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Título do original:
Reclaiming the Inner Child
Copyright © 1990 by Jeremiah Abrams.
Publicaod originalmente nos Estados Unidos da América por Jeremy P. Tarcher,
Inc.
Edição Ano
1-2-3-4-5-6-7-8-9 94-95-96-97-98-99
Direitos de tradução para o Brasil adquiridos com exclusividade pela
EDITORA CULTRIX LTDA.
Rua Dr. Mário Vicente, 374 - 04270-000 - São Paulo, SP - Fone: 272-1399
que se reserva a propriedade literária desta tradução.
Impresso em nossas oficinas gráficas.
1
Editado em português pela Summus Editorial, em 1986, em tradução de Walter F. R.
Ribeiro. (N.T.)
cura:
Se a pessoa for capaz... de sentir que nunca foi "amada” quando criança só
por ser quem era, mas pelo seu desempenho, êxito ou boas qualidades, e que
sacrificou sua infância em nome desse “amor”, essa vivência a abalará
profundamente, mas um dia ela sentirá o desejo de terminar esse romance.
Descobrirá em si mesma uma necessidade de viver de acordo com seu
“ verdadeiro self ”, de não ser mais forçada a ganhar amor, amor que em suas
raízes ainda a deixa de mãos vazias, pois é dado ao "falso self’, aquele que
ela começou a abandonar.
Parte 1
A promessa da criança interior
Introdução
Em todo adulto espreita uma criança - uma criança eterna, algo que
está sempre vindo a ser, que nunca está completo, e que solicita
cuidado, atenção e educação incessantes. Essa é a parte da
personalidade humana que quer desenvolver-se e tornar-se completa.
- C. G. Jung
Antes de mais nada, começamos com o arquétipo da criança, que
poderíamos chamar de a “grande” imagem da criança interior, uma vez
que ela é a criança que todos nós contemos, não só como uma parte de
nós mas também como uma forma codificada da vivência coletiva que
a humanidade tem com relação à criança. No começo era o ser recém -
criado, a criança, no jardim do Éden, totalmente inocent e,
deslumbrada, feliz, plena de todas as possibilidades de vida humana e
de futuro. A promessa que essa criança representa está dentro de nós.
Está nas nossas origens e nas nossas esperanças.
Essa promessa começa com um nascimento. Quando nasce uma criança
uma estrela se acende, abre-se todo um mundo de possibilidades. Cada
autor desta seção avalia as possibilidades internas que a criança
contém, tanto em termos da vida individual como da vida coletiva do
homem.
Edith Sullwold nos introduz ao mundo arquetípico da criança,
sugerindo que cada nascimento, a vida de cada criança, é um
experimento inédito na evolução espiritual da humanidade. Ela
diferencia para nós o mundo pessoal da criança interior do âmbito mais
amplo da criança mítica.
O ensaio de Carl Jung, carregado com o peso das ideias complexas, é
o trabalho definitivo sobre as dimensões míticas da criança interior. A
criança, diz Jung, é um símbolo que expressa “a natureza todo -
abrangente da totalidade psíquica”. Ao descrever o arquétipo da
criança, ele diz que “se trata de um empreendimento absolutamente
inútil extrair um arquétipo isolado da tessitura viva da psique; no
entanto, apesar do entrelaçamento de todos eles, formam-se unidades
de significado que podem ser intuitivamente apreendidas”.
Recomendamos, portanto, ao leitor o emprego das suas facul dades
intuitivas, mais do que das analíticas, quando abordar o ensaio de Jung.
No estudo de James H. Young acerca do arquétipo da criança,
encontramos uma amplificação dessas ideias psicológicas através da
visão poética e inspirada de Wordsworth. Os poemas da Inglaterra
romântica enfatizam a dualidade da consciência espiri tual da criança e
da prosaica visão do adulto, o conflito vivo que todos nós incorpora -
mos e vivenciamos em nosso íntimo, como discrepância entre o gênio
pueril e o pragmatismo tio adulto. Em geral é o adulto que vence o
combate, e a visão da criança termina negligenciada. Young trata desse
dualismo tanto em Jung como em Wordsworth, sugerindo os caminhos
que ambos vislumbraram para se transcender esse problema. O tema
do abandono, que Jung considerava um fenômeno especial do
arquétipo da criança, é um aspecto desse dualismo. A criança
abandonada é o ponto onde se concentra a Parte 2.
