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o ABUSO DO··POD
NA PSIC·OTERAPI4
na medicina, serviço soei
sacerdócio e n1.agistério
PAULUS
~
Adolf Guggenbühl-Craig
ÍNDICE
7 Prefácio à edição brasileira
9 Introdução: Livrai-nos do mal?
12 Serviço social e Inquisição
27 Psicoterapeuta: charlatão e falso profeta 40 O contato
inicial entre analista e analisando 46 Relacionamento é
fantasia
55 A vida extra-analítica do analista e do paciente 59
Sexualidade e análise
66 O medo destrutivo da homossexualidade 70 O
analista e a lisonja
73 O abuso da busca de sentido
78 O médico todo-poderoso e o paciente pueril 81 O
arquétipo de "terapeuta-paciente" e o poder 84 A cisão do
arquétipo
88 O fechamento da cisão por meio do poder 94 Médico,
psicoterapeuta, assistente social e professor 99 A sombra, a
destrutividade e o mal
112 Estará a análise condenada ao fracasso? 116
Análise não adianta
122 Eros
124 Individuação
130 O psicoterapeuta impotente
134 Eros de novo
Coleção AMOR E PSIQUE Os mistérios da mulher, Esther Harding Variações sobre o tema mulher,J. Uma busca interior em psicologia e re/ígião, J. Hillman
Bonaventpre
Sonhos
O feminino O masculino Aprendendo com os sonhos, M. R. Gallbach • Breve curso sobre os sonhos,
• Aborto - perda e renovação, E. Pattis As deusas e a mulher, J. S. Bolen Curando a alma masculína, G.Jackson Hermes e seus filhos, R. L.-Pedraza R. Bosnak • O mundo secreto dos desenhos:Umaabordagem
A feminilidade consciente - entrevistas com Marion Woodman, M. No meio da vida: Uma perspectiva Junguiana, M.Stefi'l junguiana da cura pela arte, G. M. Furth Os sonhos e a cura da alma,J. A.
Woodman Os deuses e o homem, J. S. Bolen Sanford • Sonhos e ritual de cura, C. A. Meier
A jóia na ferida, R. E. Rothenberg O pai e a psique, A P. Lima Filho • Sonhos e gravidez, M. R. Gallbach
A mulher moderna em busca da alma: Guia jungulano do mundo visível e Sob a sombra de Saturno, J. Hollis Envelhecimento
do mundo invisível, J.Singer
A prostituta sagrada, N. Q. Corbett Psicologia e religião A passagem do meio, J. Hollis
A virgem grávida, M. Woodman A alma celebra: Preparação para a nova relígião, L. W.Jaffe • A so/ídão, A.Storr
Caminho para a Iniciação fl!mlnlna, S. B. Perera Destino, amor e êxtase, J. A doença que somos nós, J. P. Dourley Ajornada da alma, J. A. Sanford A velha sábia, R. Weaver
À. Sanford Deus, sonhos e revelação, M. Kelsey Despertando na meia-idade, K. A. Brehony Envelhecer, J. R. Pretat
O medo do feminino, E. Neumann Meia-idade e vida, A. Bermann
Nestajornada que chamamos vida, J. Holllis Rastreando os deuses, J. Hollis
No meio da vida, M. Stein
O velho sábio, P. Middelkoop
Contos de fadas e histórias mitológicas A ansiedade e formas de
lídarcom ela nos contos de fadas, V. Kast
• A individuação nos contos de fada, M.-L. von Franz
• A Interpretação dos contos de fada, M.-L. von Franz
A psique japonesa: grandes temas e contos de fadas japoneses, H. Kawai
A sombra e o mal nos contos de fada, M.-L. von Franz
• Mitos de criação, M.-L. von Franz
Mltologemas: encarnações do mundo invisível, J.Hollis
O Gato, M.-L. von Franz
O que conta o conto?, J. Bonaventure
O significado arquetípico de Gilgamesh, R. S. Kiuger
Opuer
• Livro do puer, J. Hillman
• Puer aeternus, M.-L. von Franz
Relacionamentos
• Amar, trair, A. Carotenuto
Eros e phatos, A. Carotenuto
o ABUSO DO
Incesto e amor humano, R. Stein
Não sou mais a mulher com quem você se casou, A.B.Filenz
No caminho para as núpcias, L. S. Leonard Os parceiros invisíveis: O
PODER NA
masculíno e o feminino, J. A. Sanford
Sombra
Mal, o lado sombrio da realldade,J. A. Sanford • Os pantanais da alma, J.
PSICOTERAPIA
Hollis •
• Psicologia profunda e nova ética, E. Neumann
Outros
Alímento e transformação, G. Jackson Ansiedade cultural, R. L.-Pedraza
A terapia do jogo de areia: Imagens que curam a alma e desenvolvem a
e na medicina, serviço social,
persona/ídade, R. Am mann
Conhecendo a si mesmo, D. Sharp
sacerdócio e magistério
Consciência solar, consciência lunar, M. Stein Dioniso no exílio: Sobre a
repressão da emoção e do corpo, R. L.-Pedraza
Meditações sobre os 22 arcanos maiores do tarô, anónimo
No espelho de Psique, E. Neumann
O abuso do poder na psicoterapia e na medicina, seNiçósocla/'sacerdócio e .... ;.
magistério, A. G.-Craig O caminho da transformação, E. Perrot O despertar
de seu filho, C. de Truchis
O projeto tden, J. Hollis
Psicoterapia, M.-L. von Franz
Psiquiatria Junguiana, H. K. Fierz
• Saudades do paraíso: Perspectivas psicológicas de um arquétipo, M.
Jacoby
ADOLF GUGGENBÜHL-CRAIG
Â'
PAULUS
04-2524 CDD-150.1954
Léon Bonaventure
6 ,,
"
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA conclusões. Tratar, ensinar, ajudar são ações que exigem de seu
praticante um eterno voltar-se à origem do gesto. Guggenbühl
compele o sujeito ingênuo a examinar-se num espelho
implacável que desmascare persistentemente a vontade de
poder que sutilmente se disfarça de huma
nismo desinteressado, um espelho apto a delatar o lobo
escondido sob pelagem macia de cordeiro.
O Abuso do Poder na Psicoterapia estabelece a origem da
ética terapêutica, médica, pedagógica ou assistencial não em
códigos oficiais, mas no honesto reconhecimento de intenções
o Abuso do Poder na Psicoterapia é hoje um clássico da sombrias inconfessas. Simples como a luz do dia, e no entanto
moderna literaturajunguiana. Publicado pela primeira vez em tão difícil de realizar como descer um barranco numa noite
1971 na Suíça, no original alemão, logo em seguida em inglês e escura.
em 1979 em português, este livro desempenhou um papel Este livro é uma lição de análise, seus percalços e seus
inestimável na formação dos analistas contempo perigos. Fiel a seu tema, o 'autor não assume ares de quem
râneos que seguem a linha de, trabalho inaugurada por Carl tudo sabe, mas de quem choca. Detecta, delata, constrange,
Gustav Jung no início do século XX. A edição brasileira logo se envergonha, ridiculariza e por fim explica. Suas conclusões são
esgotou, mas tal era a demanda pelo texto em aulas, semi nários banhos de água fria que nos ensopam a roupa de trabalho.
e supervisões que um sem-número de cópias passou a Pela via do choque, este livro contribui para que os
circular em lugar do livro que já não se encontrava mais. Seu profissionais da ajuda se tornem mais conscientes do que de
assunto central é o mal que o analista involunta riamente pode fato fazem. Mas não caiamos mais uma vez na ilusão de
causar a seus pacientes quando se propõe a ajudá-los. Que acreditar numa resolução suficiente e aceitável dos in
ousadia! A quem ocorreu a inusitada idéia de escrever tal livro? calculáveis perigos do poder, princípio antagônico, na visão de
Adolf Guggenbühl-Craig, analista experiente e di ferenciado, Jung, ao de Eros. A negatividade que emana do poder exercido
sempre pautou sua vida, sua reflexão e sua prática pela sem a contrapartida de Eros e da autoconsciência só pode ser
tentativa incessante e sistemática de detectar as mil formas sob percebida pela remoção constante e contínua
as quais se oculta a sombra do analista, do médico, do das camadas que dissimulam. E isso a consciência só é capaz
a
assistente social e do professor; Sombra, comojá havia dito
de perceber se adotar Eros como contraponto. Eros é a única
Jung, esse avesso das boas intenções, essa outra face do
cura para a patologia do poder. É sua medida, seu norte e seu
discurso edificante e da ação filantró;. pica. SU,a análise é
limite. Eros é a nudez do poder e sua possível evolução.
cirúrgica: arde, quando passo a passo o autor remove a pele e
Roberto Gambini
expõe o nervo de uma relação - especialmente aquela entre São Paulo, 2004
analista e analisando - fa
8
7 INTRODUÇÃO
dada ao progressivo desnudamento e nunca a sossegadas
do poder e seu exercício é semelhante em todas as profissões
LIVRAI-NOS DO MAL? de ajuda, ainda que cada uma possua características
específicas. Este pequeno livro dii:-ige-se assim não apenas a
médicos e psicoterapeutas, mas também a assistentes sociais,
professores e ao clero. Por essa razão, procurei utilizar o
menor número possível de termos psicológicos especializados.
Nos casos em que isso não foi possível, acrescentei uma
pequena explicação do termo em questão.
Espero que alguém ligado a uma profissão de ajuda
A maioria das profissões, de uma forma ou outra , presta distinta da medicina procure a seu modo lidar em maior
um serviço à saúde e ao bem-estar da humanidade. Porém as profundidade com os problemas básicos e pessoais de seu
atividades do médico, do padre, do professor, do próprio campo, indicando as soluções que lhe parecerem
psicoterapeuta e do assistente social envolvem um trabalho possíveis.
especializado e deliberado para ajudar os infelizes, os doentes, As referências bibliográficas estão praticamente
aqueles que de algum modo se perderam.'Nos capítulos que ausentes neste livro. Meu objetivo central não é estimular o
seguem, gostaria de exa leitor a ler ainda mais, mas antes fazer com que se volte para
minar como e por que os membros dessas "profissões de ajuda" dentro e examine a si próprio. Evitei igualmente tentar provar
podem também causar enormes danos, devido a seu próprio minhas asserções citando experimentos, estatísticas e trechos
desejo de ajudar. de outros autores. Espero que a apresentação de minhas
Sou médico psicoterapeuta. Ao preparar relatórios próprias experiências e das que tive com meus colegas e
psiquiátricos, entro em contato regular com assisten tes sociais colaboradores seja estimulante para o leitor. Não estou
e freqüentemente me sinto um deles. Vários pacientes meus necessariamente interessado em provar que tenho razão.
são professores e clérigos. Ao escrever este livro, procurei Nas páginas que seguem, é freqüente o uso das palavras
encarar os problemas existentes também em mim e não análise, psicoterapia, analista e psicotera peuta. Para evitar
apenas nos outros. É por essa razão que me concentrei equívocos: psicoterapia para mim quer dizer, em termos
especialmente nos problemas de poder do médico e do
bastante amplos, um tratamento que lida com a psique, desde
psicoterapeuta. Entretanto, para introduzir a questão da
a orientação psicológica de apenas poucas horas até uma
destrutividade nas profissões de ajuda, explorei um pouco os
análise prolongada de algumas centenas de horas, na qual são
antecedentes psicológicos do serviço social e abordei as
exploradas as profundezas do inconsciente e discutid'os em
atividades dos religiosos e professores.
Contudo, ao referir-me aos médicos e psicoterapeutas é
detalhe
que tento explorar em detalhe a possibilidade de superar 10
9 i,' fenômenos como transferência, contra transferência e
os problemas fundamentais dessas profissões. Q que eu queria relacionamento entre analista e analisando. O analis ta,
mesmo era arrumar minha própria casa, deixan do que meus portanto, trabalha com uma forma especializada de
vizinhos cuidassem das suas. Ocorre, porém, que o problema psicoterapia. Os problemas de poder com que se defron tam
este e o psicoterapeuta em geral são basicamente os mesmos.
Para o leitor, portanto, não deve fazer muita diferença se
numa passagem em particular nos referimos a psicoterapia ou
análise.
Para concluir este prefácio: nós, das profissões de ajuda,
não ficaremos nunca livres do mal. Mas podemos aprender a
lidar com ele.
11
SERVIÇO SOCIAL E INQUISIÇÃO
','
16 17
fazê-lo até mesmo quando nossa ajuda é rejeitada pe los por trás havia muita crueldade inconsciente e um enorme
interessados. Em geral, impingimos certa concepção de vida, desejo de poder. .
quer os outros concordem ou não. Preferimos não reconhecer Para muitos de nós, a Inquisição medieval representa o
o direito à doença, à neurose, a relações familiares não epítome de uma ânsia· de poder sádica e oficialmente
saudáveis, à degeneração social e à excen tricidade. sancionada. No serviço social moderno, nossos motivos por
Os paralelismos entre a Inquisição e o serviço social não certo são melhores quando às vezes impomos a um indivíduo
devem ser tomados de modo excessivamente literal. O que algo que ele próprio rejeita. Ou será que não? Durante vários
quero dizer é que manipular nossos semelhantes contra sua anos de trabalho analítico com assistentes sociais notei
repetidas vezes que, quando algo deve ser imposto pelaforça, a
vontade, mesmo quando isso nos parece a única via adequada,
motivação consciente e inconsciente das pessoas envolvidas é
pode ser altamente problemático. Nunca se pode saber ao certo
multifacetada. Um sinistro desejo de poder furtivarpente
qual o sentido real de uma vida huma
espreita por trás das aparências; sonhos e fantasias revelam
na individual. O objetivo da individuação e dos esforços
motivos que a consciência pre fere ignorar. Determinado
coletivos aparece sob um ângulo distinto para diferentes
assistente social, por exemplo, sonhou que passava com seu
pessoas em diferentes épocas. Nossos valores atuais não são
carro por cima de uma pessoa, a qui:lm, na verdade, havia
únicos nem definitivos. Talvez daqui a duzentos anos eles
imposto certas coisas. No sonho ele temia que descobrissem a
sejam vistos como primitivos e ridículos. Atualmente, existem
intencionalidade de sua ação. E nem mesmo as emoções
certos movimentos no interior da sociedade oci
abertamente expressas durante a psicoterapia indicavam um
puro desejo de ·ajudar. 18
tivações obscuras, mais o profissional parece apegar-se a uma
suposta "objetividade". Nesse caso, a discussão sobre que
atitudes tomar torna-se deslavadamente dog mática, como se só
pudesse haver uma solução correta para o problema. Um
assistente social muito inteligente que fazia análise comigo
certa vez declarou: "Sempre que consigo provar a meus colegas
que determinada medida impositiva é tão absolutamente certa
como dois e dois são quatro, tenho sonhos desagradáveis à
noite e as opiniões
divergentes se transformam em ataques pessoais". Todos os
que atuam nas profissões sociais, trabalhan do para "ajudar a
humanidade", apresentam motivações psicológicas
extremamente ambíguas para as suas ações; Em sua própria
consciência e diante do mundo, o assisten te social vê-se forçado
a encarar o desejo de ajudar como sendo sua motivação
primordial. Mas nas profundezas de sua alma o oposto
. i~
.<.,
23 24
" que se sente insultado e pode se tornar malévolo se este não se vê totalmente impotente. Apenas muito vagamente pode ele
for reconhecido. então perceber que sua alma foi radiografada e que,
Concretizada numa situação, essa "mitologia ne gativa" indiretamente, o mais íntimo de seu ser foi revelado àqueles
do assistente social seria algo mais ou menos assim: às dez da que supostamente irão ajudá-lo. O assistente social torna-se
manhã ela (ou ele) bate à porta de um apartamento; entra, assim capaz de dizer a uma mulher que diz amar seu filho que
bisbilhotei a um pouco e observa se as camas estão feitas e a na verdade ela nem se liga a ele. Como poderá dizer a
louça da noite anterior lavada. A dona da casa ainda não está urnjovem que desesperadamente vem resistindo a vários anos
arrumada; de penhoar, ela apenas inicia sua faxina diária. Com de reabilitação que na verdade ele gosta de ter certas
base nessa visita, a assistente social conclui que a família em limitações. O indivíduo em questão já não tem mais nada a
questão não está suficientemente ajustada para manter o filho dizer, pois o raio X do assistente social enxergou através dele. .
adoti voo Este, amado com paixão pelos pais adotivos, é levado Este ponto já toca nos problemas de sombra de outra
embora para ser colocado numa casa burguesa adequada. A profissão, a do psicoterapeuta, na verdade o foco deste livro.
opinião da assistente social é negativa devido não só à Voltaremos ao assunto no próximo capítulo. Antes disso,
desordem que viu, mas também porque a dona da casa rejeitou porém, gostaria de acrescentar algumas reflexões num tom
sua interferência e de início até se inclinava a não deixá-la menos negativo.
entrar. As pessoas escolhem a difícil e responsável profissão de
Neste ponto, talvez se objete que o que foi dito até aqui
assistente social por várias razões psicológicas que diferem de
racionalização do lado sombrio da profissão ou seia do , ' ,
um indivíduo para outro. Apesar do acaso também ter um ~
em pessoas até então sadias. Segundo sua filosofia "não há pessoas sadias, mas apenas doentes que ignora~ seu m~l". ~ Dr. ~ock é um
charlatão. Esse termo, para mIm, nao desIgna alguém que use métodos não-ortodoxos ou extra-oficiais para ajudar os necessitados,
mas sim um t~po de médico que na melhor das hipóteses engana tanto a SI como a seus pacientes, ou, na pior, apenas a seus pacien
tes. Trata-se de um indivíduo que ajuda mais a si mesmo pelo dinheiro e prestígio que recebe, do que aos doentes qu~ procuram seus
préstimos. Compreendidas nesse sentido as atividades de um charlatão podem, conforme o caso:
O charlatanismo é um tipo de ~sombra que acompa
ser benéficas, maléficas ou inteiramente neutras. nha permanentemente o médico.
