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ARGUMENTOS

SOBRE A
LIBERDADE
Por Guido Orgis

Um resumo com os argumentos


de John Stuart Mill para defender
a liberdade de expressão
A
liberdade de expressão como a conhece-
mos hoje é coisa recente, assim como a
democracia que tem com ela uma rela-
ção simbiótica - regimes democráticos protegem
as liberdades individuais porque representam os
indivíduos que os formam.

No entanto, a liberdade de cada indivíduo se ex-


pressar e viver como entender melhor não está ga-
rantida nem mesmo em regimes democráticos. O
Brasil atual, na interpretação desta Gazeta do Po-
vo, é um exemplo disso.

Por isso, voltamos mais de 200 anos no tempo pa-


ra buscar argumentos fundamentais da crença
contemporânea no valor da liberdade de expres-
são. No belo ensaio Sobre a Liberdade, de 1859, o
filósofo John Stuart Mill fez uma defesa veemen-
te das liberdades individuais, a começar pela li-
berdade de expressão.

Mill foi um pensador liberal complexo, com opi-


niões que passaram por uma revisão do utilitaris-
mo, pelo laissez-faire econômico, pelo libertaria-

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nismo comportamental, até o progressismo. Em
Sobre a Liberdade, temos um forte traço libertário,
em que defendeu a menor interferência possível
do Estado sobre o que interessa somente à pessoa,
e a maior liberdade possível no debate de opiniões.

José Guilherme Merquior, em O Liberalismo, des-


taca que Sobre a Liberdade “tornou-se logo uma
Bíblia libertária”. “Mill entrelaçara vários ramos
do pensamento liberal. Liberdade política, auto-
nomia negativa, autodesenvolvimento, liberdade
como intitulamento, liberdade de opinião, liber-
dade como autogoverno, liberdade como privaci-
dade e independência.” (Merquior, 2014)

Em um momento em que parece haver um cres-


cente antagonismo entre defesa da liberdade e de-
fesa da democracia, Mill nos lembra como essas
são coisas interligadas. Por isso, acreditamos que
seja pertinente trazer a nossos leitores um resu-
mo de uma obra que está entre as mais influentes
no tema da liberdade.

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É notável como Mill encontra um valor da liber-
dade que muitas vezes passa ao largo no debate
atual: a verdade se fortalece com a liberdade. É o
atrito de ideias que nos permite entender o que é
verdadeiro e manter acesa a percepção de por que
uma opinião é mais verdadeira que outra.

A tentação do Estado ou de líderes é muitas vezes


limitar a liberdade por acreditarem terem em mãos
uma verdade absoluta. Fora das ciências exatas,
diz Mill, essa pretensão da verdade absoluta está
associada à sensação que muitos líderes e estadis-
tas têm de serem infalíveis.

A única garantia contra os riscos da imposição da


opinião, para Mill, é uma liberdade limitada ape-
nas pelo mal que uma pessoa possa praticar a ou-
tra. Um conceito mais flexível, provavelmente, do
que vamos encontrar na prática até mesmo em de-
mocracias liberais avançadas.

Quem acredita que é preciso construir barreiras


mais altas à liberdade de opinião tem em Sobre a
Liberdade um grande desafio argumentativo. Terá

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que provar que nenhuma verdade será impedida
de ser dita; ou que o pensamento da sociedade so-
bre o que é bom ou ruim não ficará atrofiado por
um senso comum imposto pela via do cerceamen-
to de opiniões divergentes.

O resumo a seguir traz as ideias principais expos-


tas por Mill e é um convite ao leitor para em se-
guida buscar a obra completa. Usamos neste tra-
balho a edição de 2022 da tradução de Denise
Bottman feita para a L&PM e publicada pela
MEDIAfashion/Folha de S. Paulo.

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Índice Clique no capítulo para ir para a página.

Capítulo 1 - Introdução

Capítulo 2 - Da liberdade de pensamento e discussão

Capítulo 3 - Da individualidade como um dos elementos

do bem-estar

Capítulo 4 - Dos limites à autoridade da sociedade

sobre o indivíduo

Capítulo 5 - Aplicações
Capítulo 1
Introdução

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“A única liberdade que merece esse nome
é a de buscarmos nosso próprio bem à
nossa maneira, desde que não tentemos
privar os outros de seu bem nem
tolhamos seus esforços de obtê-lo.”

O
antagonismo entre liberdade e autoridade
é, segundo Mill, um traço comum à maior
parte da história da humanidade. Isso por-
que o poder de quem governava sempre foi na maior
parte da história herdado ou conquistado. Não era
um poder que podia ser contestado.

As comunidades, por sua vez, tentavam limitar esse


poder absoluto. Elas precisavam se defender de gover-
nantes que não representavam necessariamente suas
vontades. A ideia que temos de liberdade vem dessa
busca pela limitação do poder do Estado.

Foram duas as formas de busca pela liberdade. Pri-


meiro, reconhecendo-se que os membros da comu-
nidade tinham determinados direitos ou liberdades
políticas que não podiam ser infringidos. Segundo,
através de controles constitucionais.

