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DADOS DE ODINRIGHT

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RONALD SETH

40 ANOS DE
ESPIONAGEM SOVIÉTICA

Tradução de CAIO DE FREITAS

EDIÇÕES BLOCH 
Copyright © 1965 Ronald Seth 

Primeira edição brasileira: 1968 

Traduzida de Forty Years of Soviet Spying, publicada por


Canel & Co. Londres 

Capa de Enio Damazio 

Contratados todos os direitos de edição por BLOCH


EDITORES S. A.

Rua Frei Caneca, 511 — Rio de Janeiro, GB — Brasil 

Printed in Brazil 
PREFÁCIO

O motivo que me levou a escrever este livro é simples.


Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a atenção pública
tem sido despertada por uma série de incidentes
dramáticos. Exemplo: as defecções de Gouzenko, no
Canadá; de Pavlov, na Austrália; e, em particular, os casos
de Nunn May, Fuchs, Pontecorvo, Lonsdale, Blake e Vassal.
Todos esses incidentes vieram evidenciar a imensa
ramificação da espionagem soviética. As autoridades
responsáveis não perderam a oportunidade de demonstrar,
através de intensiva divulgação dos fatos, o que os espiões
russos e os traidores pró-comunismo representam para nós
na era nuclear. E somente os espíritos extremamente
displicentes não se deixaram impressionar pelas
informações, tornadas públicas.

Examinando a questão com isenção de ânimo, pareceu-me,


entretanto, que o quadro exibido se mostrava, de alguma
forma, destorcido. Fui levado a essa conclusão ao verificar,
em conversa com amigos, que apenas alguns deles — que
não eram peritos em espionagem — julgavam que, embora
tivesse sido maciço o esforço da espionagem soviética no
pós-guerra, contudo, ele mal ultrapassou o que fora
realizado no período anterior ao conflito.

Penso, também, que o sensacionalismo, que tem


acompanhado as revelações sobre a espionagem soviética,
venha constituindo, igualmente, um erro de julgamento.
Todas as vezes que é dado um alarma sobre as atividades
de um espião nuclear, uma atmosfera de quase pânico logo
o envolve, à guisa de transparente cortina de fumaça,
criada não pelo público em geral — embora inevitavelmente
ele seja afetado —, mas por diferentes tipos de políticos. O
medo deturpa o julgamento. Em face de tal ameaça, é
essencial que se tenha serenidade, para que o movimento
de reação possa ser eficiente. Pessoalmente, acredito que,
se o público tivesse um exato conhecimento da espionagem
russa, o pânico — ou mesmo qualquer tendência para a
formação de um ambiente de pânico — poderia ser
facilmente neutralizado.

Não são somente os políticos e a imprensa que têm sido


culpados dessa situação. Muitos livros sobre a espionagem
soviética surgiram, nestes últimos vinte anos, e não há um
só deles que se revele isento, até certo ponto, de
sensacionalismo. Em muitos casos, mostram-se deturpados
até no que diz respeito aos fatos. Nos Estados Unidos, uma
importante obra foi publicada: A Espionagem Soviética —
escrita por David J. Dallin. Talvez por que se trate de um
trabalho de erudição, destinado mais a especialistas e a
estudiosos do que ao público em geral, não teve a virtude
de ser largamente difundido. O Mundo Ocidental, portanto,
não dispõe, cm circulação, de qualquer relato das atividades
da espionagem soviética, do qual se possa valer. Foi para
preencher essa lacuna, pois, que escrevi, este livro.

Não posso alegar que tenha tratado, exaustivamente, da


espionagem soviética. Para se realizar essa tarefa, muitos
volumes seriam necessários. Espero, não obstante, que
tenha alcançado meu duplo objetivo. Procurei apresentar
meu material, de maneira desapaixonada; e esforcei-me por
dar uma impressão, tão minuciosa quanto possível, da
espionagem soviética nos quarenta anos de sua atividade.

 
Primeira Parte
DESENVOLVIMENTO E
ORGANIZAÇÃO
 
1. A Tradição do Serviço Secreto na
Rússia

Segundo a lenda, nos meados do século IX depois de Cristo,


os russos, concentrados na comunidade comercial de
Novgorod, enviaram a seguinte mensagem a Rurik, chefe
dos Varangianos: “Nosso país é grande e bonito, mas nele
não existe ordem. Venha e nos governe!” Lenda ou não, o
fato é que um Rurik fundou uma dinastia e esta, no decorrer
de um período de quinhentos anos, fundiu os numerosos
pequenos principados, ali existentes, numa única nação,
sob a égide de Moscou.

Esse período histórico foi encerrado por uma invasão


tártara, desencadeada por Batu Khan. Os invasores se
infiltraram no império consolidado e o governaram por dois
séculos e meio, quando, por sua vez, foram expulsos, em
1492, por Ivã, o Grande. O neto desse herói foi Ivã, o Terrível
— contemporâneo da Rainha Elizabeth I, da Inglaterra — e
do seu reinado nasceram os princípios do governo
autocrático, ao lado dos quais a teoria do direito divino dos
reis, dos Stuarts, parece um simples arremedo.

Ivã conquistou esse cognome, o Terrível, por sua dureza e


crueldade, embora tenha sido, na realidade, um
administrador de larga visão. Em face da perseguição que
desencadeou contra as classes privilegiadas, sempre viveu
ameaçado de morte. Como medida de proteção pessoal,
organizou, então, uma Guarda Pretoriana, denominada
Oprichniks.
Os Oprichniks ocupam um lugar de relevo nesta narrativa.
Foram os precursores da Okhrana, da Cheka, da OGPU, da
NKVD e da MGB, enfim da polícia secreta russa, e cuja única
função, através dos séculos, tem sido a de proteger
fisicamente os governantes do país, quer o regime tenha
sido autocrático-despótico, quer despótico-socialista. Que os
ditadores da Rússia tivessem necessidade da proteção dos
Oprichniks é perfeitamente compreensível, quando se leva
em conta que só dificilmente se descobre um deles que não
houvesse governado sem qualquer excesso. Em sua
maioria, sempre se comportaram em oposição ao bem-estar
e à felicidade de seus súditos.

Essa característica da realeza russa torna-se


particularmente relevante, no que diz respeito aos
Romanovs — a dinastia fundada pelo boiardo Miguel
Romanov, em 1612, e que, ininterruptamente, reteve as
rédeas do poder até o advento dos bolchevistas. Durante os
cento e cinquenta anos que precederam o fuzilamento do
último czar, em 1918, três dos seus antecessores haviam
sido assassinados e, mesmo os que morreram de morte
natural, nunca estiveram livres da possibilidade de um fim
violento.

Em face do que até aqui dissemos, duas conclusões podem


ser tiradas. Em primeiro lugar, o medo de ser assassinado e
a forte possibilidade de que isso pudesse ocorrer tornaram
essencial, para os czares, que fossem protegidos por uma
Polícia Secreta, capaz de descobrir as conspirações antes
que viessem a furo. E a segunda conclusão — um corolário
da primeira — é que os longos séculos de subjugação, em
que viveu a Rússia, condicionaram de tal maneira a massa
de sua população à aceitação da tirania da Polícia Secreta
que essa carga, que lhe tem pesado nos ombros desde o
advento de seus novos líderes até o fim da era stalinista,
acabou por lhe parecer tolerável. De fato, os habitantes do
império moscovita nunca viveram livres dessa opressão. O
que lhes aconteceu foi, tão-somente, a troca de um
despotismo por outro, sem qualquer diferença entre ambos.

Provavelmente nenhum outro país — excluída talvez a


Prússia, durante o predomínio do grande Guilherme Stieber,
como chefe da Inteligência de Bismarck — já sofreu maiores
pressões do Serviço Secreto do que a Rússia. Em relação,
então, aos últimos cento e cinquenta anos, essa assertiva
não comporta dúvidas. Os czares, desde Ivã, o Terrível,
sempre procuraram preservar suas vidas, lançando mão da
espionagem protetora dos seus guardas secretos. Não foi,
portanto, Nicolau I quem lançou as bases do sistema que,
ainda hoje, influencia a máquina de espionagem da União
Soviética.

Nicolau I não possuía qualquer das tendências liberais que


seu irmão, Alexandre, foi tentado a dar expressão. A revolta
dos Dekabristi — como posteriormente ficou conhecida,
ocorrendo logo no início do seu reinado, teria eliminado
certamente qualquer tendência de semelhante conteúdo,
se, por acaso, uma idéia liberal jamais houvesse germinado
em seu espírito. Sufocou a revolta rápida e brutalmente.
Enforcou os seus chefes. E enviou mais de uma centena de
pessoas — todos, oficiais e membros de boas famílias —
para o exílio na Sibéria.

Esta foi a primeira vez que o exílio na Sibéria — que se iria


tornar uma das mais importantes armas de todas as
subsequentes organizações de segurança da Rússia — foi
empregado como punição. E parece ter sido ele o precursor
de outras inovações, nas tentativas czaristas de governar
pela eliminação.

Determinado a estar preparado, no futuro, para fazer frente


a qualquer sublevação, que lhe pudesse ameaçar o trono,
Nicolau instituiu, então, um Corpo Especial de Segurança,
no comando do qual colocou o Conde Constantino
Benckendorff. Esse aristocrata não deve ser confundido com
seu filho, o Conde Alexandre Benckendorff, que foi
embaixador russo em Londres, de 1908 até sua morte, em
1917. Benckendorff realizou os desejos do seu senhor, de
maneira tão eficiente, que não tardou a criar uma atmosfera
de terror, não somente no espírito do homem das ruas, mas,
igualmente, no seio das autoridades administrativas.
Mesmo assim, Nicolau não se mostrou satisfeito. Pouco
depois, criou uma outra organização, conhecida como a
Terceira Seção, cujo chefe dispunha do poder de enviar para
o exílio, no prazo de algumas horas qualquer cidadão russo,
independentemente de sua posição, e sem ter de explicar
as razões para tão drástica medida. E o pior: não havia
recurso contra as decisões da Terceira Seção.

O sucessor de Nicolau foi, talvez, o mais humano de todos


os ocupantes do trono russo. Começou a reinar, como já
vimos, com as melhores intenções e, mesmo, tentou pô-las
em prática, adaptando-as, tanto quanto possível, à sua
interpretação das funções da monarquia. Dissolveu o Corpo
Especial de Segurança e a Terceira Seção e libertou todos os
prisioneiros que ainda estavam vivos nas masmorras da
última organização. O liberalismo de Alexandre II, porém,
não chegou a minorar o sofrimento da grande massa de
seus súditos. Ao ser vítima de uma tentativa de assassinato,
reagiu, instituindo um governo tão impiedoso como havia
sido o do seu antecessor. Quando, em consequência de seus
violentos métodos de repressão, explodiu um movimento
revolucionário, mais amplo e mais ativo que qualquer outro
anteriormente planejado, decidiu lançar mão da mesma
espécie de proteção, com que os últimos czares se haviam
cercado. Mas isso de nada serviu. No dia 13 de março de
1881, uma bomba explodiu sob a carruagem imperial e,
embora o czar ficasse ileso, alguns membros da sua
comitiva foram mortos ou saíram feridos. Quando desceu da
carruagem, para verificar a extensão do atentado, outro
petardo foi atirado contra ele. Como resultado da segunda
explosão, seu filho Nicolau II ascendeu ao trono russo.

Nicolau II, talvez levando em conta o completo fracasso do


liberalismo paterno, revelou-se um reacionário, da maior
violência. Uma das suas primeiras providências foi converter
a administração numa autocrática forma de governo, nunca
ultrapassada por outro czar. Para combater os
revolucionários, que intensificavam suas atividades à
medida que se enriquecia o regime, organizou, à custa de
fabulosas despesas e com tremendo esforço, uma força
policial secreta, denominada Departamento Oficial de
Proteção. Do nome desse Departamento, em russo —
Ikhrannoye Otdyelyenye —, surgiu a sigla com que passou à
História: Okhrana.

Por essa ocasião, os revolucionários não apenas haviam-se


organizado no interior da Rússia, mas, também, no exterior,
e cabia à Okhrana a responsabilidade de manter sob
vigilância esses conspiradores. Para realizar esse objetivo,
ela introduziu um drástico regulamento relativo à concessão
de passaportes e enviou agentes a todos os conhecidos
refúgios de revolucionários, eLivross por vontade própria.
Essa última providência, constituindo uma característica
raramente observada nas atividades das Polícias Secretas,
permaneceu como uma indelével marca da espionagem
soviética. É que, mesmo hoje, as responsabilidades pelo
serviço de vigilância no exterior estão afetas, em todos os
países, às Secretarias de Estado mais usualmente
relacionadas com a segurança interna — os Ministérios ou
os Conselhos de Segurança Nacional.

No plano doméstico, a Okhrana desenvolveu sua atividade,


lançando mão de um sistema de vigilância em massa. Essa
orientação, por sua própria natureza, exigia não só a
mobilização de um gigantesco número de agentes das mais
variadas espécies, mas, também, a existência de uma
organização bem maior do que qualquer outra,
anteriormente ou desde então criada. Mas, tanto no que
dizia respeito ao modo de realizar o seu trabalho, quanto à
natureza de seus objetivos, a Okhrana sempre se revelou
uma instituição ridícula. Permanentemente, removia
montanhas para, no final, dar à luz grotescos ratos. Seus
dirigentes eram membros da aristocracia e da burocracia e,
para eles, o objetivo principal não estava na defesa do
regime. Preocupavam-se apenas com sua permanência nos
cargos, ou com a obtenção das promoções, que aspiravam.
Esse comportamento, como seria de esperar, deu origem a
rivalidades, em detrimento dos resultados positivos que, por
sua importância, a organização naturalmente deveria obter.
Além disso, a não-cooperação dos adversários constituía
uma causa de permanente inquietação para o egoísmo
desses policiais. Embora os revolucionários viessem
crescendo em número à medida que se enrijecia o regime
de Nicolau, só ocasionalmente assumiam atitudes que
poderiam ser consideradas perigosas e ameaçadoras.
Desde que — na opinião deles — um homem podia
demonstrar seu valor tanto por conservar-se no cargo, como
pelas promoções que recebesse, os longos períodos de
quietude revolucionária não poderiam ser, de forma alguma,
do agrado dos dirigentes da Okhrana. Assim, numa
tentativa de criar um ambiente de ação, passaram eles a
lançar mão, com frequência, de um tipo de agente que as
organizações de segurança que se respeitam, só em último
recurso empregam — o agente provocador. Esse repugnante
tipo de policial tem por tarefa aparentar amizade, com o
objetivo de realizar a traição, ou provocar inconfidências
que possam ser interpretadas como subversivas, muito
embora ele próprio soubesse que suas vítimas não
passavam de honrados e pacatos cidadãos. Esses agentes
eram postos em atividade pela Okhrana, tanto no plano
interno, como no exterior.

A extensão do caminho que a Okhrana percorreu, para


poder apresentar alguns resultados, foi, de modo geral,
digna de riso. Quando os bolchevistas — suas antigas
vítimas — assumiram o poder da Rússia, divulgaram os
arquivos secretos da organização, e o que veio a público,
então, dava a impressão a quem se deu ao trabalho de
examiná-lo — de não passar de um amontoado de fantasias,
criadas por um idiota de aldeia. Mas, fantasia ou não, a
Okhrana, pela iniquidade mesma do seu trabalho, sempre
inspirara terror e apreensão no seio dos inocentes.

A história que Vassal contou, relativa ao início do seu


envolvimento pela espionagem soviética — que é
perfeitamente crível para quem conheça alguma coisa sobre
a maneira como essa organização opera —, indica que, a
esse respeito, a influência da Okhrana ainda empresta certo
colorido às forças russas de segurança. Não se limita a isso
a semelhança que existe entre a organização do passado e
a que, ali, funciona nos tempos modernos. A atual
espionagem soviética, como fazia a Okhrana, também se
apoia, para seu êxito, num número fabuloso de agentes.

A Okhrana expandiu-se através da Rússia e pesou sobre a


sua cena doméstica pelo período de trinta e cinco anos. Não
estava preparada, porém, para os objetivos, para os quais
havia sido criada. E um deles era justamente prevenir ou
evitar atentados. Dessa forma, ela extinguiu no desastre
que coroou todos os seus fracassos — o fuzilamento do czar
Nicolau, em 1918, na adega de Ekaterinburg.

Apesar de toda a sua deficiência, a Okhrana, entretanto,


preservou uma tradição de séculos — tradição que, embora
nunca houvesse sido seguida por qualquer outro país da
Europa, não iria extinguir-se nem mesmo com a sua
dissolução. 

 
2. Início da Espionagem Soviética no
Exterior

Os homens que assumiram a responsabilidade de ordenar e


conduzir os negócios da Rússia em 1917 já dispunham de
uma longa experiência das coações peculiares à Polícia
Secreta. É que haviam sido eles, antes da Revolução, suas
principais vítimas. Nessas condições, estavam a par das
deficiências da Okhrana, mas sabiam, por outro lado, que
deveriam proteger-se. Com efeito, revelar-se-iam
inapelavelmente ineptos se não reconhecessem que,
embora já livres do punho de ferro do czarismo, tinham pela
frente grande número de compatriotas seus que não
concordava com a ideologia que pregavam, nem aceitava o
regime que impuseram ao país.

Durante o período de suas atividades clandestinas, os


revolucionários haviam adquirido certa experiência prática
de espionagem, visto que, para contrabalançar as
investidas da Okhrana, tiveram de se empenhar em vastas
operações secretas. Como não lhes fora possível obter
qualquer instrução profissional, viram-se obrigados a
aprender muitas coisa de segunda mão ou a recorrer ao
próprio bom senso. Como o bom senso constitui a base
desse gênero especial de segurança, representando mesmo
o elemento mais importante para uma espionagem bem
sucedida, temos de concluir que aos revolucionários não
escasseariam meios para fundar uma organização que
possuísse todos os méritos de um bom serviço secreto, sem
acusar qualquer dos defeitos da tradicional espionagem
russa. Já que não realizaram qualquer dessas coisas,
necessário se faz que procedamos, aqui, a um breve exame
do trabalho que levaram a efeito, e nos estendamos numa
apreciação, de certo modo detalhada, sobre o que parece
ser o procedimento característico, ou a concepção, dos
russos no que diz respeito à espionagem.

Muito embora as atividades da Okhrana houvessem sido na


maioria das vezes ridículas, o partido revolucionário, dentro
da Rússia, frequentemente era, por elas, perturbado em
suas tentativas de se fundir numa agremiação de força e de
ação eficiente. A maior dificuldade que se apresentava a
esses conspiradores era descobrir qual poderia ser o agente
de segurança que, por acaso, se houvesse infiltrado em
seus conselhos, com o objetivo de denunciar, a seus
superiores, tudo o que pudesse saber sobre a identidade
dos revolucionários e dos planos que tinham em mente
executar. O desprezível duplo-agente Eugene Azeff — que
começou sua carreira como um agente provocador da
Okhrana, quando ainda estudante — obteve sucessivas
promoções enquanto foi considerado, por seu chefe, como
um dos seus mais eficientes operadores. Por mais de vinte
anos, ele liderou a organização terrorista Narodnaya Volya,
para a qual planejava assassinatos e fabricava bombas com
as próprias mãos e, ao mesmo tempo, traía os
companheiros revolucionários, denunciando-os aos seus
patrões da Okhrana.

Existiram outros agentes na Rússia como Azeff — embora


não tão afortunados — e, através desse trabalho em
conjunto, a Okhrana conseguiu descobrir a identidade de
quase todos principais chefes da Revolução, como, por
exemplo, Lenin, Trotsky e o casal Zhitlovsky. Quando esses
líderes foram libertados, ou fugiram da prisão ou do exílio
na Sibéria, viram-se obrigados a buscar refúgio no exterior,
a fim de não terem suas atividades interrompidas.
A esses homens e mulheres preeminentes juntaram-se
hostes de membros menos importantes do Partido, os quais
se consideravam planejadores ou formuladores de teorias —
mais instigadores de ação do que propriamente homens de
ação —, que deveriam traçar diretrizes, guiar os destinos da
agremiação, dirigir a Revolução e retornar à pátria para se
encarregarem dos negócios do país sob o novo regime. A
sabedoria de terem buscado refúgio no exterior, de onde
podiam orientar suas atividades revolucionárias, é evidente
em excesso para exigir explicação. Os grupos de emigrados
se concentraram, em sua maioria, nas capitais e nas
grandes cidades européias, entre as quais Viena, Munique,
Paris, Zurique e Londres, e nelas instalaram seus escritórios.

Como inevitavelmente acontece quando um novo


movimento, dirigido por homens de espírito simples, mas de
decisão, passa do estágio incipiente da conspiração para
uma face convida de realizações, surgiram logo, no seio dos
eLivross, numerosas divergências de opinião. Divergências
quer de fórmula, quer de ação. Ocioso será considerá-las
neste momento, exceto que essas discrepâncias de ponto-
de-vista impuseram a necessidade de um maior contato
entre os diversos grupos e de um mais estreito intercâmbio
entre grupo e o Partido, no interior da Rússia, que deveria
ser o exército da Revolução.

Essa situação exigia, pois, uma constante movimentação de


emissários e, dessa maneira, as duas seções do Partido
adquiriram sua primeira experiência na realização de uma
verdadeira espionagem. Por consenso geral, as atividades
do Partido, no interior da Rússia, seguiam uma linha
clandestina. E essa atitude de cautela — precária, como era
— não poderia ser classificada, realmente, como sendo
espionagem. Era tão importante, porém, que as mensagens
dos líderes emigrados alcançassem seus seguidores na
Rússia — para que suas reações fossem conhecidas no
exterior — que todas as precauções eram tomadas, no
sentido de que os portadores enviados obtivessem pleno
êxito em suas missões. De todas as atividades desse
gênero, as desempenhadas pelo jornal Iskra, dirigido por
Lênin, foram as que se revelaram de maior envergadura e
acusaram mais proveitosos resultados.

Após ter sido libertado de seu exílio de dez anos na Sibéria,


Lênin fugiu da Rússia para a Alemanha. Nesse último país,
fundou o Iskra — A Faísca, da qual a labareda nasceria — e,
através de suas colunas, divulgava tudo quanto se
relacionava com os interesses do Partido, particularmente a
sua doutrina. Dez mil exemplares do periódico —
juntamente com panfletos de propaganda, instruções,
armas e explosivos — com intervalos irregulares, eram
contrabandeados para o interior da Rússia. E esse material
subversivo, após haver cruzado, em segurança, a fronteira,
era então distribuído, através de uma rede de agentes
especializados, por toda a extensão do território russo.

A experiência de cada seção do Partido não era utilizada


apenas em atividades de espionagem. A Okhrana fazia
frequentes e bem sucedidos esforços para se infiltrar nos
vários grupos revolucionários existentes tanto no país como
no exterior e, a esse respeito, dois relevantes êxitos da
organização devem ser ressaltados. O primeiro deles foi
representado pelo comparecimento de agentes da Okhrana,
disfarçados em delegados, ao Congresso do Partido Social
Democrático Russo, realizado em Zurique, em 1897. E o
segundo concretizou-se através da eleição, em 1910, de
Kukushkin — um agente da polícia — para as funções de
presidente do Comitê Revolucionário de Moscou. Os
revolucionários estavam cientes dos esforços, realizados
pela Okhrana, no sentido de introduzir seus agentes
secretos nas fileiras do Partido e se mantinham em
permanente vigilância. Desse modo, acabaram por adquirir
valiosa experiência no campo da contraespionagem.

Os revolucionários, contra-atacando, adotaram uma tática


idêntica a empregada pela Okhrana. Assim é que, muitos
anos antes da época calculada para o irrompimento da
Revolução, já dispunham de numerosos agentes ocultos em
todos os departamentos do governo czarista, mas excluindo
a própria Polícia, o Ministério da Guerra e grande número de
unidades do Exército. Dessa forma, quando assumiram o
poder, puderam contar, desde logo, com uma vasta
corporação de homens especializados nas atividades de
espionagem — embora essa experiência fosse de certa
forma restrita —, para formar o embrião do primeiro Serviço
Secreto Soviético.

Quanto ao conceito que faziam dos requisitos de


precauções que a situação em que se encontravam
requeria, os revolucionários, quando assumiram o comando
do controle nacional, encararam a Rússia como uma
vastidão sem limites, de incalculável população, no seio da
qual se ocultavam numerosos inimigos seus, cuja
quantidade, nem de longe, poderiam avaliar. Faltando lhes
uma verdadeira experiência profissional nesse campo —
como, aliás, em quase todos os demais aspectos de governo
— acreditavam que, para protegê-los, e também ao novo
regime, um vasto corpo de agentes se tornava necessário.
Em face disso, quando julgaram oportuno, instituíram uma
organização que, em relação a esse objetivo, não só
ultrapassou a própria Okhrana, mas se revelou, mesmo,
bem mais complexa do que esta outra organização, notável
pelas mesmas características: o Serviço Secreto Prussiano,
criado por Guilherme Sileber.

Dentre os membros fundadores do bolchevismo — os


"velhos bolchevistas” — havia um homem que se destacou
dos demais por sua experiência em todos os gêneros de
atividades clandestinas. Era Félix Dzerjinsky — antigo
aristocrata polonês e filho de um grande proprietário rural.
Inicialmente, juntou-se ao movimento como estudante,
tornando-se membro do Partido Revolucionário Socialista,
que abandonou pouco depois, para aderir ao Partido Social
Democrático do Trabalho, ideologicamente mais aceitável.
Quando, em 1903, se deu a cisão entre os bolchevistas e os
menchevistas, uniu-se aos primeiros, que constituíam a
facção de Lênin. Foi a Dzerjinsky que Lênin deu ordens, em
1917, para que organizasse o Serviço Secreto Soviético.

Coube a Dzerjinsky, em primeiro lugar, controlar todas as


linhas de comunicação. Desempenhou com tal sucesso essa
tarefa que numerosos membros da administração Kerensky
só souberam que tanto eles como seus partidários, os
menchevistas, não mais estavam no poder, somente
algumas horas após Lenine e os bolchevistas haverem
assumido o controle do governo.

Desse momento em diante, Dzerjinsky dedicou-se, de corpo


e alma, a seus deveres, trabalhando com rapidez. No dia 20
de dezembro de 1917, dois meses depois de ter as rédeas
na mão e seis semanas após seu partido haver assumido o
poder, elevou o status da Subcomissão de Segurança,
transformando-a na poderosa Comissão Extraordinária de
Combate à Contrarrevolução e à Sabotagem. Das iniciais
das duas primeiras palavras de seu título em russo —
Chrezvychaynaya Komisiya (Ch-k) — foi tirado o diminutivo
Cheka.

As funções desempenhadas pela Cheka eram de dupla


finalidade. Devia organizar, em primeiro lugar, uma força
política, que controlasse as atividades dos
contrarrevolucionários — isto é, de todos os indivíduos
hostis ao novo regime —, estabelecendo, simultaneamente,
um Serviço de Inteligência para fazer frente às atividades
dos espiões do Exército Branco e dos agentes secretos
estrangeiros, como Sir Paul Duke e Sir Robert Lockhart e
seus colegas, originários dos dois principais países
“intervencionistas”: os Estados Unidos e a França.
Competiria à Cheka, em segundo lugar, instituir um Serviço
Secreto exterior. Tão grande foi, porém, a oposição que o
novo regime sofreu, no interior da Rússia, que o principal
esforço dessa Comissão, nos seus seis primeiros anos de
atividade, teve de se concentrar na manutenção da
segurança interna, resultando daí que a organização de um
Serviço Secreto, no exterior, fosse grandemente retardada.

Embora Lenine não tivesse em mente uma data certa para o


desencadeamento de uma revolução que colocasse o
comunismo na chefia do poder em todos os países, esse
retardamento determinou enorme alteração em seus
planos. Se a Cheka não se podia transformar, de imediato,
num instrumento da revolução mundial, enquanto isso
acontecesse, outra organização deveria ser criada, a qual,
congregando todos os comunistas estrangeiros, preparasse
o terreno para um trabalho mais intenso da própria Cheka,
quando a hora H soasse. E foi assim que, em 1919, nasceu
a Internacional Comunista, ou o Comintern. Como
instrumento de congregação, esse novo órgão representou
um fracasso. Como veículo de lançamento das bases da
espionagem externa, porém, obteve certo êxito, embora,
mesmo nesse terreno, sua capacidade de ação não se
houvesse revelado particularmente eficiente.

A luta contra as forças da Rússia Branca cessou em


princípios de 1922, e, no dia 11 de fevereiro desse mesmo
ano, a Cheka foi rebatizada com o nome de Administração
Política do Estado (Gosudarstvennoye Politicheskoye
Upravlenye) — a GPU — uma organização que, enquanto
existiu, deveria ser mais temida do que jamais o foram a
Okhrana e a Cheka. Tendo suas tarefas, no campo interno,
sido suavizadas em consequência do término da guerra
civil, ela imediatamente se voltou para o terreno
internacional, onde suas atividades desde logo foram
grandemente intensificadas.

Nos dois anos seguintes, a GPU experimentou a


possibilidade de uma estreita cooperação com o Comintern,
mas, em 1924, quando tiveram início as relações
diplomáticas entre a União Soviética e a Grã-Bretanha, ela
procurou instalar sua rede própria de espionagem e
aprimorou sua organização interna. Desse modo, podemos
dizer que a espionagem russa no estrangeiro, na forma em
que já nos habituamos a analisá-la, realmente começou
naquele ano. O desenvolvimento, registrado nesse serviço,
deu origem, também, à necessidade de uma alteração em
sua designação, por isso que, em substituição ao nome
primitivo, ela passou a ser chamada "Obiedinennoye
Gosudarstvennoe Politicheskoye Upravlenie”, ou,
simplesmente, OGPU.

A OGPU operou pelo período de 10 anos, mas, ao ser


dissolvida, em julho de 1934, suas funções foram
absorvidas pelo Departamento do Comissariado do Povo
para Assuntos Internos, ou seja, o NKVD. Essa fusão se
prolongou até cinco meses antes do começo da guerra
germano-russa, quando o Departamento foi elevado a
Comissariado, tornando-se conhecido como Comissariado
do Povo para Segurança do Estado, cuja sigla era NKGB.
Essa organização, entretanto, teve curta duração.
Exatamente um mês após a invasão do território russo por
Hitler, foi ela rebaixada de categoria, voltando a constituir
um departamento do NKVD. Funcionou, assim, por dezoito
meses e, então, novamente ascendeu ao status de
Comissariado, em abril de 1943. Quando, em março de
1946, todos os Comissariados se transformaram em
Ministérios, alterou-se, também, sua sigla, que passou de
NKGB para MGB. Após a queda de seu infame chefe,
Lavrenti Béria, que se seguiu à morte de seu protetor Stálin,
em 1953, o MGB foi novamente unido ao Ministério do
Interior. Essa situação se prolongou por um ano — até
março de 1954 —, quando se tornou, mais outra vez, uma
unidade separada, sob um novo título — Comitê de
Segurança do Estado (KGB) — e, assim, continua
funcionando.

Todas essas alterações, tanto em seu status como em suas


designações, não afetaram, porém, o papel que a
organização desempenha na cena política russa, muito
embora essa sucessão de siglas, mais ou menos
enigmáticas, venha constituindo como como que quebra-
cabeça para os não iniciados no denominado regime das
democracias populares. Nos regimes ocidentais, duas
organizações distintas, funcionando isoladamente e com
uma bem determinada divisão de responsabilidades, estão
encarregadas de assegurar um perfeito serviço de
segurança: uma para capturar espiões que agem dentro do
país — contraespionagem — e outra para realizar
espionagem em países estrangeiros. Na França, a primeira
dessas organizações é representada pelo Deuxième Bureau;
e a segunda, pela Intelligence. Nos Estados Unidos, essas
organizações são representadas, respectivamente, pelo FBI
e pela CIA; e na Grã-Bretanha, pelo MI 5, o qual, apesar de
seu prefixo militar, é autônomo e só responsável perante o
Primeiro-Ministro —, como acontece com o Deuxième
Bureau, e, às vezes, com o Cinquième Bureau, na França —
e pela Intelligence, popularmente conhecida como o Serviço
Secreto Britânico.

O que surpreende e parece singular ao observador


ocidental, no que diz respeito ao sistema russo, é que a
responsabilidade pela espionagem no exterior é atribuída a
um departamento de Estado, ao qual estão afetos os
problemas da segurança "interna”. Os russos sempre
argumentaram que sua espionagem no exterior não é uma
atividade externa, isto é, ofensiva, mas levada a efeito
simplesmente com o objetivo de defender a segurança do
Estado, ou, por outras palavras, que é uma atividade
defensiva. Logicamente, essa argumentação não deixa de
ter fundamento. Entretanto, seja qual for a definição ou de
que forma são controlados seus órgãos de espionagem, a
ação final do sistema soviético não se tem revelado inferior,
no que diz respeito à eficiência, à do duplo sistema, em uso
em qualquer outra parte do mundo. De fato, uma boa razão
poderia demonstrar sua superioridade em relação ao
sistema duplo, uma vez que a contraespionagem e a
espionagem se apoiam em bases comuns. A
contraespionagem mobiliza seus agentes meramente para
desmascarar espiões, e esses agentes, por sua vez,
empregam os mesmos métodos de operar, utilizados pelos
espiões, no encalço dos quais são postos a agir.

Se os chefes soviéticos alguma vez tivessem tido a intenção


de transformar seu Serviço Secreto num sistema de dupla
linha de ação — o que nunca aconteceu —, a experiência
que adquiriram no desdobramento das atividades do
Comintern, sem dúvida, os teria forçado a pensar duas
vezes sobre o assunto. Com efeito, o Comintern não
somente fracassou em sua tarefa de atrair, em quantidade
compensadora, os trabalhadores mundiais para o campo
comunista, como, também, os controladores e planejadores
das operações clandestinas, que ele deveria empreender,
revelaram-se particularmente ineptos para levar a efeito a
tarefa que lhes competia.

Concentrando-se na rápida tomada do poder pelos


comunistas, em antecipação à revolução mundial,
preconizada por Lenine, o Comintern apoiou todos os
movimentos subversivos que tiveram lugar em alguns
países europeus. Lamentavelmente para os objetivos
russos, esses levantes falharam, resultando, desses
fracassos, o quase completo aniquilamento das hostes
comunistas, levado a efeito tanto pelas forças da
democracia como pela reação dos regimes totalitários.
Esses acontecimentos — a supressão da rebelião
spartaquista em Berlim; o aniquilamento, em três semanas,
da República Soviética Bávara; o colapso do regime de Bela
Kun, na Hungria; a derrota infligida por Mussolini e seus
fascistas aos comunistas italianos que pretendiam provocar
uma guerra civil, na Itália — redundaram numa imensa
nódoa nos anais do Comintern, tão grande mesmo que deu
margem a uma situação de mal-estar, próxima do pânico,
em Moscou.

Foi nesse período — que pareceu ser uma fase de grave


perigo para a concepção de uma revolução mundial — que o
colapso da contrarrevolução dos Russos Brancos aliviou a
Cheka da maior parte da pressão que ela vinha exercendo
sôbre o povo, no interior da Rússia, e lhe proporcionou a
oportunidade de voltar sua atenção para o exterior. Ainda
sob a integral liderança de Dzerjinsky, o recém-criado
Departamento Estrangeiro (INO) foi colocado sob a direção
do Primeiro Vice-Presidente da Cheka, M. A. Triliser, um
veterano comunista, com longa experiência de operações
secretas.

O INO, sob as mãos e os aguçados olhos de Triliser,


transferiu-se para o campo de ação do Comintern e,
gradualmente, retirou dele a maior parte das atividades
exclusivamente de Inteligência que, anteriormente, lhe
competiam. As únicas atividades clandestinas que,
efetivamente, permaneceram na esfera de ação do
Comintern foram as de divulgar propaganda e provocar
agitação.
Enquanto o INO da OGPU — como, então, passou a ser
conhecido — operava por si mesmo, certa transformação —
considerada na ocasião, como devendo ser temporária —
simultaneamente se verificava na maneira dos soviéticos
tratarem as potências não-comunistas, transformação esta
que deveria ter reflexos na consequente estrutura do INO,
uma vez que se lhe abriam novos campos para a
espionagem. A situação econômica da Nova Rússia e,
particularmente, a extremamente grave escassez de víveres
compeliram Lenine e seus co-líderes a abandonar alguns
dos princípios básicos do comunismo revolucionário. Cerca
de três a quatro mil fábricas tiveram de ser devolvidas á
iniciativa privada e, para reestruturar a indústria, tornou-se
necessário que se atraíssem capitais e técnicos
estrangeiros. Em face dessa situação, negociações foram
automaticamente entabuladas com os capitalistas, que
iriam fornecer os recursos financeiros e o know how técnico
de que os russos precisavam, e a adoção dessa política —
como será detalhadamente explicado em outra parte deste
livro — abriu novos rumos para a atividade do INO.

O abandono do isolacionismo, entretanto, iria criar a


necessidade não só da criação de missões diplomáticas no
exterior, mas, também, a da promoção de encontros com
delegações do comércio, e, em face disso, a OGPU viu-se-
lhe abrirem, igualmente, novas oportunidades. O Comintern
nunca poderia ter tirado partido dessas oportunidades —
não era objetivo seu —, mas ao INO caberia fazê-lo. A
despeito do fato de que essa última organização houvesse
posto sob seu controle os agentes do Comintern, algum
tempo lhe foi necessário ainda para organizar seus novos
equipamentos e, assim, dois anos se passaram antes que o
INO pudesse entrar em ação, numa frente mais ampla.

Pode-se dizer, entretanto, que, desde 1924, a espionagem


russa nunca olhou para trás. Concebido em ampla escala
para criar uma envergadura mundial, o Serviço Secreto
Soviético, até recentemente, ultrapassava, em volume de
pessoal, qualquer outra agência nacional de espionagem.
(Segundo parece, a CIA, agora, se lhe iguala
numericamente.) Os resultados apresentados por esse
Serviço, pelo menos durante os últimos 15 anos, por incrível
que pareça, não corresponderam, entretanto, ao esforço
feito. De fato, nada realmente importante fora por ele
realizado, antes que a traição de Nunn May e de Fuchs lhe
proporcionasse a oportunidade de entregar, ao seu
Governo, vitais segredos atômicos, com os quais os
cientistas russos puderam compensar o atraso de dez anos
em que se encontravam, em relação aos seus colegas dos
Estados Unidos e da Grã-Bretanha, no terreno da tecnologia
nuclear. Foi a existência de uma organização assim tão
vasta, mas de capacidade de ação aparentemente tão falha,
que levou as potências não-comunistas a ridicularizarem as
tentativas soviéticas de realizar uma perfeita espionagem. E
essa atitude escarnecedora foi a causa do grande erro,
cometido por aquelas mesmas potências, de não se
conservarem atentas aos padrões da espionagem soviética
e de se mostrarem descuidadas em relação aos recursos da
sua própria contraespionagem.

Essa atitude, agora, está alterada. O impacto da humilhação


é um eficiente professor. Atualmente a “ameaça de
espionagem soviética" tornou-se uma manifestação de
supercautela em relação ao poder oculto da Rússia.
Conquanto essa precaução represente uma providência útil
e necessária, ainda há pessoas que veem na atual
sensibilidade das nações um perigo, que deve ser
controlado. Julgam que, dela, emerge um medo, que pode
limitar as liberdades fundamentais do homem, e, no
desenvolvimento desse processo, vai-se preparando — de
maneira mais segura do que pelo roubo de segredos muito
bem guardados - o terreno para a concretização daquele
antigo ideal de Lênin, em favor da instituição de um mundo
inteiramente comunista.

Lênin almejava conseguir rapidamente a realização desse


seu mais caro desejo. Quando viu que isso não ocorreria,
profetizou então — sem abandonar seu ponto-de-vista —
que a dominação do mundo, pelo comunismo, seria atingida
em época oportuna. Como um instrumento para a
realização desse desígnio, a espionagem soviética adquiriu,
nos dias atuais, um papel preeminente — situação esta que
foi construída em mais de quarenta anos de atividade.
Quarenta anos, porém, representam apenas uma fração de
segundo na História da Humanidade e, portanto, essa
realização da espionagem soviética, correspondentemente,
não deixa de ser notável.

A verdadeira medida da altura em que se encontra


atualmente a espionagem soviética pode ser avaliada
somente se seu progresso em sentido ascendente for
seguido; e é isso o que este livro tentará fazer.

Antes de entrarmos em considerações sobre as atividades


especificas, através das quais esse crescente progresso foi
conseguido, torna-se necessário, porém, que tomemos
conhecimento do trabalho de estaqueamento que lançou os
alicerces, sobre os quais a inteira estrutura do sistema,
hoje, repousa — assuntos de natureza variada, como, por
exemplo, organização, recrutamento e treinamento e, pelo
menos, um componente mais característico desse serviço
secreto, cuja singularidade mais expressiva é a promoção
da expansão de suas atividades, através de uma única linha
de ação. * 
* Neste livro deverei revelar, de nôvo, a história da OGPXJ,
do NKGB, do MVD, ou do KGB — ou como quer que o serviço
seja denominado.

Em antecipação aos reparos dos meus leitores mais


inclinados a críticas, julgo que devo adiantar que não ignoro
a existência de uma outra e muito importante organização
de espionagem da União Soviética. Trata-se do Quarto
Departamento do Estado-Maior do Exército Vermelho, mais
amplamente conhecido como a Administração Central de
Inteligência (GRU). Este Departamento foi criado por Trótski
quando, entre 1918 e 1925, desempenhava as funções de
Comissário de Guerra, e era sua intenção fazer da GRU a
principal Agência de Informação da União Soviética. Êsse
órgão se assemelha muito aos departamentos de
Inteligência militar de outras potências, usando os diversos
adidos à representação diplomática, e seus auxiliares, como
seus principais agentes.

A superioridade da GRU sôbre outros serviços de


espionagem nunca foi estabelecida, já que o KGB sempre
fôra considerado a principal das agências. A GRU só se
tomou preeminente, entretanto, durante a Segunda Guerra
Mundial, quando a obtenção de Inteligência
verdadeiramente militar se tomou essencial para a
segurança da Rússia.

Mas, aqui, nós nos deparamos, novamente, com um


estranho estado de coisas. A linha divisória entre a GRU e o
KGB — para usar suas atuais siglas — nunca foi claramente
definida, e há muitos casos em que as atividades das duas
organizações se entrelaçam. O KGB sempre foi considerado
como a agência “principal” já que lhe tem cabido o direito
de fazer a triagem do pessoal da GRU e de manter seus
próprios agentes dentro das fileiras daquela organização,
enquanto à GRU é negado o direito de reciprocidade, em
relação ao KGB.

O Exército tem relutado em aceitar essa situação, mas


nunca se mostrou capaz de corrigi-la. Por diversas vêzes,
entretanto, ergueu-se em desafio ao KGB. O único período
em que houve alguma cooperação entre as duas agências
foi durante a Segunda Guerra Mundial. Terminado o conflito,
porém, o KGB readquiriu novamente a sua superioridade.
Justamente porque o KGB sempre desfrutou dessa
superioridade, é que me concentrei nêle, mas haverá um ou
dois casos, nos quais irei referir-me às atividades da GRU.
Quando isso acontecer, terei o cuidado de identificá-las.
3. Organização e Administração

A organização do KGB foi erigida através dos anos. Seu


desenvolvimento se processou à medida que se ampliavam
os objetivos de suas atividades e a experiência tornava
evidente tanto o que era preciso ser feito, de tempos a
tempos, para a execução de sua política, como quais as
providências que deveriam ser tomadas para a realização
das finalidades exigidas pela hierarquia soviética. Em várias
ocasiões, nos últimos quarenta anos, verificaram-se
alterações de rumo. Estas, entretanto, tiveram pouco efeito
no funcionamento geral da organização, exceto, talvez, em
relação à sua eficiência operacional. Conquanto não seja
possível dar-se uma detalhada descrição da atual
organização do KGB, as linhas gerais da sua estrutura, sem
dúvida, podem ser revelados, e a revelação dessa síntese
estrutural, aliás, representa tudo quanto nos é necessário
para tornar compreensível a expansão desse órgão, já que
suas atividades constituem assunto da maior parte deste
livro.

O quartel-general do Serviço Secreto Soviético —


comumente conhecido como o Centro — está dividido em
dois Diretórios, cada qual sob a responsabilidade de um
chefe, que tem a categoria de subministro.

O primeiro Diretório, como é chamado, assemelha-se mais


ou menos às Agências de Informações, existentes em
qualquer país. O Segundo Diretório, porém, é adaptado
apenas às peculiaridades da Rússia Soviética.
Conquanto o Primeiro Diretório tenha o subtítulo de
Diretório de Contraespionagem, suas funções são — um
tanto paradoxalmente para a compreensão dos ocidentais,
pelas razões já enumeradas no capítulo precedente —,
entre outras, as de empregar agentes no estrangeiro para
colher informações estratégicas em geral, e de coordenar e
calcular os resultados obtidos pelas agências de
informações, menores e mais especializadas, do Ministério
das Relações Exteriores e do Ministério do Comércio
Externo.

O Primeiro Diretório é constituído de seis divisões principais,


das quais a primeira é a Divisão Estrangeira, cujas
atribuições fazem com que ela seja a de maior importância.
Compete-lhe controlar todos os agentes secretos,
estabelecer tarefas e coletar os resultados obtidos pelas
redes. Além disso, cabe-lhe orientar as buscas de
informações secretas e distribuir as que houverem sido
obtidas.

A Segunda Divisão é a Divisão Operacional. Sob a


orientação da Divisão Estrangeira, ela dirige como o nome
indica, as operações em curso realizadas pelos agentes,
controla as redes, seleciona os espiões a serem mandados
para o exterior, ou aconselha sobre processos de
recrutamento. Por outro lado, essa Divisão opera sobre o
possível material de espionagem que seus funcionários
recrutadores, espalhados pelo mundo, lhe submetem.
Mantém agentes especiais em todas as embaixadas russas,
nos consulados e em qualquer missão oficial ou delegação
soviética no exterior. Estabelece, ainda, contatos entre as
redes, onde essa providência se faz necessária, e organiza
as comunicações.

A Divisão de Comunicações é responsável pela manutenção


prática dos contatos. Além disso, se um agente se deixou
comprometer e tem de empreender uma retirada às pressas
da cena ou, se escapa após ter sido preso, é esta Divisão
que traça a rota da fuga. Coube a essa seção do Serviço
Secreto Russo a organização do itinerário da fuga de
Pontecorvo e de Burgess e Maclean para a Rússia.

A Divisão Secreta é, de fato, um serviço de documentação.


É função sua suprir qualquer espécie de documento forjado
de que um agente possa necessitar e, com esse objetivo,
mantém o que se pode considerar a mais importante
coleção de documentos autênticos que possa existir.

Além de seu departamento de falsificações, essa Divisão


está aparelhada para confeccionar qualquer tipo de
uniforme, fazer mapas ou condecorações que lhe possam
ser solicitados. Uma de suas seções é incumbida de
inventar estórias fictícias, enquanto que outra fornece os
indispensáveis códigos, as tintas secretas, a aparelhagem
para micropontos e os conjuntos de rádio de que os agentes
possam necessitar.

A seção mais interessante, dentro dessa Divisão, é, sem


dúvida alguma, o Index que, provavelmente, será única no
mundo, pelo menos no que se refere à sua minuciosidade. A
Gestapo nazista possuía uma organização mais ou menos
semelhante, mas não era, nem de longe, tão apegada a
detalhes e de alcance tão vasto quanto essa seção do KGB.

O Index, em síntese, não passa de uma vasta seleção de


biografias de personalidades que possam, mesmo
remotamente, ser de algum uso, em qualquer época, para a
espionagem soviética. Além de informações sobre a filiação,
lugar exato do nascimento, grau de instrução, carreira,
detalhes de família, amigos e os elementos que,
comumente, podem ser utilizados para se fazer uma idéia
do que tenha sido o passado de um homem ou de uma
mulher, essas biografias registram, igualmente, o
pensamento e as simpatias políticas dos biografados, com
detalhes sobre suas relações com os empregados, o estado
de suas finanças — quanto ganham, se têm casa própria, se
possuem automóvel etc. — e a relação das suas dívidas, o
que é de grande importância. Nesses arquivos, existem,
também, informações sobre se o indivíduo é casado, se é
bom chefe de família ou se é namorador — seja casado ou
solteiro —, se bebe (e quanto?), se sua mulher tem alguma
influência em suas ações e, por fim, toda a “sujeira” que,
em relação a ele, possa ser recolhida, o que, na opinião
desses técnicos, é quase tão importante quanto uma lista
completa de suas dívidas ou um relato de suas inclinações
políticas ou da maturidade de seu senso de julgamento. O
objetivo principal é descobrir tanto as fraquezas como as
resistências desses indivíduos, uma vez que a fraqueza
pode ser aproveitada ou usada como chantagem para
induzir um elemento relutante a colaborar.

O Index foi, inicialmente, introduzido no Serviço Secreto


Russo pela Okhrana, quando esta tentava ter sob controle
os revolucionários, e estes, mais tarde, o copiaram e o
empregaram em suas tentativas de aferir a lealdade dos
membros do Partido e de desentocar possíveis infiltrações
da Okhrana. Foi adotado e expandido por Mikhail Triliser,
quando este se tornou o primeiro chefe do INO, já que, nas
duas décadas anteriores à Revolução de 1917, ele fora
encarregado dos arquivos do Partido. Da expansão,
comparativamente reduzida, levada a efeito por Triliser, o
Index passou a crescer rapidamente, até se transformar
numa poderosíssima arma nas mãos do famoso Béria,
constituindo a base de seu tremendo poder sobre todos os
demais membros da hierarquia soviética, sem exceção,
mesmo, de Stalin.
O Index contém os nomes e as particularidades não
somente de homens e mulheres que possam ser úteis à
espionagem soviética, mas, também, daqueles cuja
integridade é absoluta e cuja lealdade, ao próprio país, não
pode ser posta em dúvida. Tal fato pode ser considerado
como um indiscutível sintoma de que a preocupação do
domínio mundial é, ainda, um importante dogma do
comunismo, caso uma prova dessa natureza fosse
necessária. O que resta saber é se esses homens e
mulheres, insuspeitos quanto à sua integridade e lealdade,
não seriam justamente as primeiras vítimas do expurgo,
que, com certeza, se seguiria à revolução mundial, se essa,
por acaso, algum dia fosse levada a efeito.

Calcula-se que cerca de 250 pessoas são empregadas para


manter o Index em dia. A exatidão em todas as suas
informações tem sido testada em diversas ocasiões.

A sexta, e menos importante Divisão do Primeiro Diretório é


a Divisão de Treinamento e Recrutamento, cujo trabalho
será objeto de referência nos subsequentes capítulos.

O Segundo Diretório, como já foi dito, não encontra similar


fora da Rússia Soviética e dos seus países satélites, pela
simples razão de que a maior parte de suas funções nunca
seria tolerada numa democracia.

A Divisão de Propaganda possui funções que seu inocente


nome pretende encobrir. Seu principal objetivo é
enfraquecer, quebrar e, consequentemente, destruir as
forças da lei e da ordem em países não-comunistas e, por
essa forma, preparar o caminho para um governo
comunista. Para atingir esse fim, essa Divisão mantém
contato com os partidos comunistas nos diferentes países e
se revela especialmente ativa naqueles em que essas
agremiações políticas foram suprimidas por ação das
autoridades. Utiliza-se de seus próprios agentes, cuja
principal missão é angariar informações políticas e criar
grupos subversivos que entrarão em ação quando se fizer
necessário e que, enquanto esperam, estarão trabalhando
silenciosa, mas ininterruptamente, para minar as
instituições em vigor.

A Divisão Individual é a doublé daquela Seção de Segurança


de Estado que, por ordem do Partido, fiscaliza a fidelidade
dos cidadãos soviéticos que vivem na própria Rússia.

Essa Divisão controla, igualmente, o comportamento dos


cidadãos soviéticos que trabalham no exterior, desde os
embaixadores até os motoristas das embaixadas (estes, às
vezes, são altos membros da Divisão de Estrangeiros do
Primeiro Diretório). Cada missão diplomática ou consular,
toda delegação, quaisquer grupos de atletas, de atores, de
dançarinos, de cantores ou de músicos, que viajam para
fora da União Soviética, levam, como adidos, agentes da
Divisão Individual. Às vezes, esses agentes se veem na
situação de passarem por néscios, em face da atitude
assumida por alguns elementos sob o seu controle, os
quais, como, por exemplo, o bailarino Nureyev e outros
conseguem iludir essa vigilância e pedir asilo político.
Elementos dessa Divisão vigiam, também, os agentes que
trabalham para qualquer das outras divisões ou seções do
serviço de espionagem soviética.

A expansão do comunismo pelos países da Europa Oriental,


no pós-guerra, constitui a razão de ser da Divisão Aliada. A
polícia de segurança e os serviços de espionagem da
Polônia, Tchecoslováquia, Romênia, Hungria e Bulgária são
supervisionados pelos representantes russos do KGB. Em
relação à Alemanha Oriental, esses departamentos são,
atualmente, dirigidos por oficiais russos, e o mesmo
acontecia na Albânia, até que surgiram, dentro do bloco
comunista, as divergências com o governo de Moscou, sobre
a questão de se retirar o nome de Stálin da lista dos heróis
nacionais. Embora cada um desses países realize
espionagem por sua própria conta, eles operam,
igualmente, em favor da espionagem soviética, do que
resulta ter esta última aumentado enormemente o escopo
de suas atividades. Em muitos casos, a informação obtida
por um agente de um país satélite vai, diretamente, a
Moscou, e pode acontecer que a nação da qual o agente é
originário nunca tenha conhecimento do fato.

A Divisão Aliada entrou em ação na retaguarda dos


exércitos russos de libertação. A razão por que isso pôde ser
feito é que os russos assim o planejaram, através de
programas de execução a longo prazo, o que nos fornece
um expressivo exemplo do profundo e obstinado propósito
com que eles buscam a dominação mundial pelo
comunismo. Pode-se afirmar, com segurança, que o Serviço
Secreto Russo já está treinando homens em todos os países,
que estarão em condições — quando chegar a hora — de
assumir o poder. Assim aconteceu com Boleslav Rutkovski, o
primeiro presidente comunista da Polônia, com Piotyr Groza,
o Primeiro-Ministro da Romênia, e com Klement Gottwald, o
Presidente da Tchecoslováquia — todos treinados, com
antecedência, pelo KGB, para o assalto ao poder, e que,
durante algum tempo, foram ativos agentes secretos.

Por um longo período, a espionagem soviética manteve,


também, um olho vigilante sobre os chineses, através da
Divisão Estrangeira, do Primeiro Diretório, e da Divisão
Aliada, da Segunda Diretoria. Essas duas Divisões
repartiram as responsabilidades na tarefa de controlar a
Seção Chinesa, a qual emprega certo número de
comunistas chineses, mais obedientes a Moscou do que a
Pequim. Postos avançados da Seção Chinesa operam,
igualmente, no Vietnam do Sul e no do Norte, no Laus e no
Camboja, enquanto que o posto avançado de Harbin —
tradicional centro de espionagem da Rússia no Extremo
Oriente — controla as redes de Xangai, de Nanquim e de
Fuchow, a fim de colher e de selecionar as informações
fornecidas pelas redes do Japão e de Formosa.

A quarta maior divisão do Segundo Diretório é a Divisão


Especial. Trata-se de um dos mais antigos departamentos
da espionagem soviética, implantado por Dzerjinsky para
eliminar, pela violência e por assassinatos, os inimigos da
Revolução, nos casos mais complexos em que outras formas
de persuasão não surtiram efeito. Entre 1932 e 1936, essa
Divisão constituiu o instrumento de que Stálin lançou mão,
pessoalmente, para ficar livre de seus adversários. Nesse
desempenho, era ela dirigida por Nicolai Yezhov. Na
Segunda Guerra Mundial, era conhecida como Bureau I,
competindo-lhe executar a política de “terra arrasada”,
adotada por Stálin em face do avanço dos exércitos
alemães. Dadas as suas funções especializadas, essa
Divisão tem-se conservado como um departamento
independente, mesmo depois de sua formal incorporação ao
grupo OGPU-KGB, fato este que ocorreu, em 1934, durante
a reestruturação dos serviços de espionagem, feita sob a
orientação de Genrik Yagoda.

A seção responsável pelos raptos e pelos assassinatos dos


divisionistas e de outros inimigos em potencial do
comunismo é a infame Seção Nove — a Seção do Terror e do
Desaparecimento. Embora possa haver algo de verdadeiro
na figura de Bond — isto é, outros serviços secretos
chegam, vez por outra, a matar e a raptar para atingir seus
objetivos —, o Serviço Secreto Soviético é o único que,
atualmente, possui — com a possível exceção da China
Vermelha — uma organização especial para fazer
desaparecer seus inimigos. Detalhes dos trabalhos
realizados por essa Seção serão dados em capítulos
subsequentes.

O sistema de que a espionagem soviética lança mão para


operar “no campo”, pode-se dizer que é constituído de dois
compartimentos estanques e separados, embora os
resultados, obtidos por ambos, atinjam aos mesmos
objetivos. No primeiro deles encontram-se os membros das
embaixadas, o pessoal das legações e dos consulados e os
integrantes de muitas delegações, como, por exemplo, as
missões comerciais e culturais, que vêm constituindo o
recurso favorito de que se utiliza a Rússia para manter
relações com as potências estrangeiras.

O segundo é representado pelo trabalho das redes de


espionagem e o dos agentes individuais. No que diz respeito
à organização das redes, o sistema segue, tanto quanto
possível, as linhas clássicas, isto é, uma rede é integrada
por uma ou duas células, que operam inteiramente
independentes, uma da outra, e que reciprocamente se
ignoram.

A célula se compõe de três ou quatro agentes, e cada um


deles — ou delas — tem sua própria função especial: coletar
Informações, enviar mensagens, operar radiotransmissores,
etc.

Entre o Centro, em Moscou, e todas as agências de


espionagem que operam em determinado país, há sempre
uma figura-chave: o Diretor-Residente. Apesar de seus
poderes reais serem limitados, desempenha ele relevante
papel, uma vez que é uma espécie de guia central e o canal
através do qual, com algumas exceções, todas as instruções
e fundos, vindos do Centro, são transmitidos às redes e aos
agentes individuais. Igualmente, por intermédio dele, é feito
o serviço de remessa, no mesmo Centro, das informações
obtidas por todas as redes. Ele mantém, por outro lado,
ligações com a Embaixada Soviética e o Partido Comunista
locais, por intermédio dos quais permanece em contato com
as sociedades culturais e de amizade que o suprem de
determinado gênero de informações que, ordinariamente,
não se poderia classificar como sendo de espionagem. Num
país de grande extensão, podem operar dois ou mais
Diretores-Residentes.

Na maior parte das organizações de espionagem, os


documentos são reduzidos ao mínimo possível. Se qualquer
registro escrito puder ser dispensado, tanto melhor. Este
princípio é obedecido, tendo em vista a necessidade de se
obter o maior grau de segurança. A esse respeito, a
organização soviética se mostra, igualmente, diferente. É
exigido que o Diretor-Residente guarde um completo
registro de todas as suas transações, já que, ao ser
transferido de sede — o que parece acontecer muito
comumente —, seu substituto não tenha dificuldades em
executar as funções que lhe cabiam. Essa característica da
espionagem soviética constitui uma indicação da
organização geral do serviço, o qual, fundamentalmente, é
uma burocracia um reflexo do sistema administrativo do
Governo Russo, considerado como um todo.

O enorme amontoado de papel oficial exigido das redes e


agentes individuais é, parcialmente, a causa da necessidade
do grande número de agentes, de todas as categorias, para
a obtenção de qualquer informação. Uma vez que todo
documento oficial apresentado pelas redes deve ser
estudado — se é que tem uma razão de ser —, os quartéis-
generais devem, necessariamente, recrutar um corpo de
funcionários de adequada proporção. Tem-se calculado que,
ao todo, a espionagem soviética empregue cerca de cem
mil funcionários de várias categorias. Nesse número, estão
incluídos os agentes profissionais e todo o pessoal de
retaguarda necessário para mantê-los em atividade.
(Calcula-se que a CIA americana também empregue,
aproximadamente, o mesmo número de funcionários.) No
caso do Serviço russo, entretanto, devem ser acrescentadas
diversas centenas de milhares de amadores, espalhados
pelo mundo, e de cujos serviços os soviéticos podem valer-
se em caso de necessidade. Calcula-se que o número
desses amadores se eleve acerca de três quartos de milhão,
mas há quem julgue essa avaliação muito baixa, já que as
cifras verdadeiras, segundo tudo indica, devem ser bem
mais elevadas.

De qualquer forma, a atividade da espionagem soviética


abrange o mundo inteiro, e, se o êxito fosse proporcional ao
número das pessoas nela engajado, o mundo estaria hoje
completamente dominado pelo comunismo. Felizmente,
para as potências não-comunistas, verificaram-se falhas na
organização desse serviço e no treinamento de seus
agentes, o que teve como consequência a transformação de
muitos êxitos num conjunto de fracassos espetaculares.
Levando-se em consideração, porém, a perseverante
determinação e a paciência quase oriental dos soviéticos,
tem-se a impressão de que os resultados, a longo prazo,
daquelas atividades ainda estão por se fazer sentir. E aí é
que reside o grande perigo. É por isso que cada vez mais se
impõe a necessidade de uma constante vigilância.
4. Recrutamento

A espionagem soviética, como já se viu, é controversa no


tratamento que dá a suas atribuições, à sua organização e
às suas atividades, sobretudo quando a comparamos com
as organizações análogas, existentes em outras nações. Na
seleção de seus agentes, ela apresenta, ainda, uma nova
característica.

O emprego de tão grande quantidade de agentes requer,


naturalmente, um método de recrutamento que não teria
sido necessário numa organização de âmbito menor. Mas
esse método é favorecido pelos objetivos que a espionagem
soviética estabeleceu para si mesma, e em favor da
lealdade ideológica que o comunismo inspira — lealdade
esta que se impõe mais a seus seguidores do que a que a
democracia exige de seus adeptos. Dada a indefinição dos
princípios democráticos — tais como liberdade de palavra,
liberdade individual, governo parlamentar, etc. —, o
comunismo, ao contrário, se apoia, com inflexível firmeza,
exatamente onde o homem se situa, isto é, em sua vida
privada e em suas relações com o Estado. Não há nuanças
no comunismo. Um comunista nos Estados Unidos, na
Inglaterra e na China — apesar das divergências ideológicas
que separam chineses e russos — é fundamentalmente
indistinguível do comunista russo. Este fato oferece
possibilidades, ao bloco comunista, para um recrutamento
em massa de seus agentes, o que, de forma alguma, é
proporcionado às demais organizações de espionagem.
O pessoal atuante de espionagem soviética divide-se em
três categorias. Há um sólido núcleo central, formado por
agentes profissionais, treinados, de nacionalidade russa.
Existe o setor estrangeiro, integrado por agentes cuja
sincera adesão ao comunismo foi posta à prova, durante um
longo período, e cujos trabalhos os recomendam para
proveitosas oportunidades de espionagem. E há, por fim, os
amadores que podem ser convocados para tarefas
específicas, se a necessidade assim o exigir.

O recrutamento para a primeira categoria não oferece


qualquer dificuldade. Em todas as facetas organizadas da
vida na Rússia — serviço militar, universidades e colégios,
Faculdades para os Trabalhadores, órgãos do Partido e,
particularmente, na Liga da Juventude Comunista
(Komsomol) —, há comissários políticos, cuja missão é
manter um olhar vigilante sobre a “lealdade política”
daqueles cidadãos, que se encontram sob a sua direção.
Este é o método usado, pelo Estado, para evitar que
qualquer descontentamento possa dar ensejo a uma
apostasia contagiosa. Ou, por outras palavras, ele preserva
a segurança do Partido e do Governo, ao impedir que algum
comunista “fraco” seja guindado a uma posição em que
possa exercer má influência sobre os outros, e, também, ao
fazer com que os melhores cargos sejam sempre ocupados
pelos mais leais comunistas.

Em aditamento a essa tarefa, o Comissário deve conservar-


se atento, para descobrir moças e rapazes que possam
apresentar qualidades em potencial, para o seu
aproveitamento como agentes. Quando um Comissário
descobre uma moça ou um rapaz com esses predicados,
comunica a descoberta à Divisão de Observação e de
Distribuição. Em qualquer parte — seja no Index ou nos
registros da polícia local —, deve haver um dossiê sobre ele,
e se do exame dessa ficha for constatado que, além de suas
qualificações pessoais, o candidato ainda descende de uma
família de passado inatacável, segundo os padrões
comunistas, pode ele — ou ela — ser considerado como já
tendo ultrapassado o primeiro estágio.

O candidato, assim selecionado, fica sujeito, então, a um


mês de observação especial, levada a efeito por um agente
do KGB, agregado à instituição da qual ele faça parte. Até
que o agente apresente seu relatório sobre o que observou
— mesmo que suas conclusões sejam negativas —, o
candidato não saberá que estivera sendo submetido a um
processo de seleção, tendo em vista o seu recrutamento
para o serviço de espionagem. Se, entretanto, as
informações forem favoráveis, ele será levado à presença
de uma Comissão de Seleção. Aí saberá que está sendo
experimentado para servir num dos departamentos do KGB
e, em consequência de haver sido julgado em condições,
receberá a notícia com entusiasmo. Poucos casos se
verificaram, nos quais a reação do candidato causou
desapontamento entre os membros da Comissão. Nessas
oportunidades, não somente lhe comunicam que a
entrevista terminou, mas o próprio candidato, por seu lado,
imediatamente compreenderá que sua carreira chegou ao
fim. É que a falta de entusiasmo, demonstrada por um
candidato, na ocasião, constitui, na opinião dos dirigentes
soviéticos, uma evidência de sua fundamental incapacidade
de ser intransigentemente leal ao Partido. Sendo aprovado
pela Junta, o candidato é cientificado de que terá um
período probatório e passará por um treinamento que
durará de dois a quatro anos. Até aí, continuará a ignorar
que está sendo treinado para ser espião, e espera-se que
não revele curiosidade em saber o que possa estar sendo
para ele reservado. O candidato só começa a ter
conhecimento oficial de sua situação quando é mandado
servir em algum posto sem importância, numa missão
diplomática no exterior. Sua promoção subsequente
depende, daí em diante, de como venha a se comportar em
cada estágio da carreira.

Este núcleo central é integrado mais ou menos por cinco


por-cento do total dos funcionários, mas representa ele a
espinha dorsal do serviço. São os Diretores-Residentes, os
organizadores, os homens que dão as ordens transmitidas
por Moscou.

A segunda categoria é composta, em sua maior parte, de


homens e mulheres de diferentes nacionalidades — todos
leais comunistas — e que operam quer em sua pátria, quer
num país estrangeiro. O Index os classificou como dignos de
confiança, do ponto-de-vista político, e são convocados para
tarefas específicas, no desempenho das quais seus contatos
e experiência os fazem candidatos apropriados. Não podem
demonstrar preferência em relação às missões que lhes são
confiadas. Ordens lhes são dadas, e espera-se que eles as
cumpram. Se, por acaso, um deles recusa uma tarefa, sua
filiação a qualquer Partido Comunista lhe será negada,
devendo-se dar ainda por muito feliz se não eliminado.

A experiência do inglês Alexander Foote, que, depois de


uma notável carreira como espião soviético na Suíça,
renunciou ao comunismo e retornou à respeitabilidade na
Inglaterra, é expressiva a esse respeito. Filho de uma família
inglesa, da classe média, Foote nasceu em 1905, e os
primeiros tempos de sua maioridade coincidiram, portanto,
com os anos incertos do entreguerra. Teve uma boa
educação, mas a inquietação, gerada pela insegurança dos
tempos, o afetou e, como aconteceu com muitos outros
jovens, passou a derivar de emprego para emprego; em
consequência, também se deixou empolgar pelo
comunismo. Mas, conquanto frequentasse as palestras de
grupos e os meetings, nunca ingressou no Partido
Comunista. Na realidade, embora devesse tornar-se um
agente soviético por dez anos, nunca foi, em qualquer
tempo, membro do Partido.

Quando teve início a guerra civil espanhola, ele foi admitido


na Brigada Internacional, por recomendação de dois
influentes comunistas ingleses. Desempenhou, ali, as
funções de encarregado dos transportes de batalhão, mas,
como não era membro do Partido, não lhe foi conferido um
posto de confiança. Como encarregado dos transportes,
serviu por dois anos, sendo então mandado, em férias, para
a Inglaterra, a fim de assistir ao Congresso do Partido
Comunista, realizado em Birmingham, em 1938.

Antes de entrar em férias, foi-lhe comunicado que, quando


retornasse, deveria fazê-lo como motorista de uma viatura
da Cruz Vermelha que faria o percurso entre a Espanha e a
Inglaterra, em intervalos regulares, transportando
suprimentos médicos e auxílio. Na verdade, Foote não mais
voltou à Espanha. Quando, findo o Congresso, se
apresentou na sede do Partido Comunista, em King Street,
em Londres, para receber instruções, foi informado de que
havia, ali, uma requisição para alguém que dispusesse das
indispensáveis qualificações para executar uma missão
perigosa no exterior. Os chefes do Partido haviam
examinado alguns nomes, e o escolhido fora justamente o
dele.

Embora ninguém lhe pudesse dizer nada, além de que havia


sido convocado para aquela missão, Foote aceitou a
proposta. Houvesse recusado, e não há dúvida de que sua
associação com o Partido Comunista teria acabado ali.
Apresentando-se num endereço em St. John’s Wood, foi
recebido por uma respeitável dona de casa, que logo o
recrutou para a Inteligência Soviética, embora ele não o
percebesse e só viesse a descobri-lo algum tempo mais
tarde. Sabia que não estava trabalhando para os
comunistas ingleses, mas acreditava que pudesse estar
servindo ao Partido Comunista Alemão ou ao Comintern.

Seguindo as instruções, que lhe foram dadas pela dona de


casa, Foote viajou para Genebra e, no dia seguinte à sua
chegada, entrou em contato com uma mulher, em frente ao
edifício do Correio-Geral. Estabelecido o contato, a mulher
se apresentou com o nome falso de Sônia e, enquanto
tomavam um café, disse-lhe que novos encontros entre eles
deveriam realizar-se. Num desses encontros — por sinal, o
último —, foi informado de que deveria ir para Munique, a
fim de preparar relatórios políticos sobre a Alemanha, e, ao
cabo de três meses, apresentar-se de novo a ela, Sônia, em
Genebra.

Se se considerasse o que Foote apresentava então como


qualificação para o serviço de espionagem, a conclusão
seria que ela, de fato, quase nada representava. Antes de
ingressar na Brigada Internacional, fora apenas mecânico de
motores e vendedor de motocicletas. Não falava
fluentemente qualquer idioma, embora pudesse expressar-
se num mau francês e num espanhol ainda pior. Conhecia,
também, algumas frases elementares em alemão. Ao
chegar a Munique, e mesmo depois, não recebeu qualquer
treinamento de segurança, ignorava tudo sobre códigos ou
correspondência secreta e era completamente inexperiente
em operar com um radiotransmissor.

Tinha a seu crédito, entretanto, ser um inglês de bom senso,


dotado da capacidade de apreender, rápida e
acuradamente, qualquer situação. Esses predicados devem
ter constituído a razão por que os diretores do KGB a ele
recorreram e, nessas condições, não poderia ser
considerado mais que um razoável agente. O valor desses
predicados, porém, foi confirmado pelos resultados de suas
investigações em Munique e, também, pela correção e
concisão do relatório que então apresentou. Essa missão
parece ter sido uma espécie de teste, a que fora submetido.
Se houvesse falhado, irremediavelmente teria sido demitido
do serviço.

Pouco depois da volta de Foote a Genebra, estourou a


Segunda Guerra Mundial e Sônia recebeu instruções para
retirar todos os seus agentes da Alemanha. O verdadeiro
nome de Sônia era Ürsula-Maria Hamburger, membro do
Partido Comunista Alemão, e que, juntamente com seu
marido, Rudolf, trabalhara, durante muitos anos, como
agente soviético no Extremo Oriente e na Polônia. Era
responsável por uma rede que operava na Alemanha, mas,
por motivo de segurança, estabelecera sua base na Suíça.
Sônia recebera ordem para permanecer na Suíça e fornecer
a Foote e a um outro inglês, William Phillips, instruções
sobre a arte e os segredos de se operar um
radiotransmissor.

Foote se revelou aluno aplicado e logo se tornou eficiente


operador de rádio, aprendendo com rapidez os mistérios de
codificar e decifrar mensagens. Entretanto, com exceção de
uma rápida instrução sobre os métodos de segurança, não
fora submetido a qualquer outro treinamento.

Por essa época, a rede soviética que operava na Suíça era


controlada pelo Diretor-Residente Alexander Rado. Tratava-
se de um húngaro de nascimento, comunista de longa data,
e que havia sido membro do grupo de Bela Kun. Quando a
revolução de Kun fracassou, ele tinha apenas dezenove
anos. Fugiu, então, para Moscou, onde foi bem recebido nos
altos círculos do Comintern. Desde essa época, ou seja, a
partir de 1919, encarregou-se de serviços secretos,
extremamente valiosos para a Rússia. Em 1936, foi
designado Diretor-Residente na Suíça.
Para a rede de Rado é que Foote fora escalado, assim que
se tornou um eficiente rádio-operador. Aí — e só aí — soube
que era membro da espionagem soviética. Não existe
qualquer indicação em suas memórias, publicadas após sua
deserção, de que lhe tivesse ocorrido a idéia de recusar
aquele perigoso trabalho.

Foote obteve tanto êxito em sua atividade de agente russo


que, no devido tempo, foi promovido a substituto eventual
de Rado como Diretor-Residente. Esse fato, entretanto, se
deveu apenas às exigências impostas pela guerra, porque,
desde 1930, os agentes de alta categoria sempre haviam
sido russos, que tinham passado por uma das escolas de
treinamento da União Soviética. Rado deveu sua indicação,
em 1936, à conjunção de duas circunstâncias: ter sido
treinado em Moscou e possuir longo e excelente acervo de
atividades clandestinas.

Os amadores da terceira categoria são os Nunn May, os


Fuch, os George Blake, os Vassall e, porque representam a
maior parte dos agentes apanhados em armadilhas, são os
mais amplamente conhecidos do grande público.

Há dois tipos de amadores que atraem os chefes da


espionagem soviética. O primeiro é o homem que se
encontra numa posição de poder fornecer informações
importantes e vantajosas e que revele, também, uma boa
dose de simpatia pela ideologia comunista. O segundo é o
homem, também em condições de fornecer valiosas
informações, mas que, como se diz, guarda um cadáver tão
aterrador, dentro do seu armário, que se torna suscetível de
ser chantageado. Os primeiros são os Blake, e os segundos
os Vassall.

O método de recrutar agentes varia em cada um dos dois


tipos acima mencionados. O primeiro pode já estar
vinculado a algum grupo, que confesse abertamente suas
simpatias pelas idéias comunistas, embora não as estenda
até o próprio comunismo, como por exemplo, as sociedades
de amizade, os grupos culturais e outros. Nesses casos, a
maneira de agir é simples. A “vítima” é convidada a se
juntar a um grupo de estudo e, aí, sem que o perceba,
habilmente condicionada. Se sua reação a esse
condicionamento for satisfatória, a tarefa para a qual foi
escolhida lhe é, aos poucos e por partes, apresentada, e
essa catequização é levada a efeito com tanta astúcia que
se pode descrevê-la como subliminar. Então, quando a
vítima já se acha plenamente “desenvolvida”, a franqueza
entra em cena. Nessa altura, o recrutado já se encontra tão
profundamente condicionado a pensar de maneira ambígua
que, sinceramente, acredita que, revelando os segredos de
que tem conhecimento, estará mais ajudando ao seu país
do que servindo á espionagem soviética.

Naturalmente, essa espécie de “desenvolvimento” só pode


registrar êxito quando o candidato já tenha alguma simpatia
pelos ideais comunistas ou, então, seja violentamente
contra a forma de governo de seu próprio país.

Não há necessidade de se entrar em minúcias sobre o


método de recrutamento empregado para o segundo tipo. A
pessoa que está sendo objeto de observação é explorada
em sua fraqueza. É colocada, propositadamente, em
situações comprometedoras. Por fim, ameaças de denúncias
lhe são feitas, com a alternativa de exploração de sua
fraqueza, se o candidato é sensível e concorda em cooperar.

Quando o candidato de qualquer dos grupos não está em


contato com uma organização simpatizante, esforços são
feitos para que um encontro ocorra, de forma social. Os
agentes, utilizados nesse gênero de abordagem, são
especialmente treinados e, embora muitas vezes fracassem
no envolvimento de suas vítimas, aparentemente não
julgam que tais tentativas sejam inócuas, pois que têm
lançado mão dessa técnica, por muito tempo, e ainda a
empregavam há cerca de um ou dois anos.

O treinamento a que se submete um agente amador não


passa de simples e rudimentar instrução técnica, para
estabelecer contatos e passar material de informação. Seu
elemento de ligação será um bem treinado agente
profissional, de maneira que é muito pequena a
possibilidade de que alguma coisa possa sair
completamente errada. De qualquer forma, o bom senso
regula, hoje, a maior parte das atividades de espionagem,
nas quais essa classe de espião é posta a operar. Como
quase todos os integrantes dessa categoria são sempre
homens e mulheres inteligentes, cuja utilidade será
provavelmente limitada a um curto período de tempo, a
direção soviética mostra-se realista ao adotar o ponto-de-
vista de que seria descabido submeter-se essa espécie de
agente a um prolongado treinamento.

Quando a utilidade potencial do agente é de importância e o


período, durante o qual ele poderia operar — caso fosse
convenientemente treinado — pudesse ser prolongado além
da sua média normal de atividade, aí, então, um
treinamento mais intensivo lhe será dado. Embora jamais
esse fato tenha sido revelado, presume-se que Vassall —
que nunca tivera qualquer experiência de espionagem antes
de começar a trabalhar para a Inteligência Soviética — haja
recebido esse treinamento mais intensivo. O fato de se
haver mostrado capaz de evitar ser descoberto pelo
prolongado período de oito anos constitui uma segura
indicação nesse sentido. De fato, nenhum amador, que não
tenha recebido senão rudimentos de espionagem e,
especialmente, não conhecesse as técnicas de segurança,
poderia desempenhar, por tão longo tempo, o papel que lhe
cabia, como o fez Vassall.

O preparo profissional, entretanto, é que contribui, em


maior parte, para o sucesso da espionagem soviética. O
número de cidadãos russos apanhados em flagrante delito
de espionagem é extraordinariamente reduzido. Somente
três deles vêm à nossa lembrança: Valentin Gubitchev, que
era o elemento de contato de Judith Coplon, na América; o
Coronel Abel, que foi preso pelo FBI; e Gordon Lonsdale, que
caiu nas mãos dos agentes do MI 5 e da Seção Especial, na
Inglaterra. Pode-se dizer que Gubitchev nunca teria sido
apanhado se Judith Coplon não estivesse sob suspeita; o
Coronel Abel operou durante trinta anos, antes que o FBI se
pusesse em sua pista; e Gordon Lonsdale deve agradecer
sua perda tanto à estupidez de Harry Houghton quanto ao
seu próprio descuido.

Esses fatos levam à conclusão de que o treinamento


dispensado aos agentes profissionais soviéticos é perfeito.
E, na realidade, o é. Esse treinamento, porém, dá origem a
uma espécie de agente que nunca seria aceito pelos
mestres da espionagem britânica. Nas páginas que se
seguem, explicaremos a razão do não enquadramento
dessa técnica soviética nos padrões do serviço secreto
inglês. 
5. Treinamento e Técnica

Os candidatos que passam pela Comissão de Seleção são


naturalmente de duas categorias — os que estudam em
algum instituto de nível superior (universidade, escola
técnica, academia de oficiais ou a escola de treinamento do
NCO); e aqueles cuja educação está sendo feita ou
concluem seu curso na Faculdade dos Trabalhadores, ou em
qualquer estabelecimento de padrão equivalente, como os
cursos noturnos de Engenharia, de Fotografia, de Rádio, etc.
Os da primeira categoria são, automaticamente, reservados
para treinamento mais elevado, mas devem concluir o curso
que, no momento, estejam frequentando, antes de serem
submetidos ao treinamento para o serviço de espionagem.
Em relação aos da segunda categoria, cuida-se que um
curso intermediário de treinamento lhes seja ministrado.

