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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INVENTAR O AMOR:
UM DESAFIO NA CLÍNICA DAS PSICOSES.

NURIA MALAJOVICH MUÑOZ

2005
UFRJ

INVENTAR O AMOR: UM DESAFIO NA CLÍNICA DAS PSICOSES.

Nuria Malajovich Muñoz

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Teoria Psicanalítica.

Orientadora: Ana Cristina Costa de Figueiredo

Rio de Janeiro
Julho de 2005
INVENTAR O AMOR: UM DESAFIO NA CLÍNICA DAS PSICOSES.

Nuria Malajovich Muñoz

Orientadora: Ana Cristina Costa de Figueiredo

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria


Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria
Psicanalítica.

Aprovada por:

_______________________________

Presidente, Prof. Ana Cristina Costa de Figueiredo.

_______________________________
Prof. Luciano Elia.

_______________________________
Prof. Marcus André Vieira.

_______________________________
Prof. Octavio Domont de Serpa Junior.

_______________________________
Prof. Angélica Bastos.

Rio de Janeiro
Julho de 2005
FICHA CATALOGRÁFICA

Malajovich Muñoz, Nuria.


Inventar o amor: um desafio na clínica das psicoses / Nuria Malajovich Muñoz.
Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2005.
ix, 174 f ; 30 cm.
Orientadora: Ana Cristina Costa de Figueiredo
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de Psicologia /
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, 2005.
Referências Bibliográficas: f. 175-181.
1. Amor. 2. Psicose. 3. Psicanálise. 4. Instituição. I.Figueiredo, Ana Cristina Costa
de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Programa de
Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título
AGRADECIMENTOS

A Ana Cristina Figueiredo, pela generosidade e pela orientação cuidadosa, elementos


indispensáveis para a realização deste trabalho. Por todos os anos de estudo e de
discussão clínica, fundamentais para minha formação, mas sobretudo pela amizade e
pelo humor.

A Angélica Bastos e a Marcus André Vieira por suas contribuições no exame de


qualificação e pelas indispensáveis indicações de leitura.

Aos professores, supervisores e alunos da Residência em Saúde Mental e Residência


Médica do Hospital Municipal Jurandyr Manfredini e Instituto Municipal de Assistência
à Saúde Juliano Moreira, por compartilharem o trabalho e os desafios que a clínica das
psicoses suscita. Em especial a Erotildes Maria Leal e a Claudia Silberman, amigas
queridas e parceiras indispensáveis na prática de ensino da Residência.

Aos participantes do Laboratório de Psicopatologia e Subjetividade e em especial ao seu


coordenador, Octavio Domont de Serpa Junior, pelas indicações de leitura e por ter me
dado a oportunidade de ter acesso a outras abordagens teóricas sobre a psicose, que em
muito contribuem para a ampliação de meu campo de estudo e de minha visão clínica
sobre o tema.

A todos os participantes da Oficina de Vozes do CAPS Arthur Bispo do Rosário e em


especial a Lucas Almeida, Alex Muniz e Manuela Muller por me ajudarem a torná-la
possível.

A Andréa Vilanova, Cristina Frederico e Fernando Tenório pelo gentil empréstimo de


alguns textos fundamentais para o meu estudo. A Mariza Silvera e a Alexandre
Montaury, pela preciosa ajuda na revisão da tese.

A minha família que me ajudou, de diversas formas, a concluir esta tese. Em especial a
Marcus Telles, leitor crítico e paciente, por ter me apoiado e incentivado a prosseguir e
a Catarina Telles, pela companhia durante a escrita da tese e por ter podido, a sua
maneira, me esperar.
RESUMO

Inventar o amor: um desafio na clínica das psicoses.

Nuria Malajovich Muñoz

Orientadora: Ana Cristina Costa de Figueiredo

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em


Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
- UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título à obtenção do título
de Doutor em Teoria Psicanalítica.

Esta tese visa discutir as possibilidades do amor na psicose, abordando tanto as


suas formas de enlace com um parceiro, quanto o seu aspecto transferencial no laço
estabelecido com o analista.
Objetiva-se também salientar as contribuições da psicanálise no campo da saúde
mental, trabalhando questões relativas ao manejo da transferência no coletivo
institucional. Os casos apresentados articulam-se nessa perspectiva e visam explorar o
percurso clínico desses pacientes na procura e na construção de uma solução possível
para o amor e evidenciar as dificuldades e o debate que os casos suscitaram em suas
transferências à instituição.
O trabalho tem como fundamento a teoria de Freud e as elaborações de Lacan
para examinar o lugar do amor na relação que o psicótico estabelece com o mundo. A
psiquiatria clássica será utilizada para rastrear algumas soluções, na via do delírio e do
ato, para o amor na psicose.

Palavras-chave: amor, psicose, psicanálise e instituição.

Rio de Janeiro
Julho de 2005
ABSTRACT

Inventing love: a challenge in the clinical work with psychosis.

Nuria Malajovich Muñoz

Orientadora: Ana Cristina Costa de Figueiredo

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em


Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
- UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título à obtenção do título
de Doutor em Teoria Psicanalítica.

This thesis seeks to discuss the possibilities of love in the context of psychosis,
addressing both its modes of engagement with a partner and the transferential aspect of
the bond with the analyst.

The goal is also to emphasize the contributions of psychoanalysis in the mental


health field, considering issues related to the handling of transference in the institutional
collective. The clinical cases are presented through this perspective and aim at the
exploration of the clinical path experienced by these patients in the search and the
process of building a possible solution for love. The cases also highlight the difficulties
and the debates that they have evoked in their institutional transferences.

The foundation for this research lies on the Freudian theory and the further
developments of Lacan in order to examine the role of love in the relationship
established by the psychotic with the world. Classic psychiatry will be used to identify a
few possible solutions – through the paths of delusion and acting out – for love in the
context of psychosis.

Key words: Love, psychoanalysis, psychosis, institutions.

Rio de Janeiro
Julho de 2005
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..............................................................................................................................10

Capítulo 1 - UM TRAÇO DIFERENCIAL ENTRE NEUROSE E PSICOSE:


UMA ABORDAGEM DO AMOR EM FREUD...........................................................................15

1.1. EM TORNO DO TRAUMA............................................................................................................16


A defesa na psicose
Do sexual na clínica da psicose

1.2. SOBRE A VIDA AMOROSA NA NEUROSE E NA PSICOSE ...............................................................26


Amor e desejo
Narcisismo e escolha de objeto
A hipótese da homossexualidade
Dois casos de psicose e sua relação com a homossexualidade
Delírios de amor

1.3. SCHREBER E O AMOR............................................................................................................... 42


Breve história
Amar a Flechsig: o conflito
Amar a Deus: a solução do conflito
Sobre o amor após o delírio

1.4. O AMOR: UM DIVISOR DE ÁGUAS............................................................................................. 53


A perda do objeto
Sobre o Ciúme
O amor de transferência

Capítulo 2 - SOBRE O PASSIONAL NAS PSICOSES : LACAN E A PSIQUIATRIA............ 63

2.1. LOUCURA E AMOR: DA PSIQUIATRIA À PSICANÁLISE............................................................... 64

2.2. EROTOMANIA.......................................................................................................................... 66
O debate Dide/Clérambault
O caso Aimée

2.3. CIÚME.................................................................................................................................... 76
Sobre o delírio de ciúme na psiquiatria
O ciúme e a paranóia
2.4. O DELÍRIO COMPARTILHADO....................................................................................................80
Folie à deux de Lasègue e Falret
O crime das irmãs Papin ou o mal de ser dois na psicose

2.5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ATOS CRIMINOSOS NAS PSICOSES................................ 84

Capítulo 3 - O AMOR NA CLÍNICA LACANIANA DAS PSICOSES:


DOS IMPASSES ÀS INVENÇÕES..............................................................................................88
3.1. O AMOR NA TEORIA DA FORACLUSÃO DO NOME-DO-PAI..........................................................89
O esquema L na psicose
Em torno do Nome-do-Pai
Impasses do amor na psicose a partir do caso Porca!
O amor morto
A solução delirante

