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Vastas confusões

atendimentos imperfeitos
Ana Cristina Figueiredo

Vastas confusões e
atendimentos imperfeitos
A CLÍNICA PSICANALÍTICA
NO AMBULATÓRIO PÚBLICO

3 3
EDIÇÃO
© Copyright Ana Cristina Figueiredo, 1997
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Figueiredo, Ana Cristina


F488v Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: a clínica psicana-
lítica no ambulatório público / Ana Cristina Figueiredo. — Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1997

Inclui bibliografia
ISBN 85-7316-128-0
1. Psicanálise. 2. Assistência em hospitais públicos. I. Título.
CDD 616.8917
97-1389 CDU 159.964.2

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação,


por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da lei 5.988.
A meu pai
que me deixou
vontade de ensinar
e o amor pela
universidade
Sumário

Ao Leitor 9

/ O que é feito da psicanálise 13


1. A polêmica da psicanálise 13
2. O c a m p o psicanalítico em questão 17
3. A psicanálise no ambulatório: um novo contexto? 30

// Interrogando o ambulatório 35
1. S o b r e a pesquisa: u m a participação observante 35
2. S o b r e os serviços 41
2.1 Recepção, triagem c encaminhamento 42
2.2 The dream team: o trabalho em equipe 57
2.3 O tratamento: terapias e pedagogias 65
2.4 O jogo de três PPPês: psiquiatras, psicólogos e psicanalistas 85
3. D u a s ou três questões para a psicanálise no ambulatório 97
3.1 Dinheiro, pra que dinheiro 97
3.2 Deitando o olhar sobre o divã 108
3.3 Que tempo para tratar? 115

/// P o r u m a psicanálise possível 123


1. E v o c a n d o a "bruxa m e t a p s i c o l o g i a " 123
1.1 Sobre a realidade psíquica 126
1.2 Sobre a transferencia 137
1.3 Sobre interpretação, temporalidade e cura 149
1.4 Sobre o desejo do analista 162
2. P a r a concluir: o psicanalista q u e convém 168

Bibliografia 179
Ao Leitor

A proposta de tratar da clínica psicanalítica no ambulatório público, que


resultou em uma tese de doutoramento, é fruto do trabalho desenvolvido
no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
que congrega as atividades de ensino, pesquisa e assistência. Minha
atuação como docente tem se pautado na formação de profissionais que
se propõem a desenvolver um trabalho clínico referido à psicanálise
voltado para o atendimento ambulatorial em instituições públicas de
saúde. Minha função é transmitir os fundamentos teóricos da psicanálise
e acompanhar o cotidiano desse trabalho clínico realizado pelos alunos,
prioritariamente no ambulatório, podendo ser estendido para outros se-
tores, como as enfermarias e o hospital-dia.
A idéia de desenvolver uma pesquisa junto aos profissionais — psica-
nalistas, psicólogos e psiquiatras, vinculados à rede pública de saúde —
'teve como objetivo ampliar o leque de informações sobre as possibilida-
des e limites do exercício da psicanálise fora dos consultórios privados.
De posse de um material heterogêneo sobre a estrutura e o funciona-
mento dos serviços, sobre o perfil dos profissionais e seu trabalho clíni-
co, pude equacionar as diferenças. Apresento relatos de experiências e
de casos clínicos como exemplares — no duplo sentido de amostra e
paradigma — da complexidade da clínica, de seus impasses e soluções
em relação às possibilidades do trabalho psicanalítico.
Minha proposta, no entanto, não se esgota em descrever e analisar as
diferentes situações clínicas mais ou menos características do trabalho
psicanalítico. Antes, descrevo para prescrever e prescrevo descrevendo.
Meu trabalho é, a um só tempo, descritivo e prescritivo. Desse modo,
10 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

articulo a pesquisa com o ensino, sabedora de que a transmissão da


psicanálise não se reduz a seu ensino. O que prescrevo é um modo de
conceber a especificidade da psicanálise e da função do psicanalista, para
que se possa identificá-la e praticá-la a partir do percurso da cada um,
situando-a frente às demais modalidades do conjunto de psiquiatria, a
saber: a psiquiatria médica, as psicoterapias e as práticas em saúde mental.
Tomo a psiquiatria como um conjunto, porque entendo que ela deve
comportar essas práticas distintas, incluindo a psicanálise como um de
seus componentes. Em princípio, a psicanálise está incluída na categoria
das psicoterapias. Mas é importante que se estabeleça sua diferença para
não diluí-la ou mesclá-la com variações que descaracterizem sua especi-
ficidade. Assim, a questão não é recusar à psicanálise seu estatuto de
psicoterapia, e sim diferenciá-la das demais psicoterapias. Entretanto,
considero que não é imprescindível instituir a psicanálise como mais
uma especialidade na lista de ofertas dos serviços.
Primeiro, porque a clínica psicanalítica é praticada por profissionais
com diferentes designações como psicólogos, psiquiatras e outros. Ao
instituí-la, é como se só aqueles designados como psicanalistas pudes-
sem praticá-la. Quem designaria? Segundo, porque, além de não dizer
quase nada sobre seus procedimentos, cria expectativas e idealizações
que, na melhor das hipóteses, decepcionam e, na pior, aumentam a
resistência tanto de outros profissionais quanto da clientela. Uma certa
atopia, um estar 'à sombra', pode ser salutar como lugar para o psicana-
lista no trabalho institucional. Acredito que, ao longo do texto, minha
posição se explicitará melhor.
Outro ponto a ser discutido é a escolha do ambulatório como local
para o desenvolvimento da pesquisa. Todos os profissionais pesquisados
desenvolvem seu trabalho nos ambulatórios. Há alguns casos em que
trabalham também em enfermarias, na psiquiatria ou no hospital geral,
ou nas chamadas estruturas intermediárias na psiquiatria — hospitais-dia
e centros de atenção psicossocial. O ambulatório é, sem dúvida, o local
privilegiado para a prática da psicanálise porque faculta o ir-e-vir, man-
tém uma certa regularidade no atendimento pela marcação das consultas,
preserva um certo sigilo e propicia uma certa autonomia de trabalho para
o profissional.
Uma das críticas feitas freqüentemente ao ambulatório, especialmen-
te pelos ideólogos da saúde mental, é que sua estrutura e modo de
funcionamento são análogos aos do consultório, como se esta prática,
com seu caráter privado, fosse indevidamente transposta para o serviço
Ao Leitor I 11

público. Penso justamente ao contrário. O ambulatório não é um simu-


lacro do consultório; é o próprio consultório tornado público. Nesse
sentido, o termo público adquire uma significação ampla. Primeiro, para
designar a rede estatal de serviços que oferece atendimento gratuito à
população na área da saúde, o serviço público. Segundo, como facultado
ao público em geral, qualquer pessoa tem o direito de ser atendida.
Terceiro, e mais importante, é a idéia de tornar público, visível, e deixar
transparecer o trabalho clínico por oposição ao termo privado como
privativo de alguém. Por mais privatizado que seja o funcionamento de
um ambulatório, o volume de pessoas que circulam, as formas de registro
e as várias relações aí estabelecidas tornam sua marca de público inapa-
gável. Devemos nos beneficiar disto tornando-o mais público.
Se a clínica psicanalítica requer uma certa intimidade, discrição e
sigilo, isto não quer dizer que sua prática deva se perder no intransmis-
sível. O tornar público a que me refiro, no que diz respeito à psicanálise,
é fazer circular, entre os pares e profissionais afins, o cotidiano da clínica
com seus impasses e sucessos. É também produzir trabalhos, estudos de
casos e pesquisas para redimensionar o alcance da teoria em relação à
experiência clínica, que traz desafios de todo tipo. O meio universitário
é bem propício, assim como as associações dc psicanalistas.
Definido o objetivo do trabalho, passo à apresentação do seu conteúdo.
O primeiro capítulo — "O que é feito da psicanálise" — apresenta
uma breve discussão sobre a difusão da psicanálise, e, ao enfocar o
ambulatório, discute os obstáculos à psicanálise, por um lado, em relação
à clientela e, por outro, em relação às outras práticas na psiquiatria. Em
seguida, apresenta a heterogeneidade do campo psicanalítico como pro-
blemática para sua definição. Na última parte, discute a psicanálise no
contexto do ambulatório, propondo uma redefinição do termo 'contexto'.
Nesse ponto, recorro às concepções de contexto e recontextualização
propostas por Richard Rorty e Jacques Derrida para desfazer equívocos.
O que devemos deduzir é que não há duas psicanálises, uma para o
consultório e outra para o ambulatório. Minha referência primordial é
Freud, considerando que a psicanálise não pode ser dissociada do seu
fundador. Também recorro à leitura de Lacan e às suas contribuições
conceituais para resolver impasses deixados por Freud, abrindo novas
possibilidades de recontextualização da psicanálise no próprio campo da
teoria com ênfase na função do analista.
O segundo capítulo — "Interrogando o ambulatório" — apresenta a
pesquisa sobre o ambulatório, recortando as principais etapas do trabalho
12 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

clínico como o atendimento inicial (recepção ou triagem) e o encaminha-


mento, o trabalho em equipe e o tratamento propriamente dito. Em
seguida, discuto as peculiaridades dos profissionais 'psi' (psiquiatras,
psicólogos e psicanalistas) e proponho três questões para a clínica psica-
nalítica no ambulatório sobre os principais pontos em que este difere do
consultório: a questão do dinheiro, onde é proibido cobrar; a questão do
divã, onde este praticamente não existe; e a questão do tempo, onde a
burocracia dos serviços e a peculiaridade da clientela podem gerar obs-
táculos.
O terceiro capítulo — "Por uma psicanálise possível" — apresenta o
que considero as condições mínimas para se definir a clínica psicanalíti-
ca, em sua diferença para com as demais psicoterapias, como uma clínica
da realidade psíquica que condiciona a fala ao movimento da transferên-
cia dirigida ao analista que, por sua vez, tem na interpretação e numa
relação peculiar com o tempo instrumentos para o manejo do tratamento.
Além disso, apresento uma condição que marca fundamentalmente o
trabalho do analista definida como seu desejo, que difere do desejo de
um sujeito. Ao final, concluo traçando o perfil do "psicanalista que
convém" para levar adiante o trabalho psicanalítico nos serviços públicos
de saúde, esse mundo de vastas confusões e atendimentos imperfeitos.
/

O que é feito da psicanálise

1. A polêmica da psicanálise

A psicanálise, tal como Freud a concebeu, sempre foi praticada em con-


sultórios privados, e os psicanalistas jamais dependeram de uma formação
universitária ou de órgãos oficiais de reconhecimento da profissão para
exercerem sua clínica. Tudo sempre se passou de modo a manter a forma-
ção e a prática psicanalíticas numa espécie de extraterritorialidade, como
ironizou Castel (1978), em relação às outras profissões liberais e às de-
mais práticas médico-psiquiátricas. Essa peculiaridade, no entanto, não
impediu que a psicanálise se difundisse, expandindo sua área de influên-
cia. A primeira vista, poderíamos dizer que a psicanálise veio, viu e
venceu. Ocupou parte do território das instituições psiquiátricas como,
por exemplo, as comunidades terapêuticas; provocou mudanças nosográ-
ficas, diagnosticas e de tratamento na psiquiatria sob a rubrica de psico-
dinâmica; instrumentou práticas psicoterapêuticas diversas, difundiu-se
para outros campos do saber e, ainda, tomou de assalto, através da mídia,
a vida sexual-amorosa, familiar e social das classes médias urbanas sob a
forma de uma 'cultura psicanalítica'. Esse fenômeno se deu de modo
desigual e em diferentes períodos, principalmente nos EUA (Nunes,
1984), na França (Turkle, 1970) e no Brasil (Martins, 1979; Santos, 1982;
Figueiredo, 1984e 1988; Figueira, 1985; Russo, 1987). A psicanálise teria
se tornado ubíqua e sempre haveria um ponto de vista psicanalítico para
tudo. Em parte, isso é inegável, e alguns estudiosos apontam para os
efeitos, muitas vezes nefastos, dessa psicanalisação do cotidiano sobre a
própria clínica psicanalítica (Figueira, 1985b).
14 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

O que interessa, entretanto, não é julgar se a difusão da psicanálise é


boa ou má em seus efeitos, mas atentar para o fato de que esse fenômeno
não se deu de modo tão efetivo no que diz respeito ao exercício sistemá-
tico da clínica psicanalítica nas instituições médico-psiquiátricas. Refi-
ro-me particularmente ao caso brasileiro, mas não creio que sejamos a
exceção.
Especulando sobre possíveis causas, destaco das argumentações cor-
rentes dois aspectos distintos, porém complementares: o da demanda de
atendimento e o dos próprios dispositivos de tratamento.
Quanto ao primeiro, a demanda pode ser de atendimento médico em
geral ou de psicoterapia — aqui costuma-se incluir a psicanálise. Há
vários estudos discutindo a questão da diferença sociocultural e da con-
seqüente discrepância entre os pontos de vista do terapeuta e do paciente
sobre as representações de doença, tratamento e cura. Além de autores
estrangeiros como Boltanski (1979) e Bernstein (1980), autores brasilei-
ros como Lo Bianco (1981), Duarte & Ropa (1985), Duarte (1986),
Bezerra (1987) e Costa (1989a) trataram da questão apontando para a
necessidade de relativizar valores e concepções de subjetividade e cau-
salidade psíquica, quando se trata de atendimento psicoterapêutico à
população de baixa renda que aflui aos serviços públicos de saúde.
Em primeiro lugar, não devemos reduzir a complexidade do disposi-
tivo psicanalítico — isto talvez não sirva para outros modelos de psico-
terapia — aos ideais do terapeuta, enquanto representante da classe
média escolarizada. Se os ideais de cura do terapeuta são pautados por
seus próprios valores, sua função, no entanto, não deve sê-lo. O que ele
acha que deve ser há que ser posto em suspenso e as condições de
analisabilidade não devem se orientar exclusivamente pelos conteúdos
mais ou menos psicologizados da fala do cliente. E claro que um certo
patamar de individualização deve ser atingido para que o sujeito possa
desenvolver alguma reflexão sobre si, o que também é parte do processo
analítico. Isto sem mencionar os casos de pacientes psicóticos de quem
não podemos abrir mão de tratar, ou pelo menos tentar. Estes estariam
bem mais distantes do ideal de analisando-padrão.*

Sobre o problema das diferenças socioculturais impeditivas para se estabelecer


um processo psicanalítico temos, no limite, um curioso exemplo de algumas
experiências bem sucedidas no trabalho de Ortigues, M.C. & E. (1989), realiza-
do na década de 1960, no Senegal. Ali se viveu a experiência de ura entrecruza-
mento de três culturas: o tradicional sistema tribal, onde a possessão pelos
ancestrais e a feitiçaria marcam os rituais e as relações intersubjetivas; a cultura
O que é feito da psicanálise \ 15

Em segundo lugar, é importante frisar que o suposto modelo univer-


salizante da psicanálise refere-se, que deve ser entendida como um con-
junto de conceitos articulados como 'universais' — algo que não é em si
um defeito teórico mas pré-condição de um sistema — suficientemente
operacionalizáveis para serem aplicados a uma demanda diversificada.
Não se trata de defender a posição ingênua de 'psicanálise para todos',
mas de apostar numa maior aplicação do dispositivo psicanalítico que
permita seu exercício além dos consultórios privados com clientes estrei-
tamente afeitos à cultura 'psi'. E, mais ainda: se fazer psicanálise é
produzir mais cultura psicanalítica, só nos resta a escolha de recuar
diante dessa oferta em nome de uma idealização purista das diferenças
culturais ou assumir que esse atravessamento cultural pode ser benéfico
para todos aqueles que embarcam nessa aventura.

O segundo aspecto refere-se aos dispositivos de tratamento que con-


correm entre si, tornando-se mais ou menos hegemônicos, de acordo
com variáveis histórico-políticas que não serão discutidas aqui. O que
temos observado, mais recentemente, é o recrudescimento de uma ten-
dência na psiquiatria em privilegiar o tratamento medicamentoso em
nome de uma maior rapidez e eficácia dos resultados. Os próprios crité-
rios de classificação diagnostica apontam para uma fragmentação das
grandes categorias clínicas de neurose e psicose para compor um mosai-
co de síndromes variadas e de transtornos da personalidade. Produzem,
assim, uma combinatória de sinais e sintomas, com base em substratos
químicos e neuro-anatômicos, rastreáveis por aparelhos que detectam
alterações antes imperceptíveis ao olhar clínico.
Tudo isso pode ser muito bom para os tumores e lesões do sistema
nervoso central, mas mesmo os comportamentos acabam submetidos a
essa varredura, e novas categorias nosológicas são formuladas no intuito
de ampliar o alcance do tratamento medicamentoso. Temos na fobia
social, na síndrome do pânico e no distúrbio obsessivo-compulsivo três
bons exemplos. Nesse cenário, a psicoterapia ocupa um lugar secundário
ou acessório, sendo que as psicoterapias cognitivas parecem atender
melhor à proposta de efeitos rápidos na remissão de sintomas, além de

islâmica que pratica o monoteísmo e o culto ao livro sagrado e se apresenta como


mais evoluída em relação ao sistema tribal; e a cultura européia de língua
francesa que atua maciçamente no processo de escolarização e medicalização, e
representa a dominação estrangeira como um ideal de evolução civilizatória.
16 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

serem consideradas mais objetivas, passíveis de estudos de follow up,


estatísticas etc. Se, de fato são mais eficazes, não nos compete responder.
Mas, certamente, dependem de variáveis que não são consideradas em
seu próprio método, ou seja, daquilo que Freud chamou de efeito da
sugestão que está na base dos fenômenos da transferência.
O que interessa não é comparar modelos, ou analisar um determinado
modelo a partir de outro, mas apenas atentar para esses dispositivos que
se apresentam com a bandeira da eficácia e da rapidez. A psicanálise,
nessa visão, torna-se praticamente inútil. Considerada um processo de-
masiado longo, não-objetivável, que exige uma formação de técnicos
muito complexa e igualmente prolongada, a solução possível foi encur-
tá-la na chamada psicoterapia breve. A meu ver, um breve contra a
psicanálise. Da alquimia psicanalítica às bombas químicas de rápidos
efeitos (colaterais?) de longa duração. Eis o paradoxo: pacientes que
permanecem freqüentando os ambulatórios, por um longo tempo, em
busca de receitas de ansiolíticos e/ou antidepressivos. Por que não a
longa duração de um tratamento psicanalítico?
Quanto à formação profissional, a dos psicanalistas não é tarefa sim-
ples. A universidade não é o lugar recomendado ou suficiente, embora
este não seja um bom motivo para se abandonar o projeto. A universidade
não deve se furtar a este desafio, mesmo admitindo que estudar psicaná-
lise e ter supervisões clínicas não bastam para fazer do aluno um psica-
nalista. Diríamos que é um bom caminho andado. Mas isso pode ser um
desvio da questão. Não me proponho a discutir a psicanálise na univer-
sidade e sim as possibilidades e limites da clínica psicanalítica nos
serviços de saúde da rede pública em geral.
Talvez pareça uma pretensão fútil, uma veleidade de psicanalista,
insistir na defesa de um aparato tão sofisticado, quando as instituições de
saúde atravessam uma crise tão séria, com sua existência ameaçada pelo
descaso das autoridades públicas, tanto pelo profissional quanto pela
população usuária. No entanto, não devemos recuar, uma vez que o
trabalho de ensino, pesquisa e qualificação acadêmica deve estar sempre
à frente das condições efetivas de sua realização. Especialmente agora,
quando se consolida uma ampla política de combate à estrutura asilar de
cronificação da doença mental, urge que mantenhamos viva a discussão
sobre o tratamento psicoterapêutico em regime ambulatorial, o que, cer-
tamente, pode dar suporte ao projeto de desenclausuramento dos pacien-
tes psiquiátricos. Ao trabalho político e social deve-se somar o trabalho
clínico. É preciso revisitar o funcionamento inercial dos ambulatórios
O que é feito da psicanálise | 17

sem desfazer de seu potencial terapêutico. Além do mais, penso que o


dispositivo psicanalítico não foi posto à prova o suficiente para ser
descartado como ineficaz ou impróprio para atender à população que
procura os serviços públicos.

2. O campo psicanalítico em questão

Ao examinar os pressupostos teóricos da psicanálise, logo me deparo


com problemas em sua definição. Do que se trata quando se fala em
psicanálise?
Esta é uma preocupação de vários analistas de diferentes orientações
e há um certo consenso em admitir que a existência de concepções
diversas de psicanálise gera uma dispersão irreversível na produção con-
ceituai e, conseqüentemente, nas concepções do trabalho clínico.*
São reconhecidos, pelo menos, três modelos pregnantes que compõ-
em o mosaico do campo psicanalítico: o kleinianismo e suas variações,
conhecido como escola inglesa; a psicologia do ego como fruto de uma
'americanização' da psicanálise liderada por imigrantes europeus; e o
movimento lacaniano conhecido como escola francesa.
Desenvolverei brevemente cada um, situando-os em seu aparecimen-
to na história e em seus fundamentos metapsicológicos, nosológicos, de
tratamento e cura.

A escola kleiniana, que se estabeleceu eminentemente na cultura


britânica, é herdeira do pensamento de Karl Abraham, mestre e analista
de Melanie Klein, e inaugura a clínica infantil.
Quanto à metapsicologia, a referência inicial em Abraham é à primei-
ra fase da démarche freudiana, especialmente dos textos de 1915; em
seguida, ao ciclo maníaco-depressivo, em particular à melancolia, aos
estádios pré-genitais e aos processos de incorporação e desenvolvimento
da relação de objeto nas diversas modalidades genéticas da ambivalên-
cia. Seu pensamento é centrado na dialética da ambivalência primitiva e

Destaco aqui alguns autores como Mannoni (1982, 1989), Mezan (1988a,
1988b, 1988c), Bercherie (1988), Berlinck (1991), Bezerra (1991), Lo Bianco
(1991), Kernberg (1994) que discutem o problema numa perspectiva histórico-
política, seja priorizando o confronto entre modelos ou articulando-os com
as especificidades socioculturais dos diferentes contextos em que se desen-
volveram.
18 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

da totalização do objeto, e essa é a matriz de Melanie Klein. Num


segundo momento, a nova dualidade pulsional e a segunda tópica freu-
diana constituem os conceitos de base do modelo kleiniano. Um certo
antropomorfismo presente em Freud fundamenta a concepção do con-
junto da atividade psíquica como um mundo interno de fantasias atemo-
rizantes, que fomentam o conflito ambivalente, a partir do inatismo das
pulsões de vida e morte, da precocidade do superego sádico e avassala-
dor, da pregnância das imagens corporais e dos processos de incorpora-
ção e rejeição dos objetos parciais.
As diferentes modalidades pulsionais que constituem o funcionamen-
to psíquico e seus objetos internos sucederiam-se assim: inicialmente, há
a posição esquizo-paranóide, dominada pelo ódio, pela retaliação perse-
cutória e pela idealização; em seguida, vem o equilíbrio entre a culpabi-
lidade depressiva autodestrutiva e a onipotência reparadora da defesa
maníaca; e, por fim, o predomínio da integração objetai com os meca-
nismos de reparação, a assunção do Édipo e a instauração da saúde
mental. Para um estudo mais detalhado, remeto o leitor ao trabalho de
Jean-Michel Petot (1988).
Segundo Bercherie (1988), apesar de este encadeamento de posições
remeter a uma reconstrução genética da vida infantil à adulta, sua apre-
sentação fenoménica tem um caráter atemporal e mesmo transcendental,
em que se destaca a simbiose do sujeito com o objeto como um estado
de confusão de limites entre o interior e o exterior. A personalização do
vivido da fantasia do seio e do falo, por exemplo, se apresenta mais como
uma fantasmagoria, na qual o objeto externo não passa da externalização
do objeto interno. O objeto real tem um papel subsidiário de agravação
ou correção da fantasia.
Quanto à nosología, Klein não produz exatamente um modelo. Vários
críticos encontram nela uma tendência à psicotização da estrutura subje-
tiva da fase esquizoparanóide, a partir da noção de ambivalência em sua
forma mais primitiva. Para Bercherie, o kleinismo considera a totalidade
da estruturação subjetiva e sua patologia mais à luz da fenomenologia
dos mecanismos de introjeção, rejeição, denegação, onipotência, cliva-
gem etc., do ciclo maníaco-depressivo, enfatizando o aspecto fundamen-
talmente dual do funcionamento psíquico. A força inata das pulsões de
vida e morte contradiz em parte sua própria formulação da presença
precoce do conflito edípico que, pelo menos em Freud, tem uma compo-
sição triádica.
O que é feito cia psicanálise | 19

Quanto ao tratamento e à cura, a ética kleiniana enfatiza o amor como


fator positivo (pulsão de vida) e o ódio como fator negativo (pulsão de
morte/destrutiva) no remanejamento do universo da fantasia, concebido
como interno, endógeno, e desemboca numa postura clínica extrema-
mente crítica, culpabilizante, pondo o analisando, de certa forma, sob
suspeita. A transferência seria a cxternalização do mundo interno do
sujeito que revela sua profunda dependência regressiva e ambivalente.
Cabe ao analista, em sua perspicácia, exercer uma atividade quer expli-
cativa, para aliviar os estados de angústia emergentes, quer descritiva da
própria situação transferencial, numa espécie de tradução simultânea do
discurso no 'aqui e agora' para o referencial teórico que subsidia a
interpretação. A tática principal é explicitar para o analisando suas defe-
sas narcísicas contra a integração de sua ambivalência e a assunção de
sua dependência dos bons objetos. Essa espécie de vigilância constante
submete o funcionamento psíquico a uma certa censura moral, dificul-
tando uma mudança subjetiva frente ao analista e, conseqüentemente, a
dissolução da transferência (Little 1951; Figueiredo 1992).
N u m a etapa posterior, o kleinismo é alçado a um nível mais sofisti-
cado de metapsicologia e criatividade clínica. Entre seus discípulos,
destacam-se Bion, o nome principal, e Meltzer, seu epistemólogo, que
dão uma especial atenção ao conceito de identificação projetiva, formu-
lado desde 1946. Privilegiam seu aspecto interacional como instrumento
de clarificação da comunicação inconsciente do paciente com o analista,
nunca ao contrário, e ampliam a exploração dos fenômenos da contra-
transferência e da psicose. A contratransferência passa a ser uma referên-
cia central para a interpretação, a bússola do analista. Este se coloca mais
como um continente das projeções do analisando que o afetariam 'inter-
namente' e não apenas como uma suporte dessas projeções. A técnica
interpretativa adquire uma coloração subjetiva, onde a expressão do
vivido pessoal do analista tem mais peso do que o material clínico
propriamente dito (Garrigues e cois. 1987). Na observação de Bercheric,
por um lado, esse viés de intuição do analista atingido diretamente pelas
projeções do analisando, pode ter a função de esvaziar o excesso de saber
do analista presente nas interpretações-traduções do primeiro momento
do kleinismo. Por outro, transformar o vivido do analista em sua bússola
para interpretação, pode gerar distorções ainda mais graves.
De um modo geral, a teoria kleiniana atinge um nível de conceituali-
zação interacional no campo dos processos de simbolização, mas ainda
deixa de lado a relação desses processos com a linguagem como institui-
20 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

ção social, mantendo a mão única das produções psíquicas da criança


para o adulto e do paciente para o analista.

A psicologia do ego, patrocinada, em seus primórdios, por Freud


através de sua filha, Anna Freud, e dos membros mais influentes do
grupo vienense, se desenvolveu principalmente nos EUA. Desdobrando-
se a partir do modelo freudiano, acentua a inspiração funcionalista do
ego adaptativo. Heinz Hartmann é considerado seu fundador, com o livro
Psicologia do eu e o problema da adaptação, publicado em 1939. Seu
trabalho desenvolve a proposta de Anna Freud em O ego e seus mecanis-
mos de defesa, de 1936. Posteriormente, são absorvidas certas concep-
ções kleinianas dando origem a um modelo híbrido.
Quanto à metapsicologia, suas principais características são a rejeição
do conceito de pulsão de morte, substituído por uma pulsão de agressão
(uma espécie de segunda pulsão de vida com caráter um tanto negativo);
a apreensão bastante biologizante da atividade psíquica com ênfase num
modelo genético; e o contato com a psicologia cognitiva experimental.
Daí a valorização da observação de bebês. O livro O primeiro ano de vida
do bebê de René Spitz, publicado em 1958, é uma referência.
O ego é concebido como uma instância de adaptação externa e síntese
interna que se diferencia funcionalmente do id pelos aparelhos perceptivo,
motor e cognitivo, canalizando as energias pulsionais selvagens do id em
descargas regradas, adaptadas às necessidades da realidade-ambiente.
Essa realidade se define como sendo de ordem relacional e social, indu-
zindo o analista a um interesse constante pelas especificidades sociohis-
tóricas do ambiente, pelo culturalismo e disciplinas sociológicas afins. As
publicações de Erik Erikson no início da década de 50, como Identidade,
juventude e crise e Infância e sociedade, são um bom exemplo.
Quanto à nosologia, esta assenta-se sobre um tripé. A neurose, onde
um ego estável tenta se adaptar às exigências de um superego sádico,
pré-genital, ou às pulsões do id que o transbordam. Os estados borderli-
ne, em que ego e objeto estão separados, mas submetidos aos golpes de
uma dinâmica pulsional, ameaçadora e incontrolável, clivada em amor
idealizado versus hostilidade persecutória (nesse ponto, o recurso a Me-
laine Klein é incontestável). E a psicose, onde há uma desagregação das
estruturas psicológicas e de suas representações de objeto, principalmen-
te por uma liberação de agressão livre desneutralizada, vitória da violên-
cia pulsional sobre o ego, do pólo autístico ao pólo fusionai simbiótico
de estrutura oral.
O que é feito da psicanálise \ 21

Quanto ao tratamento, a transferência constitui seu meio fundamental


como uma dinâmica psíquica em suas modalidades patológicas e arcai-
cas, que provocam uma distorção projetiva da relação analítica. Em
contrapartida, surgem as noções de "aliança terapêutica", "aliança com
a parte sadia do ego", "aliança de trabalho", para redefinir o pacto
terapêutico proposto por Freud. O insight, processo cognitivo — o que
o paciente aprende de seus conflitos e sintomas — aliado ao processo
afetivo — a identificação com o analista que vai adquirindo formas mais
sutis e abstratas — é o caminho da cura. O analista funciona como
personificação da objetividade e da maturidade racional, egóica, para
enfrentar o irracional projetivo e arcaico da transferência, utilizando-se
exclusivamente da interpretação. Seu ponto cego reside na contratrans-
ferência, em seu 'irracional' não analisado, que ameaça romper o equilí-
brio do setting analítico.
Este modelo, com sua aspiração racionalista, objetivista e evolucio-
nista, parece bastante compatível com os ideais médico-científicos que
dão sustentação a uma determinada concepção de psiquiatria, e se presta
à instituição de uma ortodoxia que ultrapassa em rigor técnico a postura
um pouco mais livre do próprio Freud.

Há, ainda, o grupo dos heterodoxos, cujos principais representantes


são Winnicott, Balint, Ferenczi, Searles e Kohut, a quem Bercherie se
refere como a "nebulosa marginal". Seu ponto comum seria a alteridade
em sua dimensão fundadora. A 'realidade psíquica' não seria mais do que
um efeito, sombra do real histórico.
Bercherie esclarece a designação como pertinente tanto à situação de
seus representantes na organização institucional da psicanálise quanto à
sua ideologia e valores. Essa corrente não constitui propriamente um
modelo. São trajetórias individuais que têm como ponto comum a busca
de uma maior eficácia da clínica através de novas formas de intervenção.
Da técnica ativa de Ferenczi ao holding de Winnicott, transgride-se a
técnica clássica difundida pelas correntes ortodoxas, considerada insufi-
ciente e muito limitada.
As diferentes tendências ordenam-se sobre variações balizadas, de
um lado, pela referência ao trauma como fator patogênico, retomando a
teoria da sedução freudiana num sentido mais amplo e, de outro, pela
modificação do conceito e do manejo da regressão na análise. Em Fe-
renczi, por exemplo, o tratamento catártico é revalorizado e a escuta
analítica deve tornar-se menos neutra e mais participante, incentivando
22 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

a compreensão e o diálogo como uma função simbólica reparadora do


vivido traumático infantil.
A metapsicologia e o tratamento se aliam a certas referências noso-
lógicas centradas no conceito de narcisismo primário com Winnicott e
Balint, por exemplo, em que o interesse teórico e clínico do analista recai
sobre a relação primária do analista com a mãe. Com Ferenczi, Searles
e outros, a ênfase é dada à incorporação patogênica das comunicações
inconscientes intrafamiliares, onde a criança é tomada como depositária
das perturbações e desejos mais secretos dos pais, especialmente nas
psicoses.* Mas também é valorizada a função paterna aliada aos proces-
sos de aculturação e socialização.
Nesse cenário, a ortodoxia é condenada como cúmplice da negação
e da mistificação da realidade dos fatos e das interações vividas pelo
paciente em sua história. A função do analista no tratamento é a de um
facilitador do desenvolvimento vital, do processo de maturação, prejudi-
cado pelas relações patogênicas. A contratransferência funciona mais
como guia para o analista e menos como perigo. As interpretações não
devem ter a insistência intrusiva presente no kleinismo. O dispositivo
analítico opera como uma dinâmica intersubjetiva, aberta c imprevisível
em seu trajeto, em oposição ao enquadramento concebido como cienti-
ficista-objetivista e inteleetualista dos ortodoxos. O pensamento incons-
ciente é criativo e a experiência de si, do verdadeiro self, se dá uma vez
que são levantadas as barreiras defensivas de um ego clivado que intro-
jetou o ambiente patogênico. Seguindo a referência freudiana, a realiza-
ção aloplástica deve sobrevir à inversão autoplástica da libido narcísica.
Diferentemente da psicologia do ego, a cura depende mais da auten-
ticidade do vivido, da espontaneidade do processo maturativo, do que da
força ou estabilidade do ego. Para Winnicott, por exemplo, o chamado
'ego forte' não passa de um falso self. Esse processo diz respeito à
presença da ordem objetai como fundadora da subjetividade em seu
caráter interacional. A adaptação à realidade cede lugar à inventividade
própria, à espontaneidade criadora do self.
Ao analista, resta a postura empática, receptiva, devotada e acessível,
c a humildade técnica que chega a admitir que há uma ajuda terapêutica

Destaco dois textos de referência sobre esse tema: "Confusão de línguas entre
os adultos e as crianças" de Sàndor Ferenczi e "O esforço para enlouquecer o
outro: um elemento na etiologia e na psicoterapia da esquizofrenia", de Harold
Searles.
O que é feito da psicanálise I 23

inconsciente constante do paciente ao analista. Há posições críticas entre


os 'marginais' do exagero dessa tendência procurando retomar a regra
fundamental freudiana e um certo rigor técnico.
No essencial, interessa destacar a filiação da antipsiquiatria a essa
concepção da clínica em contraste com a psiquiatría eminentemente
médica Esta última se afina mais com os psicólogos do ego e com os
kleinianos.

O último e mais recente modelo se constitui a partir do nome e do


ensino de Lacan, mais precisamente a partir da cisão na Sociedade
Psicanalítica de Paris em 1953 (Roudinesco, 1986). O famoso Discurso
de Roma — "Fonction et champ de la parole et du langage en psychana-
lyse" — é o marco teórico e político de uma nova 'ortodoxia'.
A partir de uma fusão dos dois estruturalismos — a antropologia de
Lévi-Strauss com a lingüística de Saussure revisitada — e do recurso aos
conceitos de metáfora e metonimia de Jakobson, Lacan inaugura o estru-
turalismo na psicanálise. O conceito de simbólico de Lévi-Strauss se
funde com o conceito de significante extraído da equação saussureana do
signo. A ordem do significante transcende e instaura o sujeito por sua
inscrição na linguagem.
O recurso ao materna — análogo ao mitema de Lévi-Strauss — aos
esquemas e grafos, à teoria dos conjuntos e à topologia, complementa e
reafirma o modelo lacaniano lançando-o para além do estruturalismo
clássico.
O 'retorno a Freud' toma como referência a formulação da primeira
tópica do inconsciente sexual recalcado e estabelece uma certa homolo-
gía, guardando as devidas diferenças entre o associacionismo e o estru-
turalismo. Quanto ao primeiro, critica seu caráter psicológico, represen-
tacional e mecanicista e, quanto ao segundo, afirma seu caráter lógico e
relacional. Os significantes não são representações de sensações ou ima-
gens de objetos e, apesar de serem unidades discretas, só produzem
sentido enquanto articulados entre si numa cadeia linear constituída por
metáforas e metonimias. A fala, por sua vez, já é sintomática no sentido
em que há sempre um hiato entre o que se diz e o que se quer dizer, e a
significação se produz, em última instância, no Outro. Posteriormente,
com o nó borromeano, Lacan vai situar a significação na interseção entre
imaginário (outro) e simbólico (Outro).
Lacan nunca pretendeu fazer uma teoria da comunicação. O Outro
guarda sua dimensão terceira, de alteridade, sobre o outro como interlo-
24 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

cutor da conversa de modo diverso da concepção interacional dos 'mar-


ginais' apoiada nas relações intersubjetivas. O modelo estrutural do Édi-
po é um bom exemplo. O nome-do-pai é uma função da linguagem, a
metáfora paterna, como uma operação de substituição (recalque primá-
rio) que possibilita o advento da fantasia como resposta ao enigma do
desejo da mãe (Outro primordial) e instaura a divisão do sujeito em
conjunção e disjunção com seu objeto. Eis a definição básica da fantasia,
formulada já na década de 1960. Este é o modelo da neurose.
A démarche lacaniana redefine tanto a dinâmica subjetiva quanto a
nosología, o diagnóstico e a função do analista na clínica. Apresento
brevemente cada um desses pontos.
Quanto à metapsicologia, ou sobre a constituição do sujeito, Lacan
postula o entrelaçamento dos três registros: imaginário, simbólico e real.
No decorrer de sua teorização, estes vão sendo redefinidos, variando em
precedência, até a formulação do nó borromeano que os articula a um
quarto nó, que será finalmente definido como o nome-do-pai, tendo a
função de sintoma fundamental que amarra os três registros. A estrutura
edípica, portanto, é o sintoma fundamental do neurótico.*
O imaginário é definido, primeiramente, como imago, matriz do
simbólico na formação do eu (je do sujeito e moi como o ego narcísico
ou o ego ideal) no conhecido texto sobre o estádio do espelho.** Na
década de 1950, passa a ser um precipitado do simbólico, consistente
como imagem do corpo e dos objetos pulsionais, e totalizante como uma
Gestalt. Aí se dão a circulação dos afetos (amor-ódio etc.) e as relações
interpessoais como relações entre semelhantes.
O simbólico é regido pelas leis do significante, em que o processo
primário opera constituído como uma linguagem no desdobrar da metá-
fora (substituição) e da metonimia (deslocamento). Na primeira formu-
lação de Lacan, o simbólico é organizado a partir da metáfora paterna —
primeira operação de substituição — como um ponto de ancoragem para

* Para um estudo mais detalhado da topologia de Lacan, remeto o leitor ao traba-


lho de Jeanne Granon-Lafont, A topologia de Jacques Lacan. Quanto à formu-
lação do nome-do-pai como o quarto nó que constitui o sintoma fundamental,
ver Le sinthome, seminário de 18 de novembro de 1975, publicado em Joyce
avec Lacan, sob a coordenação de Jacques Aubert.
** A concepção do estádio do espelho foi apresentada pela primeira vez no Con-
gresso de Marienbad em 1936, e, posteriormente, foi reapresentada no Congres-
so Internacional de Psicanálise de Zurique cm 17 de julho de 1949. Esta segunda
versão está publicada nos Écrits.
O que éfeito da psicanálise I 25

o sujeito, entrelaçando-o ao eu imaginário e funcionando como barreira


ao desejo enigmático e caprichoso do Outro — representado pelo desejo
da mãe. O significante fálico registra a falta— impossibilidade de acesso
ao desejo do Outro — por diferença da completude imaginária. Entre-
tanto, a constituição do eu, como projeção de uma imagem, só é possível
pela sustentação simbólica do Outro. O esquema L formulado no Semi-
nário 2 (1954-55) mostra como os dois eixos, imaginário e simbólico, se
articulam.
O real, em sua primeira formulação, é o inefável, não captado na
estrutura significante, o ser perdido do sujeito a partir da castração sim-
bólica, ou seja, da incidência da metáfora paterna. Lacan, posteriormen-
te, o define como seu próprio sintoma e, ao mesmo tempo, como sua
contribuição à psicanálise através do conceito de objeto a — aquilo que
se perde do ser pela marcação do simbólico e constitui, míticamente, a
falta primordial do objeto.*
A realidade seria o efeito da conjunção do simbólico com o imaginário
que encobre o real em sua ex-sistance. Uma outra significação para o real
é a de 'partes sem todo', contrariando a ordem do mundo, em sua absoluta
ausência de sentido. Na década de 1970, o real vai comportar a letra em
sua materialidade como suporte do significante e uma dimensão do gozo
que escapa à ordem fálica e, paradoxalmente, só pode ser pensado a partir
dessa ordem como um efeito da marcação do significante.
Quanto à nosología, são definidas três estruturas: neurose (sujeito
dividido); psicose (foraclusão — rejeição primordial da metáfora pater-
na); e perversão (desmentido da castração). O diagnóstico é feito na
transferência, ou seja, no modo como o sujeito se apresenta ao analista
(o Outro do sujeito): o neurótico como faltoso e demandante em sua
queixa; o psicótico como invadido pelo Outro, ou anulando-o; e o p i
verso (quando se apresenta!) como objeto para o Outro, não para o Ou> o
absoluto do psicótico, mas para o sujeito dividido. A clínica lacaniana
exige uma distinção entre neurose e psicose, sendo que a perversão é

O conceito de objeto a é bastante complexo e não cabe desenvolvê-lo em toda a


sua extensão. A partir do Seminário, livro 11 — Os quatro conceitos fundamen-
tais da psicanálise, de 1964, Lacan formula este conceito articulando-o com a
pulsão escópica. Já na década de 1970, tendo desenvolvido sua topologia, Lacan
lhe atribui uma função que perpassa os três registros deixando-o retido no centro
do nó borromeano e, portanto, não se reduzindo ao registro do real. No imagi-
nário tem a função de objeto parcial — as vestimentas imaginárias; no simbólico
é designado pelos significantes; e, no real, como objeto perdido.
26 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

mais problemática. Muitas vezes, localizam-se traços perversos na estru-


tura neurótica.
Quanto à função do analista, Lacan introduz uma virada fundamental
no conceito de transferência. Em sua diatribe contra os psicólogos do
ego, denuncia mais a resistência do analista do que a do analisando. O
analista resiste com seu ego, seu sintoma, suas interpretações plenas de
significado, seu saber que, ao ser suposto, não deve ser encarnado num
ego ideal. A transferência não é para ser interpretada. Ela constitui o
dispositivo analítico. O conceito de 'sujeito suposto saber' é central para
definir o estatuto da transferência. O analista, ao ser autorizado a escutar
um sujeito, está suposto, não como aquele que sabe, mas como aquele
que deve receber a fala do sujeito como produção de saber, para dar-lhe
um destino pela via da interpretação. O sujeito, por sua vez, só fala
porque supõe que isso irá levá-lo a algum lugar ainda não sabido. Se-
ria uma espécie de prova de fé no inconsciente como promessa de signi-
ficação.*
A técnica deve dar lugar, por um lado, à ética, centrada no que Lacan
conceitua como o desejo do analista, e, por outro, ao estilo, o savoirfaire
do analista, com toda a carga semântica do termo, por diferença ao know
how mais tecnológico. O desejo do analista é um conceito cuja força
enigmática o transforma em legado e desafio permanente para a psica-
nálise lacaniana. Pode-se defini-lo como o desejo de pura diferença,
sustentando na transferência o lugar de objeto perdido (objeto a) como
causa de desejo. O lugar do analista não pode ser o de um outro sujeito
— a intersubjetividade está fora de questão, apesar de ter constado de
seus primeiros escritos — deve ser o do objeto que falta, lançando o
sujeito ao desejo. Simplificando, trata-se de reduzir ao mínimo a pessoa
do analista em suas intenções, seu ego; portanto seu sintoma; mas, para-
doxalmente, deixando-o livre quanto às possibilidades de sua interven-
ção. O analista se faz ao final de sua própria análise.
Podemos situar em Lacan dois tempos na concepção do tratamento
— em francês, cure por oposição a guérison — (Miller, 1987 e Bercherie,
1988). O primeiro, na década de 1950, enfatiza a função central da fala
como reveladora da verdade censurada da história e dos sintomas do
sujeito, guiando a intervenção do analista sobre a emergência das forma-

Sobre o conceito de 'sujeito suposto saber', remeto o leitor ao trabalho de


Jacques-Alain Miller, Percurso de Lacan, uma introdução, que o sistematiza de
modo didático no capítulo "A transferência. O 'sujeito suposto saber'".
O que éfeito da psicanálise I 27

ções do inconsciente {Discurso de Roma, 1953). O 'sujeito suposto


saber' refere-se tanto à posição do analista na transferência quanto à
suposição de saber atribuída ao inconsciente como o Outro do sujeito que
põe o processo associativo em marcha. Deve-se evitar a confrontação
imaginária ou ego-narcísica — analista identificando-se com o saber,
confronto de sentimentos ou expectativas etc — típica da análise das
defesas, para permitir a emergência do sujeito do desejo. O analista
busca localizar-se como o Outro, o terceiro da função paterna.
O segundo tempo, a partir da década de 1960, Lacan enfatiza o real.
O analista deve ser o pivô do processo, fazendo as vezes (semblante) do
objeto a, o objeto que falta e, por isso, causa desejo. No fim da análise,
o analista deve se reduzir a um resto da operação simbólica. A análise
deve conduzir o analisando a assumir sua determinação significante para
ultrapassá-la até o ponto em que toda a significação, toda a produção
analítica se lança num sem sentido esvaziado de gozo. E um processo
exaustivo de desidentificações (travessia da fantasia) que desemboca
numa posição vazia (destituição do sujeito do inconsciente) onde se
encontra o lugar do analista (des-ser). A fantasia deve-se opor o enigma
do desejo como um real opaco onde se situa o sujeito. Não o sujeito do
inconsciente alienado ao discurso do Outro ou do Mestre, mas em seu
movimento de separação. O recurso cada vez mais incisivo aos cortes nas
sessões, que tendem a ser curtas, seria um meio de promover esse curto-
circuito. Este é o ponto mais controvertido da clínica lacaniana. Hoje,
temos uma variedade de leituras de Lacan nas quais podemos reconhecer
um divisor de águas esses dois momentos de sua teoria.

Apresentados os diferentes modelos que compõem o campo psicana-


lítico, a questão não se reduz a reconhecer essas tendências em sua
disputa pela ortodoxia. Deve-se tentar encontrar um ponto comum sobre
o qual esses modelos se edificam sob a rubrica de psicanálise. E possível
pensar em uma unidade diante de tanta diversidade? Ou o campo psica-
nalítico pode explodir numa babelização de discursos incompatíveis?
Embora existam conceitos comuns, como inconsciente, recalque, pul-
sões, transferência, interpretação e, last but not least, associação livre,
suas definições e seus usos diferem significativamente.
O pior destino para a psicanálise seria a solução eclética que poderia
transformar o sujeito psicanalítico numa espécie de ornitorrinco dotado
de um ego forte e adaptado a uma ilusão, de um inconsciente interno c
abissal, resultante de relações de duplo vínculo com pais perversos, que
28 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

não passam de significantes ambulantes, e de uma forte tendência agres-


siva, advinda das primitivas pulsões de morte que, por sua vez, resultam
de um superego cultural, ora forte, ora fraco, que se vinga de um ego
narcísico.

Apresento algumas propostas de interesse:


Kernberg (1994), muito preocupado com a queda do prestígio da
formação profissional e da própria clínica psicanalítica nos EUA, lamen-
ta o grande desconhecimento, atribuído ao preconceito e à barreira lin-
güística, do que se passa na Europa, especialmente na França, e destaca
os pontos positivos das "teorias alternativas" que incluem os novos de-
senvolvimentos da psicologia do ego, da teoria das relações de objeto, da
psicologia do self, da análise interpessoal e, até mesmo, de algumas
referências à teoria lacaniana. Propõe uma investigação empírica que
ultrapasse a discussão teórica e uma abertura para as diferenças visando
engrandecer o movimento científico sem a ingenuidade de assimilar
modismos ou fundir modelos incompatíveis. Acrescenta que o candidato
a analista deve ter acesso a abordagens diversificadas, mas alerta as
instituições contra o "terrorismo intelectual" decorrente do proselitismo
carismático de qualquer abordagem nova. Quanto à clínica, defende a
multiplicidade de técnicas sob a égide de alguma trama teórica, com o
objetivo explícito de diminuir os índices de evasão (que parece ocorrer)
entre os pacientes da chamada psicanálise ortodoxa.
Mezan (1988a,b,c) aponta os "monólogos cruzados" entre kleinianos
e lacanianos por se situarem apenas no plano das respostas, ignorando
que as teses não passam de respostas a perguntas diferentes. Daí sua
constatação perplexa de que "os psicanalistas não falam a mesma língua"
(1988b p. 15). Tal dispersão manifesta-se no que denominou uma "trípli-
ce diáspora": dispersão geográfica (contexto sociocultural europeu, nor-
te-americano e latino-americano); dispersão doutrinária (campo concei-
tuai); e dispersão institucional (política da psicanálise como produção de
verdade avessa à relativização). Nesse ponto, Mezan enfatiza o caso
brasileiro através daquilo que denomina "vulnerabilidade ao dogmatis-
mo": na impossibilidade de reconstituir a gênese do que nos é apresen-
tado, resta-nos acatar ou recusar cegamente o que está escrito (1988a,
p. 11). Sua proposta é que se faça uma história epistemológica da psica-
nálise rastreando as perguntas que cada autor pretende responder, uma
vez que o que pode ser fértil para a psicanálise reside não nas afirmações
mas nas novas questões que podem ser formuladas. Para isso, constrói
O que é feito da psicanálise I 29

um método com base no conceito freudiano de sobredeterminação.


Deve-se considerar os desdobramentos de quatro dimensões epistemoló-
gicas da obra de Freud como pontos de isomorfismo ou homologia entre
as três principais escolas pós-freudianas — kleiniana, lacaniana e psico-
logia do ego. Essas dimensões são: uma teoria geral da psique (topologia,
dinâmica e economia do aparelho psíquico); uma teoria da gênese e do
desenvolvimento da psique (história concreta do sujeito referida a um
modelo esquemático universal); como resultante das duas primeiras,
uma teoria do funcionamento normal e patológico da psique (soluções
neuróticas, perversas ou psicóticas para os conflitos fundamentais); e,
por fim, uma concepção do processo psicanalítico (modalidades de in-
tervenção visando modificar o funcionamento psíquico [1988c]).
Lo Bianco (1991), por sua vez, abandona a epistemologia e relativiza
os processos de legitimação das diferentes verdades psicanalíticas, his-
toricamente construídas para ressaltar o problema da importação de
idéias na cultura brasileira. Destaca duas áreas problemáticas na contex-
tualização da clínica psicanalítica: a cultura psicanalítica que grassa
nos extratos médios urbanos psicologizados e seu avesso, a distância
sociocultural da psicanálise que os extratos de baixa renda da popula-
ção apresentam nos atendimentos ambulatoriais. Propõe, então, que os
próprios psicanalistas façam um exame mais criterioso do contexto
sociocultural em que se dá sua experiência analítica, a partir de sua
clínica, a fim de avançar na elaboração teórica de seus conceitos, não
deixando essa tarefa apenas aos teóricos da psicanálise nem aos sociólo-
gos ou antropólogos.
Bezerra (1991) propõe uma rediscussão ética do problema, a partir
da concepção pragmática do conhecimento em oposição à concepção
metafísica. Ao invés de se tentar saber quem é o detentor da verdade
última da psicanálise em seus fundamentos, em sua essência, deve-se
fomentar uma discussão sobre o que há de convergente e contrastante nas
diversas formas do pensar psicanalítico em sua capacidade descritiva e
produtora de sentido segundo as urgências clínicas e determinações pes-
soais, políticas e culturais de cada um.
Bercherie (1988) considera que não é pela via teórico-conceitual que
se vai resolver o problema. Se Freud fazia questão da ciência, é preciso
repensá-la num outro patamar. Por um lado, a necessidade de uma língua
comum, de um consenso conceituai de base, limitaria o avanço que
poderia se dar nos diferentes setores do campo psicanalítico. Por outro,
a questão da filiação, seja de grupos ou pessoal, a determinado modelo
30 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

é revestida de interdições, idealizações e exclusões pelo próprio poder da


transferência que agencia fidelidades esterilizantes ao oferecer o que há
de mais precioso ao futuro analista. Sua proposta para integrar a história
c o estado atual do movimento freudiano é a de um atravessamento
subjetivo como resolução da transferência dirigida à teoria, aos mestres
e à instituição analítica e como assunção de uma nova relação do sujeito
com o real, marcada pela passagem de um quadro claro e evidente à
hiância de uma confusão, ao menos temporária, e de uma relativização
permanente do conhecimento.
A ética é evocada como um novo posicionamento, uma vez que
saberes e conceitos sempre podem ser apropriados, partilhados ou inte-
grados. A postura do sujeito seria unívoca, e é ela que comanda suas
escolhas práticas e teóricas. Ao analista, portanto, cabe ultrapassar sua
filiação, no sentido radical do termo, não só à teoria e aos mestres, mas,
principalmente, à sua própria análise para se engajar na aventura de
refazei" a psicanálise. A opção de Bercherie pelo referencial lacaniano é
explícita. Ele defende que foi Lacan, com seu ensino peculiar, quem
produziu uma dissimetria em relação às outras correntes psicanalíticas
introduzindo a pluralidade do real frente às realidades subjetivas unitá-
rias e coerentes e a dimensão do desejo em sua obscuridade subjetiva
mas também, em sua fecundidade simbólica.
Permanece, entretanto, o problema de como inventar permanente-
mente a psicanálise sem ameaçar romper com o que a caracteriza e
delimita. Seria, em última instância algo comum ao nome de Freud?
Apenas um nome próprio vazio de significação? (Derrida, 1980; Forres-
ter, 1989).

