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A PRÁTICA ENTRE VÁRIOS: UMA APLICAÇÃO

DA PSICANÁLISE AO TRABALHO EM EQUIPE


NA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

Ana Cristina Figueiredo


Andréa Máris Campos Guerra
Doris Rangel Diogo
SOBRE A PSICANÁLISE APLICADA

▶ O texto tem como objetivo delimitar a ideia de psicanálise aplicada a fim de tomá-la
junto ao campo da Saúde Mental.
▶ Conferência XXXIV: defender a posição da psicanálise junto ao campo científico,
diferindo-a da Psiquiatria. A partir de tal posicionamento seria possível pensar a sua
aplicação. “As aplicações da Psicanálise são sempre confirmações dela”.
▶ Dados estatísticos de sucesso terapêutico não são referências para a validação da
psicanálise, e sim a partir do exame da própria experiência do indivíduo.
▶ A psicanálise “é um método entre muitos, embora seja, para dizer a verdade, primus
inter pares”.
SOBRE A PSICANÁLISE APLICADA

▶ Psicanálise Pura ou Psicanálise em Intensão: diz respeito à formação do analista.


Didática, aquela que prepara seus operadores.
▶ Psicanálise Aplicada ou em Extensão: não possui a exigência de produzir um
psicanalista, mas que se apresenta como uma consequência da primeira. Seria uma
aplicação da Psicanálise nos campos do mal-estar na civilização onde os fundamentos
da psicanálise estão aplicados. Seria tudo o que resume a função da Escola como
presentificadora da psicanálise no mundo.
▶ Possuem os mesmos fundamentos, mas com finalidades diferentes. Enquanto a
primeira produz o psicanalista, a segunda aplicada às instituições delinearia o que é
uma psicanálise.
SOBRE A PSICANÁLISE APLICADA
▶ Ao abordar Lacan, o texto recorre à fundação da escola lacaniana em 1964. O uso da palavra Escola tinha a pretensão
de evitar a transmissão dogmática da psicanálise desde Freud na preocupação em se produzir um psicanalista.
▶ “Ata de Fundação”:
1) Seção de Psicanálise Pura: práxis e doutrina da psicanálise propriamente dita, nada além do que a psicanálise didática
a) Doutrina da psicanálise pura
b) Crítica interna de sua práxis como formação
c) Supervisão dos psicanalistas em formação
2) Seção de Psicanálise Aplicada: grupos médicos (ou equipes clínicas), compostos ou não de sujeitos psicanalisados,
desde que estejam em condição de contribuir para a experiência psicanalítica – pela crítica de suas indicações em seus
resultados; pela experimentação dos termos categóricos e das estruturas que introduz como sustentando a linha direta da
práxis freudiana – no exame clínico, nas definições nosográficas e na própria formulação dos projetos terapêuticos.
a) Doutrina do tratamento e de suas variações
b) Casuística
c) Informação psiquiátrica e prospecção médica
3) Seção de recenseamento do campo freudiano
SOBRE A PSICANÁLISE APLICADA

▶ Retomada de uma psicanálise didática para recobrir a falha que impera na formação do
psicanalista. Pregnância narcísica entre os analistas. Eliminar o status de imponência.
▶ Distancia os analistas de uma formação que não nega o real em jogo, nem a responsabilidade
do psicanalista com sua própria formação.
▶ Não basta apenas reconhecer tal falha e se comprometer em romper com ela, “é por
intermédio de sua hiância que ele pode ser posto em ação, e o é toda vez que se encontra o
meio de utilizá-la”.
▶ Deve-se responder por sua própria formação a partir da constatação desta falha.
▶ Como efeito, tem-se a psicanálise como experiência original, “levando ao ponto em que nela
figure a finitude que permite ao a posteriori recolher o efeito radical do tempo”.
▶ Efeito da diferenciação da psicanálise de uma terapêutica.
SOBRE A PSICANÁLISE APLICADA

▶ O que diferencia a psicanálise das demais terapêuticas?


