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UNIVERSIDADE INTERNACIONAL DA PAZ (UNIPAZ-GOIÁS)

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM PSICOLOGIA


ANALÍTICA

RENATA FIORESE FERNANDES

O MITO DE GAIA: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO DESENVOLVIMENTO


DO EGO A PARTIR DO ARQUÉTIPO DA GRANDE MÃE

GOIÂNIA
2019
RENATA FIORESE FERNANDES

O MITO DE GAIA: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO DESENVOLVIMENTO


DO EGO A PARTIR DO ARQUÉTIPO DA GRANDE MÃE

Artigo apresentado para obtenção de nota referente ao Núcleo


de Mitos e Contos de Fada do Curso de Pós-Graduação em
Psicologia Analítica realizado pela Universidade Internacional
da Paz (UNIPAZ-GOIÁS).

Orientadora: Profa. Dra. Sonia Bufarah Tommasi

GOIÂNIA
2019
INTRODUÇÃO

Neste artigo pretendo apresentar a narrativa mítica como manifestação da realidade


imagética arquetípica do Inconsciente concebido por Jung, em seu caráter pessoal e coletivo,
utilizando como eixo central o Mito de Gaia como manifestação do desenvolvimento do Ego e da
Consciência a partir de sua diferenciação do arquétipo da Grande Mãe Urobórica. Para isso, farei
uma análise do mitologema, apontando as características principais dos símbolos presentes no mito.
Para iniciar um diálogo sobre mito, é indispensável primeiro salientar os motivos pelas quais
essa discussão é importante. Na Psicologia Analítica, Jung concebe o Inconsciente além da camada
pessoal, como coletivo e autônomo, de natureza universal, dotado de uma linguagem mitopoética no
qual as imagens primordiais arquetípicas são os personagens principais. Os arquétipos aparecem
como figuras simbólicas da cosmovisão primitiva e os mitos como uma das primeiras tentativas de
sistematização e racionalização destas manifestações da essência da alma.
Desde muito, Jung se interessou por arqueologia e estudos da religião comparada e foi
através da exploração da psicologia primitiva, aliado a fenômenos que ele observava em sua prática
clínica, que ele começou a desvendar a existência dessas imagens primordiais dotadas de força
impressionante, capazes de suprimir e desfacelar um Ego fragilizado, como no caso dos
esquizofrênicos que ele acompanhava.
A partir daí Jung (2002) começa a observar e comprovar a existência de um:
substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo
(…)', 'que representa essencialmente um conteúdo inconsciente o qual se modifica através
de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a
consciência individual na qual se manifesta'. (JUNG, 2002, p. 15)

Os arquétipos se apresentam, portanto, como formas sem conteúdo, que são preenchidos de
acordo com a vivência pessoal de cada indivíduo. Se referem a etapas e temas da vida
experenciadas por toda a espécie humana no decorrer dos tempos, como a morte, o nascimento, o
casamento, o amor e a fúria, gerando uma espécie de padrão comportamental vivenciado através das
gerações. São também compreendidos como imagens primordiais que atuam como “predisposições
psicossomáticas herdadas e atuantes sobre a atitude individual”, possuindo a qualidade de uma
divindade ou “daimones”, em grego, utilizado como referência aos vários tipos de entidades
intermediárias entre os deuses e os homens. (PEREIRA apud JUNG, 2009, p. 380)
A linguagem do inconsciente funciona por meio de analogias, sendo essencialmente
imagética, o que pode ser visto nos sonhos, nas fantasias e no pensamento mítico. O relacionamento
entre consciente e inconsciente opera, principalmente, por meio da imagem e da imaginação, de
caráter simbólico, sendo os símbolos oriundos de estruturas arquetípicas, responsáveis por produzir
certa estabilidade na psique, funcionando como compensação da oposição da dualidade. Podendo
ser considerados como categorias da imaginação, “no domínio da mente o instinto (arquétipo) é
percebido como imagem, no domínio do comportamento, as imagens são desempenhadas como
instintos, sendo o comportamento sempre uma encenação de uma fantasia”(HILLMAN apud
SERBENA, 2010, p. 79).
Neste sentido, os mitos apresentam-se como as primeiras tentativas de organização de uma
narrativa para explicar esses fenômenos que essencialmente tratam-se de manifestações da dinâmica
psíquica interior, “de manifestações da essência da alma”. Todos os acontecimentos mitologizados
da natureza são como expressões simbólicas do drama interno e inconsciente da alma, que a
consciência só consegue apreender através de projeções – espelhadas nos fenômenos da natureza.
(JUNG, 2002, p. 17)
O homem primitivo como realidade psicológica então se refere a uma instância do
inconsciente “cujo poder decisivo sobre o destino ainda está vivo no âmago da psique do homem
moderno” (NEUMANN, 1996, p. 28). O arquétipo psicóide como vivencia da “participation
mystique” trata-se da experimentação e observação dos fenômenos da natureza como manifestações
da realidade intrapsíquica, vendo refletido, projetado, o movimento da dinâmica da alma. Dada a
importância da compreensão da dinâmica dessa realidade psíquica, o uso dos mitos como categoria
de observação torna-se uma ferramenta de grande potencial de comunicação da consciência com
essa camada simbólica, mitopoética, do inconsciente, produzindo estabilidade e harmonia entre
estas dualidades fundamentais da psique.
O objetivo aqui é o de apresentar o Mito de Gaia como representação de símbolos do
inconsciente do momento que ocorre a diferenciação do Ego do seio do caos disforme do
inconsciente, do ventre da Grande Mãe; este que apresenta-se como o caráter masculino que luta
contra as forças telúricas instintivas, afim de assumir sua posição de centro organizador da
consciência. Assim, através da análise desse movimento no mundo das imagens da linguagem
mitopoética do inconsciente, pretendo elucidar um pouco mais sobre esse processo de suma
importância para o desenvolvimento e fortalecimento do Ego como início do trilhar pelo caminho
da individuação – encontro do Si-Mesmo.

