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O MITO DE SÍSIFO E O HOMEM CONTEMPORÂNEO

Vida, morte e absurdo

José Luiz Balestrini

Essa aula tem como objetivo principal analisar o mito de Sísifo à luz da psicologia
junguiana. Iniciamos com uma explicação de Camus sobre o que é um símbolo que
concorda com o conceito junguiano do mesmo:

“Um símbolo é sempre genérico e, por mais precisa que seja sua tradução, um
artista só lhe pode restituir movimento: não há tradução literal. De resto, nada
é mais difícil de entender que uma obra simbólica. Um símbolo sempre
ultrapassa aquele que o usa e o faz dizer na realidade mais do que tem
consciência de expressar. Neste sentido, o meio mais seguro de captá-lo
consiste em não provocá-lo, iniciar a obra sem ideias concebidas e não buscar
suas correntes secretas.” (Albert Camus, sobre a obra de Kafka)

Portanto, apesar de pensarmos e trabalharmos para ampliar os significados do mito,


o mais importante no processo é perceber o que as imagens descritas despertam em nós.
Olhemos para a descrição que Ulisses (Odisseu) nos dá de Sísifo em seu eterno
tormento no Tártaro:

"Também vi Sísifo extenuando-se e sofrendo; empurrava um bloco imenso


com ambas as mãos. Na verdade, ele o arrastava até o cume, sustentando-se
com os pés e as mãos; mas quando estava a ponto de finalmente atingir o alto
do morro, o peso excessivo o impelia para baixo. Novamente então, a pedra
impiedosa rolava para o vale. Entretanto, ele reiniciava o trabalho e
empurrava-a, a ponto de ter o corpo banhado de suor, ao redor de sua cabeça,
porém, pairava uma nuvem de poeira" (Homero, Odisséia)

Sísifo era filho de Éolo e Enarete; fundador e primeiro rei de Éfira, que depois se
tornou Corinto. Seu nome significa “duplamente sábio” (apêndice da Odisseia, Nova
Fronteira)
Junito Brandão ainda explica: “Relacionado com sophós - sábio, instruído, inteligente,
hábil” e "O mito de Sísifo divide-se em vários episódios, refletindo cada um deles um
ardil deste incorrigível embusteiro que a Ilíada chama de "o mais solerte dos
mortais.” (J. Brandão, Dicionário mítico-etimológico)
Por motivos didáticos, e seguindo a ideia de Junito Brandão, separamos o mito em
diferente episódios. Os trechos que aparecem em itálico ao longo da apostila são a
descrição da história de Sísifo feita por Junito em seu Dicionário Mítico-Etimológico.

1a parte:

"Autólico, o maior larápio mítico da antiguidade e que fora instruído por Hermes na
arte do perjúrio e do furto, havia roubado o rebanho do rei de Corinto. Sísifo, sem
perda de tempo, conhecendo bem “o colega”, fez-lhe uma visita e identificou logo os
bois que lhe haviam sido furtados, porque gravara o próprio nome sob o casco de
cada um. A chegada do rei de Corinto coincidiu com a véspera do casamento de
Anticleia, filha de Autólico, com o herói Laerte. Durante a noite o esperto hóspede
conseguiu um meio de tornar-se amante da noiva, que ficou grávida de Ulisses. Uma

variante assegura que Autólico, desejando ter um neto com a astúcia de Sísifo,
facilitou o encontro entre ambos.”

