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Junguiana

v.37-1, p.221-230

A Sombra e o Mal. O paradoxo do Arquétipo


Central. Um estudo da ética pela Psicologia
Simbólica Junguiana1

Carlos Amadeu B. Byington*

Palavras-chave
Resumo
ética, bem e
A Sombra, concebida pela Psicologia Simbóli- cem todo o apreço dos que buscam o desen- mal, fixação,
ca Junguiana como a sede do Mal, é impre- volvimento da Consciência e da ética. defesa, alienação,
scindível para o processo de individuação e de Prosseguindo, o autor discorre sobre a dificul- processo de
humanização pelo fato de conter, fixados no dade que Jung teve para inserir o Bem e o Mal lado individuação,
seu interior, símbolos e funções fundamentais a lado dentro da divindade e do Self, por descon- processo de
para a vida. hecer, até a década de 1950, que o Ego da Consciên- humanização,
Nesse sentido, como na parábola do fil- cia e o Ego da Sombra são o produto da elaboração integração
da sombra,
ho pródigo, os símbolos e funções da Sombra simbólica coordenada pelo Arquétipo Central.
harmonia da
merecem ser buscados mais do que os símbolos O paradoxo ético do Arquétipo Central é que
personalidade,
normais, pois, enquanto estes já estão sendo ele busca a totalidade através da atuação normal paz.
elaborados no caminho da plenitude e do Bem, e também da patológica. A explicação do paradoxo
aqueles estão fixados e alienados no caminho é que o Arquétipo Central almeja acima de tudo im-
do Mal. Pelo fato de os símbolos da Sombra es- pulsionar a vida, seja através do Bem ou do Mal e,
tarem dissociados devido à fixação e oferecerem ao mesmo tempo em que expressa o Mal, propicia
resistência à elaboração, o reconhecimento da o resgate dos símbolos e funções nele contidos
importância da Sombra e o seu confronto mere- através da função estruturante da ética. ■

1
Palestra de encerramento das comemorações dos 30 anos de
fundação da SBPA. PUC – SP, em 27/09/2008. Publicado orig-
inalmente na Revista Junguianas 27, 2008, p. 72 -78.
* Médico psiquiatra e analista junguiano. Membro fundador da
Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Educador e Histo-
riador. Criador da Psicologia Simbólica Junguiana.
E-mail: c.byington@uol.com.br. Site: www.carlosbyington.com.br

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A Sombra e o Mal. O paradoxo do Arquétipo Central. Um estudo da ética pela


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A função ética é um tema central em qualquer o vinho e nada sentira, Jung afastou-se cada vez
teoria de desenvolvimento psicológico e em toda mais da religião cristã institucionalizada.
filosofia do comportamento humano. Freud apre-
sentou-a em sua última conceituação da psique Pouco a pouco a igreja tornou-se para mim
como duas pulsões antagônicas, eros e tanatos, uma fonte de suplício, pois nela se falava
vida e morte, que se guerreiam durante a vida. em voz alta – eu diria: quase sem pudor
Jung evitou essa posição dualista e buscou – de Deus, de Suas ações e intenções. O
conceituar a relação entre Bem e Mal dentro do povo era exortado a cultivar tais sentimen-
Self no processo de individuação. Essa formula- tos, a crer em tais mistérios que, para mim,
ção da dualidade na unidade, na obra de Jung, provinham da mais íntima e profunda cer-
corresponde à relação dialética que considero teza e a respeito dos quais nenhuma pa-
típica da expressão do Arquétipo da Alteridade lavra poderia testemunhar. Concluí que,
na Consciência (BYINGTON, 2008). No entanto, aparentemente, ninguém conhecia esse
talvez por sua educação religiosa, ele abordou mistério, nem mesmo o pastor; senão ja-
o Bem e o Mal principalmente em função da sua mais teria ousado expor publicamente o
relação com o Deus Judaico-Cristão e não dentro mistério de Deus, profanando com aquele
da Sombra e da psicologia propriamente ditas, o sentimentalismo insípido sentimentos ine-
que dá margem a muita ambiguidade. fáveis (JUNG, 1975, p. 52).
Jung foi criado numa atmosfera religiosa, na
qual a relação com Deus era um assunto cor- Lado a lado com essa vivência direta de Deus,
riqueiro guiado pela Bíblia. Seu pai era pastor Jung buscou durante toda a sua vida descrever
protestante e tinha dois irmãos, também pas- o espontâneo, o imprevisível e terrível dentro
tores. Na família de sua mãe existiam nada me- da divindade e combateu incessantemente a
nos que seis pastores protestantes. Era comum doutrina do Summum Bonun da Igreja Católica,
ouvir, em reuniões de família, sermões e dis- segundo a qual, pensava Jung, Deus seria exclu-
cussões de temas religiosos, enquadrando-se a sivamente bom e o Mal seria a privação de Deus
ética e a natureza de Deus dentro das Escrituras (privatio boni), pois para ele isso excluiria a pre-
(JUNG, 1975). sença do Mal dentro da divindade.
No entanto, desde muito jovem, Jung vivia Jung viveu o sonho com o falo e a visão da ca-
a religiosidade de modo significativamente di- tedral espatifada como uma revelação da natu-
ferente daquela de sua família, pelo fato de se reza de Deus e da sua relação com Ele. Por isso,
relacionar com Deus de maneira individual e contrapôs essas vivências do Deus vivo com
não programada. O sonho com o falo gigante em aquelas pregadas por seu pai, tios e religiosos
cima de um altar subterrâneo, que tivera antes – um deus idealizado do qual falavam, mas cuja
de completar 4 anos, e a visão que teve aos 12 existência não vivenciavam emocionalmente.
anos, com Deus num trono de ouro acima do Levei muitos anos para compreender o que
mundo, defecando e espatifando a Catedral de Jung queria realmente dizer quando afirmava
Basiléia, marcaram decisivamente sua religiosi- que a divindade abriga o Bem e o Mal. Finalmen-
dade com a experiência viva de Deus. Depois de te, acho que o compreendi, não em seus escritos
sua primeira comunhão, na qual ingerira o pão e teóricos, mas em suas memórias (JUNG, 1975).

