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O Eneagrama da Sociedade
Curando a alma
Para curar o mundo
O Eneagrama
da sociedade
Curando a alma
para curar o mundo
Tradução para Português por @ MBTILogia
4
Conteúdo
I. Paixões, Patologias e motivações neuróticas | 6
Eneatipo 2: Orgulho | 30
Eneatipo 3: Vaidade | 35
Eneatipo 4: Inveja | 39
Eneatipo 5: Avareza | 41
Eneatipo 6: Covardia | 45
Eneatipo 7: Gula | 48
Eneatipo 8: Luxúria | 53
Eneatipo 9: Indolência | 59
Eneatipo 1: Raiva | 87
Eneatipo 2: Amor-paixão | 71
Eneatipo 3: Amor-narcísico | 75
Eneatipo 4: Amor-doença | 79
Eneatipo 7: Amor-prazeroso| 89
Eneatipo 8: Amor-dominador | 93
Eneatipo 9: Amor-complacente | 95
Eneatipo 1: Amor-superior | 98
Autoritarismo | 102
Repressão | 108
Mercantilismo | 110
Dependência | 114
Conclusão | 119
6
O pecado original, no entanto, não é apenas o que nos chegou dos tempos
originais por meio de uma praga emocional (ou continuidade cármica)
através das gerações. Duas noções sobrepõem-se na noção de pecado
original: a ideia de pecado transmissível e o princípio do pecado, a sua
“fonte” no sentido especial de princípio (arché) ou de fundamento — uma
essência da queda para além das diversas manifestações de consciência no
seu exílio do paraíso.
Santo Agostinho disse desta meta-sin que o pecado original consiste num
aspecto de ignorância e outro de dificuldade. Hoje, traduziríamos isto
como: uma desordem de consciência e uma interferência na ação. Um
elemento não explícito desta dicotomia agostiniana, embora comummente
entendido como um aspecto essencial do pecado, é o que os teólogos (como
o Venerável Bede) chamaram “concupis-cência”— equivalente ao que os
budistas também viram no coração do pecado: um hiper-desejo (trishna,
apego).
Foi dito que os pais do deserto conseguiram elaborar a teoria dos pecados
porque também tinham a prática. Evágrios foi herdeiro de Origenes e de
Gregório de Nissa, bem como discípulo direto de um que Dante, no seu
9
Citando Evágrios:
O medo de Deus fortifica a tua fé, meu filho. A continência, por sua vez,
afirma este medo. A paciência e a esperança fazem desta virtude algo de
sólido e implacável e dão à luz a apatheia. No entanto, esta apatheia dá
origem ao ágape, que guarda a porta para um conhecimento profundo da
criação. Este conhecimento é finalmente sucedido pela teologia (ou seja,
naturalmente, pela sabedoria ou gnosis) e pela suprema bem-aventurança.
A lista de Evágrios inclui, para além do orgulho (que encabeça a atual lista
gregoriana, mas foi a última na sua), a vanglória. Descreve-o como um
pecado sutil que se desenvolve facilmente nas almas que praticam a
virtude, e que as leva a querer que os seus esforços sejam conhecidos
publicamente, uma vez que procuram o reconhecimento. Para além dos sete
pecados que o nosso sistema gregoriano reconhece, Evágrios reconhece a
culpa pela qual o diabo é por vezes reconhecido quando é chamado “o
senhor da mentira”. Mesmo antes de Evágrios, no Testamento dos
Patriarcas, fala-se da “espiral da mentira” e parece que Evágrios herdou
uma tradição mais antiga que reconhece o “espírito da mentira” como algo
subjacente aos outros sete. Um perito em caráteres humanos talvez hoje em
dia considere as expressões “falsidade” ou “inautenticidade” mais
apropriadas. É por isso que, estritamente falando, não se deve pensar numa
doutrina diferente quando os teólogos subsequentes falavam dos sete
pecados capitais. Pode dizer-se que o reconhecimento deste seteto, deste
espectro ou deste arco-íris do pecado é comum às épocas anteriores e
subsequentes.
10
Menciono a inveja em primeiro lugar, uma vez que Melanie Klein é hoje
mais lembrada do que Karen Horney, que nos deixou a sua visão da
neurose como uma venda da alma ao diabo em troca de glória. Embora
para Horney, o orgulho e a “tirania do dever” parecessem ser fundamentais
em todas as neuroroses (sustentados pela necessidade de manter a imagem
idealizada que o orgulho exige e sustenta), não acredito que Melanie Klein
nos tenha deixado explicitamente uma doutrina de inveja como uma
psicopatologia fundamental. Contudo, parece-me que ela o faz com a sua
visão da inveja como uma espécie de pecado original: uma doença que nos
11
Digo de medo e não outra coisa, porque o medo tem sido a interpretação
mais comum em psicologia desde Freud: pode-se dizer que a ansiedade
(medo irracional) é para a teoria de Freud o que o espírito mentiroso é para
a de Evágrios, nomeadamente um mal fundamental, a raiz da consciência
doentia.
É curioso que o cristianismo, que tanto exaltou o sangue dos mártires, não
tenha incluído a cobardia entre os seus pecados. Ou melhor, não é assim tão
curioso. Nietzsche, na sua Genealogia da Moral, deixou-nos a teoria de
que o nosso ethos deriva tanto do povo judeu, que escapou à eslavidez
apenas para voltar a ela com o seu exílio, como desde cedo, perseguiu o
cristianismo. Nietzsche censura o cristianismo por aquilo a que chamou “a
moral dos escravos”, a moral dos homens castrados — diríamos nestes
tempos pós-freudianos dos nossos — que se concentrou na virtude da
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Qualquer pessoa que tenha sondado todo o terreno que citei em relação aos
pecados estará certamente interessado numa teoria psicológica que
encapsula tudo isto ao mesmo tempo que a ultrapassa, tal como a teoria que
inspirou este livro.
Não sei quantos dos meus leitores conhecem as ideias de Gurdjieff através
do testemunho que Ouspensky nos deixou das suas conversas, ideias, e
atividades. Quando perguntei às pessoas que vieram ter comigo à
Califórnia (onde eu era ativo na década de 1970) de onde vinham de seus
cultos — quais tinham sido as suas fontes, que coisas se destacavam na sua
autobiografia espiritual — Gurdjieff foi mencionado por pelo menos
metade deles. Embora até há pouco tempo o seu nome fosse pouco
conhecido no mundo, ele estava especialmente presente para muitos
buscadores com um bom sentido de “cheiro, olfato, ou como ele diria,
“com um centro magnético bem desenvolvido”.
Ichazo disse, como Gurdjieff antes dele, que é difícil para as pessoas
conhecerem os seus próprios defeitos fundamentais. E tal como o auto-
diagnóstico é difícil, o mesmo acontece com o diagnóstico de outro.