Como Sísifo era filho de Éolo, e este era descendente da linhagem de Deucalião, a
família pode ser traçada diretamente à Prometeu.
Essa é uma Indicação importante: Prometeu é aquele que pensa antes. Sísifo
mostra essa característica ao se antecipar marcando os cascos dos bois antes que eles
sejam roubados. De certa forma, seu antagonismo com os deuses começa de forma
indireta, já que Autólico era filho de Hermes e aprendeu a arte de roubar com seu próprio
pai. Sísifo já vence os poderes divinos nesse primeiro momento.
Isso nos faz pensar nas questões transgeracionais: o quanto carregamos conteúdos
dos nossos antepassados e ainda lutamos para resolver essas questões? A história de
Prometeu e seus descendentes parece ser de desafio aos deuses. O próprio Deucalião,
bisavô de Sísifo, se recusa a morrer e sobrevive ao dilúvio enviado por Zeus. Parece que
isso vai se acumulando até chegar em Ulisses na Odisseia (cai nas graças de uns e ira de
outros deuses). Jung diz sobre a herança e a influência que carregamos dos nossos
antepassados:

“A descoberta do inconsciente coletivo foi a responsável pelo surgimento dos


novos problemas na teoria dos complexos. Antigamente a personalidade se
manifestava, por assim dizer, como única e enraizada no vazio; mas, agora,
associada com as causas dos complexos, individualmente adquiridas, viu-se
que era uma precondição humana geral, isto é, a estrutura biológica
hereditária e inata que é a base instintiva de todo ser humano. Dessa esfera
emanam as forças determinantes, como acontece em todo reino animal, que
inibem ou fortalecem as constelações mais ou menos fortuitas da vida do
indivíduo. Cada uma das situações humanas normais é, por assim dizer,
prevista e impressa nessa estrutura herdada, uma vez que já ocorreu inúmeras
vezes em nossos antepassados.” (Jung, vol. 4, Prefácio para o texto: “A
importância do pai no destino do indivíduo. P. 393)

Autólico, talvez percebendo a chance de ter um neto “astuciosamente perfeito”,


arquiteta o encontro de Sísifo e sua filha Anticleia. Dessa união nasce Ulisses (Odisseu).
Odisseu portanto, em sua passagem pelo Tártaro, observou o próprio pai carregando a
pedra em seu martírio eterno (ao lado de Ixíon, Tântalo, Salmoneu, os Titãs e outros).

2a parte:

"Quando Zeus raptou Egina, filha do deus-rio Asopo, passou por Corinto e foi visto
por Sísifo, que, em troca de uma fonte concedida pelo deus-rio, revelou-lhe a
identidade do raptor. O pai dos deuses e dos homens imediatamente enviou-lhe
Tânatos, mas o astuto rei de Corinto enleou a Morte de tal maneira, que conseguiu
encadeá-la.”

Nesse episódio Sísifo mostra claramente que não teme os deuses. Entrega Zeus
sem maiores dificuldades, desde que possa se beneficiar da situação. Em troca de um
ganho (a fonte), revela a identidade do raptor. Desde o início da história o comportamento
de Sísifo é compatível com as ideias do capitalismo e do oportunismo ainda muito
presentes na nossa sociedade atual. Verena Kast explica um pouco sobre o simbolismo
dessa atitude de Sísifo:

“Considerando simbolicamente essa história, ele está disposto então a


denunciar o Zeus olímpico ao deus-rio, ao deus das águas, do fluir eterno,
obtendo para si seus favores. Esses favores se concretizam na fonte que brota
do chão, simbolizando a riqueza transbordante da Mãe-Terra, a fertilidade e um
sentimento de vida transbordante e rico.” (Verena Kast, Sísifo, pág. 73)

Sísifo mostra um desejo de controle da natureza e exploração de seus recursos.


Esse episódio é extremamente importante porque indica um comportamento adaptativo
funcional de Sísifo nesse momento de sua vida. Na juventude talvez seja importante ser
materialista, territorialista e até mesmo enganar a morte de vez em quando. Não é a toa que
irá repetir esse ato, como veremos mais à frente. Os comportamentos que desenvolvemos
ao longo de nossa vida são importantes para a nossa adaptação aos mundos interno e
externo, e a consciência tem uma tendência a acreditar que esses comportamentos
continuam sendo importantes em diferentes situações, porém, muitas e muitas vezes, eles
não servem mais. Precisam ser extintos para que novos surjam. Jung explica:

“Quanto mais nos aproximamos do meio da existência e mais conseguimos


nos firmar em nossa atitude pessoal e em nossa posição social, mais nos
cresce a impressão de havermos descoberto o verdadeiro curso da vida e os
verdadeiros princípios e ideais do comportamento. Por isto, é que os
consideramos eternamente válidos e transformamos em virtude o propósito de
permanecermos imutavelmente presos a eles, esquecendo-nos de que só se
alcança o objetivo social com sacrifício da personalidade. São muitos -
muitíssimos - os aspectos da vida que poderiam ser igualmente vividos, mas
jazem no depósito de velharias, em meio a lembranças recobertas de pó;
muitas vezes, no entanto, são brasas que continuam acesas por baixo das
cinzas amarelecidas.” (JUNG, OC 8/2, §772)

Sísifo então, prendendo Tânatos, que raramente é retratado de forma


antropomórfica como um agente da morte, engana a morte pela primeira vez.

“Como Hades ou Plutão, Tânatos nunca foi um agente da morte e neste


sentido ambos jamais foram cultuados. A Morte sempre atuou por
procuração… Tânatos é uma cessação, uma descontinuidade, uma inversão
da vida, não um inimigo físico. É tão somente uma fonte de angústia em
companhia de outras abstrações…” (Junito Brandão, Dicionário Mítico-
Etimológico)

Zeus, cego de raiva por tamanho desrespeito, erra em ordenar que Tânatos
pessoalmente matasse Sísifo? Terá sido sorte de Sísifo? Ou o humano anteviu o que
poderia acontecer e exatamente por isso desafiou o deus?

“Se tentarmos ver em Sísifo um modelo de homem, ele então será tão
convencido de sua força, de suas inteligência e de suas capacidades criativas
que se considerará imortal. Morte, mudança, renuncia, reveses, nada disso
existe para ele. Ele agrilhoa o princípio “morte” aí revelado e, ao ser ameaçado
por ele, encarcera-o no quarto de despejo. Desse modo equipara-de a Zeus,
iguala-se aos deuses, mas anula o princípio que permite o criativo.” (Verena
Kast, Sísifo, pág. 76)

3a parte:

"Como não morresse mais ninguém, e o rico e sombrio reino de Hades estivesse se
empobrecendo, a uma queixa de Plutão, Zeus interveio e libertou Tânatos, cuja
primeira vítima foi Sísifo. O astucioso rei de Corinto, no entanto, antes de morrer,
pediu à mulher que não lhe prestasse as devidas honras fúnebres. Chegando ao
Hades sem o "revestimento" ritual, isto é, sem a conformação de um êidolon, Plutão
perguntou-lhe o motivo de tamanho sacrilégio. O solerte filho de Éolo
mentirosamente culpou a esposa de impiedade e, à força de súplicas, conseguiu
permissão para voltar rapidamente à terra, a fim de castigar severamente a
companheira. Uma vez em seu reino, o rei de Corinto não mais se preocupou em
cumprir a palavra empenhada com Plutão e deixou-se ficar, vivendo até avançada
idade."

É importante, inclusive para o estudo de outros mitos, que saibamos o que significa
êidolon. A expressão vem do grego e pode ser traduzida como imagem, reflexo. Idolum do
latim dá origem a ídolo. Expressão comumente utilizada pela igreja para denotar a “estátua
de um deus falso”.

"Em termos de mito e religião grega, êidolon é uma espécie de “corpo astral
insubstancial”, um simulacro que reproduz os traços exatos do falecido em
seu derradeiros momentos." É uma espécie de sombra do que o indivíduo foi em
vida. E, é como essa sombra, que os mortais irão existir (“viver”) no Hades.

Junito, explorando a etimologia da expressão ainda diz que “... sendo o êidolon
uma réplica do morto, ele é uma imagem que se vê e, por conservar uma resíduo
latente de consciência, é algo que sabe.”