E um de seus irmãos sombrios e como tal pode viver dentro ou fora dele. Al guns médicos vêem essa sombra apenas na pessoa de
um obscuro curandeiro, mas o fato é que, em sua maioria, acabam eles mesmos se tornando vítimas da sombra de charlatão 1;10
decorrer de suas atividades profissionais. Os próprios pacientes exercem considerável pressão para que o médico traia o modelo
hipocrático e passe a agir como um Dr. Knock. Em geral, as infindáveis queixas de caráter indeterminado que o clínico geral ouve a
cada dia, para as quais ainda não foi descoberta uma terapia genuína - fadiga crônica, certas dores nas costas e nas juntas, vagas
perturbações cardíacas e estomacais, dor de cabeça permanente etc. -, costumam ser tratadas por
meios não-científicos. À medida que deixa de esclarecer aos pacientes os componentes emocionais de males em grande parte
psíquicos na origem, o médico comum acaba po:- ~stimulá-Ios a enfatizar ainda mais os aspectos so
matIcos de seus problemas emocionais. Caso os sintomas aumentem, ele será visto como um grande médico; caso regridam, é
óbvio que o paciente não soube observar suas instruções.
28
."
I
As ponderadas recomendações de Arquimateu de Salerno, médico do século XI, nos fornecem um bom exem pIo histórico do
modo como funciona essa sombra charlatã: "Ao paciente, promete a cura; aos membros de sua família, anuncia uma grave
enfermidade. Se o paciente não se recuperar, dirão que previste sua morte; se alcançar a cura, teu renome crescerá".
Apenas em parte, porém, busca o psicoterapeuta seu modelo no campo da medicina. Outra vocação, a do sacerdote, também
influencia seus ideais.
A imagem do homem de Deus sofreu várias mudanças no decorrer da história e não é sempre a mesma nas diver sas religiões. A
mais importante para nossos propósitos é a do líder religioso na tradição judaico-cristã. Acredita se que este, pelo menos às vezes,
entra em contato com Deus. Não se espera, é claro, que todos os clérigos, como os profetas do Velho Testamento, recebam sua
vocação dire tamente da Divindade, mas que procurem honestamente agir em nome de Deus e conforme sua vontade.
O lado sombrio dessa nobre imagem do homem de Deus é o hipócrita, aquele que prega não porque acredita, mas para ter
influência e poder. Assim como no caso do médico e seus pacientes, com o clérigo também ocorre serem os membros de sua
congregação os responsáveis in
voluntários pela ativação do irmão obscuro, pois exercem considerável pressão para que ele desempenhe o papel de hipócrita. A
dúvida é companheira da fé. Mas ninguém quer ouvi-la da boca de um sacerdote - as nossas já bas
tam. Assim, este acaba não tendo outra alternativa a não ser tornar-se hipócrita de quando em vez, escondendo suas próprias
dúvidas e mascarando um momentâneo vazio interior com palavras eloqüentes. Se seu caráter for fraco, este poderá tornar-se um
traço habitual.
Em termos ideais, o homem de Deus deve testemu nhar sua fé com seus próprios atos. O que ele prega não
29
pode ser provado. É por meio de seu próprio comporta mento contato com o inconsciente? Até mesmo os critérios são incertos,
que deverá surgir um fundamento para a fé que representa. E em visível contraste com um problema somático bem
tal fato abre as portas para outro irmão do sacerdote - aquele caracterizado, quando a medida inequívoca de sucesso do
que procura parecer ao mundo Ce a si próprio) melhor do que tratamento é dada pela recuperação de um funcionamento
realmente é. adequado. No caso de
A sombra do _falso profeta acompanha o sacerdote por problemas emocionais, incluindo os males psicossomá ticos, os
toda a vida. Por vezes, ela aparece externamente, na figura do resultados são sempre insatisfatórios, qualquer que seja o
pregador de alguma seita obscura ou de um colega que se critério utilizado. Mesmo usando amplas amos
popularizou por meio da demagogia; por outras, é dentro dele 30
mesmo que desponta. Hoje em dia, há muitos religiosos que
temem essa sombra hipócrita de falso profeta. Recusam-se a ser tragens estatísticas, é muito difícil fazer julgamentos qua litativos
vistos como "homens de Deus" a partir de traços interiores ou sobre o desenvolvimento dos distúrbios em questão, quer sejam
exteriores e fazem seus sermões sem nenhuma vestimenta eles tratados com psicoterapia intensiva, tran qüilizantes, quer
especial, numa atitude de conversa social informal. sejam simplesmente ignorados. .
Talvez os critérios que melhor indiquem o sucesso da
Com bastante freqüência, nós analistas lidamos com distúrbios
psicoterapia sejam o grau de proximidade ou distância com
da saúde - neuroses e psicoses - para os quais, tanto em termos
relação ao "si-mesmo" ou ao "sentido da vida" ou o tipo de
de tratamento como de uma possí vel cura, praticamente não
contato estabelecido com o inconsciente. Mas como medir e
existem controles experimen tais reconhecidos. É virtualmente
estudar estatisticamente esses fatores?
imp·ossível acumular estatísticas de tratamentos bem-sucedidos
Qualquer profissional poderá registrar um trata mento
desses males. O que vem a ser melhora ou recaída quando se
bem-sucedido se por acaso for procurado na hora certa, se
trata desses problemas? Deveria o grau de ajustamento social
puder trabalhar com o paciente por temp? sufi ciente e se este
ser tido como critério? Ou a capacidade de trabalhar? O que
for alguém que de fato procurava ajuda e que teria melhorado de
significam intensificação, diminuição ou superação de sintomas
qualquer jeito, segundo os critérios que enumeramos. Nesse
neuróticos? Os sentimentos subjetivos do paciente? O progresso
caso, a sombra de ch~rlatão da dimensão· médica do arialista pode
no desenvolvimento psicológico, no processo de individuação, no
operar maIS ou me nos livremente. Além disso, termos como de pensamento completamente distintas. Estariam todos
doente e sadio, necessitado ou não- de tratamento etc.- se enganando? Seriam todos cegos? Ou talvez a situação seria
costumam ser muito mais difíceis de aplicar ao estado como a descrita no romance de Mary McCarthy, O Grupo, por um
emocional de uma pessoa do que à sua condição física. O psiquiatra decidido a abandonar a profis são e pesquisar a
desenvolvimento psíquico de um indivíduo é altamente bioquímica do cérebro: "É por isso que eu estou caindo fora (da
complexo e somos todos de alguma forma neuróticos. O psiquiatria); quem ficar, que escolha entre ser um cínico ou um
psicoterapeuta que agisse como o Dr. Knock poderia, sem maior impostor ingênuo". Será que somos capaz~s de admitir essas
dificuldade, provar para meio mundo que todos precisam fazer dúvidas para nós mesmos e para o resto do mundo? Ou será que
uma longa análise. A coisa pode ser levada tão longe que quem nós psicoterapeutas fazemos com nossas própr,ias dúvidas e
nunca fez análise passa a se sentir meio doente,. ou pelo menos medos o que faz o sacerdote, suprimindo-os e pondo uma pedra
não completamente desenvolvido em termos psi cológicos. em cima?
A sombra do analista se amplia ainda mais devido ao Da mesma forma que o sacerdote, trabalhamos çom nossa alma,
denominador comum existente entre o seu· ofício e o do nosso ser; os métodos, as técnicas e o aparato utilizado são
sacerdote. Nós analistas, qualquer que seja nossa orientação, secundários. Nós, nossa honestidade e au tenticidade, nosso
não defendemos uma fé específica ou uma religião organizada,
mas, corrio o sacerdote, quase sempre recomendamos certa
contato pessoal com o inconsciente e o,
atitude básica diante da vida; Não representamos uma filosofia, irracional- são esses os nossos instrumentos. É grande 32
mas uma psicologia que a pressão que sofremos para apresentá-los melhores do que são;
31 mas, nesse caso, tornamo-nos vítima da sombra do
psicoterapeuta.
abraçamos por convicção, visto que tanto em nossa vida como em
nossa própria análise tivemos experiências que nos persuadiram e Há ainda outro paralelo com respeito ao padre: nós analistas
nos formaram em termos dessa psi cologia. O analistajunguiano, somos de um modo geral impelidos a desem penhar um papel de
por exemplo, é alguém que viveu o profundo abalo produzido pela onisciência. Trabalhamos com o inconsciente, com sonhos e com
confrontação com o irracional e o inconsciente. Entretanto, a psique, esferas em que se manifesta o transcendental- pelo
poucos l,nsights psicolÓgicos podem ser estatisticamente menos na concep ção dos leigos e até mesmo de alguns
provados no sen tido empírico, só podendo ser confirmados pelo terapeutas~Dessa forma, há toda uma expectativa de que o analista
testemu nho honesto e sincero dos que se empenham na mesma saiba mais sobre assuntos fundamentais do que o comum dos
busca. Nossa única prova é nossa própria experiência e a de mortais. Se formos fracos, acabaremos por acreditar que
outros, uma vez que a realidade psíquica não pode ser apreendida estamos mais profundamente iniciados na vida e na morte do que
estatística ou carnalmente como ocorre nas ciências naturais. Sob nossos semelhantes.
esse aspecto, encontramo-nos em posição similar à do sacerdote. Não só imagens mais nobres da medicina e do sa cerdócio
Mas essa extremada con fiança na própria experiência pessoal ou convergem sobre o analista, mas também seus aspectos sombrios,
alheia inevitavel mente dá rn'argema sérias dúvidas. E se nós o charlatão e o falso profeta.
mesmos, ou outros como nós, estivermos enganados? Afinal de O problema da sombra do analista se intensifica ainda mais
contas, há muitos psicoterapeutas íntegros que defendem escolas devido a algo que lhe é peculiar e não neces sariamente vinculado
aos modelos básicos das outras profissões. Trata-se do fato de que
uma de suas tarefas consiste em ajudar os pacientes a se costumamos ter um ponto cego com respeito à nossa própria
tornarem mais conscientes. sombra. Não a vemos nem em nossos sonhos, nem em nossas
Assim como o conhecimento de Deus desempenha um papel ações. Freqüentemente, nem mesmo nossos amigos conseguem
central no modelo ideal de sacerdote, e o de terapeuta altruísta ria vê-la por algum tempo, tornando-se tão cegos quanto nós mesmos,
imagem do médico, há no modelo de psicoterapeuta uma figura o que acaba produzindo algo como uma folie à deux. Em tais casos
crucial que poderíamos vincular ao ato de criar consciência ou de os inimigos podem ser muito úteis e deveríamos sempre refletir
lançar luz. Mas as imagens profissionais sempre têm um aspecto sobre o que dizem.
sombrio, o qual representa o oposto do ideal luminoso. A sombra Seguimos certas regras para interpretar as manifes tações do
profissional do analista contém não apenas o charlatão e o falso inconsciente. Em última análise, porém, essa interpretação é mais
profeta, mas também a contrapartida daquele que ilumina, uma arte que um ofíc~o e pode muito bem ocorrer que nossa própria
oU'seja, uma figura que vive imersa no incons equação pessoal nos leve a desprezar algo fundamental.
ciente e visa sempre ao contrário do que conscientemente
34
pretende o analista. Temos aí uma situação paradoxal, na
Além disso, há também o problema de que as mani festações
33 do inconsciente, como as do Oráculo de Delfos, quase sempre são
qual o analista é mais ameaçado pelo inconsciente que o ambivalentes. O modo de compreen der o inconsciente acaba
não-analista. O psicoterapeuta honesto de vez em quando leva um assim dependendo do ego. O que aconteceu com Croesus no
choque ao descobrir que age inteiramente a partir do inconsciente Oráculo pode acontecer com qualquer um de nós; ou seja,
em seu trabalho. podemos interpretar o inconsciente segundo os desejos do ego e
Em geral, o analista não recebe aviso algum por par te de seu dessa forma compreendê-lo mal.
paciente de que inconscientemente está sendo destrutivo. É que o Antecipando algo que será desenvolvido mais adian te,
próprio paciente busca o charlatão e o falso profeta no analista e gostaria neste ponto de lembrar o que acontece quando se cai sob
inclusive incentiva esses aspectos. Muita~ vezes o terapeuta tem a o poder da sombra profissional.
impressão de que seu trabalho vai indo às mil maravilhas, Exigimos sinceridade de nossos pacientes. Procura mos
impressão tanto mais forte quanto mais tenha caído em sua ajudá-los em sua confrontação com o inconsciente mediante
própria somora. Assim como o médico é forçado por seus nossas explicações, nossas interpretações de sonhos e, acima de
pacientes a desempenhar o papel de charlatão, e o sacerdote o de tudo, nossas próprias atitudes. Ao olhar de frente nossa própria
falso profeta por sua congregação, o analista é levado a esses sombra profissional, mos tramos aos analisandos que os aspectos
papéis inconscientes por seus analisandos. desagradáveis da vida ta.mbém devem ser reconhecidos. Como
Uma objeção importante poderia ser levantada aqui. O procu rei indicar, as figuras completamente inconscientes da
analista profissionalmente sincero se encontra em per manente sombra de charlatão e falso profeta desempenham um papel
contatocom seu próprio inconsciente, estudando cuidadosamente muito importante em nosso trabalho analítico e portanto em
seus sonhos e quaisquer outras mani festações. Poder-se-ia pensar nosso relacionamento com os pacientes. Se estes forem atingidos
que isso com toda a certeza afastaria o 'papel de charlatão, falso por essa sombra, é fundamental para o progresso da terapia que
profeta ou analista in conscientemente destrutivo. Mas não é assim. sejamos capazes de admitir diante deles que escorregamos na
Assim como as demais pessoas, nós analistas também sombra in consciente e profissional, por mais doloroso que possa
ser reconhecer tal fato. O paciente, afinal de contas, tem de pacientes são em geral pessoas desse tipo - tem uma dimensão
encarar certas revelações dolorosas. Ao procu rar detectar a cada inegavelmente trágica. É sempre o oposto do que se quer atingir
passo a atuação de nossa sombra psicoterapêutica, apanhando-a ou evitar que acaba se constelando. Isso é verdade tanto em nível
com as mãos na massa, auxiliamos nossos pacientes em suas coletivo como individual. A Revolução Francesa pretendia libertar
próprias confron tações com o irmão obscuro. Se deixarmos de o homem e deu lugar à tirania napoleônica. No século XIX, vários
fazê-lo, o paciente aprenderá apenas a enganar a si mesmo e ao suíços amantes do canto tentaram promo
resto do mundo, tornando-se assim altamente questio nável o ver essa atividade fundando corais masculinos; mas, de fato, a
próprio valor da análise. existência de tais grupos destruiu vor completo o canto como
passatempo popular, transformando-o em algo que precisava da
35 estrutura organizada de um coral dirigido para acontecer. O
o
problema da sombra profissional se liga a outros aspectos Cristianismo, pregando a, paz e o amor, deu origem a cruzadas
fundamentais da atividade terapêutica. Na qualidade de sanguinárias que no afã de conquistar a Terra Santa começaram
anlillistas, defrontamo-nos constantemente por exterminar os judeus da Europa. Como sempre repetia C. Q-.