3. A psicanálise no ambulatório: um novo contexto?

A primeira questão de que devo me ocupar são as condições mínimas,


necessárias, para que a psicanálise seja viável no ambulatório. Se tomar-
mos as condições como contextos, esta pode ser uma falsa questão. Para
discutir a noção de contexto apóio-me nas concepções de Richard Rorty
e Jacques Derrida.
Rorty (1991) sustenta que todos os objetos já são contextualizados.
Portanto, a questão não é retirar o objeto de seu velho contexto e exami-
ná-lo em si mesmo para ver qual o contexto que lhe é mais apropriado.
O que está sendo posto em contexto é apenas "boringly and trívially"
uma crença. Falar sobre o objeto é falar sobre os efeitos práticos desse
O que efeito da psicanálise \ 3 1

objeto sobre nossa conduta. Indagar sobre o objeto é antes retecer cren-
ças do que descobrir a natureza do objeto, que pode ser, na melhor das
hipóteses um "focas imaginarius". E uma crença não passa de uma
posição na teia da linguagem. O ato de descrever alguma coisa é relacio-
ná-la com outras, e não há nada que preceda a contextualização (p. 98-
100). Nesse sentido, descrever a psicanálise, seja através dos relatos
obtidos na pesquisa ou das definições que a caracterizam, retece a teia
onde vai se evidenciar uma concepção de psicanálise que, ao mesmo
tempo que se reconhece no contexto da obra freudiana, se altera em
novas recontextualizações.
Devemos, contudo, estar atentos para não' reificarmos a noção de
contexto, erigindo-o à categoria de fundamento último das coisas. Rorty,
em seu estilo desconcertante, nos tranqüiliza: um contexto pode ser uma
nova teoria explicativa, uma nova classe comparativa, um novo vocabu-
lário descritivo, um novo propósito particular ou político, o último livro
que se leu, a última pessoa com quem se falou, as possibilidades são
infindáveis (op. cit. p. 94).
Para Derrida (1991), não há um contexto absolutamente determinável
ou um conceito rigoroso e científico de contexto. Desse modo, recontex-
tualizar a psicanálise pode ser entendido como uma revisão conceituai,
no campo próprio da teoria, como uma relocalização de sua prática no
campo da clínica em suas variações. A dicotomia consultório privado
versus ambulatório público não pode ser tratada como confronto entre
dois contextos, radicalmente diferentes, que supõem duas psicanálises,
pois estaríamos tomando o local e suas condições como o contexto por
excelência, o que é, no mínimo, uma diferença grosseira, senão uma falsa
questão. Entretanto, parto taticamente dessa dicotomia para estabelecer
o jogo das identidades e diferenças, visando pulverizá-la para ampliar as
possibilidades do exercício da psicanálise.
A questão, contudo, permanece: até onde essas possibilidades podem
ser ampliadas? Se o contexto pode referir-se a uma nova teoria explica-
tiva, o que garante que novas recontextualizações, ao produzirem novos
objetos, não nos lançariam no paradoxo de não estarmos mais falando de
psicanálise? Ou pior, poderíamos redescrever ou redefinir a psicanálise
num movimento infindável, onde tudo pode ser psicanálise. Tudo ou
nada são duas faces da mesma moeda. Algo deve permanecer como
identidade na diferença.
Para não cair no atoleiro do sofisma, reafirmando a psicanálise como
a medida de todas as coisas, valho-me novamente das concepções de
32 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Derrida e Rorty para estancar uma dúvida que remonta à discussão dos
filósofos pré-socráticos sobre o que muda ou permanece igual a si mes-
mo no cosmos.
Com Derrida, apóio-me no conceito de réstance — o que resta e
resiste — para assegurar que algo do signo permanece para que seja
reconhecido como tal. Staten (1985), seu comentador, esclarece:
"Uma vez que o contexto não é 'exaustivamente determinável', não
há como traçar um limite até onde ele possa transformar o signo; tudo o
que sabemos é que há um 'resto mínimo' {réstance) que nos permite
reconhecer o signo o suficiente para que continue funcionando como um
signo. Ao mesmo tempo que diferentes ocorrências de um signo são
reconhecidamente as mesmas, todavia, também são diferentes porque
novos contextos mostram novos aspectos de suas possibilidades de sig-
nificação. (...) Contudo, esse não é um fenômeno arbitrário ou indiscipli-
nável; sabemos bem sobre como ativar e delimitar a variação das funções
de uma palavra numa sintaxe construída com engenho e arte. (...) Sabe-
mos a priori que essa variação se estenderá num sem fim para além de
nossas intenções conscientes. Mas a ausência de um limite determinável
ou conhecível não significa que toda e qualquer coisa seja possível em
todo e qualquer tempo; ao contrário, a variação da ativação futura do
significado ocorrerá em contextos futuros, e cada contexto vai mostrar
aspectos correspondentes do significado" (p. 122, tradução minha).
Esta afirmação apresenta o conceito de réstance não corno uma pro-
priedade inerente ao signo; mas, antes, como o que é determinado numa
sintaxe específica cuja variação remete ao tempo futuro na proliferação
de novos contextos. Logo, podemos supor que teve e tem seu limite nos
tempos passado e presente. Estes tempos não são pura cronologia, são
tempos que recortam costumes e crenças, por exemplo.
Com Rorty, sustento sua defesa de um certo 'etnocentrismo', o qual
preconiza que não nos cabe ir além das determinações da cultura, das
contingências históricas que nos constituem com suas palavras e crenças.
Devemos nos contentar em estabelecer a controvérsia entre as partes de
nossas próprias convicções (op. cit. p. 14).
Tomando a psicanálise como uma cultura que produz psicanalistas e
determina sua ação, cabe problematizá-la no seu interior ao invés de
apreciá-la 'de fora', ao modo do observador neutro. Ao tomarmos dis-
tância de nosso objeto para apreendê-lo de outro modo, não devemos
abandonar nosso vocabulário, mas sim ampliá-lo e modificá-lo em novas
O que éfeito da psicanálise I 33

contextualizações para que não se perca a referência ao ethnos psicana-


lítico.
Tomando o termo psicanálise como nosso "signo", o que resta e
resiste remete de imediato ao nome e à obra de Freud. Entretanto, na
atual dispersão do campo psicanalítico, já se alardeia em certos meios
psicanalíticos que o freudismo virou história. É passado e ultrapassado.
No meu entender, o ethnos psicanalítico só faz sentido a partir de Freud
e com Freud. Mas essa atualização ou recontextualização de Freud tem
como contexto uma nova teoria explicativa que, como tal, lança-se pelo
mote de um retorno a Freud. Como já mencionei, o nome de Lacan e sua
teorização — seu ensino por transmissão oral e transcrição — que vem
se constituindo como obra na última década, redimensiona o futuro da
psicanálise. O texto de Lacan é, então, um novo contexto para a psicaná-
lise. Cito aqui um comentário prosaico de Thomas Ktihn que, ao discutir
a tradição e a inovação na investigação científica, define-a como uma
tensão essencial: "Nas ciências, (...) é muitas vezes melhor fazer o que
se pode com as ferramentas à disposição, do que fazer uma pausa para
contemplar abordagens diferentes." (Kuhn, 1989, p. 275-6).
Lacan, a meu ver, situa-se nessa tensão essencial entre o "pensamento
divergente", como "a liberdade de ir em direções diferentes, (...) rejei-
tando a velha direção e arrancando numa nova direção qualquer"; e o
"pensamento convergente", que mantém a tradição do "consenso estabe-
lecido, adquirido na educação científica e reforçado na vida subseqüente
na profissão." (ibid. p. 276-8).
Lacan rompe com a política, a teoria e a clínica instituídas em seu
tempo, arrancando na direção paradoxalmente retroativa a Freud, ao
mesmo tempo que 'redefine' a psicanálise. Hoje, tornou-se uma "ferra-
menta à disposição" exatamente porque não se limitou aos encantos da
"revolução científica" que promoveu, e tratou de restabelecer o terreno
do consenso na "educação" dos psicanalistas, fazendo escola. Convém a
ressalva do termo 'científico', posto que Kuhn refere-se exclusivamente
às ciências naturais, uma vez que não tenho a pretensão de discutir o
estatuto científico da psicanálise nesses termos. O uso da palavra tem
aqui o sentido da teoria como um sistema conceituai, suficientemente
operacionalizável e aplicável na clínica. Esta sim, o elemento-surpresa
que provoca a teoria em seu alcance explicativo e resolutivo. Nesse
ponto, retorno a Derrida para reafirmar minha concepção de teoria: "Não
há conceito metafísico em si. Há um trabalho — metafísico ou não —
sobre sistemas conceituais" (op. cit. p. 37).
Interrogando o ambulatório

1. Sobre a pesquisa: uma participação observante

Ao fazer uma pesquisa empírica para dar suporte à minha argumenta-


ção, tomo a experiência como um campo comum onde se turvam os
limites entre o subjetivo e o objetivo, situando-me na realidade da pala-
vra, e reproduzo os relatos dos sujeitos pesquisados como fatos de lin-
guagem. Não se trata de comprovar a veracidade de cada dito, mas de
citar, o mais literalmente possível, segmentos de falas, de enunciados,
considerando o contexto em que se dá a enunciação. Isto é, no que se
refere ao lugar de onde falam, para quem falam, e ao encadeamento da
fala na seqüência. Não me limito a ser a ouvinte, mas falo com eles,
através deles e para além deles, querendo dizer mais do que foi dito.
Sabedora de que ao citar repito e modifico os relatos orais e escritos a
que tive acesso, dando-lhes um destino peculiar em um novo contexto,
conduzi essa empreitada.
Desse modo, valho-me taticamente desses relatos, como dados dos
quais me aproprio, para construir minha argumentação que pretende ser
mais do que tendenciosa. Pretendo apontar-lhes novos sentidos, transfor-
má-los mesmo, segundo meu propósito de fundamentar a psicanálise
possível fora do consultório privado. Aqui, para definir meu método,
tomo emprestada a expressão "participação observante" de Eunice Dur-
ham em sua crítica bem humorada à tendenciosidade das pesquisas
antropológicas que "resvalam para a militância" (Durham, 1986, p. 27).
Ao me propor conviver e conversar com um meio tão familiar, entrego-
36 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

me à possibilidade de estranhá-lo, mas não abro mão da militância, da


crença que aponta para o desejo de afirmar a psicanálise.

Os procedimentos da pesquisa se desdobraram a partir de três mo-


mentos de meu trabalho que se sucedem e se complementam. Detalho
cada um:
1) Em minha experiência como docente do Instituto de Psiquiatria da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB), convivo com diferentes
profissionais e seus paradigmas de doença, tratamento e cura. Registrei
falas, atitudes e situações presenciadas no trabalho diário do ambulatório
e na interação com outros setores, como a enfermar'a e o hospital-dia.
Obtive, também, material oral e escrito mais detalhado sobre o funcio-
namento das diferentes modalidades de recepção e encaminhamento de
pacientes no ambulatório.* Além disso, mantenho um trabalho de super-
visão e acompanhamento dos casos atendidos pelos pesquisadores (psi-
quiatras, psicólogos e psicanalistas) do Projeto de Assistência à Saúde
Mental do Trabalhador (PRASMET).** Recolhi alguns casos que consi-
derei relevantes a partir do registro oral e escrito das sessões.
Deliberadamente, não incluí material obtido na supervisão de casos
atendidos por alunos, salvo uma ou outra exceção, já que sua posição é
ambígua na instituição: são aprendizes ao mesmo tempo em que são
profissionais e estão de passagem nos serviços. Seu trabalho tem a
designação escolar de estágio e a responsabilidade pela clínica é dividida
com o professor cuja autoridade remete o aluno a um lugar de submissão,
não sem conseqüências para a clínica (Figueiredo, 1996b).
2) Organizei um grupo de trabalho no Círculo Psicanalítico do Rio
de Janeiro no período de março de 1993 a julho de 1994 com o tema
'Clínica Psicanalítica no Ambulatório Público'. A participação era facul-

* A partir de 1994 foi implantado no ambulatório o sistema de recepção em grupos


sob a coordenação de Sergio Levcovitz, psiquiatra e um dos idealizadores desse
projeto. Acompanhei o trabalho e obtive material escrito produzido por ocasião
do I Seminário sobre os Grupos de Recepção do IPUB realizado em abril de
1995 pelos membros da equipe multiprofissional responsável pelo trabalho.
** O Projeto de Assistência à Saúde Mental do Trabalhador (PRASMET) é coor-
denado por Silvia Rodrigues Jardim, psiquiatra e pesquisadora vinculada ao
Programa de Pesquisa em Organização do Trabalho e Saúde Mental coordenado
pelos professores João Ferreira da Silva Filho e Maria da Glória Ribeiro da
Silva.
Interrogando o ambulatório | 37

tada a quaisquer profissionais vinculados à rede pública que tivessem


uma afinidade direta com o tema proposto.*
As discussões, inicialmente, se faziam em torno da descrição e ava-
liação desses serviços, dos seus problemas e de suas possibilidades em
propiciar um trabalho psicanalítico. Posteriormente passamos à apresen-
tação e discussão de casos, etapa mais difícil e delicada, pois envolvia
um esforço maior de construção dos casos, fazendo surgir os impasses
propriamente clínicos de cada um. O registro foi feito com anotações
minhas e com o material fornecido sobre os casos e o percurso dos
participantes tanto nos serviços e na formação em psicanálise.
3) Elaborei entrevistas roteirizadas realizadas com 28 profissionais da
rede pública entre psiquiatras, psicólogos e psicanalistas que se dispuse-
ram a conversar sobre seu trabalho.** Entrevistei-os uma ou duas vezes,

* Tomaram parte nesse grupo cerca de quinze profissionais com vínculo empre-
gatício nas seguintes unidades: Centro de Saúde Carlos Antônio da Silva (Nite-
rói); Centro Municipal de Saúde Heitor Beltrão (Tijuca); Instituto de Cardiologia
Aluysio de Castro (Humaitá); Hospital Infantil Ismélia Silveira (Caxias); Hospi-
tal Jurandir Manfredini da Colônia Juliano Moreira (Jacarepaguá); Hospital
Gafrée Guinle — ambulatório de adultos (Tijuca); Serviço de Saúde Mental de
Cabo Frio; IASERJ — ambulatório Maracanã; Hospital Cardoso Fontes/Hospi-
tal Geral de Jacarepaguá — Serviço de Adolescentes; Serviço de Psicologia
Aplicada da UERJ e Posto de Saúde do Município de Cantagalo. Estes profis-
sionais, todos graduados em psicologia, tinham percursos bem diferenciados na
psicanálise. Alguns vinham de instituições psicanalíticas onde receberam uma
formação regular, e outros estavam iniciando seu contato com a formação atra-
vés do Círculo, embora já tivessem uma experiência pessoal em grupos de
estudo, supervisão e análise. Somente duas pessoas eram membros efetivos do
Círculo.
** As unidades enfocadas foram: Postos de Atendimento Médico — PAM Bangu
(emergência e ambulatório); PAM Irajá (serviço de psiquiatria); PAM 13 de
Maio — Centro (serviços de psicologia, psiquiatria e adolescentes); PAM São
Francisco Xavier (atualmente Policlínica Piquet Carneiro) e PAM Venezue-
la/Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro (emergência); Centro de Saúde de
Duque de Caxias (serviço de saúde mental); Centro Municipal de Saúde Manoel
José Ferreira — Catete (serviço de psicologia); Centro de Saúde Santa Rosa —
Niterói (serviço de saúde mental); Centro de Saúde Dr. Washington Luís Lopes
— São Gonçalo (serviço de saúde mental); Programa Especial de Saúde Mental
de Barra do Pirai (ambulatório); Posto Municipal de Saúde Dr. Cândido de
Freitas — Duque de Caxias (serviço de psicologia); Posto de Saúde do Municí-
pio de Cantagalo (serviço de psicologia); Posto de Saúde Santa Isabel — São
Gonçalo (serviço de psicologia); Posto de Saúde de Volta Redonda (serviço de
38 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

de acordo com minha necessidade e a disponibilidade de cada um, levan-


do em conta as informações de que dispunham e o tempo necessário para
abrangê-las. Houve casos em que entrevistei várias pessoas ligadas ao
mesmo serviço, ou apenas uma de determinado serviço. O critério se deu
a partir do tamanho e da complexidade dos serviços e/ou da unidade a
que estavam vinculados, sempre privilegiando o trabalho ambulatorial.
As entrevistas foram gravadas e transcritas por mim, de modo que
pude fazer da transcrição um bom momento para elaborar as informa-
ções e perceber sutilezas que me escaparam enquanto entrevistadora. Ao
ouvir a repetição literal da conversa — estando posicionada como ouvin-
te de mim mesma e do outro, efeito da magia do gravador — deparei-me
com novos sentidos, novas possibilidades de tradução, a partir de deta-
lhes de alguns ditos, de determinada entonação, pausas, uma certa mo-
dulação da voz, enfim, uma maneira de 'ouvir' nas entrelinhas que
lançava questões e desafios não previstos. O efeito-surpresa deu-se aí de
modo contundente.
A escolha dos entrevistados não foi feita através dos serviços e, sim,
por indicação de colegas psicanalistas mais próximos atendendo meu
pedido de entrar em contato com profissionais que tivessem alguma
ligação com a psicanálise e se propusessem a praticá-la nos ambulatórios
públicos. Iniciei as entrevistas pelos meus colegas, é claro! Afinal, esse
é o meio mais agradável e menos sujeito a resistências em fornecer
informações. Daí em diante, obtive outros nomes e fui diversificando a
amostra. Não me preocupei em definir a priori o número de sujeitos, seu
perfil ou sua função nos serviços além da atividade clínica. Meu objetivo
era fazer falar aqueles que tinham um percurso de no mínimo dois anos
no serviço público, para melhor localizar os impasses e questões premen-
tes que advêm do seu trabalho clínico. Não se tratava de mapear os
serviços nem de fazer uma avaliação mais rigorosa de seu funcionamento
ou das políticas públicas que lhes deram origem. Essas informações
foram acessórias e não constituem material expressivo para minha aná-

saúde mental); Hospital Estadual Psiquiátrico de Jurujuba — Niterói (ambulató-


rio); Unidade Hospitalar Professor Adauto Botelho do Centro Psiquiátrico Pedro
II — Engenho de Dentro; Hospital Phillipe Pinel — Botafogo [Núcleo de As-
sistência Intensiva à Criança Autista c Psicótica (NAICAP)]; Instituto de Assis-
tência aos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (IASERJ) — Maracanã e
Gávea (serviço de psicologia); Hospital dos Servidores do Estado (serviço de
psicologia); Hospital da Polícia Militar (serviço de psicologia); Hospital Pedro
Ernesto/UERJ — Núcleo de Estudos do Adolescente (NESA).
Interrogando o ambulatório I 39

lise. Tinha uma escolha a fazer: ou bem tratava de traçar um perfil da


rede pública ou me dedicava a pensar sobre as questões mais sutis do
exercício da psicanálise, em sua feição peculiar, nos ambulatórios. Desde
o início, a escolha já estava feita. O que precisava saber dizia respeito à
diversidade ou semelhança das experiências de profissionais que, de
alguma maneira, remetiam seu trabalho clínico à psicanálise.
Obtive informações sobre diferentes tipos de serviços de acordo com
o percurso dos entrevistados. Houve casos em que o entrevistado era
procurado para falar de seu trabalho em determinado serviço e acabava
falando de outro onde havia estado por um período maior, ou onde
trabalhou melhor ou pior. Daí, traçávamos comparações, discutíamos
modelos, formas de reconhecimento e validação da psicanálise que va-
riavam significativamente de um serviço para outro etc.
Minha pesquisa, portanto, trilhou mais ou menos aleatoriamente ser-
viços heterogêneos —visitei alguns — quanto a local e população aten-
dida, proposta de trabalho clínico, política da direção das unidades e sua
articulação com as políticas mais amplas de saúde mental e formação das
equipes. Deixei de lado os serviços universitários diretamente ligados à
formação de alunos, mas incluí um cuja característica era ter apenas
técnicos e/ou pesquisadores à frente do trabalho clínico. Não me preocu-
pei quanto ao número total de entrevistas, considerando que em determi-
nado ponto haveria um basta. A premência do tempo não foi o fator
menor, mas a recorrência de dados que incidiam sobre problemas seme-
lhantes foi a medida.
Preparei um roteiro dividido em três partes: formação e percurso na
psicanálise; modo de inserção e relação com o serviço; trabalho clínico
com diferenças e aproximações do modelo do consultório. Para minha
surpresa, a ordem não foi seguida, mas os tópicos entrelaçavam-se es-
pontaneamente como se fossem conseqüência natural um do outro. Con-
cluí que esse era o caminho e engavetei as cópias do roteiro.
As entrevistas decorreram num processo análogo ao da associação
livre — até onde podemos entendê-la como livre — e minhas perguntas
foram a reboque das informações obtidas. Com freqüência, as entrevistas
se iniciavam a partir de questões propostas pelos próprios entrevistados,
que revelavam suas preocupações mais imediatas, como críticas ao fun-
cionamento dos serviços, projetos e idéias para sua melhoria, um caso
clínico de difícil manejo, ou mesmo sua trajetória peculiar no serviço ou
na psicanálise. Minha participação muitas vezes resultava em discutir os
temas pensando soluções, emitindo opiniões, comentando os casos, en-
fim, trabalhando sobre as informações no decorrer das entrevistas de
40 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

modo que resultassem em alguma contribuição para os entrevistados.


Encontrei pessoas entusiasmadas com suas conquistas, outras descrentes
de qualquer possibilidade de renovação e, ainda, outras, temerosas po-
rém esperançosas, com prazer em reavivar suas idéias a partir de nossas
conversas, que, espero sinceramente, tenham tomado novo fôlego para
continuar.

Concluída a pesquisa, obtenho anotações dispersas, um vasto mate-


rial de entrevistas transcritas e comentadas, e escritos diversos sobre
casos clínicos e temas afins. Resta organizá-los metodicamente para
deles extrair os fios com os quais devo tecer meu argumento. Do emara-
nhado de dados começo a agrupar os pontos comuns e contrastantes para
dar-lhes uma coerência mínima.
Meu método fundamenta-se na argumentação por exemplo, particu-
larizando as situações caso a caso. E, curiosamente, ao pedir que meus
entrevistados dessem exemplos de sua clínica ou de situações que pode-
riam ilustrar suas afirmações gerais, adotei o modo de argumentação por
exemplo no ato mesmo das entrevistas, entendendo que essa era a melhor
maneira de me aproximar da clínica. Trabalho com segmentos de enun-
ciados, retirando-os dos contextos em que foram apresentados, transfor-
mando-os em citações para dar-lhes novos sentidos e extrair-lhes sua
força exemplar.
Ao exemplificar, recorro à citação, e citar é recontextualizar. E, ao
citar as citações contidas nos relatos, refaço mais uma vez seu sentido.
Mas não devemos entender que se tratam dc duas realidades ou dois
níveis distintos de linguagem: a citação e o texto propriamente dito. Todo
o meu trabalho na escrita constrói a argumentação nesse registro, diga-
mos, citacional. Aproveito e cito o argumento de Derrida:
"Todo signo, lingüístico ou não lingüístico, falado ou escrito (no
sentido corrente dessa oposição), em pequena ou grande escala, pode ser
citado, posto entre aspas; por isso ele pode romper com todo contexto
dado, engendrar ao infinito novos contextos, de modo absolutamente não
saturável. Isso supõe não que a marca valha fora do contexto mas, ao
contrário, que só existam contextos sem nenhum centro absoluto de
ancoragem. Essa citacionalidade, essa duplicação ou duplicabilidade,
essa iterabilidade da marca não é um acidente ou uma anomalia, é aquilo
(normal/anormal) sem o que uma marca já não poderia sequer ter fun-
cionamento dito 'normal'. Que seria de uma marca que não se pudesse
citar? E cuja origem não pudesse ser perdida no meio do caminho?"
(Derrida, 1991, p. 25-26).
Interrogando o ambulatório I 41

Essa iterabilidade de que fala Derrida é a possibilidade de a marca, a


palavra, ter sua identidade repetida ao mesmo tempo em que é alterada,
revelando sua opacidade em relação à intenção do dito. Logo, o uso que
faço dos relatos orais e escritos separa-os da intenção e do contexto
originais em que foram colhidos para relançá-los ao leitor. Este, por sua
vez, deles se apropria numa nova interpretação que promove um novo
hiato entre o que eu disse e o que quis dizer. E isso que interdita a
saturação do contexto. Mas é preciso dizer o melhor possível aquilo que
se quer dizer num movimento onde o sujeito total está ausente, em
intenção e memória. Escrever consiste nesse incessante trabalho de en-
contrar as palavras e alocá-las numa sintaxe que traça o sentido.
No recurso aos exemplos, procuro realçar seu valor explicativo no
sentido usual de que 'os exemplos falam por si'. Mas não há como
exauri-los, pois podem infinitizar-se em tantos quanto as situações pos-
síveis na clínica. Há uma outra dimensão que dá ao exemplo sua quali-
dade paradigmática de ser exemplar, tanto no sentido de um 'bom exem-
plo', quanto no de uma amostra passível de generalização — parte
extensiva a um todo por projeção ou probabilidade. Assim, um único
exemplo pode falar para além de si.
Os relatos são citados em diferentes modalidades de exemplificação.
Destaco as três mais freqüentes:
— Segmentos de fala colhidos em entrevista com a mesma pessoa
podem ilustrar temas e argumentos diferentes;
— Segmentos de falas semelhantes de diferentes entrevistados que
convergem para a mesma idéia podem ilustrar o mesmo tema ou argu-
mento;
— Segmentos de fala ou texto partidos ou em fragmentos não-se-
qüenciados, podem ser usados mais de uma vez ou para ilustrar mais de
um tema ou argumento. Nesse caso, o encadeamento inicial se perde na
produção de uma nova seqüência.
Convido o leitor a percorrer este texto, no qual indico as citações
recorrendo às aspas, como referência mínima suficiente, e tomo a palavra
não como alheia ou própria, mas como única possibilidade de passar
adiante minha proposta.

2. Sobre os serviços

Conforme já indiquei, minha pesquisa trilhou serviços bastante hetero-


gêneos em sua organização, funcionamento e objetivos. Ao todo foram
30 unidades entre postos de atendimento médico, centros e postos de
42 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

saúde, hospitais gerais, hospitais psiquiátricos e hospitais universitários.


Com exceção de duas unidades cujo atendimento é reservado aos funcio-
nários e familiares — Hospital do IASERJ e Hospital da Polícia Militar
— as demais estão ligadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) implantado
pelo Ministério da Saúde em regime de municipalização. Isto significa
que o atendimento deve ser dado a toda e qualquer pessoa que o deman-
de, respeitando, tanto quanto possível, a regionalização por áreas progra-
máticas.
Para preservar o sigilo, não identifico esta ou aquela unidade, nem
seus respectivos funcionários, uma vez que não se trata de expô-los, e
sim discutir seus impasses e sucessos para melhor fundamentar minha
proposta de exercício da clínica psicanalítica nas instituições públicas.
Na maioria das vezes, entretanto, é inevitável recorrer ao tipo de serviço
ou unidade para exemplificar certas situações clínicas.
Para discorrer sobre os aspectos mais relevantes para minha proposta,
inicio a abordagem dos serviços recortando em seu funcionamento os
mecanismos de recepção, triagem e encaminhamento dos pacientes. Mi-
nha preocupação aqui é indagar sobre as condições de viabilização da
psicanálise, a partir do modo como se dão os primeiros contatos do
paciente com a instituição. Suponho que estes procedimentos iniciais
podem facilitar ou dificultar o trabalho do psicanalista a partir da deman-
da que lhe é encaminhada.
Mais adiante, trato dos problemas relativos ao trabalho em equipe e
sua formação para, em seguida, discutir as modalidades de tratamento
mais ou menos referidas à psicanálise. Por fim, apresento um perfil dos
profissionais 'psi' que revela suas posições, muitas vezes ambíguas e
confusas, em relação à identidade de psicanalista e suas conseqüências
na clínica.

2.1 Recepção, triagem e encaminhamento

Sobre a recepção, o termo designa genericamente o primeiro atendimen-


to, em geral em grupos, e é usado muitas vezes no lugar do termo
triagem, que dá uma idéia mais burocrática e menos acolhedora do
atendimento. Em alguns serviços pretende-se caracterizar uma disponi-
bilidade permanente da equipe para os pacientes que retornam ou são
encaminhados de outras unidades ou de outros setores da mesma unida-
de. Nesse caso, a recepção funciona como o eixo central da clínica
Interrogando o ambulatório I 43

decidindo o destino de cada caso no duplo sentido de destinação (enca-


minhamento) e desígnio (futuro).
Tomo como referencia os trabalhos de Corbisier (1992), Levcovitz e
cois. (1995) e Tenorio (1996) que fundamentam a proposta de atendi-
mento no modelo de recepção em grupos coordenados por equipe mul-
tiprofissional. Destaco duas experiências bem sucedidas de implantação
desse modelo no ambulatorio de hospitais psiquiátricos, sendo um deles
um serviço de emergência. Os autores versam sobre pontos comuns
quanto à concepção do adoecer psíquico e do tratamento. Quem adoece
e sofre é, antes de tudo, um sujeito e não um corpo. Logo, a fala deve ser
privilegiada não como manifestação patológica que exige correção ou
resposta imediata, mas como possibilidade de fazer aparecer uma outra
dimensão da queixa que singulariza o pedido de ajuda. Conseqüente-
mente, o tratamento consiste, nessa etapa inicial, em acolher e escutar ao
invés de ver e conter (Corbisier, p. 12). O que e quem se deve escutar é
o ponto nodal para se fazer a diferença entre uma psiquiatria apressada
em remitir o sintoma e uma abordagem que visa "desmedicalizar a
demanda e subjetivar a queixa do paciente" (Tenório, p. 5). A psicanálise
é a referência fundamental na formulação dessa proposta. Enfatiza-se a
importância do trabalho em equipe e sua disponibilidade para tratar
situações singulares e inventar soluções não-previstas.
Outro ponto comum é a crença que a recepção em grupo não deve ser
apenas um meio de reduzir as filas de espera, mas sim de propiciar um
acolhimento constante e provocar efeitos terapêuticos. O grupo deve
funcionar atendendo não só os pacientes que chegam ao ambulatório,
mas também os que são encaminhados de outros setores da instituição,
ou os que retornam após algum tempo de interrupção ou, ainda, os que
demandam outro tipo de tratamento. Para isso, é preciso contar com o
empenho da equipe num trabalho coeso e permanentemente avaliado
para evitar a burocratização do atendimento — que pode transformá-lo
em mera 'triagem' — e construir formas de encaminhamento a partir de
premissas que envolvam a participação direta do paciente.
Definido o modelo, a primeira questão é saber se só os psicanalistas,
ou pessoas referidas à psicanálise, estariam aptos para a tarefa. Penso que
não só estes, mas, sem dúvida, o paradigma que sustenta a proposta é
psicanalítico. Entretanto, o que pode ser decisivo para sua viabilização,
ou não, depende muito mais do modo de funcionamento da equipe, do
exercício permanente de discussão e avaliação das condutas e, principal-
mente, da responsabilidade dos profissionais frente aos pacientes, seja
44 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

qual for o tipo de tratamento oferecido. Desse modo, o trabalho implica


um contato direto e permanente com os diferentes profissionais que
atuam no serviço, dos atendentes aos médicos, atravessando as hierar-
quias funcionais e burocráticas. A recepção pode ser um bom termôme-
tro da instituição ao tornar mais públicos, portanto mais transparentes,
seus procedimentos clínicos, seus problemas e soluções no percurso de
cada paciente.
Os autores dão exemplos de casos que ilustram sua argumentação. É
desnecessário reproduzi-los aqui. Como não devo me furtar aos exem-
plos, descrevo cenas que se sucederam em um grupo de recepção numa
sessão agitada e cheia de imprevistos, relatada por um dos membros de
uma equipe:
"Nesse dia, éramos três psicólogos na equipe, eu e mais duas inician-
tes no trabalho. Atendemos duas pacientes que nos pareceram neuróticas,
uma mais histérica e a outra mais obsessiva, cuja apresentação sintomá-
tica era, digamos, enlouquecida, a ponto de nos confundir num primeiro
momento. Além delas havia um rapaz psicótico que tinha dado baixa no
exército por conta de um surto, uma senhora acompanhada de sua filha
que falava por ela e pedia um tratamento gcriátrico, e mais umas três
pessoas...
"A primeira a ser ouvida foi uma das duas primeiras pacientes. Tinha
uns vinte e poucos anos, era grande e bonita, vinha do norte, de classe
baixa, e começou a falar numa modulação meio delirante com um olhar
perdido, dizendo que 'Deus não está só no bem... está no mal e tenta a
gente com o mal'. Estava acompanhada do irmão e da cunhada, vestia
saia e ficava passando a mão na perna e a cunhada ficava abaixando sua
saia... Ela repetia continuamente 'as carícias de Deus...' e ficava nisso. O
irmão pediu a palavra para contar que ela fazia um cursinho e se apaixo-
nou pelo professor de biologia, que a seduziu. Eles tiveram um envolvi-
mento e, quando ela resolveu contar em casa, o irmão foi com ela até a
casa do professor para matar o cara ou obrigá-lo a casar. Ele negou que
tivesse havido relação sexual e ela foi levada ao ginecologista para um
exame que constatou sua virgindade. 'Ela ainda é pura', disse o irmão.
Nisso, ela diz: 'O problema é que eu gostei... gostei mesmo e faria de
novo... você não entende nada', diz para o irmão. Mas continua meio
desarticulada sem falar coisa com coisa. Decidimos, eu e mais outra
pessoa da equipe, levá-la ao plantão para ser medicada, mas não interna-
da, e após tranqüilizar a família, encaminhamos para psicoterapia indi-
vidual com essa mesma colega que a acompanhou.
Interrogando o ambulatório | 45

"De volta ao grupo, ouvimos a outra paciente, uma senhora magri-


nha, miúda, envelhecida, que dizia muito aflita... 'Estou com um proble-
ma de limpeza, tenho que limpar tudo... se alguém entra na minha casa
tenho que limpar o chão muitas vezes... só uso o sabonete uma vez, fico
horas tomando banho, lavando a mão... sei que estou me sentindo suja
porque tive uma relação ilegítima com um homem casado... minha filha
não quer mais saber de mim'. Ela chorava muito, a coisa transborda e
contagia todo mundo... Ela segue implorando... 'pelo amor de Deus,
promete, por favor, que o senhor vai telefonar para minha filha quando
terminar aqui e vai dizer a ela que eu vou ficar boa para ela não me
abandonar... me dá um remédio pelo amor de Deus'... Eu tentava
intervenções mais serenas, mas ela foi crescendo, aumentando o tom, até
dizer 'eu preciso de alguém que me diga assim... chega, pára,... não faz
mais isso!... Como num ato reflexo, eu disse enfático: 'Então pára!' Ela
tomou um susto e parou. A outra psicóloga assumiu o caso na hora e
pedimos a um médico que a atendesse naquele dia para tranqüilizá-la e
talvez medicá-la, se fosse o caso, explicando o episódio e nossa decisão
de encaminhar para psicoterapia.
"Ainda ouvimos a outra senhora que pouco falava, muito reticente, se
deixando representar por sua filha que insistia em obter um atendimento
na geriatria porque tinha ouvido falar nisso... Tentamos fazê-la retornar
ao grupo na outra semana para conversar e esclarecer melhor esse pedi-
do. Solicitamos a opinião da senhora que dizia que o grupo era bom, o
médico também seria bom... e a filha dizia: 'Eu conheço ela. Marca logo
um médico porque se o senhor disser para ela voltar, ela não volta'.
Apostamos em tentar um retorno porque achamos que o pedido vinha
meio apressado e estereotipado... velho vai para a geriatria! Ela não
retornou."
O exemplo mostra como esse tipo de atendimento requer uma certa
sutileza na escuta, bem como precisão e agilidade na condução de cada
caso. Extraordinariamente, nesse dia contou-se com a disponibilidade de
dois membros da equipe em receber parte dos próprios encaminhamen-
tos, além do suporte regular da equipe de plantão. Essas ocorrências, não
raras nesse tipo de serviço, lembram bem o refrão de uma música dos
Titãs: "Tudo ao mesmo tempo agora!"

Outra entrevistada relata sua experiência com triagem em grupo em


um serviço de saúde mental, que se assemelha à proposta dos grupos de
recepção:
46 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

"Havia um horário fixo para a triagem, e quem chegasse ao serviço


tinha que passar pelo grupo. Tinha de tudo: crianças e familiares, adultos
psicóticos em surto ou não, adultos neuróticos, uma maioria de mulheres
etc. Explicávamos que era uma reunião de triagem e que queríamos saber
o motivo deles estarem ali para podermos fazer os encaminhamentos.
Observamos, com o tempo, que a triagem já tinha resolutividade.
"Um dia veio um senhora com uma menina encaminhada pela escola
com distúrbio de aprendizagem. Ao indagarmos o motivo, ela disse que
a menina tinha dez anos e estava na I série... Mas, o que houve? Ela
a

repetiu o ano?... 'Não, ela não é minha filha não, é que ela veio do norte
e lá ela não estudava... eu botei ela na escola agora...' Até então, ninguém
tinha se dado ao trabalho de perguntar por que ela estava na I série.
a

"Uma outra vez, veio uma moça dizendo que era viúva, crente de uma
pequena Igreja, que não permitia que ela se casasse de novo. Se queixava
de uns calores no corpo. U m a outra mulher então sugeriu que ela fre-
qüentasse a sua Igreja, porque lá ela poderia se casar. Ela imediatamente
pegou os horários do culto e deu-se por satisfeita.
"Teve um outro caso de uma menina de uns sete anos, que tinha uma
confusão de sintomas: não dormia sem a avó que cuidava dela, fazia xixi
na cama, era cheia de fobias, chorava dia e noite, e não conseguia ficar
na escola sem a presença da avó. Tinha uma história complicada de
abandono da mãe e o pai tinha sumido. Me lembrava a Piggle do Winni-
cott. Essa menina entrou em análise comigo apoiada pela avó e ficou uns
quatro anos vindo ao ambulatório regularmente. Foi um caso de psica-
nálise, sem dúvida."
O segundo exemplo mostra que a resolutividade depende não só das
iniciativas da equipe mas, também, de sua tolerância em deixar que as
demandas se resolvam naquele espaço, para poder diferenciar as condu-
tas e os encaminhamentos. Nesse caso, o atendimento em grupos era
muito incentivado. Havia grupos de pacientes egressos de internação
psiquiátrica em hospitais conveniados, grupos de familiares desses pa-
cientes, de mulheres etc. Mas também havia a possibilidade de um
atendimento individual prolongado. A oferta cabia ao profissional, e a
demanda delineava-se nesses atendimentos coletivos como uma espécie
de vestíbulo da psicanálise.
O fato de a psicanálise fundamentar a escuta nesse tipo de trabalho,
visando ir além das queixas e demandas mais imediatas, pode favorecer
um encaminhamento que dê início ao processo analítico. Mas também,
tendo em vista a proliferação de urgências num atendimento em grupo,
Interrogando o ambulatório I 47

corre-se o risco de prolongar a escuta em função de demandas pouco


claras, a ponto de perder sua resolutividade. Ou, ainda, de padronizar os
encaminhamentos para a chamada psicoterapia — conjunto heterogêneo
de práticas psicológicas onde se aloja a psicanálise — seja porque seria
considerada a melhor modalidade de tratamento, ou porque já haveria
um estereótipo da psicoterapia como lugar privilegiado para se falar dos
problemas da vida. Essa concepção, por si, não é má, afinal uma análise
pode bem começar por aí, desde que não se torne mais um cacoete da
clínica.
Obtive um relato interessante que mostra bem o modelo em seu
avesso. Em outro serviço de saúde mental a recepção era feita em grupo
por um psiquiatra com a presença de um psicólogo. Em meio à confusão
de pacientes, familiares e acompanhantes, o psiquiatra procedia às per-
guntas: "Qual o seu problema?" ou "Agora é sua vez..." e ouvia cada um
por poucos minutos, encaminhando rapidamente para medicação ou psi-
coterapia de acordo com a primeira impressão, visando uma alta resolu-
tividade numérica. Aqui, atender é sinônimo de despachar, e grupo é
simplesmente uma questão de quantidade.
Feita a ressalva sobre o que não se deve fazer, o modelo dos grupos
de recepção, ou de triagem coletiva, tem se propagado especialmente nos
serviços de psiquiatria e/ou de saúde mental. Sua preocupação maior em
defender a convivência de pacientes graves, ou com comportamentos
aparentemente inadequados, junto aos demais, pretende desfazer o estig-
ma da doença mental e socializar as experiências do sofrimento psíquico.
Há, justamente aí, um fio condutor que os liga: todos estão ali buscando
soluções para seu sofrimento. De certa forma, esse é um fator homoge-
neizador. O problema de um pode interessar, comover e, mesmo, provo-
car efeitos terapêuticos no outro. Pode também causar horror, mas nesse
ponto o manejo cabe à equipe. De qualquer modo, esse tipo de atendi-
mento pode permitir discriminar as demandas até onde é possível, para
localizar a questão do sujeito em meio ao emaranhado de queixas que
tanto podem vir dele quanto dos que o acompanham.

Um último exemplo:
Novamente, trata-se de uma triagem em grupo, desta vez em um
serviço que atende adolescentes e suas famílias:
"Atendemos uma menina que vinha acompanhada de sua avó. Depois
de alguns atendimentos, ela pede um espaço para ela. Encaminhamos
para um grupo de mulheres. Ela foi umas duas ou três vezes e pediu para
48 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

voltar para o grupo anterior dizendo: 'Aqui não escuto caso de ninguém...
quero escutar os casos das pessoas também.' Resolvemos acolher o seu
pedido, porque, na triagem, a mãe ou um parente vêm junto; no outro
grupo ela teria que vir sozinha. Tenho a impressão de que não é porque
ela não queria se separar da avó, como um sinal de dependência. Mas,
talvez, porque ela esperasse que a avó pudesse se beneficiar também. O
mais curioso, é que a avó diz: '... Nossa! como ela está bem... voltou a
estudar, porque ela tinha parado os estudos... agora ela escuta os proble-
mas das pessoas..."
O exemplo fala por si. Sobre esse caso é importante estar atento aos
seus desdobramentos para acompanhar os efeitos dessa demanda. Aqui,
a triagem se transforma em tratamento. E, do que se trata no pedido dessa
adolescente?
Curiosamente, esse não é o único caso em que o grupo de triagem é
escolhido. Fiquei sabendo que, nesse mesmo serviço houve situações
semelhantes. A entrevistada relata outro episódio:
"Teve um outro caso de um menino de uns dez ou onze anos, que me
foi encaminhado para psicoterapia individual; veio a algumas sessões e
não voltou. Um tempo depois, encontrei com ele, por acaso, quando fui
à sua escola para fazer um contato institucional, através da minha unida-
de. Ele lembrou de mim e, para minha surpresa, voltou a procurar o
serviço. Recomeçou pelo grupo de triagem e, quando foram encaminhá-
lo, ele foi explícito: 'Não,... eu quero é ficar aqui mesmo. Aqui eu ouço
os problemas dos outros, eu aprendo com isso.' Novamente aceitamos."

Em outras unidades, cuja característica dominante é a oferta de ser-


viços de clínica médica com várias especialidades, os procedimentos são
diferentes. Os pacientes dirigem-se à especialidade médica para onde
foram encaminhados, ou à clínica geral para um exame preliminar, oca-
sião em que é feita a triagem para as outras clínicas, entre elas a psico-
logia. Muitas vezes os psicólogos são alocados junto a especialidades
médicas onde há maior solicitação de sua intervenção. E bom esclarecer
que ela parte mais dos médicos do que dos pacientes. O encaminhamento
se dá, então, por vias mais personalizadas e menos regulares.
É também o caso dos centros e postos de saúde que não têm um
serviço de psiquiatria ou de saúde mental, bem como dos ambulatórios
dos hospitais gerais. Recebem demandas para a clínica médica de acordo
com os programas de atenção primária e secundária oferecidos. As mais
freqüentes são para a pediatria, ginecologia e obstetrícia, pneumologia,
Interrogando o ambulatorio \ 49

dermatologia, hanseníase, diabetes e cardiologia — com destaque para a


clínica de hipertensos. Nos hospitais, há uma variedade maior de espe-
cialidades incluindo nefrologia, reumatologia, endocrinologia, neurolo-
gia e, em alguns casos, psiquiatria.
Conforme relatos dos entrevistados, a partir da resolução específica
dos problemas clínicos, os encaminhamentos são feitos para a psicologia,
seguindo, na maioria das vezes, critérios genéricos e estereotipados. Os
mais comuns são: problemas de aprendizagem e comportamento, no caso
de crianças e adolescentes; dificuldades clínicas com adultos resistentes a
determinado tratamento; problemas emocionais de todo tipo, sendo ansie-
dade e depressão os mais freqüentemente diagnosticados. Nesses casos, o
serviço de psicologia é visto como 'ajustador' de situações-limite que
podem comprometer o bom andamento da clínica médica, ou, como
referiu um entrevistado, "depositário de tudo o que diz respeito ao huma-
no e provoca ansiedade nos médicos..." E ironiza: "bons tempos da me-
dicina em que corpo e gente eram a mesma coisa".
Um outro comenta: "Eles querem encaminhar tudo que é considerado
problema psicossocial: o pai que bate, o que bebe, a criança que fugiu de
casa ou foi seduzida pelo pai, padrasto ou irmão; a que vai fazer uma
cirurgia... e por aí vai."
Há também os famosos poliqueixosos — enigma que os médicos se
eximem de decifrar — e os psicossomáticos, que já têm seu lugar garan-
tido na ambígua especialidade conhecida como medicina psicológica ou
psicossomática: uma espécie de terra de ninguém, ou de todo mundo,
onde grassa o psicologismo e a interpretação carregada de sentido facul-
tada a quem for mais imaginativo, provocando uma disseminação bana-
lizada tanto do jargão médico quanto do psicanalítico. Não pretendo
discutir este ponto em toda a sua extensão, mas atento para os impasses
que daí advêm para o diagnóstico e para o tratamento.

Além do encaminhamento da clínica médica, as demandas mais fre-


qüentes à psicologia vêm das escolas. Seja diretamente, através de pedi-
dos de laudos, ou, indiretamente, através das mães que são pressionadas
a levarem seus filhos, sob pena dc perderam suas matrículas. Sobre isso,
alguns psicanalistas apresentaram como solução uma triagem que, ini-
cialmente, prioriza a posição da mãe ou do responsável pela criança.
Tomemos dois exemplos:

"Minha primeira intervenção era para esclarecer o pedido e tranqüi-


lizar a mãe sobre a matrícula, até para poder situar o caso. Elas vinham
50 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

desesperadas e despejavam um mar de queixas dos filhos, do marido, da


sobrecarga de trabalho em casa etc. Tinha que peneirar essa confusão e,
se fosse preciso, mandar logo um bilhete para a escola garantindo que a
criança estava sendo avaliada... aí eu ganhava tempo. As vezes bastavam
algumas entrevistas e a coisa se resolvia... e, muitas vezes, era a mãe que
ficava em tratamento. Havia casos em que eu atendia a criança e manti-
nha conversas regulares com a mãe e via alguns efeitos interessantes com
a mãe enquanto que com a criança a coisa não mudava muito... ela
pegava uma carona no tratamento do filho, mas ela precisava acreditar
que era ele quem se tratava e não ela."
"Quando cheguei no serviço, era uma enxurrada de mães ansiosas
trazendo cartinha da escola e resolvi atender em grupo... era muita de-
manda equivocada... No geral era distúrbio de comportamento e dificul-
dade de aprendizagem. Para não deixar a criança entrar nesse circuito
equivocado da doença, comecei a usar de bom senso, me metia nas
histórias e falava quase o tempo todo... era uma barulheira danada...
crianças pela sala, todo mundo falando ao mesmo tempo... as mães se
queixavam muito que não conseguiam dar limites, se fazerem respeitar...
tudo podia ser trauma... Uma dizia: 'Meu filho não gosta de tomar
remédio... se eu forçar vai ficar com trauma'... Eu dizia que remédio não
é opção... tem que tomar... tenta com jeito... não foi?... abre a boca e
pronto... falta de limite é que traumatiza. Acho que grande parte dos
problemas era decorrência da infiltração do psicologismo nas camadas
mais pobres. Eu tinha que esclarecer que aquilo era uma triagem e que
se houvesse necessidade nós atenderíamos a criança, mas defendia que
a maioria delas não precisava... E, com isso, o grupo tinha uma resoluti-
vidade grande, de repente a queixa sumia e uma mãe falava: 'Estou vindo
porque quero conversar, a criança está bem'."
Outro entrevistado conclui: "O que acontece é que tanto o clínico
quanto a escola forjam uma demanda que temos que trabalhar, senão
nada acontece..."