O recrutado para um treinamento mais elevado é destinado


a se tornar membro do corpo de agentes de elite, os quais
vão preencher postos em embaixadas, serão diretores-
residentes ou chefes de redes, e aos que possuem alguma
especialização caberá a tarefa de obter informações
secretas da mais alta importância. O exercício da
espionagem requer, entretanto, certo número de
assistentes camuflados — homens que nunca são vistos,
que não participam diretamente das atividades de
espionagem, mas que, de qualquer forma, são elementos
importantes. São eles os especialistas em rádio, em
microfotografias, os decifradores de códigos, que integram
a equipe dos técnicos da organização. Todas essas funções
são desempenhadas por recrutas de treinamento
intermediário.

Acertadamente, o Centro exige que seus operadores,


independentemente de sua categoria, sejam jovens e
gozem ótima saúde, já que a condição física do candidato é
a primeira a receber atenção das autoridades. O
treinamento — seja o candidato um estudante de grau
elevado ou intermediário — se inicia por um curso intensivo
de educação física, em escolas especializadas. Aí o corpo do
recrutado é levado à mais alta forma física de que seja
capaz. Ao mesmo tempo, aprende noções de combate
desarmado, adestra-se na utilização de armas de fogo e em
tudo mais que lhe possa ser de uso prático, como dirigir um
automóvel ou uma motocicleta. Posteriormente, em
qualquer escola que esteja frequentando, empregará boa
parte do tempo em conservar seu físico em forma. A
espionagem soviética tem produzido alguns dos mais
completos atletas da Rússia.

Quando o treinamento físico estiver completo, o recruta


iniciará, então, seus estudos especializados. O que irá fazer
no futuro já está decidido pela Divisão de Recrutamento e
Treinamento, do Primeiro Diretório. Essa Divisão, ao
examinar o candidato, leva em consideração não só os
conhecimentos de que ele dispõe, mas também outros
predicados, como, por exemplo, a aparência física e as
habilidades naturais que nele possam ter descoberto. Dois
cursos gerais, todavia, devem ser completados por todos os
candidatos: um, das línguas estrangeiras que lhe foram
atribuídas; e o outro, de técnica de espionagem.

Os cursos que o recruta deve seguir são ministrados por


escolas especializadas. Cada uma delas tem uma
especialização. Por exemplo: se o candidato se destina a
operar em determinado país, passará a ser aluno de uma
escola, especializada em proporcionar o mais completo
conhecimento daquele país — seus aspectos caraterísticos,
sua política e sua economia, os costumes do povo, etc. Ou
então, se ele deve aprofundar-se em certos pormenores da
espionagem — coleta de informações técnicas ou
econômicas, por exemplo —, frequentará a escola que irá
prepará-lo para desempenhar as tarefas especiais, com o
máximo de sucesso possível. Se terá de ser um rádio-
operador ou um especialista em códigos, será então
matriculado em estabelecimentos que só ensinem essas
matérias.

O sistema soviético de treinamento dos seus agentes difere


muito pouco, nesse aspecto, das outras agências de
espionagem, com exceção talvez do sistema britânico. Este
se baseia no bom senso e nas qualidades pessoais de seus
agentes e, com esses elementos, apresenta resultados tão
satisfatórios que intrigam e despertam a admiração dos
dirigentes de muitas outras organizações. Se há
necessidade de um preparo técnico de qualquer espécie —
rádio-operador, por exemplo, —, os ingleses proporcionarão
aos seus recrutados apenas o treinamento que lhes permita
executar essas funções de maneira toleravelmente boa. Ser-
lhes-á dada, também, instrução elementar sobre o que é
preciso fazer para preservar sua segurança. Na maior parte
das vezes, todavia, o recrutado deverá valer-se de sua
própria iniciativa, para contornar os obstáculos. O fato de o
serviço secreto inglês ocultar, atrás de sua fachada de
verdadeiro sigilo, alguns dos maiores golpes de espionagem
da História, indica que esse sistema de formação casual de
seus agentes ajusta-se perfeitamente ao temperamento
britânico e funciona com perfeito rendimento.

O sistema soviético, por outro lado — e nisso ele se parece


bastante com o sistema nazista e, mesmo, com o do Kaiser
—, forma agentes tão altamente especializados que, se
forem postos em face de uma situação que não esteja “no
livro”, não saberão como agir. O sistema de treinamento,
empregado pelo Coronel Walter Nicolai e pelo Dr. Elsbeth
Schragmuller, na Primeira Guerra Mundial, e o de várias
agências nazistas de espionagem da década dos trinta e da
Segunda Guerra Mundial, determinavam absoluta
obediência a ordens superiores e os agentes assim
formados acabavam por se revelar incapazes de usar a
própria iniciativa. Só por essa razão, perderam-se
numerosos agentes.

Mas, se os nazistas exigiam obediência absoluta, os russos,


por seu lado, são, a esse respeito, ainda muito mais
exigentes. A submissão à disciplina do Partido e do Estado
controla a vida russa, em todos os sentidos. O Manual de
Organização, publicado pelo Comitê Central do Partido
Comunista Russo, determina: “O Partido exige tudo de seus
camaradas. . . O revolucionário profissional não pode ser
indisciplinado. Nada o pode abalar. O que dele for exigido,
ele o fará.” E os cidadãos soviéticos estão tão
profundamente influenciados por esses princípios, e se
revelam tão condicionados pelos castigos que têm sofrido
por demonstrações de fraqueza ou de desobediência, que já
eliminaram de suas mentes qualquer noção de iniciativa.

O russo obedecerá a ordens, mas, se elas não forem


contínuas, não agirá por si mesmo. Até 1941, esse medo
acusava reflexos mesmo no Exército. No dia 21 de junho de
1941, quando as divisões de Hitler atravessaram o rio Bug,
as unidades russas, do lado oposto, enviaram insistentes
mensagens, não-cifradas, dizendo, em tom de lamento:
“Estamos sendo atacados. Que devemos fazer?” Um dia
depois, as tropas alemãs encontraram intacta a vital ponte
de Kodena e, quando interrogaram o oficial russo,
responsável por sua defesa — que fora feito prisioneiro —
por que não a havia destruído, assim que avistou as
primeiras unidades alemãs, ele respondeu: “Não tinha
ordens para fazê-lo e não pude encontrar um oficial superior
disposto a me dar tal ordem, sem permissão do Comando.”

O recrutado, portanto, é condicionado a obedecer, muito


tempo antes de ingressar na espionagem e, já que a mais
estrita obediência lhe é exigida também durante o seu
treinamento para o serviço secreto, ao concluir o curso é um
espião altamente qualificado, mas acusando muitas e
graves limitações. A preocupação do detalhe, através da
qual o treinamento lhe é dado, tem por objetivo justamente
fazê-lo vencer essas limitações. Convém ressaltar,
entretanto, esta evidência: o imprevisto, que se pode
apresentar em qualquer campo da atividade humana, acusa
seu mais elevado índice de incidência justamente na prática
da espionagem. Dessa forma, e por não haverem recebido
instruções no sentido de enfrentar o inesperado, numerosos
bons espiões soviéticos têm sido sacrificados.

Esse espírito de obediência é ressaltado ainda por um


terceiro curso geral que todos os recrutas devem seguir —
um curso intensivo de doutrinação política, aliado a um
estudo das atividades revolucionárias. Essa dupla
preparação é destinada tanto a impregnar o candidato com
a idéia do “patriotismo acima de tudo” — como uma arma
contra a sedução das ideologias democráticas e contra o
sistema de vida do Ocidente — quanto a permitir a
formação de homens altamente treinados em atividades
subversivas, os quais, ao mesmo tempo em que cumprem
seus deveres de espiões, possam, se uma oportunidade se
lhes apresentar, levar à frente os objetivos da revolução.

Não é possível dizer-se com certeza qual o número de


escolas mantidas pela Divisão de Recrutamento e
Treinamento, embora se calcule que se elevem a cerca de
vinte ou trinta. Os recrutados são reunidos em pequenos
grupos, e todos os membros desses grupos são treinados
para tarefas específicas.

O grupo é conservado unido através de todo o treinamento


e tomam-se providências no sentido de que apenas um
grupo frequente a escola, de cada vez. O objetivo é
restringir, tanto quanto possível, o contato do agente com
seus colegas, o que é feito como medida de segurança.

Iguais medidas estritas de segurança são aplicadas dentro


do próprio grupo. Cada agente tem um nome-de-guerra pelo
qual é conhecido entre os demais figurantes do grupo, e
também por seus instrutores. É-lhe proibido, sob pena de
demissão ou de severo castigo, divulgar seu verdadeiro
nome a quem quer que seja. Todas as cartas que lhe são
escritas, endereçadas para a escola, são abertas por um ou
dois censores, os únicos que conhecem a sua verdadeira
identidade. Essas cartas são lidas e, se aprovadas,
entregues ao destinatário, sem envelope. Se, ao contrário, é
o recrutado quem escreve, suas cartas são submetidas aos
censores, os quais se encarregam de enviá-las, caso o
conteúdo seja aprovado.

Uma vez matriculado na escola, o estudante não mais


poderá ausentar-se dela sozinho. Só deverá fazê-lo com os
demais companheiros de grupo, e sempre acompanhado de
um dos membros da direção do estabelecimento. Pode
receber a visita de dois parentes uma vez ao mês, e as
esposas — a organização admite agentes casados, já que
suas esposas e filhos constituem excelentes reféns,
garantidores do bom comportamento do agente que
trabalhe no exterior — podem frequentar o baile mensal,
realizado no salão da escola. Namoradas, entretanto, não
têm permissão para visitar o estabelecimento — proibição
esta que parece ser uma consequência da impossibilidade
de se testar uma pessoa num prazo curto. Nos bailes, a
hospitalidade é generosa, e assim o fazem com o objetivo
de manter o estudante materialmente feliz, tanto quanto
possível. Nesse sentido, é aliviado das responsabilidades
financeiras de sustentar a família e de atender às próprias
despesas. Os encargos familiares são pagos diretamente
pelo Ministério do Interior, e suas despesas pessoais
cobertas por um pequeno ordenado, que lhe é facultado.

Tendo completado satisfatoriamente o curso, o estudante se


torna então aspirante, sendo enviado para servir numa das
unidades da Polícia de Segurança da Rússia. Durante esse
período, é designado para desempenhar certas tarefas, que
o auxiliam a adquirir experiência prática e a iniciar-se,
gradativamente, em seu futuro trabalho e em sua vida.
Nesse sentido, poderá ser designado, por exemplo, para
manter sob vigilância algum diplomata estrangeiro; fazer-se
passar por guia da Inturist, com a missão de acompanhar
visitantes de outros países — de forma a fazê-lo entrar em
contato com a burguesia estrangeira —, frequentar festas
de comunistas de outras nações, ou de sindicatos; e fazer-
se presente às reuniões de delegados, representando o
papel de guia e de orientar geral. Poderá ser enviado,
igualmente, para uma alfândega ou para um posto da
fronteira, onde seja submetido a testes e a tentativas de
fraude, a fim de que sejam conhecidas suas reações e posta
a prova sua fidelidade política. Deverá, ainda, participar de
certas missões que revelem sua astúcia, como, por
exemplo, testar o sistema de segurança de um campo de
aviação ou de uma fábrica empenhada num trabalho
secreto.

Tendo vencido com êxito esse estágio, o recrutado é


submetido a outra junta. Nesta, são-lhe expostas
novamente as condições do seu serviço, quando então
assinará um juramento de que as observará. Nessa ocasião,
já lhe fora também amplamente esclarecido que, se violar
quaisquer daquelas condições, poderá perder a vida, e a
mesma sorte recairá sobre todos os seus parentes.

Terminado todo esse treinamento, o recrutado está apto


para entrar em função. Pode ser designado para uma
embaixada, como assessor, ou para substituir algum
elemento de uma rede. Onde quer que vá, entretanto, terá
de adotar não só um novo nome, mas uma identidade
inteiramente nova. Essa identidade deve ser tão
profundamente assimilada que, às vezes, poderá ter
dificuldade em se lembrar de quem realmente seja.

Onde quer que operem, as redes obedecem, quase sempre,


a um esquema. Consiste ele num certo número de células,
cada uma delas ocupando-se de uma tarefa específica. Na
chefia da rede está o Diretor-Residente, que é a via de
comunicação entre o Centro, cm Moscou, e os vários
integrantes da respectiva rede. Recebe as instruções
destinadas aos agentes e as distribui entre as células. Para
ele é enviado, igualmente, o numerário necessário para a
manutenção do serviço, sendo-lhe exigido que mantenha
uma perfeita contabilidade em relação ao dinheiro gasto.
São-lhe endereçadas ainda todas as informações obtidas
pela rede, as quais, progressivamente, ele transmite para
Moscou. O contato com Moscou é feito pelo rádio, embora,
em certas circunstâncias, o seja por mensagem verbal ou
carta, utilizando-se um emissário. A ligação entre a célula
ou o agente com o Diretor-Residente é processada através
de um intermediário ou mensageiro. O Diretor não mantém
contato com ninguém, exceto com seu emissário-isolador,
ou seu rádio-operador, embora, no último caso, possa
utilizar-se — e frequentemente o faz — de um emissário-
isolador para entrar em comunicação com seu rádio-
operador.
Em tempo de paz, a menos que seja num caso de
emergência, o rádio-operador comunica-se, duas vezes por
mês, com Moscou. Às vezes, age como técnico em código
da rede e, nesse caso, recebe o material que o Diretor-
Residente lhe envia em redação comum e o cifra para a
transmissão, muito embora na maioria das vezes esse
material já lhe chegue às mãos no próprio código utilizado
pelo Residente. Nenhum código poderá ser utilizado por
qualquer outro elemento da organização.

Para os relatórios longos, o Serviço Soviético de Espionagem


está usando, atualmente, e de maneira extensa, a micro-
fiImagem, o que requer a presença, na rede, de um técnico
nessa especialidade. Quando os microfilmes são utilizados,
o Diretor-Residente os coloca anexos a inocentes cartas e os
envia para Moscou, pelo correio comum, ou então são
endereçados a um país vizinho, de onde o adido militar se
incumbirá de mandá-los para a Rússia no interior da mala
diplomática. Esse contato com o adido militar é feito através
de linha dupla: o Centro o utiliza quando julga que as
comunicações radiofônicas são deficientes, ou então para a
remessa de fundos.

Normalmente, os agentes são pagos na moeda corrente do


país em que estão trabalhando, mas o valor é calculado em
dólar americano. Um Diretor-Residente recebe,
aproximadamente, de 80 a 160 libras por mês, de acordo
com a posição social que seu disfarce requer. Um rádio-
operador pode receber entre 30 a 60 libras mensais, mas a
maioria dos agentes é paga na base das tarefas realizadas.
Ocasionalmente, um agente, já de longa estabilidade, pode
ser remunerado através de um salário fixo. As tarefas
especiais geralmente dão direito a uma gratificação extra.
De modo geral, os níveis dos ordenados são baixos e,
frequentemente, quando o agente já ganha algum dinheiro,
proveniente da sua profissão simulada, só percebe a
retribuição que lhe é devida por despesas especiais que, por
acaso, seja obrigado a fazer, quando em ação de
espionagem. Os soviéticos adotaram esse sistema,
baseados na comprovação de que nada desperta maior
atenção do público do que um empregado ou um jornalista
viver acima do que possa ganhar em seu trabalho. Por outro
lado, há casos em que certos agentes recebem salários tão
elevados que não estão em proporção com os deveres que
lhes competem. Vladimir Petrov, que desertou na Austrália,
onde era funcionário de categoria da embaixada russa,
recebia o equivalente a 450 libras australianas, o que
corresponde ao salário do Diretor do Serviço de Segurança
Britânico.

Quando os salários não são pagos no local em que o agente


exerce sua atividade, são creditados na conta particular do
espião, aberta num banco em Moscou. Acontece então que,
se o agente tem uma longa carreira de atividades, um
razoável pé-de-meia estará acumulado para quando ele se
aposentar, uma vez que essa quantia está acima e é
independente da quota paga à sua família, se for casado.

Os métodos de operação utilizados pelos agentes, quando


em ação, serão mais bem compreendidos nos próximos
capítulos, quando o trabalho das redes específicas for
descrito. Será útil revelar desde já, entretanto, alguns
breves detalhes de como, na prática, esses espiões
desenvolvem as suas atividades.

Não obstante a ocorrência de alguns casos de importância


— particularmente o de Lonsdale, em que a não observância
de certas normas de segurança resultou na descoberta da
inteira rede de espionagem; o de Harry Houghton, que, com
sofreguidão, esbanjava dinheiro nos bares em torno de
Portland; e, por fim, o próprio estranho comportamento de
Lonsdale, ao estabelecer contato com Krogers, ao invés de o
fazer através de um emissário-isolador —, a insistência dos
soviéticos no que se refere a segurança parece quase uma
obsessão.

Não nego que alimento grande admiração pelo Centro, no


que diz respeito a essa atitude. Muitos espiões soviéticos
têm sido apanhados, mas isso vem ocorrendo mais por falta
de precaução do que por outro motivo. Qualquer pessoa que
tenha um conhecimento, superficial que seja, da história da
espionagem, logo se convence de que o cuidado, quase
sempre desagradável, dispensado às normas de segurança,
é sobejamente compensado pela certeza de uma relativa
imunidade ao perigo do desmascaramento. No entanto, por
maior que seja a precaução que se tenha na articulação de
um perfeito sistema de controle, o que é exigido dos
agentes soviéticos a esse respeito pode ser considerado
fantástico. Em face de tanta precaução, a teoria, que somos
tentados a apresentar, é a de que essa insistência oficial
acaba sendo a causa do cansaço dos mais astuciosos
agentes, os quais, assim, se deixam colher, ao deixarem
pistas que, mais cedo ou mais tarde, os levam à ruína.

Essa insistência, em relação à segurança, aparece em todos


os aspectos das operações da espionagem russa.
Provavelmente, porém, onde melhor ela pode ser observada
é nas providências tomadas por ocasião do estabelecimento
do contato entre dois agentes. Essas providências, em
qualquer situação, são sempre reduzidas ao mínimo
possível, mas, quando planejadas, obedecem a um plano
minuciosamente concebido. Vejamos um exemplo. A
respeitável dona-de-casa de St. John’s Wood deu a
Alexandre Foote as instruções, que ele devia seguir, para
encontrar seu contato em Genebra. Essas instruções eram
as seguintes: “No dia imediato à sua chegada a Genebra,
você terá de estar em frente ao edifício do Correio Geral, no
momento exato em que o relógio soar as doze horas. Usará
um cachecol branco, por fora do casaco, de modo a que
seja bem visível, e, em sua mão direita — não na esquerda,
e lembre-se disso —, deverá levar um cinto de couro. Um
segundo ou dois após a última badalada das doze, uma
mulher se aproximará de você. Em uma das mãos, ela
levará uma bolsa de corda trançada, no interior da qual
você poderá ver um embrulho de papel verde, e na outra
mão terá uma laranja. A mulher se dirigirá a você e iniciará
a conversa nestes termos: “Desculpe-me, mas onde
comprou esse cinto?” E você responderá: "Num ferragista
em Paris.” E tudo se passou como havia sido recomendado.

As maiores recomendações se fazem no sentido de que os


agentes sejam absolutamente pontuais em seus encontros.
Se um ou outro não consegue chegar na hora exata, o outro
não deve esperar, para não atrair a atenção. Nesse caso,
novos entendimentos são feitos, de forma a que outro
encontro se realize, mas em local diferente.

Não apenas na realização dos contatos a segurança é


imprescindível. Para evitar frequentes reuniões, são
inventadas "caixas de correio”. Trata-se de locais em que
informações escritas podem ser escondidas pelo agente e
apanhadas, mais tarde, pelo contato. Algumas dessas
“caixas”, ideadas pelos soviéticos, são tão melodramáticas
que parecem retiradas de alguma novela fantástica. Certa
vez, na Suécia, essa “caixa de correio” era uma lata
enferrujada, escondida num lugar distante, situado num dos
subúrbios de Estocolmo. Algumas vezes, as livrarias
públicas são usadas, e o agente deixa a sua mensagem, em
código, num livro predeterminado. O contato penetra na
livraria mais tarde, e a copiará. Grampos de cabelo,
colocados em certa posição, numa cerca de arame, têm
servido, igualmente, para transmitir uma mensagem.
Todo o sistema de funcionamento, assim como a estrutura
interna de uma rede, é concebido para disfarçar, ao
máximo, a identidade do maior número possível dos
agentes operadores. Esse cuidado tem se revelado de tanto
êxito que, quando uma rede é denunciada, em
consequência da deserção de um agente, as autoridades
nunca estão certas de que poderão desmontá-la por inteiro.
E, na realidade, jamais o conseguem. Mesmo quando Igor
Gouzenko exibiu um acervo de documentos, relacionados
com a existência de um anel de espionagem atômica, no
Canadá e nos Estados Unidos, só oito anos mais tarde é que
a política canadense descobriu que uma rede paralela havia
continuado a funcionar imperturbavelmente, apesar do
desmantelamento da organização chefiada por Zabotin.

Em vista de todas essas circunstâncias, não pode haver


dúvida de que, hoje, a espionagem soviética é uma das
mais poderosas armas não apenas da URSS, mas também
do mundo comunista. Estende seus tentáculos por todo
mundo, a cada ano que se passa, introduz, em sua
estrutura, novos instrumentos de agressão, sempre
concebidos tendo em vista a imposição de uma eventual
supremacia do comunismo no mundo. Se esses objetivos
têm de ser frustrados, um violento antídoto deve, então, ser
aplicado, e de maneira drástica.

A aplicação desse antídoto não constitui, como se poderá


supor, uma responsabilidade das agências de
contraespionagem.

Por ocasião do julgamento de Vassall, a Dame Rebecca West


escreveu, em seu sumário do processo: “O problema da
segurança é tão agudo, hoje em dia, que o público deve
fazer o que lhe estiver ao alcance para preservar a sua
salvação. O Parlamento e a imprensa precisam também
abandonar os interesses partidários e orientar a
comunidade, a una voce, sobre a extensão, a natureza e
também os prováveis efeitos da espionagem inimiga.”

Nossa intenção aqui é justamente realizar esse objetivo.


Estudando as realizações da espionagem soviética no
passado, talvez possamos — segundo esperamos — adquirir
alguma noção do que nos espera no futuro, tendo sempre
em mente o aperfeiçoamento, tanto das técnicas das
operações de espionagem, como o da vulnerabilidade do
ambiente político. 

 
Segunda Parte
ENTRE AS GUERRAS
1. França

Para o leitor cuja memória dos acontecimentos de logo após


a Primeira Guerra Mundial já se tenha quase dissipado,
constituirá certamente uma surpresa a recordação de que,
no início de 1922, a União Soviética e a Alemanha
assinaram o tratado de Rapalo. Por esse documento, os dois
países desistiam de qualquer indenização de guerra e se
ofereciam mutuamente a posição de “país mais favorecido”
na esfera econômica. A União Soviética tinha a intenção de
incluir, naquele tratado, algumas cláusulas relativas a uma
cooperação militar entre os dois países; essa pretensão,
entretanto, não pôde ser concretizada, em face da
intervenção da França.

Essa intervenção representou, apenas, mais um ato


inamistoso da França à Rússia. Foi com armamentos e
assistência financeira da França que a Polônia escapara de
ser invadida pelos russos e de ser incorporada à União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas. A França, igualmente,
protegeu a Romênia, evitando que ela tivesse idêntica sorte.
Foi a França, por fim, que, dominando o cenário político
europeu, além dos atos já citados, hostilizou, de maneira
franca, os planos de expansão da União Soviética. Só depois
que a Grã-Bretanha e a Itália reconheceram o governo da
Rússia é que a França se decidira a trocar credenciais com
as autoridades de Moscou.

De todos os países aliados, que se viram envolvidos na


guerra, a França fora a que se revelara mais ativa na
fabricação de armamentos e de aviões — material este do
qual a União Soviética sofria aguda escassez — e também
no aperfeiçoamento das técnicas de como produzi-los.
Assim, em face da hostilidade, que vinha demonstrando em
relação a tudo o que era russo e ao poderio militar que
estava construindo, ela passara a ser um alvo altamente
interessante para a espionagem soviética.

Entre a decisão de espionar a França e a de levar a efeito,


de modo prático, essa tarefa, verificou-se, todavia, um
prolongado hiato. Até o estabelecimento de uma embaixada
russa em Paris, a Inteligência Soviética teve de se valer,
através do Comintern, da cooperação do Partido Comunista
Francês. E nessa situação ambígua repousavam todas as
dificuldades do problema.

A independência que os regimes de Tito e de Hodja


revelam, hoje, respectivamente na Iugoslávia e na Albânia,
logo os colocou fora dos padrões usuais de funcionamento
dos governos comunistas. A Rússia, ou melhor, o Partido
Comunista Russo, sempre alimentara a ambição de dirigir a
revolução mundial de acordo com seus próprios desígnios e,
nesse sentido, procurava submeter, ao arbítrio de Moscou,
todos os demais partidos comunistas do mundo. Seria uma
reprodução da situação que hoje configura as suas relações
com os países satélites — todos eles obrigados a seguir as
pegadas da linha traçada pelo Kremlin.

Logo após a Primeira Guerra Mundial, o Partido Comunista


Francês demonstrou, como Tito, que possuía idéias próprias.
Não se poderia dizer que fosse uma poderosa organização
partidária, já que não contava, para fortalecer seus quadros,
com a cooperação de homens de projeção, de renomada
inteligência ou de profundas convicções marxistas-
leninistas, que lhe pudessem emprestar relevo intelectual
ou prestígio político dentro de um país em que as velhas
instituições governamentais ainda não haviam sido
influenciadas por convulsões sociais internas, como as que
se verificaram, por exemplo, na Itália e na Alemanha.

De todas as principais agremiações da Internacional, o


Partido Comunista Francês representava uma exceção à
regra geral. Seus delegados compareciam aos Congressos e
subscreviam as resoluções aprovadas, mas essa atitude não
passava de uma simples manifestação de solidariedade,
sem implicar em qualquer compromisso. De regresso à
França, esses delegados e seu partido procediam de modo
próprio. Em face dessa situação, logo começaram a surgir
queixas de que o Comitê Central do partido francês estava-
se desviando das linhas traçadas pelo Comintern. Essas
reclamações, entretanto, tiveram pouco ou nenhum efeito
sobre o ânimo dos líderes franceses, que, apesar da pressão
de Moscou, permaneciam fiéis ao ponto-de-vista de que a
Internacional deveria ser uma aliança, e não um
instrumento para impor às agremiações políticas nacionais
uma atitude de subserviência ao Partido Comunista Russo.

O posto avançado da espionagem soviética — como será


descrito nos próximos capítulos — havia sido estabelecido
em Berlim, e dali partiam as ordens destinadas aos agentes
recrutados pelos quartéis-generais, cuja missão era
trabalhar na Alemanha, na Bélgica e na França.

Nessa época, a organização se ressentia da falta de


profissionais treinados e, por isso, tornara-se imperativo que
alguns deles — na maior parte, poloneses e judeus —
tivessem de receber a assistência de membros dos partidos
locais. Em relação a esse assunto, o partido internacional e
o francês alimentavam, igualmente, irreconciliáveis pontos
de divergência. Fazer espionagem contrariava os princípios
das entidades sindicalistas da França e, desde que o serviço
secreto russo estava vivamente interessado em obter
informações sobre o que vinha sendo produzido nas fábricas
do país, tornava-se muito difícil, para os seus dirigentes, o
recrutamento de subagentes, nos círculos trabalhistas, em
quantidade que fosse satisfatória. Isso não queria dizer,
entretanto, que os russos não obtivessem qualquer êxito
nessas tentativas, mas explica, por outro lado, a razão por
que não foram brilhantes, naquela época, as realizações de
espionagem soviética, nos meios sindicais franceses. Além
disso, os poucos que concordaram em cooperar com os
russos não possuíam qualquer capacidade técnica,
indispensável às atividades de espionagem, o que constituía
um grande perigo, já que as agências de contraespionagem
se mostravam profissionalmente aparelhadas e agiam
segundo os melhores padrões universais.

Entre os que se dispuseram a cooperar, em época anterior a


1924, estavam Henri Coudon e sua amante, Marthe
Morrisonnaud, que se ofereceram para obter informações
sobre segredos da aviação francesa. Mal começaram a
operar, porém, e já a contraespionagem os prendera,
descobrindo, em poder de ambos, um relatório sigiloso
sobre problemas de aviação. Outra operação, realizada
nesse mesmo campo, e coroada de melhor êxito, foi a
desempenhada por Joseph Tomasi, que era o secretário-
geral do Sindicato dos Trabalhadores em Automóveis e
Aviões. Não se tratava de um agente de tempo integral e,
por isso, a colheita que fazia era reduzida. Conseguiu ele,
entretanto, evitar qualquer suspeita pelo período de dois
anos, e quando, por fim, a contraespionagem se pôs em sua
pista, conseguiu evitar a captura, fugindo para Moscou,
onde faleceu em 1926.

A primeira ocorrência de relevância, referente à espionagem


soviética na França, ocorreu em 1924. Jean Cremet,
secretário da filial da União dos Construtores Navais, que se
localizava em St. Nazaire, e secretário da União dos
Metalúrgicos, fora designado para chefiar a rede francesa, o
que, na época, não passava de um eufemismo. Era ele,
igualmente, membro do Comitê Central Francês e, sendo
um “homem de Moscou”, essa circunstância contribuiu,
provavelmente, para que os chefes moscovitas se
mostrassem cegos em relação a quaisquer deficiências que
pudesse revelar.

No período de três anos, sem que seus colegas de Partido


tivessem ciência, Cremet organizou o que se poderia
chamar, realmente, uma rede de espionagem, com
irradiação por todos os objetivos de importância, existentes
na França, inclusive fábricas de munição, indústrias
aeronáuticas e estaleiros de construção naval. Embora a
embaixada soviética já estivesse, então, instalada em Paris,
e a direção do serviço secreto russo nela se encontrasse
abrigado, tão conceituado era Cremet, junto aos dirigentes
do Centro, que, com frequência, viajava para Moscou, a fim
de, pessoalmente, fazer a entrega de seus relatórios. E as
informações, denominadas “intermediárias”, ele as enviava,
por um mensageiro, para Berlim, de onde logo eram
retransmitidas para a capital russa.

Essa situação durou até os fins de 1925, quando o Centro


designou um Diretor-Residente para a França. Tratava-se de
um agente de alguma experiência, chamado Uzdanski, que,
anteriormente, servira em Varsóvia e em Viena.

Em Paris, Uzdanski passava por ser um artista e usava o


falso nome de Abraham Bernstein. Seu emissário-isolador
era um jovem estudante lituano, de nome Stefan Grodnicki.

As instruções que Uzdanski recebera do Centro eram


precisas. Teria de informar às redes francesas que qualquer
detalhe referente a artilharia, a granadas, a aviões, a
construção naval, a movimentos de tropas e de tanques
deveria ser remetido para Moscou. Tratava-se de uma
ordem de relevância, e para a sua execução seria
necessária a existência de extensas redes. Uzdanski julgou,
entretanto, que apenas a existente organização de Cremet
constituía uma excelente base para apoio de futuras
operações, e também que os contatos de Cremet se
mostravam tão amplos que ele quase poderia produzir,
sozinho, o resto do que era necessário ser feito.

Tudo correu bem por espaço de quase um ano, quando


Cremet passou a enfrentar dificuldades, criadas por um
comunista francês da linha “ortodoxa”, chamado Cochelin.
Este, que trabalhava nos arsenais de Versalhes, fora
abordado por Cremet, que lhe pedira para obter
informações, em seu local de trabalho, sobre tanques e
explosivos. Na primeira entrevista, Cochelin recusou-se a
cooperar. Cremet, porém, determinado a obter o que
desejava, tentou uma segunda aproximação. Novamente
Cochelin negou-se a cooperar, mas não de maneira tão
peremptória como o fizera da primeira vez. A impressão que
Cremet teve foi a de que Cochelin havia refletido e, se fosse
outra vez abordado, apesar de ser um comunista militante,
levaria o fato ao conhecimento do Ministério da Guerra. E foi
o que aconteceu.

O serviço de contraespionagem já tinha ciência de que


espiões se achavam em atividade no Colégio Militar de
Versalhes e de que essa tarefa era executada pelos russos.
Em face dos naturais embaraços que, fatalmente, iriam
causar à recém-criada embaixada soviética, se fossem
iniciadas sindicâncias sobre o caso, as autoridades
francesas julgaram melhor não intervir logo na questão.

As informações de Cochelin, entretanto, eram de suma


gravidade para as autoridades francesas se permitirem o
luxo de levar em consideração os sentimentos russos por
mais tempo. Fora decidido então que, quando qualquer
providência tivesse de ser tomada, as provas a serem
exibidas deveriam ser insofismáveis, e Cochelin foi
persuadido a apresentar essas provas.

No dia 5 de fevereiro de 1927, Cochelin concordou em


responder a uma lista de perguntas, que Cremet lhe
formulara. As respostas foram preparadas por técnicos do
Ministério da Guerra. Foram elas levadas a Uzdanski,
através do seu “isolador” Grodnicki, por Cochelin, num
encontro próximo da Madaleine, e observado pela
contraespionagem. Os agentes franceses seguiram
Grodnicki, que os levou a Uzdanski, sendo ambos presos.
Nos dias que se seguiram, foram detidos Cremet, sua
amante Louise Clarac, bem como seus principais
assistentes.

Essas prisões provocaram um daqueles escândalos muito do


gosto dos franceses, e o caso serviu como uma advertência
às outras nações, no sentido de que os protestos de
amizade do governo da Rússia em relação aos demais
países, bem como sua total falta de interesse nos negócios
internos das nações, não passavam de pura mistificação.

Tendo desmascarado essa secreta ameaça, o governo


francês decidiu que poderia ser clemente com os culpados.
Entretanto, parece que subestimou a relativa importância
das funções desempenhadas por Uzdanski e por Grodnicki,
uma vez que este ultimo só foi condenado a cinco anos de
prisão, enquanto o primeiro recebeu apenas três de
reclusão. Uma pequena sentença foi, também, aplicada, à
revelia, a Cremet e a Louise Clarac, os quais também
haviam conseguido fugir para a Rússia.

O julgamento, que se realizou sob os maiores protestos dos


comunistas, sob a alegação de que todo o processo fora
forjado, a fim de desacreditar o Partido e a Rússia, veio
revelar a que ponto tinham chegado, na França, as
atividades da espionagem russa. Apesar disso, porém, uma
rede não foi perturbada pelo affaire e continuou a operar, no
país, pelo período de mais um ano.

Essa rede, que fora implantada por Cremet, na oficina de


impressão do Colégio Militar de Versalhes, transmitia cópias
de todos os documentos militares secretos, que lhes
passavam pelas mãos, à Inteligência Soviética. Seus
integrantes vieram a perder-se, consequentemente, por
falta de experiência no julgamento do caráter de um dos
elementos de quem se aproximaram, a fim de conseguir
informações adicionais sobre as ordens de mobilização do
Exército e da Força Aérea.

O cabo — tratava-se de um cabo — a quem ofereceram


dinheiro por essa informação levou o fato ao conhecimento
das autoridades, e o agente que o havia abordado foi preso.
Este, interrogado, confessou tudo, revelando, inclusive, os
nomes dos outros dez membros da rede. O fato de que
assim tenha procedido demonstrou a ignorância da técnica
de espionagem, por parte daqueles amadores. Apenas o
russo que substituíra Uzdanski conseguiu escapar e pôde
fazê-lo somente porque obedecera às normas que regem a
espionagem e se identificara tão-só por seu nome-de-
guerra, Paul. Mesmo assim, procurara sempre disfarçar-se
de forma que nenhuma descrição de sua pessoa pudesse
coincidir com a de qualquer russo conhecido.

Embora a União Soviética houvesse sofrido um grande


golpe em seu prestígio, em virtude do caso Uzdanski, nem
Cremet nem o Kremlin nem o Centro julgaram houvesse
qualquer motivo para que sua espionagem na França, ou
em qualquer outra parte, fosse sustada. Com efeito, certas
modificações se introduziram na organização desse serviço.
As embaixadas, por exemplo, não mais deviam ter
entendimentos com as agências comunistas nacionais, mas,
mesmo assim, não deveria ser interrompida sua atividade,
no sentido de estar sempre a par dos segredos de
importância.

Para substituir Uzdanski e Cremet, surgiu então no cenário


francês um homem cuja verdadeira identidade nunca foi
descoberta, embora muitos fatos relativos ao seu passado
viessem a ser conhecidos. Tratava-se de um bolchevique da
velha guarda que havia sido eLivros na Sibéria e se engajara
em atividades clandestinas, durante alguns anos, antes da
Revolução. Em 1929, podia-se dizer que estava nos meados
da casa dos quarenta anos.

Era conhecido, apenas, como Paul. Foi a ele que a rede de


St. Cyr entregara o resultado de seu trabalho. Mais tarde,
fora identificado como um homem que se fazia chamar
General Muraille, mas, mesmo essas circunstâncias não
conduziram a qualquer indicação sobre o seu verdadeiro
nome.

Por haver sido um velho bolchevique da velha guarda ele se


revelava profundamente impregnado do ideal de uma
revolução mundial, e todos os seus esforços, no campo da
espionagem, eram devotados a preparar o terreno para a
realização desse objetivo. Desde que o Partido Comunista
Francês, em sua opinião, não se mostrava suficientemente
revolucionário, como ele desejava, nunca o levou em
consideração, e foi por isso talvez que teve a idéia de se
entregar à técnica da espionagem, isto é, ocultar-se sob
nomes supostos, não revelar a ninguém sua identidade,
pois, em sua longa e brilhante carreira, sempre conseguiu
ludibriar a vigilância da contraespionagem, até que, um dia,
foi traído.
As ordens que Paul recebia do Centro eram idênticas
àquelas que haviam sido dadas a Cremet e Uzdanski. Teria
de descobrir tudo quanto pudesse sobre a situação militar
francesa, com atenção especial dispensada às novas armas,
particularmente à aviação. Apesar de sua natural aversão
ao Partido Comunista Francês, e das ordens de Moscou no
sentido de se evitar a utilização das agremiações políticas
locais para fins de espionagem, Paul julgou que, se não lhe
fosse possível convocar sua própria mão-de-obra, nada de
eficiente poderia fazer. Nessas condições, com a permissão
de Moscou, fez contato com o chefe do Partido Francês,
Henri Barbé, a quem explicou que estava encarregado de
selecionar jovens interessados em fazer um curso de
estudos de marxismo-leninismo, na capital russa. Não tendo
razão para duvidar dele, Barbé colocou-o em contato com
certas organizações juvenis.

Em pouco tempo, Paul já havia organizado algumas redes,


integradas por jovens que encontrara naquelas associações
juvenis, os quais, embora não tivessem o mesmo descortino
dos agentes mais velhos, mostravam-se, em compensação,
entusiasticamente dispostos a cooperar. Conquanto
mantivesse espiões nas fábricas de aviões e nos estaleiros
navais, o que mais lhe interessava era a indústria de
munições, situada em Lyon. Dessa fábrica, conseguiu obter
plantas dos mais modernos tipos de avião.

Paul, entretanto, não se apoiava exclusivamente na nova


geração. E foi justamente sua associação com um antigo
comunista, Vicent Vedovini, que trabalhava como
engenheiro naval nos estaleiros de Marselha, que,
consequentemente, o levou a ser descoberto. Tendo
preenchido diversas listas de perguntas, que lhe tinham
sido formuladas por Paul, Vedovini — já que motivos
pessoais o haviam convencido de que era tempo de parar
de espionar — decidira entregar a última lista à polícia, com
informações que a habilitaram a identificar o agente. Este,
entretanto, previamente avisado, conseguiu fugir para o
exterior. Na primavera do ano seguinte, confiando em poder
escapar à vigilância da contraespionagem francesa, voltou à
França e foi imediatamente preso.

Em seu julgamento, em setembro de 1931, Paul negou que


se houvesse envolvido em espionagem e, quando solicitado
a explicar as provas documentais apresentadas pelas
investigações, bem como o depoimento prestado por
Vedovini, alegou ser apenas um escritor e que se ocupara
tão-somente em colher informações para um romance. O
tribunal não se deixou convencer por suas alegações e o
sentenciou a três anos de reclusão. Quando foi libertado,
Paul voltou para a Rússia, e nunca se teve notícia dele.

Em consequência desse caso, Elenri Barbe foi intimado a ir


a Moscou, onde tentaram induzi-lo a assumir a direção das
atividades secretas na França. Recusou-se firmemente a
fazê-lo, sob a alegação de que se tratava de uma atividade
à qual os comunistas franceses não se deviam entregar.
Dentro desse ponto-de-vista, manteve-se irredutível,
resistindo a todas as persuasões e argumentos dos
soviéticos. Ao proceder dessa forma, porém, assinara o seu
próprio atestado de óbito político. Pouco tempo depois, era
substituído por Thorez e Duelos, ambos homens da
confiança de Moscou.

Sob Thorez e Duelos, foi posto em prática, na França, novo


sistema para coleta de informações, de uma forma que se
mostrara eficiente na Rússia, embora ali realizado com
finalidades inteiramente diferentes. Quando os comunistas
tomaram as rédeas do governo da Rússia, suprimiram todos
os antigos jornais e fundaram outros. Com os antigos
jornais, desapareceram, igualmente, os velhos jornalistas, e
os novos periódicos logo descobriram que lhes faltavam
fontes de informação. Para suprir essa lacuna, instituíram
então um esquema, denominado Rabcor —
Correspondentes dos Trabalhadores. De acordo com esse
esquema, todas as pessoas — se assim o desejassem —
poderiam mandar para as redações qualquer notícia que
julgassem poder interessá-las. Um sistema Rabcor foi então
inaugurado na França, e os correspondentes operários eram
estimulados a colher e a remeter para a sede da
organização qualquer tipo de informação, especialmente as
relacionadas com a indústria bélica francesa. Recebida a
informação, era ela cuidadosamente arquivada, e todos
aqueles itens que acusavam particular interesse para a
Inteligência enviavam-se para a embaixada, enquanto os
inocentes, ou sem importância, eram reproduzidos nos
jornais. Essa iniciativa provou ser uma fonte de informações
da maior relevância para a Inteligência.

Através dessa atividade do Rabcor, um jovem estudante


comunista, chamado Riquier, foi indicado, por Duelos, para
trabalhar na redação de L’Humanité — o jornal comunista
francês —, a fim de servir ali de espia e de elemento de
ligação para a espionagem soviética. Esse cargo fora
exercido, anteriormente pelo polonês Izaia Bir, que, tendo
sido eLivros de sua terra, fora para Toulouse estudar
engenharia, sendo ali atraído pela rede soviética. O lugar-
tenente de Bir era outro polonês emigrado, jovem ainda, por
volta de seus vinte e poucos anos, chamado Alter Strom,
que pela primeira vez fora a Paris em 1929.

Sob a direção desses dois homens, a organização soviética,


na França, pôde ser recuperada, com rapidez, dos danos
sofridos por ocasião do affaire Paul, sendo justo dizer-se que
esse êxito foi baseado, quase inteiramente, nas informações
fornecidas pela insuspeitada Rabcor.
Não eram só os operários-correspondentes que ignoravam o
fim dado a suas informações. Por muito tempo, o próprio
Riquier não chegara a desconfiar que estava envolvido em
espionagem. Quando, porém, descobriu a verdade, na
madrugada de um dia de fevereiro de 1932, comunicou-se
imediatamente com a polícia.

Cooperando com os agentes policiais, Riquier continuou a


trabalhar em L’Humanité, como se nada houvesse
acontecido. Nesse meio-tempo, entretanto, a polícia
prosseguiu nas suas diligências em relação àquela
organização e, quando julgou que já havia obtido provas
suficientes para esmagá-la, deu a Riquier certos
documentos para serem entregues a Bir, o qual foi, então,
detido com os mesmos em sua posse. Duelos desconfiou do
que se estava passando e fugiu para o exterior, onde ficou
até que, em 1933, uma anistia ampla foi concedida.

Bir recebeu uma sentença de três anos de prisão, e seus


cúmplices franceses, outras pelo período de um ano. O
lugar-tenente de Bir, Alter Strom, sofreu o castigo de três
anos de reclusão.

Desastres, como os acima referidos, segundo parece,


sempre estiveram nos cálculos dos dirigentes do Centro.
Certamente, eles nada fizeram para reduzir suas atividades
na França, e, embora seus agentes fossem apanhados com
frequência, não tiveram qualquer dificuldade em substituí-
los. Os franceses, por seu lado, mostravam-se irritados com
aquela sucessão de julgamentos de espiões, que parecia
interminável, e a que os jornais, à força de divulgá-los, já
não emprestavam qualquer colorido de escândalo. A
contraespionagem, no entanto, continuava a manter, em
relação a esses agentes, uma ininterrupta e severa
vigilância.
Enquanto se verificara esse verdadeiro desfile de espiões
pelo cenário francês, uma ou duas redes de importância
vinham sendo organizadas, e ambas integradas por agentes
de alta classificação, bem diferentes, portanto, dos Paul e
dos Bir. Todos eles eram agentes formados de acordo com a
técnica que o Centro tinha aprendido, através dos seus
sucessivos desastres, ocorridos nos últimos anos da década
dos vinte e nos primeiros da dos trinta.

Destacava-se entre esses novos agentes — muitos dos


quais dispunham de passaporte americano — Chkalov,
pseudônimo de Lydia Stahl, russa de nascimento e que
emigrara para os Estados Unidos, por ocasião da Revolução,
naturalizando-se cidadã norte-americana, e, quando seu
único filho morrera, em 1919, voltara para a Europa,
estabelecendo-se em Paris. Na capital francesa, entrou em
contato com os comunistas e a eles aderiu, e, dentro de
pouco tempo, já estava empenhada em fazer espionagem
para a União Soviética. Não durou muito sua experiência
como espiã. Em consequência da denúncia de um
americano, chamado Robert Switz, foi presa, e o mesmo
aconteceu aos demais membros dessa rede que era,
efetivamente, profissional.

Switz, filho de abastada família americana, fora diletante de


um idealismo sem base, até que, atraído pelo comunismo,
passou a frequentar os pseudo-intelectuais esquerdistas de
Greenwich Village. Ali foi habilmente doutrinado e, quando
passara a ser considerado um sincero convertido, recebera
convite para servir como agente da espionagem soviética,
nos Estados Unidos. Após uma viagem a Moscou, em 1931,
casara-se com uma menina de dezenove anos, Marjorie
Tilly, que não só concordara em trabalhar para a rede, da
qual o marido era um dos integrantes, como também viera
a ser, rapidamente, um de seus mais importantes membros.
Ambos haviam sido treinados em fotografia, de forma que
puderam substituir Lydia Stahl, que operara nos Estados
Unidos desde 1928 e recebera ordem para voltar a Paris. Em
julho de 1933, os Switz, como Lydia, seguiram igualmente
para a França, pois, em face da ascensão do nazismo ao
poder, houve necessidade de que o centro de operações de
Berlim fosse reorganizado e, consequentemente, todas as
redes, que operavam na Europa Ocidental, sofressem uma
reestruturação.

Markovich, que era o Diretor-Residente da rede francesa,


embora operando de Berlim, visitou Paris no mês seguinte,
a fim de explicar a projetada reorganização a Switz e,
também, para acertar com ele as novas funções que lhe
seriam atribuídas. Por essa ocasião, entretanto, a
contraespionagem francesa já descobrira que Lydia Stahl
era uma espiã soviética. A denúncia fora feita por uma de
suas amigas, Ingrid Bostrom, que, tendo sido presa na
Finlândia, tudo confessara. Durante a investigação dos
antecedentes de Stahl, a polícia descobriu a existência da
rede para a qual ela trabalhava, e, em virtude de Switz ter
entrado em contato com ela, assim que chegara a Paris, ele
também foi posto sob observação, tendo então sido notado
seu encontro com Markovich. Como as atividades de
Markovich já eram muito conhecidas, as autoridades
francesas resolveram agir enquanto ainda podiam agarrá-lo.
Markovich, entretanto, ainda conseguiu fugir, mas o
restante da rede, incluindo Stahl, o casal Switz e outros
agentes de importância, foi preso. Embora a maior parte
dos agentes tivesse sido encontrada na posse de material
comprometedor, os franceses continuaram a julgar que não
dispunham ainda de provas suficientemente fortes para
acusá-los e, nessas condições, as investigações tiveram
prosseguimento durante os três meses que se seguiram.
Um dia, porém, dois rolos de filmes foram entregues por um
desconhecido no consulado francês de Genebra, e num
desses filmes encontraram-se impressões digitais de Switz.
Posto em face dessa evidência, Switz decidiu falar. Desde
algum tempo, ele se sentia desiludido daquela aventura
perigosa e não via razão por que devesse sofrer por uma
causa em que não mais acreditava. Fez, então, uma
confissão completa, e mais cinco outros lhe seguiram o
exemplo. Resultou daí que vinte e nove agentes caíssem
nas malhas da polícia e as redes que comandavam ficassem
completamente desmanteladas.

As relações da França com a Rússia haviam sofrido


profundas alterações. O governo de Paris decidira que seria
de grande inconveniência se aquele affaire fosse convertido
num escândalo internacional. Nessas condições, o
julgamento processou-se em sigilo, e apenas sentenças
leves foram aplicadas. Os Switz obtiveram a absolvição,
pelo auxílio que haviam prestado às autoridades.

Nos últimos anos da década dos vinte e nos primeiros da


década dos trinta, a situação de hegemonia, em que a
França se encontrava no plano internacional, começara
então a deteriorar-se e, muito cedo, sua política interna
atingira aquele ponto a que se referia Will Roger, quando
dizia que seu maior divertimento, em Paris, era ir ao Quai
d’Orsay para ter a oportunidade de ver as mudanças de
governo. Em consequência dessa desorganização interna, o
poderio militar francês começou igualmente a declinar,
sendo, pouco depois, sobre pujado pelo da Inglaterra e pelo
dos Estados Unidos. De qualquer forma, porém, a presença
de comunistas no governo francês passara a tornar a
espionagem quase desnecessária para a União Soviética.

Alvos de maior importância a serem atingidos pela


espionagem russa passaram a ser, portanto, a Alemanha
totalitária e rival, já que ela poderia constituir um potencial
inimigo, e os Estados Unidos, que ofereciam um campo de
atividades mais amplo e bem mais compensador.
2. Alemanha

Em 1918, na opinião dos líderes soviéticos, a efetivação da


revolução mundial não era um ideal de execução a longo
prazo, mas que deveria ser conseguido o mais rapidamente
possível. No tumulto que se estabeleceu em larga área da
Europa, tanto Oriental como Ocidental, logo em seguida ao
armistício, acreditaram eles que o terreno já estava
preparado para uma rápida vitória. E, nesse sentido,
nenhum outro país lhes pareceu mais propício para a
realização de seus desígnios do que a Alemanha.

O proletariado alemão tinha uma longa tradição de


atividades clandestinas que, considerada em termos de
duração, quase igualava a dos trabalhadores da Rússia. Já
em relação à experiência de lutas de classe, inspiradas pela
segunda revolução francesa, ele se encontrava bem à frente
dos russos. Embora a tentativa de acabar com o jugo
autocrático da dominação prussiana houvesse falhado, os
socialistas alemães, apesar desse fracasso, por cerca de
meio século mantiveram acesa a flama do ideal libertário e,
assim, conservaram-se revolucionários em potencial.

Essa realidade tornou-se evidente no primeiro mês do


último ano da guerra, quando levantes populares
aconteceram em Hamburgo, Munique e outras cidades, e,
embora esses movimentos houvessem sido
temporariamente dominados, recrudesceram e tomaram
vulto entre janeiro e novembro de 1918. A 3 de outubro de
1918, quando a derrota da Alemanha já era uma certeza e o
desespero das massas atingira um perigoso nível, outro tipo
de revolução sem sangue proporcionou à Alemanha seu
primeiro governo parlamentarista, sob a direção do Príncipe
Max de Baden. Essa transformação política permitiu que os
socialistas participassem do Gabinete, mas, mesmo assim,
ela não teve força para evitar a revolta do proletariado, que,
secretamente e desde muito, estava em fermentação.

Essa revolução, que começou por criar sovietes de


trabalhadores e de soldados, nos moldes dos de Moscou, foi
inspirada pelo Spartaknsbermegung (designação derivada
de Spartacus, que liderou a guerra dos escravos contra
Roma, nos anos de 73 a 71 antes de Cristo). Tratava-se de
um movimento de socialistas da extrema esquerda.
Influenciados pelo sucesso dos bolchevistas na Rússia, os
espartaquistas tentaram estabelecer, na Alemanha, uma
ditadura do proletariado. O movimento fracassou,
entretanto, pois os menos extremistas, os social-
democratas, havendo obtido o apoio de elementos de classe
burguesa e auxiliados pelo que restou das forças armadas,
rapidamente esmagaram a revolta.

Após a morte dos líderes espartaquistas, Karl Liebknecht e


Rosa de Luxemburgo — nas mãos de Noske, socialista de
direita que, em 1919, era o Ministro do Interior, o
movimento declinou, já sem ímpeto e falho de orientação.
Apesar disso, surgiu, pouco depois, das cinzas da
agremiação extinta, um poderoso Partido Comunista
Alemão. Embora a tentativa espartaquista houvesse sido
muito séria, e pudesse mesmo ter sido vitoriosa, caso mais
bem organizada, mesmo assim os comunistas alemães, nos
dezoito meses que se seguiram, fizeram sucessivos e
inúteis esforços no sentido de persuadir o proletariado a
tomar, pela força, o poder. Essas tentativas não lograram
êxito porque, embora fosse respeitável o prestígio de que o
movimento desfrutava, essa situação foi inteiramente
anulada pela descoordenação de seus levantes cheios de
violência, os quais proporcionaram ao governo razões justas
para a supressão do movimento, o que se realizou sem
qualquer derramamento de sangue.

O próprio governo, entretanto, enfrentava dificuldades


naquela época, embora de outra natureza. Quando lhe
foram apresentados os termos do Tratado de Versalhes, os
democratas se recusaram a assiná-lo e o Gabinete
renunciou. Os socialistas e o Partido Romano Católico de
Centro puderam então formar uma coalizão e, assim, o
socialista Müller e Bell, do Partido Romano Católico do
Centro, assinaram o referido tratado.

A Assembléia Nacional que, desde as eleições da


Constituinte em 1919, vinha-se reunindo no teatro em
Weimar, transferiu-se, então, para Berlim, e os democratas
tornaram a se aliar ao governo. Durante os nove meses
seguintes, respirou-se um clima de relativa paz no país, só
perturbado por uma tentativa de tomada de Berlim, levada
a efeito, no dia 13 de março de 1920, por forças armadas
irregulares. Esse assalto ficou conhecido como o putsch de
Kapp. Os membros do Gabinete fugiram para Stuttgart e
dali conseguiram fazer frustar-se o atentado reacionário,
proclamando uma greve geral. Seguiu-se uma revolta
comunista no Ruhr, e por que, para sufocá-la, as forças
alemãs tecnicamente iriam violar as cláusulas do armistício,
tropas francesas logo ocuparam Francforte. Esse foi o último
e sério levante verificado naquele período, muito embora a
vida do país continuasse a ser ainda pontilhada, por algum
tempo ainda, de frequentes agitações industriais que,
muitas vezes, chegaram à violência.

Em face desse ambiente de inquietação geral, não seria de


admirar que os líderes soviéticos, certos de que a revolução
mundial estava prestes a estourar, julgassem a Alemanha
um local de especial atração para o estabelecimento, em
seu território, de um posto avançado revolucionário. Dessa
base, dentro das fronteiras alemãs, os líderes vermelhos
julgavam que poderiam planejar suas atividades
subversivas e dirigir sua espionagem mais diretamente
contra a Europa Ocidental e de modo mais eficaz do que
conseguiriam fazê-lo da longínqua Moscou. No último
capítulo, referimo-nos ao fato de como o Centro controlava,
de Berlim, a espionagem na França. A França, porém, não
deixava de ficar em plano secundário quando se comparava
o que ali fora feito com o que se operou na própria
Alemanha, pois, embora àquele país fosse, na época, a
potência líder da Europa, a Alemanha, contudo, apresentava
possibilidades diferentes e mais sedutoras — possibilidades
nas quais a União Soviética, fazendo desesperados esforços
para instituir uma fase industrial, estava mais
egoisticamente interessada.

Os objetivos russos na Alemanha, portanto, tinham dupla


finalidade: fazer o que lhe fosse possível para estabelecer
ali um estado comunista e obter, por outro lado, qualquer
gênero de informação sobre os empreendimentos
industriais, através dos quais os técnicos alemães
procuravam reconstruir o seu desmantelado país. Foi para
levar avante esses objetivos, e como medida temporária
para conseguir um amigo num mundo hostil, que a Rússia,
em 1920, sugeriu o reatamento de suas relações
diplomáticas com a Alemanha, resultando daí, dois anos
mais tarde, o Tratado de Rapallo. Esses dois acontecimentos
iriam tornar possíveis os extraordinários sucessos que a
espionagem soviética obteve na Alemanha, e que se
prolongaram até o advento do hitlerismo. Sem esses
acontecimentos, o êxito obtido pela Rússia não revelaria
nem a metade da dimensão que realmente teve.

O período em que a espionagem atingiu a sua maior


intensidade pode ser estabelecido entre os anos de 1920 e
1925. Talvez tenha sido uma coincidência o fato de que,
justamente nessa fase, os métodos e a organização da
espionagem soviética deixariam seu estágio de
amadorismo, para se expandir e florescer em padrões
altamente profissionais e técnicos. Já que a intenção do
comando soviético era desencadear, o quanto antes, a
revolução mundial, apoiando-se na sólida base de uma
Alemanha comunista, a GRU — a agência militar de
Inteligência — revelou-se, nesse país, muito mais ativa do
que em qualquer outra parte da Europa.

A espionagem militar tinha duas linhas de atividades, uma


das quais não podia, de fato, ser classificada como de
espionagem. Tratava-se do plano russo de organizar um
novo exército alemão. Antigos oficiais deveriam ser
conquistados pelos soviéticos e, sob a orientação do golem
de Moscou, iriam formar, então, o núcleo de uma poderosa
organização militar. A Alemanha foi dividida em seis
distritos militares, cada um deles sob o controle de um
comunista alemão, assessorado por um conselheiro russo,
designado pelo Centro. A idéia da organização desses
distritos era, justamente, a de constituir uma força militar
subterrânea, a qual, quando estivesse completamente
estruturada, poderia emergir, juntar-se aos russos, impor
um regime comunista à Alemanha e, então, enfrentar o
resto da Europa. Tratava-se de um plano bem urdido e
admiravelmente concebido, mas que fracassou em outubro
de 1923, quando as greves e os levantes ocorridos nesse
mês encontraram as forças alemãs completamente leais a
seu governo. Procurando reduzir suas perdas, os russos
reconsideraram seu critério na maneira de realizar a
espionagem militar e, prontamente, instituíram uma nova
agência, com instruções tanto para colher informações
militares propriamente ditas como para operar nas linhas
normais da espionagem.
Durante os poucos anos que se seguiram à adoção dessa
diretriz, esse plano foi seguido à risca e, embora seu êxito
inicial fosse de pouca monta — exceto no que se referia ao
volume de informações obtidas —, os dois últimos anos
anteriores ao advento do nazismo trouxeram-lhe resultados
compensadores. Como havia acontecido na França, também
a indústria de aviões, na Alemanha, constituía o alvo de
maior interesse, do ponto-de-vista militar, para a União
Soviética, já que, nesse campo, vinham-se verificando, com
frequência, surpreendentes descobertas.

Para preparar um esforço concentrado nesse setor, um


preeminente engenheiro soviético, Alexandrovski, foi
enviado à Alemanha em 1927. Tinha por missão procurar
colher todo e qualquer gênero de informação sobre a
engenharia aeronáutica, tal como ela vinha sendo levada a
efeito na Alemanha. Mesmo antes de desembarcar em solo
alemão, esse emissário russo tivera a oportunidade de
entrar em contato com aquela indústria, através de Eduard
Ludwig, um jovem técnico em aviação que, em 1924,
trabalhara no escritório da Junkers, em Moscou. Durante
essa sua permanência na capital soviética, e que se
prolongou por cerca de um ano, fora abordado por
elementos da Inteligência soviética, que lhe prometeram
animadora recompensa, se, quando de sua volta à
Alemanha, viesse a cooperar com os russos. Ludwig não
hesitara em concordar. Assim, ao regressar à pátria em
1925, deixou a Junkers e empregou-se na Dornier, onde
permaneceu o tempo justamente necessário para se
informar sobre o que ali estava acontecendo e inteirar-se
dos planos em elaboração. Feito isso, obteve um posto no
Instituto de Pesquisas Aeronáuticas em Berlim. No ano de
1927, já sabia tudo o que desejava saber sobre a indústria
alemã de fabricação de aviões e, quando Alexandrovski
chegou a Berlim, encontrava-se preparado para lhe fornecer
todas as informações.
Infeliz ou felizmente, conforme o lado em que se coloque o
leitor, essa cooperação não durou muito. O intermediário
entre Alexandrovski e Ludwig era um letão de nome
Scheibe, através de quem o engenheiro russo solicitava ao
técnico alemão os documentos que deveriam ser retirados
dos arquivos do Instituto de Pesquisa Aeronáutica, relativos
aos motores de avião secretos. Ludwig retirou os
documentos e os passou a Scheibe e este, por sua vez, os
entregou a um homem chamado Ernst Huttinger para serem
fotografados. Antes, porém, que as cópias fossem tiradas,
as autoridades do Instituto deram por falta dos documentos.
As subsequentes investigações levaram a Ludwig e, em
julho de 1928, ele, Huttinger e Scheibe foram presos.
Alexandrovski, porém, conseguiu escapar.

As autoridades alemãs discriminaram entre a espionagem


militar e a espionagem industrial, sendo que os réus da
primeira classificação eram geralmente tratados com penas
severíssimas. Assim, Scheibe foi condenado a seis anos de
prisão; Ludwig, a cinco; e o fotógrafo, a três.

Alguns casos de menor importância passaram a alertar as


autoridades alemãs sobre a evidência de que os russos
estavam realizando espionagem militar em grande escala,
no interior do país. A realidade, entretanto, não deixou de
lhes criar alguns embaraços. De acordo com o plano do
governo soviético de atrair a cooperação de técnicos
estrangeiros para a organização da sua indústria, a
colaboração entre os dois países tornara-se muito estreita.
De qualquer forma, amizade não podia justificar que os
alemães abrissem mão de segredos de importância nacional
e, nessas condições, o serviço de contraespionagem
conservou-se em permanente alerta, pegando o pessoal
miúdo, pelo período de um ou de dois anos, na expectativa
de que um fato de relevância ocorresse.
O segundo grande golpe, sofrido pelos soviéticos, teve lugar
em 1931, em face da deserção do escritor comunista Hans
Schirmer.

Em 1928, os alemães assentaram a quilha do primeiro


cruzador a ser construído de acordo com as cláusulas do
Tratado de Versalhes. Uma vez que sua tonelagem deveria
ser limitada, os desenhistas navais consumiram muitos anos
de estudo, tentando criar um tipo de navio que, deslocando
reduzido peso, compensasse essa limitação, através da
adoção dos mais modernos requisitos técnicos. O cruzador
era, obviamente, um alvo certo para a espionagem soviética
e, logo na primavera de 1929, um pequeno núcleo de
agentes russos foi desmascarado.

No ano seguinte, a contraespionagem alemã nada


conseguiu descobrir, e seria bem possível que assim
continuasse a acontecer, não fosse o caso criado por um
indivíduo chamado Hans Schirmer. Em fevereiro de 1930,
Schirmer, tão imprudentemente como poderia sê-lo,
escreveu uma carta para O Chefe da Divisão de Espionagem
do Centro do Partido Comunista de Hamburgo, na qual,
declarando-se antigo operário das docas daquela cidade,
afirmava estar em condições de fornecer informações de
interesse, que poderia obter através de contatos de que,
naquelas docas ainda dispunha.

Estranhamente, Schirmer recebera uma resposta,


solicitando maiores detalhes sobre o que poderia informar,
antes que um contato direto fosse efetivado. Rejeitou a
proposta, dizendo que só forneceria informações
pessoalmente. Diante dessa recusa, foi combinado que ele
deveria encontrar-se com um homem chamado Herbert
Sanger.
Sanger era o pseudônimo de Lother Hoffmann, um antigo
agente russo, que, quando os alemães prenderam os
integrantes da primeira célula, fora mandado para
Hamburgo, com a incumbência de instalar ali outro núcleo
revolucionário. Tratava-se de um espião profissional e,
conquanto isso conte para se compreender a impunidade do
seu grupo pelo período de dezoito meses, esse fato faz com
que se torne difícil compreender, por outro lado, as razões
que o levaram a marcar àquele encontro com Schirmer.

Nessas entrevista, Hoffmann declarara a Schirmer que


“eles” já possuíam bons contatos nos estaleiros, embora
pudessem interessar-se por informações sobre as
tendências políticas dos trabalhadores e dos oficiais. Ao se
encerrar a palestra, nada havia ficado combinado entre os
dois, embora Hoffmann houvesse dado a Schirmer um
endereço para o qual poderia escrever, evitando-se, assim,
o perigoso processo de que haviam usado, encontrando-se
na rua. Meses se passaram então, e Schirmer não tivera
mais quaisquer notícias de Hoffmann. Esse desinteresse
parece que desagradou ao missivista, que, irritando-se,
dirigiu-se, em outubro de 1930, à contraespionagem naval,
denunciando seu contato com Hoffmann. Colocou-se,
igualmente, à disposição das autoridades para cooperar
com elas no sentido de desmascarar Hoffmann, o que foi
aceito.

Seguindo instruções que lhe foram dadas pelo serviço de


contraespionagem, Schirmer escreveu a Hoffmann,
informando-o de que estava de posse de documentos de
grande importância. Hoffmann mordeu a isca e, nos meses
que logo se seguiram, passou a se encontrar com Schirmer
para receber os falsos documentos, que lhe eram fornecidos
pelo serviço de contraespionagem.
Nesse ínterim, a contraespionagem conseguira desmascarar
as atividades de Hoffmann, identificando seus diversos
agentes e, em maio de 1931, todo o lote de conspiradores
foi preso. Esse sucesso, entretanto, chegou tarde demais
para reparar o mal que a rede já causara. Nos dois anos em
que ela estivera em atividade, todos os detalhes do novo
cruzador alemão haviam sido passados para os russos.

Entre os agentes que mais concorreram para o êxito do


GRU, na Alemanha, devem ser incluídas as filhas do General
Kurt von Hammerstein, um dos representantes da hierarquia
militar alemã, que, em 1930, fora nomeado chefe do
Oberkommando des Heeres (Alto Comando das Forças
Armadas). Nessa época, larga percentagem do corpo de
oficiais alemães era favorável à colaboração militar com a
Rússia e, entre eles, se encontrava justamente o referido
General Hammerstein, que realizou muitas viagens a
Moscou, para se entrevistar com os líderes soviéticos.

Hammerstein tinha duas filhas que possuíam uma visão


política bem mais avançada do que a sua, a de um militar
conservador. Naturalmente, a tendência política dessas
moças era conhecida nos círculos da Inteligência soviética,
e Werner Hirsch, editor do jornal A Bandeira Vermelha,
órgão do Partido Comunista Alemão, foi designado para se
aproximar delas e procurar conhecê-las bem. Se, através
desses contatos, julgasse que eram de fácil receptividade,
deveria doutriná-las e alistá-las como agentes.

Hirsch obteve tamanho êxito no desempenho de sua missão


que, num espaço de tempo relativamente reduzido, as duas
moças já haviam ingressado no GRU, fornecendo aos seus
agentes todos os documentos militares de valor que o pai
trazia consigo para casa. Ocuparam-se elas nessas
atividades por vários anos e, na opinião de elementos dos
círculos soviéticos, “estavam classificadas entre os
melhores agentes que operavam junto ao Exército alemão”.

Embora a espionagem militar soviética se tivesse iniciado


com grandes esperanças na Alemanha, e conquanto
houvesse obtido assinalado êxito no recolhimento de
informações úteis, os esforços requeridos para a
consecução desses objetivos foram relativamente pobres
em relação aos que teve de fazer para conseguir alguns
resultados na coleta de segredos industriais. Neste terreno,
sua base de operações fora instalada na Delegação
Soviética de Comércio, a Handelsvertretung, que possuía
seu quartel-general na Lindenstrasse, em Berlim.

Sempre que a União Soviética estabelece relações


diplomáticas com um país, julga da maior importância —
acima, mesmo, da instalação de sua embaixada — a criação
imediata de uma organização permanente de comércio. A
Handelsvertretung de Berlim era uma réplica da Arcos, que
funcionava em Londres, e da Amtorg, que agia nos Estados
Unidos. Dentro de sua função legal, essas delegações de
comércio eram da maior relevância para a União Soviética,
mas essa situação variava de acordo com o entusiasmo
demonstrado pelos líderes políticos do país em que elas
eram instaladas e com o grau de interesse do governo russo
nas indústrias do mesmo país. Na Grã-Bretanha, em meados
da década de vinte, o entusiasmo por essas relações
comerciais não era muito grande, e a Arcos não chegara a
ser uma instituição de importância. Na Alemanha,
entretanto, onde o retorno à normalidade repousava na
reabilitação de sua indústria destruída pela guerra, e,
nessas condições, o incremento de suas exportações para
qualquer país apresentava-se como um fator essencial, a
Handelsvertretung já desempenhava um papel de
incontrastável relevo. Em face dessa situação, os alemães
não desconfiaram — como os ingleses o haviam feito em
relação à Arcos — das intenções do governo soviético, ao
abarrotar os escritórios de sua delegação, que funcionava
na Lindenstrasse, de numeroso corpo de funcionários. Esse
fato, aliado à maneira branda com que oficialmente a
espionagem industrial era encarada, foi de enorme ajuda
para a espionagem clandestina que a Handelsvertretung
exercia dentro da indústria alemã.

Outro fator que muito auxiliou a espionagem industrial na


Alemanha foi a boa vontade demonstrada pelo Partido
Comunista Alemão em cooperar. Contrariamente ao que fez
o Partido Comunista Francês, seu homônimo alemão estava
preparado, e mesmo ansioso, para fornecer pessoal para os
serviços da espionagem soviética que operavam no país. E,
com efeito, os agentes, que o Partido forneceu,
representavam o que havia de melhor em suas fileiras.
Possuíam a tradicional eficiência alemã e eram capazes de
conduzir uma operação secreta com o maior êxito possível.
Entre os principais agentes que trabalhavam naquele
período, devem ser citados Hans Kippenburger, um antigo
líder da Organização Estudantil Comunista; Leo Flieg;
Wilhelm Zaisser, que por muitos anos, desde a guerra, fora
Chefe de Polícia da Alemanha Oriental; Arthur Illner, que se
tornara famoso como sequestrador e assassino; e Ernst
Wollweber, Ministro de Segurança do Estado, na Alemanha
Oriental.

Calcula-se que cerca da metade dos secretários do Partido,


em Berlim, eram membros da organização clandestina do
Handelsvertretung, enquanto haviam sido mobilizados,
igualmente, e tendo em vista as mesmas atividades, tanto
os membros da Organização Estudantil Comunista, como os
filiados aos sindicatos da mesma ideologia. Certamente que
não havia falta de agentes em potencial para os trabalhos a
serem realizados, mas o Centro considerava tão importante
àquele tipo de espionagem que alguns dos seus melhores e
mais experimentados profissionais foram colocados em
postos fictícios na Handelsvertretung, para dirigir as
operações. A contribuição alemã para a espionagem
soviética, entre os anos de 1922 e 1933, foi enorme, e o
acervo de informações obtidas se revelou ainda maior — tão
grande e tão extenso que se torna impossível avaliar-lhe a
importância.

Baseada nas redes comunistas locais, dirigida por membros


do Partido na própria Alemanha, mas controlada por
profissionais russos de primeira classe, a espionagem
soviética, no campo industrial, de ano para ano crescia e se
expandia. Era possível que a contraespionagem estivesse a
par do que ocorria no país, mas, mesmo levando em conta
essa circunstância, embora se mantivesse em permanente
vigilância, quase nada podia fazer, já que lhe faltavam
meios e recursos para impedir o trabalho dos agentes
clandestinos. O que as forças de segurança apenas
conseguiam realizar era arranhar a superfície daquela broca
que, incessante e pertinazmente, solapava o país,
assistindo, sem poder evitá-lo, a que cada vez mais ela se
aprofundasse nos filões das conquistas industriais alemãs e
retirasse deles o que era de interesse para o
desenvolvimento da nascente industrialização soviética.
Diante dessa realidade, algumas fabulosas empresas
alemãs, como, por exemplo, a I. G. Farben, a fim de aliviar
as despesas do governo e, ao mesmo tempo, para se
protegerem, organizaram seus próprios serviços de
segurança. Essa providência sempre ajudou, mas os reflexos
que teve sobre o esforço e as realizações da espionagem
soviética escassamente foram notados.

Entre 1924 e 1929, verificou-se um fluxo quase constante


de casos de espionagem industrial — roubo ou entrega a
países estrangeiros de segredos industriais ou de outra
natureza — em tramitação nos tribunais alemães. A
condescendente atitude oficial em relação a este tipo de
espionagem, aliada à política governamental de
colaboração com a Rússia, resultou na imposição de
sentenças tão inócuas que tanto a União Soviética como o
Partido Comunista Alemão sentiram-se encorajados a
prosseguir em seu trabalho. Assim é que, em 1928, a
atividade dos espiões assumiu aspectos alarmantes e
prosseguiu nesse mesmo ritmo acelerado até o início da era
nazista, em 1933. Durante esse período, ela assumiu tais
proporções que o governo alemão se viu na contingência de
adotar uma atitude mais severa.

Sob o regime czarista, a grande empresa alemã de produtos


químicos Solvay, situada em Bernburg, próximo de Dessau,
mantinha uma filial em Moscou. Com a ascensão dos
bolchevistas, essa sucursal foi desapropriada e
nacionalizada e, em 1928, teve sua reconstrução
programada de acordo com as exigências do primeiro Plano
Quinquenal. Como o governo soviético se recusara a
atender às reclamações de indenização, formuladas pela
matriz, a única maneira que os russos acharam para obter o
know-how, através do qual poderiam atualizar e fazer
funcionar aquele conjunto industrial, foi tentar seduzir
técnicos alemães, altamente especializados, e levá-los para
a Rússia, a fim de que lhes prestassem assistência.

Com esse intento, instruíram um de seus agentes, um russo


chamado Luri, para que se aproximasse de Meyer, um
químico experiente, que conhecia todos os novos segredos
da Solvay, e lhe oferecesse o posto de gerente-geral da
fábrica de Moscou. O salário que lhe reservaram era
excepcionalmente elevado. Meyer aceitou a oferta, mas
necessitava de maiores conhecimentos do que aqueles que
já possuía e, antes de viajar para a Rússia, tentou obtê-los
de antigos colegas. Um desses compreendeu o intuito que
ele secretamente alimentava, e o denunciou à polícia.
Meyer foi preso, julgado e sentenciado a quatro meses de
prisão.

Nos últimos meses de 1930, um oficial de segurança da


Krupp, em Magdeburg, deteve um dos principais
desenhistas da fábrica, chamado Kallenbach, quando
deixava, certo dia, o escritório, e exigiu que sua pasta fosse
examinada. Nessa pasta foram encontrados detalhes de
patentes secretas e desenhos de novas máquinas.
Subsequentes investigações revelaram que Kallenbach e
mais dois outros desenhistas estavam agindo sob instruções
de seu antigo chefe, um engenheiro de nome Russki, o qual,
por sua vez, fora contratado para trabalhar na Rússia — e
sua partida já estava marcada. Kallenbach foi condenado a
quatro meses de prisão, e seus comparsas estiveram
detidos por algumas semanas.

Poucas semanas mais tarde, um engenheiro russo, Feodor


Volodichev, admitido como empregado da Siemens,
auxiliado por dois jovens assistentes alemães, foi apanhado
quando remetia para os escritórios da Handelsvertretung
especificações sobre as últimas invenções relativas à
telegrafia, a microfones e a teletipos. Volodichev foi
condenado a quarenta dias de prisão.

Assim prosseguiu o serviço de espionagem até 1931,


quando as autoridades alemãs decidiram que não mais
podiam mostrar-se indiferentes às atividades clandestinas
da Handelsvertretung, à qual acusaram abertamente da
prática de atos ilegais.

O caso que mais irritou a opinião pública, e obrigou o


governo a tomar conhecimento dele, foi o que envolveu um
engenheiro austríaco de nome Lippner. Lippner fora, de
forma perfeitamente legal, contratado pela
Handelsvertretung, como conselheiro de petróleo, em que
era perito. Mal começara a desempenhar suas funções na
delegação quando, certo dia, foi abordado por um homem
chamado Glebov, pertencente ao Centro, que lhe solicitou
fosse obter da I. G. Farben, em Friedrichshafen, determinada
informação secreta, relacionada com a exploração do
petróleo. Lippner recusou-se, demitiu-se imediatamente de
seu emprego e processou a delegação, para receber a soma
de 9 000 marcos, pela qual haviam sido contratados seus
serviços. A Handelsvertretung depôs em juízo que
desconhecia quem fosse aquele Glebov, declarando, ainda,
que não seria válido qualquer documento que por ele
estivesse assinado. Glebov não foi encontrado. A imprensa
alemã reagiu com certa violência e o governo não pôde
mais se dar ao luxo de encolher os ombros e continuar não
tomando conhecimento de casos daquela natureza.

Na primavera de 1931, ocorreu um incidente que deu então


ao governo alemão a oportunidade de demonstrar que não
poderia tolerar, por mais tempo, aquela ultrajante, e quase
aberta, espionagem. A rede que estava envolvida no caso
era relativamente grande. Tratava-se do Sindicato
Revolucionário da Oposição — uma extensa organização
comunista —, composto de cerca de duas dúzias de
agentes, todos comunistas alemães, e dirigido por Erich
Steffen. Tanto Steffen como sua mulher eram empregados
da Handelsvertretung. O objetivo que tinham em mira: a
obtenção das últimas descobertas químicas da empresa I.
G. Farben, sendo que numerosos elementos da rede eram
engenheiros, químicos e operários que trabalhavam para
esse grande conjunto industrial. O chefe da célula, em
Ludwigshafen, era um homem chamado Karl Dienstbach,
que, anteriormente, fora empregado da Farben, cujos
laboratórios estavam instalados naquela cidade. Havia sido
despedido da fábrica, mas, apesar disso, conseguira manter
relações íntimas com elementos que trabalhavam em todas
as indústrias situadas nos maiores centros industriais da
região.

Cautelosos, em face das lições aprendidas na França, ao


invés de apresentar longos questionários aos seus contatos,
os soviéticos passaram a adotar a política de lhes extrair as
informações, pouco a pouco. Entretanto, o grande número
de agentes que trabalhavam na rede constituía um perigo,
já que cada um deles tentava obter informações de vários
contatos e, nessas condições, a quantidade de pessoas
envolvidas era bem mais elevada do que o aconselhado
pelas boas normas de segurança.