▶ A associação livre como única técnica psicanalítica, a regra de ouro da psicanálise.
Lacan retoma essa ideia a partir da afirmação de que é o psicanalista que dirige o
tratamento, e não o paciente. A direção do tratamento implica justamente em fazer
com que o sujeito aplique a regra analítica da associação livre.
▶ Para o analista há, portanto, uma certa liberdade de direcionamento da prática clínica
que é limitada ao princípio ético da psicanálise. Para tal, o psicanalista paga com
palavras e também com sua pessoa, emprestando-a como suporte aos fenômenos
transferenciais.
SOBRE A PSICANÁLISE APLICADA

▶ A metáfora bélica de Lacan ajuda a entender a aplicação da psicanálise:


• A tática seria a interpretação – maior liberdade, mas não completamente livre. Ela
opera segundo a falta-a-ser e somente referida à transferência, a partir do real em jogo
nos fenômenos transferenciais.
• A estratégia seria a transferência – menor liberdade. Paga-se suportando os
fenômenos da transferência em seu ser, seus sentimentos ocupando o “lugar do morto”
para uma condução da associação livre sem interferências do analista.
• A política seria a ética da psicanálise – corresponde à operação representada pela
falta-a-ser, ponto em que o analista seria menos livre.
SOBRE A PSICANÁLISE APLICADA

▶ O texto então retoma a questão da psicanálise aplicada ao tratamento das psicoses e


enumera obstáculos a serem trabalhados para sua utilização.
• A transferência, como estratégia, teria que ser reconsiderada por colocar questões
ao próprio método psicanalítico.
• Dentro do tratamento possível oferecido pela orientação psicanalítica, os fenômenos
psicóticos não são passíveis de interpretação. “Não há a Outra cena inconsciente à qual
supostamente a interpretação remeteria o sujeito, havendo pois o risco de
desencadeamento se o psicótico for convidado a esse trabalho simbólico.”
• Ocorre, portanto, uma inversão dos vetores da transferência e da interpretação na
prática analítica com psicóticos.
SOBRE A PSICANÁLISE APLICADA
Neurose
interpretação
Analista Sujeito

transferência

▶ Na psicose não há, por parte do sujeito


psicótico, a suposição de saber ao analista, mas
sim a certeza.
▶ Inversão dos vetores de trabalho analítico.
▶ O estabelecimento do laço transferencial e a
entrada em análise se dá a partir do campo do Psicose
Outro, do lado do analista, que procede o vetor
transferencial; e é do lado do sujeito psicótico Analista transferência Sujeito
(sob o ponto de
que procede o vetor da interpretação. vista do
sujeito)

interpretação
SOBRE A PSICANÁLISE APLICADA

▶ Desafio: não repetir as condições que colocam o psicótico como objeto de gozo do
Outro.
▶ O psicótico convoca quem o escuta a esta repetição, e cabe ao analista recusar este
lugar, não ocupando o lugar de Outro gozador e procurando sim um lugar vazio de
gozo, o “secretário do alienado”.
▶ Haveria o silêncio do analista na recusa a esse lugar de gozo, mas ao mesmo tempo a
manutenção do laço analítico, o que permite ao sujeito construir suas respostas ao
enigma pulsional.
▶ O saber está do lado do sujeito, e não do analista. Não há exercício de poder nessa
clínica.
SOBRE A PSICANÁLISE APLICADA