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O que ele passou sua vida querendo descrever, olhos ergueu-se a bela catedral e, em
me parece, é uma experiência religiosa na qual cima, o céu azul. Deus está sentado em
Deus se revela de todas as maneiras, inclusive seu trono de ouro, muito alto acima do
pela transgressão e agressividade, não poden- mundo e, debaixo do trono, um enorme
do, por isso ser enquadrado, a priori, racional- excremento cai sobre o teto novo e colori-
mente. Assim, ele achava que a teologia, os do da igreja; este se despedaça e os mu-
sermões e os escritos religiosos jamais podem ros desabam.
prever e codificar o deus que Abraão vivenciou
Então era isto! Senti um alívio imenso e
ao subir a montanha e levar Isaac para o holo-
uma libertação indescritível... Fora como
causto, ou aquele que sacrificou seu próprio fi-
uma iluminação... Fizera a experiência que
lho na cruz. O que ele queria descrever, então,
meu pai não tinha tentado – cumprira a
acredito, é o lado terrível de Deus dentro do mito
vontade de Deus, à qual ele se opunha pe-
Judaico-Cristão, que o Ego não pode conceber,
las melhores razões... Quando põe à prova
mas que o Self, que é maior que o Ego, é capaz
a coragem do homem, Deus não se prende
de impor como uma vivência imprescindível no
a tradições, por mais sagradas que sejam.
processo de individuação. Para isso, segundo
Em Sua onipotência, cuida de que nada
ele, Deus não pode ser definido unilateralmente
realmente mau resulte dessas provações.
por nenhuma função estruturante específica que
invalide outras, pois quando assim fazemos eli- Quando se cumpre a vontade de Deus, não
minamos sua abrangência da totalidade. Desta há dúvida de que se segue o bom caminho
maneira, a agressividade e a destruição fazem (JUNG, 1975, p. 47-48, grifo meu).
parte da divindade, pois só isso poderia explicar
suas fezes terem espatifado seu próprio templo, Desta maneira, Jung está referindo-se ao Bem
justo aquele que mais representava a religião da e ao Mal na divindade, em função da relação do
família Jung. cristão com ela. Para sermos guiados por Deus,
O contexto religioso que Jung transferiu para nesse contexto, não podemos restringir de an-
sua visão do Self, então, é que o Ego não pode temão a sua natureza, mas permitir que ela se
determinar a priori o que é o Bem e o que é o revele plenamente.
Mal no desenvolvimento psicológico, pois esse No entanto, por mais que Jung tenha querido
conhecimento é revelado ao Ego durante a vida colocar o Bem e o Mal dentro da divindade, em
(NEUMANN, 1991). Toda esta postura teórica e momento algum ele a admite realmente como a
prática de Jung diante da religião e da Psicolo- morada do Mal, muito pelo contrário, pois afirma
gia, inclusive da ética, está expressa na elabora- que, “quando se cumpre a vontade de Deus, não
ção da visão da destruição da catedral por Deus. há dúvida que se segue o bom caminho”.
Lembremos que Jung pressentiu a visão, mas Como pode Jung condenar a doutrina do
não conseguiu abrir-se para ela, e ficou duran- Summun Bonum, quando sua afirmação acima
te dois dias atormentado pela noção de pecado. corresponde exatamente ao que é postulado
No terceiro dia, decidiu enfrentar o que intuía ser nessa doutrina? Jung torna sua teorização do
uma grande transgressão e viu a destruição da Mal ainda mais confusa, quando afirma no Aion
catedral, sentindo-se ao mesmo tempo aliviado (1959), sem maiores explicações, que o Mal é
e iluminado. relativamente fácil de se identificar na Sombra,
mas que é muito mais difícil de se perceber quan-
Reuni toda a coragem, como se fosse sal- do expresso pela Anima e pelo Animus. Nada,
tar sobre as chamas do Inferno e deixei porém, se iguala em falta de clareza, quando ele
o pensamento emergir: diante de meus termina esse capítulo sobre a Sombra afirman-

