Provavelmente, então, Stalin sentiu pela primeira vez que o
Olimpo do poder estava ao seu alcance. O segundo estágio foi o período de
1925 a 1929, quando a estabilização do mundo capitalista coincidiu com a
emergência da estrutura burocrática da URSS e a expulsão de Trotsky. Num
nível um pouco acima ficou a coletivização e o fim da linha moderada no
Comitê Central. Foi neste estágio que o stalinismo, com o uso da coação em
massa, conseguiu vantagem sobre os caminhos alternativos para o
desenvolvimento. No estágio seguinte, que levou ao XVII Congresso, Stalin se
preparou para sua “coroação” como único líder. A partir de então, o stalinismo
foi simplesmente endurecendo sua embalagem de ortodoxia.
O stalinismo não foi mera enfermidade mental ou social, foi a negação dos
valores humanos. Transformou-se numa espécie de religião terrena, exigindo
que o povo depositasse confiança nela e só nela. A partir do início dos anos
1930, é impossível descobrir qualquer vestígio de desacordo com os dogmas
stalinistas e, já em 1927, o partido adotou o Código de Leis, no qual o
primeiro capítulo continha o notório Artigo 58* com suas dezoito “emendas”.7
Ninguém questiona a ideia de que o estado deve defender seus interesses, mas
quando uma opinião oficiosa era definida como “propaganda ou agitação
antissoviética” e punida da maneira mais severa, então a lealdade à ideologia de
Stalin, em palavras e ações, tornava-se a única forma de adaptação e
sobrevivência, e mesmo isto nem sempre ajudava quando o machado já estava
em posição.
Um vasto fosso se abriu entre a atividade social genuína e sua imitação. A
partir de então, tudo passou a ser completamente organizado: que brindes
deveriam ser levantados durante as reuniões do Komsomol ou dos sindicatos,
que “iniciativas” poderiam ser tomadas, que discursos eleitorais feitos e para
quais audiências, que retratos e em qual quantidade poderiam tomar parte nas
manifestações, quantos “voluntários” deveriam ser enviados para os locais de
“trabalhos de choque”, a quem os relatórios deveriam ser mandados e sobre o
quê – tudo era decidido de cima para baixo. As pessoas gradualmente se
acostumaram a ter alguém pensando por elas. Delas só se pedia “aprovação”,
“aplauso” ou “apoio”.
Além de cada decisão partidária, estatal ou organizacional ter que ser
submetida a ele, Stalin também era chamado a inventar slogans para os
escritores. Em 2 de janeiro de 1936, A.S. Shcherbakov, então primeiro-
secretário do comitê do partido em Moscou e secretário do sindicato dos
escritores, escreveu a Stalin:

No interesse da causa, devo perturbá-lo para solicitar ajuda e aconselhamento. Trabalhos bastante
bons foram escritos por Korneichuk, Svetlov, Levin, Yanovsky, Leonov, Avdeyenko. Alguns velhos
mestres do “silêncio”, como Falko, Tikhonov, Babel e Olesha, começaram também a dizer alguma
coisa. Novos nomes apareceram: Orlov, Kron, Tvardovsky. No geral, entretanto, o atraso na literatura
não foi compensado. A crítica não ajuda. Um escritor (Vinogradov) falou sobre suicídio depois de ser
cruelmente atacado. E o crítico em questão (Yermilov) disse em resposta: “Se pessoas como essas se
envenenarem, ninguém se importará.” Esta é a posição na literatura. O necessário agora é um slogan
concreto e militante para mobilizar os escritores. Ajude-nos, Camarada Stalin, a encontrar o slogan.8

Tendo, em meados dos anos 1930, desviado sua atenção principal do Comitê
Central para a NKVD e para o exército, Stalin, ao fim da guerra, foi
particularmente pródigo com as medalhas e ordens que conferiu aos oficiais
mais antigos daquelas armas. Beria, que foi feito marechal da União Soviética
em 1945, recebeu muitas outras altas honras militares e, em 7 de julho de
1945, Stalin aprovou a solicitação de Beria ao ministério para promover sete
chefes de polícia e de segurança ao posto de coronel-general: V.S. Abakumov,
S.N. Kruglov, I.A. Serov, B.Z. Kobulov, V.V. Chernyshev, S.A. Goglidze e K.A.
Pavlov.9 Generais da ativa no front jamais receberam tais sinais de amor “em
massa” do presidente do comitê de defesa.
Era uma lei não escrita da ditadura que a tensão deveria ser mantida
durante todo o tempo sobre os funcionários dos altos escalões do aparato.
Stalin acreditava que a autoridade deveria inspirar não apenas respeito, mas
também medo, e introduziu regras não oficiais de conduta mesmo para o
círculo mais íntimo de camaradas em armas. Por exemplo, eles sabiam que não
deveriam se reunir em grupos de dois, três ou mais, sem sua permissão, seja em
casa, em suas villas ou em seus escritórios. As únicas exceções para tal regra
eram Beria e Molotov que, normalmente, viajavam juntos no mesmo carro
para a dacha de Stalin. Se houve encontros entre os outros membros, foi na
casa de Stalin e a convite dele.
Como sistema de governo, o stalinismo baseava-se primordialmente em
relatórios recebidos das organizações, em particular das agências de polícia e de
segurança. Exemplificando, depois da guerra, Stalin interessou-se pela
Academia de Ciências. Beria reportou que corria que seu presidente ficava
constantemente doente, que sua pesquisa não tinha padrão elevado e que o
trabalho dos outros acadêmicos merecia também investigação. Stalin requisitou
informações e breves descrições de outros cientistas e, logo depois, as pastas já
estavam sobre sua mesa. Desnecessário dizer que as pastas não foram
compiladas na administração da Academia ou no comitê do partido, mas numa
divisão da Segurança Estatal. Um de tais documentos inclui as seguintes
anotações:

Acadêmico Vavilov, S.I. – físico, está no auge de sua capacidade. Irmão de N.I. Vavilov, o geneticista
que foi preso em 1940 por sabotagem na agricultura, sentenciado a quinze anos e morreu na prisão de
Saratov.
Acadêmico Lysenko, T.D. – não filiado ao partido, diretor do Instituto de Genética. Presidente do
Instituto de Ciência Agrícola, por duas vencedor do Prêmio Stalin. O acadêmico Lysenko não desfruta
de respeito, inclusive do presidente [da Academia] Komarov. Todos o culpam pela prisão de N.I.
Vavilov.10

O stalinismo levou a primazia do estado sobre a sociedade a limites absurdos.


Era um sistema que dependia de vasta e poderosa burocracia em todos os níveis
e em todas as esferas, e, dentro de um ambiente de absolutismo político, as
decisões do líder foram ficando cada vez mais divorciadas da realidade
econômica. O stalinismo foi, acima de tudo, a separação entre pensamento e
ação, teoria e prática, a divisão da mente, tornando possível que as pessoas
dissessem uma coisa e fizessem outra. A corrupção mais profunda do sistema
stalinista foi a remoção do homem, como tal, do centro dos objetivos da
sociedade, e sua substituição pelo estado, como uma máquina que amplificava
apenas um homem. O homem foi trocado por um aparato sem rosto, fato
observado, entre outros, pelo ex-comunista Victor Serge, que escreveu em 1937
que “no estado stalinista o homem não vale coisa alguma”.11
Nota

* Lei contra a disseminação de propaganda antissoviética, que foi largamente interpretada como inclusiva
de qualquer crítica ao sistema, falada, escrita ou mesmo insinuada.
[56]
Dogmas mumificados

O dogmatismo foi um dos mais importantes pilares do stalinismo. Era


um atributo capaz de gradualmente conduzir o estudo da sociedade
e, na ocasião devida, a própria sociedade a um beco intelectual e
psicológico sem saída. Velho mestre do pensamento dogmático, Stalin sabia
como matar as proposições marxistas e mumificá-las em clichês deformados.
Típico do tirano, Stalin selecionou quais das proposições de Marx deveriam
ser mumificadas; ele próprio determinou o que poderia ou não ser publicado
das obras dos fundadores do marxismo. Os arquivos registram muitos
requerimentos para publicar essa carta de Lenin ou aquele fragmento de um
manuscrito de Marx ou Engels. Em junho de 1939, por exemplo, M.B. Mitin,
diretor do Instituto Marx-Engels-Lenin, pediu a autorização de Stalin para
publicar duas cartas de Lenin para Inessa Armand na edição seguinte do
Bolshevik. Tais cartas expressavam a reação hostil de Lenin à formação do
Governo Provisório em Petrogrado, em seguida à derrubada do czar, em 1917.
Stalin escreveu “Nenhuma objeção”. Mas o Instituto nem sempre conseguiu
permissão com tanta facilidade. Em julho de 1940, Zhdanov, Mitin e Pospelov
ficaram em dúvida sobre um artigo de Engels, “Sobre a política externa do
czarismo russo” e o submeteram à opinião de Stalin. O secretário-geral leu o
trabalho e fez os seguintes comentários à margem do documento: “Vileza
agressiva não é monopólio dos czares russos”, “ele exagera o papel da política
externa na Rússia”, “ao atacar a política externa czarista, [Engels] resolveu
privá-la de qualquer crédito aos olhos da opinião pública europeia”. E
concluiu: “Considerando tudo isto, será que vale a pena publicar o artigo de
Engels em nosso órgão militante, o Bolshevik, seja como artigo de fundo em
todos os aspectos, seja como artigo profundamente instrutivo, já que sua
difusão no Bolshevik representaria uma recomendação não verbal? Acho que
não.”12
A verdadeira enciclopédia do dogmatismo, a miscelânea de múmias, meias
verdades e inverdades, foi a notória História do partido, curso resumido, que saiu
em mais de trezentas edições e cerca de 43 milhões de exemplares, e se
transformou em leitura fundamental para os cidadãos soviéticos adultos da
mesma forma que o Corão para os muçulmanos engajados. Um grupo de
historiadores, inclusive Knorin (que logo seria preso), Pospelov e Yaroslavsky,
dispôs-se a escrever o Curso resumido, de acordo com uma instrução do
Politburo de 16 de abril de 1937. O livro se baseou na divisão que o próprio
Stalin fez da história do partido em períodos e de sua definição da característica
principal como “a luta bolchevique contra as facções antibolcheviques”.13 Os
capítulos eram enviados regularmente a Stalin, à medida que ficavam prontos,
como também diversas diagramações do livro. Ele, com efeito, distorceu cada
capítulo para adaptá-lo à noção básica da história do partido como sendo a de
uma luta interna. À sua frente, punha-se o verdadeiro camarada em armas e
herdeiro da causa de Lenin-Stalin. A julgar pela quantidade e natureza de seus
comentários marginais, Stalin deve ter devotado muito tempo à sua “história”,
sabendo que ela iria constituir um mecanismo importante para assegurar sua
influência duradoura sobre a mente de milhões.
Semelhante infusão ideológica, dogmática e anti-histórica como o Curso
resumido levou ao pauperismo espiritual e ao primitivismo intelectual. Stalin
preparava o terreno junto a uma ampla camada de povo que pensava em
termos elementares, pessoas que iriam proporcionar um suprimento constante
de carreiristas, informantes, oportunistas e funcionários estúpidos para seu
sistema. Foi exatamente este estrato que preencheu os cargos do aparato
burocrático, as divisões e órgãos punitivos em todos os níveis. Os arquivos de
Malenkov mostram que milhares e milhares de pessoas eleitas automaticamente
pelos plenários passaram por suas mãos para trabalhar no partido, nos órgãos
do ministério do Interior e na administração de outros ministérios. Os critérios
para a determinação da maturidade intelectual e teórica eram a ausência de
comentários comprometedores da parte dos órgãos de segurança e o
conhecimento do “livro de referência” de Stalin. Ocasionalmente, os
candidatos a cargos eram convocados a Moscou para entrevista com Malenkov,
o qual, confortavelmente reclinado em sua cadeira de braços, inflava
pomposamente as bochechas e arremessava com ares professorais: “Que desvio
é o mais perigoso?” ou “Quando e onde o Camarada Stalin disse que ‘Os
quadros determinam tudo?’”
A energia intelectual do Curso resumido foi suficiente por mais de uma
década. Antes da guerra, dominou a mente pública não só porque os
propagandistas fizeram bom uso dela, como também porque milhões de
pessoas, como já dissemos, pareceram nela encontrar uma avaliação pré-
digerida e simples de toda uma época. A maioria das pessoas não se dava conta
de que a imagem pintada era distorcida ao extremo. O sistema de educação
política instilou o pensamento dogmático através de toda a sociedade. O
expoente mais apaixonado da linha stalinista nessa esfera foi Zhdanov.
Stalin cedo percebeu o potencial de Zhdanov. O jovem secretário do
partido na província de Nizhni Novgorod (que recebeu o nome de Gorky, em
1932) foi o robusto tipo de organizador comunista característico daquele
tempo. Candidato a membro do Comitê Central em 1925,* em 1929, com 33
anos de idade, foi convocado ao Kremlin por Stalin, onde causou viva
impressão. O secretário-geral questionou-o sobre a situação em Nizhni, sobre o
estado de espírito da população e sobre a reação popular quanto à expulsão de
Trotsky do partido.
Na próxima oportunidade que se apresentou, uma conferência do partido
no distrito de Sormovo de sua província, Zhdanov pronunciou um discurso no
qual conclamou os integrantes a permanecerem em guarda contra o perene
perigo dos trotskystas que ainda infestavam o partido.14 No XVII Congresso,
que teve lugar no ano seguinte, ele se tornou membro pleno do Comitê
Central e, depois disto, sua carreira foi meteórica. Recebeu a incumbência da
organização do partido em Leningrado, depois do assassinato de Kirov e,
simultaneamente, foi feito secretário do Comitê Central. Em fevereiro de
1935, foi eleito candidato a membro e, em 1939, membro efetivo do
Politburo. Sua relação com Stalin era bastante próxima e os dois chegaram ao
parentesco quando o filho de Zhdanov, Yuri, casou-se com a filha de Stalin,
Svetlana, embora o matrimônio durasse pouco. Stalin gostou também da
atuação de Zhdanov como membro do soviete de guerra em Leningrado e, em
1944, promoveu-o a coronel-general, posto atingido por poucos do setor
político naqueles dias.
No fim da guerra, de certo modo, testou Zhdanov no front diplomático
quando o encarregou de negociar um tratado de paz com os finlandeses. Em 18
de janeiro de 1945, Zhdanov informou Stalin e Molotov por telegrama
“urgentíssimo” que tivera naquele dia uma conversa particular de duas horas
com o marechal de campo Mannerheim:

Mannerheim disse que, depois de muitos anos de hostilidades, chegou a hora de uma mudança radical
nas relações entre nossos dois estados. Linhas de defesa contra a URSS são inúteis, disse ele, se não
existem boas relações. Afirmou que não quis a guerra em 1939, nem em 1940-41, e que não esperou
um bom resultado, mesmo antes de elas começarem. Expressou concordância com a colaboração na
defesa do litoral, mas defenderia ele mesmo o interior do país. Perguntou se havia tratados-padrões e
respondi que o tratado com a Tchecoslováquia poderia ser considerado como tal. Aguardo
instruções.15

Não foi Stalin, e sim Molotov quem respondeu bastante concisamente:

Você foi muito longe. Um pacto com Mannerheim do tipo que temos com a Tchecoslováquia é
música para o futuro. Temos que restabelecer primeiro as relações diplomáticas. Não amedronte
Mannerheim com propostas radicais. Esclareça apenas sua posição.

No dia seguinte, Zhdanov reportou de novo para Stalin que havia se


encontrado com Mannerheim:

Disse-lhe que um pacto do tipo que tínhamos com a Tchecoslováquia era “música para o futuro”,
seguindo-se ao restabelecimento de relações diplomáticas. Mannerheim disse que entendia: a
Finlândia estava sob vigilância como um país que ainda não podia ter relações de uma espécie
diferente com a URSS. Ele ficou obviamente desapontado.16

Como era de seu costume, Stalin testara Zhdanov e seu próprio julgamento das
pessoas. Algumas vezes, testava seus auxiliares por longo tempo, em certos
casos, durante a vida toda, mas jamais esquecia um erro importante. Zhdanov
sempre justificou a confiança que Stalin nele depositava, embora seja também
verdade que, se não tivesse falecido subitamente, em 1948, aos 52 anos de
idade, provavelmente seria também engolfado pelo massacre de Leningrado,
que ele próprio desencadeara. O filho, Yuri, afirma que Stalin estava esfriando a
relação com seu pai, justamente como o fez com Voznesensky, Kuznetsov e,
mais tarde, também com Molotov. Contudo, a atitude de Stalin com respeito a
Zhdanov só pode ser julgada por evidências circunstanciais.
Durante seu tempo no Comitê Central, Zhdanov demonstrou ser um
severo e implacável zelador da ideologia e da cultura. O dogmatismo foi
inculcado não só por meio da deificação do “gênio criativo do líder” como
também pela instalação de todo um sistema de proibições relativas ao
pensamento: o que podia ou não ser exibido nas telas dos cinemas, o que os
produtores de teatro não podiam encenar, o que os escritores podiam ou não
escrever, os músicos, tocar, os filósofos e historiadores, debater. Os tabus eram
incontáveis. A vida cultural depois da guerra caiu de novo no marasmo, antes
de receber a chance de descongelar após o pesadelo de 1937-38.
Naquelas condições, as ciências sociais só podiam vegetar. As explanações
primitivas da ocasião só fizeram matar a alma do academicismo e limitar
seriamente sua esfera de influência. Como mencionamos, desde o final dos
anos 1930, só era possível comentar sobre o que Stalin dizia. De inexperientes
cientistas sociais a acadêmicos de renome, a “pesquisa” de todos se resumia ao
mesmo tema: o papel de I.V. Stalin no desenvolvimento da economia; o
significado de Problemas econômicos do socialismo na URSS, de I.V. Stalin, para
o desenvolvimento da filosofia; I.V. Stalin sobre a teoria do estado e a lei; a
contribuição decisiva de I.V. Stalin para o desenvolvimento da ciência militar.
Um exame superficial das bibliotecas revelou mais de quinhentos livros e
artigos sobre estes e temas análogos, escritos entre 1945 e 1953. O pensamento
científico se encontrava refém de dogmas primitivos e plúmbeos, e o esforço
criativo, atrofiado.
As ciências naturais e técnicas não sofreram menos. O desenvolvimento da
genética atrasou-se décadas e a cibernética foi banida, porque as novas ideias e
os novos campos do aprendizado eram orientados por pontos de vista
grosseiros, senão totalmente ignorantes. A caça aos “cosmopolitas”, na maior
parte das vezes codinome dos judeus (ver adiante), condenou as ciências a
isolamento ainda maior do mundo intelectual. Artigos como “Cosmopolitismo
a serviço da reação imperialista”, publicado no jornal governamental, o
Izvestiya, em 18 de abril de 1950, mataram qualquer desejo dos cientistas
soviéticos de fazerem contato com estabelecimentos estrangeiros de pesquisas.
A menção a um cientista soviético numa revista científica estrangeira ou um
convite para congresso internacional podiam ser desastrosos.
A tentativa de transferir mecanicamente as formulações de Stalin para o
desenvolvimento da biologia foi equivalente à morte dos esforços soviéticos
neste campo, e se tivesse continuado por mais cinco anos, ou perto disso, a
ciência como um todo teria descarrilado completamente. Naquelas
circunstâncias, foram pessoas como T.D. Lisenko que se aproveitaram do
ditado de Stalin – “Precisamos de resultados práticos imediatos na ciência” –
para chegar ao topo. No que tange a Stalin, as ciências constituíam um mundo
mágico, misterioso e de alquimias, de alguma forma conectado com as
conquistas do novo. A ele parecia que a principal coisa sobre a ciência era como
organizá-la. Acreditava que o trabalho científico poderia até ser realizado no
Gulag, se adequadamente organizado e, de fato, os resultados mostraram-lhe
que não estava de todo errado. Aqueles que considerou perigosos ou que não
trilharam seus caminhos dogmáticos ou foram destruídos sem misericórdia ou
foram se juntar à vasta população dos acampamentos, entre os quais estavam
possuidores das mais refinadas mentes científicas do país.
Os cientistas cujas vidas foram poupadas passaram a trabalhar nos
laboratórios dos campos e prisões – sharashkas – sob a supervisão da 4ª Seção
Especial do Ministério do Interior. Nesta área, Stalin adotou uma orientação
puramente pragmática, ou seja, a visão do mundo e as opiniões políticas dos
sentenciados não tinham a menor importância. O que interessava eram os
resultados rápidos, e, quando eles eram conseguidos, Stalin era capaz até de
demonstrar alguma benevolência, reduzindo às vezes a sentença e mesmo
libertando o prisioneiro. A agência de Beria mantinha Stalin constantemente
informado sobre o trabalho dos cientistas nas prisões e nos campos. Em 18 de
maio de 1946, por exemplo, Kruglov reportou que:

Um grupo de prisioneiros cientistas, inclusive o professor K.I. Stakhovich, o professor A.Yu. Vinblat e
o engenheito G.K. Teifel, vem trabalhando há muito tempo na construção de um motor nosso turbo-
propulsado. Fundamentando o trabalho em suas próprias pesquisas teóricas, o grupo propõe a
construção do motor TRD-7B. Solicito que seja apreciada a minuta de decreto do Conselho de
Ministros.17

E, em 8 de fevereiro de 1951, Kruglov reportou que:

Em 1947, o prisioneiro especialista A.S. Abramson (sentenciado a dez anos) propôs um sistema novo
e original para um carburador econômico de automóveis. Os testes no ZIS-150 produziram uma
economia de combustível da ordem de 19%. Sugiro que A.S. Abramson, o engenheiro mecânico
M.G. Ardzhevanidze e o engenheiro construtor G.N. Tsvetkov tenham suas sentenças reduzidas de
dois anos. Aguardo suas instruções.18

Stalin deu seu consentimento.