O que interessa destacar em todos esses exemplos é a importância de


ganhar tempo, seja atendendo individualmente ou em grupo no modelo
dos grupos de recepção. E preciso decantar essas demandas. De um lado,
para esvaziá-las, desfazendo equívocos. De outro, fazendo aparecer um
dado novo ('um a mais'), ou uma outra maneira de dizer. Há, portanto,
um trabalho anterior a ser feito como condição para dar lugar a uma outra
demanda que possa ser remetida à psicanálise ou, simplesmente, fazer
Interrogando o ambulatório | 51

desaparecer a demanda 'tora do lugar'. Essa deve ser a maior lição que
temos que aprender da psicanálise nesse primeiro momento.
Sobre a demanda fora do lugar, há um consenso entre psicólogos,
psicanalistas e psiquiatras, menos aderidos ao medicalismo, que a clínica
médica, ao separar 'corpo' de 'gente', sofreu um empobrecimento de
seus recursos propriamente clínicos substituindo-os por novas tecnolo-
gias de exame e diagnóstico que prescindem dos elementos terapêuticos
sustentados na relação de confiança nutrida pela convivência e pela
conversa. Freud sempre sublinhou os efeitos da sugestão que estão na
base dos fenômenos da transferência como um poderoso instrumento
terapêutico — e também de equívocos — presente na clínica em geral.
A questão não é assemelhar a clínica médica à psicanalítica sob o
mesmo denominador comum da transferência. Antes, é devolver à clíni-
ca médica um espaço dela retirado pelo próprio psicologismo (ou psica-
nalismo), para dar conta de um certo endereçamento feito ao médico em
vez de precipitá-lo aos 'psi' quaisquer em nome das especialidades.
Em alguns serviços, me foi relatada uma constante preocupação,
especialmente por parte dos psicanalistas, em indagar dos médicos os
motivos deste ou daquele encaminhamento. Muitas vezes entabulavam
conversas informais, outras, discutiam em reuniões comuns procurando,
nem sempre com a tática desejável, deter essa precipitação em expelir do
campo médico tudo o que escapa a uma dimensão tecnicista do exame e
diagnóstico.
Duas armadilhas entravam esse diálogo clínico precipitando as con-
dutas: A primeira é o medicalismo, que responde ao pedido de 'remédio'
com a solução química, tida como mais rápida e eficaz, como se não
houvesse outro 'remédio' para o sofrimento. A segunda é o psicologis-
mo, que responde ao pedido de soluções para o 'trauma', entendido
como ameaça ou castigo psicológico por uma conduta errada, com a
tarefa moral de corrigir o erro através de uma pedagogia supostamente
esclarecida. O que é diferente de se utilizar taticamente do recurso a uma
certa pedagogia para desfazer os excessos de psicologismo. O problema
é que a tarefa crucial de enxugar o medicalismo ou o psicologismo não
se dá sem problemas.
Primeiro porque "os lugares onde, em princípio, médicos e psicana-
listas [e psicólogos] se encontram são, sem dúvida, aqueles onde tudo
pode ser dito, porque são sem possibilidade de rigor. Na melhor das
hipóteses, são lugares de transição onde se afirmam vocações; na pior,
pântanos onde se afundam veleidades" (Clavreul, 1983, p. 179).
52 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Segundo porque, em se tratando do serviço público, a burocratização


das especialidades, que tem como um de seus resultados nefastos sua
própria estereotipia, não permite, sequer, a existência desses "lugares de
transição", ou de trânsito, que podem favorecer a clínica.
Tomemos um exemplo-limite:
"Teve um caso que veio da pediatria para mim [psicóloga]. Era uma
pediatra mais velha, à beira da aposentadoria. A mãe senta do meu lado
e começa a explicar: 'ah... não sei... ela está comendo muito, bebendo
muita água, fazendo muito xixi e emagreceu'... Eu disse que estava me
parecendo que a menina estava diabética, no que ela respondeu: '... é,
tem casos na família'. Devolvi para a pediatra, cheia de dedos porque era
uma situação muito delicada, e disse que não sabia bem porque ela
queria uma psicóloga agora, mas a urgência era médica. A pediatra
confirmou minha hipótese."
Sem dúvida, houve um erro médico, de anamnese, que remeteu o
trabalho clínico a uma não médica. Seu diagnóstico foi feito sobre um
relato simples, bastava ouvir atentamente a queixa. Não se sabe sequer
em que condições se deu o primeiro atendimento, nem o que a mãe falou.
Isso é que é assustador. Enurese ou diabetes? Psicologia ou medicina?
Eis um efeito nefasto da estereotipia que aposenta a clínica.

Um outro relato de uma psicanalista, que recebe encaminhamentos


freqüentes da pediatria, apresenta o problema revelando sua preocupação
quanto ao desconhecimento, quiçá descaso, dos médicos sobre o que seja
o trabalho psicanalítico. Os motivos são padronizados, mais uma vez,
sob a rubrica de distúrbio do comportamento.
"Eles encaminham pedindo uma avaliação do psicólogo como se
estivessem encaminhando para um colega de outra especialidade. Tudo
deve se resolver com laudos, definindo diagnósticos e condutas sobre tal
ou tal sintoma. Em psicanálise não é assim.
"Uma vez, tentei explicar a concepção que a psicanálise tem do
sintoma comparando com a medicina, numa apresentação de caso para
urna platéia predominantemente médica. Acho que falei para as paredes.
E o pior é que meus colegas presentes ficaram tentando reduzir a dife-
rença, como se isso fosse gerar um atrito com os médicos. Aliás, o que
mais me impressiona é que são todos psicólogos com formação em
psicanálise, mas tendem a reproduzir algo próximo do modelo médico,
dando diagnósticos precipitados, muitas vezes comunicando-os aos pa-
cientes e à família, mais para prestar contas aos médicos do que para
Interrogando o ambulatório I 53

construir a possibilidade de um trabalho psicanalítico. Observam os


sintomas e fazem uma intervenção mais normativa, sem questionar os
encaminhamentos ou dar um desdobramento a esse atendimento... Pare-
ce-me que não há rigor científico. Fazem uma abordagem meio compor-
tamental, até educativa, confundindo os lugares do psicólogo com o do
assistente social e, mesmo, com o do médico... Lá no serviço todos
somos chamados de 'doutor', e não só pelos pacientes."
Mais adiante ela faz a diferença dando um exemplo inverso:
"Tem duas neuropediatras que trabalharam comigo em outro lugar
onde pudemos discutir melhor o momento propício de fazer os encami-
nhamentos, e a coisa funcionou diferente. E bem verdade que elas estão
mais envolvidas com a psicanálise, fazem análise e se interessam em
acompanhar os desdobramentos dos casos. Lembro do caso de uma
paciente que fazia crises convulsivas e vinha sendo tratada com medica-
ção própria para isso. A médica que a atendia, em vários momentos,
achou que devia encaminhá-la para a psicologia em função dela se
queixar de uma inibição acentuada e de ter uma história complicada de
adoção. O encaminhamento só foi feito quando a paciente começou a se
perguntar sobre as situações que a levavam a fazer a crise convulsiva. A
meu ver, ela pôde reconhecer a diferença entre escutar uma queixa c
escutar uma questão do sujeito. Isso é fundamental."

Tomando os dois exemplos, no primeiro os psicólogos se aproximam


dos médicos desconhecendo a especificidade da escuta psicanalítica. No
segundo, os médicos se aproximam dos psicanalistas reconhecendo essa
especificidade: exemplos limítrofes do mau e do bom procedimento. O
que devemos apreender disso é que, do indesejável ao desejável para a
instalação do dispositivo psicanalítico, cabe ao psicanalista a responsa-
bilidade de fazer a diferença, contando mais ou menos com a adesão dos
outros especialistas. Sc a demanda já vem azeitada, muito bem. Do
contrário, é preciso recomeçar a cada caso, mesmo em condições adver-
sas. Logo, não cabe ao psicanalista exigir dos médicos que sejam menos
médicos, mas pode-se ousar provocá-los sobre o que mais podem fazer
para atender seus pacientes sem pressa de passá-los adiante. Também,
não lhe cabe ceder às demandas médicas a ponto de descaracterizar seu
trabalho.
Outra psicanalista comenta que é mais eficaz trabalhar com determi-
nados profissionais para uma melhor condução dos casos: "Eu faço
parceria com uma psiquiatra homeopata que me encaminha os casos,
acho que facilita."
54 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Entretanto, há certas parcerias que podem resultar num impasse.


Tomo o exemplo de uma psicanalista que atendia um rapaz epiléptico
que fazia uso abusivo de cocaína. Ele tinha acompanhamento médico. O
diálogo entre os dois profissionais se deu mais ou menos assim:
"Médica — Estou muito preocupada com ele... sei que está cheirando
escondido, assim não posso me responsabilizar pelas conseqüências.
Psicanalista — Comigo ele não falou nada sobre isso.
M — Mas você que é psicóloga tem que falar com ele...
P — Mas se ele não me disse nada eu não posso chegar com essa
informação vinda de fora... por que você não fala com ele e vemos o que
acontece?... afinal, você é quem medica e o problema é a epilepsia com
a medicação e a droga..."
Nesse aparente jogo-de-empurra, a proposta da médica é que quem
medica não conversa, não age sobre questões morais ou educativas, isso
é tarefa da psicóloga. Para a psicanalista — é assim que ela se nomeia,
acatando taticamente a designação de psicóloga — a conversa em jogo
não pressupõe outra intervenção que não seja a partir da fala do sujeito.
O que ele esconde e de quem, é responsabilidade sua. Escuta-se um
sujeito, e não um epiléptico, ainda que esse fato não possa ser escamo-
teado com todas as suas conseqüências. Afinal, ser epiléptico lhe diz
respeito. Esse exemplo nos põe diante da questão crucial de que 'conver-
sa' define a clínica psicanalítica. Retomarei esse ponto adiante.

Voltando ao tema inicial, há situações em que o próprio psicanalista


é chamado a fazer a triagem do serviço em entrevistas individuais. Sabe-
mos que boa parte, senão a maioria, daqueles que procuram atendimento
pode não se dispor, num primeiro momento, a entrar no jogo psicanalí-
tico. O que fazer?
Em primeiro lugar, tomemos uma regra geral para o encaminhamen-
to: é preciso estar situado em relação às ofertas de tratamento operantes
no serviço. Digo operantes, porque admito que nem sempre as ofertas
cumprem seus propósitos por motivos que vão além da questão propria-
mente clínica. Como exemplo, refiro-me a um serviço cuja tradição era
oferecer atendimento psicoterápico em grupos, e foi se desmantelando
por falta de profissionais habilitados e/ou dispostos a mantê-lo. Na clíni-
ca, não se pode contar com o que está à beira da extinção.
Uma psicanalista comenta, apreensiva, que ao fazer a triagem tende
a absorver determinados casos porque considera que a oferta do serviço
sem capacidade para comportar casos mais graves ou demandas que
revelam sofrimento intenso ou questões mais singulares:
Interrogando o ambulatório I 55

"Nas primeiras entrevistas tento ver que tipo de demanda pode se


enquadrar nos atendimentos oferecidos. Lá, eles têm vários tipos de
grupos temáticos e, às vezes, recebo casos que podem se encaixar bem
nesses grupos. Recebi uma senhora que estava a fim de conversar, tinha
um marido alcoólatra e descobriu que estava sendo traída, mas me pare-
cia que ela estava querendo trocar idéias com outras mulheres. Encami-
nhei-a para o grupo de mulheres. Mas quando chega alguém mais angus-
tiado ou com uma questão sobre seu problema, eu acabo p e a n d o o caso.
"Outro dia atendi um policial, um sujeito forte, rude mas respeitoso,
que chegou com os olhos úmidos dizendo que acha que o filho é viado.
Ele diz: 'se for assim, já sei que tenho que aceitar'. E l e j a tinha vascu-
lhado o quarto do menino e estava muito angustiado. A dúvida dele é
muito interessante, porque ele diz que o filho só anda com meninas e,
quando leu sua agenda, descobriu que o filho estava apaixonado por uma
menina. Ele quer saber se o filho quer ser como as meninas ou se está
mesmo interessado numa delas. Provavelmente, esse dilema atravessa o
menino também, uma divisão entre a identificação e a escolha de objeto
muito comum na adolescência. O pai prossegue dizendo: '... eu me
lembrei de mim porque o meu pai nunca conversava comigo... não falava
nada sobre mulher... aí eu disse pro meu filho... vou te levar numa
terma'... Mais adiante ele pergunta: 'Será que eu levo ele numa terma?'
Eu respondi sem vacilar: 'Espera um pouco, você mesmo falou que teve
problemas com seu pai porque ele não conversava... não é melhor falar
com seu filho antes?' Ele acatou e me pareceu mais aliviado. Resolvi
pegar o caso e marquei para ele voltar".
Infelizmente, não tenho mais dados sobre o rumo desse caso. É
importante destacar desse episódio que há um trabalho para fazer, par-
tindo de uma prioridade dada pelo sujeito que se apresenta como um pai
temeroso de estar falhando em fazer de seu filho um homem, quando ele
próprio, ainda que feito homem, não sabe muito bem o que deve fazer
um pai para isso. O que o faz crer que um psicólogo saberia, pode ser
fruto da idéia disseminada na cultura 'psi' de que os psicólogos enten-
dem de sexo ou de conversa. Mas isso é apenas um solo comum sobre o
qual caminham e se encaminham as mais diversas demandas com os
mais variados desfechos.

Outras modalidades mais prosaicas de encaminhamento, que se cos-


tuma chamar de informal, são freqüentes em pequenas unidades como
os postos de saúde afastados dos grande centros. Psicólogos e psicana-
56 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

listas que trabalham nesses lugares, geralmente sozinhos ou acompanha-


dos apenas de um colega, foram unânimes em afirmar que, após um certo
tempo, recebiam um afluxo maior de pessoas que os procuravam direta-
mente a partir de indicações feitas por amigos, vizinhos e parentes em
atendimento, ou haviam sido, atendidos por eles. Entretanto, isso não
significava que iniciassem processos de análise. Houve situações cm que
a mesma psicanalista já havia atendido quase toda a família e outras
inesperadas. Seguem-se dois exemplos:
"Eu atendo uma mulher que chegou depois de vários membros da
família terem passado por mim. Primeiro veio a neta, depois o filho,
depois a sogra e, por último, ela. Eles se revezaram durante um tempo e
só ela permaneceu. Curioso é que ela vinha e não sabia o que falar, por
mais que eu puxasse não saía nada. Até que um dia eu disse: 'então está
bem, quando você tiver alguma coisa para me dizer, você volta aqui'. Ela
passou um bom tempo sem aparecer e quando voltou veio meio conver-
sando, e lá pelas tantas me fala que lembrou de uma intervenção minha
que tinha feito ela mudar de atitude. O sintoma dela consistia em peram-
bular pelos médicos, fazer uma série de exames, e não pegar os resulta-
dos. Eu havia marcado isso de 'não pegar', e ela me diz, meio por acaso,
que já tinha conseguido pegar um exame de sangue. Ela vem uma vez
por mês porque mora em outro município, é muito longe e não tem
condução fácil.
"Um dia, recebi um homem, que era peão de uma fazenda no muni-
cípio vizinho, chegou a cavalo e disse que estava ali porque tinha ouvido
duas senhoras conversando que diziam que tinha uma doutora no ambu-
latório que tratava sem remédio. Perguntei o que ele tinha e ouvi como
resposta: 'Eu tenho uma coisa que remédio não cura... meu passado está
voltando.' No decorrer da entrevista, ele foi explicando como era isso.
Eram seus sonhos que ele relacionava com situações de sua própria vida
que atualizavam esse passado... Foi surpreendente!"

Diante de modalidades tão diversas e adversas de encaminhamento,


o psicanalista pode estar presente desde o primeiro momento ou ser o
último a saber (como o marido traído) sobre o percurso de quem chega
até ele. Certamente, isso faz diferença. E, não resistindo ao inevitável
jogo de palavras, o 'isso' que faz diferença é propriamente seu métier.
Em suma, decantar a demanda num tempo de lala; esvaziar a demanda
'fora do lugar' num tempo de correção ou retificação ou, ainda, agir
sobre a demanda num tempo de acuidade da escuta que precipita a
Interrogando o ambulatório | 57

decisão, seja como for, o psicanalista tem que fazer diferença sem cair
no logro de bancar o diferente. A diferença diz respeito a seu agir em
cada caso e não a uma estilização caricatural de sua função. Como
manter essa diferença frente a outros profissionais? Como se situar em
equipe? Vamos adiante.

2.2 The dream team: o trabalho em equipe

O modo de organização dos profissionais no atendimento ambulatorial


define o processo que tem início na recepção, ou triagem; determina o
tipo de encaminhamento e as diferentes formas de tratamento, entre as
quais se inclui a psicanálise. Eles podem ou não organizar-se em equipes.
Se assim o fazem, essas equipes podem ser mais ou menos coesas e mais
ou menos instituídas de acordo com as concepções de assistência vigen-
tes nos diferentes serviços.
A formação de equipe tida como ideal para a execução dos projetos
assistenciais em saúde mental é a chamada equipe multiprofissional —
the dream team? — visando um trabalho interdisciplinar.
O termo multiprofissional pressupõe a conjunção de diferentes pro-
fissionais, como: médicos (clínico geral, neurologista, psiquiatra), psicó-
logos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, musicoterapeutas, fo-
noaudiólogos e, nas unidades hospitalares, enfermeiros, para citar os
mais freqüentes. Curioso é que o psicanalista raramente aparece identi-
ficado como um desses profissionais. Talvez porque o ideário psicanalí-
tico já circule, diluído no campo psicológico, entre alguns dos profissio-
nais mencionados, principalmente psiquiatras e psicólogos, e mais
raramente entre os demais. Talvez porque esses mesmos profissionais
não se identifiquem ou não sejam identificados como psicanalistas. Iden-
tificar o psicanalista como profissional não parece ser corriqueiro i s
instituições públicas. Volto a esse ponto adiante.
Há uma concepção corrente e um tanto equivocada que mistura os
termos multiprofissional c multidisciplinar, ou interdisciplinar, supondo
uma correspondência simétrica entre as disciplinas e as categorias pro-
fissionais. Isso pode desembocar numa confusão estéril que descaracte-
riza a especificidade do trabalho clínico e, até mesmo, escamotear ques-
tões ético-políticas que presidem o funcionamento institucional.
Localizo dois discursos distintos que dão suporte à formação das
equipes:
O primeiro, mais usual, defende as especialidades. "Cada terra com
seu uso, cada roca com seu fuso." Isto é, cada especialista tem seu
58 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

território de ação, e tanto pode estabelecer fronteiras rígidas isolando


seus procedimentos de modo a não haver contato maior entre eles, quan-
to estabelecer áreas de trânsito onde seja possível uma troca de experiên-
cias. No primeiro caso, a tendência é burocratizar, e até esvaziar o
sentido de equipe. O médico medica, o psicólogo psicologiza na psico-
terapia, o assistente social socializa, o enfermeiro faz a enfermagem, dos
primeiros socorros à maternagem, e por aí vai. No segundo caso, os
especialistas conversam, seja nas conhecidas reuniões de equipe, de
forma regular e, portanto, instituída, ou nos corredores, de acordo com
as urgências. As questões de diagnóstico, encaminhamento e tratamento
vêm à tona, podendo produzir efeitos interessantes na clínica ou criar
impasses que forçam a tendência ao isolamento. Tudo parece depender
do exercício de persuasão, de uma certa disposição de cada especialista
para convencer e ser convencido.
Tomemos alguns exemplos:
Começo por um serviço de atendimento a adolescentes que trabalha
em equipe multiprofissional, organizada cm torno da clínica médica. A
maioria dos profissionais são médicos com diferentes especialidades;
além desses há assistentes sociais e psicólogos, sendo que um deles é
uma psicanalista. Esta apresenta o seguinte relato:
"Trabalho com médicos docentes, isto já quer dizer que sabem duas
vezes. Pensei no desafio que seria introduzir o discurso psicanalítico no
trabalho de clínica médica, onde os casos são recebidos a partir de pro-
blemas orgânicos, físicos. Logo percebi que tinha que fazer uma parceria,
fazer um atravessamento para ir diferenciando os discursos. Hoje me
chamam para fazer diagnóstico diferencial, principalmente porque che-
gam muitos pacientes histéricos aqui com uma sintomatologia variada,
que se sobrepõe ao problema orgânico. Eles investigam da cabeça aos pés
e percebem quando não é mais com eles, aí encaminham para mim.
"Quando cheguei aqui foram logo me dizendo que não era para fazer
consulta particular porque eu estava numa instituição. Entendi o recado
e não entrei em disputas. A demanda era para atender os pacientes,
internados ou não, em grupos. Havia assistentes sociais que já faziam
isso e eles queriam que um psicólogo coordenasse. Ficou um clima de
que o psicólogo é quem está preparado para isso. O que eu vi foi que as
assistentes sociais faziam muito bem essa parte, e não era justo que eu
tivesse de substituí-las ou provar que faria melhor. Fizemos esse trabalho
juntas por um tempo e hoje quem assumiu a coordenação foi o serviço
social. Meu argumento foi que os grupos informativos, de esclarecimcn-
Interrogando o ambulatório | 59

to e apoio, podiam muito bem ser feitos pelos profissionais que se


dispusessem a isso. Parou a briga histórica entre psicólogos e assistentes
sociais.
"Numa outra ocasião, um médico ilustrado que gostava de entender
de psicanálise, contou a história de um paciente que tinha perdido o
documento de identidade na rua. Meio irônico, ele me disse: 'como você
diria, ele perdeu a identidade dele mesmo.' E eu respondi: 'como Freud
diria, isso seria uma psicanálise selvagem ou inculta, não é?' A partir daí
acho que ele percebeu que há uma diferença e que um discurso não
invalida o outro."

Pode haver, entretanto, situações em que a intervenção do psicanalis-


ta em equipe não releva a especificidade dc determinada estratégia clíni-
ca do médico forçando a diferença equivocadamente. Um exemplo:
Trata-se do caso de um rapaz casado com graves problemas neuroló-
gicos provocados por um acidente. E atendido por uma neuropsiquiatra
que passa a receber o casal nas consultas, visando incluir a mulher no
tratamento, dadas as condições críticas do marido. Ela estava muito
ansiosa e preocupada com a súbita transformação de seu comportamento
em casa. O relato é da neuropsiquiatra:
"Ela vinha sempre com ele querendo saber sobre a doença, se ele ia
ficar bom, muito preocupada. Eu precisava atender os dois para orientar
sobre os procedimentos para os exercícios de reabilitação neurológica,
que deveriam ser feitos com urgência. Só que comecei a notar que ele
ficava meio incomodado na presença dela. Meu medo era que ela não
agüentasse a nova situação, o que colocaria em risco o tratamento dele.
Eu precisava saber se os exercícios estavam sendo feitos corretamente e
contava com ela para isso. Na reunião da equipe, o pessoal da psicologia
insistiu para que eu o atendesse sozinho porque ele deveria se responsa-
bilizar mais por sua condição. Fiquei no impasse. Pressionada, pensei em
acatar a determinação da equipe. Mas resolvi manter os dois. Meu traba-
lho não é de psicoterapeuta, tenho que continuar a atendê-los juntos para
garantir uma melhora da condição neurológica dele, ainda bem compro-
metida. Eles estão juntos nisso... Ele ficava apreensivo por ela estar à
frente do tratamento. Eu expliquei que ela fazia isso porque o amava e
queria ajudá-lo a ficar bom. Acho que funcionou. Ele alternava compor-
tamentos agressivos com total apatia, e tinha um comprometimento ob-
jetivo da realidade. Recentemente, ele desapareceu do tratamento e ela
veio sozinha à consulta para me contar que ele tinha interrompido a
60 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

medicação. Conseguimos trazê-Io de volta. Sem ela, eu teria perdido o


paciente e não poderia fazer mais nada."
Este exemplo retoma a questão de como e até onde o médico deve
conduzir sua clínica sem arvorar-se em psicólogo, permanecendo atento
ao que mobiliza os sujeitos envolvidos em função de seus objetivos
clínicos.

Uma psicanalista comenta sua experiência no trabalho em equipe


após uma longa trajetória no serviço de psicologia de um centro de saúde
onde recebe encaminhamentos de outros serviços em clínica médica,
psiquiatria, fonoaudiologia e nutrição, e avança uma proposta. Em suas
palavras:
"Apesar de nunca termos sido um serviço de saúde mental, chegamos
a ter a ilusão de uma equipe. Houve um tempo em que psiquiatras e
psicólogos estavam mais próximos. Andamos subindo morro para fazer
um trabalho entre a prevenção c a clínica. Hoje acho que o trabalho
clínico tem que acontecer pelo desejo, mais pontual, num certo sentido,
mais isolado. Está reaparecendo uma equipe em outros moldes, estamos
discutindo casos... Volta e meia estou conversando com a fono nos cor-
redores, porque os médicos fazem encaminhamentos simultaneamente
para mim e para ela. Então nós decidimos por um ou outro, dependendo
do caso. As vezes fica meio complicado porque sinto que a fono ou a
nutricionista pedem uma espécie de supervisão mas, ao mesmo tempo,
somos colegas. A verdade é que temos um instrumental precioso na
psicanálise que tem que ser usado com cuidado.
"Uma vez a nutricionista veio toda enrolada com o caso de uma
adolescente grávida que não se alimenta direito e não vai comer o que a
nutricionista acha que ela tem que comer. Segundo ela, a menina diz
assim: 'Depois que eu engravidei, tudo bem, minha mãe não briga mais
comigo, não preciso mais estudar, tá tudo ótimo.' Eu chamo a atenção
para isso. Vamos ver o que essa menina pretende com essa gravidez,
vamos interrogá-la a partir daí.
"Há também uma reunião semanal à tarde onde nos encontramos. E
tem o centro de estudos que está funcionando bem, e lá apresentamos
casos clínicos de modo mais sistematizado. A idéia é conversar através
da clínica."

O segundo discurso que dá suporte à formação das equipes é menos


usual e controvertido. Floresce nas novas tendências da clínica nas cha-
Interrogando o ambulatório | 61

madas estruturas intermediárias — centros e núcleos de atenção psicos-


social. Defende-se uma espécie de implosão das especialidades onde o
profissional é chamado a atuar nos diferentes dispositivos valendo-se de
um referencial comum, nem sempre bem definido, para promover a
saúde mental. Assim, qualquer um deve estar habilitado para atender
individualmente ou em grupos, acompanhar internação e promover os
cuidados básicos, visitar o domicílio do paciente, atuar nas oficinas
terapêuticas, às vezes junto a outros profissionais não ligados à área de
saúde (penso nos artistas plásticos, artesãos, contadores de histórias etc.)
e participar intensivamente do cotidiano institucional e de seus proble-
mas administrativos. A única especialidade mantida é ministrar medica-
ção, facultada somente aos médicos.
Não discuto especificamente essa proposta por ser ainda muito inci-
piente e, também, por não fazer parte do meu objetivo central. Mas
aponto para um possível paradoxo: que se esteja criando a necessidade
de formar superespecialistas preparados para lidar com um leque amplo
e heterogêneo de instrumentos clínicos, o que demanda uma postura
subjetiva e profissional muito rara. Por isso mesmo, corre-se o risco de
tomar a exceção como regra, diluindo o alcance teórico e o potencial
terapêutico de certos instrumentos clínicos. Ou, ainda, de não tornar
explícito e, portanto, transmissível o referencial teórico ou o modelo que
norteia as diferentes ações terapêuticas.
Podem ocorrer, em menor escala, certas variações ou deslocamentos
das funções típicas dos especialistas com efeitos interessantes.
Tomo dois exemplos:
Em um grupo de mulheres, coordenado simultaneamente por uma
psicóloga e uma assistente social, uma recém-chegada exige:
"Quero falar com quem manda aqui. É você que é a psicóloga?" diz,
apontando para a assistente social, sem sabê-lo. As duas assumem a
função, e ambas passam a ser referidas como doutoras. Título que evoca
o médico ausente, mas já pode ser atribuído ao psicólogo. A psicóloga
esclarece seu trabalho conjunto:
"No início, a gente revezava. Uma coordenava e a outra anotava. Aos
poucos isso foi mudando porque uma se metia na vez da outra e eu, que
falo muito, pedia para ela me cortar. Mas ela dizia que quando eu entrava
era porque ela não estava dando conta, era assim mesmo. Agora, coor-
denamos juntas e, quando termina, fazemos as anotações. Nem eu nem
ela tínhamos experiência com grupos. Está sendo um aprendizado."
62 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Em uma unidade psiquiátrica desenvolveu-se um trabalho ambulato-


rial em grupo com egressos de internação. O relato é de uma psiquiatra
que coordenava um grupo.
"O grupo começou coordenado por mim e por um terapeuta ocupa-
cional. Era um grupo de mulheres que inicialmente se reunia no pátio do
hospital. Depois, conseguimos uma sala, e uma auxiliar de enfermagem
veio trabalhar conosco. Nessa ocasião, as famílias também participavam.
Nossa idéia era buscar junto aos pacientes outros recursos terapêuticos,
além da medicação. Não definíamos a priori que recursos seriam esses.
Dizíamos que elas estavam ali para buscar algo mais que não sabíamos
o que era mas que íamos passar por vários caminhos, o que poderia ser
conversando, discutindo os assuntos que surgiam, fazendo outras ativi-
dades como pintura, teatro, costura etc. Eu chamava os grupos de 'grupos
de efeito terapêutico'. Assim, qualquer profissional poderia se engajar,
se quisesse. Havia uma cobrança para que os grupos fossem feitos por
médico ou psicólogo. A gente trabalhava com a idéia de que a função do
técnico não tinha nada a ver com o que fazia ali e nem com o que o
cliente pudesse achar dele. Muitas vezes me perguntavam 'o que a se-
nhora é?' Eu nunca respondia e perguntava de volta 'o que você acha que
eu sou?' Uma vez uma moça me falou assim: 'Eu acho que a senhora é
public-relations, porque a senhora vive correndo daqui pia ali, ajeitando
tudo...' Eu adorei!"
Entretanto, permanece a questão de como se explicitam e interagem
as disciplinas que fundamentam a clínica, já que não equivalem pontual-
mente às profissões.
O que parece ocorrer nesse arranjo multiprofissional é a produção de
uma hierarquia das profissões sob a hegemonia, mais ou menos explícita,
de determinada disciplina ou modelo que vai nortear o funcionamento da
equipe, a interação entre os profissionais e o trabalho clínico.
Tipicamente, recorto três modelos que disputam essa hegemonia en-
tre si, podendo formar híbridos ou excluírem-se mutuamente, dependen-
do da formação e, conseqüentemente, dos compromissos éticos dos pro-
fissionais envolvidos. São eles: o modelo médico, o modelo psicológico
e o modelo psicossocial.
Discorro brevemente sobre cada um e, para problematizá-los, tomo
como referência inicial o trabalho de Costa (1996) que apresenta sua
crítica à assistência psiquiátrica em geral, sob o prisma da ética que
determina sua ação. O autor recorta três éticas que, a meu ver, guardam
uma equivalência a esses três modelos em sua fundamentação. Correia-
Interrogando o ambulatorio | 63

ciono cada um, sem o compromisso de seguir as mesmas linhas de


argumentação do autor.

O modelo médico é o menos adotado na concepção do trabalho


multiprofissional exatamente porque o reducionismo que opera em sua
intervenção não dá margem à conjunção necessária de diferentes profis-
sionais. Apesar disso, não deixa de impregnar as ações de profissionais
não-médicos ou paramédicos, como são chamados. Esse modelo funcio-
na sob a ética da tutela pautada no modelo da ética instrumental que "lida
com objetos da natureza, que visa prever, predizer e controlar experimen-
talmente aquilo que é estudado" (1996, p. 30). O sujeito aí é privado de
razão e vontade em prol da descrição fisicalista do modo como se apre-
senta.
Frases como "ele tem depressão" ou "a depressão é uma doença que
a senhora tem que tratar" ou "esses ataques de pânico acontecem sem
motivo aparente?" ou "sua agressividade não tem nada a ver com a sua
vida, é própria da doença" (sobre um epiléptico), são exemplos típicos e
corriqueiros de referência a uma causação fisiológica dos distúrbios.
Contudo, há exemplos mais sutis que podem indicar causações limítrofes
entre o fisiológico e qualquer coisa do psicológico, e resultam da mesma
ética instrumental, como "ele ainda não tem sexualidade definida" (dito
por uma psicóloga sobre um rapaz de 18 anos internado com diagnóstico
de dependência química); "vamos controlar sua insónia" (dito por um
médico); "o paciente não se adequa ao tratamento devido à sua hiperati-
vidade" (dito por um terapeuta ocupacional); "o senhor tem que entender
que isso que o senhor sente é da sua doença" (dito por uma assistente
social a um paciente internado, que se queixava de sensações estranhas
no corpo). Ou, ainda, frases que revelam quase caricaturalmente uma
causação psíquica, mas são incorporadas à ética instrumental, como "o
problema dele é que ele tem um complexo de Édipo não elaborado"; "o
medo que a senhora sente é porque a senhora não consegue se desvenci-
lhar de sua infância"; "ele tem uma agressividade contida e não admite
isso"; "o problema dela é sua baixa auto-estima". O denominador co-
mum é a objetivação do sintoma ou da doença como algo que o sujeito
tem, que o acomete, e sobre o qual ele tem pouco a fazer, senão seguir
as prescrições, que podem ser medicamentosas ou educativas.

O modelo psicológico refere-se à ética da interlocução, pautada no


modelo da ética da moral privada, "onde a referência ao instituído é
64 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

facilmente desfeita em nome da criação e recriação permanentes... com


uma flexibilidade muito maior que a da recriação de crenças ou normas
sociais" (1996, p. 31). Não há uma dissimetria tão marcada entre sujeito
e agente terapêutico como no modelo médico. Ambos se definem no
vocabulário psicológico. O sujeito é reconhecido como competente para
buscar soluções para seus conflitos junto ao terapeuta, para o que escapa
de sua vontade e de sua razão constituindo uma outra. É inegável que o
ideário psicanalítico é marcado, grosso modo, por essa ética. Guarda,
porém, uma especificidade quanto à definição de sujeito que não se reduz
ao indivíduo de vontade e arbítrio tomado num dado momento por
conflitos que, uma vez resolvidos, lhe permitiriam restituir sua unidade
perdida. Além do mais, o tipo de interlocução em jogo na psicanálise não
pressupõe uma relação mais próxima da simetria entre dois sujeitos. Há
uma dissimetria marcada sim, mas diferente da praticada na ética instru-
mental da tutela, que diz respeito à posição do agente em relação ao
saber. O psicológico vai por conta da ênfase na noção de indivíduo,
correlata da noção de privado, que entende o sujeito como dotado de uma
consciência e poder de decisão imanentes e autônomos em relação à
ordem social e à cultura que o circunscrevem e o constituem como
sujeito de linguagem.
Frases como "qual é o seu desejo?"; "você pode colocar a sua raiva
pra fora"; "cada um tem sua maneira de ser"; "mas por que tem que ser
assim, só por que seu pai mandou?"; "de onde vem essa agressividade?"
ilustram a crença numa certa imanência dos conflitos que enfatiza o
individual como uma entidade em si mesma. Na pior das hipóteses, essa
concepção pode desaguar numa redundância inútil, dando ao sujeito a
idéia de que tudo depende de sua força de vontade. Na melhor, pode abrir
caminho para ampliar as possibilidades de reflexão sobre si. Mas frases
tão comuns como "estou vindo aqui há um tempão e não sei pra quê" ou
"eu falo, falo e não adianta nada" podem nos indicar que não estamos
indo num bom caminho.

O modelo psicossocial refere-se à ética da ação social pautada no


modelo da ética pública que define sujeito e agente terapêutico, acima de
tudo, como cidadãos e iguais. As virtudes terapêuticas devem equivaler
às virtudes políticas, e quando não o são, podem ser relegadas a segundo
plano como resquícios de um individualismo psicológico condenável. A
população priorizada são os casos graves, principalmente os de sujeitos
cronificados e desassistidos pelo sistema psiquiátrico tradicional. O alvo
Interrogando o ambulatório | 65

da luta política é a estrutura asilar, e também as práticas ambulatoriais


chamadas 'tradicionais' que incluem o tratamento medicamentoso e as
psicoterapias, entre as quais uma certa prática da psicanálise que, muitas
vezes, faz jus ao rótulo. A doença, como acometimento biológico, e o
conflito, como fruto de uma interioridade conturbada devem dar lugar a
mudanças mais amplas nos dispositivos de assistência, visando à recons-
trução das relações sociais, de trabalho e convívio. A ênfase é dada nas
práticas grupais e coletivas como meios para essa reconstrução. O pro-
blema reside em supor que a clínica possa ser reduzida a uma política
pelas igualdades e que a doença ou o conflito psíquico sejam prioritaria-
mente frutos da ordem social e de suas ideologias.

Algumas ressalvas devem ser feitas. Quando se caracterizam mode-


los, as respectivas práticas guardam sempre uma distância inevitável, e
mesmo desejável, de seus princípios gerais. Além disso, como já afirmei,
é mais comum que esses modelos se mesclem compondo um híbrido,
principalmente porque seus agentes são diferentes entre si em sua traje-
tória pessoal e profissional. Assim, podemos pensar na possibilidade das
éticas se atravessarem na prática, e refletir sobre seus efeitos.

2.3 O tratamento: terapias e pedagogias

Sobre o tratamento, inicio minha discussão retomando os três modelos


— médico, psicológico e psicossocial — a partir das três éticas que lhes
equivalem: a ética da tutela, a ética da interlocução e a ética da ação
social. Essas éticas norteiam tipicamente três modalidades de tratamento
que são, respectivamente, o tratamento medicamentoso, as psicoterapias
e as oficinas terapêuticas.
Como já apontei, elas podem compor híbridos, onde uma prevalece
sobre a outra, fundamentando as mesmas modalidades de intervenção e
tratamento, porém, modificando seus procedimentos e seus objetivos
terapêuticos. Atendimentos individuais ou em grupos a uma clientela que
pode ser definida por sua patologia ou identidade social tomam rumos
diferentes, dependendo de como são conduzidos. Apresento-os breve-
mente e comento suas implicações, de acordo com as referências éticas
que lhes dão suporte.
Recorto os exemplos combinando as três éticas, duas a duas, desta-
cando a prevalência de uma sobre a outra, num arranjo onde pode haver
66 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

casos em que uma terceira atue subjacente, como efeito esperado ou não.
Vamos a eles:

A interlocução prevalece sobre a tutela:

E, por exemplo, o caso dos chamados grupos de medicação. Obtive o


relato de uma experiência em hospital psiquiátrico com grande afluxo de
pacientes psicóticos cronificados, em geral com diagnóstico de esquizo-
frenia residual ou defeito esquizofrênico, totalmente aderidos à medica-
ção. Foram convidados a se reunirem mensalmente para conversar e, ao
final dos encontros, recebiam suas receitas. A iniciativa do psiquiatra foi
evitar o típico atendimento individual de dez minutos, onde não havia
qualquer possibilidade de interlocução, a não ser dar receitas e ajustar
doses. Os grupos tinham a duração de uma hora, e nos dez minutos finais
as receitas eram distribuídas.
Segundo o psiquiatra, "nos atendimentos individuais eles não fala-
vam nada... aí você põe lodo mundo junto e eles falam de tudo... teve um
efeito evidente. Gente que você jura que jamais vai tomar qualquer
iniciativa na vida e começa a cogitar de arrumar emprego, fazer um curso
no Senai, combinar de sair junto. Acho que eles nem viabilizavam essas
idéias, mas cogitavam, conversavam, chegaram até a comemorar o ani-
versário de um deles, levaram bolo e tudo. Trocavam idéias sobre medi-
cação, mas não propunham a alteração das prescrições. A entrega das
receitas fazia parte do ritual das consultas. Essa era uma particularidade
desse grupo e, talvez, como era a minha primeira experiência com pa-
cientes que tomavam medicação, há pelo menos cinco anos, isso pode
ter dificultado uma mudança maior. Havia um outro grupo de medicação
freqüentado por todo tipo de pacientes, como os ansiosos, epilépticos, e
também psicóticos. Trabalhei com eles pouco tempo, não tenho elemen-
tos para avaliar."
Neste exemplo, curiosamente, a interlocução possibilita uma sociabi-
lidade, um convívio, ainda que uma vez por mês, que se aproxima, em
seus efeitos, da proposta do modelo psicossocial, apesar da inquestiona-
bilidade do uso da medicação como base do que seria o tratamento para
eles.

Outro exemplo significativo é o dos chamados grupos de egressos de


internação, em sua maioria com diagnóstico de psicose. Mais do que
nunca, esses pacientes são os tutelados por excelência. Não apenas pelo
Interrogando o ambulatório I 67

fato de terem passado por internações mais ou menos longas ou freqüen-


tes, mas, principalmente, por serem a clientela privilegiada de uma psi-
quiatria que ratifica sua condição de doentes e objeto de intervenção
médica, podendo permanecer nessa condição. O espanto que uma jovem
psiquiatra, formada na orientação organicista, manifestou ao participar
certa vez de um desses grupos, resume a questão. Em suas palavras,
"Nossa! como eles falam!" E evidente que ela não os supunha mudos,
pois cansou de ouvir seus delírios, suas falas desconexas, enfim, seus
sintomas produtivos que deveriam ser erradicados pela medicação. Sua
surpresa era que esses mesmos pacientes, alguns ainda em franco delírio,
dialogavam, trocavam idéias à sua maneira — idéias que para ela não
pareciam tão absurdas. Era quase como se ela dissesse 'eles falam a
minha língua'!

Um outro exemplo: um grupo com mulheres numa faixa etária de 30


a 60 anos, com diagnóstico psiquiátrico pouco específico de depressão.
O relato é de uma psicóloga:
"Eram as deprimidas, vinham encaminhadas pelo psiquiatra do cen-
tro e, dada a incidência do diagnóstico, resolvi juntá-las num grupo. O
mais curioso é que algumas eram mais deprimidas mesmo, meio desvi-
talizadas, mas a maioria começa a falar e o que aparece é uma outra
maneira delas se definirem. Teve um dia que todo mundo falou em
nervoso. Elas começaram a dizer que eram nervosas, e que ficar depri-
mida seria, digamos, uma conseqüência. Foi muito engraçado romper
com esse rótulo e elas poderem falar do que as fazia sofrer. Uma dizia
que era o marido, a outra porque não tinha marido, ou era o filho que
casou, o outro que era traficante, e por aí vai."

Outro exemplo, relatado por uma psicanalista, mostra uma iniciativa


semelhante com mulheres acima de 40 anos com o mesmo diagnóstico
impreciso de depressão, entretanto, não funcionou por um motivo muito
simples que não diz respeito exatamente à clínica. Tratava-se de um
posto de saúde situado em um pequeno município, afastado da cidade
grande. As mulheres se recusaram a formar um grupo terapêutico porque
todas se conheciam entre si, eram vizinhas e até aparentadas. Como iriam
expor seus problemas, sua vida íntima e cair na boca do povo onde todo
mundo sabe da vida de todo mundo?
Segundo uma delas, "doutora, aqui todo mundo se conhece. Já ima-
ginou o falatório que isso ia dar, todo mundo sabendo das minhas inti-
midades, não quero fazer isso não". A psicanalista esclarece:
68 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

"A solução foi atender individualmente e teve um efeito interessante:


elas começaram a se encontrar na sala de espera — até porque os horá-
rios de atendimento eram meio próximos, correspondendo aos dias em
que eu estava lá — e daí trocavam receitas de culinária, trabalhos ma-
nuais, discutiam suas dificuldades mais superficiais, enfim, o grupo se
formou espontaneamente sem a minha presença efetiva, mas em torno
daquele espaço proposto a elas."

Em ambos os casos a interlocução prevalece sobre a ética instrumen-


tal da tutela, seja deslocando o foco sobre o diagnóstico para permitir sua
apropriação e a conseqüente ressignificação pelos próprios sujeitos, seja
para produzir efeitos inusitados numa situação-limite que dispensa a
presença constrangedora do profissional, criando uma certa sociabilida-
de através da interlocução, em vez da indesejável exposição da privaci-
dade.

A tutela prevalece sobre a interlocução:

Ocorre-me um exemplo de um grupo de alcoolistas em um hospital


psiquiátrico. O objetivo era reunir essa clientela, não absorvida pelos
grupos de ajuda mútua dos AA, considerada problemática para a psiquia-
tria, sob a coordenação de um profissional de saúde mental visando
produzir efeitos terapêuticos. Reproduzo trecho da fala queixosa de um
freqüentador desse grupo, que esclarece a questão. Ele diz, mais ou
menos assim, para a psicóloga que o atende individualmente: "Não sei,
não... eu continuo indo lá, até gosto da doutora, mas é muito chato... a
gente é recriminado o tempo todo, cada vez que um bebeu, pronto. De
mim ela não pode falar, eu não voltei a beber, mas que deu vontade, deu.
E isso eu não posso dizer lá não."

Outro exemplo, mais comum, é o dos grupos formados a partir de


determinadas patologias clínicas na chamada atenção primária. Diabéti-
cos, hipertensos, renais, são os mais freqüentes nos centros e postos de
saúde. A proposta é clara: informar e esclarecer sobre a doença e suas
conseqüências para melhor tratá-la. Nada de errado com isso, ao contrá-
rio, pode ser muito útil para a continuidade do tratamento. Acontece que
um diabético, um hipertenso ou um renal não é igual ao outro, e as
diferenças, após um certo tempo, passam a ser o que importa. O proble-
ma está em desconhecê-las para homogeneizar os sujeitos sob essa mar-
Interrogando o ambulatório I 69

ca, unicamente com o objetivo de subsidiar a clínica médica. A interlo-


cução dá lugar à educação, às prescrições de conduta que podem resultar
num fracasso clínico se não houver interlocução a partir das demandas
dos assistidos.
Há, também, modos de condução de terapias individuais ou em gru-
pos que vão pelo mesmo caminho. Frases como "você está aqui para
entender o seu problema" ou "se você me disser o que você tem eu vou
poder ajudá-lo" podem significar que a resposta virá assim que o tera-
peuta encontrar a solução. Nesse caso, falar é fornecer informações
suficientes para o terapeuta 'malar a charada' e corrigir o erro subjetivo.
Esta é urna demanda freqüente dos pacientes que, ao encontrarem al-
guém disposto a atendê-la, devem apenas ter paciência para esperar a
revelação certa na hora certa. Eis uma boa armadilha da ética instrumen-
tal da tutela quando se apoia numa certa concepção de interpretação
oriunda da psicanálise. Freud corrigiu seu rumo a tempo cm função de
seus próprios fracassos, ao revelar para o paciente o que este já sabia
e não queria saber, por conta de um elemento crucial da transferência
— a resistência. E, mais tarde, deparou-sc com um impedimento
maior — a repetição.

A interlocução prevalece sobre a ação social:

Um exemplo é a constituição de grupos, em geral de atenção primária ou


secundária, que reúnem sujeitos definidos, a partir dc uma identidade
social, mais ou menos estigmatizante, fixada pela patologia, faixa etária,
gênero etc. Podem ser psicóticos, alcoolistas, portadores de HIV, adoles-
centes, adolescentes grávidas, mulheres, idosos, obesos, cardiópatas e
outros. Assim como esse tipo de trabalho pode fazer prevalecer a tutela
e fixar o estigma dessa identidade, pode, ao contrário, descobrir um meio
de funcionar a partir da interlocução. A ação social que recorta e fixa
essas identidades dá lugar ao diálogo que tanto pode reforçá-las quanto
minimizar seus efeitos estigmatizantes. O ideário de uma psicologia
psicanalítica tem aí sua função. Fazer falar, dar sentido ao sofrimento
psíquico, abrir para novas possibilidades de subjetivação, para novas
identificações, incrementar a criatividade, são alguns lemas dessa ética.
São os chamados grupos de reflexão ou grupos terapêuticos. Assim, os
psicóticos devem comparecer como sujeitos; os alcoolistas devem inda-
gar-se sobre sua compulsão; os portadores de HIV devem relativizar sua
condição de condenados à morte social e física; os adolescentes devem
70 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

deparar-se com suas questões; as jovens grávidas devem assumir sua


condição; as mulheres devem tematizar suas diferenças; os idosos devem
redescobrir sua vitalidade, e, assim, por diante. Extremamente salutar,
diriam os entusiastas. Mal não faz, diriam os mais célicos. A questão é
como dar conta das diferenças subjetivas, englobadas no recorte homo-
geneizador das identidades socialmente fixadas, que as constituem como
grupos à parte. Paradoxalmente, a ética da interlocução pode reforçar a
condição social ao invés de diluí-la. Tudo em nome das diferenças. Esse
é o paradoxo da lógica das minorias.

A ação social prevalece sobre a interlocução:

O principal exemplo é o das oficinas terapêuticas, em geral freqüentadas


por pacientes graves, onde o trabalho, a produção, mesmo em seu aspec-
to criativo, reduzem o espaço de interlocução entre os sujeitos envolvi-
dos. Privilegia-se a tematização da produção individual ou coletiva como
o elemento terapêutico principal negligenciando seus efeitos singulares
sobre cada sujeito. Reproduzo um relato fornecido por uma psicóloga:
"Trabalhávamos com uma certa rotatividade dc pacientes. Mas linha
os que eram mais assíduos. Alguns eram bem produtivos, mas era muito
difícil trabalhar com aqueles que não rendiam. A gente variava as ofertas,
ora era desenho ou pintura, ora era argila... às vezes a gente tentava outras
técnicas e funcionava. Eles pouco conversavam entre si e eu comecei a
puxar conversa sobre o que estavam fazendo, porque achava aquilo tudo
muito sem vida. Teve um dia, que um lá, de repente se levantou, ele estava
muito ansioso e começou a gritar 'eu não vou deixar... não vou... ele pensa
que vai levar tudo meu...' Foi se exaltando até que partiu para cima da
estante onde a gente guardava os trabalhos e começou a jogar tudo no
chão. Um T.O. mais experiente foi lá c conseguiu acalmá-lo, mas ele não
quis ficar. Depois foi medicado, a seu próprio pedido, e foi pra casa.
Faltou por umas duas semanas e, quando voltou, parecia estar tudo bem.
Só que ficamos sem saber o que se passou. Ele retomou suas atividades
como se nada tivesse acontecido. Depois eu vi que o desenho, que ele fez
naquele dia, era o de um boneco carregando uma mala onde ele escreveu
uma palavra meio ilegível, que parecia 'bagagem' ou 'bagaço'."
Um outro exemplo complementa o anterior:
"O que eles mais gostavam era quando tinha a feirinha para exibir e
vender os trabalhos, ou então quando promoviam festas que eles mesmos
ajudavam a organizar... ficavam superempolgados, participavam. A im-
Interrogando o ambulatório I 71

pressão que eu tinha era que eles trabalhavam pensando nisso, corno o
pessoal das escolas de samba, que passa o ano todo se preparando para
o grande momento."
Sem dúvida, não há como negar os efeitos terapêuticos e de pertinên-
cia social que dotam de sentido todo um esforço de trabalho, toda uma
rotina, que se repete à espera do "grande momento", ou, simplesmente,
para preencher o tempo através do trabalho e do convívio. Afinal, isto é
bem o que fazemos em nosso cotidiano em nome da normalidade. Mas,
como alude o exemplo anterior, o problema é que o sujeito, com sua
tematização própria pode não encontrar nos defensores das práticas so-
cializantes alguém a quem possa endereçá-la.

A tutela prevalece sobre a ação social:

Mantenho a referencia às chamadas oficinas terapêuticas para destacar


uma discreta torção de sua finalidade. A prevalência da tutela se dá
quando a atividade ocupacional é dirigida de tal forma que o paciente, a
quem se deve dar uma ocupação, é concebido como um doente regredido
a formas mais primitivas, portanto, mais infantis, de expressão. O plano
de trabalho deve cumprir etapas supostamente essenciais ao progresso do
paciente, independentemente de sua escolha ou vontade. Para os mais
regredidos a um estádio pré-verbal, a terra: matéria-prima da natureza que
evoca o nascimento. Para os mais articulados na imagem, as garatujas no
papel e suas variações. E, por fim, os verbais, que podem se engajar nas
atividades mais socializadas. Algumas frases são textuais: "ele está muito
regredido, o contato com a natureza pode ajudar" ou "ela não se adapta
ao tratamento, está muito dispersa e agressiva... não podemos mantê-la
aqui" ou "fulano fez progressos, já pode participar do grupo".

A ação social prevalece sobre a tutela:

Há vários exemplos possíveis dessa prevalência. Os principais são as


oficinas terapêuticas — designação do Ministério da Saúde para as prá-
ticas terapêuticas nas chamadas estruturas intermediárias entre a interna-
ção e o tratamento ambulatorial stricto sensu — que atendem pacientes
graves, desde os cronillcados até pacientes em tratamento ambulatorial,
com ou sem história de internação. Essas novas práticas atualizam a
conhecida terapia ocupacional, ou praxiterapia, acentuando a ética da
ação social, cuja finalidade é retirar o paciente do jugo tutelar em que se
72 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

encontra — o termo tutela, aqui, adquire um sentido mais amplo, do


tratamento aos dispositivos jurídicos. Há, também, outras formas de
associação de pacientes, que incluem o lazer e a sociabilidade, e se
oferecem como caminhos para uma autogestão.
O melhor exemplo é o dos pacientes psicóticos considerados crôni-
cos, após uma longa carreira de internações psiquiátricas, tratados à base
de eletrochoques, altas doses de medicação, isolamento etc., que se
engajam na luta antimanicomial, praticando uma verdadeira militância,
cujo efeito mais radical pode ser retirá-los da condição de tutelados.
Contudo, é preciso ficar atento aos efeitos dessa nova identidade estabi-
lizadora de 'militante', que oferece um acesso à cidadania perdida, pois
ela se mantém até onde pode operar como função simbólica. Isto é, até
onde não se torna um fardo que cai sobre o sujeito, soterrando-o com
exigências muito além de suas possibilidades de elaboração. Este é o
maior risco do igualitarismo.

