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A maioria das profissões, de uma forma ou de outra,

prestaserviço à saúde e ao bem-estar da humanidade. Porém as


atividades do médico, do padre, do professor, do psicoterapeuta e
do,assistente social envolvem um trabalho especializado e
deliberado para ajudar os infelizes, os' doentes, aqueles que de'
algum modo se perderam. A presente obra analisa como e por
que os membros dessas ((profissões de ajuda" podem também
causar enormes danos, devido a seu próprio desejo de ajudar.

DR. AnOLF GUGGENBÜHL-CRAIG é médico e analista junguiano


radicado em Zurique. Dirigiu o Curatório do Instituto C. G. Jung e
a Sociedade Internacional de Psicologia Analítica.

o ABUSO DO··POD
NA PSIC·OTERAPI4
na medicina, serviço soei
sacerdócio e n1.agistério
PAULUS
~
Adolf Guggenbühl-Craig

ÍNDICE
7 Prefácio à edição brasileira
9 Introdução: Livrai-nos do mal?
12 Serviço social e Inquisição
27 Psicoterapeuta: charlatão e falso profeta 40 O contato
inicial entre analista e analisando 46 Relacionamento é
fantasia
55 A vida extra-analítica do analista e do paciente 59
Sexualidade e análise
66 O medo destrutivo da homossexualidade 70 O
analista e a lisonja
73 O abuso da busca de sentido
78 O médico todo-poderoso e o paciente pueril 81 O
arquétipo de "terapeuta-paciente" e o poder 84 A cisão do
arquétipo
88 O fechamento da cisão por meio do poder 94 Médico,
psicoterapeuta, assistente social e professor 99 A sombra, a
destrutividade e o mal
112 Estará a análise condenada ao fracasso? 116
Análise não adianta
122 Eros
124 Individuação
130 O psicoterapeuta impotente
134 Eros de novo
Coleção AMOR E PSIQUE Os mistérios da mulher, Esther Harding Variações sobre o tema mulher,J. Uma busca interior em psicologia e re/ígião, J. Hillman
Bonaventpre
Sonhos
O feminino O masculino Aprendendo com os sonhos, M. R. Gallbach • Breve curso sobre os sonhos,
• Aborto - perda e renovação, E. Pattis As deusas e a mulher, J. S. Bolen Curando a alma masculína, G.Jackson Hermes e seus filhos, R. L.-Pedraza R. Bosnak • O mundo secreto dos desenhos:Umaabordagem
A feminilidade consciente - entrevistas com Marion Woodman, M. No meio da vida: Uma perspectiva Junguiana, M.Stefi'l junguiana da cura pela arte, G. M. Furth Os sonhos e a cura da alma,J. A.
Woodman Os deuses e o homem, J. S. Bolen Sanford • Sonhos e ritual de cura, C. A. Meier
A jóia na ferida, R. E. Rothenberg O pai e a psique, A P. Lima Filho • Sonhos e gravidez, M. R. Gallbach
A mulher moderna em busca da alma: Guia jungulano do mundo visível e Sob a sombra de Saturno, J. Hollis Envelhecimento
do mundo invisível, J.Singer
A prostituta sagrada, N. Q. Corbett Psicologia e religião A passagem do meio, J. Hollis
A virgem grávida, M. Woodman A alma celebra: Preparação para a nova relígião, L. W.Jaffe • A so/ídão, A.Storr
Caminho para a Iniciação fl!mlnlna, S. B. Perera Destino, amor e êxtase, J. A doença que somos nós, J. P. Dourley Ajornada da alma, J. A. Sanford A velha sábia, R. Weaver
À. Sanford Deus, sonhos e revelação, M. Kelsey Despertando na meia-idade, K. A. Brehony Envelhecer, J. R. Pretat
O medo do feminino, E. Neumann Meia-idade e vida, A. Bermann
Nestajornada que chamamos vida, J. Holllis Rastreando os deuses, J. Hollis
No meio da vida, M. Stein
O velho sábio, P. Middelkoop
Contos de fadas e histórias mitológicas A ansiedade e formas de
lídarcom ela nos contos de fadas, V. Kast
• A individuação nos contos de fada, M.-L. von Franz
• A Interpretação dos contos de fada, M.-L. von Franz
A psique japonesa: grandes temas e contos de fadas japoneses, H. Kawai
A sombra e o mal nos contos de fada, M.-L. von Franz
• Mitos de criação, M.-L. von Franz
Mltologemas: encarnações do mundo invisível, J.Hollis
O Gato, M.-L. von Franz
O que conta o conto?, J. Bonaventure
O significado arquetípico de Gilgamesh, R. S. Kiuger
Opuer
• Livro do puer, J. Hillman
• Puer aeternus, M.-L. von Franz
Relacionamentos
• Amar, trair, A. Carotenuto
Eros e phatos, A. Carotenuto
o ABUSO DO
Incesto e amor humano, R. Stein
Não sou mais a mulher com quem você se casou, A.B.Filenz
No caminho para as núpcias, L. S. Leonard Os parceiros invisíveis: O
PODER NA
masculíno e o feminino, J. A. Sanford
Sombra
Mal, o lado sombrio da realldade,J. A. Sanford • Os pantanais da alma, J.
PSICOTERAPIA
Hollis •
• Psicologia profunda e nova ética, E. Neumann
Outros
Alímento e transformação, G. Jackson Ansiedade cultural, R. L.-Pedraza
A terapia do jogo de areia: Imagens que curam a alma e desenvolvem a
e na medicina, serviço social,
persona/ídade, R. Am mann
Conhecendo a si mesmo, D. Sharp
sacerdócio e magistério
Consciência solar, consciência lunar, M. Stein Dioniso no exílio: Sobre a
repressão da emoção e do corpo, R. L.-Pedraza
Meditações sobre os 22 arcanos maiores do tarô, anónimo
No espelho de Psique, E. Neumann
O abuso do poder na psicoterapia e na medicina, seNiçósocla/'sacerdócio e .... ;.
magistério, A. G.-Craig O caminho da transformação, E. Perrot O despertar
de seu filho, C. de Truchis
O projeto tden, J. Hollis
Psicoterapia, M.-L. von Franz
Psiquiatria Junguiana, H. K. Fierz
• Saudades do paraíso: Perspectivas psicológicas de um arquétipo, M.
Jacoby

ADOLF GUGGENBÜHL-CRAIG

Â'
PAULUS

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Guggenbúhl-Craig, Adolf
Fax (11) 5579-3627· Tel. (11) 5087-3700
O abuso do poder na psicoterapia: e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério I www.paulus.com.br·editorial@paulus.com.br
Adolf Guggenbúhl-Cralg; [tradução Roberto Gambini). - São Paulo: Paulus, 2004. - (Amor e ISBN 978-85-349-2226-5
psique)

Tftulo original: rylacht ais Gefahr beim Helfer


INTRODUÇÃO À COLEÇÃO
ISBN 978-85-349-2226-5
AMOR E PSIQUE
1. Jung, Carl Gustav, 1875-1961 2. Poder (Ciências sociais) 3. Psicanálise 4.
PSicoterapia 5. Saúde mental 1. Tftulo. 11. Série.

04-2524 CDD-150.1954

N a busca de sua alma e do sentido de sua vida, o homem


indices para catálogo sistemático:
1. Poder na psicoterapia: Abuso: Psicologia analftica junguiana 150.1954
descobriu novos caminhos que o levam para a sua interioridade:
o seu próprio espaço interior torna-se um lugar novo de
experiência. Os viajantes destes cami
nhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar a alma,
Coleção AMOR E PSIQUE coordenada por
Dr. Léon Bonaventure mas também o amor precisa de alma. Assim, em lugar de buscar
Ora. Maria Elei Spaeeaquerehe causas, explicações psicopatológicas às nossas feridas e aos
Título original nossos sofrimentos, precisamos, em primeiro lugar, amar a nossa
Maeht aIs Gefahr beim Helfer alma, assim como ela é. Deste modo é que poderemos reconhecer
© S. Karger AG, Basel, 1987
ISBN 3-8055-4562-2 que estas feridas e estes sofrimentos nasceram de uma falta de
Tradução
amor. Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um
Roberto Gambini centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e a
Revisão técnica realização de nossa totalidade. Assim a nossa própria vida
M. de Fátima Salomé Gambini carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa unidade
Editoração primeira.
PAULUS Finalmente, não é o espiritual que aparece primeiro, mas o
Impressão e acabamento psíquico, e depois o espiritual. É a partir do olhar do imo
PAULUS
espiritual interior que a alma toma seu sentido, o que significa
que a psicologia pode de novo estender a mão para a teologia.
2a edição, 2008 Esta perspectiva psicológica nova é fruto do esforço para
libertar a alma da dominação da psicopatologia, do espírito
analítico e do pSIcologismo, para que volte a si
© PAULUS - 2004
Rua Francisco Cruz, 229·04117-091 São
5
Paulo (Brasil)
mesma, à sua própria originalidade. Ela nasceu de refle xões
durante a prática psicoterápica, e está começando a renovar o
modelo e a finalidade da psicoterapia. É uma nova visão do
homem na sua existência cotidiana, do seu tempo e dentro de
seu contexto cultural, abrindo dimensões diferentes de nossa
existência para podermos reencontrar a nossa alnla. Ela poderá
alimentar todos aqueles que são sensíveis à necessidade de
inserir mais alma em todas as atividades humanas.
A finalidade da presente coleção é precisamente res tituir
a alma a si mesma e "ver aparecer uma geração de sacerdotes
capazes de entender novamente a linguagem da alma", como
C. G. Jung o desejava.

Léon Bonaventure

6 ,,

"
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA conclusões. Tratar, ensinar, ajudar são ações que exigem de seu
praticante um eterno voltar-se à origem do gesto. Guggenbühl
compele o sujeito ingênuo a examinar-se num espelho
implacável que desmascare persistentemente a vontade de
poder que sutilmente se disfarça de huma
nismo desinteressado, um espelho apto a delatar o lobo
escondido sob pelagem macia de cordeiro.
O Abuso do Poder na Psicoterapia estabelece a origem da
ética terapêutica, médica, pedagógica ou assistencial não em
códigos oficiais, mas no honesto reconhecimento de intenções
o Abuso do Poder na Psicoterapia é hoje um clássico da sombrias inconfessas. Simples como a luz do dia, e no entanto
moderna literaturajunguiana. Publicado pela primeira vez em tão difícil de realizar como descer um barranco numa noite
1971 na Suíça, no original alemão, logo em seguida em inglês e escura.
em 1979 em português, este livro desempenhou um papel Este livro é uma lição de análise, seus percalços e seus
inestimável na formação dos analistas contempo perigos. Fiel a seu tema, o 'autor não assume ares de quem
râneos que seguem a linha de, trabalho inaugurada por Carl tudo sabe, mas de quem choca. Detecta, delata, constrange,
Gustav Jung no início do século XX. A edição brasileira logo se envergonha, ridiculariza e por fim explica. Suas conclusões são
esgotou, mas tal era a demanda pelo texto em aulas, semi nários banhos de água fria que nos ensopam a roupa de trabalho.
e supervisões que um sem-número de cópias passou a Pela via do choque, este livro contribui para que os
circular em lugar do livro que já não se encontrava mais. Seu profissionais da ajuda se tornem mais conscientes do que de
assunto central é o mal que o analista involunta riamente pode fato fazem. Mas não caiamos mais uma vez na ilusão de
causar a seus pacientes quando se propõe a ajudá-los. Que acreditar numa resolução suficiente e aceitável dos in
ousadia! A quem ocorreu a inusitada idéia de escrever tal livro? calculáveis perigos do poder, princípio antagônico, na visão de
Adolf Guggenbühl-Craig, analista experiente e di ferenciado, Jung, ao de Eros. A negatividade que emana do poder exercido
sempre pautou sua vida, sua reflexão e sua prática pela sem a contrapartida de Eros e da autoconsciência só pode ser
tentativa incessante e sistemática de detectar as mil formas sob percebida pela remoção constante e contínua
as quais se oculta a sombra do analista, do médico, do das camadas que dissimulam. E isso a consciência só é capaz
a
assistente social e do professor; Sombra, comojá havia dito
de perceber se adotar Eros como contraponto. Eros é a única
Jung, esse avesso das boas intenções, essa outra face do
cura para a patologia do poder. É sua medida, seu norte e seu
discurso edificante e da ação filantró;. pica. SU,a análise é
limite. Eros é a nudez do poder e sua possível evolução.
cirúrgica: arde, quando passo a passo o autor remove a pele e
Roberto Gambini
expõe o nervo de uma relação - especialmente aquela entre São Paulo, 2004
analista e analisando - fa
8
7 INTRODUÇÃO
dada ao progressivo desnudamento e nunca a sossegadas
do poder e seu exercício é semelhante em todas as profissões
LIVRAI-NOS DO MAL? de ajuda, ainda que cada uma possua características
específicas. Este pequeno livro dii:-ige-se assim não apenas a
médicos e psicoterapeutas, mas também a assistentes sociais,
professores e ao clero. Por essa razão, procurei utilizar o
menor número possível de termos psicológicos especializados.
Nos casos em que isso não foi possível, acrescentei uma
pequena explicação do termo em questão.
Espero que alguém ligado a uma profissão de ajuda
A maioria das profissões, de uma forma ou outra , presta distinta da medicina procure a seu modo lidar em maior
um serviço à saúde e ao bem-estar da humanidade. Porém as profundidade com os problemas básicos e pessoais de seu
atividades do médico, do padre, do professor, do próprio campo, indicando as soluções que lhe parecerem
psicoterapeuta e do assistente social envolvem um trabalho possíveis.
especializado e deliberado para ajudar os infelizes, os doentes, As referências bibliográficas estão praticamente
aqueles que de algum modo se perderam.'Nos capítulos que ausentes neste livro. Meu objetivo central não é estimular o
seguem, gostaria de exa leitor a ler ainda mais, mas antes fazer com que se volte para
minar como e por que os membros dessas "profissões de ajuda" dentro e examine a si próprio. Evitei igualmente tentar provar
podem também causar enormes danos, devido a seu próprio minhas asserções citando experimentos, estatísticas e trechos
desejo de ajudar. de outros autores. Espero que a apresentação de minhas
Sou médico psicoterapeuta. Ao preparar relatórios próprias experiências e das que tive com meus colegas e
psiquiátricos, entro em contato regular com assisten tes sociais colaboradores seja estimulante para o leitor. Não estou
e freqüentemente me sinto um deles. Vários pacientes meus necessariamente interessado em provar que tenho razão.
são professores e clérigos. Ao escrever este livro, procurei Nas páginas que seguem, é freqüente o uso das palavras
encarar os problemas existentes também em mim e não análise, psicoterapia, analista e psicotera peuta. Para evitar
apenas nos outros. É por essa razão que me concentrei equívocos: psicoterapia para mim quer dizer, em termos
especialmente nos problemas de poder do médico e do
bastante amplos, um tratamento que lida com a psique, desde
psicoterapeuta. Entretanto, para introduzir a questão da
a orientação psicológica de apenas poucas horas até uma
destrutividade nas profissões de ajuda, explorei um pouco os
análise prolongada de algumas centenas de horas, na qual são
antecedentes psicológicos do serviço social e abordei as
exploradas as profundezas do inconsciente e discutid'os em
atividades dos religiosos e professores.
Contudo, ao referir-me aos médicos e psicoterapeutas é
detalhe
que tento explorar em detalhe a possibilidade de superar 10
9 i,' fenômenos como transferência, contra transferência e
os problemas fundamentais dessas profissões. Q que eu queria relacionamento entre analista e analisando. O analis ta,
mesmo era arrumar minha própria casa, deixan do que meus portanto, trabalha com uma forma especializada de
vizinhos cuidassem das suas. Ocorre, porém, que o problema psicoterapia. Os problemas de poder com que se defron tam
este e o psicoterapeuta em geral são basicamente os mesmos.
Para o leitor, portanto, não deve fazer muita diferença se
numa passagem em particular nos referimos a psicoterapia ou
análise.
Para concluir este prefácio: nós, das profissões de ajuda,
não ficaremos nunca livres do mal. Mas podemos aprender a
lidar com ele.

No trabalho social muitas vezes é necessário agir contra a


vontade do cliente, visto que com bastante fre qüência este não é
capaz de reconhecer o que é bom para si. Em certas circunstâncias, o
assistente social dispõe de meio!:> legais para executar medidas
desse tipo com base em seu próprio julgamento - e eles sempre
reclamam quando tais meios não podem ser utilizados. Por exemplo,

11
SERVIÇO SOCIAL E INQUISIÇÃO
','

as crianças maltratadas ou abandonadas pelos pais podem ser


removidas de casa. Freqüentemente, porém, apesar de estar
perfeitamente claro para as autoridades que uma criança sofre
os efeitos de condições desfavoráveis, não há uma base legal
, empregos sem importância e por fim parou de trabalhar. Apesar
de lamentar o comportamento da filha, a mãe pare cia apoiar
para se interferir no caso. Só mais tarde quando o então
sua inatividade, sem dúvida por não querer que ela crescesse e
adolescente talvez entre em conflito com a lei na qualidade de se tornasse independente. O assistente social que
delinqüente, é que surge a oportu meticulosamente estudou o caso chegou à conclusão,
nidade de pôr em prática as devidas medidas contra a vontade, juntamente com um psiquiatra, de que mãe e filha deveriam ser
seja do jovem, seja de seus pais. Várias pessoas que trabalham separadas. A saúde mental da garota estava em risco. E o fato
com serviço social lamentam o fato de que muitas vezes só se de que ambas resistissem à idéia de separação não deveria
pode agir quandojá é tarde demais, ao lado da extrema
dificuldade de afastar os filhos dos pais em seu próprio
benefício.
Adotar medidas coercivas contra adultos é ainda mais absolutamente ser levado em conta~
difícil. Na Suíça? porém, uma pessoa que tenha colocado a si Mesmo após a separação, foi impossível aumentar o
ou a sua família em situação de perigo, desgraça ou penúria interesse de Ana pelo trabalho. Tudo parecia indicar que ela
devido a esbanjamento, alcoolismo, depravação preferia deixar que os homens cuidassem de seu sustento.
12 Para evitar o recurso à prostituição, sua tutela foi prolongada
até que completasse 20 anos.
ou dissipação do patrimônio familiar pode ser colocada sob
tutela. 13
Segundo as leis da Suíça e de muitos outros países, não é Os profissionais envolvidos concordavam todos que o
sempre que o assistente social pode interferir onde e quando caso tinha sido tratado corretam ente sob todos os pontos de
julgar necessário; há, porém, várias situações em que certas vista. Em que se baseava essa certeza? Não devemos esquecer
medidas podem ser tomadas contra os pais em benefício dos que certas medidas foram tomadas contra a vontade declarada
filhos. Um adulto colocado sob tutela, por exemplo, não pode das pessoas interessadas.
agir contrariamente ao que for estabelecido pelo assistente Aatividade do assistente social se baseia numa filoso fia
social responsável. E jovens menores de ·18 anos .que tenham oriunda do Iluminismo, a qual sustenta que as pessoas podem e
cometido até mesmo uma leve infração podem ser forçados a devem ser racionais e socialmente adaptadas e que o objetivo
submeter-se à orientação das autoridades competentes. da vida consiste num desenvolvimento até c~rto ponto "normal" e
É preciso ter muita convicção para agir contra a von tade
feliz dentro dos limites do poten cIal da pessoa. Um bebê
de um cliente. Deve-se estar seguro de que as próprias idéias tratado por uma mãe carinhosa deveria assim tornar-se uma
estão corretas. O seguinte caso pode ilustrar esse ponto: uma
criança satisfeita, cabendo ao pai responsável assegurar-lhe
garota de 17 anos, que chamaremos deAna, vivia com a mãe
uma juventude alegre e sau~ável. Depois de um período feliz na
duas vezes divorciada. Após o segundo divórcio, ela foi
escola, o jovem devepa gradualmente desligar-se dos pais,
colocada sob tutela (em decorrência de reclamações
apresentadas por pessoas ligadas à família). Parecia existir uma abraçar uma profissão e, na qualidade de indivíduo
não-neurótico equilibrado e socialmente ajustado, escolher
dependência pouco sadia entre mãe e filha, sendo esta
completamente mimada. Ao sair da escola, Ana teve vários uma mu~ lher com quem por sua vez terá filhos, os quais como
pai satisfeito, conduzirá à maturidade. Quando o~ filhos próprio caminho. Havia, por exemplo, os assim chamados
estiverem crescidos e começarem a formar suas próprias estilitas ou santos do pilar, piedosos cristãos do Oriente Médio
famílÜ;l.S, ele sentirá a alegria de ser avô. que procuravam servir a Deus passando a maior parte da vida
O objetivo de todos os nossos esforços, segundo essa no topo de uma montanha. Estes, assim como certos homens
filosofia básica, é criar pessoas saudáveis, socialmente de Deus que viviam como eremitas no deserto, não eram por
ajustadas e felizes em seus relacionamentos pessoais. O certo muito bem ajustados ou socialmente integrados. Os
desenvolvimento neurótico, o desajuste social, a excen santos que distribuíam todos os seus bens materiais aos pobres
tricidade e o relacionamento familiar atípico devem ser e viviam como mendi gos seriam, de .acordo com o artigo 370
evitados e combatidos. Se a pessoa não se torna feliz e normal do Código Civil Suíço, postos sob tutela por se colocarem em
ter ocorrido condições de infortúnio e destituição. Segundo nossa filosofia
nesses termos, presume-se que algo de errado deve de normalidade e ajustamento, os ascetas que jejuavam e se
na infância. Se educadas "adequadamente" as mortificavam seriam quando muito vistos como excêntri cos
. , crIanças
infelizes, ou então como doentes mentais necessitando de
tornam-me adultos equilibrados e felizes. Deve se estar atento tratamento.
para que o desenvolvimento transcorra de acordo com esses Quando o Cristianismo assumiu sua forma medieval, muitos
conceitos amplamente aceitos, com ou sem o assentimento do não puderam esposar seus princípios predominan tes. Para
indivíduo. estes, havia outros valores importantes além da salvação da
À primeira vista, parece inquestionável que tal filo sofia, alma no sentido cristão - atitude esta que
aqui apresentada de forma um tanto simplificada,
15
14 em muitos casos se tornou fatal. Em certos momentos e sob
devesse ser a pedra fundamental de nossas ações. Mas a certas circunstâncias, aqueles que assim recusavam os padrões
filosofia de "normalidade e ajuste social" nem sempredes frutou coletivos ou advogavam uma diferente hierar quia de valores
sua atual predominância. Os cristãos primitivos e medievais, eram perseguidos, martirizados e mortos pela Igreja oficial.
por exemplo, tinham um ponto de vista bastan te diverso. Seu Hoje a palavra "inquisição" tem uma conotação sinistra. Mas
alvo primordial não era produzir pessoas saudáveis, os inquisidores cristãos podiam justificar seus feitos com
não-neuróticas e socialmente ajustadas, mas salvar suas almas absoluta convicção e eram tidos como bem-intencionados tanto
a seus próprios olhos como pela sociedade. Certos cristãos
e ajudar os outros a alcançar ° Reino dos Céus. Conceitos
proeminentes tinham absoluta certeza de que seu
como emocionalmente sadio ou não, socialmente ajustado ou
entendimento sobre a salva ção da alma era o único correto.
desajustado, relações interpes soais, independência em relação
Nesse sentido, os inquisi dores tinham uma dupla missão: por
aos pais etc. ou tinham um papel muito secundário ou não
um lado, proteger a sociedade como um todo de perigosas
tinham mesmo papel algum. O modo pelo qual um cristão, até
heresias tidas como o mais grave perigo para a alma, e por
a Idade Média, procurava a salvação de sua alma hoje seria
outro proteger os hereges de sua própria e iminente danação.
considerado como parcialmente neurótico e socialmente
Mediante o choque da prisão e da tortura, estes eram forçados
desajustado. Os modelos prevalecentes eram os santos, pessoas
a per ceber que suas almas precisavam de salvação. O perigo
que nada temiam em sua tentativa de chegar a Deus por seu
para a ~ociedade era eliminado queimando-se a pessoa em dental que desprezam e combatem os valores de normali dade e
questão. Mesmo se admitisse diante das chamas o erro de seu ajustamento social. Os hippies, com todas as suas variações e
modo de agir, o relapso herege seria da mesma forma subgrupos, são um bom exemplo. Os andarilhos cabeludos que
queimado para salvar-se de eventuais recaídas - receben do, partem em peregrinação até a Índia, man tendo-se à base de
porém, em tempo a mercê do estrangulamento. Assim a tarefa trabalho ocasional ou mendicância e encontrando a felicidade
básica da Inquisição não era nem perseguir, nem torturar, nem no haxixe, por certo não encaram
matar; seu sublime objetivo consistia em proteger e ajudar a a normalidade social como alvo de sua vida. A consciência do
humanidade em geral e o indivíduo em particular. E os caráter questionável de nosso siste ma de valores deveria nos
inquisidores acreditavam que todos os meios possíveis se tornar mais cautelosos quando tentamos impingi-lo aos outros.
justificavam para promulgar a doutrina oficial, a única correta. A esse respeito, os inqui sidores eram bem pouco escrupulosos.
Não se pode evidentemente afirmar que o serviço social de Em retrospecto, achamos que teria sido melhor se eles
hoje descende da Inquisição medieval; a fogueira e a tortura já tivessem se apro fundado um pouco mais nas motivações que
não são mais usadas. Procura-se comba ter situações orientavam suas ações. Ao estudar a Inquisição hoje,
familiares não ~audáveis, corrigir estru turas sociais dificilmente se pode deixar de suspeitar que os impulsos
insatisfatórias, ajustar os desajustados - em suma, psicológicos que motivavam eSses santos cruzados não eram
procuramos impor aquilo que consideramos "correto" para os tão puros quanto pretendiam e declaravam; parece-me claro
outros. E freqüentemente tentamos que

