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atendimentos imperfeitos
Ana Cristina Figueiredo
Vastas confusões e
atendimentos imperfeitos
A CLÍNICA PSICANALÍTICA
NO AMBULATÓRIO PÚBLICO
3 3
EDIÇÃO
© Copyright Ana Cristina Figueiredo, 1997
Direitos cedidos para esta edição à
DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA.
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Travessa Juraci, 37 — Penha Circular
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Revisão
Rosa do Prado
Editoração
Capa
Gustavo Meyer
Desenho de Lula
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Inclui bibliografia
ISBN 85-7316-128-0
1. Psicanálise. 2. Assistência em hospitais públicos. I. Título.
CDD 616.8917
97-1389 CDU 159.964.2
Ao Leitor 9
// Interrogando o ambulatório 35
1. S o b r e a pesquisa: u m a participação observante 35
2. S o b r e os serviços 41
2.1 Recepção, triagem c encaminhamento 42
2.2 The dream team: o trabalho em equipe 57
2.3 O tratamento: terapias e pedagogias 65
2.4 O jogo de três PPPês: psiquiatras, psicólogos e psicanalistas 85
3. D u a s ou três questões para a psicanálise no ambulatório 97
3.1 Dinheiro, pra que dinheiro 97
3.2 Deitando o olhar sobre o divã 108
3.3 Que tempo para tratar? 115
Bibliografia 179
Ao Leitor
1. A polêmica da psicanálise
Destaco aqui alguns autores como Mannoni (1982, 1989), Mezan (1988a,
1988b, 1988c), Bercherie (1988), Berlinck (1991), Bezerra (1991), Lo Bianco
(1991), Kernberg (1994) que discutem o problema numa perspectiva histórico-
política, seja priorizando o confronto entre modelos ou articulando-os com
as especificidades socioculturais dos diferentes contextos em que se desen-
volveram.
18 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
Destaco dois textos de referência sobre esse tema: "Confusão de línguas entre
os adultos e as crianças" de Sàndor Ferenczi e "O esforço para enlouquecer o
outro: um elemento na etiologia e na psicoterapia da esquizofrenia", de Harold
Searles.
O que é feito da psicanálise I 23
objeto sobre nossa conduta. Indagar sobre o objeto é antes retecer cren-
ças do que descobrir a natureza do objeto, que pode ser, na melhor das
hipóteses um "focas imaginarius". E uma crença não passa de uma
posição na teia da linguagem. O ato de descrever alguma coisa é relacio-
ná-la com outras, e não há nada que preceda a contextualização (p. 98-
100). Nesse sentido, descrever a psicanálise, seja através dos relatos
obtidos na pesquisa ou das definições que a caracterizam, retece a teia
onde vai se evidenciar uma concepção de psicanálise que, ao mesmo
tempo que se reconhece no contexto da obra freudiana, se altera em
novas recontextualizações.
Devemos, contudo, estar atentos para não' reificarmos a noção de
contexto, erigindo-o à categoria de fundamento último das coisas. Rorty,
em seu estilo desconcertante, nos tranqüiliza: um contexto pode ser uma
nova teoria explicativa, uma nova classe comparativa, um novo vocabu-
lário descritivo, um novo propósito particular ou político, o último livro
que se leu, a última pessoa com quem se falou, as possibilidades são
infindáveis (op. cit. p. 94).
Para Derrida (1991), não há um contexto absolutamente determinável
ou um conceito rigoroso e científico de contexto. Desse modo, recontex-
tualizar a psicanálise pode ser entendido como uma revisão conceituai,
no campo próprio da teoria, como uma relocalização de sua prática no
campo da clínica em suas variações. A dicotomia consultório privado
versus ambulatório público não pode ser tratada como confronto entre
dois contextos, radicalmente diferentes, que supõem duas psicanálises,
pois estaríamos tomando o local e suas condições como o contexto por
excelência, o que é, no mínimo, uma diferença grosseira, senão uma falsa
questão. Entretanto, parto taticamente dessa dicotomia para estabelecer
o jogo das identidades e diferenças, visando pulverizá-la para ampliar as
possibilidades do exercício da psicanálise.
A questão, contudo, permanece: até onde essas possibilidades podem
ser ampliadas? Se o contexto pode referir-se a uma nova teoria explica-
tiva, o que garante que novas recontextualizações, ao produzirem novos
objetos, não nos lançariam no paradoxo de não estarmos mais falando de
psicanálise? Ou pior, poderíamos redescrever ou redefinir a psicanálise
num movimento infindável, onde tudo pode ser psicanálise. Tudo ou
nada são duas faces da mesma moeda. Algo deve permanecer como
identidade na diferença.
Para não cair no atoleiro do sofisma, reafirmando a psicanálise como
a medida de todas as coisas, valho-me novamente das concepções de
32 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
Derrida e Rorty para estancar uma dúvida que remonta à discussão dos
filósofos pré-socráticos sobre o que muda ou permanece igual a si mes-
mo no cosmos.
Com Derrida, apóio-me no conceito de réstance — o que resta e
resiste — para assegurar que algo do signo permanece para que seja
reconhecido como tal. Staten (1985), seu comentador, esclarece:
"Uma vez que o contexto não é 'exaustivamente determinável', não
há como traçar um limite até onde ele possa transformar o signo; tudo o
que sabemos é que há um 'resto mínimo' {réstance) que nos permite
reconhecer o signo o suficiente para que continue funcionando como um
signo. Ao mesmo tempo que diferentes ocorrências de um signo são
reconhecidamente as mesmas, todavia, também são diferentes porque
novos contextos mostram novos aspectos de suas possibilidades de sig-
nificação. (...) Contudo, esse não é um fenômeno arbitrário ou indiscipli-
nável; sabemos bem sobre como ativar e delimitar a variação das funções
de uma palavra numa sintaxe construída com engenho e arte. (...) Sabe-
mos a priori que essa variação se estenderá num sem fim para além de
nossas intenções conscientes. Mas a ausência de um limite determinável
ou conhecível não significa que toda e qualquer coisa seja possível em
todo e qualquer tempo; ao contrário, a variação da ativação futura do
significado ocorrerá em contextos futuros, e cada contexto vai mostrar
aspectos correspondentes do significado" (p. 122, tradução minha).
Esta afirmação apresenta o conceito de réstance não corno uma pro-
priedade inerente ao signo; mas, antes, como o que é determinado numa
sintaxe específica cuja variação remete ao tempo futuro na proliferação
de novos contextos. Logo, podemos supor que teve e tem seu limite nos
tempos passado e presente. Estes tempos não são pura cronologia, são
tempos que recortam costumes e crenças, por exemplo.
Com Rorty, sustento sua defesa de um certo 'etnocentrismo', o qual
preconiza que não nos cabe ir além das determinações da cultura, das
contingências históricas que nos constituem com suas palavras e crenças.
Devemos nos contentar em estabelecer a controvérsia entre as partes de
nossas próprias convicções (op. cit. p. 14).
Tomando a psicanálise como uma cultura que produz psicanalistas e
determina sua ação, cabe problematizá-la no seu interior ao invés de
apreciá-la 'de fora', ao modo do observador neutro. Ao tomarmos dis-
tância de nosso objeto para apreendê-lo de outro modo, não devemos
abandonar nosso vocabulário, mas sim ampliá-lo e modificá-lo em novas
O que éfeito da psicanálise I 33
* Tomaram parte nesse grupo cerca de quinze profissionais com vínculo empre-
gatício nas seguintes unidades: Centro de Saúde Carlos Antônio da Silva (Nite-
rói); Centro Municipal de Saúde Heitor Beltrão (Tijuca); Instituto de Cardiologia
Aluysio de Castro (Humaitá); Hospital Infantil Ismélia Silveira (Caxias); Hospi-
tal Jurandir Manfredini da Colônia Juliano Moreira (Jacarepaguá); Hospital
Gafrée Guinle — ambulatório de adultos (Tijuca); Serviço de Saúde Mental de
Cabo Frio; IASERJ — ambulatório Maracanã; Hospital Cardoso Fontes/Hospi-
tal Geral de Jacarepaguá — Serviço de Adolescentes; Serviço de Psicologia
Aplicada da UERJ e Posto de Saúde do Município de Cantagalo. Estes profis-
sionais, todos graduados em psicologia, tinham percursos bem diferenciados na
psicanálise. Alguns vinham de instituições psicanalíticas onde receberam uma
formação regular, e outros estavam iniciando seu contato com a formação atra-
vés do Círculo, embora já tivessem uma experiência pessoal em grupos de
estudo, supervisão e análise. Somente duas pessoas eram membros efetivos do
Círculo.
** As unidades enfocadas foram: Postos de Atendimento Médico — PAM Bangu
(emergência e ambulatório); PAM Irajá (serviço de psiquiatria); PAM 13 de
Maio — Centro (serviços de psicologia, psiquiatria e adolescentes); PAM São
Francisco Xavier (atualmente Policlínica Piquet Carneiro) e PAM Venezue-
la/Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro (emergência); Centro de Saúde de
Duque de Caxias (serviço de saúde mental); Centro Municipal de Saúde Manoel
José Ferreira — Catete (serviço de psicologia); Centro de Saúde Santa Rosa —
Niterói (serviço de saúde mental); Centro de Saúde Dr. Washington Luís Lopes
— São Gonçalo (serviço de saúde mental); Programa Especial de Saúde Mental
de Barra do Pirai (ambulatório); Posto Municipal de Saúde Dr. Cândido de
Freitas — Duque de Caxias (serviço de psicologia); Posto de Saúde do Municí-
pio de Cantagalo (serviço de psicologia); Posto de Saúde Santa Isabel — São
Gonçalo (serviço de psicologia); Posto de Saúde de Volta Redonda (serviço de
38 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
2. Sobre os serviços
repetiu o ano?... 'Não, ela não é minha filha não, é que ela veio do norte
e lá ela não estudava... eu botei ela na escola agora...' Até então, ninguém
tinha se dado ao trabalho de perguntar por que ela estava na I série.
a
"Uma outra vez, veio uma moça dizendo que era viúva, crente de uma
pequena Igreja, que não permitia que ela se casasse de novo. Se queixava
de uns calores no corpo. U m a outra mulher então sugeriu que ela fre-
qüentasse a sua Igreja, porque lá ela poderia se casar. Ela imediatamente
pegou os horários do culto e deu-se por satisfeita.
"Teve um outro caso de uma menina de uns sete anos, que tinha uma
confusão de sintomas: não dormia sem a avó que cuidava dela, fazia xixi
na cama, era cheia de fobias, chorava dia e noite, e não conseguia ficar
na escola sem a presença da avó. Tinha uma história complicada de
abandono da mãe e o pai tinha sumido. Me lembrava a Piggle do Winni-
cott. Essa menina entrou em análise comigo apoiada pela avó e ficou uns
quatro anos vindo ao ambulatório regularmente. Foi um caso de psica-
nálise, sem dúvida."