Feito esse percurso por um certo blending das éticas que norteiam a
clínica, fica a pergunta: o que a psicanálise e o psicanalista têm a ver com
isso?
Em primeiro lugar, nada impede que o psicanalista se aproxime, ou
mesmo se envolva em diferentes modalidades de tratamento que visam
efeitos terapêuticos a partir da interlocução. Como já apontei, esta é a
ética mais próxima da psicanálise. A interlocução, porém, deve ser en-
tendida aqui como um ponto de partida, algo a ser transformado em,
digamos, elocução. No dicionário: " 1 . Maneira de expressar-se oralmen-
te ou por escrito; 2. Escolha de palavras ou frases, estilo."
Esta definição preciosa permite esclarecer um ponto sobre o qual
Lacan insistiu no decorrer de seu ensino, sua transmissão oral da psica-
nálise: não existem dois sujeitos na psicanálise e o objeto está do lado do
analista. Quem escolhe as palavras ou frases é o sujeito. Ao enunciado
em seu conteúdo junta-se a enunciação, o modo de dizer, o momento em
que é dito, o endereçamento. Isto é, para quem se diz o que, e qual a
finalidade do dito. Esse é seu estilo.
A ética da tutela, portanto, está fora de questão. Não há como conci-
liar. A ética da ação social pode ser surda. Seu limite crucial está em se
entregar ao afã de recuperar a cidadania perdida, mas, pode não ser
incompatível com a escuta sutil da elocução. E uma escolha a ser feita.
O psicanalista, para fazer funcionar a elocução, deve estar preparado
para atravessar as diferentes modalidades de tratamento sem perder-se
Interrogando o ambulatório | 73

na terapia ou na pedagogia. Afirmação temerária quando se espera que,


no serviço público, curar e educar sejam as principais ferramentas. Mas
não sejamos ingênuos supondo que não há qualquer resquício de terapia
ou educação no trabalho psicanalítico. Freud falava em reeducação como
uma finalidade da terapia psicanalítica. E também alertava para a inedu-
cabilidade das pulsões e para o furor sanandi. Pulsões indomáveis?
Rebeldia da natureza? Qual educação ou terapia que estão em jogo? Com
que finalidade evocamos a elocução? Na psicanálise não tem conversa?
De conversa em conversa, a tarefa inicial do psicanalista é acatar a
interlocução taticamente para dela destacar a elocução, convertê-la em
fala associativa como um modo de fazer o sujeito se apresentar com
quantas palavras puder. A partir daí estamos no solo, paradoxalmente
movediço, da afirmação de si como uma realidade irredutível. Por suces-
sivos deslocamentos, essa fala se transforma numa dúvida potencial
sobre o que se diz e o que se pensa, sobre aquilo em que se acredita. Está
criado o embaraço. Daí em diante, os dados estão lançados. O sujeito não
está sozinho, inteiramente entregue à sua sorte. O acaso é uma contin-
gência e não uma fatalidade. O analista se encarrega de tratar dessa
contingência, garantindo a elocução para relançá-la a outras possibilida-
des de significação, fazendo vacilar a posição inicial do sujeito a partir
de sua intervenção.
Uma psicanálise pode acontecer a partir de qualquer uma das moda-
lidades de tratamento apresentadas acima. Dos atendimentos em grupos
aos individuais, da atenção primária às oficinas terapêuticas. Da parte do
sujeito, isso pode interessar ou não.
Tomemos alguns exemplos que ilustram essa passagem à elocução a
partir de diferentes trajetórias dos sujeitos nos serviços.

Em um serviço de adolescentes, uma mulher freqüentava um grupo


de orientação de mães juntamente com seu filho de onze anos que,
segundo ela, "chorava muito desde que nasceu." Foi encaminhada para
atendimento individual com a psicóloga porque era ela quem chorava
muito e não conseguia continuar no grupo. O relato é da psicóloga:
"Ela chega com o menino se dizendo desesperada e que não sabe
mais o que fazer com ele. Chora o tempo todo... e eu tico sem saber o
que fazer. Ele se recusou a ser atendido, soltava uns grunhidos, ficava
quase de costas pra mim e não falava. Aí eu fui dizendo pra ele que ele
podia ficar tranqüilo que ninguém ia obrigá-lo a nada... 'você está vendo
alguma corda aqui? não vou te amarrar, te prender... sua mãe está muito
74 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

ansiosa e se você se recusar a falar a gente não vai entender o que está
acontecendo... e, se a gente não resolve isso aqui, ela vai te levar para
outro lugar e mais outro. Por que você não aproveita que está aqui e
vamos conversar?' Aí ele fala: 'Mas eu não quero vir... porque acho que
não preciso disso... ela é que fala. Eu não venho mais.' A mãe fica
desesperada, se ele não quer falar, o que ela vai fazer? Ela diz, 'essa é
minha única esperança'. Ele continua de mau humor, e a mãe vai respon-
dendo minhas perguntas dirigidas a ele. Na escola as notas eram boas,
mas isso não bastava. Aí ela conta um episódio em que ele chega da
escola e não fala com ela nem cumprimenta a vizinha que estava lá. E
você fez o quê? Ela diz: '... eu tenho medo dele ficar chorando... dele ter
uma crise'. Eu marco isso como um gesto de má educação, o menino me
olha meio de banda e diz 'é... não volto mais' e saiu da sala. Nesse ponto
cu convidei a mãe para voltar e conversar comigo sobre isso tudo que a
transtornava tanto. Na semana seguinte ela já vem dizendo que ele está
melhor e ainda fala dele. Mas nas sessões seguintes ela começa a falar
de como ela chora muito, de seus medos, porque ela mora num lugar
controlado por um grupo de extermínio onde não se pode abrir a boca c
que ela tinha medo de falar... não podia falar. Eu abro um prontuário para
ela, porque até então os registros eram feitos no prontuário do filho. Daí
ela passa a me contar de sua insatisfação com o marido e o lugar onde
mora etc. Um dia ela vem me dizer que tem uma coisa para me falar que
nunca falou para ninguém. Era uma cena de abuso sexual quando criança
e que, pelo que entendi, teve repercussões na vida dela que a fizeram
abrir mão de uma paixão, casar-se com um homem a quem não amava c
aceitar suas imposições. Ela diz que, com ele, não estava nem ligando
para o que podia pensar dela. Ela está comigo há uns três anos, franca-
mente em análise e a vida dela mudou muito. Mudou sua atitude em
relação ao filho, ao marido, enfrentou um câncer na tiróide, e conseguiu
se mudar do lugar onde morava."
Destaco deste exemplo que, a partir de uma contingência bem mane-
jada, houve um deslocamento da queixa e da demanda onde o filho,
inicialmente o objeto de intervenção, tomou a palavra que lhe foi conce-
dida e, num aparente desacato, 'encaminhou' a mãe para o lugar de fala
que, para ela, era praticamente proibido. A partir daí, é com o analista.

Em um posto de saúde de um pequeno município, onde se deu o


curioso episódio que relatei sobre a recusa das mulheres em participar de
um grupo terapêutico, uma delas vem encaminhada do neurologista com
Interrogando o ambulatorio | 75

queixas de depressão, falta de vontade de viver, enjôos, problemas de


vesícula e outros problemas somáticos. O relato é da mesma psicanalista:
"Por aproximadamente dois meses, ela vem me procurar para falar de
sua saúde, das saudades de um filho que não morava mais na cidade e
das decepções com o marido. Mais ou menos nessa época sou procurada
por um homem considerado alcoólatra com episódios de impotencia que
relaciona ao fato da esposa ser uma pessoa muito doente. Eu o atendi por
cerca de um mês, uma vez por semana. Ele se queixava que sua esposa
não lhe permitia fazer o que mais gostava: criar e treinar pássaros e
participar com eles de competições de canto. Ela ameaçava se matar a
cada vez que ele saía de casa. A cada dia ele chegava mais animado,
melhor trajado, dizendo estar parando de beber para poder cuidar dos
pássaros e que não se importava mais com as lamentações dela. Um dia
me diz que está ótimo e que tem ido a todas as competições, mesmo
tendo que deixar sua esposa cm casa reclamando e dizendo que vai sc
matar. Ele diz: 'Sabe, doutora, cia sempre diz isso quando eu vou me
divertir, mas eu sei que ela diz isso para eu não ir e ficar em casa com
ela, mas eu vou ficar com ela fazendo o quê, se ela não quer nada
comigo?' Com isso ele deu por terminada a 'terapia' e foi tratar dos
pássaros, para meu total espanto. Mal eu sabia que 'a hora do espanto'
ainda estava por vir.
"Cabe explicar que, nessa época eu era uma grande novidade na
cidade, não por ser psicóloga, pois já existiam outros nos quadros da
Prefeitura, mas por ter entrado lá por concurso público, não ser da cidade
e trabalhar de maneira diferente da de outro profissional que antes aten-
dia no mesmo ambulatório. Com isso, havia muita procura a ponto de eu
fazer entre 15 e 20 atendimentos por dia. Coincidentemente, a senhora
de quem falei não apareceu por várias semanas, até o dia em que veio
me procurar sem estar marcada. Atendi-a e ouvi o seguinte: 'Pôxa dou-
tora, com meu marido foi tão rápida a melhora e comigo está demorando
tanto'! Depois de ter me recuperado do espanto, comunico-lhe as coin-
cidências e ela me responde: 'Não tem nada a ver. Eu estava muito
ocupada com as provas. Para ele foi muito bom, ele até parou de beber,
só que não pára mais em casa...'
"Os atendimentos se seguiram e ela conta ter tomado o dobro de
calmantes para se vingar do marido que a deixa sozinha. Pergunto-lhe:
'Mas a senhora não diz sempre que quer se livrar dele?' Ela responde:
'Mas eu não queria que ele ficasse comigo, só queria que ele não fosse'.
76 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Eu digo, 'a senhora não queria que ele tivesse prazer'... 'É, se eu não
tenho, ele também não pode ter'. Pontuo, 'a senhora não pode ter...'
"Por problemas de instalação do posto interrompemos os atendimen-
tos por um tempo e ela desapareceu por cerca de quatro meses. Passado
esse tempo, vejo seu nome no caderno de marcação de clientes novos.
Quando ela entra na sala, vejo-a de cabelos cortados, bem trajada e com
um sorriso largo como eu nunca vira. Ela diz: 'Há quanto tempo, nc
doutora? A senhora deve estar estranhando o meu sumiço, é que eu tive
muitas coisas para fazer, mas agora eu já resolvi todos os meus proble-
mas, agora sim posso me tratar.' Pasma com o que ouvia, perguntei-lhe
que problemas tinha resolvido. Ela diz que se separou do marido, que
não se preocupa tanto com o filho, que o outro filho vai se casar e ela
nem deprimiu, e que vai mudar de casa. Começa a contar sua história
relembrando cenas da infância e sua questão se define numa fala: 'Agora
que posso fazer o que quiser, descobri que não sei o que quero.' E assim
começou sua análise." (Machado, 1995a)
Este exemplo pode dar o que falar. As possibilidades são muitas, a
começar pela tão controvertida questão da neutralidade do analista e as
dificuldades na transferência, seguida pela questão dos tratamentos bre-
ves e sua eficácia, especialmente em casos de alcoolismo. Mas estas são
falsas questões. A analista não se ofereceu como terapeuta de casal, nem
quebrou qualquer ética em seu desconhecimento. Ofereceu-se à transfe-
rência e trabalhou a partir das falas que lhe eram endereçadas como
queixas de um 'marido' e de uma 'esposa'. Era assim que falavam um
do outro. O marido sai da bebedeira e da impotência para fazer seu
passarinho cantar mais alto em outro lugar. A esposa vai e vem. O
importante é esse desvio no percurso da transferência que a leva a encetar
uma série de separações para formular uma questão sobre seu desejo.
Passando ao largo da penisneid, que marca o drama da mulher e tem
na histeria uma de suas soluções, destaco alguns elementos da história
desta mulher que têm conseqüências na construção de sua fantasia rela-
cionada ao momento em que entrou em análise: ela era gêmea de uma
irmã e, com a morte do pai quando ainda eram bebês, foi separada da
irmã e criada pela avó paterna e três tias, enquanto a irmã ficou com a
mãe. Depois de algum tempo a mãe tentou levá-la para casa, mas ela não
conseguia comer, vomitava tudo o que comia. Voltou para a casa das tias
sempre sentindo-se inferiorizada por não ter pai, e só saiu de lá para se
casar. A irmã gêmea matou-se ainda jovem quando foi abandonada pelo
marido. Conta, ainda, que as tias não a deixavam cortar o cabelo, até que
Interrogando o ambulatório I 77

um dia ela os cortou de um lado só, obrigando-as a terminarem o corte.


Em suas palavras: "Eu não podia escolher, a única vez em que fiz o que
quis foi quando cortei o cabelo, mas me senti muito mal, minhas tias
brigaram muito comigo."
Podemos recortar dois tempos: o primeiro é o do aprisionamento ao
marido, aos sintomas somáticos, à falta de escolha, vislumbrando a
morte como solução. O segundo é o de uma separação, de um corte na
demanda, no aprisionamento, no cabelo, e uma escolha é possível. Esco-
lha de endereçar ao analista um vazio, um 'não saber de si' e 'do que
quer'. Os dados estão lançados.

Mais um exemplo mostra a ação do analista como decisiva para o


início do processo. Trata-se de uma moça encaminhada a uma unidade
psiquiátrica por uma psicóloga, que a atendeu em um serviço de psico-
logia, com a recomendação de "um caso muito grave" que exigia aten-
dimento psiquiátrico, e até neurológico, e não deveria sequer ser atendida
em grupo. O relato é de um jovem analista que assumiu o caso.
"Diante do pedido que me foi feito, resolvi atender a moça indivi-
dualmente sem a intenção de atendê-la regularmente, mas para fazer um
encaminhamento. Mas o desenrolar da entrevista foi decisivo para me
fazer mudar de idéia. Ela chega nervosa, tem dificuldade de começar a
falar e a primeira coisa que diz é: 'E difícil falar... a psicóloga não me
disse que você era tão novinho.' Perguntei: 'Isso te atrapalha?' 'Não... o
Dr. fulano e o Dr. beltrano também eram... eu só tenho médicos ho-
mens... a psicóloga falou que você ia me atender e ver se ia ficar comigo
ou não. O Dr. fulano [neurologista] não quis mais ficar comigo, porque
uma vez eu cheguei lá pra consulta e era outro médico. Agora, se você
não gostar de mim eu não vou querer outro não.' E começa a chorar.
Nesse momento, proponho iniciar um atendimento. Ela, então, começa
a falar: 'Eu tenho imaginado muita coisa. Eu moro com uma moça,
namorada do meu tio. Ele arrumou essa namorada, que a família não
aceitou, e pediu que eu aceitasse ela na minha casa. Agora eu tô toda hora
imaginando ela com o meu noivo, na cama, se beijando, tendo relação.
Ele me garante que não acontece nada. Eu sei que é coisa da minha
cabeça mas não consigo evitar'. Mais adiante ela diz: 'Os médicos me
enchem de remédio mas não tá adiantando. Eu sei que eu é que estou
criando os meus problemas, construindo monstros, fantasmas, mas eu
não consigo... Não sou eu, é alguma coisa...' As sessões transcorriam
com variações sobre esse tema e, no final do ano ela estava muito
78 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

angustiada com a chegada do Natal. Nesse período, ela começou a faltar


e, em seguida, eu saí de férias. Mas ela só retornou em março. Foi então
quando pôde me dizer que o noivo não era bem um noivo, mas um
homem mais velho, casado, uma espécie de tutor e amante que cuidava
de sua doença neurológica (ela havia feito uma cirurgia e ainda tinha
convulsões e desmaios) e que já tinha tido uma outra amante além dela.
Soube também que o Dr. fulano, o neurologista que não a 'queria mais',
havia interrompido o tratamento porque se dizia apaixonado por ela.
Mais adiante, ela fala de episódios de internação psiquiátrica em sua
cidade de origem, por conta de 'umas crises de loucura', apesar de não
se achar louca. Mais tarde, essas crises são ressignificadas como uma
exacerbação sexual.
"O que acho relevante nisso tudo é que, a despeito da recomendação,
eu jamais marquei psiquiatra para ela e isso me parece ter sido decisivo
para o início de uma análise."
Neste exemplo destaco o percurso dessa paciente pela neurologia,
psiquiatria e psicologia, não como caminhos equivocados ou simples
fruto da perambulação histérica pelos médicos. Os tratamentos a que se
submeteu eram pertinentes ao estado em que se encontrava e aos recur-
sos disponíveis cm cada situação. A neurocirurgia a que se submeteu
deveu-se a um angioma arteriovenoso que explica suas convulsões e, em
boa parte, seus desmaios. A passagem pelas internações psiquiátricas
justifica-se pelo estado de 'loucura' que apresentava, o qual não podia
ser traduzido de outra forma por sua família. Sua passagem pela psico-
logia era pertinente, mas ali não encontrou um analista e sim alguém que
recuou diante da complexidade do quadro que apresentava. Paradoxal-
mente, um rapaz "tão novinho" referido à psiquiatria, mesmo sendo
psicólogo, pôde suportar o desafio de escutá-la até tomar sua decisão.

Um observador um pouco mais atento comentaria: mas são três his-


téricas! A psicanálise aí está em seu reino natural. Nada de novo nisso.
Ao que eu retrucaria: de fato, foi aí que a psicanálise começou. Foi
ouvindo as histéricas que Freud percebeu o engano da medicina, não sem
antes ter sido alertado por Charcot. Nada garante que uma histérica
procure ou, sequer, encontre um analista. Além do mais, uma histérica
não é igual à outra. Ainda que a 'outra' seja parte do seu problema. E,
para terminar, o que discuto aqui é o modo como chegam ao serviço,
como se desdobra sua demanda até o encontro com um analista. Se lá
não houver um analista, não há muito a fazer. Se a histérica constitui o
Interrogando o ambulatório I 79

analista, é (bem) porque a elocução toma o lugar da interlocução para


que o segredo, as confidências, enfim, a fantasia, possam se desdobrar.
Entretanto, não se sabe até onde se pode ir numa análise. Mas esta é uma
outra conversa.

Em minha pesquisa, obtive relatos mais ou menos fragmentados de


situações de análise com pacientes com diagnóstico psiquiátrico de
doença obsessivo-compulsiva, alcoolismo, síndrome do pânico, distúr-
bio bipolar, e até mesmo psicoses graves. Estas, praticamente, contra-in-
dicadas para a psicanálise. Os exemplos são vários e remetem à questão
do diagnóstico e da indicação.
Sobre o diagnóstico, é preciso, num primeiro momento, acatar o
diagnóstico psiquiátrico de descrição e verificação dos sintomas para,
depois, remetê-los a um certo divisor de águas (ou de patologias) entre
psicose e neurose que interessa à psicanálise.*
Estas duas grandes categorias diagnosticas, fragmentadas pela psi-
quiatria atual em seus manuais diagnósticos, ainda se mantêm como a
referência mínima, a partir da qual são estabelecidas diferenças quanto
ao lugar e à função do analista no manejo da transferência, e quanto às
conseqüências de seus atos e interpretações. Será por que a psicanálise
perdeu sua capacidade de se atualizar? Penso que não. Sua atualização
se deu através da ratificação destas duas grandes categorias, com algu-
mas subdivisões, já presentes em Freud, pelo modelo estrutural de La-
can. Aqui, não entro em detalhes sobre o uso que Lacan faz da noção de

Deixo de lado a perversão como a terceira categoria, dada a polêmica que


envolve seu diagnóstico e sua rara incidência na clínica, que levou os psicana-
listas a suporem mais a apresentação de traços ou arranjos perversos como o que
excede a neurose. Nas publicações específicas sobre clínica, a proporção de
casos descritos de perversão em relação às outras duas categorias é muito peque-
na. Com isso, o conhecido aforismo de Freud "a neurose é a perversão recalca-
da", presente no primeiro de seus Três ensaios sobre a sexualidade, adquire uma
nova dimensão. Seguindo Freud, ao serem levantadas as barreiras do recalque
secundário — uma das tarefas de uma análise — não devemos nos espantar com
o que aparece. A partir de Lacan, afirma-se o caráter perverso de toda fantasia.
E são novamente as histéricas que podem trazer bons exemplos. Entretanto, a
definição de perversão é extremamente controversa. Há uma imediata referência
a padrões de normalidade, aos costumes e leis como equivalentes em relação ao
que, afinal, se perverte. Para não estender o problema além de nosso interesse,
remeto o leitor aos trabalhos de Patrick Valas, Freud e a perversão; e de Eric
Laurent, Versões da clínica psicanalítica.
80 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

estrutura.* Considero que, se a entendemos como diferenciada dos fenô-


menos, estes podem se multiplicar numa variação impossível de ser
apreendida pelas classificações tipificadoras. Assim, paradoxalmente, as
duas grandes categorias subsumem um campo fenoménico de amplitude
muito maior, e ainda estamos livres para lidar com os modos de apresen-
tação dos sujeitos sem a preocupação de seguirmos orientações padroni-
zadas para este ou aquele tipo.

Sobre a indicação, não há nada que determine a priori uma indicação


ou contra-indicação para a psicanálise. Qualquer procedimento nesse
sentido fere um princípio, que sustento como básico para o trabalho
analítico, que diz respeito à temporalidade e se opõe a qualquer 'a
priori': o conceito de posterioridade, ou a posteriori (Nachträglichkeit)
que, mais do que um tempo de constituição do psiquismo ou da patolo-
gia, constitui o modus operandi da psicanálise. Tratarei disto no capítulo
seguinte.
Nesse ponto, escolho como um último exemplo o caso bastante pe-
culiar de um paranóico. Talvez o faça para provocar meus interlocutores
e dirimir dúvidas sobre as questões de diagnóstico e indicação, e também
sobre a vocação da psicanálise para se ocupar exclusivamente das histe-
rias. Mas não perco de vista meu objetivo de ilustrar o percurso do
paciente até o encontro imprevisto com um analista e suas conseqüên-
cias. Este é um ponto importante no que diz respeito à qualidade e ao
manejo da transferência. Vamos ao exemplo:
Trata-se de uma família que procura atendimento conjunto em função
dos recentes acontecimentos que culminaram na internação de um dos
filhos. Este estava muito agressivo e assustado com suas constantes
idéias de perseguição que já duravam alguns anos. O relato é da psicó-
loga que os atendeu sem qualquer pretensão de 'fazer psicanálise' com a
família.
"Recebi a família toda: pai, mãe, os dois filhos e a mulher de um
deles. Os temas são repetitivos desde a primeira sessão. Os pais chegam
dizendo que o problema é um dos filhos [Paulo], e ele diz que o problema
é o sítio que vai ser invadido e tomado da família se eles não fizerem
alguma coisa. Esse assunto gera muita discussão na família, principal-
mente entre os irmãos, porque o outro [Pedro] é quem cuida do lugar. O

Faço referência ao artigo "S'truc dure" de Jacques-Alain Miller em Maternas II,


para situar a questão.
Interrogando o ambulatório I 81

pai começa a contar como isso começou. Ele diz que o filho teve um
problema com um professor homossexual na faculdade e, a partir daí, se
sente perseguido. Parece que durante um bom tempo o pai tentou 'tratar'
dele, comprou livros sobre esquizofrenia, conversava com ele dizendo
que entendia como era difícil lidar com o homossexualismo, mas não
aceitava sua construção delirante que, segundo o próprio Paulo, era
assim: ele teria sido escolhido para 'dar o sítio para os homossexuais' se
protegerem da perseguição que sofriam. Mas a idéia é que eles o toma-
riam da família e, para que isso não acontecesse, era preciso que a família
ficasse unida. Ele só enfrentaria a situação nessa condição. Por isso eles
tinham que saber da história toda.
"Numa sessão Paulo chega a dizer que gostaria que a família fosse
unida como os homossexuais. Ele diz que os pais são muito ingênuos e,
numa outra sessão, pede para eles falarem de como foram criados. A mãe
fala do colégio de freiras e o pai, do exército onde ele conviveu com
homossexuais. Paulo diz que nunca teve experiências homossexuais. Ele
chegou a ter namorada e houve um episódio de aborto em que o pai
resolveu tudo. Nessa época, a cunhada estava grávida.
"Esse período do atendimento durou mais ou menos uns seis meses
e eles vinham quinzenalmente. Paulo se tratava com um psiquiatra que,
segundo ele, teria dito que ele iria tomar medicação por um ano. Ele dizia
que queria sair porque foram os pais que quiseram que ele fosse, e tinha
uma história que a hora da sessão seria às 1 l:15h, mas ele foi atendido
às 1 l:30h, e 11 é a metade de 22 que é número de maluco, e meia é uma
coisa que é mas não é, e tem a ver com homossexual. No final do ano,
avisei a eles que iria sair por motivos alheios à minha vontade. Eles,
então, pediram para vir semanalmente até lá, e as brigas se acirraram.
Paulo vai ficando mais agressivo e dizendo que, enquanto a família
protege o sítio, não o protege e que enquanto eles não ouvem ou não
aceitam, ele corre perigo. A família não conseguia resolver sobre o que
fazer com o sítio, e acho que com tudo isso. Nessa época, eles já vinham
falando que precisavam se afastar uns dos outros mas não estavam con-
seguindo. Eu vinha trabalhando isso com eles. Eles vão ficando mais
angustiados e respondem agressivamente a Paulo, e ele começa a dizer
que não tem problema psiquiátrico e, pela primeira vez, fala que talvez
as coisas que lhe aconteceram tenham sido 'coincidências'.
"No período em que os atendi semanalmente, aumentaram os confli-
tos. A mãe se queixava mais abertamente do pai e dele, dizendo que não
agüenta dois homens dentro de casa cobrando coisas dela... Eles pressio-
82 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

nam Paulo para participar de seu tratamento psiquiátrico, o pai reclama


das queixas sobre ele e que não agüentava mais isso... Nisso, surge uma
oportunidade para eu continuar a atendê-los no mesmo lugar. A mãe
aceita prontamente, o pai não quer mais vir, e os dois irmãos querem
continuar. Eles concordam que tinham dificuldades de viver vidas sepa-
radas, deixar o outro viver. Proponho que, quando retomássemos a tera-
pia, iríamos fazer diferente, já que eles estavam dispostos a se separar.
Depois das férias, atendo-os juntos algumas vezes e proponho trabalhar
essa coisa de separação, separadamente. Proponho que venham os dois
irmãos numa sessão, e os pais em outra. A cunhada ia ter neném e não
estava envolvida.
"A partir das sessões com o irmão, Paulo começa a trazer suas ques-
tões sobre sexualidade, que nunca tinha falado com o psiquiatra, suas
namoradas, o que é ser homem e ser mulher, as histórias de perseguição
dos homossexuais etc. Pedro passa a conversar com ele sobre isso tudo,
e diz que está aprendendo com Paulo a pensar sobre a vida: 'Porque antes
eu não pensava, e você pensava o tempo todo.' Aí eles falam das diferen-
ças deles de pensar e conversar com as pessoas. Numa sessão, Paulo
começa a criticar Pedro dizendo que ele 'tem que fazer alguma coisa para
o sítio dar dinheiro'. Pedro se defende dizendo que Paulo devia cuidar
da vida, que não sabe nada do que ele está fazendo lá... Numa outra
ocasião, eles começam a falar do pai. Para Pedro, ele é o modelo de
homem, que domina. Paulo diz que para ele não é: 'Eu sempre vou ser
o dominado.' Mas fala de um homem que pode ser o modelo: um famoso
campeão esportivo que empunha a bandeira do Brasil 'apesar' de ser
campeão. Nesse gesto, ele diz que viu 'afeto'.
"Em outra sessão, Pedro cobra de Paulo que ele não teria dito ao pai
o que disse a ele sobre ter dúvidas a respeito das histórias de perseguição.
Com a família, ele falava c e m o se tivesse certeza. Mais adiante, Paulo
insiste em chamar a família para as sessões porque quer 'saber como eles
estão.' Pedro concorda porque está preocupado com o pai que anda muito
deprimido. A mãe continuava indo às sessões sozinha para resolver seus
problemas no casamento. Não falava mais tanto de Paulo.
"Num dado momento, Paulo diz que está cansado de falar da perse-
guição. Pergunto se ele ainda quer falar. Ele diz que talvez individual-
mente ele ainda precise falar. Mas, antes, já havia se mostrado preocupa-
do comigo porque eu agora sabia tudo sobre os homossexuais e,
portanto, eu corria perigo. Numa outra vez, ele diz que não vai falar nada
Interrogando o ambulatório | 83

porque eu não digo o que sei sobre os homossexuais, e que então ele não
vem mais falar sobre isso comigo.
"A partir de uma situação em que Paulo diz que vai contar sobre a
última mensagem que recebeu, mas não vai dizer de quem, para não
aborrecer o irmão (era uma pessoa conhecida de ambos), intervenho para
marcar que Paulo o está liberando de saber disso. Nesse ponto, penso que
seria bom tentar separar os dois, liberar o Pedro. Mas ele diz: 'mas eu
quero continuar aqui, é ótimo pra mim... eu vim lá do sítio só pra isso.'
"Recentemente, Paulo vem tentando explicar suas idéias de persegui-
ção de forma diferente. Ele acha que pode ser por causa da falta de 'afeto'
do pai que o levou a se aproximar demais da mãe e das tias com quem
moravam, e fala de cenas da infância em que o pai o afastava quando ele
ia abraçá-lo quando chegava do trabalho. Daí, ele deduz que, quando
chegou na faculdade, ele extrapolou. Diz que compreende a mãe, mas
não o pai, com essas histórias do exército. 'Lá, meu pai assimilou essa
história toda, eu não queria que ele fizesse isso.'... Mantive o atendimen-
to conjunto dos irmãos e permaneci atendendo a mãe separadamente."

Não tive outro recurso senão me alongar na descrição do caso pois,


do contrário, não teria elementos suficientes para minha argumentação.
Passemos aos comentários.
O atendimento sc dividiu em dois tempos:
O primeiro foi o da família: Paulo era a queixa e o motivo da deman-
da. Ele próprio também demandava, a seu modo, a 'união' como garan-
tia para fazer cessar seu delírio. Paradoxalmente, uma família 'homosse-
xual', de um sexo só, reduplicaría a perseguição, uma vez que é
justamente por serem perseguidos que os homossexuais perseguem. No
desdobramento do drama familiar nas sessões aparece uma outra possi-
bilidade, a da separação. Mas esta só é possível se sustentada por um
terceiro que a garanta, sem que isto implique a invasão e conseqüente
destruição da família.
Aqui nos deparamos com uma função importante do analista: evocar
e sustentar este terceiro, não como no triângulo amoroso, mas como
função simbólica para garantir um 'viver', ou sobreviver, de cada um.
Houve um tempo para isso. O tempo da elaboração que Lacan chama de
tempo para compreender.
O segundo tempo marca um novo encontro entre os dois irmãos onde
se entabula uma conversa, uma interlocução, entre um neurótico —
aquele que não pensava porque não queria saber — e um psicótico —
84 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

aquele que não pára de pensar no perseguidor. Suas diferenças aparecem


sobre o que entendem por sexo, homem/mulher, dominador/dominado,
um pai. Do pai, modelo de homem para o neurótico, ou ausência de
modelo para quem "sempre será o dominado", surge um modelo possível
como ideal: o campeão, vencedor — dominador? — que porta um sím-
bolo, mais do que isso, o símbolo da pátria, da origem, da paternidade,
e aí tem "afeto" — amor, gratidão? "Apesar" de ser campeão. Esta
palavra muda a direção ou o sentido do enunciado. Um campeão, que
tudo domina, então pode atribuir sua glória a um Outro que não encarna
o perseguidor? Que só está lá representado? Este é um bom exemplo do
que seria a função paterna. E Paulo agora a reclama quando começa a
supor que algo de um "afeto" entre ele e seu pai não se deu, e que todo
o saber sobre os homossexuais no exército só fez com que ele ficasse
também vulnerável e nada pudesse garantir ao filho, algo da ordem de
uma interdição, que barrasse a "invasão dos homossexuais".
Evidentemente que não se trata de fazer este pai cumprir sua função
como uma ordem. Acontece que de elocução em elocução, diante de um
terceiro que a testemunha, a elaboração se dá. Esse terceiro pode alternar
entre o irmão e a psicóloga, e ser por ela sustentado no decorrer dos
confrontos imaginários entre irmãos, ou entre pai e filho. A elaboração
é possível a partir de uma hipótese construída numa história não mais
como um fato imutável, e sim com ares de ficção, como convém. É aí
que pode operar uma suplência à função paterna. Algo que vem em seu
lugar como uma nova metáfora cumprindo sua função.
A transferência na psicose não se dá tão facilmente a partir de um
terceiro suposto. Exatamente porque o que falta é a suposição, marca da
neurose. Em seu lugar vem a certeza, à qual o irmão explicitamente se
refere como o ponto de diferença entre Paulo e a família. Em alguns
diálogos, esta é a questão. A posição do analista aí é bastante delicada, e
Paulo nos mostra isso ao provocar a psicóloga, ora dizendo que ela corre
perigo porque sabe tudo sobre os homossexuais, ora dizendo que não vai
mais falar sobre isso porque ela não diz o que sabe — então não sabe
nada? O pai sabe, mas fracassou. Curiosamente, Paulo pede que a família
venha para as sessões porque ele "precisa saber como eles estão" —
apesar de morarem juntos. Parece que há, aqui, um saber diferente em
jogo: se eles vierem falar nas sessões, lugar terceiro de suposição de
saber, ele vai poder saber como estão. A psicóloga pode fazê-los falar. E
isto que permite a elaboração. E quem o confirma é o próprio irmão, que
concorda prontamente porque quer saber do pai.
Interrogando o ambulatório | 85

Para terminar, este exemplo ainda causa espécie pois não podemos
dizer que seja uma análise de família, de grupo ou, sequer, individual.
Análise de dupla? Interessante definição, nada ortodoxa. E não podemos
esquecer da mãe que continuou sendo atendida sozinha. Quebra da ética?
Deveria ter sido encaminhada? Mas no começo eram todos juntos...
Então isto não é psicanálise!... Chegamos ao rochedo inamovível contra
o qual não há argumentação.

2.4 O jogo de três PPPês: psiquiatras, psicólogos e psicanalistas

Na seara do serviço público se encontram e desencontram as três cate-


gorias: psiquiatras, psicólogos e psicanalistas que constituem e fazem
funcionar o chamado campo psi. São propriamente a sua face mas,
dependendo da organização dos serviços, nem sempre se pode delimitar
suas diferenças com nitidez. E, como veremos adiante, isso talvez nem
seja desejável.
O que me interessa aqui é comentar alguns segmentos de diferentes
discursos que resultam de certas identificações produzidas no percurso
da formação profissional, onde se tecem determinadas fantasias em torno
da psicanálise e do ser psicanalista. Não pretendo desvelar essas fanta-
sias, como numa análise, mas localizar o que aparece como sintoma, que
indica a posição desses profissionais frente à psicanálise. Esboço, a
seguir, uma tipologia, sem pretensões classificatórias, apenas para me-
lhor matizar esses discursos.

Tomando, primeiramente, a categoria dos psiquiatras, no decorrer da


pesquisa encontrei psiquiatras que dividi, grosso modo, em dois tipos: os
médicos mentais, cuja função era exclusivamente a de medicar os pa-
cientes; e os clínicos do psíquico, que, além de medicar, ofereciam
sistematicamente algo mais do que medicação — psicoterapia, na maio-
ria das vezes, ou outro tipo de atendimento dependendo da oferta do
serviço, como grupos terapêuticos ou operativos, oficina de trabalho
terapêutico, acompanhamento de eventual internação em outro local.
Entretanto isso não excluía o fato de, qualquer que fosse sua inserção
institucional, se dizerem psicanalistas fora do serviço público.
Escolhi fazer uma certa oposição entre os termos mental e psíquico
supondo que o primeiro porta uma significação mais associada ao orgâ-
nico, e o segundo, ao que costumamos designar como subjetivo.
86 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Observei que, entre os médicos mentais, há os chamados organicistas


ou biológicos, que concebem o tratamento como alteração de reações
neuroquímicas no organismo e não levam em consideração a psicanálise
como instrumento clínico em qualquer situação. O máximo que admitem
no campo das psicoterapias é o modelo comportamental-cognitivo. Por-
tanto, não se incluem no escopo da pesquisa.
Há também entre eles os que têm uma formação sistemática em
psicanálise, em geral vinculados a uma das sociedades psicanalíticas
tradicionais (refiro-me às pertencentes à IPA). Ser psicanalista, neste
caso, pode ou não referir-se a um modo subjetivo de definição profissio-
nal no que refere-se ao ser. Em geral, refere-se à aquisição de uma
técnica terapêutica, com seu estatuto bem definido, que autoriza um
modo específico de atendimento restrito ao consultório, tantas vezes por
semana, a uma população bem diferente da que chega aos ambulatórios.
Só aí podem ser psicanalistas. Poderia tratar disso como mais um exem-
plo da burocratização tanto do trabalho clínico quanto da formação
profissional. E, segundo o que entendemos como a boa clínica, não deixa
de sê-lo. Mas se tomamos o ponto de vista do entrevistado, há algo mais
a considerar: a própria concepção de psicanálise que está em jogo.
Por um lado, existe o preconceito gritante quanto à flexibilidade do
setting analítico, no que diz respeito à freqüência, que aparece em enun-
ciados do tipo "você vê o paciente uma vez por semana, às vezes de 15
em 15 dias, como vai poder trabalhar a transferência"? Ou "eles vão e
voltam de modo muito irregular, não se ligam ao tratamento". Ou "uma
análise exige que a pessoa dedique um tempo constante de sua rotina
para poder ver os primeiros resultados... às vezes o paciente chegava e
eu nem me lembrava mais do que ele falou na última sessão".
Todas estas afirmações são freqüentes entre os diferentes profissio-
nais no serviço público e, sem dúvida, preocupantes pois, de fato, lidam
com uma população instável e variável em sua busca de atendimento. O
problema é fazer disso um argumento, quiçá um pretexto, para inviabili-
zar qualquer tentativa de trabalho psicanalítico ou mesmo psicoterapêu-
tico, para empregar o termo corrente.
Por outro lado, o preconceito aparece na própria definição estereoti-
pada do que seja o trabalho analítico como, por exemplo:
"Uma análise exige que o paciente compreenda a linguagem do
inconsciente, traga sonhos, fale de sua realidade interna e não dos fatos
do dia a dia". Ou "no começo até tentei com algumas pessoas, especial-
mente mulheres que vinham se lamentando da vida... mas quando che-
Interrogando o ambulatório I 87

gava a uma interpretação mais profunda, não entendiam, ou não queriam


acreditar no que eu dizia,... ou simplesmente passava um tempo e não
voltavam".
Ao indagar o que seria o "mais profundo", ouvi como resposta:
"Você sabe... algo sobre a sexualidade... Por exemplo, uma senhora
que reclamava de ter que cuidar do marido alcoólatra e quando interpre-
tei, depois de tanto escutar detalhes sobre isso, que ela queria desmamar
o filho que não amamentou [esse dado sobre o filho lhe foi fornecido
lateralmente numa sessão], ela ficou danada comigo e não voltou mais."
Este exemplo remete especificamente à discussão sobre interpreta-
ção, que abordarei mais adiante. O que interessa agora é a apreensão
mais geral dc uma concepção pedagógica da psicanálise presente não
apenas entre os médicos, mas corroborada pela idéia de que um trata-
mento exige uma adequação do paciente ao que lhe é oferecido de modo
objetivo e claro, sem arestas ou desvios que possam comprometer seu
bom andamento. O melhor exemplo disso, relatado por um entrevistado
sobre uma conversa informal com um colega, poderia estar no tratamen-
to medicamentoso propriamente dito:
"Se até pra medicar eles são difíceis... imagine se dá pra oferecer
psicanálise?... A gente não sabe se eles tomam o remédio direito como
foi prescrito. Eu tento explicar para que serve a medicação, como deve
ser tomada, que não deve ser interrompida sem meu conhecimento etc.
Tem médico por aí que nem se dá ao trabalho de explicar. Antes eu
achava um absurdo... mas hoje penso que quanto mais se explica mais
complica. Eles querem a melhora imediata e pronto."
O que chama a atenção é o "até pra medicar", como se a medicação,
último baluarte da objetividade, fosse envolvida por essa incapacidade
dos despossuídos de discernir entre magia e ciência. Convém lembrar
que este exemplo refere-se a pacientes e, ou familiares que teriam condi-
ções de se responsabilizar pela administração da medicação.
Um entrevistado me forneceu uma indicação para refletir sobre esse
tipo de discurso como o sintoma do médico. Comentando sua formação,
se disse impressionado com a expectativa criada nos cursos de medicina
sobre o verdadeiro trabalho médico:
"Somos preparados para lidar com doenças graves que requerem
hospitalização, mais raras como a leucemia e outras, e quando você
chega no ambulatório vai tratar diarréia, verminosc, anemia... Isso cria
um conflito muito grande, você sente sua clínica desvalorizada... pra quê
leu tanto texto em inglês?" [transpondo para o campo 'psi'] "Você acha
88 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

que o cara não subjetiva, só vê o corpo, não tem possibilidade de fazer


uma análise".
Em suma, se só o fato de ser médico já provoca esse 'choque cultu-
ral', o que não dizer do fato de investir numa formação prolongada e cara
como a oferecida nas sociedades psicanalíticas? Entretanto essa não é a
postura do entrevistado ou de outros médicos-psiquiatras-psicanalistas
que também se desdobraram em sua formação. Há uma escolha a ser
feita no enfrentamento da clínica no serviço público que não diz respeito
exclusivamente à psicanálise. Se a autoridade médica é o ápice da hie-
rarquia, isso não quer dizer que, pelo menos no que diz respeito ao
psíquico, o médico de fato saiba o que é melhor para o paciente. Quem
deve se adaptar a quê?
Sem dúvida, quem sabe sobre o "remédio" é o médico. Remediar um
dado sofrimento traduzido como conjunto de sinais e sintomas específi-
cos que requerem determinada composição química com efeitos diretos
e colaterais é, por excelência, o campo do saber médico. E é bom que o
próprio saiba bem como fazê-lo, mas até para isso é preciso ter, no
mínimo, a paciência (ou ela c própria dos pacientes?) benevolente de
escutar para melhor traduzir a queixa. Isso já significa que ao queixoso
se atribua alguma legitimidade, tanto no que se refere à veracidade de
sua fala sobre as sensações quanto à possibilidade de explorá-la até um
limite satisfatório para a escolha da medicação c o modo de administra-
ção. Tomar remédio nunca é um ato isento da participação do sujeito que,
por sua vez, nunca se revela de modo transparente e unívoco ao médico.
Tomemos um exemplo prosaico da clínica médica: um paciente hi-
pertenso, após acompanhamento com nutricionista por um bom tempo,
não consegue emagrecer nem alterar sua pressão. A médica encaminha
para a psicologia, não sem antes passar-lhe um carão. Depois de uma ou
duas entrevistas com a psicóloga, que nada lhe pedia além de falar,
confessa:
"Sabe o que é, doutora, é que eu minto pra outra doutora. Ela é muito
zangada. Não posso dizer pra ela que não consigo deixar minha cacha-
cinha, minha lingüicinha, porque senão ela não me atende mais...".
Esperteza, burrice, má-fé, impulso suicida, ou algo mais na vida de
alguém que se recusa a ser definido apenas como "hipertenso"? Que
saber está em jogo? O exemplo fala por si.

Entre os que defini como clínicos do psíquico, se encontram os que


consideram a psicanálise mais um recurso entre outros no trabalho clíni-
Interrogando o ambulatório | 89

co do que a afirmação de uma identidade irredutível a outras definições.


Em geral dedicam-se mais aos pacientes psicóticos e diversificam sua
abordagem promovendo ou incentivando outros recursos terapêuticos
como os grupos com diferentes finalidades — operativos, visando a
execução de tarefas; de ajuda mútua; terapêuticos etc. — e atividades
extra-ambulatoriais nos serviços que oferecem espaços de convivência e
ocupação, como oficinas, hospitais-dia etc. São menos corporativos,
interagem mais com os outros profissionais e não se valem de sua auto-
ridade médica além do necessário para fazer funcionar os dispositivos de
cuidado em geral. Curiosamente, alguns são vistos como "santos", muito
dedicados, principalmente porque, de um modo geral, não dão ouvidos
às regras e formalidades do serviço público e privilegiam as situações
clínicas emergentes em qualquer circunstância.
Um paciente psicótico retorna ao grupo um dia dizendo que teve que
se internar porque não encontrou seu psiquiatra em casa naquele fim de
semana para medicá-lo. Para ele isso era a exceção. Contudo, essa não é
a principal característica dos clínicos do psíquico. Esse profissional sal-
vador da pátria é raro e não chega a se constituir como modelo. Seu modo
de agir é singular e movido por motivações que não me cabe discutir.
Entretanto, sua presença na instituição por si já é modificadora, tanto das
demandas de atendimento quanto dos efeitos sobre outros profissionais
não médicos que gravitam a seu redor. Por sua conta e risco, faz funcio-
nar uma clínica mais próxima dos projetos renovadores da assistência
psiquiátrica. O risco maior é de se tornar insubstituível exatamente pelo
mesmo motivo de ser inigualável, ou seja, de não visar ou não ter meios
de transmitir seu modo de trabalhar ou de provocar mudanças mais
efetivas nos serviços.
Há também, entre os clínicos do psíquico, os que ao serem identi i- c

cados como o médico, o doutor por excelência, se apresentam ao pacie -


te como os que fazem psiquiatria — ministram medicamentos — e
psicologia — conversam. Sendo assim, esses médicos-psicólogos abrem
espaço para uma possível escuta psicanalítica e, segundo alguns entre-
vistados envolvidos com a psicanálise, essa é uma tática importante para
tornar viável uma demanda diferenciada, em geral dirigida aos psicólo-
gos. Estes sim, os conversadores por excelência. Aqui, fazer psicanálise
não significa apresentar-se como psicanalista, seja para o paciente ou
para a instituição. Isso pode ser mais um anseio corporativista sem efeito
algum. A psicanálise para esse profissional não é mais uma técnica
restrita a certas regras impraticáveis nos ambulatórios, mas uma possibi-
90 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

lidade marcada pela oferta do profissional. Agora depende do sujeito


aceitar ou não, e daquele que se propõe levar à frente um trabalho
psicanalítico, de manter sua oferta e manejar os meandros delicados da
transferência. Tratarei disso adiante.
Um entrevistado me alertou sobre os perigos de se "ir com muita sede
ao pote", principalmente no caso de um iniciante. Freud já chamava a
atenção para o furor sanandi. Mas há também o furor 'psicanalisandi',
num rústico latinismo. Ele relata o caso de uma paciente histérica que
era trazida pela vizinhança e chegava sonolenta, adormecendo na sala de
espera. Tinha que ser acordada para ser atendida.
"Eu fiquei tão encantado que ela começou a dizer que eu a tinha
seduzido, ela sacou aquilo de uma outra forma. Mandei para uma pessoa
medicar, e ela foi se queixar no serviço social que eu tinha feito ela
dormir, que eu a tinha seduzido no consultório".
O encantamento do jovem médico, que pratica a psicanálise, com o
caso clínico tem seu correlato no desencantamento da bela adormecida,
seduzida, que transforma seu sono entregue numa revolta queixosa às
assistentes sociais, criando caso — endereçamento caprichoso e prenhe
de sentido para uma histérica.
Freud nos alerta:
"(...) desamparado contra certas resistências do paciente, cuja recu-
peração, como sabemos, depende primariamente do jogo de forças que
opera nele (...) o analista deveria se contentar com algo similar [a] 'Je le
pansai, Dieu le guérit'." (Freud, 1912, p. 115, tradução minha).
A bela indiferença, como responder com a diferença? Esse exemplo
pode ser paradigmático de uma dificuldade muito presente entre os
iniciantes na psicanálise, médicos ou não, que se deparam com o óbvio
dos livros no inusitado do sujeito onde se produz um fosso entre o quadro
clínico e o que pode vir a ser o caso clínico. Este é o maior desafio.
Voltemos à psicologia possível para os médicos-psiquiatras e retenha-
mos a lição de que é preciso ser um pouco psicólogo, no sentido lato,
para se afastar das armadilhas do modelo médico. A principal delas é
tomar o sintoma como sujeito do experimento e o sujeito como objeto de
intervenção.

Quanto à categoria dos psicólogos, são uma esmagadora maioria de


mulheres com diferentes percursos na psicanálise. Logo de saída se
deparam com o peso da autoridade médica na hierarquia do saber. Frases
como "o doutor é quem sabe" ou "estou aqui porque o doutor mandou"
Interrogando o ambulatório I 91

são recorrentes no início dos atendimentos freqüentemente encaminha-


dos pelos médicos e o primeiro indício de que há uma difícil tarefa pela
frente. Interditados, e por isso liberados, do recurso à medicação, os
psicólogos sabem que é preciso fazer outra coisa. Nesse sentido, há quem
diga que estão naturalmente convocados à chamada psicoterapia. Se a
psicoterapia é tão natural e os médicos mentais são os primeiros a reco-
nhecer isso, qual a natureza da psicoterapia?
A conversa é o ponto de convergência e a referência primeira daque-
les que demandam um tratamento diferente do medicamentoso. A coisa
complica quando indagamos que tipo de conversa e com que finalidade?
Em sua formação, os psicólogos se deparam com uma grande varie-
dade de 'teorias e técnicas psicoterápicas'. Esse é o nome de uma série
de disciplinas obrigatórias na maioria dos cursos de psicologia. Deixo de
lado as técnicas de modelagem do comportamento com suas variações
— cognitiva, dessensibilização, reflexológica etc. — e as chamadas
terapias alternativas — gestalt-terapia; terapia rogeriana; abordagem fe-
nomenológica; e, mesmo, as terapias corporais menos centradas na pa-
lavra (Russo, 1993) — que, de imediato, nos levam à pergunta: alterna-
tivas a quê? Deixemos que Castel (1981) responda: são alternativas à
própria psicanálise e dela derivam, numa certa banalização, sob a rubrica
de pós-psicanalíticas.
O que interessa discutir é esse território de fronteiras indefinidas que
compreende a psicanálise e sua correlata, a chamada psicoterapia de base
analítica (Figueiredo, 1984, 1988a, 1988b).
De um modo geral, a psicoterapia de base analítica se define pelo
negativo. Não é psicanálise porque não tem o mesmo setting — freqüên-
cia, duração das sessões, divã, pagamento — nem a mesma qualidade da
transferência e da interpretação, pilares do trabalho psicanalítico. Como
já apontei, os principais motivos alegados por psicanalistas das mais
diferentes filiações são as condições do serviço público e o tipo de
clientela. Justiça seja feita aos lacanianos que recusam essa diferença
apostando que só existe uma psicanálise e qualquer variação conspurca
a verdadeira revolução freudiana. O risco é cair num corporativismo
estéril que só dificulta as relações intra-institucionais e acaba por ter
conseqüências na clínica. A diferença aí adquire outro estatuto: pode-se
não ter condições de levar adiante uma psicanálise. Logo, o que se
consegue nesses casos é produzir efeitos terapêuticos aquém dos efeitos
propriamente psicanalíticos, mas a postura seria a mesma, não cabe dar
92 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

outro nome para encobrir um limite muito mais sutil da prática psicana-
lítica que deve ser discutido a partir de suas próprias premissas.
E notável que vários psicólogos e psiquiatras referidos à psicanálise
adotam o termo psicoterapia de base analítica, ou porque se submetem a
critérios inflexíveis assimilados em sua formação para definir o que é
psicanálise, ou porque em seu próprio percurso — análise pessoal, prin-
cipalmente, mas também definição e percurso teórico-clínico — não
conseguem definir seu trabalho como tal. Estão divididos em relação a
seu lugar como psicanalistas, só podendo afirmá-lo sob a proteção do
ideal do consultório onde, não raramente, enfrentam dilemas semelhan-
tes no cotidiano da clínica. Eis o seu sintoma.