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A evolução desse reconhecimento da liberdade como di-
reito foi a indicação, pela comunidade, de quem compõe
o Estado. As eleições surgiram, mais do que como um re-
curso para garantir a liberdade, como uma forma de dar
poder a quem se identifica com o povo. E essa passou a
ser o componente dominante do liberalismo político.

Mas, com o aparecimento da democracia nos Esta-


dos Unidos, esse modelo passou por uma prova, já
que a ideia de que não haveria risco de tirania vinda
do próprio povo é falha. Isso porque o “governo au-
tônomo” é o poder de todos os outros exercido so-
bre cada um. A vontade do povo é só a vontade da
maioria. Ou seja, o povo pode querer oprimir uma ou-
tra parcela do povo. A possibilidade de existir uma
“tirania da maioria”, portanto, é um sinal de alerta e
de precaução em uma democracia.

Essa tirania pode ser praticada pelas autoridades pú-


blicas, e também pela própria sociedade, no que se
chama de “tirania social”. Ela não usa as penas da lei,
mas sim a opressão sobre a opinião e regras de con-
duta - impedindo qualquer pessoa de agir de forma
diferente do que é comum.

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Aqui, para Mill, surge o que é uma das questões mais im-
portantes para a humanidade: o conhecimento a respei-
to do limite da opinião pública sobre a vida das pessoas.
Não se trata apenas de garantir a liberdade diante da au-
toridade política, mas também a liberdade de se viver
conforme suas próprias convicções pessoais.

Mill estabelece que existe um limite para o quanto


a sociedade pode regular as regras de conduta dos
membros da comunidade, seja pela lei ou pela opi-
nião pública. E esse limite, para ele, tende a ser co-
locado no lugar errado porque a tendência dos se-
res humanos é julgar a conduta dos outros pelo
costume, usando, cada um, o princípio prático de
que todos deveriam agir como ele.

A preferência pessoal acaba tomando o lugar da ra-


zão nesse julgamento sobre o que se deve ou não re-
gular. Em outras palavras, o interesse pessoal é co-
mo uma lente pela qual os indivíduos julgam como
os outros devem agir.

Mill também se preocupa com o que ele chama de “ser-


vilidade” diante das preferências ou aversões que são

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manifestas por quem exerce influência sobre a opinião
pública. Simpatias e antipatias de um governante ou
de um líder religioso que não têm razão específica tam-
bém formam as regras morais.

No tempo em que escrevia, na Inglaterra do século 18,


Mill via um risco de longo prazo para a liberdade indi-
vidual vindo do próprio entendimento das pessoas so-
bre como funciona um governo. As pessoas, com o tem-
po, aprenderiam que o poder do governo também é
seu, passando a exigir que Estado invadisse as opiniões
individuais em nome da defesa de sua visão de mundo
- agindo da mesma forma que a opinião pública.

Essa intervenção do governo sobre as opiniões indi-


viduais poderia facilmente escalar, segundo ele, por-
que há na sociedade um número de pessoas que de
boa vontade entregam ao Estado o dever de cuidar
de qualquer problema que aparecer. E haveria tam-
bém o risco oposto, trazido por quem resistiria que
o governo resolvesse qualquer problema para evitar
tal intervenção. Os dois lados, dizia Mill, fazem isso
sem pensar muito adequadamente, errando na do-
se do que esperam de um governo.

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Onde Mill colocaria o limite para a intervenção da hu-
manidade sobre a liberdade individual? Para ele, a
única finalidade da intromissão deve ser a autode-
fesa. Ou seja, evitar que alguém cause dano a outros
justificaria o uso da força. O próprio bem do indiví-
duo não seria razão suficiente - aqui, cabe conver-
sar, argumentar, mas nunca obrigar.

Em resumo, a sociedade pode punir pela força da lei


ou desaprovar uma ação que, quando praticada, tem
relação com o interesse de outra pessoa. Ao mesmo
tempo, a sociedade pode exigir que alguém faça al-
gumas coisas pelos outros - o que, para Mill, não são
muitos casos -, como depor em um tribunal ou in-
tervir para proteger alguém de maus tratos.

A liberdade humana, como definida pelo Mill, é uma es-


fera onde o interesse da sociedade é apenas indireto. Isso
porque ela compreende o que ele chama de “domínio da
consciência”, que abrange a liberdade de pensar, sentir e
opinar sobre qualquer assunto. É por isso que a liberdade
de expressão não recai unicamente no âmbito da opinião
pública. Ela é tão importante quanto a liberdade de pen-
samento, sendo as duas inseparáveis.

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Além disso, a liberdade humana compreende os
gostos, escolhas de atividades, o direito, enfim,
de agirmos como quisermos e suportarmos as
consequências sem restrições - a não ser a de
que nada disso cause dano aos outros. O tercei-
ro componente da liberdade é o direito à asso-
ciação, desde que sem fim de prejudicar os ou-
tros e com pessoas maiores de idade e de livre
vontade. Independente da forma de governo,
nenhuma sociedade é livre se não respeita essas
três condições (liberdade de expressão, de esco-
lha sobre como viver e de associação).