Jung, sempre que um conteúdo luminoso se instala na cons
ciência, seu oposto se constela no inconsciente e procura 36
, ::
com o sofrimento e com destinos trágicos e incomuns. Com atrapalhar a partir dessa posição estratégica. O médico se torna
bastante freqüência, o que temos a fazer é ajudar uma 'pessoa em um charlatão exatamente por querer curar o maior número
dificuldade a compreender a si mesma tanto quanto possível, não possível de pessoas; o sacerdote se torna um hipócrita por querer
só para que entre em contato converter as pessoas à verdadeira fé; e o psicoterapeuta se torna
um charlatão e um falso profeta apesar de trabalhar dia e noite
para ampliar sua consciência .
Até aqui, minhas afirmações parecem um tanto pessimistas,
um teólogo da velha
como as de um pregador calvinista ou de
Islândia - se é que havia teólogos
., . ~:.
* . naquele tempo. Odin faz o
com o inconsciente, mas simplesmente para que suporte os
aspectos trágicos da vida em toda a sua incompreen sibilidade. que pode, apesar de saber muito bem que as raízes de Iggdrasil, a
árvore do mundo, estão sendo lenta mas inexoravelmente
Para ajudar uma pessoa que sofre devido a uma situação
destruídas pela serpente.
existencial trágica - que não se alterará mesmo que aumente o
Mas a existência dessa sombra também tem aspectos menos
contato com o inconsciente - deve mos igualmente confrontar nossa
trágicos. Nem sempre as ações de um terapeuta que trabalhe a
própria situação trágica, expressa pelo fato de que quanto mais
partir da sombra são negativas. Freqüen temente os charlatães
procuramos ser bon.,s psicotlerapeutas, ajudando nossos pacientes
conseguem minorar o sofrimento muito mais do que médicos
a am pliar sua consciência, mais nos ocorre cair no lado oposto de
sérios e respeitáveis. E um terapeuta que temporariamente caia no
nosso luminoso ideal profissional.
Em certo sentido, o destino dos que lutam por algo - e nossos inconsciente e trabalhe exclusivamente a partir da sombra pode,
pelo menos por algum tempo, aparar as arestas mais agudas do consciente parece condenado a um trágico fracasso. Talvez
sofrimento dos pacientes com base em sua precisão e segurança tenham razão certas religiões orientais que procuram negar por
exterior. completo as exigências e objetivos do ego, para que o indivíduo
Um de meus analisandos teve certa vez o seguinte sonho: assim liberado de preocupa ções terrenas possa atingir o Nirvana.
num jornal aparecia uma caricatura minha, no estilo de Daumier, Os esforços, do ego, por mais bem-intencionados que sejam,
com a seguinte legenda: "Infelizmente nosso colega Dr. A. G.-C. acabam a longo prazo por atrÁpalhar.
fez mau uso da nobre arte da medicina, portando-se como um Mas os europeus não podem e não pretendem renun ciar ao ego,
charlatão em busca de vantagens" . devendo lev'ar muito a sério seus esforços e objetivos. O si-mesmo
Naquela ocasião, não pensei que o sonho de fato se referisse - centro significativo mais profun do da psique, segundo Jung -
a 'mim e o interpretei como expressão de uma em geral só pode apa
38
*Referência ao mito germânico. (N. do T.)
recer se o ego, em lugar de posto de lado e eliminado como algo
37 insignificante, puder levar adiante o drama de seus
resistência do paciente baseada em preconceitos coletivos contra a envolvimentos.
psicologia, a psicoterapia e o inconsciente. Re
: .'"
O Rei Édipo tentou desesperadamente viver e agir segundo
jeitei a crítica que me era dirigida e o retrato de minha sombra a vontade dos deuses - ou seja, do inconsciente. Apolo lhe
profissional como uma caricatura à la Daumier, encarando-os informou, por meio do oráculo, que derramaria o sangue do pai e
como um problema subjetivo do paciente. No decurso da análise desposaria a mãe. Para evitar tal even
voltamos a esse sonho e percebemos claramente que ele se referia tualidade, o jovem. Édipo abandonou Pólibo, seu pai, e Mérope,
ao meu próprio problema de sombra profissional. Meu paciente sua mãe, sem saber que estes não eram seus pais verdadeiros,
disse que ficou contente por não termos conseguido compreender mas adotivos, pois estes nunca lhe haviam dito nada sobre sua
o so linhagem. Mas, ao tentar evitar a horrível e maldita profecia,
nho por completo naquela altura. A segurança com que lhe Édipo cai no pólo oposto. No fim da tragédia, autocondenado, ele
devolvi o sonho, apesar de este basear-se no meu próprio se vê como· "o mais amaldiçoado dos homens, odiado por todos
inconsciente, produziu um efeito tranqüilizador. Ele disse que os deuses". Ao vazar os olhos, ele deplora: "Nada restou para ser
naquela ocasião não teria suportado o peso de lidar ao mesmo visto ou ser amado. Nunca mais o som das saudações dará
tempo com os meus problemas de sombra e com os dele . prazer aos meus ouvidos. Fora! Fora daqui, fora! Ao desterro, ao
. Posso bem imaginar u~a reação crítica às refle xões até aqui desterro!"
apresentadas. Não seriam elas talvez de masiado destrutivas? Por Mas é exatamente a partir desse trágico esfacela mento de
que razão deveríamos tentar nos tornar mais conscientes, se ego de Édipo que o si-mesmo, a centelha divina no homem
estamos condenados a recair perpetuamente, nas mais começa a transparecer. Como em qualquer tragédia, percebe-se
desagradáveis formas de inconsciência? Por que não "viver e aqui um significado que j á não é mais orientado pelo ego. Algo
deixar viver" com alegria e inconsciência, simplesmente ajudando análogo é sentido por qualquer analista - e por seus pacientes -
nossos pacientes com medicamentos? Para os que $e preocupam que procure relacio nar-se com o inconsciente, vivendo tão
profissionalmente com a questão, o esforço de tornar-se mais conscientemente quanto possível e nesses termos exercendo sua
profissão. E, ao fazê-lo, será inevitável que progressivamente caia conhecimento e de sua habilidade, pretende altruisticamente
na sombra'e muitas vezes desempenhe o papel de charlatão e falso auxiliá-los. Mas esse des~jo consciente - sem o qual o analista não
profeta para seus pacientes. teria escolhido sua profissão - constela o pólo oposto no
Até este ponto, talvez minhas considerações sobre o irmão inconsc\ente e conjura o charlatão, ou seja, aquele que não
sombrio dopsicoterapeuta tenham sido muito gerais. No capítulo trabalha para seus pacientes, mas para si próprio. Em parte, é
seguinte voltaremos a essas figuras obscuras, observando em esse o fenômeno psicológico que Jung costumava chamar de
termos práticos o que acontece quando o psicoterapeuta cai no "sombra". Esse termo não deveria ser confundido com o
inconsciente. inconsciente per se. Para Jung, "sombra" quer dizer o reverso
dos ideais pessoais ou coletivos. Nesse sentido, a sombra sempre
é um tanto destrutiva, agindo negativa
39
o CONTATO INICIAL 40
ENTRE ANALISTA E ANALISANDO mente sobre os ideais positivos esposados pela coletivi da de ou
pelo indivíduo. Sua existência é extremamente desagradável e
dolorosa para o ego, cujos objetivos são
.: ./
exatamente o oposto. A consciência, ou superego, é infor mada
pelo ambiente imediato ou mais geral em termos dos ideais
existentes. O ego tenta sempre cumprir as exigências do
superego, ou ao menos aceitar alguns com promissos. O fato de
haver um eterno desencontro entre valores conscientes e o poder
da sombra interessada em destruí-los cria uma tensão dinâmica,
mas também uma dolorosa insegurança. Todo analisando deve
lidar inten samente com sua própria sombra e com os demônios
que se agitam em seu interior, mesmo que deles não tenha
Via de regra, o inconsciente do analista não se re laciona
consciência.
com seus próprios traços neuróticos. No decurso de sua análise de
Procuremos agora examinar a sombra do psicote rapeuta em
treinamento e de seu próprio trabalho analítico, os terapeutas
termos concretos, descrevendo algumas de suas atitudes. Certos
sérios aprendem a não atrair os paciêntes para seus próprios
aspectos sombrios podem constelar se já no primeiro encontro
mecanismos neuróticos - e também a reconhecê-los claramente,
entre terapeuta e paciente. Ao encontrar-se pela primeira vez,
senão a superá-los. É de se esperar que uma análise que se
tanto um como outro têm certas intenções conscientes. O paciente
estendeu por centenas de horas permita ao menos que se atinja
deseja livrar se de seu sofrimento e de sintomas neuróticos, como
esse ponto. .
compulsões, fobias, impotência, frigidez, depressão ou males
Enormes dificuldades surgem, porém, para o analista a partir psicossomáticos. Muito freqüentemente, o auxílio que busca diz
de seu próprio desejo de ajudar. Elequer servir a seus pacientes, respeito às dificuldades gerais da vida, a problemas matrimoniais
ajudá-los em seu sofrimento neurótico e estimular o ou com os filhos etc. Da mesma forma que o doente que procura
desenvolvimento de sua consciência. Fazendo o melhor uso de seu um médico, o paciente psicoterap&utico quer livrar-se de seu
sofrimento e de sua doença. Pelo menos, assim parece ser na
superfície psíquica. Já as expectativas mais profundas costumam
ser bastante diversas. Inconscientemente, ao menos em parte, o
paciente quase sempre espera encontrar um re dentor que o
liberte de todos os seus problemas e talvez até chegue a despertar
nele capacidades sobre-humanas. Uma paciente minha
extremamente inteligente, que além de uma grave neurose
também sofria de constan
41
r i!
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42
o que leva a recrin;l.inações amargas e recíprocas entre velho
problemas, o analista deixa parecer que já compreendeu mestre e ex-aprendiz; o analista mais novo abriga ressentimentos
tudo. Mediante o uso de certos gestos, como um sábio profundos contra seu colega mais velho, ao passo que este se
balançar de cabeça, e de certas observações ambíguas em sente traído. Os dois já não podem mais trabalhar juntos. De
meio à fala do paciente, o analista cria a impressão de que, modo geral, não basta &pelar para uma projeção paterna mal
mesmo não estando preparado para expressar todo o seu resolvida para explicar a fricção entre o analista em formação e
conhecimento e suas profundas reflexões, já atingiu o fundo seus orientadores
da alma do paciente. A pretensão de competência absoluta
também faz parte da imagem do feiticeiro. Via de regra, os
feiticeiros querem ser onipotentes e não costu
mam tolerar colegas ou competidores. O relacionamento
entre feiticeiros costuma ser uma luta de poder, consis tindo
de magia e contramagia. Fascinado por essa figura interior .'
,~.'
'.'
do mágico, o analista gostaria que todos os que precisam de profissionais maduros.
auxílio se voltassem exclusivamente para ele. Por mera falta Seria conveniente esclarecer alguns pontos antes de continuar
de tempo ele poderá graCiosamente e às vezes encaminhar e~aminando o fenômeno da sombra na psi coterapia. Como vimos, a
um caso a algum principiante, mas ainda assim procurará sombra do terapeuta e a do paciente afetam-se mutuamente e se
manter todos os fios em suas próprias mãos. Muitos relacionam inti mamente. Não se pode, portanto, examinar com
analistas trabalham mais do que podem e falam com certo pro priedade a sombra do primeiro sem levar em conta a do
orgulho da longa lista de espera de futuros pacientes. A segun.do. A sombra profissional do terapeuta que pretende ajudar
pretensão interior de poder abso luto e a fantasia de que é o seus pacientes é o charlatão, o agente fraudulento que só busca
mais poderoso dos feiticeiros impossibilitam-lhe enviar de satisfazer seus próprios interesses. Paralela mente, o paciente que
bom grado certos casos a colegas de status equivalente e não procura tratamento para curar-se
apenas estudantes e principiantes. O analista não crê, como a
madrasta de Branca de Neve, que "não há ninguém mais
belo" do que ele em todo o reino; mas o demoníaco feiticeiro
dentro dele leva-o a crer que é o único no país que realmente
entende de análise.
Muitas vezes o jogo de feiticeiro e aprendiz se man tém
durante toda a análise e continua até mesmo depois de seu
término. As análises didáticas estão particular mente sujeitas
a esse perigo. O treinando pode conti nuar sendo um
"aprendiz" pelo resto da vida, ou seja, um admirador e
tentará
imitador do analista que o formou. Ou então
transformar-se ele próprio num mestre feiticeiro,
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apresenta uma força psíquica antiterapêutica, que luta
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certos pacientes gostam de proclamar que estão se tratando com
um analista famoso.
O charlatão no analista também usa o truque de dra matizar
desnecessariamente uma situação. Um paciente neurótico será
visto como portador de um "perigoso poten cial psicótico". O termo
"psicose latente", que Jung costumava usar, pode facilmente ser
mal interpretado nesse sentido. O perigo de uma crise psicótica
pode ser exagerado para que o analista seja visto como salvador.
Este fato, por· seu turno, satisfaz a necessidade desse tipo de
paciente ver-se passivamente salvo, e de maneira atraente, de uma
situação aparentemente sem saída. A situação é igual à de
pacientes com problemas físicos que adoram dizer: "Todos os
médicos desistiram do meu caso, mas daí consultei o . Dr.
Curatudo e hoje sou um homem são".
N o início do tratamento, o estabelecimento dos ho norários
desempenha um papel não desprezível. Diante dessa questão, a
atitude do analista quase sempre revela certo grau de
"
charlatanismo. Éde se notar a freqüência com que os
contra o processo de cura ou desenvolvimento, comum ente psicoterapeutas julgam necessário enfatizar que o pagamento é
descrita como "resistência". Este combatente a serviço da
em si uma medida terapêutica que promove o processo de cura.
resistência interior é muito agressivo e não só resiste ao
progresso da terapia, como procura destruí-la de modo ativo. No
final deste livro tentaremos compreender em maior
profundidade esse fenômeno. Por ora, observa
remos apenas que a resistência do paciente estabelece uma
aliança com a sombra de charlatão do terapeuta; ambas
constelam-se mutuamente e às vezes só podem ser
compreendidas a partir dessa reciprocidade.