Continuando com os psicólogos, observei um outro dilema que não


diz respeito apenas à trajetória na psicanálise, mas também ao ideal
social. Em geral, são profissionais mais sensibilizados para as questões
sociais, talvez porque seu percurso seja marcado por uma certa tradição
de militância política privilegiando os direitos sociais do cidadão em
detrimento das exigências da clínica. Isto é, o sujeito é considerado mais
a partir de suas condições sócio-culturais e econômicas do que a partir
das sutilezas, que podem ser lidas ou inferidas em seu discurso, que
apontem para uma dimensão mais virtual, mais obscura de sua queixa.
Suponho que esses profissionais tiveram maior acesso à literatura
referente aos estudos sociológicos e antropológicos sobre a chamada
população de baixa renda e ainda permanecem sob o impacto paralisante
de suas revelações que, sem dúvida, são fundamentais para se repensar
a clínica. Entretanto, sabemos que ao clínico compete ir adiante de posse
dessas informações, sem, contudo, erigi-las à condição de instrumento
clínico. Esse nunca foi o objetivo dos cientistas sociais.
Sabemos que não existe o puro sujeito do inconsciente como uma
entidade abstrata fora das condições socioculturais que o engendram, e
também que um certo modo de tradução da experiência subjetiva pode,
numa primeira visada, se apresentar como incompatível com determina-
da concepção de sujeito atribuída à teoria psicanalítica. O que destaco
aqui é o aspecto sintomático da apropriação desses estudos e suas con-
seqüências inibidoras. E preciso que situemos nossa função na clínica
psicanalítica como produtores de um dispositivo peculiar da fala que lhe
atribui uma dimensão específica. Voltarei mais detalhadamente ao assun-
to no capítulo seguinte.
Interrogando o ambulatório I 93

Por hora, quero alertar para esta hipervalorização da palavra "social"


que subsume uma variedade de concepções que têm como ponto comum
as velhas oposições indivíduo psicológico versus realidade social, alie-
nação versus engajamento, e cuja função maior parece ser a de favorecer
a resistência à psicanálise por parte dos próprios profissionais, já que o
"social" é por eles tomado como uma condição intransponível do sujeito.
Aí se confundem e se perdem numa espécie de psicologia do social ou
de sociologia do psíquico.
Entre alguns exemplos da "determinação do social" são mencionadas
situações constantemente recorrentes nos atendimentos relativas a faltas,
interrupções, trágicas histórias de vida, como estupros, espancamentos,
mortes violentas de entes queridos, pobreza miserável, enfim, toda sorte
de problemas raramente encontrados no consultório. Tudo isto é posto
sob a rubrica do "social" como uma entidade, quiçá uma identidade,
reificada que opera maciçamente sobre o sujeito inviabilizando o traba-
lho psicanalítico. Depoimentos do tipo:
"Não podemos tratar essas pessoas fora do social." Ou "as condições
sociais são tão mais pregnantes, (...) como vamos fazer o paciente pensar
só nele e em seus problemas pessoais se os problemas que ele tem são
muito mais concretos"? Ou "para eles não faz sentido ficar especulando
sobre coisas que não dizem respeito a suas condições de vida". Ou "eles
vêm atochados de problemas... histórias cabeludas... e querem que você
como por milagre acabe com tudo que os faz sofrer... como posso dizer
pro sujeito que ele tem que se mudar daquele lugar ou esquecer as cenas
de violência... e t c " ? Ou "a mulher apanha do marido e diz que não tem
como sair de casa... e não tem mesmo pra onde ir...". Ou "o cara bebia
muito e dizia que sua vida era um inferno... já foi pro AA, já tentou
suicídio, já foi no psiquiatra, e disse que sua última esperança era que eu
o fizesse parar de beber... já estava com o fígado comprometido... é muita
responsabilidade! Eu disse que isso ia depender dele e ele não aceitou...
não tive mais notícia".
Pelos exemplos, começo perguntando o que é tratar uma pessoa fora
do social? É tratá-la fora de seu habitat? Ou fora de seus referenciais?
Ou fora do mundo concreto, propondo um mundo abstrato e especulati-
vo? Ouvi como resposta:
"Você não faz parte daquele meio (...) qualquer coisa que você per-
gunta já significa que você não entendeu. Isso aconteceu com uma
pessoa que atendi (...) eu pedia para ela explicar e isso era tomado como
uma desconsideração (...) sei lá." Ou "você tem que tomar o maior
94 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

cuidado porque se quer levar a conversa para uma coisa mais subjetiva,
você pode estar desvalorizando aqueles problemas todos, tão graves (...)
as pessoas parecem sem saída... não dá pra fazer um trabalho falando só
sobre coisas concretas que fazem sofrer mesmo".
Este tipo de argumentação se não confirma pelo menos corrobora
minha hipótese de que a velha dicotomia indivíduo versus social é o seu
ponto de partida. Trata-se apenas de escolher de que lado se está, ou
melhor, de que lado colocam a psicanálise. Sabemos que há um limite real
do alcance da psicanálise, ou de qualquer terapêutica, mas esse é o fim da
história e não seu começo. Sabemos também que não se faz psicanálise
da miséria. E, por isso, vamos afirmar a miséria da psicanálise?
Como lidar com essas situações-limite?
A tarefa do analista consiste, mais do que nunca, em oferecer ao
sujeito uma possibilidade de tematizar, ressignificar e elaborar sua "mi-
séria", até onde for possível para tomar uma outra posição frente a toda
essa desgraça cotidiana da qual, até certo ponto, não fazemos parte.
Tarefa impossível? Para Freud sempre foi, juntamente com educar e
governar. E afirmava a miséria banal como parte da condição humana
que jamais será erradicada pela psicanálise.
Quanto às faltas, podem ser indicadores de momentos difíceis do
sujeito na vida, mas também na análise. Uma coisa não exclui sumaria-
mente a outra. Quanto às interrupções, sempre há o recurso de um
chamado sem repreensão, ou de um convite a retornar quando for possí-
vel ou quando o sujeito sentir necessidade. O resto cabe a ele, seja com
que recursos for.
Quanto às histórias de vida, aí temos, ao invés do típico sentimento
de "não há nada a fazer", um manancial de trabalho: como são contadas
e recontadas; onde se situa o sujeito; que fantasia aí se tece; do que ele
pode realmente se desfazer para dar um rumo minimamente diferente à
sua vida. Isto não é psicoterapia de apoio, aconselhamento, ou de base
analítica. Muito menos o esvaziamento da condição social do sujeito. É
propriamente uma aposta na possibilidade de haver mudança na realida-
de do sujeito, em função de até onde vai sua aposta, em um campo
variável de possibilidades. Isto, por sua vez, depende também do manejo
do analista. O investimento é diferenciado, mas é para ambos. E a recí-
proca é verdadeira: ao desinvestimento do profissional, seja na institui-
ção ou na psicanálise, corresponde um desinvestimento do sujeito.
Portanto, antes de lamentar que essa população não investe no trata-
mento seja por não pagar, por não saber do que se trata, por não poder
Interrogando o ambulatório | 95

em função de suas condições precárias ou, simplesmente, por não querer,


é preciso fazer a si próprio as mesmas perguntas sob outro prisma: por
não ser bem pago? por não saber o que fazer de sua própria clínica? por
ter condições precárias para suportar as mazelas alheias? ou, simples-
mente, por não querer?
Entre os psicólogos entrevistados, encontrei os que admitem não ter
mais fôlego para investir no serviço público. Geralmente estão à beira da
aposentadoria. E também os iniciantes recém-concursados com muito
fôlego mas sem saber como afirmar sua clínica. Seja por terem um
percurso recente na psicanálise ou por não saberem como lidar com os
entraves burocráticos que ameaçam seus projetos, ou por ambos os m o -
tivos. Estes dois grupos apresentam uma fala queixosa e acusatória da
falência das instituições públicas. Sem dúvida, este é um problema grave
e sua solução, ou não, é determinante das condições de trabalho em
qualquer área, da saúde à educação. Nesse sentido, uma coisa não deve
se confundir com a outra. Reconhecer esse limite não significa abrir mão
de experimentar, de ousar na clínica.
Duas ameaças pairam no ar: a burocratização do trabalho clínico
como confirmação da falência do serviço público, e o recurso ao corpo-
rativismo como forma de proteção da identidade profissional que pode
gerar um empobrecimento da clínica.
Os mais burocráticos medicam ou fazem uma psicoterapia anodina,
e os mais corporativistas criam tensões que acirram as disputas de poder
pelas pequenas causas imersos, mais do que nunca, no indesejável nar-
cisismo das pequenas diferenças.
Há, ainda, os psicólogos que, mesmo não se apresentando como
psicanalistas, falam com simplicidade de uma clínica onde vêem acon-
tecer situações de análise muito próximas das encontradas no consultó-
rio. De um modo geral, parecem ainda não ter conseguido em seu per-
curso um reconhecimento ou autorização para se dizerem psicanalistas.
A psicanálise parece estar substancializada num ideal a ser atingido. Em
determinado momento de maior dificuldade na clínica, esse ideal pode
ter conseqüências perturbadoras. Por este mesmo motivo, buscam
supervisões, conversam com colegas, recorrem aos livros, grupos de
estudo e às suas próprias análises. Curiosamente, eles põem em marcha
a concepção de formação analítica por excelência proposta por Freud e
sistematizada, nem sempre da melhor nvmeira, nas sociedades psicana-
líticas. São aqueles a quem denomino 'psicólogos psicanalíticos'. A
psicanálise vem adjetivada em expressões como: "trabalho com o refe-
96 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

rencial psicanalítico". Ou "faço uma clínica psicanalítica". Ou, ainda,


"minha experiência é psicanalítica".
Mas isto é bem diferente da chamada "psicoterapia de base analítica".
Esta pressupõe duas maneiras de fazer psicanálise, enquanto que as
frases acima vão em direção à psicanálise. Essa diferença não é nada
desprezível em suas conseqüências clínicas.

Finalmente, encontrei entre psicólogos e psiquiatras os que se defi-


niam como psicanalistas e como tal se apresentavam nas instituições
recusando atribuições que os desviassem de sua prática psicanalítica. São
os psicanalistas stricto scnsu e correspondem, aproximadamente, a um
terço dos entrevistados. Em sua grande maioria são lacanianos com
filiação institucional, outros são lacanianos mas não são membros de
qualquer instituição, e outros são de algum modo afinados com a leitura
que Lacan faz de Freud mas filiados a instituições com diferentes ten-
dências. Em mjnha amostra não encontrei ninguém que defenda um
trabalho psicanalítico no serviço público e se diga psicanalista sem hesi-
tar que não tenha uma ligação com o pensamento lacaniano. Isto não é
novidade.
Em trabalhos anteriores sobre o movimento psicanalítico no Rio de
Janeiro nas décadas de 1970 e 1980 (Figueiredo, 1984, 1988a/b, 1989)
eu já havia indicado que o movimento lacaniano aparece com a função
de redefinir o campo psicanalítico e retirá-lo do imbróglio eclético das
psicoterapias que ameaçavam descaracterizá-lo transformando tudo em
psicanálise, ou a psicanálise em nada. Portanto, não é de se estranhar que
na década de 1990 esse projeto tenha se concretizado.
Os psicanalistas explicitamente referidos a Lacan insistem em marcar
uma diferença para com os psicólogos psicanalíticos que pode gerar
tensões às vezes insolúveis. Pode, por outro lado, traçar com clareza os
próprios limites do trabalho psicanalítico no serviço público.
Uma psicanalista relata observações curiosas sobre a ambigüidade de
seus colegas que hesitam entre se apresentarem como psicanalistas ou
como psicólogos num serviço eminentemente médico. Ao mesmo tem-
po, tiram proveito de uma outra ambigüidade entre a figura do médico e
a do psicólogo niveladas pela designação de 'doutor' atribuída a ambos
pelos próprios colegas, o que adquire um sentido bem diferente de quan-
do essa atribuição é feita pelos pacientes. O que essas ambigüidades vêm
nos indicar? Que tipo de qualificação é essa que, ao privilegiar a igual-
dade de status, desqualifica as diferenças na clínica?
Interrogando o ambulatório | 97

Para afirmar a clínica psicanalítica, o que está em jogo, num primeiro


momento, é um sintoma específico, a manifestação de uma fantasia que
traduzo como o desejo de ser psicanalista, produzido no percurso de cada
um. Trata-se de um sintoma necessário mas não suficiente, exatamente
porque, de algum modo, coloca a psicanálise num lugar ideal de onde
exerce seu fascínio. Sem ele, não se tem como avançar diante de tantos
desafios e obstáculos cotidianamente presentes no serviço público.
Dado este primeiro passo, resta definir com clareza o que deve ser
identificado como o trabalho do psicanalista, sua função propriamente
dita. Só assim, pode-se manejar esse sintoma na direção desejada.

3. Duas ou três questões para a psicanálise no ambulatório

3.1 Dinheiro, pra que dinheiro...

"O dinheiro envolve poderosos fatores sexuais" (...) a ausência do efeito


regulador proporcionado pelo pagamento de um honorário ao médico sé
faz sentir de modo doloroso;(...) o paciente é privado de um forte motivo
para se empenhar em dar fim à sua análise" (Freud, 1913, pp. 131-2)
Dentre as não muitas referências de Freud à função do dinheiro em
psicanálise, a acima citada provoca especial embaraço pois diz respeito
diretamente ao analisando, já que o analista em nosso caso tem sua
remuneração fixada mensalmente. O problema não é mais de quanto e
como cobrar, mas das conseqüências desastrosas para o tratamento de
quem não pode pagar, não por impossibilidade mas por imposição, como
norma geral dos serviços públicos. Se aí não se pode cobrar, como
avaliar as conseqüências comprometedoras do tratamento se é justamen-
te dos "poderosos fatores sexuais" que trata a análise? E, ainda, como
desvencilhar-se dela?
Essas formulações não são totalmente verdadeiras nem tampouco
totalmente falsas. E preciso indagar de pronto se a ausência do fator
dinheiro retira de cena os fatores sexuais que o dinheiro envolve. Sabe-
mos que não. Mas um argumento corrente entre analistas que trabalham
na rede pública e consideram seu trabalho eminentemente psicanalítico,
em geral referidos ao paradigma lacaniano, é de que sem alguma forma
de pagamento uma análise não anda. Pode-se chegar até certo ponto mais
ou menos avançado do trabalho de elaboração, mas há sempre um mo-
mento em que pagar (ou não) entra em jogo como um poderoso fator de
98 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

resolução da transferência. Fator libidinal, economia da libido, fixação,


seja qual for a designação, aqui chega-se a um impasse.
A parca literatura psicanalítica sobre dinheiro a que tive acesso,* e
que tomo como ponto de partida, ignora absolutamente a possibilidade
da remuneração do analista ser feita por um terceiro: a instituição à qual
estaria vinculado sob o regime de assalariamento. Não existem analistas
assalariados? O salário não faz um analista? Ou melhor, o salário desfaz
o lugar do analista?
A remuneração no serviço público, embora variável, torna-se risível
se comparada à receita dos consultórios mesmo considerando seu esva-
ziamento crescente e as concessões que os analistas têm que fazer para
manterem seus clientes. Este deve ser nosso ponto de partida e não um
pretexto para a desqualificação do trabalho analítico. Nesse ponto, reite-
ro que a reivindicação de melhores salários, assim como de melhores
condições de trabalho, é uma luta maior e requer uma política séria e
transparente dos servidores públicos. De nada nos serve o famoso pacto
"eles fingem que pagam e nós fingimos que trabalhamos". Pretendo,
portanto, deixar de lado essa questão, entendendo que me dirijo àqueles
que têm um compromisso ético com o que fazem. Tomo a questão do
dinheiro no que concerne exclusivamente à clínica.
Entre meus entrevistados os argumentos variavam e as propostas de
solução nem sempre foram animadoras. Uns afirmavam categóricos que
é preciso pagar, mesmo que não seja com dinheiro. Deveríamos, a cada
caso, estipular uma forma de pagamento, atribuir um valor que pudesse
fazer as vezes do dinheiro como uma metáfora. Seria um produto, um
presente, um objeto qualquer, contanto que custasse algum trabalho ou
esforço de recompensa para não infinitizar a dívida com o analista, ou
ater-se ao gozo de seu sintoma. O dinheiro, como metáfora do objeto
perdido, atualizado nos objetos parciais recortados no corpo — seio,
fezes, pênis, bebê, na equação freudiana — deveria ser então metafori-
zado. Metáfora da metáfora na série metonímica de equivalências sim-
bólicas. O problema maior é que dificilmente esses objetos podem ter o
estatuto de valor de troca ou de compra na rede social. Money makes the
world go 'round. Mas se o analista não é um money maker... então não
tem valor?

Entre os principais trabalhos, faço referência a: "O dinheiro na psicanálise",


vários autores, em Agenda de psicanálise, 1989; As 4+1 condições da análise,
capítulo IV: Capital e libido, de Antônio Quinet e Argent et Psychanalyse de
Pierre Martin.
Interrogando o ambulatório I 99

Outros confirmavam minha hipótese de que o sujeito que procura


tratamento reconhece naquele que o atende um profissional, ou seja, é
pago para isso, não está aqui de favor ou só porque o ama, não é
filantropia — o maior receio de Freud na clínica privada. Portanto, a
dívida simbólica retoma seu lugar de impagável sendo sintomatizada ao
gosto da neurose do freguês (seria cliente?). Curioso que a palavra clien-
te raramente é usada quando se fala em clínica. Emprega-se alternada-
mente os termos paciente, sujeito, analisando, analisante, neurótico ou
psicótico, para designar os que procuram tratamento seja nos consultó-
rios ou na instituição. Nenhum desses termos alude ao dinheiro.
No consultório a questão está resolvida, apenas é problematizada
como mais ou menos pertinente ao dispositivo analítico. O analista refe-
rido à ortodoxia tradicional das escolas inglesa e americana resolve o
problema no modelo do contrato liberal. Fechar o contrato significa a um
só tempo contratar o preço, a freqüência, que pode fazê-lo variar —
pagar por uma ou até cinco sessões semanais exige um cálculo nada
desprezível — e o horário. Pronto. O resto é manejar a transferência com
elegância na hora de corrigir os honorários, salvo nos casos em que o
"poderoso fator sexual" entra em ação, geralmente pela porta de trás, sob
a forma de fixação anal. Perdulários ou avarentos devem encontrar a
justa medida para o justo preço. E bem verdade que os retenlivos tornam-
se mais problemáticos. Aí a interpretação se encarrega de corrigir os
algarismos.
O analista referido à escola francesa, a partir da reviravolta de Lacan,
encontra na ética do desejo como falta o limite de sua fortuna. O dinhei-
ro, fazendo as vezes do objeto perdido, entra em cena na primeira hora
como o que se perde para garantir uma perda de gozo do sintoma, já em
questão quando se procura um analista.
Por outro lado, o pagamento não teria só a função de fazer cair o
objeto para apontar o caminho do desejo. Da parte do analista, oferecer
sua escuta para receber em troca os inauditos segredos que revelam uma
fantasia envergonhada de seu gozo pode bem dar a idéia de que é o
analista quem goza disso. Falar para fazer o outro gozar é, sem dúvida,
o que não se deve esperar de uma análise. Nesse sentido, cabe ao analista
saber cobrar o que custe caro ao analisando, mas sem referência fixa ao
preço de mercado ou à freqüência padronizada. Deve pedir o que o
sujeito tem a pagar reivindicando o que lhe é de direito: o acesso ao gozo
do dinheiro. A quantia pode, muitas vezes, deixar a desejar para o bolso
do analista. O preço entra mais do que nunca pela via da transferência, e
100 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

a metapsicologia só tem a ganhar ao incluir o dinheiro em seu acervo


teórico como um recurso importante no manejo da transferência.
Entretanto, em nenhum dos casos podemos tomar de empréstimo as
soluções apresentadas. Elas ficam devendo um tributo ao analista que faz
operar o dispositivo somente a partir de um pedido inicial do sujeito de
alívio para seus males. No serviço público é proibido cobrar. Este é o
ponto de partida.
Imaginemos, para polemizar, que o analista mais convencido de que
pagar é fundamental, pelo menos em alguns casos, administre uma forma
de pagamento em que o dinheiro possa ser vertido para a instituição para
fins específicos de melhoria das instalações do serviço, o que reverteria
para o conforto dos próprios usuários. Convém lembrar que falamos de
quantias irrisórias, mesmo considerando um maior afluxo da população
da chamada classe média aos serviços. O que justificaria que em outras
modalidades clínicas e assistenciais cobrar não seria necessário? A me-
tapsicologia? Por que não pagar ao médico também para se ver livre do
objeto fetiche em que o medicamento pode se converter? Ou ainda, pagar
ao assistente social como forma de reconhecimento por seu trabalho de
encaminhar soluções concretas para o paciente e seus familiares? Afinal,
não c privilégio exclusivo do analista ter seu trabalho reconhecido, ou ser
o depositário de uma dívida de gratidão indesejável. Os "poderosos
fatores sexuais" estão em jogo em toda parte.
Um contra-argumento surgiria de pronto: mas é justamente essa a
diferença entre a psicanálise e as demais terapias. Aqui é o lugar onde o
sujeito paga para perder e não para ganhar bens. A psicanálise não
oferece a cura como barganha para o sofrimento. A troca é do sofrimento
(ou excesso de gozo) do sintoma, que já não satisfaz, pela "miséria
banal", para empregar um termo de Freud. Mas, amar e trabalhar já dão
muito trabalho para os que apostam na vida. E é justo aí que os neuróti-
cos e, cm maior grau os psicóticos, sucumbem. E ainda tem que pagar
por isso? — diz a histérica vitimizada; diz o obsessivo esticando a dívida.
Alguns exemplos podem dar o que pensar, vamos a eles:

"Vim buscar o serviço público porque acredito que aqui posso ser
bem atendida (...) eu acredito nas instituições."
Este enunciado é de uma senhora formada em sociologia há muitos
anos mas que não exerce a profissão. Procura atendimento por ter sérios
problemas com o marido com quem é casada há anos e com quem
freqüenta uma psicóloga particular para terapia de casal, paga pelo ma-
Interrogando o ambulatório | 101

rido mas solicitada por ela. A psicóloga em questão indica terapia indi-
vidual para os dois e mantém o atendimento do casal. Ela reconhece que
está precisando, e o marido prefere continuar conversando com a psicó-
loga com quem, segundo ela, se entende bem. Como o marido não
mostra disposição para pagar por mais uma terapia e ela mesma diz que
não gostaria de pedir mais dinheiro a ele, pois esse tratamento vai "ser
só meu", ei-Ia aportando no serviço público. Convém lembrar que ela
vendia produtos de beleza para ter "um dinheirinho" irrisório diante dos
ganhos do marido mas não o fazia regularmente. O que fazer diante dessa
demanda? Trabalhar a importância do pagamento daquilo que é só dela
e encaminhar para a clínica privada? Aceitar tacitamente sua palavra
como aposta no valor do serviço público e iniciar um trabalho "só seu"?
Optou-se, no caso, pela segunda hipótese.
Seu dilema era separar-se ou não do marido, queixas várias que foram
dando lugar a uma reflexão sobre o que a fez casar-se com ele e manter
um casamento com sérias decepções, desde o início, por tanto tempo. No
processo, ela decide que ele tem que pagar (...) pagar por isso; pagar
paia lê-la. sustentá-la, pagar pela terapia de casal que mais adiante é
interrompida pois ela não via sentido nisso. "A psicóloga acabava dando
razão a ele."
Outros acontecimentos em sua vida, como a doença e morte de seu
pai de quem cuidou em sua própria casa, confirmavam a importância da
ajuda do marido. Mais adiante ele pede a separação, o que era impensá-
vel até então, e ela decide convencê-lo a ficar num rearranjo da convi-
vência entre os dois, suportando suas saídas freqüentes em troca de uma
certa liberdade para o que é "só seu". Alguma separação tornou-se pos-
sível. Teria sido este o desfecho por ela desejado? Ou desejável, na
avaliação de quem a atendia?
Infelizmente, não acompanhei o caso para melhor discuti-lo. O que
interessa recortar nesse exemplo é a indagação: se houvesse pagamento
cm jogo qual seria a troca? Haveria um outro modo de pagar pelo que é
"só seu" e poder ganhar mais por isso? E o imponderável, sabemos disso.
A escolha foi feita por ela e aceita pelo analista.

"Estive nas mãos dos melhores analistas (...) nomes famosos (...) eles
pintaram e bordaram comigo, fizeram de tudo (...) andei de chinelo de
dedo pagando analista e não cheguei a lugar nenhum (...) e já que aqui é
de graça vou tirar tudo que eu posso."
Esta é a resposta de uma senhora instruída, com nível superior, à
pergunta sobre sua escolha de um ambulatório público. Ela fora atendida
102 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

ate então por outra psicóloga do serviço, a quem se referia como uma
amiga, na freqüência regular de duas vezes por semana. A freqüência foi
mantida por um período de quase um ano, mas ela faltava muito e
chegava bastante atrasada para as sessões. No início, falava de seus
problemas referindo-se a uma relação amorosa que (...) "acaba com a
minha vida, abusa de mim, levou tudo que tenho de bom, meu dinheiro,
minha beleza, minha inteligência, (...) estou arrasada, não vejo mais
sentido na vida... não desejo mais nada".
Referia-se à atual terapeuta como uma "menina que não sabe de
nada" e as sessões foram se tornando difíceis. Sem saber o que fazer,
sentindo-se incapaz de lidar com o tom agressivo e de desvalorização
com que a paciente recusava suas intervenções, rendendo-se às evidên-
cias, ela propõe que a paciente venha só uma vez por semana porque
concorda que desse jeito não está mesmo adiantando. As reclamações
não foram poucas mas, para espanto geral, a paciente passa a vir sem
faltas ou atrasos. A perda da sessão toma novo sentido como uma possi-
bilidade de trabalhar sobre sua demanda de "tirar tudo porque já haviam
tirado tudo dela". Começa a dizer frases do tipo: "quero ir fundo, entrar
de cabeça, porque agora sei que posso contar com você" e "quero vir
para cá porque quero aprender a crescer, (...) estou contando com você...
não posso te perder".
Diante da perda inesperada de uma sessão, justificada pela confirma-
ção de que "desse jeito não adianta", sua exigência em obter algo, um
ressarcimento de tudo que já pagou e perdeu, dá lugar a um movimento
desejante. O que ela tem como oferta do outro é o trabalho de análise,
não está mais "nas mãos dos analistas" (mestres famosos?), portanto, não
é seu objeto. O analista agora é que não pode ser perdido, ele serve de
garantia para ela poder "entrar de cabeça na vida" e na análise, pois
começam a ser relatados fragmentos de lembranças de cenas nebulosas
que envolvem fantasias eróticas em relação à mãe.
Neste caso, pagar com o tempo adquire um valor na economia libidi-
nal e provoca uma reviravolta na relação do sujeito ao objeto: da perda
de tempo, que nada traz, ao tempo que está perdido e não se recupera.
Convém lembrar que não se trata de uma punição. Num dado momento,
ela solicitou urna sessão extra na mesma semana e foi atendida, mas seu
pedido referia-se ao fato de naquele momento precisar falar, ter o analista
disponível para o trabalho de elaboração, não era barganha.

"Isso aqui c para a senhora", disse um paciente puxando uma nota,


que hoje corresponderia aproximadamente a R$ 10,00, no dia em que
Interrogando o ambulatório | 103

recebeu os atrasados de seu pagamento. "Não posso aceitar dinheiro"


retrucou a analista embaraçada e, após alguma tentativa de interpretar o
significado desse ato, optou por dizer que aceitaria algo que fosse com-
prado com aquele dinheiro. Uma ou duas sessões após, ele retorna com
o presente/pagamento: uma toalha de praia estampada com a figura do
Cristo Redentor.
Este paciente fora atendido por um período de cerca de dois anos e,
por motivo da saída de sua analista do serviço, o tratamento estava sendo
interrompido. A queixa inicial era de fortes dores nevrálgicas no rosto —
não se sabe ate que ponto devidas a um sério problema de otite não
tratada a tempo — , nervoso, medo, insónia, inapetência, vontade de
morrer. Após ter peregrinado por tantos médicos em busca de uma solu-
ção, saturado de remédios, aceita vir à psicóloga para conversar. Tinha
mais dc 50 anos de idade e estava "encostado" pela Previdência Social
há nove anos. Era migrante de uma pequena cidade no norte do Estado
do Rio, e havia trabalhado por cerca de oito anos na garagem dc uma
empresa de ônibus na limpeza c manutenção dos carros. Havia sofrido
um sério acidente de trabalho e fraturado a bacia, daí sua licença médica.
No decorrer do atendimento, a queixa da dor vai dando lugar a outras
dores morais e ele vai reconstruindo sua história, falando da vontade de
voltar para sua terra, retomar sua "força" de arrimo de família (Oliveira,
1991).
Não me alongarei mais sobre o caso, pois trata-se de apontar para
uma forma de pagamento que não lhe foi exigida como condição do
tratamento, e hipotetizar uma significação desse gesto: sua analista, que
o atendia em Niterói, estava voltando para o Rio de Janeiro para trabalhar
peito de casa, numa "vida boa que a senhora deve levar lá" — esta frase
já havia sido dita antes referindo-se à sua saída. Tratamento interrompi-
do, desejo dc ir com ela para essa "vida boa", e um modo de se fazer
presente, nos dois sentidos se condensam nesta metáfora. Antes, e l e j a
havia declarado que não pretendia continuar se tratando com outra psi-
cóloga. Só lhe restava um último ato.

Um adolescente envolvido no tráfico de drogas, com perturbações


psicossomáticas, dores de cabeça, sensação dc sufoco no peito, fala de
sua função de "avião". Num dado momento refere-se à importância
desse ir e vir como "(...) eu levo e trago coisas que as pessoas querem e
me sinto importante por isso."
Na época o serviço se utilizava do recurso freqüente a aerogramas
para contactar os pacientes e a analista pensou em atribuir-lhe a tarefa de
104 l Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

postá-los por um tempo, arriscando ver qual o efeito disso. A idéia sequer
se concretizou pois não havia "clima para isso". Poderíamos pensar que
se trata de um artifício inútil, por demais apegado à palavra, sem consi-
derar outros "poderosos fatores sexuais envolvidos" na empresa do trá-
fico. Seria esta uma boa maneira de trabalhar para o analista, ao invés de
para o traficante? Isso resultaria no bom andamento da análise? Entre-
tanto, este seria um julgamento precipitado.
O que interessa neste exemplo é pensar alguma alternativa para desa-
fios clínicos tão grandes tanto no que se refere ao gozo da pulsão, quanto
às identificações em jogo nesse caso. Poderia ser útil se o serviço ofere-
cesse formas de absorção e ocupação para certos pacientes. Isso, porém,
não basta, c preciso localizar o que oferecer e quando fazê-lo, a cada caso.

Tomando inversamente o consultório como exemplo, presenciei, cer-


ta vez, o depoimento de um analista sobre como cobrava em sua clínica,
citando o caso de um artista plástico que, em dado momento não tinha
como pagar sua análise. O analista propôs: "pague-me com seus traba-
lhos", e afirmou que durante um tempo funcionou. No decorrer da aná-
lise, aconteceu do analista ser o único comprador. Situação delicada, pois
se não temos como saber qual o valor de uma análise, o mesmo pode-se
dizer de uma obra de arte: inestimável? sem preço? o mercado é que
dita? ou sem valor?

Um outro exemplo do consultório é relatado por Teixeira (1989,


pp. 240-2) sobre uma paciente que "tem câncer e não tem dinheiro... o
câncer comeu o pouco dinheiro que tinha." Como solução inicial propõe
o pagamento sob a forma de um presente, "o que ela quisesse, a seu
gosto". O que resulta é que a paciente não suporta ter que escolher algo
para presenteá-lo a cada sessão, sob pena de não agradar, ter que pensar
nele o tempo lodo. Assim, ela propõe uma quantia pequena, porém
pagável em dinheiro, para desvencilhar-se dos excessos da transferência.
O exemplo é notável por apresentar a questão no seu avesso. Ao pagar
com o que é mais valioso de si não estaria ela infinitizando sua dívida?
Aqui fica claro que pagar é se desfazer de um bem, e não ter que fazer
um bem a cada vez; é se desfazer das demandas caprichosas do outro
para poder encontrar o analista.

Um outro exemplo vai numa direção diferente.


Trata-se de um obsessivo típico que, ao término de uma sessão, diz:
"não deu pra trazer o dinheiro porque entreguei para minha mãe". A
Interrogando o ambulatório I 105

analista retruca: "como assim? entregou para sua mãe o dinheiro da


análise'" Nesse momento de sua análise, ele faltava muito e vinha quan-
do era chamado pela analista, ou seja, ir, falar, pagar — tudo o que o
analista pode pedir do analisando — mais do que nunca entravam numa
série psíquica de servidão, servir/pagar à mãe ou à analista, encarnando
o imperativo do superego, constituindo um entrave, quase intransponí-
vel, ao bom andamento da análise. Aqui o dinheiro é mesmo um bem do
qual o sujeito sequer se desfaz mas que faz perpetuar a dívida.

Voltando ao nosso problema, como pode o analisando que não paga


se desfazer da transferência?
Outros depoimentos indicam que esta pode ser uma discussão do
sexo. sem dúvida, mas dos anjos:
Ceita vez, os funcionários de um serviço estavam em greve e um
profissional foi até a sala de espera esclarecer os motivos da suspensão
do atendimento alegando os baixos salários recebidos. Uma assídua
paciente perguntou quanto ganhavam. Ao saber da quantia revelada em
tom de desdém, exclamou surpresa: "Tudo isso? eu ganho muito menos
e faltei ao trabalho para vir aqui ser atendida!"
O que destaco deste diálogo não é a idéia conformista de que deve-
mos trabalhar a qualquer preço ou nivelar por baixo; ao contrário, reafir-
mo a luta por melhores salários. A fala da paciente, porém, indica que,
dc seu ponto de vista, os profissionais não estão lá por filantropia ou
abnegação, para cia há um custo de trabalho cuja contrapartida é o ganho
do profissional pelo trabalho. Ninguém fica a dever nada a ninguém.
Discute-se muito que os pacientes são também contribuintes, pagam
impostos e têm direito aos serviços. Entretanto, este argumento é débil.
Primeiro porque esse pagamento existe independente da oferta de servi-
ços, portanto não é necessariamente reconhecido como tal no empenho
do sujeito cm sc tratar, ainda mais no caso de uma psicoterapia, psicana-
lítica ou não. em que esse empenho se diferencia do atendimento médico
cm geral pela freqüência e expectativas.
Segundo, em se tratando da seguridade social, muitos não são, sequer,
contribuintes. E. ainda, há o problema quase incontornável de pessoas
que têm no tratamento, seja qual for, uma condição para receber o
benefício ou auxílio-doença. Neste caso, haveria um duplo ganho: não
pagar e poder receber algum dinheiro para seu sustento. Em geral, esses
pacientes são atendidos pela psiquiatria, mas houve referência a atendi-
mentos cm psicoterapia. Os exemplos mencionados eram de casos gra-
106 í Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

vcs de pessoas que não tinham como se manter. Portanto, a ética não é a
do dinheiro, e a questão é de que efeitos terapêuticos podem se produzir
no processo. No caso do próprio tratamento se transformar literalmente
em "encosto", resta a decisão de cada analista, a cada caso, de não
sustentar um pacto perverso.
Por outro lado, foram mencionadas formas indiretas de pagamento
como um custo real para os pacientes que se engajam nos tratamentos: o
tempo e dinheiro que gastam para chegar até o serviço pelo menos uma
vez por semana; diaristas que perdem no mínimo um turno de trabalho
e remuneração; donas de casa que deixam seus lares e filhos entregues à
sorte por boa parte do dia; jovens que perdem às vezes um dia inteiro de
atilas, gazelas à parte, e têm que se haver com as provas e demandas dos
professores; trabalhadores em geral que sofrem pressões para não se
ausentarem regularmente dos empregos;,desempregados que conseguem
emprego c têm que arcar com uma escolha difícil de abandonar seus
tratamentos ou negociar com os patrões; pais que têm que levar os filhos
vencendo todo tipo de obstáculo, e por aí vai. Haja investimento e
inventividade! Estes são alguns exemplos que devem ser contabilizados
como pagamento e na avaliação da resistência.
Uma outra objeção aparece de forma mais sutil. Vários entrevistados
comentaram que os pacientes agradecem muito, não há margem para a
transferência negativa, para que apareça o lado obscuro da fantasia diri-
gida ao analista. Ou. ainda, se estão achando que ir lá e falar não adianta
nada, como vão dizer isso se são tão bem atendidos, na hora, com tanta
dedicação /1

Sobre este ponto, podemos contra-argumentar que há sempre o recur-


so de ir embora sem nada dizer, poupando a ambos o dissabor do fiasco.
Esta pode não ser a melhor maneira, mas é um recurso viável e acontece
(não raramente) nos consultórios.
Sobre a transferência negativa, assunto mais espinhoso, podemos
começar indagando até onde a hostilidade ao analista é condição para o
bom andamento de uma análise? Questão metapsicológica. Supondo que
sim. há formas variadas de manifestação de sentimentos, mais sutis,
talvez, mais difíceis de detectar e manejar e, por isso mesmo, são um
desafio maior para o analista. Não subestimemos a engenhosidade de
nossos pacientes, nem tampouco nossos recursos clínicos. Não devemos
nos colocar numa posição de tanta bondade se detectamos que esses
agradecimentos são encobridores; nem de tanta paranóia que não possa-
Interrogando o ambulatório | 107

mos perceber que eles indicam exatamente o que dizem. Ou seja, agra-
decer pode ser, no mínimo, a confirmação de que houve efeito terapêu-
tico, ate um modo de reconhecimento do trabalho do analista. E impor-
tante saber cm que momento da análise, a partir de que acontecimentos,
cm que seqüência associativa isso ocorre. Quantas vezes não ouvimos
após sessões difíceis, onde se revelam segredos ou sofrimentos penosos,
ou sc fazem associações impensadas, constatações inegáveis de situações
antes negadas, e, para nossa surpresa, ouvimos um "muito obrigado" sem
glandes alegrias, mas reconhecido.
Há. ainda, o famoso "muito obrigado por me escutar". Isto não é
pouco, apesar de sabermos que uma análise não fica por aí, ao contrário,
começa. O problema maior é que esses agradecimentos podem simples-
mente apontar para o fato de que no serviço público, de um modo geral,
as pessoas são muito mal atendidas, não são minimamente escutadas, ou
respeitadas. Isto c muito grave, e não deve ser tratado como dificuldade
em sc desfazer da transferência.
A dificuldade c outra c está do nosso lado. Se, ao cumprirmos nosso
dever ético dc atender bem somos exceção, como podemos nos livrar de
uma parle desse reconhecimento que, num dado momento, pode encobrir
uma outra face da fantasia?
Em primeiro lugar é preciso não confundir o atender bem com com-
placência ou bondade compadecida, nem saltar para o outro extremo do
intransigente c inflexível. Em segundo lugar, é preciso que, no decorrer
do trabalho analítico, o sujeito se perceba em trabalho até para poder
querer "férias", "folga", para pensar em ir embora quando achar que já
trabalhou o bastante.
Algumas pessoas comentaram que esses agradecimentos não se pro-
longam tanto quando o sujeito percebe que o tratamento não é a simples
aquisição dc um bem; a acolhida inicial vai dando lugar ao seu próprio
empenho.
Em vários depoimentos aparecem exemplos freqüentes de analistas
presenteados, seja cm ocasiões típicas como Natal, Páscoa, mesmo ani-
versário, mas também em situações singulares, em geral por pacientes
cm tratamento há algum tempo. Parece que deixam entrever no amor de
transferência um pagamento pela via da gratidão, poder dar algo. Se tem
a equivalência de desfazer-se de uma dívida, só nos resta ir a detalhes de
cada caso. Uma analista comentou bem humorada: "no consultório não
ganho tanto presente assim"!
108 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Uma entrevistada lembrou que no caso de crianças e adolescentes o


pagamento em consultório é sempre feito por terceiros, geralmente os
pais, mas nem sempre, e que se isso pode alterar em determinado mo-
mento o rumo do tratamento, é muito mais pela resistência, por ter que
pagar, que os tratamentos são interrompidos; o dinheiro aí é um poderoso
fator dc impedimento. Em sua experiência no ambulatório esse compo-
nente da resistência não existe, ela pode se dar de outras formas, pelo
abandono simplesmente. Outros alegam justamente isso: as pessoas
abandonam com mais facilidade o tratamento por que não têm que pagar;
sc tivessem esse compromisso voltariam. Como saber?
E quanto aos crescentes casos de consultório cm que o analista acaba
ouvindo a conhecida frase "tenho que interromper por que não tenho
como lhe pagar'"?
As duas posições parecem desaguar no mesmo lugar: no consultório
c no ambulatório contamos com elementos diferentes em jogo tanto para
a boa resolução da transferência quanto para a resistência inevitavelmen-
te presente cm qualquer análise. Portanto, é só a partir da afirmação
dessa diferença que podemos pensar soluções para cada caso. O que não
podemos fazer é alegar como um a priori que sem dinheiro não se pode
fazer psicanálise. Isto sim é resistência!
E preciso criar novos critérios de avaliação do fator ausência de
dinheiro na experimentação cotidiana da clínica e referi-los à teoria
psicanalítica. E assim que podemos sair ganhando ao invés de entrar
perdendo. Contudo, o ganho não é narcísico nem secundário, ao contrá-
rio, é com perda narcísica que se abre caminho para novas possibilidades
do trabalho psicanalítico.

3.2 Deitando o olhar sobre o divã

O divã, metonimia preciosa, chegou à mídia e está na boca do povo: tem


o divã do Mascarenhas, o divã do Faustão (...), e deita-se a falar dele
como nunca. Talvez seja hoje tão popular quanto o bem humorado (e
patético) "Freud explica". Não há mais psicanálise a sério?
Quando sc fala cm divã no serviço público há, no mínimo, um estra-
nhamento. Signo de conforto burguês e ortodoxia, divã só no consultó-
no. Peça fundamental do mobiliário psicanalítico, foi inventado por
Freud como um instrumento nada acessório da clínica. Seu inventor
dedicou poucas palavras a justificá-lo. Seria um resquício histórico da
Interrogando o ambulatório | 109

hipnose como meio de relaxamento e entrega do corpo à magia do


tratamento, mas também um alívio para o analista, um facilitador da
escuta.
Freud vai mais longe e o inscreve no movimento pulsional. Nova-
mente, os poderosos fatores sexuais entram em cena, desta vez, pela via
do olhar, da pulsão escopofílica ou escópica. Não se trata de recomendar
o divã para determinados casos. Sua função em interditar o olhar tem
como objetivo e resultado impedir que a transferência se misture, imper-
ceptível, com as associações do paciente e apareça como resistência
precocemente (Freud. 1913, p. 133-4). Assim, o uso do divã se justifica
menos por provocar um estado letárgico e mais por permitir a emergên-
cia da transferência como resistência em seu devido tempo, restrita à fala
e isolada da imagem do analista. Ou seja, as imagens em cena devem
remeter propriamente à fantasia do analisando. Nesse sentido, sua função
parece indispensável. Cabe aqui a pergunta: seria o divã a única manei-
ra de desfazer a pregnância indesejável do olhar? E, ainda, até onde
alteraria o tempo e a qualidade da transferência, entendida aí como
resistência?
Entretanto, ao invés de problematizar a função do divã nas variações
do setting, a corporação internacional de psicanalistas optou por padro-
nizá-lo como um invariante juntamente com a duração e freqüência das
sessões c o pagamento. De resto, estamos fora do setting e, numa con-
cessão estratégica, podemos, na melhor das hipóteses, fazer uma psico-
terapia de base ou inspiração psicanalítica.
No modelo estrutural de Lacan, o divã, mais do que um componente
dos standards, tem uma função específica, e localizável a cada caso, de
marcar o momento da entrada em análise. Atrelado ao trabalho das
entrevistas preliminares, o divã é indicado pelo analista quando emerge
algo qtie diz respeito ao sujeito do inconsciente e se dirige ao analista,
estabelecendo a transferência propriamente analítica. Não desenvolvo
aqui os meandros conceituais desta operação, mas considero que nessa
perspectiva o divã, mais do que nunca, se faz indispensável.* Como
resolver o problema sem recorrer à solução proposta pelos padronizado-
ics da psicanálise acima referida e condenada pelo próprio Lacan?

Para maiores detalhes, ver em 4+1 Condições da psicanálise, de Antonio


Quinei, cap. II, "O divã ético", pp. 39-54, as etapas que conduzem das entrevis-
tas preliminares ao divã.
110 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Curiosamente, a maioria dos entrevistados se preocupou mais com o


problema do dinheiro do que com o divã. Em primeiro lugar porque divã
não é proibido, pode não ser considerado como peça necessária do
mobiliário, geralmente precário, dos ambulatórios, mas isso não é rele-
vante. Em segundo lugar porque sua presença talvez provoque embaraço
ou estranheza, mesmo entre defensores da psicanálise, evocando a repro-
dução padronizada do consultório particular em pleno serviço público.
Entretanto, a questão não se encerra por aí. Quais os recursos vigentes e
os possíveis para lidar com mais um elemento significativo que atua na
instalação da transferência: a pregnância do olhar?
Sobre as instalações dos ambulatórios, ouvi vários relatos de situa-
ções prosaicas, algumas realmente cômicas. Reproduzo fragmentos:
Uma entrevistada reclama:
"Uma colega me disse que não tinha condições de trabalho nas
instalações do serviço, e alega que com isso dá pra fazer, no máximo uma
psicoterapia... Ora. eu conheço o lugar, comparando ao local onde traba-
lho, a impressão que tive é que ela atende no Méridien e eu numa favela...
c sc cia fizer psicoterapia, já é alguma coisa.
"Pra começar não atendo sempre na mesma sala... tem dias que atendo
numa sala da oftalmologia onde o basculante é pintado de preto por feita
de cortinas, e ainda tem aquele aparelho de exame de vista... [tornar
escuro para ver através de aparelhos o que diz respeito à visão, afirma a
cegueira do olhar, o avesso da pulsão]... às vezes atendo numa sala que
tem clínico c pediatra. Nessa sala, o clínico, para não ter que levantar na
hora do exame, coloca a cadeira ao lado da mesa na mesma posição que
a dele, dc modo que ficam quase paralelas, uma mais à frente da outra...
assim ele ausculta peito c costas sem sair do lugar... quando entro não
interfiro na posição e deixo a pessoa colocar a cadeira como quiser...
muitas vezes ela não fica mais no frente-a-frente mesmo sendo deslocada.
"Tem uma moça que dizia que não conseguia falar olhando pra mim.
Eu disse: se você quer virar a cadeira, fique à vontade... e foi o que ela
fez.
"Já na sala da ginecologia tem aquela fatídica cadeira ginecológica e,
além disso, a sala c muito pequena... a cadeira comum fica encostada na
parede c não dá ângulo para o frente-a-frente, acaba que a pessoa fica
meio dc lado podendo ou não me olhar."

"Eu divido uma sala com a nutricionista, é bem pequena e tem uma
balança de bebê e outra comum além de uma maca (...) tinha um paciente
Interrogando o ambulatório \ 111

que nas primeiras vezes não parava de olhar a balança... indaguei mas
ele não disse nada. depois parou com isso.
"Na sala do médico é pior ainda, tem armário de remédio e os
pacientes olham muito... pelo menos nas primeiras vezes... eu aten-
do muitas crianças, elas não requerem divã, então a coisa é bem variada."

"Tenho minha sala... não fico cara a cara... boto a cadeira mais longe,
não gosto de ficar muito perto... a pessoa fica do lado da mesa e eu mais
afastada (...) às vezes a sala é usada para atendimento de grupo, aí eu
sento numa cadeira meio diferente que indica o lugar do terapeuta e a
pessoa senta onde quiser... a tendência com o tempo é eles não quererem
ficar frente a frente ou muito perto de mim."

"A sala é um consultório médico típico, uma mesa entre duas cadeiras
frente-a-frente (...) tem gente que prefere ficar me olhando... outros se
incomodam com isso mas não há muito o que fazer (...) as cadeiras são
estreitas, a sala mal tem ventilação... no verão às vezes a gente deixa a
porta entreaberta, na minha sala dá pra fazer isso porque fica no canto,
não c passagem (...) os médicos cansam de atender com a porta aberta...
pia eles essa coisa de sigilo não é como pra gente."

"Fiquei com a pior sala porque cheguei no serviço por último. Lá


ludo é preto e cinza... tenha dó, assim o doente piora, até eu pioro. Tem
sala que só tem uma cadeira que é para o paciente nem sentar, é atendido
de pé. Me apossei da sala c cobri as paredes com cartazes, arranjei um
mapa da cidade bem colorido, coloquei plantas, arranjei uma mesinha
branca para as crianças, levei material de desenho, uma cesta de papel e
ficou outra coisa. Transformei um lugar de morte em um lugar de vida.
Se não. não consigo trabalhar."

Sem minimizar o fato do desconforto e, muitas vezes, da inexistência


de um lugar definido para o psicoterapeuta, há nesses exemplos um
ponto comum: o setting é eminentemente instalado para a consulta mé-
dica, mesmo havendo salas para todos e não sendo só o médico que
atenda. O frente-a-frente caracteriza a conversa, seguida ou não do exa-
me, e o mobiliário varia da maca à cadeira ginecológica e aos aparelhos
específicos.
É. portanto, a conversa que perpassa todos os atendimentos ambula-
toriais — um tipo de fala dialógica que tende a tomar a forma de
112 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

pergunta e resposta objetivas. É importante que a conversa seja mantida


c valorizada como um componente básico da clínica médica em geral.
Não só com finalidades diagnosticas mas também, e principalmente,
como recurso terapêutico. No caso da psicanálise, é justamente essa
conversa que deve sc deslocar para dar lugar a uma fala mais 'monoló-
gica' cuja contrapartida é a escuta.
Vários entrevistados comentam que é muito difícil para ambos, pa-
ciente e terapeuta, suportar o silêncio, o não ter o que dizer, as lacunas na
fala, inevitáveis no processo, mantendo o frente-a-frente. Outros, talvez
mais estratégicos, observam que no início é importante sustentar a con-
versa e paulatinamente substituí-la por uma postura mais silenciosa de
ouvinte para poder desaparecer como interlocutor direto. São formas de
manejo da demanda para construir um modo de trabalho psicanalítico.
Quanto aos pacientes, a tendência, na maioria das vezes, é desviar o
olhar quando as revelações mais íntimas ou secretas adquirem o tom de
confissão. Em alguns casos, olhar diretamente o terapeuta se traduz por
um pedido dc aprovação ou resposta ao que é falado ou perguntado. Olhar
para o chão pode, num primeiro momento, ser manifestação de um estado
dc subserviência ou submissão à autoridade do "doutor", mas revela-se
adiante como vergonha, encabulamcnto, ficar "sem graça" diante do que
sc descortina na própria fala. Se essa vergonha atesta um sentimento de
inferioridade social diante da diferença de classe, ou de expectativa de
reprovação moral do que é dito, isso não invalida uma outra dimensão,
presente no ato de tornar público algo inerente à fantasia.
No jogo de revelar o que deve-se esconder é melhor não olhar para
não ser olhado, exatamente porque algo se mostra, se apresenta ao olhar
— julgamento ou testemunho — de um outro. Isso não é privilégio ou
defeito dos "humildes de condição". Nesse ponto, o divã entra como um
atenuante dos excessos produzidos na transferência visando apagar ao
máximo a pessoa do analista, em sua inevitável posição de ideal do 'eu',
para torná-lo um operador da fala. Mas sem esse instrumento também é
possível que a figura do analista se apague: "Lá pelas tantas, o analisando
fala como sc eu não estivesse ali e só percebe minha presença por aquilo
que surge como interpretação." (Machado, 1995b)

Outros exemplos mencionados foram: olhar para o lado, para cima,


em direção ao próprio corpo, ocupar as mãos e t c , casos de alusões ao
olhar inibidor do analista como um pedido velado para desfazê-lo, che-
gando ao ponto de virar a cadeira.
Interrogando o ambulatório | 113

Uma entrevistada, em tom de indignação, protestou:


"Sc fazemos um trabalho psicanalítico, e eu acredito que sim, por que
não se assume isso de uma vez e se reconhece a necessidade do divã, já
que também se tem instrumentos específicos para diferentes práticas
clínicas? O divã seria uma marca desse trabalho, onde o analista sai do
campo de visão do analisando para permitir um outro endereçamento.
Nunca ouvi falar que alguma instituição tenha feito isso."
Obtive alguns exemplos que contrariam esse protesto. Uma entrevis-
tada conta como em seu serviço, um hospital universitário, conseguiu,
após um bom e paciente empenho, colocar um divã (um sofá com almo-
fadas) em sua sala onde atende há cerca de dez anos. Mais recentemente,
no mesmo serviço, foi colocado um pequeno sofá em outra sala. Uma
outra entrevistada, de outro serviço, tem um sofá e poltronas em sua sala.
Ambas afirmam qtie vários pacientes chegam a se deitar, mas não é o
predominante. Outros dizem que se "forçarem a barra" podem conseguir
um divã ou algo parecido, mas não explicam exatamente porque ainda
não o fizeram.
Suponho que isso se deva, grosso modo, à não assunção da identidade
de psicanalista por duas razões: por um constrangimento em definir-se
como tal perante outros especialistas e por não se querer este tipo de
definição como reprodutora do padrão do consultório no serviço público.
A meu ver, o risco maior em definir o locus da psicanálise pelo divã
é de fixá-la e até mesmo, reduzi-la ao cenário. Algo como: "vejam, é aqui
e só aqui que se faz psicanálise"; conseqüentemente, o resto seria no
máximo de inspiração psicanalítica.
Voltamos aos standards dos quais tanto queremos nos livrar. Logo
imagino um funcionário indicando a sala do(a) doutor(a) como a sala da
psicanálise que só pode ser usada por psicanalista e para onde só devem
ser encaminhados os pacientes verdadeiramente psicanalíticos. Entretan-
to, esta é só uma suposição em vista da grande tendência à burocratiza-
ção em todas as modalidades da clínica no serviço público.
Além disso, se interditar o olhar visa diluir os excessos do imaginário
do sujeito sobre a figura do analista, não estaríamos apelando ao imagi-
nário social, através do divã como figura da psicanálise, para compor e
cristalizar seu cenário? Não estaríamos tomando o cenário pela cena (a
outra cena)'? Temos de experimentar seja que estratégia for com essas
possibilidades cm mente.