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Capítulo 2
Da liberdade
de pensamento
e discussão

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“O grande mal não é o conflito violento
entre partes da verdade, mas sim a
silenciosa eliminação de metade dela;
sempre há esperanças quando as pessoas
são obrigadas a ouvir os dois lados.”

N
o tempo em que Mill escrevia, a liberdade de
imprensa já era vista como uma garantia con-
tra governos corruptos ou tirânicos. E ele ad-
mitia que governos constitucionais tendiam a se man-
ter distantes do controle da expressão de opinião, o que
não era uma garantia absoluta contra os momentos
em que os governos incorporavam alguma intolerân-
cia gestada na sociedade. Para o autor, era preciso de-
fender até a última opinião: mesmo que toda a socie-
dade, menos uma pessoa, tivesse a mesma opinião,
essa sociedade não teria o direito de impor o que pen-
sa contra esse indivíduo.

E o erro é pensar que a intervenção seria apenas na es-


fera pessoal do censurado. Na verdade, todos os outros
seres humanos e as gerações que estão por vir estariam
privadas daquela opinião.

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E qual o valor de uma única opinião diferente do resto?
Qual seu real valor para a sociedade? Quais os efeitos
de suprimi-la? Mill faz quatro proposições para res-
ponder a questões como essa e defender a liberdade de
expressão como parte da liberdade humana:

1. Uma opinião silenciada, até poder ser ouvida, tem o po-


tencial de ser verdadeira.

2. Mesmo que uma opinião seja errada, ela pode con-


ter uma parcela de verdade. O choque de opiniões con-

trárias é muitas vezes o que falta para uma verdade

maior vir à tona.

3. Se a opinião é toda a verdade e se torna dominante, ela


passa a ser entendida de maneira superficial se não for

contestada. É como se ela pudesse se tornar um músculo

atrofiado em um ambiente sem liberdade para o debate.

4. O próprio significado de uma doutrina ou ideia verda-


deira pode desaparecer ou se enfraquecer, virando um

dogma, impedindo que as pessoas tenham convicções de

verdade. Ou seja, o pensamento das pessoas se enfraque-

ce porque não sabem defender o que é verdadeiro.

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Mill começa sua argumentação pelos dois primeiros
pontos. Imagine que a opinião censurada é correta e
você perceberá que toda a humanidade seria privada
de conhecer a verdade. E, se é errada, perde também a
chance de ter uma visão mais clara da verdade quando
confrontada com o erro.

Essas duas proposições se tornam mais complicadas


conforme se define o que é ou não verdadeiro. Quem
teria a autoridade de definir em nome da humanidade
o que é ou não correto? Mill entende que não existe tal
papel porque ninguém é infalível em seu julgamento.

Há casos em que essa pretensão da infalibilidade acon-


tece na prática. Príncipes absolutistas, por exemplo,
podem não considerar a hipótese de estarem errados.
E muitas pessoas depositam “no mundo” a confiança
de decidir o que é ou não verdadeiro. Nesse caso, se sub-
metem a uma espécie de autoridade coletiva que pode
ser seu partido, sua igreja, sua classe social. Depositam
à sua época a confiança de dizer o que é aceitável.

Muitas pessoas podem refutar esse argumento admi-


tindo que, sim, as autoridades podem falhar. Mas essa

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chance de erro ao se tentar evitar a propagação da men-
tira ou do que é errado é a mesma de outras ações da
autoridade pública. Em alguma medida, diriam, preci-
samos ser movidos por nossas opiniões. O dever da au-
toridade seria o de perseguir as opiniões mais verda-
deiras possíveis e só impor quando houver segurança
de que são certas.

Para Mill, no entanto, é preciso ver que há diferença


entre opiniões verdadeiras porque sobreviveram à con-
testação e outras que simplesmente não foram refu-
tadas. Na prática, a verdade só existe quando pode ser
confrontada com o que não é verdadeiro.

Em outras palavras, ao perseguir qualquer opinião, a


sociedade pode incorrer em dois erros: sufocar a ver-
dade, ou deixar que a própria verdade se aprimore com
o confronto com outras ideias.

Mill lembra que o ser humano tende a agir de forma ra-


cional justamente porque está pronto a corrigir erros,
a identificar enganos pela experiência e pela discussão.
O erro com o tempo se rende ao que é certo. Uma pes-
soa com julgamento em que se pode confiar está aber-

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ta a ouvir diversas opiniões, a conhecer os modos de o
assunto ser pensado. É assim que ela adquire a con-
fiança de que seu julgamento é o melhor possível dian-
te da multidão de opiniões. E se a arena de debate está
aberta, estamos sempre com a chance de encontrar
uma verdade melhor; ou de que estamos com a melhor
verdade disponível no momento.

Há, no entanto, quem aceite esses argumentos e mes-


mo assim defenda que há casos extremos em que a li-
berdade precisa ser controlada. Aqui, Mill traz de volta
o argumento da infalibilidade: como ter certeza de que
não estamos errando ao dizer que um caso é extremo?