No ginásio, os estudantes eram testados particularmente em sua capacidade
de sintetizar as obras de Stalin. Lembro-me de ter sido retido pelo professor
quando frequentava a escola de blindados de Orel. Ele era um tenente-coronel,
não mais um jovem, do qual a classe gostava por causa de seu temperamento
afável. Quando ficamos sozinhos, ele entregou-me o trabalho que eu fizera, que
era uma síntese das fontes, e disse-me numa voz calma e paternal: “É um bom
sumário. Vi logo que você não se limitou a copiar, mas pensou sobre o assunto.
Agora, meu conselho é: sintetize as obras de Stalin mais completamente.
Entendeu? Mais completamente! E outra coisa, na frente do nome Iosef
Vissarionovich não escreva ‘Cam.’ Escreva ‘Camarada’ por extenso. Entendeu?”
Naquela noite, um de meus companheiros de alojamento disse-me que todos
tiveram conversas semelhantes com o professor da história do partido. Os
exames se aproximavam e havia rumores que numa escola vizinha “tinham
prestado atenção” à espécie de “imaturidade política” que eu demonstrara em
meus sumários.
Nota

* Candidatos a membro não tinham direito a voto. [N. T.]


[57]
Burocracia absoluta

T odos os estados necessitam de uma administração. A burocracia, na


acepção com que a empregamos para o sistema stalinista, surge onde a
administração civil se divorcia do funcionamento econômico do
estado e onde o sistema carece de métodos democráticos de autorregulação.
Nos primeiros dias do regime soviético, pareceu que os executores da política
bolchevique não constituíram uma grande ameaça neste particular. Pouco
depois da Revolução de Outubro, Lenin, refletindo sobre o novo aparato, disse:
“No interesse do povo, ele não deve abrigar qualquer espécie de
burocratismo.”19 Mesmo então, ficou evidente que o aparato representava um
perigo mais sério que o admitido. Sabemos que, nos momentos difíceis, Lenin
podia ser muito rigoroso com a burocracia. Em janeiro de 1919, disse: “Uma
atitude burocrática em relação ao trabalho, ou a incapacidade para ajudar os
trabalhadores que passam privação, será severamente punida, podendo chegar a
ponto de fuzilamento.”20
O aparato cresceu no processo de consolidação do regime soviético, em
especial durante o período do Comunismo de Guerra, de 1918 a 1921. Neste
período, foi visualizado o controle total da produção, da distribuição e do
consumo, e foi um sistema que requereu o emprego de muitas, muitas pessoas.
Novos elementos da estrutura estatal foram criados, novos vínculos de
intermediação, coordenação e conexão, e assim por diante. O sistema cresceu a
um ritmo alarmante sob Lenin, absorvendo uma quantidade considerável de
energia para garantir o próprio funcionamento. Se Stalin se especializou em
alguma coisa naqueles estágios iniciais, foi no campo da organização. Chefe de
dois comissariados e membro antigo do Comitê Central, de sovietes, comissões
e comitês, ele logo percebeu os pontos fortes e fracos, bem como as
possibilidades, das organizações administrativas e partidárias.
Nomeado secretário-geral, Stalin determinou que o aparato formulasse um
sistema para a classificação dos cargos nos comissariados que, com o tempo,
desenvolveu-se na notória nomenklatura. Por suas ordens, por exemplo, em
fevereiro de 1923, o administrador-chefe do comissariado das Nacionalidades,
Brezanovsky, preparou um documento intitulado “Disposição dos cargos de
acordo com as gradações na estrutura administrativa do Comissariado do Povo
para as Nacionalidades”. As chefias de departamentos foram divididas em
quatro grupos: problemas nacionais, serviços econômico-administrativos,
trabalho político-científico-educacional e publicações literário-científicas. Os
trabalhadores do partido foram classificados como qualificadíssimos, altamente
qualificados e de média e baixa qualificação; dois ou três cargos foram listados
como acessíveis a não filiados ao partido. O sistema de gradações, que Stalin
aprovou, subdividiu a organização crescente de acordo com faixas precisas
(similar às gradações inventadas por Pedro, o Grande, para o antigo
funcionalismo civil czarista), cortando assim os laços já fracos que uniam o
comissariado aos problemas reais das nacionalidades e dos grupos étnicos.21
Com efeito, então, ao se tornar secretário-geral, Stalin pôs-se a organizar um
vasto e abrangente exército de funcionários.
Como especialista em burocracia, Stalin rapidamente fez uso de um dos
principais truques do ofício burocrático, o da inacessibilidade. Um pleno de
1922 estabeleceu os dias e as ocasiões em que o secretário-geral despacharia,
mas Stalin logo abandonou a prática e, já em 1924, havia reclamações, por
exemplo, para Yenukidze, de que “é impossível chegar ao Camarada Stalin”.22
Nas suas últimas cartas, Lenin lançou um ataque à burocracia crescente,
percebendo dano não só na sua proliferação – ele se referiu a pragas como
“gafanhotos do funcionalismo” e “ratos burocráticos” – mas, em particular, no
modo com que ele tomava o lugar da participação popular. Acreditou que a
maneira de limitar o poder da burocracia era carrear para a direção mais
operários e camponeses. Nos dias de hoje, é evidente, sabemos que esta seria
também uma medida inadequada, uma vez que todos, na burocracia soviética
presente, têm “sangue do povo”, e ninguém se refugia lá por causa de sua
origem social, como se costumava dizer depois da revolução. Lenin confiou
também num expurgo no partido para que ele ficasse livre daqueles que “não
apenas eram incapazes de bater-se contra a burocracia e o suborno, mas que
impediam que outros os combatessem”.23 Sua solução principal era a de elevar a
cultura do povo como um todo. As pessoas não tinham que depender do
aparato, e sim o contrário. Escreveu com amargura: “Veja quantas leis
formulamos! Então, por que não estamos vencendo essa guerra? Porque a
propaganda não é suficiente, e só poderemos vencer se as próprias massas
ajudarem.”24
Na segunda metade dos anos 1920, dois conceitos alternativos surgiram.
Um deles era personificado por Bukharin, que advogava taxas relativamente
moderadas de desenvolvimento, tanto na indústria quanto na produção
cooperativa; o outro era bancar um salto para a frente sem paralelos na
indústria e na agricultura. Este último encontrou sua expressão mais completa
em Stalin. Seria impossível concretizar tal avanço com a utilização apenas de
métodos econômicos. Era, portanto, necessária a administração coercitiva, e
isto, de forma inexorável, levou à proliferação e ao entrincheiramento de um
amplo estrato burocrático. Como a tarefa seria cumprida principalmente às
expensas da gente do campo, a coerção ficou efetivamente predeterminada.
Talvez certas medidas administrativas se fizessem necessárias em determinado
estágio, mas a repressão não era uma delas. Todavia, Stalin sabia que Lenin
havia escrito: “Seria o maior erro pensar que a NEP deu um fim ao terror.
Retornaremos a ele e ao terror econômico.”25
Tendo se livrado dos oponentes, Stalin optou pela alternativa coercitiva, e a
criação do sistema burocrático seguiu-se automaticamente. O recurso à
compulsão não econômica criou um “Estado” que não dependia da quantidade
ou da qualidade da produção, mas, em grande medida, de arranjos políticos. A
burocracia conferiu, maquinalmente, prioridade aos meios políticos e
ideológicos para exercer força sobre as massas, colocando as alavancas
econômicas em segundo ou terceiro lugar. O estado socialista perdeu
rapidamente os vestígios de democracia que possuía.
Desde o começo, muitos líderes bolcheviques eram favoráveis à ditadura
sem democracia. Em 1922, Trotsky escreveu que “se a revolução russa [...]
tivesse se autolimitado com os grilhões do democratismo burguês, estaria há
muito tempo jogada na rua com o pescoço cortado”. Ele nem mencionou a
democracia socialista porque acreditava que ela só viria quando a revolução se
alastrasse para outros países. Os bolcheviques que estavam imbuídos da ideia
da ditadura do proletariado – talvez porque não vissem outro caminho para o
poder – e que exibiam seu radicalismo como marca registrada da inclinação
revolucionária, tinham a intenção clara de resolver os problemas da Rússia por
meios violentos.
A maioria das pessoas, ainda hoje, vê a burocracia como formalidades,
empurra-empurra de papéis e obstruções. Esta era a maneira com que muitos
revolucionários também a viam àquela época. Falando em 28 de maio de 1926
na Terceira Conferência de Toda a União de correspondentes de cidades e vilas,
Trotsky definiu o burocratismo em termos relativamente estreitos de
servilismo, oportunismo, conservantismo e coisas do gênero.26 Se bem que
estas eram – e são – características do excesso de burocracia, tal definição
esconde seu principal atributo, isto é, a substituição das forças democráticas
pela organização todo-poderosa. Em setembro de 1927, numa sessão do comitê
executivo do Comintern, Trotsky – e isto deve lhe ser creditado – previu com
maior acuidade que “o regime burocrático levará irreversivelmente ao mando
de uma só pessoa”.27
Nem todo o mundo percebeu que isto aconteceria, e os que perceberam
não foram ouvidos. Poucos minutos depois de Trotsky fazer sua declaração
profética, Bukharin já o atacava. “Devemos perguntar a Trotsky por que ele
não toma a posição de sentido ante o partido, como um soldado?” Ao que
Trotsky replicou: “Vocês mantêm o partido preso pelo pescoço.”28 Bukharin
não se apercebera de que a mão do ditador começava a apertar impiedosamente
não só o pescoço do partido como também o do povo e, na verdade, também o
dele.
A essência da forma stalinista de burocracia foi sua totalidade. Este processo
era expresso pelas leis não escritas que começaram a governar todo o estado,
órgãos do partido e do judiciário, e organizações públicas. A impressão era a de
que a burocracia sintetizava tudo numa só entidade unitária, coagulada,
pegajosa, invulnerável e onipresente; cada elemento do sistema, cada
funcionário realizava apenas o que lhe era prescrito, permitido ou ordenado.
Num sistema assim, era o poder das instruções, das diretrizes, das ordens que
imperava, que encerrava a ameaça de punição, condenação e ostracismo, e que
encorajava a ação de feitores zelosos e funcionários vigilantes. O produto final
tinha a aparência de uma administração coletiva.
A burocracia total era independente da oportunidade econômica, venerada
no santuário do aparato ubíquo. Qualquer que fosse o problema ou a
deficiência, a solução era criar uma nova agência, uma nova organização, e o
resultado, apesar das instruções para que se reduzisse o aparato administrativo,
foi que ele cresceu ainda mais rapidamente, pois um sistema administrativo
não pode ser combatido com métodos administrativos. Somente os meios
econômicos, sociais e políticos poderiam livrar a sociedade do burocratismo,
ainda mais quando ele se mostrava tão multifacetado, com seus incontáveis
títulos, gradações, postos e funções que chegavam às misteriosas alturas dos
escalões do topo, onde era – e ainda é – impossível encontrar um funcionário
“responsável”.
Este sistema burocrático, que emergiu gradualmente, inculcou uma
mentalidade correspondente na sociedade toda. As pessoas tornaram-se parte
dele, até se acostumaram, e, com o tempo, passaram a associar seu próprio
estilo de realizar as coisas com uma das “vantagens” do socialismo. Este assunto
traz algumas dificuldades. Seria errado negar que muito foi conseguido na vida
social e cultural do país: emprego, seguridade social (embora em nível bem
baixo), educação universal de calibre bastante alto, rudimentos de cultura para
grandes massas, tratamento médico (de qualidade pobre) grátis, preços baixos
para itens básicos de alimentação, aluguéis irrisórios para apartamentos
(desconfortáveis) estatais, colônias de férias para as crianças, jardins de infância
e creches a preços nominais e várias outras amenidades sociais. A tendência de
uma gradual e perceptível melhora inspirava o povo.
Não que estes “sucessos” devessem ser atribuídos à liderança de Stalin. A
labuta árdua e ilimitada do povo soviético estava predestinada a dar frutos. Não
havia óbvias corrupção generalizada ou decadência moral entre os grupos
dirigentes que se destacaram depois da morte de Stalin. De fato, a atmosfera
geral passava a impressão de uma sociedade que desfrutava de bem-estar
público com padrões morais saudáveis.
A ordem totalmente burocrática parecia também ser conveniente às massas,
e por diversas razões. Algumas gerações cresceram sob a liderança de Stalin.
Não conheciam outra forma de socialismo, como também não tinham ideia
formada sobre o mundo que existia do outro lado da cortina ideológica. A
maioria das pessoas pensava que os operários do mundo capitalista viviam na
pobreza; a elas era constantemente dito que a moral do Ocidente era bárbara e
que a União Soviética era superior em quase todos os aspectos ao “mundo
livre”. Tratava-se de uma crença arraigada que fora criada e sustentada por uma
vigorosa máquina de propaganda.
Desta forma, a burocracia total podia muito bem ser propícia a um povo
acostumado com a falta de liberdade, mentiras e sigilo, uma vez que ela
prescrevia, determinava e organizava tudo. Numa certa medida, também
garantia uma partilha justa de bens. Da mesma forma, a burocracia total era
conveniente para os executivos e seus chefes, pois facilitava a formação de uma
perspectiva simplista e igualitária.
Com frequência, é dito nos dias de hoje que, ao tempo de Stalin, havia
ordem, certeza sobre o amanhã, cumprimento completo do plano, lento, mas
seguro, aprimoramento do padrão de vida. As pessoas desconsideram com
facilidade o fato de que naquela época estava também sempre presente o medo
do castigo e da prisão, e que ele era suficiente para sustentar a produção
econômica e o funcionamento das instituições estatais. Talvez se – Deus nos
livre – ameaças de sanções do tipo stalinista pendessem sobre as cabeças dos
operários e gerentes de hoje, eles cumprissem as metas planejadas. Todavia, a
dignidade humana, a obediência cega e a atmosfera de terror constituíram um
preço demasiado elevado para o avanço econômico.
A característica mais monstruosa da burocracia stalinista foi o onipresente
aparato dos órgãos punitivos que, até o XX Congresso, estava na realidade
subordinado a um só homem. Não foi apenas a questão da violência e da
coerção que estes órgãos aplicaram, mas sua penetração em cada poro e cada
célula do estado, fosse ele político, econômico, cultural ou ideológico. A
“inclinação revolucionária” fora a racionalização do terror sob Lenin, mas,
como vimos, a Stalin também não faltaram explanações.
Um triste aspecto da história russa foi o de que os bolcheviques recorreram
com muita frequência aos meios violentos. Por vezes, pode ter até havido boas
razões, mas, com o passar do tempo, eles se transformaram em hábito, coisa
normal, fato legítimo. O próprio Lenin exigiu o terror em diversas ocasiões.
Em 20 de junho de 1918, V. Volodarsky, um membro do comitê do partido de
Petrogrado e comissário para a Imprensa, Propaganda e Agitação, foi
assassinado por um SR. Uma semana mais tarde, Lenin enviou a seguinte carta
a Zinoviev e a outros membros do Comitê Central de Petrogrado:

Acabamos de saber hoje que os operários [de Petrogrado] quiseram responder à morte de Volodarsky
com terror de massa e que vocês (não você, pessoalmente, mas o Comitê Central de Petrogrado) os
impediram.
Protesto veementemente!
Estamos nos comprometendo: até mesmo nos nossos sovietes de deputados, ameaçamos o emprego do
terror de massa, mas, quando chega a hora, pisamos no freio de uma iniciativa revolucionária
totalmente justificável.
Isto é im-pos-sí-vel!
Os terroristas nos tomarão por covardes. Estamos num estado de guerra sem quartel. Temos que
encorajar a energia e a presença maciça do terror contra os terroristas, em especial em Petrogrado que
representa um exemplo decisivo.29

Tais instruções não eram raras. Derramamento de sangue em escala maciça


parecia uma consequência natural da guerra civil. Lenin escreveu a Trotsky, em
Sviyazhsk, provavelmente no final de 1918: “Obrigado, a convalescença vai
caminhando maravilhosamente bem. Confio em que o esmagamento dos
tchecos de Kazan e dos guardas brancos, bem como dos kulaks sanguessugas
que os apoiam, será executado com exemplar impiedade. Com cumprimentos
apaixonados.”30
A “exemplar impiedade” acabaria por se transformar, enfim, na pedra de
toque da inclinação revolucionária. O que Lenin permitira numa situação de
“guerra sem quartel”, quando tudo pendia por um fio, mais tarde passou a ser
visto como “norma revolucionária”, e a violência de Stalin contra a população
em geral tornou-se coisa corriqueira. Se por um lado a Rússia carecia de
tradições democráticas, sua experiência em assuntos policiais era bem
desenvolvida, ainda que aquilo que Stalin criou a este respeito tivesse pouca
semelhança com os esforços amadoristas do czarismo.
Na virada do século, a população exilada na Sibéria chegava a um terço de
um milhão, dos quais os exilados políticos perfaziam cerca de um por cento,
mais cerca de 11 mil que cumpriam trabalhos forçados,31 e perto de metade de
todos os exilados vivia em fuga todo o tempo. O sistema policial do czarismo
não era especialmente rigoroso. Por exemplo, para sair do país era necessário
apenas escrever ao governador da província e pagar uma pequena taxa. Em
1900, cerca de 200 mil russos passaram diversos meses no exterior. Não
surpreende, portanto, que os principais inimigos do czarismo estivessem fora
do país. Muitos deles conheciam as deficiências do departamento czarista de
polícia e, depois da revolução, criaram uma estrutura que foi muito além no
estabelecimento de um sistema rígido e de novas e severas regras para garantir a
lealdade dos cidadãos ao estado soviético.
Organizado segundo os ensinamentos de Lenin de que o caminho “correto”
só era conhecido pelos bolcheviques, e imbuído de seus preceitos sobre
disciplina partidária, o Partido Comunista chegou ao poder com pouca
tradição democrática própria, e seus líderes herdaram imediatamente a prática
policial do sistema czarista. Portanto, não causou admiração o fato de eles, logo
depois do Outubro de 1917, passarem a empregar a repressão contra os
oponentes da nova ordem, e assim, simultaneamente, ameaçarem a liberdade e
abrirem caminho para um futuro César. As minutas do Politburo para 9 de
março de 1922 contêm uma nota da correspondência de Kalinin, na qual
Unshlikht reporta sobre a luta contra o banditismo. O Politburo aceitou a
proposta de Unshlikht para que “Fosse dado ao GPU o direito de: a) executar
sumariamente as pessoas culpadas de roubo armado, os criminosos e os
reincidentes no porte de armas, b) exilar para Archangel e prender os
anarquistas e os SR de Esquerda clandestinos”.32
A burocracia stalinista continuou com esta prática, transformando-a em
característica do dia a dia da vida soviética. Um sentimento de desconfiança
mútua generalizou-se pela sociedade. Choveram relatórios sobre “ninhos
antissoviéticos”, seja entre os técnicos em Moscou, estudantes universitários ou
mesmo entre colegiais de 15 anos de idade em Krasnodar.33
Os órgãos de segurança assumiram cada vez mais as funções que deveriam
ser da responsabilidade de agências mais adequadas. Por exemplo, durante a
guerra, os restos mortais de Lenin foram transportados por segurança para
Tyumen, na Sibéria ocidental, e a incumbência pelo traslado de volta ao
Mausoléu ficou com a equipe de Beria. Em setembro de 1945, ele informou a
Stalin que o Mausoléu estava pronto para receber visitantes e sugeriu que fosse
reaberto com este propósito no domingo de 16 de setembro.34
Como já dissemos, os prisioneiros eram utilizados para satisfazer as
demandas de mão de obra extra para todos os ministérios. A população
soviética de prisioneiros fez sua contribuição para a construção de estradas e
pontes, extração de carvão e de urânio, derrubada de árvores, construção de
reatores nucleares, grandes projetos hidrelétricos. Jamais esquecerei a visita que
fiz à estação geradora de Kuibyshev com um grupo de Komsomols, em 1952.
Da plataforma superior podíamos ver centenas de figuras vestidas de cinza que
se agitavam como um enxame pela planta hidrelétrica. Quando passamos por
um destes grupos, um homem alto e magro inclinou-se e disse num tom de voz
para ser ouvido pelos guardas próximos: “Digam lá fora que estamos
trabalhando numa grande construção da época de Stalin!” Algum tempo
depois deparei com um livro cujo título era Grandes construções da época de
Stalin, e não pude deixar de perceber a ironia de tudo aquilo.
Cresci na vila de Agul, distrito de Irbei, no sul da região de Krasnoyarsk. À
distância podiam-se ver a majestosa neve das montanhas Sayan e os jorros de
água que se lançavam na direção do Yenisei, do Kana e do Agala. Ali também
estava a genuína e modorrenta taiga (região de florestas de coníferas), terra dos
kerzhaks, siberianos nativos que haviam migrado dos territórios ocidentais da
Rússia, um século ou dois antes. Em 1937 ou 1938, apareceram alguns
soldados em nossa pequena vila, seguidos por colunas de prisioneiros.
Começaram a isolar certas áreas com cordas e, cerca de seis meses depois,
campos foram organizados em Agul e em diversos assentamentos vizinhos. Veio
o arame farpado e surgiram as cercas altas atrás das quais podiam-se divisar
com dificuldade as cabanas, as sentinelas armadas nas guaritas e os cães de
guarda.
Os habitantes locais começaram a ver longas procissões de pessoas exaustas
que constantemente chegavam a pé da estação de trem distante cerca de
noventa quilômetros. A impressão dos locais era a de que os acampamentos
precisavam de constante expansão. Mais tarde, entenderam o que ocorria. Valas
longas começaram a surgir nas cercanias dos assentamentos, e os corpos dos
prisioneiros eram transportados em carroças ou trenós, cobertos com um
encerado e enterrados na calada da noite. Muitos morreram por privação
absoluta. Muitos foram fuzilados na taiga. Boris Frantsevich Kreshchuk, que
vivia então em Agul e cujo pai, um ferreiro, e o irmão mais velho tinham sido
fuzilados, contou-me sobre uma ocasião em que ele e outros garotos estavam
catando castanhas na mata quando, de repente, ouviram o barulho de tiros
bem perto, “exatamente o som de uma lona que estivesse sendo rasgada”.
Correram na direção dos tiros e, escondidos por arbustos, viram um pelotão de
fuzilamento jogando cerca de vinte prisioneiros executados numa vala.
“Lembro-me de um deles que ainda se agarrava ao capim; obviamente, não
estava morto. Fugimos em disparada.”
Minha mãe era a diretora de uma escola primária (para crianças entre sete e
quatorze anos de idade). As autoridades permitiram que dois prisioneiros a
ajudassem a organizar a biblioteca, consertar as cortinas e coisas desta natureza.
Nossa vida era dura, particularmente depois que eles prenderam e executaram
meu pai e nos exilaram para Agul. Como já vivíamos na província da Sibéria
Marítima, não havia lugar mais ao leste para nos mandar, assim nos enviaram
para o oeste, para Agul. Não havia professores no lugar, portanto, as
autoridades deixaram que minha mãe lecionasse. Ela se graduara na
universidade depois da revolução. Quando não havia ninguém por perto,
minha mãe conversava longamente com um dos prisioneiros, cujo nome não
consigo lembrar. Certa vez, ele tirou um farrapo de dentro da camisa,
desenrolou rapidamente uma fotografia e mostrou-a a minha mãe. Estávamos
no cômodo longo que servia de biblioteca e eu, na ponta dos pés, olhei sobre o
ombro dela. A pequena fotografia estava presa a um papelão e havia algo escrito
em língua estrangeira na parte de baixo. O prisioneiro murmurou: “Tínhamos
emigrado. Para a Suíça. Este é Lenin, este ao lado sou eu, com minha esposa, e
estes dois eram comunistas alemães.”
Fiquei matutando como alguém tão esfarrapado e esquálido poderia ter
conhecido Lenin pessoalmente. Ele foi trazido sob escolta para a escola mais
duas vezes, depois desapareceu. Ou morreu, ou foi fuzilado na floresta. Estas
impressões da infância jamais me abandonaram.
Ainda relativamente jovem, minha mãe faleceu logo depois da guerra,
deixando a mim, minha irmã e meu irmão quase sem nada. O cemitério da vila
foi sua última morada, não longe do lugar onde os prisioneiros eram fuzilados.
As valas já então estavam niveladas, sem quaisquer marcas, locais esquecidos
que tinham testemunhado a terrível tragédia de um povo. Duvido que muitos
tenham sobrevivido àqueles campos. Dois de meus tios, camponeses simples,
que disseram alguma coisa impensada, jamais regressaram.
Pode-se argumentar que este livro é a maneira que encontrei para vingar as
maldades cometidas contra minha família. Mas nego a possibilidade. Quando
Stalin morreu, eu era um jovem comandante de carro de combate. Pensei que o
mundo ia desabar. Não entendi coisa alguma quando minha família foi exilada,
e mesmo mais tarde tampouco liguei nossa desdita a Stalin. Disseram-me que
meu pai havia morrido. Minha mãe chorou em silêncio. Só em julho de 1952,
descobri que eu também era um homem marcado. Tínhamos acabado o jantar
de confraternização celebrando nossa formatura na escola de oficiais e
recolhíamos nossas malas simples de papelão, antes de irmos para nossas
unidades, quando um de meus amigos (não vou dizer o nome) pegou-me de
lado e disse:

“Jure que jamais dirá a alguém o que vou lhe contar.”


“É claro”, disse eu, estupidificado.
“Estive ‘acompanhando você’ por três anos, reportando o que você dizia, o que sabia, de olho em você
de modo geral. Perdoe-me. Não tive escolha.”
“Que história é essa? Que me diz você?” Não conseguia entender.
“Como você se formou, e com honras, isto significa que nada de mau aconteceu. De qualquer forma,
boa sorte. Não me queira mal. Mas, lembre-se, pode ser que nem tudo termine por aqui...”

Esta digressão em meu passado serve como lembrete de que não faz sentido
tentar vingar a história. O que foi feito não pode ser desfeito. Tem, no entanto,
que ser conhecido e lembrado.
O quanto Stalin e seus sequazes no Kremlin sabiam do que se passava em
Agul e em milhares de outros lugares de seu abrangente Gulag? A resposta é:
muita coisa. Os arquivos estão repletos de cartas descrevendo a agonia,
implorando ajuda, pedindo que Stalin examinasse, interviesse, revisse
desapaixonadamente este ou aquele caso. Uma delas veio de um interno na
seção 14 do Campo nº 283 da NKVD e Mina de Carvão nº 26:

A situação dos prisioneiros é dura. A Inquisição medieval seria um paraíso em comparação. Ex-
soldados e partisans estão amontoados juntamente com colaboradores e Polizei.* Ninguém sabe a
duração das sentenças, o que é pior que ser fuzilado. Somos espancados regularmente. Nossas roupas
são farrapos infestados de piolhos. A comida é horrível, normalmente eles servem ratos. O corte do
repolho é feito em máquinas de forragem, de modo que normalmente vem misturado com estrume de
cavalo. Os prisioneiros são agredidos a pancadas pelos guardas. Eles são selecionados entre as pessoas
mais selvagens. Esta carta não contém uma só palavra mentirosa, porém, assiná-la significaria
trabalhos forçados imediatamente.35

Stalin repassou a carta a Malenkov que nela anotou: “Para os Camaradas Beria
e Chernyshev”, ao passo que Beria só apôs sua assinatura nela. O círculo estava
fechado. A burocracia vivia envolta num manto de ilegalidade. As raras
ocasiões em que alguém de alta posição levantava um débil protesto
surpreendem quando são achadas nos arquivos. Entre os documentos de
Molotov, há uma carta para Stalin e Molotov escrita pelo ministro da justiça N.
Rychkov, em maio de 1947:

De acordo com instruções do governo soviético e da Ordem nº 058, de 20 de março de 1940, do


Comissariado da Justiça e Procuradoria da URSS, pessoas inocentadas em casos de contrarrevolução
não estão sendo imediatamente libertadas, mas retornam aos locais de detenção e só podem ser soltas
após a recepção de um relatório do Ministério das Questões Internas declarando que não há
impedimentos de sua parte. Esta formalidade significa que a pessoa libertada continua na prisão por
meses.
Por exemplo, em 5 de abril de 1946, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS, atuando sobre
um recurso do Procurador-geral da URSS, invalidou a sentença exarada pelo tribunal militar da
Divisão de Infantaria de Taman segundo a qual a cidadã Litvinenko foi acusada de traição e
condenada à morte (a sentença foi comutada para dez anos nos campos pelo tribunal do exército de
Marítima). O colegiado militar da Corte Suprema arquivou o caso por falta de provas. Este veredicto
foi enviado para o campo da Sibéria onde a prisioneira está detida. De lá, o documento foi enviado
para ratificação pelo 1º Departamento Especial do Ministério das Questões Internas, que o mandou
para o distrito militar de Tauride. O caso vem se arrastando por meses.
Existem muitos casos semelhantes. Isto mina a autoridade da corte. Solicito que a Ordem nº 058, de
20 de março de 1940, seja revogada.36

Não se sabe como Stalin reagiu. Molotov expediu uma carta aos funcionários
do Ministério do Interior em maio de 1947, mas demorou bastante até que a
insana regulamentação fosse alterada. Stalin e o sistema que engendrou
ensinaram ao povo a ser paciente, a ser silencioso e submisso. De um modo
geral, as pessoas não paravam para pensar sobre tudo aquilo, nem sabiam muita
coisa do que se passava no pesadelo escondido por trás das telas do sistema
stalinista.
Se a morte física chegou para Stalin mais cedo do que esperado, sua morte
política foi bastante retardada. Seu falecimento histórico é improvável, já que
as pessoas jamais esquecerão o que foi feito em seu nome.
Nota

* Nacionais locais recrutados para a polícia pelos alemães durante a guerra.


[58]
Deuses terrenos são mortais

E mbora envelhecido e doente, Stalin continuava ativo à procura de


inimigos reais ou imaginários e na lida com eles. Poucos meses antes do
XIX Congresso, de outubro de 1952, tomou providências para o
julgamento de há muito planejado do Comitê Judeu Antifascista. Em maio-
junho, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS examinou o caso de um
grupo de intelectuais judeus que tivera previamente conexões com o Comitê
Judeu Antifascista. Este órgão fora criado pelo governo soviético no início de
1942 e fizera muito durante a guerra a fim de mobilizar a opinião pública
mundial, em particular nos EUA, para a causa comum contra o nazismo.
Entretanto, logo depois da guerra, começou a caça às bruxas.
Já em novembro de 1946, Mikhail Suslov (que iria se tornar a força
dominante do controle ideológico até sua morte, em 1982) enviara uma nota a
Stalin sobre a atividade “perniciosa” do comitê. O ministro da segurança
Abakumov arrancara à força de I.I. Goldstein e de Z.G. Grinberg confissões
detalhadas a respeito de “atividades de espionagem” do comitê. Tudo isto foi
reportado a Stalin. Gritantes artigos antissemitas começaram a aparecer na
imprensa, e o comitê foi fechado por um decreto do Politburo, de 20 de
novembro de 1948. Malenkov e Beria pegaram o caso a partir daí.
Logo se seguiram as prisões. A figura mais destacada entre os judeus era a de
Solomon Abramovich Lozovsky, bolchevique da velha guarda e ex-vice-
ministro do Exterior, que trabalhara durante a guerra como chefe do
Sovinformburo e que tivera frequentes reuniões com Stalin. Foi preso todo um
grupo de cientistas, poetas, físicos, editores, tradutores, expoentes do teatro –
110 pessoas no total. Em 13 de janeiro de 1949, Malenkov, na presença de
M.F. Shkiryatov, convocou Lozovsky e tentou fazê-lo confessar planos
criminosos. Em particular, desejava que Lozovsky admitisse que tinha ajudado
o presidente do comitê, o ator Solomon Mikhoels, o jornalista Sh. Epshtein e o
poeta I.S. Feffer a escreverem uma carta a Stalin propondo que a Crimeia fosse
transformada em “República Socialista Judaica”. Duas semanas depois,
Lozovsky foi preso.
Stalin foi informado tão logo todos “confessaram” (B.A. Shmelyovich não
assinou uma confissão, o que não o salvou de ser executado) e, sem mais
delongas, ordenou um julgamento, indicando, como sempre, as sentenças que
queria ver promulgadas.
Entre maio e julho de 1952, quatorze pessoas foram julgadas por um
tribunal fechado e presidido por A.A. Cheptsov. Apenas um dos acusados, a
acadêmica Lina Shtern, escapou com uma sentença de prisão. O restante foi
fuzilado.37 Se bem que o propósito antissemita da corte fosse evidente, o
objetivo de Stalin na “exposição de inimigos internos” era paralisar a vontade
da intelligentsia em geral, já silenciosa por muito tempo.
Este foi o pano de fundo “intelectual” com que se desenrolou seu último
congresso do partido. A ditadura burocrática atingira o ápice de
comportamento anti-humano, e agora Stalin a coroava com seu “congresso
histórico”, o qual, na realidade, representou a crise intelectual e social mais
profunda do sistema.
Ao longo de agosto e setembro de 1952, Malenkov reportou diversas vezes a
Stalin sobre os preparativos para o congresso, mostrando-lhe as linhas gerais
dos discursos que seriam pronunciados por membros do Politburo, e assim por
diante. Stalin, no entanto, estava mais preocupado com o que ele próprio iria
dizer. Suslov e todo um time de assistentes prepararam diversas versões, mas foi
o líder quem deu os retoques finais no pronunciamento que, finalmente,
escolheu.
Poucos dias antes da abertura do congresso, Stalin estipulou que seu início
deveria ser às 19h, impondo assim ao mais elevado fórum do partido o padrão
de seu próprio modo de vida. O Presidium do congresso não era muito grande,
porém, como inovação, todos os seus membros foram grupados na
extremidade esquerda da mesa, enquanto Stalin, completamente isolado,
sentou-se à direita sem ninguém próximo ou atrás dele. A constante menção a
seu nome era acompanhada de estrondosos aplausos de pé e cantos de louvor, o
clima de exaltação transformou-se em histeria. Stalin passeou o olhar pelo
espetáculo e, no intervalo, levantou-se e foi embora. Compareceu apenas às
sessões de abertura e encerramento do congresso. Talvez o motivo fosse a saúde,
mas é provável que já estivesse cansado de tais reuniões onde não surgiam
conflitos e tudo era decidido de antemão. Não que tolerasse outro tipo de
comportamento. Os congressos do partido simplesmente proporcionavam os
ornamentos “democráticos” para o mando de uma só pessoa. Quanto à
população, o congresso não significava nada em comparação com a pergunta
que estava em todas as cabeças: Stalin discursaria?
Até o último dia do congresso, os delegados não sabiam se Stalin iria falar.
Na sessão de encerramento, quando viram ele se levantar do Presidium e
caminhar lentamente sobre a passarela acarpetada para o pódio, todos se
levantaram e o ovacionaram de novo. O líder não envergava seu uniforme de
marechal, e sim o habitual uniforme do “partido”, com apenas uma estrela de
Herói no peito. Representava com gosto o papel de “líder modesto”. O
discurso foi breve, um pouco alongado pelos aplausos que constantemente o
interromperam, e não teve absolutamente nada de novidade, repisando apenas
os velhos estereótipos sobre o declínio do mundo capitalista e a falência dos
partidos socialistas. Naquele que foi seu último congresso, Stalin apenas
reafirmou as velhas posições comunistas sem graça, claramente atrasadas em
relação às mudanças que ocorriam no mundo.
Alguns dos delegados mais perspicazes com os quais conversei sentiram que
Stalin pensava sobre seu legado, e isso se deduz do longo discurso que fez no
pleno eleito pelo congresso. Em tom malévolo e acusador, manifestou dúvida
de que seus camaradas seguiriam o curso acordado e especulou se eles não
capitulariam diante das dificuldades internas do país, bem como das ameaças
imperialistas. Exibiriam eles a coragem e a firmeza necessárias ao
enfrentamento dos novos desafios?
Stalin, aparentemente, preparava também o terreno para a remoção de
alguns de seus camaradas em armas de longo tempo, pessoas que poderiam
muito bem servir de bodes expiatórios, depois que o XIX Congresso acabasse.
Em novembro de 1952, por insistência de Beria e em razão de fortes indícios
de envolvimento na “Trama dos Médicos”, Stalin finalmente livrou-se de
Poskrebyshev. Embora cada dia mais desconfiasse de Beria, Stalin fez a vontade
do auxiliar. Se Beria dizia que Poskrebyshev merecia investigação, que assim
fosse feito. A liderança de Leningrado e seus aliados em Moscou e noutras
regiões tinham sido também recentemente “investigados” em conexão com o
Comitê Judeu Antifascista.
No fim da vida, Stalin não acreditava em ninguém. Primeiro o leal e antigo
assistente Poskrebyshev, depois o tenente-general Nikolai Sidorovich Vlasik,
que foi preso em 16 de dezembro de 1952. Vlasik foi interrogado pessoalmente
por Beria, assim como por Kobulov e Vlodzimirsky. Como chefe do
departamento de segurança do Ministério da Segurança Estatal, Vlasik foi
acusado de ser “indulgente com os médicos-envenenadores”, de conhecer o
“espião” V.A. Stenberg e de abuso do poder por “apropriar-se de produção
estatal”. Claro que eram apenas pretextos para sua prisão. Mais tarde, o general
revelou a razão verdadeira. De Krasnoyarsk, onde estava exilado, escreveu em
maio de 1955 a Voroshilov, o presidente do Soviete Supremo. Referindo-se
estranhamente a Stalin, durante todo o tempo, como “o Chefe de governo”,
Vlasik descreveu uma conversa que tivera lugar entre ele e Stalin quando
estavam de férias no sul, depois da guerra:

O Chefe de governo expressou sua insatisfação com Beria, dizendo que o trabalho dos órgãos de
segurança estatal não justificava a proteção que recebiam. Disse ter dado ordens para a remoção de
Beria da direção do MGB. Perguntou-me o que eu achava de Merkulov e Kobulov e, mais tarde, de
Goglidze e Tsanave. Contei-lhe o que sabia. Quando, depois, eu soube que minha conversa com o
Chefe de governo passara a ser, sem a menor dúvida, do conhecimento de todos, fiquei estupefato.

Beria, obviamente, estava alarmado com a atitude de Stalin a seu respeito, mas
como pudera saber o que o chefe e Vlasik conversaram a sós sobre ele? Teria
Stalin repassado os termos da conversa, ou Beria conseguira um meio de
monitorar sigilosamente seu líder?
Vlasik prosseguiu dizendo que, em certa ocasião foi chamado à presença de
Beria para interrogatório. “Sabia que não poderia esperar nada diferente da
morte, pois estava seguro de que eles tinham conseguido enganar o Chefe de
governo.” Aparentemente, o objetivo da ocasião era fazê-lo incriminar
Poskrebyshev. Quando recusou, disseram-lhe que ele morreria como um
cachorro na prisão. Vlasik recebeu o tratamento completo e, como escreveu a
Voroshilov:

Em vista de minhas idade e saúde, não aguentei. Fiquei confuso, estava em completo estado de
choque e perdi o autocontrole e o bom senso. Com as algemas cortando-me até os ossos, não tive nem
condições para ler o que eles escreveram sobre minhas respostas e assinei o documento
comprometedor, enquanto eles continuavam xingando e fazendo ameaças [...] tiraram as algemas e
prometeram que me deixariam dormir, mas não foi o que aconteceu; continuaram a me torturar na
cela.38
As férias em Sochi não restabeleceram a energia de Stalin e os surtos de
tonturas continuaram. Sem prestar muita atenção, folheava os documentos
preparados pelo secretariado de Malenkov, passava a vista nos jornais e revistas,
e nos livros e artigos estrangeiros traduzidos para ele. Telefonou para Malenkov
e disse-lhe para não mandar mais papel algum. Acompanhado por uma dezena
de seguranças, foi ao Teatro Bolshoi assistir O lago dos cisnes. O gerente do
teatro, A.I. Rybin, que também era o chefe da segurança, esperou por ele no
camarote. Noutras oportunidades, Stalin teria convidado Molotov ou Zhdanov
a acompanhá-lo, mas, naquela noite, sentou-se macambúzio em um canto e
assistiu ao balé. Sentindo-se desconfortável e um tanto alarmado com um
crescente sentimento de fraqueza, levantou-se e foi embora antes de o
espetáculo terminar.
Em 28 de fevereiro de 1953, acordou mais tarde que o normal, sentindo-se
um pouco melhor. Leu relatórios vindos da Coreia, os dados sobre os
interrogatórios dos doutores judeus M.S. Vovsi, Ya.G. Etinger, M.B. Kogan e
A.M. Grinshtein. Fez uma caminhada curta. Mais tarde naquela noite, como
combinado, Malenkov, Beria, Khruschev e Bulganin chegaram na dacha.
Como sempre, debateram grande variedade de tópicos. Bulganin fez um relato
sobre a guerra na Coreia, confirmando a opinião de Stalin de que a situação
chegara a um impasse. Stalin decidiu dizer a Molotov no dia seguinte para
aconselhar chineses e norte-coreanos a “tentarem conseguir as melhores
condições que pudessem nas negociações”, porém, de qualquer forma, para
tentarem parar com o conflito armado.
Beria falou bastante. Sentindo que Stalin perdia a confiança nele, resolveu
fazer um esforço especial:

Ryumin produziu provas irrefutáveis de que toda a fraternidade constituída por Vovsi, Kogan,
Feldman, Etinger, Yegorov, Vasilenko, Shereshevsky e outros vinha, sub-repticiamente, encurtando a
vida da liderança havia muito tempo. Zhdanov, Dimitrov, Shcherbakov – estamos preparando uma
lista exata de suas vítimas no momento – foram todos sacrificados por esta gangue. Por exemplo, o
eletrocardiograma de Zhdanov foi simplesmente falsificado. Esconderam o fato de que Zhdanov tivera
um enfarte e autorizaram-no a continuar com suas atividades, o que logo o derrubou. Mas o ponto
principal é que a coisa toda foi trabalho da agência da organização judaica burguesa-nacionalista, a
“Joint”.* A trama é profunda e atinge funcionários do partido e militares. A maioria dos acusados
confessou.

