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CONVERSANDO

COM OS PAIS
D. W. Winnicott

EDIÇÃO ORGANIZADA POR:


CLARE WINNICOTT
CHRISTOPHER BOLLAS
MADELEINE DAVIS
RAY SHEPHERD

INTRODUÇÃO DE
T. Berry BRAZELTON

TRADUÇÃO:
ÁLVARO CABRAL
REVISÃO TÉCNICA:
CLAUDIA BERLINER

Martins Fontes
São Paulo 1999
Título original: TALKINGTO PARENTS.
Copyright & 1993 by The WinnicomTrustatravés de acordo com Mark Paterson.
Copyright O Livraria Martins Fontes Editora Lida.
São Paulo, 1993, para apresente edição.
Nedição
setembrode 1993
2 edição
Junhode 1999
Tradução
ÁLVARO CABRAL
Revisão técnica e da tradução
Claudia Berliner
Revisão gráfica
Vadim Valentinovitch Nikicin
Maurício Balihazar Leal
Produção gráfica
Geraldo Alves.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CTP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Winnicott, Donald W. 1896-1971
Conversando com os pais / Donald W, Winnicot: edição orga-
nizada por Clare Wimnicot . [et. al ; introdução de T. Berry
Brazelton; [tradução Álvaro Cabral) ; revisão técnica Claudia
Berliner]. ed. - São Paulo Martins Fonte, 1999. - (Psicologia
e pedagogia)
Títulooriginal: Talking to parents,

1. Educação de crianças 2. Educação doméstica 3. Pais e filhos.


1. Winnicott, Clare. Il. Brazelton,T. Berry. IL Título. IV. Série
99.212 CDD-158.24
Índices para catálogo sistemático:
1. Pais e filhos: Relaçõesfamiliares: Psicologia aplicada. 158.24
Todosos direitos para o Brasil reservadosà
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ÍNDICE

Introdução . IX
Prefácio dos organizadores . «XI

Capítulo 1. Educação para a saúdeatravés do rá-


GIO sosauann es TRA sn es Ruca nai de 1
Capítulo 2. Madrastas e padrastos ............... 9
Capítulo 3. O que sabemos a respeito de bebês
que chupam pano? 19
Capítulo . Dizer “não” .27
vol u E

Capítulo . Ciúme .49


Capítulo .O que irrita? . mM
Capítulo . Segurança ..... “101
Capítulo . Sentimento de culpa .. . 109
Capítulo . O desenvolvimento do sentido de cer-
to e errado de uma criança .........
Capítulo 10. Agora estão com cinco anos
Capítulo 11. A construção da confiança ...
AGRADECIMENTOS

Madeleine Davis morreu enquanto trabalhava


nos últimos estágios de preparação deste livro. Infe-
lizmente, ela não viveu para ver sua publicação, mas
os editores, organizadores e todas as pessoasligadas
a The Winnicott Trust desejam registrar sua admira-
ção e gratidão pelo auxílio gentil e cuidadoso dispen-
sado no preparo da publicação desta e de outras obras
de Winnicott.
Os organizadores gostariam de agradecer a Tavis-
tock Publications pela permissão de incluir material
publicado anteriormente. Devem-se agradecimentos
também à BBC pela sua visão, sem a qual várias das
conversas em que se baseia este livro não teriam ocor-
rido, e a Claire Rayner porsua atenciosa contribuição
para o capítulo 8.
INTRODUÇÃO
SOBRE A LEITURA DE WINNICOTT

Lerestes textos, em boa parte inéditos, de D.


W. Winnicott é como voltar a uma fonte refrescante
depois de uma caminhada pelo deserto. Cada um de-
les é uma experiência absolutamente recompensadora
e deliciosa.
O próprio fato de Winnicott ter escolhido se diri-
gir aos pais por meio de um veículo de comunicação
de massasjá é de grande interesse. Afinal, a “'mãe de-
votada comum” ideal é aquela que dispensa cuidados
ao filho sem consciência de si mesma. A radiodifusão
de suas idéias a respeito da criação dosfilhos poderia
ser vista como ostentação de sua filosofia. Contudo,
como de costume, ele imediatamente deixa de lado a
questão. Ele não está tentando instruir os pais mas
ajudá-los a compreender o que fazem e a justificá-los
pelo que fizeram. Uma declaração como “'percebe-se
que poderíamos ter feito o mesmo ou que poderíamos
ter feito pior” ilustra a sua maneira simples mas vigo-
rosa de fornecer apoio às forças dos pais, ao contrá-
rio das costumeiras autoridades que dizem aos pais com
tanta perícia o que eles não devem fazer.
x CONVERSANDO COM OS PAIS

Fui admiradore estudioso de Donald Winnicott du-


rante toda a minha vida profissional. O modo como com-
binava um enfoquepediátrico normativo com insights de
psiquiatria e psicanálise infantil fizeram dele, há muito
tempo, um modelo para mim. Seus brilhantes insights
fundamentam-se numa compreensão profunda dos pro-
cessospais-filhos aliada à firme convicção de que a maio-
ria dos pais deseja fervorosamente fazer bem a seus fi-
lhos. Estes ensaios estão entremeados porinterpretações
positivamente reforçadas. Os pais irão sesentir libertados
e trangjúilizados, pois esses insights vêm docoração e são
emitidos com uma agudeza de espírito deliciosa.
Como deixa claro, o propósito destas conversas
nãofoi dizer aos pais o que fazer mas (1) desintoxicar
a ciência da criação dosfilhos, (2) incutir-lhes confiança
quanto ao que estão fazendo e (3) permitir que dispen-
sassem o auxílio individualizado ao depararem com um
obstáculo no cuidado com os filhos. Ele enfatiza con-
tinuamente o instinto dos pais para fazer a coisa cer-
ta, aliado à inevitável culpa e à ambivalência que fa-
zem deles os pais sensíveis que são. Nunca tem medo
da honestidade do bom senso: “Uma reunião de pa-
drastos fracassados... poderia ser proveitosa. Seria
composta de homens e mulheres comuns.”” Porqueser
padrasto é inevitavelmente um papel ingrato.
Noensaio sobre a prática de chupar o dedo, ele
fornece a melhor justificativa que conheço. Chupar o
dedo é o primeiro uso que o bebêfaz da imaginação.
A experiência real de chupar o dedo foi enriquecida
pelo seio ou pela mamadeira imaginada. Por queal-
guémiria privá-lo dessa primeira experiência de criar
do seu próprio objeto de afeição?
Estas conversas reduzem à sua essência os passos
simples que conduzem aos objetivos queestá discutin-
SOBREA LEITURA DE WINNICOTT Xi

do. Os três estágios do dizer “não”, por exemplo, co-


meçam com a necessidade dos pais de assumir plena
responsabilidade pelos limites da criança (primeiro
ano), ensinando-lhe a palavra “não” e palavras asso-
ciadas com perigo, como “quente” (segundo ano), e
depois, devolvendo-a a ele e ampliando a sua experiên-
cia de fazer escolhas e de incorporaresses limites dan-
do-lhe explicações verbais (terceiro ano).
Tomemosoutra questãocara ao coração dos pais:
“como desaparece o ciúme?” Na explicação belamente
sucinta de Winnicott vemos como o ciúme acaba porser
neutralizado pela identificação com a pessoa de quem
se tem tanto ciúme, e então pela identificação com a mãe
ciumentamente guardiã e seus sentimentos, usando a ima-
ginação (empatia) para assumir a perspectiva do outro.
Creio que meu favorito é o ensaio sobre “*o que
molesta”” ser pai. Este capítulo ajudará todos os pais
a encarar seus sentimentos negativos como normais e
até mesmo saudáveis. Winnicott lembra-nos que o que
sai errado sempre molesta, o que sai certo, ignora-se.
Portanto, é claro, o dia dos pais fica sobrecarregado
de detalhesirritantes da vida cotidiana. “As crianças
continuarão a ser um incômodo e as mães continua-
rão contentes por ter a oportunidade de ser vitimas.”
Este é um belolivrinho. Winnicott destila a natu-
reza essencial do ser pai. O capítulo 8, por exemplo,
é concluído com a provocante idéia de que, sem culpa
e ambivalência, nenhuma mãe seria sensível às neces-
sidades do filho. Ele realmente infunde no leitor uma
compreensão dos desafios da paternidade, mas tam-
bém faz com que seu público sinta que ser uma “mãe
boa o suficiente”? é um dos papéis mais recompensa-
dores que se poderia buscar. Que gênio!

T. Berry Brazelton, M.D.


PREFÁCIO DOS ORGANIZADORES

Entre 1939 e 1962, Donald Winnicott fez cerca


de 50 palestras radiofônicas para a BBC, quase todas
elas dirigidas aos pais. Transcritas, revelam conter al-
guns de seus mais lúcidos e convincentes textos. Uma
coletânea de suas primeiras palestras, transmitidas no
final da guerra e tendo Janet Quigley como produtora,
deu origem a um opúsculo intitulado Getting to know
your baby; uma outra série, datando dofinal da déca-
da de 1940 até meados dos anos50, sob a produção de
Isa Benzie, foi publicada num opúsculo semelhante, in-
titulado The ordinary devoted mother and her baby.
Ambasas coletâneas esgotaram-se rapidamente; e, em-
bora Winnicott, por causa das normas que proíbem os
médicos de fazer publicidade, não tivesse posto seu no-
me nas transmissões, o número de pessoas interessa-
das engrossara consideravelmente e sucediam-se os pe-
didospara queaspalestras fossem reeditadas. Aconte-
ceu assim que esses trabalhos vieram a constituir a ba-
se de um livro intitulado The child and thefamily, edi-
ção coordenada por Janet Hardenberg e publicada por
XIV CONVERSANDO COM OS PAIS

Tavistock Publications em 1957!; enquanto que maisal-


gumas palestras, principalmente a respeito da evacua-
ção de crianças durante a guerra, foram incluídas em seu
volume complementar, The child and the outside world.
Em 1964, a Penguin Books decidiu publicar uma sele-
ção desses dois volumes sob o título de The child, the
family and the outside world, o qualincluiu quase todas
as palestras radiofônicas publicadas até essa data*.
No final de 1968, tinham sido vendidos 50.000
exemplares da edição Penguin, e Winnicott escreveu
um pequeno discurso para ser proferido durante uma
recepção que seria oferecida para celebrar o evento.
Nesse discurso, conta ele como, para algumasde suas
primeiras palestras, ia para a BBC em Langham Place
“conduzindo seu carro sobre estilhaços de vidro e en-
tulho causados pelo bombardeio da noite anterior”.
Prossegue dizendo até que ponto foi ajudado na lon-
ga série de palestras em 1949-1950 por Isa Benzie, que
lhe transmitiu seu entusiasmoe confiança no trabalho
dele e, em suas próprias palavras, “pinçou a expres-
são “a mãe suficientemente boa” de tudo aquilo a cujo
respeito eu tinha falado até então”. E continua: “Es-
sa frase tornou-se imediatamente um prendedor para
pendurar coisas e ajustou-se à minha necessidade de
escapar à idealização e também aos eventuais intentos
de ensino e propaganda. Pude seguir adiante com uma
descrição da puericultura tal comoé espontâneae na-
turalmente praticada por toda a parte.”

1. Editado nos Estados Unidos por Basic Books, Inc., sob o título
Mother and Baby: a Primer in First Relationships.
* São Paulo, Zahar Editores, 1966, A criança e o seu mundo. (N.R.)
PREFÁCIO DOS ORGANIZADORES Xv

Curiosamente, Winnicott sublinha também que


depois da guerra não reatou a prática de pediatria (em-
bora ainda mantenhaclínicas psiquiátricas para crian-
ças), e, por conseguinte, já não estava em tãoestreito
contato quanto antes com o volume de material coti-
diano relacionado com a interação mãe-filho. Para es-
tas palestras, ele considerou necessário, portanto, “rea
cender a chama clínica” usando material da ““experiên-
cia regressiva de pacientes psicanalíticos, muitos deles
adultos, que me estavam dando um close-up das rela-
ções mãe-bebê (ou pais-bebê)””. “Na época dessas pa-
lestras na BBC, em fins da década de 40,” escreveu
ele, “eu estava numa posição ímpar, na medida em que
estava apto a ver os meus pacientes em termos de pe-
diatria e de uma espécie de psicanálise que era pecu-
liarmente minha. Naturalmente, ao falar na rádio, eu
precisava manter a linguagem da pediatria, embora
possa perceber-se que a pediatria já se convertera pa-
ra mim num lugar para o estudo do vínculo emocio-
nal bebê-mãe, pressupondo-se (como usualmente se po-
de fazer) a saúde física. Passei da “alimentação infan-
til? para o “mútuo envolvimento bebê-mãe”.””
O livro de Winnicott A criança e o seu mundo con-
servou sua popularidade até os dias de hoje, e ainda
vende milhares de exemplares por ano. Sua edição em
língua inglesa foi recentemente reeditada nos Estados
Unidos pela Addison-Wesley.
O presente volume, Conversando com os pais, reú-
ne todas as palestras radiofônicas que foram feitas de-
pois de 1955. Apenas duas delas foram publicadas an-
tes: “Agora estão com cinco anos” (“Now they are
five”) e “Segurança” (“On security”), ambas no li-
vro de Winnicott, The family and individual develop-
XvI CONVERSANDO COM OS PAIS

ment?. Incluímo-las por uma questão de maior inte-


gração. Também incluímos dois artigos que não foram
escritos para o rádio: o primeiro e o último no livro.
O primeiro, “Educação para a saúde através do rádio”,
é usado como um capítulo introdutório porque enun-
cia claramente os objetivos que Winnicott passou a con-
siderar importantes ao efetuar palestras radiofônicas;
eo último, “O desenvolvimento da confiança”, foi adi-
cionado porter sido escrito para os pais (algo raro em
Winnicott fora do rádio), por não ter sido ainda pu-
blicado e, datando de seus últimos anos de vida, con-
ter, em essência, muitas das idéias sobre criançase seus
pais que foi desenvolvendo durante todo o seu tempo
de vida profissional. Fomos incapazes de descobrir o
público exato para quem o artigo foi redigido.
A filtragem e editoração dosartigos foi quase to-
da ela realizada com a ajuda de Clare Winnicott antes
de seu falecimento em 1984. A editoração se restrin-
giu ao mínimo; no caso daspalestras radiofônicas, qua-
se não se fez necessário alterar algumacoisa, porquanto
parecem ter sido escritas por Winnicott antes de irem
ao ar: foram encontradas datilografadas entre muitos
outros artigos e ensaios por ele deixados; as exceções
a isso são as duas palestras para madrastas e a discus-
são com Claire Rayner a respeito do “Sentimento de
culpa”. Estas foram transcritas de fitas gravadas e a
qualidade da escrita não é, portanto, a mesma. Isso
também severifica nas conversas entre mães incluídas
comoparte da série central de palestras (“Dizer 'não””,
“Ciúme”, “O que molesta?””). Para essas palestras,

2. Londres: Tavistock; Nova York, Basic Books, 1965. [A família


e o desenvolvimento individual, S. Paulo, Martins Fontes, 1993.)
PREFÁCIO DOS ORGANIZADORES xvi

as mães foram convidadas a comparecer na BBC, suas


conversas foram gravadas, e Winnicott fez seus comen-
tários num outro dia; aqui a natureza não ensaiada do
que foi dito torna-se um ingrediente essencial do todo.

Christopher Bollas
Madeleine Davis
Ray Shepherd

Londres, 1992
CAPÍTULO |
EDUCAÇÃO PARA A SAÚDE
ATRAVÉS DO RÁDIO

Escrito em agosto de 1957 para


Mother and child (nº 28, 1957)

Esteartigo foi escrito a convite. A educação pa-


ra a saúde através do rádio é um assunto que me inte-
ressa pelo fato de, de tempos em tempos, ter realizado
palestras radiofônicas dedicadas aos pais. Mas deve fi-
car claro que não sou, na verdade, especialmente fa-
vorável à educação para a saúde em moldes massifica-
dos. Quando uma audiência é vasta, contém muitas
pessoas que não estão ouvindo com o propósito de
aprender mas que ficam ouvindo por acaso ou por di-
versão, ou talvez até enquanto se barbeiam ou estão
fazendo um bolo, de modo que não têm as mãosli-
vres para desligar o aparelho. Em tais condições, deve-
se ter sérias dúvidas quanto ao valor de colocar no ar
qualquer coisa que seja importante.
Podemos comparar isso com os programas radio-
fônicos escolares, onde crianças de idades conhecidas
se sentam em roda, levemente ocupadas mas claramente
esperando receber, durante um certo período de tem-
po, instrução administrada de um modointeressante
pelo rádio. A pessoa que deseja conversar sobre saúde
2 CONVERSANDO COM OS PAIS

através do rádio não tem a vantagem de um público


ouvinte específico.
Refiro-me à educação para a saúde em termos de
psicologia e não à educação em questões de saúde física
e na prevenção e tratamento de doenças. Muito do que
tenho a dizer, entretanto, poderia aplicar-se a quais-
quer palestras sobre saúde, porque me parece que toda
a educaçãosanitária é psicológica. Aqueles que escutam
uma conferência sobre reumatismo ou sobre doenças
do sangue não o fazem por causa de umasede de co-
nhecimentos e de fatos; fazem-no por estar morbida-
menteinteressados em doenças. Parece-mequeisto se
aplica à educação de pessoas em questões de saúde,seja
qual for o veículo de informação usado, se excetuar-
mos a complicação de que no rádio devemos esperar
que a grande maioria das pessoas que estão ouvindo
não está interessada em quelhe ensinem coisa nenhu-
ma e aguarda meramente que a música-recomece. Tal-
vez eu esteja caluniando o ouvinte mas, de qualquer
modo, estou expressando uma dúvida que sinto toda
a vez que a voz otimista e tranquilizadora do doutor
faz umapalestra animadora sobre o fator Rh, a artri-
te reumatóide ou o câncer.
Desejo, porém, fazer uma sugestão construtiva
com referência à divulgação radiofônica de assuntos
de saúde. Qualquer espécie de propaganda, ou propó-
sito de dizer às pessoas o que devem fazer, tem de ser
deplorado. É um insulto doutrinar pessoas, mesmopa-
ra o seu próprio bem, a menos quese lhes dê a opor-
tunidade de estarem presentes para reagir, expressar
desaprovação e contribuir.
Existe algumaalternativa que possamos admitir?
O que podemosfazer comoalternativa é tentar apreen-
EDUCAÇÃO PARA A SAÚDE ATRAVÉS DO RÁDIO 3

der as coisas comuns que as pessoas fazem e ajudá-las


a compreender por que é que as fazem. A base para
essa sugestão é a idéia de que muito do que as pessoas
fazem é realmente razoável nas circunstâncias. É sur-
preendente como, quando escutamos uma e outra vez
as descrições que as mães nos dão do tratamento de
umacriança nolar, de comoas cuidam e as orientam,
acabamos porsentir que não podemosdizer a esses pais
o que fazer; podemos apenas ver que provavelmente
teríamos feito o mesmo, ou quetalvez fizéssemos pior
nas circunstâncias dadas.
Do que as pessoas realmente gostam é quelhesseja
proporcionada a compreensão dos problemas que es-
tão enfrentando, e agrada-lhes adquirirem consciên-
cia das coisas que fazem intuitivamente. Sentem-se in-
seguras quando entregues aos seus próprios palpites,
ao gênero de coisas que lhes acodem no momento crí-
tico, quando não dispõem de tempo pararefletir e con-
siderar maduramente queatitude tomar. Pode ser que
os pais dêem a uma criança uma palmada, ou um bei-
jo, ou um abraço, ou que riam. Algo apropriado acon-
teceu. Era essa a coisa certa, nada poderia ter sido me-
lhor. Ninguém poderia ter dito a esses pais o que fazer
naquelascircunstâncias, pela simples razão de que as
circunstâncias não podiam ter sido descritas de ante-
mão. Depois, porém, os pais descobrem-se discutindo
as coisas e surpreendendo-se com o que fizeram, pois
é fregiiente não terem a menor noção do que foifeito
e sentirem-se confusos com o problema em si. Nesses
momentos, a tendência deles é sentirem-se culpados,
e recorrerão voando a qualquer um que lhes fale com
autoridade, que dê ordens.
A educação pode compreender todasessascoisas
que as pessoas fazem e, de fato, fizeram — e de uma
4 CONVERSANDO COM OS PAIS

boa maneira — desde que o mundo começoua terse-


res humanos que eram humanos. Se se pode realmente
mostrar às pessoas o que estão fazendo, elas ficam
menosassustadas, sentem-se mais seguras a seu pró-
prio respeito, de modo que, quando estão sinceramente
em dúvida ou sinceramente sabem que são ignoran-
tes, não procuram conselhos mas informação. O mo-
tivo por que buscam informação é o fato de que co-
meçam a ter uma idéia de onde ir procurá-la. Come-
çam a perceber que é possível adotar uma abordagem
objetiva em relação às questões da mente, do senti-
mento e do comportamento, e tornam-se menos des-
confiadas da ciência, mesmo quando ela penetra na-
quelas áreas que até recentemente eram do domínio
exclusivo da religião.
Penso haver muitíssimo a fazer nessa questão de
aceitar o que as pessoas sentem, pensam e realizam,
e, a partir dessa base, desenvolver uma discussão ou
um ensino que propicie uma melhor compreensão. Des-
se modo, a informação pode ser transmitida sem que
a autoconfiança do ouvinte seja abalada. A dificulda-
de está, para aqueles que ensinam por esse método, em
dispor de suficientes conhecimentos e em saber quan-
do eles próprios são ignorantes.
Por vezes, uma palestra radiofônica dedicada aos
pais subentende: “Você deve amaro seu filho; se não
amar o seu filho, ele sofrerá, acabará delingiente.””
“Você deve amamentar o seu bebê; deve sentir prazer
em amamentar o seu bebê; isso deve ser a coisa mais
importante na sua vida.”” “Deve amar o seu bebê des-
de o instante em queele nasce; é contrário à natureza
não amar o seu próprio bebê”... e assim por diante.
EDUCAÇÃO PARA A SAÚDE ATRAVÉS DO RÁDIO o)

Todasestas coisas são muito fáceis de dizer mas, de


fato, se forem ditas, produzem efeitos deploráveis.
Seria salutar fazer ver às mães que, por vezes, mães
não amam seus bebês no começo, ou mostrar por que
as mães, com fregiiência, sentem-se incapazes de ama-
mentar o bebê, ou explicar-lhes por que o amor é uma
questão complexa e não um mero instinto.
Gostaria de acrescentar o seguinte: ao falar pelo
rádio, é impossíveltratar de anormalidades graves, se-
jam na mãe ou na criança, especialmente de anorma-
lidades nospais. É irrelevante dizer às pessoas que pas-
sam pordificuldades que estão doentes. Quando as pes-
soas doentes nos pedem ajuda, devemos aproveitar a
oportunidade para minorar-lhes o sofrimento como pu-
dermos, mas facilmente causaremos angústia se fizer-
mos as pessoas sentirem que estão doentes sem colo-
car à disposição delas a terapia adequada.
Não há um só conselho oferecido no ar que não
vá causar apreensão ou angústia em algum lugar. Re-
centemente, falei a respeito de contaràs crianças ado-
tadas quesão filhos adotivos. Sabia,é claro, que esta-
va correndo o perigo de causar angústia. Sem dúvida,
afligi muitas, mas uma das mães que me ouvira veio
de longe procurar-me e dizer-me exatamente por que
seria muito perigoso nas circunstâncias contar à sua
filha adotiva que tinha sido adotada. Tive de concor-
dar, embora eu saiba, em princípio, que o certo é con-
tar aos filhos adotivos que são adotivos, e fazê-lo o
mais cedo possível.
Se se diz às mães que façam isto ou aquilo, não
tardam em ficar confusas e (o mais importante de tu-
do) perdem o contato com a sua própria capacidade
6 CONVERSANDO COM OS PAIS

para agir sem saber exatamente o que está certo e o


que está errado. É facílimo fazer com que se sintam
incompetentes. Se, para tudo, tiverem de consultar um
livro ou escutarrádio, estarão sempre atrasadas quando
quiserem fazer as coisas certas, porque as coisas cer-
tas têm de ser feitas imediatamente. Só é possível agir
exatamente no ponto certo quandoa ação é intuitiva
ou por instinto, como se costuma dizer. A mente pode
entrar em ação para refletir sobre o problema depois,
e quando as pessoas procedem essa reflexão a nossa
tarefa consiste em ajudá-las. Podemos então discutir
com elas o gênero de problema com que se defrontam,
o tipo de coisas que fazem e o tipo de efeito que po-
dem esperar de suas ações. Isso não é necessariamente
a mesma coisa que dizer-lhes o que devem fazer.
Finalmente: há lugar para a instrução formal em
psicologia infantil através do rádio? Tenho as minhas
dúvidas sobre se estamos prontos para fornecer uma
instrução desse gênero. Também me é lembrado o fa-
to de que, ao dar instrução a grupos de estudantes (as-
sistentes sociais, por exemplo, ou professores em pós-
graduação, ou médicos), sabemos que esta não pode
ser administrada de forma desconexa mas deve contar
com um ambiente formal. Talvez durante um certo pe-
ríodo de tempo esses estudantes recebam instrução: é-
lhes dada a oportunidade de discutir entre si o que lhes
é transmitido e de ler, assim como de expressarsua dis-
cordância e de oferecer sua contribuição. Mesmones-
sas circunstâncias favoráveis, uma proporção daque-
les que estão recebendo instruçãoterá dificuldades pes-
soais a enfrentar e superar, dificuldades pessoais reve-
ladas pelas novas idéias e pela nova abordagem, assim
EDUCAÇÃO PARA A SAÚDE ATRAVÉS DO RÁDIO 7

como pelo redespertar de lembranças difíceis e fanta-


sias reprimidas. Terão de lidar com novas excitações
e com uma recomposição de sua filosofia de vida. Ins-
trução em psicologia não é como instrução em física
ou mesmo em biologia.
A instrução de pais pode ser feita, sem dúvida,
numasituação cuidadosamente controlada, mas a ins-
trução dada através do rádio não cabe nessa catego-
ria. Se for dada, deverá ser de uma variedade extre-
mamente restrita, estribando-se nas coisas boas que
acontecem a pessoas normais. Seguindo essa orienta-
ção básica, porém, muito pode ser feito, e é de se es-
perar que continue sendo a política da BBC prestar um
serviço social mediante a cessão de tempo para a edu-
cação na área da saúde que leve na devida contaas di-
ficuldades inerentes à radiodifusão.
CAPÍTULO 2
MADRASTAS E PADRASTOS

No dia 3 de janeiro de 1955, uma madrasta fez


uma palestra no programa Woman's hour da BBC,
contando de um modo claro e comovente como esta-
va atormentada por sentir-se incapaz de amar seu en-
teado, que se incorporara à nova família quandoti-
nha sete anos de idade. A BBC recebeu uma enorme
quantidade de cartas depois desse programa, descre-
vendo experiências análogas e diferentes de madrastas
e padrastos, e indicando, em geral, que o assunto me-
recia ser aprofundado. Por consequência, a BBC re-
servou para esse fim três segmentos na Woman's hour
de 6, 7 e 9 de junho seguinte. O primeiro desses seg-
mentos consistiu numa série de perguntas e respostas
entre um especialista e um padrasto. Os dois seguintes
foram preenchidos com palestras de Winnicott, as quais
são aqui reproduzidas. Ambas foram transcritas de gra-
vações, com o resultado de que a pontuação teve de
ser acrescentada.

Os Organizadores
10 CONVERSANDO COM OS PAIS

(I) A madrasta perversa

Sugere-se, às vezes, que se não fossem os contos


de fadas idéias como as da madrasta perversa jamais
teriam surgido. Pessoalmente, estou convencido de que
isso é um erro e de que é mais verdadeiro dizer que
nenhum conto de fadas ou, a bem dizer, nenhuma his-
tória de terror em quadrinhos ou coisa parecida pode
ter um atrativo universal se não se relacionar com al-
go inerente a cada indivíduo, adulto ou criança. O que
ocorre no conto de fadas é que este capta e explora al-
go queé verdadeiro, assustador e inaceitável. Sim, tu-
do isso: verdadeiro, assustador e inaceitável. Peque-
nos fragmentos do inaceitável na natureza humana se
cristalizam no mito aceito. A pergunta é esta: o que
se cristaliza no mito da madrasta? Seja o que for, tem
de se relacionar com ódio e medo, assim como com
amor.
Cada indivíduo tem uma grande dificuldade em
reunir a agressividade que existe na natureza humana
e misturá-la com o amor. Em certa medida, essa difi-
culdade é superada na mais remota infância pelo fato
de que, no começo, o mundo é sentido em extremos,
amistoso e hostil, bom e hostil, branco e preto; o mau
é temido e odiado e o bom é totalmente aceito. Gra-
dualmente, as crianças desenvolvem-se a partir disso
e atingem um estágio em que podem tolerar ter idéias
destrutivas a par de seus impulsos carinhosos. Podem
sentir-se então culpadas mas descobrem poder fazer
coisas para compensar. Se a mãe souber esperar, che-
gará o momento para o gesto de amor que é sincero
e espontâneo. O alívio normalmente proporcionado nos
estágios iniciais pela idéia dos bons e maus extremos
MADRASTASE PADRASTOS 1

é algo a que nem mesmo os adultos maduros podem


renunciar por completo. Ascrianças, e as crianças pe-
quenas em particular, podem facilmente admitir uma
certa persistência dessa relíquia da fase inicial da in-
fância, e sabemos poder encontrar uma resposta pronta
quando lemos ou contamoshistórias que apresentam
os bons e maus extremos.
Geralmente, a mãe verdadeira e a madrasta jun-
tam-se na imaginação com esses extremos, e em espe-
cial por causa da segunda coisa que quero descrever,
que é a existência de toda a sorte de razões pelas quais
as crianças poderão detestar suas mães. Essa idéia de
odiar a mãe é muito difícil de ser aceita por todos e
alguns que estão ouvindo não gostarão de escutar as
palavras ódio e mãe postas na mesmafrase. Entretan-
to, isso é inevitável; as mães, se realizam sua tarefa de
modo apropriado, são as representantes do mundo du-
ro, exigente, e são elas que introduzem gradualmente
a realidade, a qual é tão frequentemente a inimiga do
impulso.
Existe raiva em relação à mãe e o ódio está sem-
pre presente, mesmo quando não há a menor dúvida
quanto a um amor misturado com adoração. Se exis-
tem duas mães, uma verdadeira que morreu, e uma ma-
drasta, percebem com quefacilidade uma criança ob-
tém alívio para a sua tensão fazendo uma perfeita e
a outra horrenda? Isto se aplica quase tanto às expec-
tativas do mundo quanto às crenças de umacriança.
Além de tudo isso, uma criança acabará perceben-
do ousentindo que a devoção da mãe num estágio mui-
to inicial proporcionou as condições essenciais que a
habilitam a começar existindo como pessoa, com di-
reitos pessoais, impulsos pessoais e uma técnica pes-
12 CONVERSANDO COM OS PAIS

soal de vida. Em outras palavras, havia dependência


absoluta no início e quando a criança começa a ser ca-
paz de compreender isso desenvolve-se também um me-
do da mãe primitiva, detentora de poderes mágicos pa-
ra o bem e para o mal. Comoé difícil para cada um
de nós ver que esse onipotente agente primevo era a
nossa própria mãe, alguém que passamos a conhecer
como um ser humanoadorável mas, de modo nenhum,
perfeito ou inteiramente confiável... Como tudo isso
era precário... Além do mais, no caso de uma meni-
na, é essa mesma mãe, toda poderosa no início, a re-
presentante irritante dos fatos desagradáveis da vida,
adorável o tempo todo, que, na realidade, passa a co-
locar-se entre a filha e o pai. Nesse caso, em particular,
a mãe verdadeira e a madrasta partem de lugares dife-
rentes, pois a primeira alimenta a esperançae a segun-
da teme que a menina conquiste o amor de seu pai.
Nãoserá isso o bastante para mostrar que não deve-
mos esperar queas crianças abandonem de súbito uma
tendência para dividir o mundo em geral e suas duas
mães em particular em bons e maus, e que, pelo con-
trário, devemos esperar umacerta persistência dessas
idéias infantis nos adultos?
Podemos usar argumentos lógicos; podemos re-
petir um sem-número de vezes que o que importa não
é se as pessoas são negras ou brancas mas se, como
seres humanos, são afetuosase cativantes. Mas restam-
nos os nossos sonhos, e quem gostaria de ver-se livre
de suas fantasias? Em fantasia, não precisamos ser
adultos o tempo todo, da mesma maneira que precisa-
mosser quando pegamos o trem para o escritório ou
quando saímos para as compras. Na fantasia, o infantil
e o adolescente persistem no adulto maduro. Mas aper-
MADRASTAS E PADRASTOS 13

cebemo-nosdo inconveniente da fantasia quando aden-


tramos em uma ou outra das características sombrias
dos mitos do mundo. Eu mesmo possoter adentrado
em uma delas, talvez, quando falo sobre o ódio e o
medo à mãe que sinto estar inevitavelmente mistura-
do ao amornas relações mãe-filho plenamente viven-
ciadas. Vocês podem pensar que sou maluco.