Mais uma vez, o fracasso de uma rede soviética foi


motivado por ausência de capacidade de julgamento, por
parte dos seus chefes, do caráter de um dos agentes que
integravam a organização. Karl Kraft fora solicitado a
fornecer certa fórmula secreta, relacionada com a amônia e
o ácido carbólico, e imediatamente participou aos seus
superiores a proposta que lhe havia sido feita. Instruíram-
no, então, para que mantivesse contato com o agente
Heinrich Schmid, enquanto as investigações eram levadas a
efeito. A apuração do que ocorria levou cerca de dez
semanas, com os seguintes resultados: a) a rede possuía
ramificações extensas; b) suficientes provas foram obtidas
para que a contraespionagem pudesse prender Steffen,
Dienstbach e grande número de integrantes da rede. Numa
busca, realizada na residência de Steffen, foram
encontradas fórmulas, listas dos nomes de seus agentes e
seus endereços e, como resultado dessa proveitosa
diligência, somente alguns poucos membros da rede
puderam escapar.

Quando o caso foi oficialmente anunciado, ficou claramente


evidenciado que o governo de Berlim, já desde algum
tempo, estava a par do fato de que o Partido Comunista
Alemão vinha-se empenhando em obter segredos
industriais, utilizando-se, para isso, da colaboração de
alguns técnicos, aos quais eram feitas tentadoras ofertas de
empregos na Rússia. Embora o comunicado oficial não se
houvesse referido abertamente ao papel representado pelos
russos nesses acontecimentos, não deixara de ficar
implícito, no texto, que as autoridades germânicas não
ignoravam, igualmente, a atuação que nos mesmos eles
tiveram.

Pouco tempo após sua prisão, Dienstbach confessou tudo


quanto sabia, mas nada informou sobre a participação dos
russos na questão. Quando tentaram descobrir quem estava
por trás de Steffen, ficou decidido que uma busca seria
realizada nos escritórios da Handelsvertretung. O Ministério
do Exterior, entretanto, não permitiu que essa drástica
providência fosse tomada, sob a alegação de que a
delegação soviética possuía imunidades extraterritoriais.
Como era de se esperar, a Handelsvertretung apressou-se
em oficialmente negar que, de qualquer forma, pudesse
estar implicada no caso.

Na realidade, o responsável pelas atividades dessa rede era


um cidadão russo, conhecido só por Alexandre. Tratava-se
de uma alta patente da espionagem russa, embora
figurasse, na lista da representação diplomática soviética,
como simples funcionário da embaixada. Por intermédio da
organização Defesa do Trabalho Internacional, Alexandre se
encarregou de tentar inocentar os acusados. O advogado
por ele escolhido tinha não só a função de representar os
prisioneiros, mas também, a de visitar regularmente os
demais contatos, que ainda se achavam em liberdade, a fim
de se assegurar de que não cometessem qualquer
indiscrição.
Esta última tarefa, ele a desempenhou com pleno êxito. No
que diz respeito à sua atuação no tribunal, porém, ela se
revelou inferior ao que Alexandre esperava, já que as provas
coligidas contra os acusados eram indiscutíveis e
esmagadoras.

Em face, entretanto, do que dispunham as leis relativas a


espionagem industrial, as sentenças tiveram de ser
brandas. Steffen, Schmid e Dienstbach só foram
condenados a dez meses de prisão, e a sentença dos
demais acusados não ultrapassou o período de quatro
meses.

Essas sentenças tiveram o efeito de levantar tal clamor


público que, em março de 1932, foi baixado um decreto
presidencial, tornando mais rigorosas as penas para os
crimes de revelação de segredos industriais, as quais
passaram a ser de três anos de prisão, caso esses segredos
fossem entregues a firmas competidoras; e de cinco anos,
se revelados a representantes de firma ou de governo
estrangeiros.

Por volta de março de 1932, verificaram-se sintomas de


alterações no panorama político alemão. De semana para
semana, os nazistas se mostravam mais ativos, e um
crescente apoio popular lhes reforçava a campanha pela
posse do poder. Se os governos ocidentais não davam
mostras de estar pressentindo a próxima transformação, já
não acontecia o mesmo com os russos, que, em face do que
ocorria, começaram a se preparar para enfrentar a nova
realidade. Através do Comintern, todos os comunistas
alemães de certa projeção receberam instruções para se
prepararem para um mergulho na clandestinidade, nela
permanecendo por um período de tempo razoavelmente
longo. As agências soviéticas, por sua vez, receberam
ordem para se conservarem em estado de alerta,
destruindo toda a documentação que não fosse julgada
imprescindível e enviando para Moscou a considerada
necessária.

Essas providências mal haviam sido tomadas, e eis que, em


janeiro de 1933, Hitler assume o poder. No governo, uma
das suas primeiras preocupações foi a de extinguir o Partido
Comunista, com uma celeridade e uma rudeza raramente
antes vistas na História. Embora os líderes, no momento, se
achassem a salvo, por se encontrarem em seus esconderijos
e acobertados por falsas identidades, o Partido, como
expressão de um movimento ideológico, em poucos meses,
praticamente deixara de existir. Conquanto muitos dos
colaboradores da espionagem russa pudessem ainda andar
à solta, era por demais perigosa para eles uma retomada de
suas antigas atividades e, de qualquer maneira, se o
tentassem, nada conseguiriam fazer por falta de auxiliares e
de contatos. Por outro lado, se bem que as precauções
tomadas, com a devida antecedência, houvessem evitado
que as agências russas fossem desmascaradas, também
elas passaram a se sentir tolhidas, em face da aterradora
atividade da nova força de segurança criada pelos nazistas,
a Geheimestaatspolizei, ou seja, a Gestapo. Os líderes
clandestinos, por seu lado, não estariam em segurança por
muito tempo. Sob tortura e ameaça de morte, muitos dos
que conheciam os esconderijos daqueles líderes logo
revelaram o que sabiam, e os que escaparam de ser presos
foram compelidos a salvar suas vidas, fugindo para o
exterior.

Algumas das agências russas foram varejadas pela Gestapo,


mas nada ali foi encontrado que as comprometesse, no que
diz respeito a espionagem. Essa violência provocou
protestos da Rússia, com ameaças de represálias nas
relações comerciais, mas a Gestapo não se impressionou
com a reação. Ela tateava o caminho que trilhava, pois, sem
experiência em assuntos de espionagem, procurava
aprender como os cordéis deviam ser manipulados. Bons
alunos, cedo seus agentes agiam com desenvoltura,
infiltrando-se mesmo nos círculos mais fechados das
agências soviéticas.

Em face dessa situação, a espionagem soviética, que


sempre se apoiara na extensa cooperação do Partido
Comunista Alemão — sabido que é que o sucesso russo,
nesse terreno, sempre foi devido, em qualquer país, à
eficiente colaboração dessas agremiações locais —, decidiu
que deveria sustar a ampla atividade que desde muito vinha
desenvolvendo na Alemanha. A reorganização — como essa
nova tática foi denominada — só deixou uma pequena rede
funcionando na Alemanha, e mesmo esta foi reduzida mais
tarde, quando Stálin efetuou os expurgos de 1936 e 1937,
ocasião em que foram afastados do serviço ativo os mais
capazes agentes profissionais russos.

A espionagem levada a efeito na Alemanha, entre os anos


de 1933 e 1939, não passava, pois, de uma fração da que
fora realizada na década anterior. Os agentes que operavam
dentro do país eram dirigidos de fora e não tinham contato
algum com o resto dos comunistas ainda existentes em
território alemão. Tal atitude acabou por introduzir no
sistema russo uma nova concepção das atividades da
espionagem.

Destacando-se entre os líderes desse novo estilo de


atividade subterrânea na Alemanha, surgiu Ernst Wollweber,
que granjeara grande reputação em Moscou, pela
capacidade e pela astúcia demonstradas no desempenho
das funções de chefe de atividades subterrâneas, desde o
advento do nazismo. Sob o disfarce de membro do Bureau
do Comintern para a Europa Ocidental, localizado em
Copenhague, fora encarregado de organizar uma rede, que
deveria recrutar seus integrantes principalmente nos
Sindicatos de Marítimos. Wollweber selecionou entre trinta e
quarenta homens — a maioria, de origem escandinava —,
muito embora entre eles houvesse incluído também alguns
comunistas alemães. As funções que deveriam
desempenhar eram menos de espionagem que de
sabotagem — “diversionismo”, no jargão comunista —, e
seus alvos seriam os navios e quaisquer fábricas, em todos
os países, fora da Alemanha, que estivessem ajudando os
nazistas a se rearmarem. Exemplo: as estações de força que
atendiam aos campos de minério de ferro da Suécia.

Essa rede conseguiu sobreviver, apesar das diversas


incursões realizadas pela contraespionagem, até 1941,
quando Wollweber e seus associados suecos foram presos,
recebendo ele a sentença de três anos de prisão. Por essa
época, entretanto, a guerra não só havia dado origem a
outras redes de grande atividade, mas também projetado
um ou dois agentes, os quais, agindo isoladamente, iriam
adquirir tal reputação que, cedo, figurariam entre os mais
brilhantes ases da espionagem internacional.
3. Grã-Bretanha

Provavelmente, pouco importava à Inglaterra que, ao ver


dos soviéticos ou na sua própria opinião, a França pudesse
ser considerada a principal potência européia, nos primeiros
anos do pós-guerra, ou seja, na década dos vinte. Já
esclarecemos a extensão da espionagem russa no solo
francês, e resta pouca dúvida de que, caso Moscou achasse
conveniente realizar, também na Grã-Bretanha, um serviço
de espia em escala semelhante, dadas as conquistas
industriais britânicas, ela não estaria, de fato, livre de tal
espécie de conspiração interna. Embora isso não tivesse
ocorrido, nem assim os ingleses puderam escapar ao
interesse da espionagem russa.

Em 1924, a hostilidade, demonstrada pela Inglaterra


capitalista em relação à Rússia comunista já havia sido
reduzida, e, quando Lênin anunciou que desejava a
cooperação dos países ocidentais, no campo industrial, de
forma a poder reorganizar sua própria indústria, a Grã-
Bretanha foi a primeira a lhe estender a mão. Assim, no dia
2 de fevereiro de 1924, as relações diplomáticas entre os
dois países foram estabelecidas. *

A cooperação industrial entre os dois governos importaria,


inevitavelmente, na instalação de uma delegação de
comércio em Londres. Conhecida na Inglaterra como Arcos
Ltd., ela alugou dois grandes blocos de escritórios em
Moorgate, na City, e, assim instalada, deu início aos seus
tradicionais dois tipos de atividade: o legal, representado
por transações comerciais, e o ilegal, através de incursões
clandestinas.

Na Inglaterra, a espionagem soviética sempre esteve em


desvantagem. Como já vimos, no período inicial das suas
atividades, a organização soviética sempre teve por base a
cooperação dos Partidos Comunistas locais, e os êxitos que
obtinha dependiam, inteiramente, da força e do número de
adeptos dessas agremiações. Na Grã-Bretanha, o Partido
Comunista, em comparação com o da França ou o da
Alemanha, não passava de uma filial da Internacional. Os
socialistas britânicos tanto se projetaram, desde o fim da
guerra, e seus pontos-de-vista eram considerados tão
esquerdistas, no ambiente conservador da Inglaterra, que
pareciam satisfazer plenamente às aspirações políticas dos
trabalhadores. Desde o início, os ingleses estiveram
protegidos, portanto, contra qualquer espionagem,
verdadeiramente intensa, que os soviéticos contra eles
pudessem ter desejado lançar. Mesmo assim, porém, não se
haveriam de conservar de todo imunes a esse tipo de
atividade.

Por um par de anos, a Arcos operou em suas duas esferas


de ação, sem ser perturbada por qualquer oposição, da
parte das autoridades britânicas, tendo em vista o que
naquela ocasião vinha ocorrendo na França. Parecia, de fato,
que o inglês, simplório, honesto e confiante, não alimentava
qualquer suspeita de que a Arcos não era, absolutamente, o
que aparentava ser, e que aquele estado de coisas poderia
ter, assim, continuado, se o governo soviético, ou melhor, o
Partido Comunista Russo, não houvesse, em 1926, cometido
um grave erro.

Durante a greve geral ocorrida naquele ano, o Partido Russo


mandou mais de um quarto de milhão de libras para que os
mineiros ingleses pudessem sustentar seu movimento. Essa
atitude provocou um profundo ressentimento no seio do
governo inglês, que o considerou imperdoável interferência
nos assuntos internos do país. O Congresso dos Sindicatos
Ingleses interpretou da mesma forma a atitude russa, e o
dinheiro foi devolvido. Winston Churchill, que era então
Ministro da Fazenda, e reconhecido antigrevista, ameaçou,
em face do acidente, romper todas as relações comerciais
com a Rússia.

Esse incidente serviu para que todo interesse se voltasse


para a Arcos, pois logo surgiu na mente das pessoas que
haviam entrado em contato com a organização que o
reduzido volume de negócios mantido pela Inglaterra com a
União Soviética não justificava a manutenção, nos
escritórios da agência, em Moorgate, de um corpo de
funcionários de mais de trezentas pessoas. Foi também
descoberto, pelo M I 5, que pelo menos um dos chefes da
delegação comercial, N. K. Jilinsky, era membro da
espionagem russa, e que o Conselheiro Comercial da
Embaixada, Igor Khopliakin, trabalhava também como
agente secreto. Em consequência de todas essas
descobertas foi que o governo britânico retirou de L. B.
Khinchuk, sucessor de Khopliakin, as imunidades
diplomáticas de que desfrutava — fato este que parece ter
preocupado, de certa forma, os chefes das agências
soviéticas na Inglaterra, pois um despacho — que, aliás,
caiu em mãos do M I 5, — do Encarregado de Negócios para
o Subcomissário Soviético para os Assuntos Estrangeiros,
Litvinov, pedia autorização para suspender,
temporariamente, a remessa para Moscou de todos os
documentos relacionados com espionagem.

Verificou-se, entretanto, outro incidente,


independentemente das investigações realizadas pelo MI 5,
nos negócios da Arcos, que inspirou esse pedido. Um jovem
técnico da Real Força Aérea fora surpreendido roubando
desenhos e cálculos secretos, descobrindo-se, depois, que
tinha a intenção de enviá-los à Arcos, como, aliás, antes já
tinha feito.

Não muito depois desse inquietante episódio, ocorreu ainda


outro, envolvendo, mais uma vez, o setor aeronáutico —
aviões, armas e particularmente um novo tipo de
monoplano, todos ainda em lista secreta —, bem como uma
metralhadora fabricada pela Vickers. O indivíduo envolvido
nesse incidente era um inglês que, aparentemente, se
tornara espião mercenário e procurava vender suas
informações a quem mais lhe pagasse, acabando por se ver
integrado nas fileiras da organização soviética na
Alemanha.

Isso aconteceu em 1926. Em princípios de 1927, foi notada


a falta de um documento secreto do governo, referente a
planos estratégicos para bombardeios aéreos. A Divisão
Especial e o M I 5 comunicaram ao governo estarem
convencidos de que esse documento havia sido remetido,
igualmente, para a Arcos, recomendando assim, fosse feita
uma diligência nos escritórios da organização, em Moorgate.
Após longas discussões sobre possíveis implicações políticas
dessa providência, o primeiro-ministro Stanley Baldwin
autorizou que se realizasse a investigação.

Na madrugada de 12 de maio, a polícia da City e a Polícia


Metropolitana cercaram os escritórios da agência, em
Moorgate, e os policiais solicitaram autorização para
penetrar. Quando chegaram ao porão do edifício,
encontraram ali dois homens e uma mulher queimando
papéis. Um deles era o cifrador-chefe da embaixada
soviética, Anton Miller, e o outro, um funcionário da Arcos,
chamado Robert Kopling.
Miller lutou para não ser preso, mas foi subjugado e, quando
o revistaram, encontraram, em seu poder, uma lista dos
esconderijos dos agentes e das “caixas-postais”, relativas
não só à Europa, como também às Américas do Norte e do
Sul, e um bom número de países do Commonwealth. O
documento justificou a apreensão, pela Divisão Especial e
pelas autoridades da contraespionagem, de toda a
documentação encontrada na agência, e um vasto acervo
de papéis foi levado para ser examinado.

Esses documentos provaram, além de qualquer dúvida, que


a Arcos vinha sendo usada para encobrir atividades de
espionagem, pois, entre os papéis ali recolhidos, foram
encontradas cópias de diversos documentos do governo
britânico e uma lista de alguns agentes russos, que vinham
agindo na Grã- Bretanha. O documento que provocou a
incursão policial, entretanto, não foi encontrado. Acreditou-
se, na ocasião, que um membro da organização tivesse
fugido com ele, através de um túnel secreto, construído
pela Arcos e só muito mais tarde descoberto.

O governo britânico não estava disposto a se mostrar


complacente, como o alemão o havia sido. Na verdade, a
revelação de que “todos os nossos centros militares e
navais, Aldershot e Plymouth em particular”, haviam sido
varejados por agentes soviéticos proporcionou às
autoridades maior estímulo no sentido de que se
mostrassem duras. Assim, as relações diplomáticas com a
União Soviética foram rompidas, a delegação comercial
suspendeu seus negócios e, por dois anos, nenhum russo
teve permissão de entrar no país.

Os três anos de atividade da Arcos representaram a única


tentativa séria, levada a efeito pelos russos, de realizar
espionagem na Inglaterra, no período anterior à Primeira
Guerra Mundial. E é possível que, após esse esforço,
houvessem chegado à conclusão de que a Grã-Bretanha, de
fato, nada de valioso lhes poderia fornecer, em matéria de
informações secretas.

* Seguiu-se a França, dois dias depois, e, imitando o gesto


dos franceses, reataram relações diplomáticas com a Rússia
a Itália, a Escandinávia, a Áustria, a Hungria e a Grécia. 
4. Os Estados Unidos

O reconhecimento diplomático da União Soviética, pelos


Estados Unidos, não foi levado a efeito senão em 1933,
quando se iniciou a primeira administração Roosevelt. Essa
circunstância não impedia, entretanto, que, muito antes
dessa época, a Rússia já houvesse estabelecido duas
organizações comerciais na América, as quais, em 1924, se
fundiram na Amtorg Trading Corporation.

A Amtorg era uma réplica da Arcos e da Handelsvertretung,


e agia como um disfarce para atividades subterrâneas nos
Estados Unidos, como suas duas irmãs vinham fazendo na
Inglaterra e na Alemanha. A espionagem na América do
Norte, entretanto, teve um desenvolvimento moroso, antes
de ser realizada em larga escala, principalmente porque —
ainda mais do que na Grã-Bretanha — o Partido Comunista
local era pequeno demais para poder fornecer os numerosos
contatos que tornassem compensador o esforço a ser feito.
Na realidade, houve mesmo uma razão adicional, no caso
da América: durante muito tempo, os comunistas norte-
americanos foram olhados com suspeição por Moscou, já
que os anos de depressão nos Estados Unidos haviam
levado para as fileiras do Partido grande número de
intelectuais, os quais emprestaram à agremiação antes um
caráter mais de arregimentação de desempregados do que
o de um movimento de verdadeiros proletários
revolucionários, o que seria mais desejável.

Esses fatores, entretanto, não impediram que alguma


espionagem fosse realizada, principalmente na área
industrial, e mesmo no terreno militar, sendo que as
características do Partido, nesse período inicial, eram as
convencionais de qualquer agremiação de espionagem do
mesmo gênero.

Entre os pioneiros da espionagem na América encontravam-


se Lydia Stahl, que já conhecemos na França, e Alfred Tilton.
Lydia era fotógrafa, e competia-lhe fotografar os
documentos obtidos por Tilton. Já as funções de Tilton
consistiam em organizar um serviço de emissários para
vender os documentos fotografados por Stahl, e para isso
recrutou marítimos comunistas. Tilton regressou a Moscou
em 1930 e Lydia foi transferida para a França em 1932.

O substituto de Tilton foi Nicholas Dozenberg, que, como


seu antecessor, era um imigrante letão. Filiara-se ao Partido
Comunista norte-americano, logo que este se organizara, e
o deixou em 1927, ao ser recrutado para o serviço de
espionagem. A principal missão de Dozenberg era a de
organizar uma empresa de filmes romeno-americana, da
qual a filial, em Bucareste, iria servir de disfarce para a
realização de espionagem naquele país. Desgraçadamente
para a Inteligência Soviética, essa empresa teve de
enfrentar sérios problemas na Romênia. Cem mil dólares
seriam necessários para manter a filial em Bucareste e,
naquela ocasião, a União Soviética não dispunha de meios
de lançar mão dessa quantia em moeda norte-americana.
Nessas condições, recorreu a um processo ilegal.
Dozenberg, encarregado da operação, falsificou, em Cuba e
no Brasil, notas de cem dólares, que logo foram passadas
nesses dois países. Em face desse êxito, recebeu instruções
para arranjar 100 000 dólares, em notas falsas, para serem
postos em circulação em Nova York.

Para ajudá-lo nesse negócio, de alguma forma perigoso,


Dozenberg procurou a cooperação de um médico russo,
Valentin Burtan, o qual embora sendo membro de uma
organização comunista anti-stalinista, era, igualmente,
amigo de um líder dos comunistas stalinistas, Jack Stachel.
Burtan tornou-se então vice-presidente da empresa romeno-
norte-americana de filmes.

Um dos pacientes de Burtan era um certo E. Dachow von


Bülow, alemão não-comunista e ex-oficial do Exército
alemão — que tentara ganhar a vida, na América do Sul,
contrabandeando armas. Burtan tinha certa ascendência
sobre von Bülow, pois, de tempos em tempos, o socorria em
suas dificuldades financeiras. Em face disso, e
prevalecendo-se desses antecedentes, obteve a cooperação
de von Bülow para a distribuição do dinheiro falso.

Von Bülow tinha um plano, tão temerário quanto fácil de ser


operado. Entre seus muitos amigos ambíguos, encontrava-
se o Ministro das Finanças da Guatemala, e estava certo de
que esse ilustre personagem, se convenientemente
recompensado, seria capaz de trocar os dólares falsos por
outros verdadeiros, por intermédio do Banco Nacional da
Guatemala.

Auspiciosamente se iniciaram, então, as negociações entre


Nova York e a Guatemala. Pouco depois, porém,
evidentemente alguma coisa errada ocorreu. A Guatemala,
subitamente silenciou e não pôde ser persuadida a falar de
novo. Esse fracasso, entretanto, não desviou von Bülow de
seu intento. Lembrou-se, então, de outro amigo, um
detetive particular de Chicago, chamado Smiley. Smiley
concordou em cooperar e, imediatamente, contratou um
grande número de distribuidores.

O negócio prosseguia, com êxito satisfatório, quando um


dos distribuidores foi preso em flagrante, por um policial de
Chicago, ao tentar passar uma nota falsa de cem dólares.
Interrogado, confessou o jogo, e o mesmo fez Smiley.
Somente o Dr. Burtan permaneceu calado.

Desde os dias do escândalo ocorrido em 1865, que


provocara a dissolução do Serviço Secreto, do qual
Lafayette Baker havia sido o chefe, a administração só
dispusera de uma pequena força secreta, vinculada ao
Departamento do Tesouro. Competia a essa força exercer
vigilância sobre possíveis moedeiros falsos, pois, desde o
início da existência da América como nação independente,
falsificação de dinheiro sempre fora considerada crime
grave. Assim aconteceu até 1934, quando o Dr. Burtan foi
levado ao tribunal, resultando desse julgamento a
condenação do médico a 15 anos de prisão e ao pagamento
de uma multa de 10 000 dólares.

Dozenberg escapara para o exterior e foi transferido para a


Romênia. Por volta de 1939, desertara, retornando à
América, onde passara algum tempo na prisão, por haver
feito falsas declarações, com o intuito de obter um
passaporte. Nessa ocasião, mudou o nome e desapareceu
no anonimato.

Em 1925-26, novo Diretor-Residente foi nomeado para os


Estados Unidos. Seu nome era Tschatzky e serviu como um
dos integrantes do quadro do pessoal da Amtorg. Chamado
de volta a Moscou em 1928, nenhum substituto lhe foi dado
até 1931, já que os russos não conseguiram descobrir um
agente adequado para o posto. O escolhido nesse ano foi
Mark Zilbert, um dos mais destacados líderes da
espionagem soviética.

Entre as tarefas de Zilbert encontrava-se a de obter


segredos navais. Seu contato para essa tarefa era um
comunista chamado Solomon Kantor, que trabalhara
anteriormente como desenhista da Arma Engineering
Corporation — firma encarregada de atender a encomendas
secretas da Marinha norte- americana. Embora já não
ocupasse uma posição que lhe permitisse obter,
pessoalmente, as informações de que Zilbert tinha
necessidade, Kantor dispunha de um contato que ainda
trabalhava para a Arma — um indivíduo chamado Wiliam
Disch — o qual, havendo manifestado desejo de cooperar,
fora entrevistado por Zilbert. Após esse primeiro encontro,
os dois passaram a se avistar com regularidade, todas as
semanas, durante os seis meses que se seguiram. Em cada
encontro, Disch entregava a Zilbert os documentos secretos
que ele desejava e, em recompensa, recebia entre cem e
duzentos dólares.

Sem que Zilbert desconfiasse, entretanto, Disch, após sua


primeira entrevista, procurara seus patrões e contara-lhes o
que estava ocorrendo. Os industriais, por sua vez, levaram o
fato ao conhecimento do Departamento de Inteligência
Naval.

Nessa época, esse Departamento, embora fosse integrado


apenas por uma dúzia, quanto muito, de agentes, aos quais
competia a missão de proteger a Marinha dos Estados
Unidos das manobras de espiões estrangeiros, já se
revelava uma organização inteiramente dedicada ao
serviço, e os seus homens eram todos altamente
capacitados. Desde a dissolução do serviço secreto de
Lafayette Baker, em 1865, após o escândalo atrás referido,
esse Departamento constituía o único serviço secreto norte-
americano em funcionamento — com exceção do Serviço
Secreto do Tesouro —, e não fora ele formado senão quando
a América entrara em guerra contra a Alemanha do Kaiser.
Nas décadas dos vinte e dos trinta, o DIN desempenhou seu
papel com admirável perfeição, numa ininterrupta batalha
contra a quase esmagadora superioridade das espionagens
japonesa e soviética. Quando o FBI extinguiu a ameaça dos
gangsters de Chicago e de outros de menor importância,
recebeu instruções para realizar, igualmente, serviço de
contraespionagem. Nessas condições, essas duas agências,
entre si, passaram a representar um formidável obstáculo
para quem quer que, secretamente, procurasse causar
danos aos Estados Unidos.

O Departamento de Inteligência Naval deu instruções a


Disch, no sentido de que mantivesse seus contatos com
Zilbert, preparou os documentos que ele devia entregar-lhe.
Todas as vezes que Disch ia a um encontro com Zilbert, era
seguido, e a entrevista não deixava de ser observada,
embora houvessem fracassado todas as tentativas de se
descobrir para quem Zilbert trabalhava.

Depois de algumas semanas, entretanto, o Departamento


teve a sua atenção despertada pela tentativa, feita por um
japonês, para penetrar na base naval de San Diego. Em face
dessa ocorrência, o caso Zilbert-Disch fora transferido para
a área de vigilância do FBI, e este logo teve uma inspiração,
no sentido de descobrir quem eram os chefes ocultos do
espião estrangeiro. Na primeira ocasião em que Disch iria
fazer a entrega de um punhado de documentos, recebeu
instruções para dizer a Zilbert que precisava de ter aqueles
papéis de volta, no período de uma duas horas. Zilbert
concordou, e os agentes do FBI então o seguiram,
constatando que, após complicado percurso, ele entrara nos
escritórios da Amtorg. Ficaram, assim, sabendo que se
tratava de um agente russo.

Até hoje, não foi explicada a razão por que os policiais não o
agarraram, mas, segundo tudo faz crer, o FBI desejava obter
provas mais tangíveis para incriminar Zilbert. Os agentes do
FBI acharam muita graça, entretanto, quando souberam que
a falsificação das informações, que Disch passava a Zilbert,
acabara por se tornar conhecida dos técnicos da
espionagem em Moscou. O inevitável aconteceu: Zilbert
rompeu seu contato com Disch, e, embora não houvesse
deixado logo os Estados Unidos, nem assim foi detido.

Outro agente de Zilbert era o jovem norte-americano Robert


Switz, que já conhecemos da França. Embora treinado para
realizar o trabalho fotográfico que antes competira a Lydia
Stahl, qualificou-se como piloto e, antes de ir para a França,
fora incumbido de obter informações sobre as bases norte-
americanas no Panamá. Uma célula entregava-lhe as
informações, e os documentos eram copiados por um
escriturário do Exército norte-americano, Robert Osman, o
amante de uma das agentes de Switz, uma moça russa
chamada Frema Karry.

Tudo correu bem até que, certo dia, uma carta endereçada a
Herman Meyers, em Nova York, não pôde ser entregue,
sendo devolvida para o Panamá. Ali, o envelope foi aberto, e
verificou-se que continha cópias de documentos de caráter
secreto, relativos às instalações e fortificações na Zona do
Canal. Uma investigação se realizou, constatando-se que as
cópias datilografadas daqueles documentos haviam saído
da máquina de escrever de Osman. Este recebeu ordem de
prisão e, sendo julgado por uma corte marcial, acabou
condenado a 20 anos de prisão, ao pagamento de uma
multa de 10 000 dólares, e sofreu dispensa desonrosa. A
sentença foi suspensa, entretanto, por um novo julgamento
nos Estados Unidos. Mas, quando isso aconteceu, Switz já
viajara para a França.

No princípio da década dos trinta, a Amtorg transformara-se


numa imensa empresa, dando trabalho a cerca de
setecentos a oitocentos empregados, a maioria dos quais
era de comunistas norte-americanos. Suas ramificações de
espionagem haviam-se tornado vastíssimas. Um dos seus
funcionários era o comunista norte-americano Robert
Pitcoff. Ele deixara o Partido em 1934, e, em 1939, depusera
perante o Comitê sobre Atividades Antiamericanas —
investigação relativa às atividades comunistas —, onde
declarara: “Existiam comissões que estavam estudando
vidros; outras que se dedicavam à aviação; e havia também
uma que se preocupava com a indústria química e com
diversos tipos de indústria, como a manufatura de papéis e
coisas desse gênero. Quase todo o campo das atividades
industriais vinha sendo estudado por essas comissões.”

Esse foi, na realidade, o período da maior atividade


desenvolvida pela espionagem soviética no campo
industrial dos Estados Unidos e, a despeito da constante
vigilância do FBI, que se achava a par de muito do que
ocorria, e frequentemente fazia prisões, os resultados desse
trabalho devem ter sido extremamente proveitosos. Por
outro lado, entre 1930 e 1933, a espionagem militar
praticamente não existia.

A razão dessa disparidade residia no grande desejo,


alimentado então pelos líderes soviéticos, de assegurar o
reconhecimento diplomático da Rússia pelos Estados
Unidos. Embora os aborrecimentos, criados pela Amtorg,
pudessem ser deixados de lado — já que a opinião pública
norte-americana não se mostrava impressionada com a
perda de fórmulas ou desenhos secretos —, sabiam os
russos, naquela ocasião, que um escândalo, envolvendo
algum objetivo militar, teria toda probabilidade de obter
uma repercussão bem diferente. Essa conclusão fora
imposta naturalmente pela experiência dos russos em
relação a esses assuntos, adquirida em outros países. O
efeito do dinheiro falsificado e o caso de Osman
demonstraram que a reação norte-americana poderia ser
igual à dos ingleses e à dos franceses, em face de qualquer
ameaça à segurança dos seus segredos militares.
Nessas condições, os agentes profissionais foram retirados
dos Estados Unidos e transferidos para outros lugares e,
embora as células e as redes fossem mantidas, nenhuma
espionagem militar foi levada a efeito, entre 1933 e 1935.
Quando, porém, os soviéticos deram início, de novo, ao seu
trabalho, segundo tudo indica, foram enviadas ordens para
se reconquistar o tempo perdido. Com efeito, por volta de
1936, essas atividades atingiram elevado nível, apesar das
muitas “liquidações” e defecções que obedeceram às
normas gerais do primeiro grande expurgo de Stálin, na
Rússia. Na realidade, essas defecções e “liquidações”,
durante o período de 1936 a 1939, constituíram um
exemplo muito ilustrativo de causa e efeito — como esses
dois fatores parecem afetar, periodicamente, a espionagem
soviética.

Neste ponto, torna-se necessária uma referência a uma final


diferença que existe entre a organização soviética e a de
qualquer outro país. Trata-se do funcionamento da Nona
Seção da Divisão Especial do Segundo Diretório, que é
conhecida como a Seção do Terror e do Desaparecimento.

A criação dessa Nona Seção parece haver sido inspirada por


uma ficção, tipo James Bond, tão estranha é sua concepção
para o modo de pensar e de agir dos ocidentais. Na
verdade, entretanto, não se trata de uma invenção,
imaginada por um novelista de espionagem, mas de uma
força muito ativa e poderosa que se destaca no cenário das
atividades políticas da União Soviética. Instituída numa
época em que o criador de James Bond não passava de um
simples rapaz, essa seção funcionou originalmente entre
1918 e 1920, — ou seja, durante os anos do Terror — como
a agência encarregada das execuções. Nessa condição, era
um dos principais departamentos da Comissão
Extraordinária, dirigida por Dzershinsky, para combater a
Contrarrevolução e a Sabotagem. Mais tarde, porém,
tornou-se uma seção separada, adida ao Comitê Executivo
Central. Suas funções, nesse período, estavam quase
inteiramente restritas ao trabalho da comissão de
execuções dentro da Rússia. Mais tarde, por volta de 1932,
isto é, depois da demissão de Zinoviev, Rykov e Bukharin
das suas posições de mando, ela se tornou um instrumento
pessoal de Stálin, e, quando levada a efeito a reorganização
das agências de espionagem, em 1934, foi então
incorporada ao novo NKVD.

Muito antes disso, porém, a Nona Seção,


independentemente da forma com que se apresentasse,
tinha sido empregada, fora da Rússia, para eliminar agentes
considerados indignos de confiança, e para liquidar
destacados comunistas, quer eles se houvessem envolvido,
ou não, em atividades de espionagem. O método era tanto
o rapto quanto a remoção para a Rússia, onde se realizava a
execução, após um julgamento secreto. Às vezes,
verificava-se uma alteração nas normas, sendo adaptado o
assassínio no próprio local em que se encontrava a vítima.
As funções dessa Nona Seção eram, igualmente, de duplo
caráter: silenciar, para sempre, os agentes que poderiam
trair importantes segredos de espionagem, transmitindo-os
aos inimigos do comunismo, e, pelo terror, fazer com os
agentes secretos ou preeminentes comunistas desistissem
de tentar qualquer deserção.

A partir dos meados da década dos trinta, os raptos e as


liquidações tornaram-se tão frequentes que pouca atenção
despertavam. Mas o primeiro rapto que chegou ao
conhecimento do público — o do General Kutyepov, ocorrido
à porta do seu apartamento em Paris, em 1930 — constituiu
verdadeira sensação. Mesmo assim, em pouco tempo já
estava esquecido, pois, embora os raptos e os assassínios
continuassem a efetuar-se, durante os sete anos que se
seguiram não foi senão após o desaparecimento de Juliet
Poyntz, em Nova York, e a morte de Ignace Reiss — antigo
agente profissional e que fora Diretor-Residente, durante
algum tempo, na França e na Suíça —, ocorridos ambos em
1937, aliados ao assassínio de Trotsky, no México, em maio
de 1940, que o interesse público se mostrou excitado outra
vez. Mas, como acontecera nos casos anteriores,
rapidamente os esqueceu. Se o público, porém não estava,
de fato, preocupado com esses atos de terror, cometidos
dentro da soberania dos seus próprios países, os desertores
o estavam, muito embora, mesmo em face do que vinha
ocorrendo, diversos deles revelassem a coragem de desafiar
a Nona Seção.

É verdade incontestável que alguns norte-americanos


comunistas, nos meados da década dos trinta, trabalharam,
uma vez ou outra, como agentes da espionagem soviética.

Juliet Poyntz, por exemplo, tinha sido, de fato, preeminente


membro do Partido Comunista, antes que concordasse, em
1934 em fazer espionagem para a Rússia. Depois de um
período de treinamento em Moscou, voltou para Nova York
com a incumbência de descobrir novos agentes para a rede
norte-americana. Mas alguma coisa, na certa, lhe
acontecera, quando ainda se encontrava na Rússia, pois, ao
retornar aos Estados Unidos, já não era uma convicta da
ideologia, como o havia sido nos doze precedentes anos.
Não obstante isso, aparentemente tentou levar a efeito, da
melhor maneira que lhe permitiam suas habilidades, a
tarefa de que fora encarregada, até que o expurgo e os
julgamentos, realizados em Moscou em 1936, finalmente
cristalizaram suas dúvidas. Assim, abandonou a
espionagem — tornando-se um agente, seguira a praxe
tradicional, pedindo demissão do Partido — e retirou-se para
a vida privada, a fim de redigir suas memórias. Com a
primeira palavra que escreveu, assinou, porém, a própria
sentença de morte.
Certo dia, na primavera de 1937, deixou seu apartamento e,
desde então, nunca mais foi vista. Cario Tresca, líder
trabalhista americano, acusou abertamente o NKVD pelo
seu assassínio e, cinco anos mais tarde, ele, por sua vez, foi
morto no que pareceu um acidente, na esquina da Quinta
Avenida com a Rua Quinze.

Juliet Poyntz fora apenas um dos destacados agentes da


década dos trinta, nos Estados Unidos, que se havia
desiludido. Outro foi Whittaker Chambers. Este, como Juliet
Poyntz, filiara-se ao Partido na década dos vinte, sendo
introduzido no serviço de espionagem pelo OGPU.
Inicialmente, trabalhara para o Daily Worker e era, então, o
editor do New Masses. Em 1932, passara a colaborar com o
movimento clandestino e, dois anos mais tarde, recebera a
incumbência de reorganizar alguns comunistas, funcionários
do governo em Washington, numa nova rede.

Entre os seus contatos, segundo declarou mais tarde,


achava-se Harry Dexter White, assistente do secretário do
Tesouro; Abraham George Silverman, da Junta de
Aposentadorias das Estradas de Ferro; o Dr. Gregory
Silvermaster, do Departamento de Agricultura, e Alger Hiss,
do Departamento de Estado. Como outro ramo de suas
atividades, Chambers — segundo informou, posteriormente
— formara, com dois outros comunistas, John Sherman e
Max Lieber, o Sindicato dos Escritores Americanos, do qual a
verdadeira finalidade era, de acordo com seu próprio
depoimento, dar cobertura legal a determinadas operações
clandestinas soviéticas no exterior.

Em 1938, entretanto, Chambers renegou a ideologia


comunista, mas não pôde decidir que caminho deveria
seguir em relação ao problema da própria sobrevivência,
com o qual então passara a se defrontar. Divisionistas desse
tipo tinham duas estradas para escapar às atenções da
Nona Seção: procurar a proteção das autoridades norte-
americanas, contando- lhes tudo; ou tentar comprar ao
NKVD sua sobrevivência, através do recurso de procurar um
esconderijo e, em seguida, esforçar-se para convencer essa
organização da sua intenção de permanecer em silêncio.

Para enfrentar esse problema, Chambers escondeu-se pelo


período de um ano e decidiu, então, tentar um
entendimento. Foi a Washington para ver o Presidente
Roosevelt, mas a pessoa mais importante com quem
conseguiu entrevistar-se foi o Sr. Adolf Berle Júnior,
assistente do secretário de Estado, que se encarregava do
setor de segurança. Nesse encontro, Chambers não contou
tudo o que sabia. Ressaltou as ligações e simpatias
comunistas de algumas autoridades, mas não esclareceu se
essas autoridades tinham sido agentes da espionagem
soviética. Nem mencionou Harry Dexter White e Silverman,
que se encontravam entre os mais ativos e importantes
colaboradores.

Roosevelt não se mostrou impressionado, quando Berle


Júnior transmitiu-lhe o que Chambers lhe contara. Os
indivíduos, que Chambers mencionara, eram altamente
conceituados em seus respectivos departamentos e
possuíam excelente folha de serviço. Nessas condições,
nenhuma providência foi tomada.

Dois anos mais tarde, Chambers fêz nova tentativa. Desta


vez, procurou o FBI, mas, como anteriormente, só narrou
parte do que sabia. Na realidade, dez anos deveriam passar-
se entre a data em que deixara de ser agente russo até o
dia em que, finalmente, revestindo-se de coragem, revelou
sua história completa. Muitas das pessoas denunciadas por
ele ainda eram membros da administração norte-americana,
mas mantinham contatos com a espionagem soviética, e as
consequências dessas denúncias desaguaram numa das
mais sensacionais “causas célebres” de espionagem de
todos os tempos.

Esse rápido esboço da ficha de Chambers toma bem claro


como a espionagem soviética, no terreno militar, obtivera
êxito em se infiltrar nos Estados Unidos, durante os meados
e o final da década dos trinta. Por volta de 1938, ela
penetrara na administração dos Estados Unidos de forma
realmente extensa, e não pode haver dúvidas de que essa
infiltração fora grandemente auxiliada pela atitude oficial,
que Chambers havia experimentado. O descaso parecia vir
de cima, da cúpula, talvez porque Roosevelt, que
implicitamente acreditava em sua habilidade para
“manobrar” Stálin, mostrava-se pouco disposto a tomar
qualquer atitude que pudesse ser interpretada como
antissoviética. Temia que uma providência drástica viesse a
prejudicar suas chances de negociar, com Stálin, em termos
proveitosos.

Se a contraespionagem norte-americana enfrentava


qualquer caso de espionagem, tratava-se, naturalmente, de
outro assunto. Houve, por exemplo, o caso de Mikhail Gorin.
Gorin era um agente russo profissional. Chegara aos
Estados Unidos como funcionário da Amtorg, e dessa
empresa fora transferido para Los Angeles, como gerente da
Intourist — a agência oficial de turismo da União Soviética.
Em Los Angeles, entrara em contato com um oficial da
Inteligência Naval dos Estados Unidos, chamado Hafis
Salich, o qual, no desempenho de seus deveres oficiais,
tinha acesso a certas informações secretas a respeito do
Japão.

No primeiro encontro, Salich, que era de nacionalidade


russa e ainda possuía parentes na Rússia, recusou-se a
aceitar quaisquer das sugestões de Gorin. Este, então, no
estilo tradicional, referiu-se aos seus parentes e obteve o
resultado que desejava. Daí em diante, esse oficial passou a
entregar a Gorin os documentos secretos da Marinha,
muitos deles referentes à espionagem japonesa. Ao todo,
Salich entregou mais sessenta e dois documentos secretos,
e poderia prosseguir nesse fornecimento por mais tempo do
que o que realmente fez, se Gorin não cometesse o mais
extraordinário disparate — verdadeiramente inexplicável —
que um agente da sua experiência poderia praticar.
Esqueceu alguns dos documentos, fornecidos por Salich, no
bolso de um terno, que enviou para a lavandaria. Esta,
imediatamente, entrou em contato com a Inteligência Naval
e, em consequência desse descuido, ambos foram logo
presos.

Hoje, no curso normal dos acontecimentos, ser


desmascarado constitui um risco ocupacional da
espionagem, e os espiões-chefes são condicionados a
enfrentar descaradamente essas situações embaraçosas.
Mas, no clima que se respirava em 1938, e levando-se em
conta a provada habilidade profissional de Gorin como
espião, dúvidas surgiram no espírito dos dirigentes da
espionagem soviética, nos Estados Unidos, sobre a sua
lealdade. Poderia estar acontecendo que ele, de fato,
preparasse sua deserção?

Nas mãos do FBI, Gorin violou outro regulamento da


espionagem, que todos os agentes soviéticos eram
ensinados a obedecer. (O caso Gorin ilustra muito bem
como os supertreinados agentes russos podem revelar
fraquezas, quando têm de enfrentar situações
embaraçosas.) Já em mãos da polícia, solicitou permissão
para telefonar à embaixada russa em Washington.
Concedida a permissão, pediu para falar ao embaixador,
Constantin Oumansky, a quem perguntou o que deveria
fazer. Oumansky, também grandemente perturbado, decidiu
enviar o vice-cônsul soviético — que, na realidade, era um
agente do NKVD em Nova York — para se avistar com Gorin
na prisão de Los Angeles. Enquanto isso, ele próprio
procurou Summer Welles, que exercia, na ocasião, o cargo
de secretário de Estado, para protestar energicamente
contra a prisão de Gorin, acusando o Departamento de
Justiça de se comportar de maneira que não era
estritamente legal, embora a base dessa alegação tenha
constituído outro problema para Welles resolver.

Tendo apresentado seu protesto, Oumansky visitou então


Loy Henderson, da Divisão de Negócios Europeus do
Departamento de Estado, a quem solicitou que Gorin
pudesse ser visitado pelo Vice-Cônsul Ivanushkin. Apesar do
fato de que, desde 1933, Roosevelt e Stálin haviam
assinado um acordo, no sentido de que os cidadãos norte-
americanos, presos na Rússia, poderiam ser conservados
incomunicáveis, durante os três primeiros dias de sua
detenção, e não obstante esse documento reconhecer a
reciprocidade do estabelecido em suas cláusulas,
Henderson concedeu a permissão solicitada.

Quando Gorin e Ivanushkin se encontraram, este último


disse, de forma perfeitamente clara: “Não admitiremos
nada. Ignoraremos os papéis encontrados no terno.” O FBI
julgou essas expressões como sendo uma advertência
oficial a Gorin, no sentido de que nada revelasse do que
sabia.

Nos dias que se seguiram, o embaixador fez sucessivas


tentativas para obter a soltura de Gorin mediante fiança,
mas o Departamento de Estado recusou-se a intervir. O
detido não gozava de imunidades diplomáticas, e tratava-
se, portanto, de assunto a ser resolvido pelos tribunais civis.
Em maio de 1939, ambos foram julgados e considerados
culpados do crime de espionagem. Gorin recebeu uma
sentença de seis anos de prisão e Salich, uma de quatro.
Imediatamente, os soviéticos apresentaram um recurso em
favor de Gorin e, durante os dois anos seguintes, a causa se
arrastou através da Corte de Apelação, até que, em janeiro
de 1941, a Suprema Côrte manteve o veredicto do
julgamento da primeira instância.

Como os dias da guerra se aproximavam, a espionagem


soviética nos Estados Unidos adquiriu novo ímpeto,
alcançando seu clímax de atividade. As estatísticas
demonstram como o esforço de guerra entre as redes e a
contraespionagem progrediu. Entre 1933 e 1937, o FBI
investigou a média de 35 casos de espionagem por ano; em
1939, a cifra elevou-se para 250 nos precedentes doze
meses, isto é, de junho de 1938 a junho de 1939, enquanto
que, no último semestre de 1939, mais de 1400 casos foram
investigados. Somente em alguns poucos deles,
naturalmente, as investigações determinaram que prisões
fossem feitas e que se instaurassem processos, mas a
extensão da atividade de espionagem é acuradamente
refletida nessas duas ou três estatísticas.

Os esforços feitos e os resultados alcançados, durante esse


período, parecerão, entretanto, quase insignificantes, se os
compararmos com o que foi obtido durante a década que se
seguiu.
Terceira Parte
A SEGUNDA GUERRA
MUNDIAL  
1. Adaptando-se à Mudança dos
Tempos

Após o caso da Arcos, os russos não realizaram qualquer


outra tentativa de espionagem, em larga escala, na Grã-
Bretanha, antes do rompimento da guerra. Na França,
igualmente, em fins de 1934, o esforço foi grandemente
reduzido, após o escândalo da denúncia da rede de Switz.
As redes na Alemanha nazista viram-se forçadas a sair da
atividade, pela supressão do Partido Comunista Alemão, e
tanto pela crescente eficiência da contraespionagem, por
parte da Gestapo — a Sicherheitsdienst —, como pela
reinstalação da agência de contraespionagem militar, a
Abwehr.

O meio e o fim da década dos trinta constituíram um


período de calmaria para a organização russa — um período
alongado pelos expurgos de Stalin, os quais atingiram, de
maneira igualmente profunda, tanto as fileiras do NKVD
como o Exército e o Partido. Mas, dos três organismos, foi o
NKVD o que mais rapidamente se recuperou.

O efeito, neste caso, foi o mesmo que o verificado no


Exército, no fim dos primeiros seis meses da guerra entre a
Alemanha e a Rússia, quando uma nova elite de jovens
oficiais, divorciados das técnicas ultrapassadas dos
Voroshilov e dos Budenny, se formou e se projetou. Sob o
impulso do recém-nomeado chefe dos serviços de
segurança, Lavrenti Béria, uma nova geração de agentes foi
rapidamente formada.
Para aqueles que caíram vítimas das suas forças
desintegradoras, esses expurgos representaram um vento
mau que soprou através do NKVD, mas foi ele seguido por
uma brisa benigna de mudança, que trouxe, com suas
novas técnicas, a possibilidade de um êxito até então não
experimentado por qualquer agência soviética dedicada a
atividades clandestinas.

O principal objetivo dos soviéticos era a Alemanha, já que


se fizera evidente que, dentro em breve, Hitler, através de
provocações, iria arrastar as potências ocidentais para uma
guerra. Além disso, pesava na balança o fato de que, a
despeito do comportamento peculiarmente dissimulador de
Stálin, todos os integrantes da hierarquia soviética, nas
poucas semanas que antecederam o desencadeamento da
operação “Barbarossa”, já estavam convencidos de que,
mais cedo ou mais tarde, o ditador nazista voltaria sua
atenção para o Leste. Assim sendo, nada recomendava que
a atenção de Hitler fosse atraída, pois inúmeras coisas
deviam ser feitas, a fim de colocar o país num potencial pé-
de-guerra, caso o julgamento da força tivesse de se inclinar,
de qualquer jeito, a favor da Rússia.

Desde que o estabelecimento de redes no território alemão


seria certamente julgado, por Hitler, provocação suficiente
para desencadear uma guerra defensiva contra o país ao
qual essas redes pertencessem, o Centro decidiu
estabelecer certo número de organizações, cujos agentes
operariam individualmente dentro da Alemanha, mas
recebendo instruções de uma base instalada na Bélgica, na
Holanda, na Dinamarca ou na Suíça — base esta que,
igualmente, controlasse essas organizações.

No nono mês de 1939 que precedeu o irrompimento da


Segunda Guerra Mundial, com discrição, mas com grande
eficiência, essas bases foram instaladas, portanto, nos
países mencionados. Os chefes e os operadores chegaram,
e a estrutura de cada uma delas foi preparada para fazê-las
entrar em ação ao primeiro sinal, que, no caso, seria o
rompimento das hostilidades.

Cada base era autossuficiente. Todas estavam equipadas


com transmissores de ondas curtas, rádio-operadores,
técnicos em códigos, correios, intermediários e agentes que
deveriam operar dentro da Alemanha como “caixas-postais”
— dispondo, efetivamente, de todas as facilidades para a
coleta, tão simples quando possível, de informações, e sua
transmissão para Moscou. A direção de cada rede foi
colocada em velhas e experientes mãos, que, por algum
motivo, haviam escapado ao holocausto das brutais
eliminações de Stálin. Os homens que essas mãos iriam
controlar, entretanto, representavam, em sua maioria,
gente nova, treinada em obter, por eles mesmos, as
informações ou em descobrir fontes de informação,
trabalhando ao longo de instruções, de caráter geral,
fornecidas pelo Centro.

O Centro ainda controlava todas as atividades da


espionagem soviética. Incumbia-lhe designar as tarefas;
aprovar os agentes que seriam recrutados; manietar, tanto
quanto possível, os Diretores-Residentes, de forma a privá-
los de toda ação independente; e por fim, frustrar qualquer
manifestação de espírito de iniciativa. Uma grande
inovação, entretanto, fora introduzida: não se achavam ali
representadas as três agências — NKVD, GRU e Comintern
— que, no passado, haviam mantido organizações
separadas. Embora coubesse ao Centro a última palavra,
existia, então, para todos os intentos e propósitos, somente
uma agência soviética no exterior. Os espiões,
independentemente da agência para a qual pudessem
trabalhar, caso fossem mandados para o exterior, deviam
dar seu esforço e sua obediência à rede da agência já
estabelecida no local para o qual eles haviam sido
designados. E não havia como não fazê-lo, já que todos
sabiam que, no final, seria o Centro que receberia e
avaliaria os resultados do seu trabalho.

As redes entravam em atividade imediatamente, quando se


tornou certo que a guerra entre a Alemanha e a Polônia
terminaria por uma vitória dos nazistas. Durante todo o
período da “guerra simulada’’, elas operaram com grande
acuidade e eficiência. Com sua sede instalada fora do
território alemão, e somente com os agentes locais
operando no interior do Reich, essas redes procuravam-se
garantir, por isso que, se um desses agentes caísse nas
mãos da contraespionagem, pelo menos a principal
estrutura da organização estaria salva. O agente perdido
poderia ser substituído, e o trabalho prosseguiria sem
qualquer interrupção.

Na realidade, tudo correu bem, embora os resultados


obtidos escassamente justificassem o esforço feito. Essa
situação, porém, não parecia preocupar o Diretor, o chefe
do Centro. As redes se afirmariam, de fato, quando a guerra
irrompesse entre a Rússia e a Alemanha.

Antes que isso acontecesse, porém, a Bélgica, a Holanda e a


Dinamarca deixaram de ser nações neutras, sendo que a
França fora dividida em duas partes. Os verdadeiros
alicerces do plano foram retirados, como os calços são
removidos por baixo do casco seco de um navio que vai ser
lançado ao mar. Os agentes da contraespionagem alemã se
espalharam por toda parte e, como muitos judeus se
encontravam entre os proeminentes membros das redes,
passaram eles a representar um novo e imprevisto perigo.
Não obstante todas essas dificuldades, as redes tiveram de
persistir, já que constituíam as únicas organizações capazes
de se infiltrar nos segredos alemães, e, até que ocorresse
um dos mais vergonhosos capítulos da história da
espionagem russa, elas trabalharam com coragem,
determinação e razoável proporção de êxito.

 
2. As Redes na Bélgica e na Holanda

A rede que funcionava na Holanda, e era de importância


secundária em relação à que operava na Bélgica, foi
organizada por Johann Wenzel, alemão de antiga filiação ao
Partido Comunista da Alemanha. Seu segundo no comando
era um comunista holandês, Anton Winterink. Este fizera
parte do pessoal da agência do Comintern encarregada de
auxiliar os comunistas que estavam presos, mas, quando
houve a “reorganização”, e recebera ordem do Centro para
servir na rede holandesa, seguiu o modelo tradicional,
afastando-se das atividades do Partido.

A rede holandesa possuía sua estação de rádio própria,


operada por um indivíduo chamado Wilhelm Vogeler,
enquanto quatro dos seus agentes ativos eram três homens
— Lutterman, Nagel e Gouloose — e uma mulher, Hendrika
Smit. Embora independente, essa rede era obrigada a
manter estreita ligação com a sua irmã belga, e três
correios se encarregavam de preservar essa vinculação:
Jacob e Hendrika Hilboling e Maurice Peper.

Durante o período em que a guerra caíra em ponto-morto, a


rede holandesa permaneceu inativa, de acordo com as
instruções vindas do Centro. Quando, porém, os alemães
invadiram a Holanda, ela recebeu a incumbência de
informar sobre os movimentos realizados pelas tropas
alemãs no interior do país. Como será descrito mais adiante,
essa organização não permaneceu em atividade por muito
tempo.
A rede belga era muito mais extensa, tanto em organização
quanto em relação às suas finalidades, e, considerada em
conjunto, revelava-se mais importante do que sua vizinha
do Norte. Tratava-se de uma deliberada política do Centro,
como se pode verificar pelo fato de que o indivíduo
designado para dirigi-la era um judeu polonês de notável
experiência em espionagem, chamado Leopold Trepper, que
iria ser, consequentemente, nomeado Diretor-Residente de
todas as redes que operavam na Europa Ocidental.

Além de ser um profissional muito experimentado, Trepper


constituía, igualmente, uma espécie de raridade na
espionagem soviética. Possuía talento especial para fazer
rápidos e seguros julgamentos; estava preparado para agir
por sua própria iniciativa e era extraordinariamente
audacioso. Escapara de um expurgo por ter tido a
capacidade de convencer Stálin sobre a sua lealdade, e o
fato de ser um dos poucos agentes, de maior experiência, a
continuar vivo após o segundo expurgo de 1938,
automaticamente o credenciou para ocupar um elevado
cargo.

O segundo no comando, depois de Trepper, era um letão —


antigo oficial do Exército Vermelho —, Victor Sukulov. Na
idade de dez anos, segundo se afirmava, lera um livro,
Diário de um Espião, que era o relato das atividades
imaginárias de um agente britânico, chamado Edward Kent,
escrito pelo novelista russo N. G. Smirnov, e ficara tão
profundamente impressionado pela brutalidade do caráter
desse herói que decidira tomá-lo por modelo. Parece haver
algum fundamento nessa história, pois um dos falsos nomes
de que Sukulov se utilizou, em sua carreira, foi justamente o
de Edward Kent.

Originalmente, fora escolhido para organizar a rede que


operaria em Copenhague, mas, em sua viagem para a
capital dinamarquesa, indo de Paris permaneceu alguns dias
em Bruxelas, e, enquanto ali se encontrava, a guerra foi
declarada. Em consequência disso, o Centro deu-lhe
instruções para ficar na Bélgica, como assistente de Trepper.

Além desses dois agentes, os integrantes da rede eram um


sobrinho de Molotov, Mikhail Makarov; um tenente da Força
Aérea Vermelha, que agia como técnico em códigos e rádio-
operador; Anton Danilov, oficial do Exército Vermelho, que
desempenhava as funções de “gerente” do quartel-general
da rede; e Sophie Pozanska, judia polonesa, técnica em
chaves de cifras e guardiã da seção de documentos falsos
utilizados pela organização.

Entre um exército de agentes de menor importância,


menção deve ser feita a Leo Grossvogel, alemão que
organizou os disfarces comerciais; a amante de Grossvogel,
Simone Phelter, funcionária da Câmara de Comércio Franco-
Belga, que agia como correio entre Bruxelas e Paris; August
Sesee, notável técnico e rádio-operador; e Abraham
Raichman, polonês, especialista em falsificação de
documentos de identidade.

Deve ser acrescentado a essa já enorme lista de nomes o


do Coronel Konstantin Yefremov, engenheiro militar e
especialista em gases venenosos. Tomou por disfarce o
papel de um estudante finlandês, e era tão perfeito em
estabelecer sua nova identidade que, segundo um relatório
da Gestapo, “até os botões de suas cuecas eram de
fabricação finlandesa”.

O quartel-general da rede fora instalado na metade de uma


villa, situada à Rua Attrebates, n.° 101, em Etterbeck,
subúrbio de Bruxelas. Na outra metade da casa, morava
uma idosa viúva — a proprietária da villa —, tão inocente
que nunca tivera qualquer suspeita sobre o verdadeiro
papel que representavam seus inquilinos.

Essa rede era uma organização complexa e, portanto,


algum tempo foi necessário para que sua instalação
pudesse efetivar-se. Quando, porém, a guerra irrompeu no
Ocidente, ela já se achava em condições de entrar em ação.
O plano original do Centro fora o de utilizar essa rede
somente em caso de guerra entre a Alemanha e a Rússia.
Com exceção das ordens dadas, no sentido de que as
agências alemãs e, em particular, a organização Todt,
sofressem infiltração após a invasão da Bélgica, o plano foi
aprovado. Para realizar essa tarefa, Trepper fundou a firma
Simexco, cuja finalidade era fornecer materiais de
construção à organização Todt e, por esse meio, conquistar
a confiança dos funcionários alemães dessa organização e
obter acesso aos segredos relativos à ofensiva alemã.
Durante o reduzido espaço de tempo em que funcionou, as
realizações dessa rede foram de grande monta.

Quando a Alemanha, finalmente, atacou a Rússia, em junho


de 1941, a rede belga entrou imediatamente em plena
ação. Pode-se ter uma idéia da atividade que as redes
holandesa e francesa desenvolveram, naqueles primeiros
dias, analisando-se os relatórios da Gestapo e da Abwehr,
nos quais foi declarado que, em 1941, os postos de escuta
dessas duas agências de contraespionagem registraram
nada menos de quinhentas mensagens, enviadas do
Ocidente para o Centro. Tão boas eram as técnicas de rádio,
então utilizadas, que as tentativas, realizadas pela
contraespionagem alemã, no sentido de descobrir o local
onde esses aparelhos operavam, resultaram inúteis, embora
deva ser ressaltado que, naquela ocasião, o sistema de
descoberta de emissões ainda se achava num estágio de
desenvolvimento que poderia ser considerado rudimentar. E
isso não foi tudo: os códigos usados resistiram a todas as
tentativas de decifração realizadas pelos técnicos alemães.

As autoridades em Berlim mostravam-se desorientadas e


irritadas, e tanto Himmler quanto Canaris, chefes
respectivamente da Gestapo e da Abwehr, enviaram ordens
urgentes no sentido que as transmissões russas fossem
localizadas a qualquer custo e o mais rapidamente possível.
Como resultado de um esforço concentrado, no outono de
1941 a principal estação emissora foi localizada “em algum
lugar na Bélgica”, e os russos, na ignorância dos progressos
realizados pelos alemães nas técnicas de localização de
transmissões, efetivamente traíram a si próprios, ao
fazerem remessas de mensagens tão excessivamente
frequentes e regulares, quanto demasiadamente longas —
cinco horas por dia.

Em consequência disso, na noite de 13 de dezembro de


1941, tropas alemãs, sob a orientação da Abwehr, deram
uma batida no número 101 da Rua Attrebates. Descobriram
o transmissor, certo número de documentos falsos,
suprimentos de tinta invisível e Mikhail Makarov, Sophie
Poznanska e Rita Arnould. Desgraçadamente, e para seu
desapontamento, não descobriram quaisquer detalhes dos
códigos.

Enquanto a batida se realizava, Trepper chegara a casa,


ignorante do que acontecia. Pensando com rapidez,
entretanto, conseguiu convencer os alemães de que não
passava de um vendedor ambulante de coelhos e, em face
disso, teve permissão para se retirar.

Sophie Poznanska, por sua vez, aproveitou a confusão e


tomou seu tablete de cianeto, antes que os excitados
alemães percebessem o que ela estava fazendo. Makarov
morreu sob torturas, sem trair um simples pormenor, mas
Rita Arnould não somente contou tudo o que sabia, mas
igualmente entregou, voluntariamente, à Abwehr uma
fotografia de Trepper, que ela nunca deveria ter possuído.
Quando sua utilidade chegou ao fim, foi decapitada.
Trepper, conhecido como o “Grande Chefe”, e Sukulov,
chamado o “Pequeno Chefe”, fugiram para a França, onde a
rede local, sob a direção geral de Trepper, funcionava na
Zona Não-Ocupada, enquanto Yefremov, não comprometido
por Rita Arnould, assumiu a direção do que restou da rede
belga, sendo Johann Wenzel levado da Holanda para ajudá-
lo.

Essa iniciativa representou, mais tarde, uma atitude das


mais infelizes tomadas pelo Centro. É que Rita Arnould
havia também denunciado Wenzel. Com frequência, ele ia a
Bruxelas e visitava a villa da Rua Attrebates. Não obstante a
denúncia, continuou a operar, com sucesso, pelo período de
seis meses, até que, em junho de 1942, quando localizado
seu transmissor pela Abwehr, foi preso.

Por essa ocasião, a Abwehr tivera a idéia do que, mais


tarde, se transformaria no Spiel. Embora seus agentes
tivessem fracassado na tentativa de decifrar os códigos,
utilizados nas transmissões da villa, mais tarde, quando
uma busca mais rigorosa ali foi levada a efeito, os alemães
encontraram alguns papéis rasgados, contendo grupos de
letras. Através desse material, recorrendo a cuidadosa e
persistente paciência, seus técnicos conseguiram
reconstituir o código, ocorrendo então a Canaris que essa
descoberta seria valiosa, não somente para descobrir quais
as informações que os russos haviam obtido, mas,
igualmente, pelo prejuízo que poderia ser feito à
espionagem soviética, se mensagens falsas fossem
transmitidas, em código, para o Centro. Quando, entretanto,
estavam prontos para realizar esse programa, Makarov, que
poderia ter sido usado nessa tarefa — e, de fato, devia ser
usado  *  —, estava morto, e o Centro já mudara seus
códigos.

Naquela ocasião, entretanto, a Abwehr dispunha de novo


operador em Wenzel e, além disso, de um operador que
conhecia os novos códigos. No princípio, recusou-se a
cooperar, mas, quando lhe foi exibido seu dossiê, em poder
dos alemães, e lhe propuseram a alternativa de ser morto
ou fazer o que lhe fosse ordenado, rendeu-se. Sendo um
agente de longa prática e havendo sido Diretor-Residente,
as informações de que dispunha para oferecer à Abwehr
eram relevantes.

De qualquer forma, parece que Wenzel não traiu Yefremov,


pois este último foi preso, em julho de 1942, quando
Raichmann, técnico em falsificação de documentos,
entregou um retrato dele a um inspetor de polícia belga,
chamado Mathieu, em quem confiava, mas que, na
realidade, estava então colaborando com os alemães. Em
face da desorganização em que caíra o departamento de
falsificação, com a apreensão, no interior da villa, de seus
cunhos de borracha, Raichmann solicitara a Mathieu que
pusesse um carimbo oficial naquela fotografia de Yefremov,
o que se fazia necessário para a obtenção de um novo
passaporte. É que o agente russo decidira mudar sua
nacionalidade, deixando de ser finlandês para se tornar
holandês. Mathieu concordou em entregar, ele próprio, o
passaporte a Yefremov, quando lhe fosse possível carimbá-
lo, e, quando os dois se encontraram, o agente russo foi
preso.

A princípio, Yefremov se recusou a dar qualquer tipo de


informação à Abwehr, mas, de uma forma ou de outra, a
organização alemã descobriu que seu prisioneiro tinha
grande apego à família, que se encontrava na Rússia.
Ameaçaram-no, então, de enviar uma mensagem ao Centro,
declarando que ele denunciara Wenzel. Essa denúncia faria
certamente com que os russos, em represália, prendessem
e, provavelmente, executassem sua família toda. Diante de
tal ameaça, Yefremov cedeu e, uma vez que começou a
falar, tornou-se, rapidamente, excelente colaborador.

Como resultado da confissão de Yefremov, Maurice Peper e


Hendrika Hilboling — os correios entre os grupos belgas e
holandeses — foram presos. Madame Hilboling recusou-se a
colaborar e foi executada. Peper, porém, denunciou
Winterink, que dirigia a rede holandesa desde a partida de
Wenzel para Bruxelas. Winterink, também, inicialmente se
recusou a falar, mas foi em seguida convencido a fazê-lo e,
em troca, traiu o resto dos integrantes da rede.

Assim, quase com um golpe só, as redes da Bélgica e da


Holanda foram inteiramente desmanteladas. A
dinamarquesa nunca fora estabelecida e, nessas condições,
de toda a enorme organização soviética no Ocidente, só
restaram em funcionamento as redes da França e da Suíça. 

* A técnica individual de transmissão de um rádio-operador


é tão pessoal quanto a sua caligrafia. Embora mensagens,
contendo todos os sinais de identificação, possam ser
transmitidas, se ela não for operada pelo agente designado
para agir em determinada estação, os que as recebem
saberão, imediatamente, que um falso agente está fazendo
funcionar o aparelho emissor. Era essencial para os
alemães, portanto, que agentes capturados pudessem
transmitir, para eles, suas mensagens falsas, embora, num
período superior a dezoito meses, na Holanda, no curso do
que, posteriormente, se tomou notório como sendo o
England spiel, operadores alemães, de fato, transmitiram
mensagens e o quartel-general das comunicações do
Departamento Executivo de Operações Especiais não
reconheceu que a “caligrafia" não era dos seus agentes na
Holanda.
3. A Rede de Espionagem Russa na
França

Quando Trepper assumiu a direção da espionagem soviética


na França, já funcionavam nesse país duas ou três redes,
que agiam independentes umas das outras, mas em contato
direto com o Centro. De todas as redes ocidentais, a da
França havia-se tornado a mais importante para a União
Soviética. Essa importância se acentuara ainda mais
durante a vigência do pacto nazi-soviético, o qual, em
grande escala, se parecia com a guerra, em ponto-morto,
que Hitler conduzia contra as potências ocidentais. Mesmo
quando os alemães invadiram a França em 1940, a rede
francesa não se encontrou na mesma situação em que
estiveram suas irmãs da Bélgica e da Holanda. Mesmo após
a divisão do país em duas partes, foi-lhe possível, pelo
período de alguns meses, fornecer bom volume de
informações exigidas pelo Centro. Essa central de Moscou
desejava ser informada sobre os seguintes assuntos: planos
estratégicos dos exércitos alemães; relações entre os líderes
nazistas e o Alto Comando; o local em que se encontrava
Hitler e onde estava instalado seu quartel-general; o
poderio da Luftwaffe; a situação da Alemanha em relação a
combustíveis; e os movimentos realizados pelas tropas nas
costas da Bélgica e da França.

Entre as redes estabelecidas na França, antes da chegada


de Trepper, as de maior importância eram o grupo do
Comintern, chefiado por um indivíduo com nome inglês,
Henry Robinson — que, na realidade, era filho de um rico
comerciante de Francforte — e o grupo liderado por um
russo aristocrata que se tornara comunista, Vasili
Maximovich. Esses dois grupos deveriam fornecer a Trepper
a maioria das informações mais valiosas obtidas por suas
bases no país.

Apesar de sua formação de integrante da classe


privilegiada, Henry Robinson fora comunista desde a
organização do Partido na Alemanha. De fato, fora um
“spartaquista”, o que, na realidade, significava haver sido
um precursor da GCP, à qual Clara Schabbel — sua amante
— também pertencera. Por volta de 1930, servira como
chefe da seção secreta do Comintern, tendo adquirido,
nessas funções, largo círculo de amigos e conhecidos entre
os políticos e as autoridades administrativas da França.
Adotou, então, a cidadania francesa. No início da guerra,
havendo-se separado de Clara Schabbel, residia num hotel
de segunda categoria, sendo considerado por todos um
intelectual extremamente excêntrico.

Fazia parte do seu grupo certo número de destacados


agentes. Ali estavam: Maurice Aenis-Hanslin, engenheiro,
que atuava como correio entre o grupo e a rede suíça; Louis
Mourier, que desempenhava as vitais funções de “caixa-
postal”; e, por fim, Medardo Griotto, gravador, cuja arte e
habilidade eram grandemente apreciadas por todos os
integrantes do grupo.

Vasili e sua irmã Anna Maximovich eram filhos de um nobre


russo emigrado para Paris após a derrota dos russos
"brancos” em 1922, ali morrendo, viúvo e na miséria. A
criação e a educação dos dois filhos, que deixara na
orfandade, ficaram a cargo do bispo de Paris, Monsenhor
Chapital, que dispunha de fundos para socorrer estrangeiros
necessitados. Vasili formou-se em Engenharia; Anna, em
Medicina, especializando-se em Psiquiatria e em Neurologia.
Paradoxalmente, em face dos seus antecedentes, os
Maximovich foram atraídos pelo comunismo e, embora
nunca se houvessem filiado ao Partido e tornado públicas
suas simpatias pela nova ideologia, frequentavam os
círculos dos russos “brancos” que, discretamente, no
período de fins de 1920 até princípios de 1930, vinham
sendo cortejados pela embaixada soviética.

Ao irromper a guerra, Anna, que fundara uma casa de saúde


para doentes mentais, passara a financiar, com os lucros
que ali obtinha, os simpatizantes da organização União dos
Defensores. Em consequência disso, foi presa, mas, tendo
conseguido provar que cuidava de pacientes legítimos, logo
a libertaram. Vasili, durante algum tempo, não fora
incomodado pelas autoridades. Por volta de outubro de
1939, entretanto, a polícia o internou num campo em
Bernet, perto de Toulouse, que primitivamente havia sido
criado para recolher comunistas espanhóis, fugidos da
truculência de Franco, e que então passara a ser um centro
de detenção de russos.

Nesse campo permaneceu até que se deu a invasão da


França, quando foi libertado, sob o compromisso de servir
de intérprete a um general alemão, de tendências anti-
hitleristas.

Por essa ocasião ou, mais exatamente, alguns meses antes


dessa data, Trepper estava organizando seu próprio grupo
na França e tinha sido nomeado para o posto de Diretor-
Residente da espionagem russa em território francês. Com a
assistência de Feo Grossvogel, fundara, em 1939, uma firma
de produtos têxteis, mais ou menos idêntica às que haviam
sido estabelecidas em Bruxelas e Ostende, como se pode
ver pela semelhança dos nomes — Simexco, na Bélgica, e
Simex, na França — , e que serviria como disfarce para suas
operações. Funcionando em escritórios, instalados nos
Campos Elíseos, a Simex dispunha, igualmente, de uma filial
no Bulevar Haussmann e ainda de uma outra em Marselha.
Após a queda da França, foi instalada uma terceira filial na
Zona Não-Ocupada.

Entre os membros destacados do grupo francês de Trepper


se encontravam seu assistente e secretário, Hillel Katz, e
sua secretária particular, Suzanne Cointe. Os membros de
fachada da Simex eram Alfred Corbin, o diretor-gerente
ostensivo, e Robert Breyer, os quais, ao mesmo tempo que
cuidavam das operações legais da firma — fornecendo
materiais de construção às organizações alemãs —,
operavam no campo da espionagem, embora em escala de
certo modo reduzida. A cobertura proporcionada pela Simex
deu a Trepper e a seus assistentes entrada franca em todos
os locais em que se realizavam construções, inclusive em
alguns trabalhos levados a efeito nas fortificações e, dessa
maneira, grande número de informações lhes chegaram ao
conhecimento.

Trepper e Robinson não começaram a cooperar senão após


a queda da França, mas, durante seu breve contato, este
último forneceu valiosas informações ao primeiro. De todos,
porém, o que obteve maior êxito foi Vasili Maximovich.
Trepper entrou em contato com Vasili logo depois de este
assumir suas funções de intérprete. Quando manifestou
desejo de trabalhar para Trepper e o Centro deu a
indispensável permissão, embora recomendando que devia
agir com cautela, imediatamente numerosas informações,
da mais alta importância, começaram a ser levadas ao
Grande Chefe.

Maximovich ampliou suas próprias fontes pessoais, ficando


noivo de uma solteirona, de 44 anos de idade, Anna
Margarete Eloffmann-Scholtz, que era uma das secretárias
para assuntos confidenciais da Administração Militar Alemã
em Paris. Embora Vasili não pudesse ser considerado um
homem bonito, ao beirar a idade dos trinta e oito — na
verdade, era atarracado, barrigudo, e sofria de uma
inchação na perna —, para Fraulein Hoffmann-Scholtz
representava a mais preciosa aquisição que uma solteirona
de meia-idade poderia esperar para marido.

O noivado, aprovado pelo Centro, foi comemorado com uma


festa esplêndida, na qual, com exceção do noivo, todos os
presentes eram violentamente anticomunistas. Seus chefes
alemães encararam igualmente aquela ligação com prazer,
tendo Maximovich recebido então uma permissão especial
para visitar o quartel-general da Administração Militar,
quando quisesse e tantas vezes quantas desejasse. Poucos
agentes soviéticos, talvez somente com duas notáveis
exceções — Rudolf Rössller, que operava com a rede de
Genebra, e Richard Sorge, em Tóquio —, tiveram melhores
facilidades para realizar seu trabalho do que Vasili. Não
somente tinha acesso pessoal a praticamente tudo o que
ocorria no quartel-general da Administração Militar, mas sua
esposa revelou-se ansiosa por ajudá-lo, levando-lhe todos
os rumores que suas colegas femininas lhe transmitiam.

As informações que Maximovich enviava ao Centro, através


de Trepper, incluíam relatórios sobre as reações francesas
em face dos seus intrusos hóspedes; o inteiro esboço da
economia militar alemã — tanto na França como nos demais
países ocupados —; a seriedade da situação de mão-de-
obra; detalhes do que ocorria nos campos de concentração
e identidade dos que ali se achavam recolhidos.
Documentos secretos lhe eram “emprestados” por algumas
horas, os quais, depois de copiados, eram devolvidos, antes
que dessem por sua falta.

O esforço de espionagem realizado por Maximovich nem era


um solo, nem um dueto. Entre seus agentes se incluíam
dois dos intérpretes que serviam ao comandante alemão em
Paris e, através deles, recebia detalhes exatos das forças
alemãs no interior da capital francesa e em seus arredores,
seus suprimentos e equipamentos, seus movimentos, os
quais lhe proporcionavam, igualmente, um retrato, de
conjunto, da situação militar na França. Kathe Völkner,
secretária do chefe do Arbeitseinsatz, o Departamento de
Trabalho Forçado, transmitia-lhe informações de idêntica
importância. Kathe, que fora acrobata de certa reputação e
viajara por toda a Europa — de norte a sul e de leste a oeste
—, inclusive a Rússia, com seu amante, Johann Podsiadlo,
fora salva de ser internada pelos franceses, no começo da
guerra, graças aos bons ofícios da organização soviética.
Ambos aprenderam taquigrafia e datilografia e, quando os
alemães ocuparam Paris, Kathe conseguiu o emprego em
que então se encontrava, enquanto Johann foi tomado como
intérprete por uma outra organização de recrutamento.

Anna Maximovich, irmã de Vasili, integrara-se igualmente no


grupo. Com a ajuda de Trepper, abriu uma nova clínica na
linha de demarcação entre as Zonas Ocupadas e Não-
Ocupadas. Essa localização transformara seu pequeno
hospital não somente num excelente ponto de encontro
para os agentes clandestinos, mas, igualmente, numa
fazenda bem administrada e produtiva, em condições de
fornecer gêneros alimentícios para muitos dos que não
dispunham de cartões de racionamento.

Ali, ela atendia aos seus pacientes verdadeiros, assistida


pelo Dr. Jean Darquier, cujo irmão era o Comissário-Geral
para os Assuntos Judaicos no governo do Marechal Pétain.
Como Jean Darquier era pessoa de sua confiança, essa
ligação abriu uma fonte de informações não somente
relativas às questões judaicas, mas também relacionadas
com uma larga variedade de assuntos de ordem geral,
todos de grande interesse para Moscou. Desde que o
casamento de seu irmão com Fraulein Hoffmann-Scholtz
realçara grandemente a posição de Maximovich com os
alemães, não tardou que oficiais do exército de Hitler
procurassem tratar-se com Anna, de suas enfermidades
nervosas, provocadas pelo esforço de subjugar um povo
orgulhoso e agitado. Esses oficiais constituíram também
nova fonte de informações. Nessas condições, levando-se
em conta todas essas circunstâncias, a rede de Maximovich
adquiriu considerável importância no fornecimento de
Inteligência ao Centro.

Tudo corria bem, até que ocorreram as prisões e o


desmantelamento da rede da Bélgica, o que, como era de
se esperar, fez com que os alemães concentrassem sua
atenção no que se passava na França. Uma vez mais, foram
os rádio-operadores que caíram em primeiro lugar. Em
junho de 1942, os técnicos da Abwehr, encarregados de
detectar a direção das irradiações clandestinas, levaram os
policiais alemães ao Dr. Herz Sokol e a sua esposa, Miriam.
Essas prisões colocaram Trepper, pessoalmente, em grande
perigo, pois ele os havia usado como seu principal veículo
de comunicação com Moscou. Afortunadamente, o doutor e
Sra. Sokol, ambos poloneses e veteranos comunistas, se
recusaram a falar, durante algum tempo. Quando, porém, a
Sra. Sokol ouviu a ameaça, feita pelos alemães, de que seu
marido seria fuzilado diante dos seus olhos, fraquejou e
confessou. Denunciou tudo o que sabia sobre Trepper, mas
não sabia o suficiente para comprometê-lo. Frustrada e
irritada, a Abwehr executou os dois, sem maior
preocupação.