Tomemos mais alguns exemplos:


114 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Um rapaz negro, forte, com aparência viril, sempre muito polido e


respeitoso ao se dirigir à bela moça que o atende, após tê-la escolhido
para contai- seu problema, reitera a cada entrevista: "Como vou falar
disso para a senhora sc a senhora está sempre me olhando?" Logo no
começo conta que tem um problema, um defeito, umas sensações que
um homem não pode ter. Já contou para a família, pede ajuda e recorre
a diferentes dispositivos como, rezadeira, umbanda, e, ao relatar sua ida
a um centro espírita conta o que lhe disseram: "meu problema é que eu
tenho uma mulher dc frente." Ao enunciar esta frase para uma 'doutora',
ela a destaca, encerrando a sessão.
Após várias entrevistas insistindo que não tem coragem de falar com
cia olhando para ele. cia, então, decide virar sua própria cadeira de lado
c pede para que ele continue falando. O efeito imediato não é a confissão
esperada mas uma maneira diferente de referir-se a si próprio, tanto na
entonação quanto no vocabulário, tomando uma direção de monólogo,
um pensar alto. O dito referido ao 'diagnóstico' do centro espírita é
recontextualizado no problema imediato de ter uma mulher de frente
para ele. Ele. sutilmente, havia recusado ser atendido por um homem, e
marcou o atendimento para o dia em que poderia ser atendido por ela.
Neste exemplo, a figura do analista não se apaga, não sai da vista,
mas o olhar como movimento pulsional se desfaz, sai de cena. O sujeito
não c mais olhado. O atendimento é recente e não temos como prever as
consequências deste ato, nem tampouco tomá-lo como modelo. Pode ser
mais uma solução contingente movida pela premência de um pedido.
Pode ser ainda uma resposta sintomática do analista que se vê aprisiona-
do nesse jogo dc olhares. Resta-nos acompanhar seus efeitos.

Uma entrevistada relata:


"Tem uma moça nordestina, crente, que se diz muito tímida c que não
gosta de ser olhada. No início, ela sussurrava ao falar c eu quase que
olhava para escutar melhor (...) ela olhava muito para o chão. Depois ela
foi falando c se dando conta que eu estava ali mais para escutar. Conta
que seu problema c não conseguir ficar muito tempo numa relação
amorosa. Agora, depois de um tempo, está passando por uma situação
dramática, pois está sendo excluída do convívio com a Igreja porque
passou a viver cm concubinato com um homem casado, cuja mulher
havia saído dc casa mas retornou. Ela está arrasada de não poder manter
suas atividades normais, mas disse que não quer abrir mão, vai lutar por
esse amor (...) já consegue olhar mais pra mim quando fala (...) em outros
tempos acho que ela teria saído fora."
Interrogando o ambulatório | 115

Esle caso pode bem mostrar um caminho inverso: do olhar implacá-


vel do superego que tudo vê é preciso se esconder; mas para encarar o
desafio de ficar com seu amor ela não tem abrigo possível, é olhada por
todos como a mulher "cm pecado". Só lhe resta o olhar do reconheci-
mento de sua escolha, que ela parece encontrar em seu apelo à 'psicólo-
ga', para não "sair fora".

"Eu não agüento mais vir aqui te ver... eu penso em você o tempo
todo... penso que te vejo na rua... pra me livrar dessa paixão, tenho que
ir embora."
Com estas palavras, uma mulher bonita, de seus quarenta e poucos
anos, encerra seu tratamento com um jovem analista. Havia sido enca-
minhada pela ginecologia com queixas de dores antes e depois da mens-
truação. Segundo ele:
"Ela já chegou como paciente de análise, se questionava muito, trazia
sonhos e foi chegando ao ponto dela se perguntar sobre a relação com o
marido, com quem dizia não ter prazer. No começo ela olhava para baixo
e. depois, começou a me encarar. Nesse período, a transferência amorosa
se intensifica resultando num apaixonamento sem solução. Um dia ela
me deixoti uma carta no ambulatório explicando que não podia mais vir,
que tinha a impressão de me ver pela rua (...) uma carta muito poética
(...) ela escrevia poemas, mas não só para mim (...) só que chegou a um
ponto insustentável."
O que leria sido desse amor, antes mesmo de suas manifestações mais
eróticas, se fosse levado ao divã como um recurso à interdição do objeto
pelo olhar? Sabemos que não foi por falta de divã que Freud se viu
enredado na sedução de suas histéricas. Não podemos passar ao largo da
questão quando a pregnância do olhar aparece de modo tão literal.
Seja como for, do divã à sala de oftalmologia, ternos que manejar esse
elemento a mais na transferência que pode ser tão pregnante quanto
irrelevante no decorrer do processo. Estamos livres para inventar a partir
dos acontecimentos até onde a burocracia das especialidades e dos ser-
viços nos permitirem. No ambulatório, para o divã não há regras.

3.3 Que tempo para tratar?

"O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem. O tem-


po respondeu ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o
tempo tem."
116 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Com esta brincadeira infantil que abusa da tautologia, inicio a discus-


são sobre o tempo.
No serviço público, ao contrário do apressado time is money, tudo
acontece lentamente. É a burocracia, dizem uns; é a falta de incentivo à
produtividade, dizem outros; é a perversão do sistema etc. Mas na clínica
tudo parece acontecer muito rápido. E um paciente que surta; muita
gente que chega ao mesmo tempo para ser atendida; alguém que aparece
fora de hora sem poder esperar. Os atendimentos são feitos na pressa de
despachar o maior número possível de pacientes. O lema é aumentar a
produtividade. Tem gente que atende o paciente em pé, ou que marca
todos os pacientes para o mesmo horário para não ser surpreendido por
atrasos, ou, ainda, para acabar mais cedo. Eles que esperem. E as filas de
espera são o maior desafio. índice da morosidade e ineficiência dos
serviços, as filas são a prova de um tempo perdido.
Uma vez atendidos, a duração das consultas é fixada, em geral, em
trinta minutos, pelo menos nos serviços de psiquiatria e saúde mental.
Mas com dez minutos já se encerra um atendimento, especialmente se é
para fornecer receitas. Já o tempo que o paciente espera até chegar sua
vez pode ser bem longo: uma manhã ou tarde inteiras, ou de quinze a
quarenta e cinco dias até a próxima consulta. Até logo e passar bem. Se
passar mal, só na emergência.
Infelizmente, essas imagens não são caricaturas. Retratam cenas co-
tidianas nos ambulatórios. Porém, devo dizer que não são a regra de
alguns serviços, nem da maioria dos profissionais com quem tive contato
no decorrer da pesquisa. Em alguns lugares, podem até ser a exceção,
corno já vimos em vários exemplos que apresentei, havendo uma preo-
cupação constante com o bom atendimento por parte dos profissionais
de saúde mental. Isto requer tempo. Tempo para atender, escutar, enca-
minhar, tratar, discutir casos e até esperar.
Quanto à produtividade, não percamos tempo com isso. Se o que
conta são os atendimentos, só nos resta equacionar o número de pacien-
tes atendidos com os que estão na espera, e apostar na oferta possível. O
recurso aos grupos, em suas diferentes modalidades, pode ser um meio
de discriminar as demandas e facilitar a equação atendimento-evasão-
permanência. Isso é trabalho em equipe. Não é preciso ser psicanalista
para executá-lo. E preciso privilegiar a clínica como acontecimento,
como o que emerge e provoca trabalho. Nesse sentido, toda clínica é uma
emergência. Esta é a pressa, ou pressão, do tempo que nos concerne.
Interrogando o ambulatório I 117

A questão que formulo sobre o tempo é especificamente dirigida à


clínica psicanalítica.
Quanto tempo se espera que dure uma análise no ambulatório? A
única indicação de Freud é: Caminhe... Como tolerá-la?
Qual a freqüência possível, e desejável, para garantir que o que se faz
é psicanálise?
Começo pela freqüência. Os standards ainda postulam de três a cinco
vezes por semana. Menos que isso, é psicoterapia. Ou, ainda, vamos
marcar um tempo, que seja breve, para a psicoterapia. Novamente, a
diferença se faz pelo negativo: menos vezes + menos tempo = menos
psicanálise. No entanto, observamos uma tendência cada vez maior a
aceitar pacientes duas vezes por semana nos consultórios de psicanalis-
tas. Estão todos aderindo à psicoterapia? O problema é financeiro? Ou
há uma saturação da psicanálise no cotidiano dos analisandos?
"Venha quando puder..." disse uma psicanalista a uma paciente que
mora longe e tem dificuldades para chegar ao ambulatório. "As vezes
exijo: 'semana que vem, cu quero você aqui.' E, geralmente, eles vêm."
Adiante, comenta: "Você já imaginou alguém dizendo isso no consultó-
rio'.'"
Curiosamente, nos últimos tempos tenho ouvido a expressão "análise
sob demanda" como proposta de alguns psicanalistas a seus analisandos
como mais um recurso para enfrentar a resistência produzida na regula-
ridade tediosa das sessões fixas. As justificativas recaem sobre os casos
dc análises prolongadas como um meio de facilitar a dissolução da
transferência e vislumbrar um fim para a análise. Ou, então, sobre os
casos em que o sujeito já passou por mais de uma análise e busca algo
diferente. Não entro no mérito da questão. Apenas provoco os defensores
dos standards até o limite onde os paralelos se encontram. No caso, a
resistência.
Sc o analisando resiste à regularidade, seja por que motivo for, o
analista tem uma escolha: ceder ou resistir. Mas não façamos disso um
standard'. O que está cm questão é o manejo da transferência. E o analista
tem que se haver com isso como puder.
Obtive relatos bastante heterogêneos sobre a questão da freqüência.
Vamos aos exemplos:
"Lá no serviço temos essa norma de só atender uma vez por semana.
Eu. às vezes, dou um jeito porque atendo pacientes graves, mas é exce-
ção. A demanda é muito grande, por isso decidimos assim."
118 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

"Há uma tendência no serviço público de só atender uma vez por


semana. No começo fui contra isso, mas agora eu vejo que os próprios
pacientes não pedem mais do que isso, principalmente quando entram no
jogo da análise e se dão conta que não cabe a mim resolver o problema
com soluções prontas. Eles têm que trabalhar também."
"Nós optamos pela qualidade em vez da quantidade. Eu cheguei a
atender várias pessoas até três vezes por semana. E eles não faltavam
mais do que no consultório. É bem verdade que a maioria morava perto,
mas nem todos."
"Minha clientela é de pacientes graves. Por isso eu não encharco a
minha agenda e sempre encaixo alguém que não estava marcado. Eles já
sabem dessa minha disponibilidade e se sentem bem com isso."
"Houve uma época em que eu atendia tanta gente que resolvi não
marcar mais as consultas. Eles sabiam dos meus horários e o resto ficava
a critério deles. Em alguns casos, eu marcava hora, ou porque a pessoa
queria uma garantia de ser atendida, ou porque morava longe, ou tinha
problema com horário. Então eu atendia quem chegava primeiro ou
quem tinha mais urgência, seja de horário ou de ser atendido."
"Atendíamos em grupos abertos. Os pacientes sabiam do horário fixo
dos grupos e faziam sua própria freqüência. Tinha gente que vinha toda
semana, de 15 cm 15 dias e, até, mensalmente. Trabalhávamos com
quem estava lá."

Os exemplos apresentam urna variedade de possibilidades que depen-


dem da organização dos serviços, das propostas de atendimento das
equipes, ou de cada profissional, e do modo como trabalham as deman-
das. Com exceção do último exemplo, os demais referem-se a atendi-
mentos individuais com profissionais que se propunham a fazer um
trabalho psicanalítico. Mas isso não diz muita coisa. Apenas indica que
a questão da freqüência só se torna um problema se a burocracia dos
serviços for muito inflexível.
Vários entrevistados relacionam o problema da freqüência com o fato
dc não poderem cobrar. Alegam que os pacientes se comprometem me-
nos, que podem faltar sem que isso signifique um custo para eles, podem
mesmo estar economizando tempo e dinheiro da passagem. Além do
mais. sabem que a instituição permanece funcionando em sua ausência
sem prejuízo para os profissionais. Podem dispensar sem serem dispen-
sados, podendo retornar a qualquer tempo. Assim, é mais pelas faltas,
pela inconstância dos pacientes, que se localizam os impasses.
Interrogando o ambulatorio | 119

Uma psicanalista comenta intrigada: "Tem uns que não têm regulari-
dade porque não investem mesmo. Tem outros que não voltam. Mas tem
outros que somem e reaparecem sem o menor pejo. Em geral, somem no
período dc fim dc ano e no verão. Como o lugar é pequeno, às vezes
encontro com alguém na rua que me diz: 'ah, doutora tá tão quente...
andar até lá nesse sol...' Mas acabam voltando. Eles voltam quando
aparece um outro problema ou um novo sintoma físico. As vezes reto-
mam o assunto anterior, mas geralmente pedindo uma resposta, muito
semelhante ao modo como procuram os médicos. Até aí, tudo bem, eu
entendo que a cultura médica é que predomina. Acontece que, em alguns
casos, eles já sabem que comigo é diferente, eu não dou respostas, faço
perguntas, ponho pra trabalhar... parece que isso fica marcado dc algum
modo, mas não há continuidade. Às vezes, depois de uma ou duas
sessões, param de vir porque melhoraram, não sei de que nem porque,
depois voltam. E isso que me intriga."
Este relato condensa uma série de questões, sem dúvida, intrigantes.
Sc eles percebem alguma diferença em relação à abordagem do médico,
por que voltam? Certamente é porque não é com o médico que esperam
resolver o problema. Então, que saber demandam do psicólogo para seus
problemas c sintomas físicos? Aqui, especulo que uma certa cultura
psicológica já sc instalou, mas qual o seu estatuto? Seria o psicólogo (o
psicanalista não c sequer nomeado) um híbrido de médico, confessor,
conselheiro c juiz? Provavelmente sim. E a prevalência pode variar de
acordo com o que sc pede ou se quer saber. A figura do psicólogo parece
ser permeável a todas essas atribuições. No consultório não encontramos
a mesma variação imaginária dc forma mais sutil e dissimulada? O que
os faz "não dar continuidade"? Ou, o que é mais intrigante, o que os faz
dai' continuidade a um modo de se apresentar e demandar resposta quan-
do, dc algum modo, já perceberam que ali "é diferente"? Em suma, o que
os faz voltar? Esta é a freqüência que interessa. Cabe ao analista se valer
dela ao máximo para fazer valer sua diferença e ver quem volta.
Uma outra psicanalista argumenta:
"Nós recebemos muita gente a toda hora. São encaminhamentos
diversos, mas tem muita demanda espontânea. As vezes me pegam no
corredor, minha sala é do lado da ginecologia e sempre vem uma mulher
dizendo 'posso dar uma palavrinha com a senhora?' Ou 'preciso alguém
para me escutar'. Tenho a impressão que, para quem tiver ouvidos para
ouvir, não vai faltai' trabalho. Acho que não devemos facilitar demais, é
120 I Vastas confusões c atendimentos imperfeitos

importante que a pessoa encontre obstáculos, para não cair num muro de
lamentações que não ata nem desata. Tem que pegar mais pelo desejo.
"Antes cu tinha mais evasão do que agora, acho que é porque fiquei
mais exigente, eu escolho mais os casos, e acho que eles também me
escolhem. Quando começam a faltar muito, eu cobro. Já que não pode-
mos cobrar em dinheiro, vamos cobrar a presença. Não fico acusando,
não adianta trabalhar pela via da resistência. Mas se deixar correr solto,
a coisa não anda. Antes, eu achava terrível aquele esquema de desligar o
paciente se faltar três vezes seguidas sem justificativa. Hoje, eu entendo
isso de outra maneira. Fica como um limite, um jeito de marcar algu-
ma coisa. Não é castigo, até porque, quando eles querem, eles voltam e
são atendidos, mas já é diferente, eu não estou lá esperando indefinida-
mente."
A questão de "por que voltam?" se soma à de "como voltam?" Aí
podemos ter indícios de como vai o trabalho de elaboração, e de até onde
o sujeito pôde caminhar. Curiosamente, uma norma burocrática pode
funcionar como um recurso importante no manejo da transferência. Uma
punição pode ser ressignificada como um modo de marcar a diferença.
Obtive depoimentos que vão na direção contrária. Vários entrevista-
dos relatam casos de pacientes assíduos por um longo período de tempo,
de pelo menos dois ou três anos, sem discriminação de patologia, sexo
oti faixa etária. Podem ser psicóticos graves, donas-de-casa, adolescen-
tes, trabalhadores ou aposentados.
Uma psicanalista se espanta com a assiduidade dos pacientes.
"Fico me perguntando o que faz aquelas pessoas irem lá toda semana,
muitas vezes sem faltar, para me falar de seus problemas, de suas vidas,
anos a fio."
Neste ponto, desloco a discussão sobre a freqüência para a duração.
Quanto tempo para uma análise? A meu ver, este é o maior desafio. E, é
bom que se diga. não é privilégio ou defeito do consultório ou do ambu-
latório. E uma questão para a psicanálise: interminável ou intermitente?
Qual o tempo da elaboração? E, ainda, qual o tempo para a dissolução
da transferência como vislumbre de um fim para a análise? Estas são
qtiestões para a "bruxa metapsicologia" que evoco no capítulo final deste
trabalho. Por hora, destaco duas situações clínicas que evidenciam o
tempo com tuna função singular no trabalho analítico.
A primeira é sobre o início de um atendimento onde o tempo entra
como desencadeador da fantasia no que diz respeito à duração das ses-
sões. O relato é de um psicanalista:
Interrogando o ambulatório | 121

"Eu atendo uma moça, que no início ficava meio incomodada quando
a sessão chegava aos dez minutos e não terminava. Eu tinha a impressão
que cia estava acostumada ao padrão dos médicos, e aí insisti em esticar
a sessão. Foi todo um trabalho que tive que fazer para marcar a diferença
do atendimento psicanalítico. Eu segurava mais tempo, perguntava desse
incómodo e cia passou a associar a partir disso. Um dia ela começa a
falar dc uma desvalia, e diz: 'acho que as pessoas perdem tempo comi-
go'. E daí vem a história dela, de como é tratada pela família, que não
prestam muita atenção a ela... Vi que estava no caminho certo."
Nesse primeiro tempo, o tempo é sintomatizado e vai dando lugar à
fala na medida em que se interroga sobre ele. O analista, preocupado em
oferecer psicanálise, estica o tempo sem saber onde ia chegar. O sujeito,
por sua vez, se apresenta como aquele com quem só se pode perder
tempo. Daí em diante, o analista já pode operar em direção à fantasia que
está cm jogo.
A segunda refere-se mais ao sintoma do analista. Em um serviço de
adolescentes, a faixa etária estabelecida é de 12 a 20 anos. Uma psicana-
lista, disposta a exercer sua clínica sem fazer concessões ao tempo mar-
cado pela idade, sc vè diante de um problema curioso. Ela nos conta:
"Quando entrei no serviço público resolvi experimentar fazer psica-
nálise sem concessões para testar mesmo como seria aquela experiência.
Sustentei análises de longa duração sem idade determinada. Tive pacien-
tes comigo por seis, até oito anos, o que não é uma coisa comum. Tinha
pacientes que já estavam com quase 30 anos de idade, e isso começou a
criar um certo problema. As enfermeiras faziam um laço comigo mas
tinham que colocar a idade no prontuário ou na ficha. Nunca fui aborda-
da diretamente porque eu explicava que a psicanálise é um tratamenio
que não tem limite de idade, e isso era tolerado. Acontece que o prob' >
ma sc deu no sentido propriamente analítico, porque comecei a percet r
que esses pacientes ficavam marcados pelo significante 'adolescente'.
Percebi que esse negócio de significante funciona, é sério. Na ficha se
escrevia a data da consulta e no cabeçalho tinha o nome do serviço. O
sujeito eslava preso a isso (...) aí eu comecei a pensar que é preferível
que perca isso ao invés de manter o benefício de se tratar com o mesmo
analista. Isso acontecia mais comigo do que com os colegas. Reconheci
que tinha alguma coisa errada ali, e combinamos que a pessoa ficaria lá
até os 20 anos, isso seria colocado desde o início."
Neste caso. o tempo cronológico marca uma identidade, fixa-a como
uma alienação justamente ao significante do qual o sujeito tem que se
I 22 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

desvencilhar. O tempo de elaboração está atrelado a um paradoxo. Mar-


car um fim para esse tempo pelo limite de idade pode ser a única maneira
de precipitar uma separação, um descolamento do 'ser adolescente' com
conseqüências particulares para cada um. E preciso apressar para con-
cluir.

Voltando à nossa brincadeira tautológica sobre o tempo, lanço-me ao


desafio de responder à questão: na psicanálise, quanto tempo o tempo
tem?
///

Por uma psicanálise possível

1. Evocando a "bruxa metapsicologia"

A questão de uma psicanálise possível no ambulatório público deve dar


lugar à questão fundamental da psicanálise: ofício impossível?
Considerando que nossa função como analistas é a de criar condições
de possibilidade para o exercício da clínica psicanalítica, apresento o que
considero as condições mínimas para que se identifique como psicanálise
determinado modo de trabalho clínico em sua diferença no campo das
psicoterapias em geral.
Evoco a "bruxa metapsicologia" em meu auxílio, tal como fez Freud
em seu desamparo diante da força indomável das pulsões que decidem
sobre o fim de uma análise. A metapsicologia é como a fantasia. Freud
escreve isso com a estrutura de um lapso: "Sem a especulação c a
teorização — cu quase disse 'fantasia' — metapsicológica não avança-
remos nem mais um passo" (1937a, p. 225). Mas sem a fantasia do
fundador também não vamos muito longe em psicanálise. E ele que nos
lega seu trabalho, sua invenção. Cabe a cada um lê-lo e passar adiante
esse legado. Privilegio a leitura de Lacan naquilo que considero pertinen-
te para minha proposta.
Como primeira condição, temos o que Freud denominou de realidade
psíquica. Proponho um exame desse conceito como ponto de partida.
Inicialmente, devo dizer que não se trata das velhas oposições fantasia
versus realidade — ainda que o termo fantasia seja sinônimo de realidade
psíquica —, ou psíquico interno versus realidade externa, como se fos-
sem dois mundos, ou, ainda, subjetivo versus objetivo, como se o primei-
124 I Vastas con fusões e atendimentos imperfeitos

ro necessariamente induzisse ao erro e à má compreensão dos fatos.


Trata-se da única realidade que diz respeito e interessa ao sujeito, a partir
da qual ele se vê, pensa, fala, sofre, trabalha; enfim, se põe no mundo e,
até mesmo, se desconhece. Nessa realidade se insere uma dimensão de
alteridade que indica que a linguagem, mais do que uma aquisição, vem
do Outro.*
A realidade psíquica não se reduz ao ego, embora o inclua, do mesmo
modo que inclui o sintoma. Sua fonte primária é o inconsciente, e não há
que sc conceber nada de profundo ou submerso nessa realidade. Tudo se
passa na superfície, na emergência da fala a que temos acesso e à qual,
de algum modo, respondemos. E na própria palavra do sujeito que co-
meça o trabalho clínico. Ao tratarmos do sofrimento psíquico só pode-
mos fazê-lo pelo que aparece dessa realidade em palavras e ações pre-
nhes de sentido.
Convém lembrar que isso não é prerrogativa exclusiva da psicanálise.
Como se prescreve afinal, de medicação a novas condutas, senão a partir
dc uma queixa ou uma fala delirante? A especificidade do trabalho
psicanalítico está cm ater-se radicalmente às produções de fala dos su-
jeitos como indicações dessa realidade. O pacto analítico é um pacto de
fala. A psicanálise é uma clínica da fala. Fazer falar é uma condição da
escuta. E é pela escuta que a fala se constitui, remetendo à regra funda-
mental: diga o que lhe vier à cabeça...
Falar pode ser terapêutico em si, mas não é aquilo a que necessaria-
mente sc visa. Não é só desabafo, ainda que este funcione como uma
ab-reação. Falar pode produzir sofrimento, e em geral o faz. Pois na fala
algo se revela, aparece e desaparece, não é bem o que deveria ser dito.
Mas o que deveria ser dito? Começa uma busca do sujeito sobre o que
deve dizer para aquele que o escuta; pensar e falar não se coadunam. É
a própria realidade psíquica trabalhando.
Ao produzir esse primeiro efeito de fala, o analista apenas iniciou seu
trabalho. E só pode fazê-lo quando o sujeito em questão suporta mini-
mamente pôr em suspenso as urgências de seu sofrimento em seu pedido

* Ver O Seminário livro II — O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise


onde Lacan sistematiza o Outro como o simbólico por excelência convocado
pela letra — La lettre volée — em sua função de significante do qual o sujeito
recebe sua determinação maior, e que define o simbólico para além do eu-ima-
ginário. Ver também "Le séminaire sur 'La lettre volée'" que, apesar de alterar
a cronologia, abre os Écrits dando primazia ao simbólico na década de 1950,
para marcar a diferença radical de Lacan com os pós-freudianos.
Por uma psicanálise possível | 125

de cura ou de uma explicação sobre a causa de seus males. Fazê-lo


suportar isso é tarefa preliminar.
O dispositivo psicanalítico que opera no binômio fala-escuta está
bem inscrito no conceito de transferência. Aqui entrelaçamos esta pri-
meira condição a uma segunda: a clínica psicanalítica consiste em pro-
duzir um modo de fala através da transferência. Fala-se para um outro
que, num primeiro momento, é aquele que atende. Há aí um deslocamen-
to da fala como desabafo, queixa, pedido de alívio, etc. para um plano
que podemos chamar de reflexivo ou indagativo. É preciso, em algum
momento, querer saber sobre o que se diz. E o que se diz vem carregado
de intenções, afetos, contradições que podemos definir como variações
da transferência. Isso pode acontecer como que acidentalmente para uns,
ou depender mais diretamente da ação do analista. Não há como prever
nem como garantir que os que procuram atendimento se envolvam nessa
empreitada. Ao analista cabe manter a oferta a seu modo, sem coação, é
óbvio, mas com clareza de seu propósito e, sabendo esperar, dar tempo
ao sujeito.
Para o sujeito, de início, aquele que o atende deve deter o poder-saber
da cura. Mas se esta não deve ser a promessa do analista, como fazer para
não cair no descrédito? E preciso ir além da acolhida para manter a
aposta em firmar o pacto. Alguma coisa que o analista diz ou faz: um
comentário, uma indagação e mesmo um convite explícito a pensar sobre
o que é dito deve atingir o sujeito. Algo em que se reconheça ou até se
estranhe mas que, de algum modo, lhe seja familiar, diga algo a seu
respeito, que aponte para um deciframento, transformando sua queixa
cm questão. Aí está uma chance, e apenas isto, da transferência deixar de
ser uma expectativa imediata de cura para se transformar na transferência
analítica. Cabe ao sujeito entrar no jogo, apostar em saber um pouco
mais daquilo que o aflige para tomar nas mãos uma parcela de seu
destino que, é preciso que se diga, depende de um campo variável de
possibilidades não previstas.
A transferência é o movimento do sujeito que apresenta ao analista
algo de sua realidade através da fala. A interpretação é um recurso do
analista. O que, como e quando interpretar são questões correntes entre
analistas. Porém, o que se impõe aqui como uma terceira condição é uma
determinada concepção do tempo que é a mola-mestra da interpretação:
Nachträglichkeit — a posteriori ou posterioridade, que também pode-
mos chamar de 'só depois' ..Uma palavra ou ação do analista só tem valor
de interpretação, como efeito, num tempo posterior.
126 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Esta concepção de tempo está presente na própria causação psíquica


indicando que o tempo para a psicanálise não é linear ou evolutivo. Não
se trata exatamente da ação do passado sobre o presente, ou de um tempo
progressivo visando à regressão. Não é túnel do tempo, nem volta à
infância. Nos termos de Freud, é uma reorganização, uma reinserção dos
traços de memória cujo tempo não é previsível nem controlável. Assim
funcionam a realidade psíquica e o trabalho psicanalítico sobre ela. Ao
invés de regressão, temos a retroação de um tempo atual sobre o anterior,
seja no trauma, na constituição da fantasia, no sintoma ou na cena
analítica. E sobre os efeitos de nossos atos e falas, e também dos atos e
falas dos sujeitos, que podemos trabalhar. Não devemos tentar prever ou
prevenir os acontecimentos. Nesse sentido, psicanálise e prevenção não
combinam.
O trabalho de elaboração também se dá no 'só depois' das sessões,
ao longo do percurso analítico que, por sucessivos deslocamentos, faz
variar a repetição e a posição do sujeito em sua realidade psíquica.
Portanto, um exame do tempo que concerne à psicanálise é central para
nosso propósito.
As condições mínimas para caracterizar a especificidade da clínica
psicanalítica sc resumem assim: trata-se de uma clínica que diz respeito
à realidade psíquica c, para isso, provoca um modo peculiar de fala que
se dá a partir da transferência, numa relação também peculiar com o
tempo, visando remanejar essa realidade por sucessivos deslocamentos.
Isso talvez não diga muita coisa. Talvez soe tautológico.
Para melhor explicitar essa especificidade, desenvolvo cada termo
dessas condições, sendo que um remete ao outro. Por exemplo, a reali-
dade psíquica remete à repetição, que remete à resistência, que remete à
transferência, e assim por diante, tecendo a rede conceituai da teoria
psicanalítica. Portanto, esses termos serão recorrentes no texto que se
segue. E, last but not least, há a última condição, postulada por Lacan,
que realiza as demais como operadores da clínica, a saber: o desejo do
analista.

1.1 Sobre a realidade psíquica

Toda a controvérsia em torno desta expressão consiste em atribuir-lhe


um estatuto particular que opõe seus dois termos um ao outro. Trata-se
de realidade, sem dúvida, mas sua qualidade é psíquica. Logo, não é tão
real assim. O psíquico, como o psicológico na linguagem corrente, tem
Por uma psicanálise possível I 127

um quê de ilusão, imaginação, falsa impressão, fantasia, aquém da rea-


lidade propriamente dita. E Freud, até certo ponto, sustentava essa opo-
sição. Ao longo de sua obra, recorre a várias oposições que tanto funda-
mentam como derivam da noção de realidade psíquica: inconsciente
versus consciência; processo psíquico primário versus secundário; prin-
cípio do prazer versus princípio de realidade, para citar as principais.
No entanto, a cada momento da construção destes conceitos, Freud é
levado a tratá-los não como instâncias ou realidades opostas e indepen-
dentes cm sua própria constituição, mas como realidades que derivam
uma da outra, se interpenetram e, mesmo, se atravessam.
Logo em 1900, no famoso capítulo VII da Interpretação dos sonhos,
Freud postula que "o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica" e já
o define: "em sua natureza interior é tão desconhecido para nós quanto
a realidade do mundo externo, e se apresenta de modo tão incompleto
pelos dados da consciência quanto o mundo externo pelas comunicações
dos nosso órgãos dos sentidos." (p. 613, grifado no original)*
Sua natureza guarda uma característica nada desprezível que a apro-
xima de uma outra natureza, ou realidade, a que Freud nomeia ora como
material ou factual, ora como externa, como no texto acima. Paradoxal-
mente, dentro ou fora, ambas são exteriores quanto à nossa capacidade
de apreensão, no sentido mesmo da percepção, que só pode se dar
parcialmente.
O aparelho psíquico é postulado como um aparelho que sonha. No
sonho, a partir do apagamento do pólo perceptivo, ocorre um trabalho
sobre os traços de memória em que fragmentos são investidos, desloca-
dos e condensados, e só depois recuperados pela percepção. Na vigília,
a percepção é de coisas vistas e escutadas. Em ambos os casos, a percep-
ção se dá de modo parcial, não totalizante. Mas não é só pela via da
percepção que essas realidades se aproximam. O mesmo acontece pela
via do pensamento.
Em seu minucioso estudo sobre o que ardilosamente chamou de
Psicopatologia da vida cotidiana (1901), Freud discute diferentes tipos
dc esquecimento, de troca de nomes ou palavras, de erros de tradução de
palavras estrangeiras, erros de leitura ou escrita, memórias infantis etc.

Todas as citações de Freud são extraídas da Standard Edition, a edição inglesa


de sua obra, traduzida por James Strachey. Optei por traduzi-las para o português
sem referência à edição brasileira. Portanto, a tradução é de total responsabili-
dade minha.
128 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

como exemplos privilegiados do atravessamento de um modo de pensar


(processo primário) sobre outro (processo secundário). A "verdadeira
realidade psíquica", primária, inconsciente, emerge numa outra realida-
de também psíquica, porém secundária — cujo modo de pensamento
obedece a determinada lógica espaço-temporal dotada de racionalidade,
supostamente mais próxima da realidade factual — e aponta um novo
sentido para o que foi falado ou escrito. Agora, é sob o prisma do
pensamento que as realidades se aproximam. O pensamento 'realista' é
atravessado pelo pensamento 'desejante'.
Quem aponta este fato? Um representante da realidade externa, fac-
tual? Um detentor da verdade sobre a verdadeira realidade psíquica ao
mesmo tempo interna e externa, logo, familiar e estranha? Sem dúvida,
é alguém que interpreta. E, nesse momento, o intérprete é Freud, o
inventor da psicanálise.
Supondo o desamparo e a confusão de seus seguidores, Freud dá em
alguns de seus trabalhos indicações sobre como lidar com a "verdadeira
realidade" revelada pela psicanálise em seu valor de verdade, apesar do
aspecto de ilusão que o leigo lhe confere.
Em "Luto c melancolia" (1917), ao comentar a enxurrada de auto-
acusações que faz o melancólico, recomenda:
"Seria igualmente infrutífero de um ponto de vista científico e terapêu-
tico contradizer um paciente que traz essas acusações contra o ego. Ele
certamente deve estar correto de algum modo ao descrever algo que é o
que lhe parece ser. De fato, devemos confirmar algumas de suas afirma-
ções sem reservas (...) Ele está dando uma descrição correta de sua situa-
ção psicológica. (...) apenas nos perguntamos por que um homem tem que
adoecer antes de ter acesso a uma verdade desse tipo." (p. 246-7).
Ainda em 1917, Freud profere suas Conferências introdutórias sobre
psicanálise na Universidade de Viena para uma audiência de médicos e
leigos. A repercussão de sua publicação é digna de nota.*
Recolho uma passagem da Conferência XXIII — "Os caminhos para
a formação dos sintomas" — em que reafirma sua posição.

James Strachey comenta em nota na apresentação das Conferências que sua


publicação teve a maior circulação de todos os trabalhos de Freud com exceção
de Psicopatologia da vida cotidiana. Enquanto Freud era vivo, foram feitas
traduções para as mais variadas línguas desde as mais freqüentes como francês,
italiano, espanhol, c português, até o japonês, árabe, chinês, passando pelo
holandês, russo, norueguês, sueco, tcheco, polonês, húngaro, servo-croata e
hebraico.
Por uma psicanálise possível. | 129

"Somos tentados a nos sentir ofendidos pelo fato de o paciente ter


tomado nosso tempo com histórias inventadas. A realidade nos parece
ser um mundo separado da invenção, e lhe atribuímos um valor bem
diferente. Além do mais, o paciente, também, vê as coisas sob este
prisma em seu pensamento normal. Quando ele traz o material que
conduz, por trás de seus sintomas, às situações desejantes moldadas
sobre suas experiências infantis, para começar, ficamos em dúvida se
estamos lidando com realidade ou fantasia. Depois, somos capazes, a
partir de certas indicações, de chegar a uma decisão e estamos diante da
tarefa de fazer o paciente saber disso. Isto, entretanto, invariavelmente
gera dificuldades. Se começamos lhe dizendo diretamente que ele agora
está envolvido em revelar as fantasias com as quais escondeu a história
de sua infância (assim como toda nação esconde sua pré-história esque-
cida construindo lendas), observamos que seu interesse em continuar o
assunto diminui de repente de modo indesejável. Ele também quer expe-
rimentar realidades e despreza ludo o que é meramente 'imaginário'. Se,
no entanto, o deixamos até que seu trabalho termine, acreditando que
estamos ocupados em investigar eventos reais de sua infância, corremos
o risco de ele mais tarde nos acusar de estarmos errados e rir de nós por
nossa aparente credulidade. Muito tempo se passará até que possa aceitar
nossa proposta de que devemos igualar fantasia e realidade, e não se
importe se as experiências da infância sob exame são uma ou outra. Esta
é claramente a única atitude a adotar em relação a essas produções
psíquicas. Elas também possuem uma realidade desse tipo. Permanece
um fato que o paciente criou essas fantasias para si, e esse fato tem pouco
menos importância para sua neurose do que se ele tivesse realmente
experimentado o que as fantasias contêm. As fantasias possuem realida-
de psíquica em contraste com a realidade material, e gradualmente
aprendemos a entender que no mundo da neurose é a realidade psíquica
que é decisiva!' (p. 368, grifado no original).
Esta longa passagem, ao resumir a confusão de realidades em jogo,
tanto para o analista quanto para o analisando, propõe com clareza
"igualar fantasia e realidade" como o único meio de levar adiante uma
análise. Para nosso propósito isso bastaria. Se, porventura, o leitor se
detém sobre o trecho final, permanece a questão: as fantasias se encon-
tram no âmbito da realidade psíquica "em contraste com a realidade
material" e fazem parte do "mundo da neurose". Logo, se queremos
acabar com a neurose, temos o dever de levar o analisando ao encontro
da realidade material como garantia de que nosso dever foi cumprido.
Voltamos à oposição problemática.
i 30 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Essa leitura, sem dúvida, foi feita por muitos sucessores de Freud
cuja ambição residia em definir esta outra realidade fora da neurose e,
mais radicalmente, da psicose. Da fantasmagoria kleiniana ao realismo
da psicologia do ego, o analista, por ser analisado, deveria saber bem a
diferença entre as realidades em jogo.
Nada disso é desprezível como possibilidade de nos guiar para, senão
uma solução, pelo menos uma indicação de por onde devemos ir para
trabalhar com a realidade que concerne à psicanálise.
Vejamos: se entendemos, com Freud, que o inconsciente é a verda-
deira realidade psíquica, inatingível em sua totalidade do mesmo modo
que a dita realidade externa, deduzimos que uma análise não abarcará
jamais o inconsciente. Nem lançará o sujeito à realidade material de
modo irreversível. O inconsciente não é patológico. O modo de lidar com
sua realidade é que pode ser patogênico. Tudo o que se pode fazer é
remanejar sua incidência a ponto de transformar seus efeitos que causam
sofrimento em algo manejável pelo próprio sujeito.
A solução, dita normal ou saudável, que Freud apresenta em seu texto
de 1925 "Perda da realidade na neurose e na psicose", em sua preocupa-
ção sobre o que fazer dessa realidade, combina certas características de
ambas as patologias: recusar a realidade parcialmente, como na neurose,
e alterá-la, como na psicose, mas na ação aloplástica por oposição à
autoplástica (p. 185). O neurótico perde a realidade no esquecimento,
não quer saber; e o psicótico se perde no que não pode ser esquecido,
sabe sem parar, mas sua reinvenção da realidade não parece ser partilhá-
vel.
Alterar a realidade pela ação é bem o modo pelo qual se faz cultura,
sociedade, política, relações de todo tipo.
Para Lacan, o problema se resolve em sua formulação dos três regis-
tros — imaginário, simbólico e real. A realidade psíquica, a realidade
propriamente dita, tem estrutura de ficção. O campo da realidade se dá
pelo contorno simbólico (registro dos significantes — campo do Outro)
do imaginário (campo do eu) recobrindo o real em sua dimensão de
ex-istência, de exterioridade, no duplo sentido apontado por Freud quan-
to ao id (campo do gozo) e ao 'mundo externo' (campo dos acontecimen-
tos).* Se o analista, por ser analisado, sabe um pouco mais sobre isso, é

Esta definição de realidade encompassando os três registros: imaginário, simbó-


lico e real, é bem ilustrada no conhecido 'esquema R' (R de realidade) apresen-
tado por Lacan em seu texto "D'une question préliminaire à tout traitement
possible de la psychose", (1955-6, p. 553). Este esquema situa a realidade como
Por uma psicanálise possível | 131

justamente por ter-se havido com o real podendo suportar sua ex-istên-
cia. Não há como saber tudo ou dizer tudo até o fim. A verdade é não
toda, ela toca o real.
Voltemos a Freud.
Em seus estudos sobre cultura — Totem e tabu (1912) — e religião
— Moisés e o monoteísmo (1939) —, Freud faz referência à realidade
psíquica da fantasia movida por desejos inconscientes como fonte primá-
ria da cultura, da verdade histórica que sustenta a tradição e da religião
monoteísta. Sua analogia entre o primitivo, a criança e o neurótico e,
mesmo, o psicótico — que deve ser entendida fora de qualquer conota-
ção evolucionista e psicologista ainda presentes em suas formulações —
nos fornece indicações clínicas preciosas.
Destaco especificamente dois aspectos: a relação do pensamento com
a ação e a relação do pensamento com a verdade.
O pensamento deve ser tomado no sentido da "verdadeira realidade
psíquica" que Freud atribui ao inconsciente como processo psíquico
primário que se desdobra no processo secundário. A distinção feita por
Freud entre representações de coisa e de palavra pode ser entendida
como diferentes modos de arranjo de um léxico com uma sintaxe. Neste
ponto, recorro à leitura de Lacan sobre o inconsciente freudiano que
abandona a noção de representação por relação ao referente e postula a
metáfora e a metonímia como as leis que regem esse arranjo, remetendo
um significante a outro por substituição e deslocamento. A distinção
entre primário e secundário adquire um outro estatuto. Quanto à repre-
sentação de coisa, que se dá tipicamente na psicose, o significante coisi-
ficado não remete a outro, estancando a possibilidade de significação,
ou, então, desliza sem cessar. Em ambos os casos, perde-se a dimensão
subjetivada da palavra. Quanto à representação de palavra, Lacan a resu-
me em sua fórmula: o significante representa o sujeito para outro signi-
ficante, na qualidade de seu representante, fazendo funcionar o discurso.-

Sobre a relação do pensamento com a ação

Ao final de Totem e tabu, Freud apresenta o neurótico como inibido em


sua ação, o pensamento substituindo a ação; e o primitivo, como desini-

equivalente à fantasia no registro do imaginário circundado pelas marcações


significantes do simbólico. Posteriormente, a partir da topologia que desenvolve
nos anos 60, Lacan vai conceber a fantasia referida aos três registros.
132 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

bido, a ação substituindo o pensamento. Sua conclusão lógica, para a


qual toma uma passagem do Fausto de Goethe, é a de que "no princípio
era a ação". No princípio da 'história da humanidade', assim como da
'história' do neurótico em sua infância, cria-se a realidade.
Deixemos o chamado primitivo de lado e tratemos do neurótico — e,
mesmo, do psicótico. Afinal, do que padecem senão de reminiscências*
compulsivamente fadadas à repetição que constituem, além de seus sin-
tomas ou fenômenos delirantes, seu próprio caráter, seu modo de vida,
sua hesitação ou rompante, numa ação marcada por um maior ou menor
fracasso?
Uma psicanálise deve ser transformadora no sentido inverso a este.
Caminhamos do pensamento à ação. Deveríamos retomar o caminho de
nossos ancestrais e aprender com eles a lição — assim como devemos
aprender com as crianças — de colocar a ação no lugar do pensamento?
E por que não? Basta não sermos ingênuos a ponto de considerar essa
via como a da regressão. Pois foi bem por esta que se caminhou para
desqualificar e, conseqüentemente, tentar dominar outras culturas e mes-
mo infantilizar, senão ridicularizar, esses seres complexos que são as
crianças. Entretanto, o sentido inverso que proponho não é o simétrico.
E antes como subversão, que esta inversão de sentido deve se dar.
Para substituir o pensamento pela ação é preciso recorrer a um outro
modo dc trabalho. Este não se aprisiona inteiramente à repetição, ainda
que dela derive, nem se reduz ao princípio de realidade como pensamen-
to lógico-dedutivo, padrão do adulto civilizado, realista etc.
Recorro ao que Freud considera o trabalho próprio à psicanálise:
Durcharbeiten ou Durcharbeitung, — em inglês, working-through; em
francês, perlaboration. A tradução brasileira estabeleceu o termo 'elabo-
ração' que talvez não traduza propriamente seu sentido crucial. Hoje se
adota uma tradução do francês, perlaboração. Prefiro uma tradução a
partir do inglês, por ser a mais próxima do termo original: trabalho-atra-
vés [da análise], ou, simplesmente, trabalho analítico.

Estamos acostumados à idéia de que só o neurótico sofre de reminiscências. No


entanto, há uma passagem curiosa ao final de "Construções em análise" que diz:
"Assim como nossa construção só é eficaz porque recupera um fragmento da
experiência perdida, o delírio deve seu poder de convencer ao elemento da
verdade histórica que insere no lugar da realidade rejeitada. Desse modo, uma
proposição que originalmente defendi apenas sobre a histeria também se aplica-
ria aos delírios — a saber, que aqueles que estão sujeitos a eles sofrem de suas
próprias reminiscências" (p. 268). Ver nota n° 23 adiante.
Por uma psicanálise possível | 133

Sobre o verbo Durcharbeiten, há uma curiosa definição no dicioná-


rio*: como verbo intransitivo quer dizer 'trabalhar sem fazer intervalo';
como verbo transitivo, 'passar revista', 'examinar', 'estudar'. O prefixo
durch refere-se a 'através', 'por meio de', 'de lado a lado' ou 'de um lado
a outro', como a travessia de um lugar ou, ainda, 'durante', como um
período de tempo.
A elaboração deve ser entendida nas duas acepções. Como verbo
intransitivo, adquire a característica de um trabalho incessante, e é assim
que Freud concebe o trabalho do inconsciente: sem parar, sem descanso
— o sonho bem o comprova. Paradoxalmente, elaborar é análogo a
repetir. Como verbo transitivo, adquire a característica de um exame,
estudo ou reflexão sobre algo, seja sobre as próprias produções do ana-
lisando ou as intervenções do analista. E ainda tem a indicação do
caminho e do tempo a ser percorrido: uma travessia no pensamento e na
ação 'de um lado a outro' e um tempo que 'dura' para o sujeito movi-
mentar-se, trabalhar até o fim.
Deste trabalho, entretanto, só temos indícios, tanto pelas palavras
quanto pelas ações do sujeito. É preciso um tempo para que ele seja
operativo. E mais, é o analista quem decide sobre a diferença entre
repelir e elaborar, retificando ou ratificando as palavras e/ou ações do
sujeito. Daí podemos entender a preocupação dos pós-freudianos sobre
a realidade que concerne ao analista indicar.

Sobre a relação do pensamento com a verdade


Se insistimos em opor a realidade psíquica à material ou factual, temos
duas verdades. Qual a mais verdadeira? Em Moisés e o monoteísmo,
Freud fala da verdade histórica como diferente da verdade material, mas
ao mesmo tempo se mostra cético quanto a atingirmos a segunda. A
verdade histórica diz respeito ao retorno do recalcado ou rejeitado como
a verdade em jogo que justifica a crença. O que é externo a tudo isso são
os fatos. A verdade material fica perdida no esquecimento, transformada
pelo desejo humano em ficção, lenda, ou delírio.
Reproduzo um trecho em que Freud aproxima o modo de produção
de verdade na análise do neurótico ao dos defensores do monoteísmo e
ao do psicótico, mesclando as produções patológicas às culturais e reli-
giosas:

Cf. Dicionário Alemão-Português de Leonardo Tochtrop e Herbert Caro, editora


Globo.
134 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

"Aprendemos a partir da psicanálise de indivíduos que suas primeiras


impressões, recebidas num tempo em que a criança mal era capaz de
falar, produzem num momento ou outro efeitos de caráter compulsivo
sem que sejam conscientemente lembradas. Acreditamos que temos o
direito de fazer a mesma afirmação sobre as primeiras experiências do
conjunto da humanidade. Um desses efeitos seria a emergência da idéia
de um único grande deus — uma idéia que deve ser reconhecida como
uma memória completamente justificada, embora, é verdade, tenha sido
distorcida. Uma idéia como essa tem um caráter compulsivo: tem-se que
acreditar. O ponto até o qual é distorcida, pode ser descrito como um
delírio; na medida em que traz um retorno do passado, deve ser chamada
de verdade. Delírios psiquiátricos, também, contêm um pequeno frag-
mento de verdade e a convicção do paciente se estende desta verdade até
seu invólucro delirante" (p. 129-30 grifos no original)
Deixo de lado a discussão da filogênese, e até onde ela determina a
ontogênese. exatamente porque não se trata de estabelecer a gênese da
verdade. Assim como fica à parte a polêmica oposição entre monoteísmo
e ateísmo como correlata da oposição entre infantil e adulto.* A crença
que me interessa refere-se ao valor que Freud atribui à verdade. Ela tem
um caráter compulsivo e é assim que se afirma até seu extremo no
delírio. A realidade psíquica, portanto, insiste na repetição como o que
retorna do recalcado, ou rejeitado,** para fazer valer sua verdade.

* Lacan faz uma observação instigante sobre a polêmica tese freudiana do mono-
teísmo como o retorno do recalcado articulado ao parricidio fundador — Totem
e tabu — que Freud retoma em Moisés e o monoteísmo. Em suas palavras: "... a
verdadeira fórmula do ateísmo não é 'Deus está morto' — mesmo fundando a
origem da função do pai em seu assassínio, Freud protege o pai — a verdadeira
fórmula do ateísmo é que 'Deus é inconsciente." — Cf. O Seminário, livro II
— Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 60.
** A aproximação entre neurose e psicose presente em Freud é hoje bastante polê-
mica depois da formulação estrutural de Lacan que recortou os termos Verdran-
gung, Verwerfimg e Verleugnung como os mecanismos fundamentais da neuro-
se, psicose e perversão, respectivamente. Freud, no entanto, alternava os dois
últimos termos ao referir-se à psicose. O termo 'rejeitado' corresponde ao Ver-
werfung que Lacan traduziu por forclusion. Em vários trechos de sua obra, dos
primeiros estudos sobre as neuropsicoses de defesa até um de seus últimos
trabalhos, "Construções em análise", de 1937, Freud aproxima certos mecanis-
mos ou fenômenos do funcionamento psíquico de cada uma das patologias. Opto
por manter essas aproximações para compreendê-las sob a rubrica de realidade
psíquica preservando suas diferenças até onde trazem conseqüências significad-
Por uma psicanálise possível | 135

O que se impõe na compulsão a repetir? Pela vertente do desejo, é a


busca do objeto perdido, busca de satisfação. Pela vertente da pulsão de
morte, é o cessar a busca, morte à libido, gozo final. Esse é o maior
conflito em questão. E o superego vem se instalar no cerne desse confli-
to. Instância crítica, imperativo categórico que impõe o gozo final para
fazer cessar o desejo, torturando o ego em sua insuficiência.
Voltemos à questão da verdade. O que Freud nos indicou na Confe-
rência XXIII, citada anteriormente, é que a verdade está no dizer do
analisando sobre si. É aí que fantasia e realidade se encontram.
Chegamos ao ponto de confluência em que pensamento e verdade
desaguam na palavra. Não temos qualquer acesso aos pensamentos se-
não pela palavra. Psicanálise não é telepatia, e pensar não é anterior, nem
uma entidade autônoma distinta da palavra. A palavra não representa o
pensamento. Se há pensamento inconsciente é porque testemunhamos e,
mesmo, identificamos na fala incidências de todo tipo que Freud deta-
lhadamente apresentou como lapsos em Psicopatologia da vida cotidia-
na. Aqui se explicita a regra fundamental da psicanálise para fazer traba-
lhar a realidade psíquica: diga o que lhe vier à cabeça.