O MITO DE GAIA

Partindo da Teogonia e Trabalhos e Dias escrita por Hesíodo e apresentado por Junito
Brandão no volume um da obra “Mitologia Grega” (1986, p. 185), Gaia aparece como princípio
criador que surge do Caos absoluto, a matéria disforme ou abismo insondável, vazio primordial,
quando os elementos do mundo não foram ainda impostos a qualquer tipo de ordenação. Na
cosmogonia egípcia, trata-se de uma energia poderosa existente antes da criação do mundo e
conjuntamente com o mundo formal, como uma força circundante da terra, fonte de energia
inesgotável, ao qual todas as formas retornaram depois de fenecerem. Para os chineses, o Caos
representa a unidade, anterior a divisão das quatro direções, que equivale a criação do mundo.
Do Caos grego, dotado de grande energia criadora, surgem Gaia, Tártaro e Eros. Gaia como
representante da Grande Mãe refere-se ao Planeta Terra, diferenciando-se de Deméter, que é a terra
cultivada. Simbolicamente, entre inúmeras possibilidades de significado, se refere ao princípio do
feminino passivo Yin, acolhedor, fértil, a que contém, cultiva e nutre, em contraposição ao princípio
masculino Yang, ativo, volátil, assertivo e viril.
De acordo com a Teogania, a própria Gaia gera a Urano, o céu que a cobre e fecunda,
enquanto ela suporta e gera. A união de Urano e Gaia é concebido como “hieros gamos”, um
casamento sagrado, cujo objetivo é a fertilidade da mulher, dos animais e da terra. Desta união
sagrada são gerados os Titãs, Titânidas, Ciclopes e Hecantoquiros.
Suas proles são reprentações das “forças telúricas, manifestações elementares das forças
selvagens da insubmissão da natureza em oposição a espiritualização harmonizante”, caracterizando
a primeira etapa da gestação evolutiva. São “as forças brutas da terra e, por conseguinte, os desejos
terrestres em atitude de revolta contra o espírito” cujo objetivo é a dominação - espírito aqui têm o
significado do princípio luminoso, consciente, representado na teogonia grega por Zeus
(BRANDÃO, 1986, p. 196).
Urano, como princípio masculino fecundador, por medo de ser destronado pelos próprios
filhos, os devolvia ao seio materno à medida que nasciam, jogando-os ao Tártaro, enfurecendo a
Gaia. Esta, não mais suportando tamanha tristeza de ver seus filhos relegados ao exílio, em um ato
de revolta ao marido, liberta-os, suplicando-lhes que a vingassem e libertassem de Urano. Todos
recusam ajudá-la, menos Crono, que odiava o pai. Gaia então lhe entrega uma foice, e quando
Urano retorna, ávido de amor, à noite, para deitar com sua esposa, Crono corta-lhe os testículos. O
sangue do ferimento de Urano, tocando a terra, dá origem às Erínias, os Gigantes e as Ninfas. Seus
testículos, jogados ao mar, formaram com a espuma a deusa Afrodite. Com isso, Crono vinga a mãe
e liberta os irmãos.
Assim, Urano (Céu) separa-se de Gaia (Terra), com a interposição entre ambos do Éter e do
Ar, pondo fim a uma longa e ininterrupta procriação inútil, já que Urano devolvia os filhos à terra.
Castrado e impotente, Urano perde seu poder e Crono assume seu lugar, casando-se com Réia.
Crono, como governante, se mostra tão tirano quanto seu pai. Temendo os irmãos, relega os
Ciclopes e Hecatonquiros de volta ao Tártaro e apreensivo com a premonição feita pelos pais,
Urano e Gaia, que possuiam o dom de prever o futuro, de que ele seria destronado por um de seus
filhos, Crono os engulia, um a um, assim que nasciam: Héstia, Deméter, Hera, Hades e Posidon. O
único que consegue escapar, por intermédio da mãe, foi Zeus. Réia foge para a ilha de Creta para
dar luz ao caçula e quando Crono requer que ela entregue o menino, ela o engana, entregando-lhe
uma pedra no lugar do filho que o deus engole de imediato.
A criança é então escondida por Gaia nos flancos do monte Egéon e lá ele fica entregue aos
cuidados dos Curetes e das Ninfas. Zeus passa por um período iniciático de preparação para as
batalhas que travaria com o pai, Crono. Com a ajuda de Métis (a prudência) que lhe fornece uma
substância, Zeus faz com que Crono vomite os filhos que havia engolido. Com seus irmãos como
aliados, Zeus inicia um duro combate contra o pai e os tios, os Titãs, que dura cerca de dez anos.
Zeus, a conselho de Gaia, liberta os Ciclopes e Hecatonquiros do Tártaro, os quais,
agradecidos, presenteia-o com o raio e o trovão, a Hades ofereceram um capacete mágico, que
tornava invisível a quem usasse e a Posídon presenteiam com o tridente, capaz de abalar terra e mar.
Juntos, os irmãos conseguem derrotar Crono e os Titãs, sendo estes relegados ao Tártaro. Gaia,
furiosa com os Olímpicos por jogarem seus filhos ao Tártaro, reuniu contra os vencedores os
terríveis Gigantes, nascidos do sangue de Urano. Derrotado os Gigantes, aumentando ainda mais a
fúria de Gaia, esta em seu derradeiro esforço, se junta a Tártaro, dando origem o mais horrível e
terrível dos monstros, o Tifão.
Tifão era um meio termo entre um ser humano e uma fera terrível e medonha. Era mais alto
que as montanhas e sua cabeça tocava as estrelas. Quando abria os braços, uma das mãos tocava o
Ocidente e a outra o Oriente e em lugar dos dedos possuia cem cabeças de dragões. Quando os
deuses viram tão horrenda criatura encaminhar-se para o Olimpo, fugiram apavorados para o Egito,
restando apenas Zeus e sua filha Atená para lutar contra o monstro. O Tifão consegue desarmar
Zeus e com sua foice corta-lhe os tendões dos braços e dos pés, largando-o em uma gruta indefeso.
Com o auxílo de Hermes e do deus Pã, Zeus consegue recuperar seus tendões recuperando
suas forças. Ele escala os céus em um carro movido por cavalos alados e recomeça a luta contra o
monstro Tifão, lançando contra o inimigo, uma chuva de raios, até que por fim consegue derrotá-lo
esmagando-o com o monte Etna.