O segundo exemplo mostra que a resolutividade depende não só das
iniciativas da equipe mas, também, de sua tolerância em deixar que as
demandas se resolvam naquele espaço, para poder diferenciar as condu-
tas e os encaminhamentos. Nesse caso, o atendimento em grupos era
muito incentivado. Havia grupos de pacientes egressos de internação
psiquiátrica em hospitais conveniados, grupos de familiares desses pa-
cientes, de mulheres etc. Mas também havia a possibilidade de um
atendimento individual prolongado. A oferta cabia ao profissional, e a
demanda delineava-se nesses atendimentos coletivos como uma espécie
de vestíbulo da psicanálise.
O fato de a psicanálise fundamentar a escuta nesse tipo de trabalho,
visando ir além das queixas e demandas mais imediatas, pode favorecer
um encaminhamento que dê início ao processo analítico. Mas também,
tendo em vista a proliferação de urgências num atendimento em grupo,
Interrogando o ambulatório I 47
Um último exemplo:
Novamente, trata-se de uma triagem em grupo, desta vez em um
serviço que atende adolescentes e suas famílias:
"Atendemos uma menina que vinha acompanhada de sua avó. Depois
de alguns atendimentos, ela pede um espaço para ela. Encaminhamos
para um grupo de mulheres. Ela foi umas duas ou três vezes e pediu para
48 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
voltar para o grupo anterior dizendo: 'Aqui não escuto caso de ninguém...
quero escutar os casos das pessoas também.' Resolvemos acolher o seu
pedido, porque, na triagem, a mãe ou um parente vêm junto; no outro
grupo ela teria que vir sozinha. Tenho a impressão de que não é porque
ela não queria se separar da avó, como um sinal de dependência. Mas,
talvez, porque ela esperasse que a avó pudesse se beneficiar também. O
mais curioso, é que a avó diz: '... Nossa! como ela está bem... voltou a
estudar, porque ela tinha parado os estudos... agora ela escuta os proble-
mas das pessoas..."
O exemplo fala por si. Sobre esse caso é importante estar atento aos
seus desdobramentos para acompanhar os efeitos dessa demanda. Aqui,
a triagem se transforma em tratamento. E, do que se trata no pedido dessa
adolescente?
Curiosamente, esse não é o único caso em que o grupo de triagem é
escolhido. Fiquei sabendo que, nesse mesmo serviço houve situações
semelhantes. A entrevistada relata outro episódio:
"Teve um outro caso de um menino de uns dez ou onze anos, que me
foi encaminhado para psicoterapia individual; veio a algumas sessões e
não voltou. Um tempo depois, encontrei com ele, por acaso, quando fui
à sua escola para fazer um contato institucional, através da minha unida-
de. Ele lembrou de mim e, para minha surpresa, voltou a procurar o
serviço. Recomeçou pelo grupo de triagem e, quando foram encaminhá-
lo, ele foi explícito: 'Não,... eu quero é ficar aqui mesmo. Aqui eu ouço
os problemas dos outros, eu aprendo com isso.' Novamente aceitamos."
desaparecer a demanda 'tora do lugar'. Essa deve ser a maior lição que
temos que aprender da psicanálise nesse primeiro momento.
Sobre a demanda fora do lugar, há um consenso entre psicólogos,
psicanalistas e psiquiatras, menos aderidos ao medicalismo, que a clínica
médica, ao separar 'corpo' de 'gente', sofreu um empobrecimento de
seus recursos propriamente clínicos substituindo-os por novas tecnolo-
gias de exame e diagnóstico que prescindem dos elementos terapêuticos
sustentados na relação de confiança nutrida pela convivência e pela
conversa. Freud sempre sublinhou os efeitos da sugestão que estão na
base dos fenômenos da transferência como um poderoso instrumento
terapêutico — e também de equívocos — presente na clínica em geral.
A questão não é assemelhar a clínica médica à psicanalítica sob o
mesmo denominador comum da transferência. Antes, é devolver à clíni-
ca médica um espaço dela retirado pelo próprio psicologismo (ou psica-
nalismo), para dar conta de um certo endereçamento feito ao médico em
vez de precipitá-lo aos 'psi' quaisquer em nome das especialidades.
Em alguns serviços, me foi relatada uma constante preocupação,
especialmente por parte dos psicanalistas, em indagar dos médicos os
motivos deste ou daquele encaminhamento. Muitas vezes entabulavam
conversas informais, outras, discutiam em reuniões comuns procurando,
nem sempre com a tática desejável, deter essa precipitação em expelir do
campo médico tudo o que escapa a uma dimensão tecnicista do exame e
diagnóstico.
Duas armadilhas entravam esse diálogo clínico precipitando as con-
dutas: A primeira é o medicalismo, que responde ao pedido de 'remédio'
com a solução química, tida como mais rápida e eficaz, como se não
houvesse outro 'remédio' para o sofrimento. A segunda é o psicologis-
mo, que responde ao pedido de soluções para o 'trauma', entendido
como ameaça ou castigo psicológico por uma conduta errada, com a
tarefa moral de corrigir o erro através de uma pedagogia supostamente
esclarecida. O que é diferente de se utilizar taticamente do recurso a uma
certa pedagogia para desfazer os excessos de psicologismo. O problema
é que a tarefa crucial de enxugar o medicalismo ou o psicologismo não
se dá sem problemas.
Primeiro porque "os lugares onde, em princípio, médicos e psicana-
listas [e psicólogos] se encontram são, sem dúvida, aqueles onde tudo
pode ser dito, porque são sem possibilidade de rigor. Na melhor das
hipóteses, são lugares de transição onde se afirmam vocações; na pior,
pântanos onde se afundam veleidades" (Clavreul, 1983, p. 179).
52 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
decisão, seja como for, o psicanalista tem que fazer diferença sem cair
no logro de bancar o diferente. A diferença diz respeito a seu agir em
cada caso e não a uma estilização caricatural de sua função. Como
manter essa diferença frente a outros profissionais? Como se situar em
equipe? Vamos adiante.
casos em que uma terceira atue subjacente, como efeito esperado ou não.
Vamos a eles:
pressão que eu tinha era que eles trabalhavam pensando nisso, corno o
pessoal das escolas de samba, que passa o ano todo se preparando para
o grande momento."
Sem dúvida, não há como negar os efeitos terapêuticos e de pertinên-
cia social que dotam de sentido todo um esforço de trabalho, toda uma
rotina, que se repete à espera do "grande momento", ou, simplesmente,
para preencher o tempo através do trabalho e do convívio. Afinal, isto é
bem o que fazemos em nosso cotidiano em nome da normalidade. Mas,
como alude o exemplo anterior, o problema é que o sujeito, com sua
tematização própria pode não encontrar nos defensores das práticas so-
cializantes alguém a quem possa endereçá-la.
Feito esse percurso por um certo blending das éticas que norteiam a
clínica, fica a pergunta: o que a psicanálise e o psicanalista têm a ver com
isso?
Em primeiro lugar, nada impede que o psicanalista se aproxime, ou
mesmo se envolva em diferentes modalidades de tratamento que visam
efeitos terapêuticos a partir da interlocução. Como já apontei, esta é a
ética mais próxima da psicanálise. A interlocução, porém, deve ser en-
tendida aqui como um ponto de partida, algo a ser transformado em,
digamos, elocução. No dicionário: " 1 . Maneira de expressar-se oralmen-
te ou por escrito; 2. Escolha de palavras ou frases, estilo."
Esta definição preciosa permite esclarecer um ponto sobre o qual
Lacan insistiu no decorrer de seu ensino, sua transmissão oral da psica-
nálise: não existem dois sujeitos na psicanálise e o objeto está do lado do
analista. Quem escolhe as palavras ou frases é o sujeito. Ao enunciado
em seu conteúdo junta-se a enunciação, o modo de dizer, o momento em
que é dito, o endereçamento. Isto é, para quem se diz o que, e qual a
finalidade do dito. Esse é seu estilo.
A ética da tutela, portanto, está fora de questão. Não há como conci-
liar. A ética da ação social pode ser surda. Seu limite crucial está em se
entregar ao afã de recuperar a cidadania perdida, mas, pode não ser
incompatível com a escuta sutil da elocução. E uma escolha a ser feita.
O psicanalista, para fazer funcionar a elocução, deve estar preparado
para atravessar as diferentes modalidades de tratamento sem perder-se
Interrogando o ambulatório | 73
ansiosa e se você se recusar a falar a gente não vai entender o que está
acontecendo... e, se a gente não resolve isso aqui, ela vai te levar para
outro lugar e mais outro. Por que você não aproveita que está aqui e
vamos conversar?' Aí ele fala: 'Mas eu não quero vir... porque acho que
não preciso disso... ela é que fala. Eu não venho mais.' A mãe fica
desesperada, se ele não quer falar, o que ela vai fazer? Ela diz, 'essa é
minha única esperança'. Ele continua de mau humor, e a mãe vai respon-
dendo minhas perguntas dirigidas a ele. Na escola as notas eram boas,
mas isso não bastava. Aí ela conta um episódio em que ele chega da
escola e não fala com ela nem cumprimenta a vizinha que estava lá. E
você fez o quê? Ela diz: '... eu tenho medo dele ficar chorando... dele ter
uma crise'. Eu marco isso como um gesto de má educação, o menino me
olha meio de banda e diz 'é... não volto mais' e saiu da sala. Nesse ponto
cu convidei a mãe para voltar e conversar comigo sobre isso tudo que a
transtornava tanto. Na semana seguinte ela já vem dizendo que ele está
melhor e ainda fala dele. Mas nas sessões seguintes ela começa a falar
de como ela chora muito, de seus medos, porque ela mora num lugar
controlado por um grupo de extermínio onde não se pode abrir a boca c
que ela tinha medo de falar... não podia falar. Eu abro um prontuário para
ela, porque até então os registros eram feitos no prontuário do filho. Daí
ela passa a me contar de sua insatisfação com o marido e o lugar onde
mora etc. Um dia ela vem me dizer que tem uma coisa para me falar que
nunca falou para ninguém. Era uma cena de abuso sexual quando criança
e que, pelo que entendi, teve repercussões na vida dela que a fizeram
abrir mão de uma paixão, casar-se com um homem a quem não amava c
aceitar suas imposições. Ela diz que, com ele, não estava nem ligando
para o que podia pensar dela. Ela está comigo há uns três anos, franca-
mente em análise e a vida dela mudou muito. Mudou sua atitude em
relação ao filho, ao marido, enfrentou um câncer na tiróide, e conseguiu
se mudar do lugar onde morava."
Destaco deste exemplo que, a partir de uma contingência bem mane-
jada, houve um deslocamento da queixa e da demanda onde o filho,
inicialmente o objeto de intervenção, tomou a palavra que lhe foi conce-
dida e, num aparente desacato, 'encaminhou' a mãe para o lugar de fala
que, para ela, era praticamente proibido. A partir daí, é com o analista.
Eu digo, 'a senhora não queria que ele tivesse prazer'... 'É, se eu não
tenho, ele também não pode ter'. Pontuo, 'a senhora não pode ter...'