O caso dos doutores começou quando o professor V.N. Vinogradov fez sua
última visita a Stalin, em 1952 e, encontrando-o em más condições,
recomendou que, dali por diante, ele trabalhasse o mínimo possível. Stalin
ficou furioso, e Vinogradov não foi mais chamado. Na realidade, logo depois
foi preso. A insatisfação de Stalin com seu médico foi trabalhada pelo
investigador Ryumin da Segurança Estatal, que nela viu uma maneira de
progredir na carreira. Percebendo o estado de espírito de Stalin e levando em
conta os eventos mundiais, em que a política soviética no Oriente Médio virou
contra o novo estado de Israel, os órgãos de segurança prepararam um
gigantesco caso sobre uma alastrada “trama dos médicos”, de natureza
claramente antissemita. Por certo, haveria um julgamento e todo o problema
poderia resultar em outro banho de sangue em larga escala. Somente a morte
súbita de Stalin alterou o curso dos acontecimentos.
Durante a última noite de sua vida, Stalin perguntou várias vezes sobre o
progresso do caso, especificamente sobre Vinogradov. Beria disse-lhe que “além
de suas outras más qualidades, o professor tem a língua muito comprida. Ele
disse a um dos médicos de sua clínica que o Camarada Stalin já tivera vários e
perigosos episódios de hipertonia”.
“Muito bem”, disse Stalin, “qual sua proposta para agora? Fazer os doutores
confessarem? Diga a Ignatiev que, se ele não conseguir confissões completas,
vamos rebaixar sua altura de uma cabeça.”
“Eles confessarão. Com a ajuda de Timashuk e de outros patriotas,
completaremos a investigação e voltaremos a você a fim de que dê permissão
para um julgamento público.”
Ficaram debatendo até as quatro horas da madrugada. Já pelo final da
conversa noturna, Stalin dava sinais de visível irritação com a companhia.
Apenas Bulganin escapava das recriminações. Todos esperavam que o anfitrião
se levantasse para que pudessem ir para casa dormir. Stalin, no entanto,
continuava batendo na tecla de que havia gente na liderança que se fiava
demais em seus méritos passados. “Estão enganados.” O ambiente era de mau
augúrio. Os circunstantes sentiam que alguma coisa fermentava. Será que o
velho pensava em despachá-los do Politburo, de modo a acusá-los pelos crimes
anteriores que cometera? Mas aquela seria sua última explosão de raiva.
Interrompendo uma frase no meio, ele, subitamente, levantou-se e foi para o
quarto. Os outros se dispersaram silenciosamente e se dirigiram para casa,
Malenkov e Beria viajando no mesmo automóvel.
Conforme Rybin descreveu os eventos para mim, já era meio-dia de 1º de
março quando a equipe de serventes domésticos começou a se preocupar. Stalin
não aparecera, não chamara ninguém. E não era permitido entrar no quarto
sem ser chamado. A inquietação aumentou, e então, às 18h30, a luz acendeu
em seu escritório. Todos respiraram aliviados e esperaram que a campainha
soasse. Stalin não se alimentara, nem olhara a correspondência ou qualquer
outro documento. Muito estranho. Rybin, que não escondia sua simpatia
pessoal pelo velho chefe, começou a resmungar que a campainha não tocava.
Oito da noite, e nada, 21h30 e o silêncio persistia no quarto de Stalin. Uma
espécie de pânico se apossou de todos. A equipe começou a discutir se não seria
bom que alguém desse uma olhada, quando houve um sentimento
generalizado de que algo seriamente errado estava ocorrendo. Os oficiais de
serviço, M. Starostin e V. Yukof, e a servente M. Butusova decidiram que
Starostin deveria investigar e, às 23h, ele se encaminhou para o quarto levando
a correspondência do dia, caso precisasse de uma desculpa.
Starostin teve que passar por uma sucessão de cômodos até chegar ao quarto
de Stalin e foi acendendo as luzes à proporção que avançava. Quando acionou
o interruptor da pequena sala de jantar, gelou. Estatelado no chão, só de
camiseta e calças do pijama, jazia Stalin. Só teve forças para levantar a mão para
Starostin, não podia falar. Seu olhos expressavam horror e medo, em súplica.
Um exemplar do Pravda estava espalhado pelo assoalho e havia uma garrafa
aberta de água mineral na mesa. Ele devia estar naquela posição havia muito
tempo, pois a luz não fora acesa. Starostin pediu ajuda e os outros serventes
chegaram correndo em grande agitação. Levantaram Stalin para o divã. Ele
tentou diversas vezes dizer alguma coisa, mas só saíram ruídos incoerentes. O
derrame paralisara a faculdade da fala, e pouco depois ele ficou inconsciente.
De acordo com Rybin, a equipe de segurança comunicou-se imediatamente
com Ignatiev no Ministério da Segurança Estatal. Ele aconselhou que Beria e
Malenkov fossem chamados. Beria não foi encontrado em lugar algum e
Malenkov mostrou-se incapaz de fazer qualquer coisa sem ele. Além do mais,
os médicos não deviam ser contatados sem a permissão de Beria. Finalmente,
Beria foi encontrado numa das villas do governo na companhia de uma de suas
últimas mulheres e, às três horas da manhã, ele e Malenkov chegaram. Beria,
por certo, andara bebendo. Malenkov, enfiando os sapatos novos debaixo do
braço para que não rangessem, entrou de meias no quarto de Stalin e viu seu
chefe respirando com extrema dificuldade. Beria não chamou os médicos; em
vez disso, virou-se para os empregados: “Por que o pânico? Não veem que o
Camarada Stalin caiu num sono pesado? Saiam todos e deixem nosso líder em
paz. Depois cuido de vocês!”
Malenkov, desanimado, deu um meio apoio a Beria. De acordo com o
relato de Rybin, tudo indicava que não haveria qualquer iniciativa de buscar
socorro médico para Stalin, que devia ter sofrido o derrame umas seis ou oito
horas antes. Todos pareciam comportar-se da maneira conveniente para Beria.
Depois de afastar todos os auxiliares, proibindo antes que telefonassem para
quem quer que fosse, os dois funcionários categorizados deixaram a casa
falando alto. Só às nove da manhã, Beria, Malenkov e Khruschev retornaram,
logo seguidos de outros membros do Politburo e dos médicos.
Seguiu-se um grande bulício. Svetlana Alliluyeva recordou-se de que os
doutores aplicaram sanguessugas atrás da cabeça e do pescoço de Stalin, fizeram
eletrocardiogramas e raios-X de seus pulmões e lhe aplicaram uma série
constante de injeções. A despeito dos esforços, todos estavam bem cientes de
que o fim estava perto. Beria dirigiu-se aos médicos, num tom de voz para que
todos ouvissem e perguntou-lhes se podiam garantir a vida de Stalin: “Vocês
entendem que são responsáveis pela saúde do Camarada Stalin? Estou
avisando.” Os médicos que tinham cuidado dele por longos anos estavam agora
na prisão, naturalmente, ou aguardavam julgamento, ao passo que os que lá se
esforçavam em vão para salvá-lo eram novos e sem conhecimento do paciente.
Pálidos de medo, professores, doutores e enfermeiras murmuravam
ansiosamente entre si, enquanto lutavam inutilmente, sabendo o inferno que
lhes esperava quando tudo acabasse.
Beria não escondia seu ar de triunfo. Todos os membros do Politburo,
inclusive Malenkov, tinham pavor daquele monstro. A morte de um tirano
prometia uma nova orgia de derramamento de sangue da parte de seu sucessor.
Exausto em função de todas as providências que tomara e seguro de que Stalin
cruzara a linha divisória entre a vida e a morte, Beria disparou para o Kremlin e
lá permaneceu por algumas horas, deixando os outros líderes junto a Stalin em
seu leito de morte. Já descrevi a versão segundo a qual Beria, como primeiro-
vice-presidente do Conselho de Ministros, passou a forçar o grande jogo
político que planejara havia muito tempo. A corrida para o Kremlin foi
possivelmente ligada ao seu esforço para remover documentos do cofre de
Stalin que pudessem conter instruções referentes ao modo de lidar com ele
próprio, um último desejo que talvez fosse difícil de contestar, preparadas pelo
secretário-geral no controle de suas faculdades.
Retornou à dacha cheio de confiança e começou a sugerir enfaticamente aos
desanimados colegas que preparassem uma declaração do governo participando
a doença de Stalin e publicassem também um boletim sobre seu estado de
saúde. A declaração, lida no rádio e estampada nos jornais, participava, em
parte, que:

às primeiras horas da manhã de 2 de março, o Camarada Stalin, que estava em sua casa em Moscou
[na realidade, estava fora de Moscou, na dacha] sofreu uma hemorragia cerebral que afetou regiões do
cérebro essenciais à vida. O Camarada Stalin perdeu a consciência. O braço e a perna direitos estão
paralisados. Perdeu a faculdade da fala. O funcionamento do coração e dos pulmões se mostra
severamente prejudicado. O tratamento do Camarada Stalin está sob constante observação do Comitê
Central do PCUS e do governo soviético. A séria enfermidade do Camarada Stalin significará sua
incapacidade mais ou menos longa para participar das questões governamentais.

Dois boletins posteriores foram expedidos, às 2h e 4h de 5 de março. Os


luminares da medicina – A.F. Tretyakov, I.I. Kuperin, P.E. Lukomsky, N.V.
Konovalov, A.L. Myasnikov, E.M. Tareev, I.N. Filomonov, I.S. Glazunov e
outros, todos russos até a raiz do cabelo, já que Beria tomara medidas, depois
do caso dos doutores do Kremlin, para que nenhum judeu atendesse Stalin –
não podiam esconder o fato de que, apesar das ameaças de Beria, o fim estava
próximo. Declararam que houvera “séria interrupção da circulação nas artérias
coronárias e alterações fundamentais na parede coronariana de trás”, um
“colapso de vulto” e que “a situação permanece crítica”. Não sabiam que as
perturbações anteriores no funcionamento do cérebro tinham provocado
cavidades, ou cistos, no tecido cerebral, especialmente nos lobos. Tais
alterações, indicam especialistas modernos, poderiam ser responsáveis por
efeitos na esfera psicológica, causando impacto sobre o caráter despótico de
Stalin e exacerbando suas tendências tirânicas.39 Contudo, minha impressão é
que Stalin não era caso de interesse psiquiátrico. Sua “doença” era social; foi
cesarismo e tirania. Ademais, não apenas o líder ficara doente, mas toda a
sociedade.
Entrementes, o último ato do drama se desenrolava. O filho de Stalin,
Vasili, entrava e saía, esbravejando com voz de bêbado: “Mataram meu pai, os
bastardos!” Svetlana postava-se imóvel perto da cama, enquanto os membros
do Politburo, demonstrando fadiga pela falta de sono e medo do desconhecido,
afundavam-se em cadeiras de braço. Voroshilov, Kaganovich, Khruschev e
alguns outros choravam abertamente. Beria aproximou-se de Stalin por diversas
vezes para exclamar em voz alta: “Camarada Stalin, todos os membros do
Politburo estão aqui, diga alguma coisa para nós!” Comportava-se como
príncipe herdeiro de um vasto império com o poder de vida e morte sobre seus
cidadãos. Para ele, Stalin já era passado.
O desenlace aconteceu às 9h50 de 5 de março de 1953. Diante dos outros
líderes jazia o mestre, o ídolo, juiz, chefe e benfeitor, e, porque não dizer, o
potencial carrasco. De joelhos, cabeça enterrada no peito, lamuriando-se como
uma camponesa, estava V.V. Istomina, a governanta de Stalin que, por cerca de
vinte anos, cuidara dele, acompanhara-o em todas as viagens ao sul e mesmo
para duas ou três conferências internacionais em tempo de guerra.
Os membros do Politburo recuperaram-se rapidamente do choque
provocado pela morte de Stalin, compuseram-se e se acotovelaram para sair.
Havia coisas a fazer, providências a tomar para o funeral, e coisas do gênero.
Enquanto corriam de volta a Moscou em suas longas limusines negras, alguns
matutavam se Stalin deixara um testamento, e se Beria era agora o chefe.
Shepilov recordou:

Eu trabalhava então como editor-chefe do Pravda. O país esperava em silêncio por notícias de
Moscou. Às cinco da manhã, o telefone tocou. Era Suslov: “Venha imediatamente ao cantinho.” Assim
era conhecido o estúdio de Stalin no Kremlin. “O Camarada Stalin faleceu.” Coloquei o fone no
gancho. Quando cheguei ao Kremlin, o funeral era debatido. Fiquei espantado com o comportamento
dos membros do Politburo. Estavam sentados em torno da longa mesa e o lugar de Stalin na cabeceira
estava vazio. Beria e Malenkov de frente um para o outro, próximos à cadeira desocupada. Os dois
estavam obviamente excitados, interrompendo com frequência os colegas e falando muito mais que os
outros. Beria, simplesmente, florescia. Khruschev falou pouco, ainda em evidente estado de choque.
Fiquei particularmente admirado com o fato de Molotov permanecer em silêncio, distante, com
expressão mais pétrea que nunca; durante toda aquela reunião sem sentido, que durou hora e meia,
não disse uma só palavra.

No dia seguinte, reuniram-se em conjunto o Comitê Central do partido, o


Conselho de Ministros e o Presidium do Soviete Supremo da URSS. Fora
impossível encontrar qualquer instrução de Stalin sobre o que deveria ser feito
na eventualidade de sua morte. Desde o derrame do secretário-geral, apenas
Beria estivera, por uma só vez, no estúdio, dando ordem depois disto para que
fosse lacrado. A questão da sucessão precisava ser resolvida. Malenkov presidiu
a reunião, mas as decisões já haviam sido tomadas por círculo fechado.
Ficou resolvido que um dos cargos de Stalin, o de presidente do Conselho
de Ministros, ficaria com Malenkov, que fora o favorito do líder por dois ou
três anos. Seus primeiros-vices seriam Beria, Molotov, Bulganin e Kaganovich.
Os ministérios do Interior e da Segurança foram fundidos, com Beria
encarregado do novo e ampliado Ministério do Interior. Pareceu claro que
Beria tencionava não apenas manter a situação que existia sob Stalin como
também fortalecer o papel de seu ministério na formulação das políticas
doméstica e externa. Molotov foi feito ministro do Exterior e Bulganin,
ministro da Defesa. Shvernik foi transferido para os sindicatos, enquanto sua
função de presidente do Soviete Supremo foi dada a Voroshilov.
Mudanças importantes foram também feitas na liderança do partido. O
círculo interno, que se reunira na noite anterior à sessão conjunta menos de 12
horas depois da morte de Stalin, apoiou a proposta de Molotov para que o
Presidium do Comitê Central (ou Politburo) fosse drasticamente reduzido no
efetivo. No final da vida, Stalin deu a impressão de preparar-se gradualmente
para se ver livre dos camaradas de longa data – Beria, Voroshilov, Kaganovich,
Mikoyan, Molotov, Khruschev e talvez alguns outros. Deve ter pressentido que
lhe restava pouco tempo. Sua solução (evidentemente aceita por unanimidade
pelos outros) foi aumentar o Presidium para 25 membros, com 11 sem direito
a voto, e o secretariado para dez. A intenção era claramente de “diluir” a velha
guarda entre funcionários novos. É muito provável que, se não tivesse sofrido o
derrame, encontraria um meio de enquadrar Molotov, Mikoyan e Beria, de
modo a removê-los da liderança e sobre eles descarregar muito daquilo que
pudesse enodoar sua própria imagem histórica. A velha guarda sentiu que havia
alguma coisa no ar e agora, pouco depois da morte do líder, apressava-se em
retirar os novos nomeados da liderança.
A sessão conjunta ratificou a sugestão do círculo interno para reduzir o
tamanho do Presidium a dez, mais quatro membros não votantes. Só três dos
novos nomes permaneceram, a saber, N.A. Bulganin, M.Z. Saburov e M.G.
Pervukhin. (Entre os que foram afastados, depois de apenas cinco meses na
função, estava Leonid Brejnev, que se tornou então vice-chefe da
Administração Política Principal do Exército e Marinha Soviética.) Numa
forma um pouco vaga, ficou decidido que Khruschev “deveria se concentrar no
trabalho do Comitê Central do partido e, portanto, dispensado de suas
obrigações como primeiro-secretário do comitê partidário de Moscou”.
Quanto ao povo, a maioria não se apercebeu destas alterações sutis, se bem
que soubesse perfeitamente que as novas figuras nada mais eram que sombras
do falecido líder. Sedento por qualquer fragmento de notícia, o povo tomou
como perfeitamente natural o fato de o corpo de Stalin ficar ao lado do de
Lenin até que fosse terminado um Panteão, para o qual, então, os restos
mortais dos dois, “juntamente com os das figuras proeminentes do Partido
Comunista e do estado soviético que estavam sepultados no muro do
Kremlin”, deveriam um dia ser supostamente trasladados.
O velho costume de embalsamar e mumificar, contra o qual Krupskaya se
rebelara tão veementemente na ocasião devida, e no qual Stalin tanto insistira,
pareceu também perfeitamente natural. O centro de Moscou ficou repleto de
multidões enlutadas, tão densas em alguns locais que provocaram vítimas
fatais.
Durante o funeral, foi disparada uma salva de 31 tiros de canhão em todas
as repúblicas da União Soviética e em diversos outros locais, após o que o corpo
foi deslocado para o Mausoléu, que ficou fechado por oito meses enquanto o
processo de embalsamento completava seu ciclo. Muito poucos poderiam
prever que, na noite de 31 de outubro de 1961, a múmia de Stalin seria
transferida para sepultamento no muro do Kremlin.
Ao longo de todo seu período de mando, Stalin defendera as instituições
que criou, porém ficou evidente que sobrestimou sua estabilidade.
Literalmente, em questão de horas depois de sua morte, seus herdeiros já
começavam a ignorar seus preceitos. Pouco a pouco, os louvadores do “maior
dos grandes gênios” mudaram de tom. Foi como se a venda, de forma
despercebida, escorregasse dos olhos. Em menos de um mês, o caso contra os
doutores foi arquivado e Ryumin foi fuzilado à maneira tradicional. Em mais
algum tempo, os novos líderes executaram uma “operação palaciana” e
livraram-se de Beria. Um ano mais tarde, a Corte Suprema, sob a presidência
de A.A. Chepstov, arquivou o “caso de Leningrado” por “ter sido deturpado
pelo ex-ministro da Segurança Estatal da URSS e seus cúmplices”. Os três
Voznesenskys, juntamente com dezenas de outras vítimas, foram reabilitados
postumamente.40 No ano seguinte, o Pravda publicou que, em sessão pública
do colegiado militar de Leningrado, os acusados de engendrar o caso de
Leningrado (V.S. Abakumov, A.G. Leonov, V.I. Komarov e M.T. Likhachev)
foram condenados à morte, enquanto outros receberam penas de extensões
variadas. Os principais culpados, é evidente, já estavam mortos na ocasião.
Nota

* Joint era o American Jewish Joint Distribution Committee.


[59]
Derrota pela História

K hruschev assomou ao pódio no XX Congresso do Partido Comunista.