Sob vários aspectos, a situação terapêutica inicial presta-se
bastante bem para constelar a sombra de char latão. O analist'a,
por exemplo, pode ser levado a receber apenas clientes prósperos
e proeminentes, capazes de lhe pagar elevados honoráriqs e cujos
nomes conferem pres
44
Não seria esta, entre outras coisas, uma manifestação da
tígio. Essa tendência, por sua vez, é reforçada pelo fato de que
sombra? Afinal de contas, os honorários não são uma "terapia";
são cobrados para que o terapeuta possa viver de forma para o analista traços pertencentes aos personagens que tiveram
compatível com seu nível de educação e treinamento. Neste caso, um papel impor
também encontramos a contrapartida do paciente. Ele aceita tante em sua vida. Pode-se também transferir para outrem a
pagar elevados honorários porque isso lhe dá a impressão de que própria estrutura psíquica, vendo no outro aspectos que na
pode ,comprar o analista, o qual, na qualidade de seu empregado, verdade são problemáticos em nós. Costuma-sé usar o termo
lhe poupará o trabalho de um auto-exame honesto; ao mesmo transfeIjência para descrever esses fenômenos.
tempo, como escolheu o analista mais caro, ele passa a acreditar Em contraste, num relacionamento ou num encon tro
que tudo no fim dará certo. genuíno o outro é visto como é. Ele é sentido, amado , 46
ou odiado pelo que é; o encontro é com outra pessoa real. Como é
natural, a transferência e o relacionamento costumam ocorrer
45 simultaneamente, não podendo ser estritamente diferenciados
num caso específico. Quando muito, a transferência se transforma
RELACIONAMENTO É FANTASIA em relacionamen
to. Muitas amizades começam como transferência e só depois
passam a constituir um relacionamento genuíno. N a minha
/ .;.,
opinião, é bastante destrutivo querer explicar um relacionamento
sempre em termos de projeção e transferência, como costumam
fazer os psicólogos.·A maior virtude de tal procedimento talvez
seja lisonjear o ego do psicólogo, uma vez que acredita ter captado
um dos fenômenos psicológicos mais misteriosos - o relacio
namento - mediante a simples aplicação dos conceitos de
transferência e projeção.
A sombra de charlatão encontra diante de si um rico campo O mistério do relacionamento só pode ser descrito em termos
de 0l?eração no momento em que a análise se firma e as psiques muito vagos, não se prestando a uma clara apreen são intelectual.
do terapeuta e do paciente começam a se afe tar mutuamente. Como já indiquei, relacionamento significa ver o outro como é, ou
Mas, para poder discernir as evasivas que"podem ser utilizadas no pelo menos em parte re-conhecê-Io como a pessoa que é. Além
caso, devemos descrever as características dessa influência disso, significa ter prazer ou desprazer com essa pessoa real,
psíquica mútua. Os ter mos transferência e contratransferência, sentindo-se bem em estar com ela ou fazer algo com ela,
que usaremos aqui, são em geral aplicados com sentidos procurá-la com interesse, trocar emoções, sentimentos e
extremamente discrepantes. pensamentos. Em outras palavras, num relacionamento o parceiro
Examinemos de início a transferência e a contra é violado o me nos possível por projeções ou pela transferência.
transferência comparando-as com encontro ou relacio namento. N este contexto, porém, costuma-se minimizar o
N a transferência, vê-se em outra pessoa algo que não existe, dinamismo da psique e do indivíduo. Quem é o outro, o parceiro?
ou talvez só exista de forma latente ou nascente. Como se sabe, o Ele não é jamais algo estático; é vida, desenvol vimento, passado,
paciente pode ver no analista um pai ou irmão, um amante, um presente e futuro. Compreender outra pessoa significa
filho ou filha, e assim por diante - quer dizer, ele pode transferir relacionar-se não só com seu presente, mas também com seu
passado e seu futuro. de um potencial latente. Pode ser que o filho não se torne um
O relacionamento envolve sempre algo criativo. Ao chefe de Estado, como imaginou a mãe, mas que possua de fato
empregar a palavra "criativo", quero dizer o seguinte: a psique
humana está sempre cheia de novas possibilidades. Ela se recria 48
sempre, por assim dizer, e é permanente grandes habilidades políticas; pode ser que não se torne outro
Picasso, mas que deva realmente escolher uma profissão que
47 utilize a capacidade artística.
ment~ recriada. O potencial psíquico de um indivíduo é obviamente Outro exemplo: a jovem noiva costuma encarar o futuro de seu
limitado, mas altamente diversificado e multifacetado. Não é escolhido de modo altamente imaginativo. Apesar de ser ele um
nada criativo ou propício ao re lacionamento encontrar alguém e assistente social, ela sonha acorda da que será catedrático ou reitor
vê-lo como uma foto instantânea ou uma imagem fixa. Encontrar de· uma universidade. Talvez, nessas fantasias, ela reconheça
um;:t pessoa de modo criativo significa tecer fantasias em redor certo potencial acadêmico escondido no marido, o qual poderá de
dela e circundar seu potencial. Surgem então várias imagens sobre fato tor nar-se um dia professor numa faculdade de serviço social.
a pessoa e o relacionamento potencial. Em geral, essas fantasias As fantasias da noiva, neste caso, relacionam-se de perto à pessoa
criativas estão bem longe da assim chamada realidade; são tão do futuro marido e à realização de seu potencial; suas esperanças
irreais, ou tão verdadeiras, como con tos de fadas e mitos. Elas poderão ser irreais, mas sua visão se adapta perfeitamente à
lançam mão de imagens para captar a natureza da outra pessoa - natureza do companheiro.
da mesma forma que uma lenda, como a de Guilherme TeU, é Estas fantasias criativas, ou circum-ambulação ima ginativa
capaz de captar e descrever a natureza da antiga Suíça tão bem do parceiro, são da maior importância em qualquer relacionamento
quanto uma cuidadosa pesq~isa histórica. Mesmo se não expressas, humano. Mesmo quando se misturam com componentes do ego,
as fantasias também influenciam a outra pes soa, despertando nela elas servem, pelo menos, para estimu lar a imaginação do outro.
suas potencialidades. Todo mundo tem necessidade de fantasiar sobre si mesmo, de
Esse tipo de fantasia tem muito pouco a ver com as circundar e despertar seu próprio potencial de forma mitológica ou
projeções, pois est~s são autistas. Na transferência, projetamos como num conto de fadas . Uma das tragédias da vida de crianças
sobre nosso parceiro imagens, problemas ou possibilidades que de orfa nato é que ninguém tece ta is fantasias em torno delas, de
dizem respeito a nós mesmos ou a nossa história de vida. As modo que quase nunca seu potencial é despertado. Essas crianças
imagens da tra:qsferência têm muito pouco a ver com a outra poderão tornar-se adultos bem comportados, mas psiquicamente
pessoa. Mas as fantasias criativas que descrevi se relacionam à só estão vivas pela metade.
natureza da outra pessoa e representam, de forma simbólico-mitológica~ Deve-se lembrar sempre que fantasias desse tipo nunca são
seu potencial de vida. "verdadeiras" em termos realistas, mas certa mente o são no
Certas fantasias dos pais talvez sirvam de exemplo. sentido simbólico. Podem relacionar-se à pessoa inteira ou apenas
Freqüentemente os pais se permitem, consciente ou semi a certas características, assim como podem girar em torno de
conscientemente, fantasiar o futuro de seus filhos - mas essas possibilidades passadas ou futuras. Nas conversas do dia-a-dia
idéias têm muito mais a ver com os pais do que com o potencial elas brotam em frases como: "posso imaginá-lo como um antigo
dos filhos. Muitas vezes, porém, essas fantasias derivam de uma pirata", ou então: "ele me parece do tipo artístico", ou: "eu o vejo
visão basicamente correta, representando uma figuração criativa exatamerite como um lorde inglês".
mais transpira e é trocado entre duas pessoas do que o
49 meramente expresso por palavras ou atos. O analisando deveria
É bem conhecido, no campo da educação, o efeito de fantasias que, tentar comunicar a seu analista, o mais honestamente possível,
embora referentes a outra pessoa, são na t·· tudo o que sente, sonha e fantasia. É por aí que o analista tem
verdade centradas no ego. Muitas crianças quase chegam a ser acesso aos problemas de sombra do paciente. Mas, apesar de o
destruídas por acreditarem que devem corresponder a fantasias analista não contar seus próprios sonhos e fantasias, estes também
dos pais que nada têm a ver consigo. Mas ra ramente se reconhece influenciam tanto o analisando como o próprio curso da análise. Se
o efeito positivo de fantasias que se relacionam de verdade com o o analista realmente pretender rastrear a sombra, ele deve
outro. Da mesma forma como se encarava, algumas décadas confrontar e lidar ativamente com suas próprias fantasias sobre
atrás, os contos de fadas e os mitos como absurdos ou até seus pacientes. Não adianta nada, nem para si nem para os
perigosos, não se compreendia a importância das fantasias na clientes, fazer o papel do terapeuta absolutamente "objetivo". Isso
educação e no relacionamento interpessoal. é ilusão. De outra perspectiva, podemos di zer que, se o analista
Para que possamos compreender o significado dessas funcionasse com uma objetividarle de computador, seu efeito
fantasias mútuas no relacionamento humano em geral e terapêutico seria com toda a certeza nulo, visto que exerce sua
especialmente na análise, 'conviria considerar rapida mente o função curativa na qualidade de ser humano e não de
modo pelo qual a psicologia junguiana encar:;. a ação e a reação computador. Vários terapeutas procuram suprimir ou reprimir as
que têm lugar entre duas pessoas. E evidente que uma pessoa é fantasias que têm com respeito aos pacientes, como se estas não
influenciada pelas fantasias que tem a respeito de si mesma. Mas fossem permis síveis. Ocorre que o conteúdo dessas fantasias, seja
é um pouco mais difícil perceber como suas fantasias sobre outra ele qual for, continua a produzir seus efeitos. O ponto central é
pessoa podem influenciar esta, mesmo se não verbalizadas. A não cortar as fantasias. Uma das primeiras tarefas do terapeuta
psicologia junguiana entende a relação entre duas pes soas como consiste em examinar e procurar entender suas fantasias. Tanto o
analista como o analisando têm suas fantasias sobre o outro; cada
algo mais que um mero contato entre duas consciências. Quando
duas pessoas se encontram, suas psiques se defrontam em sua um está sempre a circuns crever o outro em sua imaginação.
totalidade; o consciente e o inconsciente, o dito e o não dito, tudo N osso problema aqui é rastrear a sombra do analista. Muito já se
afeta o outro. Não sabemos exatamente como isso acontece. Mas escreveu sobre os perigos' da contratransfe rência. Espera-se que o
paciente, se possível, tenha uma transferência para com o
repetidas vezes pode-se observar que a psique de uma pessoa tem
analista. Este terá, então, de dissolvê-la e levá-la de volta a suas
um efeito sobre a de outra, com todos os seus aesejos, fantasias,
origens. É assim que se atingem os complexos neuróticos. Mas, se
sentimentos e emoções, sua consciência e sua inconsciência -
o analista tiver uma contratransferência, projetando sobre o
mesmo se o que se passa na psique não for declarado nem
paciente imagens, oaracterísticas etc., que na verdade pouco têm
exprE{sso de forma direta.
a ver com ele ou não passam de uma resposta à transfe
Este conceito de relacionamento é atualmente bastan te difícil de
comprovar. Mas os observadores interessados em relacionamento 51
interpessoal, sejam psicoterapeutas ou não, ficam sempre rência inicial, nesse caso o desenvolvimento é natural mente
impressionados ao perceber que muito bloqueado. Tudo isso já é bastante conhecido, e todo analista
consciencioso deve ter sido treinado para reconhecer a
50
transferência e impedir o surgimento da referem-se a linhas reais de desenvolvimento possível. Sua
contratransferência, dissolvendo-a tão logo possível. Mas as energia psíquica se
fantasias anteriormente descritas sã'o mais difíceis de se
compreender e extremamente importantes com respeito aos 52
fenômenos de sombra. Quanto a este aspecto, os analistas concentra sobre o lado destrutivo do paciente, e assim. o estimula.
costuIl1-am enterrar a cabeça na Trata-se de um tipo de "imaginação ativa", conforme o sentido
dado a esse termo pela psicologiajun guiana, mas que gira em
torno do potencial destrutivo do
paciente - sobre quem atua como uma maldição. A psicologia
popular costuma apresentar uma dimen são um pouco mais mágica
desse fenômeno. Em geral se acredita que, se os pais ou
professores acharam que uma criança "não dará em nada e
provavelmente acabará na cadeia", esta será atingida por uma
,.
influência devasta dora. Essa "fé negativa" é uma boa analogia
areia. Não se fala muito sobre as fantasias que temos so bre nossos para essas fantasias destrutivas que vimos discutindo .. São várias
pacientes, ou então estas são imediatamente entendidas como as origens psicológicas desse quase com pulsivo girar em torno do
expressão de uma contra transferência potencial negativo do paciente. Dentre elas, destaca-se a sombra de
- e, nesse caso, completamente mal interpretadas. Se tiver charlatão do analista, a qual, no essencial, não se interessa pelo
desenvolvi~o certo relacionamento ~om seu paciente - sem o que análise
bem-estar do paciente. Mas as fantasias desse tipo costumam ser
tão destrutivas que acabam prejudicando o próprio analista, dado
alguma seguirá adiante -, volta~e meia o analista terá fantasias que um fracasso na terapia irá igualmente afetá-Io. A
sobre ele, as quais expressam a maneira como o vê, circundando concentração quase compulsiva sobre as possibilidades negativas
seu poten cial. Estas fantasias exercem por certo uma influência, do paciente liga-se a uma dimensão destrutiva do analista que
tanto quanto as dos pais sobre a criança ou as da mulher sobre o 'examinaremos adiante em maior detalhe. O terapeuta não está
marido. sozinho com suas fantasias ne gativas, visto serem estas
N este ponto, um traço destrutivo costuma se reve lar no analista. estimuladas e 'influenciadas por seus pacientes. Em geral, a
Fantasias estranhas e negativas podem persistir e até mesmo con.cepção que um analisando tem de seu analista é em certo
proporcionar certa satisfação. Elas podem girar em torno de um sentido correta, porém parcial. Ele percebe possibilidades no
possível suicídio do paciente, ou da eclosão de uma psicose; analista que estão realmente presentes, mas que não constituem o
podem ser imagens des trutivas da família, da vida profissional ou quadro inteiro. Suas fantasias costumam girar em torno da som
da saúde do indivíduo. Tais imagens 'exercem um estranho bra do analista. O paciente poderá vê-lo como um cínico ávido de
fascínio sobre o analista.· Em lugar de uma preocupação positiva dinheiro que ridiculariza seus pobres clientes quando fala com os
com o paciente, elas revelam um encantamento com suas colegas, ou como um cientista de san gue frio que só se interessa
potencialidades negativas. Nas conversas entre analis tas, tal fato pelas pessoas como "casos", ou como um mau marido e mau pai.
costuma ser expresso por meio do evidente deleite com que um Com essas fantasias negativas, o paciente até certo ponto rouba do
fala ao outro sobre o grave perigo que ameaça determinado analista a
paciente. Estas fantasias negativas do analista não são projeções;
um desenvolvimento que beneficiária mais a si próprio do que a
53 seu cliente. Cabe aqui um exem
capacidade que este talvez tenha de ajudá-lo. Quero mais uma vez plo: um analista "vê" seu paciente como um futuro gerente geral.
enfatizar que não estamos falando aqui nem de transferência nem Neste caso específico, de fato a fantasia está de acordo com uma
de projeções, mas do reconhecimento de um potencial real no das possíveis linhas de desenvolvimento da pessoa em questão -
analista, da visão de sua sombra. mas é uma possibilidade que só poderia se realizar se o
As fantasias positivas do analista podem igualmente ter um ,desenvolvimento psíquico desta continuasse de modo
caráter destrutivo, mas é difícil reconhecer seu perigo. Tão, logo unidirecional. Assim sendo, a con
estabeleça um relacionamento com o centração do paciente em conquistar essa posição de poder poderá
não significar um benefício global para ele. Mas isso de algum
modo ajudaria o analista, proporcionando-lhe uma conexão
influente e um senso de seu próprio poder ao ver um ex-paciente
numa posição importante.