A atitude egoísta de Sísifo afeta a harmonia dos mundos e por isso Zeus precisa
intervir mais uma vez e mais uma vez Sísifo se antecipa e se prepara para o que está por
vir. Usando sua esposa e enganando Plutão. Chega no Hades mais vivo e mais cônscio do
que devia, é portanto mandado de volta, mas apenas para corrigir o suposto erro de sua
esposa.
Mais uma vez o feminino aparece apenas como meio para se conseguir algo.
Autólico usou sua filha para conseguir o astuto neto Ulisses. Sísifo usou sua esposa para
enganar os deuses. O feminino nessa história tem apenas um papel objetal. A falta de
conexão com o feminino durante a história é um dado importante. Como num sonho quando
ouvimos apenas a voz de alguém, ou só temos a ideia de um personagem, isso também é
uma informação que pode ser explorada.

“O aspecto do amor e do relacionamento com o semelhante não é


mencionado, tampouco o aspecto do “poder largar”, do “poder se dedicar e
confiar”, quando se trata de dedicação e confiança em outro, e não na própria
força de vontade.” (Verena Kast, Sísifo, pág. 45)

O quanto confiamos para entregar nossa pedra a outro por algum tempo? O quanto
nos deixamos disponíveis para segurar a pedra de outro por um tempo? Nosso orgulho
muitas vezes não permite que façamos isso. Somos filhos da independência (e

consequentemente da dependência) quando, numa busca verdadeira pela harmonia,


deveríamos nos entregar para a interdependência.
A anima deveria aparecer como companheira e, na jornada do herói (bem sucedido)
é ela quem o conduz para as profundezas e consequentemente para o objetivo final que
deverá alcançar. A criatividade verdadeira fica negada em Sísifo pois ele não tem contato
com seu feminino interior, ele é muito consciente e controlador para permitir que sua anima
se manifeste. Algumas palavras de Emma Jung sobre a anima:

“Receptividade é uma atitude feminina, e exige estar-se aberto e vazio, e por


isso Jung a qualifica como o maior segredo do feminino. Além disso, a
mentalidade feminina é menos avessa ao irracional que a consciência
racionalmente orientada do homem, que tem a tendência a negar tudo o que
não é razoável, e que por esta razão frequentemente se fecha ao
inconsciente.” (Emma Jung, Animus e Anima, pág. 68).

“A anima, sendo o feminino no homem, possui justamente essa receptividade


e falta de preconceito em relação ao irracional, e por essa razão ela é
qualificada de mensageira entre o inconsciente e a consciência.”

“A princesa a ser salva, que aparece em tantos contos de fadas, indica


nitidamente a anima.”

“A salvação consiste no reconhecimento e integração destes elementos


inconscientes da alma.” (Emma Jung, Animus e Anima, pág. 69)

Sísifo pode ser apresentado como uma metáfora do homem unilateralizado que
descumpre sua promessa para com as forças inferiores do inconsciente. De certa maneira
engana sua própria anima e a usa para não se entregar para a morte. Quer ser criativo,
mas negando o feminino, assim como a morte, não dá chance para que as verdadeiras
expressões da alma surjam.
Sísifo enganou os deuses e se livrou da morte duas vezes. Se pensássemos apenas
de maneira literal, isso poderia soar como um grande feito. Porém, o desfecho que segue
nos faz pensar de maneira diferente. Talvez exista em cada um de nós a vontade (egóica)
de enganar os deuses e a ordem natural da vida e da morte. De maneira enantiodrômica,
as forças do inconsciente (os deuses) cobram Sísifo por seu atrevimento. Cometeu a húbris
(hybris), desafiou os deuses e acreditou ser maior do que eles.