Argumenta-se também que uma opinião deva ser de-


fendida de ataques por sua importância social - cren-
ças tão úteis ao bem-estar que precisam de proteção
do Estado. Não haveria, por essa linha de pensamento,
problema em proibir o que os maus gostariam de pra-
ticar. Assim, a questão não é mais de verdade, mas de
utilidade das opiniões. Mas para Mill não há muita di-
ferença entre a utilidade da opinião e a opinião pro-
priamente - afinal, a decisão sobre o que é útil ou não
também é sujeita a falhas. Pensando de um jeito dife-

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rente: quem tem certeza de uma coisa tende a acredi-
tar que não há utilidade nas outras opiniões.

Um exemplo concreto trazido por Mill é o do filósofo


grego Sócrates. Apesar de ser um grande pensador e
ter influenciado várias vertentes filosóficas, ele foi con-
denado por impiedade (por negar os deuses do Esta-
do) e por imoralidade, por supostamente perverter a
juventude com suas doutrinas. Suas opiniões, deixa-
das para o julgamento de então, não passaram pelo cri-
vo da utilidade social.

Uma outra linha de argumento contra a liberdade é a


de que a verdade tem o poder de sobreviver às perse-
guições. Assim, não só não seria necessário proteger a
liberdade, como a falta dela ajudaria a mostrar o que é
verdadeiro. Mill admite que é louvável que a verdade
seja colocada à prova, mas adverte que o compromis-
so das pessoas com a verdade é tão grande quanto seu
compromisso com o erro - o que significa que, aplica-
das as forças da sociedade e da lei, tanto verdades quan-
to mentiras podem ser propagadas sem concorrência
em um ambiente de pouca liberdade. A vantagem da
verdade, em um ambiente livre, é que ela sempre po-

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derá ser redescoberta e chegar a uma época em que
será cultivada.

A ideia de que existem modos “heréticos’ de pensar e vi-


ver é rechaçada por Mill, que vê riscos de isso fazer com
que boas opiniões circulem apenas em pequenos grupos,
entre intelectuais, sem fazer diferença na vida das pes-
soas. Ou, pior, que isso faça com que intelectuais promis-
sores deixem de se “aventurar” em pensamentos ousa-
dos. Isso cria uma certa conformidade de opinião.

E o que a própria verdade pode ganhar com a liberda-


de? Se algo é absolutamente verdadeiro, deveria con-
viver com outras ideias erradas na sociedade? Mill de-
fende que a verdade até ganha mais com os erros de
quem, preparado, pensa por si mesmo, do que com as
opiniões verdadeiras ditas por quem só repete o status
quo. E a timidez na exploração da verdade prejudica
mais os seres humanos médios, que deixam de ir até
onde suas mentes podem por conformismo - podem
existir, ele adverte, grandes pensadores individuais em
um povo de mentes escravizadas. Para ele, precisamos
ser mentalmente instigados como povo a debater com
profundidade as grandes questões.

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Até aqui, entendemos que é sempre melhor que circulem
opiniões por elas poderem ser verdadeiras; e que mesmo
uma verdade absoluta precisa passar pelo teste contra
outras ideias, porque ela pode ganhar ainda mais corpo.
Mill desenvolve uma segunda linha de argumentação a
respeito do fortalecimento do pensamento humano em
um ambiente de liberdade de opinião.

Para ele, a verdade é viva quando discutida integral-


mente, defendida em detalhes, com conhecimento de
suas razões. Como seres racionais, devemos defender
a crença em uma verdade com argumentação e pro-
vas, e não como uma superstição. É preciso conhecer
os fundamentos das nossas opiniões, pelo menos pa-
ra defendê-las das objeções mais comuns.

Em assuntos complicados, como filosofia, moral, po-


lítica, é preciso tanto defender um ponto de vista co-
mo desmontar a argumentação em contrário. Sem is-
so, a solução para uma pessoa é escolher o que lhe diz
a autoridade, ou confiar na sua própria propensão de
escolher um lado ou outro, a esmo. Assim, conhecer o
argumento contrário e se colocar diante dos melhores
argumentadores e oradores é uma forma de destilar o

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próprio conhecimento. É por isso que Mill invoca a fi-
gura do “advogado do diabo”, que seria útil na forma-
ção de qualquer opinião.

Entrar nesse confronto livre de ideias não seria uma ati-


vidade só para entendidos ou intelectuais. Há quem acre-
dite que o melhor para a maioria das pessoas é que a au-
toridade oriente as pessoas mais simples. O efeito,
segundo Mill, seria a divulgação de ideias, mesmo que
verdadeiras, sem seus fundamentos. E, com o tempo, es-
sas ideias também perderiam seu próprio significado,
transmitindo só uma parcela do que pretendem. Viram
um “credo hereditário”, adotadas de forma passiva.