3.2. CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DO OBJETO a PARA A TRANSFERÊNCIA NAPSICOSE......................110


Da erotomania mortífera a uma transferência possível na psicose
Algumas considerações sobre o ato na psicose

3.3. FRACASSOS E SOLUÇÕES DO AMOR NA PSICOSE......................................................................116


Sobre a psicose e a sexuação
Sobre a psicose e seus enlaces
James Joyce e o amor
Considerações sobre a philia
Sobre a amizade de transferência

Capítulo 4 – O AMOR NAS PSICOSES: UMA INVENÇÃO?................................................. 141

4.1. NOTA INTRODUTÓRIA ............................................................................................................141

4.2. A VIRGEM QUE CHORA PELOS OLHOS..................................................................................... 142

4.3. UM ANJO CAÍDO......................................................................................................................149

4.4. NINGUÉM ME AMA... PORQUE EU CHEIRO MAL........................................................................156

4.5. INVENTAR O AMOR: ALGUMAS CONCLUSÕES PRELIMINARES..................................................165

CONCLUSÃO..............................................................................................................................167

BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................................175
INTRODUÇÃO

No que concerne à psicose, o amor é assunto polêmico. A psiquiatria clássica se


ocupou em demonstrar as manifestações clínicas decorrentes dos poderes aniquilantes
da paixão. Freud não foi menos cético, alertando para as dificuldades em aplicar a
técnica psicanalítica ao tratamento das psicoses. A partir de sua análise da transferência
no caso Schreber, inaugurou, apesar disso, a invenção de um tratamento possível para a
psicose. Lacan tomou psicóticos em análise, sistematizando, ao longo de sua obra,
aspectos importantes relativos ao tratamento e ao manejo da transferência e conferindo
um novo lugar ao amor na psicose.
Nossa pesquisa elege o tema do amor nas psicoses, na tentativa de depreender os
percalços mas também as soluções encontradas pelos sujeitos psicóticos para enfrentar a
instabilidade de suas relações com o mundo. Se por um lado, é na psicose onde se
encontra o ódio mais puro, e onde se apreende, portanto, a potência mais devastadora do
amor, é nesta modalidade clínica onde os sujeitos encontram as soluções mais
singulares para regular suas relações com o Outro e com os seus parceiros.
Qual seria o teor e os destinos possíveis do amor na psicose? Partiremos da
hipótese de que a relação transferencial pode ter um papel fundamental na construção de
um amor possível na psicose. A aposta é a de que o analista, ao sustentar de partida o
lugar de ao menos um que não goze do sujeito, auxilie o psicótico a instaurar uma via
original de abordagem do amor. Mas, qual é a posição do analista na psicose? E como
opera a transferência nessa posição subjetiva?
O amor na psicose apóia-se na capacidade criativa do sujeito em encontrar uma
proteção contra o gozo, distanciando-se do lugar de objeto. Analisaremos, portanto, a
partir de três casos clínicos de psicose, algumas das soluções individuais encontradas
para instaurar uma função de limite para o gozo. É preciso destacar que os três casos
têm o amor como elemento em comum ao desencadeamento de suas psicoses. Trata-se,
11

portanto, de casos onde a vertente delirante aparece como uma das primeiras saídas para
lidar com o encontro com o Outro do amor. Optamos por apresentar os casos ao final da
tese, de modo a liberar os relatos de excessivas referências e justificativas teóricas.
Acreditamos assim ter diminuído o risco de tornar muito densas as construções, o que
poderia turvar aquilo que pretendemos com elas demonstrar: o percurso clínico destes
pacientes na procura e na construção de uma solução possível para o amor.
O primeiro sujeito foi por mim atendido no ambulatório do Instituto de
Psiquiatria - IPUB/UFRJ ao longo dos meus dois anos no curso de especialização em
Atendimento Psicanalítico em Instituição. Marcelo, como escolhi chamá-lo, veio me
procurar logo após a eclosão de seu primeiro surto, não tendo sido preciso recorrer a
nenhuma internação psiquiátrica durante o tempo em que o atendi. O tratamento foi
interrompido pelo paciente quando este disse finalmente ter compreendido “a história da
Virgem”1, forma como se referia aos acontecimentos que sucederam ao
desencadeamento de sua psicose.
Os dois últimos sujeitos foram atendidos por mim no Centro de Atenção
Psicossocial 2(CAPS) Arthur Bispo do Rosário, localizado na antiga Colônia Juliano
Moreira, onde trabalho há três anos. Os dois estão em atendimento comigo desde o
início desse trabalho, sendo que o primeiro destes, a quem eu chamei de Ricardo, é

1
O caso de Marcelo foi abordado anteriomente em um artigo intitulado “Um amor morto: considerações
acerca de um caso de paranóia". In: QUINET A. (org.), Na mira do Outro: a paranóia e seus fenômenos,
Rio de Janeiro: Rios ambiciosos, 2002.
2
O Centro de Atenção Psicossocial Arthur Bispo do Rosário foi inaugurado pela Secretaria Municipal de
Saúde em agosto de 1998, no âmbito do processo de reestruturação da assistência no Município e de
implantação dos CAPS nas diversas áreas da Cidade. Situa-se na antiga Colônia Juliano Moreira, criada
nos primeiros anos da década de 20. Em 1996 a Colônia Juliano Moreira e o Hospital Jurandyr
Manfredini foram municipalizados e tornaram-se unidades independentes. A antiga CJM passou a
denominar-se Instituto de assistência a Saúde Juliano Moreira. O IMAS Juliano Moreira ficou
responsável pelo cuidado dos cerca de 800 pacientes de longa permanência institucional, residentes dos
antigos núcleos e em residências terapêuticas situadas dentro da área geográfica da antiga Colônia e na
comunidade externa. O Hospital Municipal Jurandyr Manfredini manteve-se como unidade psiquiátrica
responsável por atendimentos em regime de ambulatório, internação e emergência psiquiátrica, sendo o
Pólo responsável pelas internações na Área de Planejamento que compreende Jacarepaguá e sub-bairros
(AP 4). Ao HMJM ficaram subordinados administrativamente o CAPSI Eliza Santa-Roza e o Centro de
Atenção Psicossocial Arthur Bispo do Rosário (CAPS).O CAPS é um serviço de atenção diária para
pacientes psicóticos e neuróticos graves adultos. Oferece as seguintes atividades: atendimento individual,
oficinas terapêuticas, visita domiciliar, acompanhamento de pacientes em projetos de trabalho assistido e
oficinas geradoras de renda, lazer assistido, atendimento em grupo, acompanhamento familiar,
atendimento de recepção e triagem, acompanhamento terapêutico. Atualmente, o CAPS tem 187
pacientes matriculados.
12

atualmente atendido por mim em meu consultório particular. Os dois pacientes, Ricardo
e André, já precisaram ser hospitalizados em momentos críticos.
Minha atuação no CAPS restringe-se, há mais ou menos um ano, ao atendimento
individual de alguns pacientes e à condução de uma oficina3 de ouvidores de vozes.
Concentro a maior parte de minha carga horária nas atividades ligadas à coordenação da
especialização em Saúde Mental no nível de residência do Instituto Municipal de
Assistência em Saúde Juliano Moreira (IMASJM) e do Hospital Municipal Jurandir
Manfredini (HMJM) em parceria com o IPUB/UFRJ.
Meu trabalho no CAPS me fez repensar algumas questões importantes referentes
ao trabalho da psicanálise em instituição. Qual a contribuição da psicanálise para o
campo da saúde mental? Como a psicanálise pode auxiliar o trabalhador em saúde
mental a repensar o cotidiano da clínica ampliada? Parece-me que uma das maiores
contribuições da psicanálise no que se refere ao trabalho do coletivo institucional
encontra-se na elucidação de aspectos relativos à transferência e seu manejo nas
diferentes posições subjetivas. A psicanálise, ao se ocupar do amor produzido na relação
transferencial, lhe dá outros destinos, diferentes das respostas do senso comum,
tornando-o um importante motor no tratamento.
Desde o início de meu trabalho com a psicose em instituição, pareceu-me
inevitável não restringir minha prática clínica à psicanálise na instituição, ou seja,
procurei não me ater a fazer apenas atendimentos individuais no CAPS. Ao contrário,
procurei trabalhar com a psicanálise em instituição, enfrentando desafios clínicos no
coletivo da equipe de saúde mental e tentando, no que se refere aos casos que
acompanho individualmente, assumir a responsabilidade ética de trazer a clínica do caso
para o coletivo da instituição. Os casos por mim construídos nesta tese, inserem-se
portanto, em um trabalho de psicanálise aplicada ao campo da saúde mental. Analisarei,
sempre que se fizer necessário, a articulação do trabalho clínico em duas vertentes:
atendimento individual e o manejo de situações institucionais.