54
,
paciente, o analista deve de algum modo fantasiar sobre A VIDA EXTRA-ANALÍTICA
DO ANALISTA E DO PACIENTE
> ,~.
57
analista. Qualquer vida pode ser encarada como uma obra de
arte. Mas nesse caso o paciente já não cria mais sua vida
para seu próprio deleite, mas para que o analista não tenha
necessidade de criar a sua própria obra de arte ou de investir
em si próprio, satisfazendo-se em troca com as obras do
paciente. É extremamente difícil definir com precisão esse
58
fenô meno da experiência vicária. Em muitos casos, o analista :1. .
própria vida chega a sentir a consciência pesada, achando que SEXUALIDADE E ANÁLISE
deveria intere~sar-se mais por seus pacien tes. Mas na verdade, a
longo prazo, somente o analista apaixonadamente envolvido
em sua própria vida poderá ajudar seus pacientes a encontrar
seu caminho. Nesse sentido é bastante verdade, como diz
Jung, que o analista só pode dar a seus pacientes aquilo que
possui.
se, assim, que a experiência da sexualidade e a situação clínica ela conta tudo o que se passou entre ambos. Essa fantasia,
terapêutica não se entrosam jamais. ' no mínimo, levanta a suspeita de que certos fatores destrutivos
Ainda que a sexualidade não seja vivida na análise, é preciso adotar estavam por trás dos sentimentos sexuais de ambas as partes.
uma atitude altamente diferenciada em face do surgimento de uma Os psicoterapeutas junguianos, em particular, apre sentam uma
atração sexual mútua, inves tigando-se o que ela de fato expressa. forma peculiar de sombra de charlatão. Um dos grandes feitos de
Por mais doloroso que seja, o analista deve sempre examinar as C. G. Jung foi ter conferido um sig nificado mais profundo às
fantasias sexuais do paciente, bem como as suas próprias: Com descobertas de Freud no campo da sexualidade, em vez de
preender as d~ paciente e suprimir as suas não adianta muito, pois a descartá-las ou desaprová-las. O psicólogo junguiano compreende
natureza da situação psíquica se espelha em parte em suas próprias a sexualidade como símbolo de algo não-sexual, ou seja, a união
.fantasias. Um psicólogo que supervisionava um caso com um colega dos opostos ou coniunctio oppositorum. As cartas de amor de uma
relatou a seguinte : t"
freira a Jesus Cristo não representam necessariamente a subli
fantasia recorrente: ele e sua paciente mantêm relações sexuais; mação de um selvagem impulso sexual, mas precisamente o
no dia seguinte ela é internada numa clínica psiquiátrica oposto; mesmo a mais primitiva forma de sexualidade é até certo
particular, devido a um ataque histérico; na ponto encarada como um símbolo vivo da unificação dos opostos
que tanta dor e alegria causam à humanidade. Assim sendo, em
última análise, o fenôme no da atração erótica e sensual intensa na
psicoterapia deveria também ser compreendido como símbolo
dessa
64
unificação, como um mysterium coniunctionis vivido. Esse aspecto
transcendente da intensa atração entre analista e paciente deve
ser de alguma forma apreendido e expe
rimentado por ambas as partes durante a análise. Mas é
precisamente o aspecto transcendental do fe nômeno que fi sombra
de charlatão do analista pode usar como artimanha. Qualquer
analista sabe que a constela ção da sexualidade abriga certos
perigos. A sexualidade destrutiva opera qual moléstia contagiosa.
Um analista junguiano ansioso e preocupado com seu próprio bem
estar procurará evitar esses perigos aGenando para os aspectos
transcendentais tão logo a sexualidade venha à tona. Em vez de A atração homossexual apresenta na análise um problema
dar atenção às suas próprias fantasias e às do pacieIjlte, ele se de relacionamento muito mais complicado que a atração
refugia no simbolismo mais profun do do fenômeno sexual. Isso lhe
heterossexual. Mas,antes de entrar nesse
oferece certa imunidade contra os perigos apresentados por uma
sexualidade es timulada; mas também destrói certas possibilidades
de relacionamento e anula a chance de lidar com eventuais
tendências destrutivas em si e no paciente. Apesar de suas boas
intenções, acaba desvalorizando tanto a experiência do paciente
como talvez a sua própria.
Apesar de em última instância ser um símbolo, a
sexualidade só poderá ser um símbolo vivo se for real mente
experimentada. As formulações psicológicas e filosóficas se
interpõem entre as pessoas e a experiência. Além disso, a ênfase
prematuramente concedida ao sim bolismo desperta no paciente a
sensação de não ser levado a sério. No momento, este se vê
tomado e seduzido por fantasias e desejos sexuais; o analista deve " ";
em primeiro lugar compreender e em certo sentido participar da assunto em detalhe, conv~m apresentar algumas obser vações sobre
ex periência antes de tentar enriquecê-la com seu profundo a homossexualidade em geral.
simbolismo. Muitos psicólogos pressupõem que a criança é um ser
"polimorfo perverso", o que entre outros "desvios" sexuais inclui
tanto a hetero como a homossexualidade.' Os jogos sexuais das
crianças obviamente ocorrem nos dois níveis. No transcurso do
desenvolvimento, o componente hete
65
o MEDO DESTRUTIVO
DA HOMOSSEXUALIDADE
'; .-
., ~.
66
Indiquei atrás que todo relacionamento tem um as pecto
físico ou corporal. Duas pessoas que se relacionam sejam elas do
mesmo sexo ou não, devem sentir algo físic~ uma pela out~a. O corpo,
na maioria dos relacionamentos, está de alguma forma envolvido.
Esse sentimento físico entre duas pessoas do mesmo sexo 1/
costuma ser caracte rizado como homossexualismo latente e desté livro, esse aspecto corporal do relacionamento entre pessoas
"patologizado" como algo que não deveria existir. do mesmo sexo tornou-se um tabu na maioria das culturas átuais,
Mas talvez se devesse definir a homossexualidade de outra sendo suprimido desde a infância e encarado como algo
forma. O indivíduo homossexual rejeita o desejo e a necessidade altamente repreensível. Os europeus do norte, especialmente;
de união com a polaridade humana (femi nino-masculino), não chegam a extremos em sua rejei
sendo capaz disso porque o outro, o elemento contra-sexual, lhe ção desse aspecto. Já entre os meridionais é mais comum e
causa medo e ele se sente inadequado por razões psicodinâmicas. aceitável que os homens se abracem e tenham contato físic'o.
Em decorrência, canaliza tudo o que deveria fluir em direção ao Durante o Romantismo era comuni os amigos an darem de mãos
sexo oposto nos sentimentos físicos e basicamente normais que dadas. Atualmente, entre nós suíços, por exemplo, o contato físico
tem por pessoas do mesmo sexo. Assim sendo, na maioria dos entre homens ditos normais só é possível sob a influência do
casos o homossexual reprimiu sua heterossexualidade. Parte de álcool.
sua energia psíquica heterossexual flui numa hom~ssexualidade que A análise usa o relacionamento para fins de terapia. Mas,
em essência sempre existiu. como o relacionamento intenso também constela sentimentos
E muito comum nos equivocarmos quando falamos de físicos entre dois homens ou duas .mulheres, analista e analisando
homossexualidade sublimada ou latente. Muitas vezes não se trata devem de certa forma estar fisica
desse fenômeno no sentido aqui adotado, mas simplesmente da mente "juntos" e experimentar as mesmas vibrações. Poucos
presença de um eros incondicionado muito forte. analistas são capazes de enfrentar esse aspecto.
Colocando a questão em termos mais concretos: dois hom.ens
que se gostam, ou duas mulheres amigas, não precIsam
necessariamente sentir o outro como fisicamente r~I?ulsivo. Não se
pode ser amigo de alguém se a presença flsIca dessa pessoa nos
causar repulsa. Deve-se ter pra
zer em comer com o amigo, caminhar a seu lado, sentir sua
respiração, ter em suma uma sensação de bem-estar em sua
companhia. O amigo deve sentir o aspecto físico do outro como
algo agradável. Talvez Sócrates estivesse em última análise se
referindo a essa sensação erótica,
67
pois dava sempre a entender praticamente não ter tido relações
homossexuais, mas sensações desse tipo. Por certas razões
históricas que escapam ao âmbito
analisa,ndo sonha que está acariciando e abraçando o analista.
Este provavelmente acha o sonho doloroso e repugnante e o
interpreta no plano objetivo como expres
são de homossexualismo latente. No plano subjetivo, o sonho
estaria dizendo que o paciente acaricia seu próprio fator
terapêutico interior (analista = fator terapêutico). Talvez, porém, o
sonho simplesmente expresse o desejo do analisando de se
aproximar do analista, tanto física como espiritual:tnente. O
analista está sendo solicitado a dar carinho ao paciente; o uso da
interpretação como recurso para evitar tal pedido não trará
benefício algum.
A rejeição do aspecto corporal pelo analisando e prin cipalmente
pelo analista acarreta sérias conseqüências. É como se uma parte
do sentimento erótico ficasse vagando no escuro. O
relacionamento entre ambos pode se trans formar em algo
marcado pelo ódio e pela rejeição. Talvez a análiseseja
interrompida ou tenha de atravessar grandes dificuldades para
, l' chegar a um desfecho, já que a relação passa a apoiar-se em
Tão logo sejam sentidas essas vibrações corporais, seja em suspeitas paranóicas de parte a parte. Em termos freudian,os,
fantasias ou sonhos, começa-se a falar de homossexualida de ambos teriam reprimido sua assim chamada homossexualidade e
latente e o assunto se torna doloroso para o analista. A agora se sentem ameaçados por ela, vendo no outro um
dimensão corporal de eros é posta de lado e destruída. Os perseguidor.
psicólogos junguianos, porém, procuram escapar desse Quando esses sentimentos físicos se constelam, o analista
envolvimento de eros não dando continuidade às declarações sério que aceita se expor ao perigo não tem esco lha: ele não deve
veladas ou explícitas do paciente no campo sexual, ou então rejeitar tais sentimentos, mas observá los e permitir que seu
interpretando-as de modo imediato num "nível mais elevado". paciente fantasie. Deve ao menos aceitar as fantasias do paciente,
Nesse caso, fazem referências à relação do paciente com o em vez de rotulá-las de pronto como patológicas ou desviá-las
masculino espiritual, com sua própria masculinidade criativa etc. mencionando seu significado simbólico profundo.
Um sonho homos sexual é instantaneamente interpretado como Em última análise, a psicoterapia é uma atividade eró tica. Mas a
"busca e tentativa de compreender a própria masculinidade". Tal sombra de charlatão do analista procura evitar as exigências de
como no caso do erotismo heterossexual, aqui também o analista eros; quando muito, essa sombra tem uma relação erótica consigo
tenta fugir dos fenômenos eróticos. mesma - mas n~o com o paciente.
68 69
111
Ele sente que estes são perigosos, arma-se de teorias e mais
teorias e corre em busca de proteção. Um exemplo: um o ANALISTA E A LISONJA
e se dá conta do que ocorreu. A segunda possibilidade é mais perigosa.
O analista poderá transformar suas observações desagra dáveis sobre o
paciente em adulação. Tal procedimento dá a impressão de ser uma
forma genuína de atingir o paciente e pode temporariamente satisfazer
a ambas as partes; com efeito, o paciente pode no momento se sentir
auxiliado em seu desenvolvimento psicológico devido ao aumento da
'. auto-estima. Mas, nesse processo, o analista acaba por prender cada vez
m,ais o paciente, tornando-se, aos olhos deste, alguém que percebe um
valor à primeira
A sombra de charlatão que leva o analista a evitar
as exigências interpessoais da análise costuma também manifestar-se 70
sob outro aspecto, igualmente inespera do. O analista tem muitas vezes
de dizer coisas pesadas ao paciente. É obrigado a revelar mecanismos vista inexistente. Eis aqui alguns exemplos: o "arquétipo da rainha" é
psicológicos explicado a uma mulher sequiosa de poder, sendo o aspecto dominador
do feminino interpretado como expressão de uma "natureza real". A falta
de coragem nas relações interpessoais e o medo ou mesmo a
incapacidade de amar são interpretados como uma "interessante intro
versão"; o paciente é chamado não de egoísta cruel, mas de altamente
introvertido. A falta de respeito pela mãe idosa é vista como liberação do
animus maternal. Em vez de procurar melhorar o tenso relacionamento
entre pai e filho, surge a conversa de que "o rei deve morrer", ou que é
preciso assassinar o pai primordial. Não se menciona o fato de que uma
análise cuidadosa pode muitas vezes transformar pais ameaçadores em
velhinhos cordiais cuj a ameaça desaparece à medida que o próprio
paciente se fortalece. úm jovem afeminado que conseguiu extorquir um
carro esporte de seu rico pai é elogiado por sua firmeza contra o velho,
sendo o carro encarado como símbolo de uma masculinidade
recém-adquirida.
(
,
71
enveredar pelo caminho do elogio, é pouco provável que o analista
saia dele por obra do próprio paciente. Pelo contrário, em
situações desse tipo este ~m. geral tam bém começa a elogiar o
analista direta ou IndIretAam~nte. Essa lisonja mútua não é questão
de. transferencIa ou contratransferência; isso quer dizer,
sImplesmente, que um e outro se embalam, dão a aparência de
trabalhar
muito bem em conjunto e reciprocamente fortalecem ~~a
auto-estima - quando na verdade permitem que o serIO trabalho
de análise degenere num jogo charlatão. ~es.sa forma, o valor mais
profundo do desenvolvimento pSIqUICO é completamente traído.
72
·0 ABUSO DA BUSCA DE SENTIDO
75
ceber como essa sombra de charlatão costuma vir à tona
simultaneamente ou em conjunção a certas tendências destrutivas do
paciente. diante da terapia. Esses dois
./
76
que se preocupa o assistente social com os desajustados? O que é que 77
compele certas pessoas a quererem ajudar os doentes, os que sofrem, os ·
infelizes, os marginalizados?
Para compreender essas questões devemos inicial mente examinar a o MÉDICO TODO-PODEROSO
situação do médico - imagem primor dial daquele que ajuda e cura. E O PAClENTE PUERIL
Talvez uma visão do aspecto sombrio do médico e de seu modelo básico
de pessoa que ajuda/cura, seja ele psiquiatra, psicoterapeuta, analista ou
assistente social, derive em última análise da medicina clássica. À
medida que um assistente social funcione ape nas como doador de
esmolas, sua atividade tem pouco a ver com a imagem médica básica.
Mas pode-se dizer que o serviço social moderno se inclina em direção ao
modelo médico. Um assistente social não se apresenta para fazer
caridade, mas para ajudar a sanar uma situação social. E o profissional
moderno procura - às vezes com demasiado ardor - extrair da pSicologia No começo deste livro abordamos o problema do poder
um tipo de conhecimento capaz de ajudá-lo em seu trabalho com o no serviço social. O obscuro fenômeno do desejo de poder é
marginalizado. O trabalho de caso, atualmente, chega perto de uma psi uma coisa óbvia para os que trabalham nessa área. Mas o
cotera pia, sim plificada. problema se apresenta igualmente com a mesma intensi
dade no campo médico.
A medicina fez grandes progressos no século passa do.