"Por problemas de instalação do posto interrompemos os atendimen-
tos por um tempo e ela desapareceu por cerca de quatro meses. Passado
esse tempo, vejo seu nome no caderno de marcação de clientes novos.
Quando ela entra na sala, vejo-a de cabelos cortados, bem trajada e com
um sorriso largo como eu nunca vira. Ela diz: 'Há quanto tempo, nc
doutora? A senhora deve estar estranhando o meu sumiço, é que eu tive
muitas coisas para fazer, mas agora eu já resolvi todos os meus proble-
mas, agora sim posso me tratar.' Pasma com o que ouvia, perguntei-lhe
que problemas tinha resolvido. Ela diz que se separou do marido, que
não se preocupa tanto com o filho, que o outro filho vai se casar e ela
nem deprimiu, e que vai mudar de casa. Começa a contar sua história
relembrando cenas da infância e sua questão se define numa fala: 'Agora
que posso fazer o que quiser, descobri que não sei o que quero.' E assim
começou sua análise." (Machado, 1995a)
Este exemplo pode dar o que falar. As possibilidades são muitas, a
começar pela tão controvertida questão da neutralidade do analista e as
dificuldades na transferência, seguida pela questão dos tratamentos bre-
ves e sua eficácia, especialmente em casos de alcoolismo. Mas estas são
falsas questões. A analista não se ofereceu como terapeuta de casal, nem
quebrou qualquer ética em seu desconhecimento. Ofereceu-se à transfe-
rência e trabalhou a partir das falas que lhe eram endereçadas como
queixas de um 'marido' e de uma 'esposa'. Era assim que falavam um
do outro. O marido sai da bebedeira e da impotência para fazer seu
passarinho cantar mais alto em outro lugar. A esposa vai e vem. O
importante é esse desvio no percurso da transferência que a leva a encetar
uma série de separações para formular uma questão sobre seu desejo.
Passando ao largo da penisneid, que marca o drama da mulher e tem
na histeria uma de suas soluções, destaco alguns elementos da história
desta mulher que têm conseqüências na construção de sua fantasia rela-
cionada ao momento em que entrou em análise: ela era gêmea de uma
irmã e, com a morte do pai quando ainda eram bebês, foi separada da
irmã e criada pela avó paterna e três tias, enquanto a irmã ficou com a
mãe. Depois de algum tempo a mãe tentou levá-la para casa, mas ela não
conseguia comer, vomitava tudo o que comia. Voltou para a casa das tias
sempre sentindo-se inferiorizada por não ter pai, e só saiu de lá para se
casar. A irmã gêmea matou-se ainda jovem quando foi abandonada pelo
marido. Conta, ainda, que as tias não a deixavam cortar o cabelo, até que
Interrogando o ambulatório I 77
pai começa a contar como isso começou. Ele diz que o filho teve um
problema com um professor homossexual na faculdade e, a partir daí, se
sente perseguido. Parece que durante um bom tempo o pai tentou 'tratar'
dele, comprou livros sobre esquizofrenia, conversava com ele dizendo
que entendia como era difícil lidar com o homossexualismo, mas não
aceitava sua construção delirante que, segundo o próprio Paulo, era
assim: ele teria sido escolhido para 'dar o sítio para os homossexuais' se
protegerem da perseguição que sofriam. Mas a idéia é que eles o toma-
riam da família e, para que isso não acontecesse, era preciso que a família
ficasse unida. Ele só enfrentaria a situação nessa condição. Por isso eles
tinham que saber da história toda.
"Numa sessão Paulo chega a dizer que gostaria que a família fosse
unida como os homossexuais. Ele diz que os pais são muito ingênuos e,
numa outra sessão, pede para eles falarem de como foram criados. A mãe
fala do colégio de freiras e o pai, do exército onde ele conviveu com
homossexuais. Paulo diz que nunca teve experiências homossexuais. Ele
chegou a ter namorada e houve um episódio de aborto em que o pai
resolveu tudo. Nessa época, a cunhada estava grávida.
"Esse período do atendimento durou mais ou menos uns seis meses
e eles vinham quinzenalmente. Paulo se tratava com um psiquiatra que,
segundo ele, teria dito que ele iria tomar medicação por um ano. Ele dizia
que queria sair porque foram os pais que quiseram que ele fosse, e tinha
uma história que a hora da sessão seria às 1 l:15h, mas ele foi atendido
às 1 l:30h, e 11 é a metade de 22 que é número de maluco, e meia é uma
coisa que é mas não é, e tem a ver com homossexual. No final do ano,
avisei a eles que iria sair por motivos alheios à minha vontade. Eles,
então, pediram para vir semanalmente até lá, e as brigas se acirraram.
Paulo vai ficando mais agressivo e dizendo que, enquanto a família
protege o sítio, não o protege e que enquanto eles não ouvem ou não
aceitam, ele corre perigo. A família não conseguia resolver sobre o que
fazer com o sítio, e acho que com tudo isso. Nessa época, eles já vinham
falando que precisavam se afastar uns dos outros mas não estavam con-
seguindo. Eu vinha trabalhando isso com eles. Eles vão ficando mais
angustiados e respondem agressivamente a Paulo, e ele começa a dizer
que não tem problema psiquiátrico e, pela primeira vez, fala que talvez
as coisas que lhe aconteceram tenham sido 'coincidências'.
"No período em que os atendi semanalmente, aumentaram os confli-
tos. A mãe se queixava mais abertamente do pai e dele, dizendo que não
agüenta dois homens dentro de casa cobrando coisas dela... Eles pressio-
82 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
porque eu não digo o que sei sobre os homossexuais, e que então ele não
vem mais falar sobre isso comigo.
"A partir de uma situação em que Paulo diz que vai contar sobre a
última mensagem que recebeu, mas não vai dizer de quem, para não
aborrecer o irmão (era uma pessoa conhecida de ambos), intervenho para
marcar que Paulo o está liberando de saber disso. Nesse ponto, penso que
seria bom tentar separar os dois, liberar o Pedro. Mas ele diz: 'mas eu
quero continuar aqui, é ótimo pra mim... eu vim lá do sítio só pra isso.'
"Recentemente, Paulo vem tentando explicar suas idéias de persegui-
ção de forma diferente. Ele acha que pode ser por causa da falta de 'afeto'
do pai que o levou a se aproximar demais da mãe e das tias com quem
moravam, e fala de cenas da infância em que o pai o afastava quando ele
ia abraçá-lo quando chegava do trabalho. Daí, ele deduz que, quando
chegou na faculdade, ele extrapolou. Diz que compreende a mãe, mas
não o pai, com essas histórias do exército. 'Lá, meu pai assimilou essa
história toda, eu não queria que ele fizesse isso.'... Mantive o atendimen-
to conjunto dos irmãos e permaneci atendendo a mãe separadamente."
Para terminar, este exemplo ainda causa espécie pois não podemos
dizer que seja uma análise de família, de grupo ou, sequer, individual.
Análise de dupla? Interessante definição, nada ortodoxa. E não podemos
esquecer da mãe que continuou sendo atendida sozinha. Quebra da ética?
Deveria ter sido encaminhada? Mas no começo eram todos juntos...
Então isto não é psicanálise!... Chegamos ao rochedo inamovível contra
o qual não há argumentação.
outro nome para encobrir um limite muito mais sutil da prática psicana-
lítica que deve ser discutido a partir de suas próprias premissas.
E notável que vários psicólogos e psiquiatras referidos à psicanálise
adotam o termo psicoterapia de base analítica, ou porque se submetem a
critérios inflexíveis assimilados em sua formação para definir o que é
psicanálise, ou porque em seu próprio percurso — análise pessoal, prin-
cipalmente, mas também definição e percurso teórico-clínico — não
conseguem definir seu trabalho como tal. Estão divididos em relação a
seu lugar como psicanalistas, só podendo afirmá-lo sob a proteção do
ideal do consultório onde, não raramente, enfrentam dilemas semelhan-
tes no cotidiano da clínica. Eis o seu sintoma.
cuidado porque se quer levar a conversa para uma coisa mais subjetiva,
você pode estar desvalorizando aqueles problemas todos, tão graves (...)
as pessoas parecem sem saída... não dá pra fazer um trabalho falando só
sobre coisas concretas que fazem sofrer mesmo".
Este tipo de argumentação se não confirma pelo menos corrobora
minha hipótese de que a velha dicotomia indivíduo versus social é o seu
ponto de partida. Trata-se apenas de escolher de que lado se está, ou
melhor, de que lado colocam a psicanálise. Sabemos que há um limite real
do alcance da psicanálise, ou de qualquer terapêutica, mas esse é o fim da
história e não seu começo. Sabemos também que não se faz psicanálise
da miséria. E, por isso, vamos afirmar a miséria da psicanálise?
Como lidar com essas situações-limite?
A tarefa do analista consiste, mais do que nunca, em oferecer ao
sujeito uma possibilidade de tematizar, ressignificar e elaborar sua "mi-
séria", até onde for possível para tomar uma outra posição frente a toda
essa desgraça cotidiana da qual, até certo ponto, não fazemos parte.
Tarefa impossível? Para Freud sempre foi, juntamente com educar e
governar. E afirmava a miséria banal como parte da condição humana
que jamais será erradicada pela psicanálise.
Quanto às faltas, podem ser indicadores de momentos difíceis do
sujeito na vida, mas também na análise. Uma coisa não exclui sumaria-
mente a outra. Quanto às interrupções, sempre há o recurso de um
chamado sem repreensão, ou de um convite a retornar quando for possí-
vel ou quando o sujeito sentir necessidade. O resto cabe a ele, seja com
que recursos for.
Quanto às histórias de vida, aí temos, ao invés do típico sentimento
de "não há nada a fazer", um manancial de trabalho: como são contadas
e recontadas; onde se situa o sujeito; que fantasia aí se tece; do que ele
pode realmente se desfazer para dar um rumo minimamente diferente à
sua vida. Isto não é psicoterapia de apoio, aconselhamento, ou de base
analítica. Muito menos o esvaziamento da condição social do sujeito. É
propriamente uma aposta na possibilidade de haver mudança na realida-
de do sujeito, em função de até onde vai sua aposta, em um campo
variável de possibilidades. Isto, por sua vez, depende também do manejo
do analista. O investimento é diferenciado, mas é para ambos. E a recí-
proca é verdadeira: ao desinvestimento do profissional, seja na institui-
ção ou na psicanálise, corresponde um desinvestimento do sujeito.
Portanto, antes de lamentar que essa população não investe no trata-
mento seja por não pagar, por não saber do que se trata, por não poder
Interrogando o ambulatório | 95
"Vim buscar o serviço público porque acredito que aqui posso ser
bem atendida (...) eu acredito nas instituições."
