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individuação
A Cruz como imagem do ser humano redimido*
* * *
Em seus escritos, Carl Gustav Jung se voltou constantemente para o tema da cruz e vê
na cruz um caminho da individuação, da autorrealização humana. Jung não escreve
sobre a morte de Jesus na cruz, mas sobre a cruz como símbolo. O símbolo da cruz
desempenha um papel importante no processo de individuação do ser humano. No curso
de sua vida, cada ser humano precisa passar do Ego, que é o âmago consciente de sua
pessoa, para o Self, o centro mais íntimo da pessoa, que inclui simultaneamente o
consciente e o inconsciente. Nesse caminho da individuação, os símbolos têm uma
tarefa especial. Jung refere-se aqui não apenas a símbolos, mas a imagens arquetípicas
que são disponíveis na alma do ser humano e que desencadeiam e dirigem o processo da
individuação.
Para Jung, Cristo e a cruz estão entre estes arquétipos que podem transformar o ser
humano. Cristo é o símbolo mais desenvolvido do Self. É claro que Jung não dissolve o
Jesus histórico numa imagem arquetípica. Também para Jung, Jesus foi uma figura
histórica. Mas, ao mesmo tempo, ele apelou ao arquétipo do Self que está disponível na
alma e o tornou ativo.
Por um lado, a cruz é um símbolo do sacrifício. Jung entende sob sacrifício o abandono
do Ego em favor do Self e a renúncia à determinação pelos instintos, a transformação da
libido. No sacrifício, o ser humano abandona-se a Deus. Para poder se entregar a Deus,
o ser humano precisa primeiro conhecer-se a si mesmo. Por isso, o sacrifício é sempre
antecedido por um ato de autoexame. A instância do ser humano que sacrifica algo do
Ego é o Self. Ao sacrificar o Ego, o Self ganha a si mesmo. A cruz como sacrifício é,
para Jung, ao mesmo tempo, uma imagem drástica da repreensão dos instintos. Aqui
não se trata da superação dos instintos animais, mas de uma entrega do ser humano
inteiro de “um disciplinamento de suas funções especialmente humanas e espirituais, em
direção a uma meta espiritual supramundana”. O sacrifício na cruz não quer despedaçar
o ser humano, mas promovê-lo em seu caminho interior. Na História, esse sacrifício, ao
qual a cruz convidou os cristãos, “levou a um desenvolvimento da consciência que, sem
esse treinamento, seria simplesmente impossível”. Sem o disciplinamento através da
ascese cristã, manifestam-se novamente a rudeza e a falta de consciência da
Antiguidade.
O segundo significado da cruz é para Jung que ela simboliza o sofrimento. Segundo
Jung, cada passo no caminho da conscientização progressiva pode ser somente
comprado com sofrimento. O sofrimento é o portão pelo qual o ser humano precisa
passar quando quer se tornar consciente de si mesmo. O sofrimento tem sua causa
principalmente no fato de que o ser humano tem de aceitar-se em suas contradições que
às vezes ameaçam dilacerá-lo. Quem se põe a caminho para tornar-se íntegro
experimenta como está cruzado e contrariado por contradições e opostos interiores, pelo
oposto de luz e trevas, de bem e mal, de consciente e inconsciente, de masculino e
feminino.
Diz Jung:
Quem quer que se encontre no caminho para a integridade não pode escapar daquela
estranha suspensão representada pela crucificação. Pois encontrará sem falta aquilo
que o cruza e contraria, a saber, primeiro, aquilo que ele não quer ser (sombra);
segundo, aquilo que ele não é, mas que o outro é (realidade individual do tu); e,
terceiro, aquilo que é seu Não-Ego psíquico, a saber, o inconsciente coletivo.
Por estar empurrado para lá e para cá pelas contradições, o ser humano é para si mesmo
uma cruz e não pode desviar-se da cruz como sofrimento.
Nesse sentido, carregar a cruz significa para Jung aceitar a própria cruz e não pensar que
poderíamos carregar a cruz de Cristo.
A cruz de Cristo foi carregada por ele mesmo e foi a própria cruz que ele carregou.
Certamente é mais fácil colocar-se sob uma cruz alheia e já carregada do que
carregar a própria cruz, sob os insultos e o desprezo de seu mundo. Pois, ao fazer
isso, fica-se belamente dentro da tradição e se ganha o elogio de ser piedoso. Isso é
farisaísmo bem organizado e extremamente anticristão. Cristão é somente quem vive
no sentido e no espírito de Cristo.
Todo contrário é Deus, por isso, o ser humano tem de assumir esse peso, e ao fazê-lo,
ele, com sua contrariedade, tomou posse dele, isto é, se encarnou. O ser humano fica
repleto do conflito divino.
A cruz é o símbolo dessa suprema contrariedade e oposição. Quando o ser humano está
disposto a confrontar-se com esse conflito, então experimenta nisso Deus, então
“realiza-se dentro dele a imago Dei, a encarnação de Deus”.
A cruz é para o ser humano o condutor no caminho para a individuação. Ela o promove
no caminho da transformação. É a imagem da passagem dolorosa, sem a qual não há
transformação. E ela se encontra também no fim do caminho como imagem do destino,
da integridade e da completude que nos esperam no futuro. Pois a cruz mostra ao ser
humano a possibilidade de unir dentro de si os opostos e contradições. É um símbolo
ordenador.
Para Jung, a cruz é uma imagem da reconciliação de todos os opostos, portanto, não é
uma imagem da propaganda militante e agressiva pelo cristianismo, mas um convite de
reconciliar os opostos e as contradições em nosso mundo, os opostos entre as religiões e
culturas, entre os povos e as camadas sociais, entre pobre e rico, entre religioso e não
religioso, entre luz e trevas, entre céu e terra. É uma imagem que leva ordem ao caos de
nosso tempo, em que tudo fica difuso e diluído, que traz orientação quando tudo se
torna confuso e sem sentido. A imagem da cruz tem para Jung um efeito sanador. Ela
nos protege de divisões interiores que sempre causam doenças, e nos estabiliza em meio
à instabilidade de nosso tempo. Não foi por acaso que o próprio Jung colocou uma cruz
na parede de seu escritório para se lembrar constantemente de como o caminho da
individuação humana pode dar certo.