Sua capacidade de abrandar o sofrimento e prevenir a doença
aumentou bastante. Muitos males infecciosos, como, por
exemplo, a peste, foram praticamente elimi nados. O uso das
vacinas conteve por completo a varíola epidêmica ou ser médicos "puros", mais cientistas do que sacerdotes.
endêmica. A tuberculose já se encontra parcialmente sob Mesmo nos períodos históricos em que os recursos da
controle. O progresso técnico na cirurgia tornou possível as medicina eram bastante limitados e os médicos já esta vam
mais extraordinárias operações para salvar ou prolongar a claramente separados da religião, estes eram quase tão
vida - e hoje já se pode enxertar braços ou substituir respeitados e temidos quanto os atuais. Parece que médicos e
corações. O antigo flagelo da febre puerperal, que vitimou sacerdotes sempre tiveram poder equivalente. Mas não estará
tantas jovens, é hoje uma rari dade. Na imaginação, pelo então o poder do médico e da medicina em geral mais ligado
menos, vemos a medicina se expandir até um remoto ao poder psicológico do que àquele baseado no conhecimento
horizonte. Seus instrumentos e sua infra-estrutura são hoje de científico?
tal ordem que se tornou lugar-comum imaginar o médico Seria interessante abordar esse tema a partir de um
moderno como alguém dotado de enorme poder, tanto em prisma psicológico. As pessoas com saúde podem viver uma
sentido positivo como negativo. vida independente, digna e respeitável. Um corpo saudável
A etnologia nos tem fornecido descrições precisas do permite ao indivíduo cuidar de seus interesses de modo livre
médico arcaico, ou curandeiro, poderosa figura que não e autônomo, dado que as circunstâncias exteriores sejam
:'.
1~ , favoráveis. Mas tudo muda quando a doença entra em casa.
O homem sadio se torna então uni paciente, o adulto se
1 1.';!.
1\ :;
transforma em criança. O indivíduo até então digno e
saudável é subitamente dominado pelo
78
79
hesitava em lançar mão dos recursos que lhe parecessem medo, torturado pela dor e ameaçado pela morte. Uma estranha
necessários para manter o poder. Este, bem como o desejo de forma de regressão se manifesta. O paciente já não é mais senhor
tê-lo, ligava-se ao fato de que não se tratava meramente de de seu corpo, mas sua vítima. A psi que, também, parece
um médico, mas de um sacerdote em contato direto com as transformar-se sob a influência da doença física. As mulheres que
forças superiores. Quem se interessa pela História sabe muito passaram pela experiência de cuidar de maridos temporariamente
bem que nas situações em que se aceita o contato direto de enfermos podem relatar inúmeros exemplos dessa mudança. O
alguns com os deuses há sempre o perigo de o poder ser homem forte, protetor do lar e senhor da casa, torna-se uma
usado para fins escusos. criança a pedir com voz chorosa seu suco de laranja. Os médicos e
Os médicos da Grécia Antiga também eram sacerdo tes - os enfermeiros observam amesma regressão em pacientes
mas de Asclépio, deus da cura, que, com o passar do tempo, hospitalizados - adultos se tornando infantis, com uma confiança
foi reduzido a mero santo padroeiro. Os médicos árabes e cega no especialista ao lado de uma recalcitrância igualmente
judeus da Idade Média seguiram um caminho diverso do pueril.
sacerdócio e se aproximam bastante de seu similar Em situações desse tipo, o médico se torna a grande fonte de
contemporâneo. Os médicos da Europa medieval sofreram a ajuda e, esperança. Temido, respeitado, odiado e ad.mirado, às
influência da alquimia, colocando-se assim novamente em vezes chega a parecer um redentor divino. O médico pode curar,
contato com o sobrenatural. Já os da Re nascença voltaram a pode aplacar a dor e tornar supor
tável' a experiência da morte. Sem ele, o paciente está perdido. Não estará o poder de alguma forma dissimulado no
É claro que o médico sabe, em termos puramente arquétipo de terapeuta-paciente? Antes de procurar uma resposta a
intelectuais, que seus pacientes são pessoas como ele. Mas, para essa questão, devemos esboçar rapidamente os .. vários sentidos que
ser honesto, ele deve sempre admitir a impos sibilidade de evitar a palavra "poder" pode assumir.
uma atitude negativa diante de seus pacientes. Especialmente para Num relacionamento humano um sujeito confronta outro. Cada um
um médico de hospital, os pacientes costumam reduzir-se à se relaciona com o outro como sujeito. Num relacionamento em que
condição de criaturas pobres e infelizes, sem nenhum status ou o poder seja o fator dominan te, um tenta transformar o outro em
dignidade, uma classe virtualmente distinta de pessoas - objeto, sujeitando-se· este ao primeiro. Isto é, o objeto passa a ser
insensatas, não tomam seus remédios, fazem coisas prejudiciais a manipulado pelo sujeito segundo seus próprios interesses. Esse tipo
si mes mas, às vezes obedecem e outras não - exatamente como as de situação acentua a noção que o' sujeito tem de sua própria
crianças. Estabelece-se assim uma polaridade entre o paciente em importância e isenta o objeto de qualquer respon sabilidade. Aí
regressão, infantil e temeroso, de um lado, e, de outro, o médico temos um tipo de poder. Outra variedade é a "autodeificação". Só
superior e orgulhoso, distanciado, mas talvez ainda friamente Deus, ou os deuses, tem o direito de dominar os homens. Um ser
cortês. humano possuído por
81
80 um "complexo de deus" tenta, como um deus, dominar os outros.
Esse tipo de poder tem uma qualidade numinosa e é
o ARQUÉTIPO extremamente perigoso tantõ para o dominador quanto para o
DE "TERAPEUTA-PACIENTE" dominado. Os César~s, Napoleão e Hitler são exemplos dessa
E O PODER autodeificação. E esse o tipo de poder que Jacob Burckhardt
descreve como sendo mau em si.
O moderno culto que envolve o médico é, ao menos em
parte, uma expressão desse poder. Ao usar o termo culto, quero
dizer a veneração pública e o prestígio social usufruídos pelo
médico como alguém que "tem nas mãos a vida e a morte, a
doença e a saúde". Tal fato é expresso nos romances sobre
médicos, em biografias como a de San Michele, em filmes
O relacionamento entre terapeuta e paciente é tão populares e seriados de televisão.
fundamental quantc: aquele entre homem e mulher, pai e filho, Esse culto e o poder que os médicos podem exercer em
mãe e filho. E um relacionamento arquetípico, no sentido em que hospitais estão interligados e se reforçam mutuamen te. ~O
C. G. Jung usou a expressão, ou seja, é uma forma inerente e médico-chefe ditatorial, cujos estados de espírito tanto aterrorizam
potencial de comportamento humano. Em citações arquetípicas, o os pacientes, diante de cujos resmun gos tremem enfermeiros e
indivíduo percebe as coisas e atua em conformidade com um residentes, é uma figura bem conhecida. Os pacientes não ousam
esquema básico que lhe é inerente, mas que em princípio é o fazer perguntas, com medo de ser tratados bruscamente. No
mesmo para todos os homens. entanto, muitos enfermeiros, estudantes e pacientes admiram
essas demonstrações de poder e respeitam o grande e poderoso destrutivos desse tipo. Não estaremos porventura tratando aqui de
líder quando este, tal como um semideus, atra vessa os corredores uma espécie de autodeificação, na qual um complexo de deus é
do hospital seguido por um séquito de assistentes. ativado no médico? Essa seria uma possibilidade; mas, uma vez
Mas há algo de errado aqui. Parece que minha pro sa está sendo mais, a mesquinharia e o mau gosto do fenômeno não parecem
invadida por um toque vulgar. As memórias, os romances médicos conduzir a essa suposição. Tentar tornar-se como Deus é uma
e os filmes de televisão sobre a vida hospitalar são em geral grande transgressão, mas sem nada de mesquinho. Não obstante,
sentimentais, de mau gosto e sem nenhum valor artístico. Há algo a mesquinhez associada ao poder do médico não pode ser mera
de impressionante num político que exerce seu poder, num líder questão de acaso. Os vários tipos de poder que descrevi não
sindical capaz de paralisar toda uma indústria com uma só parecem se aplicar ao problema aqui examinado.
palavra, num executivo cujas decisões afetam a vida de milhares
de pessoas, num general.de quem podem depender a vida e a
morte de batalhões inteiros. Mas um médico que abusa
83
82 A CISÃO DO ARQUÉTIPO
de sua posição para exercer poder lembra antes um ri dículo
tirano, inflado, pequeno e moralmente deplorável. Deixa os
pacientes esperando horas enquanto bate papo com as
enfermeiras, fornece-lhes o mínimo de informações sobre sua
condição e baixa ordens sem maiores explica ções. Atravessa as
alas do hospital como um potentado do Oriente inspecionando
seus escravos indefesos. Tudo isso
parece mesquinho, sem nada de muito edificante. Aqui surge a
questão da natureza do poder do mé dico. Saúde e enfermidade, A literatura psicológica tem tratado de uma grande variedade
terapeuta e doente, médico e paciente são todos motivos de aspectos do arquétipo. Um deles, porém, parece ter sido
arquetípicos. Será que o poder faz parte do arquétipo relativamente ignorado. Para evitar mal entendidos, tentarei
terapeuta-paciente, como ocorre com o de rei-súdito? Se fosse esse novamente examinar a natureza do arquétipo, desta vez em
o caso, não haveria nada de mesquinho ou mau no exercício de tal termos distintos dos até aqui usados.
poder. Um arquétipo é um fator primordial, uma realidade O arquétipo pode ser definido como uma potencia lidade inata
fundamental, e como tal não pode ser mesquinho por natureza. Ou de comportamento. O ser humano reage arquetipicamente a
será que o tipo de poder acima descrito no relacionamento entre pa alguém ou a algo quando se defronta com uma situação típica e
ciente e médico é exclusivamente negativo e destrutivo, ou seja, recorrente. A mãe e o pai reagem arquetipicamente ao filho ou
uma tentativa de transformar um indivíduo em obje to e de filha, o homem rea ge arquetipicamente à mulher etc. Nesse
degradar a humanidade do outro no relacionamen7' to? Não parece
sentido, certos arquétipos têm dois pólos,. por assim dizer. Sua
sustentável supor que nós médicos sejamos a tal ponto guiados por
situação básica contém uma polaridade.
forças destrutivas. Escolhemos nossa profissão para poder curar; Não sabemos, é claro, o modo preciso como se ori ginou o
seria difícil supor que no fundo o que nos move são impulsos
comportamento arquetípico. Talvez um dos pólos do arquétipo se tinha feridas incuráveis. Na Babi
localizasse originalmente no indivíduo e o outro fora dele, em seu lônia havia uma divindade canina com dois nomes: Gula, morte, e
semelhante. Mas, na psicologia humana que conhecemos, ambos Labartu, cura. Na índia, Kali é a deusa da varíola e ao mesmo
os pólos estão contidos no mesmo indivíduo. Nascemos todos com tempo é quem a cura. A imagem mitológica do terapeuta ferido é
ambos os pólos dentro de nós. Se um pólo se constela no mundo bastante difundida. Psicologicamente,
exterior, o outro, oposto e interior, também se constela.
A criança desperta na mãe o comportamento ma ternal. Há, 85
na psique de cada mulher, a potencialidade
84 isso significa não só que o paciente tem um médico dentro dele, mas
inata desse tipo de comportamento na situação mãe-filho, o que também que há um paciente no médico.
misteriosamente deve significar que o filho já está contido dentro Iniciamos este capítulo com o problema do poder.
da mãe, um pouco no sentido da frase de Goethe: "Se nosso olho Vejamos se o conceito de cisão do arquétipo pode es clarecer melhor
não contivesse o poder do sol, como poderia percebê-lo?" Talvez essa questão. Não é fácil, para, a psique humana, suportar a tensão das
não devêssemos falar de um arquétipo materno, paterno ou do polaridades. O ego ama a clareza e tenta sempre erradicar a
filho, mas de um arquétipo mãe-filho ou pai-filho. ambivalência in terior. Essa necessidade de situações inequívocas pode
Levando adiante essa linha de raciocínio, eu sugeriria que não acarretar uma cisão dos pólos arquetípicos. Um pólo po derá ser
há um arquétipo especial de terapeuta ou pa ciente. Ambos são reprimido e continuar operando no inconsciente, possivelmente
aspectos da mesma coisa. Quando uma pessoa fica doente, o causando distúrbios psíquicos. A parte reprimida do arquétipo poderá
arquétipo de terapeuta-paciente se constela. O enfermo procura ser projetada sobre o mundo exterior. O paciente, por exemplo, talvez
um terapeuta exterior, mas ao mesmo tempo se constela o projete seu terapeuta interior sobre o médico que o trata e este poderá
terapeuta intrapsíquico. Costumamos nos referir a este, no projetar suas próprias feridas sobre o paciente. Essa projeção de um
paciente, como "fator de cura". É o médico dentro do próprio pólo do arquétipo sobre o mundo exterior poderá proporcionar uma
paciente - e sua ação terapêutica é tão importante quanto a do satisfação momentâ nea. Mas, a longo prazo, indica que o processo
profissio nal que entra em cena externamente. As feridas não se psíquico está bloqueado. Numa situação desse tipo, o paciente, por
fecham nem as doenças se vão sem a ação curativa do terapeuta exemplo, poderá deixar de se preocupar com sua própria cura,
interior. Costuma-se dizer que um paciente "não quer ficar bom". esperando que o médico, os enfermeiros e o hospital lhe tragam a
Mas como esse não-querer-sarar não se refere à vontade do ego, recuperação, ao mesmo tempo que abre mão de qualquer
seria mais apropriado dizer: "Seu terapeuta interior parece fraco". responsabilidade. Consciente e inconscientemente, começa a
Muitas doenças requerem os serviços de um médico externo. depender completa mente do, médico para melhorar, colocando nas
Mas este não será suficiente sem o auxílio do terapeuta interior. O mãos deste seu próprio fator curativo e deixando o barco correr.
médico pode fechar o corte - mas algo no corpo e na psique do Esse tipo de paciente poderá ou não cumprir as ordens do médico,
paciente deve cooperar para que a enfermidade seja vencida. tomar seus remédios ou jogá-los na pia. Os ambulatórios estão
Não é difícil imaginar o fator curativo no paciente. Mas e o repletos de pacientes assim - sempre sofrendo de algo e sem
médico? Defrontamo-nos aqui com o arquétipo do "terapeuta demonstrar o menor sinal de um desejo de saúde, ou do que
ferido". Quíron, o centauro que ensinou a Asclépio a arte da cura, poderíamos denominar consciência de saúde. Seguem as sugestões
do médico ou se rebelam contra elas, como crianças de escola para
quem só o professor deve ser ativo no processo 'j
de aprendizado.
j
j
I
86
filha ou de filial na mãe. O relacionamento se dá entre mãe forte f' Seria bom esclarecer neste ponto um possível equí
voco. Quando falo em terapeuta ferido, não me refiro ao todos os seus sintomas; encontram pacientes com câncer e
médico que se identifica com um paciente específico. Isso começam a desconfiar que também sofrem desse mal. Esse
seria mer~ sentimentalismo e constituiria apenas uma fenômeno psicológico costuma ser encarado como neurose.
reunificação externa dos pólos do arquétipo. Tal identifica Os médicos mais velhos riem-se de seus apavorados alunos,
ção é antes sinal de fraqueza do ego, um método histérico de lembram ter passado por essa fase e não dão maior
unir os opostos. importância ao fato. Mas essa assim cha
A imagem do terapeuta ferido simboliza uma aguda e mada fase ?eurótica pode ser um ponto crítico para o
dolorosa consciência da doença como contrapartida da saúde estudante. E nesse momento que ele começa a compreen der
do médico, uma certeza duradoura e penosa quan to à que todos esses males existem nele próprio. É assim que ele
degeneração final do seu próprio corpo e da própria mente. se torna o "terapeuta ferido". Pode ocorrer, porém, que a
Esse tipo de experiência faz do médico mais um irmão do carga se torne pesada demais e o pólo da doença venha a ser
que um mestre do paciente. Todos temos dentro de nós o reprimido. Mas, se for capaz de experimentar a doença como
arquétipo de doença...,saúde, mas sobre o médico com uma possibilidade existencial nele próprio e de integrá-la, o
genuína vocação este exerce um fascínio especial. Não é por estudante transformar-se-á num verda deiro "terapeuta
outra razão que escolheu sua profissão. O médico médio não
entra na carreira tendo em vista um modo fácil de conquistar ferido".
poder e, talvez, ao mesmo tempo auxiliar a humanidade. Gostaria uma vez mais de lembrar que não se deve
Costuma-se acusar os médicos de e'sta rem mais interessados concluir que o po~er exercido na medicina seja completa
na doença do que na cura. Isso é apenas meia verdade. Eles mente negativo. E verdade que quanto maior o grau em que
se interessam pelo arquétipo de doença-saúde e desejam se apresentar, menor a chance de que entre em cena o
conhecê-lo por intermédio da experiência. Ij)evido a uma verdadeiro terapeuta. Mas repito que é melhor o médico
grande variedade de razões tentar reunir o arquétipo cindido por intermédio do poder do
que igno,rar por completo o pólo separado.