Em estado de choque, os quase 1.500 delegados, pasmos,
permaneceram sentados em silêncio total, interrompendo
ocasionalmente o pronunciamento de Khruschev com brados de indignação
enraivecida. Pareciam ver um fantasma postado sobre o ombro do orador.
Quanto mais Khruschev revelava, mais clara a imagem do fantasma. Foi um
momento de rara significação histórica. Apenas horas antes do discurso,
ninguém poderia imaginar que o inativo e deformado partido fosse capaz de
feito tão genuinamente cívico.
Sabemos agora que, logo depois da morte de Stalin, a liderança começou a
afrouxar os vínculos com o stalinismo, e que esses passos se tornaram mais
rápidos depois da prisão e execução de Beria, ato que tornou possível perscrutar
em maior profundidade os recônditos sombrios do passado stalinista, embora,
é evidente, muitos dos líderes bem soubessem o que havia ocorrido. Uma vez
fixada a data do congresso, Khruschev, inopinadamente, propôs numa reunião
do Presidium que fosse instalada uma comissão para investigar os abusos
cometidos no período de Stalin. Não foi tanto, como se reivindicou mais tarde,
“um apelo do coração e da consciência” que o motivou, quanto a torrente de
cartas que inundou o Comitê Central, as divisões governamentais e outros
órgãos do estado proveniente daqueles que haviam passado longos anos detrás
do arame farpado do Gulag, e de seus parentes, expressando protesto e
esperança, e a fé em que a justiça seria agora restaurada.
Com base naquelas cartas, Khruschev se pôs a preparar memorandos
abrangentes que iriam revelar que o “caso de Leningrado” e vários outros casos
sob revisão tinham sido falsificados. Ficou claro que, em um ou dois anos,
enorme contingente de prisioneiros completaria seus termos de prisão e exílio.
Patente se tornou igualmente que deveria haver permissão para que tais
prisioneiros retornassem a seus lares, juntamente com suas dores, suas
perplexidades e sua demanda para que os reais culpados fossem punidos. Com
Stalin e Beria mortos, qual dos novos líderes ousaria deixar que tais pessoas
apodrecessem nos campos?
O partido enfrentou uma escolha difícil. Até a proposta de criação da
comissão deparou com resistência tenaz de Molotov, Kaganovich e Voroshilov,
mas a balança pendeu para o lado de Khruschev com o apoio de Bulganin,
Mikoyan, Saburov, Pervukhin e do ainda hesitante Malenkov. A comissão foi
estabelecida sob a presidência do editor de longa data do Pravda e diretor do
Instituto Marx-Engels-Lenin, P.N. Pospelov. Khruschev providenciou para que
a comissão tivesse acesso aos documentos do Ministério da Segurança Estatal e
do seu sucessor, em 1953, a KGB.* Pospelov trabalhou nesta comissão com o
mesmo empenho que dedicou, alguns anos antes, à Biografia breve de Stalin.
Quando reportou a Khruschev, às vésperas do congresso, o primeiro-secretário
finalmente se deu conta de que aquele documento quebraria a embalagem de
concreto que envolvia as mentiras e lendas a respeito de Stalin, ou serviria de
obituário para seu próprio funeral.
Diversas vezes fez referências ao relatório de Pospelov e perguntou aos
outros membros do Presidium o que deveria ser feito. Como poderiam ser
levadas as conclusões da comissão ao conhecimento do congresso? Quem
deveria fazê-lo? O próprio Pospelov? A resistência de Molotov, Voroshilov e
Kaganovich foi demorada e dura, por vezes feroz. Não foram feitas anotações,
porém, das memórias de Khruschev, conclui-se que os oponentes do relatório
tinham argumentos fortes. Perguntavam, por exemplo: quem os forçava a lavar
roupa suja em público? Não seria melhor corrigir os excessos em silêncio?
Estaria Khruschev consciente das consequências da publicação do relatório? E,
finalmente: não teriam todos os próprios membros do Presidium participado
daqueles eventos nesta ou naquela medida?
Mas Khruschev ganhou a argumentação e, em 13 de fevereiro de 1956, o
Comitê Central concordou com a leitura do relatório em sessão fechada do
congresso. Khruschev foi assaltado por novas dúvidas, mas quando se lembrou
das cartas do Gulag, convenceu-se de que os crimes da era Stalin não podiam
ficar escondidos por muito tempo. Mais cedo ou mais tarde viriam à tona. Era
melhor assumir a iniciativa e contar ao partido a terrível verdade. Entretanto,
não tencionava divulgá-la para o público em geral.
O congresso caminhava para um final sem percalços e previsível quando
Bulganin, que o presidia, anunciou que haveria uma sessão fechada e convocou
Khruschev a falar. Foi seu melhor momento. Um stalinista ortodoxo no
passado, leal e diligente executor de qualquer ordem do líder, subitamente
encheu-se de coragem cívica e histórica e, de fato, desfez-se de preconceitos
muito arraigados.
Concentrando seu discurso – intitulado “Sobre o culto à personalidade e
suas consequências” – nos anos 1930, falou sobre o terror e os métodos que os
asseclas de Stalin empregavam para arrancar confissões. Khruschev mencionou
a Carta de Lenin ao Congresso, da qual muitos delegados jamais tinham
ouvido falar. E, embora se restringisse à posição stalinista sobre Trotsky e
Bukharin, expôs a ideia herética de que, mesmo sob Lenin, a luta contra a
oposição não fora conduzida exclusivamente segundo linhas ideológicas,
insinuando, apesar de não o dizer, que Lenin também utilizara o terror contra
seus inimigos políticos.
No entanto, a principal carga e o impacto do discurso tiveram relação com
a ilegalidade da era de Stalin, a repressão e o massacre de pessoas inocentes. Os
delegados ficaram paralisados de espanto quando Khruschev descreveu os
muitos casos arquitetados contra os chamados “inimigos do povo”. Em questão
de três ou quatro horas, conseguiu o impossível: destronar Stalin e tornar
evidente que ele foi um líder incompetente, que “só conhecia o campo e a
agricultura pelo cinema” e que, durante a guerra, “trabalhou em operações
militares olhando para um globo terrestre”, e assim por diante.
O pronunciamento atingiu diversos objetivos. Primeiro, expôs as qualidades
da liderança de Stalin como uma fantasia. Segundo, estabeleceu que a culpa
por todos os crimes cabia a Stalin. Provocou uma erupção na consciência
pública; foi o mais corajoso e inesperado ataque contra o cesarismo, a
ilegalidade e o totalitarismo. Mas Khruschev era homem de seu tempo. Não há
dúvida sobre sua contribuição para o desvendamento decisivo do culto, e só
com isto ele já fez jus a um lugar na história. Seu discurso, entretanto,
preparado que foi por um teórico stalinista do velho estilo, não se aprofundou,
arranhou a superfície dos fatos, mal tocou nas origens do stalinismo e nem
reconheceu que o socialismo fora distorcido, tampouco buscou as causas da
deturpação. Khruschev manifestou a esperança de que o debate sobre o culto à
personalidade se cingisse aos círculos partidários e não chegasse à imprensa, de
que “nossas feridas não fossem expostas ao inimigo” e de que somente aquilo
fosse suficiente para liquidar com as perversões stalinistas.
Paradoxalmente, o desejo de manter a discussão desconhecida do povo e da
opinião mundial foi típico pensamento stalinista da parte de Khruschev. A
inconsistência e as meias palavras voltaram à cena na declaração oficial de 30 de
junho de 1956 do Comitê Central “Sobre a superação do culto à personalidade
e suas consequências”. Este documento, que pouco lembra o discurso de
Khruschev, foi, apesar disso, uma expressão mais clara de um acordo de meio-
termo com os stalinistas. Falou de “sérios erros” cometidos apenas “durante os
últimos anos da vida de Stalin”, e de o ditador, ocasionalmente, ter recorrido a
métodos ignóbeis. E asseverou que seria errado procurar a fonte do culto na
natureza da ordem social soviética.41
A impressão foi de que, tendo derrotado o fantasma no congresso,
Khruschev ficou alarmado com a vitória e tentou limitar seus efeitos
escondendo do povo a verdade. Contudo, o discurso vazou por intermédio das
delegações estrangeiras e cedo apareceu nas páginas da imprensa ocidental. Em
contraste, na URSS, a farsa de que ele não tinha acontecido persistiu até a
primavera de 1989 quando foi por fim publicado no Izvestya TsK KPSS
(“Notícias do Comitê Central”), demonstrando, se é que demonstração era
necessária, que o stalinismo ainda não havia morrido, mudara simplesmente de
forma. Além do mais, o partido ainda iria produzir sua própria análise do
fenômeno.
Khruschev fez um segundo ataque a Stalin no XXII Congresso do partido,
em 1961, apertando publicamente o pescoço do modo stalinista de pensar e
agir, sem contudo liquidá-lo. Seguiu-se um período de 25 anos de moratória
durante o qual Brejnev, que não foi capaz de reabilitar Stalin completamente,
se viu aconselhado por Suslov e outros a optar pela criação de lacunas na
história soviética. Era como se Stalin jamais tivesse existido, nem o stalinismo,
tampouco os milhões de vítimas torturadas e executadas, nem o Gulag, nem, é
claro, as incontáveis figuras que desempenharam papel de destaque na fase pré-
stalinista da história soviética e do partido.
A maioria dos livros históricos daquele período foi inacreditavelmente
simplificada; se Stalin fosse mencionado era meramente um entre outros líderes
e, além do mais, que tinha apenas “incorrido em alguns erros”. No que tange
ao XX Congresso, ele desapareceu por muitos anos detrás de uma cortina de
fumaça. Nada disso surpreende: Stalin morrera, mas o sistema sobrevivera e as
novas pessoas que vieram simplesmente continuavam a operá-lo.
Os sucessores de Khruschev conseguiram, sem grande dificuldade,
remendar as fissuras causadas por seus dois ousados ataques. Mas o discurso
cumprira sua missão, e os partidos comunistas não soviéticos embarcaram no
longo e penoso processo de reavaliação de sua história, seus valores, seus
programas e perspectivas, alguns deles seguindo a linha reformista, outros
atacando-a.
Khruschev dificilmente esperava que o drama do XX Congresso fosse
encenado no palco mundial, que engendraria uma extensa contenda entre
diferentes noções de socialismo. De um lado, a noção unidimensional,
ortodoxa, rígida, burocrática, forçada, não tendente a meios-termos, capaz de
justificar qualquer método criminoso em nome da grande ideia. Do outro, a
noção multifacetada, democrática, humanitária, derivada da crença de que uma
grande ideia deve repousar em métodos limpos e humanos, com base no
compromisso histórico e na coexistência de sistemas e ideologias diversificados.
O próprio Khruschev, é evidente, não tinha esta última opinião, mas manda a
verdade que se diga que ele, pelo menos, abriu a porta do mundo socialista às
ideias hoje chamadas de “novo pensamento”. Levantou o véu da infalibilidade
do tirano, e Stalin acabou se mostrando inigualável mestre na combinação da
grande ideia com o grotesco.

No meu empreendimento de pintar o retrato político de Stalin, sempre estive


bem atento para o fato de que muito do que aconteceu na União Soviética
deveu-se ao descrédito, escárnio e negligência com que foi tratada a liberdade.
Um dos principais objetivos da Revolução de Outubro foi a liberdade; ainda
assim, a vitória alcançada não libertou o povo. A liberdade só pode existir
numa situação de democracia verdadeira. Sem democracia, só se apresenta a
sombra da liberdade, só a escravidão ideológica, só os mitos rituais e os clichês.
A nova ideologia supôs que a liberdade somente deriva da sociedade. Todavia, a
liberdade social só pode emergir em parceria com a liberdade espiritual.
Neste livro, referi-me com frequência à consciência. Pessoas como Stalin
encaram a consciência como quimera. Não se pode falar da consciência de um
ditador; isto simplesmente não existe. Aqueles que fizeram o trabalho sujo em
nome de Stalin sabiam muito bem o que faziam; suas consciências ficaram
“congeladas”. E o povo, por sua vez, guardou sua consciência na reserva da
restrição mental, permitindo, assim, que o grande inquisidor tivesse a
oportunidade de executar seus atos malignos.
O povo soviético ainda não perdeu de todo a crença em altos ideais.
Revelou-se capaz de penitência, renascimento e renovação, e isto teve muito a
ver com a libertação de sua consciência dos grilhões da falta de liberdade
vergonhosa. Certamente, libertou-se, mas ainda é muito cedo para alvíssaras.
Na história russa e soviética, tem havido muitas e bravas tentativas de
recomeço, porém delas um grande número terminou com a derrota dos
reformadores. Talvez seja prematuro dizer agora que o processo de renovação é
irreversível. O stalinismo, afinal de contas, não está ainda politicamente morto.
As crises e suas soluções não têm apenas uma lógica progressista, mas também
uma conservadora. É preciso rezar para que os piores temores não se mostrem
proféticos. Mas nossa história dá-nos uma pausa.
Nota

* Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti, Comitê da Segurança Estatal. [N.T.]


Cronologia*

1879
7 de novembro: Nasce Trotsky em Yanovka, próximo a Yelizavetgrad
(Kirovgrad), na Ucrânia.
21 de dezembro: Nasce Stalin em Gori, na Geórgia.

1888-93
S. frequenta escola religiosa, em Gori.

1894
S. entra no seminário teológico, em Tiflis.
Coroação de Nicolau II.

1898
Março: Formado o Partido Social Trabalhista Democrático
Russo (RSDLP), em Minsk.

1899
S. expulso do seminário.

1900
Lenin e Markov fundam seu jornal Iskra (“Centelha”).

1901
S. eleito membro do comitê social democrático de
Tiflis.

1902
S. preso pela primeira vez.
Trotsky conhece Lenin em Londres.

1903
S. casa-se com Yekaterina Svanidze.
S. transportado para a Sibéria Oriental.
Em Londres, no II Congresso, RSDLP racha em
bolcheviques, liderados por Lenin, e mencheviques,
liderados pelo grupo que inclui Markov e Trotsky.

1904
S. escapa da Sibéria, retorna a Tiflis e se torna
bolchevique adotando o cognome de Koba.
Nasce Yakov, filho de S.

1904-06
Guerra russo-japonesa e revolução de 1905.

1905
O Czar concede reformas políticas, inclusive uma
assembleia legislativa, a Duma Estatal.
S. vai à conferência bolchevique em Tammerfors, na
Finlândia, e se encontra pela primeira vez com Lenin.

1906
S. comparece ao IV Congresso do partido, em
Estocolmo. Numa unidade de combate no Cáucaso,
S. toma parte em roubos de bancos, a fim de angariar
fundos para o partido.
1907
S. comparece ao congresso de Londres; sua primeira
viagem maior ao exterior.
Yekaterina Svanidze morre de tuberculose.

1907-09
S. membro do comitê bolchevique de Baku.

1909
S. exilado para Solvychegodsk, em Vologda do Norte.
Escapa depois de quatro meses, retorna a Baku.

1910
Trotsky funda seu jornal independente, o Pravda.

1912
S. preso durante visita a São Petersburgo, deportado
para a Sibéria Ocidental, escapa depois de dois meses e
volta à capital.
S. visita Lenin em Cracow e segue para Viena, onde se
encontra com Bukharin e Trotsky e escreve um ensaio
sobre a questão das nações. Adota o cognome Stalin.
S. cooptado in absentia para o Comitê Central
bolchevique durante o XII Congresso do partido, em
Praga.
Lenin apropria-se do nome do jornal de Trotsky, o
Pravda, que até hoje [1989] permanece como órgão
do Comitê Central bolchevique.

1913
S. preso em São Petersburgo, exilado por quatro anos
para Turukhansk.
1914
Começa a Primeira Guerra Mundial.

1917
Março: O Czar abdica.
Novembro: Bolcheviques tomam o poder.
Formado o Soviete dos Comissários do Povo (governo
bolchevique), com Stalin como comissário para as
Nacionalidades; e Trotsky, comissário das Relações
Exteriores.
Dezembro: Armistício alemão-soviético.

1918
Janeiro: Dispersada a Assembleia Constituinte depois de uma
sessão.
Criado o Exército Vermelho.
Fevereiro: Chicherin substitui Trotsky nas relações exteriores.
Março: Assinado o tratado de paz de Brest-Litovsk com a
Alemanha.
Abril: Começa a guerra civil na Rússia.
Julho: Constituição da República Federativa Socialista Russa
(RSFSR).
Czar e família executados em Ekaterinburg. Adotado o
“Comunismo de Guerra”.
Começa a intervenção dos Aliados.
Agosto: Atentado contra a vida de Lenin pela revolucionária
socialista Fanny Kaplan.
Novembro: Armistício alemão-aliado.

1919
Março: Fundada a Internacional Comunista, o Comintern,
em Moscou.
1920
Abril: Poloneses invadem a Ucrânia soviética.
Julho: Tratado de comércio anglo-soviético.
Outubro: Armistício com a Polônia.
Novembro: Termina a guerra civil com a derrota e evacuação dos
exércitos brancos na Crimeia.

1921
Março: Levante de Kronstadt.
X Congresso do partido adota a Nova Política
Econômica de Lenin e proíbe as facções partidárias.
Estado independente da Geórgia sob governo
menchevique é derrubado pelos bolcheviques.

1922
Fevereiro: A Cheka passa a se chamar GPU.
Abril: S. eleito secretário-geral do partido.
Maio: Primeiro derrame de Lenin.
Dezembro: Segundo derrame de Lenin.
Formação da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS).

1923
Março: Terceiro derrame de Lenin.
Abril: XII Congresso do partido.

1924
Janeiro: Morre Lenin.
Constituição da URSS promulgada.
Maio: XIII Congresso do partido.
Reconhecimento diplomático por parte de Áustria,
Inglaterra, China, Dinamarca, França, Grécia, Itália,
Noruega e Suécia.

1925
Dezembro: XIV Congresso do partido.

1926
Julho: Zinoviev expelido do Politburo e da liderança do
Comintern.
Outubro: Trotsky e Kamenev expelidos do Politburo.

1927
Novembro: Trotsky e Zinoviev expulsos do partido.
Dezembro: XV Congresso do partido.

1928
Janeiro: Trotsky banido para Alma-Ata, no Cazaquistão.

1929
Janeiro: Trotsky expulso da URSS.
Abril: Primeiro Plano Quinquenal adotado pela Décima
Sexta conferência do partido.
Novembro: Bukharin expulso do Politburo.
Dezembro: S. proclama o fim da NEP e começa a coletivização.

1930
Março: Suspensa a coletivização.
Abril-Junho: XVI Congresso do partido.
Dezembro: Julgamentos de vários grupos acusados de sabotagem e
destruição no setor agrícola.

1931
Março: Julgamento de mencheviques por pilhagem.
Começa revisão da história sobre a orientação de S.

1932
Novembro: Esposa de S., Nadezhda Alliluyeva, comete o suicídio.
Dezembro: Passaportes internos, ou carteiras de identidade,
expedidos para a população urbana. Negado aos
fazendeiros coletivos o direito de deixar suas aldeias.

1933
Janeiro: Hitler se torna chanceler da Alemanha.
Novembro: Relações diplomáticas e comerciais estabelecidas entre
URSS e EUA.

1934
Janeiro: XVII Congresso do partido. O “Congresso dos
Vitoriosos”. Setembro: A URSS filia-se à Liga das
Nações.
Dezembro: Sergei Kirov assassinado em Leningrado.

1935
Maio: URSS assina tratados militares com a França e a
Tchecoslováquia.

1936
Julgamento e execução de Zinoviev, de Kamenev e
quatorze outros.
Julgamento de dezessete, inclusive Radek e Pyatakov;
treze executados.
Execução da chefia do Exército Vermelho.

1937-39
O grande expurgo, com prisões em massa, execuções e
longas sentenças à prisão e a trabalho forçado em
campos de concentração.

1938
Março: Julgamento e execução de Bukharin, de Rykov e
dezesseis outros.
Julho: Embates armados com os japoneses no lago Khasan,
na fronteira entre Mongólia e China.
Dezembro: Beria substitui Yezhov como comissário do povo para
as Questões Internas (NKVD).

1939
Abril: Começam as negociações entre a URSS, a França e a
Inglaterra para uma aliança militar contra a
Alemanha.
A URSS também procura melhorar relações com a
Alemanha nazista.
Maio: Litvinov substitui Molotov como comissário para as
Relações Exteriores.
Agosto: Outros embates armados com os japoneses em
Khalkhin Gol, na fronteira com a Mongólia.
Assinado, no Kremlin, o Pacto de Não Agressão
Alemão-Soviético, com protocolo secreto sobre a
divisão da Polônia e sobre esferas de interesses.
Setembro: Alemanha invade a Polônia.
URSS invade a Polônia.
Assinado tratado germano-soviético sobre fronteiras e
amizade.
Novembro: URSS anexa a Ucrânia e a Bielorrússia ocidentais, de
acordo com o tratado de fronteiras com a Alemanha.
Guerra de inverno soviético-finlandesa.
Dezembro: URSS expelida da Liga das Nações.
1940
Fevereiro: Acordo de comércio alemão-soviético.
Março: Tratado de paz soviético-finlandês.
Abril: Massacre de oficiais poloneses prisioneiros de guerra
pela NKVD, em Katyn, Smolensk.
Junho: A URSS recupera a Bessarábia (Moldávia) e anexa a
Bukovina Setentrional.
Agosto: A URSS anexa Lituânia, Letônia e Estônia.
Trotsky assassinado no México pela NKVD.

1941
Abril: Assinado o tratado soviético-iugoslavo de amizade e
não agressão.
Pacto de neutralidade nipo-soviético.
6 de maio: S. se torna presidente do Soviete dos Comissários do
Povo.
21 de junho: Alemanha invade a URSS.
3 de julho: S. faz apelo pelo rádio para que o povo soviético salve
a mãe-pátria.
Novembro: EUA começam o lend-lease para a URSS.
Alemães chegam aos subúrbios de Moscou.
Dezembro: Japoneses começam a Guerra do Pacífico com o
ataque a Pearl Harbor.
Alemanha declara guerra aos EUA.

1942
Janeiro: Conferência de Wannsee. Hitler adota a “solução
final” para a “questão judia”.
Agosto: Exército alemão chega ao Cáucaso.
Dezembro: Criação do Exército Russo de Liberação, sob o
comando do general Vlasov, nos campos alemães de
prisioneiros de guerra.

1943
Janeiro: S. se torna marechal da União Soviética.
Fevereiro: Tropas alemãs se rendem em Stalingrado.
Maio: S. dissolve o Comintern.
Comissários do povo passam a se chamar ministros.
Julho: Postos e distintivos de ombro criados, e o título de
“oficial” substitui o de “comandante”, que existia
desde a criação do Exército Vermelho.
Setembro: S. permite a eleição do novo Patriarca da Igreja
Ortodoxa Russa.
Novembro: Conferência de Teerã com Stalin, Churchill e
Roosevelt.
Primeira e única viagem de S. de avião.

1944
Março: URSS restabelece relações diplomáticas com a Itália.
Junho: Segunda frente estabelecida na Europa com a invasão
aliada da Normandia.
Agosto: Levante de Varsóvia contra os alemães.
O Exército Vermelho entra em Bucarest.
Setembro: O Exército Vermelho entra em Sofia.
Outubro: O Exército Vermelho entra em Belgrado.

1945
Fevereiro: Conferência de Yalta entre Stalin, Roosevelt e
Churchill.
Abril: O Exército Vermelho entra em Viena.
2 de maio: O Exército Vermelho toma Berlim.
8 de maio: Alemanha aceita a rendição incondicional.
Julho-Agosto: Conferência de Potsdam com Stalin, Truman e
Churchill, sucedido por Attlee.
6 de agosto: EUA atiram bomba atômica em Hiroshima.
8 de agosto: A URSS declara guerra ao Japão.
9 de agosto: EUA atiram bomba atômica em Nagasaki.
A URSS começa ofensiva na Manchúria.
2 de setembro: O Japão assina rendição incondicional.
24 de outubro: Criada a Organização das Nações Unidas.

1946
Março: Discurso de Churchill sobre a “Cortina de Ferro” em
Fulton, Missouri.
Agosto: O general Vlasov e outros executados em Moscou.
Novembro: O Comitê Judeu Antifascista colocado sob suspeição.
1947
Setembro: Fundação do Cominform na Polônia.
Zhdanov proclama a doutrina dos dois campos.

1948
Janeiro: O chairman do Comitê Judeu Antifascista, o ator
Solomon Mikhoels, assassinado pela polícia secreta em
Minsk.
O Plano Marshall de ajuda à Europa.
Abril-Junho: Bloqueio de Berlim e ponte aérea para a cidade.
Maio: Proclamado o Estado Judeu de Israel.
Junho: O Cominform expulsa o Partido Comunista da
Iugoslávia.
Proclamada a República Popular da Tchecoslováquia.
Agosto: Zhdanov morre subitamente.
“O caso de Leningrado.”
Novembro: Fechado o Comitê Judeu Antifascista e seus membros
presos.

1949
Janeiro: Criado o Conselho para Assistência Econômica
Mútua entre estados socialistas (Comecon).
Lançada campanha contra a intelligentsia judaica,
rotulada de “cosmopolitas sem raízes”.
Abril: Constituída a OTAN.
Maio: Israel admitido na ONU.
A URSS começa propaganda antissionista.
Setembro: A URSS testa bomba atômica.
Outubro: Proclamada a República Popular da China.

1950
Fevereiro: Tratado de amizade sino-soviético.
Julgamentos políticos nos países socialistas.
Junho: Começa a Guerra da Coreia.