GAIA: A GRANDE MÃE – Compreendo o Arquétipo do Feminino

Em sua tentativa de compreender o mundo e sua experimentação da realidade externa e


interna, o homem primitivo traduz essa vivência de maneira simbólica, sendo o mito sua tentativa
de racionalizar e organizar em forma de narrativa essa participação mística. Os mitos de criação do
Universo e do homem gravitam no imaginário, portanto, desde tempos imemoriais, já que a
compreensão do surgimento da vida material também estava atrelada a descoberta da existência de
si.
Na Cosmogonia Grega o Caos aparece como princípio primordial, apresentado como vazio
sem forma, escuridão abismal indiferenciada. Neumann (1996) em seu trabalho sobre o arquétipo
da Grande Mãe, relaciona esse estado psíquico inicial e da situação primordial, com o círculo
urobórico, representado pelo símbolo da serpente que engole a própria cauda. O Uroboros também
contém em si o Grande Círculo, que faz menção a junção dos opostos, do princípio criador do
feminino e masculino, “é um símbolo de ausência de diferenciação entre o caos, o inconsciente e a
totalidade da psique, a qual será vivenciado pelo Ego como estado limítrofe”(1996, p. 33).
Um traço fundamental do “arquétipo primordial” consiste no fato de que ele reuni em si
atributos positivos e negativos e, ao mesmo tempo, grupo de atributos. Essa “coincidentia
oppositorum” (união de opostos) do arquétipo primordial, sua ambivalência, é a
característica da situação original do inconsciente que a consciência ainda não conseguiu
dissecar em antíteses. O homem pré-histórico vivenciou a paradoxal simultaneidade de bom
e mau, de amistoso e terrível, como qualidades atribuidas à divindade como unidade; com o
correr do tempo, durante o processo de desenvolvimento da consciência, a deusa bondosa e
a deusa má passarão a ser reverenciadas cada uma a sua vez, como seres dotados de poderes
diferentes.” (NEUMANN, 1996, p. 25)

Desse estado de indiferenciação do circulo urobórico representado por Caos, possuidor de