90
Consideremos agora, brevemente, o médico de hoje. A
II
i medicina moderna é altamente técnica e especializa da.
Nossa fantasia sobre o velho médico do interior, que
psicológicas, os homens e as mulheres que escolhem a
carreira médica sentem-se atraídos pelo arquétipo de 91
terapeuta-paciente. Mas, infelizmente, nem todos os que a co~hece intim~mente toda
a família do paciente, poderá servir como
escolhem são suficientemente fortes para experimentar de uma instância do arquétipo não-cindido de ter'apeuta-paciente,
modo contínuo os dois extremos da polaridade. Ele não tinha poder algum, mas à sua chegada já baixava a
Para tornar mais concreto o que acabamos de dizer, febre das crianças, Malvestido e de aparência modesta,
consideremos os estudantes de medicina. Durante seus anos costumava ter um fraco pela bebida - procurando no álcool um
de formação, é comum vê-los atravessar uma fase durante a meio de evitar a tremenda e inevitável tensão de viver em
qual acreditam sofrer detodas as doenças que estão permanente contato com ambos os pólos do arquétipo. Mas não
estudando. Ouvem falar de tuberculose e descobrem em si tinha manias de grandeza - para nós, ele é a imagem de um bom
"tera peuta ferido". pólos. Todos podem ser terapeutas feridos ou tiranos mesquinhos. O
As pessoas de temperamento mais conservador pode aspecto que se impõe não depende de ser o profissional um médico de
rão acreditar que o médico moderno talvez já não possa mais família do século XIX ou um diretor de hospital altamente
experimentar o arquétipo inteiro. À primeira vista, ele parece um técnico especializado. A cisão do arquétipo é um evento
especializado inserido na produção hospitalar em série. Pode parecer que
o velho médico é 92
interior, que depende menos da situação externa do que do próprio
desenvolvimento psicológico e da capacidade do médico em questão.
Para esclarecer ainda mais o que estou tentando dizer, gostaria de
mencionar uma imagem adicional, embora consciente de sua eventual
impertinência: a imagem de Cristo. Jesus Cristo é uma realidade
histórica e religiosa e portanto só com a maior reserva 'pode ser
concebido como símbolo psicológico. Mas quem melhor do que ele
expressa o "terapeuta ferido"? Ele curava não só as doenças da psique,
mas também os males existenciais do pecado e da morte.
Cristo foi ferido e carregou os pecados do homem. Veio para salvar o
mundo da morte e do pecado e rio entanto carregou-os todos e teve de
morrer. Sempre recusou ser vir-se do poder, reconhecendo apenas o de
.: :.
Deus, seu pai. Ele é, assim, o terapeuta ferido no mais elevado sentido .
q1:ie era o "terapeuta ferido" por excelência, enquanto o especialista Em comparação, o médico não passa de um anão que se precipita na
moderno e tecnificado tende a repelir um luta entre vida e morte, doença e saúde. E que só poderá trabalhar
.. ",
criativamente se tiver em mente que, a despeito de todo o seu
pólo do arquétipo. Ocorre, porém, que o arquétipo opera conhecimento e de sua técnica, em última análise deve sempre procurar
1 .'.
94
à "salvação" da psique. Essa posição argumenta que, assim como
93 o ego e o si-mesmo às vezes se opõem e não visam aos mesmos
MÉDICO, PSICOTERAPEUTA, objetivos, da mesma forma a saúde em geral e a "salvação da
ASSISTENTE SOCIAL E PROFESSOR alma" nem sempre são idênticas. O terapeuta com orientação
médica procura apenas auxiliar o paciente a atingir um estado de
saúde, enquanto aquele psicologicamente orientado visa
promover o dinamismo da psique em direção ao si-mesmo e ao
encontro de um sentido.
Essa posição me parece questionável. Todos devem buscar o
assim chamado sentido da vida, podendo ser auxiliados por quem
quer que seja. Esta não é uma área para atuação exclusiva de
especialistas. Os que se sentem feridos ou sofrem de dificuldades
Procurei, no capítulo precedente, examinar o pro blema emocionais pedem ajuda, desejando alcançar uma cura que lhes
arquetípico da medicina como profissão. O modelo básico desta permita continuar a se desenvolver segundo suas próprias
é importante também para certas profissões não-médicas que potencialidades. Há pessoas tão fascinadas pela eterna luta entre
igualmente visam promover o desen volvimento humano. Algumas doença e saúde que se sentem convocadas a tomar parte na
se afastaram da medicina sem perder por completo seus traços de batalha, em vez de meramente evitá-la ao sofrer passivamente
origem, enquanto outras têm se voltado cada vez mais para o seus efeitos.
modelo médi co, mesmo se no passado não tiveram muito contato Assim como o médico, o psicoterapeuta e o analista, o
com ele. Recentemente, o potencial de cura apresentado pelo assistente social também tem um objetivo terapêutico,
trabalho psicoterapêutico e analítico tem levado a certos sentindo-se compelido a melhorar e sanar condições sociais
equívocos. Alguns profissionais dessa área sustentam que "patológicas". Assim, apesar de não possuir nem di
somente os médicos deveriam poder trabalhar como ploma nem formação em medicina, o assistente social, até certo
psicoterapeutas. Em outros termos, é como dizer que somente ponto, compartilha o mesmo de'stino do médico. O problema da
aqueles afetados pelo arquétipo do "terapeuta ferido" poderiam ser cisão do arquétipo aparece em todas essas profissões - seja a
psicoterapeutas. Quando os médi cos não conseguem aceitar o fato polaridade enfermidade-saú de, consciência-inconsciência,
de que sua atitude básica possa igualmente ser encontrada em norm,alidade-patologia social. O médico pomposo, mesquinho e
pessoas não formadas em medicina, os psicoterapeutas não-médi ávido de poder, o psicoterapeuta falso profeta e charlatão e o
cos e os analistas com~çam a se defender. Uma posição corrente é a assistente social inquisidor estão todos inter-relacionados em seu
de que estes deveriam apoiar-se num modelo distinto daquele que complexo arquetípico. Basicamente, todos sentem o mesmo
fascínio pelo arquétipo de "terapeuta-paciente"; todos sofrem os verdade. Num contato mais íntimo
efeitos dos dois pólos do arquétipo; todos
95
podem funcionar como "terapeuta ferido", ou reprimir uma d.as
polaridades, projetá-la e assim entregar-se ao desejo de poder.
O problema da cisão do arquétipo aparece igualmente em
outro campo de atividade que também se inclui entre as
profissões relacionadas ao desenvolvimento humano. Refiro-me
aqui ao magistério. A confrontação entre pro
fessor e aluno apresenta um paralelismo à tensão interior
existente entre os estágios de adulto bem-pensante e criança
ignorante. Dentro do adulto há uma criança que o impele sempre
para o novo. O conhecimento do adulto torna-o rígido e fechado
com respeito à inovação. Para permanecer emocionalmente vivo,
o adulto deve conservar e cultivar o potencial de vida
representado pela ingênua abertura e pela irracionalidade das
experiências da crian
i?,
ça q'tle ainda não sabe nada: O adulto, portanto, nunca pára de migos. Queixam-se de que estas não sabem nada e não têm
crescer; para de alguma forma manter a saúde psíquica, é preciso vontade de aprender; seus nervos ficam à flor da pele
conservar certa ignorância infantil. 96
A opinião pública costuma encarar os professores como sendo
com a infantilidade e a falta de autocontrole dos alunos. Para esse
infantis e irrealistas - o que não é comple tamente destituído de tipo de professor as crianças são o Outro, aquilo que ele próprio
não deseja ser jamais; comprazendo-se em exibir seu poder sobre básico subjacente a seu comportamento. Muitos problemas
as crianças, ele as atormenta e as mantém na linha por meio de fund,amentais dessa vocação se aplicàm a todas as profissões que
"médias" matemáticas cuidadosamente calculadas. lidam com o desenvolvimento humano, mas alguns são
O bom professor sente-se fascinado pelo arquétipo adulto exclusivamente seus. Para compreendê
instruído-criança ignorante. Um bom professor deve, por assim los oe modo mais completo, devemos abordar questões
dizer, estimular o adulto instruído na criança, assim como deve o psicológicas. Assim como fizemos com relação à cisão do
médico ativar o princípio in arquétipo, chegaremos ao objetivo por vias indiretas. Mas, para
terior de cura no paciente. Mas isso só pode ocorrer se o chegar ao ponto que me interessa, devo antes tratar de algo
professor não perder contato com sua própria infantilida de. Em completamente distinto.
termos práticos, isso significa, por exemplo, que, ao ensinar, ele
não deve perder a espontaneidade, devendo deixar-se conduzir por
seus próprios interesses. Seu traba lho consiste não apenas em
transmitir conhecimento,mas também em despertar a vontade de
aprender nas crianças - o que só será possível se a criança
espontânea e ávida de conhecimento estiver viva dentro dele.
Infelizmente, os modernos regimes escolares e planos pedagógicos
servem se de todos os meios para destruir essas qualidades da
espontaneidade infantil, pois o arquétipo do ensino está cindido.
A infantilidade do professor é reprimida e então projetada sobre o
aluno. Quando isso ocorre, o processo de aprendizado é
bloqueado. As crianças continuam sendo crianças e nelas já não
mais se constela o adulto instruído. O professor fica cada vez mais
sabido e os alunos cada vez mais ignorantes. Esse tipo de
professor, que cindiu e afastou o pólo infantil do arquétipo,
passará então a queixar-se de que os alunos de antes tinham
muito mais vontade de aprender. Seu contato com as crianças se
dá apenas por intermédio do poder e da disciplina. Ao mesmo
tempo, ele se torna uma pessoa triste e amarga. O entu siasmo
novo e infantil morreu nele. As crianças são seus inimigos,
representando o pólo cindido do arquétipo no 98
97 A SOMBRA, A DESTRUTIVIDADE
· plano interior, cuja reunificação ele tenta promover por EOMAL
intermédio do poder.
Mas neste livro é o psicoterapeuta que nos interessa mais de
perto. Nossa intenção foi lançar alguma luz sobre o modelo
algum de um "sinal dos tempos". A destrutividade contra si
mesmo e o próximo sempre foi uma característica da juventude.
Colocando em termos um tanto radicais: através da história, os
jovens sempre estiveram prontos para matar ou morrer, por
pouco e até por nadGt. As guerras destrutivas da hu manidade
sempre encontraram nos jovens participantes
106 107
nho: queremos ter certo grau de liberdade, pretendemos julgar, sição da infância à idade adulta o jovem deve, portanto, entrar
avaliar, tomar posição, encarar as coisas sob todos os ângulos e em contato com o Diabo, com a destrutividade; para chegar à
tomar livremente nossas decisões. Queremos não apenas saber o liberdade, deve experimentar também a possibilidade de destruir.
que é certo e o que é errado, como Adão e Eva ao comer o fruto Em certo sentido, estou tentando tornar compre ensível a
da Árvore do Conhecimento, mas também decidir livremente o existência da sombra arquetípica; ao fazê-lo, porém, vejo que ela
que é que desejamos fazer. Esforçamo-nos para atingir nosso fica um tanto diluída. Meus conceitos e explicações têm um valor
próprio ponto de vista, a partir do qual julgamos o mundo, Deus e limitado. Podemos, p.té certo ponto, procurar entender o
nos significado desse assassino ou suicida dentro de nós, como tentei
sos semelhantes. Destinados a viver, queremos fazê-lo segundo acima, mas ao mesmo tempo não temos outra alternativa a não
nos compraz. ser encarar esse nosso lado obscuro como algo inexplicável,
Mas só quem for capaz de dizer "Não" ao mundo poderá reconhe cendo-o como tal e tomando certas precauções contra ele.
também afirmá-lo. Só quem tem liberdade de destruir pode Não podemos realmente dizer se o propósito desse "Não" à cri~ção
livremente voltar-se para o mundo com amor. Sem a é de fato apenas nos dar a liberdade.
possibilidade desse "Não" destrutivo e pe Talvez não seja por acaso que em vários rituais de iniciação
caminoso seríamos como imaginamos serem os animais: primitivos o jovem deve tomar parte de algo destrutivo, seja
simplesmente existiríamos, impelidos por nosso instinto de expondo-se a um grande perigo, seja matando e decapitando um
sobrevivência, sem nenhuma possibilidade de decisão, sem inimigo.
nenhum sentido de liberdade. Não teríamos a menor Os jovens devem entrar em contato com o Diabo
oportunidade de julgar, de nos tornarmos conscientes e de , sem no
escolher. Talvez a existência da sombra arquetípica seja um
atributo especificamente humano. entanto identificar-se com ele. O ego deve perma necer de certa
O jovem atravessa um estágio transitório entre a infância e forma distanciado e consciente do que está fazendo. Na maioria
a idade adulta. A criança, é claro, contém em si um alto grau de das vezes, quando destroem propriedades, roubam ou se deixam
destrutividade e às vezes age como a própria encarnação do levar por outras atividades destrutivas, os jovens sadios sabem
demônio. Mas sua situação geral é em boa medida determinada que estão participando de uma experiência transitória, tendo cons
pelos pais. Ao lutar com seus problemas, usa instrumentos, ciência de que, apesar de interessantes, suas ações são na
verdade "más". Mas sejam quais forem os detalhes específicos, há casos em que
É preciso, a esta altura, esclarecer um ponto. Nem todos os o jovem experimentou de fato grande dose de destrutividade em
jovens se entregam a um comportamento aberta mente destrutivo, seu meio. Ao entrar na adolescência, época em que deve
nem todos guiam de forma suicida ou participam de tumultos. A estabelecer-se o contato com o Mal, torna-se naturalmente fácil
exteriorização do Mal em ações é apenas uma das maneiras de simplificar o conflito projetando a Destrutividade no
entrar em contato com ele. Há também a alternativa de fantasiar
109
ou identi ficar-s~ com fantasias alheias. Schiller era jovem quando
ambiente, ou pelo menos em parte dele. Para um jovem nessa
108 situação, o Mal deixa de ser parte integrante da psicologia
escreveu Os Assaltantes. Goethe expressou seus próprios humana e se torna apenas uma característica do meio, de certas
impulsos suicidas ao escrever As Angústias do Jovem Werther. pessoas e estruturas sociais. Projeções desse tipo bloqueiam
A literatura está repleta de figuras sombrias com as quais o leitor qualquer desenvolvimento. p~íquico pessoal e tornam a integração
pode se identificar e assim entrar em con social extremamente difícil. Tudo o que acontece de negativo é
tato com seu próprio lado obscuro. O cinema, a televisão e o compreendido como produto de um mundo cruel, que deve ser
teatro oferecem incontáveis oportunidades de roubar alguns fios responsabili
de ouro da cabeleira do Diabo por meio da identificação com as zado pelo comportamento destrutivo e auto destrutivo do jovem.