3
Esta oficina se insere no projeto de pesquisa sobre ouvidores de vozes, coordenado pelo professor
Octávio Domont de Serpa Junior, do Laboratório de Psicopatologia e Subjetividade, do IPUB/UFRJ.
13

No primeiro capítulo, revisaremos o lugar dado por Freud ao amor na distinção


dos campos da neurose e da psicose. Procuraremos demonstrar, através dos escritos
iniciais de Freud, o lugar de base que ele dá ao amor no desencadeamento da psicose.
Em um segundo momento, é feita uma abordagem crítica da hipótese da
homossexualidade como causa das psicoses e enfatizado como essa hipótese se sustenta
no modelo da neurose. Com o caso Schreber, aprofundaremos à questão relativa a via
delirante do amor e analisaremos, a partir da relação com seu primeiro médico,
Flechsig, aspectos fundamentais sobre o amor de transferência na psicose.
Investigaremos três pontos que consideramos fundamentais para a elucidação do amor
como um elemento articulador das similaridades e rupturas entre os campos da neurose
e da psicose: a perda do objeto de amor, o ciúme e o amor de transferência. Faremos
algumas considerações finais sobre os lugares possíveis para o analista na transferência.
O segundo capítulo versará sobre os trabalhos iniciais de Lacan em sua relação
com a psiquiatria. A partir da noção de psicose passional, mostraremos como Lacan
utilizou as referências da psiquiatria clássica para elucidar questões relativas ao amor e
ao ódio nas psicoses. Investigaremos, em seus escritos iniciais, as elaborações sobre o
estágio do espelho e sobre o registro imaginário em sua relação com a psicose.
Dividimos metodologicamente o capítulo a partir da análise de três quadros clínicos que
possuem relação estreita com a questão do passional nas psicoses: a erotomania, o
delírio de ciúme e a folie à deux. Recorreremos, no que diz respeito aos autores do
campo psiquiátrico, respectivamente: ao debate entre Dide e Clérambault, às teorizações
de Daniel Lagache e à descrição clínica de Lasègue e Falret, cotejando com os
trabalhados iniciais de Lacan das décadas de trinta e de quarenta. O lugar do crime na
economia das psicoses será abordado a partir da retomada dos casos analisados por
Lacan (Aimée e irmãs Papin), dando prevalência aos atos impulsivos na psicose.
Faremos, para isso, referência ao trabalho de Paul Guiraud sobre os crimes imotivados
na psicose.
O terceiro capítulo tratará do amor na clínica lacaniana das psicoses, analisando
seus impasses e destacando suas invenções. O estudo sobre o amor na teoria da
foraclusão do Nome-do-Pai será abordado a partir do esquema L e da teorização sobre o
Nome-do-Pai, ou seja, abarcará uma discussão mais geral entre a posição subjetiva do
sujeito na neurose e na psicose, tal como foi empreendida por Lacan nos anos cinqüenta.
14

O amor morto será abordado, tentando explicitar e diferenciar, ao longo do


capítulo, o seu aspecto mortífero do seu aspecto mortificado. Tentaremos esboçar
alguns indícios do lugar a ser ocupado pelo analista na transferência a partir dessas duas
variantes do amor morto. Com a teorização do objeto a e suas particularidades na
psicose, analisaremos suas relações com o ato e com a passagem ao ato, de modo a
introduzir algumas conseqüências do gozo na psicose. A teoria da sexuação nos
permitirá verificar algumas saídas possíveis do fora do sexo na psicose. O empuxo à
mulher e o transexualismo serão revistos como maneiras de resolver o enigma do sexo
na psicose. Por último, abordaremos as teorizações lacanianas relativas às formas de
amarração dos três registros: Real, Simbólico e Imaginário, destacando a partir da
psicose e do desenlace dos três registros, o quarto elo como um artifício capaz de fixar o
nó de três. Revisitaremos o tema do amor na psicose de modo a verificar se é possível
existir um amor desatrelado da ficção do falo. Analisaremos, a partir das teorizações de
Lacan, a via encontrada por James Joyce de lidar com a não inscrição dos sexos. A
partir de alguns pontos de sua vida e de sua obra, destacaremos alguns aspectos do amor
que não encontra, no delírio, uma solução. A philia, amizade segundo a filosofia
clássica, será revista e comparada com esse tipo de amor, de forma a elucidar questões
relativas ao lugar do analista e da transferência na psicose.
Faz-se necessária uma palavra acerca das citações de Freud e de Lacan. Optamos
por referir-nos aos seus textos pelo ano em que foram escritos e não publicados, pois
acreditamos que isso facilitará ao leitor o acompanhamento do percurso de construção
de suas obras teóricas. As traduções de Freud utilizadas nesta tese encontram-se na
Standart Edition Brasileira, mas, quando necessário, foram cotejadas com a edição
digital da Amorrortu em espanhol e, eventualmente, foram retrabalhadas. Traduzimos
os textos inéditos de Lacan assim como aqueles que foram publicados somente no
original, em francês. Traduzimos, igualmente, todas as citações extraídas de publicações
estrangeiras.
15

1. UM TRAÇO DIFERENCIAL ENTRE NEUROSE E PSICOSE:


UMA ABORDAGEM DO AMOR EM FREUD.

Em uma de suas lições concernentes ao estudo da psicose, Lacan (1955-56) se


pergunta: “a que se deve a diferença entre alguém que é psicótico e alguém que não o
é?” Sua resposta elege o amor como o traço diferencial: “Ela se deve ao fato de que,
para o psicótico é possível uma relação amorosa que o abole como sujeito, na medida
em que ela admite uma heterogeneidade radical do Outro” (287).
Propomos investigar o amor psicótico na obra freudiana a partir desta proposição
enigmática de Lacan. O retorno a Freud se fará, portanto, tentando depreender o que, do
amor, se oferece como um marco separador dos campos da neurose e da psicose. Vale
dizer que a neurose será abordada neste capítulo apenas em oposição comparativa ao
campo da psicose, ou seja, servirá como um elemento de trabalho, um ponto de partida
para dissecar as semelhanças e diferenças entre estas duas modalidades clínicas.
É preciso, contudo, acrescentar que não temos por objetivo restringir nossa
abordagem da psicose a uma leitura centrada na teoria lacaniana dos anos cinqüenta,
nem tampouco considerar a psicose em uma perspectiva deficitária à neurose. Ao
contrário, tentaremos neste capítulo articular estrutura e transferência: se na via da
estrutura, os fenômenos sugerem uma descontinuidade entre os campos da neurose e da
psicose; na via transferencial, a continuidade é resgatada no sentido em que “um
tratamento, seja de psicose ou de neurose, encontra sempre aí a sua condição de
produção” (Brousse: 1999:82). Em outras palavras, se na via do fenômeno as
manifestações clínicas parecem ser indicativas de uma diferença estrutural, no que se
refere à transferência, psicose e neurose encontram-se em equivalência de condições. A
transferência torna-se, assim, o elemento determinante do tratamento psicanalítico.
Decidimos, por uma questão metodológica, obedecer a uma certa cronologia da
construção do texto freudiano, deixando, para o final do capítulo, a análise de três
pontos que consideramos fundamentais para a elucidação do amor como elemento
articulador das similaridades e rupturas entre os campos da neurose e da psicose: a
perda do objeto de amor, o ciúme e o amor de transferência.
16