Este enunciado é de uma senhora formada em sociologia há muitos
anos mas que não exerce a profissão. Procura atendimento por ter sérios
problemas com o marido com quem é casada há anos e com quem
freqüenta uma psicóloga particular para terapia de casal, paga pelo ma-
Interrogando o ambulatório | 101
rido mas solicitada por ela. A psicóloga em questão indica terapia indi-
vidual para os dois e mantém o atendimento do casal. Ela reconhece que
está precisando, e o marido prefere continuar conversando com a psicó-
loga com quem, segundo ela, se entende bem. Como o marido não
mostra disposição para pagar por mais uma terapia e ela mesma diz que
não gostaria de pedir mais dinheiro a ele, pois esse tratamento vai "ser
só meu", ei-Ia aportando no serviço público. Convém lembrar que ela
vendia produtos de beleza para ter "um dinheirinho" irrisório diante dos
ganhos do marido mas não o fazia regularmente. O que fazer diante dessa
demanda? Trabalhar a importância do pagamento daquilo que é só dela
e encaminhar para a clínica privada? Aceitar tacitamente sua palavra
como aposta no valor do serviço público e iniciar um trabalho "só seu"?
Optou-se, no caso, pela segunda hipótese.
Seu dilema era separar-se ou não do marido, queixas várias que foram
dando lugar a uma reflexão sobre o que a fez casar-se com ele e manter
um casamento com sérias decepções, desde o início, por tanto tempo. No
processo, ela decide que ele tem que pagar (...) pagar por isso; pagar
paia lê-la. sustentá-la, pagar pela terapia de casal que mais adiante é
interrompida pois ela não via sentido nisso. "A psicóloga acabava dando
razão a ele."
Outros acontecimentos em sua vida, como a doença e morte de seu
pai de quem cuidou em sua própria casa, confirmavam a importância da
ajuda do marido. Mais adiante ele pede a separação, o que era impensá-
vel até então, e ela decide convencê-lo a ficar num rearranjo da convi-
vência entre os dois, suportando suas saídas freqüentes em troca de uma
certa liberdade para o que é "só seu". Alguma separação tornou-se pos-
sível. Teria sido este o desfecho por ela desejado? Ou desejável, na
avaliação de quem a atendia?
Infelizmente, não acompanhei o caso para melhor discuti-lo. O que
interessa recortar nesse exemplo é a indagação: se houvesse pagamento
cm jogo qual seria a troca? Haveria um outro modo de pagar pelo que é
"só seu" e poder ganhar mais por isso? E o imponderável, sabemos disso.
A escolha foi feita por ela e aceita pelo analista.
"Estive nas mãos dos melhores analistas (...) nomes famosos (...) eles
pintaram e bordaram comigo, fizeram de tudo (...) andei de chinelo de
dedo pagando analista e não cheguei a lugar nenhum (...) e já que aqui é
de graça vou tirar tudo que eu posso."
Esta é a resposta de uma senhora instruída, com nível superior, à
pergunta sobre sua escolha de um ambulatório público. Ela fora atendida
102 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
ate então por outra psicóloga do serviço, a quem se referia como uma
amiga, na freqüência regular de duas vezes por semana. A freqüência foi
mantida por um período de quase um ano, mas ela faltava muito e
chegava bastante atrasada para as sessões. No início, falava de seus
problemas referindo-se a uma relação amorosa que (...) "acaba com a
minha vida, abusa de mim, levou tudo que tenho de bom, meu dinheiro,
minha beleza, minha inteligência, (...) estou arrasada, não vejo mais
sentido na vida... não desejo mais nada".
Referia-se à atual terapeuta como uma "menina que não sabe de
nada" e as sessões foram se tornando difíceis. Sem saber o que fazer,
sentindo-se incapaz de lidar com o tom agressivo e de desvalorização
com que a paciente recusava suas intervenções, rendendo-se às evidên-
cias, ela propõe que a paciente venha só uma vez por semana porque
concorda que desse jeito não está mesmo adiantando. As reclamações
não foram poucas mas, para espanto geral, a paciente passa a vir sem
faltas ou atrasos. A perda da sessão toma novo sentido como uma possi-
bilidade de trabalhar sobre sua demanda de "tirar tudo porque já haviam
tirado tudo dela". Começa a dizer frases do tipo: "quero ir fundo, entrar
de cabeça, porque agora sei que posso contar com você" e "quero vir
para cá porque quero aprender a crescer, (...) estou contando com você...
não posso te perder".
Diante da perda inesperada de uma sessão, justificada pela confirma-
ção de que "desse jeito não adianta", sua exigência em obter algo, um
ressarcimento de tudo que já pagou e perdeu, dá lugar a um movimento
desejante. O que ela tem como oferta do outro é o trabalho de análise,
não está mais "nas mãos dos analistas" (mestres famosos?), portanto, não
é seu objeto. O analista agora é que não pode ser perdido, ele serve de
garantia para ela poder "entrar de cabeça na vida" e na análise, pois
começam a ser relatados fragmentos de lembranças de cenas nebulosas
que envolvem fantasias eróticas em relação à mãe.
Neste caso, pagar com o tempo adquire um valor na economia libidi-
nal e provoca uma reviravolta na relação do sujeito ao objeto: da perda
de tempo, que nada traz, ao tempo que está perdido e não se recupera.
Convém lembrar que não se trata de uma punição. Num dado momento,
ela solicitou urna sessão extra na mesma semana e foi atendida, mas seu
pedido referia-se ao fato de naquele momento precisar falar, ter o analista
disponível para o trabalho de elaboração, não era barganha.
postá-los por um tempo, arriscando ver qual o efeito disso. A idéia sequer
se concretizou pois não havia "clima para isso". Poderíamos pensar que
se trata de um artifício inútil, por demais apegado à palavra, sem consi-
derar outros "poderosos fatores sexuais envolvidos" na empresa do trá-
fico. Seria esta uma boa maneira de trabalhar para o analista, ao invés de
para o traficante? Isso resultaria no bom andamento da análise? Entre-
tanto, este seria um julgamento precipitado.
O que interessa neste exemplo é pensar alguma alternativa para desa-
fios clínicos tão grandes tanto no que se refere ao gozo da pulsão, quanto
às identificações em jogo nesse caso. Poderia ser útil se o serviço ofere-
cesse formas de absorção e ocupação para certos pacientes. Isso, porém,
não basta, c preciso localizar o que oferecer e quando fazê-lo, a cada caso.
vcs de pessoas que não tinham como se manter. Portanto, a ética não é a
do dinheiro, e a questão é de que efeitos terapêuticos podem se produzir
no processo. No caso do próprio tratamento se transformar literalmente
em "encosto", resta a decisão de cada analista, a cada caso, de não
sustentar um pacto perverso.
Por outro lado, foram mencionadas formas indiretas de pagamento
como um custo real para os pacientes que se engajam nos tratamentos: o
tempo e dinheiro que gastam para chegar até o serviço pelo menos uma
vez por semana; diaristas que perdem no mínimo um turno de trabalho
e remuneração; donas de casa que deixam seus lares e filhos entregues à
sorte por boa parte do dia; jovens que perdem às vezes um dia inteiro de
atilas, gazelas à parte, e têm que se haver com as provas e demandas dos
professores; trabalhadores em geral que sofrem pressões para não se
ausentarem regularmente dos empregos;,desempregados que conseguem
emprego c têm que arcar com uma escolha difícil de abandonar seus
tratamentos ou negociar com os patrões; pais que têm que levar os filhos
vencendo todo tipo de obstáculo, e por aí vai. Haja investimento e
inventividade! Estes são alguns exemplos que devem ser contabilizados
como pagamento e na avaliação da resistência.
Uma outra objeção aparece de forma mais sutil. Vários entrevistados
comentaram que os pacientes agradecem muito, não há margem para a
transferência negativa, para que apareça o lado obscuro da fantasia diri-
gida ao analista. Ou. ainda, se estão achando que ir lá e falar não adianta
nada, como vão dizer isso se são tão bem atendidos, na hora, com tanta
dedicação /1
mos perceber que eles indicam exatamente o que dizem. Ou seja, agra-
decer pode ser, no mínimo, a confirmação de que houve efeito terapêu-
tico, ate um modo de reconhecimento do trabalho do analista. E impor-
tante saber cm que momento da análise, a partir de que acontecimentos,
cm que seqüência associativa isso ocorre. Quantas vezes não ouvimos
após sessões difíceis, onde se revelam segredos ou sofrimentos penosos,
ou sc fazem associações impensadas, constatações inegáveis de situações
antes negadas, e, para nossa surpresa, ouvimos um "muito obrigado" sem
glandes alegrias, mas reconhecido.
Há. ainda, o famoso "muito obrigado por me escutar". Isto não é
pouco, apesar de sabermos que uma análise não fica por aí, ao contrário,
começa. O problema maior é que esses agradecimentos podem simples-
mente apontar para o fato de que no serviço público, de um modo geral,
as pessoas são muito mal atendidas, não são minimamente escutadas, ou
respeitadas. Isto c muito grave, e não deve ser tratado como dificuldade
em sc desfazer da transferência.
A dificuldade c outra c está do nosso lado. Se, ao cumprirmos nosso
dever ético dc atender bem somos exceção, como podemos nos livrar de
uma parle desse reconhecimento que, num dado momento, pode encobrir
uma outra face da fantasia?
Em primeiro lugar é preciso não confundir o atender bem com com-
placência ou bondade compadecida, nem saltar para o outro extremo do
intransigente c inflexível. Em segundo lugar, é preciso que, no decorrer
do trabalho analítico, o sujeito se perceba em trabalho até para poder
querer "férias", "folga", para pensar em ir embora quando achar que já
trabalhou o bastante.
Algumas pessoas comentaram que esses agradecimentos não se pro-
longam tanto quando o sujeito percebe que o tratamento não é a simples
aquisição dc um bem; a acolhida inicial vai dando lugar ao seu próprio
empenho.
Em vários depoimentos aparecem exemplos freqüentes de analistas
presenteados, seja cm ocasiões típicas como Natal, Páscoa, mesmo ani-
versário, mas também em situações singulares, em geral por pacientes
cm tratamento há algum tempo. Parece que deixam entrever no amor de
transferência um pagamento pela via da gratidão, poder dar algo. Se tem
a equivalência de desfazer-se de uma dívida, só nos resta ir a detalhes de
cada caso. Uma analista comentou bem humorada: "no consultório não
ganho tanto presente assim"!
108 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
"Eu divido uma sala com a nutricionista, é bem pequena e tem uma
balança de bebê e outra comum além de uma maca (...) tinha um paciente
Interrogando o ambulatório \ 111
que nas primeiras vezes não parava de olhar a balança... indaguei mas
ele não disse nada. depois parou com isso.
"Na sala do médico é pior ainda, tem armário de remédio e os
pacientes olham muito... pelo menos nas primeiras vezes... eu aten-
do muitas crianças, elas não requerem divã, então a coisa é bem variada."
"Tenho minha sala... não fico cara a cara... boto a cadeira mais longe,
não gosto de ficar muito perto... a pessoa fica do lado da mesa e eu mais
afastada (...) às vezes a sala é usada para atendimento de grupo, aí eu
sento numa cadeira meio diferente que indica o lugar do terapeuta e a
pessoa senta onde quiser... a tendência com o tempo é eles não quererem
ficar frente a frente ou muito perto de mim."