▶ O texto vai além da psicanálise aplicada na clínica da psicose e busca pensar sobre a
clínica ampliada na Saúde Mental. Recorrendo à metáfora bélica:
• Política: a proposta antimanicomial demanda de quem trabalha neste campo uma
posição política que, por sua vez, não parece ser a falta-a-ser, mas sim a aposta na
destruição do manicômio enquanto dispositivo simbólico de controle social.
• Estratégia: a transferência ganha novas formatações com as equipes
multiprofissionais, pois assim ela fica diluída no trabalho institucional.
• Tática: a construção de um lugar de interpretação se dá a partir de novos dispositivos
de intervenção, como as visitas domiciliares, as oficinas, as reuniões ou assembleias
coletivas.
O QUE É A PRÁTICA ENTRE VÁRIOS?
▶ Uma prática primus inter pares, uma possibilidade de pulverizar saberes.
▶ Estratégia clínica inventada e sustentada por Antonio Di Ciaccia e seus colaboradores.
▶ Psicanálise aplicada numa instituição chamada Antenne 110 para crianças autistas e
psicóticas nos anos 90 na Bélgica.
▶ Demonstrar um axioma de Lacan de que as crianças autistas estão inscritas na
linguagem.
▶ Impasses: acontecimentos repetitivos se davam como formas desreguladas de gozo,
convocando a uma intervenção da equipe.
▶ Havia o risco de alguém ocupar o lugar de Outro, de mestre detentor do saber sobre o
sujeito, este destituído de sua posição e tratado como objeto de gozo – o que produz a
repetição do gozo.
O QUE É A PRÁTICA ENTRE VÁRIOS?
Outras práticas

▶ Estratégia clínica, um operador sobre o gozo Equipe Sujeito


Saber
na via do Outro.
Direção do
▶ Remete à tática de cada um, em sua ação no tratamento
coletivo, e à retomada de sua política na
falta-a-ser, descompletando o Outro a cada
intervenção.
▶ Marca-se a inconsistência do Outro,
esvaziando a atribuição de saber que lhe é
endereçada, Práticas entre
vários
▶ Deslocamento do saber da equipe para o
sujeito. Equipe Saber Sujeito
▶ Do lado da equipe se inscreve uma posição
de não-saber que pode interrogar o sujeito, Direção do
tratamento
que pode vir a fazer algo inédito com isso.
QUAIS SÃO OS EIXOS
ESTRUTURANTES DA PRÁTICA ENTRE
VÁRIOS?
▶ Três eixos que funcionam como ponto de basta para a instituição:
1) A reunião de membros da equipe, o lugar de fala que visa evitar a objetivação da
criança.
Modo de operar com o discurso analítico. O que o sujeito ensina à equipe sobre seu
modo particular de lidar com o gozo excessivo, devido à desregulação do Outro?
Nas reuniões clínicas, a partir dos relatos da equipe sobre o que se passa na transferência
de cada sujeito com os participantes da instituição
Significantes ou algum ato repetitivo extraídos, que servem para mapear um certo
percurso pulsional
Construção do quadro clínico, que deve revelar a relação do sujeito com seu Outro
construindo o diagnóstico do discurso, e não do sujeito, e ainda, de um determinado
momento.
Trata-se de um diagnóstico contingente e que faz surgir indicadores de tratamento, no
qual cada um da equipe deve ter como referência.
QUAIS SÃO OS EIXOS
ESTRUTURANTES DA PRÁTICA ENTRE
VÁRIOS?
2) A função do responsável terapêutico, encarnada por qualquer um, mas
não um qualquer da equipe.
Deve permitir a cada um da equipe atuar na primeira pessoa.
Possibilidade de pluralizar o Outro, que com isso perde sua consistência para
o sujeito. Oferece-se assim um desdobramento para a transferência.
A finalidade não é operar de acordo com um discurso psicanalítico na
instituição, mas sim de trabalhar com a possibilidade de fazer surgir algo
inédito no circuito de trocas simbólicas.
A presença dos membros da equipe conta não por suas especialidades, mas
antes pelo encontro em si e o que pode ser apreendido dele.
QUAIS SÃO OS EIXOS
ESTRUTURANTES DA PRÁTICA ENTRE
VÁRIOS?
3) A referência teórica e clínica de orientação lacaniana do Campo freudiano.
Para poder operar na prática entre vários é preciso compartilhar algumas
premissas tais como: o sujeito e o Outro, a fala e a linguagem, o gozo e o
significante articulados no Sinthoma.
Isso é diferente de dizer que se trata de pertencimento de toda a equipe a uma
instituição psicanalítica.
As instituições que se orientam a partir da prática entre vários são formas de vida
com o Outro do amor, da transferência para além da experiência analítica.
Trata-se de circunscrever o real em jogo a partir da direção dada por cada sujeito e
a cada vez. Ancora-se no real a repetição do gozo em sua articulação significante.
COMO APLICAR A PRÁTICA ENTRE
VÁRIOS, NOS CENTROS DE ATENÇÃO
PSICOSSOCIAL? Equipe vista
Outras práticas