Ichazo, no entanto, era um especialista e o seu legado nesta matéria foi
apontar a paixão dominante em cada um de nós que trabalhamos com ele.
O mapa que ele utilizou como guia nesta matéria foi uma aplicação
específica do eneagrama de personalidade: o eneagrama das paixões.
Espero que outros achem essa visão da neurose tão inspiradora quanto eu;
implica uma visão “terapêutica” no sentido amplo de uma concepção do
processo de libertação: é um processo de tomada de consciência, que é
acompanhado por um desmascaramento de si perante os outros, por uma
superação de inibições e uma relativa transcendência do medo. De modo
mais geral, um psicoterapeuta que conheça o eneagrama inevitavelmente
contemplará o processo terapêutico como um processo de ir contra a
corrente das nove paixões que examinaremos neste capítulo.
Para uma pessoa em quem a raiva constitui uma paixão dominante, mas
que não está visivelmente irada, a violência manifestada é a expressão
característica da luxúria. Quando esse caráter predomina, a atitude
psicológica não é negar ou controlar a agressão, mas, ao contrário, super
valorizá-la. Enquanto a raiva é uma mão rígida que controla, a luxúria
envolve uma negação desafiadora ao controle repressivo.
seus objetos a não ser por medo? Naturalmente, não estamos falando aqui
apenas de avareza por dinheiro, mas de uma expressão retentiva mais
ampla da psique, que é como uma defesa contra a privação imaginária. A
avareza também é algo como estar paralisado de medo, e anda de mãos
dadas com fazer economias de vida — não investir em atos (e em
particular, em relacionamentos), reservando-se para um futuro possível
melhor.
Mas o não dar, típico da avareza, implica não apenas o medo subjacente,
mas também um aspecto de falta que liga a avareza à inveja. A inveja pode
ser descrita como um desejo intenso de incorporar algo com base em um
sentimento vívido de deficiência. Em termos psicanalíticos, a inveja é
chamada de paixão “canibal”, devoradora.
Não há dúvida de que essa expressão de inveja causa muito mais dor do
que a de orgulho, que em si é uma expressão prazerosa. Como é a própria
essência do orgulho ter uma imagem boa e grandiosa de si mesmo, é difícil
que isso seja sentido como um problema; daí a sabedoria pedagógica dos
antigos mestres espirituais que desejavam sobretudo apontar a gravidade do
orgulho, nomeando-o o principal dos pecados. É assim que a encontramos,
por exemplo, no Purgatório de Dante.
também pode ser considerada como uma regressão do adulto a essa posição
infantil mais privilegiada na vida.
Parece-me que o círculo das nove paixões básicas apresentado por Ichazo
constitui um refinamento da octad de Evágrio, não só pela inclusão do
medo entre os pecados, mas por constituir precisamente um círculo e não
apenas uma enéada: uma ordenação das paixões, um modelo
“psicodinâmico”. Ou seja, um modelo que dê uma noção da origem de cada
uma das paixões como resultado de uma espécie de hibridização de suas
vizinhas, todo o conjunto surgindo de uma tríade básica, cada uma dessas
paixões básicas constituindo uma transformação de outra.
Mas parece-me que a ordenação das paixões no eneagrama vai além das
noções de Cassiano, tanto em exatidão quanto em detalhes. Além dos
vínculos psicodinâmicos entre medo, falsidade e preguiça indolente, eles
indicam os caminhos unidirecionais entre os pontos do eneagrama —
vínculos psicodinâmicos entre as outras paixões — apontando para o
seguinte: como a raiva, quando se volta contra si mesma, torna-se inveja
auto-destrutiva; como a voracidade invejosa, vista no espelho, torna-se
20
Era natural que, como psicoterapeuta, aos poucos fui percebendo desde o
início do meu trabalho com Ichazo que cada um dos pecados ou paixões
corresponde a uma certa patologia de caráter entre as reconhecidas na
medicina e na psicologia. Através da prática subsequente, pude apreciar
com clareza crescente como a possibilidade de reconhecer o próprio
protótipo entre os personagens se torna mais fácil quando se conhece não
apenas o eneagrama das paixões, mas também o eneagrama das patologias.
Passo a explicar com mais detalhes a forma como cada um dos personagens
expressa em seu comportamento sua paixão dominante e seu erro explícito
de perspectiva — o que implica um aspecto cognitivo ou uma estratégia
interpessoal supervalorizada, uma posição equivocada com respeito ao
mundo dos outros e até mesmo com respeito a si mesmo. À descrição de
cada um dos tipos humanos de Protoanálise (Eneatipos) em termos de seus
principais traços de personalidade, acrescentarei uma consideração da
forma característica como a pessoa se defende de tomar consciência do
mundo, e incluirei citações da descrição de personagens dos mais antigos
dos clássicos: Theophrastus, o sucessor de Aristóteles, que considerou o
tema de interesse suficiente para dedicar sua atenção a ele aos cem anos de
idade.
Eneatipo 2: Orgulho
A escolha do orgulho em primeiro lugar está sem dúvida de acordo com a
sede de atenção e distinção do caráter orgulhoso. Além disso, parece-me
uma estratégia sábia dos antigos guias espirituais para sublinhar a
importância desta paixão que, como a gula, se expressa através de um
caráter indulgente que é menos dado do que outros para se sentir em falta.
No entanto, é difícil para os orgulhosos progredir espiritualmente, sem que
sejam ajudados a tomar consciência, sem que seja apontada sua evasão do
descontentamento e falta de autocrítica, pois esta falta de autocrítica
significa que o sujeito se sente superior, grande, digno de deferência,
importante. Como, no fundo, eles têm uma grande necessidade de amor, e
toda sua vida é orientada em torno desta necessidade de ser amado através
de uma falsificação da realidade. É isso que a inflação de sua auto-imagem
exige.
Embora o orgulho seja uma paixão pela qual nos vemos superiores ao que
somos, vale a pena esclarecer que este sentimento de superioridade não é
comumente expresso como arrogância e pode passar despercebido pelos
outros. Aqueles que “verdadeiramente” têm uma boa opinião sobre eles —
eles mesmos irradiam sua autocomplacência de tal forma que ela é
instantaneamente compartilhada por aqueles que os cercam, sem a
necessidade de explicitar sua qualidade através de desempenho ou atos
virtuosos. Eles estão tão convencidos de seus méritos que não sentem a
necessidade de convencer os outros, nem mesmo a si mesmos; ao contrário,
se divertem com o resultado desta auto-inflação: o bem-estar. Enquanto a
maioria das pessoas sofre a distância que as separa do ideal, as pessoas
orgulhosas, confundindo-se com seu ideal, se divertem em si mesmas.