Um dos riscos quando isso acontece é as pessoas erra-


rem nos julgamentos em situações nas quais não têm
experiência porque recorrem a ideias prontas, à cultu-
ra, aos lugares-comuns - que muitas vezes são uma
solução, mas não uma reflexão. É como resolver o que
fazer pautado por ditados populares.

Isso não significa que uma verdade deixa de existir


quando passa a ser aceita amplamente e deixa de ser
questionada. Ao contrário, com o tempo cada vez me-

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nos controvérsias deveria haver no mundo. Mas é pre-
ciso levar em conta que o mesmo pode acontecer com
opiniões falsas.

Mill ainda analisa um terceiro caso (além de a opinão


vigente ser falsa ou verdadeira): o caso em que uma
doutrina tem misturadas verdade e falsidade - o que é
o mais comum na vida real. Ou seja, é preciso que opi-
niões discordantes existam para tornar as opiniões fu-
turas mais verdadeiras. O autor entende que os seres
humanos tendem a pensar de forma unilateral, e na
maioria das vezes as opiniões tidas por muito tempo
como “heréticas” substituem as anteriores quando há
mudanças bruscas de opinião. Assim, há um decai-
mento de parte da verdade, enquanto outra parte se
eleva. Substitui-se uma verdade parcial por outra.

Quando há liberdade, as ideias antagônicas da vida prá-


tica ficam em uma balança, se equilibrando. A verdade
será uma reconciliação desses opostos - embora sejam
raros os seres humanos imparciais que veem igualmen-
te os dois lados. Então é o momento histórico, as propen-
sões de determinada época, que moldam o que é a opi-
nião dominante com o que ela tem de certo e errado.

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A liberdade de enunciar qualquer opinião traz vanta-
gens para se conhecer a verdade, mas não acabaria com
o sectarismo, ou a polarização como falamos hoje em
dia. Isso porque sempre existirão pessoas com a ten-
dência de se guiarem como se não houvesse outra ver-
dade possível além daquela na qual acreditam. Pode
ser, inclusive, que o debate livre em alguns casos até
cause reações mais violentas, já que os sectários pas-
sam a ver opiniões diferentes das suas. Mesmo assim,
a liberdade vale a pena por atuar sobre quem não está
sob o efeito do sectarismo.

Mill encara por fim o tema do limite à forma do deba-


te. Para ele, não tem cabimento se colocar um limite
ao que se discute em sociedade, mesmo quando se sa-
be que o argumento é construído de maneira falsa. Pa-
ra ele, até pessoas de boa-fé podem opinar de forma
errada, sem que se deem conta de ter feito uma falsi-
ficação. Ele entende que a lei não deve coibir nem mes-
mo o ataque mais duro em um debate, porque no fim
é a opinião de cada um que deverá condenar quem foi
injusto ou fazer uma menção de honra ao lado contrá-
rio ao nosso quando ele argumente com serenidade.

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Capítulo 3
Da individualidade
como um dos
elementos do
bem-estar

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“Assim como é útil que existam diversas
opiniões enquanto a humanidade é
imperfeita, da mesma forma devem
existir diversas experiências de vida.”

S
abemos que Mill defende uma ampla liberdade
de expressão em nome do fortalecimento da
verdade e da capacidade de reflexão dos mem-
bros da sociedade. Agora, ele vai estender esse argu-
mento: além de opinar, todos deveriam ter liberdade
para viver conforme suas opiniões - desde que por con-
ta e risco próprios.

Antes de seguir, é importante ressaltar que Mill admite


limites à liberdade de expressão. As opiniões não são li-
vres quando usadas para uma ação perniciosa. Esses li-
mites, quando colocados às ações, são mais restritivos.

Um exemplo: Mill diz que deve ser livre a opinião de


que os comerciantes de trigo matam as pessoas de fo-
me porque cobram caro pelo alimento; a mesma opi-
nião, quando proferida a uma turba pronta para in-
vadir a casa de um cerealista, deve ser controlada.
Assim vale para a ação, ou a invasão em si. O limite

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sempre é o de que um indivíduo não pode se tornar um
problema para os outros.

Se opiniões diferentes das mais comuns em sociedade


já causam o desejo da censura, essa tendência é ainda
maior quando se trata efetivamente dos modos de vi-
da. É natural, diz Mill, que as pessoas satisfeitas com os
modos correntes de vida não vejam valor na esponta-
neidade individual.

Mas há razões para ele acreditar que a excelência de


conduta individual não pode vir somente de se copiar
o que os outros fazem. É do ser humano querer colocar
seu próprio julgamento para funcionar e experimentar
o que é melhor para si mesmo. Ao mesmo tempo, se-
ria um absurdo ignorar o conhecimento que já existia
antes de virmos ao mundo. Por isso, é preciso somar o
aprendizado das experiências passadas à interpreta-
ção da realidade que cada um faz à sua maneira. É fa-
zendo suas escolhas, diz Mill, que o ser humano se de-
senvolve, ganha prática para discernir o que é melhor,
como um exercício físico aplicado aos poderes mental
e moral.