16 17
fazê-lo até mesmo quando nossa ajuda é rejeitada pe los por trás havia muita crueldade inconsciente e um enorme
interessados. Em geral, impingimos certa concepção de vida, desejo de poder. .
quer os outros concordem ou não. Preferimos não reconhecer Para muitos de nós, a Inquisição medieval representa o
o direito à doença, à neurose, a relações familiares não epítome de uma ânsia· de poder sádica e oficialmente
saudáveis, à degeneração social e à excen tricidade. sancionada. No serviço social moderno, nossos motivos por
Os paralelismos entre a Inquisição e o serviço social não certo são melhores quando às vezes impomos a um indivíduo
devem ser tomados de modo excessivamente literal. O que algo que ele próprio rejeita. Ou será que não? Durante vários
quero dizer é que manipular nossos semelhantes contra sua anos de trabalho analítico com assistentes sociais notei
repetidas vezes que, quando algo deve ser imposto pelaforça, a
vontade, mesmo quando isso nos parece a única via adequada,
motivação consciente e inconsciente das pessoas envolvidas é
pode ser altamente problemático. Nunca se pode saber ao certo
multifacetada. Um sinistro desejo de poder furtivarpente
qual o sentido real de uma vida huma
espreita por trás das aparências; sonhos e fantasias revelam
na individual. O objetivo da individuação e dos esforços
motivos que a consciência pre fere ignorar. Determinado
coletivos aparece sob um ângulo distinto para diferentes
assistente social, por exemplo, sonhou que passava com seu
pessoas em diferentes épocas. Nossos valores atuais não são
carro por cima de uma pessoa, a qui:lm, na verdade, havia
únicos nem definitivos. Talvez daqui a duzentos anos eles
imposto certas coisas. No sonho ele temia que descobrissem a
sejam vistos como primitivos e ridículos. Atualmente, existem
intencionalidade de sua ação. E nem mesmo as emoções
certos movimentos no interior da sociedade oci
abertamente expressas durante a psicoterapia indicavam um
puro desejo de ·ajudar. 18
tivações obscuras, mais o profissional parece apegar-se a uma
suposta "objetividade". Nesse caso, a discussão sobre que
atitudes tomar torna-se deslavadamente dog mática, como se só
pudesse haver uma solução correta para o problema. Um
assistente social muito inteligente que fazia análise comigo
certa vez declarou: "Sempre que consigo provar a meus colegas
que determinada medida impositiva é tão absolutamente certa
como dois e dois são quatro, tenho sonhos desagradáveis à
noite e as opiniões
divergentes se transformam em ataques pessoais". Todos os
que atuam nas profissões sociais, trabalhan do para "ajudar a
humanidade", apresentam motivações psicológicas
extremamente ambíguas para as suas ações; Em sua própria
consciência e diante do mundo, o assisten te social vê-se forçado
a encarar o desejo de ajudar como sendo sua motivação
primordial. Mas nas profundezas de sua alma o oposto
. i~
.<.,

simultaneamente se constela _. não o despotencializar o


"Estávamos sentados frente a frente e ela insistia em me
contradizer. Tive vontade de lhe mostrar no fim das contas
quem é que mandava. Ela não percebia que não podia fazer
nada contra a minha vontade." Declara
ções desse tipo, por parte de assistentes sociais, descrevem com
bastante precisão a situação emocional subjacente.
Freqüentemente, o problema em questão parece ser não o
bem-estar do protegido, mas o poder do protetor. A im
posição de uma medida criteriosamente justificada contra a
vontade do interessado costuma produzir profunda satisfação
no profissional que trata do caso - a mesma que sente um
menino de escola que consegue bater em outro e provar sua
força, pensando: "Agora ele aprendeu que é melhor não se
meter comigo".
Outro fenômeno psicológico muito interessante me
impressionou. Quanto maior sua contaminação por mo
de poder se tornará influente, acabando por traí-lo E( levando-o
....
"cliente". . a tomar decisões altamente ques tionáveis.
desejo de ajudar, mas o de ter poder e sentir alegria em N a Suíça, há quem advogue a extensão do Código Pe nal do
Menor para além dos 20 anos. Pode-se questionar se esse ponto
Especialmente nos casos em que o assistente social é de vista, como outros similares, não seria uma expressão da
forçado a operar contra a vontade do interessado, a análise sombra de poder do assistente social (que naturalmente
cuidadosa das profundezas do inconsciente revela que o desejo também se encontra em profissões afins, como o promotor
de poder é um fator extremamente importante. De modo geral, público, o juiz de menores delinqüentes etc.). O Código Penal
este pode agir livremente quando acobertado pela fachada de do Menor impede a aplicação de uma penalidade formal sobre o
retidão moral e objetividade. A crueldade chega ao extremo jovem contraventor, enfatizan do a necessidade de re'educação
quando as pessoas fàzem dela um ins·- ou reabilitação. Mas ao mesmo tempo - e isso é
trumento para assegurar o "bem" . Na vida cotidiana, a inevitável-submete-o à vontade mais ou menos arbitrária das
consciência nos incomoda quando nos entregamos além da autoridades competentes. Se esse Código passasse a abranger
conta ao desejo de poder. Mas o sentimento de culpa pessoas até a idade de 25 anos, por exemplo, um jovem de 22
desaparece por completo da consciência quando nossas ações, que cometesse até mesmo uma leve infração não poderia
ainda que inconscientemente motivadas pelo de meramente pagar por seu crime, mas seria forçado a aceitar um
sejo de poder, são conscientemente justificadas por algo programa de reabilitação mais longo e duro que a punição
supostamente correto e bom.
corres pondente para adultos estabelecida pelo Código Penal ,
O problema da "sombra do poder" é, portanto, de
suprema importância para o assistente social, o qual por 20
normal. Em lugar de sujeitar-se à penalidade estipulada por lei,
19 o jovem estaria pedagogicamente à mercê das autoridades, que
vezes se vê obrigado a tomar decisões fundamentais con tra a presumivelmente procurariam forçá-lo a mudar por meio da
vontade dos indivíduos diretamente interessados. Mas neste reeducação.
ponto seria bom evitar equívocos, pois ninguém age por motivos Aqui se podem dar asas à imaginação. Numerosos
completamente puros. Mesmo os feitos mais nobres se baseiam assistentes sociais e alguns juristas interessados vêm pro pondo
em motivações ao mesmo tempo puras e impuras', luminosas e que o Código Penal como um todo seja reformulado,
sombrias. Por causa disso, muitas pessoas e suas ações são eliminando-se por completo as penalidades específicas e
injustamente ridicula rizad,as ou mal entendidas. O filantropo mantendo-se unicamente as medidas educativas. Em vez de
generoso quase sempre é motivado, dentre outras coisas, pelo punido, o infrator seria reeducado para tornar-se socialmente
desejo de ser respeitado e honrado pela generosidade que ajustado. Isso significa que qualquer cidadão que violasse a lei
ostenta. N em por isso sua filantropia tem menos valor. Analoga poderia ser examinado no que concerne a seu caráter e suas
mente, um assistente social movido pelo desejo de poder pode atitudes sociais; caso fosse apurado que seu caráter não
ainda assim tomar decisões úteis para um cliente. Mas existe corresponde aos padrões e valores de seus examinadores, ele
um grande perigo: quanto mais este se iludir que opera poderia ser forçado a receber uma educação que o
exclusivamente a partir de razões altruístas, mais sua sombra transformasse interiormente. Formulando mais precisamente a
questão: sob certas circunstâncias, a violação de uma norma de zesse mais mal do que bem. Como já
interferência forçada fi
estacionamento público poderia levar a vários anos de
reabilitação! O assistente social encarregado de encaminhar ou tentei indicar, nossas . idéias de saúde e normalidade podem
executar tais medidas es
taria de posse de inigualável poder. Por essa razão é que sugeri não representar a sabedoria absoluta. Não poderia a filha viver
acima que essas propostas de reforma poderiam em parte uma vida significativa mesmo ligada à mãe? Seríamos nós mais
expressar a existência de uma sombra de poder generalizada. capazes do que elas de vislumbrar o que viria a ser uma vida
Volta e meia me impressiono com a dificuldade que "significativa"? Queríamos realmente ajudá-las? Ou nos
assistentes sociais dedicados têm em aceitar a forte pro teção havíamos tornado vítimas de nossos próprios impul sos
que cerca o direito dos pais. Na Suíça, mesmo que as inconscientes de poder? Eu até iria mais longe: por que
autoridades acreditem como algo evidente que certas crianças estávamos tão certos de que seria absolutamente correto
estão sendo mal-educadas por seus pais e que com toda a prolongar a tutela dajovem para além dos 20 anos para salvá-la
probabilidade terão sérias dificuldades no futuro, só se pode da prostituição? Poderíamos de fato saber se colocá-la em tal
intervir quando se trata de um caso de patente negligência ou posição não acabaria lhe causando um grande mal? Na
maus-tratos. "Mas isso não faz o menor sentido", sustentam verdade, nem a tutela prolongada nem um ano num
inúmeros assistentes sociais. "Deveria ser possível brecar os reformatório. mudaram seu comportamento. Os assistentes
pais antes que arruínem os filhos!" sociais costumam lamentar que as pessoas só procuram as
autoridades competentes quando já estão
21
Novamente surge a questão de saber se por trás 22
dessa'eloqüente reivindicação de uma chance de intervir não se com a corda no pescoço. E então, ao receber orientação,
esconde a sombra de poder do assistente social. Uma escutam atentamente e depois fazem tudo ao contrário, só
profissional se empenhou bastante em afastar uma criança de voltando. quando suas ações acabam criando uma situação
seus pais, por ela considerados completamente inadequados, calamitosa. Ficam então furiosos com esse comportamento,
fracassando por falta: de base legal. Ao me relatar tal fato, ela deplorando a inexistência de meios que garantam a obediência
disse com admirável ingenuidade: "A coisa mais forte que sinto a seus conselhos. Mas serão essa raiva e essa queixa realmente
agora é fúria e ódio desses pais. Gostaria realmente de lhes uma expressão de eros social, ou apenas uma pretensão
dizer umas boas!" Sua frustração por não ter podido frustrada de poder? O verdadeiro eros não tem nada a ver com
mostrar-se mais forte que os pais 'era muito maior que sua a vontade de impor nosso próprio plano e nossas próprias
pena por não ter podido ajudar a criança. idéias sobre os outros.
Para ilustrar esse ponto de modo ainda mais claro, gostaria de A presença de um problema de poder no campo dó
voltar ao caso de Ana. Naquela ocasião, fa zia-se necessário um serviço social é também confirmada pelo seguinte: a estrutura
exame completo de nossas próprias motivações. Talvez não se básica da maioria das profissões é refleti da pela opinião
tivesse tanta certeza assim de que algo benéfico resultaria da pública. Existem pontos de vista coletivos bastante definidos
separação. Reconhe cidamente, ela e a mãe tinham um sobre o caráter profissional de assis
relacionamento pouco sadio. Mas podia ser que nossa tentes sociais, médicos, padres, advogados, políticos etc. A
imagem coletiva é usualmente dúplice, com um lado sombrio e se aplica quando muito ao profissional antiquado e tradicional,
outro luminoso. Em geral, a imagem coletiva negativa de uma que de fato pode ter tido grande sombra de poder, mas que o
profissão particular é mais unitária e padronizada que. sua problema é muito menos agudo no serviço social moderno. O
contrapartida positiva. Os padres são vistos como hipócritas, os profissional de hoje, esclarecido e psi
professores como infantis e fora do mundo, os médicos como cologicamente treinado, procura compreender e ajudar os
charlatães e assim por diante. Naturalmente, essas imagens outros com base em seu conhecimento psicológico - tanto que
positivas e negativas devem ao menos em parte ser encaradas suas atitudes básicas e as do psicoterapeuta já nem diferem
como preconceitos. Mas, se examinadas com cuidado, muitas tanto. Segundo minha experiência, entretanto, conhecer um
vezes essas idéias coletivas revelam reflexões válidas, ainda pouco de psicologia pode refinar o problema de poder, mas de
que distorcidas, das profissões em causa. modo algum eliminá-lo. Com efe'ito, tal conhecimento pode
O problema da sombra de poder, desempenha um papel em larga medida ser colocado a ser
proeminente na imagem coletiva negativa do assis tente social. viço da sombra de poder, criando uma situação na qual o
Nela este aparece como alguém que interfere sempre que cliente é destituído do controle de sua própria alma. Não
possível, forçando sua vontade sobre os outros sem de fato apenas a situação social 'e financeira do cliente mas sua própria
entender o que se passa, procurando pôr tudo nos eixos psicologia tornam-se transparentes e manipuláveis pelo
segundo padrões estreitos, moralistas e burgue ses, alguém assistente social. E quando os testes psicológicos são
movido por um desmedido gosto pelo poder, adicionados à sua bateria de instrumentos, o infeliz cliente

23 24
" que se sente insultado e pode se tornar malévolo se este não se vê totalmente impotente. Apenas muito vagamente pode ele
for reconhecido. então perceber que sua alma foi radiografada e que,
Concretizada numa situação, essa "mitologia ne gativa" indiretamente, o mais íntimo de seu ser foi revelado àqueles
do assistente social seria algo mais ou menos assim: às dez da que supostamente irão ajudá-lo. O assistente social torna-se
manhã ela (ou ele) bate à porta de um apartamento; entra, assim capaz de dizer a uma mulher que diz amar seu filho que
bisbilhotei a um pouco e observa se as camas estão feitas e a na verdade ela nem se liga a ele. Como poderá dizer a
louça da noite anterior lavada. A dona da casa ainda não está urnjovem que desesperadamente vem resistindo a vários anos
arrumada; de penhoar, ela apenas inicia sua faxina diária. Com de reabilitação que na verdade ele gosta de ter certas
base nessa visita, a assistente social conclui que a família em limitações. O indivíduo em questão já não tem mais nada a
questão não está suficientemente ajustada para manter o filho dizer, pois o raio X do assistente social enxergou através dele. .
adoti voo Este, amado com paixão pelos pais adotivos, é levado Este ponto já toca nos problemas de sombra de outra
embora para ser colocado numa casa burguesa adequada. A profissão, a do psicoterapeuta, na verdade o foco deste livro.
opinião da assistente social é negativa devido não só à Voltaremos ao assunto no próximo capítulo. Antes disso,
desordem que viu, mas também porque a dona da casa rejeitou porém, gostaria de acrescentar algumas reflexões num tom
sua interferência e de início até se inclinava a não deixá-la menos negativo.
entrar. As pessoas escolhem a difícil e responsável profissão de
Neste ponto, talvez se objete que o que foi dito até aqui
assistente social por várias razões psicológicas que diferem de
racionalização do lado sombrio da profissão ou seia do , ' ,
um indivíduo para outro. Apesar do acaso também ter um ~

papel, há certas motivações comuns que levam a essa escolha.


desejo de poder. E sem dúvida muito tentador reduzir algo
Não me refiro aqui aos que exercem essa profissão admirável a algo nem tanto. Vários estudos psicológicos
cinicamente, apenas como um meio de ga têm procurado demonstrar que uma expressão de eros,
nhar a vida. Para estes, de qualquer forma, o problema da por exemplo, não passa de sublimação de algum instinto
sombra de poder não é especialmente agudo. Os assis tentes menos elevado. Dessa perspectiva, :0 pintor não passa de
sociais assíduos, entusiásticos e verdadeiramente devotados é um rabiscador infantil, o professor de um sedutor de crian
que costumam tornar-se vítimas da sombra de poder. O ças reprimido, o psicoterapeuta de ·um voyeur etc.
indivíduo cínico e indiferente simplesmente desempenha suas A pessoa que escolhe como trabalho de uma vida o
tarefas de modo formal e correto, não se sentindo atingido confronto diário com algumas das polaridades fundamen
pelos aspectos positivos ou negativos de seu trabalho. tais da humanidade - ajustamento/desqjustamento,
O que leva uma pessoa a se in~eressar pelo lado escuro da vida sucesso social/fracasso social, saúde mental/doença men
social? O que é que lhe torna possível li dar dia após dia com
pessoas infelizes, desafortunadas e desajustadas? O que tanto tal- deve ser um tipo muito especial. Os que atuam nas
lhe fascina nesse lado depri mente da vida? Em última análise, profissões de ajuda certamente se sentem mais fascinaçlos
essa pessoa deve ser por essas polaridades que todos os demais.
25
r
~
,
de um tipo espeçial. O indivíduo medianamente "sadio"
prefere ignorar e esquecer os infortúnios e sofrimentos de
seus semelhantes quando não se encontra diretamente 26
envolvido, ou talvez olhar para eles esporadicamente, de uma
boa distância, por meio do jornal e da televisão. Somente uns
poucos procuram expor-se diariamente aos problemas PSICOTERAPEUTA:
alheios; a maioria das pessoas se limita a seus próprios. Dizer
CHARLATÃO E FALSO PROFETA
que os assistentes sociais são pessoas abençoadas com um
amor pelos semelhantes maior que o ; L
normal não nos leva a parte alguma, pois não é verdade.
Tampouco são eles cristãos fervorosos para quem o amor
ao próximo, expresso no ato de ajudar os desafortunados, é
o mandamento supremo de Deus. Ao mesmo tempo, não
devemos encarar o desejo de ajudar como apenas uma
sofrem. O juramento de Hipócrates diz: "O regime que
adoto será para o bem de meu paciente segundo minha
habilidade e julgamento e nunca para lhe causar
sofrimento ou dor ... Aonde quer que eu vá, irei para o
bem do enfermo, afastando-me da corrupção e do mal. ..
minha vida e minha arte serão sagradas para mim". Em
suas linhas gerais, essa edificante concepção do médico é
A psicoterapia, na sua forma atual, é relativamente bastante difundida no Ocidente.
jovem. Os modelos em que se baseiam as atividades do O lado sombrio da atividade do médico não consta desse
terapeuta derivam de várias outras profissões e só podem juramento. Esse aspecto foi habilmente caricatu rado por
ser compreendidos em relação a artes mais antigas. Quer Jules Romain em sua peça· O Dr. Knock. Esse personagem
se queira ou não, a psicoterapia de fato se liga à medicina. não tem o menor desejo de curar os demais de modo
Os modelos profissionais e éticos que guiam o médico são desinteressado; usa seus conhecimentos médicos em
em parte os mesmos do psicoterapeuta, assim como o lado proveito próprio, não hesitando em provocar doenças
sombrio do analista até certo ponto tem a ver com o 27
caráter médico de seu trabalho.
. O médico tem por objetivo ajudar os doentes e os que
r I;

em pessoas até então sadias. Segundo sua filosofia "não há pessoas sadias, mas apenas doentes que ignora~ seu m~l". ~ Dr. ~ock é um
charlatão. Esse termo, para mIm, nao desIgna alguém que use métodos não-ortodoxos ou extra-oficiais para ajudar os necessitados,
mas sim um t~po de médico que na melhor das hipóteses engana tanto a SI como a seus pacientes, ou, na pior, apenas a seus pacien
tes. Trata-se de um indivíduo que ajuda mais a si mesmo pelo dinheiro e prestígio que recebe, do que aos doentes qu~ procuram seus
préstimos. Compreendidas nesse sentido as atividades de um charlatão podem, conforme o caso:
O charlatanismo é um tipo de ~sombra que acompa
ser benéficas, maléficas ou inteiramente neutras. nha permanentemente o médico.
E um de seus irmãos sombrios e como tal pode viver dentro ou fora dele. Al guns médicos vêem essa sombra apenas na pessoa de
um obscuro curandeiro, mas o fato é que, em sua maioria, acabam eles mesmos se tornando vítimas da sombra de charlatão 1;10
decorrer de suas atividades profissionais. Os próprios pacientes exercem considerável pressão para que o médico traia o modelo
hipocrático e passe a agir como um Dr. Knock. Em geral, as infindáveis queixas de caráter indeterminado que o clínico geral ouve a
cada dia, para as quais ainda não foi descoberta uma terapia genuína - fadiga crônica, certas dores nas costas e nas juntas, vagas
perturbações cardíacas e estomacais, dor de cabeça permanente etc. -, costumam ser tratadas por
meios não-científicos. À medida que deixa de esclarecer aos pacientes os componentes emocionais de males em grande parte
psíquicos na origem, o médico comum acaba po:- ~stimulá-Ios a enfatizar ainda mais os aspectos so
matIcos de seus problemas emocionais. Caso os sintomas aumentem, ele será visto como um grande médico; caso regridam, é
óbvio que o paciente não soube observar suas instruções.
28
."
I
As ponderadas recomendações de Arquimateu de Salerno, médico do século XI, nos fornecem um bom exem pIo histórico do
modo como funciona essa sombra charlatã: "Ao paciente, promete a cura; aos membros de sua família, anuncia uma grave
enfermidade. Se o paciente não se recuperar, dirão que previste sua morte; se alcançar a cura, teu renome crescerá".
Apenas em parte, porém, busca o psicoterapeuta seu modelo no campo da medicina. Outra vocação, a do sacerdote, também
influencia seus ideais.
A imagem do homem de Deus sofreu várias mudanças no decorrer da história e não é sempre a mesma nas diver sas religiões. A
mais importante para nossos propósitos é a do líder religioso na tradição judaico-cristã. Acredita se que este, pelo menos às vezes,
entra em contato com Deus. Não se espera, é claro, que todos os clérigos, como os profetas do Velho Testamento, recebam sua
vocação dire tamente da Divindade, mas que procurem honestamente agir em nome de Deus e conforme sua vontade.
O lado sombrio dessa nobre imagem do homem de Deus é o hipócrita, aquele que prega não porque acredita, mas para ter
influência e poder. Assim como no caso do médico e seus pacientes, com o clérigo também ocorre serem os membros de sua
congregação os responsáveis in
voluntários pela ativação do irmão obscuro, pois exercem considerável pressão para que ele desempenhe o papel de hipócrita. A
dúvida é companheira da fé. Mas ninguém quer ouvi-la da boca de um sacerdote - as nossas já bas
tam. Assim, este acaba não tendo outra alternativa a não ser tornar-se hipócrita de quando em vez, escondendo suas próprias
dúvidas e mascarando um momentâneo vazio interior com palavras eloqüentes. Se seu caráter for fraco, este poderá tornar-se um
traço habitual.
Em termos ideais, o homem de Deus deve testemu nhar sua fé com seus próprios atos. O que ele prega não

29
pode ser provado. É por meio de seu próprio comporta mento contato com o inconsciente? Até mesmo os critérios são incertos,
que deverá surgir um fundamento para a fé que representa. E em visível contraste com um problema somático bem
tal fato abre as portas para outro irmão do sacerdote - aquele caracterizado, quando a medida inequívoca de sucesso do
que procura parecer ao mundo Ce a si próprio) melhor do que tratamento é dada pela recuperação de um funcionamento
realmente é. adequado. No caso de
A sombra do _falso profeta acompanha o sacerdote por problemas emocionais, incluindo os males psicossomá ticos, os
toda a vida. Por vezes, ela aparece externamente, na figura do resultados são sempre insatisfatórios, qualquer que seja o
pregador de alguma seita obscura ou de um colega que se critério utilizado. Mesmo usando amplas amos
popularizou por meio da demagogia; por outras, é dentro dele 30
mesmo que desponta. Hoje em dia, há muitos religiosos que
temem essa sombra hipócrita de falso profeta. Recusam-se a ser tragens estatísticas, é muito difícil fazer julgamentos qua litativos
vistos como "homens de Deus" a partir de traços interiores ou sobre o desenvolvimento dos distúrbios em questão, quer sejam
exteriores e fazem seus sermões sem nenhuma vestimenta eles tratados com psicoterapia intensiva, tran qüilizantes, quer
especial, numa atitude de conversa social informal. sejam simplesmente ignorados. .
Talvez os critérios que melhor indiquem o sucesso da
Com bastante freqüência, nós analistas lidamos com distúrbios
psicoterapia sejam o grau de proximidade ou distância com
da saúde - neuroses e psicoses - para os quais, tanto em termos
relação ao "si-mesmo" ou ao "sentido da vida" ou o tipo de
de tratamento como de uma possí vel cura, praticamente não
contato estabelecido com o inconsciente. Mas como medir e
existem controles experimen tais reconhecidos. É virtualmente
estudar estatisticamente esses fatores?
imp·ossível acumular estatísticas de tratamentos bem-sucedidos
Qualquer profissional poderá registrar um trata mento
desses males. O que vem a ser melhora ou recaída quando se
bem-sucedido se por acaso for procurado na hora certa, se
trata desses problemas? Deveria o grau de ajustamento social
puder trabalhar com o paciente por temp? sufi ciente e se este
ser tido como critério? Ou a capacidade de trabalhar? O que
for alguém que de fato procurava ajuda e que teria melhorado de
significam intensificação, diminuição ou superação de sintomas
qualquer jeito, segundo os critérios que enumeramos. Nesse
neuróticos? Os sentimentos subjetivos do paciente? O progresso
caso, a sombra de ch~rlatão da dimensão· médica do arialista pode
no desenvolvimento psicológico, no processo de individuação, no
operar maIS ou me nos livremente. Além disso, termos como de pensamento completamente distintas. Estariam todos
doente e sadio, necessitado ou não- de tratamento etc.- se enganando? Seriam todos cegos? Ou talvez a situação seria
costumam ser muito mais difíceis de aplicar ao estado como a descrita no romance de Mary McCarthy, O Grupo, por um
emocional de uma pessoa do que à sua condição física. O psiquiatra decidido a abandonar a profis são e pesquisar a
desenvolvimento psíquico de um indivíduo é altamente bioquímica do cérebro: "É por isso que eu estou caindo fora (da
complexo e somos todos de alguma forma neuróticos. O psiquiatria); quem ficar, que escolha entre ser um cínico ou um
psicoterapeuta que agisse como o Dr. Knock poderia, sem maior impostor ingênuo". Será que somos capaz~s de admitir essas
dificuldade, provar para meio mundo que todos precisam fazer dúvidas para nós mesmos e para o resto do mundo? Ou será que
uma longa análise. A coisa pode ser levada tão longe que quem nós psicoterapeutas fazemos com nossas própr,ias dúvidas e
nunca fez análise passa a se sentir meio doente,. ou pelo menos medos o que faz o sacerdote, suprimindo-os e pondo uma pedra
não completamente desenvolvido em termos psi cológicos. em cima?
A sombra do analista se amplia ainda mais devido ao Da mesma forma que o sacerdote, trabalhamos çom nossa alma,
denominador comum existente entre o seu· ofício e o do nosso ser; os métodos, as técnicas e o aparato utilizado são
sacerdote. Nós analistas, qualquer que seja nossa orientação, secundários. Nós, nossa honestidade e au tenticidade, nosso
não defendemos uma fé específica ou uma religião organizada,
mas, corrio o sacerdote, quase sempre recomendamos certa
contato pessoal com o inconsciente e o,
atitude básica diante da vida; Não representamos uma filosofia, irracional- são esses os nossos instrumentos. É grande 32
mas uma psicologia que a pressão que sofremos para apresentá-los melhores do que são;
31 mas, nesse caso, tornamo-nos vítima da sombra do
psicoterapeuta.
abraçamos por convicção, visto que tanto em nossa vida como em
nossa própria análise tivemos experiências que nos persuadiram e Há ainda outro paralelo com respeito ao padre: nós analistas
nos formaram em termos dessa psi cologia. O analistajunguiano, somos de um modo geral impelidos a desem penhar um papel de
por exemplo, é alguém que viveu o profundo abalo produzido pela onisciência. Trabalhamos com o inconsciente, com sonhos e com
confrontação com o irracional e o inconsciente. Entretanto, a psique, esferas em que se manifesta o transcendental- pelo
poucos l,nsights psicolÓgicos podem ser estatisticamente menos na concep ção dos leigos e até mesmo de alguns
provados no sen tido empírico, só podendo ser confirmados pelo terapeutas~Dessa forma, há toda uma expectativa de que o analista

testemu nho honesto e sincero dos que se empenham na mesma saiba mais sobre assuntos fundamentais do que o comum dos
busca. Nossa única prova é nossa própria experiência e a de mortais. Se formos fracos, acabaremos por acreditar que
outros, uma vez que a realidade psíquica não pode ser apreendida estamos mais profundamente iniciados na vida e na morte do que
estatística ou carnalmente como ocorre nas ciências naturais. Sob nossos semelhantes.
esse aspecto, encontramo-nos em posição similar à do sacerdote. Não só imagens mais nobres da medicina e do sa cerdócio
Mas essa extremada con fiança na própria experiência pessoal ou convergem sobre o analista, mas também seus aspectos sombrios,
alheia inevitavel mente dá rn'argema sérias dúvidas. E se nós o charlatão e o falso profeta.
mesmos, ou outros como nós, estivermos enganados? Afinal de O problema da sombra do analista se intensifica ainda mais
contas, há muitos psicoterapeutas íntegros que defendem escolas devido a algo que lhe é peculiar e não neces sariamente vinculado
aos modelos básicos das outras profissões. Trata-se do fato de que
uma de suas tarefas consiste em ajudar os pacientes a se costumamos ter um ponto cego com respeito à nossa própria
tornarem mais conscientes. sombra. Não a vemos nem em nossos sonhos, nem em nossas
Assim como o conhecimento de Deus desempenha um papel ações. Freqüentemente, nem mesmo nossos amigos conseguem
central no modelo ideal de sacerdote, e o de terapeuta altruísta ria vê-la por algum tempo, tornando-se tão cegos quanto nós mesmos,
imagem do médico, há no modelo de psicoterapeuta uma figura o que acaba produzindo algo como uma folie à deux. Em tais casos
crucial que poderíamos vincular ao ato de criar consciência ou de os inimigos podem ser muito úteis e deveríamos sempre refletir
lançar luz. Mas as imagens profissionais sempre têm um aspecto sobre o que dizem.
sombrio, o qual representa o oposto do ideal luminoso. A sombra Seguimos certas regras para interpretar as manifes tações do
profissional do analista contém não apenas o charlatão e o falso inconsciente. Em última análise, porém, essa interpretação é mais
profeta, mas também a contrapartida daquele que ilumina, uma arte que um ofíc~o e pode muito bem ocorrer que nossa própria
oU'seja, uma figura que vive imersa no incons equação pessoal nos leve a desprezar algo fundamental.
ciente e visa sempre ao contrário do que conscientemente
34
pretende o analista. Temos aí uma situação paradoxal, na
Além disso, há também o problema de que as mani festações
33 do inconsciente, como as do Oráculo de Delfos, quase sempre são
qual o analista é mais ameaçado pelo inconsciente que o ambivalentes. O modo de compreen der o inconsciente acaba
não-analista. O psicoterapeuta honesto de vez em quando leva um assim dependendo do ego. O que aconteceu com Croesus no
choque ao descobrir que age inteiramente a partir do inconsciente Oráculo pode acontecer com qualquer um de nós; ou seja,
em seu trabalho. podemos interpretar o inconsciente segundo os desejos do ego e
Em geral, o analista não recebe aviso algum por par te de seu dessa forma compreendê-lo mal.
paciente de que inconscientemente está sendo destrutivo. É que o Antecipando algo que será desenvolvido mais adian te,
próprio paciente busca o charlatão e o falso profeta no analista e gostaria neste ponto de lembrar o que acontece quando se cai sob
inclusive incentiva esses aspectos. Muita~ vezes o terapeuta tem a o poder da sombra profissional.
impressão de que seu trabalho vai indo às mil maravilhas, Exigimos sinceridade de nossos pacientes. Procura mos
impressão tanto mais forte quanto mais tenha caído em sua ajudá-los em sua confrontação com o inconsciente mediante
própria somora. Assim como o médico é forçado por seus nossas explicações, nossas interpretações de sonhos e, acima de
pacientes a desempenhar o papel de charlatão, e o sacerdote o de tudo, nossas próprias atitudes. Ao olhar de frente nossa própria
falso profeta por sua congregação, o analista é levado a esses sombra profissional, mos tramos aos analisandos que os aspectos
papéis inconscientes por seus analisandos. desagradáveis da vida ta.mbém devem ser reconhecidos. Como
Uma objeção importante poderia ser levantada aqui. O procu rei indicar, as figuras completamente inconscientes da
analista profissionalmente sincero se encontra em per manente sombra de charlatão e falso profeta desempenham um papel
contatocom seu próprio inconsciente, estudando cuidadosamente muito importante em nosso trabalho analítico e portanto em
seus sonhos e quaisquer outras mani festações. Poder-se-ia pensar nosso relacionamento com os pacientes. Se estes forem atingidos
que isso com toda a certeza afastaria o 'papel de charlatão, falso por essa sombra, é fundamental para o progresso da terapia que
profeta ou analista in conscientemente destrutivo. Mas não é assim. sejamos capazes de admitir diante deles que escorregamos na
Assim como as demais pessoas, nós analistas também sombra in consciente e profissional, por mais doloroso que possa
ser reconhecer tal fato. O paciente, afinal de contas, tem de pacientes são em geral pessoas desse tipo - tem uma dimensão
encarar certas revelações dolorosas. Ao procu rar detectar a cada inegavelmente trágica. É sempre o oposto do que se quer atingir
passo a atuação de nossa sombra psicoterapêutica, apanhando-a ou evitar que acaba se constelando. Isso é verdade tanto em nível
com as mãos na massa, auxiliamos nossos pacientes em suas coletivo como individual. A Revolução Francesa pretendia libertar
próprias confron tações com o irmão obscuro. Se deixarmos de o homem e deu lugar à tirania napoleônica. No século XIX, vários
fazê-lo, o paciente aprenderá apenas a enganar a si mesmo e ao suíços amantes do canto tentaram promo
resto do mundo, tornando-se assim altamente questio nável o ver essa atividade fundando corais masculinos; mas, de fato, a
próprio valor da análise. existência de tais grupos destruiu vor completo o canto como
passatempo popular, transformando-o em algo que precisava da
35 estrutura organizada de um coral dirigido para acontecer. O
o
problema da sombra profissional se liga a outros aspectos Cristianismo, pregando a, paz e o amor, deu origem a cruzadas
fundamentais da atividade terapêutica. Na qualidade de sanguinárias que no afã de conquistar a Terra Santa começaram
anlillistas, defrontamo-nos constantemente por exterminar os judeus da Europa. Como sempre repetia C. Q-.
Jung, sempre que um conteúdo luminoso se instala na cons
ciência, seu oposto se constela no inconsciente e procura 36
, ::