A maior ameaça à rede soviética na França veio dos ex-


integrantes da rede belga, que haviam concordado em
colaborar com os alemães. Esse fato revela, de maneira
expressiva, a falta de habilidade de alguns dirigentes do
Centro, que, permitindo a existência de um chefe na direção
ou relacionado com duas organizações, funcionando em
dois países separados, comprometiam a segurança de
ambas as redes. Em outubro de 1942, oficiais da Abwehr,
que haviam sido responsáveis pela apreensão da rede
belga, chegaram a Paris, levando em sua companhia alguns
daqueles agentes-colaboradores. Logo após o desembarque
desses elementos na capital francesa, umas duas vintenas
de agentes soviéticos, ou de pessoas suspeitas de serem
agentes, foram presas.

O objetivo principal que tinham em mira era, naturalmente,


Trepper — o Grande Chefe —, sobre quem já sabiam muitas
coisa. Possuíam uma fotografia sua, fornecida por Rita
Arnould; não ignoravam o papel que desempenhara na rede
de Bruxelas; e estavam cientes também de que se
encontrava na França. Só não sabiam onde Trepper estava
morando.

Numa tentativa de fazê-lo aparecer, os alemães levaram


Raichmann a Paris e lhe prometeram que, se conseguisse
entrar em contato com Trepper, teria a vida poupada.
Raichmann comprometeu-se a fazer o que pudesse e,
embora houvesse tido a oportunidade de trair diversos
agentes soviéticos, denunciando-os ao serviço de
contraespionagem alemã, no curso das suas
“investigações”, não conseguiu induzir Trepper a se mostrar.

Mas, se Raichmann fracassou, os dias de Trepper


pareceram, entretanto, contados, quando um intérprete que
trabalhava na Simex — a firma que organizara como
disfarce para suas atividades —, uma antiga russa “branca”,
Maria Kalinina, e seu filho Evgeni, um dos motoristas da
organização, denunciaram o verdadeiro papel daquela
empresa industrial. Avisado com antecedência, Trepper
mergulhou na clandestinidade e, embora muitas iscas
fossem postas para atraí-lo, nunca as mordeu.
Trepper caiu, finalmente, nas mãos dos alemães, em
consequência de sua própria falta de cuidado. Num diário,
que deixara em sua secretária, na Simex, anotara uma hora
marcada com seu dentista. Para um agente da sua
experiência, esse fato constitui falta inadmissível, e ainda
pareceu quase incrível, ao saber-se que o Grande Chefe
compareceu ao encontro marcado, mesmo sabendo da
deserção dos Kalinin. Dessa forma, foi preso, no dia 16 de
novembro de 1942, quando se achava sentado na cadeira
do dentista.

No princípio, Trepper recusou-se a falar. Quando soube,


porém, que, se insistisse no mutismo, seria entregue à
Gestapo, que utilizava métodos mais persuasivos que a
Abwehr para arrancar confissões, concordou em dar
algumas informações, que não repugnavam em demasia à
sua consciência. Uma vez mais, torna-se surpreendente que
um agente de tão longa experiência não compreendesse
que, quando um homem na situação em que ele se
encontrava começa a falar, não há limite, de fato, para o
que possa revelar. Quanto mais informações dava, mais o
parafuso se apertava, e, por fim, viu-se colaborando
francamente com os alemães.

O primeiro assistente que denunciou foi seu secretário,


Hillel Katz, a quem pediu que o encontrasse na estação do
metrô da Madeleine. Quando Katz foi acareado com Trepper,
este lhe ordenou revelasse tudo o que sabia. Katz obedeceu
e, quando já havia dito tudo, os alemães o executaram.

Entre os dois, Trepper e Katz, também foi atraiçoado Henry


Robinson, o chefe da rede, que, depois de Maximovich, era
que operava com maior êxito. Robinson foi preso no dia 21
de dezembro de 1942.
A maior traição de Trepper, porém, foi sua denúncia de Vasili
e Anna Maximovich e de toda a rede de que dispunham. A
prisão desses agentes destruiu todas as organizações
soviéticas que tinham Paris por base — redes tão
astuciosamente estruturadas e que tanto sucesso vinham
alcançando.

Esses fatos, entretanto, não significam que tenha chegado


ao fim a espionagem soviética na França. Victor Sukulov, o
Pequeno Chefe, que escapara ao cerco das tenazes da
Abwehr em Bruxelas, transferira-se para Marselha, onde
vinha dirigindo com êxito uma excelente organização.
Existia ainda outra que operava em Lyon — um dos centros
da resistência francesa —, dirigida por Jezekiel Schreiber.
Em poucos meses, essas duas redes também haviam sido
desmanteladas, e a mesma desprezível história de traição
fora repetida.

É difícil compreender o completo fracasso dos principais


agentes russos — homens cheios de bravura e com longos
anos de serviço prestados à espionagem soviética.
Desgraçadamente, não dispomos de suficiente espaço para
analisar, em detalhe, o colapso moral e a quebra de
lealdade, dos quais, segundo razoavelmente se deveria
esperar, deveriam estar isentos homens como Trepper,
Sukulov, Katz, Raichmann, os Kalinin, Máximovich, Henry
Robinson e outros. Todos eram comunistas veteranos e,
nessas condições, dever-se-ia pensar que a ideologia que
professavam iria impedir que colaborassem com os
fascistas. Além disso, constituíam uma elite de agentes
altamente treinados, e essa circunstância também deveria
tê-los condicionado a preferir a morte à desonra. Enquanto
estavam operando, revelaram todas as gamas de
engenhosidade, todas as escalas de coragem, uma
completa devoção às incumbências que lhes foram
atribuídas. Tudo isso, sem dúvida, torna a traição que
praticaram ainda mais difícil de ser compreendida.

Trepper colaborou com a Abwehr em seu “jogo do rádio” e,


por meses e meses, operou uma estação transmissora para
os alemães. Como resultado dessa sua atividade, a
Resistência Comunista Francesa, um dos grupos de
resistência mais poderosos e ativos em toda a França, foi
tornada praticamente sem eficiência.

Com permissão para viver numa residência particular,


situada à Avenida Foch, com sua amante, Geórgia de
Winter, conseguiu ludibriar a guarda que o vigiava, em
junho de 1943, e nunca mais foi visto pelos alemães.
Chamado de volta a Moscou, no término da guerra,
obedeceu submissamente, embora devesse saber que seu
destino seria a execução — fato este que lhe toma a
deserção ainda enigmática.

Mais danosas, entretanto, foram as atividades de Sukulov, e


os motivos que o levaram à traição que praticou foram
simples e pessoais. Ao ser preso, recusou-se, firme e
secamente, a dizer qualquer palavra. Nem ameaças nem
torturas o fizeram mudar de atitude. Ao contrário, pediu
para ser executado.

Um dia, porém, foi acareado com sua amante, Margarete


Barcza. De acordo com o Der Stern, que publicou, no dia 17
de junho de 1951, declarações feitas por agentes da
Gestapo, relativas ao desmantelamento das redes francesas
e ao “jogo do rádio”, o que aconteceu foi o seguinte: “Ao ver
Barcza, Sukulov mostrou-se furioso. Avançou para ela e a
abraçou, com uma ternura de que só um russo é capaz.
Voltando-se, então, para o Comissário, exclamou: Deixe que
ela vá em liberdade, e eu lhe contarei tudo. . . Ajoelhou-se
diante do oficial e chorou como uma criança.”
Os alemães aceitaram a proposta e, dentro de poucas
semanas, Sukulov, acompanhado de Margarete Barcza,
estava de volta a Marselha, operando um transmissor para
o “jogo do rádio”. Iludiu completamente o Centro, o qual,
por sua vez, continuou a lhe enviar instruções, recebendo,
em troca, informações preparadas pelos alemães. Sukulov
chegou mesmo a se oferecer para tentar entrar em contato
com a rede que operava na Suíça, mas o agente britânico
que a dirigia estava muito prevenido contra ele, e o golpe
falhou. Essa tentativa pôs termo à sua utilidade para os
alemães, pois o relatório que Foote enviara ao Centro fez
com que seu diretor mandasse instaurar inquéritos, a fim de
apurar o que de fato ocorria na França. Em face das
investigações realizadas, ficara apurado que Sukulov tinha
estado a serviço dos alemães nos últimos quatro ou cinco
meses.

Sukulov retirou-se com os alemães, quando a França foi


libertada, enquanto Barcza montou uma casa para ambos,
em Bruxelas. Ali, ele a visitava, de tempos a tempos,
enquanto vivia clandestinamente, para escapar tanto à
atenção dos russos como à dos aliados. Pouco tempo depois
da guerra, viajou para os Balcãs, e ali desapareceu. A
Segunda Seção do Terror e do Desaparecimento, segundo
tudo indica, conseguira, por fim, pegá-lo.
4. A Orquestra Vermelha e Outras

Embora não por culpa sua, Victor Sukulov foi, igualmente,


envolvido na apreensão e na supressão de uma das
notáveis organizações da espionagem soviética que
operavam durante a guerra. Conhecida como a Orquestra
Vermelha — Die Rote Kapelle * —, era admirável, tanto por
seus membros integrantes quanto pelas informações que
pôde transmitir para Moscou, durante os quatorze meses de
sua existência.

Durante o período da “cooperação” nazi-soviética, que se


estendeu da assinatura do Pacto Ribbentrop-Molotov até o
irrompimento da guerra entre a Alemanha e a Rússia em
1941 — e coincidiu, aproximadamente, com a eliminação
das redes soviéticas de antes da guerra, instaladas em
território germânico, como em outros países da Europa
Ocidental —, verificou-se uma fase de calmaria na política
mundial. Mas, como aconteceu naqueles outros países, se
uma espionagem ativa não estava em curso, esse período
de calmaria foi utilizado, na Alemanha, para a instituição de
uma organização que poderia operar quando a guerra
viesse a irromper entre as potências fascistas e comunistas.

Por motivos que se desconhecem, entretanto, a organização


desse “aparelho” de espionagem foi deixada a cargo de
agentes profissionais, adidos à embaixada da Rússia em
Berlim. Esses agentes, ainda por outras razões que não
puderam ser descobertas, entraram em pânico ou
retardaram o trabalho até 22 de junho de 1941, quando,
então, procuraram realizá-lo, mas deixando apenas
vagamente concluído. O resultado foi que, quando a
embaixada preparou sua mudança e abandonou
rapidamente o país, no dia seguinte à irrupção da guerra
entre a Alemanha e a Rússia, o pessoal da Inteligência a
acompanhou, e ali foram deixados apenas como que uns
simples ossos de uma rede, e não o esqueleto completo de
uma organização dessa natureza.

Deve ser recordado naturalmente que, em face do


desmantelamento dessas organizações no período anterior
ao nazismo e da quase supressão do Partido Comunista
Alemão, as reservas de talentos locais foram seriamente
afetadas, quer quanto à sua quantidade, quer no que diz
respeito à sua disponibilidade. Não obstante esses
embaraços, levando-se em conta o caso da Rote Kapelle,
não há dúvida de que, se o esforço das agências soviéticas
fosse mantido durante o período de 1939 a 1941, uma rede
poderia ter sido organizada e estaria em condições de
entrar em imediata e efetiva ação, tão logo o Dia D viesse.
Isso não aconteceu, porém. O pequeno grupo que foi
recrutado não era apenas inexperiente em técnicas de
espionagem, mas também impropriamente preparado para
o que, nos melhores círculos de espionagem, se denomina
grave risco de segurança. Apesar dessas deficiências, esse
grupo venceu a maior parte das dificuldades que se lhe
apresentaram e só caiu vítima dos detectores de
radiotransmissão da Abwehr.

Os líderes do grupo eram Harro Schultze-Boysen e Arvad


Harnack, ambos homens de reais qualidades. A tarefa que
lhes competia era reunir, para a execução de uma missão
coletiva, certo número de colaboradores que
ultrapassassem, em qualidades, a maioria dos membros
ordinários da espionagem soviética daquele tempo.
Originalmente, o círculo formado fora constituído de uma
pequena parte do grande grupo antinazista de Resistência
Comunista. Embora fosse tradicional que os comunistas
russos e alemães se limitassem a realizar apenas o papel de
Resistência, aqueles novos recrutados se mostraram bem
menos importantes e eficientes nesse setor de que o foram
em suas atividades de espionagem.

Harro Schultze-Boysen, era filho de um oficial alemão


aristocrata. Servira na Marinha, durante a Primeira Guerra
Mundial, e foi chefe do Estado-Maior do General Der Flieger
Friedrich Christiansen, comandante-chefe, na Holanda,
durante a Segunda Guerra Mundial. Quando atingira a idade
de quinze anos, Schultze aderira à ala direita do movimento
antinazista, mas não por muito tempo, pois breve passaria
para o extremo oposto. Em 1932, quando tinha vinte e dois
anos, era o porta-voz de um grupo de jovens progressistas.
Por causa dessas atividades, foi preso e encarcerado pela
Gestapo, quando os nazistas assumiram o poder. Essas
experiências empurraram-no naturalmente para a extrema-
esquerda e para o comunismo. Suas simpatias pelo
comunismo não impediram, entretanto, que se tornasse
membro do Ministério da Aeronáutica da Alemanha, no qual,
em tempos de operação, esteve servindo como oficial da
Inteligência.

Quando atingiu a idade de vinte e seis anos, Schultze-


Boysen casou-se com uma neta do Príncipe Philip von
Eulenberg — Libertas Haas-Heye —, que lhe iria ser de
grande ajuda, já que iniciou efetivamente suas atividades
de espionagem no mesmo ano do seu casamento, isto é,
1936. Nessa época, enviava informações aos vermelhos
espanhóis, relativas à Inteligência alemã.

Nesse ano, começou a reunir em torno dele um grupo de


homens de orientação política idêntica à sua. Nunca foi,
entretanto, um comunista ortodoxo. Embora suas simpatias
estivessem cem por-cento com os soviéticos, seu caráter —
era instável e emocional em excesso — não lhe permitiria
nunca obedecer em qualquer circunstância, ao que fosse
ditado por Moscou.

Imediatamente antes de Hitler invadir a Rússia, Schultze-


Boysen foi apresentado a um agente soviético que
integrava o quadro do pessoal da embaixada e cujo papel
era assistir Bogdan Kobulov, que, sob o disfarce de
conselheiro da embaixada, estava encarregado de
estabelecer uma rede que deveria operar na Alemanha,
após a irrupção da guerra. Esse agente, que disfarçara com
êxito sua identidade, sob o falso nome de Alexander
Erdberg, viu imediatamente em Schultze-Boysen o tipo de
homem de que necessitava. Em breve, era ele escolhido
pelo Centro para ser um dos três diretores da referida rede.
Seus companheiros seriam Arvad Hamack e Adam Kuckhoff.

Harnack era bem diferente de Schultze-Boysen: dez anos


mais velho e membro de uma famosa família de filósofos
alemães. Como Schultze, entretanto, cedera, a princípio,
aos grupos de extrema-direita, no fim da Primeira Guerra
Mundial, e então derivara para o comunismo. Era, porém,
um verdadeiro comunista, um marxista.

Quando um grupo de intelectuais comunistas alemães


fundou, em 1931, uma sociedade de propaganda do
comunismo, denominada Sociedade Para Estudo da
Economia Planificada, Harnack destacou-se entre esses
idealistas. Embora essa sociedade, que dispunha de pleno
apoio de Moscou, não tivesse sido criada, originalmente,
para fazer espionagem, acabou sendo solicitada, entretanto,
a fornecer certas informações a Moscou.

Em 1932, um pequeno número de sócios dessa entidade —


entre eles, Harnack — visitou a Rússia, numa viagem de
estudo. Essa excursão, segundo tudo faz crer, desempenhou
papel importante em relação ao futuro desenvolvimento
político de Harnack. Suas qualidades intelectuais foram
notadas pelos dirigentes soviéticos, que logo o convidaram
para realizar espionagem em favor do governo de Moscou.
Ele concordou com a proposta e, com a possível exceção de
George Blake, a espionagem soviética provavelmente nunca
dispôs, em seus quadros, de um agente, como ele, tão
altruísta em seus motivos. De fato, Harnack só se envolvera
em espionagem por motivos puramente ideológicos, e nela
permaneceria pelos próximos dez anos, sem levar em
consideração qualquer outra circunstância.

Ao regressar de Moscou, Harnack solicitou e obteve um


cargo no Ministério da Economia da Alemanha. Constitui um
mistério indecifrável o recurso de que se valeu para ocultar
sua visita à Rússia. Com efeito, ele não iria ser
desmascarado senão quando a Orquestra Vermelha fosse
desmantelada — época em que o papel que desempenhava
na organização tornou-se conhecido.

É óbvio que Harnack era uma dessas raras criaturas — um


espião de nascença. Embora não houvesse recebido
qualquer treinamento, durante sua longa carreira, sempre
observou os princípios básicos da segurança, e nem uma só
vez deixou escapar a mais leve insinuação sobre suas
atividades secretas. Tanto êxito obteve que logo passara a
ser considerado, no Ministério da Economia, como modelo
do que um oficial deve ser — um burocrata consciencioso e
trabalhador.

No fim da década dos vinte, passara dois anos nos Estados


Unidos, através de uma bolsa de estudos da Fundação
Rockefeller. Durante sua permanência ali, conheceu Mildred
Fish, conferencista de literatura, com ela se casando. A Sr.a
Harnack não necessitara de muita persuasão para adotar as
idéias do marido. Quando ele retornou de Moscou, ela se
mostrava tão entusiasmada quanto ele em relação a suas
novas funções. Ao ser desmantelada a Orquestra Vermelha,
pelos alemães, foi presa, juntamente com o marido, e
julgada, embora nunca fosse confirmado que alguma vez se
tivesse empenhado em atividades de espionagem.

O terceiro membro do triunvirato, Adam Kuckhoff, era


conhecido escritor e produtor de teatro. Tinha cerca de
cinquenta anos quando a Orquestra Vermelha foi
organizada. Como os outros dois, iniciara a vida política
como nacionalista-direitista e, com o advento do nazismo,
aderira ao comunismo, como o meio mais efetivo de
derrubar a ditadura. Sua esposa, Margarete, que o ajudara
em todas as suas atividades antinazistas, era funcionária do
Departamento de Política Racial, dirigido por Alfred
Rosenberg. Kuckhoff, dos três, foi o que desempenhou papel
de menor importância.

Em torno desses três líderes, agruparam-se


aproximadamente cem pessoas. Viam-se, entre eles, alguns
membros do Partido Comunista Alemão, embora não
dispusessem de muita influência. Os restantes eram jovens
comunistas, ideologicamente sem base, mas fanáticos em
seu ódio a Hitler e a tudo o que ele representava, e uma
diminuta parte de não-comunistas — que não conheciam,
exatamente, por que ideais estavam lutando, a não ser que
eram antinazistas.

O grupo que realizava espionagem ativa era constituído de


uma pequena fração do conjunto e guardava seu segredo
com discrição, embora isso não tivesse sido suficiente para
salvar os demais, quando a tragédia os avassalou. Os dois
principais líderes — Schulze-Boysen e Harnack —, o primeiro
na Inteligência do Ministério da Aeronáutica, e o segundo no
Ministério da Economia, encontravam-se em excelentes
posições para coletar informações da maior importância. Os
demais integrantes do grupo achavam-se, igualmente, bem
situados. Horst Heilmann trabalhava no departamento de
decifração de códigos na Wehrmacht; Johann Graudenz,
viajante de fábricas de freios que fornecia à Luftwaffe, fazia
os registros da produção aeronáutica dos nazistas; Erwin
Gehrts trabalhava em outro departamento do Ministério da
Aeronáutica; Herbert Gollnow tinha acesso aos segredos da
contraespionagem da Wehrmacht; Gunther Weisenborn era
funcionário do serviço nacional de rádio; enquanto outros se
encontravam firmemente entrincheirados no Ministério do
Exterior, no Ministério da Propaganda, no Ministério do
Trabalho, na Administração Municipal e em vários
departamentos importantes.

A Orquestra Vermelha era a única rede que funcionava na


Alemanha, mas, ao lado dela, existiam também uns dois
agentes isolados, independentes, que ali estavam operando.
Os mais importantes deles eram Hans Kummerow e Rudolf
von Schelihä, cuja antecipada remoção da cena, levada a
efeito pela contraespionagem, deixara o campo livre para a
Orquestra Vermelha. Esses dois agentes eram, entretanto,
personalidades tão interessantes que merecem uma
menção especial.

Kummerow era destacado engenheiro e inventor. Participara


da espionagem industrial, realizada em pleno dia, na
década dos vinte, quando enviara para Moscou
particularidades de sua invenção do radar primitivo e da
guerra química. Considerado ainda homem de grande
utilidade quando a guerra irrompeu, os russos tentaram
enviar-lhe um rádio-operador, só para ele, já que não
dispunha de meios para se comunicar com o Centro.
Desgraçadamente, esse operador, atirado em paraquedas,
foi preso ao tocar a terra e, sob torturas, confessou tudo.
Kummerow e sua esposa foram presos e executados em
1943.
Von Schelihä era um tipo bem mais agradável. Penetrou na
órbita do Centro quando conselheiro da embaixada da
Alemanha em Varsóvia. Descendente de uma família
aristocrática e diplomata de carreira no velho estilo, casara-
se com uma mulher muito rica. Possuía, porém, hábitos
excessivamente extravagantes, particularmente no que
dizia respeito a amantes. Nessas condições, apesar de a sua
própria renda não ser desprezível e da fortuna da esposa,
logo se enredara em grandes dívidas. Foi quando teve a
idéia de vender os segredos do governo que eram de seu
conhecimento a quem mais oferecesse por eles. Os
ingleses, durante algum tempo, foram seus fregueses, mas,
quando souberam que, simultaneamente, ele cedia o
mesmo material aos russos, interromperam as transações.
Os russos não se mostraram tão exigentes, e Von Schelihä
continuou a servi-los; poderia ter continuado a fornecer
esses segredos ainda por muito tempo, sem ser
desmascarado, não fosse a falta de rádio-operadores. A
partida da embaixada soviética de Berlim, em junho de
1941, deixara Schelihä sem um canal de comunicação com
Moscou. Um especialista em rádio, Kurt Schulze, recebera
instruções para ajudar o diplomata e sua assistente, Ilse
Stöbe. Mas, quando isso aconteceu, parece que Schelihä
tinha pensado no perigo que estava correndo e se tornara
relutante em prosseguir na sua cooperação com Moscou. O
Centro, por sua vez, não desejava perder os serviços que
ele vinha prestando e arranjou para enviar um correio, de
paraquedas, para fazer uma chantagem contra Schelihä.

O homem escolhido em primeiro lugar para investigar as


razões da relutância de Schelihä fora Victor Sukulov. Isso
ocorreu antes que Sukulov tivesse sido preso e começasse a
colaborar com a Abwehr — na realidade, antes do
desmantelamento da rede belga. Tendo-se avistado com
Schelihä e arranjado para que Kurt Schulze fosse o vínculo
radiofônico dele com Moscou, Sukulov enviou um relatório,
em código, para o Centro, dando conta do desempenho da
missão que lhe fora confiada. A Abwehr interceptou esse
relatório, e seus técnicos conseguiram decifrá-lo, com a
ajuda do traidor belga, Wenzel. O Centro ignorava o que se
passava. Desconhecia, também, o fato de que Ilse Stöbe
havia sido presa, antes que a decisão de enviar um
chantagista a Berlim fosse tomada.

O resultado foi que uma mulher, agente da Gestapo,


apresentando-se como Ilse Stöbe, se encontrava no
apartamento de Schelihä, quando o chantagista, Heinrich
Koenen, chegou. Tiveram uma conversa esclarecedora,
antes que os oficiais da Gestapo o detivessem. Ilse
recusara-se a falar, mas Koenen concordou em colaborar,
resultando daí que Schelihä fosse preso; e ambos, Schelihä
e Ilse Stöbe, foram executados no dia 22 de dezembro de
1942.

Com a remoção de Kummerow e de Schelihä do cenário


alemão, a importância da Orquestra Vermelha cresceu
proporcionalmente e, por quatorze meses, o grupo mais do
que compensou os desastres sofridos em consequência da
eliminação daqueles dois agentes. Conseguiu a Orquestra
enviar para Moscou informações de vital importância, como,
por exemplo: planos estratégicos do Alto Comando alemão;
movimentos e localização dos esquadrões aéreos de
Goering; planos para ataque aos comboios ingleses que
seguiam para a Rússia; estatísticas da produção aeronáutica
mensal; a situação dos exércitos, que se encontravam na
Rússia, em relação a combustíveis; e muitas outras de
menor relevância, mas sempre dignas de serem sabidas.

Desde iniciadas suas operações, entretanto, as estações de


detectação das emissões de rádio da Abwehr e da Gestapo
vinham tomando conhecimento das atividades de
transmissores clandestinos, dentro das fronteiras alemãs, e
haviam iniciado uma incessante busca para localizá-los.
Como já vimos em páginas anteriores, a espionagem
soviética sofrera seu primeiro golpe com o
desmantelamento da rede belga e, quando a segunda rede
— da qual Hermann Wenzel era o operador — foi,
igualmente, apreendida e Wenzel se tornara um traidor,
revelando a cifra dos seus códigos, muitas das mensagens,
previamente cifradas, puderam ser lidas.

Nessas condições, ao mesmo tempo que Victor Sukulov fora


enviado para descobrir o que se passava com Schelihä,
recebeu instruções também para examinar que ajuda
poderia prestar à Orquestra Vermelha, de Schulze-Boysen e
Harnack. Sukulov encontrou os dois agentes em Berlim,
verificando então que a maior dificuldade com que lutavam
se relacionava igualmente com a falta de facilidades para
transmissões e recepções radiotelegráficas de primeira
categoria. Sukulov removeu essas dificuldades e retornou à
Bélgica, somente para, dentro de poucos dias, escapar de
ser preso e ter de fugir para a França.

Entre as mensagens captadas pela Abwehr, estava aquela


que lhe havia sido enviada, dando-lhe instruções para ir à
Alemanha e entrevistar-se com Schulze-Boysen e seus
companheiros. Nela, o endereço de Adam Kuckhoff era
dado, e algumas particularidades foram reveladas em
relação aos outros dois. Essas pequenas informações,
entretanto, mostraram-se perfeitamente suficientes para
que eles pudessem ser identificados, e, com base nessa
apresentação, os três foram presos. Schulze-Boysen, no dia
30 de agosto de 1942; sua mulher, alguns dias mais tarde; e
os Harnack, no dia 3 de setembro.

Antes de prender Schulze-Boysen, a Gestapo tinha


controlado seu telefone e, como resultado dessa
providência, pôde entrar em contato com cerca de uma
centena de outras pessoas do grupo maior. Nem todos eles,
porém, caíram nessa armadilha. Alguns membros, entre os
quais Libertas Schulze-Boysen, concordaram em colaborar.
No período de alguns dias, a Orquestra Vermelha tinha
deixado de existir na Alemanha.

O julgamento dos principais réus iniciou-se no dia 15 de


dezembro de 1942. Os Schulze-Boysen, os Harnack e os
Schumacher, Hans Copp — o rádio-operador —, Heilmann,
Gehrts, Kurt Schulze — o operador de Schelihä —,
Graudenz, Gollnow e Erika von Brockdorf sentaram-se no
banco dos réus. Desses quatorze, onze sofreram a pena
capital, mas Mildred Harnack e Erika von Brockdorf viram-se
condenadas à prisão. As sentenças de morte foram
executadas poucos dias após o veredicto, tendo as vítimas
ficado penduradas em ganchos para carne. De acordo com
o princípio de que "aqueles que se metem na sombra da
traição põem em leilão suas vidas”, Hitler ordenou novos
julgamentos para as duas mulheres, que,
consequentemente, foram condenadas à morte e
guilhotinadas.

Dos restantes, os Kuckhoff tiveram seu julgamento no dia 3


de fevereiro de 1943, juntamente com outros. Todos foram
condenados à morte. Frau Kuckhoff, porém — e isso não
deixa de ser curioso —, foi absolvida. Considerando a
situação em conjunto, pode-se dizer que cerca de cinquenta
desses agentes foram presos e executados.

As autoridades nazistas envolveram todo o caso da


Orquestra Vermelha em tão profundo sigilo que somente
quando a guerra terminou é que a completa história desses
julgamentos e dessas execuções pôde ser revelada. O
Ministro das Finanças, Walther Funk, segundo se diz, não
soubera da prisão de Harnack senão nas vésperas da sua
execução.
A Orquestra Vermelha e os agentes isolados não
constituíram o único esforço realizado pela espionagem
soviética no interior da Alemanha. As autoridades russas
ficaram impressionadas com a organização britânica,
denominada Departamento Executivo de Operações
Especiais — SOE — e decidiram criar, em seu próprio país,
uma entidade similar. Nessas condições, antes que os norte-
americanos chegassem à Inglaterra para saber o que os
ingleses lhes poderiam sugerir em relação à sua projetada
organização — Escritório de Serviços Estratégicos (OSS) —,
os russos já haviam enviado técnicos a Londres, com a
incumbência de recrutar alguns dos “cérebros” do SOE. Eu
mesmo submeti-me a treinamento pelo SOE, para uma
subsequente missão na Europa Oriental, e até hoje me
recordo do mal-estar que assaltou os instrutores ingleses -
quando os russos chegaram —, em face daquela decisão de
lhes permitir que tomassem conhecimento dos segredos da
organização.

De que esse medo era justificado não resta a menor dúvida,


levando-se em conta as subsequentes atitudes da Rússia
nesse campo. O técnico incumbido de estabelecer uma
organização desse tipo na Rússia foi o misterioso Alexander
Erdberg, que trabalhara na embaixada russa em Berlim. Os
agentes que deveriam integrar a organização eram
escolhidos, em sua maioria, entre os muitos mil que tinham
fugido dos exércitos alemães em ofensiva e se mostravam
suficientemente fortes e jovens para se submeterem a um
rigoroso curso de treinamento em armas e paraquedas,
enquanto os selecionados para atuar na Alemanha eram
jovens comunistas emigrados.

Tudo faz crer que os russos não compreenderam


exatamente as dificuldades que teriam de enfrentar para
instituir missões dessa natureza. A necessidade desses
agentes era urgente, e o seu treinamento, portanto, foi
acelerado. A grande maioria deles constituía, na realidade,
riscos de segurança de primeira classe, no momento em
que tocasse a teria. E isso porque havia sido
demasiadamente apressada a instrução que receberam
para as funções de agentes secretos. Rádio-operadores
foram postos em atividade, dotados de uma instrução que
só serviria para atirá-los, de saída, nas garras das unidades
de detectação de emissoras que, cada dia, se revelavam
mais eficientes. Seus códigos, necessariamente simples,
eram, entretanto, tão rudimentares que as mensagens neles
transmitidas poderiam ser perfeitamente sem cifra. Nessas
condições, os russos nenhuma tentativa fizeram — ou assim
parece — para instituir o tipo de organização de “recepção”
em campo, que tanta significação tinha para esse tipo de
agente, e que os ingleses, utilizando o mesmo gênero de
pessoal e a mesma qualidade de organização de resistência
clandestina, com tanto sucesso haviam construído.

Tudo faz crer, igualmente, que as autoridades de Moscou,


responsáveis por essa organização, não mereciam fé e
encaravam sua tarefa com um cinismo raro, mesmo entre
os russos. Talvez dispusessem de vastos recursos humanos,
aos quais podiam recorrer, mas, se isso era verdadeiro ou
não, o fato é que usavam seus homens e suas mulheres
com uma prodigalidade quase inacreditável.

Eu mesmo caí vítima da Abwehr, mas isso não foi devido a


qualquer falta da OSE, nem por culpa minha. Durante os
primeiros estágios de convívio com a Abwehr, três
acontecimentos deveriam revelar a atualidade de todos os
pontos acima referidos. Em primeiro lugar, passei minha
primeira noite de prisão numa cela ocupada por um jovem
agente russo, que seria fuzilado na manhã seguinte.
Descobrimos uma linguagem comum, e eu, em conversa
que se prolongou por grande parte da noite, soube que ele
não completara ainda dezenove anos, que recebera um
treinamento de cinco semanas antes de ser lançado atrás
das linhas alemãs e fora preso, dois dias mais tarde, quando
operava seu rádio. Não se tratava de um traidor. Havia sido,
entretanto, rigorosamente torturado, e disso possuía provas
evidentes no corpo. Era, antes de tudo, leal ao seu país, aos
seus dirigentes e à sua ideologia.

Em segundo lugar, uma moça agente, com a idade de


dezoito anos, foi posta em minha cela, com a insinuação de
que devíamos aproveitar bem o pequeno tempo que nos
restava. Embora desconfiássemos um do outro, suspeitando
um truque, e apesar de eu ter alegado, com veemência, que
preferia ficar sozinho, deixaram-nos juntos por algumas
horas. Vencendo nossa recíproca repulsa, conversamos um
pouco.

A moça não era russa, mas natural de um dos países


orientais subjugados pelos alemães. Fora treinada, durante
seis semanas, para servir como rádio-operadora — os
cursos mínimos de rádio da SOE eram de três meses —, e
atirada, num paraquedas, com um grupo de cinco homens.
Acabara presa, dentro de uma semana, através das
transmissões do seu rádio. Sentia-se desiludida. Sabia não
ter sido convenientemente treinada e, mais tarde,
conseguiu prolongar a vida, por curto espaço de tempo,
aderindo ao “jogo do rádio”.

Em terceiro lugar, encontrava-me num bloco de vinte celas,


destinado a confinamentos solitários. Cada cela, com
exceção da minha, estava ocupada por quatro ou cinco
agentes russos. Um guarda me disse que tinham caído do
céu como folhas no outono. Em cada duas ou três manhãs
da semana, as celas eram esvaziadas, já que seus
inquilinos, algemados juntos e levados para o pátio, debaixo
da minha janela, em grupos de doze ou mais, eram
fuzilados a metralhadora.
Na Alemanha existiam possibilidades para a organização
“de comitês de recepção”, mas pouca ou nenhuma
tentativa foi feita para organizá-los e treiná-los. Dada a
suspeição dos seus chefes, os agentes nunca foram
enviados em menos de dois — exceto em casos raros —,
com medo de que corressem para o inimigo mais próximo e
se rendessem. Tratava-se de uma base extremamente
precária para, sobre ela, construir uma força dessa
natureza, pois, a menos que os dirigentes soviéticos
tivessem confiança em seus agentes, estes, por seu lado,
não podiam confiar naqueles a que serviam. Se uma análise
pudesse ser feita do número dos que colaboraram e das
razões que, francamente, confessaram terem dado motivo a
essa colaboração, não seria surpreendente se essa falta de
confiança fosse encontrada na raiz mesma da maioria das
deserções.

Desde que a Alemanha estava fora do alcance dos aviões


de longo curso da Rússia — e mesmo que tivessem aviões
capazes de voar as distâncias em questão, a maior parte do
voo teria de se realizar sobre território inimigo, sempre bem
provido de barragem aérea —, os dirigentes soviéticos
solicitaram aos ingleses que colaborassem com eles,
fazendo o transporte de seus agentes. Os ingleses
concordaram. Embora nunca houvessem sido reveladas as
cifras do número de agentes efetivamente entregues, elas,
segundo se supõe, não devem ter sido elevadas, já que o
número de espiões postos dentro da própria Alemanha não
era grande. Quase todos os que foram atirados não
escaparam de ser presos em curto prazo, e uma boa
proporção dos que não foram apanhados se rendeu.

O mais logo período de liberdade de que habitualmente


gozavam os primeiros agentes fora de cinco meses. Assim
aconteceu com Wilhelm Fellendorf e sua companheira Erna
Eifeer, que chegavam a Hamburgo em maio de 1942, sendo
presos em outubro. Seus sucessores, Albert Hossler e Robert
Barth, tendo sido atirados em agosto de 1942, dois meses
mais tarde já estavam presos. O terceiro, Heinrich Ivoenen,
enviado para chantagear Schelihä, chegou ao apartamento
do último seis dias após sua aterrissagem, sendo
imediatamente detido. O próximo par desceu em fevereiro
de 1943, próximo de Freiburg, na Floresta Negra, e já
encontrou a Abwehr a aguardá-lo. Os dois tentaram
escapar, abandonando o equipamento, e conseguiram
mesmo entrar em contato com um veterano comunista
alemão, Heinrich Müller. Apanhados pouco depois, foram
executados, juntamente com Müller e sua esposa.

Quando os russos começaram a empurrar de volta os


exércitos nazistas e o seu front foi-se aproximando da
Alemanha e do alcance da sua aviação, a cooperação dos
ingleses foi sustada. Isso ocorreu mais ou menos em
meados de 1943. Daí em diante, grande número de agentes
foi posto no interior do território germânico, e essa
operação era realizada pelos próprios russos. Nenhum deles
comportou-se melhor do que seus antecessores. Desde que,
por essa época, os russos passaram a se utilizar de
prisioneiros de guerra, confessadamente antinazistas, a
média de colaboração tornou-se mais elevada do que
nunca. Erdberg, segundo tudo indica, estava ciente dessa
situação e, não obstante, acelerou suas entregas,
provavelmente baseado no princípio de que, descarregando
largo número de agentes, só alguns deles poderiam decidir-
se pela deserção, logo após a aterrissagem. Essas últimas
remessas eram integradas por agentes ainda pior equipados
— especialmente no que dizia respeito à documentação e às
técnicas de segurança — do que os atirados em épocas
anteriores. O cinismo de Erdberg, segundo parece,
aumentou, ao invés de diminuir.
Considerada em seu conjunto, essa fase da espionagem
soviética representa, possivelmente, a menos fecunda de
todas. Certamente, pouco contribuiu para as subsequentes
vitórias russas, e teria sido bem mais humano se os
soviéticos abandonassem o projeto, após os primeiros
fracassos.

Por outro lado, os sabotadores, que eram treinados e


transportados pela mesma organização, desempenharam
importante papel. Sua tarefa, porém, não era tão difícil.
Sendo enviados, em largos grupos, para trás das linhas
alemãs, competia-lhes uma tarefa simples ou dupla: teriam
de provocar o maior estrago possível ou iriam juntar-se aos
guerrilheiros, ocultos nas florestas, para treiná-los e liderá-
los em operações de sabotagem. Os arquivos alemães
demonstram que esses bandos valiam certamente o esforço
requerido para colocá-los em atividade.

Os arquivos de guerra da espionagem soviética revelam


plenamente que ainda havia muito para essa organização
aprender em relação à escolha dos agentes e ao seu
treinamento, antes que sua reputação pudesse classificá-la
entre as grandes agências do mundo. Que a lição foi levada
a sério, a experiência atual cabalmente o demonstra! 

* A Orquestra Vermelha foi o nome que os alemães deram à


rede. Esse nome foi tirado do jargão da espionagem russa,
que chamava certo tipo de radiotransmissor de “caixa de
música” e ao rádio-operador “músico”. O nome cobria todas
as redes germânicas, na Europa ocupada pelos nazistas,
mas era especialmente aplicado à que funcionava no
interior da própria Alemanha. 
5. A Grande Rede Suíça

No capítulo 4 da primeira parte deste livro, descrevemos


como Alexander Foote foi recrutado pelo serviço soviético
de espionagem. Fizemos ali também uma ligeira biografia
desse homem, realmente notável, até o momento em que
ingressou na rede suíça. Antes, porém, de prosseguirmos na
descrição do trabalho de espionagem desse grupo, será
conveniente ressaltar as qualidades humanas de Foote. Elas
retratam melhor sua personalidade, já que se tratava de um
agente sem treinamento especializado em técnicas de
espionagem.

Em primeiro lugar, e acima de tudo, Foote era um inglês de


bom senso, que possuía, além disso, a habilidade de
apreender e avaliar qualquer situação, com perfeita
segurança. Já que o bom senso e um seguro julgamento são
considerados as mais altas qualidades que um espião deve
possuir — por isto que inatas, não podendo ser adquiridas
—, ele constituía um elemento humano de importância,
principalmente levando-se em conta que, na época do seu
recrutamento, a rede suíça não passava de modesta
ramificação da espionagem soviética. Em 1938, ninguém,
nem mesmo o Diretor do onisciente Centro, poderia prever
que, três anos mais tarde, a Suíça iria transformar-se na
mais importante base da ofensiva dos espiões russos contra
a Alemanha e que prestaria, por fim, à estratégia soviética
de guerra, um serviço que, provavelmente, seria sem
paralelo, em relação aos levados a efeito por qualquer outra
de suas redes.
Até 1937, a pequena rede do GRU, na Suíça, fora dirigida
por uma bonita mulher, de trinta anos, conhecida pelo nome
de Vera, já que sua verdadeira identidade nunca foi
descoberta. O Centro a promovera para a seção suíça no fim
da Segunda Guerra Mundial e mais tarde ela se vira
envolvida no escândalo da espionagem no Canadá — de
certa forma, por culpa de uma mulher chamada Rahel
Dubendorfer —, quando, então, foi executada.

Tivera como sucessores alguns bons agentes, destacando-


se, entre eles, Sônia, com quem Foote entrara em contato,
como já foi dito, num encontro realizado, em frente ao
edifício do Correio Geral, em Genebra. O verdadeiro nome
de Sônia era Úrsula-Maria Hamburger. Foi ela a primeira
agente soviética a operar um radiotransmissor na Suíça.
Sônia e seu marido Rudolf haviam sido membros do Partido
Comunista Alemão e, juntos, trabalharam, por muitos anos,
como agentes soviéticos no Extremo Oriente e na Polônia,
além de outros países, até Rudolf ser preso na China. Sônia
foi enviada, então, para a Suíça, a fim de reorganizar ali a
rede, prejudicada pelos grandes expurgos russos de 1937 e
1938, durante os quais a Inteligência Militar sofrera
pesadamente. Tratava-se de uma mulher inteligente, bonita
e extremamente devotada ao comunismo.

Quando Foote a conheceu, Sônia estava-se fazendo passar


por uma mulher de recursos, vivendo com seus dois filhos e
uma ama-seca numa vila alugada em Caux, perto de
Montrcux. Do Centro, recebia um salário de
aproximadamente cento e dez libras. Da sua vila fazia
transmissões para Moscou, o que, naquela época de tão
rudimentar detectação de emissões, era perfeitamente
seguro, mesmo que os suíços se houvessem tornado
interessados em suas atividades.
Ao irromper a guerra, o Centro dera instruções a Sônia para
retirar todos os seus agentes da Alemanha. (Trata-se de um
bom exemplo da técnica soviética — ter o Diretor-Residente
de uma rede vivendo fora do país no qual essa mesma rede
operava.) Deveria ela, porém, permanecer na Suíça, a fim
de orientar Foote e um outro inglês, William Phillips, sobre
normas de transmissões. Nessa época, seu salário passara a
lhe chegar às mãos sem a devida pontualidade, o que lhe
causava algumas dificuldades. Quando o volume de suas
informações reduziu-se para apenas uma transmissão por
mês, Sônia fora transferida para a Inglaterra, onde chegou
em dezembro de 1940. Trabalhou na embaixada soviética
até o fim da guerra, quando a mandaram servir na Zona
Russa da Alemanha.

O diretor regional da rede suíça era Alexander Rado. Em


página anterior, revelamos, em traços rápidos, sua
biografia. Como já foi dito, ele havia sido designado para
esse posto em 1936, indo de Paris, e sua firma-disfarce
tinha o nome de Geopress. Em face do irrompimento da
guerra, a Geopress adquirira alta reputação, pois seu
trabalho era excepcionalmente bom. O próprio Rado
desfrutava de largo prestígio no círculo de conhecidos que
frequentava. Vivia em Genebra com sua esposa alemã,
Helene, e seus dois filhos, e certamente nunca esteve sob
suspeita de fazer espionagem, apesar de ser um
preeminente agente soviético.

Como agente, Rado acusava muitas deficiências. Era um


sibarita, e isso o levava a comprazer-se em atividades de
certo tipo que normalmente os agentes de primeira
categoria evitam. Em qualquer crise, como acontecia
também com muitos dos seus colegas, mostrava-se
inclinado a perder os nervos, tornando-se agitado. Com
frequência, violava as estritas normas de segurança
impostas pelo Centro. Também, desrespeitava regulamentos
que prevalecem no mundo das finanças, e essas
transgressões levaram-no, consequentemente, a ser
executado.

Sob o comando de Rado, no período que as operações da


rede suíça haviam chegado ao auge, estavam cerca de
cinquenta agentes de todas as categorias. O mais
preeminente e, certamente, o de maior êxito entre todos,
era o misterioso Rudolf Rössler, cujo nome falso era Lucy.

Rössler, filho de um guarda-florestal bávaro, fora durante


algum tempo editor de um jornal antinazista, em
Augsburgo. Em 1933, mudara-se para a Suíça, onde se
tornou chefe da firma de publicações Vita Nova, em
Lucerna. Como acontecera com a Geopress de Rado, Vita
Nova tomou-se logo bem conhecida. Isso, entretanto, por
uma diferente razão — sua violenta orientação antinazista.
A linha política de Rössler era mais anticapitalista do que
anticomunista, sendo ele membro do Die Entscheidung —
um grupo esquerdista católico.

Rössler iniciara-se em atividades de espionagem auxiliado


por um jovem amigo suíço, Xaver Schnieper, que o
conhecera em Berlim pouco antes de se mudar para a
Suíça. Este era jornalista, e também filiado ao Die
Entscheidung. Em 1939, fora recrutado pelo Serviço de
Informações do Exército suíço, o Nachrichtendienst, e,
quando lhe pediram que indicasse outros elementos que
pudessem ser úteis, recomendou Rössler.

Dessa forma, no outono de 1939, Rössler entrara para o


serviço do ND, embora não tivesse a intenção de trabalhar
para essa organização. É que estava sempre disposto a
colaborar com todos quantos se mostrassem antinazistas.
Possuía excelentes contatos na Alemanha e, embora
fornecesse algumas das mais fantásticas informações já
encaminhadas a qualquer agência de espionagem, até a
sua morte, ocorrida em 1962, sempre se recusara a revelar
quais as suas fontes. Condenado duas vezes, pelos suíços,
por crime de espionagem na Suíça, também, sustentara,
com igual firmeza, que não era culpado. Mas, quaisquer que
fossem essas fontes, elas deviam situar-se nos mais
elevados círculos do Alto Comando Nazista e do Ministério
do Exterior, pois, de outra forma, nunca poderia ter tido
acesso às informações que fornecia.

Desde o começo da guerra, os aliados ocidentais vinham


realizando um intercâmbio de Inteligência, mas após a
agressão de Hitler à Rússia, esta nação fora incluída,
igualmente, nessa troca de informações. Os russos, porém,
nunca se mostraram inclinados a qualquer reciprocidade.
Stálin certamente não fora surpreendido pelo
desencadeamento da operação Barbarossa, pois, ainda, em
março de 1941, o Subsecretário de Estado norte-americano,
Summer Welles, fizera uma advertência ao embaixador
soviético em Washington de que Hitler estava concluindo
seus preparativos para invadir a Rússia. Este fato foi
confirmado por Richard Sorge, o espião-chefe soviético no
Japão, por Sir Winston Churchill e, finalmente, por Rössler.

Com permissão do ND, Rössler passara a informação a


Rado, por intermédio de um amigo, Christian Schneider.
Este entrara pessoalmente em contato com Rahel
Dubendorfer, uma das principais intermediárias de Rado.
Esta foi a primeira contribuição de Rössler para a
Inteligência soviética, mas, daí por diante, trabalhou
regularmente para a rede de Rado e, segundo se presume,
com conhecimento dos seus chefes suíços e da Inteligência
britânica.

A informação passada por Rössler não era somente fabulosa


quanto à precisão e relevância, mas também no que dizia
respeito ao seu conteúdo. No princípio, os russos julgaram a
informação boa demais para ser verdadeira e suspeitaram
que se tratasse de um estratagema dos nazistas. Rössler,
porém, não se sentiu tolhido pelo ceticismo dos soviéticos e
prosseguiu fornecendo outras informações. Resultou daí que
o Centro, pouco a pouco, foi sendo conquistado e, por fim,
tornara-se tão excitado em relação a essas informações que
até se mostrara pouco russo no tratamento que dispensava
a esse brilhante agente.

O Centro teria, na verdade, cometido um grande erro se


tivesse rejeitado os serviços de Rössler. Depois que a guerra
russo-germânica teve início, ele passou imediatamente a
fornecer-lhe informações seguras com a maior regularidade
— às vezes, até diariamente — sobre a estratégia de Hitler,
o poderio, composição e localização de todas as forças
armadas alemãs, e sobre o que a Inteligência alemã sabia a
respeito das posições russas, do seu potencial bélico e dos
seus planos. Sem exagero, pode-se dizer que a Rússia
deveu sua vitória tanto a Rössler quanto a qualquer outro
fator. Certamente, nenhum agente, trabalhando para
qualquer uma das outras agências de Inteligência dos
aliados, poderia alegar possuir, como Rössler, um tão direto
e pessoal conhecimento de assuntos de estratégia e de
planos de guerra.

Tão logo a espionagem soviética contratou Rössler, seus


dirigentes julgaram que tudo o que faziam em seu benefício
nunca era suficiente. Pagavam-lhe um salário superior ao de
qualquer outro agente: 425 libras por mês. Quando as
dificuldades materiais de remeter fundos para a Suíça se
tornaram quase intransponíveis, a ansiedade, demonstrada
pelo Centro — temeroso de que Rössler se mostrasse tão
mercenário ao ponto de dizer que, sem dinheiro, não
enviaria mais informações — era, às vezes, patética.
No dia 9 de dezembro de 1943, o próprio diretor do Centro
lhe enviou a seguinte mensagem: “Diga Lucy não deve se
preocupar respeito pagamento Ponto Certamente
pagaremos nossas dívidas até janeiro Ponto Peça-lhe
prosseguir fornecendo suas informações da maior
importância. Diretor.”

No dia 8 de janeiro de 1944, chegara-lhe às mãos esta outra


mensagem: “Favor dizer Lucy ele e seu grupo receberão
vultosos pagamentos tão cedo quanto possível Ponto Deve
ter paciência e não desperdiçar tempo e esforços nesta
importante hora da última batalha contra nosso comum
inimigo Ponto Diretor.”

Além de Rahel Dubendorfer, cujo nome falso era Sissie, o


principal intermediário de Rado era Otto Pünter, sob o nome
disfarce de Pakbo. Pünter nunca fora membro do Partido
Comunista, mas, desde a juventude, pertencera ao Partido
Democrata-Social Suíço. Tratava-se de um jornalista e, no
clímax da hostilidade que se verificou entre comunistas e
socialistas, na década dos trinta, ele se projetara como uma
das principais figuras do socialismo. Seu eventual trabalho
para a rede soviética, na Suíça, teve origem em motivos
quase idênticos aos de Foote. Sendo violentamente
antifascista, emprestara seu apoio aos comunistas, porque
estes lhe pareciam mais decididamente contrários ao
fascismo do que qualquer outro bloco.

A carreira de Pünter, como antifascista não-comunista, foi


digna de registro. Em meados da década dos vinte, aliara-se
ao antifascista italiano Randolfo Pacciardi e ajudara a
organizar o sensacional voo, no dia 10 de julho de 1930,
durante o qual foram atirados sobre Milão panfletos contra
Mussolini. Igualmente, aderira aos republicanos espanhóis,
durante a Guerra Civil, e realizara, para eles, missões de
espionagem na Itália, tendo por objetivo descobrir
informações sobre remessas de armamentos italianos para
o General Franco. Foi essa sua atitude que o tornou alvo da
atenção da espionagem soviética.

Em 1940, o GRU aproximou-se de Pünter e de um grupo de


cerca de meia dúzia de amigos que o rodeavam. O resultado
dos entendimentos que se seguiram foi que o Grupo Pakbo,
como era então chamado, aderira à rede de Rado. Pouco
depois, ampliou seu grupo e, durante todo o tempo em que
trabalhou para a espionagem soviética — igualmente com a
aquiescência da Inteligência suíça —, pôde fornecer
informações só inferiores em importância às obtidas por
Rössler.

Os dois outros rádio-operadores da rede, além de Foote, que


atuava em Lausanne, eram os Hamel — marido e mulher —,
que trabalhavam em Genebra, e Margaret Bolli, cujo nome-
disfarce era Rosie, também em atividade em Genebra.
Edmond e Olga Hamel tinham sido recrutados por
recomendação do líder comunista suíço Léon Nicole, sendo
que Edmond fora treinado numa escola de rádio de Paris e,
em 1933, organizara uma firma para negociar nessa
especialidade, que obtivera grande sucesso em Genebra.
Em 1940, por solicitação de Rado, instalou um transmissor
de ondas curtas num quarto que ficava por cima da loja. De
acordo com a legislação suíça, radiotransmissores eram
proibidos no país. Quando, porém, em 1941, seu aparelho
foi descoberto pela polícia de Genebra, Edmond era tão
considerado pelas autoridades da Inteligência suíça que
apenas recebera uma condenação de dez dias de prisão. De
acordo com os regulamentos do Centro, a conexão dos
Hamel com a rede deveria cessar, daí por diante. Ao invés
disso, porém, e por sugestão de Rado, ele fabricara outro
transmissor, que igualmente instalou no quarto por cima da
sua loja.
Margaret Bolli constituiu outro exemplo do desrespeito aos
regulamentos, por partes de Rado. Tinha ela vinte e um
anos quando Rado a conheceu em 1941, também através
de Léon Nicole. Dentro de curto prazo de tempo, tornaram-
se amantes, e Rado a persuadiu a tornar-se rádio-
operadora.

Finalmente, existia Christian Schneider, cujo nome falso era


Taylor. Schneider era amigo de Rössler e trabalhava no
Escritório Internacional do Trabalho, e através de Rahel
Dubendorfer — igualmente ali empregada — foi posto em
contato com a rede de Rado. A importância de Schneider na
rede era tal que, independentemente de ser um agente e
descobridor de talentos, serviu, com Rahel Dubendorfer,
como emissário entre Rado e Rössler. Foote declarava que
somente ele, de todo o pessoal que integrava a rede, sabia
a identidade de Rössler. Schneider obtinha suas informações
de Rössler e as passava a Dubendorfer, e esta, por sua vez,
as transmitia a Rado. Nem Rado, nem Foote, nem ninguém,
na rede ou no Centro, jamais soube quem fosse Lucy, até
que a guerra terminasse.

Ao ser Foote aprovado em seus testes preliminares, o


Centro pensara em treiná-lo em Moscou. Quando estava
preparado para seguir, a situação se agravara tanto que
ficara decidido conservá-lo na Suíça. Isso ocorreu em agosto
de 1939.

O Pacto Ribbentrop-Molotov, assinado naquele mês, tivera


efeito arrasador sobre muitos agentes soviéticos. Sônia,
particularmente, ficara indignada. Não conseguia entender
como Stálin pudesse chegar a um acordo com o nazismo,
tornando-se, assim, aliado de Hitler. Dois dias mais tarde,
quando mal se recuperara desse choque, recebera
instruções no sentido de retirar todos os seus agentes da
Alemanha e dissolver a rede que tão pacientemente
organizara. Entre esses agentes, encontrava-se William
Phillips, que passava as férias em Titisee. Foote conseguiu
comunicar-se com ele pelo telefone e o advertiu para que
retornasse à Alemanha. Assim, Phillips juntou-se a Foote e,
desse modo, ficaram aguardando novas instruções.

Durante esse período de espera, ambos aprenderam, sem


frequentar qualquer escola técnica, as complexidades das
transmissões radiotelegráficas. Viviam numa pensão em
Montreux e, no princípio, visitaram Sônia em sua vila e com
ela se inteiraram da técnica destas transmissões. Como o
Centro não lhes incumbira qualquer tarefa, logo se tornaram
proficientes operadores e aprenderam muita coisa sobre
construção de radiotransmissores.

Sônia não tivera qualquer idéia de que a rede de Rado


estivesse operando, até que se tornou essencial para o
Centro dar instrução às duas organizações para que
entrassem em contato uma com a outra. Essa necessidade
de trabalho em conjunto fora imposta pelo
desmantelamento das comunicações, em consequência da
desorganização temporária da rede de Trepper, que
funcionava na França. Até então, Rado não dispusera de um
rádio-operador próprio. Gravava suas informações em
microfilmes e os enviava a Trepper, para que este os fizesse
chegar a Moscou.

Depois de estabelecido o contato, Sônia costumava coletar


as informações de Rado e ela própria as transmitia, da sua
vila, em Caux. Em agosto de 1940, entretanto, Foote
recebera ordem do Centro para deixar Montreux e
estabelecer-se em Genebra, onde devia treinar um operador
para trabalhar com a rede de Rado. Foi assim que Foote e
Rado se encontraram pela primeira vez.
O operador, selecionado pelo Centro, era Edmond Flamel,
que, não obstante ser eficiente mecânico de rádio, não
conhecia o sistema Morse nem as normas do telégrafo-sem-
fio russo. O transmissor de Sônia foi mudado para o quarto
que ficava em cima da loja de Hamel, e Foote começou a
instruir Flamel, que, estranhamente, não se revelava aluno
apto.

No outono, o Centro atendeu à solicitação de Sônia, no


sentido de que ela pudesse ir para a Inglaterra. Antes de
partir, recebeu novas tabelas de horário de transmissão e
códigos, que entregou a Foote. Ao mesmo tempo, Foote
tivera ordem para voltar para Fausanne, a fim de instalar ali
outro transmissor, e esse aparelho deveria ser construído
por Hamel, no mesmo modelo de um fornecido a Sônia. De
posse do transmissor, Foote partiu para Fausanne,
encarregando Phillips de prosseguir no treinamento de
Hamel. *

Foote mudou-se para Fausanne no dia 15 de dezembro de


1940 e, após algumas dificuldades iniciais, conseguiu
instalar-se num apartamento privado, com o transmissor.
Seu disfarce era apresentar-se como um rico inglês colhido
pela guerra e que não podia regressar à pátria — papel este
que as autoridades suíças aceitaram sem muitas perguntas,
desde que existiam muitas outras pessoas, no país, em
idênticas condições.

Seguramente instalado, por fim, com a sua linha para


Moscou estabelecida, ele, Foote, teve então de vencer outra
dificuldade. O cristal de seu transmissor recusava-se a
oscilar. Não havendo feito qualquer curso de mecânica de
rádio, pensou em ir a Genebra, a fim de obter orientação de
Hamel sobre o que deveria fazer. Já que essa atitude
importaria em quebra das precauções necessárias à
segurança, resistiu à tentação da viagem e, subitamente,
sem qualquer razão aparente, no dia 12 de março, Moscou
respondeu, declarando que estavam recebendo ali suas
mensagens, de forma clara e alta.

No período de 12 de março a 22 de junho de 1941, Foote


julgou que a vida, como espião soviético, era tranquila e
agradável. Competia-lhe fazer apenas duas transmissões
por semana, e o suprimento de material de que poderia
dispor não era grande. Já fora nomeado para as funções de
substituto de Rado — ocorrência pouco comum na
espionagem soviética — e, nessas condições, teria de
permanecer, tanto quanto possível, em posição afastada.

Empregava seu tempo, entretanto, procurando instalar-se


definitivamente em Lausanne. Confessou que isso não era
fácil, pois seus compatriotas ali residentes variavam de
oficiais e funcionários públicos que, aposentando-se, haviam
ido morar na Suíça, ao rebutalho da Riviera que fugira da
Alemanha e vivia sem saber como.

Foote fingiu-se rico e obteve tanto êxito nessa empresa que,


breve, todos diziam ser ele um milionário excêntrico, fugido
da Inglaterra em face das perturbações causadas pela
guerra. Além de explicar sua vida sem profissão, sua atitude
teve, igualmente, o efeito de satisfazer ainda mais a polícia.
Embora olhado por muitos como um solitário, Foote, de fato,
adquirira um pequeno círculo de conhecidos, que aliviava
sua solidão.

A queda da França, por seu lado, causara às finanças de


Rado um terrível golpe. A Suíça era, na realidade, uma ilha
de neutralidade, isolada num mar de hostilidades, e as
comunicações, de qualquer gênero, se revelavam
extremamente difíceis. Para conservar sua rede em
funcionamento, tomou dinheiro emprestado do Partido
Comunista suíço, mas essa agremiação não se achava em
condições de desembolsar qualquer quantia, a não ser a
curto prazo. Nessas condições, o Partido passara a insistir,
pouco depois, na liquidação do empréstimo feito. Em
consequência disso, o grosso das comunicações de Rado
com o Centro, através de Foote, passara a ser relacionado
com assuntos de dinheiro.

O próprio Centro parecia sentir-se de todo incapaz de propor


qualquer maneira de obter fundos para Rado. A sugestão,
que seus dirigentes fizeram, revelava completa ignorância
das condições em que poderia ser feita essa transação, e
das suas possibilidades. Então, Foote imaginou uma
fórmula.

O Centro dissera não estar em situação de colocar fundos à


disposição de Foote em bancos, quer da Grã-Bretanha, quer
da América do Norte, quer da Suécia. Foote realizou,
portanto, com muita discrição, diversos inquéritos entre
seus amigos suíços e descobriu um deles disposto a ajudá-lo
a entrar em contato com uma firma norte-americana que
operava na Suíça. Essa firma, no desdobramento de seus
negócios, tinha de enviar dinheiro para os Estados Unidos e,
normalmente, essas remessas se faziam através do Banco
Nacional da Suíça. Foote propôs, então, que todo o estorvo
das formalidades poderia ser evitado, se ele transferisse
fundos, que possuía nos Estados Unidos, para a conta da
firma em seu banco norte-americano, enquanto a firma lhe
pagaria o equivalente em francos suíços, na própria Suíça.
Como chamariz a mais, declarou-se disposto a aceitar as
taxas do câmbio negro, o que iria significar que os norte-
americanos teriam razoável lucro na transação.

Tratava-se de um plano simples, e praticamente temerário.


O Centro depositava na conta de Foote em Nova York os
dólares que, por sua vez, ele mandava creditar na conta da
firma norte-americana naquela cidade. Tão logo isso foi
feito, o banco de Nova York creditou, na conta suíça dos
norte-americanos, a quantia depositada, e a firma entregou
a Foote o equivalente em francos suíços. Sempre surgiam
algumas dificuldades, mas comumente a transação poderia
ser completada dentro de dez dias.

O plano funcionou bem durante todo o tempo em que Foote


esteve trabalhando para a rede. Ninguém — nem o suíço
que o apresentou nem os norte-americanos que o ajudavam
— jamais suspeitou que aquele dinheiro estava financiando
a espionagem soviética.

Rado e Foote, nessa ocasião, encontravam-se somente


cerca de duas vezes por mês. Tinha sido intenção original
do Centro que o pequeno grupo reunido em torno de Foote
se conservasse inteiramente separado da rede de Rado. À
medida, porém, que a invasão da Rússia pela Alemanha se
tornara mais iminente e o volume do tráfego, com o qual o
grupo suíço tinha de se confrontar, aumentou, aquela
separação claramente iria fazer-se impossível. Assim, em
princípio de janeiro de 1941, Foote recebeu ordens no
sentido de entrar em contato com Rado, pelo menos duas
vezes por semana, de forma que pudesse aliviar os rádio-
operadores de Rado de uma parte do serviço. Como Foote
possuía seu código exclusivo, e poderia reduzir o tempo
entre o recebimento e a remessa das informações para
Moscou a algumas horas, em comparação com as vinte e
quatro horas ou mais que Hamel e Bolli levavam para fazê-
lo, o Centro passara a confiar cada vez mais nele — para a
transmissão de informações urgentes. Esse fato fez com
que passassem a chegar a Foote as informações vitais que,
a partir de junho de 1941, Rössler diariamente começara a
fornecer.

Quando Rössler informou que a invasão alemã estava


marcada para o dia 22 de junho, Rado intimou Foote a se
encontrar com ele. Foote encontrou-o, perplexo e indeciso.
Não poderia acreditar que aquela informação fosse
verdadeira, e estava inclinado a não a enviar para Moscou,
onde já o haviam feito saber que se mostravam céticos em
relação às fontes de Rössler. Foote argumentou, por seu
lado, que o Centro se achava em muito melhor posição para
aquilatar o valor daquela informação do que eles, que
viviam no horizonte restrito da Suíça. Se retivessem a
informação e, depois, ela se revelasse verdadeira, o Centro
poderia, com toda razão, acusá-los de criminosa
negligência. Rado concordou com a argumentação, e a
mensagem foi enviada.

Com a invasão da Rússia, a rede suíça adquiriu


imediatamente uma significação inteiramente nova.
Juntamente com uma exortação para lutar contra “as feras
nazistas com o melhor da sua capacidade”, Foote foi
informado de que, dali por diante, o Centro manteria uma
vigilância de vinte e quatro horas em seus canais de
irradiação e de que organizara um sistema de prioridades.

Desde que Foote, para todos os intentos e propósitos, era


uma mão isolada e, portanto, não perturbado por outras
considerações que o funcionamento de uma rede envolve,
estava ele em condições de dedicar todo o seu tempo às
transmissões de rádio, o que, por outro lado, reduzia ainda
mais o tempo para a remessa das informações; essas
circunstâncias fizeram com que o Centro tivesse tanta
confiança nele que, correspondentemente, outras tarefas
lhe foram dadas. Entre essas, constava uma tentativa de
fazer cessar as rivalidades que, desde algum tempo,
separava o Partido Comunista suíço. Outra tarefa foi a de
descobrir dois agentes — George e Joanna Wilmer —, com
os quais o Centro perdera contato, e entender-se com eles.
Os Wilmer eram agentes de grande experiência e haviam
trabalhado no Japão, antes que Richard Sorge assumisse a
direção da rede que ali funcionava. Técnicos em fotografia e
microfotografia, tinham, antes da guerra, trabalhado na
Alemanha. Quando a guerra irrompera, deixaram de manter
contato com o Centro.

Foote descobriu-os numa vila bem provida, logo acima de


Lausanne. Alegaram estar em contato com duas fontes na
Alemanha e manter também contato com a
contraespionagem francesa. Foote providenciou no sentido
de os visitar periodicamente, a fim de recolher informações
que seriam transmitidas para Moscou.

Esses e outros assuntos, sobre o trabalho normal de Foote,


que era então de considerável vulto, transformaram-no num
espião ocupadíssimo, e se tornou cada vez mais difícil para
ele sustentar seu donaire de gentleman inglês em
vilegiatura. Transmitia, como praxe, duas horas todas as
noites, e qualquer pessoa com experiência em
radiotransmissões dará valor ao esforço que essa tarefa
representa. Mas, além das transmissões, tinha de cifrar todo
o material em seu próprio código, trabalho que exigia
paciência e dedicação. Por fim, havia ainda o encargo de
receber e decifrar as longas mensagens vindas do Centro.

Além das normais dificuldades das condições de recepção,


com as quais todos os rádio-operadores têm de se
confrontar, Foote conheceu muitas outras frustrações. Todas
as vezes que a Luftwaffe fazia um raide contra Moscou, o
Centro imediatamente cessava de transmitir. Então, quando
o governo soviético mudou-se para Kuibishev, ele silenciou
subitamente, interrompendo a transmissão de uma
mensagem e, embora Foote e Rado tentassem restabelecer
o contato, o Centro só apareceu seis semanas mais tarde.
Nessa ocasião, sem qualquer explicação, o parágrafo que se
seguiu na mensagem interrompida foi transmitido.
Por volta do fim de 1942, Rado começou a enfrentar
dificuldades — dificuldades essas que continuaram a se
fazer presentes através dos primeiros nove meses de 1943.
A rede suíça tinha dois principais antagonistas: a
contraespionagem suíça, conhecida pelas iniciais BUPO; e a
Abwehr. O BUPO estava disposto a não tomar conhecimento
da rede, sob a alegação de que Rado, Foote e seus amigos
não conspiravam contra os interesses nacionais suíços.
Mostrava-se pronto, entretanto, a atacar, se a rede se
tornasse excessivamente ruidosa e pudesse ser “vista”
violando a neutralidade do país. A Abwehr, por outro lado,
revelava-se naturalmente ansiosa por destruir toda a rede.

Foote sempre sustentara que George e Joanna Wilmer


haviam sido os grandes responsáveis pelo
desmantelamento definitivo da rede. Existiam diversas
coisas, em relação ao casal, que provocaram suas
suspeitas. O Centro, porém, quando recebeu um relatório
seu, expondo o que pensava do casal, respondeu dizendo
que ele se equivocava. Antes de junho de 1943, entretanto,
foi descoberto que os Wilmer estavam, de fato, colaborando
com a Abwehr. Haviam desertado antes de deixar a
Alemanha, e seguiram para a Suíça com o objetivo expresso
de descobrir o que pudessem sobre a rede, de forma a
atraiçoá-la.

Por causa do seu contato com os Wilmer, Foote achava-se


comprometido, tanto quanto possível, no que dizia respeito
à Abwehr; e o desmantelamento da rede francesa
complicara a posição de Rado, embora nem ele nem o
Centro o tivessem sabido. Foote recebeu instruções, pois,
para não manter qualquer vínculo pessoal com Rado e para
sempre utilizar intermediários, nos contatos com o seu
próprio grupo. Suas transmissões para Moscou foram
reduzidas para duas vezes por semana e as mensagens
tratavam principalmente da liquidação de um grupo ou de
assuntos financeiros, os quais, por volta do fim de junho de
1943, chegaram a novos picos de dificuldades.

O arranjo de Foote com a firma norte-americana tinha-se


tornado muito difícil, e um novo canal, que esperava
estabelecer, exigira provas de que o dinheiro realmente lhe
pertencia. Antes, porém, que pudesse apresentar essas
provas, muitas coisas teriam de acontecer.

Os Wilmer, em julho, através de um documento anônimo,


denunciaram Foote à polícia suíça, por intermédio do
Consulado Geral da França. Afortunadamente, a polícia não
agiu, já que a única peça de identificação de Foote era uma
fotografia. Entrementes, o Centro lhe ordenara que se
mudasse, o que era mais difícil realizar do que mandar, pois
não somente ele estava outra vez em contato diário com o
Centro, mas teria de obter uma licença da polícia para se
mudar, e certamente ela exigiria muito sólidas razões antes
de atender à sua solicitação.

Rado não conseguia transmitir todo o seu material, com os


próprios operadores, e Foote recebera instruções para
entrar em contato outra vez com ele. Mas Rado, por sua
vez, achava-se em dificuldades com a Abwehr. Tinha
encontrado um antigo agente soviético, então trabalhando
para a Abwehr, num restaurante, e estava perfeitamente
certo de que agentes da organização o observavam.
Acreditava igualmente que eles vinham vigiando também
Margaret Bolli, de quem haviam tomado, por algum tempo,
o radiotransmissor.

Rado estava perfeitamente certo em relação às suspeitas. A


Abwehr concluíra que sua amante deveria pagar os
melhores dividendos, e preparou-se para seduzi-la por
intermédio de um agente jovem, chamado Hans Peters. Em
face de seu temperamento ardente — e levando em conta
que não mais poderia contar com a consolação da aparente
habilidade de Rado em fazer amor —, ela se mostrou
perfeitamente disposta a aceitar as atenções do bonito
jovem, que conhecera aparentemente por acaso, mas, na
realidade, através de astuciosas manipulações dos alemães.
Dentro de pouco tempo, as dificuldades de Rado passaram
a se encaminhar para um inevitável desastre.

Além das atividades da Abwehr, o BUPO suíço começara


também a tomar interesse nos negócios de Rado.
Exclusivamente por acaso, um dos encarregados do serviço
de rádio no aeroporto de Genebra captara um forte sinal
Morse, transmitido num inconfundível procedimento de
amador. Como as transmissões de rádio por amadores eram
proibidas na Suíça, o operador do aeroporto levou o fato ao
conhecimento das autoridades, que se viram obrigadas a
investigar. Localizaram então o transmissor em Genebra.
Tratava-se do aparelho de Bolli. No decorrer das
investigações, entretanto, um segundo aparelho — o dos
Hamel — passara igualmente a transmitir da cidade.

Essas descobertas haviam sido feitas quase um ano antes


de Rado começar a suspeitar que estava sendo vigiado. Os
suíços, porém, nada fizeram até que a Abwehr os
pressionou, ameaçando criar um escândalo diplomático, se
não agissem com rigor. Em setembro de 1943, portanto,
tomaram providências enérgicas. Em princípios de outubro,
os Hamel e Margaret Bolli foram presos. Os Hamel viram-se
surpreendidos quando operavam seu transmissor e
Margaret Bolli foi retirada da cama que partilhava com Hans
Peters, o agente da Abwehr. O próprio Rado escapara por
pouco. Quebrando mais uma vez as normas de segurança,
dirigira-se ao apartamento dos Hamel, ignorando que seus
moradores haviam sido presos. A polícia ainda ali se
achava, dando busca, mas, afortunadamente, ele pôde ser
advertido sobre o que acontecera, por um sinal pré-
combinado, que os Hamel tinham conseguido deixar.

Aquelas prisões atiraram Rado num estado próximo do


pânico. Telefonou para o apartamento de Foote e confessou
que, pouco antes da prisão dos Hamel, temendo por sua
própria pele, depositara em seu apartamento, num
esconderijo secreto, todos os seus registros financeiros,
assim como as cópias das mensagens não cifradas, que
haviam sido enviadas para Moscou — deviam ter sido
queimadas —, e, pior ainda, também o livro do seu código. É
difícil achar nos anais da espionagem, em qualquer parte
um agente, que tenha violado tantas normas de segurança
quanto Rado.

O BUPO foi hábil no desempenho de suas funções, pois


conseguiu descobrir todos esses papéis de vital
importância. Se não era suficiente que os registros
financeiros revelassem à polícia todos os nomes dos
agentes integrantes da rede, foram descobertos também,
entre a papelada apreendida, os detalhes de um novo
canhão suíço Oerlikon, que se encontrava ainda na lista
secreta. Essa informação só poderia ter vindo do seu próprio
agente Rössler. Tanto Rado quanto Rössler foram julgados
culpados de trabalhar contra os interesses nacionais suíços.

O BUPO, entretanto, ignorava ainda a existência de Rado,


pois acreditava ser Foote quem dirigia a rede. De fato, essa
presunção tinha sua razão de ser, já que Rado mergulhara
na clandestinidade em Berna e Foote recebera instruções
para assumir o cargo de Diretor-Residente.

Antes de se esconder, Rado colocara Foote em contato com


Otto Pünter, do grupo Pakbo, mas se recusara a fazer o
mesmo em relação a Rahel Dubendorfer, embora Foote
descobrisse, mais tarde, que ela solicitara esse encontro.
Rado sugeriu que ele e toda a rede se refugiassem na
Legação Britânica, o que significaria naturalmente que os
ingleses teriam de conhecer a verdade sobre o trabalho que
realizavam. Esse fato não apresentava qualquer perigo,
porquanto a Inglaterra era aliada da Rússia. Foote solicitou
então ao Centro permissão para tomar essa atitude e
recebeu um inequívoco “não”, o que ainda mais aturdiu
Rado. Pouco depois, um incidente, ocorrido quando Rado
tinha chegado para um encontro com Foote, num parque
público — seu motorista o reconhecera —, fez o seu medo
chegar ao auge. Daí por diante, recusou-se a deixar o
esconderijo, e a partir dessa época ficou praticamente
inativo.

Foote, que então dirigia a rede, não compreendeu seu


próprio perigo. Prosseguiu, quietamente, como o fazia
antes, mas, na noite de 19 para 20 de novembro de 1943,
quando se encontrava no meio da sua regular transmissão
para Moscou, a porta do seu apartamento foi arrombada. É
que essa porta era mais resistente do que a polícia calculara
e, nessas condições, a força teve de ser usada. A demora
proporcionou a Foote alguns breves, mas preciosos
momentos, durante os quais pôde queimar todos os seus
papéis e avariar seu transmissor, de forma a não permitir
que funcionasse mais.

A princípio, Foote acreditara tratar-se da Abwehr, que


tomara o negócio em suas próprias mãos, mas logo
verificou que os inesperados visitantes eram suíços. Com
exceção do fato de que estaria, então, fora de combate,
Foote não se mostrava preocupado com o que ocorria, pois,
após a prisão dos Hamel e de Margaret Bolli, estava
preparado para o pior, havendo mesmo destruído, por
precaução, todos os documentos que possuía.
O Inspetor Knecht, chefe da Polícia Federal do Cantão de
Genebra, foi encarregado do seu interrogatório. Disse a
Foote que os Hamel e Bolli tinham feito uma confissão
completa e o incriminado, juntamente com Rado; mas,
honestamente, acrescentou não existirem provas de que ele
tivesse feito espionagem contra os interesses nacionais
suíços. O inspetor insistiu, pois, numa confissão plena, já
que tudo faria para que ele recebesse uma condenação
leve. Foote respondeu que nada poderia dizer e acrescentou
que, se lhe fosse dada somente uma sentença leve, Moscou
interpretaria o fato como prova de que confessara tudo, o
que, em última instância, faria com que os russos o
levassem a um pelotão de fuzilamento. Insistiu, portanto,
em que lhe fosse dada uma sentença mais longa do que a
de qualquer um dos outros. Preferiria passar dois ou três
anos numa prisão suíça — declarou ao inspetor — a ter de
enfrentar a sorte que o aguardaria na Rússia.

O BUPO não estava habituado a realizar tarefas desse


gênero, e mostrou-se perplexo em face das declarações de
Foote. Desde que prosseguiu não respondendo às perguntas
que lhe eram feitas, e reiterasse sua solicitação no sentido
de ser condenado a um longo período de prisão, resolveu
conservá-lo detido, enquanto novas investigações eram
feitas. Estas se prolongaram por dez meses, quando, então,
foi declarado a Foote que não havia qualquer prova de que
tivesse trabalhado contra os interesses nacionais suíços e,
nessas condições, cabia-lhe prestar fiança, a fim de
aguardar o julgamento, que seria levado a efeito por uma
corte marcial.

Deixando a prisão, Foote foi para Lausanne e, hospedado


num hotel, considerou o que lhe poderia acontecer no
futuro. Quando se sentiu seguro de que não estava sendo
vigiado, começou a percorrer os vários pontos de encontro,
na esperança de entrar em contato com Rahel Dubendorfer,
Otto Pünter ou Pierre Nicolc, filho de Léon Nicole. O primeiro
contato que estabeleceu foi com Nicole; este logo lhe disse
que Rado e sua esposa nunca tinham sido encontrados e
somente alguns dias antes haviam partido para Paris, já
libertada dos alemães. Ali, segundo afirmou, iria procurar o
adido militar soviético.

Foote reestabeleceu contato, igualmente, com Otto Pünter,


que não se deixara comprometer e fora deixado em paz.
Disse-lhe Pünter que suas fontes ainda permaneciam
disponíveis e estava ansioso para recomeçar o trabalho.

Finalmente, Rahel Dubendorfer fez sua aparição. Fora presa


com seu amante, o antigo e destacado comunista
germânico Paul Boettcher, e sua filha Tamara, em maio de
1944, mas libertada após três meses de confinamento. Suas
fontes estavam igualmente intactas e, como acontecia com
Pünter, achava-se desesperada por obter algum dinheiro.
De acordo com o que lhe declarara Rahel, Foote percebeu
ser absolutamente imperativo que tivesse um encontro com
Rössler, preso ao mesmo tempo em que o fora Rahel. Esse
encontro foi arranjado e, no decorrer da entrevista, Rössler
dissera-lhe que, apesar do expurgo levado a efeito, após o
atentado contra a vida de Hitler, ocorrido no dia 20 de
junho, suas principais fontes ainda permaneciam em
condições de fornecer informações e que se achava ansioso
para reiniciar seu trabalho, tanto mais cedo quanto possível.