Uma interpretação clássica deste personagem nos é dada por Emile Zola
em Nana — a bela prostituta que arruína seu nobre e perdido amante; outra
é Carmen, irresistível, vital e provocadora.
oficial superior para perguntar quando ele vai decidir começar a batalha e
qual será a palavra passe para depois de amanhã... No túmulo de uma
mulher recentemente falecida, ele tem o nome de seu marido, seu pai, sua
mãe, o da própria mulher falecida, e sua data de nascimento inscrita. Como
se isto não fosse suficiente, ele também pede que seja gravado que eles
eram pessoas respeitáveis.
Colômbia
Eneatipo 3: Vaidade
O uso atual da palavra “vaidade” corresponde à imagem com a qual a
iconografia católica representa o orgulho ou a soberba: uma mulher se
olhando no espelho. Mas a imagem física não é o único foco possível do
desejo de apresentar uma boa imagem. O desejo de brilhar no mundo social
ou o desejo de sucesso financeiro certamente tem mais repercussões
sociais. Além disso, o desejo de brilhar e de ter mais sucesso implica o
desenvolvimento de uma habilidade e anda de mãos dadas com uma
disposição ativa, prática, expedita e eficiente que também é característica
desse estilo de personalidade.
Ele não compra nada para seu uso pessoal, mas sim para seus amigos
estrangeiros: azeitonas para Bizâncio, cães espartanos para Cízico e mel
himetiano para Rodes. Desta forma, toda a cidade é informada sobre seus atos.
Possui um pequeno ginásio com quadra para jogos de bola, e percorre a cidade
convidando sofistas, mestres de esgrima e músicos para se apresentarem ali; e faz
questão de chegar atrasado à exposição para que as pessoas digam: Ele é o dono
do ginásio.
números, que perguntam quantos anos você tem e quanto você ganha,
embora nunca lhes ocorresse perguntar se você coleciona borboletas.
Florindo
Eneatipo 4: Inveja
Eneatipo 5: Avareza
Indivíduos E5 parecem ter concluído no começo de suas vidas que o
mundo não os dará o amor pelo qual eles tanto anseiam, e eles decidiram
arrumar as coisas para si, diminuindo seus desejos. Eles se distanciam do
mundo, que pede mais deles do que dá a eles e coloca mais obstáculos no
caminho deles do que ajuda, e até certo ponto “apaga-os”, esquece deles.
Como o Sidarta de Hermann Hesse, eles dizem a si mesmos: “Eu sei como
esperar, eu sei como ficar de jejum, eu sei como pensar.”
Quino conseguiu, eloquentemente, representar a abnegação resignada
que a avareza implica neste quadrinho (imagem a seguir) onde o vazio do
espaço ao redor se torna uma metáfora para pobreza emocional.
Eneatipo 6: Covardia
Certamente, o medo é um sentimento que tem sido conhecido em todas as
épocas. A descrição que conheço que mais se aproxima de uma descrição
técnica, em função do contexto em que ocorre, é o personagem de
Teofrasto, chamado de “covarde”.
Depois de definir a covardia como “uma certa deficiência de espírito
causada pelo medo”, Teofrasto nos descreve o covarde como a pessoa que
quando faz uma viagem:
guarda contra ataques imaginários devido à sua culpa secreta. Estas são
pessoas combativas que geralmente não sabem que há medo em sua
combatividade e em sua assertividade, e que parecem, ao olhar dos outros,
movidas por uma bravura extraordinária.
Capitão Spavento
Eneatipo 7: Gula
No comilão, o prazer de comer é certamente a menos importante de suas
manifestações, podendo até ser mascarado por uma excessiva preocupação
dietético-espiritual, nascida do fato de esses caráteres se sentirem
inconscientemente culpados por sua gula e se sentirem mal com isso. (Eles
procuram ser excessivamente puros.) Parece-me que, no mundo de hoje, há
mais pessoas desse caráter do que outras entre aqueles que pensam que
“nós somos o que comemos” e favorecem as dietas macrobióticas ou
vegetarianas e, em geral, Medicina natural.
*Elias Canetti, Der Ohrenzeuge. Fünfzig Charaktere, Carl Hanser Verlag, München 1979
(tr.: Ear Witness: Fifty Characters).
Com sua loquacidade, esse homem é pouco receptivo, mas admite seu
defeito e aceita as críticas dos outros. É como se com essa demonstração de
amizade esperasse a mesma condescendência por parte de suas vítimas;
uma indulgência semelhante à sua.
É claro que nos tempos da Commedia Dell’Arte, esse tipo de humano era
bem conhecido, e o encontramos na figura simpática de Arlecchino. É
assim que Carla Poesio apresenta essa personagem em seu livro sobre
máscaras italianas.*
Sou Arlecchino Batocio, de Bérgamo, o mais humilde dos servos de meus
senhores. Quem é esse homenzinho sob o tracagnotto? Parece feito de
borracha, com seus saltos e empinamentos, com as piruetas que mistura
com suas palavras. Ele usa uma máscara de couro com dois pequenos
orifícios para os olhos. Ele certamente não é bonito, mas sim o oposto. Ele
é assustador? Não! Veja o jeito engraçado que ele se move, sua voz de
papagaio, as expressões vivas que ele mistura com as bobagens que sai de
sua boca... Você não sabe se ele é um pouco estúpido ou se finge ser, e o
problema que ele provoca é feito sem malícia, e ele é o que acaba sendo o
mais enredado de todos. Não tem muita vontade de trabalhar, só um
pouco, é um servo de ofício, que nunca encontra um patrão que se
contente com ele. Seu salário é muitas vezes feito de batatas e surras com
um pau. Se ele os merece ou não, eis a questão. Não tenho culpa de ser
ignorante, sustenta, e conta a quem quiser ouvir que, quando ia para a
escola, ocorreu um acidente curioso: uma vaca comeu seus livros com
muito gosto. Como eu poderia interromper uma refeição tão substancial?
Não tive coragem. Deixei a vaca comer o livro de ortografia, a tabela
pitagórica e todas as outras fontes da ciência, até a última página. Desde
aquele dia, coitado, ele não pôde estudar. Isso pode não ser uma boa
desculpa, mas a história funciona para Arlecchino, e ele mesmo é o
primeiro a acreditar... Uma coisa ele nunca fica sem: fome. Ele está
eternamente faminto. Quando finalmente está prestes a preencher o
enorme buraco que sente no estômago – que parece durar dias, semanas,
meses – noventa em cem vezes, algo se interpõe entre ele e sua refeição. E
agora ele sonha. Seu nome, Arlecchino, é derivado da palavra lecchare
(lamber) em referência à fome e gula. (Ele provavelmente foi chamado
primeiro Lecchino e depois Arlecchino.)
