Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Essa aula tem como objetivo principal analisar o mito de Sísifo à luz da psicologia
junguiana. Iniciamos com uma explicação de Camus sobre o que é um símbolo que
concorda com o conceito junguiano do mesmo:
“Um símbolo é sempre genérico e, por mais precisa que seja sua tradução, um
artista só lhe pode restituir movimento: não há tradução literal. De resto, nada
é mais difícil de entender que uma obra simbólica. Um símbolo sempre
ultrapassa aquele que o usa e o faz dizer na realidade mais do que tem
consciência de expressar. Neste sentido, o meio mais seguro de captá-lo
consiste em não provocá-lo, iniciar a obra sem ideias concebidas e não buscar
suas correntes secretas.” (Albert Camus, sobre a obra de Kafka)
Sísifo era filho de Éolo e Enarete; fundador e primeiro rei de Éfira, que depois se
tornou Corinto. Seu nome significa “duplamente sábio” (apêndice da Odisseia, Nova
Fronteira)
Junito Brandão ainda explica: “Relacionado com sophós - sábio, instruído, inteligente,
hábil” e "O mito de Sísifo divide-se em vários episódios, refletindo cada um deles um
ardil deste incorrigível embusteiro que a Ilíada chama de "o mais solerte dos
mortais.” (J. Brandão, Dicionário mítico-etimológico)
Por motivos didáticos, e seguindo a ideia de Junito Brandão, separamos o mito em
diferente episódios. Os trechos que aparecem em itálico ao longo da apostila são a
descrição da história de Sísifo feita por Junito em seu Dicionário Mítico-Etimológico.
1a parte:
"Autólico, o maior larápio mítico da antiguidade e que fora instruído por Hermes na
arte do perjúrio e do furto, havia roubado o rebanho do rei de Corinto. Sísifo, sem
perda de tempo, conhecendo bem “o colega”, fez-lhe uma visita e identificou logo os
bois que lhe haviam sido furtados, porque gravara o próprio nome sob o casco de
cada um. A chegada do rei de Corinto coincidiu com a véspera do casamento de
Anticleia, filha de Autólico, com o herói Laerte. Durante a noite o esperto hóspede
conseguiu um meio de tornar-se amante da noiva, que ficou grávida de Ulisses. Uma
variante assegura que Autólico, desejando ter um neto com a astúcia de Sísifo,
facilitou o encontro entre ambos.”
Como Sísifo era filho de Éolo, e este era descendente da linhagem de Deucalião, a
família pode ser traçada diretamente à Prometeu.
Essa é uma Indicação importante: Prometeu é aquele que pensa antes. Sísifo
mostra essa característica ao se antecipar marcando os cascos dos bois antes que eles
sejam roubados. De certa forma, seu antagonismo com os deuses começa de forma
indireta, já que Autólico era filho de Hermes e aprendeu a arte de roubar com seu próprio
pai. Sísifo já vence os poderes divinos nesse primeiro momento.
Isso nos faz pensar nas questões transgeracionais: o quanto carregamos conteúdos
dos nossos antepassados e ainda lutamos para resolver essas questões? A história de
Prometeu e seus descendentes parece ser de desafio aos deuses. O próprio Deucalião,
bisavô de Sísifo, se recusa a morrer e sobrevive ao dilúvio enviado por Zeus. Parece que
isso vai se acumulando até chegar em Ulisses na Odisseia (cai nas graças de uns e ira de
outros deuses). Jung diz sobre a herança e a influência que carregamos dos nossos
antepassados:
2a parte:
"Quando Zeus raptou Egina, filha do deus-rio Asopo, passou por Corinto e foi visto
por Sísifo, que, em troca de uma fonte concedida pelo deus-rio, revelou-lhe a
identidade do raptor. O pai dos deuses e dos homens imediatamente enviou-lhe
Tânatos, mas o astuto rei de Corinto enleou a Morte de tal maneira, que conseguiu
encadeá-la.”