como um Saber Sujeito


▶ Articulação entre significante e gozo na “todo”
linguagem e não a ideia de trabalho em Direção do
tratamento
equipe como coletivo ou grupo.
▶ A ideia de coletivo deve ser diferenciada Ênfase
no gru
p o

de um todo, um ‘grupo’ que traz a ideia


de todo, o coletivo não se sustenta no
todo. - Equipe que não é
Práticas entre
a soma das partes vários
▶ Não há todo na soma das partes. - Outro
pluralizado
- Cada um
▶ A ênfase não é mais na sustentação atuando na Saber Sujeito
imaginária do grupo. primeira pessoa
Direção do Ênf
a
tratamento suje se no
▶ Ênfase na fenda, na possibilidade de i to f
pod uro qu
equ fazer e o
e
abertura que permite que o paciente faça ipe na

furo no interior da equipe.


COMO APLICAR A PRÁTICA ENTRE
VÁRIOS, NOS CENTROS DE ATENÇÃO
PSICOSSOCIAL?
▶ Não há uma garantia na clínica, mas uma direção de trabalho, um risco
calculável feito a partir do primeiro ato de intervenção.
▶ Um ato solitário, porém não intransmissível.
▶ Pode se produzir um saber a partir disso que pode ser partilhado.
▶ A responsabilidade do ato de cada um também é partilhável.
▶ Requer um certo investimento de cada um da equipe para sustentá-la,
transformando acontecimentos em oportunidades para se fazer laço
social, em uma perspectiva de transmissão da psicanálise.
ESBOÇO DE UM CASO ENTRE VÁRIOS

▶ Um jovem de cerca de 17 anos chega ao CAPS com sua mãe.


▶ Suposto diagnóstico de retardo mental leve com sintomas psicóticos.
▶ Frequenta o CAPS diariamente.
▶ Foto de uma revista de uma criança. Ele diz ser seu filho repetidas vezes a
todos que passam por ele.
▶ Reações diversas: risadas, dizer “a verdade”, constrangimento,
desconfiança.
▶ Dificuldade em interpretar e em fazer cessar essa insistência.
ESBOÇO DE UM CASO ENTRE VÁRIOS

▶ Trabalho inicial de tentar dar um continente a esse gozo irredutível em repetição


automática. Era o meio através do qual o jovem se apresentava.
▶ Não responder nada que afirmasse ou contrariasse.
▶ Fazer um comentário que produzisse alguma questão ou se silenciar.
▶ O jovem aos poucos deslocou o “esse é o meu filho” para incluir outros
elementos como “eu queria ter um filho de verdade”, e depois diz que tem
saudades do pai que já morreu.
▶ Mãe revela que ele bate nela, e que ela não o deixa fazer nada sozinho, nem
tomar banho.
▶ Bate em duas funcionárias que a trataram de forma infantilizada.
ESBOÇO DE UM CASO ENTRE VÁRIOS

▶ Situação em que o sujeito convoca o Outro a sustentar algo que ele próprio sabe
ser insustentável, mas não pode enunciar.
▶ Tentativa de barrar esse Outro que domina o seu corpo como o de um bebê, o
que faz dele um objeto de gozo.
▶ Gozo que aprisiona, tornando mãe e filho inseparáveis.
▶ Lugar deslocado de ter um filho de papel para um filho que sofre a perda do pai.
▶ A foto e a repetição era um artifício para se apresentar ao Outro, o que ele deixa
de precisar.
▶ Passa a montar uma peça no CAPS com personagens que ele cria, e a equipe
anota, como secretários, suas palavras.
OBRIGADA!

▶ Referência bibliográfica:
Figueiredo, A.C. e cols. A prática entre vários: uma aplicação da psicanálise
ao trabalho em equipe na atenção psicossocial em Psicanalisar Hoje, Rio de
Janeiro, Contra Capa, 2006

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