1951
Novembro: Julgamento de Slansky e expurgo antissionista do
Partido Comunista da Tchecoslováquia.

1952
Maio-Julho: Julgamento e execução do Comitê Judeu Antifascista.
Outubro: XIX Congresso do partido. O Politburo passa a se
chamar Presidium. O secretário-geral passa a ser
primeiro-secretário.
Novembro: EUA testam a primeira bomba de hidrogênio.

1953
Janeiro: “A Trama dos Médicos.”
5 de março: Morre Stalin.
Junho: Reprimida a Revolta dos Trabalhadores em Berlim
Oriental.
Julho: Prisão de Beria.
Agosto: Assinado armistício na Coreia.
A URSS testa bomba de hidrogênio.
Setembro: Khrushchev eleito primeiro-secretário.

1955
Maio: Assinado o Pacto de Varsóvia.

1956
Fevereiro: XX Congresso do partido. Khruschev faz o “discurso
secreto” denunciando Stalin.
Abril: Dissolução do Cominform.
Junho: Sublevações antissoviéticas em Poznan, na Polônia.
Outubro: Levante nacional húngaro reprimido pelos tanques
soviéticos.

1957
Julho: Grupo “antipartido” expulso do Presidium.

1958
Outubro: Boris Pasternak ganha o Prêmio Nobel com Doutor
Zhivago. Começa a perseguição a Pasternak na URSS.
Dezembro: Andrei Sakharov prega a proibição do teste com a
bomba de hidrogênio.

1961
Outubro: XXII Congresso do partido. Khrushchev intensifica a
desestalinização. A múmia de Stalin é removida do
Mausoléu.
Nota

* Datas segundo o Novo Estilo do Calendário Ocidental.


Notas

VOLUME I

Abreviatura do nome dos arquivos citados:

Arkhiv IKKI – Arquivos do Comitê Executivo da Internacional Comunista


AVP SSSR – Arquivos da Política Externa Soviética, Ministério do Exterior
TsAMO SSSR – Arquivos Centrais do Ministério Soviético da Defesa
TsGAOR – Arquivos Centrais Estatais da Revolução de Outubro
TsGASA – Arquivos Centrais Estatais do Exército Soviético
TsPA IML – Arquivos Centrais do Partido no Instituto de Marxismo-Leninismo

INTRODUÇÃO

1. Trotsky, L. Stalin, Benson, Vermont, 1947, p. 7


2. TsGASA, f. 918, op. 3, d. 80, l. 591
3. Jaurès, Jean, Sotsialisticheskaya istoriya frantsuzskoy revolyutsii, Moscou, 1983, vol. 6, p. 446
4. Plutarco, Sochineniya, Moscou, 1983, p. 429

PARTE I – ARDOR DE OUTUBRO

1 – UM RETRATO

1. Stalin, I.V. Sochineniya, 13 vols., Moscou, 1946-48, vol. 13, p. 113


2. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 5978, 5080
3. Museu Memorial dos Exilados Políticos Bolcheviques de Narym, f. 998
4. Sverdlova, K.T. Ya. M. Sverdlov, Moscou, 1960, p. 199
5. Lenin, V. I. Polnoe sobranie sochinenii (daqui por diante, PSS), 55 vols., Moscou, 1960-65, vol. 48,
p. 169
6. Ordzhonikidze, G.K. Put’ Bol’shevika. Moscou, 1956, pp. 128-129
7. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 577, l. 18-25
8. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 2000, l. 304
9. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 4358, l.1
10. Citado em Trotsky, L. Stalin, op. cit. p. 148
11. Stalin, op. cit. vol. 6, pp. 52-54
12. Lenin, Biograficheskaya khronika. vol. 3, p. 147
13. TsPA IML, f. 2, op. 1, d. 23851, l. 1
14. Lenin, op. cit. pp. 456-457
15. Stalin, op. cit. vol. 13, p. 121

2 – FEVEREIRO, O PRÓLOGO

16. Florinsky, M. e End of the Russian Empire, New Haven, 1931, p. 228
17. Alekseyev, S.A. ed.: Fevral’skaya revolyutsiya. Prefácio e notas de A.I. Usagin, Moscou-Leningrado,
1926, p. 153
18. Shulgin, V.V. Dni, Belgrado, 1925, p. 108
19. Arquivo IKKI, f. 555, op. 1, d. 2802, l. 1-2
20. Alekseyev, op. cit. p. 153
21. Ibid. p.131
22. Lenin, PSS, vol. 31, p. 156
23. Kerensky, A.F. e Crucifixion of Liberty, Londres, 1934, p. 146
24. Alekseyev, op. cit. pp. 336-337
25. Stalin, I.V. Kratkaya biografiya, Moscou, 1951, p. 57
26. Trotsky, L.D. Fevral’skaya revolyutsiya. Berlim, 1931, pp. 321-322, 325

3 – OS ATORES COADJUVANTES

27. Pravda, 15 de março de 1917


28. Stalin, Sochineniya, vol. 3, p. 8
29. Ibid. vol. 6, p. 333
30. Sukhanov, N. e Russian Revolution 1917, Oxford, 1955, p. 230
31. Sukhanov, N.N. Zapiski o revolyutsii, 7 vols, Berlim, Petrogrado, Moscou, 1922. vol. 7, p. 44
32. Protokoly VII konferentsii RSDRP(b), Moscou, 1980, p. 80
33. Stalin, Sochineniya, vol. 3, p. 55

4 – O LEVANTE

34. Velikaya Oktyabr’skaya sotsialisticheskaya revolyutsiya. Entstiklopediya. Moscou, 1987, p. 109


35. Lenin, PSS, vol. 34, p. 25
36. Ibid. vol. 49, p. 445
37. Lenin, Biograficheskaya khronika, vol. 4, p. 282
38. TsPA IML, f. 4, op. 3, d. 813
39. Lenin, PSS, vol. 34, p. 392
40. Ryabinsky, K., Revolyutsiya 1917 goda. Khronika sobytii. Moscou-Leningrado. 1926, vol. 5, p. 172
41. Lenin, PSS, vol. 34, pp. 435, 436
42. Rabochaya Gazeta, TsPA IML, f. 325, op. 1, d. 11, l. 11
43. Lenin, PSS, vol. 35, p. 102
44. Stalin, Sochineniya, vol. 3, p. 389
45. TsGAOR, f. 130, op. 1, d. 1, l. 20
46. Trotsky, L.D. Stalinskaya shkola fal’sifikatsii. Berlim, 1932, p. 26
47. Trotsky, L.D. Moya zhizn’, 2 vols., Berlim, 1932, vol. 2, p. 60
48. Stalin, Stat’i i rechi 1921-1927, Moscou-Leningrado, 1928, pp. 104-105

5 – SALVA POR SORTE

49. Lenin, PSS, vol. 35, p. 250


50. Trotsky, L.D. Sochineniya, vol. 17, “Sovetskaya respublika i kapitalisticheskii mir”, parte I,
Moscou-Leningrado, 1926, pp. 103, 106
51. Lenin, PSS, vol. 35, pp. 369-370, 490
52. Ibid., vol. 36, p. 30
53. Sed’moi s’ezd RKP. Stenograficheskii otchet. Moscou, 1923, pp. 32-50

6 – GUERRA CIVIL

54. Lenin, PSS, vol. 39, p. 343


55. TsPA IML, f. 2, op. 1, d. 6157
56. TsGASA, f. 1, op. 2, d. III, l. 84
57. TsPA IML, f. 2, op. 1, d. 6235
58. Stalin, Sochineniya, vol. 4, p. 118
59. Leninskii sbornik, Moscou, 1970, vol. 37, p. 139
60. TsGASA, f. 10, op. 1, d. 123, l. 29-30
61. Leninskii sbornik, vol. 37, p. 136
62. TsGASA, f. 100, op. 9, d. 34, l. 26-27
63. TsPA IML, f. 2, op. 1, d. 6324, l. 1-2
64. Lenin, PSS, vol. 36, p. 463
65. Ibid. vol. 42, p. 47
66. TsPA IML, f. 588, op. 1, d. 486
67. Leninskii sbornik, vol. 37, p. 139
68. TsPA IML, f. 2, op. 1, d. 10 022
69. Stalin, Sochineniya, vol. 4, p. 210
70. TsGASA, f. 33988, op. 2, d. 289, l. 19-20; Lenin, PSS, vol. 51, p. 428
71. Lenin, PSS, vol. 51, p. 206-207
72. Ibid. p. 208
73. Direktivy komandovaniya frontov Krasnoy Armii, 1917-1922 gg. Moscou, 1972, vol. 2, p. 720
74. Ibid. p. 410
75. Ibid. vol. 3, p. 244
76. Ibid. vol. 3, p. 244
77. Stalin, Sochineniya, vol. 4, p. 261
78. Trotsky, Moya zhizn’, vol. 2, p. 41
79. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 46, l. 413
80. Lenin, PSS, vol. 45, p. 357
81. TsGASA, f. 104, op. 4, d. 484, l. 11
82. TsGASA, f. 104, op. 4, d. 484. l. 11
83. Lenin, PSS, vol. 41, p. 321

PARTE II – O AVISO DO LÍDER

7 – CAMARADAS EM ARMAS

1. Izvestiya, 23 de janeiro de 1924. Citado em U velikoy mogily, Moscou, 1924, p. 63


2. TsPA IML, f. 2, op. 1, d. 23 315
3. XII s’ezd Rossiiskoy Kommunisticheskoy Partii (bol’shevikov). Stenograficheskii otchet. Moscou, 1923,
pp. 60-61
4. Ibid. p. 61
5. Leninskii sbornik, vol. 37, p. 106
6. Trotsky, Moya zhizn’, vol. 2, pp. 213-214
7. Lenin, PSS, vol. 45, p. 345
8. Lunacharsky, A. Revolyutsionnye siluety, Moscou, 1923, p. 31. Também em inglês como
Revolutionary Silhouettes, trad. Michael Glenny, Londres, 1967
9. XIV s’ezd Vsesoyuznoy kommunisticheskoy partii (bol’shevikov). Stenograficheskii otchet. Moscou-
Leningrado, 1926, pp. 453-454
10. Ibid. pp. 274-275
11. Stalin, Sochineniya, vol. 7, pp. 380, 382
12. Sbornik Feliks Dzerzhinskii, Moscou, 1931, pp. 141, 186
13. Krasnaya Zvezda, 31 de outubro de 1930
14. Stalin, Sochineniya, vol. 7, p. 251
15. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 1
16. Manfred, A.A. Velikaya frantsuzskaya revolyutsiya, Moscou, 1983, p. 328

8 – O SECRETÁRIO-GERAL
17. XI s’ezd Rossiiskoy kommunisticheskoy partii (bol’shevikov). Stenograficheskii otchet, Moscou, 1922,
pp. 47, 49, 51, 52
18. Ibid. pp. 69-70
19. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 29
20. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 78, l. 1-2
21. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 78, l. 1-9
22. Lenin, PSS, vol. 45, p. 188
23. Ibid. p. 211
24. TsPA IML, f. 4, op. 1, d. 142, l. 126; Lenin, Biograficheskaya khronika, vol. 12, p. 388
25. Adam Ulam, Stalin. e Man and his Era, Nova York, 1973, pp. 213-214, cita o Arquivo Trotsky
(Universidade de Harvard), T 755
26. Lenin, PSS, vol. 45, p. 357
27. Ibid. p. 358
28. Ibid. vol. 54, p. 329
29. Ibid. pp. 674-675
30. Ibid. pp. 329-330
31. Ibid. p. 330

9 – A CARTA AO CONGRESSO

32. Gramsci, A. Izbrannye proizvedeniya v 3 tomakh, Moscou, 1959, vol. 3, p. 185


33. Lenin, PSS, vol. 45, p. 20
34. Ibid. p. 308
35. Bukharin, N.I. Izbrannye proizvedeniya, Moscou, 1988, pp. 120-121
36. Lenin, op. cit. p. 710
37. Ibid. p. 174
38. Ibid. pp. 343-344
39. Ibid. pp. 344-345
40. Ibid. p. 345
41. Ibid. p. 345
42. XI s’ezd RKP(b). Protokoly i stenograficheskie otchety s’ezdov i konferentsii KPSS. Moscou, 1969, p.
262
43. Lenin, op. cit. p. 710
44. Ibid. p. 474
45. Ibid. p. 344-346
46. Ibid. p. 247
47. Ibid. p. 346
48. Lunacharsky, A. Revolyutsionnye siluety, op. cit. p. 26
49. Lenin, op. cit. p. 387
50. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 88
51. XII s’ezd RKP(b). Moscou, 1969, pp. 80-81

10 – STALIN OU TROTSKY?
52. XII s’ezd RKP(b). op. cit. pp. 50-53
53. IX s’ezd RKP(b). Moscou, 1920, p. 81
54. Trotsky, Moya zhizn’, vol. 2, pp. 218, 226
55. Citado em U velikoy mogily, Moscou, 1924, pp. 27, 63
56. Ibid. p. 248

11 – AS RAÍZES DA TRAGÉDIA

57. Lenin, PSS, vol. 45, pp. 594-595


58. Ibid. p. 594
59. Ibid. p.110
60. Stalin, I. Sochineniya, vol. 10, pp. 175-176
61. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 86, l. 15; Stalin, Sochineniya, vol. 7, p. 387
62. Radek, K. Itogi XII s’ezda RKP. Moscou, 1923, p. 25
63. Berdyaev, N. Samoznanie. Opyt filosofskoy autobiografii. Paris, YMCA, 1949, p. 251

PARTE III – OPÇÃO E LUTA

12 – CONSTRUINDO O SOCIALISMO

1. Napoleão, Izbrannye proizvedeniya, Moscou, 1941, p. 62


2. KPSS v rezolyutsiyakh. Parte 1 , 7 ed., Moscou, 1953, p. 511
3. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 4870
4. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 112
5. Trotsky, L.D. Uroki Oktyabrya, Moscou, 1925, p. 49
6. Trotsky, L.D. Permanentnaya revolyutsiya, Berlim, 1930, p. 16
7. Lenin, PSS, vol. 45, p. 309
8. Ibid. p. 309
9. Bol’shevik, n. 8, 1925, p. 7
10. TsPA IML, f. 2, op. 2, d. 103
11. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 109, l. 12
12. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 1
13. Stalin, Sochineniya, vol. 6, p. 237
14. Ibid. p. 357
15. XIV konferentsiya RKP(b), Moscou-Leningrado, 1925, pp. 248, 253
16. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 2816, l. 3-5
17. Stalin, Sochineniya, vol. 7, pp. 365, 383
18. Ibid. p. 390
19. Ibid. pp. 390-391
13 – LENINISMO PARA AS MASSAS

20. Stalin, Sochineniya, vol. 1, p. 299


21. Ibid. vol. 7, p. 375
22. Ibid. vol. 9, pp. 315, 321
23. Ibid. vol. 8, pp. 95, 96, 98
24. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 154, l. 54
25. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 154, l. 54
26. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 154, l. 67

14 – DESALINHO INTELECTUAL

27. Trotsky, L.D. Literatura i revolyutsiya, Moscou-Leningrado, 1924, p. 26


28. Bol’shevik, n. 7-8, 1926, pp. 107-108
29. Bol’shevik, n. 9, 1928, p. 6
30. O partiinoy i sovetskoy pechati, Moscou, 1954, p. 347
31. Stalin, Sochineniya. vol. 11, pp. 327-328
32. Ibid. vol. 13, pp. 23, 27
33. O partiinoy i sovetskoy pechati, Moscou, 1954, pp. 346-347
34. Korolenko, V. Pis’ma k Lunacharskomu, Paris, 1922, pp. 61-62
35. Dom Iskusstv, Petrogrado, 1920, n. 1, p. 65
36. Bogdanov, A. O proletarskoy kul’ture, Moscou-Leningrado, 1925, p. 12
37. Trotsky, L.D. Literatura i revolyutsiya, Moscou, 1924, p. 13
38. Pravda, 26 de outubro de 1926

15 – A DERROTA DO “INIMIGO Nº 1”

39. XV konferentsiya Vsesoyuznoy kommunisticheskoy partii (bol’shevikov). Stenograficheskii otchet.


Moscou-Leningrado, 1927, pp. 535, 536
40. TsPA IML. f. 3, op. 1, d. 2827
41. Trotsky, My Life, Nova York, 1930 e 1960, p. 538
42. Stalin, Sochineniya, vol. 10, p. 193
43. Ibid. pp. 204, 205
44. Ibid. p. 191
45. Ibid. p. 173
46. Bol’shevik, n. 16, 1925, p. 68
47. Stalin, Sochineniya, vol. 10, p. 175-177
48. Essad Bey, Stalin, Riga, 1932, p. 234
49. Sotsialisticheskii vestnik, Berlim, abril de 1931, n. 8 (245), p. 8
50. Trotsky, Moya zhizn’, op. cit. pp. 539-540
51. Ibid. p. 556
52. Trotsky, L.D. Chto i kak proizoshlo. Shest’ statei dlya mirovoy burzhuaznoy pechati. Paris, 1929, p. 9
53. Ibid. p. 60

16 – A VIDA PARTICULAR DO LÍDER

54. Lenin, PSS, vol. 54, p. 518


55. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 2908
56. Memorias de Dolores Ibarruri, Barcelona, 1985, pp. 530-535
57. TsGAOR, f. 9401, op. 1, d. 2181
58. Berdyaev, N. Ekzistentsial’naya dialektika bozhestvennogo i chelovechestvennogo. Paris, 1952, p. 132

PARTE IV – DITADURA OU DITADOR?

17 – O DESTINO DO CAMPO

1. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 3112


2. Sobranie Zakonov i Rasporyazhenii Raboche-Krestyanskogo pravitel’stva, Moscou, 1925, p. 313
3. Lenin, PSS, vol. 45, p. 372
4. Ibid. p. 236
5. Stalin, Sochineniya, vol. 10, p. 311
6. XV s’ezd VKP(b). Stenograficheskii otchet. Moscou-Leningrado, 1928, p. 976
7. Ibid. pp. 1057, 1091
8. Ibid. p. 1308
9. Planovoe khozyastvo, 1927, n. 7, p. 11
10. Stalin, op. cit. vol. 11, pp. 2, 4, 6, 7
11. Ibid. vol. 12, p. 166
12. Churchill, W. History of the Second World War, Londres, 1951, vol. 4, pp. 447-448
13. Stalin, Voprosy Leninizma, p. 344
14. Stalin, Sochineniya, vol. 12, p. 149
15. Bol’shevik, 1940, n. 1, p. 2
16. Stalin, Voprosy Leninizma, p. 195
17. Stalin, Sochineniya, vol. 13, p. 392
18. Ibid. p. 245
19. Istoriya SSSR s drevneishikh vremen do nashikh dnei. Moscou, 1966, vol. 9, parte 1, pp. 189-190

18 – O DRAMA DE BUKHARIN

20. Stalin, Sochineniya, vol. 12, p. 1


21. Bukharin, N. Ataka, sbornik statei. Moscou, 1924, pp. 98, 99
22. Bukharin, Izbrannye proizvedeniya. Moscou, 1988, p. 133
23. Bol’shevik, n. 5, 1925, pp. 6, 8, 14
24. Bukharin, op. cit. p. 137
25. Ibid. p. 121
26. Cohen, S. Bukharin and the Bolshevik Revolution: A Political Biography, 1888-1938. Londres,
1974, p. 325
27. Stalin, Sochineniya, vol. 12, p. 69
28. Ibid. pp. 70, 79
29. Ibid. p. 132
30. Itogi noyabr’skogo plenuma TsK VKP(b). Leningrado, 1929, p. 193
31. Sotsialisticheskii vestnik, Berlim, abril de 1931, n. 8 (245)

19 – DITADURA E DEMOCRACIA

32. Lenin, PSS, vol. 45, p. 441


33. Stalin, Sochineniya, vol. 13, pp. 207, 208
34. Ibid. p. 210
35. XVI s’ezd VKP(b). Moscou-Leningrado, 1930, p. 38
36. TsGAOR, f. 9492, op. 2, d. 6, l. 78-81
37. TsGAOR, f. 7523, op. 67, d. 1, l. 5
38. Stalin, Sochineniya, vol. 13, pp. 107, 111, 114, 119-120
39. Arkhiv Verkhovnogo suda SSSR, f. 75, op. 35, d. 319, l. 26
40. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 773, l. 102
41. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 5088
42. Pravda, 7 de abril de 1931

20 – O CONGRESSO DOS VITORIOSOS

43. Pravda, 5 de agosto de 1933


44. XVII s’ezd VKP(b), Moscou-Leningrado, 1934, p. 255
45. Ibid. p. 18
46. Ibid. p. 28
47. Ibid. p. 253
48. Ibid. p. 125
49. Ibid. p. 211
50. Ibid. p. 250
51. Ibid. pp. 493, 496, 497
52. Ibid. p. 521
53. TsGASA, f. 918/33 987, op. 3, d. 155, l. 88
54. XVII s’zed, p. 235

21 – STALIN E KIROV
55. XVII s’ezd, p. 115
56. Stalin, Sochineniya, vol. 13, p. 19
57. TsPA IML, f. 558, op .1, d. 5228, l. 1
58. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 5228, l. 2
59. Arkhiv Genshtaba, op. 16, bloco 17, prateleira 9
60. XVII s’ezd KPSS. Stenograficheskii otchet. Moscou, 1962. vol. 2, p. 403
61. Citado em Pompeyev, Yu. Khochetsya zhit’ i zhit’. Dokumental’naya povest’ o S.M. Kirove. Moscou,
1987, p. 8
62. Ibid. p. 18
63. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 3334
64. Pravda, 3 de dezembro de 1934
65. Sbornik materialov po istorii sotsialisticheskogo ugolovnogo zakonodatel’stva. Moscou, 1938, p. 314
66. Arkhiv Verkhovnogo suda SSSR, f. 75, op. 35, d. 319
67. Stalin, I.V. Beseda s angliiskim pisatelem G. Uell’som, Moscou, 1935, pp. 13, 14, 16
68. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 3179