Procuraremos demonstrar, através dos escritos iniciais de Freud, o lugar de base


que ele dá ao amor no desencadeamento da psicose. Vale lembrar que a primeira
tentativa de delimitação diagnóstica da obra freudiana toma a sexualidade como um
ponto nodal na determinação dos sintomas, exercendo um papel de base nas neuroses. O
amor, ao requisitar o sexual, carrega em si o risco de desestabilização na psicose. Freud
elucida a exterioridade com a qual os sujeitos psicóticos vivem os seus fenômenos
através da operação de rejeição. O amor poderá então ser vivido, segundo a modalidade
de retorno do rejeitado, como vindo do outro e desde fora.
Em um segundo momento, abordaremos criticamente a hipótese da
homossexualidade como causa das psicoses. Faremos, inicialmente, um pequeno desvio
através da vida amorosa da neurose, destacando o papel da fantasia e apresentando o
inventário freudiano acerca das diferentes possibilidades de amar. O caso Schreber será
uma referência necessária tanto para aprofundar as relações do sujeito com o mundo
externo no delírio, quanto para começarmos a investigar se há algum amor, excetuando
aquele que aniquila o sujeito, possível na psicose. No texto sobre este caso, Freud chega
a propor uma lógica amorosa da psicose, constituindo-a como a pedra angular do delírio
paranóico. Por fim, a partir da relação de Schreber com seu primeiro médico, Flechsig,
analisaremos aspectos fundamentais sobre o amor de transferência na psicose.
De posse dessas formulações, abordaremos as diferenças entre luto e melancolia,
ciúme neurótico e psicótico, e amor de transferência na neurose e na psicose. O nosso
objetivo é demonstrar as particularidades da relação do sujeito psicótico com seus
objetos, investigando a partir dessas considerações quais os lugares possíveis para o
analista na transferência. A decomposição, traço marcante da paranóia segundo Freud
(1911), nos servirá de ponto chave para esta empreitada.

1.1 Em torno do trauma

A primeira delimitação diagnóstica da obra freudiana toma a sexualidade como


um ponto nodal na determinação dos sintomas, exercendo um papel de base nas
neuroses. A questão da escolha da neurose será posta em estrita relação à primeira
experiência sexual do sujeito e ao trauma dela decorrente. O campo das neuroses se
17

dividirá entre o psíquico e o somático: as neuroses atuais (neurose de angústia e


neurastenia) serão aquelas decorrentes de uma disfunção somática da esfera sexual, ao
passo que as neuropsicoses de defesa (histeria, fobia, neurose obsessiva e certas
psicoses) responderão a conflitos psíquicos da sexualidade.
Detenhamo-nos no campo geral das neuropsicoses, antes de verificar como
opera a defesa na psicose. Como dissemos, os diferentes destinos clínicos serão
relacionados ao sexual, ou seja, a abordagem freudiana enfatizará, neste ponto, as
diferentes modalidades de respostas dos sujeitos frente ao encontro com o sexo1. A
primeira experiência sexual traumática dos sujeitos está, portanto, na base dos conflitos
e determina o destino dos sintomas. No artigo As neuropsicoses de defesa (1894), Freud
assinala que todos os quadros clínicos se condicionam em torno da divisão instaurada a
partir dos fracassos em esquecer a representação do evento sexual. Os campos da
neurose e da psicose não serão, portanto, demarcados a partir dessa delimitação clínica.
Vemos aqui uma continuidade entre os campos sugerida pela idéia de defesa, podendo
levar a diversas manifestações patológicas, como a histeria, a obsessão ou as psicoses:
“Ora, sucede que a paranóia, na sua forma clássica, é um modo patológico de defesa, tal
como a histeria, a neurose obsessiva e a confusão alucinatória” (1895: 291).
Embora não haja, neste ponto da obra freudiana, uma distinção tão clara entre
neurose e psicose, delimitam-se por oposição comparativa, a partir de sua descrição,
dois grupos: o primeiro, reunindo dois tipos clínicos que futuramente pertencerão ao
campo da psicose - a confusão alucinatória e a paranóia - e o segundo, que contém duas
categorias clínicas da neurose - a histeria e a neurose obsessiva -.
Veremos que a partir da análise das particularidades de cada defesa nos
diferentes quadros clínicos observados, serão definidas importantes delimitações
diagnósticas e localizados diferentes modos de funcionamento psíquico. A análise das
diferenças quanto à escolha da neurose, vão permitir a Freud enfatizar que a
determinação de uma entidade clínica se dá “no modo como se realiza o recalque”
(1896a:.31). Em relação ao campo das psicoses, Freud dará indícios, como veremos a

1
Lacan retomará esse ponto de vista sob um outro ângulo ao final de sua obra ao afirmar que não há
relação entre os sexos e, portanto, não há equivalência possível de um sexo a outro. Colette Soler afirma,
por exemplo, que não há, para todo e qualquer sujeito, discurso estabelecido para o amor: “Por essa razão,
Lacan pôde dizer que as questões do amor, as coisas do amor, são privadas de todo laço social, ou seja,
que não há discurso estabelecido para dizer a um sujeito o que ele deve fazer diante do outro sexo” (2001:
242). Voltaremos a essa questão no terceiro capítulo.
18

seguir, de que as defesas em jogo possuem certas particularidades que as fazem diferir
radicalmente das defesas utilizadas nas neuroses, tratando-se de “uma espécie de defesa
muito mais poderosa e bem sucedida” (1894: 63).

A defesa na psicose

Vimos que os caminhos de constituição dos sintomas serão traçados a partir da


primeira experiência sexual. Detenhamo-nos agora nas vicissitudes do encontro do
sujeito psicótico com o sexo. Um primeiro e fundamental aspecto diferenciador dos
campos da neurose e da psicose se faz ver: ao passo que na neurose o sujeito vive
internamente os conflitos derivados de seu encontro traumático, na psicose essa
problemática se dará em termos externos ao sujeito, ou seja, será por ele vivida como
desde fora. Freud sustentou durante bastante tempo que a projeção seria a responsável
por esse percurso, ou seja, localizou inicialmente através desse mecanismo uma direção
do sintoma psicótico de dentro para fora; mas, em um momento posterior, retificará seu
ponto de vista mostrando que os fenômenos da psicose são vividos como externos ao
sujeito.
Freud, portanto, lança mão, em seus primeiros escritos, da projeção para analisar
os fenômenos psicóticos (1895: 294). Não podemos, entretanto, alçá-la à condição de
operação principal da psicose, já que ela também é utilizada para explicar a formação de
produções neuróticas. No escrito sobre Schreber, Freud terminará por abandonar
definitivamente a projeção como operação em jogo na psicose. Queremos justamente
frisar que as razões desse abandono já se deixam ver nos textos iniciais, são elas: o fato
de que a projeção também possa estar presente em quadros neuróticos e sua pouca
eficácia explicativa para os fenômenos alucinatórios e delirantes nas psicoses.
Uma vez assinaladas as limitações do mecanismo de projeção, cabe-nos ressaltar
que é interessante reter, dos textos iniciais de Freud, a idéia de que o movimento de
retorno desde fora da psicose faz com que os sujeitos vivam suas próprias idéias
intoleráveis como externas e, portanto, estrangeiras. É por isso que Freud dirá alguns
anos mais tarde que: “muitas coisas que nas neuroses tiveram que ser buscadas nas
profundidades são encontradas nas psicoses na superfície, visíveis a todos” (1925:76).
Neste ponto de sua obra, Freud reúne, no campo das psicoses, duas modalidades
19

clínicas, a confusão alucinatória e a paranóia, assinalando que possuem como aspecto


comum o desafio ou a oposição. Podemos, assim, inferir que o elemento chave para
compreender as psicoses é a operação de rejeição em jogo:

A ‘auto-referência’ da paranóia é análoga às alucinações dos estados


confusionais, pois estas procuram afirmar exatamente o contrário do fato que foi
rechaçado. (1895: 298) .