"A sala é um consultório médico típico, uma mesa entre duas cadeiras
frente-a-frente (...) tem gente que prefere ficar me olhando... outros se
incomodam com isso mas não há muito o que fazer (...) as cadeiras são
estreitas, a sala mal tem ventilação... no verão às vezes a gente deixa a
porta entreaberta, na minha sala dá pra fazer isso porque fica no canto,
não c passagem (...) os médicos cansam de atender com a porta aberta...
pia eles essa coisa de sigilo não é como pra gente."
"Eu não agüento mais vir aqui te ver... eu penso em você o tempo
todo... penso que te vejo na rua... pra me livrar dessa paixão, tenho que
ir embora."
Com estas palavras, uma mulher bonita, de seus quarenta e poucos
anos, encerra seu tratamento com um jovem analista. Havia sido enca-
minhada pela ginecologia com queixas de dores antes e depois da mens-
truação. Segundo ele:
"Ela já chegou como paciente de análise, se questionava muito, trazia
sonhos e foi chegando ao ponto dela se perguntar sobre a relação com o
marido, com quem dizia não ter prazer. No começo ela olhava para baixo
e. depois, começou a me encarar. Nesse período, a transferência amorosa
se intensifica resultando num apaixonamento sem solução. Um dia ela
me deixoti uma carta no ambulatório explicando que não podia mais vir,
que tinha a impressão de me ver pela rua (...) uma carta muito poética
(...) ela escrevia poemas, mas não só para mim (...) só que chegou a um
ponto insustentável."
O que leria sido desse amor, antes mesmo de suas manifestações mais
eróticas, se fosse levado ao divã como um recurso à interdição do objeto
pelo olhar? Sabemos que não foi por falta de divã que Freud se viu
enredado na sedução de suas histéricas. Não podemos passar ao largo da
questão quando a pregnância do olhar aparece de modo tão literal.
Seja como for, do divã à sala de oftalmologia, ternos que manejar esse
elemento a mais na transferência que pode ser tão pregnante quanto
irrelevante no decorrer do processo. Estamos livres para inventar a partir
dos acontecimentos até onde a burocracia das especialidades e dos ser-
viços nos permitirem. No ambulatório, para o divã não há regras.
Uma psicanalista comenta intrigada: "Tem uns que não têm regulari-
dade porque não investem mesmo. Tem outros que não voltam. Mas tem
outros que somem e reaparecem sem o menor pejo. Em geral, somem no
período dc fim dc ano e no verão. Como o lugar é pequeno, às vezes
encontro com alguém na rua que me diz: 'ah, doutora tá tão quente...
andar até lá nesse sol...' Mas acabam voltando. Eles voltam quando
aparece um outro problema ou um novo sintoma físico. As vezes reto-
mam o assunto anterior, mas geralmente pedindo uma resposta, muito
semelhante ao modo como procuram os médicos. Até aí, tudo bem, eu
entendo que a cultura médica é que predomina. Acontece que, em alguns
casos, eles já sabem que comigo é diferente, eu não dou respostas, faço
perguntas, ponho pra trabalhar... parece que isso fica marcado dc algum
modo, mas não há continuidade. Às vezes, depois de uma ou duas
sessões, param de vir porque melhoraram, não sei de que nem porque,
depois voltam. E isso que me intriga."
Este relato condensa uma série de questões, sem dúvida, intrigantes.
Sc eles percebem alguma diferença em relação à abordagem do médico,
por que voltam? Certamente é porque não é com o médico que esperam
resolver o problema. Então, que saber demandam do psicólogo para seus
problemas c sintomas físicos? Aqui, especulo que uma certa cultura
psicológica já sc instalou, mas qual o seu estatuto? Seria o psicólogo (o
psicanalista não c sequer nomeado) um híbrido de médico, confessor,
conselheiro c juiz? Provavelmente sim. E a prevalência pode variar de
acordo com o que sc pede ou se quer saber. A figura do psicólogo parece
ser permeável a todas essas atribuições. No consultório não encontramos
a mesma variação imaginária dc forma mais sutil e dissimulada? O que
os faz "não dar continuidade"? Ou, o que é mais intrigante, o que os faz
dai' continuidade a um modo de se apresentar e demandar resposta quan-
do, dc algum modo, já perceberam que ali "é diferente"? Em suma, o que
os faz voltar? Esta é a freqüência que interessa. Cabe ao analista se valer
dela ao máximo para fazer valer sua diferença e ver quem volta.
Uma outra psicanalista argumenta:
"Nós recebemos muita gente a toda hora. São encaminhamentos
diversos, mas tem muita demanda espontânea. As vezes me pegam no
corredor, minha sala é do lado da ginecologia e sempre vem uma mulher
dizendo 'posso dar uma palavrinha com a senhora?' Ou 'preciso alguém
para me escutar'. Tenho a impressão que, para quem tiver ouvidos para
ouvir, não vai faltai' trabalho. Acho que não devemos facilitar demais, é
120 I Vastas confusões c atendimentos imperfeitos
importante que a pessoa encontre obstáculos, para não cair num muro de
lamentações que não ata nem desata. Tem que pegar mais pelo desejo.
"Antes cu tinha mais evasão do que agora, acho que é porque fiquei
mais exigente, eu escolho mais os casos, e acho que eles também me
escolhem. Quando começam a faltar muito, eu cobro. Já que não pode-
mos cobrar em dinheiro, vamos cobrar a presença. Não fico acusando,
não adianta trabalhar pela via da resistência. Mas se deixar correr solto,
a coisa não anda. Antes, eu achava terrível aquele esquema de desligar o
paciente se faltar três vezes seguidas sem justificativa. Hoje, eu entendo
isso de outra maneira. Fica como um limite, um jeito de marcar algu-
ma coisa. Não é castigo, até porque, quando eles querem, eles voltam e
são atendidos, mas já é diferente, eu não estou lá esperando indefinida-
mente."
A questão de "por que voltam?" se soma à de "como voltam?" Aí
podemos ter indícios de como vai o trabalho de elaboração, e de até onde
o sujeito pôde caminhar. Curiosamente, uma norma burocrática pode
funcionar como um recurso importante no manejo da transferência. Uma
punição pode ser ressignificada como um modo de marcar a diferença.
Obtive depoimentos que vão na direção contrária. Vários entrevista-
dos relatam casos de pacientes assíduos por um longo período de tempo,
de pelo menos dois ou três anos, sem discriminação de patologia, sexo
oti faixa etária. Podem ser psicóticos graves, donas-de-casa, adolescen-
tes, trabalhadores ou aposentados.
Uma psicanalista se espanta com a assiduidade dos pacientes.
"Fico me perguntando o que faz aquelas pessoas irem lá toda semana,
muitas vezes sem faltar, para me falar de seus problemas, de suas vidas,
anos a fio."
Neste ponto, desloco a discussão sobre a freqüência para a duração.
Quanto tempo para uma análise? A meu ver, este é o maior desafio. E, é
bom que se diga. não é privilégio ou defeito do consultório ou do ambu-
latório. E uma questão para a psicanálise: interminável ou intermitente?
Qual o tempo da elaboração? E, ainda, qual o tempo para a dissolução
da transferência como vislumbre de um fim para a análise? Estas são
qtiestões para a "bruxa metapsicologia" que evoco no capítulo final deste
trabalho. Por hora, destaco duas situações clínicas que evidenciam o
tempo com tuna função singular no trabalho analítico.
A primeira é sobre o início de um atendimento onde o tempo entra
como desencadeador da fantasia no que diz respeito à duração das ses-
sões. O relato é de um psicanalista:
Interrogando o ambulatório | 121
"Eu atendo uma moça, que no início ficava meio incomodada quando
a sessão chegava aos dez minutos e não terminava. Eu tinha a impressão
que cia estava acostumada ao padrão dos médicos, e aí insisti em esticar
a sessão. Foi todo um trabalho que tive que fazer para marcar a diferença
do atendimento psicanalítico. Eu segurava mais tempo, perguntava desse
incómodo e cia passou a associar a partir disso. Um dia ela começa a
falar dc uma desvalia, e diz: 'acho que as pessoas perdem tempo comi-
go'. E daí vem a história dela, de como é tratada pela família, que não
prestam muita atenção a ela... Vi que estava no caminho certo."
Nesse primeiro tempo, o tempo é sintomatizado e vai dando lugar à
fala na medida em que se interroga sobre ele. O analista, preocupado em
oferecer psicanálise, estica o tempo sem saber onde ia chegar. O sujeito,
por sua vez, se apresenta como aquele com quem só se pode perder
tempo. Daí em diante, o analista já pode operar em direção à fantasia que
está cm jogo.
A segunda refere-se mais ao sintoma do analista. Em um serviço de
adolescentes, a faixa etária estabelecida é de 12 a 20 anos. Uma psicana-
lista, disposta a exercer sua clínica sem fazer concessões ao tempo mar-
cado pela idade, sc vè diante de um problema curioso. Ela nos conta:
"Quando entrei no serviço público resolvi experimentar fazer psica-
nálise sem concessões para testar mesmo como seria aquela experiência.
Sustentei análises de longa duração sem idade determinada. Tive pacien-
tes comigo por seis, até oito anos, o que não é uma coisa comum. Tinha
pacientes que já estavam com quase 30 anos de idade, e isso começou a
criar um certo problema. As enfermeiras faziam um laço comigo mas
tinham que colocar a idade no prontuário ou na ficha. Nunca fui aborda-
da diretamente porque eu explicava que a psicanálise é um tratamenio
que não tem limite de idade, e isso era tolerado. Acontece que o prob' >
ma sc deu no sentido propriamente analítico, porque comecei a percet r
que esses pacientes ficavam marcados pelo significante 'adolescente'.
Percebi que esse negócio de significante funciona, é sério. Na ficha se
escrevia a data da consulta e no cabeçalho tinha o nome do serviço. O
sujeito eslava preso a isso (...) aí eu comecei a pensar que é preferível
que perca isso ao invés de manter o benefício de se tratar com o mesmo
analista. Isso acontecia mais comigo do que com os colegas. Reconheci
que tinha alguma coisa errada ali, e combinamos que a pessoa ficaria lá
até os 20 anos, isso seria colocado desde o início."
Neste caso. o tempo cronológico marca uma identidade, fixa-a como
uma alienação justamente ao significante do qual o sujeito tem que se
I 22 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
Essa leitura, sem dúvida, foi feita por muitos sucessores de Freud
cuja ambição residia em definir esta outra realidade fora da neurose e,
mais radicalmente, da psicose. Da fantasmagoria kleiniana ao realismo
da psicologia do ego, o analista, por ser analisado, deveria saber bem a
diferença entre as realidades em jogo.
Nada disso é desprezível como possibilidade de nos guiar para, senão
uma solução, pelo menos uma indicação de por onde devemos ir para
trabalhar com a realidade que concerne à psicanálise.