Como resultado desse encontro, Foote decidiu que devia ir a


Paris, a fim de entrar em contato com o Centro, através da
embaixada soviética. Desejava saber se a rede iria operar
uma vez mais. Realizou a viagem e, após algumas
dificuldades iniciais, foi instruído pelo Centro a seguir para
Moscou, para consultas.
Rado surgiu então na cena, embora, de fato, houvesse
chegado a Paris um mês antes de Foote. Ele também
recebeu ordens para regressar a Moscou. Foote nada tinha
que temer em face de qualquer investigação — suas
declarações poderiam ser averiguadas em quaisquer
circunstâncias —, mas a situação de Rado não deixava de
ser grave, já que, de certo modo, desertara seu posto.

Foote e Rado deixaram Paris num avião russo, no dia 6 de


janeiro de 1945. Como a batalha da Alemanha estava ainda
em desenvolvimento, o piloto seguiu a rota que passava
pelo Cairo. Durante um pernoite na capital egípcia, Rado
concluiu que, retornando a Moscou, literalmente apontava
um revólver para a própria nuca. E, assim raciocinando,
desapareceu antes que amanhecesse. Nessas condições,
Foote prosseguiu na viagem sozinho.

O Centro não demorou, entretanto, em descobrir onde se


encontrava Rado, e o governo soviético solicitou ao do Egito
a sua extradição, já que se tratava de um oficial desertor do
Exército Vermelho. Após prolongadas conversações tendo
em vista evitar a extradição, foi ele finalmente devolvido à
Rússia, no verão de 1945.

Desde o momento em que chegaram à Rússia, Foote e Rado


se empenharam numa árdua batalha para salvar suas vidas.
Foote, havendo provado a falsidade da maior parte das
acusações que lhe foram feitas, conseguiu, finalmente,
salvar o pescoço, e foi reabilitado. Relativamente a Rado,
quanto mais sua situação era examinada, mais evidente se
tornava que esbanjara os recursos da rede em benefício
próprio; e, nessas condições, após um julgamento secreto,
foi executado.

O tratamento que recebera em Moscou fizera com que


Foote logo mudasse seu modo de sentir em relação à União
Soviética. À medida que os dias passavam, tornava-se cada
vez mais desiludido. Chegara à conclusão de que já era
tempo de dizer um “basta” tanto à Rússia quanto ao
comunismo. Compreendera, entretanto, que, para escapar
com vida, deveria prosseguir fingindo-se leal à União
Soviética e, através desse recurso, procurar fazer com que o
diretor do Centro lhe desse nova tarefa no exterior.

Sua oportunidade surgiu no momento em que o escândalo


da espionagem no Canadá trouxe, em sua esteira, outro
expurgo. Quando este foi completado, todos os agentes
disponíveis, de lealdade comprovada, foram mobilizados
para o serviço. Nessa ocasião, Foote recebeu a incumbência
de seguir para o México. Em março de 1947, certo Major
Granatov, do Exército Vermelho, chegou ao setor soviético
de Berlim e, três meses depois, transferiu-se para o Setor
Britânico e se apresentou às autoridades inglesas, pedindo
asilo político. O Major Granatov não era outro senão
Alexandre Foote. Hoje, esse homem, que se revelou um
agente de primeira categoria, principalmente porque se
utilizava do tradicional bom senso de sua raça, vive uma
existência quieta e obscura na Inglaterra, trabalhando como
amanuense. 

* Phillips permaneceu na Suíça até março de 1941, quando


retomou à Inglaterra. 
6. As Redes Canadenses

Enquanto o Canadá não entrou na guerra e,


consequentemente, começasse a fabricar munições, pouca
coisa, segundo parece, ali existia que pudesse atrair a
atenção da espionagem soviética. Outro fator contribuiu
igualmente para tornar difícil a realização, ali, de qualquer
operação de espionagem em larga escala: a ideologia
comunista — como acontecera na Grã-Bretanha — revelou
possuir tão pouco apelo para o operariado canadense que,
embora no Canadá existisse um Partido Comunista desde o
princípio da década de vinte, não se mostrara nem tão
numeroso nem suficientemente ativo para desempenhar o
papel distribuído a essas agremiações locais no esquema
geral da espionagem russa.

De qualquer forma, encontravam-se na direção do PCC duas


figuras que mais tarde se destacariam como grandes
agentes e iriam atrair a atenção do mundo pela parte que
desempenharam na obtenção de segredos atômicos. Foram
eles: Sam Carr e Fred Rose.

Ambos tinham realizado trabalhos de espionagem sem


maior importância — na verdade a única espionagem feita
no Canadá, quase desde a fundação do PCC, por volta de
1920. As informações que transmitiam refletiam
principalmente as rixas internas que tumultuavam a vida do
Partido, embora, de vez em quando, contivessem algumas
opiniões oficiais, sem maior significação, obtidas nos
círculos políticos de Ottawa.
Durante a década dos trinta, porém, verificou-se um
aumento de interesse em torno do comunismo no Canadá e,
por algum tempo, o número de filiados ao Partido se elevou
vertiginosamente. Em consequência disso, avolumaram-se
igualmente as informações relativas à indústria do país — o
que queria dizer que, mesmo no auge da atividade da
espionagem soviética nesse campo, na Europa, a indústria
canadense conseguira, por fim, atrair alguma atenção. As
principais fontes de informações localizavam-se nos
denominados “grupos de estudo’’ — um método tradicional
da técnica soviética. Essa atividade prosseguiu até a
assinatura do Pacto Ribbentrop- Molotov, quando mesmo os
comunistas canadenses não conseguiam compreender —
como acontecera a Sônia, a primeira chefe de Alexander
Foote — a ética ou a lógica daquele volte face de Stálin. O
acontecimento determinara grande dispersão nas fileiras do
PCC, dispersão essa ainda aumentada quando o governo
declarou a agremiação ilegal.

A invasão da Rússia por Hitler, entretanto, determinara


ainda outra mudança. Não somente a opinião pública se
tornara mais simpática em relação aos comunistas, mas o
governo, por seu lado, relaxara as restrições impostas à
propagação da ideologia de Moscou. Ao tomar essa atitude,
o governo fora movido por motivos de lógica. A Rússia e o
Canadá eram então aliados, e seria estranho que as
autoridades de Ottawa retardassem por mais tempo o já
demorado reconhecimento diplomático da União Soviética.
Esse reconhecimento — segundo parecia — era encarado
pelos dirigentes soviéticos como um fato perfeitamente sem
importância, exceto por uma coisa: iria permitir o envio de
uma delegação comercial ao Canadá e o estabelecimento,
em Ottawa, de uma embaixada, ambos tendo por finalidade
acelerar as operações de espionagem.
A delegação comercial ali chegou em 1942. Certo Major
Sokolov figurava na lista dos amanuenses da delegação,
mas, na realidade, tratava-se de um agente do GRU, cuja
tarefa seria a de organizar uma rede de espionagem no
país. Um pouco mais tarde, juntou-se a ele Sergei
Kudriavtsev, ostensivamente primeiro-secretário da
delegação. Esses dois agentes passaram a trabalhar de
acordo com o sistema convencional dos soviéticos, e a
primeira providência que tomaram foi entrarem em contato
com Fred Rose, um dos dirigentes do PCC. O trabalho teve
início, mas o progresso veio lento. No primeiro ano, o
número de agentes recrutados foi pequeno, provavelmente
menos de dez, ao todo, divididos em dois grupos, sediados,
respectivamente, em Ottawa e Montreal.

Por volta do meado de 1943, entretanto, a embaixada


completara sua instalação definitiva, e chegaram a Ottawa,
para integrar o quadro do seu pessoal, o Coronel Nicolai
Zabotin, com o posto de adido militar, mas, de fato, enviado
para assumir a liderança que vinha sendo exercida por
Sokolov. Entre seus vários assistentes, encontrava-se um
técnico em cifras, chamado Igor Gouzenko.

Com a chegada de Zabotin, o recrutamento se acelerou e,


por volta do fim do ano seguinte, uma rede de cerca de
vinte operadores locais e de quinze operadores soviéticos
havia sido estabelecida. Os soviéticos desempenharam os
tradicionais papéis, distribuídos segundo a conveniência do
trabalho secreto: correspondentes da Agência Tass,
amanuenses da delegação comercial e da embaixada,
motoristas e porteiros. Na opinião de Zabotin, esse pessoal
não era suficiente para levar a efeito as tarefas de que ele
havia sido encarregado, e outro plano, tendo por objetivo
ampliar a rede, foi formulado, baseado numa expansão da
delegação comercial.
Antes que isso pudesse ser feito, entretanto, e que a rede
conseguisse, realmente, entrar em ação, foi declarada a
cessação das hostilidades, tanto na Europa como no Japão.
As atividades dos agentes de Zabotin serão descritas, em
detalhe, portanto, na parte quarta deste livro, sob o título
Espionagem Atômica. 
7. A Rede de Sorge no Extremo
Oriente

No curso de quarenta anos de espionagem, as agências


soviéticas apresentaram dois ou três agentes realmente de
grande importância. Até o advento de Lonsdale no affair da
espionagem naval em Portland, em 1961, todos os agentes
soviéticos eram de nacionalidade estrangeira e, com
exceção de Alexander Foote, alemães. Rudolf Rössler, pelo
valor das suas informações, deve figurar entre os grandes
espiões de todos os tempos, mas, pela mesma razão e pela
audácia, e mesmo, pela desfaçatez da sua maneira de agir,
Richard Sorge deve ser considerado seu par.

Richard Sorge nasceu em 1895, sendo o segundo filho de


um alemão, perfurador de petróleo e emigrado para os
campos de Baku, onde os salários eram elevados. Na época
em que Sorge estava na idade escolar, sua família havia
regressado a Berlim e, pouco depois, seus professores
alemães comentavam, com entusiasmo, o elevado nível de
sua inteligência.

Quando irrompeu a Primeira Guerra Mundial, ele se alistou


no exército do Kaiser e, logo em seguida, foi ferido na
perna. Em 1916, voltou para a linha de frente, onde
descobriu que grande parte da confiança, com a qual seus
compatriotas haviam marchado nos primeiros dias do
conflito, fora substituída pelo medo. Outra vez, sua carreira,
como combatente, se interrompeu, por um segundo e muito
mais grave ferimento.
O avô de Sorge, pelo lado paterno, Adolf Sorge, tinha sido,
por muitos anos, secretário particular de Karl Marx. Para
matar o tempo, enquanto aguardava que seu ferimento
sarasse, Richard Sorge começou a estudar as obras de Marx
e descobriu que as idéias expostas em Das Kapital o
seduziam. Ao se alistar no exército, estudara Economia
Política e História e, ao ser desmobilizado, no fim da guerra,
matriculou-se nas universidades de Kiel e de Hamburgo,
graduando-se, pela última, na primavera de 1920. Era,
então, doutor em Ciências Políticas. No mesmo dia em que
se formou, filiou-se ao Partido Comunista Alemão.

Durante algum tempo, lecionou numa escola de Hamburgo,


mas foi dispensado quando o diretor do estabelecimento
descobriu que ele estava não somente lecionando
comunismo, mas recrutando membros para o Partido, nas
horas das aulas. Tornou-se, então, mineiro de carvão, e
prosseguiu em sua evangelização, no interior da mina, com
tão grande êxito que a produção dos mineiros caiu e de
novo ele foi dispensado.

Quando estudava em Kiel, Sorge tomara parte nos


distúrbios ali ocorridos e que haviam constituído um
prolongamento do famoso motim da Marinha alemã. Esses
fatos e suas atividades últimas fizeram com que passasse a
ser olhado com interesse pelos líderes comunistas.
Julgando-o um eficiente agitador, selecionaram-no para
especial consideração.

No dia em que deixou a mina de carvão, Sorge voltou para


casa, e ah encontrou Henry Tollman, chefe secreto de
segurança do Comunismo em Hamburgo, que o aguardava
em seu quarto. Tollman sugeriu-lhe que fosse a Moscou, a
fim de realizar um curso de treinamento. Três semanas mais
tarde, Sorge já estava na capital russa. Antes de viajar,
porém, vira-se envolvido com uma mulher — o que seria
típico de seu comportamento em toda a extensão de sua
carreira —, que, por acaso, era agente da polícia. Entre
espasmos de amor, a que se entregava com o objetivo de
aliviar a monotonia de esperar pela partida, falou-lhe da sua
atração por Marx e pelos comunistas.

No dia seguinte da sua chegada a Moscou, Sorge encontrou-


se com Dimitry Manuilsky, então chefe da Divisão da
Inteligência no Exterior do Comintern. Como Foote, ele
também não recebera qualquer indicação do que lhe estava
sendo reservado pelos russos. Sua entrevista com Manuilsky
pôs um ponto final em suas especulações. Iria submeter-se
a um treinamento para ser espião.

Poucos espiões já foram tão adequadamente treinados


como Sorge. Durante os cinco anos que se seguiram,
passava de uma escola para outra, até que se sentiu
integralmente impregnado de todos os aspectos da técnica
de espionagem. Por essa ocasião, fora enviado à Dinamarca
e aos Balcãs para adquirir experiência, sob orientação
técnica. Entre suas muitas qualidades, revelava notável
tendência para línguas e, por volta de 1928, já falava o
russo como um nativo e conversava, com invejável fluência,
em inglês e francês.

Como teste, Sorge foi enviado, sozinho, por um ano, para


Los Angeles, a fim de descobrir tudo o que pudesse sobre a
indústria cinematográfica norte-americana. Nesse teste, foi
aprovado summa cum laude. Após rápida visita a Moscou,
foi submetido, então, a uma prova final. Em 1928,
desembarcou na Inglaterra, alojando-se num quarto de uma
pensão em Bloomsbury.

Em todas as suas viagens, Sorge sempre usara seu próprio


nome e o disfarce de um estudante de Ciências Políticas.
Nem na Escandinávia, nem nos Balcãs, nem na Califórnia,
encontrara alguém que recordasse seus dias agitados em
Hamburgo e Kiel. Pouco depois de chegar a Londres, porém,
foi visitado por oficiais da Divisão Especial — esquecera-se
de se registrar como estrangeiro —, os quais, no curso do
interrogatório, perguntaram-lhe se já morara em Hamburgo.

Essa pergunta o impressionou profundamente, e logo


comunicou a Moscou: “A Inglaterra sabe mais a respeito de
espiões do que qualquer outra nação.” Compreendeu,
igualmente, que as autoridades inglesas não haviam
acreditado em sua negativa e abreviou a visita.

No ano seguinte, Sorge foi transferido do serviço do


Comintern para o Secretariado dos Negócios Exteriores.
Tratava-se apenas de um disfarce, pois ele passara, quase
imediatamente, para o GRU. Por essa ocasião, gozava de
tão alto conceito junto aos chefes da espionagem soviética
que, após rápida entrevista com o diretor do Centro, foi
nomeado Diretor-Residente para o Extremo Oriente, com
seu quartel-general instalado em Xangai. Era tanta a
confiança que seus superiores nele depositavam que, ao
contrário de toda a prática usual, o Centro lhe dera carta-
branca para agir. Especificamente, só lhe solicitaram que
enviasse informações sobre o crescente Exército
nacionalista de Chiang Kai-shek. Ficaria inteiramente à sua
discrição a escolha das notícias que julgasse dever
submeter à consideração do Centro.

A missão de Sorge não constituiu a primeira infiltração


realizada no Extremo Oriente pelos agentes soviéticos. Três
anos antes, uma pequena rede havia operado na China,
mas faltara-lhe direção e, nessas condições, fornecera
apenas informações de pouco valor. No caso de Sorge, tudo
indicava que aquela área iria ter sua importância
aumentada e, nessas condições, automaticamente,
requereria uma bem organizada rede, dirigida com
imaginação.

Sorge teve permissão de escolher os homens que deveriam


trabalhar para a sua nova Unidade Chinesa. Conservou os
agentes que já se encontravam na área e que, em sua
opinião, lhe serviriam de assistentes, dispensando o resto.
De uma lista fornecida pelo Centro, selecionou dois técnicos
de rádio de primeira classe para acompanhá-lo. Em
princípios de 1930, a Unidade Chinesa já estava firmemente
estabelecida em Xangai. Pela primeira e única vez em sua
carreira, Sorge abandonou a própria identidade e tornou-se
William Johnson, jornalista norte-americano.

Entre os seus contatos proveitosos realizados em Xangai


encontrava-se Agnes Smedley, a escritora comunista norte-
americana, e com a ajuda dela a rede pôde entrar
imediatamente cm ação. Ela permitiu ao rádio-operador
vindo com ele que instalasse o transmissor em seu
apartamento, poupando-lhe, assim, dificuldades e tempo,
em busca de um “endereço seguro”. Mais do que isso,
Agnes apresentou-o a alguns moradores de Xangai que,
embora não comunistas, estavam dispostos a lhe fornecer
informações de cunho militar. Entre eles contava-se um
brilhante professor e jornalista japonês, Ozaki Hozumi.

Ozaki descendia de uma rica família e se graduara pela


Universidade de Tóquio. Estudara Marx, Lênin e Engels, mas
o dever filial impedira que tornasse pública sua crença no
comunismo. Vivia em Xangai como correspondente de um
jornal de Tóquio, e se tornara amigo de Agnes Smedley.

Uma das grandes virtudes de Sorge era o seu fascínio


pessoal. Não que fosse um homem fisicamente bonito: nariz
chato, fronte profundamente pronunciada, olhos pequenos e
separados, sulcos profundos, do nariz aos cantos da boca, e
lábios grossos. Esse conjunto de detalhes fisionômicos
emprestavam-lhe uma aparência nada teutônica. Contudo,
apesar do comportamento boêmio, das bebedeiras e da
concupiscência, existia muita coisa em sua personalidade,
socialmente atrativa. Sorge não ignorava esses predicados
e nunca hesitou em utilizá-los quando sentiu que eles o
ajudariam a conseguir o que desejasse.

Quase desde o primeiro momento em que conheceu Ozaki,


decidiu que desejava ter o jovem japonês em sua rede e,
nessas condições, aplicou seu poder de sedução contra o
jovem erudito, que imediatamente se deixou envolver. Pela
primeira vez, concordara em se empenhar em espionagem
ativa e, breve, iria prestar tão relevantes serviços à Unidade
Chinesa que com dificuldade seria sobrepujado pelo próprio
Sorge.

Tendo organizado seu trabalho em Xangai, Sorge realizou


uma excursão pela região que lhe fora destinada como
campo de ação e, no fim de seis semanas, chegou a Harbin,
na Manchúria, onde se encontrou com um homem de
negócios alemão, Max Klausen, o melhor rádio-operador
contratado pelo Centro. Quando Klausen chegou a Harbin,
Sorge já se fizera amigo do jovem vice-cônsul norte-
americano ali credenciado e o persuadira a alugar, a um seu
amigo alemão, seus dois quartos no Consulado. Nessas
condições, sob a proteção da bandeira dos Estados Unidos,
Klausen instalou o radiotransmissor. Sorge, por outro lado,
contratou um agente para ajudá-lo e, com a célula
definitivamente organizada, retornou a Xangai, a fim de
prosseguir na estruturação do seu serviço clandestino.

Dois anos após haver desembarcado em Xangai, a Unidade


Chinesa estava funcionando a plena força. Cobria Nanquim,
Cantão e Pequim, enquanto agentes isolados trabalhavam
em setores tão meridionais quanto a Malásia e tão
setentrionais quanto as fronteiras com a Sibéria. A rede
fornecia ao Centro informações sobre o apoio dado por
várias classes ao governo, aos comunistas e a Chiang Kai-
shek. Revelava, igualmente e com exatidão, o poderio
militar que correspondia a cada um desses três aspectos da
situação chinesa, o equipamento de que dispunha, suas
condições de abastecimento e seus estoques, sem se
esquecer de ressaltar os grandes interesses comerciais que
estariam dispostos, em compensação por algumas
concessões, a apoiar os comunistas quando organizassem a
sua revolução.

Com a ascensão de Hitler, a tradicional cordialidade da


Alemanha em relação à China começou a derivar desse país
na direção do Japão, e os dirigentes russos, tomando
conhecimento dessa realidade, passaram a julgar que,
concomitantemente, se verificava idêntico afastamento do
perigo que, segundo acreditavam, pesava sobre os
territórios da Sibéria.

Determinado a não ser colhido de surpresa, se a situação


era, de fato, como se julgava, o Centro promoveu seu
diretor, Coronel Beldin, ao posto de general e o colocou
como encarregado de uma seção especial para os negócios
do Extremo Oriente. O primeiro ato de Beldin foi chamar
Sorge a Moscou, para consultas.

Sorge e Beldin trocaram impressões pelo período de vários


meses e, quando suas conversações chegavam ao fim,
elaboraram um plano para obter todos os segredos do
governo japonês. Sorge, mais uma vez, teve permissão para
escolher todos os agentes soviéticos e, nessas condições,
deu preferência aos dois homens que julgava capazes de
ser de maior utilidade para o seu trabalho. Pediu a Ozaki
que se transferisse para o Japão e fez com que Klausen
também mudasse a sede do seu negócio-disfarce. Para
completar a rede, selecionou dois outros agentes: Branko de
Voukelich, antigo oficial do Exército Real da Iugoslávia e
então correspondente de diversos jornais, e um artista
japonês, Myagi Yotoku, que havia conhecido quando
estivera na Califórnia.

Antes que regressasse, para levar a efeito a organização de


sua rede no Japão, Sorge retornou à Alemanha. Constitui um
mistério até hoje indecifrado a maneira como conseguiu
insinuar-se junto aos nazistas, ao ponto de obter sua filiação
no Partido e ser acreditado como correspondente do
Frankfurter Zeitung no Extremo Oriente. Alemães, que
viviam no exterior e dos quais se fizera amigo, certamente o
auxiliaram nessa difícil tarefa, dando-lhe cartas de
recomendação para destacados membros do Partido
Nazista. Essa hipótese, porém, não explica suficientemente
como, pouco depois de chegar à Alemanha, obteve tão
excelente cobertura para suas atividades em Tóquio e
conseguiu ser convidado para funções só exercidas pelos
mais íntimos associados com a liderança do Partido.
Igualmente, ela não esclarece porque, às vésperas de sua
partida para Tóquio, o Clube da Imprensa Nazista ofereceu
um jantar em sua honra, o qual contou com a presença de
Bohle, chefe da Divisão Nazista para o Exterior, e de Josef
Goebbels. Esse jantar certamente foi de grande utilidade
para Sorge, tanto por ocasião da sua chegada a Tóquio
como durante os anos que se seguiram.

O fato de que sua reputação o tinha precedido e de que ele


era um correspondente credenciado do Frankfurter Zeitung
fizeram com que, automaticamente, o Bergen Kurrier, o
Tàchnishe Rundschau e o Amsterdam Handelsblatt o
considerassem persona grata do pessoal da embaixada da
Alemanha em Tóquio, desde o embaixador até ao mais
humilde contínuo.
Dos cinco integrantes da rede, Sorge e Ozaki eram,
inegavelmente, os de maior êxito. Não havia muito que
escolher entre suas respectivas qualificações, embora
derivassem elas de predicados diferentes. Enquanto Sorge
era capaz de apreender imediatamente a importância da
informação que lhe chegava às mãos, com tal penetração
que nunca enviou para Moscou qualquer notícia considerada
inútil, e não deixava escapar, por outro lado, o que quer que
fosse de real valor, Ozaki, por sua vez, além de ser um
técnico em interpretar as tendências políticas de toda a
extensão do Extremo Oriente, e da China em particular,
dispunha, igualmente, de contatos que o podiam introduzir
nos mais elevados círculos políticos do Japão.

O fato de Sorge, Ozaki e Voukelich terem sido credenciados


como correspondentes estrangeiros tornou possível para
eles enfrentar, sem despertar suspeitas da Kempeitai, as
atividades da contraespionagem. Sorge não revelou
qualquer pressa em fazer sua rede operar, mas, através de
encontros em cafés, em restaurantes e em bares — no
princípio, casualmente, e, depois, combinados com
antecedência —, permitiu que seus movimentos fossem
considerados normais e as ligações, surgidas desses
encontro, parecessem haver sido estabelecidas
gradualmente.

A ocupação legal de Sorge levou-o automaticamente, com


frequência, à embaixada alemã, onde procurou fazer
acreditar que ali encontrara, pela primeira vez, Max
Klausen. Os observadores que assistiram à cena julgaram
perfeitamente natural, igualmente, que aquele excêntrico
correspondente de jornais tivesse pena do solitário
comerciante alemão e o convidasse para fazer parte do seu
círculo.
Miyagi foi-lhe apresentado mais ou menos do mesmo modo.
Sorge e Voukelich se achavam, certo dia, no Uneo Ari
Museum, quando Voukelich reconheceu um artista japonês,
seu amigo. Apresentou-o então a Sorge e, pouco depois,
uma discussão se estabeleceu entre os dois, sobre os
méritos da arte ocidental e os da arte oriental. Miyagi foi
convidado, por ambos, a prosseguir sua palestra num café
frequentado por artistas e jornalistas.

Uma base, de onde possa operar, é essencial para qualquer


rede de espionagem. Essa base deve ser de tal natureza
que todos os membros da organização abertamente a
possam frequentar, com motivos ostensivamente legítimos
para suas visitas. Ainda mais, precisa estar defendida e
salva dos bisbilhoteiros, caso os membros da rede tenham
de se encontrar de qualquer modo, sendo inconveniente a
utilização de intermediários. Sorge havia resolvido restringir
sua rede ao mínimo de integrantes e adotar o método acima
mencionado, para fazer seus contatos.

Dessa forma, escolheu como sua base uma casa em ruínas,


cujo aluguel estava bem de acordo com seu salário de
correspondente estrangeiro.

Tão logo se instalou nessa casa, Sorge deu uma festa que
chocou tanto seus respeitáveis vizinhos como os membros
do corpo diplomático, que haviam sido convidados,
juntamente com jornalistas, artistas, oficiais do Exército
japonês e um punhado de homens de negócios. Quando os
convidados menos íntimos saíram, por volta das dez horas,
algumas gueixas passaram a participar da festa e, durante
algumas horas, o barulho, que se filtrava através da frágil
estrutura do tugúrio, refletia, de maneira eloquente, o que
estava acontecendo no interior.
A vizinhança ouviu com irritação aquela algazarra até que
amanhecesse, quando então as gueixas saíram,
acompanhadas pelos convidados remanescentes.
Permaneceram no interior apenas Voukelich, Ozaki, Klausen
e Miyagi, com quem Sorge insistira para que terminassem
juntos a última garrafa. Na relativa quietude que se seguiu,
e antes que os quatro visitantes saíssem, por fim, com a
primeira claridade do dia, Sorge fornecera aos seus espiões
seu primeiro memorando.

As festas de Sorge tornaram-se alvo de comentários na


capital japonesa e, se os agentes da Kempeitai observavam
que seus quatro melhores amigos sempre permaneciam na
casa, após a saída de todos os convidados, nunca chegaram
a alimentar qualquer suspeita em relação ao fato.

Um espião normalmente procura, tanto quanto possível, não


ser notado. Sorge, porém, já se comportava de maneira
diametralmente oposta. Não somente suas ruidosas festas
eram motivo de conversas em Tóquio, mas, igualmente,
tornaram-se notórias suas relações com um punhado de
mulheres. Sua necessidade de satisfação sexual estava
verdadeiramente bem acima do normal, porém a atitude
que assumia, em relação às infelizes que sucumbiam sob a
ação do seu irresistível charme, era essencialmente de
desprezo. Depois da posse, mostrava-se enojado da
companheira e, dentro de algumas semanas, abandonava-a
e saía em busca de nova excitação.

Essa reputação servia-lhe de valiosa cobertura, pois o que


se alegava era que um indivíduo que, como ele, atraísse
tanto atenção para si próprio, não poderia, em hipótese
alguma, ser um espião.

Com a célula bem estabelecida, Sorge iniciou então o seu


trabalho. Não demorou muito, e ele passou a justificar a
grande confiança que o General Beldin nele depositara, por
uma série de brilhantes golpes.

O primeiro deles foi levado a efeito pela atuação de Ozaki.


Tão grande era a reputação desse jovem erudito como
comentador político que as autoridades japonesas logo se
interessaram em conhecer-lhe a opinião sobre diversos
problemas de relevância. Assim é que, quando, por volta do
fim de 1935, o ministro do Exterior preparou um relatório
para o Gabinete sobre os objetivos políticos e econômicos
do Japão para o ano seguinte, o Príncipe Konoye, que era
então o primeiro-ministro, prontamente concordou com uma
proposta de que a Ozaki fosse permitido ver uma cópia do
esboço, de forma que ele pudesse dar seu parecer sobre a
parte daquele trabalho que se referisse à China.

Ozaki teve permissão, na oportunidade, para estudar o


documento durante a maior parte de um dia, numa sala
separada, no Ministério do Exterior. Inteiramente isolado ali,
fotografou, uma por uma, todas as páginas do relatório.
Através desse texto, tornava-se perfeitamente claro que o
Japão não tinha a intenção de atacar a Rússia, em futuro
próximo, e que a invasão da China meridional dependeria
do desenvolvimento da indústria pesada na Manchúria.

Em busca de prova confirmatória, Sorge, sob a alegação de


ter de fazer uma reportagem para os jornais que
representava, obteve uma entrevista particular com o
embaixador alemão, Dr. Herbert von Dirksen. Através de um
inteligente interrogatório, pôde saber que o Alto Comando
Japonês insinuara ao adido militar da embaixada que a
retirada dos oficiais alemães que instruíam os exércitos
chineses seria considerada uma demonstração de amizade
pelo governo de Tóquio.
Ao mesmo tempo, Miyagi descobrira, por intermédio de um
coronel do Estado-Maior Japonês, de quem pintava um
retrato — tornara-se muito popular nos círculos militares por
sua habilidade de retratista —, que algumas maquetas em
larga escala, de certas regiões da China meridional,
estavam sendo construídas para finalidades de exercícios
militares.

Todas essas informações, consideradas em conjunto,


fizeram Moscou compreender que seus agentes lhe tinham
fornecido informações da maior importância, e se, antes, os
dirigentes soviéticos já consideravam Sorge como um
mestre, após a remessa dessas informações, passaram a
julgá-lo verdadeiro realizador de milagres.

Tais êxitos no início de sua carreira poderiam ter contribuído


para que qualquer outro espião dormisse sobre os louros
conquistados. Quanto a Sorge, apenas serviram para
estabelecer o padrão a ser obedecido em suas futuras
atividades.

Compreendendo a importância dos contatos de Ozaki nos


altos círculos políticos — ele se havia tornado então
conselheiro privado e confidencial do próprio primeiro-
ministro —, Sorge começou a estabelecer idênticos contatos
na embaixada alemã. Assim é que logo se tornou confidente
do adido militar, o Coronel Eugene Ott, que mais tarde iria
ser o embaixador, em substituição a Dirksen.

Voukelich consolidou, igualmente, sua própria posição junto


à embaixada da França, enquanto Miyagi, agindo
isoladamente como artista, ampliou o número de seus
amigos nos círculos militares mais jovens.

O caminho de Sorge, entretanto, nunca se revelava


inteiramente desembaraçado. Seus casos com mulheres
comprometiam-lhe muitas vezes a segurança. Klausen,
embora rádio-operador de primeira classe, não possuía a
estrutura de um bom agente, pois em mais de uma ocasião
escapara por pouco de ser preso. De maneira
incompreensível, a Kempeitai permanecia inativa e, nessas
condições, Sorge e sua minúscula rede, pelo período de sete
anos, operaram no Japão, dando golpes sobre golpes, cada
um mais brilhante do que o anterior. Nessa ocasião,
advertiu Moscou sobre o iminente ataque da Rússia, por
Hitler. A informação lhe fora dada pelo Coronel Ott e
confirmada por Ozaki. Coroou sua carreira, mas fê-la chegar
ao fim, ao obter a data aproximada do ataque japonês a
Pearl Harbour.

Esse golpe de espionagem ocorreu de maneira tão


dramática e, ao mesmo tempo, tão melodramática, que
merece ser recordado. Desde 1939, a Kempeitai tinha
conhecimento de que um radiotransmissor clandestino
estava operando do Japão, mas as técnicas de detecção da
época não eram capazes ainda de localizar qualquer ponto
de sua instalação. O Coronel Osaki, chefe da Kempeitai,
vinha, entretanto, alimentando suspeitas em relação a
Sorge e seus associados, e chegara mesmo a solicitar à
embaixada alemã que apurasse, com a Gestapo, quem
eram Sorge e Klausen.

A Gestapo deu sinal verde para ambos e, embora Osaki


soubesse como essa organização era eficiente, mesmo
assim conservara um instintivo sentimento de que Sorge
não era, de forma alguma, o que aparentava ser, e, em
consequência desse raciocínio, passara a dar-lhe atenção
especial. Como não conhecia Sorge, providenciou um
encontro com o agente soviético, através dos bons ofícios
de um integrante do funcionalismo da embaixada alemã.
O local que Sorge frequentava, por essa ocasião, era o Fuji
Club, em Tóquio, e ali foram apresentados um ao outro.
Sorge achou Osaki um japonês típico, com acentuada
inclinação para os prazeres proporcionados pelo saquê e
pelas mulheres. Durante a troca de opiniões em relação ao
último assunto, o japonês declarara que, no seu modo de
entender, a mais bonita mulher de Tóquio era uma bailarina
que devia fazer sua estreia aquela noite, naquele mesmo
clube. A princípio, Sorge não se mostrou interessado em
conhecê-la, mas o coronel elogiou tão insistente e
extravagantemente seus predicados femininos, que, por
fim, a curiosidade do agente se aguçara.

Pouco depois, iniciou-se o show, e a bailarina Kiyomi fez o


seu número. Usava a máscara tradicional, de forma que a
beleza de seu rosto não pôde ser julgada, mas o resto do
corpo era suficientemente arrebatador para ficar impresso
na consciência de Sorge.

Durante uma ou duas semanas, o agente visitou o Fuji Club


e, todas as noites, enviava flores e bilhetes a Kiyomi,
solicitando que lhe marcasse uma entrevista.
Invariavelmente, Kiyomi rasgava os bilhetes e devolvia as
flores.

Certa noite, a mesa de Sorge estava vazia. Temerosa de que


houvesse ido longe demais, ela, após terminar seu número,
correu ao camarim, a fim de telefonar para Osaki e
perguntar-lhe o que deveria fazer. Mas, quando voltou do
camarim, viu Sorge sentado em sua mesa, aguardando-a.
Em poucos minutos, ela capitulava.

Enquanto isso, na Alemanha, embora Hitler tivesse ficado


irritado com a recusa japonesa de desfechar um ataque
contra a Sibéria, quando ele invadisse a Rússia, nem por
isso perdera todas as esperanças de ainda conseguir
persuadir o governo de Tóquio a distrair os russos, por
intermédio dessa agressão no Oriente. Durante todo o verão
e o outono de 1941, procurou seduzir Konoye e seus
ministros; mas Moscou, por seu lado, julgava, também que
esse ataque à Sibéria seria levado a efeito, e, nessas
condições, a tarefa de Sorge era a de colher informações
sobre as quais a data do ataque pudesse ser calculada.
Ozaki e Miyagi ficaram encarregados da obtenção desses
informes, mas, até então, não haviam apresentado qualquer
coisa que indicasse a probabilidade daquela agressão.

Quando o outono começou a se fundir no inverno, os


fantásticos avanços alemães sobre a Rússia européia
fizeram o governo japonês sentir-se ainda mais indeciso
sobre o que deveria fazer. Os russos tinham desfalcado seus
exércitos europeus de reservas, ao conservarem dois
milhões de homens — tropas da primeira linha — na Sibéria.
O Incidente Nomohan, que foi, na realidade, somente um
choque de fronteira de grandes proporções, embora se
tivesse prolongado por diversos dias, fora considerado pelos
russos, a princípio, como o desde muito esperado ataque
japonês, apesar de Sorge lhe haver dito que todas as
informações por ele obtidas apontavam em sentido
contrário.

Esse incidente fez com que os russos hesitassem, mais do


que nunca, sobre a conveniência de retirar suas
desesperadamente necessitadas tropas da Sibéria, mas, em
outubro, Ozaki entregou uma informação de que os
japoneses, finalmente, tinham tomado uma decisão. Toda a
idéia de invadir a Sibéria fora abandonada. Os exércitos
japoneses deveriam marchar na direção do Sul. Em
confirmação, todos os homens de nacionalidade japonesa,
entre vinte e cinco e trinta e cinco anos, haviam sido
convocados e, em grande parte, o Coronel Ott admitira que
Tóquio resistira a todas as pressões dos alemães para que
se movimentasse contra os russos. Sorge, acreditando que
aquela fosse sua mais bela hora, fez questão de ver Klausen
transmitir a mensagem que, finalmente, deveria mudar a
sorte na guerra da Rússia.

Uma das razões por que o Coronel Osaki não conseguira


localizar aquele radiotransmissor clandestino, que tantas
preocupações lhe causava, foi devida, em parte, à sua
instalação. Sorge, além da sua casa em ruínas na cidade,
alugara também uma vila num subúrbio de Tóquio, à beira-
mar. Tinha ali um bote pesqueiro, que alugara de um velho
pescador analfabeto. Às vezes, reunia amigos em festas a
bordo, durante suas excursões de pescaria, e, enquanto os
convidados se divertiam no convés, mal imaginavam que,
embaixo, na cabina do piloto, Klausen estivesse
transmitindo mensagens para Moscou.

Embora Sorge houvesse alcançado seu objetivo com sua


última mensagem remetida para Moscou e tivesse
trabalhado, de maneira estupenda, pelo período de oito
anos, concentrou-se na realização de um objetivo final.
Descobriria onde e quando os japoneses desfechariam seu
ataque no rumo meridional e, então, a rede se dissolveria,
pois estava ciente de que, durante as duas ou três últimas
semanas, Osaki vinha intensificando sua vigilância sobre
todos os estrangeiros que viviam em Tóquio. Essa atitude da
polícia japonesa fizera Sorge compreender que Osaki se
tornara, por fim, cônscio de que agentes estrangeiros
operavam em seu país.

Mas, enquanto aguardava a informação que desejava, Sorge


julgou não haver mal algum em prosseguir no seu jogo
amoroso com a bela Kiyomi. De todas as coisas estranhas,
em relação a esse admirável espião soviético, talvez a mais
curiosa tenha sido a sua incompreensão de que Kiyomi
fosse uma amante contratada por Osaki, já que o chefe da
Kempeitai não se revelara excessivamente astucioso ao
empurrá-la para os seus braços. Se Sorge acusava qualquer
fraqueza fundamental, essa só poderia ser sua permanente
exaltação sexual. Duas noites mais tarde, após haver
enviado a mensagem decisiva para Moscou, ele se
encontrava em sua mesa de sempre, observando a bailarina
fazer aquele número, que já vira uma porção de vezes. Seus
pensamentos, entretanto, estavam longe. Sentia-se
preocupado. Havia já uma semana que Miyagi não dava
qualquer notícia. Voukelich, por seu lado, achava-se
profundamente apreensivo, pois descobrira que estava
sendo seguido, onde quer que fosse.

Durante a dança, um garçom se aproximou da mesa e,


discretamente, deixou cair uma pequena bola de papel de
arroz. Mas não tão discretamente quanto seria de desejar.
Sorge desdobrou o papel e viu que se tratava de uma
mensagem de Miyagi. Ele também estava sendo vigiado
pela Kempeitai. Por trás da máscara, os aguçados olhos
Kiyomi haviam observado o garçom deixar cair a bola de
papel e Sorge apanhá-la, desamassá-la e ler o que continha,
guardando-a em seguida no bolso. Tão logo terminou sua
dança, ela correu para o camarim e telefonou ao coronel
Osaki.

Uma investigação foi imediatamente levada a efeito para


identificar o garçom. Descobriu a polícia que ele visitava
frequentemente o escritório de Ozaki, no edifício-sede da
Estrada de Ferro da Manchúria do Sul, da qual esse auxiliar
de Sorge era então diretor. Ficou apurado, igualmente, que
fora visto em companhia de Miyagi. O coronel já sabia que
Sorge e Miyagi eram amigos.

Ninguém que conversasse com Sorge, no dia seguinte,


desconfiaria de que estivesse diante de um homem
apreensivo e desesperado. Como fazia diariamente, ele
tomou o seu café da manhã com o Embaixador Ott e, então,
saiu para a atividade de correspondente estrangeiro.

No meio da manhã entretanto, tudo mudou. Recebera uma


mensagem de Ozaki. A ofensiva japonesa não seria
desencadeada contra os chineses, mas contra os norte-
americanos, em Pearl Harbor, e a data provável do ataque
seria o dia 6 de dezembro.

Num almoço com Klausen, Sorge o avisara para que


estivesse a bordo do barco de pesca naquela noite, pois iria
enviar sua última mensagem para Moscou. Mostrava-se
animado, como não se sentira desde algum tempo. Vestiu
seu dinner-jacket à noite e foi ao Fuji Club, onde ocupou sua
mesa, permanentemente reservada, à beira da pista de
dança. Enquanto dançava, Kiyomi viu o garçom aproximar-
se outra vez de Sorge e deixar cair uma bola de papel na
mesa. Como da vez anterior, Sorge leu o que estava escrito
no papel e o guardou no bolso. A mensagem era de Miyagi e
o avisava de que a Kempeitai estava também em seu rastro
e que ele e os demais companheiros deveriam fugir tão
cedo quanto possível.

Terminada a dança, e Kiyomi já estando vestida, Sorge


disse-lhe que, ao invés de irem para sua casa, preparariam
eles próprios um jantar na vila da península Izu e ali
passariam a noite. A sugestão colheu Kiyomi de surpresa,
pois era a primeira vez que ouvia falar naquela vila.

Depois que já tinham deixado a cidade, Sorge estacionou


subitamente o carro ao lado da estrada e a possuiu.
Satisfeito, tirou do bolso dois cigarros amassados, um
isqueiro e um pedaço de papel de arroz. Enquanto o via
acender o isqueiro, o coração de Kiyomi agitou-se. Estava
certa de que, quando Sorge acendesse o isqueiro, queimaria
o papel, e Osaki lhe havia dito que, se alguma vez visse
Sorge receber qualquer mensagem, deveria apoderar-se
dela, de qualquer maneira. O isqueiro, porém, não
funcionou e, Kiyomi fingiu ter esquecido o dela no camarim.

Com um áspero gesto de aborrecimento, Sorge atirou os


cigarros pela janela do carro e, rasgando o papel em
pedacinhos, jogou-o também fora, pondo o carro logo em
movimento.

Kiyomi era uma bailarina, e não uma agente treinada da


contraespionagem; não obstante, tratava-se de uma moça
viva e inteligente. Quando passaram pela primeira cabina
de telefone, pediu a Sorge que parasse, a fim de telefonar
aos pais, avisando-os de que passaria a noite fora, com uma
amiga. Sorge aguardou no carro, enquanto ela chamou o
Coronel Osaki e explicou rapidamente o que houvera e onde
poderia encontrar os pedaços de papel rasgado.

Chegando à vila, Sorge ali deixou Kiyomi para preparar


alguma comida e saiu, dizendo que tinha um negócio
particular para tratar. Foi à praia, tomou um bote e remou
para o barco pesqueiro, onde Klausen o esperava. A bordo,
entregou a Klausen duas mensagens: a primeira,
comunicando a Moscou o que Ozaki lhe transmitira; a
segunda, fazendo uma advertência de que a rede já estava
comprometida e, por isso, ia fazê-la debandar, dali por
diante.

Quando o rádio-operador concluiu a transmissão das


mensagens, os dois se apertaram as mãos, desejaram que
algum dia se encontrassem outra vez e se separaram. Na
vila, Sorge comeu o que Kiyomi preparara e,
imediatamente, levou-a para a cama. Se tinha algum
pressentimento de que aquela seria a sua última noite de
liberdade, não o revelou. A bailarina, em depoimento
prestado muito depois, declarou que, naquela noite Sorge a
possuíra com uma ferocidade e uma frequência que julgara
ser humanamente impossíveis. Era já madrugada, quando
se mostrou cansado e adormeceu.

Enquanto Sorge dormia, o Coronel Osaki se movimentava.


Quando Klausen chegou a sua casa, em Tóquio, já alguns
agentes da polícia o aguardavam. Voukelich foi arrancado
dos braços da sua antiga amante japonesa, que nos últimos
tempos se tornara sua esposa. Miyagi tentou apunhalar-se,
quando os agentes lhe arrombaram a porta. Foi levado para
um hospital, tratado e recuperado. Ozaki, vestindo suas
mais finas roupas, esperou a chegada da polícia, com
fatalismo oriental.

Sorge não dormiu muito tempo. O novo dia — 15 de outubro


de 1941 — mal começara, quando acordou Kiyomi e a
possuiu outra vez. Deixou o quarto, indo para a sala, onde
misturou para si próprio uma bebida forte. Ao erguer o copo,
ouviu pancadas na porta. Ao abri-la, o Coronel Osaki e dois
assistentes entraram na sala.

O coronel nada disse. Apenas entregou a Sorge uma folha


de papel, na qual os pedaços da mensagem de Miyagi,
espalhados na estrada, tinham sido colados juntos. Sem
uma palavra e sem um olhar dirigidos a Kiyomi, já que
subitamente compreendera haver sido traído por ela,
engoliu a bebida, vestiu-se e saiu com o coronel.

Miyagi não suportou as torturas da Kempeitai; Klausen


fugiu, não muito depois. Mas nenhum dos dois homens
soube o que a última mensagem de Sorge continha.
Voukelich comportou-se com a coragem e a lealdade de um
antigo oficial, e nenhuma tortura conseguiu fazê-lo falar.
Sorge e Ozaid não foram torturados, mas, quando viram as
confissões de Miyagi e de Klausen, compreenderam que já
não lhes restava qualquer esperança. Fizeram então suas
confissões, embora sem revelar o texto da última
mensagem que haviam transmitido.

Em face desses depoimentos, os processos instaurados


contra eles estavam completos. Miyagi revelou-se doente
em excesso, para poder enfrentar um julgamento, e
recolheram-no indefinidamente a um hospital-prisão.
Voukelich foi condenado à prisão perpétua. Klausen,
havendo sido recomendado para perdão, teve sua sentença
de morte transformada em prisão perpétua. Sorge e Ozaki
foram condenados à morte.

Embora, no Japão, as sentenças de morte habitualmente


fossem efetuadas no prazo de seis meses após a
decretação, a execução desses dois agentes soviéticos, por
motivos até hoje não revelados, foi adiada por dois anos. No
dia 9 de outubro de 1944, ambos morreram na mesma
prisão, com uma diferença de meia hora entre as duas
execuções. 
8. As Redes nos Estados Unidos

A circunstância de que os Estados Unidos e a União


Soviética eram aliados e de que os norte-americanos —
como o faziam os ingleses — estavam-se despojando de
vital material de guerra para ajudar os russos, que se
encontravam mais duramente pressionados por Hitler,
aparentemente não impedia que o governo de Moscou,
segundo pensava Stálin, se comprazesse na prática do que
normalmente é considerado um ato inamistoso, isto é, a
espionagem. Com efeito, a aliança dos dois países pareceu
servir de pretexto para que as atividades da espionagem
soviética fossem expandidas em tão violento ritmo que
chegaram a atingir, durante os três anos de 1942 a 1945,
um nível nunca antes alcançado, e provavelmente, desde
então, não ultrapassado.

Será conveniente lembrar que, até 1939, as redes


soviéticas, nos Estados Unidos, haviam-se mostrado
extremamente ativas. Entretanto, como acontecera com a
maioria dessas organizações em qualquer parte — com a
única exceção, talvez, da rede de Richard Sorge, que
funcionava no Japão —, foram elas profundamente afetadas
pelo grande expurgo de 1938. Isso custou à maioria dessas
organizações dois ou três anos para serem reestruturadas,
como já vimos na Europa Ocidental. Por volta de 1941,
coincidindo fortuitamente com o desencadear da Operação
Barbarossa e com o ataque a Pearl Harbor, as redes que
operavam nos Estados Unidos começaram outra vez a se
aprumar.
Que os Estados Unidos tivessem sido escolhidos para uma
blitz de espionagem — mesmo antes do advento daqueles
dois aniquiladores golpes — pode-se concluir pelo fato de
que, após alguns anos de vacância, o posto de adido militar
à embaixada da Rússia, em Washington, afinal tenha sido
preenchido. Merece ser ressaltado, ainda, que a pessoa
escolhido para o cargo não fora outra senão o General Ilya
Sarayev, espião-chefe profissional, que deveria
desempenhar grande papel na atividade da espionagem
soviética, a qual iria tornar os Estados Unidos seu alvo
número um até a eclosão do Caso dos Espiões Canadenses,
ocorrido três ou quatro anos mais tarde.

O terreno em que a espionagem soviética fora posta a


trabalhar dificilmente seria mais favorável. O FBI e o
Departamento de Inteligência Naval (ONI) continuavam
sendo as duas únicas agências empenhadas, naquele país,
na realização de serviços de contraespionagem. Nenhuma
delas, porém, se achava equipada com pessoal adequado,
especialmente o ONI. De qualquer forma, os maiores
esforços dessas agências estavam concentrados em dois
objetivos: anular a espionagem japonesa — que se
mostrava realmente inquietadora e que, no início de 1950,
ocupava dezenas de milhares de agentes na Costa
Ocidental e na América Central — e tentar romper o anel de
espionagem nazista, dirigido pelo Conde von Keitel.

Há a ressaltar, ainda, o comportamento, de certa forma


ingênuo, revelado pelas autoridades norte-americanas, em
face de tão grave infiltração. Em face da experiência
passada, deviam ter desconfiado do que os russos estavam
planejando quando, em princípios de 1942, subitamente
aumentaram tanto o quadro do pessoal de sua embaixada
em Washington, como o do seu serviço consular,
estrategicamente localizado em toda a extensão do país e,
em particular, o da sua nova Comissão de Compras. Essa
ingenuidade, segundo tudo leva a crer, persistiu por muito
tempo, pois, em dezembro de 1943, o General Wild Bill
Donovan, chefe do recém-criado Departamento de Serviços
Estratégicos (OSS) — o equivalente ao SOE britânico —
fizera uma visita a Moscou, onde, em entrevistas com os
dirigentes soviéticos, ressaltara a conveniência de que a
organização que chefiava trabalhasse em estreita
cooperação com a sua equivalente russa. Durante suas
entrevistas com graduados oficiais do GRU —
aparentemente, não se avistara com Alexander Erdberg —,
o general norte-americano revelara todos os detalhes do
modus operandi do seu Departamento — a técnica de
infiltração de seus agentes em territórios ocupados pelo
inimigo, assim como a natureza do seu equipamento,
inclusive os últimos modelos portáteis de
radiotransmissores — concluindo por sugerir que uma
pequena unidade russa deveria ser instalada em
Washington, a fim de facilitar a ligação entre os dois
serviços. Os norte-americanos somente foram salvos dessa
infantil ingenuidade — parece que, de todos os maiores
técnicos de planejamento dos Estados Unidos, somente o
Almirante Leahy fora contrário à idéia — por considerações
de ordem política. O ano de 1944 era de eleições gerais, e o
Presidente Roosevelt julgara que a implantação daquele
esquema de cooperação com a Rússia poderia provocar
uma reação na imprensa e, nessas condições, pessoalmente
o vetou.

O malogro dessa iniciativa, entretanto, não fez cessar a


cooperação entre o General Donovan e Moscou. O OSS
insistiu em colocar à disposição dos russos grande número
de informações sobre a situação nos países ocupados pelos
nazistas juntamente com proveitosas informações neles
colhidas pelos agentes norte-americanos.
Outro fator que facilitou grandemente o esforço russo nos
Estados Unidos foi a característica cordialidade dos norte-
americanos. Os russos eram, então, seus aliados. Quaisquer
que tenham sido suas relações no passado, dissipavam-se
pelo fato de que então estavam lutando, lado a lado, contra
um inimigo comum. Em todos os lugares onde os russos
apareciam eram saudados com a espontaneidade da
tradicional hospitalidade norte-americana. Esse estado
emocional incluía também o fornecimento de informações
que, anteriormente, seriam cuidadosamente interditadas
aos russos. Essas informações, naturalmente, não
satisfaziam o imenso estômago dos soviéticos, que tudo
queria digerir. O esforço de obter maior e mais detalhado
conhecimento do que se passava nos Estados Unidos foi
tornado, entretanto, bem mais suave pelo amistoso contato
que os russos logo estabeleceram com os homens que
guardavam esses segredos.

De acordo com as revelações feitas, perante vários comitês


de investigação do Congresso, nas últimas duas e meia
décadas, tornou-se evidente que a maior atividade
desenvolvida pelos russos orientou-se no sentido da
espionagem industrial — particularmente no setor das
indústrias responsáveis pela produção de material bélico.
Técnicos em artilharia e armas modernas, em aviões e
submarinos, eram encontrados entre o pessoal da Comissão
de Compras — sem dúvida, a principal agência da
espionagem soviética, no que dizia respeito a esse setor —
e entre o funcionalismo da embaixada e dos consulados.
Nada, porém, parecia sem interesse para os russos. Nessas
condições, o volume de informações vitais, por eles obtido,
durante os anos de guerra, certamente não poderá ser
avaliado.

Mas, se o esforço no campo industrial foi verdadeiramente


estupendo, o realizado no terreno da espionagem política
não se revelou, por seu lado, desprezível. Com efeito,
quando se examina o que eles conseguiram, através de
infiltrações na própria administração norte-americana,
torna-se difícil não sentir uma emoção à qual não são
estranhas certas características de medo. Neste momento,
não desceremos a maiores detalhes no que diz respeito à
espionagem política, já que ela estava intimamente
vinculada a acontecimentos que tiveram lugar nos anos
imediatamente posteriores à guerra e que formaram a base
do Macartismo. O assunto será abordado, com maiores
minúcias, na quinta parte deste livro.

Provavelmente, nenhum outro país do mundo já foi vítima


de um tão violento assalto de espionagem como o que a
Rússia desencadeou contra os Estados Unidos, durante a
guerra.  *  Calcula-se que cerca de dezoito redes separadas
operavam simultaneamente — e no auge da sua atividade,
em território norte-americano, naquele período, o que, por
si só, já representa uma realização digna de nota para
qualquer serviço de espionagem. Entretanto, os resultados
colhidos por essas redes profissionais constituíram apenas
uma fração das realizações totais da espionagem soviética
nos Estados Unidos, e os culpados dessa colheita de
informações secretas foram, apenas e exclusivamente, os
próprios norte-americanos. 

*  Embora o esforço japonês tenha sido grande, suas


realizações revelaram-se desprezíveis. Esse esforço cessou
abruptamente nos dias que se seguiram a Pearl Harbor, pois
todos os japoneses residentes no país foram imediatamente
internados. 
Quarta Parte
ESPIONAGEM ATÔMICA
1. Espionagem Atômica

Não é possível dizer-se, com exatidão, quando a


espionagem soviética se tornou interessada nos segredos
atômicos dos demais países. De qualquer forma, esse
interesse teve início antes do fim de 1943, pois uma das
acusações, feitas mais tarde contra Klaus Fuchs, era a de
que “durante o ano de 1943, o senhor passou informações
aos representantes de uma potência estrangeira, na cidade
Birmingham”.

A primeira grande fenda aberta na Física Nuclear ocorreu


quando Rutherford e Chadwick conseguiram “partir o
átomo”, em 1931, nos laboratórios Cavendish, em
Cambridge. Rutherford, neozelandês de nascimento, sempre
fora interessado na estrutura atômica e havia realizado seu
primeiro trabalho sobre radioatividade, entre 1898 e 1907,
quando professor de Física na Universidade McGill, em
Montreal. Em face da importância dessa pesquisa no campo
da estrutura atômica, ele foi agraciado, em 1908, com o
Prêmio Nobel de Física. Em 1919, foi nomeado professor de
Física em Cambridge, e ali seu trabalho e o do seu
colaborador provaram definitivamente o que, desde muito
tempo, acreditava ser verdade, isto é, que o átomo poderia
ser artificialmente desintegrado.

Desejamos que os leitores nos perdoem se, em nome da


clareza, recapitulamos aqui, muito sucintamente e de forma
apenas rudimentar, as bases da energia atômica. Uma
diminuta massa de substância representa uma enorme
quantidade de energia. Se uma onça de substância pudesse
ser inteiramente convertida em calor, ela seria capaz de
transformar em vapor cerca de um milhão de toneladas de
água. Assim, quando se tem em vista qualquer libertação de
energia, faz-se necessária a produção da fissão nuclear. A
desintegração é conseguida através do processo de
bombardear-se o átomo com nêutrons. Até que Rutherford
conseguisse quebrar o núcleo de certos materiais leves,
bombardeando-os com o que era conhecido como partículas
“alfa” — produzidas espontaneamente pelo núcleo de
elementos específicos —, a maneira de se realizar a fissão
nuclear tinha dado dor de cabeça aos cientistas. Depois
disso, os colegas de Rutherford, que pesquisavam no
mesmo campo, John Cockcroft e seu colaborador Walton,
imaginaram uma espécie de partícula “alfa” artificial, e que
outra coisa não era senão uma partícula eletrizada à qual
era dada uma grande velocidade no interior de tubo de
escapamento. O resultado das experiências com essa
partícula “alfa” artificial representou um significativo passo
à frente no conhecimento dos segredos atômicos. Daí não
tardou que o físico italiano Enrico Fermi conseguisse
quebrar átomos de urânio, reduzindo-os a átomos de
lantânio, que, comparativamente, são minúsculos. O
trabalho de Fermi levou à descoberta de que os nêutrons —
partículas de idêntica constituição dos prótons, mas sem
carga elétrica — poderiam penetrar, com facilidade, o
núcleo dos átomos mais pesados e assim provocar
transformações atômicas, e ao mesmo tempo, libertar
energia.

O problema que os físicos tiveram de resolver, neste ponto,


era que um esforço enorme seria necessário para provocar
a modificação em alguns poucos átomos, o que tornava o
processo impraticável, embora a operação fosse de alto
interesse científico. Fermi não havia reconhecido a
importância da sua experiência com o urânio pesado e
acreditara que o que fizera não passara de uma repetição
da realização de Rutherford, isto é, conseguira apenas tirar
minúsculas lascas do núcleo atômico.

Provocar a fissão nuclear num material que fosse de fácil


desintegração e que, ao mesmo tempo, libertasse o maior
volume possível de energia, constituiu uma preocupação
que, por volta da década dos trinta, havia-se tornado para
os físicos a mesma coisa que a descoberta da pedra filosofal
fora para os alquimistas da Idade Média. Em consequência,
os físicos, nos Estados Unidos, na França, na Alemanha, na
Rússia e no Japão, assim como na Grã-Bretanha e na Itália,
concentraram-se em suas pesquisas, tendo em vista realizar
esse objetivo. Como existe uma tradição científica, no
sentido de que as experiências, coroadas de êxito, devem
ser comunicadas (em tempos de paz) aos demais cientistas
do mundo, independentemente de sua nacionalidade, tudo
o que fora descoberto no Ocidente tornara-se, pois,
conhecido dos cientistas russos.

Os físicos russos, entretanto, mostravam-se


surpreendentemente bem informados em relação às
tremendas possibilidades que poderiam resultar da fissão
nuclear, realizada de forma relativamente fácil. E, nesse
sentido, conseguiram convencer as autoridades que lhes
proporcionassem os indispensáveis recursos técnicos para a
realização de tão relevante tarefa. Assim, a Rússia logo
providenciou a construção de novos laboratórios e adquiriu,
no exterior, moderníssimos e custosos equipamentos. Entre
1934 e 1939, seus físicos nucleares se destacaram, em face
das experiências que realizaram, distinguindo-se entre os
pioneiros dessa revolução tecnológica os seguintes
cientistas: D. D. Ivanenko, G. N. Tamm, N. K. Semionov e D.
V. Skobeltsyn. Nenhum, porém, tinha maior projeção que
Peter Kapitsa.
Russo de nascimento, Kapitsa transferira-se para a
Inglaterra quando muito moço e, em 1921, se juntara a
Rutherford, nos laboratórios Cavendish. Por volta de 1933,
tornara-se tão conceituado por suas experiências sobre os
efeitos da influência magnética sobre as propriedades da
água que as autoridades de Cambridge decidiram
proporcionar-lhe todas as facilidades para as suas
pesquisas, fornecendo-lhe um equipamento especial no
novo laboratório Mond. Não sendo um refugiado político, as
autoridades russas não criaram obstáculo à sua viagem,
quando desejou voltar à pátria. Assim, em 1935, Kapitsa
seguiu para Moscou, onde iria realizar uma conferência
científica. Quando desejou regressar à Inglaterra, porém,
negaram-lhe o visto de saída, sob a alegação de que seus
conhecimentos eram necessários ao governo soviético.
Embora, segundo se disse na ocasião, ele preferisse muito
mais ter retornado a Cambridge, vira-se obrigado a aceitar
um posto no Instituto de Problemas Físicos em Moscou,
onde logo pôs em prática sua cultura extremamente
extensa e o seu know-how em Física Nuclear, que havia
adquirido em Cambridge. Será errôneo, portanto, alegar-se,
como às vezes tem acontecido, que a Rússia nenhuma
experiência possuía no campo da Física Nuclear e que, para
iniciar suas pesquisas, tivera de roubar todas as suas
informações ao Ocidente.

O ano de 1939 assistiu, ainda, a outro passo à frente muito


significativo, no sentido da solução do problema que,
naquela época, preocupava os físicos nucleares. Na
Alemanha, Otto Hahn descobrira o que é conhecido como a
reação em cadeia. Bombardeando o urânio com nêutrons, o
núcleo fora dividido em duas partes, e estas se separaram
com grande energia, libertando, ao mesmo tempo, os
nêutrons, os quais, por sua vez e em certas circunstâncias,
eram capazes de dividir outros átomos. A possibilidade de
dividir todos os átomos num conjunto de urânio, o que
significava a liberação de um enorme volume de energia,
estava, pois, à vista. A investigação dessas possibilidades
tornara claro que, tão logo um método de controlar a
operação fosse descoberto, uma bomba atômica poderia ser
fabricada. E isso ocorreu quando a maior guerra de todos os
tempos acabava de irromper.

O urânio é integrado por três isótopos — isto é, átomos de


diferente constituição, tendo as mesmas propriedades
químicas —, e a descoberta que se seguiu foi a de que
somente um urânio — o urânio 235 — seria adequado para
a fabricação dessa bomba. A separação desse isótopo
constitui um processo dos mais monótonos e custosos. O
problema que os físicos tinham de enfrentar, então, era o de
separar do urânio um volume suficientemente grande do
isótopo 235. Este é o trabalho que, neste momento, está
sendo realizado, em larga escala, nos Estados Unidos.

O urânio, em si mesmo, é derivado, em grande parte, da


pechblenda, da qual existem largos depósitos no Canadá e
no que foi o Congo Belga. Em 1940, um comitê de
investigações de cientistas foi instituído na Grã-Bretanha,
tendo como presidente Sir George Thomson. Em meados de
1941, o Comitê Thomson apresentou um relatório que
concluía pela exequibilidade de uma arma militar baseada
na energia atômica. Endossado pelo Gabinete da Guerra, o
projeto foi então confiado ao Departamento de Pesquisas
Científicas e Industriais. Em outubro de 1941, o Presidente
Roosevelt sugeriu a Churchill que o trabalho deveria ser
levado a efeito, conjuntamente, pelos Estados Unidos e a
Grã-Bretanha. Uma missão norte- americana visitou a
Inglaterra em novembro de 1941, enquanto cientistas
britânicos estiveram nos Estados Unidos em fevereiro de
1942. Como resultado desses contatos, um acordo foi
estabelecido para a manufatura conjunta de bombas
atômicas. Enormes fábricas se instalaram, então, nos
Estados Unidos e no Canadá. Assim, os trabalhos tiveram
início em Montreal e Chalk River, no Canadá; e em Oak
Ridge, no Tennessee, em Los Alamos, no Novo México, e em
outros lugares, nos Estados Unidos, tendo por finalidade a
realização do denominado Projeto da Energia Atômica. Os
cientistas britânicos passaram a cruzar o Atlântico para
trabalhar, tanto nos estabelecimentos canadenses quanto
nos norte-americanos, e a colaboração dos dois países
obteve tão grande êxito que os estágios finais da fabricação
da bomba foram atingidos por volta de 1943.

Simultaneamente, porém, alguns cientistas alemães e


outros japoneses tentavam bater os anglo-saxões nessa
corrida. Os alemães foram prejudicados em suas pesquisas,
em face da destruição das suas fábricas de água-pesada na
Noruega, levada a efeito pela Resistência Norueguesa, sob a
direção do SOE. Os japoneses, por sua vez, revelavam-se
muito atrasados em suas pesquisas, para constituírem
qualquer ameaça. Os russos também tinha sofrido graves
recuos em face da guerra, pois seus principais laboratórios
tiveram de ser fechados, quando, poucas semanas após o
irrompimento do conflito russo- germânico, Leningrado —
onde eles se achavam instalados — fora sitiada. Os alemães
destruíram, igualmente, os laboratórios de Carkov, embora
os soviéticos houvessem conseguido evacuar todo o seu
equipamento antes da chegada dos nazistas. Durante os
seis meses seguintes, quando Moscou esteve ameaçada, os
laboratórios ali existentes ficaram também paralisados e,
considerando a situação em conjunto, esses acontecimentos
fizeram com que a pesquisa nuclear soviética ficasse bem
atrás da do Ocidente.

Não se descobriu até hoje quem teve a idéia de não tornar


disponível para os russos os progressos realizados pelos
cientistas anglo-norte-americanos. A própria Rússia não
demorou a descobrir que estava sendo posta de lado na
corrida nuclear e, daquele momento em diante, ao invés de
perder tempo com tentativas de persuasão, tomara logo
providências para obter as informações, que lhe eram
negadas, através da espionagem. Desse modo, um
departamento especial foi organizado — conhecido como
Divisão Atômica — para organizar a coleta dos segredos
atômicos.

A técnica adotada pelos russos responde, melhor do que


qualquer argumento, à pergunta sobre se o método da
espionagem teria sido usado, caso eles não tivessem a
certeza de que a sua infiltração nos círculos científicos da
Grã-Bretanha e dos Estados Unidos havia tornado essa
tarefa uma das mais fáceis de ser executada. De fato,
nenhuma rede especial foi estabelecida para realizar essa
tarefa. Mobilizaram-se as já existentes, tanto no Canadá
como nos Estados Unidos. A única coisa que seria
necessário fazer era intensificar as atividades dos anéis
canadenses e, com esse objetivo, foram eles postos em
conexão com as redes que atuavam em território norte-
americano. O Major Sokolov, responsável pela organização
canadense, era, por sua vez, dirigido por Pavel Mikhailov,
que operava do consulado russo em Nova York. Ele havia
feito mais do que qualquer outro, no período inicial, para
estabelecer a rede canadense, pois estava equipado com
um transmissor e agia como veículo de comunicação entre
Ottawa e Moscou. Para Mikhailov fora fácil entrar em
contato com a embaixada russa em Ottawa, já que estava
envolvido também na organização do Programa Canadense
de Ajuda Mútua à Rússia.

O diretor da espionagem militar era Sergei Koudrivtzev, cuja


cobertura era o posto de primeiro-secretário da legação. Era
ele quem dera ordens a Sokolov, no período inicial do
estabelecimento da rede, até a chegada do Coronel Zabotin
como adido militar, em 1943. A chegada de Zabotin a
Ottawa coincidira tanto com a decisão russa de expandir
suas redes como com a ida dos cientistas britânicos para o
Canadá. Zabotin seria quem, no final, iria projetar-se como o
verdadeiro vilão no drama canadense.

Com a extensão dada ao papel das redes canadenses, os


velhos e fiéis Sam Carr e Fred Rose, por fim, se sentiram em
casa. O último era então membro do Parlamento e, em face
disso, encontrava-se em situação de ser muito mais útil aos
soviéticos do que o fora antes. Achava-se numa posição
privilegiada para obter informações oficiais sem despertar
suspeitas. Foi Rose quem chamou a atenção de Zabotin
para David Lunan, editor do Canadian Affairs — jornal
dedicado a assuntos militares — e que se iria mostrar de
incalculável valor, ao sugerir recrutas para a rede. Graças
aos esforços desse jornalista e à cooperação de Rose, uma
célula de cientistas fora organizada, num reduzido espaço
de tempo. Entre os integrantes dessa rede achava-se o
maior técnico em explosivos do continente americano, o
Professor Raymond Boyer, da Universidade McGill.

Foi Boyer quem forneceu a Moscou as seguintes


informações: uma nova fábrica estava sendo construída em
Grand Mère,  *  em Quebec, para a produção de urânio; os
engenheiros que nela iriam trabalhar seriam recrutados na
Universidade McGill; e experiências já realizadas haviam
provado que o urânio podia ser usado para “encher
bombas”.

Essas informações, chegadas ao Centro em princípios de


1943, fizeram com que Moscou passasse a solicitar, então,
de forma perfeitamente franca, ao governo dos Estados
Unidos, através da Comissão Soviética de Compras,
dezesseis toneladas de urânio. Alegavam os russos que
seus cientistas necessitavam desesperadamente desse
material, a fim de prosseguir em suas experiências. As
autoridades norte-americanas não atenderam à solicitação.
Explicaram que havia escassez de urânio no mercado e, por
isso, nenhuma quantidade poderia ser cedida. Essa resposta
não detivera os russos, que passaram a repetir a solicitação,
com pequenos intervalos, durante todo aquele ano. Em abril
de 1944, o Secretário de Estado para a Guerra, Stimson,
enviara a seguinte resposta ao chefe da Comissão de
Compras:

Prezado General Rudenko. Lamento informar-lhe que nos


encontramos impossibilitados de atender à solicitação,
contida em sua carta de 31 de março, de alguns
componentes do urânio.

Fizemos um cuidadoso levantamento da situação e


chegamos à conclusão de que nossos estoques desse
material não são suficientes para fazer frente a esse pedido.

Asseguro-lhe que terei em mente as necessidades da Rússia


e o informaremos de qualquer alteração verificada no
volume dos nossos estoques.

Os governos dos Estados Unidos e do Canadá, porém, não


dispunham de controle sobre os suprimentos de urânio, e
inquéritos levados a efeito nos mercados de ambos os
países revelaram que, naquela época, existiam estoques
disponíveis desse precioso material. Por motivo hoje difícil
de ser entendido — o de que a proibição das exportações de
urânio despertaria, sem necessidade, a curiosidade
soviética —, nenhum embargo foi imposto aos embarques
de urânio. Na realidade, por ocasião do encaminhamento da
primeira solicitação soviética, no volume de dezesseis
toneladas, outro pedido fora simultaneamente feito, pelos
russos, ao diretor do estabelecimento atômico americano,
no volume de quatro quintais de urânio. Essa encomenda
fora atendida, assim como acontecera com uma segunda.
No Canadá, a Comissão Soviética de Compras também
obtivera êxito, ao adquirir aproximadamente meia tonelada,
valendo-se do mesmo recurso. Esses fatos compõem um
retrato muito nítido da confusão que reinava nos círculos
oficiais do Ocidente — confusão esta que contribuiu
enormemente para facilitar a tarefa de acelerar as
pesquisas nucleares, a cargo da Divisão Atômica do Serviço
Secreto Soviético.

Entretanto o que tornou a tarefa dos russos ainda mais fácil


foi o fato de que, tanto nas fábricas norte-americanas como
nas canadenses, existiam cientistas, de alta categoria, que
eram comunistas ou tinham simpatia pelos comunistas, e se
mostravam dispostos a entregar qualquer segredo que os
russos solicitassem. Em primeiro lugar, deve ser citado o
inglês Dr. Allan Nunn May. Nunn May nascera em 1912 e,
quando atingira a maturidade, a depressão econômica da
década dos trinta refletia-se de maneira desastrosa na
Inglaterra, como, aliás, em todas as regiões do mundo. Seus
efeitos negativos se faziam sentir de diferentes maneiras.
Muitas pessoas perderam a esperança de qualquer
recuperação e deixaram-se vencer pelo cansaço. Outras
decidiram-se pela luta e se reabilitaram, reabilitando a
nação. Nunn May, porém, tornou-se um comunista secreto.

Tratava-se de um brilhante físico, doutor em Filosofia por


Cambridge, onde cursara o Trinity College. Em 1942,
tornara-se membro de uma equipe que trabalhava nos
Laboratórios Cavendish, em conexão com o que era
chamado Projeto Tubo de Liga (fissão nuclear). Em janeiro
de 1943, acompanhou um grupo de cientistas britânicos,
chefiados pelo Dr. Halban — antigo colega do renomado
cientista francês Joliot-Curie que, mais tarde, se revelou
comunista —, ao Canadá. Posteriormente, visitou os Estados
Unidos, onde colaborou com cientistas norte-americanos
que trabalhavam na fabricação da bomba.

Em segundo lugar, vinha o Dr. Klaus Fuchs, que fugira da


Alemanha por ser antinazista. Fora para a Inglaterra e, dada
a escassez de físicos ali, foi, em meados da década dos
trinta, recrutado para trabalhar numa das equipes atômicas
britânicas. Exercia sua atividade, primeiro em Glasgow e,
depois, em Birmingham, sob a direção de outro refugiado
alemão e antigo conhecido de Fuchs, Rudolf Peierls.

Naturalmente, Fuchs fora vetado pelas autoridades


britânicas, antes de ter permissão para trabalhar naqueles
projetos altamente secretos. Por alguma razão, a Segurança
não descobrira que ele, como jovem estudante, havia sido
membro de um grupo de comunistas clandestinos na
Alemanha, e nem que, logo após chegar à Inglaterra,
entrara em contato com Semion Kremer, secretário do adido
militar russo em Londres.

Esses dois homens se encontraram pela primeira vez em


maio ou junho de 1942 e, durante os dezoito meses
decorridos daquela data até o dia em que o cientista foi
enviado para trabalhar nos Estados Unidos, Fuchs entregava
a Kremer cópias dos seus relatórios mensais. Fuchs
desembarcou nos Estados Unidos, em dezembro de 1943,
com a luz verde que os ingleses lhe haviam concedido,
sendo designado, a princípio, para a Universidade de
Columbia, em Nova York, e, depois, para a fábrica atômica
em Los Alamos. Nos Estados Unidos, mantinha contato com
a espionagem soviética, através de um membro da rede
americana, Harry Gold, de Filadélfia, e, até que retornou à
Inglaterra, em 1946, passou regularmente informações
secretas para os russos.
Em terceiro lugar, vamos encontrar Bruno Pontecorvo,
italiano, discípulo do famoso físico Enrico Fermi e que, em
1927, transferiu-se para a França, a fim de trabalhar sob a
orientação de Joliot-Curie e de outro cientista comunista,
Longevin. Na França, aderiu a um grupo de refugiados
italianos da ala esquerda extremista. Quando era iminente a
invasão da França pelos alemães, Pontecorvo fugiu para os
Estados Unidos, onde desembarcou no verão de 1940. Em
1943, foi enviado ao Canadá para trabalhar em projetos
atômicos, permanecendo ali até 1949.

Embora as redes soviéticas, nos Estados Unidos e no


Canadá, fossem teoricamente duas entidades separadas,
trabalhavam juntas, entretanto, no campo da espionagem
atômica, o que era uma atitude de perfeito bom senso.
Enquanto Zabotin permanecera no controle da rede
canadense, trabalhara muito estreitamente com o agente
que o Centro enviara para Nova York, em princípios de
1944, para assumir a direção da espionagem atômica nos
Estados Unidos. Seu nome era Anatoli Yakovlev, que
recebeu, como cobertura, o posto de vice-cônsul em Nova
York. Ao desembarcar nos Estados Unidos, logo passara a
desempenhar as funções exercidas até então pelo homem
que havia demonstrado tremendo vigor e senso de
julgamento ao organizar o “aparato” americano — Semion
Semionov —, a cujos trabalhos a Divisão Atômica muito
devia.

A rede de Yakovlev nos Estados Unidos incluía quatro


destacados espiões comunistas norte-americanos — Harry
Gold, David Greenglass e o casal Julius e Ethel Rosenberg. O
quarteto era integrado, pois, de comunistas e de agentes de
grande experiência, mas deve-se provavelmente mais à
experiência de que dispunham do que às posições que
ocupavam e que os colocaram em boas condições para a
execução do seu trabalho, o fato de haverem sido
selecionados para cooperar com Yakovlev.

Harry Gold nascera em Berna, mas seus pais eram russos.


Sua família emigrara para a América, quando ele ainda era
criança. Nos Estados Unidos, o nome da família foi mudado
de Golodnotzky para Gold. Harry recebera boa educação
universitária e técnica nos Estados Unidos. Desenvolveu
tendências esquerdistas e, em 1935, abordado por uma
agência de espionagem soviética nos Estados Unidos,
concordara em cooperar. Durante a juventude, Gold
especializara-se em roubar segredos químicos industriais.
Por esse motivo, Yakovlev o escolhera para agir como
intermediário entre a rede e Fuchs.

David Greenglass, na mocidade, fora membro da Liga da


Juventude Comunista da América. Esse pormenor parece ter
escapado igualmente ao FBI, pois, quando os Estados
Unidos entraram na guerra, em dezembro de 1941, ele foi
convocado, recebeu treinamento técnico e, em julho de
1944, designaram-no para trabalhar no Projeto Distrito de
Manhattan, em Oak Ridge, no Tennessee. Sua irmã era Ethel
Rosenberg, sob cuja influência ele rapidamente assumiu o
encargo de divulgar os segredos do seu próprio trabalho.

Julius Rosenberg havia sido comunista — e um comunista


extremamente ardente — desde os primeiros dias do
comunismo nos Estados Unidos. Fora, igualmente, um dos
pioneiros da espionagem naquele país e já obtivera grandes
êxitos em colher segredos sobre o radar antes que
recebesse ordens para mergulhar na clandestinidade — o
que ocorreu após a designação do seu cunhado para Oak
Ridge —, a fim de se concentrar em espionagem atômica.
Foi quem converteu Ethel Greenglass ao comunismo, e
então se casaram. Ethel haveria de se mostrar inestimável
em persuadir o irmão mais moço a fornecer os segredos
vitais do seu trabalho aos russos.

Adidos ao grupo Rosenberg achavam-se também Abraham


Borthman, Miriam Moskowitz e Morton Sobell. Esse grupo,
porém, era apenas um dos três da rede norte-americana. No
Laboratório de Radiação da Universidade da Califórnia, Vasili
Zubilin, da embaixada soviética em Washington, organizara
um grupo do Partido Comunista e de comunistas secretos,
que colocara sob a direção de dois funcionários do
consulado em São Francisco: Grigori Kheifets e Peter Ivanov.
Entre seus agentes destacados, achava-se Steve Nelson,
chefe do grupo que atuava no Laboratório de Radiação, do
qual a principal fonte de informação era Joseph Weinberg,
físico de pesquisa. Ele tentou, mesmo, recrutar os serviços
do Dr. J. Robert Oppenheimer, que deveria ser o futuro
diretor de Los Alamos, a mais importante das fábricas
atômicas norte-americanas. Oppenheimer recusou-se a
cooperar e levou o fato ao conhecimento do diretor do
Projeto Distrito de Manhattan, resultando daí que o FBI
começou a vigiar Nelson, embora, por considerável tempo,
nenhuma providência fosse tomada.

O terceiro grupo achava-se concentrado em Chicago, onde


as pesquisas atômicas estavam igualmente em progresso.
Na ausência de consulado naquela cidade, os russos
puseram um agente profissional como líder do grupo —
Arthur Adams. Adams era espião de longa experiência, mas,
por volta de 1942, aproximando-se dos sessenta anos,
sofria intensamente de reumatismo e, nessas condições,
mostrava-se de certa forma prejudicado. Sua fonte principal
era uma comunista norte-americana, Clarence Hiskey,
química que trabalhava nos Laboratórios Metalúrgicos
empenhados na produção, em larga escala, de plutônio para
bombas atômicas.
Em 1944, as atividades de espionagem de Hiskey
chamaram a atenção do FBI. Parece incrível, mas tudo o que
aconteceu a essa química foi ser ela convocada para o
serviço ativo no Exército e enviada para o Alasca. Antes de
partir, conseguira convencer John Chapin, outro químico que
trabalhava no mesmo laboratório de Chicago, a assumir
suas funções de espião para os russos. Chapin, por sua vez,
igualmente comprometido, fez com que as atividades de
Adam fossem reveladas. Naqueles dias, porém, a
administração dos Estados Unidos não processava
conhecidos espiões soviéticos, e Adam teve permissão para
deixar o país.