potência criativa, pois é a fusão dos aspectos masculino e feminino que é a base de toda criação, dá
origem primeiro a Gaia, o princípio de caráter elementar do feminino, que ainda se apresenta como
Uroboros Maternal, contendo em si tanto aspectos positivos quanto negativos do Grande Feminino;
além de Tártaro e Eros - este último não será enfatizado por motivos de extensão da análise.
O carácter feminino então, é o primeiro a se diferenciar e é a partir dele que surge o carácter
masculino, portanto também contém tanto os aspectos positivos quanto negativos do Grande
Masculino. É de Gaia que surge Urano, o Céu, que a cobre e fecunda. A união de Gaia e Urano é a
representação da primeira união sagrada - hieros gamos, que depois é imitada pelos Deuses e pelos
homens.
Da matéria amorfa do Caos acontece a diferenciação do princípio feminino e a partir deste
surge o masculino. Quando fazemos um paralelo com o desenvolvimento da psique, o primeiro
estágio refere-se a um estado de imersão e indiferenciação com o inconsciente coletivo. No segundo
estágio, com o surgimento de Gaia, temos a Grande Mãe Urobórica que contém tanto aspectos
negativos quanto positivos que podem ser experimentados pelo Ego como proteção feminina
maternal, característica da Mãe Boa, ou agressão assassina, no sentido de possessão, inflação do
arquétipo da Mãe Terrível sob o Ego infantil e fragilizado.
Quando Gaia dá origem à Urano, acontece a diferenciação em o “Grande Feminino” e o
“Grande Masculino”, de acordo com Neumann (1996, p.33):
O Grande Feminino contém traços do 'Uroboros Maternal' e da 'Grande Mãe Urobórica'.
Nele residem, essencialmente, os elementos do Feminino, mas desordenadamente e, por
isso, imprevisíveis e inapreensíveis à vivência do ego. Nesse 'arquétipo primordial' do
Feminino, também existem, ao lado da preponderância de elementos femininos,
determinantes masculinos positivos e negativos
Da união de Gaia e Urano, surgem os Titãs, Titânidas, Ciclopes e Hecatonquiros. Mas
Urano, apreensivo com a possibilidade de ser destronado por um de seus filhos, devolvia-os ao seio
materno, à Terra, assim que nasciam, apresentando uma fecundação inútil, sem sentido e
descontrolada, retratando o lado negativo do aspecto masculino – a potência de concretização sem
propósito.
Os filhos gerados desse hieros gamos são representações das forças telúricas instintivas os
quais Gaia, como manifestação do caráter elementar do Feminino, demonstra o desejo de conservar
apesar da tendência a imprevisibilidade dessas forças, pois são manifestações de um aspecto desse
Feminino, pertencentes a ele, assinalando uma característica típica do matriarcado.
Urano surge a partir de Gaia como representação da diferenciação do Ego do Grande
Feminino manifestando uma tentativa inicial de assumir sua posição quanto centro organizador da
consciência, já que por impulso de sobrevivência, suprimi de volta à Terra todos os filhos gerados,
estes que são as forças instintivas e primitivas do inconsciente. O Ego então, com medo de ser
tragado por estas forças, as relega ao Tártaro, que é a instância mais profunda e inconsciente de
Gaia, da Grande Mãe.
Furiosa com a atitude tirânica do marido, Gaia pede ajuda aos seus filhos para eliminar
Urano, e Crono, o mais novo dos Titãs, concorda em auxiliá-la. Gaia então o entrega uma foice e
articula com o filho a castração do marido, para por fim a procriação descontrolada e com a
esperança de que conseguiria libertar os outros filhos que Urano relegara aos confins do Tártaro. A
foice aqui apresenta o significado simbólico da transformação, do nascimento de um novo aspecto
do masculino, representado pela conquista de Crono ao poder. Associado semanticamente ao
“Tempo” cronológico, no nível da dinâmica psíquica, pode relacionar-se com o desenvolvimento do