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Uma vida de imitação, portanto, é limitante. Só quem vi-
ve por si um projeto de vida usa todas as suas faculdades:
visão, raciocínio, discernimento, julgamento, autocon-
trole, firmeza para seguir sua decisão. Para Mill, a primei-
ra obra de um homem é o próprio homem, que deve ser
como uma árvore que se desenvolve em todos os lados.

E, para isso, é preciso levar em conta que tanto o en-


tendimento quanto os desejos e impulsos fazem par-
te do ser humano - que não age mal porque seus im-
pulsos são fortes, mas porque sua consciência é fraca.
Mill ressalta a ideia de “cultivo pessoal”, que pode di-
recionar a energia do indivíduo para o bem. O risco de
seguir sempre o que é costumeiro é ser guiado pela
multidão, evitar a sua própria natureza e deixar de ter
opinião ou sentimento próprio.

“É na proporção do desenvolvimento de sua individu-


alidade que cada pessoa se torna mais valiosa para si
mesma e, portanto, capaz de ser mais valiosa para os
outros”, escreve.

Ele admite que é preciso que todos estejam sob a apli-


cação de uma regra de justiça em relação aos outros -

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ninguém pode se desenvolver à custa dos outros, pelo
contrário, deve levar em conta quem o cerca.

E qual a utilidade do desenvolvimento individual?

Primeiro, quem se desenvolve é exemplo para os ou-


tros. Além disso, pessoas originais - muito raras, aliás
- introduzem coisas novas e boas que não existiam e
mantêm a vitalidade do que já existia.

Mill traz à tona a figura do que ele chama de “gênio”, a pes-


soa original, que precisa de uma atmosfera de liberdade
para prosperar e, se ficar presa em um molde, deixará de
dar sua contribuição para o avanço da humanidade.

Gênios, para Mill, precisam ser cultivados. Mas, pelo


menos em sua época, pareciam ignorados e vistos com
indiferença pela maioria das pessoas. Isso porque a ori-
ginalidade tem a característica do desconhecido, aqui-
lo que não sabemos que precisamos. Os gênios vêm
para abrir os olhos dos outros a respeito do novo.

A excentricidade de comportamento é elogiada pelo


autor, que diz entender que muitas vezes precisa ha-

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ver uma minoria altamente dotada e instruída para
contornar o poder da opinião pública e dos governos
movidos por essa mesma opinião.

O direito de viver como quiser é para todos, claro, não


só para gênios. Não existe razão, diz, para que qualquer
pessoa seja impedida de viver como quiser. Pessoas di-
ferentes se desenvolvem de formas diferentes, em
condições diversas. O que pode ser um estímulo para
uma pessoa, pode ser uma limitação para outra.

No entanto, a sociedade tende a ser intolerante com


modos que não são os amplamente adotados. Para ele,
a opinião pública se torna intolerante a qualquer ma-
nifestação forte de individualidade. E diz haver um
“despotismo do costume”, que se torna um impediti-
vo para a aspiração de coisas melhores pelas pessoas.
A liberdade, na opinião de Mill, é a única fonte do apri-
moramento humano, com cada pessoa podendo bus-
car seu próprio aperfeiçoamento.

Isso não significa, em contraste, que nada possa mu-


dar em uma sociedade dominada pelo costume. Mas
todos mudam juntos, diz, de acordo com as regras es-

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tabelecidas para todos - é a mudança pela mudança e
não pelo aperfeiçoamento.

Mas então será que as pessoas, baseadas no costume,


se contrapõem à individualidade por não quererem o
progresso? Para Mill, esse não é o caso. A sociedade quer
o progresso, quer novas invenções, melhorias nas con-
dições de vida. Mas é tão forte o desejo de que todos
sejam iguais, que pensem da mesma maneira.

O poder que a opinião pública tem de deter a diversi-


dade que a individualidade permite é um risco grave. O
autor reclama de um igualamento entre os modos de
pensar promovidos pela imprensa, pelo comércio e ou-
tros setores da sociedade e vê o risco da ascendência
da opinião pública sobre o Estado: políticos passariam
a seguir a opinião pública conforme a conhecem, de
forma pragmática, deixando de existir qualquer poder
que possa se opor a essa superioridade numérica.

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Capítulo 4
Dos limites à
autoridade da
sociedade sobre
o indivíduo

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“O argumento mais forte contra
a interferência do público na conduta
puramente pessoal é que, quando
se tem essa interferência, o mais
provável é que ela se dê de modo
errado e no lugar errado.”

A
gora que entendemos que a liberdade de vi-
ver como entendemos deve ser a mais am-
pla possível, é preciso refletir sobre até on-
de pode ir a individualidade. Onde colocar os limites
para a ação individual?

Mill escreve que quem vive sob a proteção da socieda-


de precisa retribuir este benefício observando uma li-
nha de conduta em relação aos outros: não lesando o
interesse alheio e arcando com sua parte na defesa da
sociedade. É quando os atos de uma pessoa interferem
sobre os interesses de outra pessoa que a sociedade
pode examinar se cabe fazer alguma coisa a respeito.