“Todo homem sentiu-se em certos momentos igual a um deus. Ao menos é o


que dizem. Mas isto acontece por ter sentido, num clarão, a surpreendente
grandeza do espírito humano”(Albert Camus, O mito de Sísifo, pág. 90)

Seu ego confundiu a grandeza do espírito humano com a divindade. Vamos olhar
para o que Jung diz sobre o assunto:

"O interregno é cheio de perigos, pois os fatos naturais farão valer os seus
direitos sob a forma de diversos “ismos”, dos quais nada resulta senão a
anarquia e a destruição; e isto porque, em consequência da inflação, a hybris
humana escolhe o eu, em sua miserabilidade visível, para senhor do
universo.” (Jung, 11/1, p. 144)

“O si-mesmo, que gostaria de realizar-se, estende-se para todos os lados,


ultrapassando a personalidade do eu; de acordo com sua natureza abrangente
ele é ora mais claro ora mais escuro do que esta e assim coloca o eu a tal
ponto diante de problemas, dos quais ele bem gostaria de esquivar-se.
Fracassa ou a coragem moral ou a compreensão, ou as duas ao mesmo
tempo, até que o destino finalmente acabe por decidir a sorte.” (Jung, 14/2, p.
433)

4a parte:

"Um dia, porém, Tânatos veio buscá-lo em definitivo e os deuses o castigaram


impiedosamente, condenando-o a rolar um bloco de pedra montanha acima. Mal
chegado ao cume, o bloco rola montanha abaixo, puxado por seu próprio peso.
Sísifo recomeça a tarefa, que há de durar para sempre.”

Mais uma vez, vamos ler a descrição que Ulisses fez de Sísifo no Tártaro:

"Também vi Sísifo extenuando-se e sofrendo; empurrava um bloco imenso


com ambas as mãos.Na verdade, ele o arrastava até o cume, sustentando-se
com os pés e as mãos; mas quando estava a ponto de finalmente atingir o alto
do morro, o peso excessivo o impelia para baixo. Novamente então, a pedra
impiedosa rolava para o vale. Entretanto, ele reiniciava o trabalho e
empurrava-a, a ponto de ter o corpo banhado de suor, ao redor de sua cabeça,
porém, pairava uma nuvem de poeira". (Homero - Odisséia)

E a análise de Verena Kast sobre o castigo sofrido pelo personagem:

“Sísifo quis ludibriar a morte, impedir que algo terminasse, impedir que
tivesse de largar (e por isso impede a vida). Agora aqui, no reino das sombras,
seu tormento não tem fim, e ele não pode largar e tem de largá-la sempre. Seu
tema central se repete aqui no mundo das sombras: não quer aceitar a
transitoriedade e ser obrigado a aceitá-la. Mais uma vez ele investe contra
essa transitoriedade a sua vontade de não desistir.” (Verena Kast, Sífifo, pág.
82)

Sísifo é obrigado a largar e repetir seu comportamento e seu objetivo. Quantas


vezes nos sentimos assim na vida? Nos esforçamos para alcançar um objetivo, e quando
estamos quase conseguindo o vemos escapar de nossas mãos. Sabemos que temos que
fazer algo diferente na próxima tentativa, porém quando percebemos, e se percebemos,
estamos nos comportando da exata mesma maneira que anteriormente. O resultado não
será diferente, a pedra irá escapar das nossas mãos novamente. Sentimos impotência e
frustração perante nós mesmos e frente a impossibilidade de mudar nosso comportamento.

O SIMBOLISMO DA PEDRA

“Tradicionalmente, a pedra ocupa um lugar de distinção. Existe entre a alma e


a pedra uma relação estreita. Segundo a lenda de Prometeu, procriador do
gênero humano, as pedras conservaram um odor humano. A pedra e o homem
apresentam um movimento duplo de subida e de descida. O homem nasce de
Deus e retorna a Deus. A pedra bruta desce do céu; transmutada, ela se ergue

em sua direção. O templo deve ser construído com pedra bruta, não com
pedra talhada…” (Chevalier e Gheerbrant, Dicionário de Símbolos, pág. 696)

Podemos então entender a pedra como a própria alma humana que precisa ser
carregada ao topo, ao cume. Ela também é símbolo da imutabilidade, porém com a ação da
natureza e do homem, ela pode ser transformada. Do ponto de vista simbólico essa pedra
precisa ser trabalhada por forças divinas para se tornar valiosa. Aparece muitas vezes como
representação do self (imutável).