(II) O valor da história de um fracasso

No estudo de qualquer problema relacionado com


questões humanas, podemosrestringir-nos à superfí-
cie ou podemosir a fundo. Se pudermos manter-nos
superficiais, evitaremos uma porção de dissabores e
contratempos, mas também evitaremos os valores mais
profundos. Algumasdas cartas que chegaram após o
programa sobre a história de um fracasso foram mui-
to além do óbvio. Por exemplo, foi sublinhado que a
criança que perdeu o pai ou a mãe não podesertrata-
da comose isso não tivesse acontecido e é freqiuiente-
mentepreferível que a madrasta ou o padrasto permi-
tam ser chamados por um outro nome a fim de que
a criança possa conservar “mamãe” ou “papai” para
referir-se ao que morreu. A idéia da mãe ou pai que
se perdeu pode manter-se viva e a criança ser conside-
ravelmente ajudada pela atitude que torna isso possi-
vel. Também foi sublinhado que a criança de quem se
passou a tomar conta pode estar perturbada; e neste
caso especial de uma criança que não era amada o me-
nino tinha passado um período com a avó antes de ir
viver com a madrasta, pelo que sofreu uma dupla pri-
vação e era passível, por conseguinte, de sentir-se de-
14 CONVERSANDO COM OS PAIS

samparado a respeito do relacionamento e da confia-


bilidade humanos. Se uma criança se sente assim de-
samparada, não pode correr o risco de iniciar novos
vínculos e defende-se contra os sentimentos profundos
e contra as novas dependências.
Vocês sabem que um grande número de mães não
amam seus próprios bebês quando os dão à luz? Elas
sentem-se horríveis, exatamente como a madrasta. Pro-
curam fingir que amam mas simplesmente não conse-
guem. Seria tão mais fácil para elas se lhes tivessem
dito de antemão que o amor é uma coisa que pode che-
gar mas não é um botão que se liga. Geralmente, a mãe
não tarda em sentir amor pelo seu bebê durante a gra-
videz, masisso é uma questão de experiência e não uma
expectativa convencional. Os pais têm, por vezes, o
mesmo problema. Talvez isso seja mais facilmente acei-
to, razão pela qual há menos necessidade de fingimento
por parte de um pai e seu amorpelo filho pode chegar
naturalmentee no seu tempo próprio. Além de não os
amarem, é freqiente que as mães odeiem seus bebês.
Estou falando de mulheres comuns que, de fato, se
saem muito bem e se preocupam em encontrar alguém
que aja por elas e o faça de maneira apropriada. Co-
nheço muitas mães que viviam no temor constante de
descobrir que fizeram mal aos seus próprios bebês e
são inteiramente incapazes de falar de suas dificulda-
des por ser sumamente improvável que alguém as pu-
desse compreender. Há tanta coisa que é profunda e
oculta na natureza humana que pessoalmente eu pre-
feriria ser filho de alguém que possui todosos confli-
tos íntimos da natureza humana do que ter por mãe
alguém para quem tudo é fácil e trangiilo, que conhe-
ce todas as respostas e é estranha à dúvida.
MADRASTASE PADRASTOS 15

A maioria dos que proclamam ter tido êxito aqui


e ali poderiam registrar um fracasso alhures e, no lu-
gar certo e no momento certo, a história de um fra-
casso tem o mais alto valor. É claro, a questão é mui-
to diferente quando as pessoas ficam por aí lamentan-
do-se e suspirando, mas não foi isso, por certo, o que
aconteceu com a nossa madrasta que sofria tanto por
ser incapaz de amar seu enteado. Sempre que umaes-
posa ou um marido toma conta de um enteado há uma
longa história por trás desse acontecimento, e essa his-
tória tem uma influência decisiva no modo comoa si-
tuação será tratada. Não é apenas uma questão de sen-
timento de culpa por causa de uma criança que, por
assim dizer, é roubada; há toda uma história de esco-
lha de umaviúva ou de um viúvo, ou de resgate de uma
pessoa que teve um casamento infeliz. Há toda uma
série de importantes questões que não podem ser ig-
noradas e que afetam o sonho ou a base imaginativa
de padrastos e madrastas ao encetarem um novo rela-
cionamento. Em qualquer caso específico as coisas po-
dem ser examinadas, e até proveitosamente examina-
das, mas ao falar-se em termos genéricos o assunto
torna-se de imediato demasiado vasto para ser todo ele
abrangido. A mulher que se vê cuidando de umacrian-
ça que nasceu de uma mulher que é imaginativamente
sua rival, mesmo que já tenha morrido, pode facilmente
sentir-se forçada por sua própria imaginação a ocupar
a posição de bruxa em vez da de fada madrinha. De
fato, ela pode não ter dificuldade alguma, ou pode,
como as autoras de algumas cartas descreveram, gos-
tar de assumir um lugar secundário em relação à espo-
sa anterior. Mas muitos homens e mulheres ainda es-
tão se esforçando por alcançar a maturidade adulta
16 CONVERSANDO COM OS PAIS

quandose casam, e devem lutar por seus próprios di-


reitos ou perder sua identidade e seu sentimento pro-
fundo deseres reais. Uma mulher pode facilmente sen-
tir a presença dofilho da outra mulher como um lem-
brete intolerável da mãe da criança. Se esse gênero de
coisa é verdadeiro mas inconsciente, pode distorcer o
quadro e impossibilitar um crescimento natural de sen-
timentos que conduzam primeiro à tolerância e depois
ao amor.
Disponho apenas de tempo suficiente para men-
cionaro fato de que umacerta percentagem de entea-
dos são realmentecriaturas detestáveis, em virtude das
experiências por que tiveram de passar. Podemos ex-
plicá-los e desculpá-los, mas a madrasta tem de supor-
tá-los. Não há outrasaída para ela. Felizmente, a maio-
ria dos enteados é passível de ser induzida a assumir
uma atitude amistosa e, de fato, como várias cartas
provam, são inúmeros os casos em que os enteados se
comportam exatamente como os própriosfilhos de sua
madrasta. Assim, com fregiiência, não há dificuldade
ou, se as há, não são grandes nem apresentam qual-
quer ameaça. Muitas pessoas perdem de vista a per-
plexidade da situação madrasta-enteado e acabam acre-
ditando queé tudo muito simples. Para as pessoas sem
dificuldades, a minha exploração do mundo imagina-
tivo deve parecer sumamente desagradável e até peri-
gosa. É perigosa para o sentimento de segurança delas
mas, como disse, ao perderem de vista os sonhos ruins
e até os pesadelos, e as suspeitas e depressões por que
passaram, também perdem de vista tudo o que confe-
re um sentido às suas realizações.
Algum conhecimento dehistórias de fracassos po-
de enriquecer bastante as nossas vidas. Além disso, es-
MADRASTAS E PADRASTOS 17

sas histórias podem mostrar-nos que existe um propó-


sito em ajudar as pessoas malsucedidas a reunirem-se.
Se elas se reúnem e falam, dividem entre si seus fardos
e, por vezes, logram aliviá-los. Uma ouvinte escreveu-
me solicitando um encontro de madrastas e padrastos
malsucedidos. Penso que tal reunião poderia ser frutí-
fera. Seria constituída de homens e mulheres comuns.
CAPÍTULO 3
O QUE SABEMOS A RESPEITO
DE BEBÊS QUE CHUPAM PANO?

Palestra transmitida pela BBC


em 31 de janeiro de 1956

Muitos ensinamentos podem ser colhidos obser-


vando o que os bebês fazem para passar o tempo en-
tre os períodos de sono. Mas devemos, em primeiro
lugar, livrar-nos da idéia de que existe um certo e um
errado; o nosso interesse decorre do fato de que atra-
vés dos bebês podemos aprender a respeito de bebês.
O conferencista que falou a semana passada neste pro-
grama abordou o ponto de vista de que se um deter-
minado bebê chupa o polegar ou um pedaço de pano
não é aí que temos de intervir para aprovar ou repro-
var, mas é onde temos uma oportunidade de conhecer
algumacoisa sobre esse bebê. Concordo com ele e com
as mães cujas cartas ele citou.
Estamos interessados numa grande variedade de
fenômenos que caracterizam a vida do bebê. Jamais
podemos saber tudo a respeito desses fenômenos, por-
que há sempre um novo bebê, e nunca dois bebês são
exatamente iguais, quer no rosto, quer nos hábitos.
Conhecemos os bebês não só pela linha do nariz e a
cor do cabelo, se houver algum, mas também por suas
idiossincrasias.
20 CONVERSANDO COM OS PAIS

Quando as mães me falam a respeito dos filhos,


peço em geral que recordem as coisas que acontece-
ram no começo que eram características. Elas gostam
de trazer à memória aquelas coisas que revivem tão ni-
tidamente o passado.
Falam-me sobre toda a espécie de objetos que fo-
ram adotados pelo bebê, que se tornaram importan-
tes, que são chupados ou abraçados, e que reconfor-
tam o bebê nos momentos de solidão e insegurança,
proporcionam consolo, ou atuam como um sedativo.
Tais objetos estão a meio caminho entre ser parte da
criança e parte do mundo. Não tardarão em adquirir
um nome, como““tissie”” ou ““nammie”, o que denun-
cia sua dupla origem. O cheiro e a textura são seusele-
mentos essenciais — e que ninguém se atreva a lavá-
los! E que tampoucose ouse deixar um desses objetos
em casa quandose sai. Se você for suficientemente sá-
bia, deixará que o objeto se desintegre aos poucos, co-
mo o velho soldado da canção que nunca morre; você
não o destrói, não o perde nem se desfaz dele.
O principal é nunca provocar o bebê: “Isso é al-
guma coisa que você inventou, ou é parte do mundo
que você descobriu e adotou?” Um pouco mais tarde,
você estará querendo obrigar o seu bebêa dizer “ta”,
ea reconhecer assim que esse cachorrinho felpudo foi
um presente da titia. Mas esse primeiro objetoé esta-
belecido comoparte integrante do conteúdo do berço
ou do carrinho do bebê, antes que a palavra “ta” possa
ser proferida ou fazer sentido, antes que o bebê faça
umaclara distinção entre o eu e o não-eu, ou antes que
tal distinção esteja sendo processada.
Umapersonalidade está sendo formada e uma vi-
da que nunca foivivida antes está sendo vivida, e é nes-
O QUE SABEMOS A RESPEITO DE BEBÊS 21

sa nova pessoa vivendo essa nova vida que a mãe e o


pai estão interessados a partir do instante em que se
sente o bebê em movimento no ventre materno. A vi-
da pessoal começa imediatamente, e persistirei nessa
idéia muito embora saiba que os filhotinhos de cães
e gatos também chupam pedaços de pano e brincam,
um fato que me leva a afirmar que os animais tam-
bém são muito mais do que meros feixes de reflexos
e apetites.
Quando digo que a vida começa imediatamente,
admito que, no início, a vida adquire uma forma bas-
tante restrita, mas a vida pessoal do bebê certamente
começou na época do nascimento. Esses estranhos há-
bitos dos bebês dizem-nos que existe na vida deles al-
go mais do que dormir e ingerir leite, e algo mais do
que obtersatisfação instintiva de uma boa refeição. Es-
ses hábitos indicam que já existe uma criança, viven-
do realmente uma vida, acumulando e estruturando
lembranças, formando umpadrão pessoal de compor-
tamento.

Para uma compreensão mais completa, devemos


considerar que existe desde o início uma forma rudi-
mentar do que mais tarde chamaremos imaginação. Is-
so habilita-nosa dizer que o bebê recebee assimila não
só com a boca mas também com as mãose a pele sen-
sível do rosto. A experiência de alimentação imagina-
tiva é muito mais ampla do que a experiência puramen-
te física. A experiência total de alimentação pode ra-
pidamente envolver um fecundo relacionamento com
o seio da mãe, ou com a mãe à medida que vai sendo
gradualmente percebida, e o que o bebê faz com as
mãose os olhos amplia a extensão do ato alimentar.
Isso que é normal fica ainda mais evidente quando ve-
22 CONVERSANDO COM OS PAIS

mos a refeição de um bebê ser ministrada de um mo-


do mecânico. A mamada em tais condições, longe de
constituir uma experiência enriquecedora para o be-
bê, interrompenele a sensação de continuar sendo. Não
sei realmente comoexpressarisso de outra forma. Di-
ria que houve uma atividade reflexa e nenhuma expe-
riência pessoal.
Quando fazemos cócegas no rosto de um bebê, po-
demos produzir um sorriso, mas o bebê poderá sentir
qualquer coisa menos satisfação com isso. O reflexo
traiu o seu dono. Ele quase possui o bebê. Nãoé tare-
fa nossa usar o poder que indubitavelmente possuímos
para suscitar reflexos e estimular gratificações instin-
tivas que não surjam como parte integrante do ritmo
da vida pessoal do bebê.
Todo gênero de coisas que um bebê faz enquanto
mama parecem-nos absurdas, desprovidas de sentido,
porque não o fazem engordar. O que estou afirmando
é que são justamente essas coisas as que nos corrobo-
ram estar o bebêse alimentando, não apenas sendo ali-
mentado, estar vivendo umavida e não apenas reagindo
aos estímulos que lhe são oferecidos.
Já viram um bebê chupando um dedo ao mesmo
tempo que prazerosamente mama? Eu vi. Já viram al-
gumavez um sonho ambulante? Quando um bebê chu-
pa a ponta de um pano, ou do edredom, ou um bone-
co, o objeto representa um extravasamento da imagi-
nação, quer dizer, a imaginação estimulada pela fun-
ção excitante central que é a amamentação.
Em outras palavras: já pensaram alguma vez que
a sensação global, chupar o dedo, a ponta de um pa-
no, abraçar a boneca de pano, é a primeira manifesta-
O QUE SABEMOS A RESPEITO DE BEBÊS 23

ção infantil de comportamento afetivo? Pode alguma


coisa ser mais importante do que isso?
Talvez as pessoas considerem ponto pacífico a ca-
pacidade afetiva de seus bebês, maslogo se darão conta
disso se tiverem umacriança que não pode mostrarafei-
ção ou que perdeuessa capacidade. É possível induzir
a comer umacriança que pareça relutante em fazê-lo,
mas não há nada que se possa fazer para tornar afe-
tuosa uma criança insensível à afeição. Você pode
inundá-la de afeição, mas tudo o que conseguirá dela
é que se esquive, ora silenciosamente, ora com gritos
de protesto.
Essas atividades insólitas e aparentemente irrele-
vantes sobre as quais estamos falando são um sinal
de que a criança está presente como pessoa e, além
disso, confiante no relacionamento com a mãe. O be-
bê está apto a usar objetos que são simbólicos, como
diríamos, da mãe ou de alguma qualidade da mãe, e
é capaz de sentir prazer em ações que são meramente
lúdicas, muito distantes do ato instintivo, ou seja, da
alimentação.
Observem o que acontece se o bebê começa a per-
der a confiança. Uma privação de pouca importância
pode produzir um elemento compulsivo no hábito (ou
seja qual for o nome que se lhe dê) de sucção, de mo-
do que se converta num tronco principal, em vez de
ser um simples ramal. Mas se houver uma privação
mais séria ou prolongada o bebê perde toda a sua ca-
pacidade de chupar o pedaço de pano, de brincar com
a boca ou de remexer no nariz; o significado dessas
atividades lúdicas dissipa-se.
Esses primeiros objetos lúdicos e essas atividades
lúdicas existem num mundo entre o bebê e o mundo
24 CONVERSANDO COM OSPAIS

externo. Há um esforço tremendo por trás da demora


da criança em distinguir entre o eu e o não-eu, e da-
mos tempo para que esse desenvolvimento ocorra na-
turalmente. Vemos a criança começar a separar coisas
e a perceber que existe um mundo externo e um mun-
do interno e, a fim de ajudar, consentimos num mun-
do intermédio, o qual é ao mesmo tempo pessoal e ex-
terno, eu e não-eu. Isso é o mesmo que intensa ativi-
dade lúdica da infância e que os devaneios de crianças
mais velhas e adultos, devaneios esses que não são so-
nho nem fato, e no entanto são ambas as coisas.
Pensando bem nisso, será que algum de nós eman-
cipou-se totalmente da necessidade de uma áreainter-
média entre nós próprios, com o nosso mundo inter-
no pessoal, e a realidade externa ou compartilhada?
A tensão que o bebê sente ao esforçar-se por separar
os dois mundos nunca se perde por completo, e per-
mitimo-nos uma vida cultural, algo que pode ser com-
partilhado e, no entanto, muito pessoal. Refiro-me, é
claro, às primeiras e sólidas amizades e à prática da
religião. E, em todo caso, há as coisas absurdas que
todos fazemos: por exemplo, por que eu fumo? Para
uma resposta, teria de me dirigir a uma criança peque-
na, que riria na minha cara, tenho certeza, pois uma
criança sabe melhor do que ninguém como ridículo
ser sensato o tempo todo.
É estranho, talvez, mas chupar um polegar ou uma
boneca de trapo pode gerar uma sensação de realida-
de, ao passo que uma refeição de verdade pode propi-
ciar sensaçõesirreais. A refeição real deflagra reflexos,
os instintos vêem-se envolvidos de forma vigorosa, e
a criança ainda não avançou o bastante no caminho
do estabelecimento de um eu a ponto de ser capaz de
O QUE SABEMOS A RESPEITO DE BEBÊS 28

absorver tão poderosas experiências. Isso não lembra


o cavalo sem jóquei que venceu o Grand National? Essa
vitória não deu o prêmio ao proprietário do animal,
uma vez que o jóquei tinha sido incapaz de aguentar-
se na sela. O proprietário sente-se frustrado e o jóguei
podeter saído machucado. Quando você se adapta às
necessidades e ritmos pessoais do seu bebê no come-
ço, está habilitando esse principiante a firmar-se na sela
durante a corrida, inclusive a montar o seu próprio ca-
valo e a gostar de cavalgar por puro prazer.
Para o eu imaturo de uma criança muito pequena
é a auto-expressãotalvez na forma desses insólitos há-
bitos de chupar um pedaço de pano que ela sente co-
morealidade, e que dá à mãe e à criança uma oportu-
nidade de relacionamento humano que não esteja à
mercê dos instintos animais.
CAPÍTULO 4
DIZER “NÃO”

Três palestras radiofônicas na BBC, transmitidas


em 25 de janeiro, 1º e 8 de fevereiro de 1960

Este programae os dois seguintes formam uma


série. O tema é “Dizer 'não"””. Esta noite ouvirão uma
discussão entre várias mães, e farei um breve comen-
tário no final. Na próxima semana e na seguinte, se-
rei eu quem falarei principalmente, mas serão citados
alguns trechos da discussão, apenas a título de lem-
brete.
Penso queirão gostar da discussão, que dura cer-
ca de oito minutos. Parece-me extremamente realista.
Quando a ouvirem, podem estar inteiramente certos
de que nada foi encenado. É simplesmente o modoco-
mo vocês discutiriam o mesmo assunto.

ae

A conversa das mães

MÃES
“E muito difícil encontrar um meio-termo entre
28 CONVERSANDO COM OS PAIS

dizer às crianças o tempo todo não façam isto, não fa-


çam aquilo, ou deixá-las resolver tudo. Mas, por outro
lado, não se pode deixar que destrocem a casa toda.”
“Acabo de adquirir uma nova residência, tivemos
um apartamento durante um ano e tivemos de com-
prar tudo para ele, e também para o novo bebê. E de-
cidi deixar que o bebê, uma menina, desfrutasse a mes-
ma liberdade que no apartamento, e ela é hoje um be-
bê feliz por causa disso.”
“Sim, mas que idade tem ela agora... vinte meses?”
“Vinte e um meses, e muito ativa” (Falam ao mes-
mo tempo)
“Três anos! Três anos de idadeé ligeiramente di-
fente de vinte meses, não acha?” (Falam ao mesmo
tempo)
“Mas decidi continuar mantendo essa atitude.”
“A suafilha terá a mesmaliberdade quandovisi-
tar a casa de outras pessoas?”
“No momento tem, porque é extremamentecurio-
sa, como deve ser nessa idade.”
“Penso que esse negócio deas crianças serem bem
comportadas quandovisitam outras pessoas depende
em grande parte do grau de liberdade que desfrutam
em casa. Porque se têm liberdade para fazer as trope-
lias e a sujeira quelhes apeteçam em casa, de um mo-
do ou de outro, então não têm...”
“Não ficam tão curiosas.”
“Então não querem fazer a mesmacoisa em ou-
tros lugares. Está certo, quando você volta para casa
das compras, a criança apanha o saco de arroz — se
você imprudentemente o tiver deixado ao seu alcance
— e derrama-o pelo chão todo.” (Risos) “A criança
não foi levada, você é que foi estúpida. Quer dizer,
DIZER “NÃO” 29

quando a minha filha faz isso, eu percebo que quanto


mais depressa voltarmos para a caixa de areia, onde
ela pode — vocês sabem — derramar tudo o que qui-
ser, melhor será para nós.” (Falam ao mesmo tempo)
“Ela não ficará chateada por passar tanto tempo
nacaixa deareia, e não achará o arroz mais fascinante?
“Claro que sim, mas também, quer dizer, poças
por exemplo. Aprendi essa lição de uma outra pessoa,
porque a minhafilha teve alguém cuidando dela du-
rante o primeiro ano, não em tempo integral mas
durante os dias em que eu ainda estava dando aulas
(antes de ter o segundo filho, eu decidira que queria
continuar dando aulas). Mas até com seus sapatos co-
munsessa senhora deixava-a ir meter os pés nas poças
de água, em certas oportunidades, e depois dizia-lhe:
“Muito bem, desta vez você não deve se meter nas po-
ças, porque vamos sair. Não posso te trocar agora. E
ela não ia para as poças. Essa foi uma boa lição que
aprendi. Querdizer, se você deixa a criança fazer algo
quando isso não vai ser um aborrecimento muito gran-
de para você, entãoela não o fará quando se lhe expli-
ca haver uma razão para que não o faça desta vez.”
(Falam ao mesmo tempo)
“Isso funciona?” (Falam ao mesmo tempo)
“Isso não surge do nada, é preciso prepará-las.””
“Você pode fazer da explicação um jogo: que tal
se fizéssemosisto... e vamos afastando-os pouco a pouco
do que estiverem fazendo queé destrutivo, descobrin-
do alguma outra coisa interessante para fazer.” (Falam
ao mesmo tempo) “Bem, eu... explico racionalmente,
quer dizer, o que pretendo com esse negócio de fazer
um jogo daquilo que a criança estiver fazendo num da-
do momento é introduzi-la com jeito num outro jogo.”
30 CONVERSANDO COM OS PAIS

“Distração?”
“Distração, sim.”
“Acho que tudo depende de você não ter um nú-
mero excessivo de coisas a cujo respeito tenha de dizer
“não”. Quer dizer, quando o nosso primeiro bebê era
muito pequeno, havia duascoisas a que dizíamos “não”.
Umaera algumasplantas que tínhamosno /iving e não
queríamos que fossem arrancadas, e a segunda eram
fios elétricos, pois havia uma porção deles pela casa.
Dizíamos “não” a respeito dessas coisas; quanto ao res-
to... se havia qualquer coisa que ele pudesse estragar,
tudo o que fazíamosera colocá-la fora do seu alcance.”
“É a coisa mais sensata a fazer.”
(Falando ao mesmo tempo) “Essas eram sempre
“não”. O resto não era. De modo que, quando você di-
zia um novo “não” para algo que você sabia que, por
alguma razão, a criança não entendia, ela não se im-
portava.”
“Eu também comecei assim com o meu, com o
mesmo êxito.””
**Há ocasiões em que você não pode deixar de di-
zer “não”. Aos 21 meses, você pode pôr as coisas fora
do alcancedeles... provavelmente ainda não conseguem
trepar. Parece que tomadassão coisas que não podem
ser postas fora do alcance.”
“Você deve instalar tomadas apropriadas... exis-
tem tomadas apropriadas para eletrodomésticos.”
“Acho que você deve decidir simplesmente quan-
do dizer “não” e manter-se firme. É muitíssimo melhor
que você lhe dê umas chineladas do que deixá-lo levar um
choque elétrico, ou qualquer outro gênero de choque.”
“Afinal de contas, você nem sempreestá em con-
DIZER “NÃO” 31

dições de mandar trocar todas as tomadas.” (Falam


ao mesmo tempo)
““Acho que não é assim tão fácil quanto as pes-
soas imaginam ter alguns “nãos” e persistir neles. Acho
que se você tem um “não” que parece suficientemente
importante e interessante para a criança isso a deixará
fascinada porquese trata do único “não”. Veja o caso
dos fósforos... elas ficam com a idéia de que os fósfo-
ros são a coisa mais interessante que existe na casa to-
da, porque só ouviram dizer “não” a respeito deles. Eu
acho... bem, eu acho que vamos ter de deixá-las brin-
car com fósforos.”
“Alguém já tentou ensinar-lhesa riscar fósforos
segurando-os a uma certa distância...?”
“*... mas isso as fascina ainda mais.”
“Não sei, mas penso que é uma excelente abor-
dagem mostrar às crianças o que acontece se continua-
rem brincando com eles.”
“Mesmoao ponto de queimarem literalmente os
dedos?”
“Nãosei... suponho que é um pouco duro, mas
se puderem chegar bem perto para se darem conta de
que está quente e poderia ser uma coisa muito doloro-
sa, tanto mais que podem aprender de outras coisas
o que é o calor...”
“Sim, eu tive sorte: o meu filho tocou certa vez
no secador de toalhas, que estava quente, ele se quei-
mou e eu disse: “Quente.” ”
“O meu segundo filho faz alguma coisa, se ma-
chuca e percebe, ou eu presumo que percebe, por que
se machucou; mas no dia seguinte está disposto a fa-
zer exatamente a mesma coisa.”
“Estou certa de que é uma questão de tempera-
32 CONVERSANDO COM OS PAIS

mento. A minha primeira filha estava com uns 18 me-


ses quando meteu na boca umaporção de bacon quen-
te, e eu disse “quente”, e daí em diante creio que nunca
mais voltou a queimar-se. Ela sabe o que é “quente”,
e tem não só muita imaginação mas também muito me-
do disso. Mas a minha segunda filha é muito diferen-
te. Enchia repetidas vezes a boca de bacon quente.”
“Há certas coisas que elas não podem fazer, mes-
mo que não lhes causem exatamente qualquer dano.
Comoo acendedor automático de uma boca de fogão
a gás. Tudo o que o meu filho tem defazer é girar o
botão para acender o gás. Bem, isso não lhe faz ne-
nhum mal, mas pode causar um tremendo de um pre-
juízo se houver qualquer coisa colocada sobre o fogão.
Ele sabe muito bem que não deve acender o gás e fica
sacudindo negativamente a cabeça enquanto o faz.”
(Risos)
“Não seria esse um momento oportuno para uma
boa palmada?”
“Nãoé essa uma daquelas situações em que você
já deveria, por certo, estar de sobreaviso, e no momen-
to em que ele se acercasse do fogão afastá-lo energica-
mente?” (Falam ao mesmo tempo)
“É responsabilidade da mãe que umacriança não
fique perambulando pela cozinha, e isso é tudo. Quer
dizer, isso só pode ser responsabilidade nossa.”
“Mas você está lavando e cozinhando!” (Falam
a um tempo)
“Uma criança não pode permanecer indefinida-
mente no seu cercado.””
“Oh, não, eu sei, mas eu pensaria que há um jei-
to de contornar quase tudo isso. É com distrações. Se
ela se sente atraída pela chama do gás, você lhe ofere-
DIZER “NÃO” 33

ce alguma outra coisa igualmente atraente mas segu-


ra. Acontece a mesma coisa com umacriança mais ve-
lha, você tem apenas de lembrar-lhe o tempo todo que
deve colocar o cabo da caçarola do lado mais distan-
te, para que qualquer criança mais nova não venha e
a puxe pelo cabo.”
“Nós somosuns felizardos. A nossa sala de jan-
tar tem uma porta de comunicação com a cozinha e
as crianças têm a sala de jantar como uma espécie de
local para brincar, e tento mantê-las aí. Mas não fe-
cho a porta. Desde que saibam que eu estou na peça
ao lado e que podem me ver se assim quiserem, elas
permanecem quase sempre na sala de jantar.”
“Com que idade?”
“Oh, desde muito cedo, logo que saíram do cer-
cado, a partir de um ano, mais ou menos. Vêm até a
porta para me espiar e depois voltam para a sala com
seus brinquedos.”
“Vocês não acham que estar constantemente de
sobreaviso, ter de inventar distrações, e lembrar-lhes
que não podem fazer isto ou aquilo, não é uma coisa
sumamente cansativa?”
“Sim.” (Falando ao mesmo tempo)
““Somado ao que é uma questão de oportunida-
de. E de falta de tempo. Você está tentando fazer mui-
tas coisas ao mesmo tempo, está cozinhando, talvez
esteja fervendo fraldas, alguém bate na porta da fren-
te e você se volta de repente e surpreende o seu garoto
brincando com a torneira do gás, ou tentando enfiar
na tomada um fio elétrico que esquecemos de guardar
na noite anterior. Esse é o gênero de coisas que ocor-
rem... não dá para pensar de antemão em tudo.”