As idéias de auto-referência e as alucinações devem, portanto, a esse tipo radical


de negação, o seu caráter de certeza. Há similaridade estrutural entre os fenômenos, eles
concernem ao sujeito, eles o visam. O que marca a analogia entre a alucinação e a auto-
referência é o apoio à defesa. Recusa da crença na auto-censura e rejeição de um
fragmento da realidade correspondem a um tipo específico e particular de negação
próprio às psicoses. No texto sobre Schreber, Freud explicitará seu ponto de vista,
mostrando que o uso abusivo da projeção na psicose resulta do tipo de rejeição radical
da psicose, levando-o a corrigir seu ponto de vista sobre a projeção:

(...) foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para
o exterior: a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que
foi internamente abolido retorna desde fora. (1911:95)

Retomemos a confusão alucinatória e a paranóia a partir de seus fenômenos. É


preciso dizer que, com a abordagem da confusão alucinatória, Freud introduz questões
que serão posteriormente trabalhadas pelo viés da esquizofrenia. O aparecimento dessa
entidade clínica é contemporânea à publicação do caso Schreber por Freud, em 1911. A
esquizofrenia foi inventada por Bleuler, psiquiatra contemporâneo de Freud, para se
opor à classificação de demência precoce de Kraeplin2. Em seus escritos iniciais, Freud
sugere que a confusão alucinatória seria um tipo de reação específica da psicose frente a
uma perda impossível de ser simbolizada e não um quadro clínico independente:

2
Como indica Bruno (1993), para Kraeplin haveria, na demência precoce, um delírio desorganizado, sem
nexo, instável. Bleuler, ao contrário, acreditava haver significação psíquica nos delírios e nas alucinações
da esquizofrenia, mas o acesso a essa significação seria negado ao esquizofrênico, deixando-o incapaz de
compreender e de elaborar o que experimenta. Nesse mesmo ano, Freud mostrava que há uma lógica
inerente à constituição do delírio a partir de seu caso Schreber.
20

(...) a mãe que adoeceu pela perda de seu bebê e que agora embala
incessantemente um pedaço de madeira nos braços, ou a noiva rejeitada que,
adornada com seus trajes nupciais, espera durante anos pelo noivo. (1894:65)

Freud acentua que há na confusão alucinatória, assim como na paranóia, um


rechaço radical da realidade. Na confusão alucinatória, ocorre uma rejeição da
representação incompatível e de seu afeto correspondente, fazendo como se nunca
tivessem existido. Freud acentua o caráter de negação da realidade, indicando que a
representação incompatível é tão intensamente negada quanto uma outra é,
proporcionalmente, afirmada.

Uma psicose alucinatória desse tipo consiste precisamente na acentuação da


representação que era ameaçada pela causa precipitante do desencadeamento da
doença (Freud, 1894:63).

O afeto e a lembrança inadmissível são mantidas, na confusão alucinatória,


afastadas do eu, acarretando um desligamento parcial do mundo. As vozes alucinadas
vêm confirmar o completo sucesso desta defesa. A questão da perda da realidade na
psicose se evidencia quando Freud assinala que a representação rechaçada “fica
inseparavelmente ligada a um fragmento da realidade, de modo que, à medida que o eu
obtém esse resultado, também ele se desliga, total ou parcialmente, da realidade”.
(Freud:1894:64-65).
A confusão alucinatória é, portanto, uma reação a uma perda que a realidade
afirma. O eu rompe com a realidade, retirando seu investimento no mundo e passando a
viver a céu aberto as fantasias de desejo. É por isso que Freud a compara à psicose
histérica3, forma clínica que teria “o ataque e o état secondaire” (1895:298) como
característica. A diferença reside no fato de que, na psicose histérica, ao contrário da
confusão alucinatória, ocorreria um fracasso da defesa. A sintomatologia semelhante (os
fenômenos imaginários) à da psicose seria, na histeria, conseqüência do retorno do

3
Consideramos a psicose histérica como uma tentativa freudiana de explicar a presença de determinados
fenômenos de desordem imaginária em histéricos. Sobre psicose histérica, ver Steyaert, M. Hystérie, folie
et psychose. Lês empêcheurs de penser em rond, Paris, 1992. O autor mostra que o delírio histérico é um
sintoma comparável às produções oníricas, utiliza os mecanismos de deslocamento e de condensação e
configura-se como uma resposta a uma perturbação no nível da imagem narcísica.
21

recalcado, ou seja, aquilo que foi recalcado assumiria o domínio, fazendo surgir
alucinações hostis ao eu.
Na confusão alucinatória, o afeto e conteúdo da idéia intolerável são afastados
do eu, ocorrendo uma conseqüente perda da realidade. As alucinações visam apoiar a
defesa e, em conseqüência, são agradáveis ao eu. Na psicose há, portanto, um sucesso
da defesa, ao passo que na histeria é o fracasso do modo de defesa que possibilitará o
aparecimento de fenômenos imaginários. Vemos demarcada aí a idéia de que o
fenômeno não é suficiente para detectar a estrutura que o condiciona. Voltaremos a esse
ponto ao longo de nosso terceiro capítulo.
Se a confusão alucinatória é posta em oposição comparativa à histeria, a
paranóia será analisada à luz da neurose obsessiva. Vimos que o que está em jogo, para
Freud, na determinação dos quadros clínicos, são os diferentes modos de resposta dos
sujeitos frente ao encontro com o sexo. Freud sugere que tanto na paranóia quanto na
neurose obsessiva ocorreria um excesso de prazer no encontro sexual. Ao recordar a
experiência, surge uma recriminação primária que gera desprazer. É neste ponto que se
interrompem as semelhanças entre essas duas modalidades clínicas.
Na neurose obsessiva, o sujeito recalca a recriminação e a lembrança
desprazerosa. Com o retorno do recalcado, a recriminação acaba por ligar-se a um outro
conteúdo, substituindo a idéia intolerável por outra aceitável para o eu: “uma idéia
obsessiva é produto de um compromisso, correto quanto ao afeto e à categoria, mas
falso devido ao deslocamento cronológico e à substituição por analogia” (1896b:312).
Na paranóia, não ocorre o recalque da recriminação primária. Freud situa a
resposta paranóica em uma operação denominada de descrença (Unglauben), que
produz, como sintoma primário, a desconfiança. A desconfiança e a causa do desprazer
são assim atribuídas a outras pessoas (não sou eu..., é ele que...). O elemento
determinante na paranóia é, portanto, a recusa da crença na recriminação primária. Em
seu retorno, a recriminação primária aparece como distorcida e desde fora. Como
vimos, essa constatação encontra grande relevo clínico, na medida em que aponta para o
caráter exterior dos sintomas psicóticos.
A modificação pela qual a idéia rejeitada passa, quando do seu retorno, responde
a dois movimentos em seu conteúdo. O primeiro, distorcerá o conteúdo nas alucinações
e o segundo, fará com que o conteúdo seja referido não à experiência, mas à
22

desconfiança. O caráter hostil das alucinações da paranóia é, portanto, conseqüência de


uma operação que distorce o conteúdo da idéia e a faz retornar desde fora.
Há, ainda, duas qualidades de retorno: segundo o que se veicule seja somente o
afeto rejeitado ou o afeto e sua representação. Embora, Freud não desenvolva as
conseqüências do primeiro caso, podemos, com Lacan, inferir que quando o que retorna
é somente o afeto, o sujeito vive esse retorno sob a forma, por exemplo, da vivência do
corpo despedaçado ou de um gozo que invade e que é impossível de ser significado.
O segundo caso é abordado por Freud, em sua obra. É o caso das alucinações
auditivas verbais que veiculam o afeto e a representação rejeitada. O exemplo
fundamental a esse respeito é a injúria: as vozes vêm fixar o sujeito em um conteúdo
depreciativo, comprovando a verdade daquilo que o sujeito experimenta: é o outro que
persegue o sujeito, que quer o seu mal. A descrença na recriminação primária encontra,
portanto, a certeza delirante como correlato:
há uma classe de pessoas (...) que não encontram quem lhes dê crédito, mas
mesmo assim sua crença nelas [nas histórias que contam] não pode ser abalada.
Refiro-me aos paranóicos (1897:337)