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do, sem a menor justificativa, que: “Em outras quétipo Central é virtual e é o coordenador dos
palavras, é muito possível para uma pessoa re- demais arquétipos e de todo o processo de ela-
conhecer o Mal relativo da sua natureza, mas é boração simbólica. Esta conceituação me parece
uma experiência rara e aterradora para ela olhar importante para solucionar a controvérsia entre
na face do Mal absoluto” (1959, par. 19). Jung e a doutrina do Summun Bonum. Dentro do
Se o Self, por definição, abriga o Bem e o conceito de Self, a totalidade abrange o Bem e o
Mal, e se não queremos maniqueizá-lo em dois Mal, a Consciência e a Sombra, e é incompatível
instintos antagônicos, como fez Freud, devemos com a Doutrina do Summun Bonum. No entanto,
então, de alguma maneira, relacioná-los plena- dentro do conceito do Arquétipo Central, a Som-
mente dentro da unidade. bra se forma através de uma fixação, uma disfun-
A psicologia simbólica junguiana procura ção da elaboração simbólica, sendo, portanto,
estudar a função ética conjugando conceitos da uma privação do Bem (privatio boni). Ao mesmo
psicanálise e da psicologia analítica dentro do tempo, o Arquétipo Central exprime a Sombra,
processo de individuação, conceituado por Jung, o Mal, e propicia seu resgate e integração para
e de humanização, formulado por Teilhard de buscar a totalidade, o que o torna compatível
Chardin (1948). com a doutrina do Summum Bonum.
É exatamente esta conceituação da Sombra
1. A Psicologia Simbólica Junguiana, a como o Mal que Goethe espressa no Fausto,
Sombra e o Mal quando faz Mefistófeles se definir como: “sou
Para representar o Mal na psique, escolhi o parte da energia que sempre o Mal pretende e
conceito de Sombra da psicologia analítica para que o Bem sempre cria” (GOETHE, 2004 p. 139).
equivaler ao de inconsciente reprimido desco- Ele se refere ao Mal, à Sombra, cujo resgate se
berto pela psicanálise. A seguir, ampliei o concei- torna fonte geradora do Bem.
to de Sombra para abranger, não só os símbolos Outro exemplo exuberante da necessidade de
do mesmo gênero que o Ego, como a definiu Jung o Self e de o Arquétipo Central abrigarem a Som-
(1959), mas também aqueles do gênero oposto. bra (o Mal) para expressar e elaborar os símbolos
Por outro lado, restringi o conceito de Sombra e funções estruturantes fixados está no poema
aos símbolos pessoais e coletivos fixados e com épico indiano Ramayana. Ravana é um demônio
defesas, e não o emprego para abranger todo o (raksasa) com grande capacidade de praticar o
inconsciente coletivo, como às vezes acontece Mal. Ele tem dez cabeças, cada uma com mil anos
na literatura junguiana (VON FRANZ, 1985). de vida. Antes de se esgotar a vida da última,
No que se refere à psicanálise, ampliei o con- quando a humanidade finalmente se livraria dele,
ceito de defesa para percebê-la como função Brahma renova a vida das dez cabeças. O demô-
estruturante arquetípica que se tornou fixada e nio enche-se de vaidade e diz a Brahma: “Folgo
que, por isso, é sempre patológica. Assim, todas em saber que vos agrado”. – “Tua vontade é terrí-
as funções estruturantes arquetípicas normais vel”, respondeu Brahma, “tão forte que não pode
podem se tornar defensivas e, quando fixadas, ser esquecida; preciso tratá-la como uma doença
expressar a Sombra. ruim. As tuas dores me ferem” (BUCK, 1988 p. 55).
Para evitar a ambiguidade da polaridade Ao considerar Ravana uma doença, Brahma afir-
virtual-real, que ocorre quando empregamos o ma a necessidade de tratá-la. Ao fazê-lo, declara
conceito de Self para o todo e para o principal ser a Sombra imprescindível, mesmo com o sofri-
dos arquétipos, separei os conceitos de Self e de mento que ela traz para o Self, pelo fato de ela ser
Arquétipo Central. O Self abrange a totalidade, parte do Todo.
inclusive o Ego, a Sombra, todos os símbolos e O Arquétipo Central e o Self, como não po-
funções estruturantes e os arquétipos. Já o Ar- deria deixar de ser, abarcam todos os símbolos