manifestações da Destrutividade. Este racionaliza sua auto destrutividade através de frases do tipo:
As fantasias destrutivas são muito importantes nos jovens, "É isso o que o mundo quer, não é? Pois aí está. Assim me
cuja imaginação costuma apresentar idéias de suicídio, impulsos vingo".
homicidas e os atos mais terríveis e destrutivos. Se esse tipo de jovem for introvertido, capaz de ex perimentar
Alguns jovens conseguem contatar o Destrutivo por meio alguns de seus conflitos no plano interior, em fantasia, talvez
da especulação filosófica ou de práticas religiosas. Mas há muitos consiga arranjar-se, em termos sociais, embora à custa de grandes
que fracassam ao tentar arrancar alguns desses fios de ouro da dificuldades e amargura. Na maioria dos casos, porém, esses
cabeça do Diabo. O Destrutivo - o Mal em si - é sinistro e adolescentes não têm a sorte de poder desenvolver-se num
insuportável para quem quer que seja. O mais natural é afastá-lo, ambiente que esti mule sua vida interior e lhes forneça os
livrar-se dele de alguma forma. Por essa razão muitos jovens, instrumentos necessários para confrontar seus problemas no
quando em sua fase de confronto com o Mal, demonstram uma nível da fantasia e do símbolo. Inclinam-se, portanto, a pôr para
tendência a projetar a sombra arquetípica. Quando isso ocorre, fora tudo o que se passa dentro. Surge aí o clássico caso do jovem
sentem os adultos, os pais ou a "geração mais velha" como sendo negligenciado, anti-social, talvez mesmo crimi noso .. N a
a própria encarnação do Mal e da Destrutividade. Um jovem superfície, seus atos destrutivos se assemelham aos do jovem que
sadio, depois de certo tempo, recolhe essas projeções. Mas há vive um cbntato apenas momentâneo com o Destrutivo; no plano
outros que crescem em ambientes altamente destruti vos e cheios interior, porém, a situação é bastante diversa. Para essa pessoa o
de ódio. Talvez a mãe tenha rejeitado ou até mesmo abandonado contato com o Dia,bo torna-se uma tragédia, uma batalha
o filho; possivelmente não houve uma vida familiar adequada; quixotesca com um ambiente que passa a ser visto como
com antecedentes tão negativos, a criança talvez tenha tido personificação do Mal. Enquanto adolescentes ou mesmo mais
dificuldades na escola ou sido rejeitada por professores e colegas. tarde, indi víduos anti-sociais desse tipo costumam erroneamente
ser cla!?sificados como psicopatas, portadores de defeitos de
caráter inatos. Se conseguem, quando adultos, formar uma
família, muitas vezes instilam nos filhos uma atitude
genuinamente anti-social, o que os encoraja a fazer proje
110
ções e dificulta seu trabalho de reflexão sobre os próprios
problemas. A situação' pode agravar-se sensivelmente quando
esses indivíduos pertencem a minorias raciais ou étnicas
rejeitadas.
Esse tipo de decadênciacrônica é extremamente trá gico -
porque só aqueles com certo grau de diferenciação psicológica é
que são suas vítimas. As pessoas indiferen ciadas ou menos
perceptivas não reagem dessa forma nem mesmo a ambientes
rejeitadores ou destrutivos; o fenô meno do Mal e do Destrutivo
.não se apresenta para elas como problema especialmente grave; 111
seu contato com ele na juventude é por demais superficial- ESTARÁ A ANÁLISE CONDENADA
depois disso, en tram Iogo na rotina de uma vida enfadonha.
AO FRACASSO?
Aqueles que já na infância se impressionavam com o Mal é que "
caem, ao crescer, nessa armadilha fatal. Nunca abandonam sua
luta contra o Mal-mas esta não tem sentido porque não
conseguem perceber que, em última análise, o Destrutivo é um
problema interior, cuja projeção no mundo exterior só cria mais
miséria ainda e sofrimento.
116 117
uma análise didática, além de exigir que o candidato a analista Neste ponto, poder-se-ia exigir que o trabalho do analista
tenha seu trabalho supervisionado por um colega mais fosse supervisionado por um colega durante toda a sua carreira.
experiente. Em última análise, porém, o analista só depende de Mas o termo "supervisão" é infeliz. As chamadas análises de
si mesmo em seu trabalho. Só ele e seus pacientes sabem o que supervisão, parte integrante da formação do analista, estão elas
se passa em cad~ sessão. Cada :vez mais o analista vive isolado próprias cheias de elementos questionáveis. Nem mesmo o mais
numa espécIe de torre. MuItos estã~ sós mesmo quando em honesto principiante será capaz. de relatar, numa "sessão de
companhia de um paciente; as tentativas deste de atravessar a supervisão", cada palavra, gesto ou estado de espírito que teve
máscara do terapeu ao trabalhar com um dado paciente. Ele faz uma seleção - a qual
ta e atingir sua personalidade, talvez para atacá-lo, são repelidas é determinada pela impressão que deseja causar no analista que
e interpretadas como ex~ress~o .de um proble ma pessoal. O estilo o supervisiona. Além disso, este não chegará nem mesmo a
e as concepçoes teo:-Icas ~e al~ns analistas impedem que suas compreender certos sonhos cuj a mensagem se dirige não a si,
posições seJam dIscutIdas, mesmo por parte dos pacientes. Com mas ao paciente e seu terapeuta. A análise é algo tão
referência a esse aspecto, Jung sempre enfatizou com muita intensamente pessoal que ~lguém estranho, com base em sua
clareza que o processo analítico deve ser mútuo, cada parte própria equação pessoal, poderá facilmente se equivocar a
afetando a outra. Mas como seus colegas de outras escolas, o respeito do que se passa. As sugestões dos aIlalistas
analista junguiano ~ão pode ignorar o fato de ~ue a análise é .um supervisores muita~ vezes são erradas. Todos os perigos que
relacionamento assimétrico. E à medIda que o analIsta avança descrevi atrás ligam-se à terapia e podem causar danos; mas
em idade e experiência, esta se torna cada vez mais assimétrica, eles se relacionam sempre com o desenvolvimento pessoal mais
tornando-se, portanto, menor o desa fio do paciente ao processo amplo do próprio analista. Assim sendo, um aspecto
psíquico do analista. A ~isão no arquétipo - médico saudável de fundamental consiste em descobrir maneiras de ativar e
um lado e ,?ac~e?~e penetrar no analista.
enfermo de outro - torna o diálogo cada vez maIS dIfIcIl. Aquilo Já se sugeriu que os analistas deveriam submeter-se à "análise
que o paciente dá de si torna-~e o Out~o, algo que em última didática" no decorrer de sua carreira. Mas con tra essa idéia há
instância já não afeta maiS o analIsta. várias objeções. Somente numa grande cidade será possível a
Há, porém, genuínos "terapeutas feridos" entre os analistas· um analista encontrar um colega da mesma orientação com o
em alguns, o arquétipo não se cindiu. Estes, por assim di~er, estão qual não se encontre de alguma forma envolvido politicamente,
sempre sendo analisados e 'iluminados por seus pacientes. Esse seja numa organização profissional, seja no campo acadêmico.
tipo de analista reco~~ce qu~as Uma pessoa que ocupe uma posição oficial dificilmente poderá
expressar-se de modo livre e aberto com um colega em posição nado pela sombra do que de fato é. Reuniões profissionais desse
similar; demasiada rivalidade potencial impede um contato ge tipo servem apenas para a discussão das questões mais gerais
nuinamente honesto. Por outro lado, um indivíduo mais velho levantadas pelo material apresentado; .
acharia difícil realizar uma tal "análise didática" com 119
;
120
arquétipo, a destrutividade, no sentido de sombra arque típica, de
inconsciente etc., deixa de ser um problema básico do analista;
ele se afasta dela e a experimenta em projeções - desfrutando,
no geral, algo que lembra uma paz interior. O fato de que algo
não está totalmente no lugar em sua própria psique só pode ser
reconhecido por meio do estado de caos e confusão que às vezes
afeta os familiares e os amigos mais chegados de tão
"iluminado" terapeuta.
A solução para esses problemas não pode vir de den tro.
Quanto mais analisa, examina e segue os ditames do
inconsciente, mais cego o analista se torna, apenas confirmando
o quejá sabe. Seu ponto cego o impede de ver as áreas sombrias
decisivas de seu próprio ser; ou, caso as compreenda
intelectualmente, seu auto conhecimento não consegue atingir
121
suas próprias emoções.
EROS
128
blemas da humanidade. Essa inflação atinge até mesmo os
psiquiatras que não usam os métodos da psicologia profunda.
Com bastante freqüência, tenta-se reduzir os problemas
centrais da história humana às categorias da psicopatologia.
Cristo é então encarado como um maso
quista paranóico, os santos como neuróticos sexuais ... O fato de
muitas escolas analíticas não reconhecerem a diferença entre
saúde mental e individuação pode até mesmo reforçar o perigo
de uma inflação profética. O analista que conte com algumas 129
"curas" bem:"sucedidas acredita ter auxiliado as pessoas a
encontrar a salvação _ ou, pelo menos, que sabe como fazê-lo. o PSICOTERAPEUTAIMPOTENTE
Por não reco nhecer a diferença entre os conceitos de saúde
mental e individuação, ele vê-se impedido de prevenir a
contami nação psicológica interior dos dois conceitos, caindo
assim numa inflação profética.
132
desafiado por algo que resista às suas armas e técnicas
analíticas. A arte poderá inquietar, o estudo da história
133
estimular; um interesse pelas ciências naturais talvez leve às
mais angustiantes dúvidas. Mas a esperteza do analista logo EROS DE NOVO
reduz essas coisas todas ao seu esquema teó
rico. Um k.nalista conhecido meu, bastante inteligente e
j.
diferenciado, certa vez assistia a um .filme extremamente
comovente. Terminado este, em vez de se entregar à ex
periência emocional, meu colega apresentou uma longa e
engenhosa análise psicológica do filme. Não é nada raro
encontrar terapeutas que, diante de uma obra de arte capaz de
comovê-los, lançam mão de interpretações psi cológicas para
afastar a experiência da emoção. A Mona Lisa passa a ser vista
como uma "representação da anima" e a arte moderna como E assim, em busca de uma saída para o impasse, volto ao
repleta de símbolos sexuais ... relacionamento erótico com nossos semelhantes. Eró tico para
mim não significa algo especificamente sexual, mas ligado ao
amor em seu sentido mais amplo. Amigos de ambos os sexos,
cônjuges, irmãos e irmãs, filhos, parentes - qualquer um destes
poderá pôr em xeque a capacidade do analista de usar evasivas.
Nesses relacionamentos, certos conteúdos da sombra são este não está sendo hostil e que há algo de verdade no que diz.
constelados, pois essas pessoas atingem o analista por ângulos Esses pequenos conflitos são inofensivos, mas servem para
totalmente diver sos daqueles em que se colocam os pacientes. indicar o rumo que as coisas podem tomar. Talvez o analista
O.desafio, porém, só será frutífero se brotar do amor. Só então o tenha de passar por esses confrontos com os que lhe são
ana lista será vulnerável. Os colegas, à medida que também próximos - e enquanto permanecer aberto dentro da relação de
forem amigos, poderão igualmente exercer influência. Mas amor, deverá levar a sério essas reações. Isso o põe em constante
nesse caso deve haver consciência do perigo de que estes se contato com a própria sombra, o que acaba conduzindo à sombra
transformem em cúmplices na batalha contra a individuação, profissional. E tais confrontos, por certo, podem também indicar
evitando contestar o outro para não se ve rem contestados a si seus lados positivos. - Tudo isso está muito bem - mas de que
próprios e assim fornecendo armas adicionais contra o forma essa ativação e esse contato com a sombra estimulamo
desenvolvimento psicológico. proces so de individuação? Ora, criando um movimento novo
Talvez alguns exemplos possam esclarecer o que tenho em numa psique que enrijeceu, a alma se abre outra vez. Em si,
mente. A esposa de um analista queixa-se dizendo-lhe: esse aspecto não desencadeia necessariamente o processo de
"Ultimamente, você não presta a menor atenção quando eu individuação, mas pelo menos torna-o nova mente possível.
falo. Parece que você já sabe tudo de antemão. E quando vem
135
visita, você se comporta como se soubesse tudo. Não sobra nada
Não é apenas esse tipo mais ou menos inofensivo de
para eu dizer. Se começo
crítica por parte daqueles que o cercam que pode' criar novas
134 possibilidfldes de movimento na psique do analista. O aspecto
a contar uma história você termina por mim, ou então corrige o central é o envolvimento, a alegria e a tristeza, o
que eu disse. E você também vive interrompendo as mulheres". desapontamento e a surpresa que fluem entre os ,que se amam.
Não há nada de muito sério nessas acusa ções, mas elas sugerem A experiência de eros entre duas pessoas e seus efeitos
certos traços desagradáveis no marido. É claro que ele poderá se frutíferos sobre a psique não podem ser descritos por meio de
defender, negar o que a esposa disse e insistir que ela está áridos termos psicológicos, mas apenas repre
projetando coisas dela etc. Sua mulher, porém, não é sua sentados artisticamente. Quando ocorre, a experiência pode
paciente; não adian ta simplesmente devolver-lhe o que.disse. evidentemente ser colocada e apreendida em ter mos analíticos.
No final das contas, cabe-lhe encarar seu comportamento Mas, em contrapartida, esses conceitos psicológicos devem ser
constantemente revivificados com base no caráter imediato da
dominador e lamentar a dor que tem causado. Talvez isso venha
experiência de eros. E isso só surte efeito quando ocorre entre
a ser difícil e complicado, mas, ao pensar mais em si, uma
pessoas que se amam e não entre médico e paciente, analista e
pequena parte da sombra é vista de frente. Outro exemplo: certo
analisando ou mestre e discípulo.
dia, o amigo de um analista lhe diz: "Não gostei muito do modo
O psicoterapeuta se encontra de fato numa posição muito difícil
como você se comportou ontem à noite. Você se pavoneou
e mesmo o estudo dos últimos desenvolvi mentos da
demais diante da Srta. X e nem percebeu que ela não ligou a
mínima para as suas idéias de reforma da universidade. O que psicoterapia não o ajudará por completo a manter sua eficácia
profissional. Não é através da leitura de revistas especializadas
ela queria era apenas fazer charme". O analista poderá
que ele conseguirá impedir ou remediar a cisão do arquétipo.
defender-se con tra as palavras do amigo, mas no fundo sabe que
Sua eficácia depende em grande medida do desenvolvimento humanidade devem ter consciência de que a preocupação com a
de sua própria psique. Pode ser que além da amizade outros desgraça, o desajuste so
meios exis tam capazes de protegê-lo da sombra do cial, a ignorância, a doença etc. constela graves problemas
psicoterapeuta - mas ainda não os descobri. E mesmo que psicológicos nelas próprias. Nos estágios de formação dessas
existam, por certo não fazem parte do trabalho analítico. profissões fala-se muito das dificuldades criadas por "casos" e
Talvez certas formas de meditação pudessem ser úteis para tal .pacientes, mas quase nada se diz do próprio lado sombrio. Na
fim. Infelizmente, porém, mesmo quando tentam lidar com sua educação de assistentes sociais, enfer
vida interior em termos contemplativos, os analistas, em sua meiros, professores, médicos etc., deveria também ser
grande maioria, estão a tal ponto envolvidos pela sombra enfatizado que os problemas do "caso" ou do paciente
analítica que dificilmente con seguem escapar do círculo pertencem também à pessoa que os enfrenta. Como o juiz
vicioso. Talvez exista algum tipo de meditação centrada em inglês que, ao ver um condenado se dirigindo para o lugar da
Deus capaz de evitar os perigos da armadilha. Mas, em regra, o execução, pronunciou a frase imortal: "Aí estaria eu, se não
analista inteli fosse pela graça de Deus". Os que se preparam
136 137
I
I
138 139