sete
34 CONVERSANDO COM OS PAIS

DWW
Espero que esse grupo de mães tenha continuado
a discutir e a trocar opiniões em torno de uma xícara
de chá. Temos de deixá-las aí.
Esta semana, comodisse antes, farei apenas um
breve comentário geral, e nas duas próximas semanas
espero abordare desenvolver alguns dos pontos susci-
tados. Sempre gostei muito de ouvir esse tipo de coi-
sa, quando as pessoas falam de sua especialidade. É
a mesmacoisa quandoagricultores falam sobre trigo,
e centeio, e batatas, ou quando qualquer artesão fala
do seu ofício. Por exemplo, essas mulheres falam da
diferença entre bebês de 24 meses e 3 anos, ou qual-
quer outra idade. Elas sabem que imensas mudanças
ocorrem de mês para mês. Aos 12 meses, apenas algu-
mas palavras têm sentido para um bebê como palavras,
ao passo que aos 24 meses as explicações verbais co-
meçam a ser um bom modo de comunicação e um mé-
todo eficiente de cooperação quando “'não” é o que
você realmente quer dizer. Vemos pela discussão que
existem muitas etapas. Eu destacaria três. Em primei-
ro lugar, você é absolutamente responsável o tempo
todo. Em segundo lugar, começa a transmitir “não”
ao bebê porque está certa em discernir o alvorecer da
inteligência e os primórdios da capacidade do bebê para
separar o que você consente do que não consente. Vo-
cê não está tentandolidar com o certo e o errado do
ponto devista moral, está simplesmente levando ao co-
nhecimento do bebê os perigos dos quais o está prote-
gendo. Acho que os “nãos” maternos se baseiam na
idéia de perigos concretos. Lembram-se de como duas
mães falaram respeito do calor? No momentoapro-
priado, elas proferiram a palavra “quente” e assim vin-
DIZER “NÃO” 35

cularam o perigo à dor. Mas muitos perigos não estão


ligados à dor de um modo tão simples, de forma que
o “não” tem de ser suficiente até ser alcançada a eta-
pa seguinte. Na terceira etapa, ganha-se a cooperação
da criança ao oferecer-lhe uma explicação. Isso envol-
ve a linguagem. “Não” porque está quente. “Não”
porque eu digo não. “Não” porque eu gosto dessa
planta, subentendendo que se a planta for arrancada
você não gostará tanto do seu bebê durante alguns
minutos.
Referi-me a três etapas, mas essas etapas sobre-
põem-se em parte. Primeiro temos aquela fase em que
você assume plena responsabilidade, de modo que, se
algo de desagradável acontece, você se recrimina, e essa
fase só se torna obsoleta muito lentamente. De fato,
você continua assumindo a responsabilidade, mas ob-
tém um certo alívio por causa da crescente capacidade
da criança para compreenderas coisas. Se essa primeira
etapa se converter porventura em coisa do passado, isso
significa que o seu filho cresceu o bastante para não
necessitar mais do controle da família, tornando-se um
membro independente da sociedade.
Nasegunda etapa, você se impõe e impõe a sua
visão do mundoà criança. Esta fase converte-se na ter-
ceira, a da explicação, mas o ritmo e a maneira como
essa conversão se processa dependem tanto da criança
quanto da mãe. As crianças são tão diferentes umas
das outras no modo comose desenvolvem... Podemos
abordar esses pontos na próxima semana. Talvez já te-
nham entendido que dizer “não” não é simplesmente
dizer “não”.
36 CONVERSANDO COM OSPAIS

Na semana passada, ouviram algumas mães dis-


cutindo o problema de dizer “não”; e eu fiz um breve
comentário. Esta semana e na próxima falarei a res-
peito de algumas coisas em que estive meditando en-
quanto as ouvia. Masexiste algo que gostaria de dizer
e que se relaciona com toda essa discussão. No meu
trabalho, aprendi muito sobre as dificuldades que as
mães enfrentam quando não desfrutam uma posição
favorável. Talvez tenham grandes dificuldades pes-
soais, de modo que não podem ter um bom desempe-
nho, mesmo quando são capazes de ver o caminho; ou
têm maridos queestão longe, ou que não fornecem um
apoio adequado, ou que interferem, que são até ciu-
mentos; algumas não têm marido mas têm ainda de
criar o bebê. E depois há as que foram colhidas em
condições adversas, pobreza, moradia superlotada, vi-
zinhança hostil. A tal ponto que todos esses proble-
mas cotidianos as impedem de ter uma visão mais am-
pla do que deveria ser o seu papel de mãe. E temos
ainda aquelas que cuidamdos bebês de outras pessoas.
Percebi que as mães que se reuniram aqui para dis-
cutir a forma de tratar seus bebês são do tipo usual
de pessoas saudáveis e bem-sucedidas, e que possuem
o senso de segurança necessário para abordar o verda-
deiro problemaque significa cuidar de um filho peque-
no. Sei que a maioria das mães são comoessas que ou-
vimos, mas desejo chamar a atenção para o fato de
elas serem felizes, em parte porque perdemosalgo se
tomarmos a boa sorte por ponto pacífico, e em parte
porque estou pensando em todas as mães que podem
estar ouvindo são inibidas, infelizes, frustradas, e não
DIZER “NÃO” 37

foram bem-sucedidas; porque todo mundo quer real-


mente se sair bem.
Dito isto, lembro-lhesastrês etapas que destaquei
no programaanterior. Em primeiro lugar, disse eu, vo-
cê é envolvida num processo em que é, de fato, total-
mente responsável pela proteção do bebê. Depois vem
um período em que pode dizer “não”; e finalmente
vem o tempo das explicações.
Gostaria de dizer algumaspalavras a respeito dessa
primeira etapa em que a mãe é plenamente responsá-
vel. Você estará apta a dizer, depois de alguns meses,
que nunca, nem uma única vez, deixoude atender aos
chamadosdo seu bebê, embora tivesse de ser, é claro,
uma pessoa frustradora o tempo todo, porque não po-
dia, e ninguém poderia, satisfazer todas as necessida-
des do bebê — umatarefa que a mãe não tem de reali-
zar. Não há “não” nessa primeira etapa; e lembrei-
lhes que essa primeira etapa sobrepõe-se em parte às
etapas subsequentes; ela prossegue até o momento em
que seu filho cresceu o suficiente para tornar-se inde-
pendente do controle familiar. Você fará coisas horri-
veis, mas não creio que tenha em nenhum momento
deixado de atender ao seu filho, não se estiver ao seu
alcance ajudá-lo.
Na fase seguinte, a que chamei a etapa dois, come-
ça a aparecer o ''não”. Você transmite um “não” de
uma formaou de outra. Talvez diga apenas “Brhhhhh”.
Ou franza o cenho. Ou torça o nariz. Ou o uso da pala-
vra “não” constitui um bom método, a menos que o
bebê seja surdo. Penso que se você é uma pessoa feliz
encontrará facilmente como colocar esse negócio do
“não” numa base prática, estabelecendo um modo de
vida que se coadune com o seu e com o mundo à sua
38 CONVERSANDO COM OS PAIS

volta. As mães infelizes, por causa de sua própria in-


felicidade, podem ser propensas a exagerar o lado ca-
rinhoso do trato com o bebê e, por vezes, dizem não
apenas porque andam irritáveis. Mas isso é irremediá-
vel. E temos em seguida a etapa três, a que chamo a
fase das explicações. Algumas pessoas sentem um gran-
de alívio quando podem, finalmente, falar com a crian-
ça e esperar ser entendidas, mas estou dizendo que a
base de tudo é certamente o que aconteceu antes.
Gostaria de lembrar-lhes agora a parte da discus-
são em que uma das mães disse que foi introduzindo
os “nãos” um de cada vez. Penso que o detalhe im-
portante é que ela tinha bem claro em seu espírito o
que permitiria e o que não permitiria. Se ela própria
estivesse confusa, o bebê teria perdido algo sumamen-
te valioso. Ouçam agora um fragmento da conversa
das mães:

MÃES
“Acho que tudo depende de você não ter um nú-
mero excessivo de coisas a cujo respeito tenha de di-
zer 'não”. Quer dizer, quando o nosso primeiro bebê
era muito pequeno, havia duas coisas a que dizíamos
“não”. Uma era algumas plantas que tínhamos no li-
ving e não queríamos que fossem arrancadas, e a se-
gunda eram fios elétricos, pois havia uma porção de-
les pela casa. Dizíamos 'não” a respeito dessas coisas;
quanto ao resto... se havia qualquer coisa que ele pu-
desse estragar, tudo o que fazíamosera colocá-la fora
do seu alcance.”
“É a coisa mais sensata a fazer.”
(Falando ao mesmo tempo) “Essas eram sempre
“não”. O resto não era. De modo que, quando você
DIZER “NÃO” 39

dizia um novo “não” paraalgo que você sabia que, por


alguma razão, a criança não entendia, ela não se im-
portava.”
“Eu também comecei assim com o meu, com o
mesmo êxito.””

DWW
Somos aqui informados sobre a capacidade de
uma mãe de adaptação à necessidade do bebê de uma
iniciação sem complicações a algo que deve necessa-
riamente ir ficando cada vez mais complexo. O bebê
tinha dois “'nãos”” no começo, e depois outros foram
adicionados, sem dúvida, e não ocorreu uma desne-
cessária barafunda.
Recordemos, agora, o modo como uma palavra
foi usada antes que a explicação pudesse ser dada em
palavras. Neste fragmento, a palavra “quente” coloca-
nos exatamente entre as etapas dois e três, como as
chamei.

MÃES
“Mesmoao ponto de queimarem literalmente os
dedos?”
“Não sei... suponho que é um pouco duro, mas
se puderem chegar bem perto para se darem conta de
que está quente e poderia ser uma coisa muito doloro-
sa, tanto mais que podem aprender de outras coisas
o que é o calor...”
“Sim, eu tive sorte: o meu filho tocou certa vez
no secador de toalhas, que estava quente, ele se quei-
mou e eu disse: “Quente.” ”
“O meu segundo filho faz alguma coisa, se ma-
chuca e percebe, ou eu presumo que percebe, por que
40 CONVERSANDO COM OSPAIS

se machucou; mas no dia seguinte está disposto a fa-


zer exatamente a mesma coisa.”
“Estou certa de que é uma questão de tempera-
mento. A minha primeira filha estava com uns 18 me-
ses quando meteu na boca uma porção de bacon quen-
te, e eu disse “quente”, e daí em diante creio que nunca
mais voltou a queimar-se. Ela sabe o que é “quente”,
e tem não só muita imaginação mas também muito me-
do disso. Mas a minha segunda filha é muito diferen-
te. Enchia repetidas vezes a boca de bacon quente.”
“Há certas coisas que elas não podem fazer, mes-
mo que não lhes causem exatamente qualquer dano.
Como o acendedor automático de uma boca de fogão
a gás. Tudo o que o meu filho tem de fazer é girar
o botão para acender o gás. Bem, isso não lhe faz ne-
nhum mal, mas pode causar um tremendo de um pre-
juízo se houver qualquer coisa colocada sobre o fo-
gão. Ele sabe muito bem que não deve acender o gás
e fica sacudindo negativamente a cabeça enquanto o
faz.” (Risos)
“Não seria esse o momento oportuno para uma
boa palmada?”

DWW
«.. Bem, talvez fosse. Pelo modo como essas mães
falam, pode-se perceber queé na vivência de momen-
to a momento que todo o trabalho importanteé feito.
Não há lições nem prazo estabelecido para aprender.
A lição chega com o modo como as pessoas envolvi-
das se descobrem reagindo.
Quero repetir, porém, que nada absolve a mãe
de bebês e crianças pequenas de sua tarefa de eterna
vigilância.
DIZER “NÃO” 41

MÃES
“Está certo, quando você volta para casa das com-
pras, a criança apanha o saco de arroz — se você im-
prudentemente tiver deixado ao seu alcance — e der-
rama-o pelo chão todo.” (Risos) “A criança não foi
levada, você é que foi estúpida. Quer dizer, quando
a minhafilha faz isso, eu percebo que quanto mais de-
pressa voltarmos para a caixa de areia, onde ela pode
— vocês sabem — derramar tudo o que quiser, me-
lhor será para nós.”

DWW
Sim, foi culpa dela se o arroz foi todo derramado,
sem dúvida! Mas conjeturo que, mesmo assim, ela fi-
cou muito irritada! Às vezes, é apenas uma questão de
arquitetura, o modo como os vários cômodos da casa
estão dispostos ou a colocação de um painel de vidro na
porta entre a cozinha e o quarto debrincar das crianças.

MÃES
“Nós somosunsfelizardos. A nossa sala de jan-
tar tem uma porta de comunicação com a cozinhae as
crianças têm a sala de jantar como uma espécie de lo-
cal para brincar, e tento mantê-las aí. Mas não fecho
a porta. Desde que saibam que eu estou na peça ao la-
do e que podem mever se assim quiserem, elas perma-
necem quase sempre na sala de jantar.”
“Com que idade?”
“Oh, desde muito cedo, logo que saíram do cer-
cado, a partir de um ano, mais ou menos. Vêm até a
porta para me espiar e depois voltam para a sala com
seus brinquedos.”
42 CONVERSANDO COM OS PAIS

DWW
Sim, ela teve sorte, não é verdade, com o modo
como sua casa estava dividida?
E depois ouvimos falar da tensão quea eterna vi-
gilância causa nas mães. Isso é especialmente verda-
deiro, penso eu, quando a mulher, antes de casar, ti-
nha um emprego regular, de modo que ela conhecia
a satisfação que a maioria dos homens sentem em seu
trabalho, a de poderem concentrar-se no que fazem e
depois voltar para casa e relaxar. Não é o mundo um
pouco injusto com as mulheresa esse respeito? Ouça-
mos o que o grupo tem a dizer sobre isso.

MÃES
“Vocês não acham que estar constantemente de
sobreaviso, ter de inventar distrações, e lembrar-lhes
que não podem fazer isto ou aquilo, não é uma coisa
sumamente cansativa?”
“Sim.” (Falando a um tempo).
““Somado ao que é uma questão de oportunida-
de. E de falta de tempo. Você está tentando fazer mui-
tas coisas ao mesmo tempo, está cozinhando, talvez
esteja fervendo fraldas, alguém bate na porta da fren-
te e você se volta de repente e surpreende o seu garoto
brincando com a torneira do gás, ou tentando enfiar
na tomada um fioelétrico que esquecemos de guardar
na noite anterior. Esse é o gênero de coisas que ocor-
rem... não dá para pensar de antemão em tudo.”

DWW
Não, certamente que não dá. Felizmente, a eter-
na vigilância não é eterna, ainda que o pareça. Dura
apenas por um tempo limitado para cada criança. Lo-
go começaa dar os primeiros passos, já está indo para
DIZER “NÃO” 43

a escola, e a vigilância passa entãoa ser dividida com


as professoras. Contudo, ''não”” continua sendo uma
palavra importante no vocabulário dos pais, e proibir
continua sendo uma parte do que mãese pais se vêem
constantemente fazendo até que cada filho, à sua pró-
pria maneira, se emancipe do controle parental e esta-
beleça um modo pessoal de vida e de existência.
Mashá algumascoisas importantes nessa discus-
são a que eu ainda não tive tempo de referir-me, de
modoque fico contente por ter a oportunidade de con-
tinuar na próxima semana.

HI

Esta semana continuarei examinando o dizer


“não” no relacionamento dos pais com seus bebês e
crianças. Procederei como antes e falarei acerca de três
etapas, porque esse é um modo conveniente de abor-
dar e desenvolver o tema de quando e como dizer
“não” e por quê. Quero descrever de novoastrês eta-
pas mas numa linguagem algo diferente, de modo que
não importa se não ouviram a palestra da semana pas-
sada ou se esqueceram tudo a respeito.
Disse dessas três etapas que se sobrepõem parcial-
mente. A etapa um não termina quandoa etapa dois
começa, e assim por diante. A etapa um tem lugar an-
tes que você diga não; o bebê ainda não entende, e vo-
cê tem o controle absoluto, e deve tê-lo. Você assume
plena responsabilidade, uma responsabilidade que vai
diminuindo mas só termina quando o filho atingiu a
idade adulta, quer dizer, quando acabou a necessida-
de dos controles que a família fornece.
44 CONVERSANDO COM OS PAIS

Isso a que chamo a primeira etapa pertence real-


mente à atitude parental, e o pai (se ele existe e se está
por perto) em breve participa na estruturação e manu-
tenção dessa atitude parental. Falarei mais adiante das
duas etapas seguintes; elas estão relacionadas com pa-
lavras e a primeira etapa nada tem a ver com palavras.
Assim, no começo, a mãe, em breve ambosos pais, pas-
sam a incumbir-se da tarefa de impedir quecoisasines-
peradas aconteçam. Podem fazer isso deliberadamen-
te, mas isso acontece principalmente quase que em seus
próprios corpos; é todo um modo de comportamento
quereflete umaatitude mental. O bebê sente-se seguro
e absorve a confiança da mãe em si mesma, como se
estivesse ingerindoleite. Durante todo esse tempo os
pais estão dizendo “não”, estão dizendo “não” ao
mundo, dizem ''não”, não se aproxime, fique fora do
nosso círculo; no nosso círculo está a coisa que é obje-
to do nosso desvelo e não permitimos que nada ultra-
passe essa barreira. Se um dos paisfica assustado, en-
tão algo cruzou a barreira e faz mal à criança, tanto
quanto se um ruído terrível a tivesse penetrado e pro-
vocado no bebê uma sensação insuportável. Durante
os bombardeios aéreos, os bebês não tinham medo do
estrondo das bombas mas eram imediatamente afeta-
dos quando as mães entravam em pânico. Mas a maio-
ria das crianças pequenas supera os primeiros meses de
vida sem nuncater sofrido algo dessa ordem, e quando
finalmente o mundo tem de atravessar as barreiras, a
criança em crescimento já começou a desenvolver seus
métodos para lidar com o inesperadoe é até capaz de
começar a prevê-lo. Poderíamosfalar sobre as várias
defesas quea criança em desenvolvimento adquire, mas
isso seria toda uma outra discussão.
DIZER “NÃO” 45

Dessa primeira etapa, na qual os pais se supõem


responsáveis, resulta o sentimento de responsabilida-
de parental — aquilo que distingue os pais dos filhos
e talvez torne sem sentido o jogo que algumas pessoas
gostam de jogar, por meio do qual mãee pai esperam
ser apenas “bons camaradas”” de seus filhos. Mas as
mães têm de ser capazes, afinal, de começar a permi-
tir que suas crianças conheçam algo dos perigos con-
tra Os quais as protegem, e que também saibam que
espécie de comportamento afetaria o amor e as prefe-
rências maternas. Assim, as mães descobrem-se dizendo
“não”.
Podemos agora ver o início da segunda etapa,
quando em vez de dizer “'não” ao mundo em redor
a mãe diz “não” ao seu filho. Isso tem sido descrito
como a introdução do princípio de realidade mas não
importa que nome se lhe dê; a mãe com seu marido
apresentou gradualmente o bebê à realidade e a reali-
dade ao bebê. Uma das formasé através da proibição.
Ficarão contentes por ouvir-me dizer isto, que dizer
“não” é uma das formas, porque a proibição é ape-
nas uma de duas alternativas. A base de “não” é
“sim”. Existem bebês que foram criados na base do
“não”. Talvez a mãesinta que a segurança reside uni-
camente em assinalar inúmeras situações de perigo.
Mas é lamentável quando a criança tem de travar co-
nhecimento com o mundo desse modo. Uma grande
quantidade de bebês pode usar o outro método. Seu
mundo em expansão tem uma relação com o crescente
número de objetos e espécies de objetos a cujo respei-
to a mãe pode dizer “'sim””. O desenvolvimento da
criança, nesse caso, tem muito mais a ver com o que
a mãe permite do que com o que ela proíbe. “Sim”
46 CONVERSANDO COM OS PAIS

forma o background ao qual o “não” é adicionado.


Isso, é claro, não pode abranger inteiramente o que
tem de ser feito; é meramente uma questão de saber
se a criança está se desenvolvendo de acordo com uma
ou outra orientação principal. Os bebês podem ser su-
mamente desconfiados desde os primeiros dias, e de-
vo lembrar-lhes que há todo o tipo de bebês; mas a
maiorparte deles são capazes de confiar em suas mães,
por algum tempo, pelo menos. De um modo geral,
apanham coisas e alimentos que têm a aprovação da
mãe. Não é verdade que a primeira etapa é em seu to-
do um grande “sim”? É “sim” porque você nunca fal-
ta ao bebê, nunca o decepciona. Nunca se equivoca
realmente na sua tarefa geral. Isso é um grandee táci-
to “sim” e confere uma base sólida para a vida do be-
bê no mundo.
Sei que a coisa é mais complexa. A criança não
tardará muito em tornar-se agressiva e em desenvol-
ver idéias destrutivas, e é então natural que a fácil con-
fiança do bebê em sua mãesofra alterações, e que ela,
por vezes, não se sinta nada amistosa em seu trato com
ele, embora sua personalidade permaneça a mesma.
Masnão precisamoslidar aqui com esse gênero de com-
plicação, pois temos muito sobre que refletir quando
nos damosconta da rapidez com que o mundo se tor-
na complexo na realidade, na realidade externa. Por
exemplo, a mãe tem um conjunto de “não faça”, a
avó prestimosa tem um outro, ou pode haver ainda
umababá. Além disso, as mães não são cientistas; ali-
mentam toda a espécie de crenças que não poderiam
ser provadas. É possível encontrar uma mãe que, por
exemplo, teme que qualquer coisa verde seja veneno-
sa e que, portanto, não deve ser levada à boca. Ora,
DIZER “NÃO” 47

como vai um bebê saber que um objeto verde é vene-


noso e um amarelo é encantador? E se o bebêfor dal-
tônico? Conheço um bebê que foi cuidado por duas
pessoas, uma canhota e a outra manidestra, e isso era
demais. De modo que podemosesperar complicações
mas, Seja comofor, as crianças pequenas superam-nas
e ingressam na terceira etapa de explicação; elas po-
dem então começara reunir sabedoria extraída do re-
pertório de nossos conhecimentos; podem aprender o
que pensamos que sabemos, e o melhor de tudo é que
estão agora muito perto de serem capazes de discor-
dar das razões que damos.
Para recapitular o queestive expondo, no princí-
pio é uma questão de cuidado materno e dependência
do bebê, algo como fé. Depois é uma questão de mo-
ral; a versão de moralidade da mãe subsiste até que
a criança desenvolva uma moralidade pessoal. E de-
pois, com as explicações, existe finalmente uma base
para a compreensão, e compreensão é ciência e filoso-
fia. Não é interessante vislumbrar os primórdios de
grandes coisas como essas já nessa fase inicial?
Umapalavra mais acerca do “'não”” de uma mãe.
Não é esse o primeiro sinal de pai? Em parte, os pais
são como mães e podem ficar tomandoconta do bebê
e fazer todo o gênero de coisas como uma mulher. Mas
como pais parece-me queeles aparecem pela primeira
vez no horizonte do bebê como aquele aspecto inflexi-
vel na mãe que a habilita a dizer “não” e a sustentar
a negativa com firmeza. Gradualmente, e comsorte,
esse princípio do “não” passa a estar consubstancia-
do no próprio homem, o Papai, que passa a ser ama-
do e poderá aplicar a ocasional palmada sem perder
nada. Mas ele tem de merecer o direito a dar palma-
48 CONVERSANDO COM OSPAIS

das se pretender dá-las, e para adquirir esse direito de-


verá fazer coisas como ter uma presença assídua no lar
e não estar do lado da criança contra a mãe. No co-
meço, vocês podem não gostar da idéia de consubs-
tanciar o “não”; mas talvez aceitem o que pretendo
dizer quando lembro queas crianças pequenas gostam
quese lhes diga “não”. Elas não gostam de lidar sem-
pre com coisas amenas e macias; também gostam de
pedras, paus e chão duro, e gostam quese lhes diga
quando devem cair fora, tanto quanto de serem mi-
madas.
CAPÍTULO 5
CIÚME

Quatro palestras radiofônicas na BBC, transmitidas


em 15, 22 e 29 de fevereiro e 7 de março de 1960

O que é que vocês pensam a respeito de ciúme?


É bom ou mau? Normal ou anormal? Seria uma boa
idéia, enquanto estiverem ouvindo a discussão que se
seguirá entre mães de crianças pequenas, manter pre-
sente no espírito essa questão, sempre que for descrita
alguma manifestação de ciúme. É isso o que se deve
esperar, ou há algo errado em algum ponto? Penso que
a resposta tem de ser complexa mas não há nenhuma
vantagem em fazê-la mais complexa do que precisa ser,
de modo que, em primeiro lugar, selecionem partes da
discussão que constituam mais ou menos o gênero de
coisas que ocorrem em todos os lares. Não me impor-
to de adiantar que, na minha opinião, o ciúme é nor-
mal e saudável. O ciúme decorre do fato de que as
crianças amam. Se elas não têm capacidade para amar,
então não revelam ciúme. Mais adiante, teremos de
abordar os aspectos menos saudáveis do ciúme, em es-
pecial a espécie encoberta. Penso que vocês verão que
5o CONVERSANDO COM OS PAIS

nas histórias que essas mães nos contam o ciúme tem


um desfecho natural, embora possa, talvez, ressurgir
e desaparecer de novo. Finalmente, as crianças saudá-
veis tornam-se capazes de dizer que sentem ciúme, o
que lhes dá uma oportunidade de discutir do que é que
estão ciumentas, e isso poderá ajudar um pouco. Es-
tou apresentando a idéia de que a primeira coisa a ser
dita acerca do ciúme é que representa uma realização
no desenvolvimento da criança pequena, indicando sua
capacidade de amar.
Novas realizações habilitam a criança a tolerar ser
ciumenta. Os primeiros ciúmes manifestam-se usual-
mente em torno da chegada de um novo bebê, mas
sabe-se que o ciúme não é evitado pelo fato de existir
somente uma criança na família. Qualquer coisa que
absorva a atenção e o tempo da mãe pode provocar
ciúme, tanto quanto a chegada de um irmãozinho.
Creio realmente que as crianças que conheceram ciú-
me e se conciliaram com ele enriqueceram-se com tal
experiência. Isso é o que eu penso, e sugiro agora que
ouçam algumas mães respondendo a perguntas e fa-
lando sobre ciúme.

MÃES
“Sra. S., sei que teve oito filhos. Algum deles te-
ve ciúmes de outro?”
“Dois ou três deles tiveram. O primeiro bebêti-
nha quinze meses quando nasceu o segundo. Eu esta-
va amamentando o bebê quandotinha por volta de três
semanase o irmão veio afagar-lhe o cabelo e disse “ba-
ba” num tom tão carinhoso que eu comentei, “Sim, não
é uma doçura?” e no instante seguinte a voz mudara,
a expressão mudara, deu-lhe um tapa na cabeça dis-
CIÚME 51

se “ba-ba”, e comecei a pensar que ele nãosesentia na-


da feliz a respeito do novo bebê. E, uma semana mais
tarde, estava eu pondo o chapéu para sair e algo me
fez olhar para a janela, e o bebê estava prestes a ser
jogado no caminho, de modo quealterei prontamente
todo o esquema, colocando-o de volta no seu antigo
lugar e pondo o bebê no cercado. Fiz isso com todos
eles, e concluí que não há mais problemas com o car-
rinho, eles não gostam que os tiremos dele. E o pri-
mogênito fazia cenas, chorava uma barbaridadee es-
perneava, e penso que era por causa do bebê.”
“Ainda é ciumento?”
“Absolutamente. Superou isso por completo. Co-
mo irmão mais velho, sente-se agora muito orgulhoso
de todos os outros, mas durante uma certa épocafoi,
sim.
“Sra. L., O que aconteceu com os seus três?”
“Bem, o mais velho estava com dois anos quan-
do seu irmão nasceu, e três anos e meio quando nas-
ceu a irmã. Era uma criança fácil de tratar e feliz, e
ao ver pela primeira vez o irmãozinho nãolhe prestou
a mínimaatenção. Tentamos prepará-lo para esse even-
to mas ele, simplesmente, não entendeu.”
“Não, era um tanto pequeno, suponho.”
“Pequeno demais para entender. E sua indiferença
durou uma semana ou duas, e então chegou o dia em
que viu o bebê no carrinho ondeele próprio já não an-
dava há muitos meses porque crescera muito e estava
grande demais para isso, mas chorou amargamente.””
“Que idade tinha o bebê então?”
“Oh, umas três ou quatro semanas, e chorou
amargamente, e esse foi o começo de tudo, acho eu.
E depois disso, toda vez que o bebê era trocado, ele
52 CONVERSANDO COM OS PAIS

ficava instantaneamente molhado ousujo, e levou mui-


to tempo para melhorar. E só quando ficou mais ve-
lho e entendeu é que melhorou a esse respeito.”
“O que aconteceu quando nasceu a irmã?”
““Tratou-a sempre com grande amore carinho, as-
sim como o segundo menino.”
“Não houve assim alguma recaída de nenhum de-
les?”
“Não. Mas o mais velho tornou-se mais tarde
agressivo quando o irmão começoua sentar-se e a pres-
tar atenção às coisas.”
“Acha que era um sinal de ciúme?”
“Ah, sim, sem dúvida nenhuma. Um dia encon-
trei-o tentando sufocar o bebê no carrinho, e estava
extremamente rancoroso com ele. E receio ter tomado
represálias, por vezes, em defesa do bebê, porque não
podia suportar aquilo. Mas não creio que fosse uma
boa coisa. Isso em nada contribuiu para melhorar a
situação.”