“A pedra bruta é a matéria passiva, ambivalente: se apenas se exerce sobre ela


a atividade humana, ela se envilece (torna-se desprezível), como vimos; se, ao
contrário, é a atividade celeste e espiritual que se exerce sobre ela, com vistas
a fazer dela uma pedra talhada acabada, se enobrece. A passagem da pedra
bruta a pedra talhada por Deus, e não pelo homem, é a passagem da alma
obscura a alma iluminada pelo conhecimento divino. Aliás, Mestre Eckhart não
ensina que pedra é sinônimo de conhecimento?” (Chevalier e Gheerbrant,
Dicionário de Símbolos, pág. 697)

Algumas citações de Jung sobre o simbolismo da pedra:

“Esfregar e polir pedras é uma conhecida e antiqüíssima atividade do homem.


Na Europa, pedras "sagradas", enroladas em cortiça e escondidas em
cavernas foram encontradas em vários lugares, provavelmente guardadas
pelos homens da Idade da Pedra, como receptáculos de poderes divinos.
Atualmente, alguns aborígines da Austrália acreditam que seus ancestrais
mortos continuam a existir como forças benéficas e divinas dentro de pedras,
e que ao esfregarem estas pedras o seu poder é aumentado (como se
estivessem carregadas de eletricidade)em benefício de ambos, o morto e o
vivo.” (Jung, O Homem e seus símbolos, pag. 205)

“Pedras são imagens comuns do self porque são objetos completos,


imutáveis e duradouros. Muitas pessoas, hoje em dia, procuram nas praias
pedras de beleza peculiar. Alguns hindus passam de pai para filho pedras que
acreditam possuir poder mágico.” (Jung, O homem e seus símbolos, pág. 206)

"Pois apesar de o homem ser, tanto quanto possível, diferente da pedra, o seu
centro mais íntimo é, de uma maneira estranha e muito especial, bastante
semelhante a ela (talvez porque a pedra simbolize a existência pura, estando o
mais possível distanciada das emoções, sentimentos, fantasias e do
pensamento discursivo do nosso ego consciente). Neste sentido, a pedra
simboliza a experiência talvez mais simples e mais profunda, a experiência de
algo eterno que o homem conhece naqueles fugazes instantes em que se
sente inalterável e imortal.” (Jung, O homem e seus símbolos, pág. 209)

“Trabalhando muito consegui, aos poucos, apoiar em terra firme minhas


fantasias e os conteúdos do inconsciente. As palavras e os escritos não eram
bastante reais para mim; era preciso outra coisa. Necessitava representar
meus pensamentos mais íntimos e meu saber na pedra, nela inscrevendo, de
algum modo, uma profissão de fé. Foi assim que comecei a construir a torre
de Bollingen. Essa ideia pode parecer absurda, mas a realizei - o que foi para

mim uma grande satisfação, um acontecimento significativo.” (Jung,


Memórias, sonhos e reflexões Pág. 204)

Sísifo carrega eternamente a possibilidade de mudança, simbolizada na pedra.


Como não tem conexão com o divino, sua pedra, sua alma, nunca será transformada.
Existe também a ideia de controle em seu castigo. Como se os deuses zombassem
dele dizendo “você pode conseguir, só depende de você!”. Porém, sem a entrega do ego
para o self, não existe processo de individuação. Enquanto Sísifo luta para se tornar um
deus, não consegue perceber sua pequenez perante as forças e o castigo divino. Não se
entrega, nem mesmo para a própria pedra. Acredita que pode controlá-la, direcioná-la
através de sua vontade, como explica Verena: “Prepondera a impressão de um imenso
esforço humano para impor a pedra a vontade humana.” (Verena Kast, Sísifo, pág. 32)