Vejamos: se entendemos, com Freud, que o inconsciente é a verda-
deira realidade psíquica, inatingível em sua totalidade do mesmo modo
que a dita realidade externa, deduzimos que uma análise não abarcará
jamais o inconsciente. Nem lançará o sujeito à realidade material de
modo irreversível. O inconsciente não é patológico. O modo de lidar com
sua realidade é que pode ser patogênico. Tudo o que se pode fazer é
remanejar sua incidência a ponto de transformar seus efeitos que causam
sofrimento em algo manejável pelo próprio sujeito.
A solução, dita normal ou saudável, que Freud apresenta em seu texto
de 1925 "Perda da realidade na neurose e na psicose", em sua preocupa-
ção sobre o que fazer dessa realidade, combina certas características de
ambas as patologias: recusar a realidade parcialmente, como na neurose,
e alterá-la, como na psicose, mas na ação aloplástica por oposição à
autoplástica (p. 185). O neurótico perde a realidade no esquecimento,
não quer saber; e o psicótico se perde no que não pode ser esquecido,
sabe sem parar, mas sua reinvenção da realidade não parece ser partilhá-
vel.
Alterar a realidade pela ação é bem o modo pelo qual se faz cultura,
sociedade, política, relações de todo tipo.
Para Lacan, o problema se resolve em sua formulação dos três regis-
tros — imaginário, simbólico e real. A realidade psíquica, a realidade
propriamente dita, tem estrutura de ficção. O campo da realidade se dá
pelo contorno simbólico (registro dos significantes — campo do Outro)
do imaginário (campo do eu) recobrindo o real em sua dimensão de
ex-istência, de exterioridade, no duplo sentido apontado por Freud quan-
to ao id (campo do gozo) e ao 'mundo externo' (campo dos acontecimen-
tos).* Se o analista, por ser analisado, sabe um pouco mais sobre isso, é
justamente por ter-se havido com o real podendo suportar sua ex-istên-
cia. Não há como saber tudo ou dizer tudo até o fim. A verdade é não
toda, ela toca o real.
Voltemos a Freud.
Em seus estudos sobre cultura — Totem e tabu (1912) — e religião
— Moisés e o monoteísmo (1939) —, Freud faz referência à realidade
psíquica da fantasia movida por desejos inconscientes como fonte primá-
ria da cultura, da verdade histórica que sustenta a tradição e da religião
monoteísta. Sua analogia entre o primitivo, a criança e o neurótico e,
mesmo, o psicótico — que deve ser entendida fora de qualquer conota-
ção evolucionista e psicologista ainda presentes em suas formulações —
nos fornece indicações clínicas preciosas.
Destaco especificamente dois aspectos: a relação do pensamento com
a ação e a relação do pensamento com a verdade.
O pensamento deve ser tomado no sentido da "verdadeira realidade
psíquica" que Freud atribui ao inconsciente como processo psíquico
primário que se desdobra no processo secundário. A distinção feita por
Freud entre representações de coisa e de palavra pode ser entendida
como diferentes modos de arranjo de um léxico com uma sintaxe. Neste
ponto, recorro à leitura de Lacan sobre o inconsciente freudiano que
abandona a noção de representação por relação ao referente e postula a
metáfora e a metonímia como as leis que regem esse arranjo, remetendo
um significante a outro por substituição e deslocamento. A distinção
entre primário e secundário adquire um outro estatuto. Quanto à repre-
sentação de coisa, que se dá tipicamente na psicose, o significante coisi-
ficado não remete a outro, estancando a possibilidade de significação,
ou, então, desliza sem cessar. Em ambos os casos, perde-se a dimensão
subjetivada da palavra. Quanto à representação de palavra, Lacan a resu-
me em sua fórmula: o significante representa o sujeito para outro signi-
ficante, na qualidade de seu representante, fazendo funcionar o discurso.-
* Lacan faz uma observação instigante sobre a polêmica tese freudiana do mono-
teísmo como o retorno do recalcado articulado ao parricidio fundador — Totem
e tabu — que Freud retoma em Moisés e o monoteísmo. Em suas palavras: "... a
verdadeira fórmula do ateísmo não é 'Deus está morto' — mesmo fundando a
origem da função do pai em seu assassínio, Freud protege o pai — a verdadeira
fórmula do ateísmo é que 'Deus é inconsciente." — Cf. O Seminário, livro II
— Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 60.
** A aproximação entre neurose e psicose presente em Freud é hoje bastante polê-
mica depois da formulação estrutural de Lacan que recortou os termos Verdran-
gung, Verwerfimg e Verleugnung como os mecanismos fundamentais da neuro-
se, psicose e perversão, respectivamente. Freud, no entanto, alternava os dois
últimos termos ao referir-se à psicose. O termo 'rejeitado' corresponde ao Ver-
werfung que Lacan traduziu por forclusion. Em vários trechos de sua obra, dos
primeiros estudos sobre as neuropsicoses de defesa até um de seus últimos
trabalhos, "Construções em análise", de 1937, Freud aproxima certos mecanis-
mos ou fenômenos do funcionamento psíquico de cada uma das patologias. Opto
por manter essas aproximações para compreendê-las sob a rubrica de realidade
psíquica preservando suas diferenças até onde trazem conseqüências significad-
Por uma psicanálise possível | 135
"o paciente não associa" ou "ele muda de assunto... não liga uma coisa
à outra... as idéias são fragmentadas". Parece que há uma confusão entre
os termos 'associar' e 'estabelecer nexos lógicos ou causais'. N a d a mais
contrário à regra fundamental. Ela se instaura mais para 'dissociar' a fala
que busca causas coerentes, bastante comum no pensamento do analisan-
do "que também quer experimentar realidades" como que dotadas de
uma racionalidade.
Daí surge outra confusão entre 'associar' e 'elaborar'. Se o discurso
adquire uma coerência no processo associativo podemos estar diante de
um trabalho de elaboração. Pode, ao contrário, ser indício do bom fun-
cionamento do recalque a favor de uma idealização do tratamento, ou da
cura, ou ainda das expectativas do analista. Essa idealização está presente
no início do estabelecimento da transferência. Pode ser também um
momento da elaboração em que o sujeito quer concluir alguma coisa
sobre si e sua condição. Não nos cabe impedir ou exigir que isto aconte-
ça. Mas somos chamados a discernir e, mesmo, a decidir sobre isso.
A elaboração é um processo, uma exigência de trabalho que o sujeito
se impõe 'através' da análise, da presença do analista que o faz trabalhar.
Mas isso não acontece necessariamente durante as sessões nem na se-
qüência de tempo esperada. Não ouvimos o que queremos. Só temos
acesso à elaboração de modo fragmentário e sempre incompleto. É im-
portante marcar que o modo de fala que provocamos é definido pelo que
Freud chama de Einfall.*' No dicionário**: idéia repentina; invasão;
Lacan, que resume bem a concepção de verdade que nos diz respeito. A
questão que se põe é: "Se a verdade fala, será que fala para dizer a
verdade?" (p. 14). O analista tem que escolher entre dois valores de
verdade:
"Ou a verdade é, segundo a fórmula clássica, adaequatio intellectus
et rei, a adequação entre pensamento e objeto: assim, diz-se que uma
proposição é verdadeira ou falsa em função dessa conformidade ou não
com o referente, pois o que está em jogo é a aquisição de um saber
referencial;
"Ou a verdade é, segundo a 'Coisa freudiana', o dizer de uma fala
que apela para a confiança do Outro, para se fazer reconhecer em seu
valor de evento: 'Sim, você o disse!' Assim, o locutor recebe sob uma
forma invertida sua própria mensagem, doravante no futuro do presente
composto: 'Eu o terei dito.' O que está em jogo não é um saber referen-
cial, mas um saber textual. (...) Mas sob uma condição absoluta: que o
Outro acredite" (pp. 14-15).
Acreditar no sujeito, portanto, é acreditar no seu dizer produzindo o
dito, verdadeiro ou não, ao qual se adere como evento de uma "enuncia-
ção auto-referencial segundo a qual um 'eu' convoca um 'ele' para
ouvi-lo". Ou seja, o contexto da verificação é o próprio texto como
produção (dizer) e produto (dito) do sujeito.
Esse amor à verdade como saber textual é condição necessária mas
não suficiente para dissipar os efeitos desconcertantes da resistência em
sua versão de amor-ódio — hatnamoration, como diz Lacan.
Da parte do analista, o que pesa é seu percurso na própria análise, na
vida e, provavelmente como decorrência desses dois fatores, seu savoir-
faire, seus recursos imediatos para lidar com o que emerge a cada sessão.
Nem furor sanandi, nem remédios inofensivos. Deve-se praticar uma
"psicanálise não diluída, sem medo de manejaros mais perigosos impul-
sos psíquicos e obter domínio sobre eles para benefício dos paciente."
(Freud, 1915, p. 171).
Da parte do sujeito, o que pesa é, como Freud mostra no texto, a
fixação da libido que insiste sob o modo da repetição. A resistência
sozinha não produz esse amor, apenas o instrumenta e o intensifica a seu
serviço, escondendo e exibindo a fantasia, com seu gozo, na solução de
compromisso que é o sintoma. A origem desse amor é atribuída à repe-
tição como reedição de protótipos do amor infantil — Freud, em 1915,
ainda não tem o recurso à repetição como uma compulsão para além do
princípio do prazer.
Por uma psicanálise possível I 141
Se o sintoma não é assimilado pelo ego, temos o que Freud aponta, ao longo de
sua teorização sobre os diferentes sistemas, como o que é prazer para um sistema
passa a ser desprazer para outro. Esta é uma das maneiras de designar o conflito,
a divisão do sujeito, como diz Lacan.
142 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
paciente sua que assistiu a uma palestra sobre sonhos onde este foi
relatado. Ela própria passa a "'re-sonhá-lo', isto é, a repetir alguns de
seus elementos em seu sonho" (1900, p. 509). Reduplicação do trauma?
O segundo exemplo é a famosa cena do fort-da em "Além do princí-
pio do prazer" (1920), que Freud presencia ao observar seu neto brincar
com um carretel fazendo-o desaparecer e reaparecer. A partir da expe-
riência traumática do desaparecimento do objeto libidinal — no caso, as
saídas da mãe — o menino encena em seu jogo o movimento de 'ir-e-vir'
numa tentativa de domínio sobre o objeto a serviço do princípio do
prazer através dessa manipulação. Este exemplo ilustra a repetição atra-
vés do incessante vaivém do objeto.
Vejamos como Lacan trata esses exemplos:
Tique refere-se ao encontro sempre faltoso com o real. Que falta o
pai teria cometido para ser repreendido em sonho por seu filho morto?
Para Lacan, a falta que concerne ao real não é da ordem de um julgamen-
to moral. E, antes, como uma impossibilidade que ela opera. Não foi
possível salvar a vida de um filho que teria ardido em febre até a morte.
Não foi possível reverter esse destino. Assim como, no segundo exem-
plo, não é possível ao menino um acesso não tanto à presença da mãe,
mas a seu desejo enigmático. Para onde vai seu desejo quando ela desa-
parece? Eis o ponto traumático.