52
Arlecchino
Illustration by Giorgio Sanson, © Edizioni Primavera, Florence
53
Eneatipo 8: Luxúria
Uma sexualidade intensa sujeita às restrições mínimas não é a única coisa
que dá a E8 um caráter excessivo. O consumo de energia, o gosto por
estímulos intensos, a atração por violência e riscos, uma manifestação
efusiva de entusiasmo constituem expressões alternativas de luxúria. Além
de serem personagens intensos e luxuriosos são pessoas fortes; como se a
tenacidade constituísse para eles uma forma de intensidade: um escudo que
lhes permite receber os golpes mais fortes.
São personagens que passam por cima de outros e que na maioria das vezes
não se dão conta de que estão fazendo isso. Eles simplesmente aprenderam
muito cedo na vida que para conseguir coisas era necessário se afirmar e
começar a trabalhar. Este caráter excessivamente ativo, que é tão distante
(em seu ou sua exagerada autonomia) da patologia dos personagens
dependentes, também é patológico na medida em que a dependência é
negada. Wilhelm Reich já descreveu um personagem “fálico-narcisista”.
Como esta expressão sugere, este não é apenas alguém duro e luxurioso,
mas também alguém com uma tendência exibicionista característica.
Entretanto, a exibição de poder ou superioridade deste personagem difere
profundamente da vaidade, pois constitui mais um meio a serviço do
triunfo prático do que um triunfo prático a serviço do aplauso. Ninguém se
incomoda tão pouco com o que os outros pensam sobre eles.
Quanto ao que pode ser apreciado nos personagens de Teofrasto, este tipo
deve ter sido bastante comum no século III a.C., pois entre as trinta
caracterizações desta coleção, há seis descrições que se encaixam em
formas do tipo lascivo, muito mais do que aquelas que eu posso encontrar
combinando com outros tipos do Eneagrama.
Ele chama uma destas de “cínico ousado”*, e o define como uma pessoa
capaz de ter a coragem para fazer ou dizer coisas vergonhosas:
*[Na citada versão espanhola, o “cínico ousado” aparece como “pessoa sem
vergonha”, e Teofrasto define isso como uma ousadia que se manifesta em atos e
palavras condenáveis (nota do tradutor da edição espanhola).]
*[Eu cito a mesma nota que aparece nesta versão: “Uma dança religiosa primitiva
relacionada com as origens da comédia, caracterizada por seus movimentos
violentos e abandono selvagem, sendo considerada por muitos autores da
55
*[Também poderia ser: “Ele é uma dessas pessoas que atrai a multidão e arenga,
repreende ou conversa com eles em voz alta e rouca.” (nota do tradutor na edição
espanhola).]
Tudo isso reflete uma característica que Teofrasto escolhe como um nome
para outro de seus personagens: “o amigo da ralé”*. Mais uma vez, sua
definição aqui não é tão complexa quanto os atributos que ele sugere
literalmente: um gosto por se associar com pessoas de baixa posição e
sujeitos que são desprezados pelos refinados e por aqueles que aceitam a
lei.
*[Na versão citada, isso aparece como “um gosto pela maldade”. (Nota do tradutor
da edição espanhola).]
Ele nos diz que “‘Ser amigo da ralé’ (um gosto pela maldade) significa
simplesmente uma inclinação para o perverso”. O personagem que ele
menciona poderia muito bem descrever o cínico (pessoa sem vergonha), já
56
que este último tem uma visão das coisas que supõe uma invalidação cínica
(sem vergonha) dos valores da vida cotidiana.
Na observação que Teofrasto faz sobre sua defesa dos oprimidos, podemos
ver algo mais que rebeldia e cinismo (falta de vergonha). Há também um
espírito vingativo implícito em seu senso de justiça e algo de empatia
genuína, como teremos a oportunidade de descobrir (apesar do fato, pelo
que vimos anteriormente, de que ele não tem a menor empatia possível por
sua própria mãe).
*[Na versão citada, isso aparece como “um gosto pela maldade”.
(Nota do tradutor da edição espanhola).]
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Brighella
Ilustração de Giorgio Sansoni © Edizioni Primavera, Florença
59
Eneatipo 9: Indolência
Indolência ou preguiça psicológica também é inércia espiritual, e o
E9 implica não só não saber, uma “política do avestruz,” mas é uma
hiperestabilidade, uma resistência a mudar. Isto é, em geral, uma pessoa
hiper-adaptada aos desejos alheios, muito complacente, e com iniciativa
escassa. Seu estado interno é parecido com um estado meio sonâmbulo,
meio morto para a vida. Este é um tipo desapaixonado e fleumático, que ao
se desligar de si mesmo demonstra uma disposição jovial e gregária. Nas
relações humanas, no entanto, esta é uma pessoa que se sacrifica demais,
muito resignado, passivo, conformista; geralmente uma pessoa simples,
“sem muitos problemas” — além de sua intolerância excessiva a problemas
e dificuldade excessiva quando se trata de dizer “não,” que geralmente faz
dessas pessoas um alvo de exploração.
Pode parecer que não há muito o que se falar sobre o E9 em
comparação com os outros tipos por causa da grande simplificação da sua
vida psicológica. Sua tendência a esquecer suas próprias necessidades por
ser excessivamente complacente aparentemente coincide com o ideal
cristão, e não incomodar ninguém não tem um lugar claro nas atuais
categorias para diagnósticos de personalidades aberrantes. Um dos
mecanismos que caracteriza a este tipo (o qual Freud chamou de
“adiamento altruísta”) é considerado menos patológico que os outros em
virtude de sua função social. Mas a vantagem do E9 (assim como a
desvantagem dos eneatipos 4 e 5, no outro polo do eneagrama) é mais
aparente do que real, já que o altruísmo automático e compulsivo destas
pessoas não as faz melhores ou mais éticas que os outros. Na real, pode-se
dizer que sua capacidade destrutiva é menos visível neste tipo.
Na sua descrição do “homem apagado,” o Teofrasto chama atenção
para a preguiça cognitiva que é característico do eneatipo 9, com o
intelectual, assim como o espiritual, confusão: “Apagamento pode ser
definido como uma lentidão mental com respeito a palavras e ações.”
Alguns exemplos disso incluídos em sua descrição se referem a falta
de atenção; outros refletem não só a falta de atenção, como também a falta
de interesse intelectual. “Se ele vai ao teatro, ele pega no sono e quando a
peça acaba, todos saem e ele fica sozinho no teatro.” Este tipo de
comportamento do “homem apagado” em particular pode ser interpretado
como uma falta de sofisticação cultural, que é consequência de sua
preguiça intelectual e concretude que leva a outro tipo que o Teofrasto
chama de “rusticidade”.