Isso não quer dizer que ele defenda uma sociedade


de pessoas egoístas e indiferentes, mas sim que a be-
nevolência de cada um seja exercida por livre vonta-

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de. A educação e a persuasão têm o papel de conven-
cer as pessoas a exercerem suas virtudes. É o mútuo
auxílio entre seres humanos que deve levar as pes-
soas a procurarem seu desenvolvimento. Mas deve-
-se ter em conta que é o indivíduo sempre o maior
interessado em seu próprio bem-estar - a socieda-
de, afinal, pode estar errada nas suposições por trás
das imposições feitas ao indivíduo, como diz o argu-
mento da infalibilidade usado no Capítulo 1.

É natural que as pessoas vejam com admiração quem


mais desenvolve suas faculdades e qualidades. A ad-
miração é um retorno para quem se destaca. E se es-
colher um modo de vida que não condiz com o apro-
vado pela maioria, o máximo a que uma pessoa pode
ser submetida é receber uma opinião negativa.

Já quando se trata de atos que causam lesões reais,


ou omissões graves, o tratamento deve ser diferen-
te. São coisas condenáveis e podem ser vistas pela
lei. Em muitos casos, são moralmente reprováveis.

Aqui é preciso distinguir entre os conceitos de “per-


da de consideração” e “reprovação”. A primeira tem

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relação com a falta de prudência ou dignidade pes-
soal, mas que não afeta terceiros diretamente. Ou
seja, podemos cair no julgamento de nossos seme-
lhantes por fazer algo desagradável, mas que não
causa dano a terceiros. A reprovação cabe quando há
ofensa a terceiros.

No primeiro caso, não gostaríamos de infligir ainda


mais problemas à pessoa que cai na perda de consi-
deração, pelo contrário, gostaríamos de indicar que
existe um caminho melhor. Agora, no segundo caso,
quando os efeitos nocivos de seus atos recaem so-
bre os outros, a sociedade deve exercer algum tipo
de punição.

Mill considera que há casos em que o mal que uma pes-


soa inflige a si mesma pode atingir outras pessoas. Se-
ja pelo exemplo que dá, seja por gastar recursos ou pio-
rar as condições de vida de quem está em seu entorno.
Esses também seriam casos de reprovação.

Por exemplo, alguém que constitui uma família e


gasta todo o dinheiro sem prover decentemente o
sustento deve ser punido pela quebra de seu dever.

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Outro caso é o de que quem, com sua escolha pessoal,
não cumpriu um dever com a sociedade. Você pode se
embriagar quando quiser. Mas se você for um policial
em serviço, a embriaguez se torna motivo de censura.

E, se for o caso de censurar um adulto que causa pre-


juízo só a si mesmo, que seja por consideração para
que não se prejudique ainda mais, e não pelos servi-
ços que deixam de prestar à sociedade. Não é preci-
so que um membro da sociedade faça “algo irracio-
nal” para que mereça orientação e atenção.

A principal razão para não se interferir em questões


estritamente pessoais é que as pessoas julgam de
acordo com o que as agrada, não havendo certeza de
que a intromissão só se dará em coisas das quais a
humanidade tem certeza. E o julgamento pelo que é
o costume, pelo que é a crença pessoal, invade a li-
berdade individual e tenta impor coisas que não ne-
cessariamente são melhores.

Um exemplo prático disso é a restrição ao consumo


de carne de porco que existe em algumas religiões.
Seria correto um governo impor uma dieta sem car-

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ne de porco a uma minoria que não acredita nessa
restrição? Como saber se um costume realmente é
carregado de uma verdade incontestável?

Na época em que o livro foi escrito, havia estados dos


Estados Unidos que proibiam a venda de bebidas al-
coólicas. Esse é um caso interessante em que o go-
verno encontra uma forma indireta de cercear o di-
reito individual e impor um costume. No caso, a
restrição é em uma atividade pública, o comércio,
que pode ser muito bem regulado pelo Estado. E o
efeito é uma restrição à liberdade individual de com-
prar bebida alcoólica em nome da segurança pública
ou da “ordem social”. Para Mill, uma restrição injus-
tificável que distorce o entendimento do que devem
ser os direitos sociais.

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Capítulo 5
Aplicações

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“Um Estado que apequena seus homens
para que possam ser instrumentos mais
dóceis em suas mãos, mesmo que para
propósitos benéficos, descobrirá que com
homens pequenos não se pode realizar
nada realmente grande.”

Como aplicar na prática os princípios de liberdade


individual? Uma questão que precisa ser levada em
consideração é que, mesmo quando é justificável, a
restrição da liberdade pode não ser o melhor.

Existem muitos conflitos na sociedade (com pessoas


se sentindo prejudicadas) nos quais nem sempre é re-
comendável haver intervenção. Um exemplo é o de al-
guém que passa em um concurso muito concorrido e,
no fim, colhe um fruto que é também o fracasso de ou-
tros. Não faria sentido puni-lo pela frustração dos ou-
tros candidatos, embora ela seja um efeito real de seu
sucesso. A intervenção só deve ocorrer quando os meios
usados para o sucesso afetam o interesse geral.