com o sofrimento e com destinos trágicos e incomuns. Com atrapalhar a partir dessa posição estratégica. O médico se torna
bastante freqüência, o que temos a fazer é ajudar uma 'pessoa em um charlatão exatamente por querer curar o maior número
dificuldade a compreender a si mesma tanto quanto possível, não possível de pessoas; o sacerdote se torna um hipócrita por querer
só para que entre em contato converter as pessoas à verdadeira fé; e o psicoterapeuta se torna
um charlatão e um falso profeta apesar de trabalhar dia e noite
para ampliar sua consciência .
Até aqui, minhas afirmações parecem um tanto pessimistas,
um teólogo da velha
como as de um pregador calvinista ou de
Islândia - se é que havia teólogos
., . ~:.
* . naquele tempo. Odin faz o
com o inconsciente, mas simplesmente para que suporte os
aspectos trágicos da vida em toda a sua incompreen sibilidade. que pode, apesar de saber muito bem que as raízes de Iggdrasil, a
árvore do mundo, estão sendo lenta mas inexoravelmente
Para ajudar uma pessoa que sofre devido a uma situação
destruídas pela serpente.
existencial trágica - que não se alterará mesmo que aumente o
Mas a existência dessa sombra também tem aspectos menos
contato com o inconsciente - deve mos igualmente confrontar nossa
trágicos. Nem sempre as ações de um terapeuta que trabalhe a
própria situação trágica, expressa pelo fato de que quanto mais
partir da sombra são negativas. Freqüen temente os charlatães
procuramos ser bon.,s psicotlerapeutas, ajudando nossos pacientes
conseguem minorar o sofrimento muito mais do que médicos
a am pliar sua consciência, mais nos ocorre cair no lado oposto de
sérios e respeitáveis. E um terapeuta que temporariamente caia no
nosso luminoso ideal profissional.
Em certo sentido, o destino dos que lutam por algo - e nossos inconsciente e trabalhe exclusivamente a partir da sombra pode,
pelo menos por algum tempo, aparar as arestas mais agudas do consciente parece condenado a um trágico fracasso. Talvez
sofrimento dos pacientes com base em sua precisão e segurança tenham razão certas religiões orientais que procuram negar por
exterior. completo as exigências e objetivos do ego, para que o indivíduo
Um de meus analisandos teve certa vez o seguinte sonho: assim liberado de preocupa ções terrenas possa atingir o Nirvana.
num jornal aparecia uma caricatura minha, no estilo de Daumier, Os esforços, do ego, por mais bem-intencionados que sejam,
com a seguinte legenda: "Infelizmente nosso colega Dr. A. G.-C. acabam a longo prazo por atrÁpalhar.
fez mau uso da nobre arte da medicina, portando-se como um Mas os europeus não podem e não pretendem renun ciar ao ego,
charlatão em busca de vantagens" . devendo lev'ar muito a sério seus esforços e objetivos. O si-mesmo
Naquela ocasião, não pensei que o sonho de fato se referisse - centro significativo mais profun do da psique, segundo Jung -
a 'mim e o interpretei como expressão de uma em geral só pode apa

38
*Referência ao mito germânico. (N. do T.)
recer se o ego, em lugar de posto de lado e eliminado como algo
37 insignificante, puder levar adiante o drama de seus
resistência do paciente baseada em preconceitos coletivos contra a envolvimentos.
psicologia, a psicoterapia e o inconsciente. Re
: .'"
O Rei Édipo tentou desesperadamente viver e agir segundo
jeitei a crítica que me era dirigida e o retrato de minha sombra a vontade dos deuses - ou seja, do inconsciente. Apolo lhe
profissional como uma caricatura à la Daumier, encarando-os informou, por meio do oráculo, que derramaria o sangue do pai e
como um problema subjetivo do paciente. No decurso da análise desposaria a mãe. Para evitar tal even
voltamos a esse sonho e percebemos claramente que ele se referia tualidade, o jovem. Édipo abandonou Pólibo, seu pai, e Mérope,
ao meu próprio problema de sombra profissional. Meu paciente sua mãe, sem saber que estes não eram seus pais verdadeiros,
disse que ficou contente por não termos conseguido compreender mas adotivos, pois estes nunca lhe haviam dito nada sobre sua
o so linhagem. Mas, ao tentar evitar a horrível e maldita profecia,
nho por completo naquela altura. A segurança com que lhe Édipo cai no pólo oposto. No fim da tragédia, autocondenado, ele
devolvi o sonho, apesar de este basear-se no meu próprio se vê como· "o mais amaldiçoado dos homens, odiado por todos
inconsciente, produziu um efeito tranqüilizador. Ele disse que os deuses". Ao vazar os olhos, ele deplora: "Nada restou para ser
naquela ocasião não teria suportado o peso de lidar ao mesmo visto ou ser amado. Nunca mais o som das saudações dará
tempo com os meus problemas de sombra e com os dele . prazer aos meus ouvidos. Fora! Fora daqui, fora! Ao desterro, ao
. Posso bem imaginar u~a reação crítica às refle xões até aqui desterro!"
apresentadas. Não seriam elas talvez de masiado destrutivas? Por Mas é exatamente a partir desse trágico esfacela mento de
que razão deveríamos tentar nos tornar mais conscientes, se ego de Édipo que o si-mesmo, a centelha divina no homem
estamos condenados a recair perpetuamente, nas mais começa a transparecer. Como em qualquer tragédia, percebe-se
desagradáveis formas de inconsciência? Por que não "viver e aqui um significado que j á não é mais orientado pelo ego. Algo
deixar viver" com alegria e inconsciência, simplesmente ajudando análogo é sentido por qualquer analista - e por seus pacientes -
nossos pacientes com medicamentos? Para os que $e preocupam que procure relacio nar-se com o inconsciente, vivendo tão
profissionalmente com a questão, o esforço de tornar-se mais conscientemente quanto possível e nesses termos exercendo sua
profissão. E, ao fazê-lo, será inevitável que progressivamente caia conhecimento e de sua habilidade, pretende altruisticamente
na sombra'e muitas vezes desempenhe o papel de charlatão e falso auxiliá-los. Mas esse des~jo consciente - sem o qual o analista não
profeta para seus pacientes. teria escolhido sua profissão - constela o pólo oposto no
Até este ponto, talvez minhas considerações sobre o irmão inconsc\ente e conjura o charlatão, ou seja, aquele que não
sombrio dopsicoterapeuta tenham sido muito gerais. No capítulo trabalha para seus pacientes, mas para si próprio. Em parte, é
seguinte voltaremos a essas figuras obscuras, observando em esse o fenômeno psicológico que Jung costumava chamar de
termos práticos o que acontece quando o psicoterapeuta cai no "sombra". Esse termo não deveria ser confundido com o
inconsciente. inconsciente per se. Para Jung, "sombra" quer dizer o reverso
dos ideais pessoais ou coletivos. Nesse sentido, a sombra sempre
é um tanto destrutiva, agindo negativa
39
o CONTATO INICIAL 40
ENTRE ANALISTA E ANALISANDO mente sobre os ideais positivos esposados pela coletivi da de ou
pelo indivíduo. Sua existência é extremamente desagradável e
dolorosa para o ego, cujos objetivos são
.: ./
exatamente o oposto. A consciência, ou superego, é infor mada
pelo ambiente imediato ou mais geral em termos dos ideais
existentes. O ego tenta sempre cumprir as exigências do
superego, ou ao menos aceitar alguns com promissos. O fato de
haver um eterno desencontro entre valores conscientes e o poder
da sombra interessada em destruí-los cria uma tensão dinâmica,
mas também uma dolorosa insegurança. Todo analisando deve
lidar inten samente com sua própria sombra e com os demônios
que se agitam em seu interior, mesmo que deles não tenha
Via de regra, o inconsciente do analista não se re laciona
consciência.
com seus próprios traços neuróticos. No decurso de sua análise de
Procuremos agora examinar a sombra do psicote rapeuta em
treinamento e de seu próprio trabalho analítico, os terapeutas
termos concretos, descrevendo algumas de suas atitudes. Certos
sérios aprendem a não atrair os paciêntes para seus próprios
aspectos sombrios podem constelar se já no primeiro encontro
mecanismos neuróticos - e também a reconhecê-los claramente,
entre terapeuta e paciente. Ao encontrar-se pela primeira vez,
senão a superá-los. É de se esperar que uma análise que se
tanto um como outro têm certas intenções conscientes. O paciente
estendeu por centenas de horas permita ao menos que se atinja
deseja livrar se de seu sofrimento e de sintomas neuróticos, como
esse ponto. .
compulsões, fobias, impotência, frigidez, depressão ou males
Enormes dificuldades surgem, porém, para o analista a partir psicossomáticos. Muito freqüentemente, o auxílio que busca diz
de seu próprio desejo de ajudar. Elequer servir a seus pacientes, respeito às dificuldades gerais da vida, a problemas matrimoniais
ajudá-los em seu sofrimento neurótico e estimular o ou com os filhos etc. Da mesma forma que o doente que procura
desenvolvimento de sua consciência. Fazendo o melhor uso de seu um médico, o paciente psicoterap&utico quer livrar-se de seu
sofrimento e de sua doença. Pelo menos, assim parece ser na
superfície psíquica. Já as expectativas mais profundas costumam
ser bastante diversas. Inconscientemente, ao menos em parte, o
paciente quase sempre espera encontrar um re dentor que o
liberte de todos os seus problemas e talvez até chegue a despertar
nele capacidades sobre-humanas. Uma paciente minha
extremamente inteligente, que além de uma grave neurose
também sofria de constan

41

r i!
.I I

tes resfriados, confessou-me algum tempo depois de iniciar


a análise que por intermédio da psicoterapia esperava
O;'.

imunizar-se contra todas as doenças físicas.


l' neuróticas cíclicas e dores de cabeça crônicas. Em nossa
Seus constantes resfriados eram um teste. No princípio segunda sessão ela declarou estar muito feliz por começar a
i
perceber a' razão de seu sofrimento, pois assim ela logo
da terapia ela fantasiou que, se estes desapareçessem, ela poderia mostrar ao marido o quanto este era injusto e como a
gradualmente aprenderia a usar seus poderes psí quicos para tratava mal.
afugentar todos os males físicos. O paciente costuma No início da terapia a relação entre terapeuta e pa
recorrer ao psicoterapeuta para obter não só um efetivÇ> ciente é muitas vezes similar 4 do feiticeiro e seu aprendiz.
apoio em sua luta contra a neurose, mas também o acesso a As fantasias que o paciente tem nesse sentido exercem um
um conhecimento secreto que lhe permitiria resolver todos poderoso efeito sobre o terapeuta, em cujo inconsciente
os problemas da vida. começa a constelar-se a figura do mágico ou do salvador. O
Com muita freqüência, as pessoas casadas espe terapeuta começa a pensar que é de fato alguém com poderes
ram, no início da terapia, receber os instrumentos que lhes sobrenaturais" capaz de fazer maravilhas com sua mágica.
permitiriam penetrar no íntimo de seus cônjuges e assim A expectativa e a esperança do paciente de encontrar
levá-los à submissão completa. Lembro-me de uina~ mulher um feiticeiro poderoso também têm um papel na escolha do
que buscava tratamento devido a crises analista. Para este, é claro, é extremamente difícil não ser
atingido por essa projeção do mágico. Na verdade ele até a
estimula no paciente ao enfatizar seu próprio poder e seu
prestígio. Quando o paciente lhe fala de seus

42
o que leva a recrin;l.inações amargas e recíprocas entre velho
problemas, o analista deixa parecer que já compreendeu mestre e ex-aprendiz; o analista mais novo abriga ressentimentos
tudo. Mediante o uso de certos gestos, como um sábio profundos contra seu colega mais velho, ao passo que este se
balançar de cabeça, e de certas observações ambíguas em sente traído. Os dois já não podem mais trabalhar juntos. De
meio à fala do paciente, o analista cria a impressão de que, modo geral, não basta &pelar para uma projeção paterna mal
mesmo não estando preparado para expressar todo o seu resolvida para explicar a fricção entre o analista em formação e
conhecimento e suas profundas reflexões, já atingiu o fundo seus orientadores
da alma do paciente. A pretensão de competência absoluta
também faz parte da imagem do feiticeiro. Via de regra, os
feiticeiros querem ser onipotentes e não costu
mam tolerar colegas ou competidores. O relacionamento
entre feiticeiros costuma ser uma luta de poder, consis tindo
de magia e contramagia. Fascinado por essa figura interior .'
,~.'

'.'
do mágico, o analista gostaria que todos os que precisam de profissionais maduros.
auxílio se voltassem exclusivamente para ele. Por mera falta Seria conveniente esclarecer alguns pontos antes de continuar
de tempo ele poderá graCiosamente e às vezes encaminhar e~aminando o fenômeno da sombra na psi coterapia. Como vimos, a
um caso a algum principiante, mas ainda assim procurará sombra do terapeuta e a do paciente afetam-se mutuamente e se
manter todos os fios em suas próprias mãos. Muitos relacionam inti mamente. Não se pode, portanto, examinar com
analistas trabalham mais do que podem e falam com certo pro priedade a sombra do primeiro sem levar em conta a do
orgulho da longa lista de espera de futuros pacientes. A segun.do. A sombra profissional do terapeuta que pretende ajudar
pretensão interior de poder abso luto e a fantasia de que é o seus pacientes é o charlatão, o agente fraudulento que só busca
mais poderoso dos feiticeiros impossibilitam-lhe enviar de satisfazer seus próprios interesses. Paralela mente, o paciente que
bom grado certos casos a colegas de status equivalente e não procura tratamento para curar-se
apenas estudantes e principiantes. O analista não crê, como a
madrasta de Branca de Neve, que "não há ninguém mais
belo" do que ele em todo o reino; mas o demoníaco feiticeiro
dentro dele leva-o a crer que é o único no país que realmente
entende de análise.
Muitas vezes o jogo de feiticeiro e aprendiz se man tém
durante toda a análise e continua até mesmo depois de seu
término. As análises didáticas estão particular mente sujeitas
a esse perigo. O treinando pode conti nuar sendo um
"aprendiz" pelo resto da vida, ou seja, um admirador e
tentará
imitador do analista que o formou. Ou então
transformar-se ele próprio num mestre feiticeiro,
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apresenta uma força psíquica antiterapêutica, que luta
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certos pacientes gostam de proclamar que estão se tratando com
um analista famoso.
O charlatão no analista também usa o truque de dra matizar
desnecessariamente uma situação. Um paciente neurótico será
visto como portador de um "perigoso poten cial psicótico". O termo
"psicose latente", que Jung costumava usar, pode facilmente ser
mal interpretado nesse sentido. O perigo de uma crise psicótica
pode ser exagerado para que o analista seja visto como salvador.
Este fato, por· seu turno, satisfaz a necessidade desse tipo de
paciente ver-se passivamente salvo, e de maneira atraente, de uma
situação aparentemente sem saída. A situação é igual à de
pacientes com problemas físicos que adoram dizer: "Todos os
médicos desistiram do meu caso, mas daí consultei o . Dr.
Curatudo e hoje sou um homem são".
N o início do tratamento, o estabelecimento dos ho norários
desempenha um papel não desprezível. Diante dessa questão, a
atitude do analista quase sempre revela certo grau de
"
charlatanismo. Éde se notar a freqüência com que os
contra o processo de cura ou desenvolvimento, comum ente psicoterapeutas julgam necessário enfatizar que o pagamento é
descrita como "resistência". Este combatente a serviço da
em si uma medida terapêutica que promove o processo de cura.
resistência interior é muito agressivo e não só resiste ao
progresso da terapia, como procura destruí-la de modo ativo. No
final deste livro tentaremos compreender em maior
profundidade esse fenômeno. Por ora, observa
remos apenas que a resistência do paciente estabelece uma
aliança com a sombra de charlatão do terapeuta; ambas
constelam-se mutuamente e às vezes só podem ser
compreendidas a partir dessa reciprocidade.
Sob vários aspectos, a situação terapêutica inicial presta-se
bastante bem para constelar a sombra de char latão. O analist'a,
por exemplo, pode ser levado a receber apenas clientes prósperos
e proeminentes, capazes de lhe pagar elevados honoráriqs e cujos
nomes conferem pres

44
Não seria esta, entre outras coisas, uma manifestação da
tígio. Essa tendência, por sua vez, é reforçada pelo fato de que
sombra? Afinal de contas, os honorários não são uma "terapia";
são cobrados para que o terapeuta possa viver de forma para o analista traços pertencentes aos personagens que tiveram
compatível com seu nível de educação e treinamento. Neste caso, um papel impor
também encontramos a contrapartida do paciente. Ele aceita tante em sua vida. Pode-se também transferir para outrem a
pagar elevados honorários porque isso lhe dá a impressão de que própria estrutura psíquica, vendo no outro aspectos que na
pode ,comprar o analista, o qual, na qualidade de seu empregado, verdade são problemáticos em nós. Costuma-sé usar o termo
lhe poupará o trabalho de um auto-exame honesto; ao mesmo transfeIjência para descrever esses fenômenos.
tempo, como escolheu o analista mais caro, ele passa a acreditar Em contraste, num relacionamento ou num encon tro
que tudo no fim dará certo. genuíno o outro é visto como é. Ele é sentido, amado , 46
ou odiado pelo que é; o encontro é com outra pessoa real. Como é
natural, a transferência e o relacionamento costumam ocorrer
45 simultaneamente, não podendo ser estritamente diferenciados
num caso específico. Quando muito, a transferência se transforma
RELACIONAMENTO É FANTASIA em relacionamen
to. Muitas amizades começam como transferência e só depois
passam a constituir um relacionamento genuíno. N a minha
/ .;.,
opinião, é bastante destrutivo querer explicar um relacionamento
sempre em termos de projeção e transferência, como costumam
fazer os psicólogos.·A maior virtude de tal procedimento talvez
seja lisonjear o ego do psicólogo, uma vez que acredita ter captado
um dos fenômenos psicológicos mais misteriosos - o relacio
namento - mediante a simples aplicação dos conceitos de
transferência e projeção.
A sombra de charlatão encontra diante de si um rico campo O mistério do relacionamento só pode ser descrito em termos
de 0l?eração no momento em que a análise se firma e as psiques muito vagos, não se prestando a uma clara apreen são intelectual.
do terapeuta e do paciente começam a se afe tar mutuamente. Como já indiquei, relacionamento significa ver o outro como é, ou
Mas, para poder discernir as evasivas que"podem ser utilizadas no pelo menos em parte re-conhecê-Io como a pessoa que é. Além
caso, devemos descrever as características dessa influência disso, significa ter prazer ou desprazer com essa pessoa real,
psíquica mútua. Os ter mos transferência e contratransferência, sentindo-se bem em estar com ela ou fazer algo com ela,
que usaremos aqui, são em geral aplicados com sentidos procurá-la com interesse, trocar emoções, sentimentos e
extremamente discrepantes. pensamentos. Em outras palavras, num relacionamento o parceiro
Examinemos de início a transferência e a contra é violado o me nos possível por projeções ou pela transferência.
transferência comparando-as com encontro ou relacio namento. N este contexto, porém, costuma-se minimizar o
N a transferência, vê-se em outra pessoa algo que não existe, dinamismo da psique e do indivíduo. Quem é o outro, o parceiro?
ou talvez só exista de forma latente ou nascente. Como se sabe, o Ele não é jamais algo estático; é vida, desenvol vimento, passado,
paciente pode ver no analista um pai ou irmão, um amante, um presente e futuro. Compreender outra pessoa significa
filho ou filha, e assim por diante - quer dizer, ele pode transferir relacionar-se não só com seu presente, mas também com seu
passado e seu futuro. de um potencial latente. Pode ser que o filho não se torne um
O relacionamento envolve sempre algo criativo. Ao chefe de Estado, como imaginou a mãe, mas que possua de fato
empregar a palavra "criativo", quero dizer o seguinte: a psique
humana está sempre cheia de novas possibilidades. Ela se recria 48
sempre, por assim dizer, e é permanente grandes habilidades políticas; pode ser que não se torne outro
Picasso, mas que deva realmente escolher uma profissão que
47 utilize a capacidade artística.
ment~ recriada. O potencial psíquico de um indivíduo é obviamente Outro exemplo: a jovem noiva costuma encarar o futuro de seu
limitado, mas altamente diversificado e multifacetado. Não é escolhido de modo altamente imaginativo. Apesar de ser ele um
nada criativo ou propício ao re lacionamento encontrar alguém e assistente social, ela sonha acorda da que será catedrático ou reitor
vê-lo como uma foto instantânea ou uma imagem fixa. Encontrar de· uma universidade. Talvez, nessas fantasias, ela reconheça
um;:t pessoa de modo criativo significa tecer fantasias em redor certo potencial acadêmico escondido no marido, o qual poderá de
dela e circundar seu potencial. Surgem então várias imagens sobre fato tor nar-se um dia professor numa faculdade de serviço social.
a pessoa e o relacionamento potencial. Em geral, essas fantasias As fantasias da noiva, neste caso, relacionam-se de perto à pessoa
criativas estão bem longe da assim chamada realidade; são tão do futuro marido e à realização de seu potencial; suas esperanças
irreais, ou tão verdadeiras, como con tos de fadas e mitos. Elas poderão ser irreais, mas sua visão se adapta perfeitamente à
lançam mão de imagens para captar a natureza da outra pessoa - natureza do companheiro.
da mesma forma que uma lenda, como a de Guilherme TeU, é Estas fantasias criativas, ou circum-ambulação ima ginativa
capaz de captar e descrever a natureza da antiga Suíça tão bem do parceiro, são da maior importância em qualquer relacionamento
quanto uma cuidadosa pesq~isa histórica. Mesmo se não expressas, humano. Mesmo quando se misturam com componentes do ego,
as fantasias também influenciam a outra pes soa, despertando nela elas servem, pelo menos, para estimu lar a imaginação do outro.
suas potencialidades. Todo mundo tem necessidade de fantasiar sobre si mesmo, de
Esse tipo de fantasia tem muito pouco a ver com as circundar e despertar seu próprio potencial de forma mitológica ou
projeções, pois est~s são autistas. Na transferência, projetamos como num conto de fadas . Uma das tragédias da vida de crianças
sobre nosso parceiro imagens, problemas ou possibilidades que de orfa nato é que ninguém tece ta is fantasias em torno delas, de
dizem respeito a nós mesmos ou a nossa história de vida. As modo que quase nunca seu potencial é despertado. Essas crianças
imagens da tra:qsferência têm muito pouco a ver com a outra poderão tornar-se adultos bem comportados, mas psiquicamente
pessoa. Mas as fantasias criativas que descrevi se relacionam à só estão vivas pela metade.
natureza da outra pessoa e representam, de forma simbólico-mitológica~ Deve-se lembrar sempre que fantasias desse tipo nunca são
seu potencial de vida. "verdadeiras" em termos realistas, mas certa mente o são no
Certas fantasias dos pais talvez sirvam de exemplo. sentido simbólico. Podem relacionar-se à pessoa inteira ou apenas
Freqüentemente os pais se permitem, consciente ou semi a certas características, assim como podem girar em torno de
conscientemente, fantasiar o futuro de seus filhos - mas essas possibilidades passadas ou futuras. Nas conversas do dia-a-dia
idéias têm muito mais a ver com os pais do que com o potencial elas brotam em frases como: "posso imaginá-lo como um antigo
dos filhos. Muitas vezes, porém, essas fantasias derivam de uma pirata", ou então: "ele me parece do tipo artístico", ou: "eu o vejo
visão basicamente correta, representando uma figuração criativa exatamerite como um lorde inglês".
mais transpira e é trocado entre duas pessoas do que o
49 meramente expresso por palavras ou atos. O analisando deveria
É bem conhecido, no campo da educação, o efeito de fantasias que, tentar comunicar a seu analista, o mais honestamente possível,
embora referentes a outra pessoa, são na t·· tudo o que sente, sonha e fantasia. É por aí que o analista tem
verdade centradas no ego. Muitas crianças quase chegam a ser acesso aos problemas de sombra do paciente. Mas, apesar de o
destruídas por acreditarem que devem corresponder a fantasias analista não contar seus próprios sonhos e fantasias, estes também
dos pais que nada têm a ver consigo. Mas ra ramente se reconhece influenciam tanto o analisando como o próprio curso da análise. Se
o efeito positivo de fantasias que se relacionam de verdade com o o analista realmente pretender rastrear a sombra, ele deve
outro. Da mesma forma como se encarava, algumas décadas confrontar e lidar ativamente com suas próprias fantasias sobre
atrás, os contos de fadas e os mitos como absurdos ou até seus pacientes. Não adianta nada, nem para si nem para os
perigosos, não se compreendia a importância das fantasias na clientes, fazer o papel do terapeuta absolutamente "objetivo". Isso
educação e no relacionamento interpessoal. é ilusão. De outra perspectiva, podemos di zer que, se o analista
Para que possamos compreender o significado dessas funcionasse com uma objetividarle de computador, seu efeito
fantasias mútuas no relacionamento humano em geral e terapêutico seria com toda a certeza nulo, visto que exerce sua
especialmente na análise, 'conviria considerar rapida mente o função curativa na qualidade de ser humano e não de
modo pelo qual a psicologia junguiana encar:;. a ação e a reação computador. Vários terapeutas procuram suprimir ou reprimir as
que têm lugar entre duas pessoas. E evidente que uma pessoa é fantasias que têm com respeito aos pacientes, como se estas não
influenciada pelas fantasias que tem a respeito de si mesma. Mas fossem permis síveis. Ocorre que o conteúdo dessas fantasias, seja
é um pouco mais difícil perceber como suas fantasias sobre outra ele qual for, continua a produzir seus efeitos. O ponto central é
pessoa podem influenciar esta, mesmo se não verbalizadas. A não cortar as fantasias. Uma das primeiras tarefas do terapeuta
psicologia junguiana entende a relação entre duas pes soas como consiste em examinar e procurar entender suas fantasias. Tanto o
analista como o analisando têm suas fantasias sobre o outro; cada
algo mais que um mero contato entre duas consciências. Quando
duas pessoas se encontram, suas psiques se defrontam em sua um está sempre a circuns crever o outro em sua imaginação.
totalidade; o consciente e o inconsciente, o dito e o não dito, tudo N osso problema aqui é rastrear a sombra do analista. Muito já se
afeta o outro. Não sabemos exatamente como isso acontece. Mas escreveu sobre os perigos' da contratransfe rência. Espera-se que o
paciente, se possível, tenha uma transferência para com o
repetidas vezes pode-se observar que a psique de uma pessoa tem
analista. Este terá, então, de dissolvê-la e levá-la de volta a suas
um efeito sobre a de outra, com todos os seus aesejos, fantasias,
origens. É assim que se atingem os complexos neuróticos. Mas, se
sentimentos e emoções, sua consciência e sua inconsciência -
o analista tiver uma contratransferência, projetando sobre o
mesmo se o que se passa na psique não for declarado nem
paciente imagens, oaracterísticas etc., que na verdade pouco têm
exprE{sso de forma direta.
a ver com ele ou não passam de uma resposta à transfe
Este conceito de relacionamento é atualmente bastan te difícil de
comprovar. Mas os observadores interessados em relacionamento 51
interpessoal, sejam psicoterapeutas ou não, ficam sempre rência inicial, nesse caso o desenvolvimento é natural mente
impressionados ao perceber que muito bloqueado. Tudo isso já é bastante conhecido, e todo analista
consciencioso deve ter sido treinado para reconhecer a
50
transferência e impedir o surgimento da referem-se a linhas reais de desenvolvimento possível. Sua
contratransferência, dissolvendo-a tão logo possível. Mas as energia psíquica se
fantasias anteriormente descritas sã'o mais difíceis de se
compreender e extremamente importantes com respeito aos 52
fenômenos de sombra. Quanto a este aspecto, os analistas concentra sobre o lado destrutivo do paciente, e assim. o estimula.
costuIl1-am enterrar a cabeça na Trata-se de um tipo de "imaginação ativa", conforme o sentido
dado a esse termo pela psicologiajun guiana, mas que gira em
torno do potencial destrutivo do
paciente - sobre quem atua como uma maldição. A psicologia
popular costuma apresentar uma dimen são um pouco mais mágica
desse fenômeno. Em geral se acredita que, se os pais ou
professores acharam que uma criança "não dará em nada e
provavelmente acabará na cadeia", esta será atingida por uma
,.
influência devasta dora. Essa "fé negativa" é uma boa analogia
areia. Não se fala muito sobre as fantasias que temos so bre nossos para essas fantasias destrutivas que vimos discutindo .. São várias
pacientes, ou então estas são imediatamente entendidas como as origens psicológicas desse quase com pulsivo girar em torno do
expressão de uma contra transferência potencial negativo do paciente. Dentre elas, destaca-se a sombra de
- e, nesse caso, completamente mal interpretadas. Se tiver charlatão do analista, a qual, no essencial, não se interessa pelo
desenvolvi~o certo relacionamento ~om seu paciente - sem o que análise
bem-estar do paciente. Mas as fantasias desse tipo costumam ser
tão destrutivas que acabam prejudicando o próprio analista, dado
alguma seguirá adiante -, volta~e meia o analista terá fantasias que um fracasso na terapia irá igualmente afetá-Io. A
sobre ele, as quais expressam a maneira como o vê, circundando concentração quase compulsiva sobre as possibilidades negativas
seu poten cial. Estas fantasias exercem por certo uma influência, do paciente liga-se a uma dimensão destrutiva do analista que
tanto quanto as dos pais sobre a criança ou as da mulher sobre o 'examinaremos adiante em maior detalhe. O terapeuta não está
marido. sozinho com suas fantasias ne gativas, visto serem estas
N este ponto, um traço destrutivo costuma se reve lar no analista. estimuladas e 'influenciadas por seus pacientes. Em geral, a
Fantasias estranhas e negativas podem persistir e até mesmo con.cepção que um analisando tem de seu analista é em certo
proporcionar certa satisfação. Elas podem girar em torno de um sentido correta, porém parcial. Ele percebe possibilidades no
possível suicídio do paciente, ou da eclosão de uma psicose; analista que estão realmente presentes, mas que não constituem o
podem ser imagens des trutivas da família, da vida profissional ou quadro inteiro. Suas fantasias costumam girar em torno da som
da saúde do indivíduo. Tais imagens 'exercem um estranho bra do analista. O paciente poderá vê-lo como um cínico ávido de
fascínio sobre o analista.· Em lugar de uma preocupação positiva dinheiro que ridiculariza seus pobres clientes quando fala com os
com o paciente, elas revelam um encantamento com suas colegas, ou como um cientista de san gue frio que só se interessa
potencialidades negativas. Nas conversas entre analis tas, tal fato pelas pessoas como "casos", ou como um mau marido e mau pai.
costuma ser expresso por meio do evidente deleite com que um Com essas fantasias negativas, o paciente até certo ponto rouba do
fala ao outro sobre o grave perigo que ameaça determinado analista a
paciente. Estas fantasias negativas do analista não são projeções;
um desenvolvimento que beneficiária mais a si próprio do que a
53 seu cliente. Cabe aqui um exem
capacidade que este talvez tenha de ajudá-lo. Quero mais uma vez plo: um analista "vê" seu paciente como um futuro gerente geral.
enfatizar que não estamos falando aqui nem de transferência nem Neste caso específico, de fato a fantasia está de acordo com uma
de projeções, mas do reconhecimento de um potencial real no das possíveis linhas de desenvolvimento da pessoa em questão -
analista, da visão de sua sombra. mas é uma possibilidade que só poderia se realizar se o
As fantasias positivas do analista podem igualmente ter um ,desenvolvimento psíquico desta continuasse de modo
caráter destrutivo, mas é difícil reconhecer seu perigo. Tão, logo unidirecional. Assim sendo, a con
estabeleça um relacionamento com o centração do paciente em conquistar essa posição de poder poderá
não significar um benefício global para ele. Mas isso de algum
modo ajudaria o analista, proporcionando-lhe uma conexão
influente e um senso de seu próprio poder ao ver um ex-paciente
numa posição importante.