DWW
Essas parecem-meser questões familiares cotidia-
nas. Lembro-lhesas idades das crianças, porque a idade
faz muita diferença. O menino que afagou o cabelo
do bebê enquanto este era amamentado e depois ten-
tou jogá-lo pela janela para o caminhotinha 15 meses
quando o bebê nasceu. E depois havia o de dois anos
que pareceu inicialmente indiferente. Tinham dito o
que esperar mas talvez não pudesse entender. Foi três
semanas após o nascimento do irmão, quando o viu
no carrinho que já fora dele, que chorou amargamen-
te. Superou a crise de pranto com a ajuda compassiva
da mãe mas, quando o irmão começou a sentar-se e
CIÚME 53

a observar as coisas à sua volta, tornou-se agressivo


e rancoroso, ao ponto de, numa ocasião, tentar sufo-
car o bebê, no carrinho. Só por volta dos quatro anos
é que passou a adotar uma atitude mais amistosa. Nem
ele nem o seu irmão sentiram ciúmes da irmãzinha. Eis
um pouco mais da discussão das mães:

MÃES
“Sra. T., o que nos conta a respeito de ciúmes en-
tre os seus sete?”
“Bem, a única ciumeira que descobri foi entre as
meninas.”
“Quantas filhas tem?”
“Só duas... o mais velho é um rapaz, depois vem
uma menina, depois quatro rapazes e finalmente a ou-
tra menina. Jean costumava perguntar repetidamente
“Podemos ter um bebê que seja menina?” Toda a vez
que o bebê era homem, ela ficava amuada por um dia
ou dois, mas logo desanuviava. Bem, aí aconteceu que
ela voltou da escola um dia e descobriu que tinha em
casa mais um bebê... uma menina. No começo, pare-
ceu profundamente excitada. O problema é que eu ti-
ve o bebê no dia 10. O sétimo aniversário de Jean era
no dia 16... e não houvefesta, eu não estava em con-
dições. Assim, durante cerca de um mês, Jean voltava
à tardinha da escola, tomava seu chá e corria direto
para a cama, lavada em lágrimas. Não conseguíamos
ajudá-la, ela não escutava, mas pensei que ela tivesse
superadoisso, entendem — pensei tê-la convencido a
mudar deatitude. Mas o bebê amanheceu ontem doen-
te, meti-a na camae disse a Jean, no tom mais inocen-
te possível, “Jean, importa-se de ir buscar uma cami-
54 CONVERSANDO COM OSPAIS

sola de dormir para Patrícia?” E Jean voltou-meas cos-


tas e disse: “Não, por que eu? Ela que vá e apanhe a
camisola — já é suficientemente grande.”
“Continuou ciumenta?”
“Sim, parece que sim. Mas tudoficara muito tran-
quilo desde que Patrícia completou seis semanas. Ela
está agora com dois anos, e a coisa reapareceu de sú-
bito. Só posso esperar sermos capazesde liquidar agora
com isso de novo.
“Jean não sente ciúmes dos irmãos?”
“Nenhum.”

DWW
Foi uma semana antes do sétimo aniversário de
Jean que nasceu sua irmãzinha, e quando teve de re-
nunciar à sua festa de aniversário tornou-se violenta-
mente ciumenta. A primeira crise de ciúme durou seis
semanas, e tudo recomeçou quandoela tinha nove anos
e sua irmã dois. Jean não se importara com a chegada
de quatro irmãos homens nessa família de sete e, de
fato, sempre pedira uma irmã. Suponho que a irmã
que realmente teve não é necessariamente a mesma por
que tanto ansiava.
Ouçamos agora mais uma história:

MÃES
“Sra. G., O que nos conta dos seus? Tiveram de
haver-se com ciúmes?”
“Sim, tivemos. A minha menina, que está com
quatro anos e meio, estava completando os três anos
quando nasceu o menino, e ela ficou muito excitada
por ter um irmãozinho ou, de qualquer modo, por ter
um bebê. Mas verificamos quase desde o primeiro dia
CIÚME 55

que se o bebê estava comigo ela tinha de ir sentar-se


nos joelhos do meu marido ou vice-versa; queria que
ficasse lendo para ela enquanto amamentava o bebê
ou, pelo menos, ficar sentada ao meu lado.”
“E isso funcionou?”
“Sim, funcionou. A fase ciumenta dissipou-se e
tudo ficou trangúilo até que o seu irmãozinhoestava...
deixa ver, sim, creio que estava mais ou menos com
um ano, quandojá se punha de pé no cercado, e tiv
mos então um problema e tanto por causa dos brin-
quedos. Levei os brinquedos de bebê que tinham sido
dela para o cercado do irmão e, é claro, ela os reco-
nheceu e “Este é meu, este é meu, este é meu”. E foi
todo aquele negócio de voltar a brincar com os seus
antigos brinquedos de bebê, e concluí queteria de ad-
quirir mais alguns brinquedos que fossem exclusiva-
mente dele, caso contrário não teríamos mais sossego.”
“E ela não quis brincar com esses?”
“Não, não, não tocava nos do irmão, mas se o
via brincar com os dela, mesmo que não os tivesse to-
cado por mais de dois anos, queria-os de volta. De-
pois, isso também se dissipou sem que acontecesse qual-
quer coisa muito violenta. Agora ele está com dezoito
meses e a coisa está recomeçando, uma vez mais, des-
ta vez porque ele não pára um minuto e vai apanhar
as coisas da irmã.”
“*... lutas pela supremacia em torno dos brinque-
dos?”
“Sim, de fato. Ela arruma todasas suas coisas —
estou sempre dizendo-lhe, “Ponha-as em cima da me-
sa, ondeele não as alcance”, mas ela insiste em deixá-
las um pouco mais embaixo e, mal volta as costas, ele
chega e começa a espalhá-las pela casa toda. Ela fica
56 CONVERSANDO COM OS PAIS

realmente umafera... mas a verdade é que é muito pa-


ciente com o irmão.”

DWW
Essa menina estava perto dos três anos quando seu
irmão nasceu. Ficou excitada com o evento massentiu-
se deslocada pelo bebê quando este estava realmente
no colo da mãe e ela tinha então de procurar o do pai.
Quando o bebê tinha um ano de idade e ela quatro,
a menina começou a irritar-se com a pretensão do ir-
mão a apossar-se dos brinquedos dela. Mesmo daque-
les brinquedos pelos quais ela parecia já estar desinte-
ressada há muito tempo. Notaram queela colocava seus
brinquedos onde o bebê pudesse alcançá-los? A mãe
diz que ela é muito paciente com o irmão a maior par-
te do tempo, e fiquei com a impressão de queela real-
mente gosta que o menino lhe tomeos brinquedos, em-
bora proteste; talvez sinta tanto do ponto de vista dele
como do seu.
Agora que ouviram todas essas histórias, sentem
como eu que esses ciúmes fazem parte da vida fami-
liar saudável?

Tenho feito para mim mesmo a pergunta: como


e quando o ciúme começa? E o que é que tem de exis-
tir antes que as palavras ciúme ou inveja possam co-
meçara ser usadase a fazer sentido? Incluo a palavra
inveja porque ciúme e inveja estão intimamente liga-
das, pois uma criança que sente ciúme de um novo be-
bê inveja-o por monopolizar as atenções da mãe. No-
CIÚME 7

tei que essas mães queestiveram falando respeito de


seus bebês não se referiram ao ciúme em qualquer
criança de menos de quinze meses. O que é que vocês
teriam a dizer sobre isso? Penso que evidências de ciú-
me ou inveja poderiam ser detectadas antes dos quin-
ze meses, mas não muito mais cedo. Aos nove meses,
por exemplo, um bebê seria demasiado jovem, dema-
siado imaturo como pessoa para ser ciumento. Com
um ano, provavelmente não; possivelmente numa oca-
sião ou outra; mas aos quinze meses com certeza que
sim. Gradualmente, à medida que as crianças vão fi-
cando mais velhas, o ciúme também passa a envolver
coisas mais complexas mas, no começo, é bastante 6b-
vio que se refere a um relacionamento que foi pertur-
bado, ou envolve a ameaça a uma posse que represen-
ta ou simboliza uma relação. É a relação com a mãe
que está na base do ciúme, e este acabará incluindo
a relação com o pai como passar do tempo. Concluí-
mos que muitos dos mais remotos ciúmes são obvia-
mente acerca da mãe, e gravitam com frequência em
torno da amamentação. Isso se dá porque para o be-
bê, nos primeiros tempos de vida, a amamentação é
algo muito vital. Para a mãe, a amamentação é ape-
nas uma das muitascoisas que ela faz para o seu bebê,
embora isso também seja muito importante para ela.
Eis uma parte da discussão entre algumas das mães.

MÃES
“Há umadiferença de vinte e dois mesesentreeles
e quando nasceu o segundo — tive o segundo em casa
— e o meu filho pequeno viu o bebê apenas com al-
guns minutos de vida tudo correu mais ou menos bem
58 CONVERSANDO COM OS PAIS

durante vários dias. Depois, aconteceu de ele me ver


amamentando o irmãozinho e a partir desse momen-
to, durante um bom par de meses, ele se punha de pé
e chorava aos gritos toda vez que eu amamentava o
bebê, e não havia nada que o fizesse calar. Tentei tu-
do para acalmá-lo, consolava-o o melhor que podia,
mas é muito difícil quando se está amamentando uma
criança, e ele ficava simplesmente de pé, à nossa fren-
te, gritando a plenos pulmões. Mas após dois meses
ele superou isto e parecia ter superado por completo
a sua ciumeira, mas quando o meu segundo filho co-
meçou a sentar, entre os sete e oito meses, tivemos a
mesma cena de novo do mais velho, não de gritaria
mas de ciúme.”
“Sim, a minha filha era um pouco menor; devo
dizer que acho muito curioso que não usasse mama-
deira já fazia... ah, já fazia tempo... e ela nem sabia
mais como mamar. Fiquei aturdida porque ela se acer-
cou e... quando eu estava amamentando o bebê, ela
também quis tentar, e aí eu pensei está bem... mas, as-
sim que se aproximou como quesentiu uma espécie de
repugnância. Eu pensei, tudo bem, mamese quiser, ve-
jamos o que acontece... e ela avançou várias vezes...
fez isso recentemente mas como umaespécie de grace-
jo, de brincadeira. Nunca a repeli. Dizia-lhe, “venha
cá, experimenta...” e ela não queria. Mas voltou ago-
ra à mamadeira, porque o bebê também passou agora
para a mamadeira, e aí eu lhe dei uma mamadeira ri-
dícula, coitadinha, uma coisa muito pequena apenas
como uma espécie de símbolo, entendem.”
“A minha filha mais velha senta-se no meu colo
enquanto o bebê está mamando, assim vocês podem
CIÚME 59

imaginar que bagunça. (Risos) Ela adora isso, dá pal-


madinhas na cabeça do bebê e o acaricia... mas está
agora apenas com dezessete meses, de modo quea si-
tuação é um tanto diferente.”
“Tivemos umacrise de ciúmes com os dois mais
velhos, não com o segundo e o terceiro; mas os dois
primeiros, a menina, que é a mais velha, quando che-
gou o segundo, ela queria ficar no colo do meu mari-
do, ou queria ter algo muito especial, ou queria que
eu lesse para ela enquanto estava amamentando o be-
bê e coisas desse gênero, depois essa fase desvaneceu-
se e agora o menino está com dezessete meses e temos
aquelas guerras horríveis. Seja o que for que um tem,
o outro quer, e o menino agora — é claro, houve um
período em que ela podia tomar tudo dele, ela é três
anos mais velha — mas agora ele já não larga aquilo
de que se apodera,e grita... não chora mas realmente
grita ferozmente para a irmã. Masosdois gostam muito
do bebê emseus gestos e tudo o mais, e nem um nem
outro parecem sentir ciúmes do caçula.”
“Isso, de fato, certamente não é ciúme, quando
eles apenas brigam pela posse de coisas...”
“É porque querem a minha atenção.”
“Oh, entendo.”
“Vejam só, um brinquedo de bebê que dou ao me-
nino — algo que a menina, ao crescer, tinha abando-
nado por completo —, só porque o entregueia ele, ela
imediatamente o quer também; e se em vez de dar o
brinquedo ao menino deixá-lo simplesmente em cima
da mesa, onde ela poderia agarrá-lo se quisesse, nem
liga para ele.”
0 CONVERSANDO COM OS PAIS

DWW
Podem ver de tudo isso que muita coisa está re-
lacionada com as mamadas. Posso usar o último frag-
mento de conversa para ilustrar o que quero dizer.
Estou pensando na menina que, com frequência, é cla-
ramente ciumenta do segundo bebê, que era um meni-
no, e isso acabou por desaparecer. E depois ela e o me-
nino, que está agora com dezessete meses, têm aque-
las terríveis guerras em torno dos brinquedos. Mas é
diferente o modo como ela é ciumenta e o modo como
ele se defende e grita. Uma das mães disse: “Isso não
é ciúme. É apenas uma briga pela posse de coisas.”
E eu concordo, masé exatamente aí que podemos ob-
servar o modo como o ciúme se desenvolve. Digo que
existe uma idade certa para o ciúme. E quero afirmar
agora que após uma certa idade a criança é ciumenta
e antes dessa idade a criança está apenas agarrando-se
a algo que considera possessão sua. Primeiro, trata-se
de possuir, o ciúme vem depois.
Nãoposso deixar de me lembrar de uma agência
de teatros que faz sua publicidade com o seguinte sio-
gan: “Você quer os melhores lugares; nós os temos.”
Isso sempre me deixa terrivelmente ciumento e com
uma vontadeirresistível de sair correndo para obter os
lugares que quero e que eles têm. A única dificuldade
é que tenho de pagá-los. Usando isso como umailus-
tração, posso dizer que até umacerta idade umacriança
está proclamando o tempo todo: “Tenho a melhor das
mães” — não com estas palavras, claro. Finalmente,
chega o momento em que a criança pode proclamar:
“Tenho a melhor das mães... você a quer.” Esse é um
novo e doloroso desenvolvimento.
Para obter uma clara sequência de eventos, deve-
mos retroceder um pouco mais, porém. Há um perío-
CIÚME 61

do anterior àquele em que o bebê está, por assim di-


zer, proclamando: *“Tenho a melhor das mães.”” Nes-
sa fase anterior, esse fato da melhor mãe é assumido.
Não há lugar para publicidade. A mãe, e tudo o que
ela representa, constitui uma realidade incontestável
para o bebê. Depois vem: “Tenho a melhor das mães”,
e isso marca o alvorecer da compreensão do bebê de
que a mãe não é apenasparte doeu (self) do bebê, mas
queela chegaaté o bebê vinda de fora, ou poderá não
vir, e é possível que haja outras mães. Para o bebê,
a mãe converte-se agora numa possessão, tal que po-
de ser retida ou largada. Tudo isso tem de se desen-
volver na criança pequena, aquilo a que chamamos o
crescimento emocional. E depois vem a segunda me-
tade do slogan: “e você a quer”. Masisso ainda não
é ciúme, é uma questão de defesa de uma possessão.
A criança, nesta fase, aferra-se com unhas e dentes ao
que considera ser seu. Se o teatro fizesse isso, estaría-
mos impossibilitados de entrar no teatro. Finalmente,
chega o reconhecimento de que a possessão central, a
mãe, pode pertencer a outrem. A criança é agora uma
das pessoas que quere deixou de ser uma daquelas que
têm. É uma outra que tem. É quando ciúme torna-se
a palavra adequada para descrever as mudanças que
ocorrem numacriança quando um novo bebê aparece
como um fantasma de um eu (self) passado, maman-
do ou dormindo pacificamente no carrinho.
Repetirei o que disse. Referi-me aos primeiros tem-
pos da infância, nos quais tudo o que é desejável faz
parte do eu (self), ou aparece comocriado pela pró-
pria necessidade do bebê. As idas e vindas são vistas
com naturalidade pelo bebê. A coisa ou pessoa que é
amada torna-se, em seguida, parte de um mundo ex-
62 CONVERSANDO COM OS PAIS

terior à criança, e é uma possessão a ser mantida ou


perdida. Qualquer ameaça de perda de propriedade ge-
ra aflição e um obstinado apego ao objeto. Com o de-
correr do tempo e a continuação do desenvolvimento,
a criança passa a ser quem ameaça, quem detesta qual-
quer coisa nova que se apresente para reclamar a aten-
ção da mãe — como um novo bebê ou talvez apenas
o livro que ela está lendo. Pode-se agora dizer que che-
gou o ciúme. A criança inveja o novo bebê ou o livro,
e realiza todos os esforços a fim de recuperar a posi-
ção perdida, ainda que seja apenas por pouco tempo
ou numa formasimbólica. Assim, nos primórdios do
ciúme é comum vermoscrianças tentando reintegrar-
se no papel de bebês, mesmo que apenas de uma certa
maneira ou por pouco tempo. Podem até querer revi-
ver a experiência da amamentação. Mas comumente
anseiam por ser apenas tratados como eram quando
dispunham da posse plena e total, quando eram os úni-
cos que tinham e não conheciam ninguém que nãoti-
nha mas queria. Recordem a discussão, no programa
da semana passada, do caso da criança que começou
a molhar-se de novo, e acabaram de ouvir falar a res-
peito da criança mais velha a quem a mãe deu uma pe-
quena mamadeira simbólica, como ela disse.
Quando pensamos em tudo o que ocorre na crian-
ça pequena enquantoos dias e as semanas passam, po-
demos facilmente ver por que há a necessidade de um
ambiente confiável, e isso é justamente o que, melhor
do que ninguém, você pode dar aoseu filho. Quantas
vezes vocês se perguntam se determinadaatitude ou de-
cisão está certa ou errada. Mas é mais interessante ver
as coisas em termos do crescimento e desenvolvimen-
to da criança.
CIÚME 63

HI

Ashistórias contadas ao longo da discussão mos-


tram que o ciúme tende a desaparecer, e quero exami-
nar como isso acontece. O que acontece depende do
desenvolvimento que está ocorrendo o tempo todo na
criança. Penso que gostam de saber que espécie de coi-
sas se passam na criança, apenas por uma questão de
interesse. Quando as coisas correm mal, como deve
acontecer de tempos em tempos, vocês ficam em des-
vantagem se agirem às cegas. Se souberem o que está
acontecendo, tornar-se-ão menossensíveis a críticas e
a comentários casuais de transeuntes.
Quero falar de três modos comoas coisas que se
passam na criança permitem que o ciúme termine. O
primeiro modoé este. Ciúme é o que observamos quan-
do a criança se encontra em estado de conflito agudo.
Poderia ser apenas ansiedade, exceto pelo fato de que
a criança sabe do quesetrata. A criança ciumenta es-
tá realmente sentindo amor e ódio, ambos ao mesmo
tempo, e isso é horrível. Pensemos na criança. No co-
meço, talvez, até para a criança poderá parecer muito
bonito ver o novo bebê sendo amamentado ou cuida-
do. Gradualmente, porém, dá-se conta de que não é
ela mas um outro que está ali, e o amor da mãe pro-
duz extrema raiva, raiva do novo bebê, da mãe ou do
mundointeiro. Durante algum tempo, a criança só co-
nhece a raiva, parte da qual é expressa. A criança gri-
ta; talvez esperneie e desfira pontapés; ou agrida; ou
provoque a maior confusão. Imaginativamente, tudo
é danificado, quebrado, destruído. Sem dúvida, aqui-
lo que produz o novo desenvolvimento é a sobrevivên-
cia do mundo, do bebê, da mãe. O novo desenvol-
64 CONVERSANDO COM OS PAIS

vimento consiste no reconhecimento pelo bebê dessa


sobrevivência. Esse é apenas mais um dos processos
mediante o qual a criança pequena começa a separar
a fantasia do fato concreto. Na imaginação da crian-
ça, o mundofoi destruído pela raiva, como por uma
bomba atômica, mas ele sobrevive e a atitude da mãe
permanece inalterada.
Portanto, é seguro destruir imaginativamente,
odiar. E com esse novo recurso para ajudá-la a crian-
ça torna-se apta a ficar satisfeita efetuando somente
um pouco da gritaria, dos golpes a esmo que, sem dú-
vida, seriam apropriados.
Em poucas semanas, o ciúme converte-se em al-
go diferente, a experiência de continuar amando, com
o amor complicado por idéias de destruição. O resul-
tado para nós, que estamos observando atentamente,
é vermos umacriança que está, por vezes, triste. É triste
amaralgo ou alguém e sonhar que o que se ama sofre
dano.
Alívio adicional resulta do fato de que nos sonhos
destrutivosa coisa a que se faz mal pode ser algo que
representa o bebê ou a mãe, talvez um gato, um cão
ou umacadeira. Junto com tristeza da criança ma-
nifesta-se um certo grau de preocupação com o bebê
ou com o que for o objeto do ciúme. Mas as mães sa-
bem que, no começo, não podem fiar-se no sentimen-
to de preocupação da criança porque, durante um certo
tempo, a preocupação converte-se com extrema facili-
dade num ataque ciumento e se ninguém estiver por
perto é causado um dano.
A meuver, o ponto principal aqui é que a vida
imaginativa começa a funcionare a oferecer à criança
alívio para a necessidade de ação direta, e isso propi-
CIÚME 65

cia tempo e oportunidade para os primórdios nacriança


de um senso de responsabilidade. O segundo modo
como penso que o ciúme podeser e é superadoé atra-
vés do crescente poder da criança para absorver expe-
riências satisfatórias e fazer delas parte integrante do
seu eu. Há uma progressiva acumulação de boas lem-
branças na criança, lembrançasde ter sido bem cuida-
da; lembranças de sensações agradáveis; de ser banha-
da; de gritar; ou de sorrir; de encontrarcoisas justa-
mente quando e onde eram esperadas, até melhores do
que poderiam ter sido esperadas. E há também um
acúmulo de lembranças de satisfações resultantes de
orgias de excitação, especialmente na esfera da ali-
mentação.
Todasessas coisas puderam ser somadase produ-
zir uma idéia de mãe, ou de mãee pai. Há uma razão
pela qual o ciúme, com certa frequência, não se mani-
festa em absoluto numa criança: é porque a criança
usufruiu tanto amore tantassatisfações que pode até
ser capaz de privar-se de um pouco de tudo isso a fa-
vor de outrem.
A terceira coisa é algo mais complicada. Relacio-
na-se com a capacidade da criança para viver através
das experiências de outros. Chamamosa isso pôr-se
na pele de outra pessoa. Masessa expressão parece um
pouco despropositada quando a outra pessoa é um bebê
sendo amamentado, ou banhado, ou deitado em seu
berço. Conseguem as crianças pequenas chegar a fa-
zer isso? Algumas levam muito tempo, até anos, antes
de se permitirem não só entender o ponto de vista da
outra pessoa mas realmente desfrutar uma parcela ex-
tra da vida que a outra pessoa está vivendo. É fácil ver
crianças — tanto meninos como meninas — identifi-
66 CONVERSANDO COM OSPAIS

carem-se com suas mães. Deixam que a mãe seja a mãe


real, ao mesmo tempo que brincam de estar no lugar
dela, imaginando-se na posição dela. Eis um fragmento
da discussão que ilustra isso:

MÃES
“Sra. G., O que nos diz sobre o novo bebê em sua
família?”
“Bem, nenhum deles — nenhum dos mais velhos
— deu mostras de ciúme em relação ao bebê, mas am-
bos se mostraram ciumentos um do outro a respeito
de acariciar ou ter nos braços o bebê.”
“Uma espécie de rivalidade?”
“Sim, rivalidade entre eles. Por exemplo, estou
sentada com o bebê nocolo e a menina acerca-se para
falar com ele. Imediatamente o menino, que está com
dezoito meses, vem correndoe tenta afastá-la com co-
toveladas, antes que a irmã tenha conseguido sequer
dar umaolhada no bebê. E partir desse ponto come-
ça uma espécie de duelo para decidir quem tem direito
a ficar com o bebê.”
“E você o que faz?”
“Bem, nessas ocasiões ponho um braço protetor
em torno do bebêe cuido de que os seus irmãosse afas-
tem o bastante para dar ao bebêsuficiente espaço pa-
ra respirar.”
“Isso é uma ocorrência comum?”
“Sim... creio que sim... Cada um puxa o bebê pa-
ra o seu lado. “É a minha vez de pegar no bebê” ou
“Agora é a vez dela”. O bebê é pequenino demais para
que eu possa confiá-lo aos irmãos, essa coisinha frágil
aconchegada no meu colo. Chegamos a um acordo em
que ambosse sentam perto de mim, um de cada lado,
CIÚME 67

e eu dou o bebê a um, embora sem o soltar por com-


pleto, e conto até dez: muito bem, agora é a vez do
outro. E uma boa idéia mas não funciona, realmente.”

DWW
Eis outro exemplo em que uma menina parece
identificar-se com seu irmãozinho.

MÃES
“A fase ciumenta dissipou-se e tudo ficou tran-
quilo até que o seu irmãozinhoestava... deixa ver, sim,
creio que estava mais ou menos com um ano, quando
já se punha de pé no cercado, e tivemos então um pro-
blema e tanto por causa dos brinquedos. Levei os brin-
quedos de bebê que tinham sido dela para o cercado
do irmão e, é claro, ela os reconheceu e “Este é meu,
este é meu, este é meu”. E foi todo aquele negócio de
voltar a brincar com os seus antigos brinquedosde be-
bê, e concluí que teria de adquirir mais alguns brin-
quedos que fossem exclusivamente dele, caso contrá-
rio não teríamos mais sossego.”
“E ela não quis brincar com esses?”
“Não, não, não tocava nos do irmão, mas se o
via brincar com os dela, mesmo que não ostivesse to-
cado por mais de dois anos, queria-os de volta. De-
pois, isso também se dissipou sem que acontecesse qual-
quer coisa muito violenta. Agoraele está com dezoito
mesese a coisa está recomeçando, uma vez mais, des-
ta vez porque ele não pára um minuto e vai apanhar
as coisas da irmã.”
“*,. Jutas pela supremacia em torno dos brinque-
dos?”
“Sim, de fato. Ela arruma todas as suas coisas —
estou sempre dizendo-lhe, “Ponha-as em cima da me-
68 CONVERSANDO COM OS PAIS

sa, onde ele não as alcance”, mas ela insiste em deixá-


las um pouco mais embaixo e, mal volta as costas, ele
chega e começa a espalhá-las pela casa toda. Ela fica
realmente uma fera...mas a verdade é que é muito pa-
ciente com o irmão.”

DWW
Quando usamosisso em nosso primeiro progra-
ma sobre o ciúme, eu disse: “Fiquei com a impressão
de que essa menina gosta realmente que o irmão lhe
tome os brinquedos, embora proteste.”” E acrescentei:
“Talvez ela sinta tanto do ponto de vista dele como
do seu.”” Grande enriquecimento provém da capaci-
dade de viver imaginativamente através da experiên-
cia de outrosse isso puder ser feito sem perda do sen-
so do que é estritamente a vivência do eu. Este é um
dos modos comoseinicia a atividade lúdica, e no jo-
go imaginativo não há limite para esse processo de se
identificar com pessoase coisas. A criança pode ser
um aspirador de pó ou um cavalo; pode ser umarai-
nha ou um princípe; ou pode ser o novo bebê; ou a
mãe que amamenta o bebê; ou o pai. Só poderemos
tornar uma criança capazde brincar se a protegermos,
tolerarmos e esperarmos, e por centenas de coisas que
fazemos sem pensar que assim estamos facilitando o
desenvolvimento da criança. Muito mais poderia ser
dito mas talvez isto seja suficiente para mostrar que
quando o ciúme desaparece é por causa do desenvol-
vimento que ocorreu na criança, possibilitado por uma
boa e sistemática atenção às suas necessidades.
CIÚME 69

Iv

Falei sobre o ciúme como coisa saudável e nor-


mal em crianças pequenas, algo quesignifica que elas
amam e que já fizeram considerável progresso em sua
jornada para longe da completa imaturidade com que
começaram. Também falei sobre alguns dos desenvol-
vimentos que, em cada criança, possibilitam a elimi-
nação do ciúme como traço dominante. Fiz questão
de dizer o tempo todo que esses desenvolvimentos no
bebêe na criança pequena não podem ocorrer de for-
masatisfatória sem algo que você pode fornecer, o re-
lacionamento estimulante em que a criança encontra
uma espécie importante de confiabilidade, aquela que
depende de você ser o que é.
A par dessa coisa geral que você fornece, há cer-
tas coisas especiais que você faz que são suscetíveis de
alterar profundamente umasituação. Por exemplo, aju-
dar o filho a predizer o que vai acontecer. Quando vo-
cê sabe que uma grande mudança deve ocorrerna vida
do seu filho pequeno, vocêtenta avisá-lo a esse respei-
to. Se acrescenta um novo alimento, dá-lo a provar e
depoisdeixa as coisas correrem, e o mais provável é que
o bebê não tarde em querer o novo alimento que você
tem pronto. Você procede analogamente quando está
certa de uma nova gravidez e de que mais um bebê vem
a caminho, e procura avisar seu filho pequeno sobre
o que vai acontecer. Você poderá pensar que deve ser
mais fácil se puder usar palavras, se puder explicar, mas
duvido que assim seja. Naturalmente, se a criança já
entende a linguagem, você explica em palavras e histó-
rias, e até com a ajuda de livros ilustrados. Seria en-
graçado se não fizesse isso. Mas o que mais importa
70 CONVERSANDO COM OS PAIS

é a sua atitude, e esta afeta a situação muito antes de


que a linguagem possaser usada. Se, por exemplo, uma
nova gravidez parece agradavelmente natural para a
mãe, esta podeir dando a saber aos poucos a seu filho
de um ano que existe uma razão pela qual sentar-se
ao colo dela não é exatamente a mesma coisa que era
antes. A criança pequena pressente que a mãe tem al-
go aí que é importante. Se você é uma pessoa que não
aceita facilmente o fato da gravidez e as mudanças que
ela acarreta (e é muito grande o númerode pessoas as-
sim), então um certo mistério se adensará, e a criança,
e a criança pequena, cuja vida está prestes a ser pro-
fundamente afetada pelo nascimento de um novo be-
bê, não estará preparada, de maneira nenhuma, quan-
do o novo bebê realmente chegar. É mais fácil quan-
do a criança afetada é um pouco mais velha. Escutem
Isto:

MÃES
“Eu estava muito ansiosa quando tive Roger. Eu
tinha duas filhas, de quatorze e treze anos, e queria
mais uma criança enquanto estava ainda em idade de
tê-la. Fiquei muito perplexa sobre o que fazer a tal res-
peito, de modo que resolvi falar com as meninase per-
guntei-lhes: “Como receberiam vocêsa idéia de eu ter
outro bebê?” E — o que é umacoisa meio estranha a
fazer, não é?, antes mesmo de conceber umacriança,
discutir o assunto com outros, mas achei que não era
má idéia. Elas ficaram excitadíssimas, acharam que era
uma coisa maravilhosa, e adoraram a perspectiva de
ter um bebê em casa. E assim decidimos todos que se-
ria um rapaz. E Susan, a minha filha mais nova, en-
tão de treze anos — Roger foi prematuro e eu disse
CIÚME Sp

à parteira que já tinha começado o trabalho de parto


— pedi que contasse a Susane, se ela quisesse, podia
ver o parto. E ela entrou saltitando antes de ir para
a escola, eu estava com as contraçõese disse: Bem —
respirando fundo e temendo correr o risco de impres-
sionar negativamente a menina para o resto da vida
— Bem, isto é um trabalho de parto e é como você de-
ve enfrentara situação.” Susan deu-me um beijo calo-
roso e disse: “Bem, calculo que isso ainda vai durar ho-
ras. Você sabe. Vejo-a depois da escola”... e saiu apres-
sada. Ela vai ter agora o seu próprio bebê no próximo
mês, e penso que está adorando a experiência. Eu di-
ria que Susan está bem preparada.”