Vemos, portanto, que as duas modalidades de retorno atuam sobre o vivido do sujeito: a
certeza delirante aparece em termos de verdade para o sujeito. Teçamos, então, algumas
considerações sobre o delírio. Freud já o situa, neste ponto inicial de sua obra, como
uma tentativa de explicar o retorno do rejeitado. O sujeito, através do delírio, torna
coerente o que, a princípio, não tem sentido, mas que se apresenta na ordem do vivido
para o sujeito (uma voz, um gesto, a perplexidade). O delírio seria um exercício de
significação da experiência de retorno do rejeitado. Para o psicótico que segue a via
delirante, o “outro é repleto de significação, tudo é interpretável” (1901:221).
A solução delirante conserva, no entanto, para Freud, um furo irremediável: a
perda de um pedaço da realidade. O delírio substitui, embora não plenamente, esse
pedaço perdido da realidade, criando uma realidade que venha a ser mais condizente
com a nova posição subjetiva do sujeito. Nota-se aqui uma antecipação do conceito de
narcisismo, desenvolvido em 1914. Com esse conceito, Freud poderá indicar com mais
clareza o que ele já via acontecer na clínica da paranóia: o delírio reconcilia o sujeito
com o seu eu:
23

Em todos os casos a idéia delirante é sustentada com a mesma energia com que
uma outra idéia, intoleravelmente penosa, é rechaçada do eu. Assim, essas
pessoas amam seus delírios como amam a si mesmas. É esse o segredo
(1895:296).

Como veremos posteriormente, o delírio é uma solução possível, mas nem por
isso, menos problemática, de compromisso entre o eu e o mundo. Mesmo que o delírio
forneça um lugar possível para o sujeito, conserva a sua posição narcisista. No delírio, o
eu conserva seu lugar de objeto, ainda que promova, em sua forma final, uma certa
distância que retifica um pouco esse lugar. Como veremos no caso Schreber, há um
longo e importante percurso entre o lugar de objeto de abusos do outro ao de objeto
indispensável ao Outro.
Embora Freud não tivesse, neste ponto de sua obra, desenvolvido plenamente
sua teoria sobre o narcisismo, aponta na Carta 125, que a escolha das neuroses pode se
dividir em duas correntes. As neuroses serão consideradas alo eróticas, tendo como via
principal a identificação com a pessoa amada. Na paranóia, ao contrário, a via auto
erótica predominaria: “A paranóia desfaz novamente a identificação; restabelece todas
as figuras amadas da infância, que foram abandonadas, e dissolve o próprio eu em
figuras externas” (1899:384). Freud já mostrava, assim, as conseqüências do retorno da
libido sobre o eu e a decomposição imaginária subseqüente. Voltaremos a esse ponto.

Do sexual na clínica da psicose

Comentaremos dois casos clínicos de psicose trabalhados, por Freud, em seus


textos iniciais. Como vimos, Freud utiliza como eixo de construção de seus casos a idéia
de que há um evento sexual e traumático na origem dos sintomas. O percurso de
construção dos casos dirige-se no sentido de tentar elucidar a cena sexual, interpretando
os sintomas como formações reativas a ela.
Detenhamo-nos nos exemplos clínicos trabalhados. O primeiro é o de uma
mulher solteira, já não muito jovem, que sofre um assédio sexual por parte de seu
inquilino. A cena - o evento sexual - é esquecida. Anos mais tarde, ela desenvolve
delírios de observação e de perseguição: suas vizinhas diziam-lhe coisas sobre esse
homem, acusavam-na de haver sido namorada dele, de ter sido abandonada por ele e de
24

ainda esperar por sua volta.


Freud constrói a seguinte seqüência explicativa para o delírio: a recordação da
cena do assédio vem para essa mulher acompanhada de uma recriminação – ser uma
mulher depravada – que gera desprazer. Há, então, uma descrença na recriminação
primária, fazendo surgir a desconfiança. Através da projeção, a desconfiança e o
desprazer são atribuídos às vizinhas. A idéia de ser uma mulher depravada –
recriminação primária – é, então, transposta para fora: “o tema permanecia inalterado, o
que mudava era a localização da coisa” (1895:293).
O segundo exemplo é o da Sra P., cujo desencadeamento é situado, por Freud,
pouco tempo após ela ter tido seu primeiro filho. Desenvolve idéias de cunho
persecutório e um delírio de observação. Acha que é vista nua, o que lhe causa intensa
angústia, especialmente ao despir-se. Chega a experimentar a sensação de ser observada
em seu próprio corpo: em companhia feminina, a paciente sente seus órgãos genitais
“como se sente uma mão pesada (1896b:166)”. Surgem, além disso, alucinações
auditivas verbais que comentam seus atos, a ameaçam e a hostilizam.
Freud remonta a cena traumática à infância: a paciente e seu irmão tinham o
costume de exibirem-se nus, um ao outro, antes de dormir. O início do casamento da
senhora P. vem despertar a lembrança rejeitada – o suposto caso amoroso infantil entre
ela e o irmão -. A desconfiança e o desprazer são assim atribuídos aos outros: ela é vista
nua, falam dela por alusão.
É interessante observar que nos dois casos relatados, Freud não parece ter muito
êxito em suas tentativas de interpretação dos sintomas. Vejamos seu comentário sobre o
tratamento do primeiro caso relatado:

(...) procurei curar sua tendência à paranóia, tentando fazê-la reviver a


lembrança da cena. Não obtive resultado. (...) nunca mais vi a paciente. Ela
ainda me mandou um recado, dizendo que aquilo a havia aborrecido demais
(1895:293).

Freud nos brinda, portanto, com dois casos cuja importância clínica maior
reside, segundo nosso ponto de vista, no fracasso terapêutico que eles veiculam. O que
podemos aprender através desses dois casos? É certo que os resultados obtidos não
foram significativos, que os efeitos alcançados foram ínfimos e não se sustentaram por
muito tempo, acabando por resultar em um abandono do tratamento analítico pelos
25

pacientes. A primeira lição que pode ser retirada da análise dos casos, parece-nos ser a
do fracasso da interpretação analítica, quando aplicada à psicose. Revendo os casos, fica
claro que as interpretações freudianas parecem não ter nenhum efeito benéfico sobre as
alucinações, chegando quiçá a intensificá-las. Tal é o caso do segundo exemplo, onde as
sensações físicas “participavam da conversa”:

(...) uma exacerbação da doença desfez os resultados bem-sucedidos do


tratamento – que em todo caso, foram precários – (...) seu estado agravou-se a
tal ponto que o tratamento teve que ser interrompido. Ela foi transferida para
uma instituição e lá atravessou um período de graves alucinações, que teve
todos os sinais de demência precoce (1896b:169:n.2).

É importante destacar que as intervenções de Freud, baseadas no método de


análise das neuroses, não produziram efeitos terapêuticos quando empregadas no
tratamento das psicoses. Suas interpretações, longe de produzir algum apaziguamento
da experiência alucinatória ou das percepções delirantes, não promoveram mudanças
significativas nos casos conduzidos.
A partir desses casos, podemos inferir que o sexual pode apresentar-se na
psicose sem véu, sem máscaras, impossível, portanto, de ser significado. O amor na
psicose apresenta o risco de tornar presente à dimensão fora do sentido do sexual. Como
vimos, Freud indicou que o prazer sexual se apresenta na psicose em termos de excesso,
o que será trabalhado futuramente por Lacan (1966b), em sua dimensão de gozo.
Veremos, a seguir, como Freud desenvolve os conflitos amorosos da neurose, a
partir dos impasses entre o amor e o narcisismo. Retomemos, para finalizar,
esquematicamente os principais pontos a serem destacados da primeira abordagem
freudiana da psicose:

1 – A modalidade de defesa do sujeito frente ao sexual difere na psicose e na neurose.