54
,
paciente, o analista deve de algum modo fantasiar sobre A VIDA EXTRA-ANALÍTICA
DO ANALISTA E DO PACIENTE

> ,~.

suas possibilidades futuras. É quase impossível permane cer em


sua companhia, vendo-o como é naquele momento, talvez captando Alimentado por fantasias diversas, o lado destru tivo do analista
a psico dinâmica de sua história de vida, sem de algum modo aparece de forma extremamente clara e delineada no que diz
estender a visão até o futuro. As fan tasias semiconscientes e os respeito às relações humanas extra-analíticas do paciente. Em
devaneios devem de quando em vez projetar o paciente no futuro certo sentido, cada re lacionamento é em parte adverso a outros. A
como "curado" ou pelo menos modificado. Se isso não acontece, o maior parte dos relacionamentos humanos apresenta certa preten
paciente não ~ é estimulado nesse sentido e daí se encontra mais são de exclusividade. Isso se aplica igualmente à relação analítica,
ou menos na mesma situação que a criança órfã ante riormente ou seja, aquela entre terapeuta e paciente. Essa pretensão, que
mencionada, em torno da qual ninguém tece fantasias e que, basicamente se encontra em todas as relações, é intensificada pela
portanto, não consegue se desenvolver completamente por falta de sombra de charlatão do analista, a qual gostaria de manter o
estímulo.
paciente completa mente sob seu controle. Nesse sentido, a visão
A situação se torna grave quando a imaginação do analista,
que tem das relações, do paciente com o marido ou a mulher, com
persistindo em girar em torno das possibilidades do paciente, busca
amigos e conhecidos é em geral abertamente negativa. Apenas o seus namoros, um~ mulher de meia-idade das dificuldades e
lado destrutivo de suas relações humanas é le vado em conta, prazeres que sente com os filhos. Tomadas em conjunto, as
elaborado pelas fantasias e trabalhado. Tam pouco nesse caso se experiências dos pacientes de certo analista constituem um rico e
trata de contra transferência. O analista nessa situação não está fascinante espectro da vida humana. Talvez o analista se absorva
projetaI).do coisa alguma sobre o analisando, mas apenas dirigindo por completo no trabalho com seus pa cientes, o que à primeira
o holofote de sua mente para os aspectos mais infelizes das vista parece ótimo. Sua própria vida privada fica em segundo plano
diversas relações inuerpessoais do paciente e circundando-as com diante dos problemas e dificuldades das pessoas com quem
sua imaginação. As pessoas que lhe são próximas costumam trabalha. Mas isso pode levar a um ponto em que os pacientes, por
perceber isso, reclamando que a psicoterapia o isolou e que agora assim
ele despreza suas relações pessoais ejá não as leva
56
55
dizer, passam de fato a viver pelo analista, que espera que estes
mais a sério. Nem sempre essas queixas sejustificam, mas em preencham o vazio criado por sua perda de contato com o calor e o
geral contêm um grão de verdade. O analista deve trabalhar a dinamismo da vida. O analistaj~ não tem mais seus próprios amigos;
fundo sua própria problemática para evitar que o relacionamento as amizades e inimizades dos pacientes são como que também
analítico se torne hostil a outras relações. Muitas amizades sadias suas. Sua vida sexual pode ficar raquítica, encontrando substituto
têm sido rompidas pela análise; muitos relacionamentos entre nos proble-
marido e mulher, pais e filhos etc. têm sido por ela alterados, em . mas sexuais dos pacientes. Tendo escolhido profissão tão exigente,
detrimento do paciente. Em algum canto da alma do analista vê-se impedido de atingir uma posição política influente; sua
existe um bicho-papão que deseja o completo domínio de seus energia é investida toda nas lutas pelo poder de um paciente
pacientes. político. Desse modo, o analista pouco a pouco deixa de viver uma
Analogamente, alguns analistas tentam por todos os meios vida própria, passando a con
evitar que seus pacientes façam terapia de gru po. Freqüentemente, tentar-se com a de seus pacientes.
determinam que seus analisandos - sejam eles pacientes ou Antes de mais nada, esse tipo de situação é extre mamente
analistas estudantes - aban donem imediatamente tais grupos, sob a perigoso para o próprio analista. Seu desen volvimento psíquico
alegação de que ele~ desviam a atenção da análise pessoal. Para estanca. Mesmo em sua vida não profissional, ele só poderá falar
serem consistentes até o fim, deveriam também mandar seus de seus pacientes e dos
pacientes abandonarem cônjuges e filhos, já que estes também são problemas que os afligem. Já não é mais capaz de amar e odiar, de
fontes de considerável distração. investir a si próprio na vida, de lutar, ganhar ou perder. Sua
Outra modalidade da sombra de charlatão do tera peuta é a própria vida afetiva torna-se um subs tituto. Agindo assim como
"vivência vicária". Sob o pretexto de cura, muitas vezes o paciente é charlatão que sobrevive à custa de seus pacientes, o analista pode
sugado e exaurido. Os pacientes contam muitas coisas, permitindo dar a impressão momentânea de estar florescendo psiquicamente.
que o analista participe do drama, das tragédias e alegrias da vida Mas, na verdade, está perdendo a vitalidade e a originalidade
deles. E grande parte do que experimentam não pode ser criativa. N a.turalmente, a vantagem dessa vida vicária é que o
experimenta do pelo analista de modo direto. Um jovem fala'de analista é poupado do sofrimento genuíno. Em certo sentido,
também esta função passa a ser exercida para ele pelos outros.
Esse tipo de analista, ademais, é prejudicial para seus
próprios pacientes. De certa forma, estes também deixam d,e viver
genuinamente, passando, ao contrário, a viver apenas em relação
ao analista, tendo experiên
cias das coisas para depois poder relatá-las. O amor, por exemplo,
deixa de ser uma experiência em si, transfor mando-se num tema
de conversa com o analista. A beleza existencial da vida já não
enriquece o paciente, mas o

57
analista. Qualquer vida pode ser encarada como uma obra de
arte. Mas nesse caso o paciente já não cria mais sua vida
para seu próprio deleite, mas para que o analista não tenha
necessidade de criar a sua própria obra de arte ou de investir
em si próprio, satisfazendo-se em troca com as obras do
paciente. É extremamente difícil definir com precisão esse
58
fenô meno da experiência vicária. Em muitos casos, o analista :1. .

ainda capaz de apreciar e sofrer devido ao dinamismo de sua ~ .. ;

própria vida chega a sentir a consciência pesada, achando que SEXUALIDADE E ANÁLISE
deveria intere~sar-se mais por seus pacien tes. Mas na verdade, a
longo prazo, somente o analista apaixonadamente envolvido
em sua própria vida poderá ajudar seus pacientes a encontrar
seu caminho. Nesse sentido é bastante verdade, como diz
Jung, que o analista só pode dar a seus pacientes aquilo que
possui.

o modo pelo qual a sombra do analista aparece no


campo sexual é até certo ponto bem conhecido. Mas valeria
a pena examinar aqui certos aspectos em maior detalhe. Não
pretendo discorrer sobre a natureza da sexualidade; e, antes
de entrarmos no relacionamento entre sombra e sexualidade,
gostaria de fazer algumas considerações gerais necessárias
para a compreensão desse assunto. fundamental entre o masculino e o feminino profundamente
Em termos biológicos, a sexualidade se liga à repro dução. enraizada na humanidade. A sexualida
Mas tanto uma quanto outra devem ser com preendidas de é assim o aspecto físico do mysterium coniunctionis. O homem
como dois fenômenos distintos. Pode-se observar uma e a mulher não se atraem mutuamente para produzir um filho;
separação entre ambas na mais primitiva das criaturas vivas, este, por assim dizer, é subproduto dessa atração, a qual, entre
na qual a reprodução consiste em divisão enquanto a outras coisas, é usada pela natureza para fins de reprodução.
sexualidade é representada pelo fluir conjunto de dois Basicamente, porém, a relação corporal entre 'os dois sexos é, em
organismos. O que nos interessa aqui não é, porém, biologia, si, uma das mais intensas relações entre o masculino e o feminino.
mas psicologia. O fato é que a maior parte da atividade Já mencionei várias vezes que, na situação psicote rapêutica, deve
sexual humana ocorre sem a menor intenção de procriar, a surgir um relacionamento. Sem isso, o paciente não pode se
não ser que se recorra à idéia de que a mulher - quando não desenvolver. O processo psíquico não avança na ausência de um
o homem - inconsciente mente deseja conceber toda vez que fluxo de emoção entre paciente e terapeuta. Qualquer psicoterapia
mantém relações sexuais. Trata-se aqui de uma afirmação implica pelo menos um mínimo de relacionamento. Quando
dogmática que não poderá jamais ser verificada pelo existe, este não é apenas psíquico, apresentando igualmente um
material psicoló gico de que se dispõe. Por muito tempo, o compo
Cristianismo, especialmente a Igreja Católica, erigiu em lei
moral a 60
nentecorporal ou físico. A relação física entre analista e. paciente
59 é, portanto, muito importante.
necessidade de se acoplar sexualidade e reprodução. Mas a Mas todas as relações humanas podem ser negati vas ou
moderna teologia começa a encarar a sexualidade como algo positivas - fato este que aqueles que pretendem estabelecer uma
muito distinto. Psicologicamente, não se pode compreendê~la religião das relações interpessoais não querem reconhecer. Em
puramente em termos de reprodução, já que antes de mais nada cada relacionamento existe amor e ódio, um desejo de ajudar e ao
ela expressa um relacionamento entre duas pessoas. mesmo tempo de 'destruir' o outro. Um desses fatores poderá
De fato, a vida humana se desenvolve entre os pólos do corpo predominar - amor ou ódio, eros ou destrutividade. Infelizmente, a
e da alma. Todo relacionamento entre duas pessoas tem um sexuali dade - isto é, a relação física entre homem e mulher _.- é
aspecto corporal, seja ele entre homem-mulher, mãe-filho, comum ente tratada no linguajar corrente como "amor". Isso é tão
pai-filho, mulher-mulher e homem-homem. A mãe gosta de ter sem sentido como usar a palavra amor para descrever toda e
contato físico com o filho, de acariciá-lo e abraçá-lo. Acriança tem qualquer relação entre as pessoas. A se xualidade, essa dimensão
necessidade dessa estimulação física, sem a qual não poderá corporal das relações humanas, pode expressar amor e ódio. Falo
jamais desenvolver de modo sadio o senso da importância de seu aqui de relações sexuais "normais", e não de desvios, como o
próprio corpo. A alegria que a mãe tem com o corpo da criança é a sadomasoquismo, no qual a situação é mais ou menos clara. A
sexualidade "normal" proveniente do ódio, e no entanto encarada
alegria que tem com a própria criança.
como amor, tem destruído um sem-número de pessoas - e pode
Mas passemos imediatamente ao relacionamento
homem-mulher. Neste caso a sexualidade não é a base do causar o maior dos danos ao analista e ao paciente na
psicoterapia.
relacionamento, mas apenas a expressão física de uma relação
É comum brotar desejo sexual entre pacientes e analistas. truques do charlatão. O psicoterapeuta pode facilmente cair nesse
(Para' simplificar, nos parágrafos que seguem estarei pressupondo aspecto da sombra, o que costuma ser reforçado por algo ainda
um analista e uma paciente, apesar de as mesmas idéias mais sinistro: certa dose de autodestruição. Já mencionamos aqui
obviamente se aplicarem à situação contrária.) Já é lugar comum essa tendência e voltaremos a ela mais adiante. Se a sexualidade
notar que as mulheres costu que se constela for expressão de forças destrutivas, é de suma
mam ter desejos sexuais e fantasias em torno do analista. Mas há importância que o analista a observe em si e no paciente com o
menos disposição para se discutir o fato de que os analistas máximo de seriedade psicológica. Inúmeros analis tas têm
também costumam tecer fantasias sexuais em torno,de seus destruído a si e seus pacientes ao concretizar esse tipo de
pacientes. Infelizmente, esse fenômeno é sempre encarado à luz sexualidade que de modo quase compulsivo leva à efetivação para
da transferência e da contra assim produzir seu efeito destrutivo. A situação é bastante diversa
transferência. Mas me parece muito mais importante quando o despertar do desejo sexual no paciente e no analista é
compreender os desejos e fantasias sexuais de analistas e uma expressão
pacientes como expressões físicas de um relacionamento. N esse
caso, porém, devemos levar em conta que o relacio 62
ou um aspecto físico de um relacionamento basicamente positivo.
61 Isso é muito menos perigoso, visto não estar nenhuma das partes
namento sempre tem um duplo aspecto. Ele envolve eros e ódio; interessada em destruir a outra, sendo as fantasias sexuais
conforme a situação, um ou outro predomina. No que diz respeito apenas a expressão de um relacionamento frutífero, capaz de
às fantasias sexuais, os analistas junguianos talvez sejam um produzir efeitos po
pouco mais ousados que os terapeutas de outras escolas. Não sitivos na terapia. Pode-se seguramente permitir que tais
atacam imediat,amente tais fantasias como sendo manifestações fantasias 'prossigam e se desenvolvam, pois a ânsia de vivê-las
do fenômeno de transferência ou contratransferência, sendo concretamente não é tão forte.
bastante ca pazes não só de tranqüilizar seus pacientes, como Quanto à realização das fantasias sexuais, uma das regras mais
também de desafiá-los a entreter fantasias sexuais e a observar rígidas da análise estipula que a sexualidade entre analista e
como estas se desenvolvem. Mas para fazê-lo convém antes paciente não deve em circunstância al guma ser concretizada, seja
determinar se essa ativação da sexualidade 'na situação qual for o estado civil deles. Mas até ess~ tipo de regra deve ser
terapêutica é expressão de um relacionamento positivo sempre questionado e examinado. Certos pacientes, e até mes;mo
ounegativo. Com bastante freqüência, por exem plo, o desejo alguns analis tas, levando em conta o papel decisivo do relacio~amento
sexual de uma paciente por seu analista não passa de uma na terapia, argumentam que teoricamente pode acontecer que um
,intenção de destruí-lo profissionalmente, o que por sua vez resulta relacionamento só atinja seu pleno valor terapêu tico quando tiver
de seu próprio estado psíquico. Não podemos aqui considerar as sido vivido também em sua dimensão sexual. Creio que tal
razões que poderiam levar uma paciente a desejar destruir seu raciocínio se baseia num equívoco. O objetivo da terapia não é o
analista. O fato é que essa ativação da sexualidade oriunda de relacionamento entre analista e analisando, mas a cura deste e o
impulsos destrutivos costuma constelar uma sexualidade igual estabelecimento de uma nova orientação psíquica. Uma vez vivido
mente destrutiva no analista. Despertar o desejo sexual nas sexual o relacionamento deixa de ser o receptáculo no
no campo ,
pacientes como recurso para mantê-las é um dos mais velhos
qual tem lugar o processo curativo, tornando-se um fim em si
mesmo e portanto destruindo a terapia. Consciente ou
semiconscientemente, isso é perfeitamente claro para o analista e
em geral também para o paciente. Pode-se assim tomar como
regra que quanto mais o paciente ou algo no analista forçar a
experiência da dimensão sexual do relacionamento, maior a
probabilidade de que essa
sexualidade seja destrutiva - ou seja, ela é prejudicial à terapia e
por certo expressa um relacionamento destru tivo em geral.
Trata-se de uma tentativa de destruir o terapeuta enquanto tal.
Entretanto, essa é uma dimensão importante da pessoa que o
paciente diz amar. Percebe ..
63 > ' ..

se, assim, que a experiência da sexualidade e a situação clínica ela conta tudo o que se passou entre ambos. Essa fantasia,
terapêutica não se entrosam jamais. ' no mínimo, levanta a suspeita de que certos fatores destrutivos
Ainda que a sexualidade não seja vivida na análise, é preciso adotar estavam por trás dos sentimentos sexuais de ambas as partes.
uma atitude altamente diferenciada em face do surgimento de uma Os psicoterapeutas junguianos, em particular, apre sentam uma
atração sexual mútua, inves tigando-se o que ela de fato expressa. forma peculiar de sombra de charlatão. Um dos grandes feitos de
Por mais doloroso que seja, o analista deve sempre examinar as C. G. Jung foi ter conferido um sig nificado mais profundo às
fantasias sexuais do paciente, bem como as suas próprias: Com descobertas de Freud no campo da sexualidade, em vez de
preender as d~ paciente e suprimir as suas não adianta muito, pois a descartá-las ou desaprová-las. O psicólogo junguiano compreende
natureza da situação psíquica se espelha em parte em suas próprias a sexualidade como símbolo de algo não-sexual, ou seja, a união
.fantasias. Um psicólogo que supervisionava um caso com um colega dos opostos ou coniunctio oppositorum. As cartas de amor de uma
relatou a seguinte : t"
freira a Jesus Cristo não representam necessariamente a subli
fantasia recorrente: ele e sua paciente mantêm relações sexuais; mação de um selvagem impulso sexual, mas precisamente o
no dia seguinte ela é internada numa clínica psiquiátrica oposto; mesmo a mais primitiva forma de sexualidade é até certo
particular, devido a um ataque histérico; na ponto encarada como um símbolo vivo da unificação dos opostos
que tanta dor e alegria causam à humanidade. Assim sendo, em
última análise, o fenôme no da atração erótica e sensual intensa na
psicoterapia deveria também ser compreendido como símbolo
dessa

64
unificação, como um mysterium coniunctionis vivido. Esse aspecto
transcendente da intensa atração entre analista e paciente deve
ser de alguma forma apreendido e expe
rimentado por ambas as partes durante a análise. Mas é
precisamente o aspecto transcendental do fe nômeno que fi sombra
de charlatão do analista pode usar como artimanha. Qualquer
analista sabe que a constela ção da sexualidade abriga certos
perigos. A sexualidade destrutiva opera qual moléstia contagiosa.
Um analista junguiano ansioso e preocupado com seu próprio bem
estar procurará evitar esses perigos aGenando para os aspectos
transcendentais tão logo a sexualidade venha à tona. Em vez de A atração homossexual apresenta na análise um problema
dar atenção às suas próprias fantasias e às do pacieIjlte, ele se de relacionamento muito mais complicado que a atração
refugia no simbolismo mais profun do do fenômeno sexual. Isso lhe
heterossexual. Mas,antes de entrar nesse
oferece certa imunidade contra os perigos apresentados por uma
sexualidade es timulada; mas também destrói certas possibilidades
de relacionamento e anula a chance de lidar com eventuais
tendências destrutivas em si e no paciente. Apesar de suas boas
intenções, acaba desvalorizando tanto a experiência do paciente
como talvez a sua própria.
Apesar de em última instância ser um símbolo, a
sexualidade só poderá ser um símbolo vivo se for real mente
experimentada. As formulações psicológicas e filosóficas se
interpõem entre as pessoas e a experiência. Além disso, a ênfase
prematuramente concedida ao sim bolismo desperta no paciente a
sensação de não ser levado a sério. No momento, este se vê
tomado e seduzido por fantasias e desejos sexuais; o analista deve " ";

em primeiro lugar compreender e em certo sentido participar da assunto em detalhe, conv~m apresentar algumas obser vações sobre
ex periência antes de tentar enriquecê-la com seu profundo a homossexualidade em geral.
simbolismo. Muitos psicólogos pressupõem que a criança é um ser
"polimorfo perverso", o que entre outros "desvios" sexuais inclui
tanto a hetero como a homossexualidade.' Os jogos sexuais das
crianças obviamente ocorrem nos dois níveis. No transcurso do
desenvolvimento, o componente hete
65
o MEDO DESTRUTIVO
DA HOMOSSEXUALIDADE
'; .-
., ~.

rossexual adquire cada vez mais importância, enquanto a


dimensão homossexual retrocede, é suprimida e reprimida. Em
muitas pessoas o aspecto homossexual se encontra pró ximo à
superfície, podendo, sob certas circunstâncias, ser temporariamente
ativado. Muitos psicólogos acreditam que a homossexualidade
costuma estar tão perto da superfície que de alguma forma deve
ser sublimada; para estes, os líderes de jovens, os professores, os
militares etc. são pes soas cuja homossexualidade foi sublimada
num interesse por jovens e estudantes, e assim por diante. Nos
diálogos de Platão, Sócrates assume uma posição um tanto diver
sa. Sustenta que a homossexualidade é na verdade uma forma
mais elevada de amor, não associada ao impulso de procriação e
portanto mais pura e mais digna do homem.

66
Indiquei atrás que todo relacionamento tem um as pecto
físico ou corporal. Duas pessoas que se relacionam sejam elas do
mesmo sexo ou não, devem sentir algo físic~ uma pela out~a. O corpo,
na maioria dos relacionamentos, está de alguma forma envolvido.
Esse sentimento físico entre duas pessoas do mesmo sexo 1/

costuma ser caracte rizado como homossexualismo latente e desté livro, esse aspecto corporal do relacionamento entre pessoas
"patologizado" como algo que não deveria existir. do mesmo sexo tornou-se um tabu na maioria das culturas átuais,
Mas talvez se devesse definir a homossexualidade de outra sendo suprimido desde a infância e encarado como algo
forma. O indivíduo homossexual rejeita o desejo e a necessidade altamente repreensível. Os europeus do norte, especialmente;
de união com a polaridade humana (femi nino-masculino), não chegam a extremos em sua rejei
sendo capaz disso porque o outro, o elemento contra-sexual, lhe ção desse aspecto. Já entre os meridionais é mais comum e
causa medo e ele se sente inadequado por razões psicodinâmicas. aceitável que os homens se abracem e tenham contato físic'o.
Em decorrência, canaliza tudo o que deveria fluir em direção ao Durante o Romantismo era comuni os amigos an darem de mãos
sexo oposto nos sentimentos físicos e basicamente normais que dadas. Atualmente, entre nós suíços, por exemplo, o contato físico
tem por pessoas do mesmo sexo. Assim sendo, na maioria dos entre homens ditos normais só é possível sob a influência do
casos o homossexual reprimiu sua heterossexualidade. Parte de álcool.
sua energia psíquica heterossexual flui numa hom~ssexualidade que A análise usa o relacionamento para fins de terapia. Mas,
em essência sempre existiu. como o relacionamento intenso também constela sentimentos
E muito comum nos equivocarmos quando falamos de físicos entre dois homens ou duas .mulheres, analista e analisando
homossexualidade sublimada ou latente. Muitas vezes não se trata devem de certa forma estar fisica
desse fenômeno no sentido aqui adotado, mas simplesmente da mente "juntos" e experimentar as mesmas vibrações. Poucos
presença de um eros incondicionado muito forte. analistas são capazes de enfrentar esse aspecto.
Colocando a questão em termos mais concretos: dois hom.ens
que se gostam, ou duas mulheres amigas, não precIsam
necessariamente sentir o outro como fisicamente r~I?ulsivo. Não se
pode ser amigo de alguém se a presença flsIca dessa pessoa nos
causar repulsa. Deve-se ter pra
zer em comer com o amigo, caminhar a seu lado, sentir sua
respiração, ter em suma uma sensação de bem-estar em sua
companhia. O amigo deve sentir o aspecto físico do outro como
algo agradável. Talvez Sócrates estivesse em última análise se
referindo a essa sensação erótica,

67
pois dava sempre a entender praticamente não ter tido relações
homossexuais, mas sensações desse tipo. Por certas razões
históricas que escapam ao âmbito
analisa,ndo sonha que está acariciando e abraçando o analista.
Este provavelmente acha o sonho doloroso e repugnante e o
interpreta no plano objetivo como expres
são de homossexualismo latente. No plano subjetivo, o sonho
estaria dizendo que o paciente acaricia seu próprio fator
terapêutico interior (analista = fator terapêutico). Talvez, porém, o
sonho simplesmente expresse o desejo do analisando de se
aproximar do analista, tanto física como espiritual:tnente. O
analista está sendo solicitado a dar carinho ao paciente; o uso da
interpretação como recurso para evitar tal pedido não trará
benefício algum.
A rejeição do aspecto corporal pelo analisando e prin cipalmente
pelo analista acarreta sérias conseqüências. É como se uma parte
do sentimento erótico ficasse vagando no escuro. O
relacionamento entre ambos pode se trans formar em algo
marcado pelo ódio e pela rejeição. Talvez a análiseseja
interrompida ou tenha de atravessar grandes dificuldades para
, l' chegar a um desfecho, já que a relação passa a apoiar-se em
Tão logo sejam sentidas essas vibrações corporais, seja em suspeitas paranóicas de parte a parte. Em termos freudian,os,
fantasias ou sonhos, começa-se a falar de homossexualida de ambos teriam reprimido sua assim chamada homossexualidade e
latente e o assunto se torna doloroso para o analista. A agora se sentem ameaçados por ela, vendo no outro um
dimensão corporal de eros é posta de lado e destruída. Os perseguidor.
psicólogos junguianos, porém, procuram escapar desse Quando esses sentimentos físicos se constelam, o analista
envolvimento de eros não dando continuidade às declarações sério que aceita se expor ao perigo não tem esco lha: ele não deve
veladas ou explícitas do paciente no campo sexual, ou então rejeitar tais sentimentos, mas observá los e permitir que seu
interpretando-as de modo imediato num "nível mais elevado". paciente fantasie. Deve ao menos aceitar as fantasias do paciente,
Nesse caso, fazem referências à relação do paciente com o em vez de rotulá-las de pronto como patológicas ou desviá-las
masculino espiritual, com sua própria masculinidade criativa etc. mencionando seu significado simbólico profundo.
Um sonho homos sexual é instantaneamente interpretado como Em última análise, a psicoterapia é uma atividade eró tica. Mas a
"busca e tentativa de compreender a própria masculinidade". Tal sombra de charlatão do analista procura evitar as exigências de
como no caso do erotismo heterossexual, aqui também o analista eros; quando muito, essa sombra tem uma relação erótica consigo
tenta fugir dos fenômenos eróticos. mesma - mas n~o com o paciente.