A coletânea de textos de Gaston Bachelard, que compõe o Capítulo 4
desta seção, é um cântico à criança interior, à memória, a todas as
infâncias em nós que ainda permanecem como potenciais na forma de
nossa criança interior. É, de fato, um alegre encantamento poético em
prosa, que nos faz lembrar, como o disse o romancista contemporâneo
Tom Robbins, que “nunca é tarde demais para se ter uma infância
feliz”.
June K. Singer, cujo ensaio forma o Capítulo 5, trata da criança divina
como extensão da nossa consciência coletiva, dizendo que ela
representa simbolicamente “os ideais de uma cultura que na realidade
não é capaz de satisfazer”. Suas ideias provocantes sobre o motivo da
criança expandem a perspectiva arquetípica junguiana. Ela também
nos apresenta o arquétipo do puer aeternus, a eterna criança, que
compõe o tema da Parte 3 deste livro.
Esta seção se encerra com o grande mistério do renascimento e com a
ideia de tornar-se novamente criança por meio de um processo
metafórico de morte-renascimento. O sucinto ensaio de Ralph Metzner
deixa claro que a renovação é o renascimento de uma atitude espiritual,
muitas vezes sob a forma de uma percepção da presença da criança
interior. “Do tumulto e das trevas da morte”, diz ele, “brota a reluzente
vitalidade do self recém-nascido. Este novo self está ligado à fonte
eterna de toda a vida, àquela fonte da qual todos proviemos, a essência
divina interior. Portanto, justificadamente a denominamos ‘a eterna
criança’”.
...Vejo
O adorável Menino enquanto o contemplo
Em meio aos desgraçados e falsamente joviais,
Como um daqueles que caminhou com o cabelo não chamuscado
Por entre as fornalhas em chamas.
...Lear
Por suas ingratas filhas lançado à deriva.
Vós, relâmpagos, ouvi sua voz! - elas não conseguem ouvir,
Tampouco os ventos restauram seu simples dote.
Mas uma existe, Criança de natureza meiga,
Que a seu Senhor vem buscar;
E ele, recobrando os sentidos, naquele regaço
Inclina-se sorridente e afunda no descanso perfeito.
Poder-se-ia objetar que esta passagem do poema Para H.C. nada tem
que ver com o arquétipo da criança, e que foi dedicado a Hartley
Coleridge, afinal de contas, apenas a Hartley Coleridge e não a uma
criança divina e mítica. Deve-se admitir, no entanto, que existem
aspectos da descrição desse menino que devem tê-lo tomado maior do
que sua realidade humana. Ele é “lépido viajante”, uma “gema que
resplandece” e, o que é ainda mais significativo, é capaz de conjugar
“terra e céu em uma só imagem”. O “H.C.” do poema é muito mais do
que Hartley Coleridge, e não é simplesmente uma imagem do frescor
e da inocência pueris. Ele possui aquela “visão abençoada” que lhe
permite transcender a dicotomia entre céu e terra, de tal modo que
parece “suspenso num riacho tão claro como o firmamento”. O H.C.
do poema é um ser frágil mas definitivamente transcendente, em
relação a quem o verdadeiro Hartley Coleridge poderia ter servid o
como pouco mais que inspiração inicial.
A imagem da criança divina é igualmente importante na Ode. Neste
poema, a pureza e a sabedoria superior da criança especial estão claras
na oitava estrofe:
Thou, whose exterior semblance doth belie
Thy soul’s immensity;
Thou best Philosopher, who yet dost keep
Thy heritage, thou Eye among the blind,
That, deaf and silent, read’st the eternal deep,
Haunted forever by the eternal mind,
Mighty Prophet! Seer blest!
On Whom those truths do rest,
Which we are toiling all our lives to fínd,
In darkness lost, the darkness of the grave;
Thou, over whom thy Immortality
Broods like the Day, a Master o'er a Slave,
A presence which is not to be put by;
.............................................................................. .........................