DWW
Essa menina tinha treze anose, é claro, a mãefa-
lou com ela, mas penso que o que realmente contou
foi a atitude materna. E nocaso de filhos mais novos?
Crianças de um ou dois anos estão muito longe de en-
tender por que é que há 29 dias em fevereiro este ano,
e no entanto é muito possível para elas, não é verda-
de?, sentirem-se um pouco na posição de ser mãe de
um bebê. Estou falando a respeito de sentimentos e não
sobre a mente de uma criança. A maioria das crian-
ças, por volta de um ano de idade, têm algum objeto
que é muito especial para elas, que às vezes afagam
e embalam de um modo um tanto inábil, e é óbvio que
não vai tardar muito para que comecem a brincar de
mamãe e filhinho.
Eudisse que você ajudao seu filho pequeno pre-
dizer. Também faz outras coisas; por exemplo, pro-
cura ser justa, e isso é muito difícil; você pode apenas
72 CONVERSANDO COM OS PAIS

tentar. E pode esperar não ter um favorito; exceto, é


claro, o novo bebê no princípio, que precisa sentir que
tem você toda. Você e o pai da criança compartilham
a sua responsabilidade de todas as maneiras possíveis.
E é para o pai que a criança naturalmente se volta e
a quem recorre quando está descontente com a mãe
e com a nova preocupação dela. A maioria dos pais
gostaria de dar ajuda e muitos deles detestam tanto es-
tar fora trabalhando que acabam não tendo qualquer
utilidade prática.
E uma vez mais, de um modo geral, você não se
vê dando ao novo bebê aqueles objetos que são pre-
ciosospara os seus outros filhos pequenos, mas incen-
tiva cada bebê a começara reunir objetos e a especia-
lizar-se. Assim, emboraos principais desenvolvimentos
que estão ocorrendo na criança sejam possibilitados
porque ela confia em você, também há muitas coisas
que você podefazer para enfrentar momentos especiais
de tensão.
Vocês sabem, assim espero, que há intensos sen-
timentos envolvidos e que, de fato, as crianças peque-
nas não sentem as coisas menos do que nós. Pergunto-
mese não sentirão as coisas até mais do que nós. Nós,
adultos, podemos considerar-nos pessoas de sorte se
tivermos encontrado modos de permanecer emconta-
to com pelo menos parte da intensidade de experiên-
cia que pertence aos primeiros temposda infância. As
crianças pequenas não só sentem as coisas com supre-
ma intensidade mas também não conseguem se desviar
da coisa concreta que as está molestando. Elas ainda
não tiveram tempo para organizar métodos pessoais
para enfrentar ou para repelir sentimentos que são por
demais dolorosos, e é por isso que gritam; e é por isso
CIÚME 73

que faz tanta diferença quando você pode ajudar o seu


filho pequeno a predizer qualquer coisa que vai acon-
tecer fora do habitual.
No período de espera de um evento previsto, al-
guma disposição de defesas pode ser estabelecida no
interior da personalidade da criança. Algo parecido
com o que você vê na mesa da sala de jantar quando
seus filhos estão brincando com soldadinhose organi-
zando exércitos para defender ou atacar um forte. A
idéia de que os sentimentos de crianças pequenas são
muito intensos, e de que as ansiedades e conflitos são
deveras dolorosos para elas, a ponto de terem de or-
ganizar defesas internas contraeles, levam-me à últi-
ma coisa que desejo dizer nesta palestra acerca do ciú-
me. Refiro-me ao ciúme anormal. Acontece muitas ve-
zes que ascoisas estão correndo mal. Ou o ciúme não
cessa e continua como ciúmeclaro e aberto, ou então
passa a ficar encoberto e acaba distorcendo a perso-
nalidade infantil.
Nacriação dos filhos, não se ganha muito em que-
rer visar a perfeição. Muito do queestá errado corrige-
se com o tempo; ou corrige-se o suficiente para não
se mostrar. Mas algumas coisas não se consertam.
Quando eu disse e repeti por várias vezes que o ciúme
é normal e saudável, estava referindo-mea crianças pe-
quenas. No crescimento e desenvolvimento da perso-
nalidade, chega o momento em que se instala em cada
menino ou menina uma capacidade para tolerar o sen-
timento de ciúme, parasilenciá-lo e para usá-lo como
um incitamento à ação. Se a sua amiga tem algo me-
lhor do que você, você pode com relativa facilidade
aguardar; talvez você a alcance mais tarde, ou talvez
prefira comprar algumaoutra coisa. Avalia e compa-
74 CONVERSANDO COM OS PAIS

ra as coisas. Espero que haja em você uma porção de


coisas que as outras pessoas invejam. Tudoisso faz par-
te da vida e de pessoas que vivem juntas.
Você acabou por conduzir essas coisas com bas-
tante desenvoltura, mas começou como eu comecei,
apenas com muito pouca habilidade para aguardar uma
melhor oportunidade. Mas devemos admitir que em
algumas pessoas há umadistorção permanenteda per-
sonalidade. Talvez você conheça uma vizinha com um
temperamento ciumento. Pessoas assim conseguem,
usualmente sem saber o que estão fazendo, provocar
seu ambiente imediato para que atue justamente de um
modo que as fará sentir ciúmes. Essas pessoas são in-
felizes, e é incômodo conviver com elas; eu não diria
que esse tipo de ciúme é saudável.
Na discussão estava uma mãe quefoi particular-
mente honesta ao falar sobre si mesma e sobre a ma-
neira como persistiu o ciúme que tinha de seu irmão.

MÃE
“Bem, eu era filha única... aos três anos minha
mãe presenteou-me com um irmãozinho. Não achei
graça nenhumanisso. Já na escola, eu continuava ciu-
menta e costumava mordê-lo. Sim, eu o mordia... Ele
nunca chegou a saber que eu lhe fazia isso, e eu nunca
admiti tê-lo feito... mas mesmo agora, quando estou
com 29 anos e o meu irmão com 26, e mamãe diz,
“Bem, é assim mesmo, acabo de compraristo e aquilo
para William” e eu lhe digo, “Ah, sim?” assim como
quem diz “E a mim que me importa?” Aí ela continua:
“Está bem, está bem, o que comprarei para você?” E
conta-me então exatamente o que pagou para William
e quer que eu fique absolutamente certa de que obte-
CIÚME 75

rei o mesmo, nem um centavo a mais ou a menos. Ela


lhe comprou um anel com sinete... Sei que é ridículo,
que é ferino... Quer dizer, sou uma mulher casada e
ele é solteiro, mas se mamãe comprou um anel com
sinete para ele eu prontamente revido: “Será que ele
não pode comprar seu próprio anel?” Resumindo: Fui
presenteada na semana seguinte com um anel com a
pedra do mês do meu aniversário.”

DWW
Em pessoas com temperamentos realmente ciu-
mentos, podemosestar certos de que houve outrora,
em seus primeiros temposde vida, uma boa causa para
ciúme. Um dado lamentável em pessoas realmente ciu-
mentasé que não tiveram a oportunidade de ficar furio-
sas, ciumentas e agressivas na época em que isso teria
sido razoável e controlável. Se tivessem tido essa chan-
ce, o mais provável é que passassem pela fase ciumenta
e saíssem dela como a maioria das crianças. Em vez
disso, o ciúmeinteriorizou-se e a sua verdadeira razão
se perdeu, de modo que todo um repertório de falsas
razões para o ciúme são constantemente apresentadas
agora e pretende-se que as aceitemos como justificá-
veis. O modo de evitar semelhantes distorções é vocês
darem aos seus filhos pequenos a espécie de cuidados
e atenções que os habilitem a ser ciumentos no momen-
to apropriado. Suponho que o ciúme, em crianças sau-
dáveis, converte-se em rivalidade e ambição.
CAPÍTULO 6
O QUE IRRITA?

Três palestras na BBC, transmitidas


em 14, 21 e 28 de março de 1960

Há pessoas que ficam bastante chocadasse des-


cobrem que podem ter em relação às crianças peque-
nasoutros sentimentos que nada têm a ver com o amor.
Se ouvirem a conversa seguinte concluirão que essas
mães estão inteiramente seguras de seu amor; consi-
deram-no ponto pacífico e não hesitam em falar sobre
o lado mais desagradável da vida familiar. Essas mães
foram definitivamente solicitadas a falar sobre o que
as irritava e, segundo parece, não tiveram dificuldade
alguma em responder ao convite. Eis o começo:

MÃES
“Bem, pedi-lhes que viessem aqui esta tarde para
contar-me o que asirrita a respeito de ser mãe. Em pri-
meiro lugar, Sra. W., quantos filhos tem?”
“Tenhosete, o mais velho com 20 e o caçula com
3 anos.”
“A senhora acha mesmo uma tarefa incômodaser
mãe?”
78 CONVERSANDO COM OS PAIS

“Sim, acho. É o que penso, de um modo geral,


para ser bem sincera. Penso que a dificuldade numa
família é, realmente, a série de coisinhas irritantes, co-
mo a constante desarrumaçãoe sujeira, e sempre cor-
rendo atrás de um e outro para tentar colocá-los na
cama... essas coisas, eu acho francamente irritantes.”
“Sra. A.”
“Bem, só tenho dois filhos... um bebê e um que
está começando agora a andar, e é este, claro, o que me
irrita. Tal como a Sra. W., são as pequenas coisas, €
também falta de tempo para merelacionar melhor com
ascrianças — é tudofeito às pressas, o meu caçula quer
sempre alguma coisa em cima da hora, quando temos
de nos aprontar num piscar de olhos para sair.”
“Sra. S.7”?
“Sim, tenho duas meninas, umade três e uma que
acaba de fazer um ano, e penso estar de acordo com
as duas outras mães... que o tempo é uma grandecoi-
sa, mas nunca há tempo bastante para fazer tudo o que
eu gostaria de fazer.”
“Querdizer que existem outras coisas, além decui-
dar dos filhos, que gostaria de fazer e não faz... coi-
sas para si mesma?”
“Sim, é isso. Adoro cuidar das crianças e... de um
modo geral, acho que é uma tarefa gratificante mas
corrida. Quando fico extenuada, acho tudo muito di-
fícil. E fico realmente cansada por vezes. Faço o pos-
sível para não ficar mas não é nada fácil...”
“O que é que vocês acham que causa a fadiga en-
tre mães? Acham que é ter muitas tarefas a executar
num prazo de tempo limitado, ou será uma espécie de
luta contra a situação?”
O QUE IRRITA? 79

“Não, eu penso que é ter de realizar muitas tare-


fas num prazo limitado de tempo. Digamos, às seis é
hora de pô-los na cama, temos de tomar o chá com
as crianças, a louça do chá tem de ser lavada, o bebê
tem de ser alimentado e o jantar preparado para o ma-
rido... tudo isso em questão de uma hora.” (Risos)

DWW
Aí está um bom começo. Com muitas crianças,
o seu lar não pode ter um aspecto muito arrumado,
é impossível conservar uma mente ordenada. É sem-
pre uma afobação, porque vocês têm de ficar de olho
no relógio e, ao mesmo tempo, numa porção de tare-
fas. E as crianças — as mais pequenas, de qualquer
modo — ainda não chegaram à idade em que pode ser
divertido imitar e copiar os adultos. O mundo foifei-
to para elas e conduzem-se de acordo comessa supo-
sição. Depois, temos a questão do cansaço, que é sem-
pre importante. Quando vocês estão cansadas, há coi-
sas usualmente interessantes que podem tornar-se in-
cômodas, e se não dormiram o suficiente lutam con-
tra a necessidade imperiosa de um bom sono, o que
diminui o prazer com que veriam todasas coisas mui-
to interessantes que as crianças estão fazendo, coisas
que são outros tantos indícios do seu desenvolvimen-
to cotidiano.
Terão certamente notado que desta vez estou fa-
lando a respeito de mães e seus sentimentos, em vez
de falar das crianças de que cuidam. É demasiado fá-
cil idealizar o trabalho de uma mãe. Sabemos muito
bem que todo trabalho tem suas frustrações; suas en-
fadonhas rotinas, e seus momentos em queseria a úl-
tima coisa que qualquer pessoa escolheria fazer. Ora,
8o CONVERSANDO COM OS PAIS

por que razão a tarefa de cuidar de bebês e crianças


pequenas não pode ser também vista nesses termos?
Creio que daquia alguns anos essas mães não se lem-
brarão exatamente do que sentiram, e estarão muito
interessadas em voltar a ouvir esta gravação quando
tiverem chegado às águas calmas de um status de avó.

MÃES
“.. tudo tem de ser feito numa hora.”
“Instala-se o mais completo caos todasas tardes
entre as cinco e meia e as sete e meia... quandoreal-
mente não sabemos para onde nos virarmos. Em teo-
ria, as coisas devem acontecer em horas certas, mas
isso nunca acontece porque sempre tem de acontecer
algumaoutra coisa desagradável... alguém derramou
o copodeleite... ou o gato enfiou-se na cama de uma
das crianças e ela não pode deitar-se porque o gato es-
tá lá ou não está lá, ou descem uma porção de vezes
para espreitar o que estou fazendo na sala, enfim, o
completo caos.” (Risos)

DWW
Gostei desse trecho a respeito do gato que está lá
ou não está lá! Nãose trata de uma questão de fazer
as coisas certas ou erradas. O que está erradoé sim-
plesmente a maneira comoas coisas são, o que as faz
parecer como se a maneira inversa fosse a certa mas,
é claro, não seria. Ou talvez não se dêem conta das
muitas coisas que estão correndo bem, mas tudo o que
corre mal, nem que seja em proporções insignifican-
tes, vira um problema terrível que resulta em gritos e
prantos.
No próximo fragmento, uma mãe refere-se a al-
O QUE IRRITA? 81

go que deve ser muito comum, o sentimento de que


algum talento especial está ficando nela entorpecido,
enferrujado, ou de que algo que poderia ser estimu-
lante e divertido aprender tem de ser adiado quase in-
definidamente.

MÃES
“Você acha que existem coisas que gostaria de es-
tar fazendo, como escrever um romance ou preparar
um bolo especial, ou qualquer coisa muito pessoal, que
seus filhos a impedem de fazer?”
“Bem, eu me interesso muito pela assistência so-
cial e todo esse tipo de coisas. Gostaria de fazer coisas
que todos dizem que eu poderia fazer ou em que me
ofereceriam até participação se dispusesse de tempo,
e tem sido realmente umafrustração para mim não po-
der fazer qualquer dessas coisas porque tenho deficar
em casa.”
“Sim, eu fiz um curso de costura o ano passado
de que gostei muito mas quando nasceu o meu segun-
do filho simplesmente percebi que não conseguia es-
tar pronta a tempo de continuar frequentando o cur-
so. E aí, quando batiam as oito horas, eu pensava:
“Você não pode ficar realmente chateada por não po-
der ir.”
“Há coisas que você gostaria muito de fazer?”
“Sim. Gosto muito de costura e é um negócio mui-
to irritante quando as crianças... (Risos) Realmente
gosto muito e fico tremendamente absorta ao ponto
de esquecer que o tempo vai correndo, e isso acaba dan-
do problemas, porque na verdade eu não sou boa quan-
do se trata de pontualidade. Gosto muito de esquecer
as horas.”
82 CONVERSANDO COM OS PAIS

“Acho muitíssimo irritante ter de suspenderseja


o que for que estou fazendo de manhã a fim de prepa-
rar uma refeição... uma refeição do meio-dia, que pa-
ra mim se resolvia com alguma coisa como um ovo co-
zido, mas... tenho também um maridoe aí...” (Falan-
do ao mesmo tempo)

DWW
Aqui temos os maridos chegando com os filhos,
esperando coisas e destruindo completamente qualquer
esforço que a esposa... a mãe... possa estar fazendo
para preservar um interesse pessoal próprio, algo que
exige concentração. É justamente nesse ponto que a
esposa pode com a maior facilidade desejar ser como
um homem, com um trabalho regular e metódico, um
horário de trabalho e regulamentações sindicais que o
protegem daquelas mesmas coisas que ela considera in-
cômodase irritantes. Penso quenesta altura dos acon-
tecimentos ela tem poucas possibilidades de entender
comoé que alguns homens podem invejar mulheres —
invejá-las porque ficam em casa, atravancadasde afa-
zeres domésticos e metidas na mais maravilhosa e des-
lumbrante bagunça com bebês e crianças pequenas. De
modo que estamos aqui de volta à confusão e à desar-
rumação.

MÃES
**Acho quea desarrumação e a sujeira são um pro-
blema terrível porque não tenho empregada para me
ajudar e menos de meia hora depois de arrumare lim-
par a casa toda quem entrasse diria que não mexi uma
palha nos últimos dois ou três anos, porque há brin-
quedos espalhados pela casa toda e pedaços de papel
O QUE IRRITA? 83

recortado até sob os móveis. Eu não devia queixar-me


disso... eles têm de fazer essas coisas, é claro, e é uma
grande frustração não poder ficar brava com eles e ter
de deixá-los continuar dia após dia com a mesma ba-
gunça.”
“Bem, quando os meus eram pequenos, até por
volta dos quatro anos, digamos, a idade de irem para
a primeira escola, eles queriam estar onde eu estives-
se, e se eu estivesse cozinhandoisso significava que tam-
bém tinham de ficar na cozinha, e se eu estou fazendo
coisas nos quartos de cima, eles também têm de estar
nos quartos de cima. Não se desprendem de mim, se-
guem-me por toda a parte, o que, por vezes, acho ter-
rivelmente irritante.”

DWW
E que tal se a bagunça for restringida a um só
lugar?

MÃES
**Acha mais fácil deixá-los correr à vontade pela
casa toda ou tentar confiná-los nos seus próprios quar-
tos?”
“Não, eu tenho umasala e rezo para que não fa-
çam uma terrível bagunça nela, mas eles invariavelmen-
te fazem uma bagunça horrível em todos os cantos da
casa... eles andam por toda a parte.”
“Acha possível confiná-los?'”
“Bem, nãosei se tive sorte, mas Christopher pa-
rece entender que o lugar apropriado para brincar é
no quarto das crianças.”
“Que idade ele tem?”
“Fez dois anos há pouco.”
84 CONVERSANDO COM OSPAIS

“Ele pode ver você do quarto das crianças?”


“Não, não, está distante da cozinha, mas é um
apartamento, com todos os cômodos no mesmo nível,
de modo que pode ir e brincar tambémna cozinha. O
que, é claro, uma porção de gente considera errado.
Só pensei em erguer uma barreira quando já era de-
masiado tarde. Nasala deestar e na sala de jantar, te-
mos nas portas maçanetas de estilo antigo, grandes e
pesadas, que Christopher não consegue fazer girar, de
modo que essas duassalas, por enquanto, conservam-
se arrumadas.”

DWW
Nada se pode fazer quantoa isso; tem de ser acei-
to que as mães com muitas crianças pequenas tendem
a viver em permanente sobressalto. Por enquanto, não
sabem o que fazer. Talvez quandoas crianças ficarem
um pouco mais velhas a paz volte ao rebanho, mas tal-
vez não.

MÃES
“Todas as noites travamos uma batalha extraor-
dinária em tornoda questão do jantar dos cães... Quem
é que vai dar de jantar aos nossos cães? Há um rodi-
zio para dar aos cães seu jantar mas há sempre algu-
marazão para que a pessoa a quem cabia a vez de le-
var a comida não deva fazê-lo. (Risos) E passam-se uns
bons 25 minutos até conseguir ter os animais alinha-
dos e antes que eles tenham a oportunidade de come-
çar a comer, tudo isso por causa dessa tremenda dis-
cussão, que eu subitamente acho muito irritante... as
discussões que acontecem nas famílias numerosas. Não
só a respeito do jantar dos cães, mas quando você se
O QUEIRRITA? 85

senta para fazer uma refeição tranquila, alguém diz


qualquer coisa e num abrir e fechar de olhos, pronto,
o bate-boca está armado, todo mundo gritando para
todo mundo porque é tudo uma questão de princípio,
entende? — e temos discussões acaloradas sobre toda
a espécie de assuntos.”

DWW
Todosestes exemplos ilustram de quantas manei-
ras cuidar de crianças pequenas pode ser uma tarefa
irritante e incômoda,e isso é verdadeiro por muito que
os filhos sejam desejados e amados. O problemaafeta
aquelas mães cuja privacidade está sendo invadida.
Existe certamente, em algum recanto, um pouco dela
própria que é sacrossanto, que não pode ser alcança-
do nem penetrado nem mesmo por seus próprios fi-
lhos. Ela deve defender-se ou render-se? A coisa terri-
vel é que se a mãe tem algo escondido num lugar re-
côndito de seu íntimo é exatamente aí que a criança
quer chegar. Se não existe mais do que um segredo,
então é esse segredo que deve ser descoberto e virado
do avesso. A bolsa de mão de qualquer mãe conhece
tudoa esse respeito. Na próxima semana, gostaria de
desenvolver esse tema da tensão a que a mãeestá sub-
metida pelo muito que se exige dela.

No final da última semana, depois que as mães


de crianças pequenas estiveram falando a respeito de
coisas que consideram incomôdas para as mães, sele-
cionei uma das idéias e dei-lhe ênfase especial: o mo-
86 CONVERSANDO COM OS PAIS

do como as mães têm sua intimidade invadida e vira-


da do avesso. Quero desenvolver essa idéia porque pen-
so haver muito a fazer com o que pode ser incômodo
para os pais e em especial para as mães.
Lembram-se, por certo, de que essas mães são pes-
soas que gostam de estar casadas e ter filhos, e amam
seus filhos, e não gostariam que as coisas fossem dife-
rentes do que são; mas quando foram claramente soli-
citadas a mencionar o que as incomodava ouirritava
mais responderam com prazer.
Haverá algumas que não terão tido o mesmotipo
de experiência. Algumas, num extremo, passaram pior,
ficaram completamente aturdidas, perplexas, e tiveram
de obter ajuda. No caso delas, a confusão levou a me-
lhor, a mãe tornou-se uma mulher irritável e, de um
modo ou de outro, foi incapaz de continuar sendo o
que gostaria de ser. Outras, no extremo oposto, não
terão tido sentimentos de desordem e invasão; pude-
ram manter arrumada e limpa a sala de visitas e, de
algum modo, seus bebêse filhos pequenos encaixaram-
se num padrão fixo, e houve paz a maior parte do tem-
po. Neste caso, a mãe e seu sistema essencialmenterí-
gido de “certos” e ““errados”” dominou a cena, e os
filhos tiveram de adaptar-se, estivessem prontos para
a adaptação ou não. Muito pode ser dito a favor da
ordem e da paz, se, é claro, puderem ser obtidas sem
tolher exageradamente a espontaneidade infantil.
É sempre necessário lembrarmo-nos de que existe
toda a espécie de pais e toda a espécie de crianças, e
é nessa base que podemos discutir as variações sem di-
zer que uma espécie é boa e uma outra espécie é ruim.
Mas não acham que os extremos, de um lado ou do
O QUE IRRITA? 87

outro, são usualmente sintomas de que algo está erra-


do em algum ponto?
É freqiente ouvir os pais dizerem que nos tempos
vitorianos tudo era fácil, os filhos eram relegados para
os quartos das crianças e ninguém pensava, quer fizes-
sem ou não fizessem alguma coisa, que estava o tempo
todo estruturando ou desintegrando a saúde mental de
umacriança. Mas até na era vitoriana a grande maioria
das pessoas criou os filhos no chão e em volta de seus
pés, fazendo sujeira e barulho por toda a parte, e sem
a ajuda de babás com aventais engomados. Cada época
tem seus costumes, mas penso que algo permaneceu inal-
terado através dos tempos, essa espantosa tendência da
criança pequena parair direto ao centro onde as mães
guardam seus segredos. A pergunta é: pode uma mãe
defender-se com êxito e manter seus segredos sem, ao
mesmo tempo, privar a criança de um elementoessencial
— o sentimento de que a mãe é acessível? No início a
criança estava em posse, e entre posse e independência
deve certamente existir um meio-termo de acesso.
O observador pode facilmente recordar que é ape-
nas por um período limitado que essa mãe oferece aces-
so livre a seus filhos; ela tinha seus segredose voltará
a tê-los. E poderá considerar-se uma pessoa afortuna-
da se, por um certo tempo, foi infinitamente importu-
nada pelos infinitos apelos de seus próprios filhos.
Para a mãe realmente envolvida não existe passa-
do nem futuro. Para ela existe somente a experiência
presente de não ter nenhumaárea inexplorada, nenhum
pólo norte ou pólo sul a não ser que algum explorador
intrépido o descubra e o aqueça; nenhum Everest, a
não ser que um alpinista o escale até o cume e o coma.
O fundo do oceano materno é explorado pelo batisca-
88 CONVERSANDO COM OS PAIS

fo, e tivesse a mãe um único mistério, o lado oculto


da Lua, então até isso seria alcançado, fotografado,
e convertido de mistério em fato cientificamente pro-
vado. Nada que seja dela é sagrado.
Quem seria uma mãe? Quem, de fato, a não ser
a mãereal de crianças! E algumas pessoas bastantees-
peciais; aquelas babás que encontram uma forma de
trabalhar e colaborar com os pais reais.
Poderão perguntar: qual é a utilidade de pôr em
palavras o que é incômodo em ser mãe? Eu penso que
as mães são ajudadas se forem capazes de expressar
suas angústias no momento em que as sentem. O res-
sentimento reprimido deteriora o amor que está sub-
jacente em tudo. Acho que é por isso que pragueja-
mos. Uma palavra no momento certo concentra em si
todo o ressentimento e o torna público, após o que vol-
ta a calma e enceta-se um novo período em que pros-
seguimos com o que estava sendo feito antes. Na prá-
tica, verifico que as mães são ajudadas quando as po-
mos em contato com seus mais amargos ressentimen-
tos. A propósito, seja dito que a maioria delas não ne-
cessita de ajuda mas, em benefício daquelas que pre-
cisam de ajuda, escrevi uma lista de mais ou menos
uma dúzia de razões pelas quais as mães poderiam pen-
sar que odeiam seus filhos pequenos?. Entenderão que
estou falando a respeito de mães que amam seus fi-
lhos e que não receiam analisar seus outros sentimen-
tos. Por exemplo, um certo bebê não é o bebê com que
sua mãe sonhava; não era exatamente a idéia de um
bebê que ela tinha em mente. De certa maneira, um

3. Winnicott, D. W., “Hate in the Countertransference”, em


Through Paediatrics to Psycho-Analysis (Londres: Hogarth, 1975 etc.;
NY)
O QUE IRRITA? 89

quadro que ela pintasse poderia parecer mais sua pró-


pria criação do que o bebê que se tornou uma coisa
tão real em sua vida. O bebê real certamente não sur-
giu por artes mágicas. Esse menino ou meninaé fruto
de um laborioso processo que envolveu a mãe em pe-
rigo durante a gravidez e durante o parto. Esse bebê
de carne e osso que é agora dela machuca-a quando
mama, se bem que o processo de amamentação possa
ser muito satisfatório. Gradualmente, a mãe descobre
que a criança a trata como a uma serviçal sem remu-
neração e exige atenção, e no começo não está preo-
cupada com o seu bem-estar. Finalmente, o bebê mor-
de-a e é tudo por amor. Espera-se que a mãe ame esse
bebê de todo o coração no começo, incondicionalmen-
te, tanto as partes irritantes quanto as agradáveis, e
inclusive a desordem. Não tardará muito para que o
bebê comece a ficar desiludido a respeito da mãe e o
mostre, recusando a boa comida que lhe é oferecida,
de modo que a mãe acaba em dúvida sobre si própria.
E o amorexcitado do bebê é amor interesseiro, e após
ser obtida a satisfação desejada a mãe é rejeitada co-
mo uma casca de laranja. Devo prosseguir com esta
lista de razões pelas quais uma mãe poderia odiar seu
bebê?
Nesses estágiosiniciais, o bebê não tem conheci-
mento nenhum sobre o que sua mãe está fazendo bem
e que sacrifícios ela faz a fim de cuidar bem dele, mas
se as coisas correm mal as queixas surgem na forma
de gritos. Depois de sofrer uma horrível manhã de gri-
tos e acessos de cólera, a mãe vai às compras com o
seu bebê, e o bebê sorri para um estranho que diz:
“Mas não é mesmo uma doçura!" ou “Que simpatia
de menininha!” A mãe alimenta o tempo todo idéia
90 CONVERSANDO COM OS PAIS

suspicaz de que se desapontar o seu bebê no começo


haverá um longo período em que pagará por isso, ao
passo quese tiver êxito não tem razão nenhuma para
esperar gratidão. Vocês podem facilmente pensar nu-
ma dúzia de razões. Provavelmente não encontrarão
nenhuma pior do que a que estou escolhendo para dis-
cussão, o modo como ascrianças invadem a mais pro-
funda, mais íntima reserva materna. Se possível, gos-
taria de inculcar certa coerência em tudo isto para
vocês.
Nos primeiros tempos não há qualquer dificulda-
de, porque o bebê está dentro de você, é parte sua. Em-
bora seja apenas um hóspede, por assim dizer, o bebê
no ventre associa-se a todasas idéias de bebês que vo-
cê já teve e, no começo, o bebê é realmente o segredo.
O segredo converte-se num bebê.
Você tem todo o tempo do mundo para desenvol-
ver durante nove meses uma relação especial com esse
fenômeno, segredo convertido em bebê, e quandoal-
guns meses já tiverem transcorrido vocêestará apta a
identificar-se com o bebê que está dentro de você. Pa-
ra atingir esse estado de coisas, você tem de ter um es-
tado de espírito bastante calmo, e será imensamente
ajudada se o seu marido for solidário de corpo e alma
com você e lidar com o mundo para ambos.
Parece-me que essa relação especial com o bebê
chega a termo, mas não exatamente no dia do nasci-
mento do bebê. Penso que esse estado especial de coi-
sas dura ainda algumas semanas após o nascimento,
salvo se ocorrem circunstâncias especiais que a façam
lamentavelmente descer à terra, como ter de deixar a
maternidade, ou ter de demitir uma babá incompeten-
te, ou o marido adoecer, ou coisas assim.
O QUEIRRITA? 91

Se você tiver sorte e não houver desagradáveis


complicações, o estado especial pode chegar gradual-
mente a seu término. Inicia-se então um processo em
que você se restabelece como pessoa adulta no mundo,
e isso leva muitos meses. O seu bebê precisa que você
esteja apta a fazer isso, embora o processo cause dor
ao bebê. Inicia-se agora uma tremenda luta: o bebê,
que deixou de ser um segredo, reclama todos os segre-
dos maternos. Embora lutando numabatalha inevita-
velmente perdida, o bebê arrisca uma reivindicação
após outra, numa espécie de perpétua corrida do ou-
ro, mas o ouro nuncaé suficiente; uma nova reclama-
ção deve ser formulada. E, em qualquer caso, você es-
tá recuperando seu próprio status individual separa-
do, e suas minas de ouro tornam-se cada vez mais ina-
cessíveis.
Entretanto, você não se recupera por completo.
Se isso ocorresse, significaria que deixou de ser mãe.
E, é claro, se você tem vários filhos, o mesmo proces-
so recomeça umae outra vez, e você estará com 45 anos
antes de poder olhar à sua volta e ver em que posição
realmente se situa no mundo.
Este é um grande tema que comecei a ventilar e
só tenho tempo para dizer mais uma coisa. Acredito,
por falar com inúmeras mães e observar seus filhos
crescerem, que as mães que melhor se saem são aque-
las que podem entregar-se no começo. Elas perdem tu-
do. O que ganham é que, no decorrer do tempo, po-
dem recuperar-se, porque seus filhos renunciam gra-
dualmente a esse perpétuo jogo de reivindicações e
mostram-se satisfeitos por reconhecer em suas mães in-
divíduos independentes, comoeles próprios rapidamen-
te virão a ser.
92 CONVERSANDO COM OS PAIS

Talvez vocês saibam quecrianças privadas de cer-


tos elementos essenciais da vida familiar (de fato, o gê-
nero de coisas sobre as quais estivemos falando) ten-
dem a alimentar um ressentimento permanente; sen-
tem umacerta má vontade contra algo, mas como não
sabem no que consiste esse algo a sociedade tem de acei-
tar essa distorção e as crianças são então qualificadas
de anti-sociais.
De modo que mesinto bastante esperançosoa res-
peito daquelas mães que descrevem sua batalha a fa-
vor do relógio contra as hordas invasoras de seus fi-
lhos pequenos. No final, esse campo de batalha não
está juncado de cadáveres mas de indivíduos que não
são crianças que sofreram privações, que não são crian-
ças problemáticas ou delingientes. Pelo contrário, são
adolescentes, aptos a sustentar sua própria indepen-
dência. E é quando os filhos de vocês existem em sua
própria autonomia como indivíduos que vocês, mães,
podem permitir-se fazer o mesmo. Podem permitir-se
ser vocês mesmas, com os seus segredos, o que as leva
de volta (embora com uma diferença) para onde esta-
vam antes de serem invadidas por seus filhos.

nr

Na semanapassada, falei o tempo todoe escolhi


um aspecto do problema dessas mães porque pensei que
era importante. Nunca esqueço que as mães de filhos
pequenos estão usualmente fatigadas e com fregiiên-
cia insones, mas preferi falar sobre a perda da intimi-
dade da mãe. Esta semanagostaria de voltar à discus-
são. No excerto que se segue, ouvirão a respeito das
O QUE IRRITA? 93

lutas que se travam entre as crianças numa família, o


que poderia ser chamado de hostilidades implacáveis
e seus efeitos sobre os nervos da mãe.