Autômaton é o que resiste porque insiste na cadeia de significantes.
No primeiro caso, é a insistência do sonho que reduplica a cena do
incêndio e constrói a frase como um apelo reprovador do filho pela falta
do pai. No segundo caso, é o jogo de oposições significantes — fort (vai)
e dá (aí) — que sustenta o movimento. Eis o ponto em que a cena se
inscreve no simbólico.
Sobre a dimensão simbólica da repetição, Lacan diz:
"Se o sujeito é o sujeito do significante — determinado por ele —,
podemos imaginar a rede sincrônica de tal modo que ela dê, na diacronia,
efeitos preferenciais. Entendam bem que não se trata aí de efeitos esta-
tísticos imprevisíveis, mas é a própria estrutura da rede que implica os
retornos. E esta a figura que toma para nós, através da elucidação do que
chamamos estratégias, o autômaton de Aristóteles. E também é por
automatismo que traduzimos o Zwang de Wiederholungszwang, compul-
são de repetição" (1973, p. 65).
E, ainda, "A sintaxe, seguramente, é pré-consciente. Mas o que esca-
pa ao sujeito, é que sua sintaxe está em relação com a reserva incons-
ciente (...) — a ser entendida no sentido de reserva de índios, no interior
Por uma psicanálise possível I 145
da rede social. (...) Quando o sujeito conta sua história, age, latente, o
que comanda essa sintaxe, e a faz cada vez mais cerrada. Cerrada em
relação a quê? — ao que Freud, desde o começo de sua descrição de
resistência psíquica, chama um núcleo.
Dizer que esse núcleo se refere a algo de traumático é apenas uma
aproximação. Precisamos distinguir, da resistência do sujeito, essa pri-
meira resistência do discurso, quando este procede ao cerramento em
torno do núcleo. Pois a expressão de resistência do sujeito não faz mais
do que implicar demasiado um eu [moi] suposto, do qual ele não está
certo — ao se aproximar desse núcleo — que seja algo que pudéssemos
estar seguros de que a qualificação de eu [moi] ainda tenha fundamento"
(p. 66).
Se fazemos uma superposição de Freud com Lacan, temos algo do id,
"a resistência do inconsciente" traduzida como compulsão à repetição,
que insiste, na dimensão traumática do mau encontro com o real (tique),
e se articula à sintaxe que faz funcionar a rede de significantes (autôma-
ton) "pedindo elaboração".
No caso do sonho do pai, Lacan aponta algo que Freud não vislum-
brava em 1900: o sonho atesta que há algo que não é da ordem da
realização de desejo que se repete, mas algo 'anterior' ao princípio do
prazer, que seria da ordem do trauma. Este sonho fundamentalmente não
realiza um desejo, não causa prazer.
No caso do menino do carretel, tanto Lacan quanto Freud, apontam
que o que é traumático para o menino do carretel é, no entanto, elaborado
na ação causando prazer. Coisa de criança? Prefiro achar que também
pode ser coisa do processo analítico.
A repetição, por sua dupla via do mau encontro com o real, que
retorna sempre no mesmo lugar, e do significante, sob o modo de relatos
de cenas ou episódios, relatos de sonhos, incidências de falas numa
sintaxe que não se reduz ao eu, "pede elaboração". Esta pode se dar tanto
pela palavra quanto pela ação. Devemos abolir quaisquer resquícios da
concepção evolucionista e desenvolvimentista — de certo modo presente
em Freud e enfatizada pelos pós-freudianos — que supõe que a ação na
repetição é infantil, pré-verbal, ou regredida. A ação na elaboração,
inevitavelmente, guarda uma dependência, senão uma familiaridade com
a repetição. E através desta que aquela se dá. A incidência do analista
desencadeia e dá suporte à elaboração sustentada na transferência. Cito
Lacan:
"(...) não se trata em Freud de nenhuma repetição que se assente no
natural, de nenhum retomo da necessidade. O retorno da necessidade
146 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
nada, mas sempre querendo dizer alguma coisa que promete significa-
ção. Cabe ao analista apontá-la para, paradoxalmente, esvaziar a possi-
bilidade de uma significação última, definitiva, vitória da razão sobre a
emoção. Psicanálise não é intelectualização, mas também não é processo
emocional.
O amor ao 'sujeito suposto saber' põe o analisando em posição de
confiar ao analista sua fala onde, imprevisíveis, aparecem seus segredos
(elementos da fantasia), seu padecer (um modo de gozo que não dá
prazer), sua esperança em mudar (ideal do eu) e se livrar 'disso' (pedido
de amor). Ao supor um saber ao analista, o analisando acredita, mas
também duvida, que ele realmente saiba. Portanto, essa suposição não se
esgota na figura do analista, mas tem em sua presença uma possibilidade,
ao mesmo tempo que um limite, de fazer o sujeito vir a saber de sua
condição como parte de seu trabalho. Ao falar, se vê e, principalmente,
se escuta num lugar que lhe é estranho e familiar. "Eu disse isso?
(...) Não é isso (...) Eu quero dizer isso (...)" e por aí vai. E também age
dentro e fora da sessão de modo inusitado, estranho e familiar, efeito da
repetição.
O saber que se produz d'isso, não vem só da boca do analista. Essa
outra dimensão da suposição que provoca a fala atesta a existência do
inconsciente, não como ôntico mas como produção, e reconduz o analis-
ta ao lugar de desencadeador mais do que sabedor da verdade. O mestre
sabe, o analista, por ser suposto, não sabe. O 'sujeito suposto saber' não
está nem no analista nem no analisando, é uma produção do dispositivo.
Na psicose a coisa é diferente. O psicótico padece da certeza mais do
que da dúvida, logo não está, pelo menos num primeiro momento, incli-
nado a supor. O analista, ou sabe tudo, lê seus pensamentos, ou não sabe
nada. Fazer vacilar a certeza em direção a uma suposição possível é o
ponto sobre o qual o analista deve trabalhar na análise do psicótico.
Na neurose, se o sujeito, com suas cinco frentes de resistência, supor-
tar esse jogo como sua chance de ir adiante, então está instalada a
transferência como condição da análise.
Contudo, sabemos que isso não impede a manifestação de outras
formas de amor-ódio mais ou menos resistentes ao trabalho analítico. O
amor ao 'sujeito suposto saber' é uma nova via que deve absorver as vias
vicinais, que podem se concretizar enquanto resistência bloqueando a v i a
principal até o limite do que Freud chamou de reação terapêutica nega-
tiva. Na psicose, o sujeito padece da ausência da via principal, perden-
Por uma psicanálise possível | 149
Lacan, em seu Seminário, livro 111 — As psicoses, dedica boa parte da lição
XXIII — "A estrada principal e o significante 'ser pai'" — a essa metáfora da
estrada principal como sendo a organização fálica dada pela função paterna que
está ausente na psicose.
150 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
No texto "A direção da cura" de 1958, publicado nos Écrits, Lacan desenvolve
uma versão da clínica inspirada na teoria do general prussiano Karl Clausewitz
sobre a guerra como um cálculo cujos elementos são: a tática, a estratégia e a
política. No cálculo da clínica psicanalítica, o analista se vale dos três elementos.
Por uma psicanálise possível I 151
Sua tática, onde é mais livre, é a interpretação; sua estratégia, onde é menos livre,
é a transferência; finalmente, sua política, que domina estratégia e tática e onde
é menos livre ainda, é menos seu ser do que sua 'falta-a-ser'. (p. 585-90).
Os exemplos foram retirados da publicação Os poderes da palavra, uma coletâ-
nea de textos de autores anônimos, reunidos pela Associação Mundial de Psica-
nálise sob a organização de Jacqucs Alain-Miller.
152 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
Freud nos responde com outra pergunta: "Existe essa coisa de um fim
natural para uma análise — existe alguma possibilidade afinal de levar
uma análise a tal fim?" E ironiza: "(...) a julgar pela conversa dos analis-
tas parece ser assim, pois ouvimos dizerem com freqüência, quando
estão deplorando ou desculpando as reconhecidas imperfeições de qual-
quer mortal: 'sua análise não terminou' ou 'ele não foi analisado até o
fim'." (1937, p. 219). Freud continua argumentando sobre o que quer
dizer 'o fim de uma análise':
"De um ponto de vista prático, é fácil responder. Uma análise termina
quando o analista e o paciente cessam de se encontrar na sessão analíti-
ca". Quando isso acontece? Há duas hipóteses: a primeira é quando o
paciente não mais sofre de seus sintomas, inibições e angústias; a segun-
da é quando o analista supõe que não se há que temer a repetição de
processos patológicos, dado que todas as resistências foram trabalhadas
e que o material recalcado tornou-se consciente e explicado.
Há, ainda, uma terceira hipótese, um outro sentido para o fim da
análise, mais ambicioso, que supõe que o analista exerceu uma tal in-
fluência sobre o paciente que esgotou qualquer possibilidade de mudan-
ça que justifique a continuidade da análise, como se fosse possível atingir
um nível de "absoluta normalidade psíquica", de estabilidade, através do
preenchimento de todas as lacunas da memória.
Freud duvida tanto da segunda hipótese — eliminação das resistên-
cias e acesso completo ao recalcado — quanto da terceira — influência
do analista que esgota a possibilidade de novas construções. Sua dúvida
não vai no sentido de uma dúvida metódica para chegar a uma certeza
sobre a cura. É, antes, uma dúvida cética que põe em cheque a própria
definição dos fatores etiológicos envolvidos no tratamento analítico. As
neuroses traumáticas teriam um melhor prognóstico, mas o grande obs-
táculo surgiria do que Freud chama de "força dos fatores constitucionais"
e do grau de "alteração do ego", estando ambos interligados. Adiante
reformula:
"E, no entanto, concebível que um reforço da pulsão que surge pos-
teriormente na vida possa produzir os mesmos efeitos. Se assim for,
lobos quando marcou uma data para terminar o tratamento e refere-se a outros
casos seus e de colegas. O que ele refere como chantagem, que dá o tom de
ameaça a esse artifício sobre o tempo, resultaria na retenção de parte do material
psíquico em prejuízo da outra parte que se tornou acessível, ou seja, provocaria
mais recalque do que elaboração.
Por uma psicanálise possível I 155
deveríamos modificar nossa fórmula e afirmar 'a força das pulsões na-
quele momento' em vez de 'a força constitucional das pulsões'" (p. 224.
grifado no original).
Em seu esforço para definir o que está em jogo numa análise, Freud
altera o item 'fatores constitucionais' em favor de uma reformulação do
tempo. O acontecimento, em sua dimensão traumática, pode acionar a
'força das pulsões' de tal modo que já não se trata exclusivamente de
fatores arcaicos de um passado infantil como desencadeadores da neuro-
se. O fator desencadeador é atualizado no acontecimento. Ou melhor, na
reativação da força das pulsões a partir do acontecimento. Isto quer dizer
que não há como garantir e, muito menos, como prevenir uma 'recaída'
na patologia. Este é o sem-fim da análise.