Nesse episódio Sísifo mostra claramente que não teme os deuses. Entrega Zeus
sem maiores dificuldades, desde que possa se beneficiar da situação. Em troca de um
ganho (a fonte), revela a identidade do raptor. Desde o início da história o comportamento
de Sísifo é compatível com as ideias do capitalismo e do oportunismo ainda muito
presentes na nossa sociedade atual. Verena Kast explica um pouco sobre o simbolismo
dessa atitude de Sísifo:
Zeus, cego de raiva por tamanho desrespeito, erra em ordenar que Tânatos
pessoalmente matasse Sísifo? Terá sido sorte de Sísifo? Ou o humano anteviu o que
poderia acontecer e exatamente por isso desafiou o deus?
“Se tentarmos ver em Sísifo um modelo de homem, ele então será tão
convencido de sua força, de suas inteligência e de suas capacidades criativas
que se considerará imortal. Morte, mudança, renuncia, reveses, nada disso
existe para ele. Ele agrilhoa o princípio “morte” aí revelado e, ao ser ameaçado
por ele, encarcera-o no quarto de despejo. Desse modo equipara-de a Zeus,
iguala-se aos deuses, mas anula o princípio que permite o criativo.” (Verena
Kast, Sísifo, pág. 76)
3a parte:
"Como não morresse mais ninguém, e o rico e sombrio reino de Hades estivesse se
empobrecendo, a uma queixa de Plutão, Zeus interveio e libertou Tânatos, cuja
primeira vítima foi Sísifo. O astucioso rei de Corinto, no entanto, antes de morrer,
pediu à mulher que não lhe prestasse as devidas honras fúnebres. Chegando ao
Hades sem o "revestimento" ritual, isto é, sem a conformação de um êidolon, Plutão
perguntou-lhe o motivo de tamanho sacrilégio. O solerte filho de Éolo
mentirosamente culpou a esposa de impiedade e, à força de súplicas, conseguiu
permissão para voltar rapidamente à terra, a fim de castigar severamente a
companheira. Uma vez em seu reino, o rei de Corinto não mais se preocupou em
cumprir a palavra empenhada com Plutão e deixou-se ficar, vivendo até avançada
idade."
É importante, inclusive para o estudo de outros mitos, que saibamos o que significa
êidolon. A expressão vem do grego e pode ser traduzida como imagem, reflexo. Idolum do
latim dá origem a ídolo. Expressão comumente utilizada pela igreja para denotar a “estátua
de um deus falso”.
"Em termos de mito e religião grega, êidolon é uma espécie de “corpo astral
insubstancial”, um simulacro que reproduz os traços exatos do falecido em
seu derradeiros momentos." É uma espécie de sombra do que o indivíduo foi em
vida. E, é como essa sombra, que os mortais irão existir (“viver”) no Hades.
Junito, explorando a etimologia da expressão ainda diz que “... sendo o êidolon
uma réplica do morto, ele é uma imagem que se vê e, por conservar uma resíduo
latente de consciência, é algo que sabe.”
A atitude egoísta de Sísifo afeta a harmonia dos mundos e por isso Zeus precisa
intervir mais uma vez e mais uma vez Sísifo se antecipa e se prepara para o que está por
vir. Usando sua esposa e enganando Plutão. Chega no Hades mais vivo e mais cônscio do
que devia, é portanto mandado de volta, mas apenas para corrigir o suposto erro de sua
esposa.
Mais uma vez o feminino aparece apenas como meio para se conseguir algo.
Autólico usou sua filha para conseguir o astuto neto Ulisses. Sísifo usou sua esposa para
enganar os deuses. O feminino nessa história tem apenas um papel objetal. A falta de
conexão com o feminino durante a história é um dado importante. Como num sonho quando
ouvimos apenas a voz de alguém, ou só temos a ideia de um personagem, isso também é
uma informação que pode ser explorada.
O quanto confiamos para entregar nossa pedra a outro por algum tempo? O quanto
nos deixamos disponíveis para segurar a pedra de outro por um tempo? Nosso orgulho
muitas vezes não permite que façamos isso. Somos filhos da independência (e
Sísifo pode ser apresentado como uma metáfora do homem unilateralizado que
descumpre sua promessa para com as forças inferiores do inconsciente. De certa maneira
engana sua própria anima e a usa para não se entregar para a morte. Quer ser criativo,
mas negando o feminino, assim como a morte, não dá chance para que as verdadeiras
expressões da alma surjam.