2 – O amor na psicose, ao requisitar o sexual, carrega o risco de desestabilização.

3 – O retorno do rejeitado é experimentado na psicose como vindo desde fora, com um

caráter externo ao sujeito.


26

1.2 Sobre a vida amorosa na neurose e na psicose

Amor e desejo

No quadro da primeira teoria do aparelho psíquico e das pulsões, Freud analisa


as relações entre os investimentos da libido e os investimentos das pulsões do eu nos
objetos. O conceito de libido é definido como “uma força quantitativamente variável
que poderia medir os processos e transformações ocorrentes no âmbito da excitação
sexual” (Freud:1905:204) e que se distingue qualitativamente de outras formas de
energia psíquica, como os processos de nutrição.
Freud mostra que, na infância, embora a sexualidade seja desviada dos objetivos
estritamente sexuais, liga-se intimamente ao exercício das funções necessárias à
preservação da vida, marcando o seu destino no sujeito adulto. Em uma coletânea de
três artigos, intitulada “Contribuições à psicologia do amor”, Freud (1910, 1912a e
1918) formaliza a vida sexual dos seres humanos em duas correntes: uma afetiva e uma
sensual. A corrente afetiva é anterior e se funda nos interesses das pulsões do eu,
embora carregue consigo, também contribuições das pulsões sexuais. A neurose será
referenciada a uma dificuldade de síntese entre a corrente afetiva e a corrente sensual.
Evidenciando o núcleo edipiano da neurose, Freud (1910) mostra que a
interdição do incesto vem promover a renúncia aos objetos, anteriormente investidos em
troca de objetos substitutos, escolhidos à imagem dos primeiros. Dois obstáculos
poderão dificultar a síntese entre as duas correntes: 1) a não-correspondência, na
realidade, de um objeto que substitua, à altura, o objeto perdido e 2) a atração exercida
pelos objetos infantis, proporcional ao investimento erótico feito anteriormente. A
fantasia seria a forma de não renunciar aos objetos infantis, criando uma espécie de
ponte no abismo que separa a corrente afetiva da sensual. A fantasia é, assim, para a
neurose, uma via de alienação da realidade externa, atividade que permanece ligada ao
princípio do prazer, mas que é liberada pelo teste de realidade.
Freud aponta, desta forma, para uma espécie de cisão estrutural entre o desejo e
o amor. Evidencia, além disso, que os sujeitos neuróticos não estão abertos a toda e
qualquer escolha de objeto, muito pelo contrário, a eleição de objeto parece ser bastante
determinada na neurose. Responde, deste modo, a certas fixações, exigindo a presença
de traços particulares, formando uma espécie de pré-condição para a vida amorosa. O
27

exemplo clássico é o daqueles sujeitos masculinos que “quando amam não desejam, e
quando desejam, não podem amar” (1910:166). A impotência psíquica sobreviria, por
exemplo, se, por ventura, algum traço do objeto sexual relembrasse o objeto incestuoso.
Uma das saídas possíveis para essa clivagem da vida amorosa seria a depreciação do
objeto sexual e a supervalorização do objeto incestuoso (corporificadas, por exemplo,
nas figuras da santa e da puta).
O outro exemplo da psicologia da vida amorosa masculina repousa na eleição de
um tipo especial de escolha de objeto. A escolha, nesses casos, estaria subordinada a um
conjunto de condições determinantes do amor (Freud:1912a). São elas: 1) a existência
de uma terceira pessoa prejudicada (atração por mulheres comprometidas); 2) o ‘amor à
prostituta’ (interesse por mulheres sexualmente de má reputação); 3) procura por
objetos com características similares entre si (substituição do objeto por outro com
traços idênticos, formando uma série de réplicas a partir do primeiro objeto); 4) ânsia de
salvar a mulher amada. Voltaremos a esse ponto ao examinarmos o ciúme neurótico.
No que concerne à vida sexual feminina, Freud indica que o conflito da vida
amorosa aparece como conseqüência da manutenção edípica da ligação entre atividade
sensual e proibição. Dentre as possibilidades sintomatológicas derivadas dessa ligação,
estão a frigidez feminina, o gosto, em algumas mulheres, em manter seus
relacionamentos em segredo ou, de procurar, através de ligações extra-conjugais,
manter relações proibidas. Resta a saber se o que Freud chamou de manutenção do
segredo na vida sexual feminina encontra apoio naquilo que Lacan (1960) teorizará,
mais tarde, como uma tendência à erotomania na mulher4. A manutenção do segredo
possibilitaria, assim, à mulher, conservar sua posição de amada, não assumindo o seu
amor sem ter a certeza de que o Outro a ama primeiro.
A dessimetria entre amor e desejo repousa em uma falha estrutural inaugurada
pela própria falta do objeto primeiro de satisfação. Lembremos com Freud (1895)5 que o
objeto é desde sempre perdido, não sendo, portanto, passível de ser reencontrado. Essa

4
É interessante notar que Lacan se utiliza no texto em questão da psicose para esclarecer questões
concernentes ao amor na neurose. Cf. LACAN, J. “Diretrizes para um congresso de sexualidade
feminina” (1960:742). Voltaremos a esse ponto na nossa análise do caso Schreber.
5
No Projeto, Freud apresenta a formação de uma teoria da memória inconsciente, baseada na lembrança
da experiência de satisfação, especificamente no que concerne à clivagem entre a fração não-assimilável
do objeto e a fração revelada ao eu por sua própria experiência. Das Ding, a coisa, pode ser considerada,
então, como o não-representável, como aquilo que escapa ao juízo, mas também como aquilo em torno do
28

distância entre o objeto procurado e o objeto encontrado cria um movimento em torno


desse vazio inaugural, introduzindo uma dialética na relação sujeito-objeto. Haverá,
portanto, em toda busca de objeto, uma tensão fundamental, uma distância primordial.

Narcisismo e escolha de objeto

Vejamos, primeiramente, a distinção entre libido narcísica ou do eu e libido de


objeto proposta por Freud:

A libido narcísica ou do eu parece-nos ser o grande reservatório de onde partem


os investimentos de objeto e no qual eles voltam a ser recolhidos, e o
investimento libidinoso narcísico do eu se nos afigura como o estado originário
realizado na primeira infância, que é apenas encoberto pelas emissões
posteriores de libido, mas, no fundo, se conserva por detrás delas (1905:205).

Vemos que, com o advento do narcisismo, a oposição entre pulsões sexuais e


pulsões de auto-conservação começa a se ver abalada. Freud insistirá ainda em sustentá-
la de forma a se opor, sobretudo, à idéia de um monismo pulsional, como acreditava
Jung. Respondendo a uma crítica deste último, que afirmava que o retraimento da libido
seria responsável pela produção de um anacoreta e não de um esquizofrênico, Freud
assinala que o anacoreta não retira sua libido dos objetos (psicose) ou sofre uma
introversão da libido até a fantasia (neurose). Ele não renuncia, portanto, à libido, mas a
utiliza num outro processo: a sublimação. A sublimação é, portanto, uma modalidade de
saída, frente às exigências do ideal que prescinde do recalque.
A constituição do eu será localizada em estrita correspondência a uma operação
que vai se adicionar ao auto-erotismo, uma nova ação psíquica, acarretando o
narcisismo. A escolha de objeto deve ser, nessa perspectiva, considerada como um
momento logicamente posterior, onde o sujeito teria de reinvestir o amor que sentiu
originalmente por si mesmo, em um objeto exterior. Essa teorização pressupõe,
portanto, para uma relação de objeto, um eu já constituído no narcisismo.

qual se organiza toda representação, na medida em que a coisa é também o que há de comum a toda
representação, a, furo em torno do qual se organiza a linguagem.
29

Pesquisas recentes dirigiram nossa atenção para um estádio do desenvolvimento


da libido, entre o auto-erotismo e o amor objetal. Este estádio recebeu o nome
de narcisismo. O que acontece é o seguinte: chega uma ocasião, no
desenvolvimento do indivíduo, em que ele reúne suas pulsões sexuais (que até
aqui haviam estado empenhadas em atividades auto-eróticas), a fim de
conseguir um objeto amoroso; e começa por tomar a si próprio, seu próprio
corpo, como objeto amoroso, sendo apenas subseqüentemente que passa daí
para a escolha de alguma pessoa que não ele mesmo, como objeto (1911:83).