Podemos deduzir que a repetição, na via da pulsão, entendida como
'fator constitucional', c sempre passível de ser atualizada em determina-
do momento. Nesse sentido, a repetição aparece, paradoxalmente, na
dimensão do imprevisível. É a tique de que fala Lacan. Há o tempo do
acontecimento que provoca um movimento referido a um tempo anterior,
por retroação. Este é o tempo da posterioridade, do 'só depois' {Nachträ-
glichkeit).
Impossível prever ou prevenir. Esse acontecimento pode ser localizá-
vel no fator biológico como puberdade ou menopausa nas mulheres, mas
pode "surgir de modo irregular por causas acidentais em qualquer outro
período da vida (...) através de novos traumas, frustrações forçadas, ou
influência colateral das pulsões uma sobre a outra. O resultado é sempre
o mesmo e sublinha o irresistível poder do fator quantitativo na causação
da doença" (p. 226).
O 'fator quantitativo', no entanto, não é mensurável. Ele varia tam-
bém conforme o modo como o acontecimento é assimilado no interjogo
das pulsões, com a capacidade de elaboração ou de trabalho do sujeito,
e com os demais fatores em jogo que constituem o contexto do aconte-
cimento onde não se podem demarcar fronteiras entre o fato e a expe-
riência subjetiva. Seria mais apropriado falar de intensidade ou força em
vez de quantidade. Freud insiste no 'fator quantitativo' porque sua preo-
cupação se volta para a intensidade relativa da força destrutiva, inercial,
da pulsão de morte e das ligações promovidas pela pulsão de vida ou
erótica. No processo de fusão e desfusão das pulsões, qual o quantum
envolvido de cada parte nesse jogo de forças? Este seria o fator decisivo
para acelerar ou retardar o fim de uma análise. O que pode fazer o
analista?
156 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
* Lacan inicia seu texto sobre o tempo lógico (Écrits, pp. 197-213) com um
conhecido sofisma lógico ao modo de um jogo que procede assim: o diretor de
uma prisão chama três detentos para submetê-los a um exercício de lógica em
que o vencedor ganharia em troca sua liberdade somente se a conclusão fosse
fundada sobre motivos lógicos e não de probabilidade. Ele apresenta cinco
discos, sendo três brancos e dois pretos, e fixa um sobre as costas de cada detento
de modo que um veja o disco dos outros dois para poder deduzir a cor do seu.
Ele escolhe os três discos brancos deixando de fora os pretos. Os três tempos
lógicos correspondem às etapas do raciocínio desenvolvido ao longo do sofisma.
** Para um estudo acurado do texto de Lacan sobre o tempo lógico, remeto o leitor
ao texto de John Forrester "Em cima da hora: a teoria da temporalidade segundo
Lacan" em Seduções da psicanálise: Freud, Lacan e Derrida; e à dissertação de
mestrado de Manha Hirsch Gusmão "Olhar, compreender e concluir: uma con-
tribuição à questão do tempo lógico na teoria e na prática psicanalítica",
PUC/RJ.
Por uma psicanálise possível | 157
Uma outra definição dessa perda é dada por Lacan como 'perda de
gozo da fantasia'. Revelar a fantasia, abrir mão de um gozo fixado, deixa
margem para o vazio da falta. O que virá em seu lugar? Nesse sentido, o
analista não tem nada a oferecer, a não ser apontar o caminho do desejo.
Isto é, abrir mão de um gozo pelo qual se paga um preço muito alto. Caso
contrário, a análise não vale mais a pena. O sujeito não quer saber mais
disso. Muitas interrupções se dão neste momento. O analista deve con-
trabalançar a pressa com a espera para não incidir precocemente sobre
algo do qual o sujeito não pode ou não quer abrir mão.
Na psicose, o esforço de elaboração pelo delírio deve ser considerado
diferentemente da resistência pela manutenção do gozo no caso do neu-
rótico. Pelo trabalho do delírio, o psicótico tenta se livrar do peso mas-
sacrante do gozo do Outro — o perseguidor, na paranóia, a sombra do
objeto, na melancolia, para citar os mais típicos. A relação do psicótico
com o tempo não é marcada pela divisão. Neste sentido, ele não hesita.
Na análise do neurótico, a hesitação faz parte do percurso. Lacan a
insere num tempo crucial que decide sobre o destino do sujeito. Ele
hesita justamente quando precipitou sua ação para se salvar. E, se hesitar
um pouco mais, perde a vez. A escolha é sempre forçada. Podemos supor
que a certeza antecipada, que corresponde ao momento de concluir,
vacila em nome da manutenção daquilo que faz o sujeito gozar. Ou
melhor, nos termos de Lacan, do que faz o Outro gozar. Na neurose, o
sujeito é dividido em relação à consistência do Outro. Na psicose, essa
consistência é uma certeza. Esse Outro pode se apresentar na figura de
um marido ou de uma esposa, das mulheres ou dos homens, de um filho,
de um pai-patrão ou de uma mãe-patroa-madrasta, do trabalho 'escravo'
etc. Ou seja, esse Outro se insere no campo das relações sociais, do sexo
ao trabalho e impõe seu gozo pela via do superego.
O tempo de compreender não deve ser assimilado à idéia de um
raciocínio consciente referido a uma lógica formal abstrata. Se o identi-
ficamos à elaboração, pressupomos um trabalho que se dá também pela
via da repetição como trabalho incessante do inconsciente desencadeado
pelo analista. A elaboração procede tanto no pensar quanto no agir ao
longo da análise. Se pensar não é agir, também não temos como distin-
gui-los senão pela palavra do sujeito que tanto pode nos comunicar o
que, no senso comum, se chama uma idéia, quanto uma decisão já
tomada da qual não tínhamos qualquer notícia. O agir do sujeito não nos
é acessível diretamente, a não ser quando tomamos conhecimento dele
através dessas comunicações. Quantas vezes não ouvimos frases como
Por uma psicanálise possível I 159
Nessa relação peculiar de Freud com suas pacientes histéricas, que o guiavam
na invenção da psicanálise dizendo o que ele tinha que fazer para tratá-las, o
desejo de Freud se dirige ao enigma da mulher, que ele sustenta, identificado à
posição histérica, com a pergunta: "o que quer a mulher?" Seu desejo foi na
direção da psicanálise que iria defender e transmitir até a sua morte. Isto o leva
em direção ao limite do analisável que formulou como a "recusa da feminilida-
de". Até onde Freud foi o pai impotente ou acolhedor, o austero cientista, ou o
sedutor-seduzido? Remeto o leitor aos trabalhos de John Forrester (op.cit, parte I
— "A tentação de Sigmund Freud", que dá uma visão interessante da complexa
rede de relações de Freud com as mulheres, pacientes ou não), e de Serge André,
O que quer uma mulher? (que faz uma análise dessa questão a partir da ótica
lacaniana).
Por uma psicanálise possível I 165
causar desejo como efeito desta subtração. Lacan o nomeia de 'objeto a'.
Esta é a diferença. Só assim o analista pode remeter o sujeito adiante no
caminho de sua fala, até que ele possa se desfazer da 'viscosidade' que
tenta fixar o analista como seu objeto.
Assujeitado ao significante primordial 'psicanalista', o analista insta-
la a diferença a cada intervenção e ao longo do percurso, deslocando-se
do lugar que é chamado a ocupar pelo analisando. Só assim pode tam-
bém deslocá-lo de sua demanda para conduzi-lo na direção de um 'des-
tino em aberto', sabendo que algo está 'selado'. Este pode ser o sentido
que toma o termo 'assujeitado' do lado do analisando.
Lacan, entretanto, atribui uma significação ao significante primor-
dial: o amor sem limite. E é sem limite porque se situa fora da lei. Um
amor bandido? Ou um amor sem demanda? Se amar é uma forma de
querer ser amado, de demandar amor, seria esse amor algo fora do limite
da castração?
Sabemos que não cabe ao analista esperar ser amado pelo analisando
como reconhecimento do bem que lhe fez. Quando isto acontece, o
analisando freqüentemente responde na transferência com sua recusa em
'melhorar', frustrando o analista. Portanto, a demanda que este veicula
não pode ser de amor. Ao analista cabe demandar a presença do anali-
sando com suas palavras — no consultório deve pedir que lhe pague por
isso, no ambulatório deve localizar como o sujeito paga para estar lá.
O amor à verdade indicado por Freud no que se refere ao saber tem
seu correlato no 'amor sem limite' indicado por Lacan no que se refere
ao desejo do analista que, a rigor, nada demanda além do que lhe cabe.
Esta postura difere sutilmente da conhecida 'neutralidade benevolente'.
O desejo de diferença não é ausência de desejo, a não ser no sentido do
desejo pessoal. Não corresponde à neutralidade, assim como o amor srm
limite não corresponde à benevolência, ainda que possamos ter atitud -s
benevolentes para com nossos analisandos. A benevolência possível está
em acolher sem ceder às demandas do sujeito.
O desejo de diferença incide sobre a significação. E o que permite
desfazer sua fixidez remetendo a novas significações que, por sua vez, se
desfazem, afetando o sujeito, provocando viradas, causando desejo. O
amor sem limite não espera nada, não é nem tolerante nem intolerante.
E sem limite não por seu excesso, mas por não estar referido a um objeto.
E um amor "para o qual não existe modelo na vida real". Só aí se pode
ser psicanalista.
E quanto a viver? Navegar é preciso, viver é impreciso.
168 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
O que podemos hipotetizar a partir daí é que no coletivo dos grupos tanto
a elaboração quanto a suposição de saber podem circular entre os parti-
cipantes. Isto é diferente das identificações imaginárias que se dão como
laços afetivos e sociais que muitas vezes são confundidas com a transfe-
rência. A função da 'coordenadora', a quem é atribuída a última palavra,
deve ser a de operar como facultador dessa circulação em que determi-
nadas falas possam produzir efeitos sobre outras provocando a elabora-
ção. A função do analista, portanto, é a de ratificar ou retificar essas
produções sempre que for solicitado em seu lugar de diferença.
Essa formulação, contudo, é ainda incipiente e não consiste no obje-
tivo central deste trabalho, mas vale a indicação para avançar novas
considerações sobre o trabalho analítico em grupos.
são da clínica para outros lugares para dar suporte ao trabalho. O psica-
nalista, em geral, é ligado a algum grupo ou corporação de psicanalistas
à qual se refere para estudar, ensinar, discutir a clínica, conviver, enfim,
para manter viva a transmissão da psicanálise. E da maior importância
que haja um intercâmbio entre esses grupos privados e os serviços da
rede pública com fins a valorizar o trabalho psicanalítico nos ambulató-
rios. Entretanto, o objetivo principal não deve ser de formar novas
corporações enquistadas nas instituições públicas. Procedendo deste
modo, estaria-se fomentando o "narcisismo das pequenas diferenças" tão
praticado no corporativismo e tão avesso à psicanálise. Deve-se visar a
acompanhar, discutir e, mesmo, elaborar essa experiência clínica que nos
lança tantos desafios novos. Eis a contribuição que se pode dar.
Bibliografia