aspecto masculino do Ego de assertividade, quando castrando o pai, Crono estanca a procriação
descontrolada de forças telúricas incontroláveis, que são as forças instintivas do inconsciente.
Crono como o tempo devorador, engolia seus filhos assim que nasciam, representando outro
aspecto do masculino disfuncional. Psiquicamente podemos identificar esse comportamento como
resistência ou falta de estrutura do Ego como espelho dos conteúdos inconscientes, na medida em
que toda conteúdo, para vir para a consciência precisa passar pelo Ego como intermediador e ponte
de comunicação entre inconsciente e consciência.
A relação traçada do inconsciente com o feminino e do Ego com o masculino está presente
em diferentes narrativas míticas no decorrer dos tempos. O Grande Feminino que possui como
simbolismo central a equação básica MULHER=CORPO=VASO “cujo interior permanece sempre
obscuro e desconhecido, é a realidade do indivíduo, o local onde vivencia todo o mundo instintivo
do inconsciente”, processo que se inicia nas primeiras experimentações do recém-nascido como
todo tipo de instinto, pulsão ou dor, a partir do interior desse corpo-vaso concreto e misterioso, que
o faz manifestar reações que são projetadas para o mundo externo, como o choro, em busca de
saciar o que é sentido internamente (NEUMANN, 1996, p. 46).
A primeira geração dos filhos desse hieros gamos são a representação das forças instintivas
produzidas por esse corpo-vaso e por isso misteriosas ao Ego, que como Urano e Crono, demonstra
a necessidade de suprimi-las já que não consegue concebê-las por serem fruto do grande mistério do
corpo como símbolo do poder do Grande Feminino, temendo serem depostos por elas.
Os Titãs como primogênitos, sendo Crono o mais novo deles, são apresentados como
representação das “manifestações elementares, das forças selvagens e da insubmissão da natureza
nascente. Ambiciosos, revoltados e indomáveis, são adversários do espírito consciente, exprimem a
oposição a espiritualização harmonizante”, esta que é simbolizado pela chegada de Zeus ao poder,
sendo este a manifestação do Ego desenvolvido, numinoso, que consegue articular a ponte de
comunicação entre consciente e inconsciente, na medida em que se une com os irmãos (Ciclopes e
Hecatonquiros) que também são representação das forças inconscientes e se mostram fator decisivo
para a vitória do Deus (BRANDÃO, 1986, p. 196).
Partindo do pressuposto de que o mito ilustra o movimento de desenvolvimento do Ego e
sua interação e diferenciação da Grande Mãe, e sendo Crono a segunda etapa desse processo, Zeus,
seu filho mais novo, é a terceira e etapa que representa o nível mais alto de maturação, estruturação
e desenvolvimento desse Ego. Crono casa-se com Réia, que também era conhecida como uma
divindade que simboliza a força do seio da Terra, portanto um aspecto do Grande Feminino, e é
graças a sua intervenção, quando entrega uma pedra ao marido, ao invés de Zeus, para ser engolida,
que acontece o começo do processo iniciático de Zeus, ainda criança.
Gaia intervindo e em auxílio de Réia, esconde Zeus menina, a criança divina, nos flancos do
monte Égeon e lá ele permanece até a idade adulta, sobre os cuidados dos Curetes e das Ninfas. De
acordo com Brandão (1986) os Curetes eram demônios do cortejo de Zeus que foram solicitados
pela ninfa Amaltéia para que dançassem em torno do menino, afim de abafar seu choro e protejê-lo
de Crono:
Conta-se ainda que o entrechocar das armas de bronze dos Curetes abafava o choro do
recém-nascido, o que traduz uma projeção mítica de grupos iniciáticos de jovens que
celebravam a dança armada, uma das formas da dokimasía grega. A dança desses demônios,
e Zeus é cognominado “o maior dos Curetes”, é um conhecido rito da fertilidade.
(BRANDÃO, 1986, p. 333)