Mesmo que ele defina “rusticidade” como ignorância, falta de
modos, seu retrato sugere algo bem próximo de uma mente fechada. Ele
60
Gianduia
Ilustração de Georio Sansoni © Edizioni Primavera, Florença
61
Eneatipo 1: Raiva
O fato do mecanismo de defesa desse tipo obsessivo ser a “formação
reativa”, (que, por meio da compensação, transforma os conteúdos
psicológicos em seus opostos), faz com que a raiva dos raivosos constitua
uma paixão menos visível do que o orgulho do orgulhoso ou a luxúria do
luxurioso. Enquanto os invejosos podem não querer ver sua inveja,
negando-a, e aqueles que têm muito medo de ter medo ignoram seu medo,
a negação da raiva no tipo perfeccionista parece ser um caso especialmente
acusatório de inconsciência, e torna o termo “raivoso” um tanto quanto
inepto para caracterizar a personalidade de seu portador.
caricaturados por sua excessiva inclinação a sentir que estão certos e a ver
os outros como selvagens, particularmente nos dias de seu império e
colônias. Essa variante corresponde aos tipos mais rígidos que esperam que
o mundo inteiro se adapte a eles, os ouça e imite seu nobre exemplo, na
medida em que se identificam com seu eu idealizado.
Outros, em comparação, criticam-se mais; eles têm maior contato com seu
eu denegrido. O que mais chama a atenção nessas pessoas E1 é o respeito
pela excelência dos outros, bem como sua tendência diminuída de se
estabelecer como uma autoridade, em contraste com os rígidos, que o
fazem com maior facilidade. São pessoas cujo perfeccionismo nunca
permite que fiquem satisfeitas; eles nunca sentem que fizeram as coisas
bem o suficiente para estarem em paz consigo mesmos. Podemos
caracterizá-los, então, como indivíduos preocupados.
Quando passamos do discurso religioso para a observação da vida humana
feita pelos escritores que se especializaram na análise do caráter humano,
podemos observar que a síndrome de personalidade de que tratamos aqui é
estudada desde a Antiguidade, embora não no sentido que hoje chamamos
de “psicodinâmica”.
Depois de eu ter dado uma palestra sobre “os males do amor e os males do
mundo” na Universidade de Deusto há alguns meses, um membro da
plateia reclamou que eu não havia oferecido uma definição de amor.
Depois de falar por mais de uma hora sobre o que não é o amor, pensei:
isso não vale mais do que uma definição? Não era mais elegante deixar o
mistério sem nome, sem entrar em argumentos racionalistas extravagantes?
E tive que me impedir de responder: “Há uma definição de Deus nos
Evangelhos?”
Se não me engano, São João afirma que Deus é amor. A tarefa de uma
definição preliminar certamente não é fácil. Lembro-me da observação de
Idries Shah sobre um homem que ensinou que “as árvores eram boas”. Ele
havia decidido que toda a perfeição e beleza estava contida nas árvores, que
davam frutos, refúgio e matéria-prima para os artesãos, sem fazer
exigências. Seus seguidores amaram as árvores e adoraram os bosques e as
florestas por dez mil anos, e Shah comentou que essas pessoas confundiam
65
“Suas ideias mais sublimes sobre o amor, se ele soubesse, podem ser
consideradas as ideias mais baixas sobre o amor em seus ideais atuais.”*
*Idries Shah, Reflexiones, Paidós, Barcelona, 1986.
Embora eu não tente definir o amor que revele sua natureza essencial,
parece oportuno observar que, se é legítimo conceber o amor como algo
além de suas várias formas, este será algo comum a uma série de
experiências diferentes que não hesitamos em chamar de amor. O que têm
em comum o amor entre os sexos, o amor maternal, o amor de admiração
de um amigo e a benevolência para com um colega ou colega de escola?
Indicarei simplesmente que três experiências, três amores diferentes —
atrações eróticas, benevolência e admiração — em suas transformações e
combinações variadas, constituem manifestações inquestionáveis da vida
amorosa. Se quisermos ir mais longe, só podemos recorrer a palavras como
“afirmação” ou “atribuição de valor”, que ficam aquém do fato de não
termos nada melhor.
alimenta do esplendor da Divindade que descobre e, por sua vez, nutre, por
meio de seu ato de adoração.
*Esta análise ecoa a proposta por Raimundo Panikkar em seu exame da Tríade Cristã, A
Tríplice Intrasubjetividade Linguística, Archivio di Filosofia, 1986, n. 1-3, 593-6.
É claro que cada um desses três amores pode degenerar. Assim, pois, ao
lado de eros, que os gregos tão apropriadamente personificaram como um
deus, há um erotismo motivado pela falta. Mais do que um instinto, este
deve ser entendido como um derivado instintivo ou reflexo da
instintividade: uma busca do prazer motivada pela dificuldade de encontrá-
lo; um hedonismo que encobre e quer compensar a infelicidade. Podemos
caracterizar esse excesso e falsificação de eros como amor irresponsável.
É claro que cada um desses três amores pode degenerar. Assim, por
exemplo, ao lado de eros, que os gregos tão apropriadamente
personificaram como um deus, há um erotismo motivado pela falta. Mais
do que um instinto, este deve ser entendido como um derivado instintivo ou
reflexo da instintividade: uma busca do prazer motivada pela dificuldade de
encontrá-lo; um hedonismo que encobre e quer compensar a infelicidade.
Podemos caracterizar esse excesso e falsificação de eros como amor
irresponsável.
Freud identifica eros e libido, mas dado o uso atual do termo “libido” para
significar o combustível psicológico da neurose – esse “amor inverso” que
busca a si mesmo no escuro – seria melhor reservar eros para o próprio
amor, que é uma expressão de abundância e um fenômeno de
transbordamento que acompanha a plenitude do ser.
próximo mais do que a si mesmo, mas de amar o ser humano – tanto nos
outros como em si mesmo – e amar ainda mais o que é maior que o
humano.
É claro que muitos falham em cumprir este princípio espiritual por causa
do egoísmo ou do pouco amor ao próximo. Em vez de um irmão, o outro se
torna um estranho que é ignorado, usado ou combatido. Esse amor implica
uma perda de você, uma perda da capacidade de sentir o outro como
sujeito.
Mas o fracasso não existe apenas no que diz respeito ao amor humano,
particularmente em nosso mundo secular. Acho que um aspecto
fundamental de muitas condições patológicas é a perda desse amor que vai
além do amor ao próximo e do amor a si mesmo. Acho que é algo como
uma queima da centelha divina que está dentro de nós, amando a si mesma.