No Canadá, Zabotin, com a assistência do Major Rogov,


membro do seu Estado-Maior, tinha organizado um pequeno
mas compacto grupo integrado por quatro funcionários do
governo canadense. O chefe do grupo era Durnford Smith,
engenheiro pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas;
Ned Mazerall, membro da mesma instituição; Isador
Halperin, técnico em artilharia, que tinha acesso às
informações secretas enviadas pelo Estabelecimento do
Desenvolvimento e Pesquisa do Exército do Canadá; e David
Lunan, já mencionado, editor do Canadian Affairs. Lunan
colhia as informações fornecidas pelos outros três e as
entregava a Rogov, que, por sua vez, as passava a Zabotin.

Entre os contatos desses quatro achava-se Raymond Boyer,


também mencionado anteriormente, que era considerado,
por seus superiores, o astro do grupo. Existia ainda James
Benning, que trabalhava no Departamento de Munições,
com a tarefa de preparar as previsões trimestrais da
produção de guerra, e o cunhado de Benning, Harold
Gerson, empregado numa empresa da Coroa Britânica,
especializada em fabricar produtos químicos e explosivos.
Havia mais Eric Adams, que ocupava um posto confidencial
no Banco do Canadá, investigando planos industriais para
fins de financiamento; Matthias Nightingale, que poderia
fornecer informações sobre todas as bases aéreas
canadenses; David Shugar, técnico em radar; e, em escalão
mais baixo, Agatha Capman, funcionária do Banco do
Canadá, que agia como intermediária.

Com exceção de Agatha Capman, todos os mencionados,


embora não sendo membros da rede, eram, como Nunn May
e Fuchs, fontes de informação extremamente valiosas, das
quais procediam todos os segredos de relevância.

Constitui outro mistério o fato de que as atividades de


qualquer dessas pessoas, quer no Canadá, quer nos Estados
Unidos, não tivessem sido conhecidas das agências de
contraespionagem de ambos os países, e talvez nunca o
seriam, a não ser por um estranho acidente, ao qual
faremos referência. Todos eles trabalhavam com incansável
dedicação em suas tarefas e, mais ou menos na época em
que a bomba atômica fora detonada contra Hiroshima,
haviam passado para Moscou todas as informações
importantes, tanto sobre a composição da bomba como sua
potência, com exceção talvez de apenas uma ou duas
pequenas características.

Somente no fim da guerra é que a Rússia pôde tirar


vantagem dessas informações no campo atômico. Não
obstante isso, segundo se calcula, os soviéticos ganharam
pelos menos dez anos de esforço e de pesquisa, em face
dessa bem sucedida safra da sua espionagem. Esse período
poderia ainda ser maior, se não tivesse havido a deserção
de Igor Gouzenko.

No dia 7 de setembro de 1945, as autoridades de Ottawa


tomaram conhecimento da existência de Igor Gouzenko.
Tratava-se de um simples encarregado de cifragem da
correspondência da Embaixada soviética, e a polícia
canadense só soube de sua permanência no país porque ele
solicitara, para si, para a esposa e para o filho pequeno, a
proteção do governo do Canadá. Quando lhe perguntaram
por que necessitava daquela proteção, respondeu que
estava de posse de provas documentais que evidenciavam,
além de qualquer dúvida, a existência de uma rede de
espionagem atômica operando no país. Quando as
autoridades se certificaram de que ele roubara essas provas
dos arquivos secretos da Embaixada, a proteção solicitada
lhe foi concedida.

Gouzenko permanecera no Canadá por dois anos e, segundo


tudo faz crer, convertera-se, durante esse período, em
admirador dos ideais da democracia ocidental. Essa
mudança em seu modo de pensar provocou nele uma
correspondente alteração de sentimentos. Daí a razão por
que decidiu abandonar tanto os russos quanto seus
trabalhos secretos.

Ao deixar a Embaixada soviética, na noite de 5 de setembro


de 1945, fê-lo pela última vez. Já havia planejado como agir.
Levou consigo uma valise, repleta de fichas secretas, todas
relativas à rede de espionagem atômica que, por mais de
três anos, operava no país. Da Embaixada soviética seguiu
diretamente para a redação de um dos principais jornais de
Ottawa, onde revelou seu drama e ofereceu as provas que o
confirmavam. Os jornalistas não acreditaram em sua
denúncia e lhe pediram que se retirasse.

Seguiu então para o seu apartamento e, não ignorando o


que lhe poderia acontecer, logo que os representantes
soviéticos notassem sua ausência, juntamente com a falta
dos arquivos — o que seria uma questão de horas —,
passou o dia seguinte percorrendo diferentes
departamentos do governo canadense e, nessa via crucis,
só foi recebido com aquela espécie de riso complacente
habitualmente concedida aos que alegam ser Napoleão.
Tarde, nessa noite, voltou outra vez ao jornal que visitara na
véspera e teve idêntica má acolhida. Sem saber o que fazer,
fechou-se com a família no apartamento. Mal tinha tomado
essa providência, ouviu baterem na porta. Fez sinal à
esposa para que se conservasse sem fazer qualquer ruído,
de modo a dar a impressão de que o apartamento estivesse
vazio. Desgraçadamente, seu filho, de quatro anos, correu,
com algazarra, através do assoalho de tacos. O homem que
se encontrava à porta gritou então chamando-o, e
Gouzenko reconheceu a voz. Era um dos motoristas da
Embaixada. O chofer retirou-se, quando verificou que
ninguém lhe respondia.

Depois que o motorista já se havia afastado, Gouzenko


chegou ao balcão da janela e entrou em contato com seu
vizinho de apartamento, um sargento da Força Aérea
Canadense, chamado Main. Disse-lhe que estava temeroso
por sua vida. Descreveu o que tinha havido e lhe pediu
abrigo para a família, durante a noite. O sargento acreditou
no que ouviu e abrigou os Gouzenko. Mais tarde, foram eles
transferidos para o apartamento de outro vizinho, e Main
saiu em busca da polícia. Pouco depois, chegaram dois
policiais e, após ligeiro interrogatório, concordaram em
manter o bloco de apartamentos sob vigilância.

Por volta das onze e meia dessa mesma noite, Main ouviu
vozes do lado de fora, no corredor. Pensando que era a
polícia que voltava, chegou à porta e viu quatro homens que
se esforçavam por arrombar a entrada do apartamento de
Gouzenko. Deu o sinal de pedido de socorro, que combinara
com a polícia, e, quando esta chegou, encontrou os quatro
homens dando uma busca no apartamento. Interpelados,
responderam que eram funcionários da Embaixada soviética
e tinham permissão de um colega, que se encontrava
ausente, em Toronto, para entrar em seu apartamento, a
fim de apanhar alguns papéis importantes. Os policiais
mandaram chamar o inspetor.

O inspetor, ao chegar, pediu aos quatro homens que se


identificassem, o que eles fizeram sem protesto. Pedindo-
lhes para se conservarem onde estavam, retirou-se, a fim
de fazer algumas investigações. Enquanto estava ausente,
os soviéticos saíram, e a polícia, que vigiava o apartamento,
nenhuma tentativa fez para detê-los.

No dia 8 de setembro, o Departamento para os Negócios


Externos do Canadá recebia uma nota da Embaixada
soviética, explicando a visita de funcionários da
representação ao apartamento de Gouzenko, declarando ser
o mesmo um ladrão comum que havia roubado certa
quantia em dinheiro da Embaixada e queixando-se do
comportamento da polícia, que se recusara a reconhecer as
imunidades diplomáticas daqueles funcionários. A
Embaixada solicitava às autoridades canadenses que
tomassem todas as providências para prender Gouzenko, a
fim de que ele pudesse ser deportado para a Rússia.

Na manhã do dia anterior, entretanto, Gouzenko havia


revelado toda a sua história à Polícia Montada canadense,
entregando-lhe a documentação que tinha em seu poder.
Desta vez, a polícia acreditou no que ele dissera, e as
autoridades, profundamente abaladas, viram-se na posse de
detalhes do que tem sido descrito como “a maior e a mais
perigosa conspiração de espionagem já conhecida no
Canadá, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra”.

As revelações de Gouzenko puseram à mostra, pela


primeira vez, o método e a técnica da espionagem
soviética. Os detalhes foram tornados públicos, através do
Relatório da Comissão Real, que o governo canadense
subsequentemente instituíra para apurar a questão. Outro
resultado, igualmente importante, da atitude de Gouzenko
foi o fato de que, praticamente, toda a rede de espionagem
atômica em ação no Canadá ficara comprometida. A batida
geral, para prender os implicados, teve início no dia 15 de
fevereiro de 1946, dia este em que o Comandante Burt,
chefe da Divisão Especial da Scotland Yard, fez uma visita a
Nunn May, no Edifício Shell-Mex, em Londres.

Após a detonação da bomba atômica sobre o Japão, os


ingleses e os canadenses começaram a desempenhar
papéis menos importantes nos projetos atômicos conjuntos,
e Nunn May fora recambiado para Londres. Zabotin soubera
da sua iminente partida e comunicara o fato ao Centro, o
qual, não desejando perder de vista um homem que havia
sido de tão grande utilidade para a organização, tomou
providências para que ele fosse procurado, por um dos seus
agentes, em Londres.

Na sua primeira entrevista com Nunn May, o Comandante


Burt simplesmente lhe perguntara se, em sua opinião,
verificara-se qualquer transpiração de informações
atômicas, enquanto estivera no Canadá. Nunn May
respondeu que nunca soubera de tal coisa e negou que
alguma vez tivesse sido abordado por agentes soviéticos.
Burt, porém, estava bem informado sobre o caso. Entre os
documentos entregues por Gouzenko á polícia canadense,
encontravam-se os seguintes telegramas, de Zabotin para o
Centro:

31/7/45 Para o Diretor

Já estabelecemos as condições para um encontro com Alek


(nome falso de Nunn May) em Londres. Alek irá trabalhar no
Kings College, no Strand. Será possível encontrá-lo ali,
através do catálogo de telefones.

Encontro: 7/17/27 na rua em frente ao Museu Britânico.


Tempo: onze horas da noite. Sinais de identificação: um
jornal sob o braço esquerdo. Senha: cumprimentos a Mikel
(Maikl). Ele não pode ficar no Canadá. Em princípio de
setembro, deve seguir, de avião, para Londres. Antes da sua
partida, irá à Fábrica de Urânio, no distrito de Petawerwa,
onde ficará cerca de duas semanas. Ele prometeu, se
possível, encontrar-se conosco antes da partida. Disse que
deve vir, no próximo ano, para o Canadá. Entregamos a ele
500 dólares.

Para Grant (_Zabotin)

Referência n.° 244

As providências tomadas para o encontro não são


satisfatórias. Envio-lhe as que devem ser tomadas.

1 — Local:

Em frente ao Museu Britânico, em Londres, em Great Russell


Street, no lado oposto da rua, perto da Museum Street, do
lado de Tottenham Court Road, repito Tottenham Court
Road. Alek virá de Tottenham Court Road e o contato do
lado oposto — Southampton Row.

2 — Tempo:

Como indicado em seu telegrama, seria mais conveniente


realizar o encontro às 20 horas, se for fácil para Alek, pois,
às 23 horas é muito escuro. Em relação ao tempo, entre em
entendimento com Alek e me comunique a decisão. No caso
de que o encontro não deva realizar-se em outubro, a hora e
o dia serão repetidos nos meses seguintes.
3 — Sinais de identificação:

Alek levará sob o braço esquerdo um exemplar de The


Times e o contato terá, em sua mão esquerda, a revista
Picture Post.

4 — Senha:

O contato dirá: "Qual o caminho mais curto para o Strand?”


Alek responderá: "Bem, venha comigo. Também vou para
lá.” Ao iniciar a conversa, Alek dirá: "Cumprimentos de
Mikel.”

Informar sobre a transmissão das condições a Alek.

18/8 Diretor 22/8/45 Grant

Burt não permaneceu muito tempo com Nunn May, mas o


conservou sob vigilância nos cinco dias seguintes, durante
os quais o vigiado nada fez que o pudesse comprometer.
Entrementes, mais informações chegaram às mãos do
comandante, vindas do Canadá, e, nessas condições, fez
uma segunda visita ao Edifício Shell-Mex. De maneira
perfeitamente brusca, Burt declarou a Nunn May que tinha
motivos para acreditar que ele devia encontrar-se com um
contato russo, perto do Museu Britânico, mas que não
comparecera à entrevista. Em face dessa declaração, e
antes mesmo que qualquer gesto pudesse ser feito, no
sentido de prendê-lo, Nunn May disse que desejava
confessar tudo.

Seu julgamento se realizou no Tribunal Criminal Central, em


Old Bailey, Londres, no mês de março de 1946. Confessou-
se culpado das acusações, que lhe haviam sido imputadas,
de “transmitir informações a pessoas não autorizadas a
recebe-las”, e foi condenado a dez anos de prisão.

Embora a maioria dos agentes que operavam no Canadá


tivesse sido recolhida, nada, porém, nas revelações de
Gouzenko nem nas confissões feitas pelos espiões detidos,
dava a entender que o Dr. Klaus Fuchs tivesse qualquer
conexão com a rede. Nessas condições, ele poderia nunca
ter sido descoberto, não fosse um terrível disparate
cometido pelo delegado soviético, numa reunião da
Comissão de Energia Atômica das Nações Unidas. Esse
delegado revelara, em discurso, que a Rússia tinha acesso
aos segredos que os Estados Unidos acreditavam estarem
absolutamente seguros. A caçada teve logo início.

Estava claro, através da admissão do técnico soviético, que


as informações não haviam sido fornecidas por Nunn May,
e, assim sendo, era igualmente claro que as revelações de
Gouzenko não tinham abrangido todos os agentes soviéticos
que trabalhavam sob as ordens de Zabotin. Por um processo
de eliminação, o FBI foi estreitando sua busca a duas ou três
possibilidades, uma das quais era Fuchs.

Fuchs retornara à Inglaterra em meados de 1946 e passara


a trabalhar no Instituto de Energia Atômica, em Harwell, sob
a direção do Dr. Cockcroft. Reabrira seus contatos com a
rede soviética na Grã-Bretanha e prosseguira entregando,
aos agentes russos, informações de importância vital. No
fim de 1947, entretanto, começou a alimentar dúvidas sobre
a política e as intenções da Rússia e, breve, deixava de
comparecer aos encontros com os contatos soviéticos.
Nessa ocasião, porém, as rodas do destino haviam
começado a girar em seu desfavor.

Não foi senão em 1949, entretanto, que o FBI conseguiu


colocar os ingleses no encalço do Dr. Fuchs. Como Nunn
May, ele era vigiado, mas nada que fazia podia
comprometê-lo. Quando, porém, as autoridades da Divisão
Especial efetivamente o interrogaram, fez uma confissão
completa. Foi condenado a quatorze anos de prisão.

O terceiro desse perigosíssimo trio de cientistas, Bruno


Pontecorvo, continuava, entretanto, em liberdade e
operando. Durante o julgamento de Fuchs, trabalhava ainda
nos Estados Unidos, mas logo depois retornara à Inglaterra.
Não tinha voltado havia muito tempo, quando um seu amigo
— que fora comunista — dos Estados Unidos denunciou às
autoridades todas as suas atividades e conexões em favor
da Rússia. O FBI não tomou qualquer providência, a não ser
fazer uma advertência aos ingleses, os quais, por sua vez,
sem qualquer razão explicável, permaneceram inativos.

Dois anos mais tarde, enquanto ainda trabalhando em


tarefas secretas em Harwell e passando informações
regularmente para a rede soviética na Grã-Bretanha,
Pontecorvo solicitou licença para levar a família para umas
férias no continente. Tendo viajado de automóvel, através
da França para Roma, ali tomou um avião, de uma empresa
aérea civil, seguindo para Helsinque. Na capital finlandesa,
autoridades soviéticas já o aguardavam, e foi levado para a
Rússia.

Cabe, sem dúvida, a esses três cientistas, em grande parte,


a responsabilidade pelo progresso realizado pelos soviéticos
em Física Nuclear. Muito da atual tensão internacional
deriva da espionagem levada a efeito por Nunn May, Fuchs
e Pontecorvo.

A despeito do fato de que existia estreita colaboração entre


as redes que operavam no Canadá e nos Estados Unidos,
Gouzenko, ao fazer suas revelações, nada dissera sobre a
existência da organização que funcionava em território
norte-americano. Deve-se esse fato quase inteiramente à
insistência de Yakovlev — insistência a qualquer custo —
sobre a necessidade de uma constante observância das
normas de segurança. Não pode existir, na realidade,
melhor comprovação da minha afirmativa de que “a
segurança é o material de vida do espião” — em razão da
qual fui com frequência importunado por antigos colegas
profissionais — do que o que aconteceu no caso da rede de
Yakovlev. Não deixa de ser irônico que, ao se verificar, por
parte dele, a primeira quebra na observância dessas normas
de segurança, toda a sua rede se desmantelou, como um
castelo de cartas.

Harry Gold já havia atraído a atenção do FBI, em 1947, e


seus policiais tinham mesmo realizado com ele uma
entrevista, em sua residência de Filadélfia. Gold, porém,
conseguira convencê-los de que tudo não passava de
equívoco, e os agentes do FBI acreditaram em suas
palavras. Não foi senão depois de Fuchs ter sido preso e
falado que Gold surgiu outra vez em cena, o que não teria
sido possível, sem o fato de Yakovlev, cerca de quatro anos
antes, haver negligenciado importantes normas de
segurança.

Alguns dias antes da explosão da primeira bomba atômica


em 1945, David Greenglass, na fábrica de Los Alamos,
preparara um relatório altamente importante, que Yakovlev
desejava desesperadamente enviar para Moscou. Um
correio, Ann Sidorovich, fora destacado por ele para ir
receber esse documento, mas, por qualquer razão, essa
mulher não pudera realizar a tarefa. Ao invés de esperar até
que ela pudesse fazê-lo, e, aparentemente, não dispondo no
momento de outro intermediário, Yakovlev dera instruções a
Gold, que era o emissário para Fuchs, de se incumbir dessa
missão.
Quando Fuchs foi preso, mencionou Gold como sendo o seu
intermediário. Em consequência disso, ele foi detido e, por
causa dessa sua única ida a Los Alamos, fez referência a
Greenglass. Este, pressionado pela polícia, também
confessou e mencionou Julius e Ethel Rosenberg. O FBI,
então, entrou em atividade. Com Rosenberg, seus policiais
detiveram também a maioria dos membros da rede. Quando
os julgamentos terminaram, os Rosenbergs foram
condenados à morte, sendo executados em 1953; Gold e
Sobell tiveram uma sentença de trinta anos de prisão;
Greenglass, de quinze; Abraham Borthman, de sete; e
Miriam Moskowitz, de dois anos de encarceramento.

Em relação aos russos envolvidos no caso, Zabotin


permaneceu no Canadá por algum tempo, após a defecção
de Gouzenko. Ignorava quantos documentos Gouzenko
retirara dos arquivos, já que grande número de fichas
estava assinalado no fichário como oficialmente queimadas.
As autoridades canadenses, por seu lado, sentiram-se em
dificuldade para agir com presteza. É que, em todos os
documentos apresentados por Gouzenko, os agentes
figuravam apenas com seus nomes falsos. Nessas
condições, muitos meses foram necessários para a
respectiva identificação. Somente quando as prisões
tiveram início e que o Centro fechou o quartel-general de
Zabotin, integrado por quinze agentes, e os chamou de
volta à Rússia. Zabotin, ao chegar à pátria, foi julgado e
condenado a quatro anos.

Nos Estados Unidos, logo que Gold fora detido, Yakovlev


fugira. Mesmo ausente, figurou no processo, ao lado de
Gold, como aconteceu também ao seu antecessor, Semion
Seminov. Tratava-se, entretanto, de mera formalidade.

Embora seja uma opinião pessoal minha, simpática ou


contrária aos russos, o que digo é que ninguém,
honestamente, pode deixar de reconhecer que as
realizações da espionagem soviética, no campo atômico,
revelaram-se dignas de admiração.

*  Não se pode dizer se se trata de um engano intencional,


por parte de Boyer. A fábrica estava localizada em Chalk
River, e não em Grand Mère. 
Quinta Parte
AS BASES DO
MACARTISMO
1. Espiões em Altas Posições

O jovem senador por Wisconsin Joseph McCarthy era,


indubitavelmente, um homem sórdido. Não deixava de ser
igualmente verdadeiro que se tratava de um quase louco,
despido de qualquer escrúpulo. Tinha a obsessão de que um
espião russo se ocultava atrás de cada mesa e de cada
armário de todos os departamentos da administração dos
Estados Unidos. E essa preocupação se fazia evidente para
quem quer que o tenha visto ou ouvido, durante o tempo
em que dirigiu sua escandalosa investigação contra os que,
em sua opinião, tramavam contra a segurança norte-
americana.

Enquanto não foi desmascarado, nenhum homem ou


mulher, colocados em elevadas ou subalternas posições,
estava a salvo das suas perigosas acusações. E ele as fazia,
de forma selvagem, sem qualquer prova, ou simplesmente
apoiadas em falsos testemunhos. Quem o examinasse de
uma posição neutra, teria a impressão de que, enquanto ele
vociferava, todas as pessoas — do Presidente ao mais
subalterno dos funcionários públicos dos Estados Unidos —
tremiam. E o mundo indagava por que o grande povo norte-
americano o tolerava e aos seus esbirros.

É possível que a resposta a essa pergunta, pelo menos em


parte, possa ser encontrada na realidade. Com efeito, por
estranho que pareça, McCarthy baseou sua campanha em
verdades provadas. Como já vimos atrás, a espionagem
soviética nos Estados Unidos, por volta do término da
década dos trinta, havia atingido não só um extraordinário
volume como um amplo campo de atividade. No terreno da
espionagem industrial, da espionagem militar e, por fim, da
espionagem atômica, os êxitos soviéticos inegavelmente
foram fabulosos. Deve-se ressaltar, entretanto, que a maior
parte desse sucesso foi devida a certas atitudes do governo,
que podem ser definidas através de apenas um exemplo.
Quando os russos solicitaram, em 1942, que lhes fossem
cedidas algumas toneladas de urânio, tendo sua solicitação
rejeitada pelo Departamento de Guerra, a Comissão
Soviética de Compras recorrera ao mercado industrial.
Fizera encomendas de pequenas quantidades e, quando
requerera uma licença de exportação, o diretor do Projeto
Distrito de Manhattan — que era violentamente anti-russo
— foi solicitado a dar seu parecer. Esse alto funcionário
concedera a licença e — como explicou perante o Comitê do
Congresso que investigava as atividades antiamericanas,
relacionadas com o embarque de material atômico para a
União Soviética, durante a Segunda Guerra Mundial —
“seria melhor apontar com o dedo aquele material do que
negar a licença”. Esse diretor acreditava ingenuamente que,
ao conceder a licença, a União Soviética não seria levada a
concluir, erroneamente, que o urânio era de grande
importância para os Estados Unidos. Foi com base em
idêntica espécie de lógica, infantil em excesso para ser
crível, que as autoridades dos Estados Unidos acabaram por
ser vítimas do escandaloso roubo de seus segredos
industriais e da sua produção bélica, o que tanto
comprometeu a segurança do mundo livre.

Mas vejamos outro exemplo. A escritora norte-americana


Elizabeth Bentley, que era uma agente comunista
arrependida, examinando o fato de o Major-General
Donovan, chefe do OSS, haver sugerido que um oficial de
ligação russo fosse mandado para Washington, a fim de
estabelecer estreita cooperação entre a organização que
dirigia e a sua equivalente russa, e a que nem mesmo o FBI
fizera qualquer objeção, assinalara em seu livro Out of
Bondage: “A opinião em Washington parece ser a de que, já
que o NKVD vinha rondando os Estados Unidos por anos,
seria muito mais simples, para nós, que ele já viesse
rotulado.”

Trata-se de uma reação simplesmente extraordinária. Em


face do que aconteceu depois, só os próprios norte-
americanos devem, pois, ser responsabilizados. E essa
circunstância não lhes dá o direito de fazer qualquer crítica
aos ingleses, quando um Blake ou um Vassall surge em
cena, muito embora eles não houvessem hesitado em fazê-
las.

O que aconteceu nos campos militar e industrial ocorreu


também no terreno político. Neste campo, porém, o êxito
pode ser visto com uma clareza incomum em qualquer
esforço de espionagem. esse êxito foi devido, em pequena
parte, à circunstância de que a rede empenhada na
espionagem política era muitas vezes maior do que as redes
que agiam nos outros setores. Deve ser ressaltado, por
outro lado, que a extensão da penetração soviética, no
terreno político, apresentava-se muito mais difusa, o que,
por seu turno, foi tornado possível em face da larga esfera
de atribuições da administração do país. De qualquer forma,
a situação, como se tornou conhecida, apresentava uma
gravidade de sustar a respiração.

James Bumham, técnico norte-americano em espionagem


soviética, em seu livro The Web of Subversion, cita os
seguintes setores da administração norte-americana, nos
quais, durante a guerra, se verificara infiltração:
O pessoal administrativo da Casa Branca; os Departamentos
de Estado: Tesouro, Exército, Marinha, Defesa (sob a atual
organização), Justiça, Agricultura, Trabalho, Comércio; seis
comitês do Congresso; o Escritório do Projeto Distrito de
Manhattan (energia atômica); Escritório de Serviços
Estratégicos; Junta Nacional de Relações de Trabalho;
Projeto de Pesquisas Nacionais; Escritório de Mobilização
para a Defesa; Junta da Produção para a Guerra;
Administração Econômica Estrangeira; Junta de Controle
Norte-Africano; Escritório de Patentes; Bureau do Censo;
Comissão do Serviço Público; Coordenador dos Negócios
Interamericanos; Administração Federal do Auxílio de
Emergência; Instituto Federal de Habitação; Administração
de Segurança Federal; Imprensa Nacional; Biblioteca do
Congresso; Junta do Trabalho Marítimo; Arquivo Nacional;
Administração Nacional da Juventude; OMGUS (Governo
Militar da Alemanha no Pós-Guerra); SCAP (Governo Militar
no Japão do Pós-Guerra); Escritório de Coordenação dos
Preços; Junta de Aposentadorias das Estradas de Ferro;
Corporação de Reconstrução Financeira; Comissão de
Câmbio e de Seguros; Junta de Seguridade Social; Comissão
de Mão-de-Obra para a Guerra; Administração do Acervo de
Guerra dos Estados Unidos; Administração da Navegação de
Guerra; Administração dos Veteranos; Comissão de Tarifas;
Serviço de Informações dos Estados Unidos. Em adição,
essa teia foi estendida sobre importantes organizações
internacionais, às quais o governo dos Estados Unidos
pertence ou já pertenceu: Agência de Reabilitação e Auxílio
das Nações Unidas (UNRRA); as próprias Nações Unidas e o
Fundo Monetário Internacional.

O Sr. Burnham organizou essa lista de acordo com vários


relatórios das comissões de inquérito que funcionaram após
a guerra, quando a Administração e o Congresso tornaram-
se cientes de que uma grave infiltração soviética se
realizara nas agências governamentais.

Outro grande técnico em negócios soviéticos, David Dallin,


em Soviet Espionage, embora revelando mais cautela do
que o Sr. Bumham, cita os nomes de conhecidos agentes
soviéticos que integravam alguns dos departamentos
mencionados pelo Sr. Bumham. À página 441 do seu livro,
ele declara:

Durante os anos de guerra, a espionagem soviética


dispunha de homens seus nas seguintes agências: Escritório
de Serviços Estratégicos (Duncan Lee, Leonard Mins, Helen
Tenney, J. Julius Joseph); Serviço de Contraespionagem do
Departamento da Guerra (Donald Niven Wheeler);
Departamento da Guerra e, indiretamente, o FBI (William
Ludwig Ullmann); Força Aérea (Abraham George Silverman);
Departamento de Estado, com acesso à sala de
transmissões do OSS (Alger Hiss, Maurice Halperin, Robert T.
Miller, Donald Hiss); Coordenador dos Negócios
Interamericanos (Joseph Gregg, Bernard Redmont, William
Z. Park); Departamento de Justiça (Norman Burster');
Departamento do Tesouro (Harry Dexter White, Nathan
Gregory Silvermaster, Harold Glasser, Salomon Adler,
William Taylor, Sonia Gold); Administração Econômica
Estrangeira (Frank Coe, Allan Rosenberg, Lauchlin Currie,
Philip Keepey, Michael Greenberg, Bela Gold); Junta de
Produção de Guerra (Irving Kaplan, Victor Perlo, John Abt,
Edward Fitzgerald, Harry Magdoff); Departamento de
Agricultura (Harold Ware, John Abt, Nathan Witt, Lee
Pressman, Henry H. Collins, Bela Gold); Escritório de
Coordenação de Preços (Charles Kramer, Victor Perlo);
UNNRA (Salomon Leshinsky); Departamento de Comércio
(William Remington, Nathan Witt).
Esta lista, entretanto, não está completa. Foi somente por
acaso que três das células de Washington tornaram-se
conhecidas depois da guerra. Esse acaso foi determinado
pela deserção de pessoas que haviam servido como
elemento de ligação, entre as células e a Inteligência
soviética. Não há dúvida de que, em adição ao nomes já
citados, existiram outros, provavelmente mais numerosos e
não menos importantes. . .

A extensão da infiltração soviética, revelada mesmo por


essa pequena lista, torna evidente que existia muito pouca
coisa, ocorrendo em Washington, que não fosse remetida
para Moscou. A maioria das informações poderia ter sido
realmente de valor, mas a maioria delas era Inteligência de
pouca valia. Tomemos, por exemplo, Harry Dexter White,
que, como promotor do Plano Morgenthau — destinado a
restringir, depois da guerra, a indústria da Alemanha e a
estimular a sua agricultura, a fim de prevenir a ressurreição
do militarismo —, encontrava-se nos conselhos secretos dos
responsáveis pela planificação do pós-guerra e podia
informar os soviéticos de todas as intenções dos aliados
com muita antecedência; ou Maurice Halperin, que fornecia
relatórios oficiais emanados do Departamento de Estado e
informações secretas do embaixador norte-americano em
Moscou, comentando os negócios internos da Rússia, dos
quais uma parte das atividades da Inteligência americana,
agindo no interior da Rússia, podia ser avaliada; ou, então, o
Major William Ullman, que obteve, através da Inteligência
do Exército dos Estados Unidos, planos de guerra e
relatórios do FBI. Esses três somente podiam — e o fizeram
— fornecer informações da mais alta importância.

Dispomos de pouco espaço, neste livro, para fazer um


levantamento detalhado das ramificações da espionagem
soviética no terreno político nos Estados Unidos, àquela
época, mas uma impressão das suas consequências poderá
ser obtida da conclusão do caso Whittaker Chambers. Já
revelamos, em página anterior, o início da carreira de
Chambers e, quando o deixamos, era ele um comunista
desiludido e um discreto desertor, tentando desviar a
atenção da Divisão do Terror e do Desaparecimento, através
do recurso de mergulhar na clandestinidade. Depois de dez
anos de existência clandestina, descobriu, em 1948, que a
atitude oficial norte-americana em relação à espionagem
soviética havia mudado e julgou que poderia esperar
proteção, se revelasse o que sabia.

Deve ser recordado que, quando Chambers decidiu reduzir


sua associação com a espionagem soviética, em 1938, fora
a Washington, numa tentativa para alertar as autoridades
sobre a infiltração que haviam sofrido alguns
departamentos do serviço público, e que, dois anos mais
tarde, entrara em contato com o FBI. Em ambas as
ocasiões, reteve partes de sua história, resultando dessa
atitude que seus interlocutores não se mostraram
impressionados e nenhuma providência tomaram.
Finalmente, ele se mostrava disposto a contar tudo.

Pouco antes de se tornar inativo, Chambers tinha sido o


“contato entre a poderosa organização da espionagem
soviética, em Washington, e o meu superior, em Nova York”.
Embora Chambers não o conhecesse então por esse nome,
seu superior era o “Coronel Boris Bykov, oficial russo da
Quarta Seção (Inteligência Militar) do Exército Vermelho”.
Entre os seus contatos norte-americanos, encontravam-se
Harry Dexter White, então assistente do Secretário do
Tesouro; Abraham Silverman, da Junta de Aposentadorias
das Estradas de Ferro; o Dr. Gregory Silvermaster, do
Departamento de Agricultura, e Alger Hiss, do
Departamento de Estado. Por volta de 1948, Hiss tinha
deixado o Departamento de Estado, e Harry Dexter White
fora nomeado para um elevado cargo no Fundo Monetário
Internacional, para onde levou dois outros simpatizantes do
comunismo, Frank Coe e Harold Glasser. Chambers estava,
então, preparado para fornecer às autoridades tudo o que
sabia, particularmente sobre Hiss, e o conflitante
depoimento de Chambers e de Hiss, no interrogatório do
Comitê do Congresso sobre atividades antiamericanas,
forneceu ao mundo um espetáculo dramático.

Os dois homens estavam altamente colocados. Chambers


era então um dos editores do Time e Hiss presidente da
Dotação Carnegie para a Paz Internacional. Existiam, ainda,
alguns elementos de ficção de espionagem que atraíam o
interesse popular, tais como o chamado “Documentos-
Abóbora”, que Chambers escondera numa abóbora vazia
em sua fazenda. Hiss se defendeu com vigor, e o que
declarou foi levado em tanta consideração que, em agosto
de 1948, o Departamento de Justiça se mostrava disposto a
processar Chambers por perjúrio. Entretanto, em dezembro,
um grande júri em Nova York fez uma verdadeira denúncia
contra Hiss, e ele se viu levado a julgamento. No fim dessa
escandalosa cause célebre, Hiss foi considerado culpado de
perjúrio e condenado a certo período de prisão.

Como iria tornar-se óbvio, os dirigentes da espionagem


soviética sempre escolheram para seus agentes, no país,
principalmente norte-americanos com filiação comunista ou
que revelassem simpatia pelo comunismo. O fato de que
nenhum desses homens houvesse sido suspeitado dessa
filiação ou dessa simpatia constituiu um grande golpe na
confiança norte-americana, já que a extensão das suas
atividades representou grave ameaça para a segurança
nacional. Pela primeira vez, ocorreu aos responsáveis pela
segurança e pelo público em geral que o maior perigo da
espionagem soviética vinha não dos agentes profissionais,
mas dos comunistas encapuçados, que estavam dispostos a
trair os segredos da sua pátria. E assim agiam não por
dinheiro, ou qualquer recompensa material, mas por crença
ideológica.

Essa nova espécie de espião — o espião ideológico —,


segundo se acreditava, era uma moderna manifestação,
surgida tão-somente das diabólicas maquinações do regime
comunista russo. Trata-se de opinião largamente
sustentada.

Desde que a situação havia sido controlada, tanto pelas


autoridades como pelo público, teve início, então, uma
grande campanha no sentido de se pôr ordem na casa
norte-americana. Denúncias seguiram-se a denúncias.
Entretanto, uma sincera, genuína crença intelectual — como
os mártires cristãos demonstravam tão bem — não pode ser
extirpada por providências administrativas. As autoridades
podem provar, expurgar e desmascarar, mas, para cada
homem ou mulher que trazem à luz do sol, quem poderia
dizer quantos inimigos disfarçados do Estado permaneciam
escondidos atrás do muro de seus pensamentos mais
secretos?

O Senador McCarthy acreditava que ainda existiam muitos


riscos. Talvez ainda existissem, mas, se assim fosse, seus
métodos de tentar extirpar o mal — o método de caçar
bruxas — reagiram, no fim, mais em favor do que contra
eles. De qualquer modo, conquanto sua campanha
houvesse sido vil, os alicerces em que ela se apoiava eram
sólidos argumentos. Essa campanha teve, entretanto, um
bom resultado: tomou bem claro que pouca coisa pode ser
feita para se defender de um espião ideológico, a não ser o
exercício de uma constante, incansável vigilância. E essa
atitude, por seu turno, deverá ser tomada não apenas
contra essa espécie de espião, mas contra os espiões de
todos os gêneros. No entanto, constitui uma característica
da nossa época o fato de que esse imperativo de defesa
seja, com a maior frequência, esquecido. 
2. O Caso “Amerásia”

Um caso que escandalizou a América e o mundo e revelou


um pouco do que vinha acontecendo durante a guerra
ocorreu em 1945. Embora não tendo tido permissão para
agir, o FBI mantivera sob vigilância muitos dos suspeitos de
fazer espionagem em favor da Rússia, e que eram
funcionários do governo norte-americano. Nessas
condições, quando um magazine, denominado Amerásia,
publicou, em fevereiro de 1945, o texto, ligeiramente
alterado, de um relatório sobre a política britânica em
relação à Tailândia — o qual somente poderia ter saído dos
arquivos do OSS — e o governo inglês reclamou,
providências oficiais tiveram de ser tomadas. Em face da
natureza do assunto, o FBI estava mais bem equipado para
tratar desse caso do que a administração tinha o direito de
esperar.

A revista Amerásia fora lançada em 1936, após a divulgação


da nova linha política chinesa, consubstanciada na
instituição de uma Frente Única, através da ação uníssona
dos comunistas e do Kuomintang, de Chiang Kai-shek, com
o objetivo de resistir a uma eventual agressão japonesa. O
editor do magazine era Philip J. Jaffe, norte-americano
nascido na Rússia e homem de negócios de grande êxito,
sob cuja direção a Amerásia passara a atacar o Japão e a
apoiar a aproximação dos comunistas com o Kuomintang.
No Departamento de Estado, foi a revista examinada com
grande atenção, e muitos funcionários de categoria a
elogiaram e recomendaram sua leitura.
Ao lado de Jaffe, como coproprietário da Amerásia,
encontrava-se Frederic Vanderbilt Field e, entre os
colaboradores regulares da revista, estava Andrew Roth,
que, contra a opinião dos serviços de segurança, havia sido
nomeado para a Inteligência da Marinha. Nesse posto, ele
passara a ter acesso a muitos documentos secretos. Outros
colaboradores do magazine eram: Emmanuel Larsen, do
Escritório dos Negócios do Extremo Oriente, do
Departamento de Estado — que também trabalhara na
Inteligência da Marinha — e Mark Gayn, jornalista freelance,
nascido na Manchúria. Larsen, da Inteligência da Marinha e
do Exército, do OSS e do Escritório de Informações da
Guerra.

Entre os documentos secretos fornecidos à Amerásia


encontrava-se um relatório sobre disposição das tropas
nacionalistas chinesas, com informações secretas sobre a
vida particular de Chiang Kai-shek, sobre o declínio do
prestígio desse chefe militar e sobre a crítica e a oposição
feitas à sua liderança, assim como uma ordem de batalha,
revelando a disposição da esquadra japonesa, antes da
batalha de Leyte.

Quando os ingleses apresentaram a queixa contra a


divulgação de seu relatório secreto sobre a Tailândia, o OSS
deu início a uma investigação que culminou com a
realização de uma diligência na redação da revista, na noite
de 11 de março. Em quatro gavetas, foram encontrados
fotocópias ou originais de 267 documentos do
Departamento de Estado, 50 do OSS, 58 do Escritório de
Informação de Guerra, 34 da Inteligência Militar e 19 da
Inteligência da Marinha.

Essa diligência esgotou a área de atribuição do OSS. Nessas


condições, seus agentes transferiram o caso para o FBI.
Este último exerceu vigilância sobre Jaffe e seus
funcionários, pelo período de três meses.

Apesar do fato de que todos aqueles documentos haviam


sido encontrados onde não deviam estar, a primeira reação
da administração foi a mesma que manifestara em todas as
anteriores oportunidades em que o FBI solicitara permissão
para agir contra os espiões. O promotor do embargo a
qualquer ação do FBI foi o Secretário da Marinha, James
Forrestal, embora se encontrassem, entre os papéis
apreendidos, vários documentos pertencentes aos arquivos
da Inteligência Naval. Forrestal chegou ao ponto de apelar
para o Departamento de Justiça, no sentido de dar
instruções a J. Edgar Hoover, chefe do FBI, proibindo-o de
tomar qualquer providência. O Departamento de Justiça
atendeu à solicitação de Forrestal, mas somente naquela
oportunidade e até que a reunião das Nações Unidas, em
São Francisco, tivesse sido encerrada.

O Presidente Truman, porém, tornara sem efeito essa


decisão e, no dia 6 de junho, o FBI prendeu Jaffe, Roth, John
S. Service — técnico em Extremo Oriente do Departamento
de Estado —, Gayn, Larsen e um outro. Na redação da
Amerásia encontraram-se outros 1 700 documentos oficiais,
que o OSS não descobrira. Entretanto, não existia qualquer
prova de que aqueles documentos houvessem sido
“entregues a uma potência estrangeira”. Em face disso,
Jaffe, Roth e Larsen só foram acusados do crime de retirada
de documentos confidenciais de uma repartição do governo.
Jaffe confessou-se culpado, sendo multado em 2 500
dólares; Larsen entrou com um nolo contendere e foi
multado em 500 dólares, os quais Jaffe pagou. As acusações
contra Roth foram posteriormente tornadas sem efeito.

O caso, em si, que assumiu um aspecto de cause célèbre, e


os comentários da imprensa e dos principais membros da
comunidade tornaram impossível, daí por diante, que as
investigações do FBI fossem sustadas, mesmo que a
administração o desejasse. É que, se assim acontecesse,
essa atitude iria contrariar os desejos do então recém-eleito
Presidente Truman.

De qualquer forma, a opinião pública se agitou e passou a


exigir, num dramático crescendo, que todas as providências
fossem tomadas para se descobrir exatamente até que
ponto a infiltração soviética havia comprometido a
administração dos Estados Unidos. A intervalos frequentes,
no período dos cinco meses seguintes, mais e mais
revelações foram feitas — entre elas, as denúncias de
Chambers e de Elizabeth Bentley — e revelaram um tão
largo campo de infiltração que, em setembro de 1953, o
General Bedell Smith, diretor da Agência Central de
Inteligência, viu-se obrigado a declarar: “Creio que os
comunistas são tão hábeis que já se infiltraram
praticamente em todas as agências de segurança do
governo.”

Comissões especiais do Congresso trabalharam


incessantemente numa tentativa para descobrir a extensão
dessa penetração. Na oportunidade, sob a pressão da
opinião pública, o FBI entrou em ação, com o ímpeto
decorrente da repentina liberação da sua frustração,
recalcada pelo período de uns seis anos. E o êxito que a
organização obteve no caso serviu para fazer brilhar de
novo a reputação que originalmente adquirira nos grandes
dias das lutas dos G-men contra Al Capone e seu bando.
Naquela ocasião, entretanto, a própria natureza da sua
tarefa estabelecera limites para a esfera de sua ação — mas
nenhuma agência, em idênticas circunstâncias, poderia ter
realizado mais do que FBI o fez.
3. Judith Coplon

Poucas semanas após o General Bedell Smith ter feito sua


observação, o chefe da Divisão de Segurança do
Departamento de Justiça informou que, naquela ocasião,
766 casos de espionagem e 261 de sabotagem estavam
sendo investigados. Essas declarações foram seguidas de
outras, quase em idênticos termos, feitas pelo diretor do
FBI: “As teias de espionagem inimigas estão operando agora
de maneira muito mais intensa do que em qualquer outro
período da História deste país.”

Em face desse estado de coisas, levou-se uma longa série


de casos de espionagem a julgamento nos tribunais dos
Estados Unidos. Entre esses muitos, um dos mais
importantes foi o em que se viu envolvida Judith Coplon.
Esse processo demonstrou claramente que, embora os
métodos e a extensão da espionagem soviética estivessem
sendo, quase diariamente, desmascarados, a Rússia não se
sentia embaraçada pelo fato nem via qualquer razão para
refrear sua curiosidade em relação no que se passava no
interior dos outros países. Deve ser recordado que,
enquanto os norte-americanos realizavam suas operações
de contraespionagem na Inglaterra, na França, na
Escandinávia e em vários países, outras redes russas
estavam sendo descobertas — particularmente no campo
da espionagem atômica —, o que contribuía para tornar
descolorida e quase insignificante a espionagem política
levada a efeito nos Estados Unidos. Esses fatos pareciam
não ter igualmente qualquer efeito na linha de ação externa
da União Soviética, exceto o de reafirmar o ponto-de-vista
realístico de que todos espionavam — e, nessas condições,
por que deixar de fazê-lo, só por alguns espiões terem sido
apanhados?

De qualquer forma, não se verificou qualquer retraimento


por parte do Centro, e Judith Coplon foi apanhada na nova
teia.

Em dezembro de 1949, chegara ao conhecimento do FBI,


através de fonte comprovadamente verdadeira, que a
Embaixada Soviética em Washington se apossara de certo
número dos mais secretos documentos, pertencentes ao
próprio FBI e ao Departamento de Justiça. A informação
sendo incompleta, a única idéia que se poderia ter da
natureza desses documentos era de que revelavam
particularidades tanto de alguns conhecidos agentes
estrangeiros como de diplomatas e norte-americanos
comunistas. A informação dava, também, uma indicação de
que o fornecedor desses documentos poderia ser uma
mulher que trabalhava no Escritório de Registro de
Estrangeiros, do Departamento de Justiça, e que antes havia
sido empregada nos escritórios desse mesmo Departamento
em Nova York.

Somente uma mulher, no Escritório de Registro de


Estrangeiros, em Washington, preenchia esses requisitos, e
o FBI, portanto, deu início às investigações para excluir ou
provar sua culpabilidade.

Judith Coplon, diplomada em nível universitário, tinha vinte


e sete anos. Era fisicamente atraente e se mostrava
competente em seu trabalho, que envolvia assuntos de
segurança, tanto interna como externa. Naquela ocasião,
seu nome fora posto numa lista de servidores
recomendados para promoção. A promoção, de fato,
ocorrera, quando ela fora nomeada para um cargo de 1 750
libras anuais, em maio de 1948, após haver recebido um
elogio do procurador-geral por um brilhante trabalho de
análise política.

Judith Coplon descendia de boa família. Seu pai fora um


próspero industrial, com nítidas características de filantropo.
A Sra. Coplon era quieta e retraída.

Anteriormente, Judith morara num apartamento da Tunlaw


Road, no número 2 634, em Washington, onde seu senhorio
e seus vizinhos a descreveram como uma jovem quieta,
intelectual, que nunca levava homens para casa. Mais tarde,
porém, e certamente tendo em vista a conveniência de
residir próximo ao local do trabalho, mudara-se para um
apartamento de um quarto, em Jefferson Hall, em McLean
Gardens, onde os vizinhos fizeram as mesmas observações
em relação ao seu comportamento.

Após um mês de apuração de provas e de vigilância, tudo o


que o FBI conseguira descobrir era que Judith se encontrava
com muitos homens e fora em companhia de um deles —
um inteligente advogado, empregado no Departamento de
Justiça — que passara o primeiro fim de semana de janeiro
de 1949, no Southern Hotel, em Baltimore, onde se
registrara como esposa de seu acompanhante. De qualquer
forma, o que os agentes do FBI concluíram, através dos
seus moderníssimos equipamentos, para ouvir e olhar
através das paredes, e que haviam instalado no quarto ao
lado, é que o casal só exercera, naquele hotel, uma
demonstração prática de como fazer amor. Entretanto, essa
descoberta revelara aos agentes da polícia uma faceta nova
do caráter de Judith Coplon.

Na semana seguinte, Judith Coplon solicitou a seu chefe,


William Foley, permissão para ver os relatórios mais
secretos sobre os agentes russos nos Estados Unidos, já que
tinha necessidade deles para realizar seu trabalho na
repartição. Foley, que sabia encontrar-se ela sob vigilância,
telefonou imediatamente para o FBI. Hoover, o chefe do
Bureau, fez uma visita a Foley, levando consigo uma carta
forjada, com a marca “secretíssima”, na qual se declarava
que três agentes soviéticos, que trabalhavam no
departamento comercial da Amtorg, eram, na realidade,
agentes do FBI, e brevemente seriam submetidos a um
teste de lealdade. Hoover pediu a Foley para entregar a
carta a Judith e solicitar que ela estudasse o caso,
esclarecendo que, caso estivesse de fato vinculada aos
russos, logo iria preveni-los.

Na sexta-feira, 14 de janeiro de 1949, Judith solicitou a seu


chefe licença para deixar o trabalho à hora do almoço, de
forma que pudesse gozar um fim de semana maior. A
permissão foi concedida. Quando tomou o trem das 13
horas para Nova York, já estava sendo seguida por quatro
agentes do FBI. Chegando à estação de Pensilvânia, Judith
se dirigiu ao toalete de senhoras, onde permaneceu pelo
espaço de quarenta e cinco minutos. Ao sair, passou pelo
guarda-malas da estação, onde deixou sua valise. Entrou
numa livraria e, depois, num drugstore, onde comeu um
sanduíche. Depois, seguiu pelo trem subterrâneo até a Rua
191, em Manhattan.

Estava escuro, quando Judith ali chegou, pois as lâmpadas


da rua já se achavam acesas. Caminhou ao longo da
calçada durante uns dez minutos, e então parou e olhou a
vitrina de uma joalheria. Permaneceu olhando aquela vitrina
por sete minutos. Valia-se, claramente, de um velho truque
de espionagem: observava o que se passava na rua, através
dos reflexos no vidro. Pouco depois, um homem baixo, mas
forte, bem vestido e moreno, apareceu. Não falou com
Judith. Quando se afastou, porém, ela o seguiu. Entraram
juntos num restaurante, onde ocuparam o mesmo
reservado. O que disseram ali não pôde ser ouvido pelos
agentes do FBI que os seguiam, porque, continuamente,
punham dinheiro num caça-níqueis, e o barulho da máquina
abafava a conversação. Permaneceram naquele restaurante
pelo período de uma hora. Durante todo o tempo, Judith
falara animadamente, e ainda se mostrava excitada quando
saíram. Outra vez, tomaram o subway. Quando o trem
estava para deixar a estação da Rua 125, o homem se
ergueu subitamente, espremeu-se através das portas que
se fechavam e saiu, com apenas um agente do FBI em seu
encalço. O sistema de segurança de que se valeu era,
incontestavelmente, digno de elogios. Ignorava estar sendo
seguido, mas, mesmo assim, usara da maior cautela.
Tomando uma série de táxis, de bondes e de ônibus,
conseguiu escapar á vigilância do agente.

Os agentes do FBI, diante das aparências, ficaram


convencidos de que aquele homem era de origem eslava,
sendo possivelmente, membro do pessoal do consulado-
geral soviético em Nova York. Orientando-se no sentido
dessa suposição, agentes foram colocados em frente ao
consulado russo e, às dez horas, viram o mesmo homem
que penetrava no edifício. Uma hora mais tarde, ele saiu e
tomou o trem subterrâneo, dirigindo-se para seu
apartamento, no número 64 da Rua 108, na Zona Oeste.
Interrogando o porteiro, os agentes souberam que se
tratava de um engenheiro russo que trabalhava para o
Departamento de Arquitetura das Nações Unidas e
conhecido como Valentine Gubitchev.

O FBI fez uma advertência a Foley, no sentido de que não


mais deixasse Judith Coplon ter acesso aos chamados
documentos “secretíssimos”. Em consequência desse aviso,
ela foi transferida para outra repartição. Não se conformara,
porém, com a transferência, alegando que só sairia se lhe
dissessem a razão daquela medida. Responderam-lhe que o
novo trabalho, de que fora incumbida, precisava ser feito,
sendo ela a pessoa mais adequada para fazê-lo.

A razão do seu violento protesto tornou-se evidente para o


FBI. No novo cargo, não teria acesso a qualquer documento
de valor para os seus parceiros de espionagem, e, em face
disso, o FBI concluiu que se encontrava na pista certa. Por
sua parte, Judith Coplon, quando obrigada a aceitar o
inevitável, passara a revelar persistência em não se
desvincular da antiga repartição, o que, se ela de fato fosse
uma boa agente, deveria ter compreendido que iria atrair
para si a atenção de todos. Com efeito, visitava diariamente
seu ex-escritório e dava uma assistência mais do que a
necessitada ao seu sucessor. Estava certa de que, assim
agindo, talvez lhe fosse possível inspecionar os arquivos.
Com exceção dessa atitude, comportou-se normalmente, só
saindo da sua conduta exemplar para a realização de alguns
encontros amorosos com seu amigo advogado.

No dia 18 de fevereiro, Judith Coplon foi mais uma vez a


Nova York. Nessa ocasião, tomou o trem das quatorze horas.
Os agentes que a seguiram levaram uma mulher policial
que a acompanhou até o interior do toalete de senhoras e,
depois, no subway. Judith Coplon, como acontecera das
outras vezes, levou seus acompanhantes através de uma
excursão pelas ruas. Da Broadway, entrou numa rua lateral,
onde Gubitchev a esperava. Estiveram juntos somente por
alguns minutos e, embora já fosse noite, os agentes ficaram
convencidos de que alguns papéis haviam sido passados
entre eles. Como da vez anterior, Gubitchev despistou a
perseguição.

No dia 3 de março, Judith pediu para trabalhar somente


meio dia e seguiu para Nova York, a fim de passar o fim de
semana com seus pais. Na semana seguinte, solicitou
autorização para examinar alguns dos documentos
“secretíssimos”. Foley perguntou-lhe, então, se ainda se
lembrava dos três empregados da Amtorg que eram
agentes do FBI. Acrescentou que conseguira obter maiores
informações sobre o caso e, para prová-lo, deu-lhe para ler
uma carta, escrita por J. Edgar Hoover ao assistente do
procurador-geral, comunicando que a Amtorg, não havia
muito, fizera indagações sobre certos instrumentos
chamados geofones, que mediam a pressão das explosões,
poucos dos quais tinham sido fabricados em conexão com
os primeiros testes atômicos. Hoover solicitava uma
orientação do procurador-geral sobre o que poderia
constituir uma violação dos regulamentos de comércio, por
parte da Amtorg. A carta era uma armadilha imaginada para
resolver, de uma vez por todas, se Judith Coplon estava
passando, ou não, informações aos agentes soviéticos.

Pouco depois dessa entrevista com Foley, Judith viajou, mais


uma vez, para Nova York. Ali se repetiu tudo o que
acontecera nas viagens anteriores, apenas com algumas
variações sem maior importância. Nessa oportunidade,
entretanto, o FUI dera o bote. Tanto Judith quanto Gubitchev
tudo fizeram para escapar, mas, por fim, foram presos na
esquina da Rua 16 com a Terceira Avenida.

No quartel-general do FBI, em Nova York, revistaram-nos.


Gubitchev tinha consigo 125 dólares, e nada que o
incriminasse. Judith nada levava consigo, mas em sua bolsa
se encontrou um envelope de propaganda de certa marca
de nylon. Quando esse envelope foi aberto, os agentes
descobriram, em seu interior, cópias e resumos de trinta e
quatro documentos "secretíssimos”, inclusive a carta de
Hoover dirigida ao procurador-geral. Essa papelada levava
uma nota de cobertura, explicando que não pudera tirar
uma cópia, mas que apenas dera uma rápida olhadela no
relatório do FBI sobre as atividades da espionagem
comunista e soviética nos Estados Unidos.
Judith negou tudo. As provas contra ela, porém, eram
suficientemente incriminatórias. Durante o julgamento,
apresentou uma defesa — elaborada, em certos trechos, por
espiões soviéticos capturados —, declarando que estava
apaixonada por Gubitchev, a quem conhecera, por acaso,
no Museu de Arte Moderna, que ele lhe dissera ser casado,
e que, por fim, espetava casar-se com ele, tão logo lhe fosse
concedido o divórcio. Negou igualmente, mas de maneira
inteiramente inepta, que alguma vez tivesse sido possuída
por seu amigo advogado.

O júri não acreditou em qualquer das alegações de Judith


Coplon. Julgada culpada, de acordo com a Lei de Traição, de
roubar documentos do governo norte-americano e de
conspirar contra a segurança dos Estados Unidos, foi
condenada a quinze anos de prisão. Gubitchev, co-réu no
mesmo julgamento, recebeu sentença idêntica. Ambos,
entretanto, deviam beneficiar-se com o funcionamento da
justiça democrática, de uma dramática maneira.

Por volta da mesma época, Robert Vogeler, norte-


americano, empregado da International Telephone and
Telegraph Corporation, em Budapeste, fora preso como
espião americano e condenado a quinze anos de prisão, por
um tribunal húngaro. Alguns americanos se achavam
igualmente detidos na Rússia, sob as mesmas acusações.
Sem que qualquer negociação se realizasse entre os dois
governos, o Departamento de Estado acreditou
ingenuamente que, se os Estados Unidos se mostrassem
clementes em relação a Gubitchev, um comportamento
similar seria seguido pela Rússia e pela Hungria. Nessas
condições, o Departamento solicitou ao tribunal que fizesse
uma recomendação, no sentido de que Gubitchev deixasse
os Estados Unidos "antes que lhe fosse exigido que
cumprisse sua pena”. Assim, no dia 20 de março de 1950,
esse agente soviético foi colocado a bordo do transatlântico
polonês Batory, juntamente com sua esposa, que dividia
com ele uma cabina de primeira classe, paga pelo governo
norte-americano.

Judith Coplon, que tivera permissão para prestar fiança,


quando completadas as investigações preliminares, apelou
da sentença. (Dois meses após a sentença, casou-se com
um dos seus advogados, Albert H. Socolov.) Sua apelação
foi julgada no dia 5 de dezembro de 1950 e, já que sua
prisão se efetuara sem mandado, o tribunal tornou sem
efeito a sentença. A acusação, entretanto, ficou de pé.
Embora livre, em obediência a detalhes de formalística
processual, sua culpabilidade perante a lei subsistiu. Judith
Coplon vive agora tranquilamente, transformada em esposa
e mãe.

O esforço do Departamento de Estado para salvar Vogeler


resultou inútil. Não foi ele libertado senão em fins de 1951,
e os norte-americanos detidos na Rússia só obtiveram a
liberdade algum tempo depois dessa data.

Por esse tempo, o Centro realizara um levantamento geral


das suas redes nos Estados Unidos e afastara os velhos
contatos, que ficaram inativos, à espera de nova
oportunidade. As agências de contraespionagem norte-
americanas, por seu lado, passaram a se comportar mais de
acordo com o papel que sempre lhes competiu representar,
pois finalmente se convenceram — como, aliás, ninguém
ignora — de que o comunista clandestino continua sendo o
maior e o mais traiçoeiro inimigo. 
Sexta Parte
OS PRINCIPAIS
DESERTORES
1. Gouzenko, Petrov e Companhia

Um dos grandes riscos por que a espionagem soviética tem


passado é o da deserção de seus agentes. Os dirigentes do
Centro estão cientes desse perigo e vêm procurando
defender-se, detendo, como reféns, as famílias dos seus
representantes que atuam no exterior. Sem o perceber,
entretanto, esses dirigentes têm contribuído de maneira
decisiva — através dessa aparente falta de confiança, de
suas tentativas de inculcar lealdade no espírito dos recrutas
e da brutalidade com que punem os espiões que fracassam
— para provocar justamente o que mais temem.

Na realidade, devem-se mais aos agentes que desertam do


que à habilidade dos serviços de contraespionagem tanto o
desmantelamento de diversas redes de importância e a
captura de muitos grandes espiões quanto uma melhor
compreensão, por parte dos ocidentais, dos métodos e das
técnicas de que lança mão a espionagem russa. Nessas
condições é provável que hoje se conheça mais sobre os
detalhes íntimos das atividades do Centro do que sobre as
do resto dos serviços de espionagem do mundo,
considerado em conjunto, excetuada a Agência Central de
Inteligência — a CIA —, que é a moderna organização de
espionagem dos Estados Unidos, criada no após-guerra.
Deve ser ressaltado, entretanto, que esse conhecimento da
CIA não foi obtido através de desertores. Resultou tanto da
própria estupidez do Centro como, particularmente, da sua
falta de insistência numa observância absoluta das normas
de segurança.
Desde os primeiros anos da guerra — a partir do
desmantelamento da rede belga pela Abwehr — temos visto
que, quando um agente russo é capturado, logo se torna
loquaz. Esse fato tem sido constatado mesmo entre os
veteranos, experimentados e longamente treinados
comunistas, os quais, segundo se poderia imaginar,
deveriam estar preparados para sacrificar suas vidas, em
vez de trair a Causa. Existe — segundo parece — uma falha
fundamental no comunismo. É que, quando um dos seus
agentes se encontra em situação de desespero, a doutrina
não é capaz de insuflar-lhe coragem ou, de alguma forma,
socorrê-lo. Essa falha não parece existir na chamada
ideologia democrática, e isso pode ser verificado através de
um só exemplo. O SOE contratou e treinou muitas centenas
de agentes, entre os nacionais dos países democráticos
ocupados pelos alemães e, dessas centenas, muitos caíram
em mãos dos alemães. Entre eles, porém, os exemplos de
traição, mesmo sob tortura, revelaram-se muito reduzidos.
E os que falaram e colaboraram, segundo se sabe, eram
homens e mulheres com evidentes falhas de caráter e que,
em primeiro lugar, nunca deveriam ter sido selecionados
para atuar como agentes.

Sob um regime que impõe uma lealdade da boca para fora,


por temor de prisão, no mínimo, ou de morte, entre as
criaturas submetidas a tão atroz tratamento, dada a própria
natureza humana, sempre existe uma preocupação de fuga.
Somente entre os que se encontram na cúpula e que
controlam e inventam os castigos por deslealdade, ou entre
os fanáticos, é que se poderá observar um sentimento que
se aproxime da lealdade. E isso porque o regime, sem
exceção, foi a eles imposto, c não livremente aceito e
aprovado. Não pode haver qualquer vínculo entre um
regime dessa natureza e o país sobre o qual ele exerce o
seu poder. Da mesma forma, não deve existir fé em
instituições das quais se tem medo. Esses dois aspectos da
vinculação do homem à sua pátria é que constituem a base
do seu sentimento de lealdade.

Esse raciocínio é verdadeiro quando se trata de uma


doutrina, não a universalmente aceita como sendo a
ideologia de uma nação. Sempre há o risco de que, mais
cedo ou mais tarde, o instinto de sobrevivência dê origem a
uma atitude de conformismo, particularmente quando as
pressões exercidas pelo referido regime estão ausentes. As
desilusões têm alcançado a muitos que, com entusiasmo,
abraçaram o comunismo em seus primeiros dias. E essa
situação tem sido devida principalmente ao fato de que a
liberdade do indivíduo, no comunismo, é restringida até ao
limite da extinção pela própria segurança. Se, ao menos, o
comunismo pudesse sentir-se bastante forte para dar a
qualquer preso pelo menos a impressão de permitir ao
indivíduo emprestar sua lealdade à Causa, segundo seu
próprio desejo, ele não teria de recear tanto as desilusões.
O liberalismo que começou a influenciar o regime na Rússia,
durante a era de Khruschev, pareceu ser um passo na
direção certa. As deserções, tanto de intelectuais e de
artistas como de agentes de espionagem, foram
desprezíveis em comparação com as verificadas no período
Stálin-Béria.

A deserção de comunistas estrangeiros sempre foi um risco


bem maior do que a deserção de nacionais russos. Em
meados da década dos trinta, essa situação acabou sendo
aceita como uma espécie de risco ocupacional. No campo
da espionagem, porém, a cooperação dos membros dos
Partidos nacionais era essencial para o funcionamento do
serviço secreto russo, e todas as providências eram
tomadas para contrabalançar o perigo oferecido por esse
tipo de agente. Dessa forma, os russos só o utilizavam de
maneira que não pudesse ameaçar a segurança da rede à
qual estivesse adido, embora a velha arma do medo,
incorporada nas atividades da Divisão do Terror e do
Desaparecimento, fosse sempre usada para dissuadir os
desertores em potencial.

Sempre existiram desertores desse tipo, mas as Juliet


Poyntz, as Elizabeth Bentley, os Whittaker Chambers, os
Alexander Foote e os George e Joanna Wilmer, embora
fornecendo grande volume de informações proveitosas, só
poderiam comprometer sua própria rede. Isso era
desagradável, como é natural, mas não constituía, na
realidade, uma tragédia. Quase sempre o Centro se
antecipava, tomando providências em face de tais
eventualidades. Assim é que sempre procurava ter uma ou
mais redes operando em linhas paralelas, cada uma delas
ignorando a existência da outra.

Em seu livro Soviet Spy Net, o especialista em espionagem


E. H. Cookridge escreveu:

Não foi senão em janeiro de 1953, quase oito anos após o


desmantelamento do sistema de espionagem no Canadá e
nos Estados Unidos, que a polícia de Montreal por acaso
descobriu que, pelo menos, uma rede "paralela” prosseguia
em suas atividades no país, enquanto os agentes, que
haviam trabalhado com Zabotin, estavam sendo julgados.
No dia 5 de janeiro de 1953, o grego Constantin
Stathopoulos, de 60 anos, que vivera no Canadá desde
1927, fora encontrado morto em sua residência em
Montreal. Morrera após uma longa enfermidade, e não havia
qualquer desconfiança de jogo sujo. Num bem disfarçado
esconderijo em sua residência, foram encontradas caixas de
aço contendo centenas de papéis, os quais o chefe da
Divisão Contra a Subversão, da polícia canadense, Louis
Champagne, descreveu como sendo "a mais importante
coleção de documentos de espionagem descoberta em
Montreal”. Entre a papelada recolhida, estavam livros de
notas contendo referência a muitas pessoas envolvidas na
rede de espionagem do Canadá, inclusive Fuchs. De acordo
com essas informações, quando postas lado a lado, tornou-
se claro que Stathopoulos tinha em seu poder parte dos
arquivos de uma rede de espionagem perfeitamente
independente da de Zabotin, mas que procurara atingir,
pelo menos, alguns alvos relacionados com a espionagem
atômica.

O primeiro desertor de importância foi Igor Gouzenko, o


encarregado do serviço de códigos da embaixada soviética
em Ottawa. Já relatamos sua história, na quarta parte deste
livro. Os documentos que levou consigo e as revelações que
subsequentemente fez revelaram não somente a existência
da rede de Zabotin, mas proporcionaram um retrato, quase
completo, do modus operandi da espionagem soviética.
Muito daquilo era sabido ou suspeitado — a nota de
surpresa estarrecedora que corre através das setecentas
páginas do relatório da Comissão Real, particularmente a
noção de que diplomatas ou quase diplomatas, gozando de
imunidades, pudessem rebaixar sua profissão a ponto de
usá-la como cobertura para espionagem, não devia iludir
ninguém —, mas a confirmação da primeira informação e o
que se ficou sabendo em relação ao segundo item foram,
naturalmente, de grande valor.

Em 1954, dois outros desertores de primeira importância


juntaram-se a Gouzenko. Em janeiro, Iúri Rastvorov, oficial
de alta patente do NKVD, por essa época no Japão, pediu
asilo às autoridades norte-americanas. Somente uma vaga
referência à sua deserção apareceu na imprensa, e o
público em geral mal teve informação do caso. O que
Rastvorov disse à contraespionagem, entretanto, revelou os
planos do Centro para o Japão e para todo o Extremo
Oriente.

O ruído que se fez em torno da deserção de Vladimir Petrov,


ocorrida três meses depois, produziu efeito diametralmente
oposto. Qualquer intelectual que se encontrasse de posse
de um jornal em alguma parte do mundo ficaria
surpreendido pela história que não somente pareceu
representar uma repetição do escândalo do Canadá, mas
pôs em foco, como os casos de Gouzenko, de Gold-
Rosenberg e o julgamento de Klaus Fuchs nunca haviam
conseguido, o papel universal da espionagem soviética. O
grande tumulto de publicidade que acompanhou a deserção
de Petrov não foi provocado pelas autoridades australianas,
que provavelmente teriam preferido guardar sigilo sobre o
assunto, mas pelo comportamento, em lugares públicos, de
certo número de agentes soviéticos.

O governo australiano não concedera reconhecimento


diplomático à União Soviética senão em 1942. Desse
momento em diante, porém, a espionagem soviética entrou
em plena ação no continente. A rede — organizada e
dirigida por Semion Makarov e seu principal assistente,
Feodor Nosav, correspondente ostensivo da Agência Tass —
trabalhou segundo as linhas tradicionais. Comunistas e
simpatizantes comunistas com postos nas agências
governamentais representaram as principais fontes de
informação da rede, merecendo referência especial alguns
funcionários que trabalhavam no Ministério dos Negócios
Exteriores, os quais passavam documentos relativos à
política exterior da Austrália e da Inglaterra.

Os anos de guerra assinalaram um período tanto de intensa


atividade como de grande sucesso para a organização.
Depois do conflito, porém, quando as opiniões e as emoções
em relação ao Japão e ao fascismo começaram a se dissipar
e, quando o caso da Amerásia, nos Estados Unidos, e o de
Nunn May, na Inglaterra, despertaram a atenção do público
para as atividades da espionagem soviética, o trabalho da
rede começou a encontrar sérias dificuldades. Em face
disso, o Centro, por sua vez, passara a expressar sua
profunda insatisfação em relação ao esforço dos seus
agentes na Austrália.

Depois da guerra, Makarov fora substituído por Valentin


Sadovnikov, que em 1949 cometera o imperdoável pecado,
aos olhos do Centro, de passar as noites em casa de um
conhecido australiano. Este, por sua vez, fora substituído
por Ivã Pakhomov, que demonstrara ser preguiçoso e
mesmo desinteressado e, nessas condições, acabara sendo
chamado de volta, para ser substituído por Vladimir Petrov,
num espaço de tempo relativamente curto.

Petrov exercia na embaixada em Camberra as funções de


terceiro secretário, mas seu posto real era o de Diretor-
Residente. Em sua companhia encontrava-se a esposa,
Evdokia, também funcionária do NKVD, mas passando como
amanuense da embaixada.

Na época em que Petrov chegara, a rede atravessava uma


fase de dificuldades e, embora ele houvesse explicado
claramente a situação ao Centro, não tardou que este
começasse a criticá-lo, inclusive pessoalmente. De qualquer
maneira, enviou-lhe outro assistente, F. V. Kislitsyn. A estada
de Kislitsyn foi curta, porque não pudera apresentar
melhores resultados que Petrov. Embora o Centro esperasse
mais do seu sucessor, N. G. Kovaliov, essas esperanças não
foram confirmadas e, quando também ele foi chamado de
volta, Petrov acabou sendo responsabilizado por tudo, em
face “da ausência de sua orientação positiva”.
A partir dessa época, as críticas do Centro ao trabalho de
Petrov começaram a se avolumar. Provavelmente para
tentar comunicar nova vida à rede, ordenara a Petrov,
através de longo despacho, datado de 6 de junho de 1952,
entre outras coisas, que se preparasse para o irrompimento
de outra guerra mundial e tomasse suas providências para
fazer frente a esse acontecimento, quando sobreviesse.

O resultado dessas críticas — que deveria ser previsto por


qualquer diretor que soubesse como lidar com agentes —
foi implantar em Petrov uma crescente amargura. Essa
amargura, ele a manifestou a um amigo que fizera na
Austrália, um imigrante polonês chamado Mikhail
Bialogusky, o qual, segundo acreditava, era um dos
membros do Clube Social Russo mais exaltados em favor da
Rússia, embora, na realidade, não passasse de um elemento
da contraespionagem australiana.

A morte de Stálin, em 1953, proporcionou a queda também


do mais odiado e temido homem da Rússia, Lavrenti Béria,
chefe de todas as forças de Segurança da União Soviética
por quinze anos e que exercia os cargos de Comissário do
Povo para a Segurança Interior e do Estado e de Vice-
Presidente do Conselho de Ministros. O mistério que cercou
a morte de Béria ainda não foi de todo esclarecido. Há,
entretanto, quem diga que ele organizara uma conspiração
para derrubar os demais líderes do regime e apoderar-se do
poder supremo. De maneira igualmente misteriosa, Vladimir
Petrov viu-se implicado nessa conspiração e, em face das
acusações nesse sentido, combinadas com os relatórios que
atacavam sua atuação, elaborados pelo embaixador russo,
em princípios de 1954, acabou sendo chamado de volta
para Moscou.

No dia 3 de abril, Petrov desapareceu. Por alguma razão,


não levou a esposa. Após três semanas, como ele não
reaparecera, chegara uma ordem para que ela fosse
repatriada. O avião em que viajava aterrissou no aeroporto
de Darwin para se reabastecer, e ela, com sua guarda de
três ou quatro agentes, foi levada até o edifício da estação,
a fim de tomar um refresco. Sua marcha fora observada
pela contraespionagem australiana e, de uma forma ou de
outra, o marido conseguira falar-lhe pelo telefone. Em
Camberra e na aterrissagem em Darwin, ela se mostrara
perfeitamente dócil. De súbito, porém, mudou. Gritou para
as autoridades do aeroporto que não desejava voltar a
Moscou e pediu que lhe dessem asilo.

Os guarda-costas agarraram-na e tentaram empurrá-la,


através da pista, para o avião. As autoridades australianas,
porém, intervieram e, conseguindo libertá-la, tomaram-na
sob sua proteção. Se haviam sido avisadas com
antecedência ou não, nada se pode afirmar. O fato é que se
achavam no aeroporto diversos fotógrafos e câmaras de
televisão, e a luta foi filmada. Como resultado disso, dentro
de poucas horas, o mundo inteiro sabia da deserção desse
membro graduado do NKVD.

O Centro aceitou a deserção de Gouzenko mais ou menos


como um fato normal. A segunda deserção, porém,
ocorrendo logo depois, e gritada através do mundo com
fotografias não muito edificantes, já lhe pareceu excessivo.
As relações diplomáticas da Rússia com a Austrália foram
rompidas, sua embaixada encerrou a atividade e todo o
pessoal se viu chamado de volta a Moscou.

As informações e documentos que Petrov conseguira levar


consigo, quando deixou a embaixada — e que datavam
desde 1952 — ampliaram o retrato do que se sabia do
trabalho e da política da espionagem soviética no Ocidente.
Esse caso muito contribuiu para fazer com que a opinião
pública mundial pudesse tomar conhecimento da habilidade
com que a espionagem soviética realizava sua penetração e
fez com que as autoridades em toda parte tornassem ainda
mais rigoroso o cumprimento de suas normas de segurança
interna. Desgraçadamente — como as provas dos últimos
anos na Grã-Bretanha demonstraram — é sempre precária a
memória tanto dos cidadãos como das autoridades. Nessas
condições, toma-se necessária uma constante reiteração
dos perigos que podem resultar, se essas normas de
segurança não forem observadas, embora mesmo essa
providência possua suas desvantagens, pois uma coisa
frequentemente repetida acaba cansando e não sendo
ouvida. 
2. Khokhlov e Companhia

Entre as deserções de Iúri Rastvorov, no Japão, e a de


Vladimir Petrov e sua esposa, na Austrália, outra importante
deserção teve lugar e, através dela, os arquivos das
potências ocidentais foram enriquecidos de informações
sobre métodos de trabalho das agências soviéticas,
inteiramente diferentes dos que haviam sido revelados,
tanto por Petrov e Gouzenko como por outros desertores
menores.

Na Alemanha Ocidental existiu, desde a guerra, um grupo


denominado Sociedade da Unidade Nacional (NTS),
organizado e dirigido por Georgi Okolovich, com seu quartel-
general instalado em Francforte-sobre-o-Meno. A NTS tinha
por objetivo levar a subversão ao âmago do Exército
Vermelho e ao círculo das autoridades comunistas da
Alemanha Oriental e, no ano sobre o qual estamos
escrevendo — isto é, 1954, quando os aliados estavam
ainda ocupando a Áustria —, à zona russa da Áustria e aos
países satélites, através de distribuição secreta de milhões
de folhetos.

A NTS vinha obtendo, aparentemente, tão considerável


sucesso que as autoridades russas não podiam deixar de
ignorá-la. Julgando que o dirigente dessa sociedade era a
sua maior fonte de informação, decidiram que deveria ser
eliminado. Assim, em outubro de 1953, o Coronel Studnikov,
então chefe da Divisão do Terror e do Desaparecimento,
chamara à sua presença um dos seus operadores — certo
Capitão Nicolai Khokhlov — e lhe comunicara que ele e mais
dois outros agentes haviam sido escolhidos para pôr termo
às atividades de Okolovich.

No princípio do mês seguinte, Khokhlov seguiu para a


Alemanha Oriental. Ali, encontrou-se com dois alemães
comunistas, que deveriam ser seus assistentes, e, em
companhia deles, tomou um avião, de volta para Moscou.
Khokhlov era um assassino de grande experiência, não
sendo aquela, portanto, a primeira tarefa que realizaria para
a Nona Seção. Seus assistentes, entretanto, eram novos no
assunto. Enquanto Khokhlov estudava a planta de
Francforte e discutia o plano que deveria executar, os dois
alemães eram submetidos a um treinamento básico,
aprendendo a utilização das armas de fogo, que seriam
usadas para o assassinato, e exercitando-se nas técnicas de
combate desarmado, na Escola Especializada de Kuchino,
nas proximidades de Moscou.

Em fins de dezembro, todos os planos estavam elaborados.


No dia 29 desse mês, Khokhlov, Hans Kukowitsch e Kurt
Weber voaram de volta para Berlim Oriental. Haviam
recebido instruções no sentido de não entrarem na
Alemanha Ocidental, indo do Leste. Em face disso, foram
primeiro a Viena -— onde Khokhlov se deixou ficar,
aguardando a ordem para prosseguir na execução da tarefa
— e Kukowitsch e Weber seguiram para a estação termal de
Baden.

Aconteceu, porém, que os ministros do Exterior das quatro


grandes potências haviam combinado realizar uma de suas
conferências justamente naqueles dias. O Kremlin,
desejando evitar os embaraços de ser acusado de um
assassínio enquanto se processavam as conversações,
chamou Khokhlov de volta a Moscou, onde ele deveria
permanecer até que se encerrasse a reunião.
A conferência terminou no dia 13 de janeiro de 1954. Logo
em seguida, Khokhlov recebeu ordem para retornar a Viena.
Deveria permanecer lá à espera do sinal verde, a ser dado
por Moscou. esse, porém, só viria no dia 8 de fevereiro,
quando então o agente russo viajou para se juntar aos seus
assistentes em Baden.'

Seguindo as instruções do Centro, Kukowitsch e Weber


viajaram por trem para Innsbruck e ali cruzaram a fronteira
para a Suíça, enquanto Khokhlov voou para Zurique, onde
os três se encontraram, dois ou três dias mais tarde. De
Zurique, Khokhlov enviou os dois alemães para Francforte e
juntou-se a eles quase uma semana depois, a 18 de
fevereiro. No dia seguinte, Khokhlov foi sozinho ao
apartamento de Georgi Okolovich e, para surpresa do
dirigente da NTS, disse-lhe que tinha sido incumbido de
assassiná-lo, mas decidira não cumprir a missão. “O senhor
poderia ter a bondade de entrar em contato com as forças
de segurança norte-americanas na Alemanha Ocidental” —
falou-lhe o agente soviético — “e dizer-lhes que desejo a
proteção delas e, em troca, revelarei o plano e os métodos
de ação da Nona Seção e qualquer coisa mais que possam
julgar de utilidade e da qual eu tenha conhecimento.”

Quando os americanos se livraram da estupefação em que


haviam caído, concederam o asilo solicitado por Khokhlov,
mas as armas especiais, que a Nona Seção mandara
fabricar para a execução do assassínio, não se achavam
ainda em poder dos que deviam executar o crime. Nessas
condições, e agindo sob instruções dos norte-americanos,
Khokhlov disse aos dois alemães que seguissem para
Augsburg, onde lhes seriam entregues as armas por um
agente do NKVD. Assim fizeram.