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e funções psíquicas, inclusive o Bem e o Mal. unificada para expressar a Sombra em todas
O Self os abrange porque inclui a Consciência as dimensões humanas, seja na ciência, como
e a Sombra. O Arquétipo Central também o faz erro; no direito, como crime; na arte, como plá-
porque expressa a elaboração simbólica, tanto gio; na ecologia, como expoliação ambiental;
normal quanto aquela que é fixada, se torna pa- no corpo, como doença; na religião, como peca-
tológica e é expressa pelas defesas, isto é, na do; na economia, como exploração; e na psico-
Sombra. O fato de o Arquétipo Central continuar logia, como Mal (BYINGTON, 2008). Perceber a
expressando os símbolos fixados e as defesas, Sombra como expressão do Mal é da maior im-
torna-o responsável também pelo Mal. Esta é a portância para que seus conteúdos simbólicos
sua grande ambiguidade, cuja busca de com- sejam devidamente identificados, elaborados e
preensão é o centro deste artigo. Trata-se, sem resgatados de suas fixações e reintegrados no
dúvida, do problema ético capital da psicologia caminho da normalidade e do Bem.
e da teoria do conhecimento. Nesse sentido, a Assim, em qualquer uma das dimensões
teoria do desenvolvimento arquetípico da elabo- existenciais, a elaboração da Sombra é preciosa
ração simbólica, que inclui o Ego e a Sombra, é o para que a psique ferida e alienada nas trevas
caminho científico para abordá-lo. reencontre o caminho da luz e da totalidade.
Assim sendo, parece-me que a grande di- Exatamente porque os símbolos da Sombra,
ficuldade que Jung teve para incluir o Bem e o do Mal e do Demônio expressam todos a fixa-
Mal psicodinamicamente na totalidade do Self, ção, o descaminho e a perdição do Ser dentro do
como tanto desejou, foi o desconhecimento desregramento, da ruindade e do nada (SARTRE,
da formação tanto da Consciência quanto da 1943), é que eles merecem toda a consideração,
Sombra através da elaboração simbólica, que a atenção cuidadosa, o temor, o respeito e a ela-
somente começou a ser descoberta por seus boração por aqueles que buscam a totalidade.
seguidores na década de 1950. Foi esta desco-
berta que revelou a enorme diferença entre os 2. A Gravidade do Mal
conceitos de Arquétipo Central (potencial da to- O tema do grau da maldade humana pode
talidade) e de Self (totalidade psíquica a cada ser abordado em função das estratégias que a
momento da vida). Sombra dispõe para praticá-lo. Estas estratégias
Nesse sentido, a Consciência é o caminho arquetípicas e existenciais são as defesas: neu-
do Bem, pois elabora os símbolos e as fun- rótica, psicopática, borderline e psicótica. Estas
ções estruturantes para expressar o potencial estratégias podem ser circunstanciais ou cronifi-
do Arquétipo Central em direção à totalidade. cadas, o que dá origem aos conceitos de Sombra
Lembremos que a etimologia de símbolo é Circunstancial e Sombra Cronificada.
sin=unir + ballein=lançar, ou seja, lançar junto, Na defesa neurótica, o Mal é praticado em
enquanto que a de diabo vem de diábolo, que é grande parte inconscientemente, contra a vonta-
dia=através, separar + ballein=lançar, ou seja, de da pessoa, gerando arrependimento, culpa e
lançar separado. Em contraposição, a fixação um esforço para mudar.
que forma as defesas, ou seja, a Sombra desvia Na defesa psicopática, a função estruturan-
os significados simbólicos da sua integração e te da vontade é envolvida pela defesa, o que a
os atua de forma separada do Todo, distorcida, torna dolosa e capaz de atingir o máximo da gra-
inadequada e não raro destrutiva, quer no Self vidade da sociopatia e da delinquência. No Self
individual como no grupal. individual, ela pode perpetrar crimes hediondos,
A Sombra é muito importante para o desen- e no Self cultural, ser capaz de atrocidades ino-
volvimento humano e, por isso, é preciso ser mináveis. A vontade dedicada à criatividade pla-
devidamente considerada. Conceituei a Sombra neja e realiza o que a inteligência tem de melhor.