É desse amor sem objeto, ou cujo objeto é infinito, que deriva
principalmente a densidade do sentido da vida, seu “sentido”, acima de
toda razão e emoções interpessoais.
São Tomás sugeriu distinguir entre os aspectos do pecado que ele chama de
aversio e conversio: separação de Deus e atração exagerada pelo mundo.
Encontramos esse pensamento ecoado na Divina Comédia de Dante na
70
Embora minha intenção de tratar as doenças do amor à luz dos pecados não
seja nova para quem se lembra da doutrina que Dante apresenta através das
palavras de Virgílio no quarto círculo do Purgatório, meu tema será o
recíproco: como as motivações neuróticas constituem um obstáculo para o
amor. Ou seja, como esses padrões fundamentais de personalidade que
reconhecemos como caracteres básicos (com traços que variam de posturas
e funções motoras a formas de pensamento) se manifestam em termos de
amor. Portanto, com a experiência que adquiri como psicoterapeuta
profissional, proponho nas páginas seguintes tratar de como o amor é
impedido e falsificado em cada uma das neuroses de caráter e quais são as
consequências problemáticas relacionadas.
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ENEATIPO 2: AMOR-PAIXÃO
Para entrar plenamente no tema real deste capítulo, convém iniciar a rodada
dos personagens com o segundo eneatipo, pois, como os orgulhosos são
comumente considerados entre aqueles que parecem ser os mais inocentes
de qualquer pecado, eles são os aqueles que têm menos dificuldade em ser
amorosos. Na verdade, eles constituem o personagem mais “amoroso”.
Como pode ser assim, dada a sua disposição amorosa? Talvez pelo alto
preço que seu afeto implica, preço que revela sua condicionalidade.
Enquanto aqueles com esse caráter sedutor se esforçam muito para oferecer
um amor maravilhoso, único e extraordinário, suas demandas
aparentemente reduzidas também são extraordinárias, principalmente no
que diz respeito ao amor.
Naturalmente, nada disso seria possível se não fosse o fato de que o amor
de necessidade na pessoa orgulhosa é de fato mascarado pelo amor de
doação. O autoengano é tão perfeito que esses indivíduos se enchem de
suas próprias doações (mais do que no caso de outros personagens).
Independentemente do que eles possam receber dos outros, sua própria
doação (que implica “receber” a necessidade do outro) confirma suas
73
Um desenho em que uma mulher africana pode ser vista com um Cupido
que tem que ajudá-la a colocar um explorador no caldeirão revela
vividamente o egocentrismo subjacente do amor sedutor, quer este se
74
ENEATIPO 3: AMOR-NARCÍSICO
Para aqueles cuja imagem exige autocontrole e controle das situações, pode
ser que o desejo de amor esteja associado ao desejo de se deixar ser
controlado, e com razão, pois somente renunciando ao controle e à
manipulação podem se permitir ser profundamente tocados. Lembro-me de
ter visto esse tema ser tratado no filme “Swept Away”, em que uma mulher
desenvolve uma intensa paixão por seu companheiro sobrevivente de um
naufrágio depois que ele a domina. No entanto, após o período em que o
amor implica no sacrifício da vaidade, isso pode ser reinterpretado como
mero masoquismo, e o mesmo ocorre quando o sacrifício da própria
imagem não recebe o correspondente amor desejado.
O amor a Deus, no tipo vão, tende a ser eclipsado pelo amor humano em
suas duas formas: amor a si mesmo e amor aos outros. Esse traço
característico certamente contribuiu para a secularização da cultura norte-
americana e do mundo moderno em geral. O senso comum e o utilitarismo
predominam sobre os valores universais; as pessoas são admiradas, mas o
abstrato ou o transpessoal não são apreciados. No que diz respeito a um
78
ENEATIPO 4: AMOR-DOENÇA
muito pessoal para alguém que passa tanto tempo tocando. Ele bate na
porta e quando o amigo abre com um sorriso e pergunta o motivo de sua
visita, a outra pessoa não pode fazer mais do que responder: “Você e seu
violão podem ir para o inferno!”
Não só o amor dos invejosos se torna mórbido pela intensidade de sua sede
pelo outro, de sua interpretação pessimista das situações e de sua tendência
à frustração, mas também tende, caracteristicamente, a pedir coisas
“adoecendo”. A associação da atitude romântica com a doença é bastante
conhecida para que qualquer um ache essa piada, que encontrei a algum
tempo em uma revista, engraçada: um médico, debruçado sobre a cama de
um paciente doente, diz à mãe do paciente: “Seu filho é um poeta muito
doente.”
Pode-se dizer que o amor transpessoal por E4, que vai além de eu e você,
não se situa caracteristicamente na esfera da religiosidade ou na esfera do
bem, mas sim na esfera da beleza. Os valores mais elevados com os quais
essa pessoa se conecta são principalmente o amor pela arte e o amor pela
natureza. Talvez o amor por um deus pessoal se misture com não se sentir
digno, porque a evocação do divino só intensifica a dor da culpa. Por outro
lado, admirar é uma coisa muito problemática para o competitivo.
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O amor a Deus, cujas exigências são menos evidentes do que as dos seus
semelhantes, torna-se, em certa medida, um substituto do amor humano —
embora este mesmo amor a Deus enfraquece se não assenta numa
experiência suficiente do amor humano e do amor si mesmo. No entanto, é
mais fácil e menos conflituoso relacionar-se com um objeto ideal. Da
mesma forma, o amor-admiração (amor de uma criança por seu pai ou mãe)
é mais desenvolvido nesse tipo do que a generosidade.
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Nosso tópico final são os distúrbios da vida amorosa dos medrosos. Falar
de medo é falar de desconfiança, e existe uma incompatibilidade entre
desconfiança e amor – pois falar de desconfiança é falar de sentir-se diante
de um possível inimigo, e não é fácil amar os inimigos.
Eles são temidos, e como o medo exige estar em guarda, teme-se a doação
de si mesmo. Há medo de ser enganado, subjugado, humilhado, controlado.
Isso também leva ao autocontrole e à inibição do fluxo da vida diante de
uma necessidade excessiva de proteção.
É interessante saber que Hitler, que foi maltratado pelo pai quando criança,
desenvolveu a intenção de dar ao seu país um bom pai. Exemplos extremos
(como o exagero da caricatura) nos ajudam a entender as sutilezas maiores,
para os muitos que passam a vida se oferecendo como pais aos necessitados
de autoridade. Para quem gosta de dar ordens, a obediência é uma
86
declaração de amor; para alcançar filhos obedientes, porém, ele terá que se
oferecer como um pai benevolente, como o lobo da fábula vestido em pele
de cordeiro.