PARTE V – O MANTO DO LÍDER

22 – PERSONALIDADE DOMINANTE

1. KPSS v rezolyutsiyakh i resheniyakh, 8 ed. Moscou, 1970, vol. 2, p. 90


2. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 633
3. KPSS v rezolyutsiyakh (1970), p. 220
4. TsPA IML, f. 558, op. 2, d. 2915
5. Bol’shevik, n. 9, 1937, p. 9
6. Stalin, Kratkaya biografiya, 1948, p. 163
7. TsPA IML, f. 17, op. 120, d. 313
8. Suetônio, Zhizn’ dvenadtsati tsezarei, Moscou, 1987, p. 135
9. TsPA IML, f. 3, op. 1, d. 3399
10. Stalin, Sochineniya, vol. 13, p. 92
11. Yaroslavsky, Ye. O tovarishche Staline. Moscou, 1942, p. 149

23 – O INTELECTO DE STALIN

12. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 2510


13. TsPA IML, f. 558, op. 3, d. 461, l. 9-21
14. TsPA IML, f. 3, op. 1, d. 4674, l. 1-3
15. TsPA IML, f. 558, op. 2, d. 5374, l. 1-3
16. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 5374
17. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 273, l. 36
18. TsPA IML, f. 558. op. 1, d. 2898
19. Churchill, W. op. cit. vol. 4, p. 443
20. Stalin, Sochineniya, vol. 12, pp. 53-54
21. TsPA IML, f. 17, op. 120, d. 24, l. 1-3
22. Stalin, Sochineniya, vol. 11, pp. 239-240, 241
23. TsPA IML, f. 558, op. 2, d. 4074, l. 35
24. Zhukov, G.K. Vospominaniya i razmyshleniya, 5 ed. Moscou, 1963, vol. 2, p. 95
25. Vasilievsky, A.M. Delo vsei zhizni. 3ª ed. Moscou, 1978, p. 501
26. Churchill, W. op. cit. p. 434
27. K pyatidesyatiletiyu so dnya rozhdeniya I.V. Stalina. Moscou, 1940, pp. 268-274
28. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 26
29. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 149, l. 108

24 – CESARISMO

30. Feuchtwanger, L. Moskva 1937. Otchet o poezdke dlya moikh druzei. Trad. do alemão. Moscou,
1937, pp. 58-59
31. Ibid. p. 64
32. Ibid. pp. 59-60
33. Berdyaev, N. Sud’ba Rossii, Moscou, 1918, p. 58
34. TsPA IML, f. 325, op. 1, d. 365, l. 79
35. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 12
36. Ibid. l. 28
37. Stakhanov, A. Rasskaz o moei zhizni. Moscou, 1938. p. 149
38. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 2218
39. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612
40. Pravda, 21 de outubro de 1937

25 – À SOMBRA DO CHEFE

41. Lenin, PSS. vol. 4, p. 392


42. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612
43. XXII s’ezd KPSS. Stenograficheskii otchet. Moscou, 1962, vol. 2, p. 404
44. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 203, l. 366
45. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 2897
46. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 32
47. Ibid
48. Ibid
49. Ibid. l. 24-35
50. Leninskii sbornik, vol. 37, pp. 138-139
51. TsPA IML, op. cit. l. 83
52. XXII s’ezd KPSS, vol. 2, p. 403
53. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1048, l. 251-258
54. Arquivo Genshtaba, op. 165, bloco 17, prateleira 9, d. 6o, 63, 78
55. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1045, l. 176

26 – O FANTASMA DE TROTSKY

56. Stalin, Sochineniya, vol. 13, p. 111


57. Trotsky, L.D. Sochineniya, vol. 15, “Khozyastvennoe stroitel’stvo Sovetskoy respubliki.” Moscou-
Leningrado, 1927, pp. 41-51
58. Stalin, Sochineniya, vol. 6, p. 331
59. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612
60. Lunacharsky, A.V. Revolutionary Silhouettes, Londres, 1967, p. 66
61. Deutscher, I. e Prophet Outcast: Trotsky 1929-1940. Londres, 1963, p. 26
62. Trotsky, L.D. Sochineniya, vol. 8, “Politicheskie siluety”
63. Ibid. vol. 17, “Sovetskaya respublika i kapitalistecheskii mir.” Parte 1, p. 144
64. Ibid. vol. 21, “Kul’tura perekhodnogo perioda.” pp. 93-94
65. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, d. 577, l. 633
66. Trotzki, L. Stalins Verbrechen. Zurique, 1937, pp. 366-367
67. Trotsky, L. History of the Russian Revolution, Londres, 1934, p. 344

27 – UM VENCEDOR POPULAR

68. Narodnoe khozyastvo SSSR za 70 let. Yubileinyi staisticheskii ezhegodnik. Moscou, 1987, p. 32
69. Ibid. p. 37
70. Ibid. p. 39
71. Pravda, 6 de março de 1937
72. Stakhanov, A. Rasskaz o moei zhizni. Moscou, 1938, p. 50
73. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612
74. Feuchtwanger, op. cit. p. 60
75. TsGASA, f. 918/33 987, op. 3, d. 301, l. 26-27
76. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 2915
77. K shestidesyatiletiyu so dnya rozhdeniya I.V. Stalina, Moscou, 1939, p. 177
78. TsPA IML, f. 538, op. 3, d. 86, l. 16
79. Izvestiya TsK KPSS, n. 3, 1988, p. 138

PARTE VI – O EPICENTRO DA TRAGÉDIA

28 – INIMIGOS DO POVO
1. Pravda, 13 de janeiro de 1936
2. O Konstitutsii SSSR, pp. 16-17
3. Orlov, A. Protsessy. Nova York, 1973, p. 135
4. Izvestiya TsK KPSS, n. 7, 1989, p. 70
5. Ibid. n. 8, p. 89
6. Stalin, Sochineniya, vol. 13, p. 212
7. Kanal imeni Stalina (Belomoro-Baltiiskii kanal imeni Stalina. Istoriya stroitel’stva pod red. M.
Gor’kogo, L. Averbakha, S. Firina). Moscou, 1934, p. 12
8. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 1-3
9. Ibid. l. 6
10. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1075, l. 37-42
11. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 8-16
12. Ibid. l. 57
13. Ibid
14. Ibid. l. 8
15. Ibid. l. 9-11
16. Ibid. 111
17. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 577, l. 5-15
18. Ibid. l. 5-20
19. Ibid. l. 10-25
20. TsPA IML, f. 77, op. 1, d. 439, l. 118
21. TsPA IML, f. 77, op. 1, d. 644, l. 42-89

29 – FARSA POLÍTICA

22. Protsess anti-sovetskogo trotskistskogo tsentra. Moscou, 1937, pp. 42-45


23. Trotsky, L. e Revolution Betrayed. Nova York, 1937, p. 216
24. Arkhiv voennoy kollegii Verkhovnogo suda SSSR, f. 75, op. 35, d. 319, l. 10-35
25. Ibid. f. 74, op. 35, d. 315, l. 61
26. Pravda, 12 de março de 1938
27. Pravda, 5 de março de 1938
28. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 891, l. 25-31; vide A.L. “Bukharina,” Nezabyvaemoe. Moscou, 1989,
p. 319
29. Pravda, 13 de março de 1938
30. Feuchtwanger, op. cit, p. 98
31. Pravda, 13 de março de 1938
32. “Clarification” para NKVD, TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 7
33. Pravda, 13 de março de 1938
34. Pravda, 8 de março de 1938
35. Pravda, 27 de janeiro de 1937

30 – QUADROS NO BANCO DOS RÉUS


36. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 3175, l. 2-10
37. TsGASA, f. 31 983, op. 3, d. 152, l. 150
38. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 627
39. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 199, l. 197
40. Ibid. l. 366
41. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 269, t. I, l. 57-65
42. XXII s’ezd KPSS. Stenograficheskii otchet, vol. 3, p. 199
43. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 624
44. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 630
45. Arkhiv voennoy kollegii Verkhovnogo suda SSSR, f. 74, op. 35, d. 315, l. 51
45a. Ibid. l. 50
46. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 639, l. 24-29
47. Ibid. l. 24-32
48. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 640, l. 20-45
49. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 639, l. 20-35
50. Ibid.
51. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 633, l. 2-26
52. TsGAOR, f. 9401, op. 1, d. 2181
53. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 577

31 – A “TRAMA” TUKHACHEVSKY

54. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1036, l. 270-274


55. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 615
56. Citado em Ivanov, V. Marshal Tukhachevskii. Moscou, 1985, p. 128
57. TsGASA, f. 614, op. 2, d. 18, l. 7
58. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 400, l. 137-139
59. Manuscrito de Viktorov de posse do autor
60. Bol’shevik, n. 12, 1937
61. TsAMO, f. 5, op. 176 703, d. 21, l. 64, 68
62. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1075, l. 19-26
63. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1046, l. 207-208
64. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1048, l. 37
65. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 640
66. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1140, l. 18-22
67. TsGASA, f. 25 880, op. 4, d. 1, l. 2-3
68. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 993, l. 164, 179, 180, 217
69. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1048, l. 23-25

32 – O MONSTRO STALINISTA

70. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612 (vyp. 3)


71. TsGAOR, f. 9401, op. 1, d. 2180, l. 247

Ã
33 – CULPA SEM PERDÃO

72. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 577, l. 57


73. Arkhiv voennoy kollegii Verkhovkogo suda SSSR, f. 74, op. 35, d. 315, l. 46
74. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1075, l. 57-63
75. Izvestiya TsK KPSS, n. 3, 1988, pp. 141-142
76. Ibid. pp. 141-142
77. TsAMO, f. 32, op. 701 323, d. 38, l. 14-16
78. Ibid.

VOLUME II

Abreviatura do nome dos arquivos citados:

Arkhiv IKKI – Arquivos do Comitê Executivo da Internacional Comunista


AVP SSSR – Arquivos da Política Externa Soviética, Ministério do Exterior
TsAMO SSSR – Arquivos Centrais do Ministério Soviético da Defesa
TsGAOR – Arquivos Centrais Estatais da Revolução de Outubro
TsGASA – Arquivos Centrais Estatais do Exército Soviético
TsPA IML – Arquivos Centrais do Partido no Instituto de Marxismo-Leninismo

PARTE VII – NO LIMIAR DA GUERRA

34 – MANOBRAS POLÍTICAS

1. XVIII s' ezd Vsesoyuznoy Kommunisticheskoy partii (bol'shevikov). Stenografichaeskii otchet. Moscou,
1939, p. 18
2. Ibid. p. 26
3. Ibid. p. 2
4. Dokumenty i materialy kanuna vtoroy mirovoy voiny, 1937-39. 2 vols. Moscou, 1981, vol. 2, p. 47
5. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 109, l. 32-33
6. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 9
7. AVP SSSR, f. 06, op. 1, p.19, d. 206, l. 551
8. AVP SSSR, f. 06, op. 1, p.1, d. 5, l. 554
9. AVP SSSR, f. 082, op. 22, p. 93, d. 7, l. 798
10. SSSR v bor'be protiv fashistskoy agressii, 1933-1945, Moscou, 1976, p.66
11. TsAMO SSSR, f. 5, op. 176 703, d. 7, l. 431
12. SSSR v bor'be... p. 74
13. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 57-59, 86
14. AVP SSSR, f. 06, op. 16, p. 27, d. 1, l. 766
15. AVP SSSR, f. 06, op. 1a, p. 26, d. 1, l. 1176-1177
16. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 66-72
17. Dokumenty i materialy… vol. 2, pp. 10, 11
18. SSSR v bor'be... pp. 78-79
19. AVP SSSR, f. 06, op. 1b, p. 27, d. 5, l. 22-32
20. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 73
21. XVII s'ezd VKP(b). Stenografichsekii otchet. Moscou, 1934, p. 11
22. Geiden. K. (Heyden, C.) Istoriya germanskogo fashizma. Moscou-Leningrado, 1935, p. 60
23. XVII s'ezd. 1934, p. 12
24. AVP SSSR, f. 011, op. 4, p. 27, d. 61, l. 1218
25. AVP SSSR. f. 011, op. 4, p. 27, d. 59, l. 178-180
26. AVP SSSR, f. 0745, op. 15, p. 38, d. 8, l. 126-128
27. AVP SSSR, f. 0745, op. 19, p. 45, d. 4, l. 122-125
28. AVP SSSR, f. 0745, op. 19, p. 45, d. 9, l. 129-132
29. Akten zur deutschen auswärtigen Politik 1918-1945. Baden-Baden, 1956, vol. 7, p. 131

35 – REVIRAVOLTA
30. AVP SSSR, f. 0745, op. 15, p. 38, d. 8, l. 149
31. Zhilin, P.A. O voine i voennoy istorii. Moscou, 1984, p. 145
32. Pravda, 27 de agosto de 1939
33. Documents diplomatiques français, 1932-39. 2e serie, vol. 18, p. 243
34. AVP SSSR, f. 059, op. 1, p. 300, d. 2077, l. 233-234
35. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1237, l. 379, 381
36. Dokumenty I materialy... 1937-1939, vol. 2, pp. 85-86
37. Pravda, 18 de setembro de 1939
37a. TsAMO, f. 5, op. 362 360, d. 175 704, l. 90
38. TsAMO, f. 5, op. 391, d. 175 704, l. 96
39. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1237, l. 436-437
40. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 105, t. III, l. 19-22
41. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 105, t. III, l. 205
42. TsGAOR, f. 5325, op. 1, d. 244, l. 2
43. TsGAOR, f. 5325, op. 1, d. 244, l. 9
44. TsGASA, f. 33 988, op. 3, d. 373, l. 130
45. TsGASA, f. 33 988, op. 3, d. 373, l. 113
46. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1236, l. 376-380
47. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1366, l. 60-62
48. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1366, l. 27-29
49. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 99
50. Izvestiya, 3 de dezembro de 1939
51. Izvestiya, 16 de dezembro de 1939
52. TsAMO, f. 8, op. 1, d. 23, l. 34
53. TsAMO, f. 15, op. 11 600, d. 160, l. 96
54. TsAMO, f. 132, op. 264 211, d. 73, 1.67-110
55. Ibid

36 – STALIN E O EXÉRCITO
56. Voenno-istoricheskii zhurnal, 1987, nº 9, p. 50
57. TsAMO, f. 37 837, op. 10, d. 142, l. 93
58. Voennye kadry Sovetskogo gosudarstva, 1941-1945. Moscou, 1963, p. 12
59. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 993, l. 3, 1
60. TsAMO, f. 5, op. 176 703, d. 21, l. 16
61. Arkhiv Verkhovnogo suda SSSR. f. 75, op. 35, d. 319
62. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1305, l. 175, 192
63. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 4, l. 153
64. TsGASA, f. 4, op. 18, d. 77, l. 56
65. TsGASA, f. 4, op. 18, d. 76, l. 20
66. TsGASA, f. 4, op. 18, d. 79, l. 9-l0
67. TsGASA, f. 365, op. 1, d. 18, l. 6
68. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 3, l. 85-91
69. Voenno-istoricheskii zhurnal, nº 9, 1987, p. 49

37 – O ARSENAL DE DEFESA
70. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1302, l. 3
71. Zhilin, P.A. O voine i voennoy istorii, Moscou, 1984, p. 185
72. Ustinov, D.F. Vo imya pobedy. Moscou, 1988, p. 223
73. Nekrich, A.M. 22 Iyunya 1941. Moscou, 1965, p. 73
74. TsAMO, f. 15a, op. 2154, d. 4, l. 224-233
75. TsAMO, f. 75 284, op. 1, d. 119, l. 18
76. Voznesensky, N.A. Voennaya ekonomika SSSR v period Otechestvennoy voiny. Moscou, 1948, p. 78
77. TsAMO, f. 15a, op. 2154, d. 4, l. 224-233
78. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 653
79. Pravda, 22 de fevereiro de 1941

38 – O ASSASSÍNIO DO EXILADO
80. Trotsky, Dnevniki i pis' ma. pp. 160-162
81. Siqueiros, D.A. Menya nazyvali likhim polkovnikom. Moscou, 1986, p. 220
82. Trotsky, op. cit. pp. 164-166

37 – DIPLOMACIA SECRETA
83. e Public Papers of Franklin D. Roosevelt, 1939, pp. 201-205
84. Vneshnyaya politika SSSR. Sbornik dokumentov, vol. 4. Moscou, 1946, p. 417
85. Istoriya vneshnei politiki SSSR 1917-1945. Moscou, 1980, vol. 1, pp. 371-372
86. Voenno-istoricheskii zhurnal, nº 9, 1987, p. 49
87. TsGASA, f. 3987, op. 3, d. 1175, l. 33-34
88. TsGASA, f. 32 871, op. 1, d. 72, l. 216
89. AVP SSSR, f. 06, op. 1a, p. 26, d. 1, l. 1179
90. Leonhardt, W. Der Schock des Hitler-Stalin Paktes. Freiburg, 1986, pp. 66-68, 79-84
91. AVP SSSR, f. 011, op. 4, p. 25, d. 11, l. 1462-1463
92. TsAMO, f. 500, op. 12 458a, d. 34, 1.17
93. TsAMO, f. 500, op. 12 462, d. 7, l. 1-6
94. Voenno-istoricheskii zhurnal, nº 9, 1987, p. 54
95. Churchill, W. History of the Second World War, vol. 3, p. 493
96. Sandalov, L.M. Perezhitoe. Moscou, 1961, p. 75

40 – OMISSÕES FATAIS
97. TsAMO, f. 32, op. 11 302, d. 6, l. 522-523
98. TsAMO, f. 32, op. 11 302, d. 6, l. 526-561
99. Izvestiya, 28 de setembro de 1939
100. Pravda, 1º de novembro de 1939
101. Pravda, 2 de setembro de 1939
102. TsGASA, f. 25 871, op. 2, d. 285, l. 8-9
103. Uma conversa com A.A. Yepishev registrada nas memórias não publicadas de Vlasik e vistas pelo
autor.
104. TsGASA, f. 9, op. 39, d. 72, l. 44, 133, 536
105. TsAMO, f. 16a, op. 2951, d. 239, l. 10-14
106. Como registrado por Shtemenko e Vasilievsky em TsAMO
107. TsAMO, f. 16a, op. 2951, d. 239, l. 84-90
108. TsAMO, f. 16a, op. 2951, d. 239, l. 245-279
109. TsAMO, f. 16, op. 2951, d. 239
110. TsAMO, f. 16a, op. 2951, d. 242, l. 238
111. Zhukov, G.K. Vospominaniya i razmyshleniya. Moscou, 1969, p. 233
112. TsAMO, f. 32, op. 11 306, d. 5, l. 140-146
113. TsGASA, f. 33 988, op. 4, d. 36, l. 56
114. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 3, l. 85-90
115. TsAMO, f. 127, op. 12 195, d. 16, l. 199-204
116. TsAMO, f. 127, op. 12 915, d. 16, l. 308-314
117. TsAMO, f. 208, op. 2513, d. 70a, l. 424-427
118. TsAMO, f. 15, op. 725 588, d. 36, l. 214-242
119. TsAMO, f. 208, op. 2513, d. 71, l. 34
120. Zhukov, op. cit, p. 233

PARTE VIII – INÍCIO CATASTRÓFICO

41 – CHOQUE PARALISANTE
1. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 101, l. 23, 35, 37
2. TsAMO, f. 16, op. 2951, d. 239
3. TsAMO, f. 16, op. 2951, d. 243, l. 123-130
4. Em Politicheskoe Obrazovanie, nº 9, 1988, pp. 69-75
5. TsAMO, f. 132a, op. 2642, d. 41, l. 1-2
6. TsAMO, f. 15, op. 881 474, d. 12, l. 246-253
7. TsAMO, f. 48a, op. 1554, d. 90, l. 260-262
8. TsAMO, f. 32, op. 1071, d. 1, l. 6-8
9. TsAMO, f. 208, op. 2513, d. 71, l. 203-204
10. TsAMO, f. 15, op. 725 588, d. 36, l. 239
11. Kumanev, V. "Iz vospominanii o voennykh godakh", Politicheskoe Obrazovanie, nº 9, 1988, p. 75
omite a obscenidade que está na fita original ouvida pelo autor.
12. TsAMO, f. 132a, op. 2642, d. 28, l. 1
13. Memórias do general D. I. Ryabishev, TsAMO, f. 15, op. 881 474, d. 12, l. 175-190
14. TsAMO, f. 48-A, op. 1554, d. 9, 1- 47
15. TsAMO, f. 48-A, op. 1554, d. 9, l. 25
16. Politicheskoe obrazovanie, 1988, nº 9, p. 75
17. TsAMO, f. 32, op. 701 323, d. 38, l. 53
18. Pravda, 3 de julho de 1941

42 – TEMPOS CRUÉIS
19. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 1, l. 1744
20. TsAMO, f. 8, op. 11 627, d. 954, l. 65
21. TsAMO, f. 8, op. 1855, d. 7, l. 27
22. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 70, 65-71
23. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 2, l. 252
24. TsAMO, f. 48A, op. 1554, d. 91, l. 40-42
25. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 70, l. 65-71
26. TsAMO, f. 33, op. 725 588, d. 36, l. 10
27. TsAMO, f. 33, op. 725 588, d. 36, l. 308-310
28. TsAMO, f.208, op. 2513, d. 71, l. 131, 221
29. TsAMO, f. 33. op. 11 454, d. 179, l. 144-145
30. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 68, t. V, l. 231-232
31. TsAMO, f. 33, op. 11 454, d. 179, l. 320-321
32. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 324