MÃES
“Acho que eles brigam demais. Realmente, gos-
taria de saber por quê. Quem osvisse, pensaria que são
acérrimos inimigos, em vez de irmãosafetuosos — bri-
game gritam. Penso que, no fundo, gostam muito uns
dos outros. Se vem alguém de fora, eles prontamente
se unem e se defendem contra o intruso, ou se um deles
adoece os outros desfazem-se em solicitude para ofe-
recer ao doente algumacoisa de queele gosta, mas fo-
ra disso brigam e discutem de manhã à noite, e acho
que isso me abala os nervos quando chego em casa e
os ouço. “Foi você!” “Não, não fui eu” “Sim, foi você
quem fez!” “Eu fiz, sim, e daí?” “Eu detesto você!” E
é um bater de portas, e uma pancadaria, que me obri-
ga a acudir para separá-los. É horrível.”
“Suponho que é um modo de consumirem um ex-
cesso de energia... nervosa ou outra.”
“Espero que sim, mas é deveras irritante.”
“É terrível para os nervos da mãe. Sim, lembro-
me de que isso também aconteceu. A minha irmã ca-
gula e eu costumávamosbrigar... e eu costumava dei-
xar minha mãe deprimida.”
“É apenas um desgaste passageiro. Nada realmen-
te sério. Bem, as coisas sérias, penso eu, você pode sem-
pre enfrentá-las, porque são um tanto incomuns... É
uma crise que alguém pode provocar para... (Falam
ao mesmo tempo) Refiro-me às pequenas coisas coti-
dianas, como uma gota de água na pedra... ping,ping,
ping...”
94 CONVERSANDO COM OS PAIS

DWW
Sim, ping, ping, ping, e com que intenção? Há
uma intenção, vocês sabem. Na semana passada, eu
disse que na minha opinião cada criança “invade” a
mãe e reclama tudo o que aí houver, e quero acrescen-
tar agora que, se aí encontrar qualquer coisa, a crian-
ça usa-a, e usa-a até esgotá-la. Não é dado quartel, não
há misericórdia nem meias medidas. A mãe é tratada
com rudeza. Sua fonte de energia é alcançada e aber-
ta, e com enfadonha repetição exaurida. Seu principal
trabalho é a sobrevivência. A enfadonha repetição é
uma coisa que se apresenta no seguinte fragmento.

MÃES
“Temos histórias para adormecer que considero
irritantes porque as contei noites a fio, sem falhar uma
só vez — e se alguma vez queremossair é claro que
eles pressentem — crianças...
“Oh, isso é mais do que certo.”
“Você também não pode encurtar umalinha, não
pode sequer dizer de forma diferente... O que normal-
mente acontece... tem de ser contado noite após noite
sem alterar um ponto, não importa se você está doen-
te ou bem ou morta ou agonizante, duas histórias ter-
rivelmente enfadonhas têm de ser contadas e acho que,
por vezes, é...” (Falam ao mesmo tempo)
“Sim, seria muito capaz de apanhar esse livro e
rasgá-lo em pedaços.”

DWW
“... e rasgá-lo em pedaços.” Talvez muitas de nos-
sas ouvintes fiquem satisfeitas com essas palavras que
acabaram de ser proferidas. Contudo, ashistórias con-
O QUE IRRITA? 95

tinuarão sendo repetidas, e fielmente repetidas, e as


crianças continuarão precisando desses territórios li-
mitados que conhecem em detalhe e nos quais não há
surpresas. É essa certeza de que não haverá surpresas
que propicia e facilita o repouso, e prepara o caminho
para deslizar para O sono.
A transcrição seguinte da discussãotrata das fa-
ses desestimulantes, aquelas em que a criança que está
desenvolvendo-se bem por uma razão ou por outra tem
de retroceder ou tornar-se indiferente ou francamente
desafiadora. Eis como uma menina pequena enfrenta
o ciúme que sente do bebê, abdicando de seu desen-
volvimento e de suas realizações pessoais para tornar-
se como um bebê.

MÃES
“A minhafilha já era capaz de vestir-se sozinha
há... uns nove meses... e decidiu de súbito que não vai
continuar a vestir-se sozinha. É perfeitamente capaz
de fazê-lo. Não consegue fechar um zíper ou botões:
nas costas, mas pode fazer tudo isso na frente, mas
declara obstinadamente, “Não. Também quero ser be-
be”, e escarrancha-se no meu colo como o seu irmão-
zinho... e aí estamos nós agora, tendo eu de vestir os
dois pela manhã e despi-los à noite.”
“Bem, eu já posso antever esse negócio de deixá-
los vestirem-se sozinhos. Ainda não tenho de pensar
nisso porque o meu pequeno ainda é incapaz de fazê-
lo, mas já estou vendo que vai ser um ponto irritante
para mim observá-lo vestindo lentamente as coisas do
modo errado, enfiando-as do avesso... (Falam ao mes-
mo tempo) porque não sou capaz... gosto de fazer as
coisas depressa e bem.”
96 CONVERSANDO COM OS PAIS

DWW
Isso é uma outra coisa que pode serirritante, a
adaptação ao ritmo de cadacriança. Por temperamen-
to, algumascrianças são maislentas do que suas mães
e algumas são mais rápidas. É um grande problema
para a mãe adaptar-se às necessidades de cada criança
nessa questão de rapidez e morosidade. Especialmen-
te irritante é a tarefa de adaptação de uma mãerápida
a umacriança algo atrasada em seu desenvolvimento.
Contudo, se a criança e a mãe perdem o contato entre
elas nessa questão de timing, a criança perde a capaci-
dade para agir, torna-se estúpida, deixa tudo, cada vez
mais, aos cuidados da mãe ou da babá. Para a crian-
ça, é igualmente ruim quandoela é rápida e a mãe é
lenta, como é fácil imaginar. A mãe pode ser morosa,
talvez, porque está com o ânimo deprimido, mas a
criança nada sabe sobre as razões disso e não pode,
portanto, dar o devido desconto. Sem dúvida, alguma
coisa pode ser feita mediante um planejamento, mas
as crianças pequenas são propensas a subverter os me-
lhores planos, simplesmente porque não vislumbram
qualquer necessidade de pensar no futuro. Elas vivem
no presente. No próximo fragmento ouvirão alguma
coisa a respeito de planejamento.

MÃES
“Bem, parte dessa falta de tempo tem a ver com
o problemade organizar-se para sair — planejara tarde
de modo que se coadune com uma refeição às duas da
tarde e o regresso a casa a tempo para a refeição das
seis. Acho que sair para as comprasé a coisa principal
porque tenho de ir a um mercado a mais de seis quilô-
metros, que é muito econômico, e é uma façanha dar
O QUEIRRITA? 97

de comer às duascrianças, uma na mamadeira e a ou-


tra com colher, vesti-las e prepará-las para sair — e
uma delas resolve adormecer, o que nos atrasa ainda
mais — e depois uma correria louca para fazer as com-
pras e voltar a tempo da nova refeição. Por vezes...
esta tarde, por exemplo, levou uma hora para conse-
guirmos ficar os três prontos para sair.”
“É um negócio terrível.”
“Quando você conseguiu ficar pronta, e os ou-
tros dois, quer dizer...”
“Sim, os outros dois já estão sujos de novo.”
“É o planejamento da coisa... decidir quais são
as melhores horas para sair.”
““Os pequenos exemplos como esse são provavel-
mente os mais irritantes de todos, sem dúvida.”
“No fim de contas, quer dizer, amo os meus dois
filhos. Não os achoirritantes o tempo todo, são ape-
nas essas pequenas coisas.”
“Algo que me irrita um pouco é a refeição seguin-
te... o que eles vão comer... o que todos vão comer.”
“Você programa as refeições com muita antece-
dência?”
“Não, não, não sou muito de fazer planos. Algo
assim, vocês sabem, quando a hora da refeição vai fi-
cando mais próxima... (Risos) algo se materializa... Ve-
jam bem, eu faço compras uma vez por semana, de
modo que tenho o suficiente em casa para a semana
“seguinte, mas quando e como vai ser usado, isso só é
decidido na última hora.”
“Bem, eu tenho uma sorte enorme a respeito do
almoço, porque a refeição favorita de Christopher é
picadinho. Estou por aqui de picadinho.” (Risos)
98 CONVERSANDO COM OS PAIS

“Têm um gosto muito limitado, às vezes. Fica


mais fácil...”
“Sim, muito fácil.”

DWW
Vislumbra-se um lampejo de esperança. Mas uma
mãe planeja, organiza as coisas o máximo possível e,
no entanto, não consegue harmonizar as necessidades
de cada criança com a ditadura do relógio, a distância
relativa entre o lar e a loja, e o fato de seu limitado
vigor pessoal. No final, voltamos à imagem da mãe lu-
tando para dar conta ao mesmo tempo das necessida-
des individuais dos filhos pequenos e do mundo tal co-
mo ela o conhece.

MÃES
“*... Mas umaoutra grande irritação é ter de in-
terromper as minhas tarefas domésticas — o aspira-
dor de pó ou alguma outra coisa. Sinto que poderia
ter o quarto limpo e arrumado em dez minutos se ao
menos me dessem esses dez minutos, mas aparece al-
guém atrás de mim avisando, “Quero fazer cocô”... ele
se senta no peniquinho e você tem deficar ali... você
tem de ficar ali e...”
“Concordo, sim, você não pode deixá-lo e ir fa-
zer outra coisa.”
“E ele transforma aquilo num jogo.” (Risos)
“E então alguma coisa está fervendo no fogão,
e você deixou o aspirador de pó ligado porque pensou
queseria questão de um minuto, e assim pordiante...”
“Oh, eu acho muito irritantes as interrupções cons-
tantes... Escuto subitamente um grito em algum lado
e tenho de largar tudo mesmo queesteja cozinhando
O QUE IRRITA? 99

— as mãosenfarinhadase tudo — e sair correndo pa-


ra descobrir o que aconteceu.”
“Bem, se estou com as mãos enfarinhadaseu di-
go, “Escuta aqui, você não vai querer que eu faça al-
guma coisa com as mãos deste jeito, vai?”
“E isso funciona?”
“Sim. Farei mais tarde o que me pedem. Creio
que faço isso muitas vezes, e também quando temos...
quando surgem coisas irritantes como “Meu Deus, es-
quecemos de trazer isto e aquilo”, diz Elizabeth, quer
dizer, estamos saindo para algum lugare ela quer vol-
tar atrás porque esqueceu uma boneca, ou apanha uma
bolsa de compras... então eu digo, “Bem, vamos ter
de trazê-las da próxima vez”. Na hora, funciona como
um sonho.”

DWW
Existe um limite, e o tempo todo, à medida que
cadacriança cresce, o limite vai ficando cada vez mais
claramente definido para as exigências que um filho
pequeno tem direito de fazer à mãe. E quem fixará
esse limite? Em certa medida, a mãe acha que pode
gradualmente defender-se.

MÃES
“As coisas também dependem muito de como foi
a noite que você teve.” (Risos)
“Eu tive uma noite horrível e estava realmente
mal-humoradanesse dia e com pouca vontade de o atu-
rar, e se ele mostrasse o menor sinal de querer ser irri-
tante eu acho que explodiria.”
“E isso faz com queele fique pior?”
100 CONVERSANDO COM OS PAIS

“Não, creio que ele fareja que realmente estou por


um fio e conclui ser mais prudente ficar quieto e cala-
do. E, surpreendentemente, é o que faz.”

DWW
Mas eu espero que, emúltimainstância, seja o pai
quem intervenha e defenda a esposa. Ele também tem
seus direitos. Não só quer ver sua esposa recuperar uma
existência independente mas também quer estar apto
a ter sua esposa para si, mesmo que em certos momen-
tos isso signifique a exclusão das crianças. Desorte que,
com o tempo, o pai acaba por fazer finca-pé, o que me
traz de volta à minha palestra de várias semanas atrás
a respeito de “Dizer 'não” ””. Num desses programas,
sugeri que especialmente quando o pai bate o pé com
firmeza é quandoele se tornasignificativo para a crian-
ça pequena, desde que ele tenha conquistado antes o
direito de assumir umaatitude firme ao ter uma pre-
sença assídua e amistosa em casa.
De fato, cuidar de crianças pequenas podeser in-
cômodo e irritante, mas a alternativa, a organização
autoritária e sistemática imposta ao filho pequeno é
a idéia mais horrorosa que pode passar pela cabeça de
uma mãe. Assim, suponho que as crianças continua-
rão sendo “*pestes”” e as mães continuarão contentes
por terem tido a oportunidade de serem vítimas.
CAPÍTULO 7
SEGURANÇA
Palestra transmitida pela BBC
em 18 de abril de 1960

Sempre quese tenta enunciar as necessidades bá-


sicas de bebês e crianças pequenas, ouvimosas pala-
vras “o que as crianças precisam é de segurança”. Por
vezes, podemosachar queisso é razoávele sensato, ou-
tras vezes podemoster nossas dúvidas. Pode-se per-
guntar: o quesignifica a palavra segurança? Certamen-
te os pais que são superprotetores causam situações an-
gustiantes em seu filhos, assim como os pais que não
podem ser confiáveis tornam seusfilhos confusos e as-
sustados. É, pois, possível que os pais dêem excessiva
segurança mas, por outro lado, sabemosque as crian-
ças precisam sentir-se seguras. Como harmonizar isso?
Os pais que conseguem manter um lar coeso for-
necem, de fato, algo que é de imensa importância pa-
ra seus filhos e, naturalmente, quando um lar se des-
faz as crianças sofrem. Mas, se nos dizem simplesmente
que as crianças necessitam de segurança, o mais pro-
vável é ter-se a sensação de quealgo deve estar faltan-
do nessa afirmação. As crianças descobrem na segu-
rança umaespécie de desafio, um desafio que consis-
te, para elas, em provar que podem escapar dele. O
102 CONVERSANDO COM OS PAIS

extremo daidéia de que a segurança é boa seria a de


que um lugarfeliz para se crescer seria umaprisão. Is-
so seria um absurdo. É claro que pode haverliberda-
de de espírito em qualquer parte, até numaprisão. Es-
creveu o poeta Lovelace:
““Muralhas de pedra não fazem uma prisão,
Nem barras de ferro uma jaula”,
subentendendo que existe muito mais sobre que medi-
tar do que o fato concreto de estar preso. Mas as pes-
soas devem viver livremente para viver imaginativamen-
te. A liberdade é um elemento essencial, algo que faz
brotar nas pessoas o que elas têm de melhor. Não obs-
tante, temos de admitir a existência de alguns que não
podem viver em liberdade porque têm medo desi mes-
mos e do mundo.
Para ordenar essas idéias, penso que devemos con-
siderar o bebê, a criança, o adolescente e adulto em
desenvolvimento, e descrever a evolução não só de pes-
soas individuais mas também do que é requerido do
meio ambiente poresses indivíduos à medida que evo-
luem. É certamente um sinal de crescimento saudável
quando as crianças começam a ser capazes de desfru-
tar a liberdade que lhes pode ser dada de forma cres-
cente. Qual é o nosso objetivo ao criarmosos filhos?
Esperamosque cada criança adquira gradualmente sen-
timento de segurança. Deve existir no íntimo de cada
criança uma crença em algo; não só algo que é bom
mas algo que é confiável e duradouro, ou que se recu-
pera depois de ter sido magoado ou de se ter consenti-
do que perecesse. A questão é esta: como ocorre essa
estruturação de um sentimento de segurança? O que
leva esse estado decoisassatisfatório em que a criança
SEGURANÇA 103

tem confiança nas pessoas que a cercam e nas coisas?


O quegera a qualidade a que chamamos autoconfian-
ça? O importante é um fator inato ou pessoal ou é o
ensinamento moral? Deve existir um exemplo a ser co-
piado? O ambiente externo deve prover algo para pro-
duzir o efeito desejado?
Poderíamos recapitular os estágios do desenvol-
vimento emocional por que toda criança deve passar
a fim de tornar-se uma pessoa saudável e, finalmente,
adulta. Isso levaria muito tempo mas poderia ser fei-
to. No decorrer desta recapitulação poderíamos falar
dos processosinatos de crescimento no indivíduo e do
modo (necessariamente muito complexo) como os seres
humanos tornam-se pessoas pordireito próprio. Nes-
te ponto, porém, quero referir-me à contribuição am-
biental, o papel que desempenhamos e o papel que a
sociedade desempenha emrelação a nós. É o meiocir-
cundante que possibilita a cada criança crescer, e sem
adequada confiabilidade ambiental o crescimento pes-
soal de uma criança não pode acontecer, ou será um
crescimento distorcido. E como não há duas crianças
que sejam exatamente iguais somos solicitados a adap-
tar-nos especificamente às necessidades de cada crian-
ça. Isso significa que quem quer que esteja cuidando
de umacriança deve conheceressa criança e trabalhar
na base de uma estimulante relação pessoal com essa
criança, não na base de algo aprendido e aplicado me-
canicamente. Se estivermos confiavelmente presentes
e formos coerentes com nós mesmos, podemos forne-
cer a estabilidade que não é rígida mas viva e humana,
e isso faz a criança sentir-se segura. É em relaçãoa is-
so que a criança pode crescer, que ela pode absorver
e copiar.
104 CONVERSANDO COM OS PAIS

Quando oferecemos segurança, estamos fazendo


duas coisas ao mesmo tempo. Por um lado, em virtu-
de da nossa ajuda, a criança está a salvo do inespera-
do, das inúmeras intrusões indesejáveis e de um mun-
do que ainda não é conhecido ou entendido. E tam-
bém, por outro lado, a criança é protegida por nós de
seus próprios impulsos e dos efeitos que esses impul-
sos poderiam produzir. Seria quase desnecessário lem-
brar-lhes que as crianças muito pequenas precisam de
total assistência e não podem progredir por iniciativa
própria. Têm de ser seguras, transportadas, lavadas,
alimentadas, mantidas na temperatura certa e prote-
gidas de correntes de ar e de pancadas. Precisam que
seus impulsos sejam satisfeitos e que orientemos sua
espontaneidade. Não há muitas dificuldades nesse es-
tágio inicial porque, na maioria dos casos, cada bebê
tem uma mãe e, durante esse período, a mãe preocu-
pa-se quase exclusivamente com as necessidades de seu
bebê. Nesse estágio, a criança está segura. Quando a
mãe é bem-sucedida em tudo o que faz no começo, o
resultado é uma criança cujas dificuldades realmente
não decorrem das interferências do mundo masda vi-
da e do conflito que acompanhaos sentimentosvitais.
Portanto, em circunstâncias sumamente satisfatórias,
na segurança suficientemente boa dos cuidados dispen-
sadosà criança, esta começa a viver uma vida pessoal
e individual.
Em breve as crianças pequenas começam a ser ca-
pazes de se defender contra a insegurança mas, naspri-
meiras semanas e meses de vida, os bebês estão ape-
nas fragilmente estabelecidos como pessoas e, portan-
to, se não forem apoiados, terão seu desenvolvimento
SEGURANÇA 105

distorcido sempre que ocorram coisas adversas oude-


sagradáveis. A criança que conheceu a segurança nes-
se estágio inicial começa a alimentar a expectativa de
que nunca lhe faltarão nem a abandonarão. Frustra-
ções, bem, sim. Elas são inevitáveis; mas ser abando-
nada... bem, isso não! Tudo isto é muito simples e
coerente.
A questão que nos interessa aqui é esta: o que
acontece quando um sentimento de segurança se esta-
belece na criança? Quero dizer o seguinte. Sobrevém
então uma longa luta contra a segurança, quer dizer,
contra a segurança que é fornecida pelo meio ambien-
te. A mãe, após o período inicial de proteção, deixa
gradualmente entrar o mundo, e a criança individual
aproveita agora toda e qualquer nova oportunidade de
livre expressão e de ação impulsiva. Essa guerra con-
tra a segurança e o controle prossegue durante toda
a infância; no entanto, o controle continua sendo
necessário. Os pais continuam a postos com uma
estrutura disciplinar, com as muralhas de pedra e as
barras de ferro, mas na medida em que sabem como
cada criança é e na medida em que estão interessados
na evolução de seus filhos como pessoas vêem com
bonsolhos o desafio. Continuam funcionando como
guardiões da paz mas esperam indisciplina, uma certa
anarquia e até revolução. Felizmente, na maioria dos
casos, o conforto é obtido para as crianças e para os
pais através da vida de imaginação e da atividade lú-
dica, e medianteas experiências culturais. Com o tempo
e com saúde, as crianças tornam-se aptas a reter um
sentimento de segurança em face da insegurança ma-
nifesta, como, por exemplo, quando um dos pais adoe-
106 CONVERSANDO COM OS PAIS

ce ou morre, quando alguém procede mal ou quando


um lar se desintegra por uma razão ou outra.
As crianças precisam continuar averiguando se
ainda podem confiar em seus pais, e esses testes po-
dem prosseguir até que os filhos estejam em condições
de proporcionar condições de segurança aos seus pró-
prios filhos e assim por diante. De um modo suma-
mente característico, os adolescentes realizam testes de
todas as medidas de segurança e de todas as regras,
regulamentos e disciplinas. Assim, as crianças em ge-
ral aceitam a segurança como um pressuposto básico.
Acreditam numa boa assistência materna e paterna
desde muito cedo, porquea tiveram. Possuem um sen-
timento de segurança que é constantemente reforçado
por seus testes com os pais e sua família, com os pro-
fessores na escola, com seus amigos e toda a espécie
de pessoas que conhecem. Tendo encontradoas fecha-
duras e os ferrolhos solidamente fechados, tratam de
destrancá-los e de escancará-los; saem impetuosamente.
E repetem uma e outra vez essas saídas. Ou então en-
roscam-se na cama, tocam discos de blues e sentem-se
fúteis.
Por que é que os adolescentes, em especial, reali-
zam esses testes? Nãolhes parece queisso é porqueeles
estão conhecendo em si mesmos sentimentos assusta-
doramente novos e fortes, e que por isso desejam sa-
ber se os controles externos ainda existem? Mas, ao
mesmo tempo, devem provar que são capazes de der-
rubar esses controles e de se estabelecer como pessoas
dotadas de vontade própria. As crianças saudáveis ne-
cessitam de pessoas que continuem exercendo o con-
trole, masas disciplinas devem ser proporcionadas por
pessoas que possam ser amadas e odiadas, desafiadas
SEGURANÇA 107

ou de que se dependa; os controles mecânicos são inú-


teis e tampouco o medo pode ser um bom motivo para
a obediência. É sempre uma relaçãoviva e estimulante
entre pessoas que fornece a necessária liberdade de que
o verdadeiro crescimento precisa. O verdadeiro cresci-
mento conduz a criança ou o adolescente no rumo da
aquisição de um sentimento adulto de responsabilida-
de, sobretudo uma responsabilidade pelo fornecimen-
to de condições seguras para as crianças pequenas de
uma nova geração. Não é possível ver tudo isso acon-
tecendo nas obrasde artistas criativos de todasas espé-
cies? Eles fazem algo muito valioso para nós, porque
estão criando constantemente novas formas, e superan-
do essas formas apenas para criar outras novas. Os ar-
tistas permitem-nos continuar vivos, quando as expe-
riências da vida real ameaçam fregientemente destruir
o nosso sentimentode estar realmente vivose deser reais
de um modovivificante. De todas as pessoas, os artis-
tas são os que melhor nos lembram que a luta entre os
nossos impulsos e o sentimento de segurança (que são
vitais para nós) é uma luta eterna, a qual é travada no
íntimo de cada um de nós enquanto durar a nossavida.
Portanto, as crianças saudáveis desenvolvem uma
crença em si mesmas e nas outras pessoas suficiente
para detestarem todas as espécies de controles exter-
nos; esses controles convertem-se em autocontrole. No
autocontrole, o conflito tem de ser trabalhado de an-
temão no íntimo da pessoa. De modo que vejo as coi-
sas assim: boas condições nos estágios iniciais da vida
levam ao surgimento de um sentimento de segurança,
e o sentimento de segurança leva ao autocontrole, e
quando o autocontrole é um fato então a segurança
que é imposta é um insulto.
CAPÍTULO 8
SENTIMENTO DE CULPA

Debate com Claire Rayner!, transmitido


pela BBC em 13 de março de 1961

CR: Quando minhafilha tinha poucas semanas de


idade, uma parente minha telefonou-me com
a voz muito disfarçadae disse que era uma fun-
cionária da NSPCC*. Ora, estranhamente, em-
bora no passado eu sempre descobrisse a ori-
gem dessas piadas quando ela as fazia comi-
go, desta vez caí na cilada e senti um terrível
surto de medo culposo. Quer dizer, estava com
medo, o que teria eu feito para causar tal sen-
timento? Achei essa reação deveras interessan-
te. Levei algum tempo para merefazer: de fa-
to, o dia todo. Ainda tinha no meu íntimo es-
sa desagradável e angustiante sensação de que
fizera algo que não devia.

