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moralidade-e-das-escolhas-que-ela-traz

Publicado em NOVA ESCOLA 07 de Março | 2018

Sala de aula

Filosofia: como aplicar o


dilema do trem em sala de
aula
A filósofa Philippa Foot criou um “experimento” que mostra a
dificuldade das escolhas morais – um bom tema para se discutir
em sala de aula
Fabio Chiossi

Foto: Getty Images

Quem se formou em Filosofia no Brasil dificilmente ouviu falar, em sala de aula, de


Philippa Foot (1920-2010). Pensadora britânica, Philippa foi professora da UCLA
(Universidade da Califórnia, Los Angeles) e contribuiu com o debate acadêmico, no
campo da ética, em um nível de detalhamento que não cabe debater numa sala de
aula do Ensino Médio.

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O que vamos tratar aqui é que ela criou um experimento mental – um exercício de
reflexão – muito útil para apresentar aos alunos alguns problemas éticos e suas
possíveis soluções, tendo como ponto de partida a perspectiva da escola Utilitarista.

Philippa dizia que virtudes como coragem, sabedoria e temperança são indispensáveis
à vida humana e formam a base da moralidade

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Aluna da Universidade de Oxford, no Reino Unido, Philippa argumentava que a ética é


fundada em conexões entre a razão e as emoções. Ela negava uma perspectiva
plenamente subjetivista, segunda a qual os juízos morais são formulados conforme as
preferências de quem os elabora; e também recusava a perspectiva de que os juízos
morais pudessem ser guiados por critérios totalmente objetivos, como no caso do
Utilitarismo. E é justamente o conflito entre razão e emoção, entre objetividade e
subjetividade, em determinadas escolhas morais, o que o dilema proposto por ela
evidencia.

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A filósofa pede que imaginemos um funcionário de uma ferrovia trabalhando ao lado


de uma alavanca que pode desviar o percurso de um trem. Eis que esse funcionário vê
um trem desgovernado se aproximando. Em seu atual curso, o trem vai atingir cinco
trabalhadores que fazem reparos na estrada de ferro. Se o funcionário mover a
alavanca e desviar o trem, porém, este entrará em um trecho da via no qual não
atingirá os cinco trabalhadores, mas apenas um – também ele fazendo reparos na
estrada de ferro, mas em outro ponto. Não há como parar o trem. Não há como avisar
nenhum dos seis operários do que está por vir. Pode-se mover a alavanca ou não. Ou
morrerá uma pessoa, ou morrerão cinco.

A ideia, claro, é que os alunos debatam o que fariam em tal situação e confrontem suas
escolhas e justificações.

Esse experimento (conhecido originalmente como “The trolley problem”, o dilema do


trem, em tradução livre) põe os estudantes diante de um dilema – ou seja, um
problema que, a despeito da ação que se adote para resolvê-lo, não terá uma boa
solução. Também introduz a base ética do utilitarismo sem que se aborde, de cara, o
conceito da maximização do bem-estar. Conceito esse que será mais bem
compreendido, possivelmente, quando se explicar que quem optou por mover a
alavanca e causar a morte de um funcionário, em vez de cinco, estará seguindo a
cartilha utilitarista: maximiza-se o bem-estar na situação, dado que será uma morte
contra cinco.

Uma crítica ao experimento é sua distância da realidade. A bem da verdade, não


deparamos com uma situação assim quase nunca. Ferrovias são praticamente
inacessíveis e o sistema todo para automaticamente quando alguém é visto na linha.

Porém, tanto esse tipo de dilema como a resposta utilitarista podem ser vistos no dia-
a-dia – até na escola.

Lembram-se da velha história da “maçã podre”? O que deve um professor fazer


quando um aluno indisciplinado está prejudicando o andamento de uma aula,
atrapalhando colegas interessados no que está sendo discutido em sala? Botá-lo para
fora e seguir com os outros ou deixá-lo em sala, mesmo que o rendimento da turma
caia? Tirar a “maçã podre” do cesto é a solução utilitarista. Maximiza-se o bem-estar.
Um perde o conteúdo dado, os outros não são distraídos. Mas os alunos concordam
com essa solução? O que fariam eles no lugar do professor?

Essas questões são o começo. A partir daí pode-se discutir se a omissão da ação livra
quem optou por ela da responsabilidade pelo acontecido – qual a participação do
professor se ele optar por não interferir em nada? Pode-se começar a discutir a ideia
de destino e sua relação com a ética – não interferir é se recusar a alterar um curso de
ações designado por alguma entidade “maior”? Pode-se abrir caminho para a
consideração do peso de virtudes como temperança e sabedoria nas escolhas éticas –
qual das duas ações possíveis é virtuosa? A propósito, segundo Philippa Foot, tais
virtudes são indispensáveis para nossas vidas e compõem a base da moral.

Um problema simples, envolvente e rico. Transportado para uma situação do ambiente


escolar, pode interessar a sala bem mais do que uma exposição crua das ideias de
Jeremy Bentham e John Stuart Mill, pais do Utilitarismo, que acreditavam na
mensuração do bem-estar e propunham que as ações morais deveriam visar sempre o
maior e mais amplo bem-estar.

Fabio Chiossi, 44, ex-jornalista, é psicanalista e mestre em filosofia pela PUC -SP.
Foi editor de Tendências/Debates da Folha de S.Paulo.

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