Sobre a regra fundamental

A regra é fundamental para provocar uma certa liberdade de fala, que


ficou consagrada como associação livre, como método de acesso às
produções do inconsciente. Há dois reparos a fazer quanto ao uso do
termo 'associação livre'.
O primeiro é mais óbvio, pois na experiência clínica já enfrentamos
o problema: como o sujeito associa livremente se é capaz de esconder,
disfarçar, mentir, calar, sempre em nome de não revelar alguma coisa?
E, ainda, como ser livre se a própria barreira do recalque se encarrega de
aprisionar as palavras? Começamos nosso trabalho sob este paradoxo.
O segundo é mais sutil e depende do que se entende por associação.
Com freqüência, ouço de colegas ou supervisionandos a queixa de que

vas para o manejo do tratamento. É importante ressaltar que já existe uma


extensa produção da literatura psicanalítica sobre a especificidade da estrutura e
da clínica da psicose, inclusive de autores brasileiros. Remeto o leitor aos traba-
lhos de dois psicanalistas brasileiros, com formação em psiquiatria, que podem
ser úteis para uma primeira abordagem do tema: Teoria e clínica da psicose de
Antonio Quinet, c Psicose: Um estudo lacaniano de Neusa Santos Souza.
136 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

"o paciente não associa" ou "ele muda de assunto... não liga uma coisa
à outra... as idéias são fragmentadas". Parece que há uma confusão entre
os termos 'associar' e 'estabelecer nexos lógicos ou causais'. N a d a mais
contrário à regra fundamental. Ela se instaura mais para 'dissociar' a fala
que busca causas coerentes, bastante comum no pensamento do analisan-
do "que também quer experimentar realidades" como que dotadas de
uma racionalidade.
Daí surge outra confusão entre 'associar' e 'elaborar'. Se o discurso
adquire uma coerência no processo associativo podemos estar diante de
um trabalho de elaboração. Pode, ao contrário, ser indício do bom fun-
cionamento do recalque a favor de uma idealização do tratamento, ou da
cura, ou ainda das expectativas do analista. Essa idealização está presente
no início do estabelecimento da transferência. Pode ser também um
momento da elaboração em que o sujeito quer concluir alguma coisa
sobre si e sua condição. Não nos cabe impedir ou exigir que isto aconte-
ça. Mas somos chamados a discernir e, mesmo, a decidir sobre isso.
A elaboração é um processo, uma exigência de trabalho que o sujeito
se impõe 'através' da análise, da presença do analista que o faz trabalhar.
Mas isso não acontece necessariamente durante as sessões nem na se-
qüência de tempo esperada. Não ouvimos o que queremos. Só temos
acesso à elaboração de modo fragmentário e sempre incompleto. É im-
portante marcar que o modo de fala que provocamos é definido pelo que
Freud chama de Einfall.*' No dicionário**: idéia repentina; invasão;

* Na tradução inglesa, J. Strachey, na parte III do "Projeto para uma psicologia


científica", destaca em nota o aparecimento do termo Einfall no texto, que traduz
como 'intrusão', e observa que sua acepção corrente pode ser "uma idéia
que ocorre a alguém", lembrando que às vezes pode ser entendida como 'asso-
ciação', (p. 373). Na mesma nota, remete a uma outra que escreve na Conferên-
cia III — "Parapraxias", das Conferências introdutórias de 1916-17, que repro-
duzo em parte: Strachey, ao comentar a incidência freqüente do termo nesta
conferência, admite que não há um equivalente satisfatório em inglês para Ein-
fall. Ele próprio discorda do emprego de 'associação', uma vez que é "ambíguo
e questionável (...) se uma pessoa está pensando em algo e dizemos que ela tem
um Einfall, tudo o que implica é que algo mais ocorreu em sua mente. Mas se
dizemos que ela tem uma 'associação', parece implicar que esse algo mais que
lhe ocorreu está, de algum modo, conectado ao que estava sendo pensado antes"
(p. 47-8).
** Cf. Dicionário Alemão-Português de Leonardo Tochtrop e Herbert Caro, editora
Globo. Um fato curioso é que na 1° edição de 1943, o significado de "idéia
repentina" é o primeiro indicado. Já na edição de 1989, ele aparece por último.
Por uma psicanálise possível I 137

queda. Isto é, palavras, frases, fragmentos de situações ou cenas, sonhos


ou lembranças, que invadem repentinamente o discurso caindo sobre a
coerência anterior. O sentido que se dá a isso depende do analista. Aí está
uma primeira parte de seu trabalho: uma marcação do inconsciente.
Não se deve esperar, portanto, que o inconsciente aflore. E o analista
que o designa como tal. E com que finalidade? Certamente não de inibir
ou envergonhar o sujeito por seu 'erro' ou 'incoerência'. Essa designação
é uma tarefa delicada, que pode resultar no aumento da resistência ao
trabalho analítico.
Se entendemos que ao analista cabe constituir uma fala associativa
para deixar o caminho mais livre para a idéia repentina, a contrapartida é
seu silêncio que constitui a escuta. Algo a ser conquistado na conversa, na
interlocução, e que não deve soar como a voz inibidora do superego. Mas
silêncio não é mutismo, é uma forma peculiar de omissão que não exime
o analista da responsabilidade de falar e calar como modos de sua ação.

Em suma, o conceito de realidade psíquica subsume as principais


indicações metapsicológicas de Freud. No campo do sujeito temos os
processos primário e secundário onde o primeiro tem primazia sobre o
segundo na tópica do inconsciente. O desejo é a mola mestra do tecido
da fantasia inconsciente e se constitui a partir de um hiato entre o que o
sujeito quer e o que é levado a buscar na trilha de significantes que
constituem sua fala. A compulsão à repetição, que faz falar a verdade,
articula o campo pulsional desde a fixação da libido até a insistência da
pulsão de morte como limite da palavra e do desejo.
No campo propriamente analítico, temos a resistência em suas dife-
rentes modalidades que, em última instância, se articula à repetição. E,
como solução, há a elaboração que deve levar o sujeito a uma nova ação
sobre a realidade.
Nesse imbricamento de conceitos, desenvolvi os que caracterizam a
realidade psíquica em relação ao trabalho analítico, e retomo alguns, em
particular a repetição, na exposição sobre transferência. Vamos adiante.

1.2 Sobre a transferência

Na transferência, começo pelo amor. Da paixão de Anna O. — que fez


Breuer recuar —, ao desprezo ressentido de Dora — que fez Freud
avançar —, o fenômeno do amor de transferência é "um dos fundamen-
tos da teoria psicanalítica". É Freud quem o diz em seu texto-chave
138 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

"Observações sobre o amor de transferência" (1915, p. 160). Este foi seu


último texto da série que ficou conhecida como 'textos sobre a técnica',
e, como revelou em carta a Abraham, foi "o melhor e mais útil de toda a
série", e acrescenta que estava "preparado para vê-lo provocar a mais
forte reprovação" (Gay, 1988, p. 301, tradução minha). Portanto, deve
ser lido com atenção.
Logo no começo, Freud previne os iniciantes na psicanálise, muito
preocupados com suas dificuldades em interpretar as associações dos
pacientes — sem saber o que, quando, e como dizer —, que essas
dificuldades logo se tornarão irrisórias diante do problema maior que
está por vir: o manejo da transferência. Entre as várias situações que
surgem, Freud escolhe uma, bem definida: a paciente que se apaixona
pelo médico. Escolhe o que diz respeito à sua própria dificuldade, mas
também dirige-se aos analistas homens numa época em que praticamente
não havia analistas mulheres. Para o leigo, "as coisas que dizem respeito
ao amor são incomensuráveis em relação a qualquer outra coisa" (1915,
p. 160). Para o psicanalista, o que deve mudar é sua atitude diante do
amor que irrompe como realidade no 'faz-de-conta da cena analítica',
como se um grito de 'fogo!' irrompesse durante uma representação
teatral (p. 162). A obediência dócil às solicitações do analista dá lugar a
uma revolta obstinada, a um apelo incessante, tudo o mais não importa.
E a ação ruidosa da resistência, presente até no próprio silêncio. Assus-
tador! Freud não poupa o iniciante assustado, ou o médico experiente e
vaidoso. O amor de transferência é provocado pela própria situação
analítica. Esta seria, em última instância, a única diferença entre o amor
patológico e o amor 'na vida real'. O paradigma do amor de uma mulher
por seu analista se desloca, ao longo do texto, para o amor como para-
digma. Toda situação amorosa, todo enamoramento, teria um quê de
patológico, um pathos que toma o sujeito e rompe o equilíbrio com seu
excesso, fazendo-o padecer. "Esse afastamento da norma constitui preci-
samente o que é essencial ao estado amoroso. (...) O desejo do paciente
não faz diferença; apenas lança toda a responsabilidade sobre o próprio
analista" (p. 169). O que fazer?
Freud descreve as soluções correntes desde as mais enganosas, plenas
de ambigüidades e subterfúgios, até as mais austeras que condenam esses
sentimentos inadequados, e vaticina: "O caminho que o analista deve
seguir não é nenhum desses; é um para o qual não existe modelo na vida
real" (p. 166). Então, a responsabilidade recai não sobre a pessoa do
analista, mas sobre sua própria função. O que fez o analista para provocar
Por uma psicanálise possível | 139

esse 'incêndio"? Sua tarefa era simplesmente enunciar a regra fundamen-


tal para fazer trabalhar a realidade psíquica através da fala. Isso já basta.
Numa análise, fazer falar é provocar e evocar os traços ou marcas da vida
amorosa, das relações de objeto; é evocar o objeto perdido, busca inces-
sante, motor do desejo. A fala é carregada de afeto, atravessa o tempo,
cria lembranças e lança ao futuro um suposto passado. Assim é a reali-
dade psíquica. Como pode o analista evocar um espírito das profundezas
com sua magia e mandá-lo embora sem fazer-lhe sequer uma só pergun-
ta? Para o jovem analista com pouca experiência amorosa, ou que não
estabeleceu ligações duradouras, essa é uma árdua tarefa. O amor de
transferência pode adquirir uma tal intensidade a ponto de colocar o
analista "in a cleft stick" (1915, p. 167). Esta é a expressão usada por J.
Strachey na tradução inglesa, que pode ser entendida como um dilema
inextricável. Ao pé da letra, temos 'uma vara cindida'. O analista se vê,
então, cindido pelas intensas demandas amorosas do neurótico, que exi-
ge ser ressarcido de uma perda irreparável, ou, mesmo, pela erotomania
do psicótico, ainda mais assustadora e inamovível. Se responde a partir
dessa cisão, está em plena contra-transferência. Esse é o receio de Freud.
Com Lacan, podemos dizer que a contra-transferência nada mais é do
que a emergência do sujeito dividido no lugar do analista. Metáfora que
faz sintoma.
Qual o amor possível como resposta do analista, se não existe modelo
na vida real? Freud dá uma pista: "(...) o tratamento psicanalítico é
fundado na verdade. Sobre esse fato incide uma grande parte de seu
efeito educativo e de seu valor ético. É perigoso afastar-se desse funda-
mento. Qualquer um que esteja saturado da técnica analítica não mais
será capaz de recorrer a mentiras ou fingimentos que um médico normal-
mente considera inevitáveis" (p. 164).
A solução é ética. O amor possível para o analista pode ser o amor à
verdade. Esta se encontra no cerne da psicanálise, é seu próprio funda-
mento. Qual é a verdade em jogo numa análise? Ela se apresenta desde
o início na regra fundamental como o pedido do analista: diga o que lhe
vier à cabeça, não oculte nada, mesmo que não pareça importante. Sabe-
mos que o sujeito pode mentir, ocultar, desviar o rumo das associações,
fazer de tudo para não se revelar. Como saber da verdade?

Retomando a discussão anterior sobre realidade psíquica, desta vez


recorro ao texto de Philippe Julien (1996), em sua referência a Freud e
140 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Lacan, que resume bem a concepção de verdade que nos diz respeito. A
questão que se põe é: "Se a verdade fala, será que fala para dizer a
verdade?" (p. 14). O analista tem que escolher entre dois valores de
verdade:
"Ou a verdade é, segundo a fórmula clássica, adaequatio intellectus
et rei, a adequação entre pensamento e objeto: assim, diz-se que uma
proposição é verdadeira ou falsa em função dessa conformidade ou não
com o referente, pois o que está em jogo é a aquisição de um saber
referencial;
"Ou a verdade é, segundo a 'Coisa freudiana', o dizer de uma fala
que apela para a confiança do Outro, para se fazer reconhecer em seu
valor de evento: 'Sim, você o disse!' Assim, o locutor recebe sob uma
forma invertida sua própria mensagem, doravante no futuro do presente
composto: 'Eu o terei dito.' O que está em jogo não é um saber referen-
cial, mas um saber textual. (...) Mas sob uma condição absoluta: que o
Outro acredite" (pp. 14-15).
Acreditar no sujeito, portanto, é acreditar no seu dizer produzindo o
dito, verdadeiro ou não, ao qual se adere como evento de uma "enuncia-
ção auto-referencial segundo a qual um 'eu' convoca um 'ele' para
ouvi-lo". Ou seja, o contexto da verificação é o próprio texto como
produção (dizer) e produto (dito) do sujeito.
Esse amor à verdade como saber textual é condição necessária mas
não suficiente para dissipar os efeitos desconcertantes da resistência em
sua versão de amor-ódio — hatnamoration, como diz Lacan.
Da parte do analista, o que pesa é seu percurso na própria análise, na
vida e, provavelmente como decorrência desses dois fatores, seu savoir-
faire, seus recursos imediatos para lidar com o que emerge a cada sessão.
Nem furor sanandi, nem remédios inofensivos. Deve-se praticar uma
"psicanálise não diluída, sem medo de manejaros mais perigosos impul-
sos psíquicos e obter domínio sobre eles para benefício dos paciente."
(Freud, 1915, p. 171).
Da parte do sujeito, o que pesa é, como Freud mostra no texto, a
fixação da libido que insiste sob o modo da repetição. A resistência
sozinha não produz esse amor, apenas o instrumenta e o intensifica a seu
serviço, escondendo e exibindo a fantasia, com seu gozo, na solução de
compromisso que é o sintoma. A origem desse amor é atribuída à repe-
tição como reedição de protótipos do amor infantil — Freud, em 1915,
ainda não tem o recurso à repetição como uma compulsão para além do
princípio do prazer.
Por uma psicanálise possível I 141

Sobre a resistência, em seu texto "Inibição, sintoma e angústia"


(1926), Freud escreve um adendo que revê e modifica suas formulações
sobre os tipos e procedências da resistência que se mantinham em torno
do ego até o início dos anos vinte. Agora, o analista deve combater nada
mais nada menos do que cinco tipos de resistência provenientes das três
instâncias: ego, id e superego.
Do ego são três tipos: a resistência do recalque — que é inconsciente
mas pode tornar-se consciente — é a mais conhecida; a resistência de
transferência que reanima o recalque, onde podemos situar a intensifica-
ção do amor de transferência; e o ganho da doença, com base na assimi-
lação do sintoma pelo ego, que se manifesta numa recusa a renunciar à
satisfação obtida no sintoma.*
O quarto tipo provém do id, e Freud o nomeia como resistência do
inconsciente, que se manifesta na compulsão à repetição, "que pede
elaboração".
O quinto tipo, mais recente, é mais obscuro e não deve ser subesti-
mado. É a resistência que provém do superego e se manifesta como um
forte sentimento de culpa ou necessidade de punição impedindo qual-
quer avanço na análise (1926, pp. 159-60).
Uma batalha com cinco frentes faria recuar qualquer general! No
entanto, combateremos à sombra. Nossa missão não é atacar de frente,
nem de uma só vez. Devemos contar com as próprias forças do sujeito.
Interessante notar que, nessa nova formulação, a resistência perpassa
todas as instâncias que constituem a realidade psíquica, e não apenas o
ego como se costumou pensar com Freud até os anos 20 e se estendeu à
leitura dos pós-freudianos. A compulsão à repetição resiste bravamente
como garantia da verdade do sujeito em oposição ao ego. Além disso, há
a ação culpabilizante do superego sobre o ego, em sua exigência sádica,
até o limite da "pura cultura da pulsâo de morte" na melancolia (1923,
p.53).
Em "Recordar, repetir e elaborar" (1914), Freud afirma: "Antes de
tudo, o paciente começará seu tratamento com uma repetição" (p. 150).
E o que condiciona a repetição?
"O que nos interessa mais que tudo é naturalmente a relação dessa
compulsão para repetir com a transferência e a resistência. Logo perce-

Se o sintoma não é assimilado pelo ego, temos o que Freud aponta, ao longo de
sua teorização sobre os diferentes sistemas, como o que é prazer para um sistema
passa a ser desprazer para outro. Esta é uma das maneiras de designar o conflito,
a divisão do sujeito, como diz Lacan.
142 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

bemos que a transferência é em si apenas uma repetição, e que a repeti-


ção é uma transferência do passado esquecido não apenas para o médico
mas também para todos os demais aspectos da situação presente" (1914,
p. 151).
Desse trecho apreendemos que transferência e repetição não são
idênticas, e que a repetição se 'transfere' — podemos entender o termo
em sua acepção de deslocamento — para outras situações que não a
analítica. Então, qual o seu estatuto e função na realidade psíquica atua-
lizada na transferência?
Em "Para além do princípio do prazer" (1920), Freud postula que "O
inconsciente — isto é, o 'recalcado' — não oferece qualquer resistência
aos esforços do tratamento. De fato, ele próprio não faz outra coisa senão
tentar superar a pressão que pesa sobre ele e forçar passagem seja para a
consciência ou para a descarga através de uma ação real" (p. 19).
Três anos mais tarde, em O ego e o id (1923), Freud vai numa direção
um pouco diferente: "O id (...) não tem meios de mostrar ao ego seja
amor ou ódio. Não pode dizer o que quer; não atingiu qualquer vontade
unificada. Eros e a pulsão de morte lutam em seu interior. (...) Seria
possível retratar o id como sob a dominação das pulsões de morte mudas
mas poderosas, que desejam estar em paz e (impulsionadas pelo princí-
pio do prazer) pôr Eros, esse encrenqueiro, para descansar; mas isto
talvez possa ser subestimar o papel de Eros" (p. 59).
No jogo pulsional, há uma parte que 'pede passagem' e outra que
'quer ficar onde está, em paz'. A repetição parece adquirir aí um duplo
movimento. Isto é, pedir passagem para fazer cessar a busca. Nesse
sentido, há uma resistência que se solidifica no embate pulsional. Perma-
nece a questão: o que se repete, afinal?
Nesse ponto, recorro a Lacan para situar a repetição como diferente
da reprodução de padrões de comportamento, que ele compara à repro-
dução de uma obra de arte cujo valor é irrisório comparado ao do
original. Repetição não é reprodução barata do original. O trabalho
analítico não deve se pautar na idéia de que repetir seja reproduzir ou
copiar algo a ser encontrado na origem. Por outro lado, a repetição não
é mera encenação cujo palco se restringe ao setting analítico encetando
u m a disputa auto-referente entre analista e analisando. A repetição deve
ser entendida como um movimento que, ao fixar uma identidade, é
também diferencial como intrínseco ao funcionamento da linguagem ou,
como Lacan postula, às leis do significante. A repetição porta a diferen-
ça. Além disso, seu ponto de ancoragem não é localizável nem na figura
do analista nem no passado remoto, está irremediavelmente perdido.
Por uma psicanálise possível | 143

A repetição entre o real e o simbólico: tique e autômaton

No Seminário 11 — realizado em 1964 e publicado cerca de dez anos


mais tarde — Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan
desenvolve sua concepção de repetição, apropriando-se de maneira pe-
culiar de dois modos de causação postulados por Aristóteles: tique e
autômaton.
O primeiro (tique) é uma dimensão da repetição no registro do real e
pode corresponder ao que Freud chama de núcleo patogênico, como o
que é traumático para o sujeito. Real e trauma se equivalem marcando o
sujeito nesse encontro desencontrado; encontro faltoso com o real.
Segundo Freud, "há uma classe especial de experiências da maior
importância para as quais nenhuma memória pode, como regra, ser
recuperada. Essas são experiências que ocorreram numa infância remota
e não foram compreendidas na época mas que foram compreendidas e
interpretadas subseqüentemente. Tomamos conhecimento delas atra-
vés dos sonhos e somos obrigados a acreditar nelas a partir da força
das evidências dadas pelo tecido da neurose". (1914, p. 149 grifo no
original).
Esse trecho condensa as duas dimensões da repetição recortadas por
Lacan. Convém observar que a atualização da teoria do trauma deve ser
entendida à parte da idéia de que só o que é infantil pode ser traumático.
Isto é, o que localiza o trauma é um tempo subseqüente uma vez que o
tempo anterior não é localizável, está perdido no inefável da experiência,
seja num passado remoto ou não. O que insiste como exigência de
elaboração fazendo funcionar a cadeia de significantes é o autômaton, a
dimensão da repetição no registro do simbólico. Entre real e simbólico,
entre o desencontro e a insistência, o sujeito trabalha na análise.
Tomo dois exemplos paradigmáticos apresentados por Freud em di-
ferentes momentos de sua obra que nos dão indicações importantes sobre
a repetição e que Lacan retoma reinterpretando-as de um modo um
pouco diferente.
O primeiro é o exemplo do pai que vela seu filho morto à luz de uma
vela que incendeia a cortina do cômodo onde está seu caixão. O pai
adormece no cômodo ao lado e sonha a famosa cena descrita por Freud
no capítulo VII da Interpretação dos sonhos, que termina com a frase:
"Pai, não vês que estou queimando?"
Há muitas interpretações possíveis para esta cena. Tudo o que Freud
nos diz sobre como obteve o relato deste sonho é que foi através de uma
144 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

paciente sua que assistiu a uma palestra sobre sonhos onde este foi
relatado. Ela própria passa a "'re-sonhá-lo', isto é, a repetir alguns de
seus elementos em seu sonho" (1900, p. 509). Reduplicação do trauma?
O segundo exemplo é a famosa cena do fort-da em "Além do princí-
pio do prazer" (1920), que Freud presencia ao observar seu neto brincar
com um carretel fazendo-o desaparecer e reaparecer. A partir da expe-
riência traumática do desaparecimento do objeto libidinal — no caso, as
saídas da mãe — o menino encena em seu jogo o movimento de 'ir-e-vir'
numa tentativa de domínio sobre o objeto a serviço do princípio do
prazer através dessa manipulação. Este exemplo ilustra a repetição atra-
vés do incessante vaivém do objeto.
Vejamos como Lacan trata esses exemplos:
Tique refere-se ao encontro sempre faltoso com o real. Que falta o
pai teria cometido para ser repreendido em sonho por seu filho morto?
Para Lacan, a falta que concerne ao real não é da ordem de um julgamen-
to moral. E, antes, como uma impossibilidade que ela opera. Não foi
possível salvar a vida de um filho que teria ardido em febre até a morte.
Não foi possível reverter esse destino. Assim como, no segundo exem-
plo, não é possível ao menino um acesso não tanto à presença da mãe,
mas a seu desejo enigmático. Para onde vai seu desejo quando ela desa-
parece? Eis o ponto traumático.
Autômaton é o que resiste porque insiste na cadeia de significantes.
No primeiro caso, é a insistência do sonho que reduplica a cena do
incêndio e constrói a frase como um apelo reprovador do filho pela falta
do pai. No segundo caso, é o jogo de oposições significantes — fort (vai)
e dá (aí) — que sustenta o movimento. Eis o ponto em que a cena se
inscreve no simbólico.
Sobre a dimensão simbólica da repetição, Lacan diz:
"Se o sujeito é o sujeito do significante — determinado por ele —,
podemos imaginar a rede sincrônica de tal modo que ela dê, na diacronia,
efeitos preferenciais. Entendam bem que não se trata aí de efeitos esta-
tísticos imprevisíveis, mas é a própria estrutura da rede que implica os
retornos. E esta a figura que toma para nós, através da elucidação do que
chamamos estratégias, o autômaton de Aristóteles. E também é por
automatismo que traduzimos o Zwang de Wiederholungszwang, compul-
são de repetição" (1973, p. 65).
E, ainda, "A sintaxe, seguramente, é pré-consciente. Mas o que esca-
pa ao sujeito, é que sua sintaxe está em relação com a reserva incons-
ciente (...) — a ser entendida no sentido de reserva de índios, no interior
Por uma psicanálise possível I 145

da rede social. (...) Quando o sujeito conta sua história, age, latente, o
que comanda essa sintaxe, e a faz cada vez mais cerrada. Cerrada em
relação a quê? — ao que Freud, desde o começo de sua descrição de
resistência psíquica, chama um núcleo.
Dizer que esse núcleo se refere a algo de traumático é apenas uma
aproximação. Precisamos distinguir, da resistência do sujeito, essa pri-
meira resistência do discurso, quando este procede ao cerramento em
torno do núcleo. Pois a expressão de resistência do sujeito não faz mais
do que implicar demasiado um eu [moi] suposto, do qual ele não está
certo — ao se aproximar desse núcleo — que seja algo que pudéssemos
estar seguros de que a qualificação de eu [moi] ainda tenha fundamento"
(p. 66).
Se fazemos uma superposição de Freud com Lacan, temos algo do id,
"a resistência do inconsciente" traduzida como compulsão à repetição,
que insiste, na dimensão traumática do mau encontro com o real (tique),
e se articula à sintaxe que faz funcionar a rede de significantes (autôma-
ton) "pedindo elaboração".
No caso do sonho do pai, Lacan aponta algo que Freud não vislum-
brava em 1900: o sonho atesta que há algo que não é da ordem da
realização de desejo que se repete, mas algo 'anterior' ao princípio do
prazer, que seria da ordem do trauma. Este sonho fundamentalmente não
realiza um desejo, não causa prazer.
No caso do menino do carretel, tanto Lacan quanto Freud, apontam
que o que é traumático para o menino do carretel é, no entanto, elaborado
na ação causando prazer. Coisa de criança? Prefiro achar que também
pode ser coisa do processo analítico.
A repetição, por sua dupla via do mau encontro com o real, que
retorna sempre no mesmo lugar, e do significante, sob o modo de relatos
de cenas ou episódios, relatos de sonhos, incidências de falas numa
sintaxe que não se reduz ao eu, "pede elaboração". Esta pode se dar tanto
pela palavra quanto pela ação. Devemos abolir quaisquer resquícios da
concepção evolucionista e desenvolvimentista — de certo modo presente
em Freud e enfatizada pelos pós-freudianos — que supõe que a ação na
repetição é infantil, pré-verbal, ou regredida. A ação na elaboração,
inevitavelmente, guarda uma dependência, senão uma familiaridade com
a repetição. E através desta que aquela se dá. A incidência do analista
desencadeia e dá suporte à elaboração sustentada na transferência. Cito
Lacan:
"(...) não se trata em Freud de nenhuma repetição que se assente no
natural, de nenhum retomo da necessidade. O retorno da necessidade
146 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

visa o consumo posto a serviço do apetite. A repetição demanda o novo.


Ela se volta para o lúdico que faz desse novo sua dimensão" (1973,
pp. 59-60). Este é o jogo da psicanálise.

Quanto à rememoração, que Freud situa entre a repetição pela ação c


a elaboração pela palavra, sua posição em 1914 é a de que há as chama-
das memórias encobridoras que vêm no lugar da amnésia infantil, e há
outros processos psíquicos, como fantasias, impulsos emocionais, cone-
xões de pensamentos, e t c , que "em sua relação com o esquecimento e a
lembrança devem ser considerados separadamente" (pp. 148-9). Qual a
diferença?
No primeiro caso, "não apenas algo mas tudo o que é essencial da
infância foi retido nessas memórias [encobridoras]. E simplesmente uma
questão de saber como extrair isto [o essencial] delas pela análise. Elas
representam os anos esquecidos da infância tão adequadamente quanto
o conteúdo manifesto de um sonho representa os pensamentos oníricos."
No segundo caso, "acontece particularmente com freqüência que
algo é 'lembrado', que nunca poderia ter sido 'esquecido', porque não
foi jamais observado naquele momento — não foi jamais consciente.
Considerando o curso tomado pelos eventos psíquicos, parece não fazer
qualquer diferença se uma 'conexão de pensamento' foi consciente e
então esquecida ou se jamais pôde tornar-se consciente. A convicção que
o paciente obtém no curso da análise é bem independente desse tipo de
memória" (p. 149).
O que temos aqui? Se as memórias encobridoras representam — são
representantes de, como numa representação diplomática — a infância
esquecida do mesmo modo que os sonhos representam os pensamentos
oníricos, só temos acesso aos representantes em sua missão de compare-
cer com tantas palavras no lugar do que jamais aparecerá. Logo, não
temos como saber o que representa o que. E se, em relação aos demais
processos psíquicos, a convicção do paciente independe da memória, não
nos resta outra coisa senão apostar nos efeitos das palavras e atos no
curso do trabalho analítico. Podemos simplificar a questão afirmando
que não há metalinguagem ou, de acordo com Lacan, não há Outro do
Outro. Isto é, nossa função não é traduzir o que é dito pelo que não foi
dito. O dito vale pelo não-dito, e fazer falar é relançar um dito ao outro
localizando o sujeito na dimensão do dizer. Retomo este ponto ao tratar
da interpretação.
Por uma psicanálise possível I 147

Ainda resta um problema. Se vimos inicialmente que na transferência


emerge sua face mais aguda e desafiante — que é a resistência na forma
do amor erótico — que, por sua vez, se origina da compulsão à repetição
que também visa a restaurar 'a paz' e fazer cessar qualquer apelo à
elaboração, ou a outras formas de satisfação impostas por Eros (o en-
crenqueiro), como manejar a transferência a favor do trabalho analítico?

A transferência analítica: o 'sujeito suposto saber'

Em "A dinâmica da transferência" (1912), para solucionar o problema,


Freud se detém na proposta insuficiente de uma transferência terna —
menos intensidade das pulsões eróticas — fazendo prevalecer o fator
quantitativo sobre o qualitativo. Mas lança uma idéia intrigante sobre o
modo como o analista é chamado à transferência: "O investimento libi-
dinal introduzirá o médico em uma das 'séries' psíquicas que o paciente
já formou" (p. 100). É como objeto, ou traço do objeto, que o analista
entra na outra cena.
Tomando os três registros postulados por Lacan: pela via do imagi-
nário, é a imagem ou traço do objeto; pela via do simbólico, os signifi-
cantes que designam o objeto, o que retoma a primeira idéia de Freud da
transferência como deslocamento de uma representação para outra
(1900, p. 562); pela via do real, é a dimensão da falta, do não compare-
cimento do objeto, que remete ao objeto perdido.
Essa inclusão nas "séries psíquicas" se inscreve na economia libidinal
do sujeito estando, portanto, submetida às intempéries do amor-ódio de
transferência. Voltamos ao problema.
Lacan nos brinda com sua pièce de résistance — que vai contra a
resistência tanto do analista quanto do analisando — que é o conceito de
'sujeito suposto saber',* para dar um rumo analítico à transferência.
Erigir o analista como 'sujeito suposto saber' pode ser o amor possível
para o analisando como contrapartida ao amor à verdade para o analista.
O amor à verdade põe o analista em posição de confiar no inconscien-
te, no processo primário, que sempre vai associar, não querendo dizer

* O conceito de 'sujeito suposto saber' aparece de modo disperso nos trabalhos de


Lacan. Dada a dificuldade em localizar as referências em textos inéditos ou de
difícil acesso, remeto o leitor ao texto principal. "Proposição de 9 de outubro de
1967 sobre o psicanalista da escola" em que Lacan postula a função do analista
na transferência que indica como o 'sujeito suposto saber'.
148 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

nada, mas sempre querendo dizer alguma coisa que promete significa-
ção. Cabe ao analista apontá-la para, paradoxalmente, esvaziar a possi-
bilidade de uma significação última, definitiva, vitória da razão sobre a
emoção. Psicanálise não é intelectualização, mas também não é processo
emocional.
O amor ao 'sujeito suposto saber' põe o analisando em posição de
confiar ao analista sua fala onde, imprevisíveis, aparecem seus segredos
(elementos da fantasia), seu padecer (um modo de gozo que não dá
prazer), sua esperança em mudar (ideal do eu) e se livrar 'disso' (pedido
de amor). Ao supor um saber ao analista, o analisando acredita, mas
também duvida, que ele realmente saiba. Portanto, essa suposição não se
esgota na figura do analista, mas tem em sua presença uma possibilidade,
ao mesmo tempo que um limite, de fazer o sujeito vir a saber de sua
condição como parte de seu trabalho. Ao falar, se vê e, principalmente,
se escuta num lugar que lhe é estranho e familiar. "Eu disse isso?
(...) Não é isso (...) Eu quero dizer isso (...)" e por aí vai. E também age
dentro e fora da sessão de modo inusitado, estranho e familiar, efeito da
repetição.
O saber que se produz d'isso, não vem só da boca do analista. Essa
outra dimensão da suposição que provoca a fala atesta a existência do
inconsciente, não como ôntico mas como produção, e reconduz o analis-
ta ao lugar de desencadeador mais do que sabedor da verdade. O mestre
sabe, o analista, por ser suposto, não sabe. O 'sujeito suposto saber' não
está nem no analista nem no analisando, é uma produção do dispositivo.
Na psicose a coisa é diferente. O psicótico padece da certeza mais do
que da dúvida, logo não está, pelo menos num primeiro momento, incli-
nado a supor. O analista, ou sabe tudo, lê seus pensamentos, ou não sabe
nada. Fazer vacilar a certeza em direção a uma suposição possível é o
ponto sobre o qual o analista deve trabalhar na análise do psicótico.
Na neurose, se o sujeito, com suas cinco frentes de resistência, supor-
tar esse jogo como sua chance de ir adiante, então está instalada a
transferência como condição da análise.
Contudo, sabemos que isso não impede a manifestação de outras
formas de amor-ódio mais ou menos resistentes ao trabalho analítico. O
amor ao 'sujeito suposto saber' é uma nova via que deve absorver as vias
vicinais, que podem se concretizar enquanto resistência bloqueando a v i a
principal até o limite do que Freud chamou de reação terapêutica nega-
tiva. Na psicose, o sujeito padece da ausência da via principal, perden-
Por uma psicanálise possível | 149

do-se nas vias vicinais.* Eis a importância do manejo que cabe ao


analista, caso contrário, a resistência só pode ser sua. "Cara, eu ganho,
coroa, você perde."

1.3 Sobre interpretação, temporalidade e cura

"Cara, eu ganho, coroa, você perde." Voltamos à frase — proferida por


um certo "cientista bem conhecido" simpatizante da psicanálise — que
chega aos ouvidos de Freud como um protesto em nome do "pobre
infeliz desamparado", que é o analisando submetido às interpretações do
infalível analista (1937b, p. 257). Protesto injusto ou saturação da técni-
ca interpretativa?
Freud responde com a "construção" como "tarefa preliminar" do
analista para preencher as lacunas na história do sujeito provocadas pelo
recalque, e a distingue da interpretação por ser esta mais parcial, incidin-
do apenas sobre determinada associação ou lapso. A construção seria,
assim, um trabalho ao longo do tratamento à medida em que o analista
dispõe de material suficiente — fragmentos de memórias, sonhos,
associações, repetição do recalcado em atos etc. Sua tarefa se assemelha
à do arqueólogo para reconstruir ou reconstituir o sítio escavado onde se
apresenta a "matéria-prima" fornecida pelo analisando.
Convenhamos que é preciso um minucioso trabalho do analista para
executar essa reconstrução. Mas, quem elabora não é o analisando? Ou
esse "pobre infeliz" não tem mais nada a fazer senão entregar-se, com
sua fala desconexa e confusa, ao trabalho do analista? Este sim, com suas
idéias claras e distintas, deverá saber o que fazer disso.
Freud não é ingênuo. Todo o seu esforço no decorrer do texto é para
mostrar que uma construção não é facilmente validada seja pelo 'sim' ou
seja pelo 'não' do analisando. O 'sim' pode significar um 'não' dissimu-
lado a favor da resistência — engana-se um analista — e o 'não' pode
significar apenas que a construção está "incompleta". O "pobre infeliz"
tem seu poder assegurado contra ou a favor do saber produzido pelo
analista, e só o tempo dirá quem está certo a partir de novas associações
e repetições do analisando.

Lacan, em seu Seminário, livro 111 — As psicoses, dedica boa parte da lição
XXIII — "A estrada principal e o significante 'ser pai'" — a essa metáfora da
estrada principal como sendo a organização fálica dada pela função paterna que
está ausente na psicose.
150 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Ao final do texto, Freud chega a comparar as construções do analista


aos delírios do psicótico. A única diferença estaria no fato de que o
segundo, em sua tentativa de explicação e cura, realiza um duplo des-
mentido (em inglês, disavowal): o primeiro no passado remoto, e o
segundo no presente. O analista realizaria apenas o segundo?
Freud é quem diz: "Freqüentemente, não somos bem sucedidos em
fazer o paciente lembrar o que foi recalcado. Em vez disso, se a análise
é conduzida corretamente, produzimos nele uma convicção assegurada
da verdade da construção que atinge os mesmos resultados terapêuticos
de uma memória recapturada" (1937b, pp. 265-6). Cara ou coroa?
Entretanto, se o psicanalista triunfa onde o paranóico fracassa, é bem
porque seu 'delírio' não tem consistência a ponto de deixar o analisando
sem saída.
O que é necessário refazer desse percurso?
Em primeiro lugar, a construção é um trabalho inerente ao processo
analítico no que se refere à produção de um saber que, em última instân-
cia, é a construção da fantasia. Ela é sempre parcial e se tece a partir das
produções de fala do sujeito, ao modo de uma rede, vazada, com buracos
ou lacunas. Longe de ser um 'delírio', a construção não 'desmente' a
castração. Sua confirmação se dá no percurso pelas próprias produções
do analisando.
Em segundo lugar, como já disse, o trabalho pertinente à análise que
possibilita um desdobramento da construção é o Durcharbeitung —
trabalho através de, e durante a análise — , a elaboração. E, se a constru-
ção diz respeito ao saber, a elaboração diz respeito também à ação como
trabalho pulsional do analisando, num diferencial sobre a repetição,
através da incidência do analista. Isto é, o analista incide sobre a repeti-
ção produzindo esse diferencial que abre a possibilidade da construção
da fantasia e da elaboração. Ou seja, do trabalho que produz uma "ação
sobre a realidade", como propôs Freud. Esta ação, por um lado, se
articula ao saber que se constrói. E, por outro, relança o sujeito a novos
acontecimentos que provocam a desestabilização desse saber-já-sabido.
Qual o teor da incidência do analista?
Chegamos à interpretação, onde o analista é supostamente livre para
dizer o que quiser. Esta é a sua tática.*

No texto "A direção da cura" de 1958, publicado nos Écrits, Lacan desenvolve
uma versão da clínica inspirada na teoria do general prussiano Karl Clausewitz
sobre a guerra como um cálculo cujos elementos são: a tática, a estratégia e a
política. No cálculo da clínica psicanalítica, o analista se vale dos três elementos.
Por uma psicanálise possível I 151

Cito alguns exemplos*:


"Ele constata ('você abandonou-o'), interroga ('você não tem obriga-
ções?), afirma ('aqui, a regra é não escolher'), critica ('você não vai pôr
em dúvida sua paternidade?'), subentende ('...ou dela.'), declara ('rejei-
ção'), exclama ('nada a ver!'), desacredita ('hum...'), utiliza a homosse-
mia ('pagar/acertar'), ou a homofonia ('tournedos/tourner le dos')...
pode ser um enunciado que o analisando entende à sua maneira (...) ou
um sintagma ('gerencio matrimonial') que o sujeito guardava consigo e
que veio à luz 'por acaso', ou que o analista colheu 'na trama associativa
do discurso'" (1937b, p. 313).
As variações se dão por escolha do analista, e o analisando pode
receber cada intervenção com surpresa ou familiaridade, com incom-
preensão, e até perplexidade. Pode reconhecer aí algo que lhe diz respei-
to. Ao ouvir os ditos do analista, o analisando entende o que pode. Não
há uma correspondência unívoca entre um e outro. "A interpretação
analítica não é feita para ser compreendida; é feita para produzir ondas"
(Lacan, 1976, p. 35).
O que importa, então, mais do que o dito, é o efeito que produz. E há
um tempo para essa incidência operar no circuito de elaboração do
analisando para produzir uma resposta na via da transferência. Sabemos
que essa liberdade de escolha do analista é cerceada pelos limites da
transferência sobre a qual não tem controle. Pode apenas manejar o que
dela aparece a favor da análise.
Sobre a relação da interpretação com a transferência, duas observa-
ções devem ser feitas:
A primeira diz respeito à interpretação da transferência, extensamen-
te discutida por Lacan como o erro do analista. Freud já havia se dado
conta do problema e, em 1920, postula a repetição para além do princípio
do prazer. Revelar ao analisando sua resistência, tanto pode reforçá-la
quanto pode não atingir o recalcado. Ao defender a interpretação na, ou
através da, transferência, Lacan considera que o amor que concerne ao
analisando já se instalou na dimensão do 'sujeito suposto saber'. É a
partir daí que o analista está autorizado a interpretar.

Sua tática, onde é mais livre, é a interpretação; sua estratégia, onde é menos livre,
é a transferência; finalmente, sua política, que domina estratégia e tática e onde
é menos livre ainda, é menos seu ser do que sua 'falta-a-ser'. (p. 585-90).
Os exemplos foram retirados da publicação Os poderes da palavra, uma coletâ-
nea de textos de autores anônimos, reunidos pela Associação Mundial de Psica-
nálise sob a organização de Jacqucs Alain-Miller.
152 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

A segunda diz respeito às modulações do amor de transferência como


a estratégia do analisando. Ao demandar o saber do analista, esse amor
pode produzir uma tal ilusão que faz com que o analista apareça como
aquele que não se engana nunca. Ou, na via da resistência, pode produzir
o efeito contrário: não importa o que o analista diga ou faça, ele cai no
descrédito, senão no ridículo. Como resolver o impasse?
A primeira vista, não há solução. A transferência pode sacralizar ou
espicaçar o saber do analista. Mas esta oscilação já não é desprezível.
Indica que a castração está presente como seu desencadeador. A dúvida
obsessiva e a insatisfação histérica sobre o saber do analista são provas
disto. E neste ponto que a análise do psicótico se torna mais problemá-
tica. Sua relação com o saber não é de suposição.
A castração é o elemento conceituai que faz a diferença. Na neurose,
refere-se à relação do saber ao gozo, mais precisamente, ao gozo do
saber. Há um limite para o saber, como há um limite para o gozo. Não
se sabe tudo, não se goza de tudo. E, ainda, não se goza de saber tudo.
Além disso, o saber por si só não garante uma modificação do gozo. O
analista toma o partido da castração. Isto é, sua resposta vai ao encontro
da impossibilidade. Este é o limite da interpretação. O saber é necessa-
riamente parcial. E isto que permite a ação. Caso contrário, teremos o
modelo do 'bom' analisando num ser de cálculo que pensa com prudên-
cia e razão antes de agir. Ou, então, uma certa 'paranóia' do saber.
Nenhuma dessas saídas avança a possibilidade de uma 'boa saída'
para a análise. O analista trabalha sobre a produção textual do analisan-
do, a cada caso, a cada encontro: "Tu o disseste" — palavras de Cristo
que nos ensinam, não tanto a ética cristã, mas a ética da responsabilidade
daquele que diz sobre seu dito.
Se é o sujeito quem diz, o que diz o analista sobre isso (sobre o
inconsciente)? Cito dois aforismos de Lacan como indicações prelimina-
res para definir o estatuto da interpretação*:
"A interpretação não está aberta a todos os sentidos." Com isto,
podemos corrigir uma certa idéia da interpretação como criatividade ou
inventividade do analista que, no limite, pode transformar o trabalho
analítico em uma viagem romântica por novas linguagens que amplia-
riam o autoconhecimento ou a experiência de si. E também podemos
apontar um certo cacoete freqüente entre alguns discípulos de Lacan que
jogam com o equívoco do significante sem atentar para o sentido que

* Ver Os poderes da palavra, p. 349-52 e 358-63.


Por uma psicanálise possível \ 153

pode trilhar no encadeamento de novas séries significantes que o sujeito


produz como efeito da interpretação. Como se analisar não passasse de
um permanente jogo de palavras sacudindo a cachola do "pobre infeliz"
numa sucessão de enigmas a serem decifrados. A interpretação trilha um
sentido que se desdobra e se limita em determinado arranjo de signifi-
cantes produzidos pelo sujeito que tecem e retecem a realidade psíquica
marcando os caminhos do desejo.
"A interpretação é um meio-dizer". O 'meio' não é o da metade, da
meia-medida ou do meio-termo, ainda que se deva considerar a prudên-
cia no dizer — "do cochichar da verdade que oferece sua presença aos
gritos da queixa, (...) a interpretação não soa tonitruante, insinua-se nos
ditos que ouve" (p. 360). O 'meio' está entre dois, "evocando o entre -
dois dos significantes", nos interstícios. E também o meio do caminho,
meio através do qual o sujeito tem a indicação do caminho. E um dizer
alusivo que aponta o sentido, não deve tocar na ferida. E, se incide
precocemente sobre algo que o sujeito ainda não pôde dizer, o efeito é a
resistência que só faz obstruir o caminho. Para elaborar, é preciso cami-
nhar. Qual o tempo para isso? Qual o tempo de espera e, mesmo, qual o
tempo que precipita a ação do analista ou do analisando? E, ainda, qual
o caminho a ser indicado nesse tempo?

Avancemos, então, os dois pontos seguintes: as concepções de tem-


poralidade e cura que condicionam o trabalho analítico.
Em "Análise terminável e interminável" (1937a), um de seus últimos
textos sobre a clínica, Freud entrelaça esses dois pontos demonstrando,
ele próprio, um pessimismo que vai além do "ceticismo benevolente",
que já havia recomendado a leigos e pacientes como a única atitude
possível em relação ao alcance terapêutico da psicanálise.* A discussão
do tempo é inseparável da concepção de cura.
Freud começa pelo tempo, e logo previne: "a terapia psicanalítica é
uma tarefa que consome tempo" (p. 216). Não há como fugir disso. A
paciência e a espera são instrumentos fundamentais. Qualquer tentativa
de encurtar o 'caminho', ou apressar o passo do paciente para chegar ao
fim é injustificável e não passa de um "artifício de chantagem"**
(p. 218). A que se deve essa rigorosa restrição?

* Ver Conferência XVI, "Psicanálise e psiquiatria" nas Conferências introdutó-


rias parte III (1917), vol.XVI, S.E. p. 244.
** Freud reconhece que ele próprio fez uso desse artifício no caso do homem dos
í 54 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Freud nos responde com outra pergunta: "Existe essa coisa de um fim
natural para uma análise — existe alguma possibilidade afinal de levar
uma análise a tal fim?" E ironiza: "(...) a julgar pela conversa dos analis-
tas parece ser assim, pois ouvimos dizerem com freqüência, quando
estão deplorando ou desculpando as reconhecidas imperfeições de qual-
quer mortal: 'sua análise não terminou' ou 'ele não foi analisado até o
fim'." (1937, p. 219). Freud continua argumentando sobre o que quer
dizer 'o fim de uma análise':
"De um ponto de vista prático, é fácil responder. Uma análise termina
quando o analista e o paciente cessam de se encontrar na sessão analíti-
ca". Quando isso acontece? Há duas hipóteses: a primeira é quando o
paciente não mais sofre de seus sintomas, inibições e angústias; a segun-
da é quando o analista supõe que não se há que temer a repetição de
processos patológicos, dado que todas as resistências foram trabalhadas
e que o material recalcado tornou-se consciente e explicado.
Há, ainda, uma terceira hipótese, um outro sentido para o fim da
análise, mais ambicioso, que supõe que o analista exerceu uma tal in-
fluência sobre o paciente que esgotou qualquer possibilidade de mudan-
ça que justifique a continuidade da análise, como se fosse possível atingir
um nível de "absoluta normalidade psíquica", de estabilidade, através do
preenchimento de todas as lacunas da memória.
Freud duvida tanto da segunda hipótese — eliminação das resistên-
cias e acesso completo ao recalcado — quanto da terceira — influência
do analista que esgota a possibilidade de novas construções. Sua dúvida
não vai no sentido de uma dúvida metódica para chegar a uma certeza
sobre a cura. É, antes, uma dúvida cética que põe em cheque a própria
definição dos fatores etiológicos envolvidos no tratamento analítico. As
neuroses traumáticas teriam um melhor prognóstico, mas o grande obs-
táculo surgiria do que Freud chama de "força dos fatores constitucionais"
e do grau de "alteração do ego", estando ambos interligados. Adiante
reformula:
"E, no entanto, concebível que um reforço da pulsão que surge pos-
teriormente na vida possa produzir os mesmos efeitos. Se assim for,

lobos quando marcou uma data para terminar o tratamento e refere-se a outros
casos seus e de colegas. O que ele refere como chantagem, que dá o tom de
ameaça a esse artifício sobre o tempo, resultaria na retenção de parte do material
psíquico em prejuízo da outra parte que se tornou acessível, ou seja, provocaria
mais recalque do que elaboração.
Por uma psicanálise possível I 155

deveríamos modificar nossa fórmula e afirmar 'a força das pulsões na-
quele momento' em vez de 'a força constitucional das pulsões'" (p. 224.
grifado no original).
Em seu esforço para definir o que está em jogo numa análise, Freud
altera o item 'fatores constitucionais' em favor de uma reformulação do
tempo. O acontecimento, em sua dimensão traumática, pode acionar a
'força das pulsões' de tal modo que já não se trata exclusivamente de
fatores arcaicos de um passado infantil como desencadeadores da neuro-
se. O fator desencadeador é atualizado no acontecimento. Ou melhor, na
reativação da força das pulsões a partir do acontecimento. Isto quer dizer
que não há como garantir e, muito menos, como prevenir uma 'recaída'
na patologia. Este é o sem-fim da análise.
Podemos deduzir que a repetição, na via da pulsão, entendida como
'fator constitucional', c sempre passível de ser atualizada em determina-
do momento. Nesse sentido, a repetição aparece, paradoxalmente, na
dimensão do imprevisível. É a tique de que fala Lacan. Há o tempo do
acontecimento que provoca um movimento referido a um tempo anterior,
por retroação. Este é o tempo da posterioridade, do 'só depois' {Nachträ-
glichkeit).
Impossível prever ou prevenir. Esse acontecimento pode ser localizá-
vel no fator biológico como puberdade ou menopausa nas mulheres, mas
pode "surgir de modo irregular por causas acidentais em qualquer outro
período da vida (...) através de novos traumas, frustrações forçadas, ou
influência colateral das pulsões uma sobre a outra. O resultado é sempre
o mesmo e sublinha o irresistível poder do fator quantitativo na causação
da doença" (p. 226).
O 'fator quantitativo', no entanto, não é mensurável. Ele varia tam-
bém conforme o modo como o acontecimento é assimilado no interjogo
das pulsões, com a capacidade de elaboração ou de trabalho do sujeito,
e com os demais fatores em jogo que constituem o contexto do aconte-
cimento onde não se podem demarcar fronteiras entre o fato e a expe-
riência subjetiva. Seria mais apropriado falar de intensidade ou força em
vez de quantidade. Freud insiste no 'fator quantitativo' porque sua preo-
cupação se volta para a intensidade relativa da força destrutiva, inercial,
da pulsão de morte e das ligações promovidas pela pulsão de vida ou
erótica. No processo de fusão e desfusão das pulsões, qual o quantum
envolvido de cada parte nesse jogo de forças? Este seria o fator decisivo
para acelerar ou retardar o fim de uma análise. O que pode fazer o
analista?
156 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

A ação do analista está condicionada a um tempo que se desdobra em


duas dimensões: espera e pressa. As questões de Freud em "Análise
terminável e interminável" vão nessa direção: Até onde esperar? E pos-
sível apressar a emergência do conflito para erradicá-lo?
E também por onde Lacan caminha no exemplo do sofisma* para
formular sua teoria do tempo lógico no conhecido texto "O tempo lógico
e a asserção da certeza antecipada" (1945).
Não desenvolvo o argumento de Lacan em sua extensão, mas tomo a
liberdade de me apropriar dos conceitos formulados no texto sem o
compromisso de reproduzir seu encadeamento.**
Proponho uma articulação dos três tempos que constituem o tempo
lógico — o instante do olhar, o tempo de compreender e o momento de
concluir — com os fatores de tempo 'espera' e 'pressa' e com o conceito
de posterioridade ou 'só depois' {Nachträglich ou Nachträglichkeit) para
definir a concepção de tempo que concerne à psicanálise. Esse tempo
pode ser pensado num duplo recorte: sincrónico ou transversal (das
sessões) e diacrónico ou longitudinal (do percurso da análise).
Para isso, retomo os conceitos de repetição {Wiederholung) e elabo-
ração ou, de preferência, trabalho através da análise {Durcharbeitung)
como operadores centrais no tempo de uma análise e balizas da ação do
analista.