68 69
111
Ele sente que estes são perigosos, arma-se de teorias e mais
teorias e corre em busca de proteção. Um exemplo: um o ANALISTA E A LISONJA
e se dá conta do que ocorreu. A segunda possibilidade é mais perigosa.
O analista poderá transformar suas observações desagra dáveis sobre o
paciente em adulação. Tal procedimento dá a impressão de ser uma
forma genuína de atingir o paciente e pode temporariamente satisfazer
a ambas as partes; com efeito, o paciente pode no momento se sentir
auxiliado em seu desenvolvimento psicológico devido ao aumento da
'. auto-estima. Mas, nesse processo, o analista acaba por prender cada vez
m,ais o paciente, tornando-se, aos olhos deste, alguém que percebe um
valor à primeira
A sombra de charlatão que leva o analista a evitar
as exigências interpessoais da análise costuma também manifestar-se 70
sob outro aspecto, igualmente inespera do. O analista tem muitas vezes
de dizer coisas pesadas ao paciente. É obrigado a revelar mecanismos vista inexistente. Eis aqui alguns exemplos: o "arquétipo da rainha" é
psicológicos explicado a uma mulher sequiosa de poder, sendo o aspecto dominador
do feminino interpretado como expressão de uma "natureza real". A falta
de coragem nas relações interpessoais e o medo ou mesmo a
incapacidade de amar são interpretados como uma "interessante intro
versão"; o paciente é chamado não de egoísta cruel, mas de altamente
introvertido. A falta de respeito pela mãe idosa é vista como liberação do
animus maternal. Em vez de procurar melhorar o tenso relacionamento
entre pai e filho, surge a conversa de que "o rei deve morrer", ou que é
preciso assassinar o pai primordial. Não se menciona o fato de que uma
análise cuidadosa pode muitas vezes transformar pais ameaçadores em
velhinhos cordiais cuj a ameaça desaparece à medida que o próprio
paciente se fortalece. úm jovem afeminado que conseguiu extorquir um
carro esporte de seu rico pai é elogiado por sua firmeza contra o velho,
sendo o carro encarado como símbolo de uma masculinidade
recém-adquirida.
(
,

É muito difícil para um analista abster-se de fazer de vez em quando


e armadilhas escondidas difíceis de mencionar e ainda mais de ouvir. elogios desse tipo. Afinal de contas, seu objetivo mais legítimo é
Entretanto, ambos serão capazes de car regar esse fardo se as coisas demonstrar ao paciente que este tem valor como ser humano, revelando
forem ditas num espírito de verdade e autenticidade. Nesse ponto os aspectos fasci
surgem dois perigos. O primeiro é que o analista pode usar a neces nantes da psique existentes por trás de todas as dificulda des neuróticas.
sidade de fazer observações dolorosas a fim de torturar o paciente e É justo que o paciente sinta que sua vida e sua alma têm tanto valor e
demonstrar seu próprio poder. Quando o faz, porém, o analista logo são tão interessantes como as de qualquer outra pessoa. No nível
percebe: ele tem uma sensação de culpa, faz uma auto-avaliação honesta puramente verbal, não há grande diferença entre ressaltar os genuínos
valores da psique do paciente por meio da lisonja ou da verdade e da
sinceridade. As menores nuanças são neste caso da maior importância.
Predominando a lisonja, o paciente tornar se-á um neurótico que glorifica
seus aspectos distorcidos, o que acaba sendo destrutivo tanto para ele
como para seu ambiente; e seu desenvolvimento psicológico, que se
baseia na veracidade, será gravemente prejudicado. Se

71
enveredar pelo caminho do elogio, é pouco provável que o analista
saia dele por obra do próprio paciente. Pelo contrário, em
situações desse tipo este ~m. geral tam bém começa a elogiar o
analista direta ou IndIretAam~nte. Essa lisonja mútua não é questão
de. transferencIa ou contratransferência; isso quer dizer,
sImplesmente, que um e outro se embalam, dão a aparência de
trabalhar
muito bem em conjunto e reciprocamente fortalecem ~~a
auto-estima - quando na verdade permitem que o serIO trabalho
de análise degenere num jogo charlatão. ~es.sa forma, o valor mais
profundo do desenvolvimento pSIqUICO é completamente traído.

72
·0 ABUSO DA BUSCA DE SENTIDO

o conceito de si-mesmo desempenha um papel central na


análise junguiana. Em certo sentido, o si-mesmo é um pólo
oposto ao ego. O ego diz respeito ao homem mundano, à posição
social e familiar, à saúde física e emocional. O si-mesmo, por
outro lado, costuma ser descrito como a "centelha divina" no passam a ser louvados como corajosa redenção em face do
homem. Em termos um tanto solenes, pode-se dizer que ele diz coletivo ou como independência emocional. O analista,
respeito aos valores eternos da psique humana. Ele não se assim procedendo, ajuda o paciente a encontrar um alívio
interessa por posição social, sucesso nos negócios e nas relações momentâneo para certos conflitos morais. O adúltero ou o
pessoais, vida longa etc., mas antes por aquilo que o Cristianismo amigo desleal já não se sentem mais culpados. O pa
denominou "Cristo em nós". Em termos cristãos, o ego costuma ciente fica feliz por ter-se livrado de um conflito moral de
ser caracterizado como "o mundo", e o si-mesmo como "a alma". maneira tão simples. Mas a longo prazo isso não lhe faz
A diferenciação entre si-mesmo e ego é de extrema importância; bem, pois seu alívio foi atingido à custa da veracidade. De
nenhuma análise poderá chegar a bom termo sem que essa sua parte, o analista sente-se feliz por ter encontrado um
diferença seja de algum modo experimenta da. É exatamente aí que jeito simples e rápido de promover a "cura". O char
se abre uma brecha para a som bra de charlatão. Amoral em vigor, latão nele o impele a evitar o longo e difícil caminho de
os conceitos de honra, lealdade, respeitabilidade, fidelidade uma cura genuína. Nesse caso, o que lhe interessa não é a
conjugal etc. são, sob vários aspectos, produtos do.ego do homem verdadeira cura do paciente, mas a preservação de sua
ocidental e não do si-mesmo. De um ponto de vista mais elevado, imagem de grande terapeuta.
há ocasiões em que o não-moral é que deve ser praticado~ Es- . sas Indiquei, páginas atrás, que tanto o analista como o
infrações da moralidade geralmente aceita vão desde inofensivas paciente costumam colocar-se por algum tempo na posição
"mentiras brancas" até o assassinato de um de feiticeiro e aprendiz. Até certo ponto, essa constela ção
pode mesmo ser necessária, sendo em alguns casos
73
dissolvida sem maiores dificuldades. Mas no decorrer da
semelhante. O indivíduo constantemente se confronta com
decisões que não podem ser tomadas dentro dos limites das
, 74
regras morais correntes e que requerem uma tomada análise o feiticeiro aparece de forma um tanto diversa e
pessoal de posição, implicando às vezes a violação das muito mais perigosa. Ele poderá amalgamar-se ao que
normas - o que pode levar a graves conflitos. num capítulo anterior chamei de falso profeta. O analista
Qualquer analista sabe disso. O si-mesmo pode fazer enredado na sombra de falso profeta e feiticeiro passa a
suas próprias exigências em relação ao ego. lVÍas esse fato mitigar as necessidades religiosas do paciente com um
costuma ser utilizado para justificar, com o auxílio do simulacro de conhecimento transcendental. Mediante essa
analista, certos comportamentos simplesmente imorais, atitude, ele vê um sentido demonstrável em todos os
indelicados ou agressivos por parte do paciente. O adul acontecimentos. Um analista junguiano desse tipo, por'
tério, por exemplo, pode ser interpretado não como um exemplo, poderá demonstrar em tudo o trabalho do
grave insulto e um ataque contra o cônjuge, mas como uma inconsciente. Cada sonho, cada evento ou acaso, cada
liberação das normas coletivas em nome de si-mesmo e sob aflição ou sofrimento, cada alegria, cada golpe de sorte é
a bandeira da auto-realização. O comportamento injusto e entendido significativamente em termos do inconsciente.
desleal para com amigos, conhecidos, emprega Como um pequeno deus, o analista vê tudo claro e é capaz
dôs ou superiores e a rejeição da moralidade e da virtude de associar qualquer evento a uma coisa ou outra. A mão
negra das Moiras, as Parcas, às quais até os deuses (isto é, o sombra e também estar preparado para admitir nossos erros nesse
inconsciente) estão sujeitos, já não é mais reconhe cida; já sentido, não necessariamente em todos os casos, mas sem dúvida em
não há mais nenhuma tragédia, nenhum horror princípio. As resistências destrutivas do paciente se
incompreensível. Os homens só caem em desgraça porque
perderam o contato com o inconsciente ou porque não se
conhecem plenamente. E no fi
Ill esses analistas chegam até
mesmo a simular a seus pacientes, que podem ver por trás
do pano o que ocorre no mundo.
A escola teórica a que pertence o analista não faz riesse
caso a menor diferença. Qualquer analista, com base em sua
teoria particular, pode fingir a si mesmo e a seu paciente
que é capaz de penetrar no sentido de qualquer fenômeno.
De modo mágico, artístico e profético, ele pro
cura ligar tudo às forças básicas que acredita governarem a
vida psíquica. Esse procedimento dá ao paciente uma
r ~.

momentânea sensação de segurança e ao analista o prazer


ligam a nossos próprios problemas de sombra e um não pode realmente
de sentir-se um mágico onisciente.
ser apreendido sem o outro. Por exemplo, devemos estar dispostos a
A sombra de charlatão' do analista aparece também
dizer: "aqui caímos ambos em
sob outros disfarces. Vários livros poderiam ser escritos
para descrevê-los. Procurei apenas indicar alguns poucos
exemplos concretos. Mas é igualmente importante per

75
ceber como essa sombra de charlatão costuma vir à tona
simultaneamente ou em conjunção a certas tendências destrutivas do
paciente. diante da terapia. Esses dois

./

fenômenos se estimulam ou se fortalecem mutuamente. Por essa


razão, o analista não pode detectar a sombra resistente do paciente é
sua destrutividade pára com a terapia se não estiver sempre consciente
de sua própria sombra. Isso se liga à observação feita no capítulo "Psi
coterapeuta: charlatão e falso profeta" com respeito à ne cessidade de
,1,
honestidade por parte do analista para com o paciente. Em princípio,
devemos evitar desempenhar o papel de alguém que nunca cai na nossas tendências destrutivas. Tentei elogiá-lo e você tentou aumentar
seus complexos neuróticos para parecer um neurótico interessante".
Sombra no analista constela sombra no paciente.
Nossa própria honestidade ajuda-o a confrontar seus fenômenos
sombrios. Cada um de nós deve trabalhar em ambas as áreas.
Até este ponto, tratei com algum detalhe dos proble
mas do psicoterapeuta. No capítulo "Serviço social e ln.,. quisição"
descrevi algumas das dificuldades encontradas pelo assistente social.
Para expandir nossa compreensão dos aspectos sombrios dessas duas
atividades, talvez seja necessário penetrar mais profundamente
naquilo que compele os membros dessas profissões de ajuda a fazerem
o tipo de trabalho que fazem. O que leva o psicoterapeuta a procurar
ajudar as pessoas com dificuldades emocionais? O que incita o
psiquiatra a tratar de doentes mentais? Por , i 1
I.

76
que se preocupa o assistente social com os desajustados? O que é que 77
compele certas pessoas a quererem ajudar os doentes, os que sofrem, os ·
infelizes, os marginalizados?
Para compreender essas questões devemos inicial mente examinar a o MÉDICO TODO-PODEROSO
situação do médico - imagem primor dial daquele que ajuda e cura. E O PAClENTE PUERIL
Talvez uma visão do aspecto sombrio do médico e de seu modelo básico
de pessoa que ajuda/cura, seja ele psiquiatra, psicoterapeuta, analista ou
assistente social, derive em última análise da medicina clássica. À
medida que um assistente social funcione ape nas como doador de
esmolas, sua atividade tem pouco a ver com a imagem médica básica.
Mas pode-se dizer que o serviço social moderno se inclina em direção ao
modelo médico. Um assistente social não se apresenta para fazer
caridade, mas para ajudar a sanar uma situação social. E o profissional
moderno procura - às vezes com demasiado ardor - extrair da pSicologia No começo deste livro abordamos o problema do poder
um tipo de conhecimento capaz de ajudá-lo em seu trabalho com o no serviço social. O obscuro fenômeno do desejo de poder é
marginalizado. O trabalho de caso, atualmente, chega perto de uma psi uma coisa óbvia para os que trabalham nessa área. Mas o
cotera pia, sim plificada. problema se apresenta igualmente com a mesma intensi
dade no campo médico.
A medicina fez grandes progressos no século passa do.
Sua capacidade de abrandar o sofrimento e prevenir a doença
aumentou bastante. Muitos males infecciosos, como, por
exemplo, a peste, foram praticamente elimi nados. O uso das
vacinas conteve por completo a varíola epidêmica ou ser médicos "puros", mais cientistas do que sacerdotes.
endêmica. A tuberculose já se encontra parcialmente sob Mesmo nos períodos históricos em que os recursos da
controle. O progresso técnico na cirurgia tornou possível as medicina eram bastante limitados e os médicos já esta vam
mais extraordinárias operações para salvar ou prolongar a claramente separados da religião, estes eram quase tão
vida - e hoje já se pode enxertar braços ou substituir respeitados e temidos quanto os atuais. Parece que médicos e
corações. O antigo flagelo da febre puerperal, que vitimou sacerdotes sempre tiveram poder equivalente. Mas não estará
tantas jovens, é hoje uma rari dade. Na imaginação, pelo então o poder do médico e da medicina em geral mais ligado
menos, vemos a medicina se expandir até um remoto ao poder psicológico do que àquele baseado no conhecimento
horizonte. Seus instrumentos e sua infra-estrutura são hoje de científico?
tal ordem que se tornou lugar-comum imaginar o médico Seria interessante abordar esse tema a partir de um
moderno como alguém dotado de enorme poder, tanto em prisma psicológico. As pessoas com saúde podem viver uma
sentido positivo como negativo. vida independente, digna e respeitável. Um corpo saudável
A etnologia nos tem fornecido descrições precisas do permite ao indivíduo cuidar de seus interesses de modo livre
médico arcaico, ou curandeiro, poderosa figura que não e autônomo, dado que as circunstâncias exteriores sejam
:'.
1~ , favoráveis. Mas tudo muda quando a doença entra em casa.
O homem sadio se torna então uni paciente, o adulto se
1 1.';!.
1\ :;
transforma em criança. O indivíduo até então digno e
saudável é subitamente dominado pelo
78
79
hesitava em lançar mão dos recursos que lhe parecessem medo, torturado pela dor e ameaçado pela morte. Uma estranha
necessários para manter o poder. Este, bem como o desejo de forma de regressão se manifesta. O paciente já não é mais senhor
tê-lo, ligava-se ao fato de que não se tratava meramente de de seu corpo, mas sua vítima. A psi que, também, parece
um médico, mas de um sacerdote em contato direto com as transformar-se sob a influência da doença física. As mulheres que
forças superiores. Quem se interessa pela História sabe muito passaram pela experiência de cuidar de maridos temporariamente
bem que nas situações em que se aceita o contato direto de enfermos podem relatar inúmeros exemplos dessa mudança. O
alguns com os deuses há sempre o perigo de o poder ser homem forte, protetor do lar e senhor da casa, torna-se uma
usado para fins escusos. criança a pedir com voz chorosa seu suco de laranja. Os médicos e
Os médicos da Grécia Antiga também eram sacerdo tes - os enfermeiros observam amesma regressão em pacientes
mas de Asclépio, deus da cura, que, com o passar do tempo, hospitalizados - adultos se tornando infantis, com uma confiança
foi reduzido a mero santo padroeiro. Os médicos árabes e cega no especialista ao lado de uma recalcitrância igualmente
judeus da Idade Média seguiram um caminho diverso do pueril.
sacerdócio e se aproximam bastante de seu similar Em situações desse tipo, o médico se torna a grande fonte de
contemporâneo. Os médicos da Europa medieval sofreram a ajuda e, esperança. Temido, respeitado, odiado e ad.mirado, às
influência da alquimia, colocando-se assim novamente em vezes chega a parecer um redentor divino. O médico pode curar,
contato com o sobrenatural. Já os da Re nascença voltaram a pode aplacar a dor e tornar supor
tável' a experiência da morte. Sem ele, o paciente está perdido. Não estará o poder de alguma forma dissimulado no
É claro que o médico sabe, em termos puramente arquétipo de terapeuta-paciente? Antes de procurar uma resposta a
intelectuais, que seus pacientes são pessoas como ele. Mas, para essa questão, devemos esboçar rapidamente os .. vários sentidos que
ser honesto, ele deve sempre admitir a impos sibilidade de evitar a palavra "poder" pode assumir.
uma atitude negativa diante de seus pacientes. Especialmente para Num relacionamento humano um sujeito confronta outro. Cada um
um médico de hospital, os pacientes costumam reduzir-se à se relaciona com o outro como sujeito. Num relacionamento em que
condição de criaturas pobres e infelizes, sem nenhum status ou o poder seja o fator dominan te, um tenta transformar o outro em
dignidade, uma classe virtualmente distinta de pessoas - objeto, sujeitando-se· este ao primeiro. Isto é, o objeto passa a ser
insensatas, não tomam seus remédios, fazem coisas prejudiciais a manipulado pelo sujeito segundo seus próprios interesses. Esse tipo
si mes mas, às vezes obedecem e outras não - exatamente como as de situação acentua a noção que o' sujeito tem de sua própria
crianças. Estabelece-se assim uma polaridade entre o paciente em importância e isenta o objeto de qualquer respon sabilidade. Aí
regressão, infantil e temeroso, de um lado, e, de outro, o médico temos um tipo de poder. Outra variedade é a "autodeificação". Só
superior e orgulhoso, distanciado, mas talvez ainda friamente Deus, ou os deuses, tem o direito de dominar os homens. Um ser
cortês. humano possuído por

81
80 um "complexo de deus" tenta, como um deus, dominar os outros.
Esse tipo de poder tem uma qualidade numinosa e é
o ARQUÉTIPO extremamente perigoso tantõ para o dominador quanto para o
DE "TERAPEUTA-PACIENTE" dominado. Os César~s, Napoleão e Hitler são exemplos dessa
E O PODER autodeificação. E esse o tipo de poder que Jacob Burckhardt
descreve como sendo mau em si.
O moderno culto que envolve o médico é, ao menos em
parte, uma expressão desse poder. Ao usar o termo culto, quero
dizer a veneração pública e o prestígio social usufruídos pelo
médico como alguém que "tem nas mãos a vida e a morte, a
doença e a saúde". Tal fato é expresso nos romances sobre
médicos, em biografias como a de San Michele, em filmes
O relacionamento entre terapeuta e paciente é tão populares e seriados de televisão.
fundamental quantc: aquele entre homem e mulher, pai e filho, Esse culto e o poder que os médicos podem exercer em
mãe e filho. E um relacionamento arquetípico, no sentido em que hospitais estão interligados e se reforçam mutuamen te. ~O
C. G. Jung usou a expressão, ou seja, é uma forma inerente e médico-chefe ditatorial, cujos estados de espírito tanto aterrorizam
potencial de comportamento humano. Em citações arquetípicas, o os pacientes, diante de cujos resmun gos tremem enfermeiros e
indivíduo percebe as coisas e atua em conformidade com um residentes, é uma figura bem conhecida. Os pacientes não ousam
esquema básico que lhe é inerente, mas que em princípio é o fazer perguntas, com medo de ser tratados bruscamente. No
mesmo para todos os homens. entanto, muitos enfermeiros, estudantes e pacientes admiram
essas demonstrações de poder e respeitam o grande e poderoso destrutivos desse tipo. Não estaremos porventura tratando aqui de
líder quando este, tal como um semideus, atra vessa os corredores uma espécie de autodeificação, na qual um complexo de deus é
do hospital seguido por um séquito de assistentes. ativado no médico? Essa seria uma possibilidade; mas, uma vez
Mas há algo de errado aqui. Parece que minha pro sa está sendo mais, a mesquinharia e o mau gosto do fenômeno não parecem
invadida por um toque vulgar. As memórias, os romances médicos conduzir a essa suposição. Tentar tornar-se como Deus é uma
e os filmes de televisão sobre a vida hospitalar são em geral grande transgressão, mas sem nada de mesquinho. Não obstante,
sentimentais, de mau gosto e sem nenhum valor artístico. Há algo a mesquinhez associada ao poder do médico não pode ser mera
de impressionante num político que exerce seu poder, num líder questão de acaso. Os vários tipos de poder que descrevi não
sindical capaz de paralisar toda uma indústria com uma só parecem se aplicar ao problema aqui examinado.
palavra, num executivo cujas decisões afetam a vida de milhares
de pessoas, num general.de quem podem depender a vida e a
morte de batalhões inteiros. Mas um médico que abusa
83
82 A CISÃO DO ARQUÉTIPO
de sua posição para exercer poder lembra antes um ri dículo
tirano, inflado, pequeno e moralmente deplorável. Deixa os
pacientes esperando horas enquanto bate papo com as
enfermeiras, fornece-lhes o mínimo de informações sobre sua
condição e baixa ordens sem maiores explica ções. Atravessa as
alas do hospital como um potentado do Oriente inspecionando
seus escravos indefesos. Tudo isso
parece mesquinho, sem nada de muito edificante. Aqui surge a
questão da natureza do poder do mé dico. Saúde e enfermidade, A literatura psicológica tem tratado de uma grande variedade
terapeuta e doente, médico e paciente são todos motivos de aspectos do arquétipo. Um deles, porém, parece ter sido
arquetípicos. Será que o poder faz parte do arquétipo relativamente ignorado. Para evitar mal entendidos, tentarei
terapeuta-paciente, como ocorre com o de rei-súdito? Se fosse esse novamente examinar a natureza do arquétipo, desta vez em
o caso, não haveria nada de mesquinho ou mau no exercício de tal termos distintos dos até aqui usados.
poder. Um arquétipo é um fator primordial, uma realidade O arquétipo pode ser definido como uma potencia lidade inata
fundamental, e como tal não pode ser mesquinho por natureza. Ou de comportamento. O ser humano reage arquetipicamente a
será que o tipo de poder acima descrito no relacionamento entre pa alguém ou a algo quando se defronta com uma situação típica e
ciente e médico é exclusivamente negativo e destrutivo, ou seja, recorrente. A mãe e o pai reagem arquetipicamente ao filho ou
uma tentativa de transformar um indivíduo em obje to e de filha, o homem rea ge arquetipicamente à mulher etc. Nesse
degradar a humanidade do outro no relacionamen7' to? Não parece
sentido, certos arquétipos têm dois pólos,. por assim dizer. Sua
sustentável supor que nós médicos sejamos a tal ponto guiados por
situação básica contém uma polaridade.
forças destrutivas. Escolhemos nossa profissão para poder curar; Não sabemos, é claro, o modo preciso como se ori ginou o
seria difícil supor que no fundo o que nos move são impulsos
comportamento arquetípico. Talvez um dos pólos do arquétipo se tinha feridas incuráveis. Na Babi
localizasse originalmente no indivíduo e o outro fora dele, em seu lônia havia uma divindade canina com dois nomes: Gula, morte, e
semelhante. Mas, na psicologia humana que conhecemos, ambos Labartu, cura. Na índia, Kali é a deusa da varíola e ao mesmo
os pólos estão contidos no mesmo indivíduo. Nascemos todos com tempo é quem a cura. A imagem mitológica do terapeuta ferido é
ambos os pólos dentro de nós. Se um pólo se constela no mundo bastante difundida. Psicologicamente,
exterior, o outro, oposto e interior, também se constela.
A criança desperta na mãe o comportamento ma ternal. Há, 85
na psique de cada mulher, a potencialidade

84 isso significa não só que o paciente tem um médico dentro dele, mas
inata desse tipo de comportamento na situação mãe-filho, o que também que há um paciente no médico.
misteriosamente deve significar que o filho já está contido dentro Iniciamos este capítulo com o problema do poder.
da mãe, um pouco no sentido da frase de Goethe: "Se nosso olho Vejamos se o conceito de cisão do arquétipo pode es clarecer melhor
não contivesse o poder do sol, como poderia percebê-lo?" Talvez essa questão. Não é fácil, para, a psique humana, suportar a tensão das
não devêssemos falar de um arquétipo materno, paterno ou do polaridades. O ego ama a clareza e tenta sempre erradicar a
filho, mas de um arquétipo mãe-filho ou pai-filho. ambivalência in terior. Essa necessidade de situações inequívocas pode
Levando adiante essa linha de raciocínio, eu sugeriria que não acarretar uma cisão dos pólos arquetípicos. Um pólo po derá ser
há um arquétipo especial de terapeuta ou pa ciente. Ambos são reprimido e continuar operando no inconsciente, possivelmente
aspectos da mesma coisa. Quando uma pessoa fica doente, o causando distúrbios psíquicos. A parte reprimida do arquétipo poderá
arquétipo de terapeuta-paciente se constela. O enfermo procura ser projetada sobre o mundo exterior. O paciente, por exemplo, talvez
um terapeuta exterior, mas ao mesmo tempo se constela o projete seu terapeuta interior sobre o médico que o trata e este poderá
terapeuta intrapsíquico. Costumamos nos referir a este, no projetar suas próprias feridas sobre o paciente. Essa projeção de um
paciente, como "fator de cura". É o médico dentro do próprio pólo do arquétipo sobre o mundo exterior poderá proporcionar uma
paciente - e sua ação terapêutica é tão importante quanto a do satisfação momentâ nea. Mas, a longo prazo, indica que o processo
profissio nal que entra em cena externamente. As feridas não se psíquico está bloqueado. Numa situação desse tipo, o paciente, por
fecham nem as doenças se vão sem a ação curativa do terapeuta exemplo, poderá deixar de se preocupar com sua própria cura,
interior. Costuma-se dizer que um paciente "não quer ficar bom". esperando que o médico, os enfermeiros e o hospital lhe tragam a
Mas como esse não-querer-sarar não se refere à vontade do ego, recuperação, ao mesmo tempo que abre mão de qualquer
seria mais apropriado dizer: "Seu terapeuta interior parece fraco". responsabilidade. Consciente e inconscientemente, começa a
Muitas doenças requerem os serviços de um médico externo. depender completa mente do, médico para melhorar, colocando nas
Mas este não será suficiente sem o auxílio do terapeuta interior. O mãos deste seu próprio fator curativo e deixando o barco correr.
médico pode fechar o corte - mas algo no corpo e na psique do Esse tipo de paciente poderá ou não cumprir as ordens do médico,
paciente deve cooperar para que a enfermidade seja vencida. tomar seus remédios ou jogá-los na pia. Os ambulatórios estão
Não é difícil imaginar o fator curativo no paciente. Mas e o repletos de pacientes assim - sempre sofrendo de algo e sem
médico? Defrontamo-nos aqui com o arquétipo do "terapeuta demonstrar o menor sinal de um desejo de saúde, ou do que
ferido". Quíron, o centauro que ensinou a Asclépio a arte da cura, poderíamos denominar consciência de saúde. Seguem as sugestões
do médico ou se rebelam contra elas, como crianças de escola para
quem só o professor deve ser ativo no processo 'j
de aprendizado.
j
j
I
86

No médico, a repressão de um pólo do arquétipo leva à


situação contrária, fazendo-o crer que fraqueza, doença e
ferida são coisas que nada têm a ver consigo. Sente que é o
terapeuta forte; que as feridas só existem no paciente e que
ele próprio está protegido; que as pobres criaturas
conhecidas como pacientes vivem num mundo
completamente distinto do seu. Ao se tornar um médico
livre de ferimentos, já não pode constelar o fator de cura em
seus pacientes. Torna-se exclusivamente o médico - e assim
seus pacientes são exclusivamente pacientes. Já não é mais
o médico ferido que confronta os doentes e neles constela o
fator curativo interior. A situação fica absolutamente clara:
87
de um lado está o médico, forte e saudável, e de outro o
paciente, fraco e enfermo.
o FECHAlVIENTO DA CISÃO POR
:MEIO DO PODER