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Pelo fato de a defesa psicopática dominar a von- alguma que praticasse o Mal e tivesse paz e não
tade, a inteligência humana pode aqui realizar o estivesse presa no sofrimento, na fixação, na
que tem de pior. É nesta defesa, caracterizada defesa e na compulsão de repetição, ou seja, na
pela intenção, ou seja, pelo dolo, que a inteli- Sombra. Por outro lado, o que observei até hoje
gência se reúne à criatividade, transformando é que quando alguém elabora produtivamente
um ser humano num demônio. Quando a defesa as defesas e a Sombra e integra os conteúdos aí
psicopática domina a personalidade e controla fixados, ele se sente feliz e realizado.
grande parte do Self, forma-se a personalidade Se existe algo que aprendi com respeito
psicopática, caso em que a pessoa vive literal- ao Bem e ao Mal é que as conquistas trazem
mente para o Mal. bem-estar, mas o que realmente traz plenitude
Na defesa borderline, o Mal é praticado com a são as conquistas acompanhadas pelo resgate
preocupação de evitar um Mal maior, que é a de- e integração das fixações que formam a Sombra.
fesa psicótica. A criatividade da personalidade É inegável que o Arquétipo Central também
é aqui essencial para escolher condutas, ainda coordena no funcionamento do Self os símbo-
que bizarras, para serem atuadas, tanto quanto los e funções estruturantes fixados e tornados
possível, dentro de contextos sociais aceitáveis, defensivos, isto é, doentes, criminosos e ma-
para evitar a invasão da defesa psicótica. lignos. Este é o paradoxo da imagem de Deus,
Na defesa psicótica, o Mal existe através da que é uma projeção do Arquétipo Central, e que
invasão da Consciência pela Sombra. Esta inva- contém o Bem e o Mal. Sem recorrermos à duali-
são não é dolosa, porque a vontade é arrastada dade que simplesmente separa as polaridades,
junto com o resto das funções conscientes e não como fez Freud, como explicar tamanha ambi-
é cooptada para exercer inteligentemente a Som- guidade no exercício de uma função tão central
bra, como na defesa psicopática. na dinâmica da psique?
A resposta me parece ser que o Arquétipo
3. O Paradoxo do Arquétipo Central Central é antes de tudo comprometido com a
As características mais complexas do funcio- expressão da vida, mesmo que ela seja gran-
namento psíquico tornam-se paradoxais quando demente deformada pela fixação, pela Sombra,
sua fenomenologia associa verdades aparente- e que abrigue a maldade, a doença e o crime.
mente contraditórias e, por isso, incompatíveis. Quando vemos, por exemplo, os estudos dos
Este é o caso do Arquétipo Central em relação ao casos de psicóticos, como o de Carlos Pertuis
Bem e ao Mal. e de Adelina Gomes, tratados pela Dra. Nise
Por um lado, o Arquétipo Central coordena da Silveira, temos uma pequena ideia de que
a elaboração simbólica para incorporar os sig- junto com a devastação da personalidade pelo
nificados produzidos na construção da totali- Mal da esquizofrenia, o Arquétipo Central con-
dade do Self. Por isso, ele é percebido proje- tinua coordenando símbolos que transcendem
tado nos deuses como o caminho do Bem para os sintomas e podem guiar a personalidade em
a humanidade. Por outro lado, pelo fato de a direção à totalidade (SILVEIRA, 1981). Vemos
totalidade incluir o Mal, temos um paradoxo aí o impulso vital existencial coordenado pelo
de difícil compreensão. Arquétipo Central continuando a impulsionar
A identificação do caminho da totalidade a vida, apesar de o Ego estar fragmentado de
como sendo o caminho do Bem é uma noção modo extremo.
empírica. Esta noção depende do estudo e da Como Jung frisou, quando abordamos o Bem
vivência da elaboração simbólica no desenvol- e o Mal falando de Deus sem vivenciá-lo, pode-
vimento do processo de individuação e do pro- mos ficar reduzidos às convenções manipuladas
cesso de humanização. Nunca encontrei pessoa pelo Ego e perdermos a vivência do Deus vivo.