1. Claire Rayner, enfermeira, conhecida apresentadora de rádio


e televisão, é autora de vários livrossobre saúde e cuidados coma criança.
* National Society forthe Preventionof Crueltyto Children da
irà-Bretanha(Sociedade Nacional paraa Prevençãoda Crueldade con-
tra Crianças). (N.T.)
110 CONVERSANDO COM OS PAIS

DWW: Hummm, é o que eu acho. Mas além de sentir-


se culpada não há aí algo que tem a ver com
o fato de que umacoisa súbita se introduzira,
justamente num momento em que você não es-
tava, na realidade, de volta no mundo. Quero
dizer, estava pensando que pouco antes você
teve um bebê e pouco depois viu-se numa po-
sição bastante protegida no mundo, quando
não espera esse gênero de coisas. Não teria
ocorrido alguma coisa, até um grande baru-
lho ou algo inesperado, que a fez sentir-se hor-
rível nesse momento?
CR: Bem, sim. Concordo nesse ponto, mas era um
sentimento de culpa tão específico! Você sabe
que existem inúmeros medos, não é? Você ouve
um barulho muito forte e tem uma espécie de
medo, e você sente um medo antecipado de que
alguma coisa desagradável lhe vai acontecer
então você vai ao dentista e sente essa espécie
de medo. Mas o que senti naquele momento
foi um medo culposo. Eu fizera algo errado
e ia ser apanhada em flagrante; era isso o que
eu sentia. Que tinha sido surpreendida come-
tendo um crime.
DWW: Sim, entendo o que quer dizer, e agrada-me a
idéia de discutir isso com você, porquanto há
aí algo que me interessou muito, e que é o se-
guinte: quando estou falando como observa-
dor e psicólogo com as mães e os pais a res-
peito de seusfilhos, verifico que, por mais cui-
dadoso que seja, há sempre umacerta tendên-
cia para fazê-los sentirem-se culpados. Dou-
meao trabalho detentar colocaras coisas de
SENTIMENTO DE CULPA 111

maneira a nãoparecercrítico, procurando mais


explicá-las do que lhes dizer que erraram nis-
to ou naquilo. E, no entanto, as pessoas que
me procuram dizem: toda vez que você fala,
ou toda vez que leio alguma coisa que você es-
creveu, sinto-me tão mau. Porisso estou inte-
ressado nesse problema.
CR: Bem, isso também é uma espécie de culpa, não
é? Alguém lê um artigo ou um livro que diz
“você deve fazer assim” e sente-se imediata-
mente culpado porque não fez as coisas desse
jeito. Mas há outros pensamentos. Conheço
uma jovem que creio nunca ter lido qualquer
artigo desse gênero e que, logo que nasceu o
seu bebê, desenvolveu uma compulsão de lim-
peza. Querdizer, ela tinha sido uma dona de
casa do tipo comum mas, com a chegada do
bebê, ela passou a lavar e esfregar tudo com
queele entrava em contato, mudava-lhe as rou-
pas três ou quatro vezes por dia, não suporta-
va vê-lo com alguma mancha, ainda que o be-
bê estivesse sempre impecável e jamais se lhe
visse um sinal de sujeira: e quando foi fican-
do mais velho isso ampliou-se. Quandoele era
pequenino, era o berço, o carrinho, o próprio
quarto. Agora que começou a engatinhar pela
casa toda, essa compulsão delimpeza estendeu-
se aos outros cômodos por ondeele passa. O
tapete do living é batido e escovado todas as
semanas, lavado com xampu, mas isso parece-
me ser um exagero e não posso deixar de pre-
sumir que ela se sente culpada a respeito deal-
gumacoisa para que se comporte dessa manei-
ra. Não sei se concorda comigo.
112 CONVERSANDO COM OS PAIS

DWW: Penso que é, realmente, um exemplo extremo


bastante útil, porque apresenta a idéia de que
alguém pode sentir-se culpado sem o saber,
porque nesse extremo parece-me que a maio-
ria dos observadoresseria capaz de dizer que
essa mãe tem medo de que ela... de que algum
dano venha ser feito à criança e por isso tem
de fazer tudo o que puder para protegê-la, mas
não suponho que ela saiba tudo isso. Tudo o
queela sente é, simplesmente, um terrível mal-
estar se não limpar tudo de alto a baixo, e é
provável quese sinta horrível até mesmo quan-
doestá entregue às suas faxinas. Por isso acho
que deve existir uma porção de diferentes ma-
neiras em que poderemos ver, quando estamos
observando com atenção, que alguém está pro-
vavelmente atuando movido por um sentimen-
to de culpa e que talvez não saiba disso. Mas
temosainda a outra ponta do problema, quan-
do há um sentimento geral de culpalatente, o
qual é, creio eu, o que nosestá interessando.
CR: Sim, pensei muito sobre isso. Não posso dei-
xar de me perguntar com que fregiiência isso
pode derivar do ciúme entre a mãe e seu filho
pequeno. Correndo o risco de ser enfadonha
citarei de novo o meu caso pessoal. Quando
a minha filha nasceu, descobri — já a levara
para casa quandoisso aconteceu — que esta-
va com ciúmes de seu relacionamento com o
meu marido. Eu receava pensar, consideran-
do a coisa em retrospecto, eu não me dava en-
tão conta disso mas percebo agora, que ela rou-
baria parte das atenções que o meu marido me
SENTIMENTO DE CULPA 113

dedicava. Achava não haverlugar para ela em


nosso relacionamento conjugal. Uma vez que
reconheci isso, que era ciúme no duro, ele su-
miu. Assim que admiti tratar-se de ciúme, es-
te simplesmente desapareceu, o que penso ser
interessante. Mas me pergunto quantas outras
mães sentem ciúmes. Se têm uma filha, o que
dizer da discrepância de suas idades? Há tan-
ta ênfase nos dias de hoje, em revistas, etc.,
a respeito das mulheres terem de se mostrar
sempre jovens e bonitas, que não é impossível
para uma mulher com umafilhinha aperceber-
se subitamente do fato de que já não é tão jo-
vem quantoera, tão jovem quantoa suafilha,
de que sua vida terminou em parte, de que exis-
te essa pequena criatura cuja vida está come-
cando. Poderá ela sentir ciúmes de tudo isso?
Culpada por sentir ciúmes? Acredita que exis-
te essa possibilidade?
DWW: Bem, eu penso que aoser tão franca a seu pró-
prio respeito você está descrevendo uma das
muitas maneiras como diferentes pessoas po-
deriam sentir-se culpadas porque tiveram cer-
tas idéias a respeito dosfilhos que não estavam
esperando. No seu caso, você disse que talvez
sentisse ciúmes porque tinha uma menina e
porque estava interessada nas reações do seu
marido a respeito da menina, etc.; mas então,
se tivesse tido um menininho, as coisas teriam
sido diferentes. Assim, alguém tem um meni-
no masospais dele estão cheios de ansiedade
e sentem-se perversos quando descobrem, pa-
ra sua grande surpresa, que queriam uma meni-
CONVERSANDO COM OS PAIS

na e não um garoto; ou por qualquer outra ra-


zão não começaram por amar o bebê como
achavam que deveriam. Todo mundoalimen-
ta uma noção preconcebida de alguma espécie
de estado ideal em que tudo corre às mil ma-
ravilhas e mães e bebês se amam mutuamen-
te, e por isso penso que aquilo para que você
está chamando a atenção é apenas um exem-
plo de todo um grupo de razões pelas quais
qualquer mãe poderá ter uma emoção inespe-
rada a respeito do seu bebê e sentir-se culpa-
da, pensando que não deveria tê-la. Ou, por
exemplo, pode ser que ela conclua amar seu
bebê de um modo perfeitamente natural e isso
fazê-la sentir-se acabrunhada por achar que sua
mãe não a amou do mesmojeito, e por achar
que estava apresentando à sua mãe um exem-
plo. Quer dizer, lembro-me de ter visto uma
menina sentada no chão e sendo profundamen-
te carinhosa com uma boneca, e alguém po-
deria dizer que ela estava dizendo à sua mãe
que péssima mãe pensava que ela era para a
filha nesse exato momento. Em outras pala-
vras, considero haver uma tremenda variação
de diferentes espécies de razões pelas quais vá-
rias pessoas podem alimentar sentimentos e
emoções inesperados acerca de um bebê recém-
nascido. (Sim.) Mas ainda penso que existém
algumas coisas algo mais essenciais que devem
ser absolutamente universais, se ao menos pu-
déssemos alcançá-las.
CR: Sim, você sabe, eu estava justamente recordan-
do que, quando fazia o curso de parteira, ob-
SENTIMENTO DE CULPA 115

servei que, com bastante fregiência, a primeira


pergunta da mãe a respeito do bebê não era
“É menino ou menina?” mas “Está tudo bem
com ele?””, “É um bebê normal?””. Interessei-
me então porisso; e estou muitíssimo mais in-
teressada agora. Não posso deixar de me per-
guntar por que uma mãe deve estar com medo
de que haja algo errado com o seu bebê, é um
temor muito comum, não é? De que tenha pro-
duzido um (Sim...) um monstro ou um ser que
tenha alguma anormalidade.
DWYV-. Considero que é não só comum mas bastante
normal. Querdizer, há algumas pessoas, é cla-
ro, existe todo tipo de pessoas, tem de ser as-
sim e isso é uma boa coisa, mas algumas pes-
soas separam o fato de ter bebês do resto de
suas vidas de um modo extraordinário. Mas
não se pode dizer que seja necessariamente nor-
mal proceder assim. Com a maioria das pes-
soas, se têm filhos — há toda umafantasia de
terem muitos filhos somadaao fato de, na rea-
lidade, terem apenas um. Há toda uma fanta-
sia que pode ter aparecido em suas brincadei-
ras de serem pais, e outras em que eram os fi-
lhos, e em suas idéias. Há uma soma muito va-
riável de amor e ódio e — agressão misturada
com ternura, e assim me parece que existe al-
go inerente que poderíamos, de fato, encon-
trar em todo mundo. Quando têm um bebê,
podem perfeitamente entender racionalmente
de onde o bebê vem mas, ainda assim, em suas
fantasias, o bebê é algo que produziram e não
sentem que poderiam ter produzido algo ab-
CONVERSANDO COM OS PAIS

solutamente perfeito. E têm razão. Querdizer,


se eles tentarem pintar um quadro, ou produ-
zir qualquer outra espécie de obra de arte ou
mesmo preparar um jantar, não podem ter a
certeza de que tudo vai sair inteiramente per-
feito. E, no entanto, podem produzir um be-
bê perfeito.
CR: Isso querdizer, então, que quandoela pergun-
ta, quando a mãe faz essa perguntae a resposta
é que o bebê é normal, queele é perfeitamente
normal, que a culpa que motivou essa pergunta
desaparece... que é varrida?
DWW: Sim, é o que realmente quero dizer, que o be-
bê volta então a ser um bebê, e todas asfanta-
sias são fantasias. Mas se, por outro lado,
houver algo duvidoso a respeito do bebê, ou
a enfermeira diz laconicamente “Tudo bem”,
ou retarda um pouco a resposta, a mãe dispo-
rá nesse caso de tempo para juntar todas as
suas fantasias, seus medos e suas dúvidas, à
sua idéia do bebê, e não consegue tranqiilizar-
se. E se houver realmente algumacoisa errada
ela terá então de enfrentar um período muito
ruim em que se sente culpada porisso, porque
ela tinha essa ligação com a idéia do bebê du-
rante a gravidez. (Sim.) Com o bebê dentro de-
la. Duas coisas muito distintas, na realidade,
mas que tão facilmente não se separam se o
bebê não for, de fato, inteiramente normal.
CR: Sim, entendo.
DWW: E eu diria ainda que, por outro lado, se o be-
bê for perfeitamente normal, nesse caso o bebê
não é tão bom quanto algumas das fantasias
que ela teve a respeito do bebê.
SENTIMENTO DE CULPA 117

CR: Sim. Mas não posso deixar de pensar que se


esses sentimentos de culpa são tão comuns en-
tão devem ter um certo valor. A culpa, em si
mesma, não é umacoisa assim tão má. De um
certo modo, não serviria para encorajar o sen-
timento de responsabilidade da mãe em rela-
ção ao seu bebê?
DWW: Creio que sim. Bem, acho muitíssimo prová-
vel... faça um paralelo com a culinária, por
exemplo. Se a pessoa não tiver realmente al-
gum sentimento de dúvida, não creio que con-
siga preparar pratos muito interessantes. A
questão é que, antes de uma recepção, por
exemplo, quase todo mundose sente um pou-
co tenso e um pouco esgotado, com receio de
que algumacoisa possasair errada e, é claro,
o mais provável é que ponha na mesa comida
demais, no temor de que não seja suficiente,
e todo esse gênero de coisas... todas essascoi-
sas são praticamente universais. Mas o fato é
que os convidados chegam à recepção, diver-
tem-se e comem tudo o que lhes foi oferecido,
mesmo sendoas quantidades abundantes. Pa-
rece-me que o que você está dizendo é que é
realmente necessário para as pessoas duvida-
rem de si mesmasa fim de se sentirem plena-
mente responsáveis.
CR: Sim, sim, é isso o quesinto. Se você não se sen-
tisse um pouco culpada a respeito do seu be-
bê, não iria querer protegê-lo o máximo que
pudesse, não é? Quero dizer, se você sentisse
apenas que tudo está bem e normal o tempo
todo, e que não há a menor possibilidade de
118 CONVERSANDO COM OS PAIS

que algo saia errado, e a criança apresentasse


subitamente febre alta, você diria: “Oh, nada
podeestar errado: por que preocupar-me? Por
que chamar o médico? Não há necessidade,
não é possível que algo de ruim aconteça...”
DWW: Sim, do meu ponto devista é uma questão mui-
to prática, porque passo muito tempo vendo
mães que levam seusfilhos ao hospital, e sinto
que me procuram porque se preocupam com
seusfilhos, estão apreensivas em função de seus
filhos, e se não estivessem não se dariam conta
de quandoa criança está doente. (Sim.) Vêm
frequentemente quando a criança está muito
bem mas acham... uma dessas mães disse-me
quea criança tinha caído na véspera e machu-
cara a cabeça... e ela não tinha a certeza se o
garotinho estava bem — será queele está bem,
doutor? É inteiramentecorreto que a mãe nos
procure e a minha obrigação é provavelmente
dizer: “Sim, examinei seu filho e ele está per-
feitamente bem.”” Mas depois pondero para
mim mesmo: estou lidando com o sentimento
de culpa de uma mãe a respeito de seu filho,
que está em perfeita saúde; ela deixa de sentir-
se culpada assim que tiver cumprido sua par-
te, que foi levar a criança à consulta médica;
ou talvez não chegue a procurar o médico e
limite-se a observar e concluir que, no fim de
contas, o filho está ótimo. Mas é o sentimento
de culpa o que, de qualquer modo, a torna sen-
sível, penso eu, (Sim) e a faz duvidar de si mes-
ma. Porque tenho observado pais que não pos-
suem essa capacidade para o sentimento de cul-
SENTIMENTO DE CULPA 119

pa e que nem se apercebem de quandoseusfi-


lhos pequenos estão doentes.
CR: Sim, isso deveser bastante agradável, se assim
posso dizer, para a criança. Querdizer, para
uma criança, o mundo e suas responsabilida-
des são enormes, esmagadoras, não é? E a mãe
que está disposta a aceitar para si mesmaa res-
ponsabilidade pelas coisas que acontecem —
responsabilizar-se e protegê-lo desse modo, isso
deve ser muito agradável para a criança; a cul-
pa da mãe converte-se numa espécie de amor-
tecedor, não lhe parece? Contra o mundo em
geral.
DWW: Exato. Penso que, de um modo geral, se cada
um pudesse escolher seus própriospais, coisa
que, obviamente, não pode fazer, preferiria ter
uma mãe que alimentasse um sentimento de
culpa — de qualquer modo, que se sentisse res-
ponsável, e que sentisse, se as coisas correram
mal, queisso era provavelmente culpa dela —
em vez de uma mãe que imediatamente se vol-
tasse para algo exterior a fim de explicar tu-
do, que o problema tinha sido culpa da tro-
voada da noite anterior ou algum outro fenô-
meno externo, não assumindo a responsabili-
dade por coisa nenhuma. Penso que das duas,
porcerto os casos extremos,eu preferiria a mãe
que se sente muito responsável.
CAPÍTULO 9
O DESENVOLVIMENTO DO SENTIDO
DE CERTO E ERRADO DE UMA CRIANÇA

Palestra na BBC transmitida


em 11 de junho de 1962

Algumas pessoas pensam queas idéias de certo


e errado surgem na criança da mesma forma que o an-
dar e o falar, embora haja quem pense que temos de
implantá-las. A minha opinião pessoal é que há lugar
para algo entre esses dois extremos, lugar para a idéia
de que o sentimento de bom e mau, como tantas ou-
tras coisas, ocorre naturalmente em todacriança, des-
de que certas condições de cuidado ambiental possam
ser consideradas ponto pacífico. Essas condições es-
senciais não podem ser descritas em poucas palavras
mas consistem principalmente nisto: o meio ambiente
deve ser previsível e, no começo, altamente adaptado
às necessidades do bebê. A maioria dos bebês e crian-
ças pequenas obtêm, de fato, essas condições essenciais.
Quero apenas dizer que a base da moralidade é
a experiência fundamental do bebê de ser o seu pró-
prio e verdadeiro eu, de continuar sendo; reagir ao im-
previsível interrompe esse continuar sendo e interfere
com o desenvolvimento de um eu. Mas isto é retroce-
der longe demais para este exame. Devo passar à fase
seguinte do desenvolvimento.
122 CONVERSANDO COM OS PAIS

Quando cada bebê começaa coletar uma vasta ex-


periência de continuar sendo, à sua doce maneira, e
a sentir que existe um eu — um eu que poderá ser in-
dependente da mãe — é então que os medos começam
a dominara cena. Esses medos são de natureza primi-
tiva e baseiam-se na expectativa da criança de cruéis
retaliações. A criança fica excitada, com impulsos
agressivos ou destrutivos que se manifestam através de
gritos e desejos de morder, e imediatamente o mundo
parece estar repleto de bocas mordentes, garras e den-
tes hostis, e toda a sorte de ameaças. Assim, o mundo
infantil seria um lugar aterrador, se não fosse o papel
protetor da mãe que, de um modo geral, encobre es-
ses medos enormes que pertencem à experiência inicial
de vida do bebê. A mãe(e não estou esquecendo o pai)
altera a qualidade dos medos da criança pequena por
ser um ser humano. Ela é aos poucos reconhecida por
ele como um ser humano. Assim, em vez de um mun-
do deretaliações mágicas, a criança adquire uma mãe
que compreende e que reage aos impulsos da criança.
Mas a mãe pode ser magoada ouficar zangada. Quan-
do digo as coisas deste modo, vocês podem perceber
imediatamente que faz uma imensa diferença para a
criança se as forças retaliatórias foram humanizadas.
Em primeiro lugar, a mãe conhece a diferença entre
destruição real e a intenção de destruir. Ela diz “Ui!”
quando é mordida. Mas não fica perturbada, em ab-
soluto, quando reconhece que o bebê quer devorá-la.
De fato, considera que isso é um cumprimento, a úni-
ca maneira como o bebê pode mostrar sua excitação
amorosa. E, é claro, ela não é assim tão fácil de co-
mer. Ela diz “Ui!” mas isso apenassignifica que sen-
tiu alguma dor. Um bebê pode machucar o seio ma-
O DESENVOLVIMENTO DO SENTIDO DE CERTO E ERRADO 123

terno, sobretudo se os dentes, lamentavelmente, apa-


recerem cedo demais. Mas as mães sobrevivem e os be-
bês têm uma oportunidade de consolidar sua seguran-
ça através da sobrevivência materna. Além disso, vo-
cês dão aos bebês algo duro, não é verdade?, algo que
tem um bom valor de sobrevivência, como uma argo-
la de osso ou com guizos. Porque vocês sabem que é
um conforto para o bebê poder morder até o fim al-
guma coisa.
Desse modo, o bebê tem uma oportunidade de de-
senvolver o uso da fantasia simultaneamente com a
ação impulsiva real, e esse importante passo resulta da
atitude consistente e da confiabilidade geral da mãe.
Também essa idoneidade do meio ambiente proporcio-
na as condições adequadas nas quais pode ter lugar o
movimento seguinte no rumo do desenvolvimento. Essa
etapa seguinte é uma que depende da contribuição que
o bebê possa dar para a felicidade dos pais. A mãe está
presente no momento certo e receberá os gestos impul-
sivos que o bebê realiza na direção dela, e que tanto
significam para ela, porque são realmente uma parte
do bebê e não apenas reações. Há o sorriso reativo que
pouco ou nada significa, mas há também o sorriso que
finalmente significa que o bebê sente amor, e sente
amor naquele momento por sua mãe. Maistarde, o be-
bê esparrinha-a toda com a água do banho, ou puxa-
lhe os cabelos, ou morde-lhe o lóbulo da orelha, ou
dá-lhe um abraço, e todo esse gênero de coisas. Ou o
bebê produz uma excreção de um modoespecial que
dá a entender que a excreção tem o significado de um
presente. E que possui valor. A mãe sente-se imensa-
mente fortalecida por essas pequenascoisas, se são es-
pontâneas. Por causa disso, a criança é capaz de reali-
124 CONVERSANDO COM OS PAIS

zar um novo desenvolvimento no sentido da integra-


ção, de aceitar uma nova e mais plena responsabilida-
de por todas as coisas detestáveis e toda a destrutivi-
dade sentida nos momentos de excitação — quer di-
zer, na experiência dos instintos.
instinto mais importante para a criança é o susci-
tado pela alimentação, e isso soma-se ao fato de amar
e gostar, ao jogo afetivo. E as fantasias de comer a mãe
e o pai acabam misturando-se à realidade de comer que
é deslocada para a ingestão de alimentos. A criança
está capacitada para começar a aceitar plena respon-
sabilidade por toda essa implacável destruição porque
também conhece os gestos que indicam um impulso pa-
ra dar, e sabe por experiência que a mãe estará pre-
sente no momento em que aparecem os verdadeiros im-
pulsos amorosos. Desse modo, passa a haver uma me-
dida de controle sobre o que é agradável e o que é de-
sagradável e, mediante um processo complexo e por
causa das capacidades crescentes que habilitam a crian-
ça a conjugar várias experiências — aquilo a que cha-
mamos integração —, a criança vai ficando gradual-
mente apta a tolerar sensações de ansiedade a respeito
dos elementos destrutivos nas experiências instintivas,
conhecedora de que haverá oportunidades para repa-
ração e reconstrução. Damos um nome a essa tolerân-
cia da ansiedade. Chamamos-lhe sentimento de culpa.
Podemosver o sentimento de culpa desenvolver-se si-
multaneamente com o estabelecimento da confiança da
criança na idoneidade do meio ambiente assim como
vemos desaparecer a capacidade de sentir culpa quan-
do ocorre uma perda na confiança na idoneidade do
ambiente, como quando a mãe tem de ficar longe de
O DESENVOLVIMENTO DO SENTIDO DE CERTO E ERRADO 125

seu bebê, ou quandoela está doente ou, talvez, ape-


nas preocupada.
Logo que a criança começou a ser capaz de ali-
mentar sentimentos de culpa, ou seja, de relacionar o
comportamento construtivo com a ansiedade a respei-
to da destruição, então ela está em condições de dis-
tinguir o que é agradável do que é desagradável. Não
é uma assunção direta do senso moral dos pais, mas
um novo senso moral que se inicia como deve ser no
caso de cada novo indivíduo. O sentimento de queal-
go é justo certamente se vincula à idéia que a criança
se faz das expectativas da mãe ou dos pais, porém mais
profundamente enraizado está o significado de bom
e de mau que se associa a esse sentimento de culpa —
o equilíbrio entre ansiedade acerca dos impulsos des-
trutivos e a capacidade e oportunidade para corrigir
e construir. Tudo o que reduza os sentimentos de cul-
pa é agradável para a criança, e o que aumenta a culpa
é desagradável. De fato, a moralidadeinata da crian-
ça, na medida em que se desenvolve a partir de medos
rudimentares, é muito mais veemente do que a mora-
lidade da mãe e do pai. Só o que é real e verdadeiro
conta paraa criança. É uma senhora tarefa ensinar uma
criança a dizer “Ta!” por simples questão de boas ma-
neiras e não por gratidão.
Fica claro que, de acordo com a teoria que uso
em meu trabalho, você está possibilitando ao seu fi-
lho desenvolver um sentido de certo e errado ao ser
uma pessoa confiável nessa fase formativa inicial das
experiências de vida dele. Na medida em que cada
criança descobriu o seu próprio sentimento de culpa,
e somente nessa medida, terá algum sentido que seus
pais lhe incutam suas idéias de bom e de mau.
126 CONVERSANDO COM OS PAIS

Se não tiver êxito com o seu bebê desse modo (e


certamente se sairá melhor com um bebê do que com
um outro), terá de tirar o melhor proveito possível de
ser estritamente um ser humano, embora saiba que coi-
sas muito melhores poderiam estar acontecendo no pro-
cesso de desenvolvimento natural da criança. Se fracas-
sar por completo, então deve tentar implantar idéias
de certo e errado através do ensino e do treinamento
assíduo. Masisso é um substituto para o procedimento
realmente válido, é uma confissão de fracasso e você
vai detestar essa idéia; e, em todo caso, esse método
só funciona desde que você, ou alguém atuando no seu
lugar, esteja presente a fim de impor a sua vontade. Por
outro lado, se puder dar a partida para o seu bebê de
modo que, através da sua confiabilidade, ele desenvolva
um sentido pessoal de certo e errado, em vez de medos
primitivos e toscos de retaliação, você descobrirá mais
tarde que podereforçaras idéias de seu filho e enriquecê-
las com assuas próprias idéias. Pois quandoeles cres-
cem gostam decopiarseus pais, ou desafiá-los, o que,
em última análise, também é bom.
CAPÍTULO 10
AGORA ESTÃO COM CINCO ANOS

Palestra na BBC transmitida


em 25 de junho de 1962

Num julgamento muito recente, um doutojuiz


teria declarado, em referência ao caso de umacriança
de quase cinco anos cujos pais se separaram: “Ascrian-
ças dessa idade são notoriamente maleáveis” Não de-
sejo criticar a sentença emitida nesse caso, mas nada
nos impede de examinara seguinte questão: é verdade
queas crianças de cinco anos são notoriamente maleá-
veis? Parece-me que a maleabilidade, o “jogo de cintu-
ra”? só chega com o crescimento e a maturidade, e po-
demossustentar o ponto de vista de que não existe ne-
nhuma época no desenvolvimento de umacriança em
que se possa afirmar quea criança é maleável. Malea-
bilidade subentenderia podermos esperar complacên-
cia por parte da criança sem perigo para o crescimento
da personalidade e para o estabelecimento do seucaráter.
Na verdade, poderia se argumentar que existem
algumas características especiais dessa fase dos cinco
anos que fariam os pais ter o maior cuidado em não
descuidarsua vigilância sobre a confiabilidade ambien-
tal. Esta noite, tentarei analisar essas características es-
peciais.
128 CONVERSANDO COM OS PAIS

Vocês vêem seus filhos crescer e ficam atônitos.


É tudo tão lento e, no entanto, ao mesmo tempo, tu-
do acontece num relance. Isso é o que a coisa tem de
divertido. Há algumas semanas era um bebê. Depois
começou a dar seus primeiros passos, hoje está com
cinco anos e amanhã estará na escola. E em algumas
semanas terá praticamente começadoa ir para o tra-
balho.
Há aqui uma contradição deveras interessante. O
tempo passou lentamente e rapidamente. Ou, poderia
eu dizer, quando vocês estavam sentindo coisas desde
o ponto de vista do seu filho, o tempo manteve-se pra-
ticamente parado, ou começou parado e só gradual-
mente iniciou o seu movimento. A idéia de infinito pro-
vém dos vestígios mnêmicos de nossa infância presen-
tes em cada um de nós, antes do tempo se pôr em mar-
cha. Mas quando saltamosatravés do tempo para ter-
mos as nossas próprias experiências adultas damo-nos
conta de que cinco anos são quase nada.
Isso tem um curioso efeito sobre as relações entre
o que os pais recordam e o quea criança recorda. Pois
vocês se recordam claramente do que aconteceu há um
mês e agora, de súbito, descobrem que o seu filho de
cinco anos não se lembra davisita de sua tia ou da che-
gada do novo cãozinho de estimação. Ele se lembra
de algumascoisas, até mesmo de coisas mais antigas,
sobretudo se se falou sobreelas, e usa a saga familiar,
que aprende quase comose fosse a respeito de outrem
ou se referisse a personagens de um livro. Ele se tor-
nou agora mais consciente de si mesmo e do tempo pre-
sente, e concomitantemente com isso passou também
a esquecer.
A criança tem agora um passado e em sua mente
AGORA ESTÃO COM CINCO ANOS 129

umaalusão a coisas semi-esquecidas. Seu urso de pe-


lúcia está no fundo da gaveta, ou ele esqueceu como
ele foi importante outrora, salvo quando subitamente
sente de novo a necessidade de afagá-lo.
Poderíamosdizer quea criança está emergindo de
um cercado; os muros do cercado começaram a apre-
sentar brechas, e as sebes tornaram-se irregulares em
espessura, e vejam!, eis que ela está do lado de fora.
Nãoé fácil para a criança voltar para dentro ou sentir
queestá dentro de novo, exceto se estiver fatigada ou
doente, quando os pais reconstroem esse cercado para
benefício da própria criança.
O cercadofoi fornecido pelo pai e pela mãe, pela
família, pela casa e o pátio, e pelas vistas, ruídose chei-
ros familiares. Também pertence ao seu próprio está-
gio de imaturidade e à sua confiança na confiabilida-
de dospais, e à natureza subjetiva do mundoinfantil.
O cercado foi um desenvolvimento natural dos braços
maternos que o envolveram quando era um bebê. Vo-
cê se adaptou de um modo íntimo às necessidades do
seu bebê, e depois foi se desadaptando gradualmente,
de acordo com o ritmo emque ele se tornou capaz de
apreciar o encontro com o inesperado e o novo.
Assim, uma vez queas crianças não são realmen-
te muito parecidas umas com as outras, você descobre
que fez um cercado onde vive cada um dosseus filhos
pequenos, um para cada criança; e é desse cercado que
o seu filho ou filha agora emerge — pronto para in-
gressar numa espécie diferente de grupo, uma novaes-
pécie de cercado, pelo menos durante algumas horas
por dia. Em outras palavras, o seu filhoirá à escola.
Wordsworth referiu-se a essa mudança em sua
“Ode on the Intimations of Immortality”:
130 CONVERSANDO COM OS PAIS

“O céu estende-se à nossa volta na infância.


Sombras do cárcere começam a se adensar sobre
o adolescente...”