A ninfa Amaltéia é simbolizada como uma cabra que amamenta Zeus, experiência que é
considerada a maior e mais significativa pela riqueza do simbolismo do animal. Entre os gregos, a
cabra simboliza o raio, a que anuncia a tempestade e a chuva, associada com a hierofania, como a
manifestação de um deus, conta-se entre os mitos gregos, que foram as cabras quem descobriram os
vapores que as puseram em estado de vertigem e que posterioramente foi instalado o Oráculo de
Delfos. Nessa e em outros culturas, este animal sempre foi associado a qualidades divinas e
espirituais (BRANDÃO, 1986, p. 333-334).
No decorrer do Mito apresenta-se a conquista de Zeus, como manifestação do Ego
desenvolvido, luminoso, que além de passar por um processo iniciático após seu nascimento,
quando é entregue pela mãe às Ninfas que o mantinham escondido em uma caverna (símbolo do
útero, portanto novamente representação da Grande Mãe), recebe treinamento apropriado para
derrotar seu pai, Crono, o que apenas consegue unindo-se às forças instintivas telúricas
representado pelos seus irmãos mais velhos, os Ciclopes e Hecatonquiros.
Salientando mais uma vez a realidade dual dos arquétipos, Gaia, como símbolo do arquétipo
da Grande Mãe, gera tanto os Titãs, que podem ser vistos aqui como aspecto negativo produzido
pelo Grande Feminino, já que Crono, como o mais novo deles, demonstra-se um governante tirano,
à imagem do pai, Urano, também gerado por Gaia, como Grande Mãe Urobórica, e que também se
apresenta como aspecto negativo do masculino, como Ego infantil, que sem a maturidade
necessária, enxerga seus filhos como ameaça ao seu poder, relegando-os às profundezas do Tártaro,
enquanto Crono devorava seus filhos, um a um, numa tentativa de controle dos instintos.
Gaia também gera os Ciclopes e Hecatonquiros, que se apresentam no mito como forças
primordiais para ascensão de Zeus ao poder, auxiliando-o a derrotar Crono e os demais Titãs. Os
Ciclopes, libertados do Tártato por Zeus que fora aconselhado para tal pelo oráculo de Gaia, como
agradecimento, presenteiam o Deus com o trovão, o relâmpago e o raio. Como criaturas de um olho
só no meio da fronte, simbolicamente, utilizando a tradição hinduísta para a compreensão de um
dos significados possíveis, pode estar ligado a capacidade intuitiva e percepção sutil, abordado por
Jung como uma das funções psíquicas que vai além do espaço-tempo e que pode ser um dos
motivos dos Ciclopes serem apresentados no mito como filhos da terra, por representarem essa
função mais inconsciente, já que apresenta apenas esse olho no centro do que seria a testa, ao invés
dos dois olhos que estão ligados aos sentidos e portanto a função sensação.
Além de também apresentarem outra possível suposição sobre os presentes dados a Zeus – o
trovão, o relâmpago e o raio – que simbolicamente pode significar a manipulação consciente dos
instintos violentos advindos da parte mais primitiva da psique, representado pelos Ciclopes, sendo a
descarga elétrica dos trovões de Zeus a capacidade do discernimento do masculino de atuação
focalizada, representando um nivel do desenvolvimento do Ego em que é possível a canalização da
ira em situações e com certos aspectos da psique, que demandam uma delimitação mais consistente
ou até mesmo a destruição pelo fogo, que também pode simbolizar uma possibilidade de
transmutação de algo que não serve mais para o bom desenvolvimento da dinâmica psíquica em
algo novo, que auxilie no movimento prospectivo, rumo a individuação.
Juntos aos irmãos, Hades e Posidon, Zeus consegue derrotar Crono e os Titãs. Gaia, não
satisfeita com os Olimpicos por terem relegado seus filhos ao Tártaro após os derrotarem, faz mais
duas tentativas de retirar Zeus do poder, libertando os Gigantes e um pouco depois, gerando Tifão, o
mais horrendo e terrível dos monstros.
Zeus, como princípio masculino mais desenvolvido e luminoso, precisa se juntar com
aspectos desse masculino, representado por Hades, com o simbolismo do inferno invisível, que
pode ser compreendido como a sombra; e com Posidon, o deus das águas subterrâneas, fazendo
menção aos sentimentos e ao inconsciente. Gaia, que se recusa a abrir mão da liberdade de qualquer
um de seus filhos, gera com Tártaro, os Gigantes e o Tifão, seres imensos e assustadores,
representando a tentativa derradeira dos instintos negativos mais poderosos, em busca de impedir o
alcance da “espiritualidade harmonizante”, da ascensão do espírito, representado por Zeus, ao
poder, ao consciente.
Gaia, em sua aparente relutância e luta contra a chegada de Zeus ao poder, apresenta o
caráter elementar do feminino, que segundo Neumann (1996) é designado como:
o aspecto do Feminino, que como o “Grande Círculo” e o “Grande Continente”, demonstra
a tendência de conservar para si aquilo a que deu origem e envolvê-lo como uma substância
eterna. Tudo o que dele nasceu lhe pertence, continua sujeito a ele e, mesmo quando o
indivíduo se torna independente, o Grande Feminino relativiza essa autonomia, tornando-a
uma variante secundária de seu existir, enquanto Grande Feminino. (…). O caráter
elementar do feminino estará sempre em evidência quando o ego e a consciência forem
infantis e não-desenvolvidos, e o inconsciente for dominante. Em relação a ele, o ego, a
consciência e o indivíduo, quer sejam masculinos ou femininos, são infantis, dependentes e
submissos. A característica marcante do caráter elementar é a sua função de “conter”.
Outrossim, ele se manifesta de forma positiva como provedor de alimento, de proteção e de
calor e, de forma negativa, como repúdio e privação.(NEUMANN, 1996, p. 36)