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Por outro lado, somente a vivência de Deus sem lar o significado da visão no processo de indivi-
a elaboração do significado simbólico, dificulta duação dele.
a compreensão prospectiva do Arquétipo Central Quando abordamos a nova ética ou a ética
e da sua orientação ética da individuação. Como da individuação, descrita por Neumann, sob esta
diz sabiamente o ditado “de boas intenções o in- perspectiva, percebemos que ela depende da ela-
ferno está cheio”. De fato, os casos de fanatismo boração simbólica de cada vivência para revelar
são um grande exemplo daqueles que se sentem sua normalidade ou sua patologia, sua luz ou sua
orientados por Deus e que, na realidade, o são Sombra. Ao assim fazermos, concluímos que a
defensivamente pela Sombra. Assim, por mais luta entre o Bem e o Mal está presente na elabo-
que Jung tenha sentido a destruição da Catedral ração simbólica de cada vivência, o que a torna
como uma revelação de Deus, faltou-lhe a ela- sistêmica e transcendente dentro do Todo. ■
boração simbólica da vivência, com as devidas
amplificações individuais e coletivas, para reve- Recebido em 25/03/2019 Revisão em 25/05/2019

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Abstract
The Shadow and the Evil. The paradox of the Central Archetype. A study of
ethics by Jungian Symbolic Psychology
Based on the concepts of fixation and defense because, while the symbols normally elaborated and
from psychoanalysis, which he considers always cherished in consciousness pave the way towards
pathological, the author conceives the shadow as good and self-realization, those fixated in the shad-
bigender and as the expression of defenses and ow are the path of alienation and of evil. Because
fixated symbols, as well as the source of pathol- they are despised and offer resistance to elabora-
ogy and of evil in the individual and cultural Self. tion, the recognition of the importance of the shadow
In this sense, just as in the parable of the Prod- and its confrontation deserve the respect of those
igal Son, the shadow must be carefully considered who search the development of consciousness. ■

Keywords: ethics, good and evil, fixation, defense, alienation, process of individuation, process of
humanization, integration of the shadow, psychological harmony and peace.

Resumen
La Sombra y el Mal. La paradoja del Arquetipo Central. Un estudio de la Ética
por la Psicología Simbólica Junguiana
La Sombra, concebida por la Psicología Sim- los que buscan el desarrollo de la Consciencia
bólica Junguiana como la sede del Mal, es impre- y de la ética.
scindible para el proceso de individuación y de Prosiguiendo, el autor discurre sobre la di-
humanización por el hecho de contener, fijados ficultad que Jung tuvo para insertar el Bien y el
en su interior, símbolos y funciones fundamen- Mal lado a lado dentro de la divinidad y del Self,
tales para la vida. por desconocer, hasta la década de 1950, que el
En este sentido, como en la parábola del hijo Ego de la Conciencia y el Ego de la Sombra son el
pródigo, los símbolos y funciones de la Sombra producto de la elaboración simbólica coordinada
merecen ser buscados más que los símbolos por el Arquetipo Central.
normales, pues mientras que éstos ya están La paradoja ética del Arquetipo Central es que
siendo elaborados en el camino de la plenitud ella busca la totalidad a través de la actuación nor-
y del Bien, aquéllos están fijados y alienados en mal y también de la patológica. La explicación de la
el camino del Mal. Por el hecho de que los sím- paradoja es que el Arquetipo Central anhela sobre
bolos de la Sombra estén disociados debido a la todo impulsar la vida, sea a través del Bien o del Mal
fijación y ofrecer resistencia a la elaboración, el y, al mismo tiempo que expresa el Mal, propicia el
reconocimiento de la importancia de la Sombra rescate de los símbolos y funciones en él contenidos
y su confrontación merecen todo el aprecio de a través de la función estructurante de la ética. ■

Palabras clave: ética, bien y mal, fijación, defensa, alienación, proceso de individuación, proceso de
humanización, integración de la sombra, armonía de la personalidad, paz.

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Referências
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JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro,


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