A NUVEM DE POEIRA SOBRE SUA CABEÇA

Será essa nuvem um sinal de preocupação? Sísifo está tão concentrado em sua
tarefa que não consegue pensar de maneira diferente. Podemos ver nas representações
artísticas: mal vemos seu rosto, e o pouco que vemos mostra angústia pelo peso que tem
de carregar, sabendo que seu martírio é eterno e ainda assim pensando “será dessa vez!”.
Ele está sempre pré ocupado e com a cabeça enfiada em si mesmo e na pedra.
O homem moderno vive preso na máquina capitalista descrita por Magaldi (2014)
onde tudo se torna bem de consumo, inclusive a felicidade e a saúde. Como um Sísifo, o
indivíduo se encontra preso como parte de uma engrenagem onde 98% da população é
meio de produção enquanto 1% detém a maioria dos recursos financeiros. Apenas a fração
pequena do 1% restante consegue viver desencaixado desse sistema. A parcela maior das
pessoas vive para trabalhar, consumir e se endividar. Enquanto a roda menor dessa
engrenagem vive para acumulo sem sentido, poder e lucro.

A REPETIÇÃO

A repetição é muito importante no processo de aprendizagem, porém ela só faz


sentido se pudermos ser criativos com as ferramentas desenvolvidas. Enfrentamos na
contemporaneidade uma dinâmica de robotização e automatização do ser humano. Somos
treinados somente para repetir e quase nunca para criar porque a mera repetição leva a
uma maior produção e consumo. Nas artes, por exemplo, a repetição é importante, mas
com o avanço técnico, o ideal é que seja permitido ao artista liberdade para se expressar
criativamente.
Do ponto de vista psíquico a tomada de consciência e a possibilidade de evolução
dependem da repetição de comportamentos, situações (experiências). Infelizmente Sísifo
não conclui o ciclo, apesar do movimento repetitivo está paralisado na mesma dinâmica
pois não consegue refletir.
O I Ching ensina que a natureza dita as mutações. Se não as percebemos, ou se as
percebemos e mesmo assim insistimos em tentar caminhar contra seu fluxo, adoecemos. A
vida é constituída de constantes mutações e continuar no mesmo padrão sempre é morrer
em vida, é matar a possibilidade do novo.
Sísifo não larga a pedra porque não pode: essa é sua maldição. Porém, quantas
vezes nos comportamos da mesma maneira na vida e, diferente de Sísifo, teríamos a
chance de largar a pedra? Através do trabalho analítico e da tomada de consciência, é
possível entender que em certos momentos temos a escolha de continuar ou de largar as
nossas pedras.

Depois de tomar consciência de que existe uma escolha, vem a dificuldade de


perceber qual o momento certo para mudar. Cedo demais? Até quando devo persistir? Isso
ainda faz sentido? É nesse momento que o ego se depara com a situação angustiante de
ter que abrir mão do seu conforto para que uma nova situação se configure e para que
ocorra a evolução psicológica. O ego precisa sacrificar algo.
Na filosofia oriental, ao contrário do que muitos repetem de maneira automatizada, o
apego é tão importante quanto o desapego. A mutação irá nos dizer se é hora de segurar ou
de largar.

"O sacrifício equivale a uma morte simbólica e, portanto, a um renascimento.”


(Waldemar e Malena)

É somente através da reflexão que temos a chance de evoluir. O problema é que o


mundo nos escapa quando se torna ele mesmo. Na reflexão, deixa de ser o que eu achava
que ele fosse para se tornar algo que eu acho que ele é. Ou seja, tudo é ilusão e fantasia, e
lidar com a incerteza e com a dúvida não é fácil. É mais fácil ficar com minha pedra. Já a
conheço, estou acostumado a ela. É preciso perceber que tudo aquilo que sei sobre mim
mesmo só é legítimo na mesma medida em que é aproximativo.