Há um tipo de médico que escolhe sua profissão devido a


uma profunda necessidade interior. Mesmo reprimindo um
pólo do arquétipo, projetando a doença completamente sobre o
paciente e identificando-se ex
clusivamente com o pólo da saúde, ele não consegue se desfazer e dominadora e filha dependente e fraca. O desejo de poder e o
por completo desses aspectos. Os pacientes, as doenças e as estado de sujeição expressam uma tentativa de reunificar o
feridas não o deixam em paz; quer queira, quer não, isso tudo lhe arquétipo cindido.
pertence. Um arquétipo cindido procura sempre recuperar sua Assim, o médico tenta reunir o arquétipo cindido mediante o
polaridade original. poder e o paciente por meio do reconhecimen to desse mesmo
A reunificação com o aspecto "ausente" da pola ridade pode poder, de sua sujeição ou dependência infantil. Essa manifestação
ocorrer por intermédio do poder. O médico pode transformar seu do poder tem também seu lado psicologicamente positivo, pois o
paciente num objeto de seu impulso de poder. Agora fica claro por médico pelo menos tenta reunir os dois pólos do arquétipo. O
que o poder exercido pelo médico causa uma impressão tão médico tirânico e mesquinho, a seu modo, se confronta com o
mesquinha e vil, visto que resulta de certa incapacidade problema fundamental da medicina. Nesse sentido, ele é melhor
psicológica e moral por parte tanto do médico quanto do paciente. que o terapeuta jovial que nem ao menos se preocupa em
O médico já não é mais capaz de ver suas próprias feridas, seu dominar seus pacientes. Esse tipo animado e descontraído ou
próprio potencial de doença; só vê doença no outro. Ao objetivar a reprimiu um pólo do arquétipo a tal ponto quejá nem pode
doença, ele distancia-se de sua própria fr~queza, eleva-se e projetá-lo, ou então nunca de fato se preocupou com o problema
degrada o paciente. Seu poder provém antes de uma básico do médico, tendo sido sua escolha de profissão meramente
incapacidade psicológica do que da força propriamente dita. Um superficial.
pólo do arquétipo é reprimido, projetad~ e fi nalmente reunido por Apesar desse aspecto positivo, no entanto, as conse qüências p.a
meio do poder. O paciente poderá fazer exatamente o mesmo, cisão do arquétipo do médico ferido são em vários sentidos
só que ao reverso. extremamente danosas tanto para o pa
88 89
ciente como para o médico. O doente se torna um eterno
paciente; seu fator interno de cura já não é mais ativado. O
Neste ponto, podemos nos perguntar se há outros casos em
médico se torna um indivíduo de visão limitada, que se julga
que a polaridade cindida de um arquétipo seja igualmente
muito importante, sem nenhuma percepção de seu próprio
reunificada através do poder. Não sei se isso ocorre com todos os
desenvolvimento psicológico. Sua capacidade de cGmstelar o
arquétipos, mas parece tratar-se de um fenômeno bastante
fator curativo em seus pacientes diminui sensivelmente e ele
freqüente. Por exemplo, quando o arquétipo mãe-filha se divide, o
problema do poder co já nem acredita mais que sua função básica consiste em
meça a exercer um papel dominante no relacionamento entre possibilitar a atuação desse fator no paciente. Nesse sentido,
ambas. Em termos práticos, isso quer dizer que a mãe torna-se
uma grande distância o separa do antigo médico grego, o
qual sustentava que só o divi
exclusivamente mãe, esquecendo que tem uma filha dentro de si,
algo de "filial" nela própria. em vez disso, procura ser a mãe )
perfeita, sem fraquezas. Num caso desses a filha se torna uma no terapeuta pode auxiliar, cabendo ao médico humano
filha total, impotente e completamente dependente da mãe forte, meramente facilitar sua aparição.
que a domina por completo. Nada de "maternal" se const'ela na II

filha ou de filial na mãe. O relacionamento se dá entre mãe forte f' Seria bom esclarecer neste ponto um possível equí
voco. Quando falo em terapeuta ferido, não me refiro ao todos os seus sintomas; encontram pacientes com câncer e
médico que se identifica com um paciente específico. Isso começam a desconfiar que também sofrem desse mal. Esse
seria mer~ sentimentalismo e constituiria apenas uma fenômeno psicológico costuma ser encarado como neurose.
reunificação externa dos pólos do arquétipo. Tal identifica Os médicos mais velhos riem-se de seus apavorados alunos,
ção é antes sinal de fraqueza do ego, um método histérico de lembram ter passado por essa fase e não dão maior
unir os opostos. importância ao fato. Mas essa assim cha
A imagem do terapeuta ferido simboliza uma aguda e mada fase ?eurótica pode ser um ponto crítico para o
dolorosa consciência da doença como contrapartida da saúde estudante. E nesse momento que ele começa a compreen der
do médico, uma certeza duradoura e penosa quan to à que todos esses males existem nele próprio. É assim que ele
degeneração final do seu próprio corpo e da própria mente. se torna o "terapeuta ferido". Pode ocorrer, porém, que a
Esse tipo de experiência faz do médico mais um irmão do carga se torne pesada demais e o pólo da doença venha a ser
que um mestre do paciente. Todos temos dentro de nós o reprimido. Mas, se for capaz de experimentar a doença como
arquétipo de doença...,saúde, mas sobre o médico com uma possibilidade existencial nele próprio e de integrá-la, o
genuína vocação este exerce um fascínio especial. Não é por estudante transformar-se-á num verda deiro "terapeuta
outra razão que escolheu sua profissão. O médico médio não
entra na carreira tendo em vista um modo fácil de conquistar ferido".
poder e, talvez, ao mesmo tempo auxiliar a humanidade. Gostaria uma vez mais de lembrar que não se deve
Costuma-se acusar os médicos de e'sta rem mais interessados concluir que o po~er exercido na medicina seja completa
na doença do que na cura. Isso é apenas meia verdade. Eles mente negativo. E verdade que quanto maior o grau em que
se interessam pelo arquétipo de doença-saúde e desejam se apresentar, menor a chance de que entre em cena o
conhecê-lo por intermédio da experiência. Ij)evido a uma verdadeiro terapeuta. Mas repito que é melhor o médico
grande variedade de razões tentar reunir o arquétipo cindido por intermédio do poder do
que igno,rar por completo o pólo separado.
90
Consideremos agora, brevemente, o médico de hoje. A
II
i medicina moderna é altamente técnica e especializa da.
Nossa fantasia sobre o velho médico do interior, que
psicológicas, os homens e as mulheres que escolhem a
carreira médica sentem-se atraídos pelo arquétipo de 91
terapeuta-paciente. Mas, infelizmente, nem todos os que a co~hece intim~mente toda
a família do paciente, poderá servir como
escolhem são suficientemente fortes para experimentar de uma instância do arquétipo não-cindido de ter'apeuta-paciente,
modo contínuo os dois extremos da polaridade. Ele não tinha poder algum, mas à sua chegada já baixava a
Para tornar mais concreto o que acabamos de dizer, febre das crianças, Malvestido e de aparência modesta,
consideremos os estudantes de medicina. Durante seus anos costumava ter um fraco pela bebida - procurando no álcool um
de formação, é comum vê-los atravessar uma fase durante a meio de evitar a tremenda e inevitável tensão de viver em
qual acreditam sofrer detodas as doenças que estão permanente contato com ambos os pólos do arquétipo. Mas não
estudando. Ouvem falar de tuberculose e descobrem em si tinha manias de grandeza - para nós, ele é a imagem de um bom
"tera peuta ferido". pólos. Todos podem ser terapeutas feridos ou tiranos mesquinhos. O
As pessoas de temperamento mais conservador pode aspecto que se impõe não depende de ser o profissional um médico de
rão acreditar que o médico moderno talvez já não possa mais família do século XIX ou um diretor de hospital altamente
experimentar o arquétipo inteiro. À primeira vista, ele parece um técnico especializado. A cisão do arquétipo é um evento
especializado inserido na produção hospitalar em série. Pode parecer que
o velho médico é 92
interior, que depende menos da situação externa do que do próprio
desenvolvimento psicológico e da capacidade do médico em questão.
Para esclarecer ainda mais o que estou tentando dizer, gostaria de
mencionar uma imagem adicional, embora consciente de sua eventual
impertinência: a imagem de Cristo. Jesus Cristo é uma realidade
histórica e religiosa e portanto só com a maior reserva 'pode ser
concebido como símbolo psicológico. Mas quem melhor do que ele
expressa o "terapeuta ferido"? Ele curava não só as doenças da psique,
mas também os males existenciais do pecado e da morte.
Cristo foi ferido e carregou os pecados do homem. Veio para salvar o
mundo da morte e do pecado e rio entanto carregou-os todos e teve de
morrer. Sempre recusou ser vir-se do poder, reconhecendo apenas o de
.: :.
Deus, seu pai. Ele é, assim, o terapeuta ferido no mais elevado sentido .
q1:ie era o "terapeuta ferido" por excelência, enquanto o especialista Em comparação, o médico não passa de um anão que se precipita na
moderno e tecnificado tende a repelir um luta entre vida e morte, doença e saúde. E que só poderá trabalhar
.. ",
criativamente se tiver em mente que, a despeito de todo o seu
pólo do arquétipo. Ocorre, porém, que o arquétipo opera conhecimento e de sua técnica, em última análise deve sempre procurar
1 .'.

constelar o fator de cura no paciente. E este só pode ser ativado quando o


de muitas formas. É feito tanto de realidade interior como exterior. O
médico contém em si a doença como possibilidade exis
curandeiro no meio da selva tinha seus próprios métodos, muito
tencial. Ele se torna menos efetivo quando tenta unir os dois pólos do
diferentes daqueles usados pelo médico bem-formad'o da Grécia
arquétipo por meio de um poder mesquinho - mas, ainda assim, isso é
antiga. O da Idade Mé xar de compreender essa cisão do
dia, por sua vez, ministrando poções árabes, trabalhava de modo melhor do que ignorar ou dei
inteiramente distinto do médiqo de família no século XIX, a visitar arquétipo.
seus clientes de charrete. Durante as duas guerras mundiais, os
,
cirurgiões tinham sua maneira peculiar de viver o arquétipo, assim
como o especifllista
':!
altamente preparado da Clínica Mayo possui seu modo particular de
operar. Mas qualquer um desses, não im porta quão divergentes suas
técnicas e métodos, ou vive o arquétipo inteiro ou reprime um de seus
caracteriza a medicina, visto ser sua preocupação central não a
doença e a saúde, mas sim a "alma". Seu alvo primordial não seria
recuperar a saúde do doente, pois sua responsabilidade diria
respeito antes

94
à "salvação" da psique. Essa posição argumenta que, assim como
93 o ego e o si-mesmo às vezes se opõem e não visam aos mesmos
MÉDICO, PSICOTERAPEUTA, objetivos, da mesma forma a saúde em geral e a "salvação da
ASSISTENTE SOCIAL E PROFESSOR alma" nem sempre são idênticas. O terapeuta com orientação
médica procura apenas auxiliar o paciente a atingir um estado de
saúde, enquanto aquele psicologicamente orientado visa
promover o dinamismo da psique em direção ao si-mesmo e ao
encontro de um sentido.
Essa posição me parece questionável. Todos devem buscar o
assim chamado sentido da vida, podendo ser auxiliados por quem
quer que seja. Esta não é uma área para atuação exclusiva de
especialistas. Os que se sentem feridos ou sofrem de dificuldades
Procurei, no capítulo precedente, examinar o pro blema emocionais pedem ajuda, desejando alcançar uma cura que lhes
arquetípico da medicina como profissão. O modelo básico desta permita continuar a se desenvolver segundo suas próprias
é importante também para certas profissões não-médicas que potencialidades. Há pessoas tão fascinadas pela eterna luta entre
igualmente visam promover o desen volvimento humano. Algumas doença e saúde que se sentem convocadas a tomar parte na
se afastaram da medicina sem perder por completo seus traços de batalha, em vez de meramente evitá-la ao sofrer passivamente
origem, enquanto outras têm se voltado cada vez mais para o seus efeitos.
modelo médi co, mesmo se no passado não tiveram muito contato Assim como o médico, o psicoterapeuta e o analista, o
com ele. Recentemente, o potencial de cura apresentado pelo assistente social também tem um objetivo terapêutico,
trabalho psicoterapêutico e analítico tem levado a certos sentindo-se compelido a melhorar e sanar condições sociais
equívocos. Alguns profissionais dessa área sustentam que "patológicas". Assim, apesar de não possuir nem di
somente os médicos deveriam poder trabalhar como ploma nem formação em medicina, o assistente social, até certo
psicoterapeutas. Em outros termos, é como dizer que somente ponto, compartilha o mesmo de'stino do médico. O problema da
aqueles afetados pelo arquétipo do "terapeuta ferido" poderiam ser cisão do arquétipo aparece em todas essas profissões - seja a
psicoterapeutas. Quando os médi cos não conseguem aceitar o fato polaridade enfermidade-saú de, consciência-inconsciência,
de que sua atitude básica possa igualmente ser encontrada em norm,alidade-patologia social. O médico pomposo, mesquinho e
pessoas não formadas em medicina, os psicoterapeutas não-médi ávido de poder, o psicoterapeuta falso profeta e charlatão e o
cos e os analistas com~çam a se defender. Uma posição corrente é a assistente social inquisidor estão todos inter-relacionados em seu
de que estes deveriam apoiar-se num modelo distinto daquele que complexo arquetípico. Basicamente, todos sentem o mesmo
fascínio pelo arquétipo de "terapeuta-paciente"; todos sofrem os verdade. Num contato mais íntimo
efeitos dos dois pólos do arquétipo; todos

95
podem funcionar como "terapeuta ferido", ou reprimir uma d.as
polaridades, projetá-la e assim entregar-se ao desejo de poder.
O problema da cisão do arquétipo aparece igualmente em
outro campo de atividade que também se inclui entre as
profissões relacionadas ao desenvolvimento humano. Refiro-me
aqui ao magistério. A confrontação entre pro
fessor e aluno apresenta um paralelismo à tensão interior
existente entre os estágios de adulto bem-pensante e criança
ignorante. Dentro do adulto há uma criança que o impele sempre
para o novo. O conhecimento do adulto torna-o rígido e fechado
com respeito à inovação. Para permanecer emocionalmente vivo,
o adulto deve conservar e cultivar o potencial de vida
representado pela ingênua abertura e pela irracionalidade das
experiências da crian

i?,

e prolongado, acaba-se reconhecendo certo grau de infan tilidade


no seu comportamento. Afinal de, contas, deve haver algo na
infantilidade que os atrai; caso contrário, como suportariam
trabalhar o tempo todo com crianças? Um professor dinâmico
deve ter em si certa infantilid~de dinâmica, da mesma forma que o
médico deve ter um relacionamento vital com o pólo da doença.
Freqüentemente deparamos com professo:r;es que parecem
ter perdido todos os traços de infantilidade, possuindo aintla
menos traços infantis do que o adulto normal médio. Estes se
tornaram "professores e nada mais" e confrontam crianças
ignorantes quase como ini
':l

ça q'tle ainda não sabe nada: O adulto, portanto, nunca pára de migos. Queixam-se de que estas não sabem nada e não têm
crescer; para de alguma forma manter a saúde psíquica, é preciso vontade de aprender; seus nervos ficam à flor da pele
conservar certa ignorância infantil. 96
A opinião pública costuma encarar os professores como sendo
com a infantilidade e a falta de autocontrole dos alunos. Para esse
infantis e irrealistas - o que não é comple tamente destituído de tipo de professor as crianças são o Outro, aquilo que ele próprio
não deseja ser jamais; comprazendo-se em exibir seu poder sobre básico subjacente a seu comportamento. Muitos problemas
as crianças, ele as atormenta e as mantém na linha por meio de fund,amentais dessa vocação se aplicàm a todas as profissões que
"médias" matemáticas cuidadosamente calculadas. lidam com o desenvolvimento humano, mas alguns são
O bom professor sente-se fascinado pelo arquétipo adulto exclusivamente seus. Para compreendê
instruído-criança ignorante. Um bom professor deve, por assim los oe modo mais completo, devemos abordar questões
dizer, estimular o adulto instruído na criança, assim como deve o psicológicas. Assim como fizemos com relação à cisão do
médico ativar o princípio in arquétipo, chegaremos ao objetivo por vias indiretas. Mas, para
terior de cura no paciente. Mas isso só pode ocorrer se o chegar ao ponto que me interessa, devo antes tratar de algo
professor não perder contato com sua própria infantilida de. Em completamente distinto.
termos práticos, isso significa, por exemplo, que, ao ensinar, ele
não deve perder a espontaneidade, devendo deixar-se conduzir por
seus próprios interesses. Seu traba lho consiste não apenas em
transmitir conhecimento,mas também em despertar a vontade de
aprender nas crianças - o que só será possível se a criança
espontânea e ávida de conhecimento estiver viva dentro dele.
Infelizmente, os modernos regimes escolares e planos pedagógicos
servem se de todos os meios para destruir essas qualidades da
espontaneidade infantil, pois o arquétipo do ensino está cindido.
A infantilidade do professor é reprimida e então projetada sobre o
aluno. Quando isso ocorre, o processo de aprendizado é
bloqueado. As crianças continuam sendo crianças e nelas já não
mais se constela o adulto instruído. O professor fica cada vez mais
sabido e os alunos cada vez mais ignorantes. Esse tipo de
professor, que cindiu e afastou o pólo infantil do arquétipo,
passará então a queixar-se de que os alunos de antes tinham
muito mais vontade de aprender. Seu contato com as crianças se
dá apenas por intermédio do poder e da disciplina. Ao mesmo
tempo, ele se torna uma pessoa triste e amarga. O entu siasmo
novo e infantil morreu nele. As crianças são seus inimigos,
representando o pólo cindido do arquétipo no 98
97 A SOMBRA, A DESTRUTIVIDADE
· plano interior, cuja reunificação ele tenta promover por EOMAL
intermédio do poder.
Mas neste livro é o psicoterapeuta que nos interessa mais de
perto. Nossa intenção foi lançar alguma luz sobre o modelo
algum de um "sinal dos tempos". A destrutividade contra si
mesmo e o próximo sempre foi uma característica da juventude.
Colocando em termos um tanto radicais: através da história, os
jovens sempre estiveram prontos para matar ou morrer, por
pouco e até por nadGt. As guerras destrutivas da hu manidade
sempre encontraram nos jovens participantes

o impulso destrutivo se faz sentir de maneira ex


tremamente forte durante a juventude, quando pode mos vê-lo de
forma direta e não dissimulada. Os jovens tendem às erupções de
destrutividade e vandalismo, sentindo prazer em destruir
propriedades e colocar vidas em perigo. Por toda parte ouvem-se
críticas a esse tipo de comportamento, da Cidade do Cabo a
Estocolmo, de Moscou a Edimburgo. A despeito de seu atual
estágio de desenvolvimento cultural e político, todas as nações ., '

sofrem o efeito do comportamento destrutivo da juven tude, . ,

racionalizado às vezes por motivos políticos ou sociais. A, entusiastas.


psicologia da juventude é, portanto, um campo apropriado para
o exame do pano de fundo psicológico do ímpeto destrutivo em
geral.
A primeira coisa evidente sobre o comportamento
destrutivo dos jovens é que eles irrefletidamente des troem não
apenas a vida e a propriedade alheias, mas também a sua
própria. Seu modo de dirigir veículos, por exemplo, é às vezes
tão suicida quanto criminoso. Sob outros aspectos, também
costumam colocar-se em certas situações e entregar-se a
bravatas que só criam perigo para si mesmos. Os jovens são ,~ ~.

atraídos pelo perigo. Não é preciso entrar em detalhes aqui -


O que está por trás dessa destrutividade? Como se pode
basta ler os jornais.
explicá-la em termos psicológicos?
99 Tratar do impulso destrutivo é uma tarefa bastante
Os atos destrutivos da juventude costumam ser clas sificados sob a
rubrica "sinal dos tempos". Coloca-se a cul pa na crise dos valores,
em certos processos e estruturas sociais, na insegurança sentida
pelo homem massificado etc. Mas não se trata aqui de modo
desagradável. Dificilmente alguém negará que as pessoas são homem moderno é oprimido, explorado, manipulado etc. por
destrutivas em relação a si mesmas ou aos demais. Mas há uma obscuros poderes. O homem ocidental acredita ser livre, mas,
grande diversidade de explicações para esse fenômeno. .. segundo Marcuse, na verdade é um escravo impotente cujo
Os marxistas, por exemplo, encaram o comportamen to conforto material cria a ilusão de que pode interferir nos fatos.
destrutivo do homem Ce da juventude) como conseqüên cia da luta No fundo, porém, o homem moderno foi alienado de si mesmo
de classes, da opressão e da exploração. A luta de classes cria pela manipulação da sociedade e vive num estado de constante
uma atmosfera de ódio que inevitavelmente leva ao frustração, o que explica sua destrutividade. A saída da atual
comportamento destrutivo. Mas os marxistas acreditam que, situação estaria na destruição total da estrutura social existente.
quando a luta de classes tiver sido final mente superada e a Uma vez destruída esta, será possível o surgimento de um
sociedade sem classes instaurada, as pessoas já não atuarão mais homem novo, não-destrutivo, não-frustrado e feliz.
de forma destrutiva. É claro que para atingir esse ponto muitos Marcuse apóia algumas de suas concepções em Freud e
atos destrutivos serão necessários. Mas, uma vez atingido, os aceita a opinião deste de que quanto mais civilizado se toma o
estudos sobre a destrutividade não serão mais necessários, pois o homem, menos gratificados são seus instintos. O
fenô meno terá desaparecido. desenvolvimento social e cultural do homem exigiria um
A concepção marxista, de forma mais branda e com sacrifício do instinto e o resultado é a frustração.
incontáveis variações, se expressa em boa parte das atuais Em seu livro On Aggression, Konrad Lorenz, ser vindo-se de
discussões sobre o tema. Já é lugar-comum a opinião de que esse conceitos zoológicos, também se ocupa da
fenômeno não é mais do que uma conseqüência
101
100 destrutividade humana. Segundo esse autor, a agressão é um dos
de uma organização social espuna, de que o impulso destrutivo instintos fundamentais necessários para a sobrevivência do
resulta de estruturas sociais, políticas e eco nômicas distorcidas, indivíduo e da espécie. Entre os ani mais predatóriqs, a agressão
podendo ser erradicado por meio da superação destas. A contra membros da mesma espécie é acoplada com inibição. O
chamada educação autoritária é também responsabilizada pela lobo vencido na luta que oferece a garganta ao companheiro
destrutividade humana, saudando-se a educação não-autoritária vitorioso não é morto pelo vencedor.
como sendo o caminho da salvação. Enquanto não possuía instrumentos, o ser huma no era um
Essas tentativas de explicação poderiam ser chama das de animal inofensivo. Não havia necessidade desse tipo de inibição
"futurismo", segundo a expressão do historiador inglês Arnold interior. Com o desenvolvimento dos instrumentos, porém, o
Toynbee. Os futuristas a~reditam que certas mudanças sociais homem tornou-se capaz de matar seu semelhante. Seu caráter
acabarão com o inquietante fenômeno da destrutividade; inofensivo desa pareceu; agressividade e}e possuía, mas não
conseguem, dessa forma, visualizar uma idade de ouro acenando inibição. Assim, segundo Lorenz, basicamente a destrutividade é
no futuro. Os aspectos cruéis da realidade humana são um instinto que se tornou perigoso para a espécie hu mana
reconhecidos, mas denegridos como erros a serem evitados nos devido a mudanças de condições no curso de seu
tempos que virão. desenvolvimento.
Herbert Marcuse também procura examinar a destru tividade a C. e W. M. S. Russel, da Inglaterra, têm outra explica ção
partir de uma perspectiva sociológico-futurista. Segundo ele, o zoológica para o aspecto destrutivo do comportamento humano.
Esses autores sustentam que a destrutividade é conseqüência do pessoais tiveram de ser reprimidos no decorrer da história do
excessivo crescimento da população. Cer tos macacos, pacíficos indivíduo. Os tabus impostos pelos pais, por exemplo, costumam
em seu habitat natural, tornam-se agressivos e destrutivos forçar a criança a reprimir certas coisas. Em geral, os conteúdos
quando apinhados num zoológico, chegando mesmo a atacar os da sombra pessoal são em si inofensivos; não passam, com
mais jovens. Um território excessivamente circunscrito confunde freqüência, de cer
os instintos, o que resulta num constante estímulo da agressão. tos aspectos da sexualidade encarados como negativos e não
A validade das tentativas zoológicas de explicar o permitidos pelos pais ou pelo ambiente. A sombra pessoal
comportamento humano tem seus limites. Só podemos contém também várias experiências pessoais de sagradáveis que o
compreender os animais a partir de fora, mas o ser hu mano, ego ou o superego preferem esquecer. A moderna sombra pessoal
porque somos nós próprios esse ser, pode até certo ponto ser do europeu ocidental costuma incl uir certas perversões sexuais e
compreendido a partir de dentro. Nossa com preensão do boa dose de agressão reprimida.
comportamento animal tem uma limitação inerente; portanto, A sombra pessoal está intimamente ligada à cha mada
não se sabe bem até que ponto podem se tirar dessa compreensão sombra coletiva. No interior de dada coletividade,
limitada conclusões válidas sobre a condição humana. 103
102 a sombra coletiva é a mesma. Ou seja, em cada indivíduo ela
contém tudo o que não é aceitável em seu meio cultural. Essa
Além dlsso, as explicações zoológicas ignoram o fato de que
sombra é o lado obscuro do ideal coletivo. O ideal eu ropeu geral do
a agressão humana, tal como o clássico exemplo do
século XIX, por exemplo, era uma mistura de Cristianismo e
comportamento juvenil, em geral acompanha atos
liberalismo; amor, progresso, pureza, sociabilidade, sobriedade,
autodestrutivos. Esse fato tem sido ignorado também pela
castidade etc. eram os valores co letivos. A sombra coletiva dessa
maioria dos psicólogos - mas não por todos, como veremos época continha, portanto, ódio, êxtase dionisíaco, tendências
adiante. orgiásticas, sexualida de como um fim em si mesma, luxúria etc.
Em que pode contribuir a psicologia junguiana para Durante a era anti-sexual da Rainha Vitória a sombra coletiva se
explicar o comportamento destrutivo do homem? Jung fez uma revelou
interessante tentativa de explicação mediante o conceito de no florescimento da literatura pornográfica. Um bom modo de
"sombra", já mencionado ante riormente. Nem sempre ele familiarizar-se com a sombra coleti va do Cristianismo da Idade
descreve suas descobertas de modo sistemático, pois não estava Média aos tempos modernos é estudar a história dos judeus ou o
interessado em construir um sistema psicológico dogmático e fenômeno da caça às bruxas. Se estivermos interessados na
cuidado samente elaborado. Procurarei, nos parágrafos que sombra coletiva da Inglaterra do século passado, vale a pena
seguem, apresentar o conceito de sombra de forma algo mais estudar a his tória da fome nesse país ou a expulsão dos
sistematizada. montanheses da Escócia. Dessa forma podemos aprender muita
A chamada sombra se compõe de três estruturas coisa sobre o lado obscuro dos ideais oficiais da classe dominan te
psicológicas distintas intimamente inter-relacionadas. A inglesa - brutalidade, poder e cobiça.
primeira é a sombra pessoal. Até certo ponto, esta equivale ao A sombra pessoal atua de modo destrutivo em relação aos
conceito freudiano de inconsciente. Ela en ideais do ego, assim como a coletiva procura destruir os ideais que
volve imagens, fantasias, impulsos e experiências que por razões se situam no mesmo nível. Mas essas duas sombras exercem
também uma função muito valiosa. Tanto o ego como os ideais reconheciam esse "criminoso e assassino em nós" como algo que
coletivos devem sujeitar-se a constantes ataques, pois eles são simplesmente existe e não pode ser exorcizado por teorização
falsos e unilaterais. Não fossem eles consumidos pelas alguma.
profundezas da alma humana, não haveria desenvolvimento Como mencionei há pouco, a figura do Diabo é em parte um
individual nem coletivo. símbolo da sombra arquetípica. Vale a pena, portanto, considerar
A chamada sombra arquetípica se liga a esses dois tipos de contos de fadas ou mitos nos quais apareçam o Diabo e um
sombra e lhes fornece energia, apesar de ser algo completamente jovem. Um exemplo adequado é o conto de Grimm "O cabelo de
distinto. Na verdade, aqui o termo "som bra" não cai bem. ouro do Diabo". O herói dessa história, para poder desposar a
Graficamente falando, a sombra é algo secundário, visto ser princesa, deve ar
criada pela luz. Os ideais pessoais e coletivos conscientes têm
105
suas sombras, seu outro lado , 104
rancar da cabeça do Diabo três fios de cabelo de ouro e trazê-los
obscuro. Nesse sentido, a sombra individual e a coletiva não são consigo.
realmente independentes. Mas'o caso da sombra arquetípica é O casamento com a princesa simboliza o desenvol vimento
outro. Um termo mais adequado talvez fosse simplesmente "o do jovem em direção à totalidade, à unificação interior e exterior
Mal", apesar de essa palavra conjurar demasiadas associações com o feminino. Mas, para atingir esse estado, ele tem de
morais coletivas. estabelecer contato direto com o Diabo. Seus cabelos são de ouro
Jung concebia o "Mal" como algo independente e não, por e, como este é um símbolo de luz e de consciência, o Diabo com
exemplo, como uma privatio bani, mera ausên cia do Bem. Nesses esse tipo de cabelq tem uma afinidade com o deus sol, podendo
termos, pode-se compreender o Mal como "o assassino e suicida ser também caracteriza do como Lúcifer, "portador da luz". Antes
dentro de nós". Essa sombra arquetípica é um modo inerente de da queda Lúcifer era um dos anjos mais lUminosos das legiões
J
comportamento hu mano - um arquétipo. No decorrer da história, celestiais. N osso conto de fadas parece querer dizer que o
tem sido representado por símbolos como o Diabo ou o sol niger desenvol vimento psicológico em direção à totalidade só é possível
dos alquimistas. Muitos dos deuses e deusas mais terríveis na através de uma ampliação da consciência resultante de um
história da religião são símbolos dessa sombra arque típica: Shiva, contato direto com o Mal. Em outras palavras: um jo vem não
Loki, Belzebu etc. pode continuar a se desenvolver se não conseguir entrar em
Em seu livro Beyond the Pleasure Principle, Freud descreve contato com a sombra arquetípica.
algo bastante similar. Com base em experiências ocorridas
Convém notar que o Diabo, apesar de representar o Mal no
durante a Primeira Guerra Mundial, Freud chegou à conclusão plano simbólico, costuma também ser compre endido como um
de que fundamentalmente o homem é orientado por dois instintos
servidor de Deus. No livro de Jó, Satã é ainda um dos filhos de
ou impulsos: Thanatos, o instinto de morte, e Eros, o instinto de
Deus. E em Isaías 45,7 lemos: "Eu formo a luz e crio a escuridão;
vida. Freud re
Eu trago a paz e crio o mal; Eu, o Senhor, faço todas essas
conhecia a conexão existente entre a agressão dirigida contra os
coisas".
outros e a voltada contra a própria pessoa. O instinto de morte
Os mitologemas tentam dar uma resposta a questões
seria a "ânsia" e a atração pela morte, pela destruição de si e dos
psicológicas, filosóficas e religiosas para as quais não temos
demais. Freud não foi capaz de reduzir esse impulso destrutivo
soluções racionais. O inexplicável e misterioso é expresso
primário a qualquer outra coisa. Tanto ele como Jung
mediante símbolos mitológicos. Na verdade é muito difícil, senão
impossível, explicar em termos psi imagens e atitudes transmitidas pelos pais. Assim sendo, a
cológicos racionais por que um jovem deve estabelecer um criança, sob vários aspectos, não é livre. O adulto, naturalmente,
relacionamento com a sombra arquetípica para poder levar também foi formado por seus pais; muitas de suas atitudes
adiante seu próprio desenvolvimento. Ao tentar examinar essa derivam exclusivamente deles. Porém, para se desenvolver psi
questão, a despeito de sua dificuldade, devemos ter consciência de cologicamente, o adulto deve atravessar uma fase de negação e
nossas próprias limitações. destruição para poder, por assim dizer, volun tariamente, cultivar
Nossa atitude com respeito a nós mesmos, o mundo, a ainda mais os valores de seus pais ou encontrar os valores que
criaç,ão inteira e Deus tem um aspecto um tanto estra lhe convenham. Em sua tran