Sísifo enganou os deuses e se livrou da morte duas vezes. Se pensássemos apenas
de maneira literal, isso poderia soar como um grande feito. Porém, o desfecho que segue
nos faz pensar de maneira diferente. Talvez exista em cada um de nós a vontade (egóica)
de enganar os deuses e a ordem natural da vida e da morte. De maneira enantiodrômica,
as forças do inconsciente (os deuses) cobram Sísifo por seu atrevimento. Cometeu a húbris
(hybris), desafiou os deuses e acreditou ser maior do que eles.
Seu ego confundiu a grandeza do espírito humano com a divindade. Vamos olhar
para o que Jung diz sobre o assunto:
"O interregno é cheio de perigos, pois os fatos naturais farão valer os seus
direitos sob a forma de diversos “ismos”, dos quais nada resulta senão a
anarquia e a destruição; e isto porque, em consequência da inflação, a hybris
humana escolhe o eu, em sua miserabilidade visível, para senhor do
universo.” (Jung, 11/1, p. 144)
4a parte:
Mais uma vez, vamos ler a descrição que Ulisses fez de Sísifo no Tártaro:
“Sísifo quis ludibriar a morte, impedir que algo terminasse, impedir que
tivesse de largar (e por isso impede a vida). Agora aqui, no reino das sombras,
seu tormento não tem fim, e ele não pode largar e tem de largá-la sempre. Seu
tema central se repete aqui no mundo das sombras: não quer aceitar a
transitoriedade e ser obrigado a aceitá-la. Mais uma vez ele investe contra
essa transitoriedade a sua vontade de não desistir.” (Verena Kast, Sífifo, pág.
82)
O SIMBOLISMO DA PEDRA
em sua direção. O templo deve ser construído com pedra bruta, não com
pedra talhada…” (Chevalier e Gheerbrant, Dicionário de Símbolos, pág. 696)
Podemos então entender a pedra como a própria alma humana que precisa ser
carregada ao topo, ao cume. Ela também é símbolo da imutabilidade, porém com a ação da
natureza e do homem, ela pode ser transformada. Do ponto de vista simbólico essa pedra
precisa ser trabalhada por forças divinas para se tornar valiosa. Aparece muitas vezes como
representação do self (imutável).
"Pois apesar de o homem ser, tanto quanto possível, diferente da pedra, o seu
centro mais íntimo é, de uma maneira estranha e muito especial, bastante
semelhante a ela (talvez porque a pedra simbolize a existência pura, estando o
mais possível distanciada das emoções, sentimentos, fantasias e do
pensamento discursivo do nosso ego consciente). Neste sentido, a pedra
simboliza a experiência talvez mais simples e mais profunda, a experiência de
algo eterno que o homem conhece naqueles fugazes instantes em que se
sente inalterável e imortal.” (Jung, O homem e seus símbolos, pág. 209)
Será essa nuvem um sinal de preocupação? Sísifo está tão concentrado em sua
tarefa que não consegue pensar de maneira diferente. Podemos ver nas representações
artísticas: mal vemos seu rosto, e o pouco que vemos mostra angústia pelo peso que tem
de carregar, sabendo que seu martírio é eterno e ainda assim pensando “será dessa vez!”.
Ele está sempre pré ocupado e com a cabeça enfiada em si mesmo e na pedra.
O homem moderno vive preso na máquina capitalista descrita por Magaldi (2014)
onde tudo se torna bem de consumo, inclusive a felicidade e a saúde. Como um Sísifo, o
indivíduo se encontra preso como parte de uma engrenagem onde 98% da população é
meio de produção enquanto 1% detém a maioria dos recursos financeiros. Apenas a fração
pequena do 1% restante consegue viver desencaixado desse sistema. A parcela maior das
pessoas vive para trabalhar, consumir e se endividar. Enquanto a roda menor dessa
engrenagem vive para acumulo sem sentido, poder e lucro.
A REPETIÇÃO
Esse é o processo que leva a ressignificação dos nossos traumas. A atitude de um ego
Sísifo é inadequada para possibilitar a evolução da consciência.
“Sísifo não foi capaz de aceitar os desígnios dos deuses. Tentou mudar a
ordem da criação e a realidade humana.” (Waldemar e Malena)
Sísifo não seguiu de acordo com as mutações naturais da existência humana. Não
sacrificou-se em prol de um bem maior. Sobre o processo de individuação, Jung diz:
Referências Bibliográficas