"O contrário da inteligência é a razão cega." (Camus)

“Antes de encontrar o absurdo, o homem cotidiano vive com metas, uma


preocupação com o futuro ou a justificação (não importa em relação a quem
ou a quê). Avalia suas possibilidades, conta com o porvir, com sua
aposentadoria ou o trabalho dos filhos. Ainda acredita que alguma coisa em
sua vida pode ser dirigida. Na verdade, age como se fosse livre, por mais que
todos os fatos se encarreguem de contradizer tal liberdade. Depois do
absurdo, tudo fica abalado.” (Albert Camus, O mito de Sísifo, pág. 62)

O absurdo - conflito entre a capacidade humana de buscar sentido e significado da


vida e a inabilidade humana para encontrar os mesmos num universo caótico e irracional. O
homem absurdo é aquele que entende e aceita a ambiguidade da vida, por isso descarta o
suicídio. A negação da morte simbólica resulta na necessidade da morte literal.

“Com o puro jogo da consciência, transformo em regra de vida o que era


convite a morte - e rejeito o suicídio (literal).” (Albert Camus, O mito de Sísifo,
pág. 68)

Aceitando a morte, podemos finalmente viver.

A RELAÇÃO ENTRE O EGO E O SELF

Em nossa análise Sísifo representa o ego. Em sua história tenta enganar e


manipular os deuses, seus aspectos arquetípicos do inconsciente coletivo. O ego não tem
chance contra a totalidade, o máximo que pode fazer é perceber e aceitar sua pequenez e
tentar estabelecer uma relação cooperativa com o inconsciente. O trabalho analítico
também é repetitivo, mas não pode ser cíclico. Precisa ser uma espiral, numa dinâmica em
que trabalhamos muitas vezes as mesmas questões de maneira repetida, mas sempre
olhando de novos lugares, de diferentes ângulos, com novas experiências e sentimentos.

Esse é o processo que leva a ressignificação dos nossos traumas. A atitude de um ego
Sísifo é inadequada para possibilitar a evolução da consciência.

“Sísifo não foi capaz de aceitar os desígnios dos deuses. Tentou mudar a
ordem da criação e a realidade humana.” (Waldemar e Malena)

Sísifo não seguiu de acordo com as mutações naturais da existência humana. Não
sacrificou-se em prol de um bem maior. Sobre o processo de individuação, Jung diz:

“Jamais faltam ao eu razões opostas, de natureza moral e racional, que nem se


pode nem se deve pôr de lado enquanto elas ainda servem de apoio. Pois
somente então alguém se sentirá em um caminho seguro quando a colisão de
deveres se resolver como que por si mesmo, e esse alguém se tiver tornado
vítima de uma decisão, que foi tomada independentemente de nossa cabeça e
de nosso coração. Nisto se manifesta a força numinosa do si mesmo, que
dificilmente poderia ser experienciada de outra maneira. Por isso a vivência do
si-mesmo significa uma derrota do eu.” (Jung, 14/2, p. 433)

"Consciência e inconsciente não constituem uma totalidade quando um é


reprimido e prejudicado pelo outro. Se eles têm de combater-se, que se trate
pelo menos de um combate honesto, com o mesmo direito de ambos os lados.
Ambos são aspectos da vida. A consciência deveria defender sua razão e suas
possibilidades de autoproteção, e a vida caótica do inconsciente também
deveria ter a possibilidade de seguir seu caminho, na medida em que o
suportamos. Isso significa combate aberto e colaboração aberta ao mesmo
tempo. Assim deveria ser evidentemente a vida humana. É o velho jogo do
martelo e da bigorna. O ferro que padece entre ambos é forjado num todo
indestrutivel, isto é, num individuum.” (Jung, 9/1, p.522)

"Morra antes de morrer. Não há chances depois."


C. S. Lewis

Referências Bibliográficas

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico, Vozes, Rio de Janeiro, 2014


CAMUS, Albert. O mito de Sísifo, BestBolso, Rio de Janeiro, 2019
CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos, José Olympia, Rio de Janeiro, 2016
JUNG, C. G. A natureza da Psique, OC vol. 8/2, Petrópolis, Vozes, 2016
JUNG, C. G. Os arquétipos e o Inconsciente coletivo, OC vol. 9/1, Petrópolis, Vozes, 2016
JUNG, C.G. Mysterium Coniunctionis, OC vol. 14/2, Petrópolis, Vozes, 2016
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