Essas pessoas pensam que são deuses por causa de sua proximidade com
seu Deus, mas nisso há algo da paixão da presunção que faz parte do
sistema paranoico. A busca pelo amor se transforma em desejo de poder,
que por sua vez é desejo de identificação com a figura paterna poderosa.
Um dos personagens de Canetti ilustra bem isso, rugindo, como se do
monte Sinai, com sua grande cabeleira.* Ele paternalisticamente deseja
confundir os outros (e certamente está confuso) para interpretar sua paixão
por impor a verdade de acordo com o Livro dos Livros como amor pelos
outros. O amor a ideologias ou personagens quase divinos é sentido como
próximo do amor a Deus, mas é uma espécie de narcisismo vicário; como
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uma criança que diz para outra da mesma idade que “meu papai é maior
que seu papai, olha como meu papai é grande”.
*Elias Canetti, Der Ohrenzeuge. Fünfzig Charaktere, Carl Hanser Verlag, München 1979
(tr.: Ear Witness: Fifty Characters).
ENEATIPO 7: AMOR-PRAZEROSO
O fato de que aquele que busca o prazer foge quando se depara com uma
pessoa ou situação que traz inconveniências, compromissos, obrigações
sérias ou restrições é claramente um dos fatores que fazem do amor guloso
um amor instável e sempre exploratório. Sabemos que tudo isso aumenta à
medida que as relações se prolongam. Mas este não é o único fator, pois a
personalidade do guloso é em si curiosa e exploratória; a grama é sempre
mais verde do outro lado da cerca.
É precisamente a dificuldade de satisfação no aqui e agora do mundo real
que é outro problema importante na vida amorosa dos “otimistas orais”,
empurrando-os constantemente para o ideal, o imaginário, o futuro ou o
remoto. Eles pensam que é o desejo que os distancia do presente, mas é
considerável que isso seja mais do que uma aparência subjetiva: é mais
uma insatisfação implícita que motiva sua contínua fuga para o diferente. E
é difícil para o ideal de uma doçura totalmente indulgente que o glutão
procura ocorrer, de fato, na experiência da vida real - além do período
inicial de encantamento de um novo relacionamento. A vida tem seus
problemas, e no mundo físico todo cálculo deve ser feito levando em conta
o atrito. O amor-prazeroso busca relacionamentos sem atrito — e sabe
como encontrá-los, embora dificilmente possam ser chamados de
relacionamentos. William Steig ilustra isso de forma eloquente em um
desenho que, apesar de não se referir ao amor em si, trata de uma condição
humana (The Steig Album): um homem sorridente equilibra maçãs na
cabeça e nos braços e sugere ser o tipo de pessoa que não é apenas
habilidosa, mas também obtém um senso de domínio dos atos de equilíbrio
interpessoal.
O que está por trás dessa não-relação pode ser entendido com base nas
informações que o Eneagrama nos oferece sobre esse eneatipo: é um
eneatipo (E7) que está relacionado ao tipo antissocial (E8), assim como
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tem, também, uma relação com o tipo distante e focado em si (E5). Quanto
mais os gulosos tendem para os luxuriosos, mais eles passam pela vida
como Don Juans - em busca de presas. Por mais galante que sejam,
carregam dentro de si tanto um oportunista quanto um esquizóide, mais
interessado em si mesmo do que nos outros. Essa forma de egoísmo seria
inaceitável para outros se não fosse compensada, pelo menos, por uma dose
igual de generosidade galante.
Assim como os gulosos geralmente são especialistas em tornar seus desejos
aceitáveis para os outros, também é verdade que, no terreno específico do
amor, uma pessoa com esse caráter tende a ter pouca dificuldade em
conseguir fazer as coisas do jeito que bem entendem - mesmo quando isso
implica em sacrifícios e em atitudes não-convencionais, como no caso da
infidelidade. Lembro-me de um desenho de Quino que apresentava um
personagem com as características fisionômicas típicas de um charlatão,
sentado em seu consultório médico cercado de diplomas. Uma senhora
idosa que veio vê-lo (provavelmente por causa de uma doença cardíaca) é
testemunha das instruções que o jovem médico dá à sua secretária: “Ligue
para minha esposa e diga a ela para entrar em contato com minha patroa
para ver como eles podem chegar a um acordo com a minha cara-metade
no que diz respeito à festa das crianças.” No próximo quadrinho de Quino,
vemos que a velha senhora desmaiou.
ENEATIPO 8: AMOR-DOMINADOR
ENEATIPO 9: AMOR-COMPLACENTE
ENEATIPO 1: AMOR-SUPERIOR
IV
As Doenças do Mundo à Luz do
Eneagrama
UM ENEAGRAMA DA SOCIEDADE
No título usei “doenças do mundo” e não “patologias sociais” porque
prefiro a expressão popular à acadêmica. Para meus propósitos, a
linguagem comum tem, neste caso, uma virtude que não compartilha com o
jargão técnico: embora a palavra “doente” possa inicialmente evocar o
significado de “doença”, ainda assim mantém uma significação moral.
Chamar a disfunção social de doença é desenvolver a visão da sociedade
como um organismo que caracteriza a formulação moderna da ciência dos
sistemas. Assim como, em geral, sistemas com diversos níveis se refletem
em seus elementos constitutivos e funções, podemos concordar que as
patologias individuais teriam suas patologias sociais correspondentes, e os
“pecados capitais” do indivíduo correspondem a certos males básicos do
organismo de nossa espécie na Terra. E se em nível individual a doença
mental pode ser definida como uma condição que impede a realização do
potencial de uma pessoa, também podemos definir as doenças
102
AUTORITARISMO
Começarei pelo triângulo central do Eneagrama, que no plano psicológico
individual corresponde à covardia. O medo é uma emoção universal, mas
quando domina o caráter de um indivíduo está associado a uma visão de
mundo excessivamente hierárquica. O medo tem muito a ver com
autoridade, porque originalmente fomos atormentados por aqueles gigantes
que nos cercavam quando éramos pequenos: nossos pais. Acima de tudo, a
figura paterna é o símbolo — se não o executor — da autoridade na
maioria dos lares. Por esta razão, o medo contribui para a tendência de uma
103
REPRESSÃO
MERCANTILISMO
alguém tenha dito que é valioso fazê-lo; se se respira com atenção, esta
atividade pode ser um deleite. Da mesma forma, não é necessário
demonstrar a ninguém a importância de comer. Os valores estéticos, os
verdadeiros valores culturais, não são tidos como valores porque se quer
mostrar aos outros que se sabe alguma coisa: eles constituem um alimento
sutil. Mas, são esses os valores pelos quais vivemos?
VIOLÊNCIA E EXPLORAÇÃO
claro, quando existe o perigo de ser atacado por um vizinho que pensa da
mesma maneira, o contingente de guardas tem que ser reinventado... e
assim temos a origem do exército.