Khokhlov, conhecendo muito bem os processos da Nona


Seção, estava certo de que um segundo grupo fora enviado
à Alemanha, a fim de vigiá-lo e verificar se cumpriria a
missão de que estava encarregado. Insistiu, portanto, em
que as maiores precauções de segurança fossem
observadas por ocasião de seu encontro com os norte-
americanos. Resultou daí que os contatos, entre os dois
lados, assumiram aspectos verdadeiramente
rocambolescos, como se tirados das atividades de James
Bond. As conversas de Khokhlov com os norte-americanos
realizaram-se num lavatório na Casa da Ópera de
Francforte, e até num camarim de teatro.

Embora Khokhlov pudesse desertar, Okolovich não poderia


considerar-se salvo daquela trama, enquanto os dois
alemães, que haviam deixado as armas no guarda-malas da
principal estação de Francforte, estivessem soltos. Em vez
de prendê-los, Khokhlov foi solicitado a tentar persuadi-los a
desertar também. Encontraram-se, pois, no dia 25 de
fevereiro. Nessa entrevista, Khokhlov expôs-lhes o que
fizera e os aconselhou a seguir seu exemplo.
Aparentemente, os dois alemães não alimentavam qualquer
entusiasmo pela tarefa de que haviam sido incumbidos e,
assim, logo concordaram com o agente soviético. Nessas
condições, Georgi Okolovich, por algum tempo, estaria
salvo.

As informações que Khokhlov pôde fornecer eram valiosas.


A parte mais interessante de todo o incidente, porém, e a
que certamente provocou a maior surpresa, foi a publicação
das fotografias, com minuciosa descrição das armas
fornecidas pela Nona Seção. Incluíam uma cigarreira, que
disparava balas dundum envenenadas através da ponta dos
cigarros, e um revólver, de quatro polegadas de
comprimento, capaz de ser escondido na palma da mão e
que fazia apenas um ruído de castanhola, quando disparado
por um maquinismo operado por uma bateria.
Desde a morte de Stálin, verificou-se considerável de
decréscimo no número de mortes misteriosas de homens e
mulheres outrora comunistas ou simpatizantes do
comunismo. Se isso foi o resultado das revelações de
Khokhlov ou o resultado da orientação mais humana da
seguinte liderança soviética, não se pode dizer. O
importante é assinalar que, até agora, os assassinatos de
Trotsky; de Ignace Reiss, antigo Diretor-Residente; de
Renata Steiner, comunista suíça; de Dimitry Navachin,
antigo diplomata soviético; o desaparecimento de Juliet
Poyntz, e muitos outros assassinatos e desaparecimentos,
somente constituem a indicação da existência de um
esquadrão de vingança, mas, de fato, não o provam.

A tradição, porém, existe. E, se houve uma necessidade real


para criá-la, não resta dúvida de que pouca hesitação
deverá existir para que um dia ela seja ressuscitada. 
Sétima Parte
A EUROPA DE PÓS-GUERRA
1. Desde a Morte de Stálin

A morte de Stálin afetou de diversas maneiras a Rússia


Soviética. O processo denominado desestalinização, que se
encontrava em desenvolvimento desde a campanha
desencadeada por Nikita Khruschev em 1956, demonstrou
claramente que os próprios dirigentes soviéticos estavam
decididos a extinguir as piores características daquela era
política. Os que têm visitado a Rússia, ultimamente,
constatam a mudança verificada na atmosfera, no
comportamento e no próprio aspecto do cidadão da rua,
assim como na abertura de muitas novas fronteiras culturais
e intelectuais. As alterações são tão profundas que um
retomo aos dias do passado toma-se impossível.

A mudança verificada na existência diária do cidadão


soviético, que já não revela medo nem evita qualquer
contato com estrangeiros — os quais eram característicos
do período em que Stálin estava no poder —, e o
enfraquecimento do poder da polícia secreta, segundo se
acredita, desempenharam a esse respeito, um papel de
relevo. Sob o regime de Stálin, eram as forças de segurança
interna que decidiam sobre o destino dos indivíduos e sobre
sua sorte final, e este tenebroso poder repousava, de fato,
apenas nas mãos de um homem.

Lavrenti Béria, como Stálin, era georgiano. E, também como


seu mestre e amigo, possuía toda a brutalidade, a astúcia e
a ambição de poder que caracterizaram o sucessor de
Lênin. Filho de um humilde funcionário público, nascera em
Tíflis, em 1898. Havendo feito um curso para ser professor,
alistara-se, mais tarde, no exército czarista. Alegava que, no
exército, procurara incitar seus companheiros de armas,
levando-os à sublevação e, por isso, fora julgado por uma
corte marcial e condenado à morte. Conseguira, porém,
fugir. De qualquer forma, não surgiu, até hoje, qualquer
prova de que tenham sido verdadeiras essas alegações.

Depois da Revolução de 1917, Béria se encontrava no


Cáucaso e, quando o Exército Branco assolou o território,
fugiu para a Sibéria. Um pouco mais tarde, já se encontrava
de novo no Cáucaso, realizando trabalho de Inteligência. Foi
em consequência desse trabalho que despertou a atenção
de Stálin, e, quando Dzershinsky teve a incumbência de
organizar sua Cheka, recebera do Comissário das
Nacionalidades, Josef Stálin, uma carta recomendando-lhe
um “brilhante camarada” que “considero integralmente
merecedor de confiança. . . Lavrenti Pavlovich Béria”.

Logo depois, Béria demonstrava ter vocação tanto para as


atividades secretas como para aprender línguas —
dominava perfeitamente o alemão, o francês e o tcheco —,
e essas duas qualificações lhe conquistaram um posto na
legação soviética em Praga. Ali, devia dar informações
sobre oficiais do antigo exército do czar que se encontravam
em exílio na Tchecoslováquia.

De 1928 a 1937, Béria trabalhou no exterior, empenhado


principalmente em localizar trotskistas. Durante esse
período, insinuou-se de tal maneira na confiança de Stálin
que, após o expurgo de 1938, foi colocado no controle da
Segurança, como Comissário do Povo. Durante os três anos
seguintes, usou o NKVD para aumentar seu poder pessoal.
Como Stálin — a quem estava determinado a seguir na
liderança —, não podia tolerar qualquer oposição. Os que
revelaram a audácia de se opor a seus propósitos logo
descobriram a brutalidade de que era capaz. Ao alimentar
sua ambição, Béria foi afastando, um por um, com notáveis
exceções, todos os que tentaram erguer-se entre ele e
Stálin. Os demais, conservara-os em suas mãos, através de
dossiês detalhados, que guardava em seus arquivos, e nos
quais eram anotadas todas as ações, públicas ou
dissimuladas, que haviam praticado.

Béria foi o responsável pelo regime de terror que, durante


muitos anos, imperou na Rússia — com o qual concordara
Stálin —, pois compreendeu que a Polícia Secreta constituía
a mais poderosa arma para a conquista do poder. Insistiu
por isso, em ter seus agentes em todas as unidades das
forças armadas. Eram investigadores que faziam
espionagem, apurando a "lealdade” de cada homem, de
general a simples soldado. Quando a guerra russo-
germânica se iniciou, as fronteiras da Rússia com a
Alemanha eram, em sua maior extensão, guardadas por
tropas do NKVD. Descobriu-se, então, que seus agentes nas
linhas de frente enviavam as informações diretamente a
ele. De posse dessas informações, Béria transmitia a Stálin,
e ao Alto Comando apenas o que julgasse conveniente.
Retinha, assim, muita coisa que teria sido de grande valor
para os estrategistas militares, pelo menos durante os
primeiros seis meses do conflito.

Não se deve esquecer, entretanto, que, sob a direção e o


impulso de Béria, a espionagem soviética teve a
oportunidade de vibrar seus mais brilhantes golpes, e foi
por ordem direta dele que Rudolf Rössler, Richard Sorge e a
Orquestra Vermelha desenvolveram suas atividades.

Como seria de esperar, procurou colocar homens de sua


confiança nos mais importantes postos da organização —
homens que não deixavam de ser discípulos seus, como
Merkulov, chefe de Segurança do Estado durante todo o
período da guerra e ministro da Segurança do Estado e do
Controle até 1953; Dekanosov, chefe do Departamento do
Exterior do Primeiro Diretório; Pavel Mesnik, chefe da
Divisão Especial e diretor do Departamento do Terror e do
Desaparecimento (o Esquadrão do Assassinato);
Nicoforovich Kruglov, que salvou as vidas de Roosevelt e de
Churchill, ao descobrir um complot para assassiná-los em
Teerã, e sobreviveu a cinco chefes, inclusive ao próprio
Béria.

Somente um fato Béria não levou em consideração em sua


ascensão para o ápice do poder: a oposição que lhe faziam
os comandantes do Exército. Cometeu igualmente um grave
erro, subestimando a astúcia do seu mais próximo rival —
Malenkov. Muito antes da morte de Stálin, Malenkov, que
fora o mais íntimo amigo do autocrata, chegara a um
acordo com o Exército, no sentido de que os militares o
apoiassem, no momento que julgasse oportuno. Quando
esse momento chegou, e o cadáver de Stálin se achava
exposto no Hall das Colunas, o destino de Béria estava
selado.

Durante um mês ou dois, nada aconteceu. Subitamente,


porém, Malenkov atacou. Béria se viu preso, sob a acusação
de conspirar para derrubar o então líder soviético, e, julgado
secretamente, foi executado. Malenkov teve o cuidado de
nada divulgar até que tudo estivesse consumado. Presos e
executados, com Béria, foram os acima citados, com
exceção de Kruglov, e todos aqueles que haviam sido por
ele nomeados. O expurgo foi amplo e de grande
profundidade e, através dele, Malenkov afastou,
efetivamente, todos os antigos dirigentes dos serviços
secretos da Rússia, não escapando mesmo os que atuavam
nos mais baixos escalões da hierarquia policial.

O perigo do poder que um homem conseguia adquirir, ao


dispor do controle de todos os serviços de Segurança, não
fora esquecido por ocasião da nova liderança soviética, que
se mostrou, desde logo, determinada a que, enquanto ela
tivesse influência, o fato não aconteceria outra vez. Deve
ser recordado que, em princípio de 1941, o Comissariado
para a Segurança do Estado e do Interior fora dividido em
dois departamentos separados, embora Béria reservasse
para si o controle supremo. Após a morte de Stálin, esses
departamentos se fundiram outra vez num ministério — o
Ministro dos Negócios Internos e Segurança do Estado.
Kruglov era o ministro titular da nova pasta, tendo A. I.
Serov como vice-ministro, embora Béria permanecesse no
controle de tudo, como vice-presidente do Conselho de
Ministros. Depois da morte de Béria, o Conselho de Ministros
promoveu uma reorganização desses serviços. Foi instituído
um Comitê de Segurança do Estado, com a tarefa de
coordenar as atividades de segurança interna, sob a
presidência de A. I. Serov, e, ao mesmo tempo, fora abolida
a Polícia Secreta, como havia sido concebida por Béria. De
acordo com a nova instituição, dois chefes diretores foram
nomeados para os serviços secretos. Um era responsável
pelo Primeiro Diretório; o outro, pelo Segundo Diretório; e
ambos trabalhavam, juntos, sob a direção do Comitê de
Segurança do Estado.

Embora a horrível sombra de Béria e de sua polícia tivessem


sido afastados, por fim, do cenário russo — o que não quer
dizer naturalmente, que uma vigilância estreita ainda não
seja mantida em relação a qualquer atitude subversiva —, a
reorganização burocrática desses serviços não se refletiu,
de forma sensível, nos métodos ou nas atividades de
espionagem soviética. Na realidade, segundo tudo indica, os
efeitos foram contraproducentes.

Na Suécia e na Grã-Bretanha, por exemplo, fatos


recentemente ocorridos têm revelado que a espionagem
soviética continua se apoiando na colaboração de indivíduos
dos próprios países onde ela está em atividade. Alguns
deles já foram chantageados ou se revelaram
ideologicamente exploráveis. O que se pode deduzir é que a
ampla rede, anteriormente estendida, não foi ainda
recolhida, mas, pelo contrário, é possível mesmo que uma
rede ainda mais larga tenha sido atirada. O comportamento
de muitos agentes, que se deixaram comprometer, parece
indicar, por outro lado, que os métodos de treinamento não
mudaram, embora os agentes natos revelem, com
frequência, uma categoria mais elevada, mesmo se acusam
aberrações de caráter ou anomalias psíquicas que
eventualmente os levam ao fracasso.

Existem indícios, igualmente, de que, em casos positivados,


uma bem maior liberdade de ação tem sido concedida aos
agentes que agem isoladamente, o que nunca foi nem ao
menos sonhado na era anterior ou durante a hegemonia de
Béria. Por outro lado, é evidente, ainda, que o Centro —
como sempre o fez — continua controlando, com mão firme,
as operações de todas as redes no exterior. 
2. A Nova Organização

A reorganização da Europa no pós-guerra determinou


profunda alteração nas técnicas da espionagem soviética. E
essa mudança foi importante, sob diversos pontos-de-vista.
O Centro já não precisaria manter redes pelo menos em
nove países, os quais, antes do conflito, eram inimigos em
potencial da Rússia. Ao contrário disso, tornou-se possível a
incorporação, aos seus serviços, de agências organizadas e
dirigidas por espiões-chefes de experiência, treinados por
ele próprio, mas pagas por outros governos e integradas por
espiões de outros países. Os segredos do que ocorria em
cerca de metade da Europa, por sua vez, passaram para o
seu controle, como rotina de supervisão administrativa, e o
que se verificava na outra metade passara a constituir
atribuição das agências das nações-satélites. Nestas
condições, o Centro teve as mãos livres para trabalhar em
áreas de maior importância, como, por exemplo, os Estados
Unidos, a Grã-Bretanha, a França e a Alemanha Ocidental.

A nova organização fez com que agentes, cujos nomes


frequentemente apareceram nos capítulos anteriores,
fossem elevados a novas alturas. Esses agentes constituíam
as velhas raposas que sabiam como uma rede de
espionagem deveria ser organizada e estavam em
condições de dirigi-la segundo os moldes do Centro. Eram
eles: Wollweber, o grande sabotador dos anos do princípio
da guerra e de antes dela, que se tornara ministro da
Segurança do Estado na Alemanha Oriental; Vaclav Nosek,
elevado ao cargo de ministro do Interior em Praga; e Vulko
Chervenkov, que, havendo sido ministro do Interior em
Praga, passara a ocupar a elevada posição de vice-
presidente do Conselho de Ministros.

Mas, se as novas providências facilitaram a situação para a


espionagem soviética, aumentaram proporcionalmente as
dificuldades da contraespionagem nos países não-
comunistas. Os países-satélites tiveram seus serviços
organizados, e estes passaram a operar nas mesmas linhas
das agências russas. Nos países ocidentais, que
reconheceram as novas “democracias populares”, esses
governos logo estabeleceram embaixadas — superpovoadas
de funcionários, cuja missão era a prática de atividades
ilícitas —, as quais incluíam, entre os porteiros, motoristas e
diplomatas, membros de alta patente das suas agências de
espionagem.

Não tardou que a presença desses agentes nas embaixadas


se tornasse conhecida. E o fato se deu de maneira muito
desagradável. A mesma e numerosa gente que fugira ante o
avanço dos exércitos russos e que, a princípio, fora
recolhida aos campos de pessoas deslocadas, na Alemanha,
e então selecionada para viver e trabalhar numa
democracia ocidental, constituiu um dos principais alvos das
agências-satélites. A maioria dos integrantes desse grupo
humano deixara parentes em seus próprios países e, sob a
ameaça de prisão desses parentes, eles se submeteram à
chantagem e se transformaram em espiões.

Um dos maiores grupos de refugiados na Grã-Bretanha, por


exemplo, era constituído de poloneses que tinham servido
no exército do General Anders e lutado ombro a ombro com
os aliados. Entre eles, encontrava-se certo Stanilaus Badjer,
que se tornara funcionário do sindicato que protegia os
interesses dos trabalhadores poloneses na Inglaterra.
Infelizmente, a Sr.a Badjer e seu filho haviam ficado na
Polônia.
Em 1949, Badjer recebeu a visita de duas pessoas que se
identificaram como membros de uma pequena rede
polonesa na Grã-Bretanha. Apresentaram ao refugiado a
“sugestão” de que deveria fornecer-lhes os nomes e certa
característica dos demais poloneses que se encontravam no
país e ainda possuíam parentes na Polônia. Se não aceitasse
a “sugestão”, a esposa e o filho seriam enviados para um
campo de trabalho forçado, na Rússia. No começo da
guerra, o próprio Badjer passara um ano num desses
campos e, sabendo que a ameaça não era ociosa,
concordara em colaborar. Assim, pouco depois, estava com
seu quartel-general instalado em Manchester. Ali, suas
atividades, de certa maneira mal orientadas — já que se
tratava de um agente sem qualquer experiência em
operações clandestinas —, provocaram suspeita entre os
seus compatriotas. Resultou dessa situação que a Divisão
Especial fosse alertada e, consequentemente, Badjer foi
preso e deportado para a Polônia.

Em princípios de 1950, ocorreram diversos casos que


implicavam jovens tchecos e diplomatas de outros países-
satélites. Foram acusados de tentar seduzir trabalhadores
com emprego em fábricas empenhadas em contratos
secretos do governo, de modo a obter que eles revelassem,
em troca de dinheiro, as plantas e demais características do
material em construção. Estes se mostraram também tão
ineptos que logo atraíram a atenção. Em alguns casos, os
trabalhadores se recusaram a cooperar e, em outros,
denunciaram o fato à polícia. Resultou daí que uma
verdadeira sucessão de embarques ocorresse, todos
provocados por exigências das autoridades britânicas.

Mesmo os russos, que sempre tiveram longa experiência


nesse gênero de atividade, cometeram disparates e
acabaram sendo desmascarados. Em maio de 1954, o Major
Gudkov e o Major Pupyshev — dois adidos militares
assistente à Embaixada de Londres — tiveram de deixar o
país. Sir Anthony Eden comunicou à representação
diplomática russa que eles já não eram considerados
personae gratae pelo governo britânico. Gudkov recebera a
incumbência de obter desenhos de quatro aviões militares e
empreendeu sua tarefa da maneira tradicional. Obtivera o
nome de um comunista que trabalhava na fábrica que
construía esses aviões e, como esse elemento de ligação
não tinha acesso à informação secreta que desejava,
Gudkov ordenou-lhe descobrir um operário que tivesse esse
acesso e, ao mesmo tempo, se mostrasse dócil em
colaborar.

Um empregado nessas condições foi descoberto e Gudkov


arranjou um encontro com ele num bar, não longe da
fábrica. Ali, ofereceu-lhe muitas centenas de libras em troca
de uma cópia das plantas dos quatro tipos de avião, e, certo
de que o inglês estava ansioso por aceitar a oferta,
providenciara a realização de um segundo encontro. O
operário, entretanto, fora à polícia e, quando o segundo
encontro se realizou, alguns agentes da contraespionagem
estavam presentes, como observadores.

Agindo sob instruções da polícia, o operário protelou os


entendimentos pelo período de seis meses. Durante esse
tempo, todos os movimentos de Gudkov foram vigiados.
Quando o serviço de contraespionagem julgou que já havia
recolhido as provas necessárias, agiu com presteza,
apanhando o major com uma planta falsa em seu poder.
Gudkov só não foi preso pelo fato de gozar de imunidades
diplomáticas.

Sem que Gudkov o soubesse, seu colega Pupyshev fora


incumbido de idêntica tarefa. A abordagem que realizou foi,
entretanto, diferente. Estabeleceu laços de amizade com
um oficial da RAF e tentou persuadi-lo a obter as
informações que o governo russo desejava. O oficial fingiu-
se disposto a cooperar, mas deu parte à polícia, e a
contraespionagem agiu, adotando o mesmo processo que
tivera êxito no desmascaramento de Gudkov. Pupyshev foi
devolvido à Rússia, juntamente com seu colega da
Embaixada.

Dois anos apenas antes desses pequenos incidentes, o


público inglês havia sido informado das atividades da
espionagem soviética na Grã-Bretanha, através da prisão de
um funcionário do Foreign Office, William Marshall. Em
1950, Marshall fora removido para a Embaixada britânica
em Moscou, onde exercia as funções de encarregado do
serviço de cifragem da correspondência. Como Vassall uma
década mais tarde, Marshall não se “ajustou” com o resto
do pessoal da Embaixada. Em sua solidão, procurou travar
relações com alguns russos, embora, na realidade, seja
mais verdadeiro dizer que os russos, sabendo de sua
infelicidade, dele se aproximaram.

Em 1952, Marshall voltou à Inglaterra para trabalhar no


Foreign Office. Levara de Moscou uma carta de
recomendação para o terceiro secretário da Embaixada
soviética, Pavel Kuznetzov. Kuznetzov procurou proporcionar
ao jovem amanuense um padrão de vida do qual só tinha
conhecimento por ouvir falar — jantares caríssimos e outras
coisas mais — e, gradualmente, o persuadira a entregar-lhe
toda informação de importância que lhe chegasse às mãos
para ser cifrada.

Quando Marshall concordou com a proposta, os encontros


no West End foram substituídos por outros em lugares
menos frequentados, como Richmond Park e Kensington
Gardens. Embora não por culpa sua — já que tinha certa
experiência de trabalhos secretos daquela natureza —,
Marshall, sem se saber como, atraiu a tenção das
autoridades de segurança do Foreign Office. E severa
vigilância sobre ele passou então a ser exercida. Quando a
contraespionagem julgou possuir já suficientes provas do
trabalho ilegal que ele vinha realizando, agiu com sucesso.
Kuznetzov e Marshall foram acareados num dos seus
encontros num parque. O diplomata russo invocou
imediatamente suas imunidades diplomáticas e, em face
disso, teve permissão para se retirar. Marshall, porém, foi
preso. Ao ser revistado, encontraram, em sua carteira, a
cópia de um documento altamente secreto do Foreign
Office. Embora negasse que estivesse fazendo espionagem,
o júri não acreditou em suas palavras, e ele acabou sendo
condenado a cinco anos de prisão.

Por essa ocasião, idênticas manifestações da espionagem


soviética ocorriam com frequência em todos os países da
Europa Ocidental, e também nos Estados Unidos. Em
Washington, por exemplo, Christache Zambeti, primeiro-
secretário da embaixada da Romênia, tentou fazer
chantagem contra o diretor de uma empresa de petróleo, V.
C. Georgescu, que fora obrigado a deixar seus dois filhos na
Romênia. A proposta que lhe fizeram foi a seguinte: em
troca de informações secretas, relacionadas com a
segurança dos Estados Unidos, teria os vistos necessários
para que seus filhos a ele se juntassem. Georgescu
procurou imediatamente o FBI e Zambeti foi solicitado a
deixar os Estados Unidos — o quarto diplomata romeno a
ser expulso do território norte-americano no período de dois
anos.

Nenhum país conseguira escapar à ação da espionagem


soviética. As agências de contraespionagem que a
combatiam tiveram seus recursos ampliados ao extremo.
Entretanto, a capacidade do Centro, conforme futuros
acontecimentos iriam demonstrar, fora subestimada
praticamente em todos os países, inclusive na Grã-
Bretanha, nos Estados Unidos, na França e na Escandinávia.
Os casos de Blake e Vassall tiveram, ambos, seus
correspondentes em alguma nação, embora idêntico clamor
os haja acompanhado.

Não resta dúvida de que o MI 5 foi parcialmente culpado


pelo que aconteceu na Grã-Bretanha. Ao lado do seu
fracasso, porém, verificava-se, simultaneamente, alarmante
falta de precaução por parte das agências de segurança de
muitos departamentos governamentais, que guardavam
segredos estratégicos. Nem mesmo a revelação dos
lamentáveis lapsos da segurança do Almirantado, tornados
públicos no caso Lonsdale-Houghton- Gee, impediram que
Blake e Vassall operassem, com sucesso, por algum tempo,
mesmo depois de aquele trio ser detido pela
contraespionagem. Pode-se admitir que a
contraespionagem luta com muito maiores dificuldades do
que o faz a espionagem. Entretanto, uma hábil organização,
cujo objetivo é desmascarar espiões, desde que seja bem
treinada e esteja sempre vigilante, pode sobrepujar, com
facilidade, a maioria das agências de espionagem, uma vez
que uma pista inicial tenha sido descoberta. O mesmo
acontece em relação aos casos dos comunistas
encapuzados. Praticamente em todos os casos dessa
natureza, verifica-se a existência de uma indicação
qualquer, no início da carreira do suspeito, que o torna
passível de ser considerado um risco de segurança. Essa
indicação pode conduzir a provas concludentes, se ao
menos um escrutínio bem orientado for levado a efeito em
cada caso.

De qualquer forma, o volume da espionagem já realizada


pelos russos e o progresso que eles acusaram em
habilidade e em recursos técnicos, no período de pós-
guerra, representam uma conquista de proporções
gigantescas. Será conveniente ressaltar, porém, que,
provavelmente, em nenhuma parte a espionagem soviética
já se revelou mais intensa do que no interior da Alemanha
Ocidental. 
3. Alemanha Ocidental

Quem quer que converse com um russo — seja uma


autoridade ou um homem da rua — sobre a possibilidade do
irrompimento de uma terceira guerra mundial, não pode
deixar de se impressionar com a sinceridade com a qual a
Alemanha Ocidental é tida, por ele, como a mais perigosa
ameaça à paz mundial. Baseados na História, os soviéticos
estão convencidos de que o militarismo se acha tão
solidamente arraigado no caráter nacional teutônico que as
sucessivas alegações de Bonn, de desinteresse pela guerra,
não podem ser sinceras. Julgam-nas simples cortina de
fumaça, tendo por objetivo disfarçar uma futura tentativa
de restauração do prestígio militar do país — tão
achincalhado por duas esmagadoras derrotas no período de
vinte e cinco anos —, a ser levada a efeito no momento
oportuno. Trata-se de um ponto-de-vista esposado por
largos setores da opinião pública no Ocidente. Embora todos
os governos, indubitavelmente, mantenham estrita
vigilância sobre qualquer manifestação dessa ambição
germânica de reconstituir seu poderio militar — com a
intenção de suprimi-la tão logo ela se concretize —, os
russos, entretanto, não se mostram dispostos a cruzar os
braços e a aguardar até que os acontecimentos ocorram, no
que diz respeito a problemas dessa natureza, no campo
internacional.

Desde os primeiros anos do pós-guerra, a União Soviética


concentrou na Alemanha Ocidental um esforço de
espionagem que ultrapassa, de muito, suas iniciativas em
qualquer outra parte do mundo, incluindo mesmo os
Estados Unidos. O principal objetivo dessa iniciativa tem
sido o de descobrir todos os segredos que o governo federal
da Alemanha possa ter em gestação.

Essa tarefa, entretanto, não justificaria ou requereria uma


tão grande atividade como a que está sendo levada a efeito
a oeste da curva Travemünde-Hof. Existem, porém, outras
razões para essa preocupação, e que mergulham suas
raízes no próprio oportunismo russo. Em primeiro lugar, as
forças que os norte-americanos e os britânicos conservam
na República Federal constituem fato que um antagonista
em potencial não pode deixar de levar em consideração.
Essas forças dispõem das mais modernas armas e dos mais
aperfeiçoados equipamentos — aviões, artilharia e centenas
de outros instrumentos de luta. Por outro lado, importantes
segredos políticos ali estão guardados em arquivos e
grandes manobras são levadas a efeito nas florestas e nas
montanhas. Tudo isso está ao alcance de qualquer agente,
ali colocado, sem maiores dificuldades.

Há a considerar, então, que metade da Alemanha já se


encontra em campo soviético. A força que resultaria para o
mundo comunista, em favor dos seus planos de levar a
efeito a sonhada dominação mundial, se a outra metade da
Alemanha caísse na mesma armadilha, constitui, pois, um
precioso incentivo para que os soviéticos procurem, desde
já, preparar o terreno, através da subversão. Entretanto, os
alvos visados têm sido, em sua maioria, de ordem política e
militar.

Na Alemanha Ocidental, podemos ver a combinação das


agências soviéticas e as das nações-satélites trabalhando
em sua mais concentrada forma. Existem quatro delas em
funcionamento: uma agência soviética, dirigida e controlada
pelo Centro, instalada na Alemanha Oriental; uma agência
alemã-oriental; uma agência tcheca, e, finalmente, uma
agência polonesa. O trabalho dessas quatro organizações é
coordenado, com as tarefas distribuídas pelo Centro, de
forma a evitar qualquer sobreposição de atividades. Os
resultados são remetidos diretamente para o Centro e,
somente se os russos o desejarem, alguns dos segredos,
recolhidos pelas agências “estrangeiras”, chegam ao
conhecimento dos seus respectivos governos.

As quatro organizações trabalham segundo uma norma só.


Oficiais de recrutamento treinados e experimentados
procuram operadores entre as pessoas deslocadas que
ainda possuem parentes atrás da Cortina de Ferro. A
principal fonte fornecedora desses agentes são os alemães,
cujos padrões morais nunca retornaram à normalidade,
após a desmoralização geral de caráter ocorrida nos últimos
anos da guerra. Muitos são recrutados, igualmente, entre os
jovens alemães que, como todos os moços de qualquer
nacionalidade, desejam participar de uma “aventura”. No
caso dos agentes alemães, a principal isca é o dinheiro, e
seus pagadores — agora que se mostram mais psicólogos
do que o eram antes — não são mesquinhos. Como muitos
soldados rasos estão em contato diário com armas de todos
os tipos e das mais modernas e se encontram, portanto, em
posição de fornecer informações ou mesmo de levar
exemplares dessas armas, essas quatro agências
empregam um bom número de mulheres no trabalho de
aliciamento entre eles. Na realidade, nenhuma outra
agência, em toda a história da espionagem, já usou tantas
mulheres como as que as redes hoje utilizam na Alemanha
Ocidental. Com frequência, essas mulheres são prostitutas,
e, normalmente, são postas a operar junto aos negros norte-
americanos alistados. Todas se acham preparadas para
oferecer tanto seus corpos quanto um substancial
pagamento em dinheiro, como chamariz.
Nos últimos anos, os alemães não têm divulgado as cifras
dos comunistas presos e condenados como espiões.
Entretanto, através de estatísticas antigas, pode-se ter uma
idéia do volume da atividade desenvolvida, pelas agências
soviéticas e suas aliadas, na Alemanha Ocidental. Entre
1949 e 1955, não menos de oitenta e seis causas de
espionagem foram levadas aos tribunais, e o número dos
acusados se elevou a 174. Desde que os espiões presos só
representam uma pequena fração do total que se encontra
em atividade, pode-se presumir que o número de agentes
comunistas no país deve orçar por muitas centenas.

Tanto os tribunais aliados quanto os alemães — os últimos


vêm julgando processos de espionagem desde 1951 — não
tratam os espiões com complacência, embora suas
sentenças não sejam tão drásticas como as proferidas pelos
comunistas em casos idênticos. A média das condenações é
de cerca de seis anos de prisão. Em muitos casos, porém, o
máximo de quinze anos tem sido imposto. E não existe
qualquer indicação de que o reservatório de espiões em
potencial esteja secando.

Na realidade, foi o grande número de homens e mulheres —


ambos dispostos a “cooperar”, pela pródiga recompensa
oferecida — que proporcionou às redes a extraordinária
amplitude com que seus serviços hoje operam. Essa
circunstância teve influências sérias na organização desses
serviços, especialmente no campo do treinamento. Um
treinamento muito reduzido passou a ser dado ao espião
selecionado, e o que lhe é ensinado é rudimentar e feito às
pressas. O chefes dos espiões, entretanto, não se
preocupam com essa deficiência. Sabem que se, por um
lado, essa falta de treinamento conduz a um grande número
de prisões, sempre existe, por outro, a compensação de
que, para cada agente apanhado, uma meia dúzia de
candidatos se apresenta para substituí-lo. Essas
considerações, igualmente, têm reflexo sobre a qualidade
do agente potencial selecionado, o qual, considerado de
forma global, é excepcionalmente pobre — fato este que
contribui para o aumento do número de prisões.

Esses pontos podem ser graficamente ressaltados através


da reconstituição de um ou de dois casos, que são típicos.
Em 1950, os ingleses detiveram certo Wilhelm Klein,
surpreendido espionando seu aeroporto de Gatow, nas
proximidades de Berlim. Como provavelmente acontece
com qualquer outro agente preso na Alemanha Ocidental,
Klein confessou-se culpado das acusações que lhe eram
feitas e se mostrou disposto a falar. As autoridades inglesas
ficaram muito surpreendidas ao saber que Klein — moço de
trinta e dois anos — possuía uma ficha criminal e cumprira
diversas sentenças por roubo e mercado negro. Era, na
verdade, um homem que qualquer agência de espionagem
que se respeite teria recusado, a não ser para tarefas muito
especiais.

Klein revelou aos ingleses que recebia ordens de um oficial


russo — certo Capitão Grabowski — que controlava uma das
redes soviéticas. Durante seu período de atividade, obtivera
informações sobre o exército britânico do Reno, sobre
alguns objetivos militares, como pontes, acampamentos e
outras instalações, e tirara numerosas fotografias, as quais
tinham sido entregues ao Partido de Unidade Socialista, ao
Partido Comunista — que funcionavam na região que mais
tarde seria o Setor Soviético —, a fim de serem remetidas a
Grabowski.

Três anos mais tarde, descobriu-se uma célula, em pleno


funcionamento, quando um ferreiro local informou às
autoridades britânicas que certo Werner Berg tentara
persuadi-lo a obter informações secretas, prometendo-lhe,
em recompensa, pagar-lhe setecentos marcos por mês.
Berg passou a ser vigiado, e sua atividade levou as forças
de segurança a outros membros da célula — três homens e
duas mulheres, todos alemães — dirigidos por Robert Koch,
viajante comercial que cruzava frequentemente a fronteira
“em sua jornada de negócios”, passando para o Setor
Russo.

Essa célula situava-se em Lüneburg Heath e em Brunswick,


sendo que esta última localidade representava o mais
importante de todos os locais do BAOR no Setor Britânico.
Ali eram realizados testes com tanques e outros trabalhos
de experimentação, principalmente de artilharia; enquanto
todas as atividades no Heath eram controladas de
Brunswick.

As duas mulheres se encontravam entre os mais


importantes membros da célula. Edith Seefeld, noiva de um
oficial britânico, estava, por causa dessa circunstância, em
situação de fornecer detalhes da programação dos testes,
enquanto Erika Krüger, uma das telefonistas da mesa de
troncos do grande campo de Münster, tinha acesso a
relatórios e a fotografias. Edith Seefeld confessou e, de
acordo com suas revelações, as acusações contra ela foram
retiradas. Berg, porém, foi condenado a cinco anos de
prisão. Os outros membros da célula — com exceção de
Koch, que era o seu diretor e conseguira escapar —
sofreram penas de quatro anos de prisão.

Uma terceira célula, entretanto, fora descoberta, operando


em Kiel. Os dois agentes, envolvidos neste caso, eram
também alemães: Harald Freidank, que desempenhava as
funções de encarregado do serviço de imprensa patrocinado
pelos ingleses; e Hans Frahm, cronista esportivo e
comunista, que já vinha trabalhando para a rede soviética,
quando conheceu Freidank. Frahm recrutou Freidank, pois o
julgara tão útil que, quando os ingleses o dispensaram do
seu serviço, em 1952, tendo medo de perdê-lo, prometeu-
lhe outro emprego numa agência de notícias da Alemanha
Oriental, com escritório no Setor Britânico. No curso dos
entendimentos para a obtenção desse emprego, Frahm
levou Freidank para Berlim e ali o apresentou a um agente
soviético, que o persuadiu a ingressar na espionagem.
Quando Freidank concordou, foi-lhe dada uma tarefa em
Hamburgo, onde suas perguntas, demasiadamente
inquisitivas, sobre as atividades de alguns oficiais ingleses
atraíram a atenção das autoridades de segurança. Frahm
suicidou-se, enquanto aguardava o julgamento, e Freidank
recebeu sentença leve, de apenas um ano de prisão.

A agência soviética sempre tivera tanto a


contraespionagem como a espionagem britânica em
elevado conceito e, em suas atividades no Setor Britânico,
ela sempre se utilizou de agentes de categoria muito mais
elevada — com exceção de Klein e de um ou dois outros —
do que os que infiltrava nos Setores Francês e Norte-
Americano. Igualmente, a agência soviética parecia ter uma
alta opinião da lealdade do pessoal do Exército britânico,
tanto comissionado quanto não-comissionado, pois,
enquanto fizera uma ou duas fracas tentativas de aliciar
soldados ingleses, esse seu esforço poderá ser considerado
desprezível, se comparado com o que levou a efeito,
também com objetivo de subversão, entre os NCO e os GI
dos Estados Unidos.

As agências dos países-satélites — as polonesas e as


tchecas — parecem ter sido as destacadas para agir nesse
tipo de operação. Houve, por exemplo, o caso da ampla
rede tcheca em Francforte-sobre-o-Meno.

Embora tendo por sede a Tchecoslováquia, essa rede era


controlada por um oficial tcheco, que vivia sob o falso nome
de Capitão Burda. Em 1950, Burda travou relações com
Hans Pape, rapaz bem-educado e inteligente, filho de um
alemão muito rico. Pape, entretanto, acusava evidentes
sintomas de anormalidade psíquica. Instável de caráter,
vivia trocando de empregos antes da guerra e, durante o
conflito, imaginara passar a maior parte do seu tempo em
hospitais, bem distante das linhas de frente.

Encontrava-se ele num hospital do Leste, quando a ofensiva


russa passou por ali, não lhe dando tempo para fugir, e,
nessas condições, fora preso. Solto em 1947, retornou para
a Alemanha Ocidental e ali obteve um emprego na base
aérea norte-americana de Rhine-Main. Em 1950, recebeu
uma intimação para ir ao Setor Soviético e, em Weimar,
avistou-se com um oficial russo, este o incumbindo da
tarefa de obter informações sobre os alemães que
trabalhavam para os norte-americanos na
contraespionagem e na polícia militar. Nessa viagem, Pape
conheceu logo Burda, que tinha igualmente uma proposta
para lhe fazer.

Em qualquer fase, Pape jamais conseguira ganhar o


suficiente para fazer frente ao seu sistema de vida. A
proposta de Burda, entretanto, rasgara-lhe novos
horizontes: os tchecos estavam dispostos a pagar-lhe
oitenta libras mensais por seu serviço. Em complemento à
sua missão soviética, os tchecos pediram-lhe que lhes
fornecesse relatórios sobre os norte-americanos e logo lhe
deram os nomes e os endereços de alguns alemães que
poderiam ajudá-lo. Recebeu também instruções sobre o
método que deveria adotar em seu trabalho.

Retornando a Francforte, Pape abriu um estúdio, no qual


moças que desejavam ser estrelas de cinema podiam fazer
testes de filmagem, a cinco marcos por vez. O custo
ridiculamente baixo desses testes — equivalente a cerca de
dez xelins — devia ter constituído uma advertência a
qualquer interessado de que aquele estúdio não iria longe.
De fato, os clientes de boa-fé eram poucos. Entretanto, Pape
não se preocupava com isso. Seu interesse estava em que
aquele local constituía excelente fachada para todas as
mulheres que poderiam ser vistas, diariamente, entrando e
saindo dele.

Entre essas mulheres encontravam-se algumas prostitutas,


que Pape contratara para obter informações dos soldados
negros. A mais destacada agente desse tipo era uma antiga
amante sua, Elisabeth Dörhöfer. Tratava-se de uma jovem
muito atraente, empregada na Pan-American Airways, em
Francforte. Pape não a seduzira para entrar na organização,
valendo-se do recurso de renovar sua antiga amizade. Ao
contrário, apresentou-a a Burda, quando este esteve em
visita a Francforte. Ela se tornou logo amante do agente
tcheco e, em seguida, passou a ser sua espiã.

A tarefa que competia a Elisabeth Dörhöfer era a de obter


informações dos oficiais norte-americanos. Ela dedicou-se,
de corpo e alma, à tarefa que lhe fora confiada. Fotografou-
se completamente nua, e utilizava essas fotografias como
meio de se aproximar dos oficiais, escolhidos por Burda
como prováveis fontes de informação. Obteve grande êxito
nessa atividade. Mas um incidente ocorreu, e sua carreira,
iniciada tão brilhantemente, foi subitamente cortada. Um
dos seus clientes regulares — um jovem segundo-tenente —
tornara-se desconfiado, em face das muitas perguntas que
ela lhe fazia, e levou o fato ao conhecimento do serviço de
segurança. Quando isso aconteceu, não se tratava da
primeira denúncia que o corpo de contraespionagem havia
recebido contra Elisabeth. Outros oficiais depuseram que
ela lhes oferecera dinheiro, em certos casos até 800 libras,
por informação transmitida. E não apenas isso. Pape
denunciara sua própria rede à CIC, com a oferta de agir
como agente duplo, e, em seu depoimento, citara a antiga
amante. A oferta fora rejeitada e a denúncia não chegara a
ser levada a sério. Pape fizera idênticas ofertas aos
franceses e aos ingleses, os quais, de forma surpreendente,
reagiram do mesmo modo que os norte-americanos.
Somente depois que se avolumaram as denúncias, feitas
pelos oficiais, é que a CIC decidiu ficar de sobreaviso.

Os agentes da CIC receberam instruções para vigiar


Elisabeth. Pouco depois, descobriram que ela fazia
frequentes visitas à Tchecoslováquia e, em consequência
disso, os norte-americanos admitiram que provavelmente
estivesse envolvida em assuntos de espionagem. De
qualquer maneira, na primeira vez em que tentou cruzar a
fronteira, entre o Setor Norte-Americano e a República da
Tchecoslováquia, foi presa. Em sua bolsa, a CIC encontrou
cópia de um mapa secreto, uma circular do Exército,
fotografias de granadas de morteiros e vários outros
documentos interessantes e confidenciais. Elisabeth, uma
vez desmascarada, mostrou-se disposta a cooperar. Citou
seus dois contatos alemães, Karl Lippert e Hilde Klimberg.
Julgada, foi condenada a sete anos de prisão; Lippert, a três;
Klimberg, a dois anos. Pape, por alguma razão mais bem
conhecida pelas autoridades americanas, foi absolvido.

Outra mulher-agente, que trabalhava com idêntica tática:


Margarete Pfeiffer, também colaboradora de Burda. Era alta,
bonita de corpo, loura e linda. Habitualmente, ganha a vida
servindo de modelo. Recebendo a tarefa de obter
particularidades de um canhão dotado de um aparelho de
pontaria, baseado em raios infravermelhos, concentrou seu
trabalho no seio das tripulações de tanques, às quais
oferecia grandes somas de dinheiro e, como um bônus
especial, também sua técnica em se movimentar numa
cama.
Enquanto ameaçou fazer desaparecer as vítimas, se
falassem, obteve grande sucesso em suas atividades. Um
dia, porém, conheceu um soldado, chamado Eicher, que não
se deixou impressionar por suas ameaças e a denunciou à
CIC. A CIC usou Eicher como armadilha para pegá-la e,
assim, foi detida. Margarete negou-se a confessar.
Respondeu a processo sozinha, recebendo a sentença,
relativamente leve, de quatro anos de prisão.

Em 1948, Karl Kunze e sua amante Luise Frankenberg foram


instruídos, por uma agência polonesa, a organizar uma rede
em Berlim Ocidental. Abriram uma galeria de arte, como
disfarce, e, enquanto Kunze agia recrutando membros entre
os alemães contrários aos aliados, Frankenberg procurava
mulheres que pudessem ser de alguma utilidade. O mais
notável sucesso que essa agente obteve foi o recrutamento
de Maria Knuth, mulher de quarenta e dois anos, sem filhos,
inteligente e separada do marido, o conhecido aviador
Manfred Knuth.

Concluído o recrutamento, Kunze e Frankenberg receberam


ordem de mudar para Francforte, de onde, segundo decidira
o quartel-general polonês, a rede deveria operar. Maria
Knuth fora deixada em Berlim para agir como “caixa-postal”
da organização.

Entretanto, Kunze, não se mostrando muito satisfeito com a


composição da rede, procurou melhorá-la. Aceitou a
colaboração de duas outras pessoas, Flermann Westbeld e
Marianne Opelt, ambos empregados na polícia de
Francforte. Feito isto, a organização entrou em atividade.

A rede mal começara a operar, quando Kunze se suicidou.


Fora provido de dinheiro pelos poloneses e tratara seus
agentes com a maior liberalidade. Não obstante isso,
desviara grandes somas para o custeio das próprias
despesas e das suas numerosas amantes. Os poloneses
descobriram o desfalque e, quando se preparavam para
exigir um ajuste de contas, escolhera o suicídio, saída
honrosa para um oficial prussiano, que, de fato, havia sido.

Maria Knuth fora levada para Berlim, a fim de assumir a


direção da rede. Frau Knuth revelou-se ótima agente, e a
rede, sob sua liderança, tornara-se rapidamente uma das de
maior êxito entre as que operavam na Alemanha Ocidental.

Quando as potências ocidentais tomaram a decisão de


incluir a Alemanha na OTAN, em 1950, essa iniciativa foi
interpretada pela Rússia como sendo um plano para o
rearmamento alemão — justamente o que os russos mais
temiam. A decisão exigia uma ação imediata. A agência
polonesa recebeu instruções para incumbir Frau Knuth de
fazer com que sua rede se infiltrasse na agência instituída
pelos aliados, e conhecida como Amt Blank. Frau Knuth
encarregou-se, ela própria, da primeira tentativa.
Candidatando-se a um cargo de secretária na Amt foi
rejeitada, por sua taquigrafia não ser bastante fluente. Na
realidade, a tarefa, sob todos os aspectos, revelara- se
difícil. A abertura de uma fenda no sistema de segurança da
Amt Blank não foi conseguida senão em 1952, quando um
dos agentes de Frau Knuth, chamado Hauer, apresentou-a a
um indivíduo, de nome Petersen, que alegava ser
empregado na organização dos aliados. Como lhe fora
solicitado fazer, Frau Knuth, antes de tentar recrutar
Petersen, levou o fato ao conhecimento do seu quartel-
general. Foi advertida de que Petersen poderia ser um
impostor, mas, mesmo assim, teve permissão para
prosseguir na tarefa, usando, entretanto, de extrema
precaução. Dentro de pouco tempo, relações íntimas
estabeleceram-se entre os dois.
E essa aproximação foi-lhe fatal. Petersen era, na realidade,
um agente da Alemanha Ocidental. Durante algum tempo,
fornecera à rede excelente material falso, procurando saber
tudo o que lhe convinha sobre a organização. Em abril de
1953, as autoridades da Alemanha Ocidental julgaram ter já
todas as informações desejadas, e a rede inteira foi presa.
Frau Knuth, por essa época, sofria de um câncer em
avançado estágio. Enquanto aguardava o julgamento,
submetera-se a duas operações, embora não ignorando
que, dentro em breve, morreria. Nessas condições, não fez
qualquer tentativa para se defender. Somente explicou que
desejava impedir o rearmamento da Alemanha.

A respeito da agência da Alemanha Oriental — controlada


pelo experimentado Ernst Wollweber, como ministro da
Segurança do Estado —, suas atividades se desenvolveram
mais no setor da sabotagem do que no da espionagem. Os
técnicos sempre julgaram que as misteriosas explosões e
incêndios, ocorridos em vasos de guerra e em
transatlânticos de passageiros — como, por exemplo, no
Queen Elizabeth, no Queen Mary e no Empress of Canada,
em 1953, e a explosão no porta-aviões Indomitable —,
foram trabalho desse sabotador-mestre, ajudado por
unidades móveis, especialmente treinadas, que receberam
suas instruções na Escola Naval de Wustrow. Suas
operações terrestres, porém, consistiam principalmente em
contrabandear material estratégico pertencente às forças
armadas do Ocidente.

A agência da Alemanha Oriental realizou, também, algumas


poucas tarefas de espionagem, e todas elas de natureza
extremamente grave. Numa delas, viu-se envolvido um
oficial da polícia de Berlim Ocidental. esse militar forneceu
aos comunistas os planos elaborados pelo Ocidente para
impedir os numerosos raptos de alemães e um relatório
sobre a organização das forças policiais da Alemanha
Ocidental. Outra dessas tarefas estava relacionada com um
alto funcionário da administração da polícia de Berlim, um
comunista chamado Bruno Wricke, que não fizera qualquer
tentativa para esconder sua fidelidade partidária e, não
obstante, fora nomeado. Wricke trabalhou, durante seis
anos, fornecendo importantes documentos à agência da
Alemanha Oriental, inclusive listas das pessoas presas,
cópias de interrogatórios, e assim por diante. Existiu
também, por fim, o caso de Margarete Schmidt, a quem o
New York Herald Tribune descreveu nos seguintes termos:

Margarete Schmidt, que era uma bonita jovem, estabeleceu


seu primeiro contato importante com o pessoal da Força
Aérea em Berlim Ocidental, através das relações íntimas
que mantinha com um oficial graduado da Inteligência. Esse
affair teve início no verão de 1953 e parece haver-se
prolongado pela maior parte do ano. Julga- se que ela
manteve outro "caso” simultânea ou subsequentemente
com uma autoridade civil ou oficial da Força Aérea de
patente inferior.

O oficial da Inteligência, de posto mais elevado, arranjara-


lhe o cargo de secretária numa agência norte-americana de
Inteligência, em Berlim Ocidental. Mais tarde, foi demitida
do emprego, sob a alegação de que demonstrava excessiva
curiosidade em relação a documentos secretos, que se
encontravam nas escrivaninhas de outras pessoas.

Não obstante essa demissão, Margarete Schmidt conseguira


obter outro emprego de secretária na base aérea norte-
americana de Tempelhof, em Berlim Ocidental. Enquanto
exercera esse cargo, mantivera contato com pessoas de
quem se fizera conhecida durante seu emprego no setor da
Inteligência. Sua prisão ocorreu porque tentara fazer grande
pressão sobre um alemão, que trabalhava para seus antigos
empregadores da Inteligência norte-americana, no sentido
de que ele lhe fornecesse segredos de contra-inteligência.

Um dos primeiros sucessos da então recém-criada agência


de contraespionagem política da Alemanha Ocidental, a Amt
für Verfassungsschutz, foi o desmantelamento de uma das
mais extensas redes em funcionamento naquela parte do
território germânico. Em 1951, um Instituto de Pesquisas
Econômicas fora instalado em Berlim Oriental e, pouco
depois, ele estabelecera uma sucursal em Francforte-sobre-
o-Meno, sob a direção de Ludwig Weiss, oficial de alta
patente do Ministério do Comércio do Setor Soviético. Ao
mesmo tempo, uma suposta empresa comercial privada
fora ali organizada, sob o título de Ost-West
Handelsgesellschaft.

Em teoria, o Instituto de Pesquisas Econômicas e seus


anexos teriam por objetivo o que sua denominação dava a
entender — organizações para explorar as possibilidades de
comércio entre as Zonas Oriental e Ocidental —, embora, de
fato, sua verdadeira função fosse a de obter informações
sobre todos os aspetos da vida na Alemanha Ocidental e,
particularmente, aspectos de sua administração,
considerados sigilosos, e referentes ao seu rearmamento.
Em outras palavras, aquele Instituto não passava de uma
simples cobertura para a realização de espionagem em
larga escala.

Ignora-se, até hoje, como foi obtida a permissão das


autoridades da Alemanha Ocidental para a instalação
dessas organizações em Francforte e Hamburgo. A real
significação desse Instituto e dos seus apêndices não
escapara, porém, à argúcia da nova agência de
contraespionagem política. Dentro de pouco tempo, a Amt
havia-se infiltrado tanto na célula de Francforte como na de
Hamburgo. Ao lado disso, um agente seu, Gotthold Kraus,
obtivera um posto no quartel-general de Berlim Oriental —
onde treinava recrutas que deveriam operar no Ocidente —,
o qual, antes de retornar a Bonn, em 1953, acumulara
suficientes provas documentais que iriam permitir aos seus
superiores desmascarar toda a rede, que funcionava sob o
falso nome de Vulkan.

Entretanto, antes que isso acontecesse, Weiss, chefe da


célula de Francforte, fora preso, em consequência do
depoimento de outro agente do Ocidente, Wilhelm
Ruschmaier, que lhe fornecera falsos documentos,
preparados pela Amt. Mas somente quando Weiss se tornara
perigoso, ao obter informações genuínas sobre segredos
militares e políticos dos aliados, julgaram que deveria ser
silenciado. Após a prisão de Weiss, a rede continuou a
operar, até que Kraus retornou de Berlim Oriental, na
primavera de 1953. Então, a agência do Ocidente atacou, e
arrebanhou os restantes trinta e cinco membros da Vulkan.

Esta foi a terceira rede que a Amt für Verfassungsschutz


desmantelara, no período de um ano. As outras duas foram:
uma polonesa e uma tcheca. A Amt era, por sua vez, a
maior rede então operando na Alemanha Ocidental.

A atividade da espionagem soviética e a dos países-satélites


ainda não desistiu de atingir seus objetivos, nem relaxou em
seus esforços. Como já dissemos, a maioria das prisões e
dos julgamentos de espiões na Alemanha Ocidental tem
sido conservada em segredo, mas existe uma prisão em
Landsberg, na Bavária, que, além de hospedar uns poucos
criminosos de guerra alemães, foi inteiramente preparada
para abrigar agentes estrangeiros. Esta prisão, segundo se
diz, já atingiu seu ponto de saturação e, em face disso, as
autoridades estão procurando outro local, que se mostre
adequado para receber o constante fluxo de espiões, ainda
colhidos pela rede da Alemanha Ocidental. 
4. A Volta de Lucy

Ao terminar a guerra, Rudolf Rössler, que, sob o nome falso


de Lucy, realizara verdadeiros milagres em favor da
espionagem soviética durante o conflito, recusou-se a
prosseguir em suas atividades clandestinas. Não desejava
trabalhar para a Rússia, nem queria auxiliar a Suíça. Os
russos o haviam recompensado generosamente, pagando-
lhe um altíssimo salário. Os suíços, por seu lado, não se
tinham mostrado parcimoniosos. Nestas condições, o acervo
da renda dessas duas fontes, ele o empregou em sua
empresa editora — Vita Nova. Essa revista entrara numa
fase de dificuldades. Extinto o nazismo, a liberdade de
imprensa tornara-se uma das características da Alemanha
Ocidental e, em face disso, não existia, realmente, mercado
para aquele gênero particular de propaganda.

Rössler, porém, prosseguia considerando Vita Nova um filho


predileto do seu espírito. Quando o Centro soube de apertos
financeiros do seu antigo agente — os quais coincidiam com
sua decisão de reviver a velha rede suíça —, fez-lhe uma
oferta, logo aceita. Rössler voltaria, mais uma vez, à
atividade, trabalhando em favor dos seus objetivos de
espionagem. Esse ex-agente, segundo parece, conservara
seus contatos do tempo da guerra — que, então, serviam ao
novo regime — e, nestas condições, não lhe fora difícil
persuadi-los a lhe fornecer, de novo, informações secretas.

Deve ser recordado que Rössler fora apresentado, em


primeiro lugar, ao serviço de Inteligência da Suíça por um
jovem jornalista — Xaver Schnieper. Schnieper, depois da
guerra, confessara abertamente suas simpatias pelo
comunismo e se tornara presidente do diretório regional de
Lucerna, do Partido Comunista Suíço. Quando, porém, a
agremiação se dividira, em 1946, em consequência de um
escândalo financeiro interno, vira-se expulso das fileiras
partidárias e aderira a algumas organizações
anticomunistas.

Schnieper, entretanto, possuía hábitos dispendiosos,


especialmente no que dizia respeito a mulheres. Além disso,
ou talvez por isso, estava sempre em dificuldades
financeiras. Assim, quando abordado por uma agência
soviética, que lhe sugeriu aliar-se a Rössler, concordou logo.

Em 1948, Schnieper se inscreveu no Partido Democrata


Social da Suíça e, logo depois, foi enviado para Bonn, como
correspondente da Imprensa Socialista Suíça. Tratava-se de
uma personalidade de grandes atrativos e, assim sendo,
não tardou que estabelecesse largo círculo de amigos e
conhecidos, todos exercendo altos cargos na administração
da Alemanha Ocidental. Como Sorge no Japão, ele podia
procurar informações sem provocar qualquer suspeita, já
que em suas funções de correspondente de um jornal. Além
disso, existia muita gente que se mostrava desejosa de
transmitir-lhe o que sabia, a título apenas de colaboração
jornalística. O que essas pessoas não compreendiam,
entretanto, é que todas as coisas importantes que lhe
contavam eram rapidamente retransmitidas para Moscou.

O terceiro membro da célula era um oficial tcheco, Coronel


Volf, integrante do quadro do pessoal de uma rede tcheca
que operava na Suíça, dirigida de Praga e orientada pelo
Centro, com o veterano espião Coronel Sedlacek — que era
o adido militar à embaixada em Berna — exercendo as
funções de Diretor-Residente. Sedlacek, velho amigo de
Schnieper, não teve qualquer dificuldade em persuadi-lo a
aderir ao seu estafe.

Os contatos alemães de Rössler encontravam-se ainda em


condições de fornecer-lhe material de alta categoria, tanto
relativo à Alemanha como à Grã-Bretanha, à França, aos
Estados Unidos e à Escandinávia, não apenas obtido no
interior da Alemanha, mas nos próprios territórios dos
outros países. Sua posição pessoal junto ao Centro era,
portanto, de elevada importância. Em face disso, recebia
uma remuneração realmente excepcional — de,
aproximadamente, quatrocentas libras mensais.

Schnieper, além de especialista em material técnico —


Rössler concentrara-se em espionagem política e em
Inteligência militar —, atuava como secretário do seu chefe
alemão e datilografava-lhe os relatórios. Quando o Centro
começou a estimular a utilização do microfilme, logo
aprendeu essa técnica, tomando providências no sentido de
que, dali por diante, as informações enviadas para Moscou
seguissem através da microfilmagem.

As comunicações se realizavam através do recurso de


colocar os microfilmes em pacotes de gêneros alimentícios
enviados a um “caixa-postal”, em Düsseldorf. O processo
era perfeitamente seguro. Naquela época, o generoso povo
suíço estava remetendo alimentos para os seus amigos
alemães, em centenas de pacotes diários.
Desgraçadamente, justamente esse método de
comunicação iria pôr termo às atividades da célula.

A célula Rössler-Volf-Schnieper trabalhou durante cinco


anos, de 1947 a dezembro de 1952. Neste último mês, um
pacote de gêneros alimentícios fora despachado para um
mítico Heinrich Schwartz, em Düsseldorf. Por motivo que se
desconhece, Schwartz não foi receber a encomenda, a qual,
após o regulamentar tempo de espera, foi, em janeiro de
1953, devolvida para a Suíça. Como não havia qualquer
indicação de quem fosse o remetente, as autoridades
abriram-no, e encontraram os microfilmes, que se achavam
escondidos em vidros de figos e de mel de abelha.
Continham relatórios sobre os aeroportos britânicos na
Alemanha Ocidental, sobre as últimas manobras do Exército
norte-americano e sobre o poderio aéreo dos Estados
Unidos na Grã-Bretanha.

A Abwehr suíça tinha poucas dúvidas em relação à origem


desse material excepcionalmente importante e, em face
disso, Rössler e Schnieper passaram a ser vigiados. Em
seguida, foram presos. Não fizeram muita cerimônia em
revelar as atividades a que se entregavam e, como não
estavam comprometidos em espionagem contra a Suíça,
receberam sentenças leves: um ano de prisão para Rössler
e nove meses para Schnieper. Ambos poderiam ter sido
deportados, mas alegaram que, se fossem mandados de
volta para a Alemanha, ali seriam processados por
espionagem. Não se mostravam desejosos, igualmente, de
buscar refúgio atrás da Cortina de Ferro. Nessas condições,
“em vista dos seus grandes serviços prestados à
Inteligência suíça, durante a guerra, e porque eram
apátridas”, só receberam o ligeiro castigo acima referido.

Rössler morreu em 1962, ainda negando que, alguma vez,


tivesse realizado qualquer serviço de espionagem. Deixou o
mundo dos vivos sem dizer quais os seus contatos alemães
e sem ao menos fazer qualquer insinuação em relação à
identidade deles.
5. França

Certamente, nenhum outro país não-comunista da Europa, e


provavelmente no mundo, ofereceu seus segredos à União
Soviética com tanta generosidade como a França, no
período que decorreu entre o fim da guerra e a ascensão de
De Gaulle. A situação política francesa era de tal ordem,
naquela época, que a espionagem soviética quase não tinha
necessidade de se empenhar em qualquer espécie de
atividade.

Numericamente, o Partido Comunista Francês sempre fora o


mais forte de todos os congêneres da Europa, com exceção
do da própria Rússia, embora o italiano houvesse, de
tempos a tempos, se aproximado dele. Durante a ocupação
alemã, não se pode negar que a Resistência Comunista na
França — embora lutando contra a falta de dinheiro e de
equipamentos e não recebendo qualquer auxílio exterior —
foi, entretanto, o mais ativo e patriótico, na significação
rudimentar da palavra, e, igualmente, o mais oportunista de
todos os grupos que se formaram para lutar contra os
nazistas. As diversas organizações isoladas que, até quase o
meio da guerra, lutaram umas contra as outras, tão
ferozmente como enfrentavam os alemães, representando
as diversas tendências políticas que florescem
particularmente bem na França, constituíam um reflexo da
situação interna do país. Embora houvessem feito uma
tentativa para dirimir suas divergências e de colaborarem
para a salvação nacional — e, até certo grau, essa união
obteve êxito —, em 1944, quando se deu a libertação, todas
as velhas inimizades mais uma vez surgiram, e a própria
existência da França, como entidade democrática, passou a
ser ameaçada.

Não fosse a ação de um ou dois dos seus líderes políticos,


mais perspicazes que os demais e temporariamente
dispostos a cooperar para um propósito e tão-somente um
propósito — evitar que o comunismo assumisse o poder —,
não há dúvida de que a França se haveria tornado a
primeira nação comunista da Europa Ocidental. De qualquer
forma, tratava-se de uma situação excessivamente
complexa.

Na confusão, em que a falta de planejamento para o futuro


afundara Paris e a França inteira, os comunistas agrediram o
povo e as instituições do país com um cínico desrespeito por
todos os direitos e privilégios individuais. Usaram os
métodos violentos dos gangsters. Lançando mão,
astuciosamente, do processo de provocar o ódio e o desejo
de vingança que a atmosfera do tempo de guerra
despertara entre as camadas politicamente mais ativas da
população, utilizaram o ambiente de cólera e de amargura,
por eles próprios criado, para tentar livrar-se dos seus mais
fortes antagonistas. Os adversários, mergulhados num
quase incompreensível caos, que a luta reciprocamente
destruidora havia provocado, não se mostravam apenas
cegos em seus ódios e inconscientes em relação ao que
estava acontecendo, mas, também, desperdiçavam a
pequena força de que dispunham para lutar, enfim, contra
qualquer um.

Por algum motivo, que por certo intrigará os historiadores


futuros, a França, foi salva do comunismo apesar de si
mesma. Um breve esboço da sua situação política, nos
primeiros dois ou três anos do pós-guerra, mostrará como
esse país esteve próximo do desastre.
No dia em que Paris foi libertada — 25 de agosto de 1944
—, proclamou-se outra vez na França uma república e, pelo
menos teoricamente, uma legislação republicana foi posta
em vigor. De Gaulle remodelou o governo provisório, que
presidira na Argélia desde 1943. A devastação, provocada
pela guerra, havendo tornado difíceis as comunicações,
comissários republicanos, investidos de plenos poderes,
foram nomeados para as regiões do interior. Como órgão de
assessoramento do governo, existia uma assembléia
consultiva, na qual todos os partidos e o Conselho Nacional
de Resistência tinham assento. Seus membros eram
nomeados pelo Comitê da Resistência. As primeiras tarefas
do governo foram as seguintes: restabelecimento das
comunicações; reorganização do abastecimento;
manutenção da ordem no país, devastado material e
psicologicamente pelos quatro anos de ocupação.

Um expurgo dos que haviam colaborado com os alemães foi


considerado a medida mais importante que devia ser levada
a efeito. Nos primeiros dias, como já demos a entender,
realizaram-se execuções sumárias de colaboracionistas.
Esses foram os dias de grande perigo para a França.
Afortunadamente, porém, a Justiça logo interveio, e os mais
notórios colaboracionistas passaram a ser julgados por
tribunais adequados. A administração, o jornalismo e o
mundo das letras e das artes passaram por um expurgo
sistemático, levado a efeito por comitês instituídos para
essa finalidade. Os colaboracionistas econômicos foram
procurados e os aproveitadores ilícitos tiveram confiscados
seus lucros. Dezenas de milhares de condenações à morte,
a trabalho forçado ou à prisão foram lavradas. Pétain e
Laval sofreram a pena máxima, e o último foi executado.
Pétain, em face de sua avançada idade, já que contava
noventa anos, teve a sentença transformada em prisão
perpétua.
Durante os anos de 1945 e 1946, a França permaneceu sob
governos provisórios. A opinião pública, em seu íntimo,
aspirava a que o país pudesse ser dotado de uma
Constituição capaz de impedir que a degradação política do
período de antes da guerra fosse repetida. No dia 21 de
outubro de 1945, uma Assembléia Constituinte foi eleita.
Sua principal finalidade era justamente a elaboração de
uma Constituição. O Partido Comunista obteve 150 lugares;
os Socialistas, 139; e um novo partido católico e
democrático, o Movimento Republicano Popular (MRP), 149
assentos; enquanto os Radicais só obtiveram 25.

A Constituição, que essa Assembléia elaborou, foi rejeitada


no dia 5 de maio de 1946, e se elegeu uma nova
Assembléia Constituinte. Uma vez mais, os comunistas
constituíam a mais numerosa agremiação partidária isolada,
seguida de perto pelo MRP. A Constituição elaborada então
teve aprovação de uma fraca maioria, no dia 13 de outubro
daquele mesmo ano.

De Gaulle, em choque com a Assembléia Constituinte, tanto


em relação à elaboração da Carta Magna como no que dizia
respeito à política externa, renunciou, no dia 21 de janeiro
de 1946, à chefia do Governo Provisório. Substituiu-o Gouin,
presidente da Assembléia e membro do Partido Socialista.
Gouin apoiou a Constituição, que um plebiscito rejeitou, e
resignou após a eleição da segunda Assembléia
Constituinte.

O sucessor de Gouin foi George Bidault, líder do MRP, que


assumiu o poder no dia 23 de junho. Este também pouco
depois renunciava, de acordo com a praxe, quando a nova
administração nacional iniciou suas funções, no dia 10 de
novembro. Tornou-se difícil, então, a constituição de um
Ministério. Nem o MRP nem os Socialistas queriam colaborar
com o mais forte partido na Assembléia, o Comunista.
Finalmente, a fim de aguardar a eleição de um novo
presidente da República, o veterano socialista Léon Blum
formou um Ministério puramente socialista, com duração
limitada a seis semanas. Não obstante seu curto período de
existência, esse governo imprimiu vigorosa orientação à
política francesa. Reprimiu a tendência para uma
generalizada elevação dos preços e iniciou negociações
para um tratado de aliança com a Grã-Bretanha. No dia 16
de janeiro de 1947, o primeiro presidente da Quarta
República, Vincent Auriol, foi eleito.

Seguindo a praxe, Blum resignou, e Ramadier tornou-se


primeiro-ministro. Seu governo — constituindo, a princípio,
uma coalizão de socialistas, comunistas e elementos do
MRP, da qual os comunistas mais tarde se retiraram —
seguiu a linha dos que o antecederam, no sentido de
promover a estabilização econômica e a reconstrução da
França. Por volta da primavera de 1946, consideráveis
progressos haviam sido feitos. Entretanto, isso não impediu
que, durante os seguintes doze anos, a situação política do
país tivesse de enfrentar, continuamente, grandes
dificuldades. A guerra da Argélia irrompera e tornara a
situação ainda mais perigosamente instável, o que obrigou,
por fim, à convocação de De Gaulle, que, deixando seu
retiro, assumiu o Governo para salvar a nação.

Como a mais forte agremiação partidária isolada, existente


no país, o Partido Comunista, nos quatro primeiro anos do
pós-guerra pelo menos, não poderia deixar de ter posições
de relevo na administração. Em várias ocasiões, líderes
comunistas foram ministros da Guerra e da Aeronáutica,
enquanto outros, como Paul Marcel e Auguste Lecoeur,
controlavam importantíssimos setores da administração,
como, por exemplo, a produção industrial, enquanto o
veterano Thorez ocupou por algum tempo, no outono de
1945, o cargo de vice-primeiro-ministro.
Além dos comunistas que ocupavam elevadas posições,
muitos outros políticos da mesma filiação ideológica
infiltravam- se em numerosos cargos, embora sem grande
relevo, mas que constituíam peças vitais da administração.
Entre as primeiras missões diplomáticas junto à Quarta
República, a russa tomou a dianteira, logo se estabelecendo
em Paris. Chegou com um pessoal enorme, o que só poderia
significar uma coisa: que a espionagem soviética tinha a
intenção de lançar um assalto global aos segredos
franceses. Algumas das suas atividades e certas operações
já planejadas tornaram-se desnecessárias durante os
primeiros três anos. E isto por que a infiltração legal, que os
comunistas haviam levado a efeito em pontos-chaves da
administração, dera-lhes acesso a todos os segredos da
França e, também, a muitos da Grã-Bretanha e dos Estados
Unidos.

Poder-se-ia dizer com justiça que, durante o primeiro


período do pós-guerra, as atividades dos chefes da
espionagem soviética, na França, estiveram divididas em
duas principais categorias: recebiam informações passadas
por seus agentes, infiltrados na administração, e, por outro
lado, faziam a limpeza de sua casa no Ocidente, desfazendo
imundas embrulhadas, como, por exemplo, a deixada pela
rede suíça de Alexander Rado, e concluindo alguns negócios
inacabados, como, por exemplo, o da obtenção da
liberdade, a ser decretada pela Justiça francesa, de
Waldemar Ozols, que fora assistente do “Pequeno Chefe”
Sukulov.

Há a ressaltar, entretanto, que o Centro, naquele período,


dava a impressão de trabalhar baseado na presunção de
que a predominância dos comunistas nos negócios da
França não devia durar, e aquela fase de facilidades poderia
ser utilizada para o lançamento dos alicerces de uma
organização que surgiria, quando chegasse a oportunidade.
Uma das mais expressivas atividades desse tempo foi a
ressurreição dos Correspondentes Trabalhadores (Rabcor)
que haviam agido tão bem nas décadas dos vinte e dos
trinta. Verificou-se, igualmente, o retorno à cena de algumas
figuras veteranas dos primeiros tempos do comunismo,
como Jean Cremet e seu velho assistente Pierre Provost,
enquanto Octave Rabaté, editor de L’Humanité, na época do
escândalo de Cremet em 1928, assentava-se, outra vez, em
sua mesa na direção do jornal. No período de cinco anos,
não menos de 650 Rabcors operaram em Paris, com outros
200 espalhados por todo o território da França. Iriam
fornecer outra vez à espionagem soviética um suprimento
de informações aparentemente infindável.

Quando os comunistas deixaram o governo, em 1947,


procuraram manter o acesso, de que desde muito
dispunham, aos segredos nacionais franceses. Muitos deles,
ocupando cargos mais modestos, conservaram-se em
posição de poder conseguir, com facilidade, importante
material de Inteligência. Independentemente dos
comunistas, porém, colaboravam, nessa obra de subversão
clandestina, numerosos simpatizantes. A experiência dos
anos de guerra tinha, de fato, determinado profundas
mudanças nas atitudes de muitas pessoas e,
particularmente, dos direitistas que passaram para o lado
oposto. Se não declaravam abertamente sua nova
orientação, filiando-se ao Partido Comunista — como muitos
fizeram —, a nova fidelidade, que deixavam transparecer,
era de integral simpatia pelos objetivos da extrema-
esquerda.

Tomemos, por exemplo, o caso de Pierre Cot. Sua mudança


de sentimento começara a se dar antes da guerra. Cot havia
sido secretário de Poincaré, um dos mais brilhantes
estadistas que a direita da França produzira. Durante a
Guerra Civil espanhola, tornara-se ministro da Aeronáutica
e, mesmo nessa época, fora acusado de entregar segredos
militares franceses a Moscou. Depois da Libertação, tornara-
se outra vez ministro da Aeronáutica, e sua utilidade para
Moscou, durante esse período, poderá ser aferida pelo fato
de, em 1953, ter sido agraciado com o Prêmio Stalin.

Há também o caso de André Blumel, considerado


geralmente não um direitista, mas intimamente associado
aos socialistas, que se opunham tanto ao comunismo como
o faziam os democratas direitistas e os católicos. Fora
secretário de Blum e, então, se tornara chefe do Gabinete
de Adrien Tixier, ministro do Interior, posto em que passara
a ter acesso à maioria dos segredos governamentais. Só em
1948 foi publicamente reconhecido como um simpatizante
comunista.

As atividades dos comunistas franceses eram bem


conhecidas dos políticos e dos estadistas da França, e não
tardou que todos compreendessem que alguma coisa
deveria ser feita no sentido de reprimi-las. O dilema era o
seguinte: agir, ou pelo menos dar a impressão de que se
agia, pois, mesmo quando a decisão foi tomada, verificou-se
grande relutância, por parte das autoridades, em se fazer
qualquer coisa que pudesse parecer provocação à Rússia.
Mesmo quando a contraespionagem apresentou irrefutável
prova de que certos indivíduos vinham entregando segredos
franceses aos soviéticos, ordens lhe foram dadas para não
tomar outras providências além das relacionadas com a
conservação desses suspeitos sob vigilância. Isto,
naturalmente, muito convinha às redes soviéticas.

A primeira iniciativa, de efeito positivo, tomada contra os


espiões da Rússia ocorreu em 1951. Entretanto, mesmo
nessa ocasião, procuraram-se evitar os casos pessoais. A
União Soviética julgava que a França constituía um local
privilegiado para a instalação das novas organizações
instituídas depois da guerra, como disfarces para a
propaganda e para a espionagem comunistas. Nessas
condições, situara o quartel-general dessas organizações,
supostamente internacionais, como a Federação Mundial da
juventude Democrática, sua congênere, a Federação
Mundial das Mulheres Democráticas, e a altamente
importante Federação Mundial dos Sindicatos, em Paris.
Desses locais, a União Soviética fazia irradiar sua vigorosa
propaganda e suas atividades clandestinas de espionagem,
através de tentáculos que abrangiam toda a Europa
Ocidental. A França, entretanto, sob disfarçada pressão de
seus aliados, expulsou essas três organizações do seu
território.

Um bom exemplo do que aconteceu na França, e através do


qual a contraespionagem pôde exibir provas indiscutíveis da
traição de que o país estava sendo vítima, foi o caso em que
se viram envolvidos os jornais France d’Abord e Regards,
ambos dirigidos por comunistas e especializados em
assuntos militares. Em 1949, tornou-se evidente que
alguém fornecia segredos militares a esses magazines. O
fato tomou-se tão óbvio que providências tiveram de ser
tomadas. Quando, porém, o governo deu instruções às
autoridades da contraespionagem para que agissem, estas
logo prenderam algumas pessoas, contra as quais desde
algum tempo vinham acumulando provas. O escândalo
revelava-se tão grave que o relatório das autoridades de
segurança fora endereçado diretamente ao Gabinete. Nesse
documento, estava consignado, entre outras coisas, que um
professor da escola de aviadores, em Paul — o Capitão René
Azema — entregara ao France d'Abord documentos secretos
relativos à força e ao equipamento de uma divisão aérea.

As prisões dos editores do France d’Ahord e do Regards,


Yves Moreau e Jacques Friedland respectivamente, e de
algumas outras pessoas, foram imediatamente ordenadas.
As investigações e a formação do processo, porém,
arrastaram-se por dois anos. Finalmente, em janeiro de
1951, quando a atenção pública já não estava mais
interessada no caso, os réus foram julgados, sendo todos
absolvidos.

O estabelecimento do quartel-general da OTAN na França


constituiu novo objetivo para a espionagem soviética.
Nessas condições, as autoridades francesas se viram
obrigadas a desenvolver uma ação de vigilância bem mais
vigorosa. Em 1952, descobriram-se duas redes, em Lyon e
Paris. O desmascaramento dessas organizações forneceu
um acervo de informações sobre os métodos de trabalho
dos soviéticos quanto o caso Gouzenko, no Canadá. De
acordo com os documentos apreendidos, tornou-se bem
claro que praticamente todos os segredos militares da
França já se encontravam em poder do Kremlin, enquanto
quase todas as instalações da OTAN, em território francês,
haviam sido desenhadas num mapa, achado em poder de
um agente soviético. Contudo, outra rede fora descoberta
na base naval de Toulon — a nova frota francesa era um
alvo prioritário para a espionagem russa, particularmente a
frota de submarinos —, que dispunha, entre seus
integrantes, não só de autoridades policiais, mas até
mesmo de alguns oficiais da segurança naval, da própria
França.

Essas revelações causaram impacto na opinião pública do


país, e as autoridades começaram a apertar sua vigilância e
a agir, com maior dureza, em relação aos agentes
capturados. Em 1954, porém, apesar dessas providências,
explodiu no cenário das atividades políticas da França uma
cause célebre que chocou tanto os aliados da França quanto
o próprio povo francês. Em outubro daquele ano, dois altos
oficiais do Comitê da Defesa Nacional — René Turpin, e
Roger Labrusse — foram presos sob a acusação de traição,
apontados como tendo fornecido documentos militares
secretos a um agente comunista, André Baranés. Esse fato,
em si, já era suficientemente deplorável, mas, logo após a
prisão desses dois oficiais, o chefe deles, o secretário-geral
do Comitê de Defesa, Jean Mons, foi igualmente detido sob
a acusação de haver “causado prejuízo à segurança do
Estado”. Também se achava implicado no caso um inspetor
de polícia, Jean Dides, que agia como intermediário entre
Baranés e Jacques Duelos, presidente do Politburo do
Partido Comunista francês. Nessa ocasião, a França estava
empenhada em sua guerra na Indochina, e os documentos
apreendidos tratavam, quase todos, da estratégia francesa
naquele país, contendo também informações altamente
secretas sobre a política da OTAN.

Os franceses tiveram de enfrentar, por outro lado, a


espionagem de várias nações-satélites da Rússia,
particularmente a da Polônia e a da Tchecoslováquia. A
reação dos governos franceses ao desmascaramento da
espionagem dos países-satélites foi de alguma forma
diferente da manifestada em relação à espionagem
soviética. Diversos casos vieram à luz entre 1948 e 1950, e
alguns diplomatas poloneses e tchecos foram detidos e
expulsos. Essa atitude provocou medidas de represália por
parte da Tchecoslováquia e da Polônia e teve lugar, então,
uma espécie de “toma lá, dá cá”, que poderia ser divertido
para os espectadores, se não fossem tão graves, para o
Ocidente, os objetivos dessas atividades clandestinas.

Embora o Partido Comunista Francês tenha perdido muito


terreno nos últimos anos, é certo que a espionagem
soviética não afrouxou sua atividade na França, que
constitui ainda excelente campo de caça, em relação aos
segredos da OTAN. Uma indicação disso foi a prisão de um
oficial francês, de alta patente, adido ao quartel-general da
OTAN, o qual admitiu que, durante alguns anos, mantivera
estreito contato com agentes soviéticos. Desde a ascensão
de De Gaulle, entretanto, verificou-se grande
endurecimento na linha de ação da segurança francesa,
mas, se o passado é algo que se esquece, essa certeza tem
sido considerada, pelo Centro, como um estímulo para
atividade ainda maior.
6. Em Outras Nações

A situação na Itália não era muito diferente da da França.