106 107
nho: queremos ter certo grau de liberdade, pretendemos julgar, sição da infância à idade adulta o jovem deve, portanto, entrar
avaliar, tomar posição, encarar as coisas sob todos os ângulos e em contato com o Diabo, com a destrutividade; para chegar à
tomar livremente nossas decisões. Queremos não apenas saber o liberdade, deve experimentar também a possibilidade de destruir.
que é certo e o que é errado, como Adão e Eva ao comer o fruto Em certo sentido, estou tentando tornar compre ensível a
da Árvore do Conhecimento, mas também decidir livremente o existência da sombra arquetípica; ao fazê-lo, porém, vejo que ela
que é que desejamos fazer. Esforçamo-nos para atingir nosso fica um tanto diluída. Meus conceitos e explicações têm um valor
próprio ponto de vista, a partir do qual julgamos o mundo, Deus e limitado. Podemos, p.té certo ponto, procurar entender o
nos significado desse assassino ou suicida dentro de nós, como tentei
sos semelhantes. Destinados a viver, queremos fazê-lo segundo acima, mas ao mesmo tempo não temos outra alternativa a não
nos compraz. ser encarar esse nosso lado obscuro como algo inexplicável,
Mas só quem for capaz de dizer "Não" ao mundo poderá reconhe cendo-o como tal e tomando certas precauções contra ele.
também afirmá-lo. Só quem tem liberdade de destruir pode Não podemos realmente dizer se o propósito desse "Não" à cri~ção
livremente voltar-se para o mundo com amor. Sem a é de fato apenas nos dar a liberdade.
possibilidade desse "Não" destrutivo e pe Talvez não seja por acaso que em vários rituais de iniciação
caminoso seríamos como imaginamos serem os animais: primitivos o jovem deve tomar parte de algo destrutivo, seja
simplesmente existiríamos, impelidos por nosso instinto de expondo-se a um grande perigo, seja matando e decapitando um
sobrevivência, sem nenhuma possibilidade de decisão, sem inimigo.
nenhum sentido de liberdade. Não teríamos a menor Os jovens devem entrar em contato com o Diabo
oportunidade de julgar, de nos tornarmos conscientes e de , sem no
escolher. Talvez a existência da sombra arquetípica seja um
atributo especificamente humano. entanto identificar-se com ele. O ego deve perma necer de certa
O jovem atravessa um estágio transitório entre a infância e forma distanciado e consciente do que está fazendo. Na maioria
a idade adulta. A criança, é claro, contém em si um alto grau de das vezes, quando destroem propriedades, roubam ou se deixam
destrutividade e às vezes age como a própria encarnação do levar por outras atividades destrutivas, os jovens sadios sabem
demônio. Mas sua situação geral é em boa medida determinada que estão participando de uma experiência transitória, tendo cons
pelos pais. Ao lutar com seus problemas, usa instrumentos, ciência de que, apesar de interessantes, suas ações são na
verdade "más". Mas sejam quais forem os detalhes específicos, há casos em que
É preciso, a esta altura, esclarecer um ponto. Nem todos os o jovem experimentou de fato grande dose de destrutividade em
jovens se entregam a um comportamento aberta mente destrutivo, seu meio. Ao entrar na adolescência, época em que deve
nem todos guiam de forma suicida ou participam de tumultos. A estabelecer-se o contato com o Mal, torna-se naturalmente fácil
exteriorização do Mal em ações é apenas uma das maneiras de simplificar o conflito projetando a Destrutividade no
entrar em contato com ele. Há também a alternativa de fantasiar
109
ou identi ficar-s~ com fantasias alheias. Schiller era jovem quando
ambiente, ou pelo menos em parte dele. Para um jovem nessa
108 situação, o Mal deixa de ser parte integrante da psicologia
escreveu Os Assaltantes. Goethe expressou seus próprios humana e se torna apenas uma característica do meio, de certas
impulsos suicidas ao escrever As Angústias do Jovem Werther. pessoas e estruturas sociais. Projeções desse tipo bloqueiam
A literatura está repleta de figuras sombrias com as quais o leitor qualquer desenvolvimento. p~íquico pessoal e tornam a integração
pode se identificar e assim entrar em con social extremamente difícil. Tudo o que acontece de negativo é
tato com seu próprio lado obscuro. O cinema, a televisão e o compreendido como produto de um mundo cruel, que deve ser
teatro oferecem incontáveis oportunidades de roubar alguns fios responsabili
de ouro da cabeleira do Diabo por meio da identificação com as zado pelo comportamento destrutivo e auto destrutivo do jovem.
manifestações da Destrutividade. Este racionaliza sua auto destrutividade através de frases do tipo:
As fantasias destrutivas são muito importantes nos jovens, "É isso o que o mundo quer, não é? Pois aí está. Assim me
cuja imaginação costuma apresentar idéias de suicídio, impulsos vingo".
homicidas e os atos mais terríveis e destrutivos. Se esse tipo de jovem for introvertido, capaz de ex perimentar
Alguns jovens conseguem contatar o Destrutivo por meio alguns de seus conflitos no plano interior, em fantasia, talvez
da especulação filosófica ou de práticas religiosas. Mas há muitos consiga arranjar-se, em termos sociais, embora à custa de grandes
que fracassam ao tentar arrancar alguns desses fios de ouro da dificuldades e amargura. Na maioria dos casos, porém, esses
cabeça do Diabo. O Destrutivo - o Mal em si - é sinistro e adolescentes não têm a sorte de poder desenvolver-se num
insuportável para quem quer que seja. O mais natural é afastá-lo, ambiente que esti mule sua vida interior e lhes forneça os
livrar-se dele de alguma forma. Por essa razão muitos jovens, instrumentos necessários para confrontar seus problemas no
quando em sua fase de confronto com o Mal, demonstram uma nível da fantasia e do símbolo. Inclinam-se, portanto, a pôr para
tendência a projetar a sombra arquetípica. Quando isso ocorre, fora tudo o que se passa dentro. Surge aí o clássico caso do jovem
sentem os adultos, os pais ou a "geração mais velha" como sendo negligenciado, anti-social, talvez mesmo crimi noso .. N a
a própria encarnação do Mal e da Destrutividade. Um jovem superfície, seus atos destrutivos se assemelham aos do jovem que
sadio, depois de certo tempo, recolhe essas projeções. Mas há vive um cbntato apenas momentâneo com o Destrutivo; no plano
outros que crescem em ambientes altamente destruti vos e cheios interior, porém, a situação é bastante diversa. Para essa pessoa o
de ódio. Talvez a mãe tenha rejeitado ou até mesmo abandonado contato com o Dia,bo torna-se uma tragédia, uma batalha
o filho; possivelmente não houve uma vida familiar adequada; quixotesca com um ambiente que passa a ser visto como
com antecedentes tão negativos, a criança talvez tenha tido personificação do Mal. Enquanto adolescentes ou mesmo mais
dificuldades na escola ou sido rejeitada por professores e colegas. tarde, indi víduos anti-sociais desse tipo costumam erroneamente
ser cla!?sificados como psicopatas, portadores de defeitos de
caráter inatos. Se conseguem, quando adultos, formar uma
família, muitas vezes instilam nos filhos uma atitude
genuinamente anti-social, o que os encoraja a fazer proje

110
ções e dificulta seu trabalho de reflexão sobre os próprios
problemas. A situação' pode agravar-se sensivelmente quando
esses indivíduos pertencem a minorias raciais ou étnicas
rejeitadas.
Esse tipo de decadênciacrônica é extremamente trá gico -
porque só aqueles com certo grau de diferenciação psicológica é
que são suas vítimas. As pessoas indiferen ciadas ou menos
perceptivas não reagem dessa forma nem mesmo a ambientes
rejeitadores ou destrutivos; o fenô meno do Mal e do Destrutivo
.não se apresenta para elas como problema especialmente grave; 111
seu contato com ele na juventude é por demais superficial- ESTARÁ A ANÁLISE CONDENADA
depois disso, en tram Iogo na rotina de uma vida enfadonha.
AO FRACASSO?
Aqueles que já na infância se impressionavam com o Mal é que "
caem, ao crescer, nessa armadilha fatal. Nunca abandonam sua
luta contra o Mal-mas esta não tem sentido porque não
conseguem perceber que, em última análise, o Destrutivo é um
problema interior, cuja projeção no mundo exterior só cria mais
miséria ainda e sofrimento.

Procurei, no capítulo anterior, ilustrar o fenômeno da sombra,


especialmente a arquetípica, em termos do desen volvimento dos
jovens. Naturalmente, essa sombra arque típica continua sendo um
fator atuante mesmo depois de atingida a idade adulta. O
indivíduo saudável médio tor na-se constantemente vítima de suas
próprias tendências agressivas e auto destrutivas , destruindo o que
construiu, sabotando relacionamentos que lhe são importantes,
ator mentando a própria família e os amigos - ou dirigindo a
destrutividade para o seu meio. O psicoterapeuta, porém,
encontra-se numa posição especialmente infeliz em face da
sombra arquetípica. Mencionei, um pouco atrás, a "lei" psi cológica
segundo a qual quanto mais buscamos o luminoso, mais sua coletiva e arquetípica. Os pacientes procuram auxílio mediante seu
contrapartida sombria se constela. À medida que o psicoterapeuta próprio comportamento destrutivo. São em boa parte
tenta tornar-se mais consciente, ajudando seus pacientes a fazerem manifestações desse tipo que compõem o ambiente diário de
o mesmo, seu lado inconsciente é constelado com mais vigor do trabalho do psicoterapeuta. Poderia, portanto, acontecer que ele
que na média das pessoas. Isso pode ser paradoxalmente expresso viesse a perceber a atuação da sombra arquetípica, por exemplo,
da seguinte forma: quanto mais o psicoterapeuta se torna apenas no seu ambiente, como faz o jovem negligenciado descrito
consciente, mais ele se torna inconsciente; quanto mais luz se atrás. Depois de tanto ver esse fenômeno se manifestar, ele acaba
lança sobre um canto escuro da sala, mais os outros parecerão sem energia para reconhecê-lo e continuar a estudá-lo em si
escuros. mesmo.
O que é mais dificil, porém, é tomar consciência da atua ção A coisa se complica ainda mais devido ao fato de várias
da sombra arquetípica, das próprias tendências destruti vas ou escolas de psicoterapia evitarem o confronto com a destruti
autodestrutivas, experimentando-as em si próprio, em
113
112 vidade arquetípica. Essas correntes procuram trapsformar a
vez de apenas em projeções. Por isso o psicoterapeuta, que sob psicologia numa "ciência natural", -acreditanao que o processo
certos aspectos é alguém particularmente inconsciente, está sujeito psicoterapêutico pode ser mecanizado e que o pro cesso
ainda mais do que os outros à sombra arquetípica. Seus esforços psicológico em si e nos outros pode ser estudado por
conscientes visam ajudar as pessoas livran observadores objetivos, da mesma forma que um químico
do-as de sua própria destrutividade. Oito horas por dia, ele dialoga objetivamente estuda uma reação química. Até mesmo os
com pessoas que procura afastar da destrutividade e trazer de freudianos, por exemplo, têm dificuldade em detectar em si
volta à saúde e à alegria de viver. Esse trabalho coloca em seus mesmos o que Freud denominou instinto de morte CThana tos),
ombros uma carga excessiva. Tantos bons propósitos conscientes visto tratar-se de um fenômeno assustador que poderia destruir
acabam constelando uma dose prati
sua atitude científica objetiva.
camente equivalente de más intenções e destrutividade. Os perigos O problema da sombra é bastante enfatizado na psi
da profissão foram reconhecidos por seus próprios fundadores. É coterapiajunguiana. Mas com isso só se entende a sombra
por essa razão que uma análise didática completa é exigida antes pessoal e coletiva, o lado obscuro dos ideais do ego ou da
sociedade; a sombra arquetípica costuma ser ignorada.
que um futuro terapeuta inicie seu trabalho. É também necessário
Como já mencionei, o psicoterapeuta se encontra numa
um conhecimento extensivo de psicologia e psicopatologia, para
situãção psicológica extremamente difícil e perigosa, seja qual for
que ele pos sa desenvolver um modo' diferenciado e sutil de
o ângulo sob o qual examinemos seus problemas. À medida que
perceber e desmascarar os aspectos neuróticos e "doentes" de seus
seu modelo básico é. o do médico, ele está sujeito à tentação de
pacientes. Mas é exatamente esse conhecimento que desvia o
reprimir um pólo do arquétipo te
analista para uma postura fria e objetiva ao detectar a
rapeuta-paciente e projetá-lo sobre seus pacientes. Como
destrutividade nos pacientes e, com essa mesma objetivida de, ao
freqüentemente ocorre com os médicos, o exercício do poder
bloquear o acesso a seus próprios aspectos sombrios,
representa aqui uma tentativa de superar essa cisão. A pola ridade
percebendo-os apenas nos outros.
terapeuta-paciente é ainda intensificada por aquela entre
O psicoterapeuta se defronta a cada dia com comporta mentos
humanos incomuns, erupções e expressões da som bra pessoal, consciente-inconsciente. A inconsciência é projetada sobre os
pacientes, enquanto o analista, cujo trabalho con siste em psicoterapeutas. São poucas as áreas em que os conflitos internos
conduzi-los a uma consciência mais ampla, sevê são debatidos de modo tão injus to, inconsciente e destrutivo como
injustificadamente a si mesmo como alguém especialmente entre psicoterapeutas oficialmente analisados e supostamente
conscÜ:mte. Mas mesmo tendo em parte. atingido uma ge nuína "conscientes". Será a psicoterapia, especialmente a análise dos ní
consciência, ele não pode evitar um aprofundamento dessas veis mais profundos da alma, um empreendimento impos sível?
sombras em seu próprio inconsciente. É nessa região obscura que Deverá essa esplêndida experiência ser encarada como um
atuam os irmãos sombrios do sacerdote e do médico, aos quais o fracasso? Estarão os analistas condenados, mais cedo ou mais
terapeuta está intimamente associado - ou seja, o falso profeta e o tarde, a se encontrar num beco sem saída?
charlatão. Essa situação psico lógica propicia um campo ideal
para a operação da sombra arquetípica. A destrutividade 115
elementar serve-se da cisão ANÁLISE NÃO ADIANTA
114
do arquétipo e das figuras sombrias do charlatão e do falso profeta.
Assim, o analista é ameaçado por todos os lados .. Neste ponto, o
leitor deve estar se perguntando se a PSI coterapia não estará
condenada ao fracasso desde o início, ou, quan-do muito, se não
será exeqüível apenas para gênios psicológicos. Muitos terapeutas,
conscientes desse complexo problema, tranqüilizam-se acreditando
ingenuamente que podem controlar a situação mediante uma
cuidadosa análise didática e de um subseqüente e escrupuloso Venho procurando, neste livro, demonstrar os aspectos
exame de seu próprio inconsciente. Mas não acredito na validade difíceis da profissão do psicoterapeuta. Em conseqüência, tenho
dessa noção. Às vezes ouço alguns colegas dizerem que esses peri mais ou menos ignorado as potencialidades especiais e muito
gos podem ser evitados seo psicoterapeuta anotar e estudar positivas que lhe são inerentes. Quase não é preciso dizer, apesar
cuidadosamente seus próprios sonhos. A dificuldade é que, nesse da ameaça das ciladas aqui discutidas, que um bom número de
caso, os sonhos devem ser interpretados pela própria pessoa que os psicoterapeutas faz um trabalho excelente, ajudando muitíssimas
sonhou. Ocorre que não existe nenhum siste ma ou técnica pessoas a encontrar uma saída para o sofrimento. É certo que
objetivospara se compreender a mensagem dos sonhos. Interpretar alguns não se propõem lidar com esses perigos, acabando de fato
sonhos é uma atividade criativa, quase artística. Em última por causar malefícios. Mas isso, porém, não põe em xeque o
análise, a interpretação depende de seu autor. Com o tempo, o valor da profissão em si.
terapeuta experiente desen volve uma grande capacidade de N,ão tenho a intenção de me limitar aqui apenas a
interpretar seus sonhos segundo seus próprios desejos. Só enfatizar perigos; gostaria também de indicar algumas
reconhece os fenômenos da sombra em si quando isso convém a possibilidades de superá-los. Indiquei, alguns capítulos atrás,
seu ego, chegando mesmo alguns a distorcê-los em aspectos que tanto no analista como no paciente são conste
luminosos. Minhas observações parecem estar se tornando cada ladas certas forças hostis ao desenvolvimento bem-suce dido da
vez mais pessimistas. No entanto, ·elas são confirmadas pelas análise. Sugeri também que é, portanto, essencial que o analista
incontáveis e ácidas disputas internas travadas pelos próprios tenha uma atitude aberta e honesta para consigo próprio e, em
certo sentido, para com o paciente, de tal forma que esses dificuldades do paciente constelam as suas propnas, e VIce versa;
fenômenos negativos possam ser trabalhados em conjunto. trabalha, portanto, não apenas com o pacient~, mas consigo
Talvez isso propicie um ponto de partida para contrabalançar a próprio. Ele é, para sempre, terapeuta e pacIe~~e.
destrutividade. Mas essas possibilidades são limitadas. Infelizmente, não é este sempre o caso; pelo contrano, o
A maldição do psicoterapeuta é seu isolamento. A maioria analista desempenha cada vez mais o papel exClusivo de
das escolas estabelece a necessidade estrita de terapeuta e, portanto, de falso profeta e charlatão.

116 117
uma análise didática, além de exigir que o candidato a analista Neste ponto, poder-se-ia exigir que o trabalho do analista
tenha seu trabalho supervisionado por um colega mais fosse supervisionado por um colega durante toda a sua carreira.
experiente. Em última análise, porém, o analista só depende de Mas o termo "supervisão" é infeliz. As chamadas análises de
si mesmo em seu trabalho. Só ele e seus pacientes sabem o que supervisão, parte integrante da formação do analista, estão elas
se passa em cad~ sessão. Cada :vez mais o analista vive isolado próprias cheias de elementos questionáveis. Nem mesmo o mais
numa espécIe de torre. MuItos estã~ sós mesmo quando em honesto principiante será capaz. de relatar, numa "sessão de
companhia de um paciente; as tentativas deste de atravessar a supervisão", cada palavra, gesto ou estado de espírito que teve
máscara do terapeu ao trabalhar com um dado paciente. Ele faz uma seleção - a qual
ta e atingir sua personalidade, talvez para atacá-lo, são repelidas é determinada pela impressão que deseja causar no analista que
e interpretadas como ex~ress~o .de um proble ma pessoal. O estilo o supervisiona. Além disso, este não chegará nem mesmo a
e as concepçoes teo:-Icas ~e al~ns analistas impedem que suas compreender certos sonhos cuj a mensagem se dirige não a si,
posições seJam dIscutIdas, mesmo por parte dos pacientes. Com mas ao paciente e seu terapeuta. A análise é algo tão
referência a esse aspecto, Jung sempre enfatizou com muita intensamente pessoal que ~lguém estranho, com base em sua
clareza que o processo analítico deve ser mútuo, cada parte própria equação pessoal, poderá facilmente se equivocar a
afetando a outra. Mas como seus colegas de outras escolas, o respeito do que se passa. As sugestões dos aIlalistas
analista junguiano ~ão pode ignorar o fato de ~ue a análise é .um supervisores muita~ vezes são erradas. Todos os perigos que
relacionamento assimétrico. E à medIda que o analIsta avança descrevi atrás ligam-se à terapia e podem causar danos; mas
em idade e experiência, esta se torna cada vez mais assimétrica, eles se relacionam sempre com o desenvolvimento pessoal mais
tornando-se, portanto, menor o desa fio do paciente ao processo amplo do próprio analista. Assim sendo, um aspecto
psíquico do analista. A ~isão no arquétipo - médico saudável de fundamental consiste em descobrir maneiras de ativar e
um lado e ,?ac~e?~e penetrar no analista.
enfermo de outro - torna o diálogo cada vez maIS dIfIcIl. Aquilo Já se sugeriu que os analistas deveriam submeter-se à "análise
que o paciente dá de si torna-~e o Out~o, algo que em última didática" no decorrer de sua carreira. Mas con tra essa idéia há
instância já não afeta maiS o analIsta. várias objeções. Somente numa grande cidade será possível a
Há, porém, genuínos "terapeutas feridos" entre os analistas· um analista encontrar um colega da mesma orientação com o
em alguns, o arquétipo não se cindiu. Estes, por assim di~er, estão qual não se encontre de alguma forma envolvido politicamente,
sempre sendo analisados e 'iluminados por seus pacientes. Esse seja numa organização profissional, seja no campo acadêmico.
tipo de analista reco~~ce qu~as Uma pessoa que ocupe uma posição oficial dificilmente poderá
expressar-se de modo livre e aberto com um colega em posição nado pela sombra do que de fato é. Reuniões profissionais desse
similar; demasiada rivalidade potencial impede um contato ge tipo servem apenas para a discussão das questões mais gerais
nuinamente honesto. Por outro lado, um indivíduo mais velho levantadas pelo material apresentado; .
acharia difícil realizar uma tal "análise didática" com 119
;

118 Terapia de grupo com analistas profissionais é tam bém algo


um colega muito mais novo no início de sua carreira. Da mesma limitado. A couraça analítica dos participantes é em geral tão
forma, não seria aconselhável que um jovem, que apenas se densa que nada consegue penetrá-la.
inicia na profissão, continuasse a ser analisado por um colega Novamente, é como se estivéssemos diante de um muro de
mais velho, pois isso criaria o perigo de per pedra. Quero enfatizar mais uma vez que muitos
manecer sempre na posição de estudante ou discípulo. psicoterapeutas, em seu confronto com seus pacientes e consigo
Basicamente, todas essas tentativas de evitar os perigos da mesmos, são bastante capazes de contornar as armadilhas flue a
profissão através de ainda mais análise me parecem profissão lhes arma. Mas há vários que não conseguem. E estes
questionáveis, me fazendo pensar no Barão de Münchhausen, não podem ser ajudados por nenhum tipo possível Ce
que, para não afundar no atoleiro com seu cavalo, se alçava a si impossível) de reanálise ou discussão de caso. O paciente se
mesmo pela ponta do cabelo. Todos os fenômenos sombrios que apresenta ao analista como um ser humano que sofre; muitas
mencionei iriam de novo cons telar-se nessa nova análise, levando vezes é possível ajudá-lo e, uma vez terminada a terapia, ele é
a complicações adi cionais. Vários analistas são capazes de capaz de se desenvolver de modo sadio e independente. Há
trabalhar esses problemas de sombra que surgem na prática e casos que exigem um tratamento extremamente longo. Não se
livrar-se deles. Todos têm de enfrentá-los de quando em vez. Mas trata- então de conduzir o paciente ao desenvolvimento
um bom número se enreda cada vez mais com o passar do psicológico, mas antes de salvá-lo de repetidas crises. Aí
tempo. Quanto mais esses problemas são analisados e também o terapeuta pode ser útil. Mas parece não existir saída
reanalisados, mais fortes se tornam as forças que operam na alguma para o próprio analista quando se trata de seus
sombra. problemas profissionais de sombra.
A discussão de casos com um grupo de colegas reves te-se da Talvez tenha chegado o tempo em que 6s analistas, para evitar
mesma limitação. Alguém que tenha participado desse tipo de esse trágico emaranhamento, deveriam bus car possíveis soluções
discussão sabe que o cerne do trabalho rea lizado raramente é fora de sua profissão. A tentativa de auxiliar o analista por
tocado. Cada participante procura de certa forma impressionar meios analíticos talvez encu bra certa inflação psicoterapêutica -
bem oscolegas, de modo que a situação coletiva acaba sempre como se a análise fosse o non plus ultra para estimular o
por constelar rivalidades dentro do grupo. Estas, por vezes, desenvolvimento psicológico. E aqui se trata de fato disso, mais
assumem formases tranhas; Um dos terapeutas poderá desejar do cjue da cura de neurOSE:!s. O enredamento do
apresentar-se como especialmente bem-dotado e, consciente ou psicoterapeuta com sua própria sombra nãó é uma doença, e
incons cientemente, escolher o material de discussão com esse talvez ele nem mesmo sofra seus efeitos diretamente. Nessa
propósito em mente. Outro talvez tente aparecer cOmo honesto e situação ele, sem dúvida, é menos capaz de ajudar seus
auto crítico , de modo que, ao apresentar seus casos, mostrar-se-á pacientes e talvez se torne menos interessante como pessoa' , ,
pior, mais inconsciente e mais domi mas em termos freudianos, poderíamos dizer que cair nas
ciladas da sombra constitui uma excelente defesa do ego e evita
boa dose de sofrimentos e problemas. Devido à cisão do

120
arquétipo, a destrutividade, no sentido de sombra arque típica, de
inconsciente etc., deixa de ser um problema básico do analista;
ele se afasta dela e a experimenta em projeções - desfrutando,
no geral, algo que lembra uma paz interior. O fato de que algo
não está totalmente no lugar em sua própria psique só pode ser
reconhecido por meio do estado de caos e confusão que às vezes
afeta os familiares e os amigos mais chegados de tão
"iluminado" terapeuta.
A solução para esses problemas não pode vir de den tro.
Quanto mais analisa, examina e segue os ditames do
inconsciente, mais cego o analista se torna, apenas confirmando
o quejá sabe. Seu ponto cego o impede de ver as áreas sombrias
decisivas de seu próprio ser; ou, caso as compreenda
intelectualmente, seu auto conhecimento não consegue atingir
121
suas próprias emoções.
EROS