O mito de Gaia portanto, apresenta, o movimento do crescimento e desenvolvimento do


Ego, que como observado, é impossível de ser abordado, sem incluir nesse processo a necessidade
da integração dos opostos. Zeus, como representante desse Ego já em um estado mais avançado,
afim de derrotar os instintos, como forças telúricas selvagens, que eram enviados por Gaia, precisou
se integrar com seus irmãos e tios, com suas sombras e sentimentos inconscientes e com seus
instintos. Apenas assim, ele consegue por fim ao poder tirânico de seus antecessores, representantes
do Ego e de um aspecto masculino ainda infantilizado e descontrolado, assumindo o poder do
Olimpo como pai dos deuses, como um Ego consciente e luminoso.
Mas é claro que a história não acaba ai. Por motivos de extensão da análise e da
multiplicidade de simbólos personificados, não é possível abordar toda a peripécia em um simples
artigo. Além de ter sido notável no discorrer que não tem como abordar sobre o arquétipo da Grande
Mãe e do aspecto feminino da psique, sem incluir o caráter masculino que a acompanha e
complementa, sendo a compreensão da sua dinâmica psíquica apenas possível quando integrado o
movimento também do aspecto masculino com o qual ela interage.

CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES PESSOAIS


Como foi possível observar, o sentido simbólico e o encadeamento das estruturas de
imagens arquetípicas na narrativa do Mito de Gaia, identifica-se como uma fase do processo de
constituição da consciência egóica, apresentando no decorrer da história, a superação do estado de
identidade original da participação mística quando o Ego está imerso, contido, no Grande Feminino
Urobórico e na Grande Mãe, como no estado pré-lógico de nossos antepassados primitivos e no
início do desenvolvimento do Ego infantilizado, para um estado de iluminação consciente, com a
posse de Zeus do poder, representante de um Ego estruturado, que possui como característica a
espiritualização harmonizante da integração dos contrários, assumindo sua posição como centro da
consciência luminosa.
No decorrer da produção deste artigo pude perceber mais do que nunca como realmente não
existe qualquer aspecto de neutralidade na escolha de um tema para pesquisa. Na verdade tenho
dúvidas se sequer existe a possibilidade de uma escolha consciente, pois para mim ficou evidente
como fui capturado pelo Mito de Gaia como uma movimentação expressa do inconsciente talvez em
busca de facilitar a integração de alguns aspectos importante para meu processo de individuação; do
seu objetivo real também nunca terei clareza.
Encontrar a obra do Neumann durante a busca para a pesquisa foi de um fascínio
imensurável e aos poucos percebo como realmente não existe maneira de fugir de uma curiosidade
latente de compreender a origem do Uroboros maternal inicial de toda a psique como vaso
contenedor do todo – inconsciente e consciente, feminino e masculino.
Confesso que a interpretação analítica do mito não foi de nenhuma forma, tarefa fácil, pois
acredito que muitos processos inconscientes aconteciam de maneira concomitante dentro de mim
mesma e era preciso esperar o tempo de elaboração de cada etapa para então seguir adiante. Sei que
ainda existem inúmeros aspectos que precisam ser olhados com mais cautela e profundidade como
também aceito que no momento de minha caminhada, o que foi apresentado acima consiste na