O poeta pressentiu aqui, seguramente, a aquisi-


ção pela criança da consciência de um novo cercado,
em contraste com a ignorância do bebê de sua depen-
dência.
É claro, vocês já iniciaram o processo usando uma
escola maternal, se porventura houver alguma muito
boa perto de onde vivem. Numa boa escola maternal,
um pequeno grupo de crianças dos 2 aos 5 anos pode
ter a oportunidade de brincar, sendo-lhes fornecidos
brinquedos adequados e talvez um chão melhor do que
aquele de que dispõem em casa, e alguém está sempre
presente a fim de supervisionar as primeiras experiên-
cias de vida social do seu filho, como desferir um gol-
pe na cabeça da criança mais próxima com sua espada
de plástico.
Mas a escola maternal não é muito diferente do
lar; ainda é um recurso especializado. A escola que es-
tamos agora considerando é diferente. A escola primá-
ria pode ser boa ou não muito boa, mas não será adap-
tativa como a maternal, não especializada exceto, tal-
vez, no início. Em outras palavras, o seu filho terá de
fazer a adaptação, vocês terão de ajustar-se ao que é
esperado de alunos na escola. Espero que ele esteja
pronto para isso porque, se estiver, muitos frutos po-
derão ser colhidos da nova experiência.
Vocês terão meditado muito sobre a melhor for-
ma de conduzir essa grande mudança na vida do seu
filho. Já falaram a respeito da escola, a criança brin-
cou de escola e aguarda com certa expectativa o mo-
AGORA ESTÃO COM CINCO ANOS 131

mento de experimentar uma ampliação dos ensinamen-


tos que vocês e outras pessoas já lhe ministraram.
Surgem dificuldades neste estágio porque as mu-
danças ambientais têm de adequar-se às mudanças que
estão acontecendo nacriança por causa do crescimento.
Estou muito familiarizado com as dificuldades de crian-
ças nessa idade e diria o seguinte: na grande maioria
de casos de dificuldades, não existe um problema pro-
fundo, nenhuma doençareal. A tensão está relaciona-
da com a necessidade de uma criança de ser rápida,
de outra deser lenta. Alguns meses fazem uma grande
diferença. Você pode sentir que seu filho cujo aniver-
sário é em novembro aguarda com impaciência ser ad-
mitido, ao passo que o seu filho cujo aniversário é em
agosto é despachado para a escola um mês ou dois ce-
do demais. Em todo caso, umacriança avança pressu-
rosa para águas mais profundas, ao passo que a ten-
dência de uma outra é ficar tiritando na beirinha da
praia e com medo de atirar-se à água. E, diga-se de
passagem, alguns dos mais afoitos retrocedem de sú-
bito e recusam-se a reemergir do cercado durante dias,
semanas ou até mais. Você precisa conhecer bem o gê-
nero defilho que tem, e por isso fala com as professo-
ras, que estão muito habituadas com tudoisso, e sim-
plesmente aguardam que a criança acabe por submeter-
se. O ponto importante é entender quesair do cercado
é muito excitante e muito assustador; e que, uma vez
fora, é terrível para a criança não poder voltar atrás,
e que a vida é uma extensa série de saídas de cercados,
de aceitação de novosriscos e de confronto com no-
vos e excitantes desafios.
Algumas crianças têm dificuldades pessoais que
as incapacitam para realizar novos avanços, e os pais
132 CONVERSANDO COM OS PAIS

precisam ajudá-las se a passagem do tempo não as


cura, ou se eles têm outras indicações de que seu filho
está doente.
Mas pode ser que haja algo errado com você, a
perfeitamente boa mãe, quando seu filho retrocede. Se
assim for, então eu creio que você não desejaria que
eu ignorasse esse fato. Explico-me.
Algumas mães funcionam em dois níveis. Num ní-
vel (poderei chamá-lo o nível de cima?), elas apenas
querem uma coisa, querem que seus filhos cresçam,
saiam do cercado, vão à escola, conheçam o mundo.
Num outro nível, suponho que mais profundo, e não
realmente consciente, não podem conceber a idéia de
deixar partir seus filhos. Nesse nível mais profundo,
onde a lógica não é muito importante, a mãe não po-
de renunciar à sua mais preciosa função, ao seu papel
maternal — ela sente ser mais facilmente maternal
quando o seu bebê depende dela do que quando, ao
crescer, ele passa a gostar mais de estar separado, in-
dependente e desafiador.
A criança capta isso com extrema facilidade. Em-
boraesteja alegre e feliz na escola, regressa a casa ofe-
gante, grita e chora em vez dese dirigir trangiilamen-
te para a porta da escola todas as manhãs. Sente pena
da mãe porque sabe que ela não suporta perdê-lo e por-
que, em virtude de sua natureza, ainda não se afez à
idéia de renunciar ao seu menino. É mais fácil para
ele se a mãe puder mostrar-se alegre por ver-se livre
dele pela manhã, e alegre por tê-lo de volta à tarde.
Muita gente, incluindo pessoas da melhor quali-
dade, sente-se um pouco deprimida uma parte do tem-
po ou a maior parte do tempo. Alimentam um vago
sentimento de culpa a respeito de algo e afligem-se com
AGORA ESTÃO COM CINCO ANOS 133

suas responsabilidades. A vivacidade da criança em ca-


sa foi um tônico perfeito. Os ruídos infantis, inclusive
seus gritos, sempre foram um sinal de vida, e deram
uma permanente sensação de segurança de que tudo
estava correndo bem. Para as pessoas deprimidas o
tempo todo, a ida da criança para a escola pode ser
sentida como se tivessem deixado algo morrer, algo pre-
ciosoe essencial. Quando chega o momento de a crian-
ça ter de frequentar a escola, a mãe teme o vazio do
seu lar e de si mesma, a ameaça de um sentimento de
fracasso pessoal interno que pode levá-la a descobrir
uma preocupaçãoalternativa. Quando a criança regres-
sa da escola, se uma nova preocupação surgiu, não ha-
verá lugar para ela, que terá de lutar a fim de reocu-
parseu lugar no centro das atenções da mãe. Essa luta
para reconquistar as atenções maternas torna-se mais
importante para a criança do que a escola.
O resultado comum é a criança converter-se num
caso de recusa da escola. Ela anseia o tempo todo por
estar na escola, e sua mãe anseia por queseu filho seja
apenas como outras crianças.
Conheci um menino que nessa fase desenvolveu
uma paixão por juntar coisas com barbantes. Estava
sempre atando as almofadas aos móveis da sala e as
cadeiras às mesas, de modo que era precária a movi-
mentação na casa. Ele gostava muito de sua mãe, mas
estava sempre incerto de recuperar o centro das aten-
ções dela, porque ficava rapidamente deprimida quan-
do o filho a deixava, e assim que o substituía por al-
guma outra coisa logo ficava também preocupada ou
duvidosa a respeito desse substituto.
Se você se sente um pouco assim, talvez a ajude
compreender queessas coisas acontecem com fregiiên-
134 CONVERSANDO COM OS PAIS

cia. Pode sentir-se feliz porque seufilho é sensível aos


sentimentos de sua mãe e de outras pessoas, mas la-
mentar que sua ansiedade inexpressa e mesmo incons-
ciente faça a criança sentir pena de você. Ele é incapaz
de sair do cercado.
Você pode ter tido uma experiência dessa dificul-
dade com que ele se depara numa data anterior. Por
exemplo, pode ter achado difícil desmamá-lo. Pode ter
chegado a reconhecer um padrão na relutância dele em
dar novos passos ou explorar o desconhecido. Em ca-
da um desses estágios, estava ameaçada de perder a
dependência de seu filho de você. Estava no processo
de adquirir um filho com independência e um ponto
de vista pessoal sobre a vida, e embora você pudesse
entender as vantagens disso não conseguia fazer a ne-
cessária liberação de sentimentos. Existe uma relação
muito estreita entre o estado de espírito vagamente de-
pressivo — essa preocupação com ansiedades indefi-
nidas — e a capacidade de uma mulher para dar toda
a sua atenção a um filho pequeno. Não posso realmente
falar de uma coisa sem fazer referência à outra. A
maioria das mulheres vive, suponho eu, numa área li-
mitrofe.
As mães têm de passar por toda a espécie de ago-
nias, e é bom quando os bebês e as crianças pequenas
não têm de ser envolvidas nelas. Não lhes faltam as
agonias próprias. Narealidade, eles preferem ter suas
próprias agonias, tal como gostam de novas habilida-
des e de uma visão mais ampla, e de felicidade.
O que é isso a que Wordsworth chama “*as som-
bras do cárcere?” Na minha linguagem, é a passagem
da existência da criança pequena num mundo subjeti-
vo para a existência da criança mais velha num mun-
AGORA ESTÃO COM CINCO ANOS 135

do de realidade partilhada. O bebê parte de um con-


trole mágico do meio ambiente — se lhe forem dispen-
sados bons cuidados — e cria o mundo de novo, in-
cluindo a mãe e a maçaneta da porta. Aos cinco anos
de idade, a criança passou a ser capaz de perceber a
mãe como ela é, a reconhecer um mundo de maçane-
tas de portas e outros objetos que existiam antes de
sua concepção, e a admitir o fato da dependência jus-
tamente na época em que está ficando verdadeiramente
independente. É tudo uma questão de sincronia, e creio
que as mães estão administrando isso na perfeição. Seja
como for, as pessoas o fazem em geral. Há muitas ou-
tras maneiras em que a vida pode afetar o seu filho
nessa idade. Mencionei antes o urso de pelúcia. O seu
filho pode muito bem estar viciado em algum objeto
especial. Esse objeto especial, que foi outrora um co-
bertor ou um guardanapo ou um cachecol ou uma bo-
neca de trapo, tornou-se importante para ele ou ela an-
tes ou depois do primeiro aniversário e especialmente
em momentos de transição, como da vigília para o so-
no. É imensamente importante; é tratado de forma
abominável; até fede. Você tem muita sorte se a crian-
ça usa esse objeto e não você mesma, ou o lóbulo de
sua orelha, ou os seus cabelos.
Esse objeto associa a criança à realidade externa
ou compartilhada. É parte da criança e da mãe. Para
um deseus filhos tal objeto não tem qualquerutilidade
durante o dia, mas um outro leva-o para todo lugar
onde for. Aos cinco anos, a necessidade dessa coisa
pode não ter cessado mas muitas outras coisas podem
tomar o seu lugar — a criança gosta de olhar histórias
em quadrinhos, tem grande variedade de brinquedos,
duros e macios, e há toda a vida cultural aguardando
136 CONVERSANDO COM OS PAIS

para enriquecer a experiência de vida da criança. Mas


você pode ter problemas quando seu filho começar a
ir à escola, você precisará que a professora vá com cal-
ma e não comece por proibir autoritariamente a pre-
sença desse objeto na sala de aula. Esse problema
resolve-se quase sempre em poucas semanas.
Eu diria que a criança está levando para a escola
um pedaço de seu relacionamento com a mãe que da-
ta do tempo de sua dependência infantil, do tempo de
bebê, quandoestava apenas começandoa reconhecer
a mãe e o mundo como separados do seu eu.
Se as ansiedades a respeito de ir para a escola se
resolvem, então o menino estará apto a renunciar à com-
panhia desse objeto e a levá-lo sempre consigo, trocan-
do-o agora por um caminhão ou uma locomotiva a re-
boque de um barbante e por jujuba nos bolsos, e a
menina talvez tenha um bebê secreto numa caixa de
fósforos. Em todo caso, as crianças podem sempre
chupar o polegar ou roer as unhas, se estiverem en-
frentando dificuldades. À medida que vão adquirindo
confiança, renunciam usualmente a essas coisas. Vo-
cês aprendem a esperar que as crianças mostrem an-
siedade a respeito de todos os lances que as afastem
de ser parte integrante de vocês e do lar e as aproxi-
mem da cidadania do vasto mundo. E a ansiedade po-
de manifestar-se como um regresso aos padrões infantis
que misericordiosamente subsistem a fim de assegurar
uma renovação da confiança. Esses padrões convertem-
se numa espécie de psicoterapia intrínseca que retém
sua eficácia porque vocês, mães, estão vivas e dispo-
níveis, e porque estão fornecendo o tempo todo um
elo entre o presente e as experiências dos primeiros anos
AGORA ESTÃO COM CINCO ANOS 137

de vida dosseus filhos, das quais os padrões infantis


deles são relíquias.
Umaoutra coisa. As crianças são propensas a sen-
tir-se desleais se gostam de estar na escola e se gostam
de esquecer a família e a casa durante algumas horas.
Assim, podem sentir-se vagamente ansiosas quandose
aproximam deregresso ao lar, ou retardam esse regres-
so sem saber por quê. Se você tiver algum motivo para
estar zangada com o seufilho, por favor não escolha
o momento em que regressa a casa para expressar a
zanga. Você também podeestar enfadada por ter sido
esquecida, de modo que tenha cuidado com as suaspró-
prias reações aos novos desenvolvimentos. Seria me-
lhor não se mostrar mal-humorada a respeito da tinta
na toalha de mesa enquanto nãotiver sido restabeleci-
do o contato entre você e o seu filho.
Estas coisas não apresentam grande dificuldade
se as mães souberem o que está acontecendo. Crescer
não é só um marderosas para a criança e, para a mãe,
é fregiientemente um caminho cheio de espinhos.
CAPÍTULO 11
A CONSTRUÇÃO DA CONFIANÇA

Escrito em dezembro de 1969

Deveria ser fácil escrever a respeito do estresse


próprio da tenra idade, simplesmente porque todossa-
bem queas crianças muito pequenas necessitam de cui-
dados contínuos e seguros, pois caso contrário não se
desenvolvem de forma apropriada. Noestágio seguin-
te do desenvolvimento individual, esperamos que as
crianças tenham reunido em si mesmas inúmeras amos-
tras de boa assistência, e que tenham avançado com
umacerta dose de crença, crença nas pessoas e no mun-
do, pelo que fica muito difícil demovê-las num senti-
do ou no outro. Nesseestágio inicial, porém, essa cren-
ça nascoisas e essa confiança nas pessoas ainda está
em processo de construção.
Isso é a principal coisa que notamosa respeito das
crianças muito pequenas: que, embora acreditem em
nós, sua fé pode ser facilmente destroçada. Por essa
razão, somos especialmente cuidadosos em tratar as-
pectos essenciais de maneira confiável.
Entenda-se que não fazemos isso mediante um es-
forço deliberado ou pelo estudo de livros ou ouvindo
palestras, mas fazemo-lo porque as crianças pequenas
140 CONVERSANDO COM OS PAIS

extraem tudo o que há de melhor em nós, de modo que


durante algum tempo comportamo-nos muitíssimo
bem. Nãobrigamos nem discutimos em público — quer
dizer, diante das crianças, e nos permitimos parecer uni-
dos pelo simples fato da existência das crianças.
Algumas pessoas ficam tão absorvidas na condu-
ção de suas próprias vidas e de seus difíceis tempera-
mentos, que não podem fazer pelas crianças aquilo
de que as crianças precisam, mas as crianças podem
entender muita coisa desde que um larexista e os pais
sejam vistos juntos, se houver calor mesmo num cli-
ma frio, e alimento que possa ser esperado e apre-
ciado, e a ausência de súbitos ruídos imprevisíveis que
machucam fisicamente e não podem ser atenuados nem
satisfatoriamente explicados. Com condições físicas
que podem ser conhecidas e, por assim dizer, domi-
nadas, as crianças são capazes de suportar uma certa
tensão nas relações entre os pais, uma vez que, para
elas, é uma boa coisa que, de qualquer modo, os pais
aí estejam, vivos e mostrando seus sentimentos. Ao
mesmo tempo, é verdade que o crescimento de crian-
ças pequenas é mais facilmente realizado se elas tive-
rem pais num tranqúilo relacionamento mútuo. Com
efeito, é o mundointerpessoal dos pais que é simboli-
zado, para a criança, pela estabilidade do lar e pela
animação da rua, e não o inverso, ou seja, que o lar
e a rua encontram seu simbolismo nas relações mú-
tuas dos pais — o queestá muito longe de correspon-
der à verdade.

Nenhum idealismo
Tenhodeser cuidadoso. Ao descrever com tanta
desenvoltura o que as crianças muito pequenas neces-
A CONSTRUÇÃO DA CONFIANÇA 141

sitam, pode parecer que espero dos pais a impecável


conduta de anjos altruístas num mundo ideal, como
um jardim suburbano no verão, com o pai cortando
a grama, a mãe preparando o jantar dominical e o cão
ladrando por cima da cerca para o cão do vizinho.
Pode-se dizer das crianças, mesmo de bebês, que não
são muito boas no tocante à perfeição mecânica. Pre-
cisam de seres humanos à sua volta que tenham êxitos
e fracassos.
Gosto de usar as palavras “suficientemente bons”.
Pais suficientemente bons podem ser usados por be-
bês e crianças pequenas, e suficientemente bonssigni-
fica você e eu. Para sermos coerentes e, assim, previ-
síveis para os nossosfilhos, devemos ser nós mesmos.
Se formos nós mesmos, os nossos filhos podem pas-
sar a conhecer-nos. Se estivermos representando um
papel, seremos certamente descobertos quando nos sur-
preenderem sem as nossas máscaras.

Perigo do ensino
O meu problema consiste em encontrar um modo
de dar instrução sem instruir. Há um limite para o va-
lor de ser ensinado. Com efeito, é importante para os
pais que começam a procurar conselhos nos livros que
saibam nãoter a obrigação de saber tudo. A maior par-
te das coisas que ocorrem no bebê ou criança pequena
emdesenvolvimento acontecem quer os pais entendam
ou não, simplesmente porquea criança possui uma ten-
dência herdada para o desenvolvimento. Ninguém tem
de fazer uma criança faminta, irada,feliz, triste, afe-
tuosa, boa ou travessa. Essas coisas simplesmente acon-
tecem. Você já concluiu essa parte da sua responsabi-
lidade e estabeleceu os detalhes das tendências herda-
142 CONVERSANDO COM OS PAIS

das pelo seu filho quando escolheu um companheiro


e um espermatozóide penetrou num óvulo. Nesse mo-
mento decisivo, o livro sobre hereditariedade foi fe-
chado e as coisas começaram a se realizar em função
do corpo, da mente, da personalidade e do caráter do
seu filho. É uma questão de fisiologia e anatomia. O
modo comoessas coisas se processam e realizam é ex-
tremamente complicado, e se você quiser podem con-
sumir umavida inteira num interessante projeto de pes-
quisa relacionado com o desenvolvimento humano;
contudo, tal trabalho não lhe proporcionará qualquer
ajuda com o seu próprio filho, que necessita realmen-
te de você.

O que saber
O que é, pois, que os pais podem proveitosamen-
te saber? Eu sugeriria que há duas coisas principais a
saber, uma relacionada com o processo de crescimen-
to e que pertence à criança; e a outra que se relaciona
com o suprimento ambiental e é predominantemente
de responsabilidade dos pais.

O processo de crescimento
Umavez que tenhaficado perfeitamente óbvio pa-
ra os pais que o seu bebê tem uma tendência inegável
para viver, respirar, comer, beber e crescer, será uma
questão de sensatez partirem, desde o princípio, do
pressuposto de que essas coisas são verdadeiras.
Ajuda muito saber que os pais nada têm a fazer
para transformar seu bebê numacriança pequena, pa-
ra que a criança cresça boa ou asseada, para tornar
generosa a criança boa, para tornar sagaz a criança ge-
A CONSTRUÇÃO DA CONFIANÇA 143

nerosa quando tem de escolher presentes certos para


a pessoa certa.
Se se colocarem a uma certa distância, não tarda-
rão em observar o processo de desenvolvimento em
ação, e vocês ganham uma sensação de alívio. Vocês
iniciaram algo que tem seu próprio dinamismo intrín-
seco. E estarão procurando os freios.
Todos os comentários que faço devem ser modi-
ficadospela outra observação, que é esta: não há duas
crianças iguais, de modo que vocês podem preocupar-
se com a falta de vivacidade de uma criança e o dina-
mismo de uma outra. Maso princípio central mantém-
se em todos os casos, ou seja, que são os processos de
desenvolvimento próprios da criança que fazem as mu-
danças que vocês estão aguardando.
Assim, O primeiro princípio útil tem a ver com as
tendências inatas que pertencem a cada criança pequena.

O meio ambiente
O segundo princípio útil relaciona-se com o lugar
especial que você ocupa como meio ambiente e como
provedor ambiental. Ninguém tem de provar para vo-
cê que um bebê necessita de afeto, calor e tratamento
suave depois de nascer. Você sabe queisso é verdade.
Se alguém duvidar, compete a ele ou ela provar que
você está errada.
No fim de contas, você também foi bebê e possui
lembranças para guiá-la, além de tudo o que podeter
aprendido quando observa e participa nos cuidados dis-
pensados a bebês.
O ambiente que a mãe fornece é primordialmente
ela mesma, a sua pessoa, a sua natureza, as suas ca-
racterísticas distintas que a ajudam a saber que é ela
144 CONVERSANDO COM OS PAIS

mesma. Isso inclui, é claro, tudo o que você reúne à


sua volta, o seu aroma, a atmosfera que a acompanha,
e também inclui o homem que resulta ser o pai do be-
bê, e outras crianças, se o casal tem porventura mais
filhos, assim como os avós, os tios e as tias. Em ou-
tras palavras, não estou fazendo mais do que descre-
ver a família que o bebê vai gradualmente descobrin-
do, no que se incluem ascaracterísticas do lar quetor-
nam um lar totalmente diferente de qualquer outro lar.

Interação
Temos, pois, duas coisas distintas: as tendências
inatas do bebê e o lar que você lhe proporciona. A vi-
da consiste na interação dessas duas coisas. No início,
a interação desenrola-se sob o seu próprio nariz, e de-
pois prossegue fora da área das suas cercanias imedia-
tas — na escola, ou nas amizades, ou numa colônia
de férias e, é claro, dentro do espírito ou na existência
pessoal do seu menino ou menina.
Se assim desejasse, você poderia consumir seu tem-
po comparando o comportamento de seu filho peque-
no com algum modelo queestabeleceu, baseado no mo-
delo de sua própria família, ou no modelo transmitido
por alguém que você admira. Mas pode ter uma expe-
riência muito mais rica e mais proveitosa se comparar
a luta pessoal da criança pela independência com a de-
pendência que você possibilitou porqueseu filho tinha
plena confiança em você e na estrutura geral do seu lar.

Duas espécies de estresse


Delineei o desenvolvimento da criança deste mo-
do a fim de simplificar a minha tarefa de descrição do
A CONSTRUÇÃO DA CONFIANÇA 145

estresse. É possível dizer que o estresse chega de uma


de duas direções; embora na prática devamos esperar
a ocorrência de combinações.

O processo interno
A primeira relaciona-se com o fato de que o pro-
cesso de desenvolvimento no indivíduo humano é ex-
tremamente complicado, e as coisas podem desarran-
jar-se de dentro para fora. É disso que se ocupa a psi-
canálise. Não há a menor necessidade de que os pais
ou aqueles que cuidam de crianças pequenas saibam
em que consistem as tensões e estresses que são ine-
rentes ao estabelecimento da personalidade e do cará-
ter individuais e à capacidade gradualda criança para
relacionar-se com a família e a comunidade, para tor-
nar-se parte da sociedade sem uma perda excessiva de
impulso e criatividade pessoais.
Os pais e outras pessoas que lidam com crianças
podem considerar essas questões de extremo interes-
se; mas o importante é serem capazes de captara coi-
sa imaginativamente em vez de a entender.
O seu filho está brincando debaixo da mesa, le-
vanta-se e bate com a cabeça no tampo da mesa. Ele
corre para você e prepara-se para soltar um belo ber-
reiro. Você faz os ruídos apropriados, coloca a sua mão
onde a cabeça está doendo talvez remate com um bei-
jo. Minutos depois, tudo está bem e a brincadeira sob
a mesa é reatada. Qual teria sido a vantagem se você
tivesse podido escrever uma tese sobre os vários aspec-
tos desse evento?
(1) Esse é o modo comoas crianças aprendem en-
quanto estão brincando. Elas devem olhar antes de
pular...
146 CONVERSANDO COM OS PAIS

(2) A mesa não bateu realmente na cabeça da


criança mas, nessa idade, a primeira suposiçãoserá des-
se gênero, e uma criança tem mais probabilidades do
que outra de aderir à teoria ““persecutória”” do trau-
ma; isso relaciona-se com uma dificuldade em aceitar
a própria agressividade e talvez com a raiva que se per-
deu por causa do caráter doloroso da experiência para
um bebê ou criança pequena que ainda não está muito
certa de permanecer integrada quando uma poderosa
emoção é suscitada.
(3) Seria esse um bom momento para fazer uma
preleção: “Está vendo, se você fica zanzando por aí
sem pensar vai acabar se machucando, e um dia...”
Não, penso ser melhor quandoa coisa toda é se-
lada com um beijo curativo, simplesmente porque vo-
cê sabe o que estaria sentindo se fosse essa criança pe-
quena que foi agredida na cabeça por uma detestável
e dura mesa vingativa. Chama-se a isso empatia e se
você não a tiver não poderá aprendê-la em parte ne-
nhuma.
Mas, é claro, você poderia ser uma pessoasolitá-
ria, e esse golpe na cabeça poderia se converter numa
oportunidade providencial para você estabelecer con-
tato com alguém, de modo que você beija e abraça e
deita a criança,fica sentimental; talvez chame primei-
ro um médico para certificar-se de que não houve ne-
nhuma lesão interna!
Nesse caso, a criança desencadeou em você algo
que se relaciona com os seus próprios problemas, e o
resultado para a criança é perplexidade. Isso está fora
do alcance da compreensão infantil e, ao considerar-
mos o episódio, afastamo-nos dos processos inerentes
à vida e desenvolvimento da criança. Feliz é a criança
A CONSTRUÇÃO DA CONFIANÇA 147

que, de um modo geral, tem liberdade para enfrentar


no dia-a-dia as experiências das novas coisas que vão
ficando ao alcance de sua crescente capacidade.
Muita coisa acontece nos sombriosinterstícios da
sua aspidistra, se você possuir uma, mesmose você foi
completamente ignorante em biologia; no entanto, po-
de ser famosa na rua onde mora por causa de sua as-
pidistra e suas folhas impecavelmente verdes, sem bor-
das marrons.
Não existe estudo mais fascinante do que o modo
como um bebê se torna uma criança, um adolescente
e um adulto, mas um estudo do que é conhecido não
faz parte do queos filhos necessitam de seus pais. Tal-
vez para professores e aqueles que estão algo mais se-
parados da criança do que os pais nas experiências da
vida cotidiana haja mais a dizer em favor de um estu-
do do que é conhecido e não é conhecido dos proces-
sos de desenvolvimento. Certamente aqueles que cui-
dam de crianças anormais e aqueles que resolveram tra-
tar crianças que estão doentes em termos de desenvol-
vimento emocional e em termos de personalidade e ca-
ráter, essas pessoas precisam, de fato, proceder a um
estudo profundo desse assunto.
É tentador começar a descrever as dificuldades
que são inerentes. Bastará dar dois exemplos. Um é
o problema universal da ambivalência, amar e odiar
a mesma pessoa ou coisa ao mesmo tempo. O outro
é a experiência, por que cada criança deve passar em
maior ou menor grau, de sentir-se em perfeita harmo-
nia com as pulsões instintivas quando estas se mani-
festam nos órgãos corporais ou, alternativamente, sen-
tir-se mais à vontade com o sexo oposto ao dela.
148 CONVERSANDO COM OS PAIS

Existem muitos outros conflitos que vemos os nos-


sos filhos pequenos sofrerem e tentarem resolver, e sa-
bemos que muitas crianças adoecem porque não con-
seguem encontrar uma solução viável. Mas não com-
pete aos pais tornarem-se psicoterapeutas.

O suprimento ambiental
O suprimento ambiental contrasta com o funcio-
namento do processo interno na criança. Trata-se de
você, de mim, da escola e da sociedade, e isto nosin-
teressa de outra forma porque somos responsáveis.
Para bebês e crianças pequenas, o suprimento am-
biental ou fornece uma oportunidade para que ocorra
o processo interno de crescimento, ou então impede
que tal aconteça.
A palavra-chave poderia ser “previsibilidade”. Os
pais, sobretudo a mãe no começo, têm um trabalho
enorme para proteger a criança do que é imprevisível.
Ver-se-á que, num ritmo rápido ou lento, esta ou
aquela criança está apta a fazer suas deduções, a tirar
suas conclusões e a derrotar a imprevisibilidade. Há
aí uma surpreendente variação, de acordo com a ca-
pacidade da criança pequena para derrotar a imprevi-
sibilidade. Mas subsiste a necessidade da presença da
mãe. Uma avião voa sobre as nossas cabeças. Isso po-
de ser lesivo até para um adulto. Nenhuma explicação
é valiosa para a criança. O que é valioso é que você
mantenha a criança estreitamente abraçada, e que ela
use o fato de você não estar apavorada; logo ela se des-
prenderá de você para ir brincar de novo. Se você não
estivesse presente, a criança poderia ter sofrido um da-
no irreparável.
Este é um exemplo rudimentar, mas estou mos-
trando que, por esse modo de encarar os cuidados com
A CONSTRUÇÃO DA CONFIANÇA 149

as crianças pequenas, o estresse pode ser descrito em


termosdefracasso do suprimento ambiental, justamen-
te onde a confiabilidade se faz necessária.
É a mesma coisa quando uma mãedeve deixar um
filho pequeno num hospital por alguns dias, como foi
enfatizado por Bowlby, e também por James e Joyce
Robertson em seu pungente filme “A Two-Year-Old
Goes to Hospital”. Por volta dos dois anos de idade,
a criança passou realmente a conhecer a mãe como pes-
soa, eé a ela própria que a criança quer ter, não ape-
nas seus desvelos e proteção. O estresse nessa idade
provém do fato de que a mãe está ausente durante um
período de tempo que é mais extenso do que aquele
durante o qual a criança pode manter viva a imagem
mental da mãe, ou pode sentir sua presença viva no
mundo imaginativo do sonhoe do jogo, por vezes cha-
mado “a realidade psíquica interior”. Médicos e en-
fermeiras estão atarefados em sua missão decuidar do
corpo e, com fregiiência, não sabem ou não têm tem-
po para considerar o fato de que, em decorrência de
uma separação excessivamente longa, a personalidade
de umacriança pode ser completamente alterada atra-
vés da interferência ambiental, e pode ser estabelecida
a base para um distúrbio de caráter que não podere-
mos corrigir.
É sempre a mesma coisa: havia um suprimento
ambiental suficientemente bom em termos de previsi-
bilidade, de acordo com a capacidade de previsão da
criança, e depois sobreveio uma inconfiabilidade que
rompeu automaticamente a continuidade do processo
de desenvolvimento da criança. Depois disso, a crian-
ça tem uma lacuna na linha entre o agora e asraízes
do passado. Tem de haver um recomeço. Muitos des-
150 CONVERSANDO COM OS PAIS

ses recomeços resultam num fracasso na criança do sen-


timento de eu sou, este sou eu, eu existo, sou eu quem
ama e odeia, sou eu quem as pessoas vêem e que eu
vejo no rosto de outro quando ela vem, ou no espe-
lho. Os processos de crescimento tornam-se distorci-
dos porque a integridade da criança foi quebrada.

Estudo de fatores ambientais


A minha tendência é mais para jogar água fria so-
bre a idéia de que os pais devem estudar os processos
de desenvolvimento inerentes ao crescimento indivi-
dual, e baseados em propensões hereditárias. Não es-
tá tão claro para mim queseja inútil um estudo do su-
primento ambiental. Sem dúvida, se as mães sabem que
o que elas fazem é de vital importância para os bebês
e crianças pequenas, estarão numa posição mais forte
para lutar por seus direitos quando é levianamente su-
gerido que mães e bebês, ou mães e filhos pequenos,
deviam ser separados. Isso significa com frequência que
o bebê será cuidado de forma impessoal.
O mundo tem muito o que aprender a esse respei-
to, sobretudo os médicos e enfermeiras que estão pri-
mordialmente interessados na saúde e na doença em
termos corporais. Quanto a isso, mães e pais devem
lutar por sua própria causa, porque ninguém mais po-
de lutar por eles. Ninguém mais, na realidade, se im-
porta tanto quanto os próprios pais.
Isto leva-me ao último ponto que desejo enfati-
zar, a saber, que mesmo essa questão de suprimento
ambiental, confiabilidade, adaptação às necessidades
infantis, não precisa ser aprendida. Existe algo em ter
um bebê(até na preparação para adotar um bebê) que
altera os pais. Eles passam a estar orientados para a
A CONSTRUÇÃO DA CONFIANÇA 151

tarefa especial. Quero dar a isso um nome e por isso


chamei-lhe a “Preocupação Maternal Primária”, mas
um nome é só um nome.
Esta orientação nosentido das necessidades do be-
bê depende de muitas coisas, uma das quais é que a
mãe e o pai carreguem realmente consigo lembranças
de terem sido eles próprios bebês e de terem sido cui-
dados em termos de confiabilidade, proteção da im-
previsibilidade, oportunidade de avançar com a ques-
tão eminentemente individual do crescimento pessoal.
Assim, de um certo modo, a natureza tomou pro-
vidências para suprir essa necessidade muito aguda ou
até absoluta de bebês e crianças pequenas ao tornar
natural que ospais estreitassem temporariamente seu
mundo, apenas por alguns meses, de maneira que o
mundo ficasse ali no centro e não a toda a volta, do
lado de fora.

Resumo
O estresse pode ser encarado, portanto, de duas
maneiras. Uma das maneiras leva-nos ao estudo dos
estresses e tensõesinerentes ao crescimento emocional.
A outra maneira tem umasignificação mais prática (a
menos que sejamos psicanalistas), na medida em que
o estresse resulta de um fracasso relativo ou total do
suprimento ambiental. Essas deficiências podem ser
descritas em termos de inconfiabilidade, destruição da
confiança, interferência da imprevisibilidade, e um pa-
drão definitivo ou repetitivo de quebra da continuida-
de da linha de vida da criança individual.
De um modo geral, aquelas pessoas que cuidam
de crianças são encontradas porseleção meticulosa, não
ensinadas em aulas. Os bebês são excelentes na sele-
152 CONVERSANDO COM OS PAIS

ção de suas próprias mães, pelo menos no quediz res-


peito a essa questão de preocupação maternal primá-
ria. Para além disso, não sei se lhes daria umaclassifi-
cação tão alta. Maseles têm de fazer uso do que des-
cobriram ter como pais.

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