Eu diria que este caráter-sadista, duro, que tende para o anti-social — tem
sido altamente dissuasor no domínio masculino de nossa civilização. Isto
trouxe consigo muitos problemas — o desequilíbrio interno da psique
individual, a repressão das emoções e o racionalismo, tendo influência em
coisas que aparentemente nada têm a ver com a masculinidade, mas são o
resultado da convivência com a metade masculina analítica do nosso
cérebro.
DEPENDÊNCIA
Seria injusto dizer que os oprimidos são tão culpados quanto os opressores
ou que os oprimidos são tão culpados quanto aqueles que os atropelam.
Mas atualmente, no mundo norte-americano, a palavra “codependência” é
muito ouvida, referindo-se tanto àqueles que possuem um caráter deficiente
e dependem demais dos exploradores, quanto aos exploradores que
dependem daqueles que se deixam explorar. Em outras palavras, a
dependência é relevante no discurso social e não apenas para o indivíduo, e
há uma necessidade de que cada pessoa se torne gradualmente mais
autônoma. Em certo sentido, a cura — evolução individual — supõe a
passagem de uma posição excessivamente dependente para uma posição
mais autônoma. Se conseguíssemos isso em escala maciça, teríamos uma
sociedade menos exploradora.
ASSOCIALIDADE E ANOMIA
Que patologia social está associada a esta forma de estar no mundo que é
mais um caso de não estar neste mundo? A enfermidade daqueles que
sentem que não estão aqui e daqueles que são os observadores do mundo,
uma espécie de extraterrestres que estão esperando o fim do espetáculo.
mendigos, com pessoas isoladas que, por não terem vínculos sociais
suficientes, perdem seu sistema de valores; valores que sempre exigem um
relacionamento, que têm que ser alimentados pelo contato com o mundo,
que têm que ser alimentados pela interação com os outros. Caso contrário,
eles envelhecem. E então a pessoa que está no mundo sem estar nele
começa a se sentir: “Para quê? Eu não acredito em nada, nada importa, a
vida não tem sentido”.
Mas entre os males do mundo há um que é bastante grave, que tem a ver
precisamente com esta atitude leve: a corrupção. Se não se acredita em
nada, se implicitamente se pensa que a autoridade não tem utilidade, que o
sistema é corrompido, então é preciso fazer o que é mais conveniente para
si mesmo. E com muitas pessoas assim, é impossível que o coletivo
funcione.
Quando Sócrates teve a oportunidade de fugir, ele preferiu dar sua vida
como exemplo de apoio ao ideal de democracia, para reforçar a crença na
idéia de que o povo pode governar a si mesmo; que mesmo que cometa um
erro, um sistema pode, em princípio, ser alcançado, no qual reina a
sabedoria. Quão longe estamos hoje desta atitude! Todos nós pensamos, em
maior ou menor grau, que os governos não servem a ninguém e que as
declarações de impostos podem ser descuidadas, porque... o que importa, se
nada funciona! O caráter do E7 é mais crítico e individualista que os
outros; mas este ato de individualismo, que poderia ser entendido como um
amor por si mesmo (ou um amor por um amigo, quando é um amigo que é
feito um favor), não deixa de ter consequências destrutivas para o coletivo.
Estou falando de corrupção. Alguns “golpes” são feitos para que alguém
receba outro pagamento, ou um empréstimo internacional é solicitado para
que o país não precise, de modo que dez por cento acabe nas mãos de tal e
tal. Algo semelhante ocorre em meu país, que hoje está até o pescoço em
dívidas, assim como em outros países sul-americanos: é de interesse para
certos indivíduos apoiar esta política econômica de receber empréstimos de
grandes bancos estrangeiros e gastar mais do que o que é produzido.
AMOR FALSO
Há outro caráter que se assemelha a este: o caráter orgulhoso, E2, que não é
nem tão opressivo nem tão oprimido. Como E7, é mais um caráter pseudo-
social do que social: social, apenas no nome, e anti-social, de forma oculta.
O caráter orgulhoso, como o caráter invejoso, é representada muito mais no
sexo feminino. Parte do contingente de mulheres do mundo é um
contingente subjugado; sua atitude de renúncia excessiva, seu serviço, é
extensível aos servidores do mundo em geral. Por outro lado, encontramos
mulheres triunfantes, que sabem como viver ao lado da “besta” (poder) e
como tirar proveito disso. A femme fatale é tão irresistível, tão charmosa,
que é perdoada de tudo. Ela é como um parasita na sociedade. (Há formigas
que têm parasitas quase do mesmo tamanho; vivem penduradas nelas e
quando a formiga vai comer, o parasita pega seu alimento e o coloca em
sua própria boca). Mas se Aristófanes tivesse fixado sua atenção nelas, ele
talvez as tivesse defendido dizendo que elas também contribuem para a
gestão dos assuntos mundiais.
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Penso que o melhor símbolo de tudo isso é aquele que encontramos no final
do Apocalipse de São João, quando aparece a Grande Besta e a Grande
Puta, correspondendo à cidade (a puta) que se vende à Grande Besta. A
cidade é formada por seres humanos, e nós seres humanos estamos nos
vendendo ao poder bruto, ao poder do sistema. Alguns indivíduos —
especialmente se têm este caráter orgulhoso, tão amplamente representado
na metade feminina do mundo — até mesmo se vendem a si mesmos. Se os
homens são covardes, as mulheres são especialistas em trocar prazeres por
uma vida tranquila ao lado do poder. Dizem para a Grande Besta: “Vocês
são mais poderosos do que eu, mas me dão o suficiente para me levar em
sua carruagem”. Poder-se-ia dizer que este amor sedutor tão generalizado
também contribui para o funcionamento global da sociedade, uma vez que
todos nós sucumbimos a ele e que suas artes são altamente desenvolvidas e
aperfeiçoadas. Embora não apareçam em nenhum livro, nem sejam uma
instituição, estas artes nos cegam para a natureza do amor. E por isso
ignoramos a doença fundamental do amor — o erro sobre o que é o amor
— que é como uma grande praga que se perpetua ao longo das gerações e
que cria outros problemas.
CONCLUSÃO
Os pontos que ficam de fora correspondem aos extremos das linhas que
unem 5 a 7 e 4 a 2, à esquerda e à direita do Eneagrama, respectivamente.
O que se destaca é o fato de que, embora as patologias de caráter nestas
posições correspondam a patologias sociais, os caracteres pseudo-sociais (7
e 2), e aqueles que correspondem aos “pobres de espírito” (4 e 5) — no
fundo do Eneagrama — têm uma relação especial com as forças de
renovação que estão surgindo em nossa época.
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