Thou little Child, yet glorious in the might
of heaven-born freedom...
I
Quando, inteiramente a sós e sonhando por um tempo até que
razoavelmente longo, nos afastamos do presente para reviver os
tempos iniciais da vida, várias faces infantis vêm ao nosso encontro.
Em nossa vida provisória, em nossa vida primitiva, fomos vários.
Somente através do relato de terceiros é que chegamos depois a
conhecer nossa unidade. Acompanhando o fio da nossa história, da
forma como é contada pelos outros, ano após ano, terminamos
parecendo-nos com nós mesmos. Reunimos todos os nossos seres em
tomo da unidade do nosso nome.
Mas o devaneio não repete o relato. Ou, pelo menos, existem devaneios
tão profundos, que nos ajudam a descer tão fundo dentro de nós
mesmos, que somos por eles libertados da nossa história. Esses
devaneios libertam-nos do nosso nome. Esse momento de solidão no
hoje nos remete às nossas solidões originais. Estas, as solidões da
infância, deixam marcas indeléveis em determinadas almas. Sua vida
inteira é impregnada pelo devaneio poético, que conhece o preço da
solidão. A infância conhece a infelicidade através das pessoas. Na
solidão, ela pode relaxar de suas dores. Quando o mundo humano deixa
a criança em paz, ela se sente filha do cosmo. E assim, em sua solidão,
a partir do momento em que se toma mestra de seus devaneios, a
criança conhece a felicidade de sonhar aquela que mais tarde será a
felicidade dos poetas. Como é possível não sentir que existe
comunicação entre a nossa solidão de sonhadores e as solidões da
infância? E não é por acaso que, num devaneio tranquilo, muitas vezes
descemos pela encosta que nos faz regressar às solidões da nossa
infância.
Deixemos, então, à psicanálise a incumbência de curar as infâncias
mal-vividas, de curar os padecimentos pueris de uma infância
endurecida que oprime a psique de tantos adultos. Existe uma tarefa,
aberta à análise poética, que nos ajudaria a reconstituir, dentro de nós,
o ser das solidões libertadoras. A análise poética deve recuperar para
nós todos os privilégios da imaginação. A memória é um campo repleto
de ruínas psicológicas, um baú de recordações. Nossa infância inteira
permanece ali para ser reimaginada. Quando a reimaginamos, temos a
possibilidade de recuperar com ela a própria vida das fantasias da
criança solitária que fomos.
Daí em diante, as teses que desejamos defender neste capítulo retomam
todas para nos fazer reconhecer, dentro da alma humana, a
permanência de um núcleo de infância, uma infância imóvel mas
sempre-viva, alheia à história, oculta dos outros, disfarçada de história
quando relatada, mas que tem sua verdadeira realidade somente nos
instantes de sua iluminação, o que é o mesmo que dizer nos momentos
de sua existência poética.
Quando sonha em sua solidão, a criança conhece uma existência que
não tem limites. Seu devaneio não era simplesmente uma fantasia de
fuga. Era um devaneio de vôo.
Existem devaneios de infância que ressurgem com o esplendor do
fogo. O poeta encontra novamente sua infância quando a relata com a
entonação do fogo.
Tone of fire. I shall tell what my childhood was.
We unearthed the red moon in the thick of the woods. 1
Ao ler estas linhas vejo o céu azul acima do meu rio nos verões do
outro século. O ser do devaneio cruza todas as idades do homem, da
infância à senectude, sem envelhecer. Por isso é que sentimos uma
espécie de duplicação do devaneio mais adiante na vida, quando
tentamos recuperar as fantasias da infância, devolvendo-lhes a vida.
Essa consagração do devaneio, o aprofundamento que sentimos
quando sonhamos com a nossa infância, explica que, em todos os
devaneios, mesmo naqueles que nos levam à contemplação de uma
grande beleza no mundo, logo nos deparamos regressando aos antigos
devaneios, repentinamente tão antigos que nem mais pensamos em
datá-los. Um vislumbre de eternidade desce então sobre o mundo.