minha possibilidade de apreensão e acesso interior, que por mais que sejam muitas vezes
superficiais, são representação do que consigo lidar e compreender no presente, o que não significa
que não continuarei a me debruçar sobre o tema e sobre mim mesma, numa tentativa de
aprofundamento de uma dimensão do processo de individuação.
Me surpreendeu o fato de que a medida em que eu avançava na pesquisa, ficava cada vez
mais claro que não seria possível traçar qualquer ponte lógica de sentido simbólico, sem integrar o
aspecto masculino do processo, que no mito é representado pela tríade Urano-Crono-Zeus. O Ego
como o herói, masculino, destitui-me de barreiras pré-conceituadas, possibilitando o acesso de
várias dimensões de meu Animus, principalmente em seu caráter de psicopompo, como ponte de
interlocução com a dimensão espiritual, sutil e numinosa.
A luta travada por Zeus, como esse aspecto do Ego luminoso, que pretende instalar uma
espiritualização harmonizante como centro consciente, contra as forças instintivas que desejam
manter o desenvolvimento em um aspecto denso das necessidades materiais mundanas, trata de uma
realidade que percebo que acontece diariamente dentro de nós, ainda mais quando nos propomos a
caminhar na jornada da individuação, na jornada do herói.
Dai a importância e a rica contribuição que a compreensão das narrativas mitológicas podem
acrescentar na vida e na saúde mental dos homens modernos. Como linguagem fundamental dos
arquétipos que investiga e exprimi “o sentido da aventura espiritual dos homens, lançados através
do espaço-tempo” (CHEVALIER & GHEERBRANT apud SERBENA, 1989, p. 80 ) a interpretação
da realidade simbólica dos mitos pode se apresentar como um mapa guia de auxílio e superação de
difíceis movimentos internos e externos, na medida em que exprimem, através de linguagem
poética, experiências fundamentais da vida humana.
Assim, o mito surge como realidade viva, numa tentativa de atribuir forma e significado ao
mundo, satisfazendo as necessidades simbólicas da psique, o que em termos de dinâmica psíquica,
possibilita a circulação de energia, do consciente e do inconsciente, atuando em um dinamismo
integrador, estabelecendo conexões entre forças e objetos opostos atuando como uma função
transcendente na medida em que possibilita superação dos conflitos produzidos pela dualidade,
possibilitando a transformação de conteúdos e da energia psíquica contida nos símbolos,
fomentando uma diferenciação e desenvolvimento da consciência em direção à uma totalidade e
uma integração com o mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDÃO, J. S. Mitologia Grega. Volume 1. Petrópolis - RJ: Editora Vozes. 1986.


JUNG, C. G. Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Volume 9/1. 11º edição. Obras Completas.
Petrópolis - RJ: Editora Vozes. 2014.
NEUMANN, E. A Grande Mãe. Um estudo fenomenológico da constituição feminina do
insconciente. São Paulo: Editora Cultrix. 1996.
PEREIRA, H. C. Da Metamorfose dos Deuses. Capitalismo e Arquétipo no Século XXI. Estudos e
Pesquisas em Psicologia. UERJ, RJ. Ano 9, N.2, P. 376-388. 2009.
SERBENA, C. A. Considerações sobre o Inconsciente: Mito, Símbolo e Arquétipo na Psicologia
Analítica. Revista da Abordagem Gestáltica – XVI(1): 76-82, jan-jul, 2010.

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