Também já se chegou à conclusão de que é melhor


deixar o comércio definir seus preços, embora essa

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atividade seja social, ou seja, tem impacto sobre o
público. Nem todas as intervenções no comércio têm
relação com a liberdade - o princípio de que as pes-
soas ficam melhor se deixadas a seu próprio julga-
mento não impede que se inspecione os pesos ou a
qualidade dos produtos.

As restrições podem acontecer em casos em que a au-


toridade precisa reduzir o risco de um crime ou de um
acidente. Para Mill, o ideal é o governo avisar dos peri-
gos - como um sinal de precaução no rótulo de um fras-
co de veneno. Nesse caso, o autor também defende o
uso da “prova pré-constituída”, que no caso do vene-
no pode ser um registro do nome, endereço, quanti-
dade comprada pelo cliente; ou a presença de uma tes-
temunha para a aquisição. Tudo o que possa evitar a
proibição absoluta de se comprar veneno.

Seriam admissíveis também restrições para preve-


nir crimes. Por exemplo, proibir que alguém que co-
mete uma violência embriagado volte a beber.

A ação de incitar alguém a fazer algo errado, por sua


vez, está no limite do debate da liberdade. Deve-se

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permitir que as pessoas joguem e punir o dono da
casa de jogos? Não é uma questão respondida di-
retamente por Mill, que admite que pode-se exi-
gir, por exemplo, que as casas de jogos sejam man-
tidas em sigilo (o que hoje seria dizer que não
poderiam fazer publicidade), para serem só conhe-
cidas por seus frequentadores. Ou que, no caso da
venda de bebidas alcoólicas, se imponha alguns li-
mites para dificultar o acesso. O autor concede que
é o caso, por exemplo, de o governo escolher tri-
butar mais pesadamente produtos com efeitos ne-
gativos (os “impostos de pecado”, como chama-
mos hoje), e ter regras mais rígidas de licença de
funcionamento ou a regulação do horário de bares
por causa da necessidade de vigilância.

Em resumo, a liberdade de colocar em prática as opi-


niões pessoais pode ter algumas restrições, de pre-
ferência via o desencorajamento e o aconselhamen-
to quando os efeitos são só sobre o indivíduo.
Quando o comportamento tem algum tipo de efeito
social (ou externo) as restrições são maiores e podem
chegar até a proibição.

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Seria um caso extremo de proibição um contrato em
que uma pessoa voluntariamente se torna escrava.
O contrato não é válido, diz Mill, porque a razão da
liberdade só existe enquanto há liberdade: não se é
livre para não ser livre. Ele entra nesse caso para de-
fender que os contratos entre pessoas podem ser
desfeitos, que não existem contratos irretratáveis.

Outro tema em que o autor enxerga a necessidade


de uma intervenção é a educação dos filhos. Para ele,
há uma inversão de responsabilidades: espera-se
que o Estado seja responsável por prover a educação,
e não os pais. O correto seria o Estado exigir dos pais
que assumam a responsabilidade de prover a edu-
cação até determinado nível, esforçando-se pelo
aprendizado mínimo para que eles se tornem inde-
pendentes - a indiferença ou inação dos pais tem um
efeito sobre um terceiro e isso justifica a regulação.
O debate mudaria do fornecimento de educação pe-
lo Estado para a exigência de educação dos pais.

Esse também é um argumento contra a educação


dominada pelo Estado. Seria atividade do governo
fazer os exames públicos para ver se as crianças

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aprenderam o que seria esperado para a sua idade. E
seriam exames nos quais o Estado não poderia exi-
gir conteúdos além do conhecimento “científico”.

Para encerrar sua argumentação, Mill traz as três ob-


jeções para a interferência do governo quando não
há qualquer infração da liberdade de terceiros:
1. Não deve haver interferência quando a coisa seria mais
bem feita pelas pessoas do que pelo governo. E isso é o

mais comum, já que quem tem interesse final sobre al-

guma coisa tende a fazer melhor do que o governo.

2. Mesmo nos casos em que as pessoas não fazem algo


tão bem quanto um funcionário público, ainda assim é

desejável que o façam para tirarem algum aprendizado,

fortalecendo suas faculdades.

3. É preciso restringir a interferência do governo também


para evitar que ele aumente de forma desnecessária. Um

governo grande serve para criar um público de parasitas

ou com intenções de parasitá-lo. Se todos os grandes ne-

gócios do país fossem do governo e ele fosse o grande em-

pregador, nem a liberdade de imprensa, nem a democra-

cia, tornariam o país livre.

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Enfim, diz Mill, um povo dependente dos burocratas
do governo é incapaz de tomar as rédeas das situa-
ções importantes e improvisar quando necessário
para resolver seus problemas.

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Referências

MERQUIOR, José Guilherme. O Liberalismo.


3ª edição. São Paulo:É Realizações, 2014.

MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade.


São Paulo: MEDIAfashion: Folha de S. Paulo, 2022.

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