Nas primeiras eleições gerais realizadas após a Libertação,
um sistema de representação proporcional deu aos
democratas cristãos 207 cadeiras, aos socialistas 115 e aos
comunistas 104. Os dois últimos partidos, portanto,
asseguraram, juntos, maioria contra os democratas cristãos.
Nenhuma das agremiações políticas, entretanto, dispunha
isoladamente de maioria segura. Em face dessa
fragmentação partidária, o governo teria forçosamente de
se formar através de uma coalizão, com os comunistas
ocupando postos que lhes permitissem ter acesso àqueles
segredos que os italianos certamente não desejariam
fossem conhecidos em Moscou. Para o governo soviético,
entretanto, a Itália não exercia a mesma atração que a
França. Em vista disso, a atividade de sua espionagem
nesse território não se mostrou muito intensa. Mesmo
assim, ocorreram ali alguns casos, cuja gravidade
demonstrou que o Centro estava ativo na península, com
células instaladas nas repartições governamentais, nas
unidades militares, e em muitas fábricas e em cada
sindicato. Um desses casos, em particular, revelou que o
Centro levara sua infiltração até mesmo ao interior do
Vaticano. Em 1952, tornou-se público que um professor da
Academia Gregoriana, padre Aligheri Tondi, era, na
realidade, agente soviético. Constitui mistério indecifrável a
razão por que o religioso tomou essa atitude, já que, como é
sabido, o catolicismo romano e o comunismo se odeiam e se
consideram, reciprocamente, inimigos irreconciliáveis.
Na Europa, depois da Alemanha Ocidental e da França, o
país que maior atenção mereceu dos soviéticos foi a Suécia.
Entre 1951 e 1953, uma série de julgamentos de casos de
espionagem, realizados em Estocolmo, deu uma idéia da
extensão da espionagem russa naquele país, considerado
pelo governo de Moscou como seu mais sinistro inimigo no
Báltico. Cinco redes separadas, pelo menos, foram
identificadas ali e, segundo o comandante-chefe da
Esquadra sueca, vinham operando, sem ser suspeitadas e,
portanto, sem ser incomodadas, desde 1941. Em
consequência dessa atividade, todos os segredos da defesa
nacional sueca eram, sem dúvida, do conhecimento do
Centro.

O caso que tornou público esse seríssimo estado de coisas


foi o relacionado com um oficial da Marinha, Ernst Anderson.
No princípio de setembro de 1951, esse oficial solicitou —
lhe foram concedidos — cinco dias de férias, a fim de poder
tratar de assunto de natureza privada. Entretanto, ao invés
de seguir para a sua casa, ele viajou para Karlskrona, a
principal base naval da Suécia, e, quando suas férias
terminaram, regressou a Estocolmo.

No dia 20 de setembro, indo a uma sorveteria, Anderson


apanhou uma bicicleta, deixada do lado de fora do edifício,
e pedalou até um hospital, onde a deixou encostada à
entrada do saguão. Entretanto, sem que o soubesse, seus
movimentos em Karlskrona haviam despertado suspeitas na
contraespionagem naval, cujos agentes o seguiram. Quando
deixara a bicicleta no hospital, os agentes a examinaram e
descobriram, na bolsa de ferramentas, alguns documentos
que continham descrição pormenorizada do equipamento
de um dos mais modernos navios de guerra da Suécia.

Os agentes apossaram-se dos documentos e aguardaram


nas imediações, a fim de ver quem apanharia a bicicleta. A
pessoa que o fez confirmou integralmente as suspeitas da
contraespionagem. Tratava-se de Nicolai Orlov, funcionário
da Embaixada soviética.

Quando Anderson foi preso e levado a julgamento, tornou-


se sabido que trabalhava para o Centro desde 1946, quando
fora recrutado por um comunista sueco, e que a rede à qual
pertencia era controlada pelo diretor da Agência Tass, Victor
Asissimov. Anderson fora um dos mais perigosos agentes
que operavam na Suécia. Enquanto integrara a rede
soviética, passara para o Centro numerosos detalhes do
sistema de defesa do país contra qualquer invasão,
informações sobre a fortaleza de Boden e todos os possíveis
pontos de desembarque na costa, nos quais as autoridades
militares e navais julgavam que os russos poderiam tentar
uma investida, assim como a disposição da Esquadra sueca.

Em julho de 1952, como resultado de um intenso esforço de


contraespionagem, que se seguiu ao caso Anderson, nove
outros agentes soviéticos foram presos. Pertenciam a uma
rede dirigida por um porteiro da redação do jornal
comunista Ny Dag, Arthur Karlsson. Entre esses nove,
destacava-se Fritjof Enbom, antigo oficial do Exército sueco
e então jornalista. Desde 1941 que Enbom vinha operando,
e o objetivo da sua espionagem era fornecer informações
sobre as organizações industriais e sobre os depósitos de
minério de ferro do país. Recebera, também, missões para
organizar uma espécie de Quinta-Coluna. Essa organização
deveria estabelecer um estado de confusão interna, na
eventualidade de uma invasão russa, atacando as defesas,
fazendo ir pelos ares estradas de ferro e operando um
radiotransmissor secreto que difundiria notícias falsas.

Enquanto Enbom e seus oito colegas estavam sendo


julgados, não menos de vinte e dois membros da Delegação
Comercial Russa e quatro funcionários da Embaixada
deixaram precipitadamente a Suécia, voltando para Moscou.
Com eles, seguiram igualmente Gustav Gohansson, editor
do Ny Dag, e o destacado comunista sueco Seth Persson.

Desde essa época, ocorreram prisões e julgamentos de


agentes soviéticos em Estocolmo. O caso mais recente e
que envolveu um oficial do Exército sueco, de elevada
patente, talvez tenha sido o mais grave de todos. No
momento em que escrevemos este livro, a causa está sub
judice, e nenhuma revelação específica ainda se deu.
Entretanto, os interrogatórios preliminares tornaram claro
que os suecos ainda não se acham preparados para
proteger seus segredos contra as investidas do Centro.

A atividade da espionagem soviética na Noruega parece ter


sido em escala ainda menor do que a que vem sendo
realizada na Suécia, levando-se em conta os êxitos obtidos
pela contraespionagem do país, que é altamente
experimentada. Os russos, mesmo assim, contribuíram com
um ou dois casos de destaque. Num deles, um oficial do
Exército norueguês, Earling Nordby, foi condenado a três
anos de prisão, enquanto um antigo chefe da Resistência,
Asbjoern Sunde, que havia sido preso em 1953, teve uma
sentença de oito anos. Era tão grande a importância desse
agente para o Centro que os russos forneceram dinheiro
para a defesa — atitude de prodigalidade pouco comum.

A Finlândia, igualmente, não se conservou imune à


espionagem soviética. Dois relevantes casos, ocorridos em
1954, o demonstraram. Os réus eram pastores de renas na
Lapônia e pescadores que tinham vendido segredos da
defesa litorânea e das fronteiras à Rússia.

Raro é o país, integrante da Aliança Ocidental, que não tem


feito realizar esses inquietadores julgamentos por
espionagem. Na Grécia, em 1952, uma larga rede de trinta
e dois agentes foi desmantelada, ficando demonstrada,
então, a grande eficiência com que o Centro organizara ali
suas operações. A rede, dirigida por Nicholas Beloyannis,
estava equipada com dois radiotransmissores e fornecia
informações sobre as instalações norte-americanas, tanto
nas ilhas gregas como nas costas da Turquia. Dois outros
julgamentos, desarticulando duas outras redes, seguiram-se
ao de Beloyannis, mas as autoridades da contraespionagem
grega não se mostram seguras sobre se conseguiram
exterminar toda a atividade de espionagem em seu país.

Por essa mesma época, uma grande rede fora descoberta


na Holanda e na Bélgica. De fato, para onde quer que se
olhe — seja para o Oriente Próximo, para o Extremo Oriente,
para o Oriente Médio, para os agitados países da Ásia, para
as nações do Pacífico e, sobretudo, para a América do Sul
—, a partir de 1952 verificaram-se, em todos os países,
julgamentos periódicos relacionados com espionagem.

A escala em que o Centro opera é responsável, até certo


grau, pelo seu indubitável sucesso. Em toda parte, têm-se
verificado graves erros, cometidos pelas agências de
contraespionagem. Mesmo assim, a tarefa que elas têm
realizado não deixa de ser formidável. Quando um imenso
exército de espiões assola um país, os resultados iniciais
podem ser idênticos aos conseguidos pelo rolo compressor
russo nos campos de batalha da Europa Oriental. Somente
uma vigilância inteligente e incessante impediria que uma
nação pudesse ser inundada pelas hordas dos espiões do
Centro. Embora essa realidade já tenha sido apreendida
pelas agências de contraespionagem, o fato é que o homem
da rua ainda não compreendeu inteiramente a situação,
nem descobriu que lhe cabe desempenhar, também, um
papel definitivo nessa luta para conservar secretos os
segredos de sua pátria, o que, em última análise, constitui
um dever tão patriótico quanto o de vestir um uniforme, no
momento em que a luta se inicia.
Oitava Parte
AS ÚLTIMAS CAUSES
CÉLEBRES
1. O Coronel Abel

A atividade da espionagem soviética na Grã-Bretanha e nos


Estados Unidos, desde a guerra, vem-se revelando muito
menos difusa em esforço. Além disso, embora realizada por
agentes de primeira categoria, algumas de suas redes têm
acusado elos fracos, o que, consequentemente, vem
ocasionando frequentes desastres. Não obstante tais
deficiências, essa espionagem já conseguiu desvendar
segredos aliados da mais alta importância e, como
exemplos dessa infiltração, podemos citar um relevante
caso, ocorrido nos Estados Unidos, e três outros, de não
menor relevo, verificados na Grã-Bretanha.

Os principais objetivos da espionagem soviética no campo


militar têm sido: invenções de dispositivos de detectação
submarina, armamentos nucleares e técnicas de fabricação
de foguetes. Isto não quer dizer, porém, que seus agentes
venham-se descurando do que ocorre no campo político ou
em outro setor, desde que revele qualquer importância
estratégica. Muitos erros têm sido cometidos pelas agências
de contraespionagem em ambos os lados do Atlântico.
Quando, porém, um ás da espionagem é colhido numa
armadilha, a organização soviética necessita sempre de
algum tempo para se recuperar do golpe, caso o terreno
perdido deva ser, de fato, reconquistado.

Durante algum tempo, em meados de 1950, o FBI e outras


agências de contraespionagem dos Estados Unidos tiveram
conhecimento de que muitos segredos norte-americanos, da
mais alta importância, estavam sendo transmitidos para
Moscou. Essa informação constituía uma indicação de que
redes soviéticas operavam particularmente nas regiões
orientais dos Estados Unidos. Como, porém, as buscas,
levadas a efeito com a maior técnica, não revelaram o
rastro de qualquer agente secreto, que pudesse ser
responsável pela transmissão de informações sobre
foguetes, detecção submarina e armas nucleares, a
conclusão a que se chegou era de que a qualidade do
trabalho que estava sendo realizado era de uma espécie
nunca antes enfrentada pelas agências de
contraespionagem. Entretanto, em 1957, uma oportunidade
se abriu para o FBI. Esse golpe de sorte não foi devido a
qualquer iniciativa de seus agentes. Resultou tão-somente
da deserção de um espião soviético. Constitui um enigma
até hoje o que os espiões-chefes da União Soviética
realmente tinham em mente ao selecionar seus agentes
para esse trabalho.

Rudolf Ivanovich Abel fora agente secreto por muitos anos.


Possuía um instinto admirável do valor da segurança e,
embora houvesse servido com distinção na Alemanha e em
outros países, antes da guerra, nunca atraíra a atenção de
qualquer das agências de contraespionagem. Este fato foi
devidamente levado em conta, por ocasião de sua escolha
para operar nos Estados Unidos

Durante a guerra, esse agente fora retirado do trabalho


clandestino e servira com tão grande eficiência no Exército
que recebera altas condecorações. A coragem e a
habilidade que revelara no campo de batalha, assim como
sua alta reputação como agente, antes da guerra,
contribuíram para que o Centro considerasse esses
antecedentes como uma indicação de que sua lealdade
estaria acima de qualquer dúvida. E o fato de ser leal
representou, por sua vez, uma qualificação a mais — talvez
a mais alta qualificação —, quando passou a ser
considerado para exercer as importantes funções de Diretor-
Residente de uma rede que deveria ter por objetivo a
obtenção dos mais importantes segredos militares dos
Estados Unidos.

Assim, em 1946, Abel recebeu instruções para se transferir


para os Estados Unidos. Tinha, então, quarenta e poucos
anos de idade, sendo casado e pai de dois filhos, aos quais
era devotado. Sua dedicação ao trabalho era tão profunda,
porém, que nunca hesitou, um momento, em abandonar a
família, talvez por muitos anos, quando tinha uma tarefa
importante para realizar. A circunstância de que dispunha
de reféns tornou sua colaboração naturalmente muito mais
preciosa para o Centro do que se ele fosse um homem
solteiro.

O Coronel Abel não deveria ter a mais leve conexão com a


Embaixada soviética ou com os consulados nos Estados
Unidos, nem com qualquer outra agência clandestina que
estivesse operando em território norte-americano. Em face
disso, deveria descobrir seu próprio caminho. Planejou tudo,
pois, com grande eficiência, sozinho, já que a única
assistência que lhe deu o Centro foram alguns documentos
falsos, que o identificavam como sendo um deslocado de
guerra, de descendência germano-irlandesa.

Como os regulamentos canadenses para a entrada de


pessoas deslocadas no país eram menos estritos que os
norte- americanos, Abel solicitou ao governo de Ottawa um
visto de entrada e foi atendido. Dessa forma, em 1947
chegou ao Canadá e ali permaneceu até o ano seguinte,
quando cruzou a fronteira para a América, ilegalmente.
Durante quase todo o ano de 1948, trabalhou procurando
estabelecer sua rede.
Os agentes que iriam trabalhar sob suas ordens já tinham
sido escolhidos pelo Centro e se encontravam in situ.
Agindo através de “isoladores” somente, elaborou
instruções para a transmissão de informações,
especificando o número de “caixas-postais”. Estabeleceu-
se, enfim, para dirigir sua rede, desconhecido de todos, com
exceção do seu “isolador”.

Como disfarce, o Coronel Abel tomou o nome de Emil


Goldfus, e a profissão era a de artista. Embora não sendo
um pintor de talento, podia pintar suas telas e sabia o
suficiente a respeito de arte para reunir, ao seu redor, um
bando de artistas boêmios e de amigos. Sendo artista, podia
desaparecer quando lhe desse na veneta, viver
irregularmente e comprazer-se num comportamento
inconvencional, sem provocar comentários. Em seu estúdio
de Erlington, em Nova York, que era uma confusão de telas
e de bugigangas, revelava-se um generoso anfitrião.

Se Abel não era pintor, não deixava de ser artista em outro


campo. Tocava guitarra com tal habilidade que, em
circunstâncias diferentes poderia viver de sua música. Era,
também, um matemático quase genial. Seu código para
irradiações para Moscou, ele o inventara, utilizando como
base o cálculo diferencial.

Gostava de ter companhias — exceto quando saía em


expedições solitárias, a fim de coletar informações das suas
diversas “caixas-postais” — e, por isso, estava sempre
cercado por um ruidoso grupo de amigos. Apenas em
determinados dias da semana, às dez horas da noite, pedia
desculpas e retornava, sozinho, ao estúdio. Ali descobria o
poderoso radiotransmissor, que o punha em contato direto
com Moscou e, debaixo das bugigangas e durante a próxima
meia hora, estaria absorvido, operando, em grande
velocidade, no seu Morse.
Assim, tudo corria bem — melhor, mesmo, do que
provavelmente o Centro houvesse alguma vez esperado. Em
face do grande volume de informações que sua rede
transmitia, Abel Goldfus solicitou então a Moscou que lhe
fosse dada a assistência de um Diretor-Residente substituto.
Desde que coube ao Centro a responsabilidade pela escolha
desse substituto, deve recair sobre ele toda a culpa pelo
desmantelamento da rede, alguns anos mais tarde.

O substituto que o Centro escolhera foi Reino Hayhanen.


Embora seu nome fosse finlandês, ele, de fato, nascera em
território soviético, mas bem junto da fronteira com a
Finlândia. Iniciou a vida como professor, atraiu a atenção da
divisão de recrutamento e foi alistado no NKVD, durante a
guerra fino-russa de 1939.

Entregou-se ao trabalho com afinco e, por volta de 1943,


passou a ser considerado, pelo Centro, um técnico em
assuntos de Inteligência finlandesa e, desse ano até ser
chamado a Moscou, em 1950, esteve em grande atividade
na Finlândia, localizando elementos antissoviéticos entre a
população local.

Ao chegar a Moscou, Hayhanen fora informado de que outra


tarefa estava à sua espera. Treinaram-no em códigos e em
fotografia e lhe deram a identidade de Eugene Nicolai Maki,
sendo então enviado para a Finlândia, a fim de estabelecer
o background da sua nova personalidade. É interessante
notar a escolha desse nome falso, pois iremos surpreender
a utilização da mesma técnica, mais tarde, em outro caso.
Os Maki eram uma família finlandesa que tinha vivido em
Enaville, Idaho — a mãe, americana; e o pai, finlandês — e
voltara para a Europa na década dos vinte, estabelecendo-
se na Estônia, quando Eugene tinha cerca de oito anos de
idade. O que aconteceu com os Maki, quando a Estônia se
tornou uma república soviética, ninguém pode dizer, mas
será seguramente justo admitir que não se encontravam em
situação de comprometer o novo Eugene.

Hayhanen seguiu depois para Turku, um porto da costa


finlandesa, onde trabalhou como bombeiro. Embora tivesse
uma esposa na Rússia, ali se casou com uma moça
finlandesa, Hanna Kurikka. Em 1951, compareceu à
Embaixada norte-americana em Helsinque e, apresentando
uma certidão de nascimento, que provava ser natural de
Enaville, no Estado de Idaho, solicitou um visto de retorno
para os Estados Unidos. Alguns meses mais tarde, obteve o
respectivo passaporte e, nessas condições, seguiu em 1952
para Nova York, viajando no Queen Mary, que partira de
Southampton. Sua “esposa” finlandesa o acompanhou, mas
viajando só alguns meses mais tarde.

Em 1954, Hayhanen Maki conheceu seu chefe, Abel Goldfus,


e este último teve um choque ao encontrá-lo. O Diretor-
Residente, que era cônscio da necessidade de uma
obediência cega às normas de segurança, descobriu, com
espanto, que seu assistente não somente esquecera a
maior parte do seu treinamento em código, mas que,
também, suas idéias em relação à segurança eram, na
verdade, rudimentares. Parecia mesmo que não as tinha de
todo — o que constituía um perigo, tanto para ele próprio
quanto para toda a rede.

Nas circunstâncias em que se viu colocado, Abel entretanto,


tentou fazer o que lhe era possível. Instalou Hayhanen
numa loja e deu-lhe instruções sobre como devia operar.
Nunca, porém, deixara de se mostrar apreensivo em relação
à segurança da rede.

Por volta de 1955, completavam-se seis anos que Abel


vinha trabalhando ininterruptamente e sob considerável
pressão, e, nessas condições, o Centro lhe deu instruções
para que regressasse a Moscou, em férias por seis meses —
o que ele penhoradamente aceitou, embora com
considerável temor.

Quando retornou, em princípios de 1956, descobriu, com


espanto, que Hayhanen tinha cometido todos os crimes que
a um espião é dado cometer. Operara o transmissor sempre
do mesmo lugar, ao invés de procurar novos locais nos
subúrbios; não se incomodara em recolher as informações
dos "caixas-postais” e fechara a loja, embora ainda
continuando a ser o locatário do estabelecimento. Tudo isso
lhe pareceu demais, e Abel queixou-se a Moscou.

A engrenagem do Centro, porém, girava com a tradicional


lentidão dos moinhos de milho, e não foi senão depois de
alguns meses que Hayhanen recebeu ordens para regressar
a Moscou. Numa tentativa de dissipar no cérebro do agente
qualquer suspeita sobre os reais motivos de sua volta, o
Centro promovera-o a major e, quando desembarcou no
Havre, mandou entregar-lhe 300 dólares para suas
despesas de viagem. Hayhanen, contudo, não se deixara
iludir. Já que se encontrava em solo europeu, resolveu não
retornar a Moscou. Nessas condições, seguiu diretamente
para Paris, e ali procurou as autoridades norte-americanas,
às quais solicitou asilo, em troca de informações que
poderia dar sobre a rede de Abel.

Antes de aceitar a proposta, o FBI examinou


cuidadosamente as informações que Hayhanen adiantara e,
em seguida, submeteu-o a exame, por um psiquiatra. Este
último achou-o instável e disse que se tratava de um
alcoólatra. Não obstante esse diagnóstico, logo se constatou
que não procurava fazer qualquer jogo com as autoridades.
No que dizia respeito à extensão que a rede já atingira,
nada poderia dizer, mas identificou um sargento do Exército
norte-americano que trabalhara na Embaixada dos Estados
Unidos em Moscou e fora recrutado pelo serviço de
espionagem soviética. Esse sargento, segundo afirmou,
vinha fornecendo importantes informações aos russos,
desde que regressara aos Estados Unidos. O denunciado foi
detido e, consequentemente, condenado a cinco anos de
prisão com trabalhos forçados. O sargento, entretanto, nada
pôde dizer sobre os demais membros da rede. Referiu-se
apenas a alguns “caixas-postais” de que se utilizara e
identificou Hayhanen como o intermediário com o qual às
vezes se encontrara.

Em todo esse incidente com Hayhanen, o coronel Abel havia


observado as mais estritas precauções de segurança,
exceto numa única ocasião. Por algum motivo, tivera de
examinar certo material que Hayhanen lhe trouxera, e o fez
na presença do seu substituto, de forma que ele pudesse
responder às perguntas que lhe fizesse. Assim, Abel o levou
a um armazém que alugara, distante do seu estúdio, onde
guardava seu material fotográfico.

Hayhanen recordou então esse encontro, mas, como não


sabia o nome falso do seu superior, pôde somente dizer ao
FBI que esse armazém estava situado perto das Ruas Clark
e Fulton, em Brooklyn. Uma busca geral foi dada naquela
região e revelou que existia, de fato, o armazém e fora
alugado por um indivíduo de nome Emil Goldfus. Abel, ao
assinar o contrato de aluguel, dera o endereço do seu
estúdio. Esse lapso foi o único em que incidiu o agente
soviético, que sempre agia com a maior segurança. Deveria
ter alugado o armazém em outro nome e dado um endereço
falso. Quando os agentes do FBI compareceram ao estúdio,
descobriram que Emil Goldfus se achava fora da cidade, por
alguns meses.

Não tendo Hayhanen chegado a Moscou na data


combinada, o Centro compreendeu, imediatamente, o que
acontecera, e Abel foi avisado. Instruções lhe foram
enviadas também para deixar Nova York e ficar escondido, a
fim de aguardar o que pudesse ocorrer. Abel pagou dois
meses adiantados de aluguel do estúdio e seguiu para a
Flórida, de onde, se a pressão do FBI se tornasse muito
intensa, poderia escapar através da fronteira mexicana.

Como nada aconteceu no período de dois meses, e como


sua presença em Nova York era inestimável para o Centro,
Abel teve ordem para retornar e reassumir suas funções. Ao
chegar, foi preso pelo FBI, sob a acusação de entrada ilegal
nos Estado Unidos.

Levaram-no a julgamento no dia 14 de outubro de 1957, sob


as acusações de conspirar para obter segredos militares e
de entrada ilegal no país, e a primeira dessas acusações era
passível de pena de morte. O Coronel Abel teve a
assistência do melhor defensor que a Ordem dos Advogados
de Brooklyn poderia conseguir — o destacado advogado
James Donovan, de sangue irlandês e americano.

As provas encontradas no estúdio — transmissor,


microfilmes e outros petrechos de espionagem — eram
bastante eloquentes, e Abel foi julgado culpado, a sentença
devendo ser proferida alguns dias mais tarde. Durante esse
período, Donovan dirigiu um apelo ao juiz, pedindo
clemência, e nele declarava: “Quem sabe se, algum dia, um
norte-americano poderá cair em mãos russas, acusado de
crimes idênticos? Se o Coronel Abel estiver então vivo, será
sempre possível fazer-se uma troca de prisioneiros.”

O juiz tomou nota do argumento e condenou Abel a trinta


anos de prisão. Embora o advogado Donovan não pudesse
adivinhar, Gary Powers, três anos mais tarde, ao pilotar o
seu avião U-2 sobre a Rússia, seria derrubado, capturado, e
responderia a julgamento como espião.
Quando Powers já havia cumprido vinte meses de sua
sentença de dez anos, o que o defensor de Abel tinha
previsto aconteceu. Os dois condenados foram trocados.

Os russos levaram vantagem na troca, pois raramente a


espionagem soviética dispôs de um espião tão hábil e tão
leal quanto o Coronel Abel, que, sofrendo todo gênero de
pressão, sempre se negou a denunciar qualquer das suas
redes, as quais, presumivelmente, ainda estão operando
nos Estados Unidos, embora sob a orientação de um novo
Diretor-Residente. 

 
2. Gordon Arnold Lonsdale

No dia 3 de março de 1955, o transatlântico norte-


americano America ancorou em Southampton. Seus
oitocentos passageiros eram os habituais turistas e homens
de negócios que retornavam à Inglaterra e, segundo as
aparências, não apresentavam qualquer interesse.

Entre os que desembarcaram, encontrava-se Gordon Arnold


Lonsdale, que, pelo fato de possuir um passaporte
canadense, não teve qualquer aborrecimento com as
autoridades portuárias. De Southampton, Lonsdale tomou o
trem para a estação de Waterloo, que é a terminal londrina
da British Railways Southern Region, e dali foi para um
hotel. Durante os dois ou três dias seguintes, portou-se
como qualquer turista. Visitava lugares, museus e galerias
de arte, tirava seguidas fotografias com uma câmara de alto
preço e comprava souvenires.

Tornou-se, igualmente, constante frequentador da Liga


Ultramarina, o que não era incomum em se tratando de um
turista, embora, no seu caso especial, essas visitas tivessem
grande significação. A Liga Ultramarina é uma espécie de
clube, e em sua sede, não distante de St. James’s Park,
dispõe de excelentes salas e escritórios, de um restaurante
de primeira classe com todas as facilidades e a preços
moderados, de um salão de diversões e de um serviço de
relações públicas para atender, com ajuda e conselhos, aos
seus membros do exterior que, com frequência, se sentem
desorientados na grande cidade.
Além de se utilizar da Liga Ultramarina, Lonsdale decidira
tornar-se amigo dos funcionários da casa. Sem demonstrar
ostentação, deixou que eles soubessem que dispunha de
dinheiro, e aqueles funcionários, por sua vez, não tinham
motivo para suspeitar que não fosse o que dizia ser, isto é,
um legítimo e honesto canadense.

Em maio, Lonsdale deixara o seu hotel e alugara um


apartamento mobiliado no luxuoso bloco de edifícios
denominado The White House, situado nas imediações de
Regent’s Park. O gerente pediu referências. E, como
esperava, já que despendera tanto tempo conquistando a
confiança dos funcionários da Liga Ultramarina, esta
prontamente as deu.

Em The White House, Lonsdale pediu — e lhe foi dado — um


apartamento no sexto andar. Alegou que gostava de ter
uma bela vista através das janelas. Essa solicitação,
entretanto, ocultava uma significação completamente
diferente. O apartamento se compunha de uma pequena
sala, de um quarto de dormir, de um banheiro e de uma
kitchenette, com facilidades para se cozinhar, caso ele não
se mostrasse disposto a descer ao restaurante, que
funcionava ao rés-do-chão. O preço do aluguel era de cerca
de vinte libras por semana, o que não deixava de ser
elevado para aquele gênero de acomodação em Londres.

Depois de uma excursão pela Escandinávia, Lonsdale se


instalara em The White House e matriculara-se como
estudante de chinês na Escola de Estudos Africanos e
Orientais da Universidade de Londres. Completara dois
períodos de aula antes de deixar a escola, em junho de
1957. Embora não dedicando todo o seu tempo ao estudo,
fizera, em Londres, largo círculo de amigos. Tratava-se de
um conversador fluente e bem informado que possuía um
modo alegre e gracioso de se portar, o que o tornava
sedutor. Particularmente, as mulheres o adoravam, e ele,
por sua vez, aparentemente não poderia passar sem
companhia feminina. Dispunha de um punhado de amantes
moças e bonitas, as quais, mais tarde, deram testemunho
de sua bondade e delicadeza, embora seu comportamento
viril nada revelasse de extraordinário.

Ninguém sabia exatamente quais eram seus recursos


financeiros. Segundo se acreditava, porém, deveria possuir
entre sete e dez mil libras depositadas em várias filiais do
Royal Bank of Canada. De tempos em tempos, transferia
parte desses fundos para contas abertas em bancos de
Londres, e os gerentes desses estabelecimentos julgavam
tão satisfatória sua situação financeira que, quando certa
vez necessitou de um capital extra com urgência, foi-lhe
concedido um saque de duas mil e quinhentas libras.

Como sua permanência em Londres seria prolongada,


Lonsdale teve naturalmente de inventar uma ocupação, a
fim de não atrair atenção. Em face da natureza de suas
atividades, entretanto, teria de escolher uma daquelas que
não o retivessem em uma cidade e nem mesmo na
Inglaterra.

Com habilidade, obteve um emprego de vendedor de


vitrolas caça-níqueis. Comprou duas ou três máquinas que
vendeu com esplêndido lucro. Entretanto, mais valioso do
que o dinheiro que ganhara foram os contatos estabelecidos
no desenvolvimento dessas transações. Em pouco tempo,
tornara-se conhecido, em alguns círculos comerciais de
Londres, como um homem que tinha queda para negócios e
dispunha de indiscutíveis qualidades de vendedor.

Em fins de 1957, entretanto, surgiu-lhe uma oportunidade


ainda melhor. Certo Sr. Peter Ayres planejava lançar uma
empresa de fabricação de chicletes de bola em Broadstairs,
no Condado de Kent. Ayres fora apresentado a Lonsdale por
um amigo de negócios mútuos, e num minuto se
entenderam. Quando Lonsdale sugeriu que poderiam
vender utensílios para prestidigitação, o que daria bons
resultados, Ayres concluíra ter descoberto, sem querer, um
precioso sócio para a sua aventura comercial.

De início, Lonsdale comprometera-se somente a vender as


máquinas. Obtivera, porém, tanto êxito nessa atividade que
lhe foi oferecido ser sócio da firma. Aceitando o convite,
adquiriu ações de empresa, no montante de quinhentas
libras, e tornou-se diretor de uma Automatic Merchandising
Company. Esse fato constituiu um grande passo dado à
frente para Lonsdale. Iria permitir que se estabelecesse no
complexo social britânico. Ser “diretor de uma companhia”
é extremamente útil, para qualquer pessoa, não somente no
mundo dos negócios, mas igualmente nos círculos leigos.
Essa expressão, em qualquer setor, tem um status de
significação muito elevado.

O negócio dos chicletes de bola floresceu. Por iniciativa de


Lonsdale, fora decidido que tentariam penetrar no mercado
europeu, e ele próprio, agindo nesse sentido, fizera viagens
à França, à Suíça e à Itália. Embora não houvesse concluído
muitas transações, insistira na necessidade dessas viagens,
alegando que só com tempo poderia vencer a resistência
que vinha encontrando. Quando não se achava no exterior
vendia, com grande dinamismo, máquinas, em Londres e
em toda a extensão das Ilhas Britânicas.

Tudo correu bem, pelo período de quatro anos. Lonsdale


fizera muitos amigos e ganhara suficiente dinheiro para
custear sua luxuosa maneira de viver. Ao lado disso, porém,
tornara-se autoconfiante em suas habilidades de vendedor.
Persuadira seus colegas diretores a expandir a produção da
empresa, mas, não se materializando suas previsões sobre
um aumento de vendas no Ultramar, a firma logo se
encontrou em sérias dificuldades. Em março de 1960,
entrou em liquidação, com um passivo de trinta mil libras.

Lonsdale mostrara-se visivelmente atemorizado em face


daquela situação e, durante algum tempo, desapareceu.
Dispunha, entretanto, de extraordinária capacidade de
recuperação e, poucos meses depois, já reorganizara seus
negócios. No dia 24 de fevereiro de 1960, tornara-se diretor
da Master Switch Company que obtivera a patente de
fabricação de uma alavanca de distribuição destinada a
imobilizar por completo um automóvel e, assim, protegê-lo
contra roubo. Surgiram, porém, dificuldades na produção e,
quando fora removido do cenário britânico — por
dificuldades muito mais sérias e de outra categoria —, nem
uma só alavanca havia ainda sido fabricada.

Justamente quando Lonsdale organizava a Master Switch


Company, um oficial da segurança naval do Almirantado
começou a tomar interesse num funcionário civil do Instituto
de Armas Submarinas, de Portland, chamado Harry
Houghton. Houghton tinha a idade de cinquenta e quatro
anos, e durante vinte e três servira na Marinha Real. Em
1945, quando completara quarenta e um anos, retirara-se
do serviço com uma pensão de 250 libras por ano, enquanto
vivesse. Procurara, então, emprego e obtivera um cargo de
amanuense civil no Almirantado, onde logo causara boa
impressão aos superiores.

Em 1951, Houghton fora enviado para Varsóvia como


secretário de adido naval. Tratava-se de um posto
importante, pois lhe dava acesso a todo o material secreto
enviado e coletado pelo adido. Houghton, entretanto,
começara logo a passar por dificuldades domésticas.
Gostava de promover festas, e a mulher, com quem se
casara em 1934, começara a fazer objeções às suas
frequentes crises de alcoolismo, decorrentes da generosa
hospitalidade dos anfitriões poloneses. As objeções da
esposa evoluíram para constantes brigas, e muitas dessas
discussões se desenvolveram em público. As autoridades
britânicas foram imediatamente informadas do que estava
ocorrendo e Houghton se viu chamado de volta para a
Inglaterra, onde o Almirantado cometeu uma dessas
estranhas ações das quais, de tempos a tempos, os
governos são culpados.

Houghton provara não ser digno de uma posição de


confiança, em face do seu comportamento em Varsóvia, e
deveriam, então, dar-lhe um posto “seguro”. Ao invés disso,
foi nomeado para o Instituto de Portland, com acesso a
todas as informações sobre os mais modernos
desenvolvimentos do radar submarino — informações pelas
quais a espionagem russa pagaria qualquer preço.

Pouco depois, o casal separou-se, e Houghton se tornou


amigo de uma sua colega do Instituto, a Srta. Elizabeth Gee.
Quando a amizade se transformou numa intimidade que
nenhum dos dois se preocupavam em ocultar, a Sra.
Houghton obteve o divórcio.

Por essa ocasião, Houghton deixou o alojamento do


Almirantado e comprou um pequeno cottage numa vila das
imediações. Depois do divórcio, começou a fazer melhorias
na casa e a remobilou completamente, ao custo de algumas
centenas de libras. Adquiriu, também, um carro novo.

Nessa época, o oficial da segurança naval, acima referido, e


Houghton frequentavam o mesmo bar, e o que o
amanuense despendia em bebidas não deixou de intrigá-lo.
Sabia que Houghton percebia um salário de 750 libras e a
pensão de 250 libras, mas esse montante parecia muito
maior, já que, só naquele bar, num ano, ele vinha gastando
bem mais do que a sua renda total de mil libras.

Não dispondo de provas para promover um inquérito, o


oficial da segurança solicitou, a um amigo no CID local, que
fizesse investigações em torno de Houghton. Dentro de
pouco tempo, o detetive informou que Houghton, de fato,
vinha gastando em bebidas muito mais do que ganhava e,
além disso, havia pago as melhorias em sua casa e o seu
novo carro em notas de uma e cinco libras, o que foi julgado
suficiente para se pedir a intervenção do MI5.

Assim, de março de 1960 a l.° de janeiro de 1961, Houghton


e a Srta. Gee ficaram sob estrita vigilância. Essa vigilância
revelou que, com frequentes intervalos — habitualmente
nas tardes de sábado —, ele, às vezes acompanhado da
Srta. Gee, seguia de trem para Londres, onde se encontrava
com um indivíduo, logo identificado como sendo Gordon
Lonsdale. Nem foi difícil descobrir que Houghton,
invariavelmente, entregava um pacote a Lonsdale e, em
retorno, recebia, um envelope.

Nessas condições, pelo período de nove meses, o MI5


acumulou provas contra Houghton e, quando seus chefes
julgaram o momento oportuno, entregaram o caso à Divisão
Especial da Scotland Yard, para ação posterior. Aconteceu,
entretanto, que, na tarde de sábado, de 7 de janeiro de
1961, o superintendente da Divisão Especial, George Smith,
e alguns outros policiais prenderam Lonsdale, Houghton e a
Srta. Gee, em frente ao teatro Old Vic.

Na Scotland Yard, depois das habituais preparações, Smith


voltou-se para Lonsdale, a fim de interrogá-lo, mas, antes
que pudesse falar, o detido, displicente e sorrindo, disse-
lhe: “A qualquer pergunta que me possa fazer, minha
resposta será não e, nestas condições, não terá necessidade
de se incomodar em me interrogar.” Durante as longas e
subsequentes horas de interrogatório, Lonsdale, de fato,
firmemente se conservou em silêncio.

Numa cesta de palhinha que a Srta. Gee trazia, foram


encontrados, entretanto, dois embrulhos contendo
documentos dos arquivos do Almirantado. Nos bolsos de
Lonsdale achavam-se dois envelopes: um, contendo
quarenta libras em dinheiro — o que representava o
“salário” de Houghton —, e no outro achavam-se quinze
notas de vinte dólares americanos.

Desde que não obtinha qualquer cooperação por parte de


Lonsdale, Smith decidiu recorrer às pessoas que o
conheciam. Por mera coincidência, escolheu para sua
primeira visita um bangalô, situado em Cranley Drive, em
Ruislip, cujos donos eram um casal de meia-idade — Pater e
Helen Kroger — que, segundo acreditavam seus vizinhos,
constituía-se de canadenses que haviam vivido, durante
algum tempo, na Suíça, antes de virem estabelecer-se na
Inglaterra, em dezembro de 1954. Kroger, especialista em
livros antigos, estabelecera um lucrativo serviço de
reembolso postal, que operava do seu próprio bangalô.

Peter Kroger abriu a porta para o superintendente Smith e,


quando este se identificou, solicitou-lhe que entrasse.
George Smith entrou, acompanhado do Inspetor-Chefe
Ferguson Smith e o sargento da Polícia Feminina,
Winterbottom.

Após rápidas preliminares, o superintendente Smith


perguntou à Sra. Kroger se ela podia dar-lhe os nomes das
pessoas que tinham estado no bangalô, nos últimos seis
meses. A Srta. Kroger enumerou uma lista, mas não incluiu
o nome do visitante mais frequente, que era justamente
Lonsdale. Por causa dessa omissão, o superintendente logo
constatou que ela mentia. Disse-lhes, então, ser obrigado a
solicitar-lhes que o acompanhassem à Scotland Yard. Até
aquele momento, não alimentara maiores suspeitas em
relação aos Kroger.

Em face do convite, a Sra. Kroger não criou qualquer


dificuldade. Vestiu um casaco, apanhou sua bolsa e
indagou: “Como vou ficar fora por algum tempo, posso ir
apagar o aquecedor?”

— Certamente — respondeu Smith —, mas, primeiro, deixe-


me ver o que a senhora tem em sua bolsa.

A Sra. Kroger recusou-se a fazê-lo, e somente após uma luta


feroz ele conseguiu apoderar-se da bolsa. Em seu interior,
escondidos no rebordo interno, o superintendente encontrou
um envelope, sem quaisquer dizeres, dentro do qual havia
uma carta em russo, de seis páginas, um slide contendo
três micro-pontos e uma folha de papel datilografada em
código. Smith prendeu então os Kroger, sob suspeita de
espionagem.

As buscas realizadas nos quartos dos cinco detidos


revelaram a existência de grande quantidade de dinheiro.
No quarto da Srta. Gee acharam-se panfletos do
Almirantado; no cottage de Houghton, cartas marítimas,
vendo-se assinaladas as áreas, e sua localização,
destinadas a experiências secretas; e, no apartamento de
Lonsdale, em The White House, existiam cifras de
codificação e outros equipamentos de espionagem. Foi,
porém, o bangalô dos Kroger que revelou a mais fascinante
evidência de todas — um poderoso radiotransmissor
escondido no chão da cozinha, cifras de codificação e um
equipamento para fazer micro-pontos e muitas outras
coisas.
O julgamento desses cinco espiões realizou-se em Old
Bailey, no dia 18 de março de 1961. Lonsdale foi condenado
a vinte e cinco anos de prisão; os Kroger, a vinte cada um;
Houghton, a quinze anos, e a Srta. Gee, a quinze.

Durante o desenvolvimento do processo, o procurador-geral


fez surpreendentes revelações em relação aos Kroger. Seus
nomes verdadeiros eram Morris e Lorna Cohen. Até 1950,
vinham realizando encontros regulares com Julius e Ethel
Rosenberg, os espiões atômicos executados em 1953. O FBI
só soubera dessa conexão muito tarde, pois, quando seus
agentes procuravam os Cohen, eles já haviam
desaparecido. De fato, o FBI perdera a pista desses espiões,
e os seus nomes só surgiram outra vez quando o Coronel
Abel foi preso, em 1957. Com efeito, tinham ido dos Estados
Unidos para a Austrália com passaportes falsos, e ali
permaneceram pelo período de três anos. Da Austrália,
transferiram-se para a Suíça, e desse país seguiram, em
dezembro de 1954, para a Inglaterra, sempre com
passaportes canadenses falsos.

Lonsdale recusou-se a falar durante o tempo todo, nada


dizendo, mesmo, sobre sua verdadeira identidade. Até
alguns anos mais tarde, tudo o que as autoridades de
segurança sabiam a seu respeito era que não se tratava de
um canadense e que seu verdadeiro nome não era Gordon
Arnold Lonsdale. Inquéritos realizados revelaram que
existiu, de fato, um Gordon Arnold Lonsdale, nascido no dia
27 de agosto de 1924, em Kirkland Lake, em Ontário. Seu
pai, canadense, fora negociante de madeiras e biscateiro; e
sua mãe, finlandesa, imigrara para o Canadá com a família,
antes do casamento com Lonsdale.

O falso Lonsdale, ao ser preso, tinha um passaporte


canadense, e tratava-se de um passaporte legítimo. Quando
os ingleses solicitaram às autoridades do Canadá que
investigassem a emissão daquele passaporte em favor de
Lonsdale, em 1954, descobriu-se que fora obtido através da
apresentação de um certificado de nascimento, emitido
pouco tempo antes, em Kirkland Lake. O pai do verdadeiro
Lonsdale declarou à polícia que se separara da esposa um
ano após o nascimento de seu filho Gordon Arnold. A Sra.
Lonsdale permanecera no Canadá até 1932, quando
retornara à Finlândia com o filho, então de oito anos. Desde
a ocasião, ele nunca mais tivera notícias tanto da antiga
esposa quanto do filho.

As autoridades canadenses e britânicas acreditam que o


Verdadeiro Gordon Lonsdale tenha morrido antes de
completar trinta anos, isto é, antes de 1954, e que sua
morte e seu passado deveriam ser conhecidos do Centro.
Julgam, também, que Lonsdale chegara ao Canadá antes de
1954, embora seja impossível dizer sob que disfarce levara
instruções para obter um genuíno passaporte. Um
documento dessa natureza é rapidamente obtido no
Canadá, mediante a apresentação de certidão de
nascimento, e essas certidões geralmente se emitem sem
maiores indagações sobre se se referem, de fato, às
pessoas que as solicitam.

Uma circunstância, de certo modo bizarra, fez com que as


autoridades britânicas concluíssem que seu prisioneiro não
era o verdadeiro Lonsdale. Durante as investigações, a Real
Polícia Montada do Canadá descobrira o médico que assistiu
ao nascimento do filho da Sra. Lonsdale. Esse ginecologista,
Dr. W. E. Mitchell, que clinicava em Toronto em 1961,
recordara-se bem desse parto, pois tivera de viajar muitas
milhas em estradas intransitáveis para chegar à isolada
casa dos Lonsdale. Essa circunstância levou-o a rever velhos
registros, e neles estava anotado que, poucos dias após o
nascimento da criança, foi necessário circuncidá-la.
O Lonsdale, mais tarde trocado pelo homem de negócios
britânico, Wynne, não é circuncidado.

Embora as investigações realizadas não revelassem a


existência de outros agentes além dos detidos, as
autoridades britânicas sempre se mostraram inclinadas a
pensar que Lonsdale era o Diretor-Residente de uma rede.
Tratava-se realmente de um espião de grande habilidade e,
caso houvesse observado com maior rigor as normas de
segurança, como o fazia o Coronel Abel, poderia ainda estar
operando. Lonsdale recrutara Houghton, e essa iniciativa
representara um erro de julgamento. Houghton era instável
de caráter e não dispunha de qualquer qualidade inata para
ser um agente. Cometera mais outro grave erro, levando,
pessoalmente, ao bangalô dos Kroger, as informações que
vinha obtendo para serem transmitidas a Moscou. Se se
tivesse utilizado de um “isolador”, certamente a Divisão
Especial nunca teria descoberto os Kroger.

A prisão de Lonsdale constituiu, sem dúvida, um irreparável


revés para a espionagem soviética. 
3. George Blake e John Vassall

O volume exato das informações que George Blake,


funcionário público inglês e antigo agente da Inteligência
Militar, transmitiu à espionagem soviética provavelmente
nunca será conhecido. E se isso, um dia, vier a ser sabido,
só o será pelos historiadores do futuro, quando o próprio
agente já houver sido esquecido e, talvez, a União Soviética
tenha desistido de fazer espionagem.

A importância da atuação de George Blake contra a


segurança da Grã-Bretanha pode ser avaliada através das
palavras do presidente do Tribunal de Justiça ao condená-lo,
após um dos mais rápidos julgamentos da História britânica
e que se tomou notável pela repercussão que teve.

“Sua confissão, inteiramente escrita, revela que, por alguns


anos, o acusado trabalhou continuamente como agente
secreto e espião para uma potência estrangeira. Além disso,
as informações que transmitiu, embora não fossem de
natureza cientifica, eram da maior importância para aquela
potência e tornaram inúteis muitos dos esforços realizados
por este país. Na verdade, como o acusado revelou em sua
confissão, não havia qualquer documento oficial de
relevância ao qual não tivesse acesso, e todos foram
transmitidos aos seus aliados russos. Quando se pensa que
o acusado é um súdito britânico — muito embora não o seja
por nascimento — e, enquanto exerceu suas atividades em
favor da Rússia, era funcionário do governo da Grã-
Bretanha, que é a sua pátria, ocupando posição de
responsabilidade e de confiança, torna-se evidente que seu
comportamento deve ser classificado como traição. De fato,
é um dos casos de maior gravidade que podem ocorrer,
exceto em tempo de guerra. Seria claramente contrário ao
interesse público se, ao condená-lo, eu revelasse o texto
integral de sua confissão. Entretanto, posso dizer, sem
hesitação, que qualquer pessoa que houvesse lido esse
documento chegaria a idêntica conclusão. Ouvi tudo o que,
com tanto brilho, foi dito a favor do acusado e plenamente
lamento que muitas atenuantes não possam igualmente ser
divulgadas; devo, porém, declarar que estou perfeitamente
convencido de não ter sido por dinheiro que o acusado
cometeu todos esses crimes. O que o levou a praticá-los foi
sua genuína crença no sistema comunista. Julgo que cada
um tem o direito de possuir suas próprias opiniões, mas a
agravante, que pesa contra o acusado, é que ele nunca
pediu demissão do cargo, que procurou conservar a posição
de confiança que ocupava, com o objetivo de atraiçoar sua
pátria. O acusado ainda não tem trinta e nove anos de
idade. Deve saber calcular a gravidade dos crimes pelos
quais responde. Indubitavelmente, em muitos outros países,
uma conduta idêntica acarretaria a pena de morte. De
acordo com a nossa legislação, não tenho outra opção, pois,
senão condenar o réu à prisão, e, dada a sua ação de
traidor, estendê-la por muitos anos, de forma que possa ser
uma sentença pesada. Por um simples crime dessa
natureza, a mais alta penalidade imposta pela lei é de
quatorze anos de prisão, e a Corte não pode, portanto,
mesmo se assim o quisesse, condená-lo à prisão perpetua.”

Seguiu-se, então, uma das mais estranhas sentenças jamais


impostas por um tribunal inglês, em tempo de paz;
sentença que, na opinião de muitos, e inclusive na do autor
deste livro, foi absolutamente injusta. Ela revela o caráter
de uma condenação política — uma iniciativa para aplacar
as críticas dos norte-americanos, que ameaçavam
interromper o intercâmbio de informações atômicas com os
ingleses, caso a contraespionagem britânica não tomasse
medidas rigorosas de segurança, embora a própria
contraespionagem nos Estados Unidos não se mostrasse
nada eficiente.

E Lorde Park concluiu: “Existem, entretanto, cinco pontos


dos quais o acusado se confessou culpado, e cada um está
relacionado com um diferente período de sua vida, durante
a qual vinha atraiçoando a pátria. A Corte o condenará,
então, a uma sentença de quatorze anos de prisão para
cada um desses pontos. Em relação aos pontos um, dois e
três, a sentença será consecutiva, e, no que diz respeito aos
pontos quatro e cinco, será concorrente, perfazendo um
total de quarenta e dois anos de prisão.”

Com ligeira inclinação de cabeça para o tribunal, George


Blake ergueu-se e desceu lentamente os degraus que vão
do recinto dos julgamentos até as celas, que se encontram
no andar inferior, para iniciar o cumprimento da sentença
que, se conseguir cumpri-la, o restituirá ao mundo com a
idade de oitenta anos.

George Blake, que nasceu no dia 11 de novembro de 1922,


em Roterdã, era filho de Albert e Catherine Behar. Seu pai
descendia de antiga e aristocrática família judaica e sua
mãe pertencia, igualmente, a boa linhagem holandesa
Depois de frequentar, por algum tempo, uma escola
holandesa, após a morte do pai, em 1936, e obediente aos
desejos paternos manifestados na agonia, foi enviado para
viver com parentes no Egito, onde frequentou a Escola
Inglesa, no Cairo.
Depois de dois anos ali, voltou para a Holanda,
matriculando-se numa escola superior de Roterdã.
Frequentava ainda essa escola quando, em maio de 1940,
os nazistas invadiram a Holanda. No primeiro dia da
invasão, a Sra. Behar e suas duas filhas fugiram para a
Inglaterra. A família combinara tomar essa atitude antes
que a invasão fosse desencadeada e, nessa ocasião, George
havia decidido permanecer no país, a fim de concluir seu
curso na escola. A permissão lhe fora dada, já que um seu
tio assumira o compromisso de por ele zelar. George
prosseguiu então em seus estudos e, quando completou o
curso, tornara-se um dos primeiros membros da Resistência
Holandesa. Nessa atividade, adquirira a reputação de ter
coragem e de ser astucioso. A Gestapo, porém, logo se pôs
em seu encalço, e ele escapou para a Inglaterra, viajando
via França e Espanha. Ao chegar à Inglaterra, mudou seu
nome para Blake, incorporando-se, como voluntário, à
Marinha Real. Sua ambição, entretanto, era fazer parte da
Inteligência, e os esforços que realizou nesse sentido
obtiveram êxito. Foi designado para o SOE, e ali recebeu o
devido treinamento. Ao concluir o estágio preparatório,
deram-lhe, para seu desapontamento, um cargo de
amanuense.

Na primavera de 1944, entretanto, Blake foi aproveitado


como intérprete no quartel-general do recém-formado
SHAEF, e comissionado como subtenente no RNVR, onde
seus deveres consistiam principalmente em traduzir e
interpretar documentos alemães que caíam constantemente
em mãos dos aliados.

Logo depois da cessação das hostilidades na Europa, ele foi


transferido para Hamburgo. Era encarregado, ali, de uma
pequena unidade de Inteligência, com instruções para
prender e interrogar todos os comandantes de submarinos
que pudesse encontrar. Levou a efeito essa tarefa com
brutal eficiência. Quando esse trabalho terminou, foi
chamado de volta à Inglaterra e, por recomendação do
Foreign Office, obteve seu desligamento do RNVR e se
matriculou na Universidade de Cambridge, onde aprendeu
russo, ostensivamente para exercer um cargo no Serviço
Exterior, mas, de fato, para ser agente secreto sob ordens
do MI 6.

Havendo concluído esse curso com êxito, foi designado para


servir em Seul, na Coréia, como vice-cônsul, sob as ordens
do encarregado de Negócios, que era o Capitão (mais tarde
Sir) Vyvyan Holt.

Quando começou a guerra da Coréia e as tropas comunistas


entraram na cidade, Blake, juntamente com o Capitão Holt e
outros membros da colônia britânica ali estabelecidos, foi
detido. Na prisão, todos os seus colegas de encarceramento
fizeram confissões, mas Blake sempre constituíra um
exemplo de coragem e fortaleza de ânimo. O
encarceramento de autoridades diplomáticas e consulares
contrariava todos os usos de guerra, e o governo britânico
iniciou imediatamente negociações para a libertação tanto
do Capitão Holt como de seus companheiros. Os
comunistas, porém, se negavam a deixá-los ir. Enquanto se
arrastavam as negociações, submeteram alguns prisioneiros
ao processo de lavagem cerebral. De acordo com as
declarações de seus amigos desse tempo, Blake resistiu,
mais uma vez, a todas essas tentativas. Entretanto,
segundo se sabe hoje, essa experiência representou o ponto
decisivo em sua vida.

Certa vez, tramou uma fuga, mas foi preso. Esteve diante
de um pelotão de fuzilamento, acusado de ser espião.
Quando a ordem de “fogo” estava para ser dada, gritou em
russo: “Não sou espião. Sou um civil internado, um
diplomata britânico. Saí do campo de Man-po e perdi o
caminho de volta.” Por um golpe de sorte, o oficial norte-
coreano, encarregado do fuzilamento, havia sido treinado na
Rússia e entendeu o que ele dissera. Imediatamente,
dispersou o pelotão e, levando Blake para um canto,
manteve com ele longa conversa em russo. Discutiram
sobre o que julgavam certo ou errado no desenvolvimento
da guerra. Após essa entrevista, o norte-coreano o devolveu
ao campo, com uma advertência no sentido de que não
tentasse fugir outra vez.

Quando a cessação das hostilidades foi acertada, na


primavera de 1953, os sobreviventes do grupo britânico
foram postos em liberdade. Chegando à Inglaterra, Blake
teve entusiástica acolhida no Foreign Office. Consideraram-
no um modelo das mais altas tradições do serviço no
exterior. Se se tratou de uma recompensa por sua atuação
na Coréia, isso nunca foi revelado, mas o fato é que a sua
velha ambição de ser agente secreto pôde ser realizada.
Blake foi transferido para o MI 6.

Tratava-se de uma designação extremamente singular.


Estipulava o regulamento que os oficiais do MI 6 deveriam
ser de ascendência inteiramente britânica. Que houve,
então, para que o regulamento fosse contornado no caso de
Blake? Trata-se de um mistério que nunca foi desvendado.

Durante algum tempo, Blake trabalhara no Foreign Office,


onde conhecera uma colega de trabalho e por ela se
apaixonara. Casaram-se em outubro de 1954 e, pouco
depois, recebera a comunicação de que fora designado para
o departamento MI 6, do Serviço Secreto Britânico, como
adido ao comandante do Setor Britânico, em Berlim.

Assumiu suas novas funções em abril de 1955, e seu


primeiro filho nasceu no ano seguinte, na antiga capital do
Reich. Em Berlim, os Blake se conservavam afastados da
vida social que esplendia em torno deles. E, quando
acontecia que George chegasse tarde a casa, embora
explicasse à esposa que aqueles atrasos eram impostos
pelo desempenho das suas funções, ela nunca aceitava as
explicações, e esses fatos começaram a ter reflexos sobre a
harmonia do casal.

Com efeito, suas ausências de casa não eram impostas por


suas funções. Logo que chegara a Berlim, vira-se envolvido
com um agente duplo, o qual, embora trabalhando
ostensivamente para os russos, tinha seu nome igualmente
na folha de pagamento dos britânicos. O próprio Blake fizera
diversas viagens ao Setor Oriental de Berlim, para se avistar
com esse agente. Se tivesse recebido um adequado
treinamento para desempenhar as funções de agente
secreto, saberia, com toda certeza, que aquele
comportamento não deixava de ser perigoso. De fato, essa
conduta, na Alemanha, e principalmente em Berlim —
avassalada, naquela época, pela espionagem soviética —,
resultou fatal.

Blake, porém, não deve ser inteiramente responsabilizado


pelo que aconteceu. De acordo com as instruções de seus
superiores, estabelecera contato também com outro
suposto delator, chamado Horst Eitner. Logo uma amizade
aproximou os dois agentes, e isso ocorreu não muito antes
que Blake, que fora submetido a uma súbita conversão ao
comunismo, enquanto se achava na Coréia, em 1951, e
planejara tornar-se agente soviético quando as
circunstâncias o permitissem, se tornasse, ele próprio, em
realidade, um agente duplo.

As informações que transmitiu aos russos eram de


suficiente importância para que eles lhe permitissem
conservar a confiança de seus superiores britânicos, dando-
lhes informes sobre alguns espiões soviéticos, de pequena
categoria. Os ingleses, entretanto, começaram a se mostrar
preocupados pelas indicações de que seus próprios
desígnios mais secretos, e os dos seus aliados obviamente,
eram do conhecimento dos russos. Blake, porém, era a
última pessoa a ser suspeitada de ter qualquer participação
naquela traição dos segredos políticos dos aliados.

Nessas condições, durante três anos Blake realizou seu jogo


duplo em Berlim. Entretanto, inquietou-se, naquela época,
em face de uma descoberta que fizera. Horst Eitner era,
igualmente, agente russo. Desde esse momento, tudo fez
para ser retirado de Berlim. Seus superiores, no entanto,
resistiram, julgando-o útil na capital alemã. Após sucessivas
tentativas, convencera finalmente os ingleses de que os
russos suspeitavam que ele fosse um agente duplo e, por
motivos de segurança, deveria, portanto, ser retirado de
Berlim.

Assim, os Blake retornaram à Inglaterra. Instalaram-se nas


imediações de Bromley, em Kent, de onde diariamente ele
viajava até o Whitehall. Naquela época, fora informado de
que, se o desejasse, poderia ser designado para um posto
no Oriente Médio. Aceitou, com satisfação, a proposta. E,
em setembro de 1960, acompanhado da família, chegou a
Beirute, no Líbano. Antes de assumir suas novas funções,
porém, deveria fazer um curso no Colégio de Estudos
Árabes do Oriente Médio, dirigido pelo Foreign Office. Esse
estabelecimento proporcionava um treinamento especial
aos enviados pelo serviço secreto inglês que iam ocupar
postos naquela região.

Pouco depois de Blake chegar a Beirute, embora não o


soubesse, seu velho amigo Horst Eitner fora desmascarado,
e os ingleses o haviam prendido. Durante seu interrogatório,
por volta de meados de fevereiro de 1961, revelara que
Blake era um agente que trabalhava para os russos. E o
pior: apresentara provas de que estava falando a verdade.

O primeiro-ministro, ao ser informado, dera ordens para que


Blake fosse chamado a Londres, a fim de ser interrogado.
Blake não tinha a menor idéia de por que deveria ir à
Inglaterra, e embarcou satisfeito. Ao chegar a Londres,
soube, pela primeira vez, da prisão de Eitner e das
acusações que lhe eram feitas. Em face de tais provas,
julgou melhor confessar tudo por escrito.

No dia 22 de abril de 1961, o Chief Metropolitan Magistrate


divulgou um comunicado, declarando laconicamente que
George Blake, funcionário do governo, ia ser submetido a
julgamento, sob três acusações, de acordo com a Lei de
Segredos Oficiais. A gravidade do caso logo se tornou
patente. D-noticies — proibição da publicação de qualquer
informação relativa a uma causa específica, por motivo de
segurança — foram emitidas. O sigilo, mantido até que
Blake fosse julgado, deu lugar, entretanto, a rumores e
conjecturas. E, como as autoridades se mantiveram
silenciosas em face da curiosidade pública, criou-se uma
atmosfera de desconfiança, prejudicial ao bom nome do
governo. Embora nenhuma indicação houvesse sido dada
sobre as informações que Blake fornecera aos russos, não
foi difícil conjecturar-se a natureza das mesmas, quando
foram divulgadas as palavras do presidente do Tribunal de
Justiça: “. . .que tomaram inúteis muitos dos esforços
realizados por este país.”

O período que Blake passara em Berlim fora de grande


atividade diplomática. É que, ali, iria realizar-se, dentro em
breve, a Conferência de Cúpula. Durante os preparativos
dessa reunião, que se prolongaram por vários meses, o
Serviço Secreto Britânico recebera um número enorme de
perguntas relacionadas com todos os aspectos do problema
de Berlim. Blake examinara a maioria dessas perguntas e
preparara, ou ajudara a preparar, muitas respostas.

Se, com sua atitude, tornou infrutíferas todas as tentativas


realizadas para se chegar a um acordo na Conferência de
Cúpula, mesmo assim não justificava a estranha sentença
que o condenou. Na atmosfera que prevalecia na época,
talvez essa sentença pudesse ser considerada; justa. Por
outro lado, a influência daquela atmosfera impedia
igualmente que os russos pudessem fazer qualquer
concessão em relação ao problema de Berlim ou
procurassem chegar a uma solução, mesmo sem a
intervenção de Blake.

A insinuação de que a sentença fora uma satisfação dada


aos norte-americanos não é sem fundamento, quando se
considera o seguinte trecho de um editorial do New York
Herald Tribune:

George Blake conhecia todos os planos, todas as manobras


da tática que os aliados iriam pôr em prática, todos os
projetos que o Ocidente elaborara para os problemas de
Berlim e da Alemanha. . . No futuro, os Estados Unidos
devem reter do conhecimento do governo britânico seus
segredos, já que a Grã-Bretanha não passa de uma peneira.
..

O proprietário do Herald Tribune era John Hay Witney, antigo


embaixador norte-americano em Londres.

A segurança britânica, entretanto, não era mais vulnerável


do que a segurança de qualquer dos seus aliados, mesmo a
dos Estados Unidos. O caso do Coronel Abel, os
acontecimentos na Alemanha Ocidental e na França e o que
ocorrera em muitos países integrantes da OTAN provaram-
no suficientemente. As autoridades britânicas, porém,
cederam à pressão, determinada pelo medo, embora sem
qualquer base sólida. A omissão de seus aliados, em relação
a assuntos de segurança, deveria ter sido Ousadamente
ressaltada. Ao invés disso, os ingleses se curvaram,
oferecendo um placebo, e, assim fazendo, cometeram o
crime de realizar uma vingança perfeitamente injustificável.

Hoje, que o medo já passou, e quando outros homens têm a


responsabilidade de defender os destinos ingleses, já é
tempo de se fazer alguma coisa no sentido de restabelecer
o bom nome da Justiça britânica. Felizmente para todos nós,
a espionagem realizada em tempo de paz, de acordo com a
legislação inglesa, não é considerada crime capital.
Naturalmente, Blake era culpado de trair o seu país e, por
isso, deveria ser severamente punido. Mas, se sua sentença
fosse revista e reduzida para o mesmo nível das que foram
impostas a Nunn May e Fuchs — que causaram muito maior
dano à democracia — pelo menos um sentimento de
esperança substituiria o que é, hoje, uma consciência de
desespero; um estado de alma muito mais terrível do que
mesmo o conhecimento de que se deve morrer dentro de
determinado tempo.

A prisão e o encarceramento de George Blake, ocorrendo


cinco semanas após o julgamento, e a condenação dos
espiões de Portland provocaram em cada inglês, como
provavelmente nenhum outro acontecimento poderia fazê-
lo, a impressão de que a Grã-Bretanha se encontrava sob
intensa pressão da espionagem russa. Os casos,
certamente, tiveram repercussão no Centro. Esta
organização perdera seis dos seus agentes de alta
categoria, em curto período de tempo, resultando desse
desfalque que um sétimo espião, também de grandes
qualificações, recebesse ordem de Moscou para suspender,
por algum tempo, suas atividades.

O caso de Portland teve, como uma de suas consequências,


a instituição de um Comitê de Inquérito, sob a presidência
de Sir Charles Romer, antigo presidente do Tribunal de
Apelação, e que tinha por objetivo investigar a causa dos
lapsos de segurança no Interior do Almirantado — lapsos
estes que tornaram possível a Harry Houghton ser
nomeado, apesar do seu passado, para um posto que lhe
dava acesso a segredos de grande interesse para os russos
e lhe permitiram espionar, durante tão longo tempo, sem
ser descoberto. O relatório do Comitê Romer selecionou os
fatos e responsabilizou, muito justa e firmemente, os que
eram culpados.

Não deixou de constituir uma coincidência que tal coisa


tivesse acontecido no caso de George Blake, embora outro
departamento governamental estivesse envolvido. Qualquer
pessoa que, como aconteceu a Blake na Coréia, tenha
sofrido uma lavagem cerebral, não deveria ser recrutada
pelos serviços de Inteligência e, muito menos, ser
designada para operar em Berlim, principalmente naquela
época. Essa designação só se poderia dar depois de ficar
absolutamente provado que o recrutado não fora, de fato,
afetado por tal tratamento.

Os erros cometidos pelo veterano departamento de


contraespionagem poderiam, entretanto, ser mais
prontamente desculpados no caso de Blake, já que as
informações que seus dirigentes receberam haviam-lhes
sido fornecidas por homens honestos e dignos de confiança.
Esses homens consideravam Blake uma força de que
podiam dispor, numa época de grande tribulação física e de
grande desgaste mental. Não obstante essa atenuante, o
processo de escrutinização do passado de Blake foi tão
precário quanto o levado a efeito no caso de Portland. Essa
omissão fora compreendida pelas autoridades e, quando o
Comitê Romer divulgou seu relatório, as forças de
segurança logo procuraram corrigir as falhas do seu serviço
de contraespionagem.

As alterações introduzidas nas rotinas de triagem dos


recrutados eram, segundo tudo indicava na época,
destinadas, entretanto, a ter execução no futuro. De fato,
não ocorreu a qualquer autoridade a conveniência de serem
revistos todos os casos em que os antecedentes de um
agente pudessem configurá-lo como espião soviético em
potencial e se achasse já em plena atividade. Se essa
providência houvesse sido tomada, John Vassall poderia ter
sido neutralizado, pelo menos um ano, se não dezoito
meses mais cedo do que o foi.

Vassall era filho de um clérigo da Igreja Anglicana.


Trabalhara durante algum tempo num banco, quando, aos
dezesseis anos, deixara o colégio. Odiava o trabalho no
banco e, nessas condições, voltara suas vistas para o
serviço público. Tornara-se amanuense interino, grau III, no
Almirantado. Afastou-se temporariamente desse emprego
em 1943, quando se inscreveu na RAF, na qual serviu como
fotógrafo. Após a desmobilização, retornou ao Almirantado
e, a partir do início de 1948, passou n ocupar o cargo de
oficial administrativo.

Vassall nunca se distinguira, de modo particular, como


oficial administrativo, e não iria obter êxito em subir na lista
de promoções. De fato, não deixa de ser estranho que, no
serviço público, um funcionário de tão baixo nível pudesse
ter acesso a alguns dos mais importantes segredos de
Estado. Em 1953, Vassall viu-se colocado exatamente nessa
posição. Fora designado para a embaixada britânica em
Moscou, e suas funções eram as de auxiliar do adido naval.
Vassall revelava uma deficiência que deveria ter impedido
sua escolha para servir em Moscou. Era homossexual.
Embora ninguém carregue um rótulo com indicações dos
seus desvios sexuais, Vassall, entretanto, era o tipo do
homossexual que qualquer pessoa com experiência do
mundo logo reconheceria. Por causa dessa anomalia,
tornou-se um homem solitário em Moscou. E, por ser um
solitário e um homossexual, automaticamente se revelava o
tipo de homem ao qual a espionagem soviética sempre dá
grande importância. Assim, os dirigentes russos logo
exploraram a solidão em que ele vivia. Convidaram no para
festas; colocaram-no em comprometedoras situações
sexuais, nas quais foi fotografado; e, então, sob a ameaça
de divulgar aquelas fotografias, fizeram com que
concordasse em trabalhar para eles.

Essa é a história de Vassall, e não existem razões para que


não se deva julgá-la verdadeira. Por outro lado, a ameaça
de chantagem não desculpa seu acordo em espionar para
os russos. O Centro apoderara-se dele. Antes que
desembarcasse em Moscou e antes mesmo que a
segurança britânica o soubesse, já os dirigentes do Centro
tinham informações das suas tendências homossexuais e de
que se tratava, também, de um homem fraco e pretensioso,
que tentava compensar as falhas de sua existência,
movimentando-se num ambiente social que se pode
descrever como “acima dele”. Para fazer frente ás despesas
nesse ambiente superior, Vassall necessitava de um salário
maior do que as 15 libras semanais que percebia na
embaixada. O Centro prometeu-lhe, então, uma boa
recompensa financeira, caso lhe fornecesse informações
valiosas.

Por volta de setembro de 1955, John Vassall começou a


operar. Retirava documentos secretos do escritório do adido
naval e os entregava a um agente soviético, que
imediatamente os fotografava. Feito isso, os documentos
eram devolvidos a Vassall, que, por sua vez, os repunha nos
arquivos, antes de alguém dar pela falta.

Essa manobra se prolongou pelo período de dez meses. A


utilidade de Vassall para o Centro poderia ter cessado em
julho de 1956, quando foi chamado de volta à Inglaterra. O
Centro, porém, estava com sorte. Vassall, ao chegar à
Inglaterra, não somente foi designado para um cargo no
Almirantado, que lhe dava acesso a documentos secretos —
a Divisão de Inteligência Naval —, mas também as
informações às quais tinha então acesso eram ainda mais
importantes do que as que, antes, extraíra do escritório do
adido naval em Moscou.

A situação se prolongou por dois anos, e então seguiu-se


um período durante o qual Vassall já não se mostrava tão
útil. É que fora designado para o escritório particular do
Lorde Civil do Almirantado, onde suas funções eram mais ou
menos as de valet-de-chambre do chefe — emprego este
que se ajustava perfeitamente ao seu temperamento. O
Centro vinha cumprindo a promessa no que dizia respeito às
recompensas financeiras, e Vassall, amanuense que
percebia apenas 15 libras semanais, podia dar-se ao luxo de
viver numa das áreas mais exclusivas e dispendiosas de
Londres — Dolphin Square —, onde alugara um pequeno
apartamento que mobiliara com gosto e enchera de
custosas antiguidades. Esse fato devia chamar a atenção da
segurança do Almirantado, pois Vassall estava-se
comportando exatamente como Harry Houghton, embora
com muito maior desembaraço. Alguns dos seus colegas
notaram aquele dispendioso padrão de vida. A explicação
de Vassall, de que recebera uma ou duas pequenas
heranças de velhas que eram suas amigas, foi, entretanto,
considerada satisfatória. Em face disso, nenhuma
investigação se levara a efeito.
Depois de haver cuidado do conforto pessoal do Lord Civil
por dois anos e seis meses, em outubro de 1959 Vassall foi
transferido de novo e, desta vez, para um departamento
que iria torná-lo ainda mais útil para o Centro. Designaram-
no para a seção que tratava dos assuntos da Esquadra na
Segunda Divisão Militar — o Secretariado do Pessoal Naval
— e ali mais uma vez passara a ter acesso à maioria dos
segredos do Almirantado. Transitavam por suas mãos
informações referentes a radar, a torpedos, a armas
antissubmarinos e a experiências de artilharia, assim como
boletins sobre táticas e manobras dos aliados e, igualmente,
instruções táticas e operacionais da Armada.

A diferença operada em seu modo de espionar era que,


então, fotografava os documentos, para o que fora
equipado pela RAF. Obedecia, com rigor, às normas de
espionagem que lhe haviam sido ensinadas em Moscou.
Nestas condições, pôde agir, com absoluta segurança —
exceto durante um ano, quando deixara de operar após o
caso Portland, de acordo com instruções do Centro —, até
setembro de 1962, quando foi preso.

Depois de parte da verdade se tornar conhecida, verificou-


se que, embora os lapsos de segurança no caso de Vassall
tivessem sido muito mais graves do que nos de Houghton e
Blake, mesmo assim, ele se revelara um ótimo agente. A
verdade é que, por mais de seis anos, entregara segredos a
Moscou, com pleno êxito, antes que começasse a se tornar
suspeito. E mesmo essa desconfiança poderia não ter
surgido, se o caso de Blake não provocasse a constituição
de ainda outro comitê de investigações — o Comitê
Radcliffe —, com a finalidade de fazer averiguações sobre a
organização e o sistema de trabalho de todos os
departamentos de segurança. Como resultado das
atividades desse comitê, e em face das sugestões feitas
para a melhoria do sistema de trabalho daqueles
departamentos, o pessoal da segurança do Almirantado
procedera ao levantamento de todos os seus integrantes.
Em consequência dessa investigação, o background de
Vassall fora anotado, tendo ele sido posto sob vigilância.
Assim, acabou desmascarado.

Não foi possível a Vassall negar o que vinha fazendo. Em


seu apartamento — ao ser revistado — encontraram-se
cópias de dezessete documentos do Almirantado e,
naturalmente, seu equipamento de fotocópia. Por outro
lado, segundo se diz, ele próprio confessou tudo o que
sabia.

Após haver sido julgado pelo tribunal de Old Bailey, Vassall


acabou condenado a dezoito anos de prisão — sentença
esta que focalizou, mais uma vez, a injustiça dos quarenta e
dois anos de prisão impostos a George Blake.

O escândalo do caso Vassall foi salutar por dois motivos. Fez


com que o público tivesse consciência de que os políticos
não são os modelos de virtudes que habitualmente
procuraram aparentar, de forma que o povo possa admirá-
lo; e, em segundo lugar — e de forma mais construtiva —,
esse caso provocou um endurecimento na observância das
normas de segurança, por parte das autoridades britânicas.
Espera-se, agora, que a lição aprendida seja lembrada por
muito tempo, embora se deva levar em conta que a
memória oficial geralmente se revela de tão breve duração
quanto pouco merecedora de confiança.
Nona Parte
ALGUMAS BREVES
OBSERVAÇÕES
Algumas Breves Observações

As páginas precedentes devem ser consideradas apenas um


relato das principais atividades da espionagem soviética,
nos primeiros quarenta anos de sua existência. Para se fazer
um completo levantamento de tudo o que sobre ela hoje se
sabe, seriam necessários vários volumes. Esperamos,
entretanto, haver apresentado um honesto retrato da
evolução e das realizações desse serviço secreto. Se, de
fato, atingimos esse objetivo, o leitor que observar, de
forma desapaixonada, o cenário que lhe pusemos diante
dos olhos, há de muito justamente admitir que as
conquistas da espionagem soviética, nesse curto período de
tempo, não deixaram de ser surpreendentes.

Justamente porque essa espionagem tem-se mostrado


extraordinária, maior razão existe para que sempre
tenhamos em mente que sua atividade cobre hoje o mundo
inteiro. Devemos recordar que as conquistas técnicas dessa
organização nunca foram tão grandes, que seus métodos
são conhecidos, que seus objetivos podem ser presumidos,
que ela não poupará esforços para realizar suas finalidades
e continuará a constituir uma tremenda ameaça a todos os
segredos de valor das potências estrangeiras.

Estar prevenido, em face dessa situação, representa apenas


sentir-se, em parte, antecipadamente armado. Na Câmara
dos Comuns, durante o debate sobre a Fala do Trono, em
1962, o ministro da Defesa, Sr. Thomeycroft, declarou:
A primeira coisa que desejo declarar é que não existiriam
espiões, se a tarefa de capturá-los fosse relativamente fácil.
Devemos descobrir um bom processo de nos livrarmos da
presença desses indesejáveis. E isso deve ser feito antes
que qualquer potência se antecipe a nós, na consecução
desse objetivo. É muito fácil dizer-se, depois que os espiões
foram apanhados e que todas as provas contra eles tenham
sido recolhidas: "Se houvesse sido incumbido de prendê-los,
teria agido com muito maior presteza.”

Digo-lhes que todos os casos provam o contrário, isto é,


que, na realidade, é muito difícil apanhar um espião e,
provavelmente, é muito maior o número dos que fogem que
o dos que são apanhados. E isto acontece em quase todas
as nações do mundo.

O ministro foi muito criticado pelo tom displicente e quase


chistoso desse discurso. No entanto, revelou, de fato, o mais
alto sentimento de ponderação, durante todo o debate, e o
trecho citado é de evidente bom senso. Apanhar espiões é,
na realidade, muito difícil, e nem todos os espiões são
descobertos. Esta, a realidade que não se pode negar.

Por outro lado, não se deve relaxar nos esforços para


capturá-los. A esse respeito, a seguinte norma deve ser
obedecida: se tanta gente quanto possível conhecer como o
inimigo age, haverá menor probabilidade de abrandamento
das normas de vigilância, como tem sucedido até aqui, já
que a tarefa de apanhá-los vem sendo confiada
exclusivamente a profissionais. O grande perigo da
espionagem soviética repousa não nas atividade dos
agentes profissionais, mas nos simpatizantes camuflados
que se encontram em situação de poder passar-lhe
segredos vitais. Os homens e as mulheres que se acham em
posições-chaves deviam estar permanentemente sob
investigação.

A realidade a que não podemos escapar é esta: mesmo


fazendo tudo o que pudermos, o Centro sempre tirara de
nós um grande número de segredos. O que deve ser feito,
portanto, é trabalhar, de forma que o número dos segredos
roubados se mantenha tão baixo quanto possível.

Constitui este o único antídoto?

Sabemos que estamos sujeitos a mesma crítica que


envolveu o ministro da Defesa ao tentar mostrarmo-nos
preocupados em relação ao que tem ocorrido na Grã-
Bretanha. Ainda assim, apresentamos a seguinte sugestão:
o único antidoto eficiente contra a apreensão, pelos
soviéticos, dos nossos segredos é nos concentrarmos em
obter tantos segredos deles quantos pudermos. Dessa
maneira, e somente dessa maneira, pode a posse, por eles,
dos nossos segredos ser efetivamente contra balançada.
Seria a instituição de uma situação de equilíbrio E esta
funcionaria, tanto quanto possível, em linhas iguais à que se
têm verificado no campo das armas nucleares.

De qualquer forma, nossas últimas palavras são as


seguintes: já vimos como o Centro trabalha, conhecemos a
amplitude dos seus objetivos, aprendemos como ele pode
ser despojado de seus agentes. Nestas condições, a
conclusão que se tira é a de que a atividade do Centro só
poderá ser contrabalançada, portanto, por uma constante
vigilância da população — esta, entretanto, agindo como
um todo.
40 ANOS DE ESPIONAGEM
SOVIÉTICA

Livro que vai às raízes de uma atividade que não se inicia


com a revolução leninista, mas em recuados tempos da vida
política russa, 40 Anos de Espionagem Soviética constitui
um precioso repositório de informações de inteligência,
colhidas nas mais variadas e respeitáveis fontes. Ronald
Seth escreve, praticamente, um manual de contra-
espionagem. Define o campo de ação e os processos
utilizados pelas forças interessadas em infiltração, com
intuitos desagregacionistas, nas democracias ocidentais.
Relaciona táticas e estratégias, das mais usuais como das
menos conhecidas, calcando a teoria em fatos
comprovados. Todos os mais famosos casos da espionagem
moderna são aqui examinados, bem como a modificação de
métodos que a modernização de técnicas tem imposto
àquelas táticas e estratégias. Com diversos cursos
especializados, Seth, graduado na Universidade de
Cambridge, serviu por longo tempo, durante a Segunda
Guerra Mundial, no Special Operations Executive, o que lhe
confere ampla visão dos problemas aqui tão bem versados.

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