Estamos postados diante de um grande lago cujo nome é conhecido dos
geógrafos, no alto das montanhas, e de repente estamos voltando a um
passado distante. Sonhamos enquanto recordamos. Recordamos
enquanto sonhamos. Nossas recordações nos remetem a um simples rio
que reflete um céu debruçado nas colinas. Mas a colina cresce e a curva
do rio se alarga. O pequeno toma-se grande. O mundo do devaneio
infantil é grande, maior do que o mundo oferecido à fantasia de hoje.
Do devaneio poético, inspirado por algum grande espetáculo do
mundo, ao devaneio da infância, existe uma barganha de magnitudes.
E é por isso que a infância está na origem das maiores paisagens. As
solidões da nossa infância nos proporcionaram as imensidões
primordiais.
Ao sonhar com a nossa infância, regressamos ao refúgio dos
devaneios, aos devaneios que nos revelaram o mundo. É o devaneio
que nos toma os primeiros habitantes do mundo da solidão. E
habitamos melhor o mundo porque o habitamos como a criança
solitária habita as imagens. No devaneio da criança a imagem tem
precedência em relação a tudo o mais. As vivências só aparecem
depois. Estas se contrapõem ao vento de todo devaneio de voo. A
criança vê tudo grande e lindo. O devaneio de regresso à infância nos
faz retomar à beleza das primeiras imagens.
Pode o mundo ser tão belo agora? Nosso apego à beleza original foi
tão intenso que, se o nosso devaneio nos leva de volta às nossas mais
queridas recordações, o mundo presente perde inteiramente a cor. Um
poeta que escreve um livro de poemas intitulado Concrete Days pode
dizer
...The world totters
when from my past I get
what I need to live in the depths of myself. 3
Introdução
A humanidade seria órfã se não fosse por Deus, segundo Santo Agostinho.
Em termos psicológicos, isso implica que, para a criança abandonada, não
há pais “bons o bastante” ... Na realidade, somos todos órfãos em parte e é
através do sofrimento desse fato arquetípico do abandono (e do a bandonar)
que podemos reunir-nos em comunidades. Esse sentimento comunitário, que
se baseia no reconhecimento da nossa mútua solidão e dor, é uma emoção
religiosa, uma realidade existencial e um retorno ao mundo com o reconhe -
cimento de que o mundo é tudo o que temos e que talvez seja “bom o
bastante”.
- Patricia Berry, Chiron, 1985.
A criança inicia a vida num estado semelhante ao do paraíso. Pura e
repleta de possibilidades - suas necessidades sendo supridas pelo
acolhimento maternal do mundo aquático, atemporal, ilimitado e
interminável - assim a criança inocente inicia, portadora da grande
promessa da humanidade.
Mas, infelizmente, essa inocência não pode durar. O que começa como
potencial infinito deve, com o tempo, encaminhar-se para o finito e
imprevisível mundo, a fim de ser concretizado. Então, uma separação
ou abandono abrupto é uma das primeiras experiências de transição de
cada ser humano, uma passagem em que a criança se torna
internalizada, à medida que a personalidade individual vai -se
adaptando às exigências de suas circunstâncias exteriores. Segundo C.
G. Jung, o abandono é, de fato, o que define inicialmente a criança
interior. Ele disse: “Criança significa algo que evolui rumo à
independência. Isso não pode ser obtido sem se distanciar de s uas
origens: o abandono é, portanto, uma condição necessária e não apenas
um sintoma concomitante.” A experiência do abandono - concreta,
emocional, psicológica - é, portanto, uma iniciação na vida. É uma
repetição da expulsão do Éden, uma perda da inocência, uma decepção,
assim como uma traição. Contudo, é um acontecimento positivo,
porque nos põe em movimento na nossa jornada, nos faz seguir as
voltas do nosso caminho em busca da experiência e da identidade. O
poeta Rainer Maria Rilke deu voz ao lado positivo dessa busca
solitária:
I live my life in growing orbits,
Which move out over the things of the world.
Perhaps I can never achieve the last,
but that that will be my attempt.
I am circlingg around God, around the ancient tower,
and I have been circling for a thousand years.
And I still don't know if I am a falcon.
Or a storm, or a great song*