Para romper esse círculo vicioso, o terapeuta deve expor-se a


algo que o toque de perto, algo não-analítico (pois domina, em
excesso a técnica analítica) capaz de ba lançar seu equilíbrio,
estimulá-lo, mostrar-lhe de vez em quan<lo quem ele é, quão
fraco e solene, quão estreito e vão. Não era certamente por acaso
que Sócrates louvava a amizade. Na minha opinião, e com base
em minha expe riência, só há uma coisa capaz de melhorar ou
até mesmo dissolver o enredamento do terapeuta com a sombra:
a amizade. À primeira vista isso pode parecer banal. Chega a e trazê-la para a luz. O infortúnio dos terapeutas sem filhos não
ser estranho dar-se conta do quanto essa banalidade é é que seu natural desejo de descendentes não se realize - é que
desprezada por muitos analistas. A amizade, essa potente e não podem contar com o desafio que as crianças oferecem.
calorosa confrontação'com nossos pares, onde há tam bém lugar Um analista sem amizades genuínas deve possuir um
para atacar e ser atacado, insultar e receber de volta, consegue talento excepcional para não se enrijecer e se alienar em seu
atingir o centro psíquico das pessoas. O que faz falta ao analista trabalho analítico. Mas talvez o termo amizade seja limitado
são relações simétricas, relações com outros à sua altura, amigos demais. Seria melhor dizer: o psicoterapeuta tem necessidade de
que ousem atacá-lo e fazê-lo ver não apenas suas virtudes como um confronto erótico fora do esquema analítico. ,
seus aspectos ridículos. Esse tipo de estímulo pode ser Eis aí o problema fundamental do desenvolvimento
encontrado com amigos do mesmo sexo e pode também ocorrer humano per se, a dificuldade de permanecer aberto e vital
no interior do casamento - as profundezas da sombra devem ser durante toda a vida. É esse o tema que sempre atraiu a atenção
sondadas com amor. As pessoas não escoladas na análise se de Jung: a individuação.
desenvolvem em boa medida mediante relacionamentos pessoais
intensos. O analista não tem escolha, a não ser 123
INDIVIDUAÇÃO
122
fazer o mesmo. É incrível como alguns acham isso difí cil. Talvez
procurem amigos nos ex-pacientes, mas para estes a relação
continua assimétrica e unilateral mesmo depois de terminada a
análise. Os antigos pacientes, agora "amigos", não conseguem de
fato atravessar o sistema defensivo do analista. Há vários que
dizem cultivar inten sas amizades, quando na verdade formam
em torno de si um círculo de discípulos admiradores. Há
também os que se fecham diante dos desafios psicológicos
Segundo afirma Jung em seus escritos, o trabalho psi
apresentados pela própria família, passando a encarar esposa e
coterapêutico tem dois objetivos principais: em primeiro lugar,
filhos como analisandos e a tratá-los como tal.' Outros, por sua
curar o analisando, livrando-o de seu sofrimento neurótico ou
vez, destroem amizades genuínas transformando-as em
relacionamentos analíticos, evitando os problemas reais da psicótico e, em segundo, orientar o processo que Jung
amizade por meio de formulações analíticas e psico dinâmicas. denominou 'individuação. Na sua opinião, muitas terapias
terminam, no melhor dos casos, quando é atingida a cura, sendo
Quando intensamente vivida - e sofrida _. , uma amizade pode
a individuação uma coisa distinta e que não ocorre
salvar o terapeuta de in"extricáveis envolvimentos com seu lado
automaticamente depois do primeiro passo. É muito difícil
obscuro e destrutivo: O ódio e o amor fluem e refluem entre
descrever ou definir sucintamente o que seja individuação. Seria
amigos, o amor circundando o potencial positivo e o ódio o
preciso recorrer a visualizações ou imagens, para torná-la
negativo.
compreensível. Trata-se da n~a
As crianças, quando se desenvolvem de modo livre e
lização da vida humana, da florescência do padrão básico
aberto, são também capazes de penetrar na sombra do analista
subjacente a uma existência individual, da experiência de
encontrar um sentido. A individuação não é algo que se pode levados em conta. De algum modo, deve-se encarar a sombra, a
conquistar,e possuir com segurança. Simbolicamente pode-se destrutividade funda mental. Um confronto com a morte deve
descrevê-la mediante imagens como "a jornada até a cidade de também ter lugar. Os escritos de Jung por vezes sugerem que a
ouro". O trabalho dos alquimistas, em sua tentativa de individuação se dá na segunda metade da vida. Jung não
transmutar substâncias comuns em ouro na busca da Pedra afirmou isso dogmaticamente, mas alguns de seus seguidores
Filosofal, constitui um símbolo de individuação projetado sobre elevaram esse ponto à condição de dogma.
a matéria. "Mas nem a Pedra, nem a fórmula para transformar a Numa análise profunda, os sonhos e outras expressões do
matéria ordiná inconsciente costumam fazer referência a um processo de
ria em ouro podem ser encontradas. O que isso significa é a individuação, revelando se a pessoa em questão está ou não em
busca constante, a intuição da existência de um alvo que nunca busca da Pedra Filosofal e da cidade de ouro. Em
se atinge. Jung'não se satisfez em apresentar
125
124 minha experiência analítica, tenho visto que esse processo pode
generalizações sobre esse processo e procurou apreendê-lo em aparecer em qualquer estágio da vida. Pude várias vezes
termos mais concretos. Enfatizava, por 'exemplo, que a esse observá-lo em jovens, muitos dos quais lutam com o problema
respeito é de fundamental importância viver a ex periência da de Deus, da morte ou do Diabo. Tais jovens se
ambivalência humana, não para eliminá-h:, mas para "unir os . encontram totalmente abertos para as polaridades totais da
opostos" num plano mais elevado. E nesse sentido que ele existência sem com isso se desintegrarem, penetrando
compreendeu o símbolo alquímico do casamento entre o Rei e a psicologicamente no mais profundo da natureza do ho mem e da
Rainha. Jung encarava as mandalas, imagens para meditação Criação. Tenho reconhecido em seus sonhos os símbolos da
usadas pelo$ monges tibetanos nas quais um conjunto de individuação e do encontro com o Si-mesmo e pude perceber
opostos é ordenado em torno de um núcleo, como um símbolo como confrontam esses símbolos e são por eles influenciados.
Refletindo um pouco, essa idéia de que apenas os mais velhos
da individua ção. Em termos religiosos, esse processo é
podem penetrar no cerne da existência humana é um tanto
representado por imagens de "salvação da alma". O alvo
estranha. No transcorrer da história, a maioria das pessoas
consiste em experimentar a própria alma tanto quanto possível
morr.eu relativamente cedo; mesmo atualmente, nos países
em sua totalidade e, nesse sentido, o ser existencial em sua
subdesenvolvidos a maior parte da população não ultrapassa os
maior profundeza, aceitando-o e afirmando-o como é. Os fatores
40 anos. Como poderia ser então que somente aqueles que, por
contrários à individuação são a rigidez, a estrei teza de visão, a
sorte, tivessem vivido mais de 30 ou 40 anos teriam tido a
falta de abertura para consigo mesmo e para com o mundo. As
chance de realizar seu destino? Além disso, deve-se notar que
vias desse processo são estranhas e únicas, podendo levar a
boa parte do trabalho criativo da humanidade foi feita por
pessoa através da doença ou da saúde, da alegria ou do
pessoas com menos de 40 anos.
infortúnio. A individuação é a tentativa de entrar em contato
O processo de individuação liga-se, de certa forma, ao
com a centelha divina que
desenvolvimento religioso. Mas não se pode dizer que apenas os
existe em nós, é subjugar o ego ao Si-mesmo. Com@
indivíduos com mais de 40 anos estão abertos para as
individuação e estreiteza psíquica são incon ciliáveis, até mesmo
experiências e revelações religiosas. À primei
os mais desagradáveis aspectos da existência humana devem ser
ra vista, pode f-aver algo de atraente na idéia de que a tarefa do não faltam: ganhar dinheiro, cumprir com os deveres familiares,
jovem consiste antes em dominar o mundo exterior, conquistar certo status social, ajustar-se ao sistema, exercer com
estabelecer-se profissionalmente, formar uma família etc., sucesso uma profissão, cuidar da saúde etc.
enquanto a d'os mais velhos é voltar-se para a questão do Há vários modos de estimular a individuação em si mesmo
sentido. Essa concepção impõe certa ordem e uma seqüência e nos outros. Na obra de Jung e ainda mais na de seus
programática à vida, como um modelo de formação acadêmica. seguidores, vê-se claramente que a análise é o meio moderno
Sente-se aí a influência excessiva sobre o pensamento da por excelência de promovê-la. A observação de
imagem da escola eda vida de estudante. A aproximação do talhada das expressões do inconsciente noslimites de um 127
Si-mesmo pode ocorrer em qualquer idade: um jovem de 16 relacionamento íntimo, a busca de uma atitude positiva em face
anos poderá ter avança delas, a compreensão da própria vida psíquica em termos de
126 psicologia analítica - todos esses aspectos são de fundamental
importância. Assim sendo, é compreen
do bastante no caminho da individuação, enquanto um adulto
sível que um analista mais idoso, devido a seu constante
de 60 talvez tenha abandonado por completo a busca. No
interesse pela análise e sua tentativa de compreender a si
decorrer de nossa vida, nos aproximamos vá rias vezes do centro
mesmo segundo as categorias da psicologia analítica, comece a
de nosso ser e depois nos afastamos de novo. Esse é um
processo constante, uma série cíclica de aproximações e recuos. achar que é, por assim dizer, um especialista em individuação e
Ninguém - analista inclusi ve - pode dizer que completou sua que está bem próximo de atingi-la. Essa atitude inflada é
individuação e que, portanto, está "salvo". reforçada por seus pacientes que, por várias razões, gostam de
ver nele alguém não só fisi
Para evitar mal-entendidos, quero mais uma vez enfatizar
camente saudável como'bastante adiantado no caminho da
que o processo de individuação não é um fenô meno paralelo à
individuação. Em outras palavras, querem que seu terapeuta
saúde mental e espiritual. Unia pessoa pode não ter sintomas
seja um mágico onisciente.
neuróticos ou psicóticos e no en tanto achar-se completamente
distanciada, do processo de individuação. O ego é capaz de.armar À primeira vista, tem-se a impressão de' que os ana listas'
os mais eficazes me canismos de defesa contra as mais junguianos têm uma tendência especial a certa húbris
importantes questões e os mais profundos temores da (arrogância) cega; afinal de contas, é na psicologia junguiana,
humanidade. A morte pode ser posta de lado como algo que mais do que em qualquer outra, que os termbs "individuação" e
acontece para os outros e que no momento não precisa ser "segunda metade da vida" têm tanta im portância e correm o
considerada. Um ego forte poderá esconder-se atrás de uma risco de se tornarem perigosos nos termos aqui apresentados.
visão pragmática da vida que não se preocupa com aspectos Mas os analistas de outras escolas - para quem a análise não é
sinistros que não pode alterar, como a morte. Os problemas de mais do que a busca da saúde mental, sendo o resto rejeitado
sombra podem simplesmente ser reprimidos ou projetados sobre como especulação metafísica - acabam também, a seu modo,
os demail:?' Os nossos medos mais profundos podem ser postos encarando a análise como o único caminho da salvação. Eles
de lado mediante um empenho realizador aparen temente também acreditam que sua psicologia e seus métodos
significativo. Por meio do. estabelecimento de objetivos parciais, terapêuticos representam o meio de se atingir a redenção da
a questão de um sentido mais abran gente é ignorada. E objetivos huma nidade. Um psicanalista freudiano internacionalmente
conhecido disse-me certa vez, com toda a seriedade, que a
Segunda Guerra Mundial não teria ocorrido se tivesse ha vido
mais psicanalistas naAlemanha de antes da guerra e se os
ensinamentos de Freud tivessem atingido um nível mais
profundo da consciência das pessoas. A despeito da escola a que
pertençam, os analistas tendem a à:creditar que encontraram a
chave para os mais profundos pro

128
blemas da humanidade. Essa inflação atinge até mesmo os
psiquiatras que não usam os métodos da psicologia profunda.
Com bastante freqüência, tenta-se reduzir os problemas
centrais da história humana às categorias da psicopatologia.
Cristo é então encarado como um maso
quista paranóico, os santos como neuróticos sexuais ... O fato de
muitas escolas analíticas não reconhecerem a diferença entre
saúde mental e individuação pode até mesmo reforçar o perigo
de uma inflação profética. O analista que conte com algumas 129
"curas" bem:"sucedidas acredita ter auxiliado as pessoas a
encontrar a salvação _ ou, pelo menos, que sabe como fazê-lo. o PSICOTERAPEUTAIMPOTENTE
Por não reco nhecer a diferença entre os conceitos de saúde
mental e individuação, ele vê-se impedido de prevenir a
contami nação psicológica interior dos dois conceitos, caindo
assim numa inflação profética.

Pouco a pouco, vem tomando corpo a imagem do


psicoterapeuta experiente na segunda metade da vida, alguém
que realizou um excelente trabalho e dominou os aspectos
teóricos e práticos de seu campo. A análise, com o conhecimento
e as técnicas que lhe são inerentes, passa a assumir para ele um
significado cada vez mais amplo. Para o terapeutajunguiano, a
análise é a grande via não só para a saúde mental como para a
salvação da alma. Pata os analistas de outras escolas, os Jung foram longe demais ao afirmar que o "verdadeiro
problemas, se é que têm solução, só se resolvem a partir do caminho" da individuação é de certa forma a análise, ou que os
conhecimento analítico. Os relacionamentos, a amizade e os laços instrumentos e princípio~ da psicologia analítica são essenciais
de família, a arte, a vida social, tliP-o se reduz ao analítico e ao para o autoconhecimento mesmo nos casos .em que a análise
psicológico. O analista já não está mais aberto ao Ser no sentido não é necessária. A individuação pode acontecer na análise, na
exis família, no trabalho diário, nas realizações artísticas e técnicas -
tencialista, mas refugiou-se numa torre de marfim e só seja onde for. Podem-se usar os mais diversos meios para
experimenta o mundo a partir dessa perspectiva. E agora tem confrontar os problema's fundamentais da existência humana.
início o trágico desenvolvimento que procurei retra tar nestas Ou, em termos religiosos, pode-se servir a Deus de muitas
páginas: a serpente começa a autoconsumir-se engolindo a maneiras. O ilusionista que na lenda medieval mostrava sua
própria cauda. Cada vez mais, o terapeuta torna-se vítima do arte na igreja diante da Virgem servia a seu próprio modo.
fenômeno da sombra. Sua eficiência como analista diminui, mas A maioria das atividades profissionais pode, é claro, ser
ele acredita o contrário e se a_uto-ilude sempre mais. No exercida de modo muito eficiente sem que no entanto o
entanto, continua a merecer respeito como especialista e não fica processo de individuação seja ativado. Um corretor de seguros
infeliz, nem neurótico, nem psicótico, terminando seus dias como mentalmente sadio, porém rígido em suas atitu
um indivíduo mentalmente são, socialmente ajustado e des, fechado para o mundo e distante da individuação, 131
bem-sucedido.
pode perfeitamente ser um bom profissional. Mas quando a
130 ocupação tem uma influência decisiva sobre os outros, caso em
que nossa psique é o principal instrumento de trabalho, a
Sugeri atrás que a amizade, ou seja, a conexão erótica, oferece
atitude psíquica é de fundamental importân
uma possibilidade ao analista de romper o círculo vicioso. Ao cia. Com a profissão do psicoterapeuta é assim. Não é só de
mencionar esse ponto pela primeira vez, trata va-se apenas de
recursos técnicos que ele lança mão - em última análise, é sua
uma premissa não fundamentada. Antes de retomá-lo, porém, própria personalidade que tem um 'efeito sobre o pacienttp. O
devo fazer ainda outra digressão.
tipo de analista que descrevi atrás, constantemente conduzido
A individuação é possível para qualquer pessoa e em
pela sombra sem sabê-lo e sem sofrer por isso, não é de modo
qualquer idade. Há uma pintura hindu usada para fins de
algum neurótico ou psicótico. A seu próprio modo, ele
meditação na qual Tsong Khapa, o fundador· do Templo
encontrou um modus vivendi com as forças demoníacas que lhe
Amarelo do Tibet, aparece rodeado por 84 homens santos da
permite levar uma vida satisfeita e livre de tensões. Em certa
ÍndiaCmahasiddhas) em estado de perfeição religiosa. Esses
medida, talvez até consiga ajudar um paciente ocasional a
mahasiddhas, cujas vidas conhecemos por meio de lendas,
adquirir uma estabilidade saudável semelhante. Alguns de seus
alcançaram seu alvo mediante todos os caminhos possíveis,
pacientes, ao terminar a análise, serão menos afetados por
como monges ou loucos, dançarinos ouglutões, príncipes
sintomas neuróticos; mas, ao mesmo tempo, terão se tornado
herdeiros ou vagabundos. O que essa imagem de meditação
pessoas menos interessantes, ou até mais egoístas e maliciosas.
expressa se aplica também àindividuação no sentido junguiano.
Algo aí se interrompeu: o processo de indi viduação. O analista
Conceber uma imagem equivalente com apenas 84 analistas ou
analisandos seria um exagero grotesco. Alguns discípulos de que se fecha e que por assrm dizer integra sua sombra, em
parte por vivê-la exteriormente de forma inconsciente e em
parte projetando-a, já não é mais capaz de estimular seus
pacientes a compreenderem a individuação. Jung afirma em
várias passagens que o analista não pode levar seus pacientes
mais longe do que ele próprio chegou. Isso naturalmente não se
aplica a sin
tonlas neuróticos específicos. Pode ser que um terapeuta sofra
de certas compulsões neuróticas e mesmo assim con siga libertar
seus pacientes de aflições semelhantes. Mas raramente poderá
estimular um processo de individuação se ele próprio estiver
fechado a esse desenvolvimento. E como vimos, uma parte
desse processo para o analista
consiste em confrontar a sombra analítica. Somente algo
não-analítico poderá eventualmente atravessar essa resistência.
O psicoterapeuta deve ser

132
desafiado por algo que resista às suas armas e técnicas
analíticas. A arte poderá inquietar, o estudo da história
133
estimular; um interesse pelas ciências naturais talvez leve às
mais angustiantes dúvidas. Mas a esperteza do analista logo EROS DE NOVO
reduz essas coisas todas ao seu esquema teó
rico. Um k.nalista conhecido meu, bastante inteligente e
j.
diferenciado, certa vez assistia a um .filme extremamente
comovente. Terminado este, em vez de se entregar à ex
periência emocional, meu colega apresentou uma longa e
engenhosa análise psicológica do filme. Não é nada raro
encontrar terapeutas que, diante de uma obra de arte capaz de
comovê-los, lançam mão de interpretações psi cológicas para
afastar a experiência da emoção. A Mona Lisa passa a ser vista
como uma "representação da anima" e a arte moderna como E assim, em busca de uma saída para o impasse, volto ao
repleta de símbolos sexuais ... relacionamento erótico com nossos semelhantes. Eró tico para
mim não significa algo especificamente sexual, mas ligado ao
amor em seu sentido mais amplo. Amigos de ambos os sexos,
cônjuges, irmãos e irmãs, filhos, parentes - qualquer um destes
poderá pôr em xeque a capacidade do analista de usar evasivas.
Nesses relacionamentos, certos conteúdos da sombra são este não está sendo hostil e que há algo de verdade no que diz.
constelados, pois essas pessoas atingem o analista por ângulos Esses pequenos conflitos são inofensivos, mas servem para
totalmente diver sos daqueles em que se colocam os pacientes. indicar o rumo que as coisas podem tomar. Talvez o analista
O.desafio, porém, só será frutífero se brotar do amor. Só então o tenha de passar por esses confrontos com os que lhe são
ana lista será vulnerável. Os colegas, à medida que também próximos - e enquanto permanecer aberto dentro da relação de
forem amigos, poderão igualmente exercer influência. Mas amor, deverá levar a sério essas reações. Isso o põe em constante
nesse caso deve haver consciência do perigo de que estes se contato com a própria sombra, o que acaba conduzindo à sombra
transformem em cúmplices na batalha contra a individuação, profissional. E tais confrontos, por certo, podem também indicar
evitando contestar o outro para não se ve rem contestados a si seus lados positivos. - Tudo isso está muito bem - mas de que
próprios e assim fornecendo armas adicionais contra o forma essa ativação e esse contato com a sombra estimulamo
desenvolvimento psicológico. proces so de individuação? Ora, criando um movimento novo
Talvez alguns exemplos possam esclarecer o que tenho em numa psique que enrijeceu, a alma se abre outra vez. Em si,
mente. A esposa de um analista queixa-se dizendo-lhe: esse aspecto não desencadeia necessariamente o processo de
"Ultimamente, você não presta a menor atenção quando eu individuação, mas pelo menos torna-o nova mente possível.
falo. Parece que você já sabe tudo de antemão. E quando vem
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visita, você se comporta como se soubesse tudo. Não sobra nada
Não é apenas esse tipo mais ou menos inofensivo de
para eu dizer. Se começo
crítica por parte daqueles que o cercam que pode' criar novas
134 possibilidfldes de movimento na psique do analista. O aspecto
a contar uma história você termina por mim, ou então corrige o central é o envolvimento, a alegria e a tristeza, o
que eu disse. E você também vive interrompendo as mulheres". desapontamento e a surpresa que fluem entre os ,que se amam.
Não há nada de muito sério nessas acusa ções, mas elas sugerem A experiência de eros entre duas pessoas e seus efeitos
certos traços desagradáveis no marido. É claro que ele poderá se frutíferos sobre a psique não podem ser descritos por meio de
defender, negar o que a esposa disse e insistir que ela está áridos termos psicológicos, mas apenas repre
projetando coisas dela etc. Sua mulher, porém, não é sua sentados artisticamente. Quando ocorre, a experiência pode
paciente; não adian ta simplesmente devolver-lhe o que.disse. evidentemente ser colocada e apreendida em ter mos analíticos.
No final das contas, cabe-lhe encarar seu comportamento Mas, em contrapartida, esses conceitos psicológicos devem ser
constantemente revivificados com base no caráter imediato da
dominador e lamentar a dor que tem causado. Talvez isso venha
experiência de eros. E isso só surte efeito quando ocorre entre
a ser difícil e complicado, mas, ao pensar mais em si, uma
pessoas que se amam e não entre médico e paciente, analista e
pequena parte da sombra é vista de frente. Outro exemplo: certo
analisando ou mestre e discípulo.
dia, o amigo de um analista lhe diz: "Não gostei muito do modo
O psicoterapeuta se encontra de fato numa posição muito difícil
como você se comportou ontem à noite. Você se pavoneou
e mesmo o estudo dos últimos desenvolvi mentos da
demais diante da Srta. X e nem percebeu que ela não ligou a
mínima para as suas idéias de reforma da universidade. O que psicoterapia não o ajudará por completo a manter sua eficácia
profissional. Não é através da leitura de revistas especializadas
ela queria era apenas fazer charme". O analista poderá
que ele conseguirá impedir ou remediar a cisão do arquétipo.
defender-se con tra as palavras do amigo, mas no fundo sabe que
Sua eficácia depende em grande medida do desenvolvimento humanidade devem ter consciência de que a preocupação com a
de sua própria psique. Pode ser que além da amizade outros desgraça, o desajuste so
meios exis tam capazes de protegê-lo da sombra do cial, a ignorância, a doença etc. constela graves problemas
psicoterapeuta - mas ainda não os descobri. E mesmo que psicológicos nelas próprias. Nos estágios de formação dessas
existam, por certo não fazem parte do trabalho analítico. profissões fala-se muito das dificuldades criadas por "casos" e
Talvez certas formas de meditação pudessem ser úteis para tal .pacientes, mas quase nada se diz do próprio lado sombrio. Na
fim. Infelizmente, porém, mesmo quando tentam lidar com sua educação de assistentes sociais, enfer
vida interior em termos contemplativos, os analistas, em sua meiros, professores, médicos etc., deveria também ser
grande maioria, estão a tal ponto envolvidos pela sombra enfatizado que os problemas do "caso" ou do paciente
analítica que dificilmente con seguem escapar do círculo pertencem também à pessoa que os enfrenta. Como o juiz
vicioso. Talvez exista algum tipo de meditação centrada em inglês que, ao ver um condenado se dirigindo para o lugar da
Deus capaz de evitar os perigos da armadilha. Mas, em regra, o execução, pronunciou a frase imortal: "Aí estaria eu, se não
analista inteli fosse pela graça de Deus". Os que se preparam

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I
I

gente e consciencioso inclui até mesmo a esfera religiosa na


estrutura de seu mundo analítico; ou, então, é capaz de )
mantê-la à distância com recursos analíticos caso ela se revele para o exercício,de uma dessas profissões deveriam infor mar-se em
demasiado perturbadora. detalhe sobre as várias formas de expressão t 1-'
O ato de expor-se ao relacionamento erótico com o mundo do lado sombrio de seu ofício. Já não deveria mais haver
que o cerca não significa apenas que a vida emocional do assistentes sociais que cotntoda a sinceridade acreditam poder
analista deva ser de algum modo estimu lada. Não se trata aqui exercer a profissão como engenheiros, em termos puramente
de contrastar a compreensão intelectual e a experiência técnicos e objetivos. Não deveria mais haver professores que
emocional ou de estimular certos sentimentos no analista para pensam que só seus alunos são infantis, enquanto eles teriam
que seu desenvolvi mento psíquico novamente se ponha em superado o problema. Quanto aos médicos, seria um grande
marcha. Nossa preocupação central é como superar a cisão na avanço poder encontrar alguns que não vissem a doença. apenas
qual ele vive. O cerne da questão é que ele deve entrar em con- . nos pacientes. Essas mudanças fundamentais de atitude
tato.direto com seus semelhantes com toda a iniciativa, colocam tremendos desafios aos educadores nesses campos.
sofrimento e alegria que isso implica. É preciso que no vamente Mas no caso do psicoterapeuta há outro fator parti
encontre um jeito de expor-se aos mais difíceis desafios. Ele tem cularmente difícil que vem complicar ainda mais a si tuação. A
de ser sacudido. O senil "eu sei, eu sei" deve transformar-se no psicologia profunda é uma das possibilidades mode"rnas de se
socrático "eu não sei". chegar à auto-reflexão e à autopercepção. Por meio do
O trabalho do psicoterapeuta tem vários traços em comum os membros das
conhecimento que esta oferece e da análise,
com outras ocupações. As profissões que aqui denominamos
outras profissões de ajuda podem encon
"de ajuda" sujeitam-se todas a uma grave ameaça da sombra. trar auxílio em sua luta
As pessoas que acreditam abrigar um desejo de ajudar a com os próprios problemas pro fissionais.
Para não cair na própria sombra, o -assistente social não enrijecedora pode prestar um in calculável serviço para a
precisa da ajuda de outro assistente social, pois pode procurar humanidade e para si mesmo. A psicologia analítica lhe fornece
um analista - o mesmo se aplicando ao profes sor e ao médico. o conhecimento com o qual, se souber usá-lo, poderá abrir
O analista, porém, fica cada vez mais rígido e se perde na dimensões completamente novas para o homem contemporâneo.
sombra devido exatamente àquilo que pode ser útil aos outros - É preciso, porém, lutar com sinistras forças obscuras em si e nos
ou seja, a análise e o conhecimento de psicologia analítica. Os outros . .sua tarefa só será cumprida mediante permanentes
próprios instrumentos que usa para ajudar os outros selam seu confron tos com a sombra. O analista não poderá, como Isaac na
destino psicológico. Os desafios, ele os desvia; seus pacientes Bíblia, passar apenas uma noite lutando como anjo para
não são páreo e até mesmo o desafio da religião pode ser conquistar sua bênção. Essa luta dura a vida inteira.
esvaziado por meio de concei
tos analíticos. Ele aprendeu a confrontar o inconsciente e o faz
com esperteza e prudência. Somente mediante o intercâmbio
emocional com aqueles com quem vive uma relação de amor é
que uma nova dimensão pode penetrar

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em seu mundo amortecido. Se isso não puder ocorrer e se usar


sua psicologia para esvaziar seus relacionamentos, ele acabará
se tornando uma figura trágica.
Mas, se puder abrir-se a essa dimensão da existência, seu
próprio desenvolvimento poderá prosseguir e ele se tornará
ainda mais capaz de ajudar seus semelhantes a se libertarem de
dificuldades neuróticas e a tomarem o caminho da
individuação. Aí então ele se torna um ver
dadeiro seguidor dos grandes fundadores da psicologia
profunda. Poderá talvez levar adiante o confronto com os níveis
mais profundos do inconsciente, iniciado de modo tão heróico
por Freud e Jung. Aí o analista pode viver seu próprio destino.
O psicoterapeuta é alguém que exerce uma profis são
especificamente moderna, que busca circunavegar o mundo e
explorar a psique em sua totalidade. A grande aventura do
homem moderno não consiste apenas em explorar o mundo
exterior, mas muito mais em penetrar nas profundezas da alma.
O psicoterapeuta que consegue evitar a cilada da cisão

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