Em um primeiro tempo, temos o instante do olhar que pode corres-


ponder ao que emerge na fala do sujeito, no sentido do Einfall, o dar a

* Lacan inicia seu texto sobre o tempo lógico (Écrits, pp. 197-213) com um
conhecido sofisma lógico ao modo de um jogo que procede assim: o diretor de
uma prisão chama três detentos para submetê-los a um exercício de lógica em
que o vencedor ganharia em troca sua liberdade somente se a conclusão fosse
fundada sobre motivos lógicos e não de probabilidade. Ele apresenta cinco
discos, sendo três brancos e dois pretos, e fixa um sobre as costas de cada detento
de modo que um veja o disco dos outros dois para poder deduzir a cor do seu.
Ele escolhe os três discos brancos deixando de fora os pretos. Os três tempos
lógicos correspondem às etapas do raciocínio desenvolvido ao longo do sofisma.
** Para um estudo acurado do texto de Lacan sobre o tempo lógico, remeto o leitor
ao texto de John Forrester "Em cima da hora: a teoria da temporalidade segundo
Lacan" em Seduções da psicanálise: Freud, Lacan e Derrida; e à dissertação de
mestrado de Manha Hirsch Gusmão "Olhar, compreender e concluir: uma con-
tribuição à questão do tempo lógico na teoria e na prática psicanalítica",
PUC/RJ.
Por uma psicanálise possível | 157

ver da palavra ou da cena inesperada. Este é um bom sentido para o in


sight, à vista, exposto e não interior. Prometendo sentido, e não um
significado. Se há um interior, este está out of sight. A correspondência
é ao dado imediato. Isto acontece logo no início ou ao longo do percurso,
de modo intermitente. A rotina das sessões pode evocar o mesmo, mas
um dado novo pode surgir a qualquer momento.
Com quantas sessões, ou intervenções em nome da regra fundamental
se põe uma análise em marcha? Eis um tempo de espera que cabe ao
analista. Mas não precisa esperar sentado. Caso o sujeito não compareça
às sessões, há sempre o recurso a um telefonema ou aerograma ou a um
recado. A espera não pressupõe a indiferença, é antes um convite.
U m a vez estabelecida a suposição de saber que sustenta o amor que
cabe ao analisando, há um tempo de compreender que é, ao mesmo
tempo, o tempo da repetição e o da elaboração. Num vai e vem, o
analisando repete e elabora, dentro ou fora das sessões, a partir da
incidência do analista com suas interpretações, seu silêncio e a marcação
do fim das sessões. Aqui cabe um esclarecimento importante: as sessões
podem ter duração variável. Essa variação pode se dar em minutos,
portanto não deve acarretar problemas na burocracia dos ambulatórios
ou na marcação de horários nos consultórios. É uma variação sutil que
não deve obedecer a um tempo controlado pelo relógio. É só isso. Esse
tempo pode ser prolongado numa espera por novas associações, ou en-
curtado na pressa de precipitar uma marcação do inconsciente para de-
sencadear a elaboração. A decisão é do analista. A produção é do anali-
sando.
A ação do analista provoca uma hesitação. O sujeito hesita, no tempo
da neurose, porque tem algo a perder. O que tem a perdei ?
Em princípio, pode perder o que Freud designa como 'ganho secun-
dário do sintoma',* uma das cinco resistências já referidas. Esse ganho
tem uma função estabilizadora do ego e, portanto, é onde o sintoma dá
prazer, ainda que a um preço de manter a neurose. Há também a 'visco-
sidade da libido', o masoquismo moral pela via do superego e a força
destrutiva e inercial da pulsão de morte — estranha dimensão de alteri-
dade do gozo que toma o sujeito.

O ganho secundário pressupõe que já houve um ganho primário que se deu


através da 'fuga para a doença' como escolha do sujeito diante do conflito
insuportável. Ao querer se curar 'dessa escolha', se vê forçado a escolher de
novo.
158 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Uma outra definição dessa perda é dada por Lacan como 'perda de
gozo da fantasia'. Revelar a fantasia, abrir mão de um gozo fixado, deixa
margem para o vazio da falta. O que virá em seu lugar? Nesse sentido, o
analista não tem nada a oferecer, a não ser apontar o caminho do desejo.
Isto é, abrir mão de um gozo pelo qual se paga um preço muito alto. Caso
contrário, a análise não vale mais a pena. O sujeito não quer saber mais
disso. Muitas interrupções se dão neste momento. O analista deve con-
trabalançar a pressa com a espera para não incidir precocemente sobre
algo do qual o sujeito não pode ou não quer abrir mão.
Na psicose, o esforço de elaboração pelo delírio deve ser considerado
diferentemente da resistência pela manutenção do gozo no caso do neu-
rótico. Pelo trabalho do delírio, o psicótico tenta se livrar do peso mas-
sacrante do gozo do Outro — o perseguidor, na paranóia, a sombra do
objeto, na melancolia, para citar os mais típicos. A relação do psicótico
com o tempo não é marcada pela divisão. Neste sentido, ele não hesita.
Na análise do neurótico, a hesitação faz parte do percurso. Lacan a
insere num tempo crucial que decide sobre o destino do sujeito. Ele
hesita justamente quando precipitou sua ação para se salvar. E, se hesitar
um pouco mais, perde a vez. A escolha é sempre forçada. Podemos supor
que a certeza antecipada, que corresponde ao momento de concluir,
vacila em nome da manutenção daquilo que faz o sujeito gozar. Ou
melhor, nos termos de Lacan, do que faz o Outro gozar. Na neurose, o
sujeito é dividido em relação à consistência do Outro. Na psicose, essa
consistência é uma certeza. Esse Outro pode se apresentar na figura de
um marido ou de uma esposa, das mulheres ou dos homens, de um filho,
de um pai-patrão ou de uma mãe-patroa-madrasta, do trabalho 'escravo'
etc. Ou seja, esse Outro se insere no campo das relações sociais, do sexo
ao trabalho e impõe seu gozo pela via do superego.
O tempo de compreender não deve ser assimilado à idéia de um
raciocínio consciente referido a uma lógica formal abstrata. Se o identi-
ficamos à elaboração, pressupomos um trabalho que se dá também pela
via da repetição como trabalho incessante do inconsciente desencadeado
pelo analista. A elaboração procede tanto no pensar quanto no agir ao
longo da análise. Se pensar não é agir, também não temos como distin-
gui-los senão pela palavra do sujeito que tanto pode nos comunicar o
que, no senso comum, se chama uma idéia, quanto uma decisão já
tomada da qual não tínhamos qualquer notícia. O agir do sujeito não nos
é acessível diretamente, a não ser quando tomamos conhecimento dele
através dessas comunicações. Quantas vezes não ouvimos frases como
Por uma psicanálise possível I 159

"finalmente pedi minha noiva em casamento" ou "pedi demissão do


emprego" ou "fui procurar emprego" ou "me separei de meu marido/mi-
nha mulher" ou "me matriculei em um curso profissionalizante/univer-
sitário" ou "trouxe meu filho de volta", etc. O analista, atônito, muitas
vezes não sabe como definir este ato do analisando. Ou bem é efeito da
elaboração, sobre a qual o sujeito pode ter pouco ou nada a dizer, ou bem
é a repetição que remete ao mesmo e, portanto, todo o esforço do analista
caiu por terra.
Acontece que esta pode ser uma falsa questão. E preciso esperar, não
na esperança, mas na expectativa vazia de aguardar as próximas produ-
ções do analisando. A elaboração não é um processo evolutivo para a
solução final, adequada, esperada. Por um lado, é incessante como o
trabalho do inconsciente, um trabalho invisível que guarda seu parentes-
co com a repetição. Por outro, é visível como conseqüência do trabalho
através da análise, com tantas sessões e tantas palavras, em que o analista
fez a sua parte sem saber com clareza que efeitos provocou. Numa
análise, não se sabe claramente sobre seus efeitos, a não ser por aproxi-
mação.
Do lado do analista, a construção do caso se dá ao fim do percurso,
ou por indícios sobre os quais trabalha durante o percurso para corrigir
o rumo do tratamento. Do lado do analisando, uma análise é fadada ao
esquecimento.
O tempo que concerne aos efeitos é o 'só depois', Nachträglich.
Devemos a Lacan o mérito de ter recuperado em Freud sua importância
fundamental como o tempo que define a causação psíquica. Do trauma
ao sintoma como retorno do recalcado, há uma retroação, ou seja, o
acontecimento num tempo anterior só porta sentido num tempo posterior
de um segundo acontecimento. Toda a perspectiva desenvolvimentista
que permanece atuante na psicanálise supondo um determinismo linear
da ação do passado sobre o presente cai por terra. Conseqüentemente, as
concepções de realidade psíquica inconsciente, regressão, transferência,
tratamento e cura se alteram significativamente.
Lacan, no Seminário I — Os escritos técnicos de Freud, que inaugura
seu ensino, já insiste em apontar a diferença. Reproduzo alguns trechos
da aula de 7 de abril de 1954:
"O passado e o porvir precisamente se correspondem. E não em um
sentido qualquer — não no sentido que vocês poderiam crer que a análise
indica, a saber, do passado ao porvir [l'avenir]. Ao contrário, na análise,
justamente porque a técnica é eficaz, isso caminha na boa ordem — do
160 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

porvir ao passado. Vocês poderiam crer que estão buscando o passado do


doente no lixo, quando, ao contrário, é em função do fato que o doente
tem um porvir [avenir] que vocês podem ir no sentido regressivo. (...)
"Por um lado, o inconsciente é algo de negativo, de idealmente ina-
cessível. Por outro lado, é algo de quase real. Enfim, é algo que será
realizado no simbólico ou, mais exatamente, que, graças ao progresso
simbólico na análise, terá sido.
"(...) E então, como explicar o retorno do recalcado? Por mais para-
doxal que seja, só há uma maneira de fazê-lo — isso não vem do
passado, mas do porvir.(...)
"O sintoma de início se apresenta a nós como um traço, que nunca
será mais do que um traço, e que permanecerá sempre incompreendido
até que a análise tenha ido longe o bastante, e que nós lhe tenhamos
realizado o sentido. Pode-se dizer também que, assim como a Verdrän-
gung não é nunca senão uma Nachdrängung, o que vemos sob o retorno
do recalcado é o sinal apagado de alguma coisa que só tomará seu valor
no futuro [futur], por sua realização simbólica, sua integração na história
do sujeito. Literalmente, isso nunca será mais do que algo que, num dado
momento de realização terá sido" (1975, pp. 180-2).
Uma análise começa na direção de um porvir, um 'daqui por diante'
sobre o que virá daquilo que já foi e, ao final, terá sido. A cada sessão e
ao longo do percurso, da intervenção do analista à resposta do analisan-
do, há o tempo do 'só depois'. A resposta do analisando não vem quando
ou do modo que é esperada. Como educadores, sempre nos decepciona-
mos. A recíproca é mais do que verdadeira. O analista, por sua vez, só
pode operar nesse inesperado onde se situa sua ação. Se não puder
suportar isso, não avançará no caminho.
Qual o caminho, se nunca sabemos onde vamos chegar? E preciso
propor um norte para o analista.

Chegamos ao ponto mais controvertido da psicanálise: a definição de


cura. Podemos mesmo dizer que esta não é uma boa palavra pois, de
imediato, nos remete ao modelo médico. Não que na medicina não haja
sérios problemas quanto à cura das doenças ou mesmo quanto à própria
definição de cura. O problema do prognóstico nos processos patológicos
é o melhor exemplo. Para o médico também o desaparecimento dos
sintomas estaria longe de significar a erradicação da doença. E, em
muitos casos, não há como garantir que não haverá uma recidiva.
Todas essas preocupações também foram as de Freud sobre o que
determinaria o fim de uma análise. A questão crucial é 'de que o sujeito
Por uma psicanálise possível I 161

se cura afinal?' No rastro da medicina, teríamos que perguntar antes


'qual é a sua doença?' Talvez possamos transformar esta pergunta em
outra: 'do que o sujeito padece?'
Se respondemos que 'ele padece dos acontecimentos da vida com
uma intensidade incapacitante', concluímos que 'capacitá-lo para en-
frentar a vida' já seria satisfatório. E esta não deixa de ser uma solução
prática considerada tanto por Freud quanto por Lacan.
Em "Análise terminável e interminável", Freud toma duas posições
sobre o que pode significar 'ser analisado'.
A primeira refere-se a "assegurar as melhores condições psicológicas
possíveis para as funções do ego" (p. 250). O sujeito analisado não está
livre de paixões ou de conflitos, mas pode melhor dispor da 'força' das
pulsões a seu serviço. A segunda é mais ambiciosa e reivindica para a
psicanálise a instauração de "um estado que nunca surge espontanea-
mente no ego, e cuja criação constitui a diferença essencial entre uma
pessoa que foi analisada e outra que não foi" (p. 227).
Lacan, em suas "Conferences et entretiens dans des universités nord-
américaines" (1976), imbuído de um certo pragmatismo, declara: "Não
penso que possamos dizer que os neuróticos sejam doentes mentais. Os
neuróticos são o que a maioria é. Felizmente, não são psicóticos. O que
é chamado um sintoma neurótico é simplesmente algo que os permite
viver. Eles vivem uma vida difícil e nós tentamos aliviar seu desconforto.
As vezes lhes transmitimos o sentimento de que são normais. Graças a
Deus, não os tornamos tão normais a ponto de acabarem psicóticos."
E, ainda: "Uma análise não deve ser levada muito longe. Quando o
analisando pensa que está feliz em viver, é o bastante" (p. 15).
Dada toda a complexidade do jogo de forças das pulsões, da qualida-
de traumática dos acontecimentos para o neurótico, da dificuldade de se
abrir mão de um gozo que estranhamente causa sofrimento ou desprazer
e do tempo necessário para se obter alguma mudança, podemos dizer que
o fim de uma análise só pode ser 'satisfatório' se tomamos esta palavra
no sentido de 'o bastante'. Em francês, c'est assez ern inglês, that's
enough têm o duplo sentido de 'bastante' como suficiente, e 'basta' como
fim.
Neste ponto, o sujeito é quem dá o 'basta', precipitando sua saída
numa certeza antecipada cuja hesitação não pode se prolongar. É o
momento de concluir. Ao analista cabe levar o analisando a este ponto e
ratificar seu ato, para desfazer o tempo da hesitação que, em última
instância, é um pedido de reconhecimento.
162 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Sabemos que isso toma tempo. E o tempo de cada um é sempre uma


incógnita. Não é um tempo imanente, é variável. Depende tanto da
participação do analista quanto do que, no percurso de uma análise, se
alterna entre destino e acaso.
Podemos propor como um norte para o analista, para levar a análise
a seu fim — no duplo sentido de finalidade e final — deslocar a dimen-
são aprisionante do destino, entendido como 'destino selado', para a
dimensão de uma separação, para um 'destino em aberto'. Ao abrir esta
possibilidade, o analista sustenta um rumo diferente para o que antes
estava 'selado'. Contudo, sabe que sempre resta algo que marca esse
destino.
O destino selado vem dar lugar ao destino em aberto ao fazer o sujeito
mudar sua posição em relação à fantasia que sustenta seu sintoma. Esta
fantasia se descortina ao modo de uma construção, como sedimentação
do saber que foi produzido no percurso. E o trabalho que o analisando
faz sobre o que se constrói a partir da repetição vem alterar algo do gozo
inicial que fixava um 'destino selado'. Contudo, era justo este destino
que garantia alguma coisa para o sujeito.
De certo modo, a cura numa análise desengana o sujeito até onde ele
suporta ser desenganado. Ao contrário do uso corrente do termo, o
sujeito é desenganado para viver. E preciso que se desengane em relação
ao analista, que se separe dele. Esta separação está posta desde o começo
de uma análise através do trabalho do analista no manejo da transferên-
cia. Todo o processo se dá visando a este fim. A separação do analista
corresponde à destituição do 'sujeito suposto saber', a um esvaziamento
da demanda de saber, como demanda de amor e reconhecimento.
Trocar o certo pelo duvidoso, oferecer-se à vida sem garantias, não
mais acreditar na consistência do Outro que fixa um gozo, já é um bom
preço a pagar. E o sujeito só paga porque sofre desse gozo e pede outra
coisa. Cabe ao analista saber disto, a partir de sua própria análise, para
que não se engane sobre o que está realmente oferecendo ao sujeito
quando o recebe pela primeira vez em sua clínica.

1.4 Sobre o desejo do analista

Chegamos à última condição que decide sobre o que deve fazer um


analista para suportar sua oferta. A questão é: o que o faz tornar-se
analista? Ou, ainda, o que quer um analista?
Por uma psicanálise possível I 163

Segundo Freud, não é a normalidade, já que é ele próprio quem diz:


"É indiscutível que os analistas (...) não chegaram invariavelmente ao
padrão de normalidade para o qual desejam educar seus pacientes." E
acrescenta: "Os analistas são pessoas que aprenderam a praticar uma arte
singular; paralelo a isso, devem se permitir ser seres humanos como
quaisquer outros" (1937a, p. 247).
Essa arte singular não se aprende só na escola. A primeira lição é a
própria análise do analista. Sem me estender na discussão da análise
didática, o que nela está em jogo é um sintoma específico que é o desejo
de ser analista. Este sintoma pode mesmo ter efeitos prejudiciais para o
bom andamento da análise, dependendo dos compromissos que o 'futuro
analista' estabelece com seu analista, produzindo mais recalque.
Para Freud, a condição necessária mas não suficiente para se tornar
analista é que o analisando deve obter a "firme convicção da existência
do inconsciente para perceber em si próprio o que de outro modo seria
inacreditável" (1937a, p. 248). Este seria o estado a que Freud se refere
no mesmo texto como o que "nunca surge espontaneamente no ego e
constitui a diferença essencial".
Devemos, então, entender essa diferença como a experiência do in-
consciente. Não como algo inefável ou místico, e sim como a experiência
do trabalho analítico em sua especificidade enquanto produção de algo
novo na vida do sujeito. Esta experiência pode estar incompleta mas tem
que deixar marcada sua qualidade.
O que Lacan nomeia como o desejo do analista é, sobretudo, um
efeito da análise. Até onde se foi na própria análise determina a possibi-
lidade e o limite de fazer operar o dispositivo que constitui o trabalho
analítico a partir do desejo do analista. Fora isso, estamos no campo da
demanda sob o domínio, ao mesmo tempo fascinante e inibidor, do ideal
sintomatizado no desejo de ser analista.
Resta a pergunta: O que diferencia o desejo de ser analista — que não
se esgota na análise — do desejo do analista, que sustenta a análise?
Ainda no Seminário 11, Lacan nos orienta: "Não há apenas o que o
analista pretende, no caso, fazer de seu paciente. Há também o que o
analista pretende que seu paciente faça dele" (1973, p. 145). Esta indica-
ção é fundamental. Lacan, irônico, procede citando os exemplos de
Abraham, que queria ser "uma mãe completa", e de Ferenczi, uma
espécie de "filho-pai". Já Nünberg se apresentaria como um "árbitro dos
poderes de vida e morte onde não se pode deixar de ver a aspiração a
uma posição divina". Podemos acrescentar Winnicott com seus pendores
164 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

a ser uma mãe suficientemente boa. E, ainda, os psicólogos do ego como


representantes da realidade à qual o ego aspira.
E Freud? Seu desejo era a própria causa psicanalítica que engendrava,
e através da qual se fez analisar, tomando como exemplo seus próprios
sonhos, seus sintomas e sua questão sobre a mulher provocada pelo
enigma que lhe lançavam suas histéricas.*
Todo o esforço de Lacan vai na direção de desconstruir a idéia de que
existem dois desejos, ou dois sujeitos. Na psicanálise, o único sujeito em
questão é o analisando como o sujeito do inconsciente. Entretanto, o
próprio conceito de 'sujeito suposto saber', ainda que diferenciado da
pessoa do analista, pode dar a idéia de que sejam duas qualidades distin-
tas de sujeito. Não é bem assim. O 'sujeito suposto saber' é, antes de
tudo, um operador da significação, ao ser 'suposto' pelo analisando na
via da transferência. O trabalho de construção de um saber na análise se
torna possível.
O problema é que, de saber em saber, a análise se torna infindável e
pode se prolongar numa espécie de idílio amoroso onde a paixão pela
ignorância se alimenta de um querer saber sempre mais sobre o saber do
analista. O desejo do analista, portanto, não deve se situar exclusivamen-
te na direção da busca de saber. O amor à verdade não é o amor ao saber.
Deve, antes, sustentar uma disjunção entre verdade e saber. Se uma
análise bastasse pelo saber, Freud não teria ido tão longe na sua teoria
das pulsões nem teria escrito "Análise terminável e interminável".
A relação do saber com a verdade em psicanálise tem uma particula-
ridade. A verdade que se produz pelo saber não é a verdade bem enten-
dida, esclarecida e sistematizada no conhecimento. Sua produção se dá
antes pelo erro como lapso, pela suspensão de um dito, pela idéia ou cena

Nessa relação peculiar de Freud com suas pacientes histéricas, que o guiavam
na invenção da psicanálise dizendo o que ele tinha que fazer para tratá-las, o
desejo de Freud se dirige ao enigma da mulher, que ele sustenta, identificado à
posição histérica, com a pergunta: "o que quer a mulher?" Seu desejo foi na
direção da psicanálise que iria defender e transmitir até a sua morte. Isto o leva
em direção ao limite do analisável que formulou como a "recusa da feminilida-
de". Até onde Freud foi o pai impotente ou acolhedor, o austero cientista, ou o
sedutor-seduzido? Remeto o leitor aos trabalhos de John Forrester (op.cit, parte I
— "A tentação de Sigmund Freud", que dá uma visão interessante da complexa
rede de relações de Freud com as mulheres, pacientes ou não), e de Serge André,
O que quer uma mulher? (que faz uma análise dessa questão a partir da ótica
lacaniana).
Por uma psicanálise possível I 165

que irrompe na fala, enfim, pelo que se repete. Essa experiência da


verdade o sujeito só pode ter na análise, porque lá está o analista para
apontá-la. A verdade se atrela ao saber pela significação produzida no
contexto da fala. Lacan a concebe em relação ao saber como não-toda,
meio-dita.
Em suma, o desejo do analista não é o desejo de um sujeito, não se
reduz à pulsão de saber, não é uma forma de gozo masoquista — o
analista gozando de ser objeto — nem gozo sádico — o analista gozando
de seu poder. Ou seja, não é uma modalidade da pulsão.*
Ao final do Seminário 77, Lacan lança uma fórmula enigmática e
instigante. Em suas palavras:
"O desejo do analista não é um desejo puro. E um desejo de obter a
diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado ao signifi-
cante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez em posição de se
assujeitar a ele. Somente aí pode surgir a significação de um amor sem
limite, porque está fora dos limites da lei, só onde ele pode viver" (1973,
p. 248).
O que podemos entender disso?
Primeiramente, o contexto histórico deste seminário é bem conhecido
no meio psicanalítico. Foi realizado em 1964, ano que se segue ao
desligamento de Lacan da International Psychoanalytical Association
(IPA) e também quando é fundada a École Freudienne de Paris, um
marco da 'era lacaniana' na psicanálise francesa. E também um momento
de virada teórica em que Lacan deixa de ser um comentador de Freud e
crítico virulento dos pós-freudianos para avançar seus conceitos com
ênfase no real como limite do simbólico. Até então, o simbólico tinha sua
primazia sobre o imaginário, e o real oscilava entre o inefável e a reali-
dade material.
Nesse contexto, a "diferença absoluta" adquire toda sua força, tanto
na política da psicanálise lacaniana, quanto na formulação do real. Assim
como "fora dos limites da lei" é o único lugar possível para o psicanalista
que quer manter vivo seu ofício fora da hegemonia da IPA. Mais do que
isso, ele quer manter vivo o "significante primordial" ao qual "se assu-
jeita" que é a psicanálise. Esta é uma primeira leitura possível do texto
de Lacan.
O que nos interessa dessa história?

O trabalho de Serge Cottet, Freud e o desejo do analista, trata detalhadamente


do tema.
166 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Novos contextos se produziram nos últimos 30 anos. A 'horda' laca-


niana se organizou, sofreu dissenções, instituiu e destituiu coiporações,
conquistou uma certa hegemonia na França e na América do Sul. Essa
política permanece tendo seus desdobramentos e devemos acompanhá-
los atentos a seus efeitos. Mas esta não é a questão.
Devemos recontextuaiizar o enigmático texto de Lacan, na perspec-
tiva da função social e clínica do psicanalista.
Sobre a função social, o desejo de "diferença absoluta" não pode ser
entendido pela via do "narcisismo das pequenas diferenças". A diferença
em jogo remete a um hiato, um intervalo, um vazio entre positividades,
não é comparável. Não se trata de 'ser diferente de', e sim de produzir
diferença. Este é o sentido que podemos dar ao 'absoluto'. O psicanalis-
ta, portanto, não se impõe com seu ego. Isto não quer dizer que a pessoa
do analista seja pulverizada, despida de vaidades e quereres. A corpora-
ção de analistas é prova de que somos demasiadamente humanos e
corporativos. Mas é preciso que a lição da experiência analítica seja
aprendida nessa dimensão social.
O psicanalista está assujeitado à psicanálise como "significante pri-
mordial". Novamente, a pessoa do analista não se resume a essa sujeição.
Caso contrário, seria um estigma e não uma identificação. A questão é
suportar essa designação de psicanalista sem que isso diga alguma coisa
de consistente sobre seu ofício. Afinal de contas, o imaginário popular,
mais ou menos embebido na cultura psicanalítica, é pródigo em defini-
ções, algumas até preocupantes, como a atribuição de um certo dom de
telepatia ou de juiz das palavras (tudo o que você disser pode ser usado
contra você). A qualidade deste significante primordial é a de resistir à
significação. Poderíamos melhor designá-lo como significante irredutí-
vel, que aponta mais para uma abolição da significação do que para uma
significação ou uma causa primeira. A causa está desde sempnj perdida.
Mas esse significante sempre causa espécie. Psicanalista?
Sobre a função clínica, a que mais nos interessa, a "diferença abso-
luta" tem o mesmo sentido definido acima, só que visando a efeitos
específicos. Para o analista, não se colar como objeto parcial em qual-
quer uma das 'séries psíquicas' a que foi remetido pela transferência é
fazer diferença. Entretanto, é fundamental que possa 'fazer semblante'
(faire semblanf), 'aparecer como' o analisando o designa, numa aparên-
cia suficientemente convincente para permitir que a transferência se
instale. Porém não se enganando quanto à sua função. O semblante que
sustenta na análise é o do objeto que falta: o analista se subtrai para
Por uma psicanálise possível I 167

causar desejo como efeito desta subtração. Lacan o nomeia de 'objeto a'.
Esta é a diferença. Só assim o analista pode remeter o sujeito adiante no
caminho de sua fala, até que ele possa se desfazer da 'viscosidade' que
tenta fixar o analista como seu objeto.
Assujeitado ao significante primordial 'psicanalista', o analista insta-
la a diferença a cada intervenção e ao longo do percurso, deslocando-se
do lugar que é chamado a ocupar pelo analisando. Só assim pode tam-
bém deslocá-lo de sua demanda para conduzi-lo na direção de um 'des-
tino em aberto', sabendo que algo está 'selado'. Este pode ser o sentido
que toma o termo 'assujeitado' do lado do analisando.
Lacan, entretanto, atribui uma significação ao significante primor-
dial: o amor sem limite. E é sem limite porque se situa fora da lei. Um
amor bandido? Ou um amor sem demanda? Se amar é uma forma de
querer ser amado, de demandar amor, seria esse amor algo fora do limite
da castração?
Sabemos que não cabe ao analista esperar ser amado pelo analisando
como reconhecimento do bem que lhe fez. Quando isto acontece, o
analisando freqüentemente responde na transferência com sua recusa em
'melhorar', frustrando o analista. Portanto, a demanda que este veicula
não pode ser de amor. Ao analista cabe demandar a presença do anali-
sando com suas palavras — no consultório deve pedir que lhe pague por
isso, no ambulatório deve localizar como o sujeito paga para estar lá.
O amor à verdade indicado por Freud no que se refere ao saber tem
seu correlato no 'amor sem limite' indicado por Lacan no que se refere
ao desejo do analista que, a rigor, nada demanda além do que lhe cabe.
Esta postura difere sutilmente da conhecida 'neutralidade benevolente'.
O desejo de diferença não é ausência de desejo, a não ser no sentido do
desejo pessoal. Não corresponde à neutralidade, assim como o amor srm
limite não corresponde à benevolência, ainda que possamos ter atitud -s
benevolentes para com nossos analisandos. A benevolência possível está
em acolher sem ceder às demandas do sujeito.
O desejo de diferença incide sobre a significação. E o que permite
desfazer sua fixidez remetendo a novas significações que, por sua vez, se
desfazem, afetando o sujeito, provocando viradas, causando desejo. O
amor sem limite não espera nada, não é nem tolerante nem intolerante.
E sem limite não por seu excesso, mas por não estar referido a um objeto.
E um amor "para o qual não existe modelo na vida real". Só aí se pode
ser psicanalista.
E quanto a viver? Navegar é preciso, viver é impreciso.
168 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

2. Para concluir: o psicanalista que convém

Após ter percorrido um bom caminho na pesquisa e no trabalho univer-


sitário lidando com os impasses e sucessos do atendimento ambulatorial
— um mundo de vastas confusões e atendimentos imperfeitos — , discu-
tindo o trabalho em equipe, as diferentes modalidades de tratamento e as
possibilidades de um trabalho psicanalítico, evoquei a "bruxa metapsi-
cologia" para caracterizar as condições mínimas que definem a psicaná-
lise em sua diferença para com as psicoterapias em geral.
Para concluir, devo situar o psicanalista onde e como convém para
levar adiante essa aventura fora de seu suposto habitat, o consultório
privado.
O psicanalista que convém no serviço público não é o inconveniente:
"uma espinha de peixe atravessada na garganta da instituição", como me
disse um entrevistado. Também não é aquele que convence, "qui cort-
vainc", para citar Lacan.* Em francês, con quer dizer otário, vainc, que
vence. Nem o convaincu, o convencido, otário vencido. Também não é
o conveniente como um ser dócil e agradável que esconde, reativo, sua
arrogância. O psicanalista que convém, convive. E o faz através do jogo,
nada fácil, da política institucional da qual está livre em seu consultório.
Conviver, 'viver com', é atravessar esse jogo em que o psicanalista
faz de sua diferença uma especificidade e não uma especialidade. O
psicanalista não é especial, é específico. Só assim ele convém.
Para praticar sua especificidade tem que ter clareza de seus propósi-
tos, de seu métier, de seu ofício. Essa posição não é conquistada ao modo
da guerra dos grandes generais, nem só através dos livros ou da escola.
Estes são necessários para a construção do saber referencial indispensá-
vel na formação, mas dispensável, posto entre parênteses, como material
para a clínica. E a partir de sua própria trajetória de analisando a analista,
em seu tempo próprio de elaboração, com avanços e recuos, que o
psicanalista pode convir. Se, ao lidar com os pacientes, deve acolher sem
ceder, sua convivência no trabalho na instituição e na equipe se mantém
sob esta mesma perspectiva: acolhe demandas e encaminhamentos a ele
dirigidos sem ceder de sua especificidade, sabendo que lida com outras

Cito um trecho do Séminaire, livre 20 — Encore, em que Lacan utiliza esse


trocadilho para referir-se à psicanálise: "Je m'y suis refusé à partir de l'idée que
les gens qui ne veulent pas de moi, moi, je ne cherche pas à les convaincre. Il
ne faut pas convaincre. Le propre de la psychanalyse, c 'est de ne pas vaincre,
con ou pas" (p. 50).
Por ama psicanálise possível I 169

especificidades e com veleidades às quais também está sujeito. É preciso


saber recuar. Nem tão depressa que pareça covardia, nem tão devagar que
pareça provocação (ou vice-versa), como nos ensina Pinheiro Machado.
Este é um tempo que não combina com a hesitação.
Em sua diferença, o analista se subtrai mas não se retira do campo dc
ação no trabalho em equipe. Se não houver uma equipe, trabalha-se na
solidão. Esta não é estranha ao psicanalista, mas não é desejável no
serviço público.
O psicanalista lida com os sintomas de modo peculiar. Sabe que eles
são portadores de uma certa verdade não sabida. E sabe que não lhe cabe
ser o 'sabido'. Isto vale tanto para o trabalho em equipe quanto para o
trabalho clínico.
No primeiro caso, lida com colegas de trabalho numa relação entre
iguais. Em princípio, todos estão empenhados em atender, cuidar, diag-
nosticar, tratar e, last but not least, curar. O sintoma está, portanto, bem
instalado sustentando posições que podem chegar a ser irredutíveis em
suas divergências. E preciso conviver num tempo de espera e pressa, sem
levar a hesitação tão longe a ponto de perder a vez.
No segundo caso, está mais livre para trabalhar. Mas sabe que ofere-
cer 'psicanálise' como uma modalidade de tratamento inserida na 'lista
de ofertas' pode ser uma armadilha. O que é essa tal de 'psicanálise'? Se
é para 'conversar' sobre o sintoma, já é um ponto de partida.
Vimos, através de alguns depoimentos, que um bom lugar para o
psicanalista pode ser à sombra, sem maiores explicações salvo o neces-
sário para trabalhar. A diferença, em seu sentido negativo, é uma boa
posição.
Uma análise só acontece através da transferência, então é preciso
saber fazer a oferta e esperar. Pode ser no coletivo dos grupos, nos
pedidos particulares, nas diferentes modalidades de atendimento que
acolhem as demandas mais variadas. A demanda de análise não é neces-
sariamente explícita. Na maioria das vezes, como vimos em vários exem-
plos, demanda-se uma ajuda, um alívio para o sofrimento.
E importante que o psicanalista saiba manejar várias linguagens,
diferentes vocabulários com os quais diferentes sujeitos se apresentam.
Não é preciso compreender, basta ficar atento ao encadeamento da fala,
localizando a demanda para operar através dela. O sujeito pode ser
explícito em sua demanda e, nem por isso, menos enigmático.
Um sujeito chega ao ambulatório com o seguinte pedido: "quero saber
o dia e a hora do meu trauma". A psicóloga que o atende, apressadamente
responde: "isso eu não tenho como te dizer". Ele vai embora sem hesitar.
170 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Um outro chega pedindo um remédio para o doutor. O 'doutor' no


caso é um psicólogo que diz que esta não é a sua função. Novamente, o
sujeito se retira.
No primeiro exemplo, o enigma estava lançado. No segundo, muito
comum, a oferta se transformou numa recusa. Ambos os profissionais
apresentaram um 'não' impossível de suportar.
Uma senhora chega ao ambulatório, vinda de outra cidade, convenci-
da de que sua 'doença' tem um nome: síndrome do pânico. Soube que
havia uma equipe que tratava disso e se mostrou relutante em aceitar
qualquer argumento que a dissuadisse desta idéia. Entretanto, dizia que
precisava conversar. A psicóloga, dividida entre encaminhar e sustentar
a 'conversa', prolongou o tempo sem convicção do que fazia correndo o
risco de esvaziar a segunda demanda que vinha lateralmente. Muitas
vezes é preciso saber fazer um encaminhamento e oferecer um acompa-
nhamento, uma proposta de retorno para manter a 'conversa' c avaliar os
efeitos. Isto é conviver.
Essa convivência só pode ser eficaz através da clínica onde o psica-
nalista pode fazer sua oferta a partir dos diferentes dispositivos de trata-
mento e acolhida vigentes nos diferentes serviços.
Vários exemplos foram apresentados e comentados no decorrer deste
trabalho. As possibilidades de produzir as condições mínimas para que
se estabeleça um trabalho psicanalítico são muito variadas. Podem ocor-
rer nos chamados grupos de recepção ou triagem, ou através de encami-
nhamentos — muitas vezes apressados — de outros profissionais, ou de
uma procura 'espontânea'. Não há como prever. Trabalha-se sobre os
efeitos, ou melhor, como disse uma entrevistada: "trabalhamos sobre os
restos". Trabalha-se sobre o que resta das demandas, das outras modali-
dades de tratamento, do que ficou sem resposta. Esta é a diferença que
diz respeito ao psicanalista.
A atuação do psicanalista em determinada instituição está, de certo
modo, condicionada a uma série de fatores como: estrutura do serviço
(hospitalar, psiquiátrico, universitário, estritamente ambulatorial); estru-
tura do trabalho clínico (equipes multiprofissionais, serviços comparti-
mentados por especialidades, ausência de trabalho em equipe); estrutura
da política de assistência (rede de serviços na área, projetos sociais de
habitação e trabalho no caso de pacientes graves etc.) que podem ser
mais ou menos favoráveis ao trabalho psicanalítico. E preciso avaliá-los
c situar-se em relação às prioridades que propõem.
Por uma psicanálise possível \ 171

O trabalho ambulatorial é, sem dúvida, o campo privilegiado. O tipo


de clientela que chega ao ambulatório se define principalmente pelo tipo
de instituição e pela variedade de serviços oferecidos.
Para sistematizar essa variedade, vamos dividir as instituições, grosso
modo, em três tipos: o hospital geral; o hospital psiquiátrico; e os centros
e postos de saúde.
O hospital geral recebe uma clientela que sofre do corpo e deposita
todas as suas esperanças no saber médico. Mais do que nunca, o psica-
nalista trabalha com o que resta, e ainda tem que se haver com o 'sinto-
ma' dos médicos.
O hospital psiquiátrico recebe uma clientela que sofre da vida, na
maioria das vezes, de modo insuportável. São os pacientes que apresen-
tam "graves distúrbios psíquicos", conforme a definição das atuais polí-
ticas de saúde mental. O ambulatório aí se apresenta insuficiente para o
tratamento de boa parte dessa clientela. A convivência pela clínica se
complexifica. Por um lado, há uma gama variada dc profissionais e
dispositivos de tratamento e acolhida, mais ou menos próximos do refe-
rencial da psicanálise, que intervêm diretamente sobre o paciente. Em
conseqüência disso, o paciente estabelece 'transferências' a "um espectro
imaginário muito amplo da instituição",* seja na enfermaria, no hospi-
tal-dia, nas oficinas, nos grupos com diferentes finalidades etc.
Por outro lado, quando não há essa variedade de dispositivos, o
tratamento desses pacientes se reduz à internação e medicação, deixando
um peso muito maior sobre os ombros do psicanalista que tem que lidar
com a enorme dificuldade de estabelecer a transferência sob condições
muito precárias.
No hospital psiquiátrico, o psicanalista convive com situações agu-
das, de emergência, que não são as mais favoráveis para o trabalho
analítico. Para elaborar é preciso um tempo que não é o da crise. Seu
trabalho, portanto, é de oferta e convívio, tanto com a equipe quanto com
o sujeito, num tempo de espera até que a transferência lhe possa ser
endereçada mais particularmente.

A citação foi extraída do interessante texto da psicanalista Márcia Montezuma,


"De uma questão preliminar a todo tratamento possível na instituição psiquiátri-
ca", a partir de sua experiência no Hospital Galba Velloso em Belo Horizonte,
MG. Este texto foi apresentado no Seminário sobre o Imaginário na Psicose,
realizado pela Escola Brasileira de Psicanálise-seção Rio, no Instituto de Psi-
quiatria (IPUB-UFRJ) em 1994.
172 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Uma psicanalista vinculada a um hospital psiquiátrico esboça uma


proposta interessante para a função do ambulatório como "porta de
saída" do hospital para os pacientes graves que já adquiriram um certo
grau de autonomia. Em suas palavras:
"Os vínculos são múltiplos na instituição, o ambulatório já requer um
endereçamento da transferência para uma pessoa. Os pacientes deman-
dam outros dispositivos da instituição. Para fazer um vínculo com uma
pessoa é preciso que o paciente possa, ele próprio, ter uma certa autono-
mia social para se dirigir a alguém e falar de sua vida. O trabalho da porta
de entrada não deixa de ter a perspectiva da internação, eu me preocupo
com a porta de saída nas estruturas intermediárias. O ambulatório pode
ser a referência última de sustentação para esses pacientes que já têm um
grau de autonomia, dirigindo sua demanda a uma pessoa que possa
acompanhá-los nessa passagem para o trabalho, o lar protegido ou a
família.
"Eu tenho um caso de um psicótico que tem um delírio estruturado em
torno de salvar o mundo. O desencadeador teria sido ele ter visto o pai
morto sem ter chegado a tempo de salvá-lo. Enquanto ele esteve no
hospital internado e depois no hospital-dia tentando 'salvar' os loucos, ele
enlouquecia junto. Eu torço para ele não ficar só nas oficinas. Ele agora
começou a participar do grupo 'pela Vidda', vamos ver o que sai daí."

Os centros e postos de saúde recebem uma clientela que sofre do


corpo e da vida mas suporta o ir e vir cotidiano para se tratar no ambu-
latório. Muitas vezes são convidados a tratar daquilo de que nem sofrem.
E o caso da maioria dos dispositivos de atenção primária com seu caráter
pro filático-pedagógico. No campo da medicina pode ser útil. No campo
da 'psicologia' seus efeitos são duvidosos. O psicanalista, por trabalhar
na contramão da prevenção, deve estar atento para as 'emergências', isto
é, para o que pode emergir como demanda de fala a partir desses dispo-
sitivos. Fora isso, há as demandas diretas, 'espontâneas', e os encami-
nhamentos de outros especialistas. A clientela é eminentemente de sujei-
tos neuróticos, mas nos centros onde há um serviço de psiquiatria existe
uma demanda de tratamento ambulatorial de sujeitos psicóticos.
Obtive alguns relatos de psicólogos e psicanalistas que recebem es-
ses pacientes no ambulatório por um longo tempo. Uma psicanalista
comenta:
"Eu tenho vários pacientes psicóticos que quando ficam é por muito
tempo, mais até do que os neuróticos que têm mais rotatividade. Dizem
Por uma psicanálise possível | 173

que psicótico não se trata. Onde trabalho é o contrário. Lá só tem ambu-


latório, é um serviço grande e tem muita demanda para a psiquiatria. Eles
organizam a vida afetiva, de trabalho, querem ver como são as relações
na família porque não conseguem dar conta de quase nada.
"Tem um rapaz que atendo que conseguiu construir um espaço de
trabalho, é servente, faz biscate, a questão dele é amorosa... é psicótico
de livro, esquizofrênico, está no serviço há muito tempo, comigo está há
um ano. Tem uns que já estão há uns três ou quatro anos. Quando eles
entram, não vão embora. Eles aderem, ficam mais do que os neuróticos.
Tem um outro que já fez grupo na psiquiatria por uns quatro anos e veio
recentemente para mim porque o psiquiatra do grupo se aposentou. Ele
tem uma questão interessante que está coincidindo com a mudança no
tratamento. Ele sempre se envolveu em lutas coletivas pela via da mili-
tância; agora está no dilema de ter que arrumar uma atividade por conta
própria, na 'livre empresa', e isto contradiz radicalmente sua postura; ele
diz que o pai ganhou a batalha porque era um empresário bem sucedido.
Ele está muito deprimido e diz que a única coisa que faz por si próprio
é o tratamento, assim mesmo ele precisa afirmar que beneficia quem está
com ele."
Sobre este último caso, ao contrário do que comumente se acredita,
a passagem do tratamento em grupo para o individual, 'para si próprio',
é um passo arriscado. Podemos supor que o grupo funcionou como
suplencia da função paterna sustentando uma identificação imaginária ao
coletivo, ao bem comum, à militância. Agora, o trabalho 'para si próprio'
pode ser perturbador ao ponto de desencadear um despedaçamento da
unidade imaginária invadida pelo gozo do Outro vencedor: o pai 'capi-
talista'. O psicanalista, aqui, tem uma tarefa extremamente delicada. Só
lhe resta apostar na possibilidade de barrar esse Outro para que o sujeito
possa se ver minimamente 'livre em sua empresa'.

Assim como o ambulatório é o campo privilegiado, o atendimento


individual é o que pode oferecer melhores condições para a instalação do
dispositivo psicanalítico. Em que consiste este dispositivo? Resumindo
numa fórmula: consiste na elaboração como trabalho analítico, pela via
da repetição, que se dá na transferência como instalação do 'sujeito
suposto saber' por onde incide a ação do analista sustentada pelo desejo
de diferença.
Entretanto, esta não é uma condição irredutível. No serviço público
existem várias propostas de atendimento em grupos que não podem ser
desconsideradas. Atenho-me aos chamados 'grupos terapêuticos' ou
174 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

'grupos de fala' que tendem a oferecer algo que corresponde ao trabalho


analítico.
Se entendemos que a transferência é condição fundamental para o
trabalho analítico, o que deve ser problematizado é o conceito de 'sujeito
suposto saber' que preside sua instalação. Isso pode acontecer nos gru-
pos? E importante que não se confunda este conceito com a idéia disse-
minada de que o 'doutor' é aquele que sabe.
"Hoje o grupo foi bom. Gostei muito da palestra da doutora", disse
um participante de um grupo recém-formado no ambulatório. Como
entender isso? Não tenho informação sobre o contexto desta fala, mas o
que parece indicar é que a participação em um grupo pode ser interes-
sante, instrutiva sobre a vida etc. Aqui não temos qualquer indício do
'sujeito suposto saber'.
Em um grupo de fala composto só por mulheres, a psicóloga que
coordena o grupo conta um caso curioso:
"Ela era babá, vinha sempre na hora certa e passou uns três meses
sem abrir a boca; dizia 'oi' e seu nome e mais nada. Até que um dia ela
me disse: 'não venho mais porque eu não falo, estou me sentindo mal
com isso'. Eu disse a ela que ninguém era obrigado a falar, que ela podia
vir sem essa obrigação e que ela retornasse e falasse sobre essa dificul-
dade. Eu não sabia no que isso ia dar. Ela voltou e disse: 'resolvi que
venho'. Ela convenceu a patroa a dar folga a ela no dia do grupo e
colocou isso como condição dela continuar trabalhando lá. Mais adiante
ela conta: 'no meu grupo não vou deixar de ir de jeito nenhum'. A partir
daquele dia ela começou a falar aos poucos, não tanto da história dela,
não era aquela coisa de se queixar; ela fazia observações sobre a vida
dela e sobre o que as pessoas falavam, e tinha o maior efeito sobre elas;
ela nunca falava muito mas dizia coisas que você não acredita que
pudessem partir dela. Lá pelas tantas pedi que cada uma fizesse um
trabalho sobre o que aquele grupo representava para elas. Ela fez um
poema belíssimo, foi emocionante. Quando ela saiu, as pessoas sentiram
muito; ela mandou uma carta e volta e meia manda recado dizendo que
assim que puder ela volta. Ela teve que sair porque a patroa teve proble-
mas e não podia mais liberá-la."
Infelizmente não obtive exemplos da fala dessa moça. O que vale
ressaltar neste exemplo é o movimento peculiar que fez passando a falar
quando a palavra é liberada, implicando-se no grupo do qual pretendia
sair — seu protesto foi um apelo decisivo para ser reconhecida —,
marcando sua posição frente à patroa e iniciando um trabalho de elabo-
ração. E, ainda, sua fala produz efeitos sobre as falas de outras mulheres.
Por uma psicanálise possível I 175

O que podemos hipotetizar a partir daí é que no coletivo dos grupos tanto
a elaboração quanto a suposição de saber podem circular entre os parti-
cipantes. Isto é diferente das identificações imaginárias que se dão como
laços afetivos e sociais que muitas vezes são confundidas com a transfe-
rência. A função da 'coordenadora', a quem é atribuída a última palavra,
deve ser a de operar como facultador dessa circulação em que determi-
nadas falas possam produzir efeitos sobre outras provocando a elabora-
ção. A função do analista, portanto, é a de ratificar ou retificar essas
produções sempre que for solicitado em seu lugar de diferença.
Essa formulação, contudo, é ainda incipiente e não consiste no obje-
tivo central deste trabalho, mas vale a indicação para avançar novas
considerações sobre o trabalho analítico em grupos.

Uma vez feitas as indicações para instalar o dispositivo psicanalítico


e para sustentar o trabalho de elaboração, resta discutir o ponto mais
problemático: o final da análise, a saída.
No decorrer da pesquisa não obtive qualquer exemplo que caracteri-
zasse um final dc análise. Eis um fato curioso. Em alguns casos, o
entrevistado estava há no máximo dois anos no serviço ou havia se
deslocado dc uma instituição para outra. Em outros, o percurso do entre-
vistado na psicanálise era muito recente. Em ambos os casos era difícil
avaliai" a questão do fim da análise. De um modo geral, os depoimentos
assinalavam que havia apenas interrupções. Destaco três exemplos para-
digmáticos:
"Muitos começam, mas a maioria não dá continuidade".
"Eles interrompem muito, não levam a análise adiante. Quando vol-
tam parece que está tudo desfeito e a queixa permanece."
"Eles vão e voltam. Teve um que depois que decidiu sair, apareceu
por lá dizendo 'a minha psicóloga é fulana... Eu melhorei muito, o dia
que eu precisar cu volto nela'. Eu não poderia dizer que essa transferên-
cia não está elaborada, mas ainda há uma ligação muito intensa do tipo:
'se eu quiser, o analista está lá'."
O que pensar destes exemplos? A questão remete ao critério de cura
que prevalece.
No primeiro exemplo, temos que distinguir entre o que é esperado
pelo analista e o que pode ser tolerado como definição de cura no
trabalho analítico em ambulatório. Retomemos a indicação feita por
Lacan sobre não se levar uma análise muito longe. Devemos levá-la o
mais perto possível do que seja considerado 'satisfatório' para o sujeito.
176 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

e ratificar sua posição. A satisfação é sempre parcial, e no ambulató-


rio parece que esta parcialidade é confirmada, muitas vezes, fora do
limite de tolerância dos analistas. Este é um ponto que deve ser mais
pesquisado.
No segundo exemplo, se a queixa permanece não há dúvida que o
trabalho analítico não terminou. Eu diria que pode não ter sequer come-
çado. U m a análise só tem chance de acabar porque, de fato, começou.
Esta tautologia não é gratuita se consideramos que não basta freqüentar
o 'psicólogo' e conversar para se afirmar que uma análise começou.
No terceiro exemplo, o relato insinua que houve um final 'satisfató-
rio' para o sujeito. A questão é que o analista não teria sido destituído de
sua função de 'sujeito suposto saber', permanecendo disponível para um
retorno. Não houve a almejada separação que faz do analista um 'resto'.
Mas será que a frase "um dia, se eu precisar eu volto" não indica que
houve uma separação possível? Novamente, revela-se a dimensão parcial
da cura. A questão é se devemos esperar algo diferente disto. Sobre a
frase, prefiro pensar que mostra, finalmente, que se pode fazer um bom
trabalho. E, enquanto realmente houver essa disponibilidade, constatada
pelo ex-analisando agradecido, ainda temos algum futuro.

No consultório não encontramos tamanha riqueza e variedade de


possibilidades para o trabalho psicanalítico. O consultório é uma espécie
de carta marcada. Porém, há a dura e cruel realidade da desvalorização
dos serviços públicos de saúde. Os salários são mesquinhos, a burocracia
é mesquinha, e nem sempre contamos com profissionais dispostos a
enfrentar esse desafio. O que fazer?
A primeira medida, que diz respeito à sobrevivência, é de não restrin-
gir o trabalho ao salário. Há vários meios de fazer isso. O consultório aí
tem sua contrapartida. É importante que haja uma outra fonte de renda
um pouco mais satisfatória para escapar à perversão gerada no serviço
público que produz a figura do 'funcionário burocrático', aquele que
'finge que trabalha porque o Estado finge que paga'.
A segunda medida diz respeito à manutenção do convívio pela clíni-
ca. E preciso incentivar as vias próprias para isso como os centros de
estudo e as sessões clínicas como lugares de discussão e avaliação do
trabalho. Assim como é importante que no cotidiano haja um tempo para
as minúcias da clínica num espaço de maior intimidade entre os profis-
sionais. No entanto, sabemos que o tempo é escasso e as dificuldades são
inúmeras. Considerando isto, há a possibilidade de se estender a discus-
Poi uma psicanálise possível I 177

são da clínica para outros lugares para dar suporte ao trabalho. O psica-
nalista, em geral, é ligado a algum grupo ou corporação de psicanalistas
à qual se refere para estudar, ensinar, discutir a clínica, conviver, enfim,
para manter viva a transmissão da psicanálise. E da maior importância
que haja um intercâmbio entre esses grupos privados e os serviços da
rede pública com fins a valorizar o trabalho psicanalítico nos ambulató-
rios. Entretanto, o objetivo principal não deve ser de formar novas
corporações enquistadas nas instituições públicas. Procedendo deste
modo, estaria-se fomentando o "narcisismo das pequenas diferenças" tão
praticado no corporativismo e tão avesso à psicanálise. Deve-se visar a
acompanhar, discutir e, mesmo, elaborar essa experiência clínica que nos
lança tantos desafios novos. Eis a contribuição que se pode dar.
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