43 – DESASTRES E ESPERANÇAS
33. TsAMO, f. 96-A, op. 2011, d. 5, l. 21-24
34. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 30, l. 12-13
35. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 1, l. 315
36. TsAMO, f. 298, op. 2526, d. 5a, l. 443-448
37. TsAMO, f. 32, op. 11 306, d. 36, l. 82-84
38. TsAMO, f. 96-A, op. 2011, d. 5, l. 28-30
39. TsAMO, f. 96-A, op. 2011, d. 5, l. 96-99
40. TsAMO, f. 48-A, op. 1554, d. 9, l. 470
41. TsAMO, f. 229, op. 161, d. 103, l. 93
42. TsAMO, f. 8, op. 11 627, d. 954, l. 61
43. TsAMO, f. 7, op. 11250, d. 29, l. 37-38
44. TsAMO, f. 48-A, op. 1133, d. 7, l. 139-140
45. TsAMO, f. 48-A, op. 1554, d. 9, l. 431
46. TsAMO, f. 219. op. 679, d. 3, l. 17-21
47. Voenno-istoricheskii zhurnal, nº 9, 1987, p. 50
48. Zhukov, G.K. Vospominaniya i razmyshleniya. Moscou, 1983, vol. 2, p. 257
49. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 8, l. 212-214
50. Ts AMO, f. 48-A, op. 1910, d. 11, l. 16-19
51. TsAMO, f. 96-A, op. 2011, d. 5, l. 141-143
52. TsAMO, f. 32, op. 11 306, d. 24, l. 7
53. Stalin, I.V. O Velikoy Otechestvennoy voine Sovetskogo Soyuza. Moscou, 1950, p. 35

44 – O CATIVEIRO E O GENERAL VLASOV


54. Encyclopaedia Britannica. Londres, 1973, vol. 18, p. 563
55. TsAMO, f. 8, op. 11 627, d. 954, l. 62
56. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 70, l. 155
57. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 16
58. TsAMO, f. 32, op. 11 306, d. 24, l. 8
59. Gems, Ditte, Hitlers Wehrmacht in der Sovjetunion. Frankfurt am Main, 1985, p. 41
60. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 135, l. 1-2
61. TsAMO, f. 33, op. 11 454, d. 179, l. 1-2
62. TsAMO, f. 38, op. 11 389, d. 2, l. 164-166
63. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 42, l. 18-22
64. TsAMO, f. 48-A, op. 1640, d. 26, l. 296
65. TsAMO, f. 32-A, op. 11 309, d. 163, l. 15-45
66. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 7, l. 201
67. TsAMO, f. 32, op. 11 306, d. 195, l. 249-253
68. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 142, t. III, l. 102-103
69. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 68, t. V, l. 102
70. TsGAOR, f. 9401, op. 1, d. 2010, l. 67-69
71. TsGAOR, f. 109, op. 1, d. 2010, l. 67-69
72. Em Politicheskoe obrazovanie, 1989, nº 4, pp. 58-63
73. TsGAOR, f. 9401. op. 2, d. 64, t. I, l. 1
74. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 64, t. I, l. 158
75. TsPA IML, f. 58, op. 2, d. 966, l. 5
76. Hoffmann, J. Die Geschichte der Wlassow Armee. Rombach, 1986, p. 377. TsGAOR, f. 9401, op.
2, d. 64, t. I, l. 9-12

PARTE IX – O COMANDANTE SUPREMO

45 – O QUARTEL-GENERAL
1. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 30, l. 24
2. Zhukov, G.K. Vospominaniya i razmyshleniya. Moscou, 1983, vol. 2, p. 97
3. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 13, l. 247-248
4. TsAMO, f. 132, op. 2642, d. 233, l. 285-286
5. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 14, l. 18
6. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 6, l. 47
7. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 14, l. 62
8. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 41, l. 75-81
9. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 5, l. 51
10. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 6, l. 20

46 – AMANHECER EM STALINGRADO
11. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 316
12. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 128-129
13. Ibid.
14. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 2, l. 175
15. TsAMO, f. 3, op. 11 556. d. 9, l. 128-129
16. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 13, l. 7, 8
17. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 9
18. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 336
19. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 339
20. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 159, l. 87

47 – O COMANDANTE E SEUS GENERAIS


21. Stalin, op. cit., p. 71-72
22. Zhukov, op. cit., vol. 2, p. 99
23. Marshal Zhukov. Kakim my ego pomnim. Moscou, 1988, p. 81
24. TsAMO, f. 249, op. 1544, d. 112, l. 144
25. TsAMO, f. 48, op. 7, d. 2
26. TsAMO, f. 132, op. 264, d. 230, 1.15
27. Marshal Zhukov. Kakim my ego pomnim, p. 245
28. TsAMO, f. 8, op. 11 627, d. 988, 1.81
29. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 103
30. TsAMO, f. 48-A, op. 3412, d. 63, l. 46-47
31. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 39, l. 115
32. Vasilievsky, A.M. Delo vsei zhizni. Moscou, 1983, p. 470
33. Gaglov, I.I. General Antonov. Moscou, 1978, p. 87

48 – IDEIAS DE UM ESTRATEGISTA
34. TsAMO, f. 32, op. 11 302, d. 62, l. 546
35. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 27
36. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 265, t. II, l. 340-347
37. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 41, l. 271-272
38. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 14, l. 82-84
39. O relato desse encontro pode ser encontrado nos arquivos correntes da Seção Política do Exército,
onde o autor trabalhou e fez detalhadas anotações sobre a ocasião.
40. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 324
41. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 32, l. 145-147
42. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 5, l. 6
43. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 313
44. TsAMO, f. 15, op. 178 612, d. 86, l. 132. 140
45. TsAMO, f. 15, op. 178 612, d. 86, l. 345-347
46. TsAMO, f. 15, op. 178 612, d. 86,1. 198
47. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 165-166
48. Tegeranskaya konferentsiya rukovoditelei trekh soyuznykh derzhav. Sb. dokumentov. Moscou, 1978,
vol. 2, pp. 52, 53
49. Ibid., p. 54

49 – STALIN E OS ALIADOS
50. TsAMO, f. 1178, op. 1.d. 38, l. 93
51. TsAMO, f. 236, op. 2675, d. 170, d. 108-311
52. Vneshnyaya politika SSSR. Sbornik documentov. Moscou, 1947, vol. 5, p. 40
53. Ibid., p. 54
54. Perepiska Predsedatelya Soveta Ministrov SSSR s Prezidentami SShA and Premier-Ministrami
Velikobritanii (1941-1945 gg.). Moscou, 1976, vol. 1, p. 19
55. Ibid., p. 29.
56. e Diaries of Sir Alexander Cadogan, 1938-1945. Nova York, 1971, p. 471.
57. Perepiska Predsedatelya Soveta Ministrov SSSR. p. 74
58. Stalin, O Velikoy Otechestvennoy voine. Moscou, 1950, p. 132
59. Pravda, 30 de maio de 1943
60. Tegeranskaya konferentsiya rukovoditelei trekh soyuznukh derzhav. Sbornik dokumentov. vol. 2, p.
167
61. Tegeran. Yalta. Potsdam. Sbornik documentov. Moscou, 1970, p. 22
62. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 101, l. 338-341
63. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 172, t. II, l. 247-248
64. Harriman, W. Averell e Elie Abel, Special Envoy to Churchill and Stalin,1941-1946, Nova York,
1976, p. 536
65. Lundin, C.L. Finland in the Second World War. Bloomington, 1957, p. 216
66. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 74
67. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 16, l. 183
68. TsAMO, f. 3, op. 11 56, d. 18, l. 93
69. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 142-144
70. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 110
71. TsAMO, f. 48-A, op. 3412, d. 63, l. 187-188
72. Krymskaya konferentsiya rukovoditelei trekh soyuznykh derzhav. Sbornik dokumentov. Moscou,
1979, p. 273
73. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 177-190

PARTE X – CLÍMAX DO CULTO

Ó
50 – O PREÇO DA VITÓRIA
1. Vneshnyaya politika SSSR, Moscou, 1947, vol. 5, p. 598
2. Ibid., p. 97
3. Ibid., pp. 602-603
4. Gromyko, Andrei, Memories. Editado e traduzido por Harold Shukman, Londres, 1989, p. 108
5. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 97, t. VI, l. 124-130
6. Hayter, W. Meeting at Potsdam. Londres, 1975, p. 136
7. TsGAA, f. 33987, op. 3, d. 1241, l. 61
8. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 96, t. V, l. 4
9. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 95, t. IV, l. 323
10. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 135, t. II, l. 277
11. W. Averell Harriman e Elie Abel, op. cit., p. 92
12. Berlinskaya (Potsdamskaya) konferentsiya rukovoditelei trekh soyuznykh derzhav – SSSR, SShA i
Velikobritanii (17 iyulii-2 avgusta 1945 g.) Sbornik dokumentov. Moscou, 1980, pp. 42-43
13. TsAMO, f. 66, op. 178499, d. 9, l. 34-37
14. TsAMO, f. 66, op. 178499, d. 9, l. 61
15. Berlinskaya konferentsiya, pp. 299-300
16. KPSS v rezolyutsiyakh i resheniyakh… 9ª ed. vol. 8, pp. 7-16
17. TsAMO, f. 132, op. 2642, d. 15, l. 1-9
18. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 96, t. V, l. 147
19. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 103, t. III, l. 149-60
20. Voznesensky, N.A. Izbrannye proizvedeniya, Moscou, 1979, p. 584
21. TsAMO, f. 132, op. 104, d. 16, l. 22
22. TsAMO, f. 132, op. 2, d. 54, l. 97
23. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 134, t. I, l. 1-7
24. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 2223, l. 235-238
25. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 97, 1.139-142

51 – CORTINA DE SEGREDOS
26. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612 (vyp. 3), l. 8, 10
27. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 199, l. 197
28. Merezhkovsky, D. Tsarstvo Antikhrista. Munique, 1921, p. 16
29. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 64, t. I, l. 270-277
30. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 199, l. 1
31. TsGAOR, f. 1318, op. 3, d. 8, l. 85
32. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 134, t. I, l. 143-151
33. TsGAOR, f. 3316, op. 2, d. 1682, l. 3-7
34. TsGAOR, f. 3316, op. 2, d. 1613, l. 3-18
35. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 134, t. I, l. 1-2
36. TsGAOR, f. 3316, op. 2, d. 2016, l. 1-10
37. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 93, l. 276-278
38. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 134, t. I, l. 1-2
39. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 201, l. 79-81

52 – UM ACESSO DE VIOLÊNCIA
40. Pravda, 1º de março de 1949
41. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 172, t. I, l. 85-92
42. TsPA IML, f. 71, op. 3, d. 121, l. 122-132
43. TsGAOR, f. 7523, op. 107, d. 261, l. 12
44. TsGAOR, f. 7523, op. 107, d. 261, l. 13-15
45. Ibid., l. 13
46. Ibid., l. 28
47. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 255, t. I, l. 118-119
48. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 319, 192-198
49. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 269, 199, l. 57-77, 366
50. Ibid., l. 30

53 – O LÍDER ENVELHECE
51. Bol'shevik, dezembro de 1949, p. 34
52. TsGAOR, f. 7523, op. 6, d. 739, l. 1, 9, 12
53. TsGAOR, f. 7523, op. 63, d. 218a, l. 9
54. TsGAOR, f. 7523, op. 65, d. 2186, l. 1-15
55. Kautsky, K. "Sozialdemokratie und Bolschewismus" in Die Gesellschaft, nº 8, 1931, vol. 1, p.101
56. Alliluyeva, S. Tol'ko odin god. Nova York, 1968, pp. 109-110

54 – VENTOS GÉLIDOS
57. Kennan, G. Memoirs (1925-1950). Nova York, 1969, pp. 583-598
58. TsGAOR. f. 9401, op. 2, d. 135, t. II, l. 287-296
59. Truman, H. Mémoires, vol. 2 "L'appel des decisions". Paris, 1955, p. 112
60. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 151, t. VIII, l. 99-112
61. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 176, t. II, l. 235-254
62. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 149, t. VI, l. 35
63. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 176, t. II, l. 360
64. TsPA IML, f. 77, op. 5, d. 54, l. 14-15
65. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 92, l. 47, 55
66. Belgradskaya operatsiya, Moscou, 1964, p. 85
67. Djilas, M. Razgovory so Stalinym. Nova York, 1962, pp. 169-176
68. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 105, l. 1-8
69. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 106, l. 5-7, 17-19
70. Pravda, 3 de fevereiro de 1949
71. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 2223, l. 291
72. Stalin, I. Sochineniya, vol. 7, p. 231
73. Ibid., vol. 8, pp. 363, 364, 376
74. TsPA IML, f. 325, op. 1, d. 155, l. 3a
75. Pravda, 25 de outubro de 1988: vide Gromyko, A. Memories, tradução H. Shukman, Londres,
1989, e material adicional em Memoirs, Nova York, 1990, pp. 248-53
76. Mao Tse-tung, Izbrannye proizvedeniya, Moscou, 1953, vol. 4, p. 580

Í
PARTE XI – AS RELÍQUIAS DO STALINISMO

55 – ANOMALIA HISTÓRICA
1. TsGAOR, f. 9401, op. l. d. 2180, l. 120-121
2. TsGAOR, f. 9401, op. I, d. 2180, l. 50-51
3. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 269, t. I, l. 169-170
4. Novaya Zhizn', novembro de 1917
5. Sotsialisticheskii vestnik, 25 de abril de 1925
6. Dan, F.I. e Origins of Bolshevism, Nova York, 1964, p. 400-440
7. Ugolovnyi kodeks (kodeksy RSFSR), Moscou, 1938, pp. 26-32
8. TsPA IML, f. 88, op. 1, d. 474,1. 4
9. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 97, t. VI, l. 276
10. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 97, t. VI, l. 283-292
11. Serge, V. Destin d'une revolution. URSS 1917-1936. Paris, 1937, p. 323

56 – DOGMAS MUMIFICADOS
12. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 906, l. 44-52
13. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 3212, l. 27
14. TsPA IML, f. 77, op. 1, d. 268, l. 5-l0
15. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 54, l. 1-4
16. Ibid.
17. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 136, t. III, l. 205
18. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 302, t. I, l. 29-31

57 – BUROCRACIA ABSOLUTA
19. Lenin, PSS, vol. 35, p. 113 20. Ibid., vol. 50, p. 238
21. TsGAOR, f. 58, op. 1, d. 9, l. 3-4
22. TsGAOR, f. 567, op. 1, d. 89, l. 29
23. Lenin, PSS, vol. 44, p. 171
24. Ibid.
25. Ibid., p. 428
26. Trotsky, Sochineniya, vol. 12, pp. 261, 267
27. TsPA IML, f. 505, op. 1, d. 65, l. 10
28. TsPA IML, f. 505, op. 1, d. 65, l. 21
29. Lenin, PSS, vol. 50, p. 106
30. TsPA IML, f. 325, op. l. d. 403, l. 87a
31. Wood, A. "Siberia before 1917." Em Shukman, H. e Blackwell Encyclopedia of the Russian
Revolution. Oxford, 1988, p. 258; Pipes, R. Russia under the Old Regime, Cambridge, MA., 1981, p. 417
32. TsGAOR, f. 7523, op. 65, d. 231, l. 12
33. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 2223, l. 338-357
34. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 98, t. VII, l. 380
35. TsGAOR, f. 9401, op. I, d. 2180, l. 533-534
36. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 172. t. I, l. 325-326

Ã
58 – DEUSES TERRENOS SÃO MORTAIS
37. Izvestiya TsK KPSS, nº 12, 1989, pp. 34-40
38. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 176, t. II, l. 235-254
39. Rapoport, Ya.L. Na rubezhe dvukh epokh. Delo vrachei 1953 goda. Moscou, 1988, pp. 208-209.
40. TsGAOR, f. 7523, op. 107, d. 261, l. 28-34

59 – DERROTA PELA HISTÓRIA


41. KPSS v rezolyutsiyakh i resheniyakh s' ezdov, konferentsii i plenumov TsK (1898-1971). 8ª ed.
Moscou, 1971, vol. 7, pp. 203, 205, 209, 210
1. Iosef Djugashvili, estudante da escola teológica de Gori, 1893.
2. Yekaterina (Kato) Svanidze, primeira mulher de Stalin.
3. Na aldeia de Monastyrskoe, 1915, um grupo de membros do comitê central exilados: Stalin é o
terceiro a partir da esquerda, na fila de trás, de chapéu preto. L.B. Kamenev à direita dele. G.I. Petrovsky
está sentado ao centro. À direita dele, Ya.M. Sverdlov.
4. Membros do Revvoensoviet da frente sudoeste A.I.Yegorov e Stalin, 1920.
5. Trotsky, presidente do Soviete Militar Revolucionário-Revvoensoviet, em seu trem blindado.
6. Comunismo de guerra: fazendo a colheita.
7. Moscou. Praça da Assunção (então, da Revolução, e hoje, Praça Vermelha). Desembarcando comida
requisitada, 1919.
8. Penúria e fome na região do Volga, 1921.
9. Lenin e Stalin em Gorky, 1922.
10. Stalin, Rykov, Kamenev e Zinoviev, no início dos anos de 1920.
11. 1º de Maio de 1925, Praça Vermelha, Moscou. Em frente ao mausoléu provisório de Lenin, ainda de
madeira: Kon, Yenukidze, Sedakyan, Muklevich, Voroshilov, Bubnov, Unshlikht, Baranov, Tukhachevsky,
Yegorov e Budenny. Sobre o mausoléu: Kirov, Rykov, Bukharin, Kalinin, Stalin, Schmidt, Tomsky,
Yaroslavsky, Postyshev e outros.
12. O que toca às mulheres… construindo os fornos de carvão coque em Magnitogorsk, 1931.
13. Mikoyan, Kirov e Stalin, 1932.
14. No auge, Pravda, 7 de novembro de 1930.
15. Julgamento de um kulak, Odessa, 1932.
16. Kulaks vítimas do terror, 1929.
17. Stalin com A.N. Poskrebyshev, 1934.
18. Voroshilov com generais, futuras vítimas do terror: Gamarnik, Slavin, Dubov, Dybenko, Kork,
Khalepsky e Yakir, durante um intervalo do XVII Congresso.
19. Voroshilov, Molotov, Stalin e Yezhov no canal Moscou-Volga.
20. A mesma foto, mas Yezhov foi apagado.
21. Voroshilov, Stalin e Molotov carregam urnas com as cinzas de balonistas mortos num acidente, no
final da década de 1930.
22. Stalin com a roupa típica dos mongóis buriats, 1936.
23. Eleições stalinistas. Yu.O. Schmidt votando, 1937.
24. Fotografia claramente falsa da mesa diretora de uma sessão do Soviete de Moscou.
25. Stalin com sua filha, Svetlana.
26. Stalin com sua mãe, Yekaterina Djugashvili, 1935.
27. Stalin e Voroshilov com suas esposas.
28. Stalin e Beria com a filha de Stalin na dacha.
29. A família. Stalin com Vasili e Svetlana.
30. Stalin e Beria de férias.
31. Stalin em sua dacha.
32. Conferindo os recém-chegados a um campo de trabalho forçado no canal Moscou-Volga.
33. Prisioneiros entrando numa unidade de quarentena.
34. Assinatura do Pacto Alemão-Soviético de Não Agressão, 23 de agosto de 1939. Molotov assinando.
Em pé, sorridentes, Ribbentrop e Stalin.
35. Stalin com Poskrebyshev durante a assinatura do Pacto Molotov-Ribbentrop.
36. Stalin após a assinatura do Pacto Molotov-Ribbentrop.
37. Mapa da Polônia assinado por Stalin e Ribbentrop.
38. O marechal Chuikov e oficiais alemães acertam os limites entre as tropas alemãs e soviéticas na
Polônia, setembro de 1939.
39. Bielorrussos do oeste recebem a notícia da anexação pela URSS.
40. Aviões de combate soviéticos destruídos no chão, julho de 1941.
41. Timoshenko dá parte a Stalin sobre perdas aéreas. Stalin despacha mandando dois comandantes a
julgamento.
42. Atirando de fuzil contra aviões inimigos. Frente sudoeste, maio de 1942.
43. O filho de Stalin, Yakov Djugashvili (à direita), e o filho adotivo de Molotov, G. Skryabin,
prisioneiros de guerra.
44. Campo alemão de prisioneiros de guerra, 1941.
45. A aldeia de Khoroshevo, perto de Rzhev. Aqui ficou Stalin, durante sua visita ao front, em agosto de
1943.
46. Os alemães chegam a Moscou, mas como prisioneiros de guerra, julho de 1944.
47. Os libertadores, a pé, rumo a Berlim.
48. Stalin com seus filhos Vasili e Svetlana, na reserva de Chernaya Rechka (Rio Negro), 1947.
49. Comício pré-eleitoral nos distritos Stalin e Bauman de Moscou, apresentando Stalin para o Soviete
Supremo, 15 de fevereiro de 1950.
50. Meninos e meninas Pioneiros entregam flores a Stalin em seu septuagésimo aniversário, 21 de
dezembro de 1949.
51. O sepultamento de Stalin. Sobre o Mausoléu estão Palmiro Togliatti, da Itália; Dolores Ibarruri, da
Espanha; Vulko Chervenkov, da Bulgária; Mátyas Rákosi, da Hungria; Robert Kenny, do Canadá;
Jacques Duclos, da França; Klement Gottwald, da Tchecoslováquia; Bulganin, Molotov, Voroshilov,
Malenkov, Khruschev; Chou En-lai, da China; Beria, Yudin, Kaganovich, Mikoyan, Saburov, Pervukhin e
Shvernik.
DIREÇÃO GERAL
Antônio Araújo

DIREÇÃO EDITORIAL
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EDITORA RESPONSÁVEL
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