Com o advento do narcisismo, Freud mostra que o eu, agora constituído, passará
a se medir a partir de um ideal. Com o estudo da paranóia, Freud demonstrará que existe
em todos os sujeitos a presença de um agente crítico - podemos supor que se trata de
uma antecipação do supereu de 1923 – que procura assegurar a satisfação narcisista do
ideal do eu. Retomemos brevemente o sumário construído por Freud (1914:107) acerca
das diferentes possibilidades de amar.

Uma pessoa pode amar:

(1) Em conformidade com o tipo narcisista:


a) o que ela própria é (isto é, ela mesma)
b) o que ela própria foi;
c) o que ela própria gostaria de ser;
d) alguém que foi uma vez parte dela mesma.

(2) Em conformidade com o tipo anaclítico (de ligação):


(a) a mulher que alimenta;
(b) o homem que protege.

Interessa-nos aprofundar o estudo do tipo narcisista já que será através deste que
Freud empreenderá a análise das psicoses, mais particularmente, da melancolia. As
teorizações a respeito do ideal do eu nos darão a chave de compreensão dessas
diferentes possibilidades de escolha de objeto. O texto freudiano deixa entrever que
ideal e objeto estão intrinsecamente ligados, já que é através de suas satisfações tocantes
ao objeto e da realização de seu ideal que o eu se enriquece. Estar apaixonado será,
então, nessa lógica, compreendido como uma transformação do objeto sexual em ideal,
ou melhor, como o ponto onde objeto e ideal se equivalem. O eu deve, portanto, ser
concebido, a partir do narcisismo, como um objeto como os outros, já que, como vimos,
é possível amar a si mesmo nos outros. Isso esclarecerá, em grande parte, alguns
fenômenos transitivistas da psicose, onde o sujeito pode repartir traços do eu nos
30

objetos, e ver seu eu como um objeto como os outros.

A hipótese da homossexualidade

Em seus primeiros escritos, Freud procurou estabelecer uma relação causal entre
o trauma gerado pelas primeiras experiências sexuais e a eclosão da psicose
propriamente dita. Em seus casos clínicos, procurou depreender a cena sexual
traumática, relacionando o delírio e as alucinações a esse evento. Embora em termos
clínicos suas intervenções não pareçam ter tido grandes efeitos terapêuticos, no plano
teórico pôde, como vimos, detectar aspectos importantes acerca da dinâmica em jogo na
psicose.
A partir dos fenômenos alucinatórios e das idéias de auto-referência, Freud
evidenciou que, por uma espécie de rejeição radical, o sujeito experimenta na psicose
aquilo que lhe concerne como vindo desde fora. Com isso, Freud marca que tanto a
experiência alucinatória quanto o delírio são vividos pelo sujeito em termos de certeza.
Queremos destacar que essa abordagem da psicose permite-nos pôr uma ênfase no
aspecto real do fenômeno: o que importa não é tanto o que o delírio ou a alucinação
veiculam de sentido, mas aquilo que, do vivido, apresenta-se para o sujeito em termos
de convicção imediata.
As teorizações sobre o narcisismo marcam uma nova abordagem das psicoses,
que passam a constituir uma modalidade clínica diferenciada do campo das neuroses. A
partir da teoria da libido, as neuropsicoses de defesa serão revistas e classificadas em
uma nova divisão diagnóstica que tomará como base a possibilidade ou a dificuldade do
sujeito de estabelecer vínculos com os objetos. Freud situa, assim, as neuroses de
transferência (histeria de angústia, histeria de conversão e neurose obsessiva) pela
capacidade de estabelecimento de vínculo com os objetos, e as neuroses narcísicas
(paranóia, esquizofrenia, confusão alucinatória e melancolia), pela dificuldade em
estabelecer essa relação.
O foco de análise repousa, no que concerne ao tratamento analítico, nas neuroses
de transferência. São elas que ditam os fundamentos da técnica analítica freudiana.
Vemos esboçar-se, a partir do narcisismo, um certo ceticismo em relação à possibilidade
de manejo da transferência na psicose. A psicose será pensada a partir do modelo da
31

neurose, mas em uma perspectiva deficitária no que concerne à sua capacidade de


vinculação aos objetos. Queremos, no entanto, assinalar que Freud, com sua descrença
em relação à possibilidade de transferência na psicose6, aponta para certas
características importantes desta modalidade clínica. De fato, a relação eu-objeto detém
na psicose certas particularidades que não poderão ser tomadas em consideração pela
teoria da clínica da neurose, exigindo, portanto, novos desdobramentos e formulação
teórica no que concerne ao tratamento das psicoses.
Como vimos, a partir dos textos metapsicológicos, Freud se debruça sobre as
diferentes formas de amar, ou seja, delimita alguns tipos de vinculação com o objeto,
investigando suas incidências na vida amorosa dos sujeitos. Segundo Freud, a psicose se
caracterizaria pela recusa em fazer uma escolha de objeto homossexual. O psicótico,
para não investir em uma relação homossexual, pagaria o preço de retirar sua libido do
mundo.
Vimos que, em seus primeiros escritos, Freud relacionou o desencadeamento da
psicose à primeira experiência sexual do sujeito. Neste momento de sua teoria, Freud
não abandona definitivamente o sexual, mas passa a tratá-lo, não mais como um evento
traumático, mas como uma inclinação do sujeito. É preciso, portanto,

(...) examinar a atitude do paciente para com o lado erótico da vida e para com
assuntos de indulgência sexual, pois nós, psicanalistas, até o presente, apoiamos
a opinião de que as raízes de todo distúrbio nervoso e mental devem se
encontrar principalmente na vida sexual do paciente (1911: 48).

Freud colocará no cerne do desencadeamento da psicose a emergência de uma


libido homossexual. A defesa contra uma fantasia de desejo homossexual estaria na
base da retração da libido. A homossexualidade ganha, assim, na psicose, estatuto de
causa.
O delírio será considerado como uma tentativa do sujeito de reinvestir sua libido
nos objetos, como um remendo que reconstituiria o buraco aberto na relação do sujeito
com a realidade. A cura pelo delírio tem como efeito levar o sujeito a transformar o
mundo insuportável de ser vivido em um mundo possível de habitar. É preciso, no
entanto, assinalar que nem todo trabalho de reconstrução é sempre bem logrado. Deve-

6
Em 1925, Freud deixa, entretanto, claro o seu desejo de que a psicanálise venha a encontrar um método
eficiente de análise das psicoses (Cf. ESB, v. XX, p. 77).
32

se, portanto, levar em conta durante a condução de um tratamento de psicose que nem
todo ensaio delirante faz necessariamente função de cura. A ênfase na palavra tentativa
deve, portanto, colocar-se aqui em todo o seu rigor.
O delírio viria, então, em determinadas condições que trabalharemos
posteriormente, solucionar em Freud o conflito gerado pelo desejo homossexual na
psicose. É preciso no entanto assinalar que, se para Freud, a homossexualidade é
determinante na operação de rejeição, concordamos com Lacan (1955-56) quando
critica duramente essa posição. Seria errôneo, segundo ele, atribuir uma
homossexualidade de base à psicose, esta é apenas uma das conseqüências possíveis da
não inserção do psicótico na partilha sexual. O psicótico prescinde, para Lacan, da
norma (fálica) que o situaria na existência como homem ou como mulher. A colocação
por Lacan da homossexualidade no nível de efeito e não de causa das psicoses é uma
retificação conceitual importante. Onde Freud sinaliza a recusa do psicótico em ocupar
a posição edípica, podemos com Lacan7, ler a impossibilidade deste de situar-se na
partilha dos sexos.
Não é tanto uma escolha de objeto homossexual que está em jogo na psicose,
mas uma tendência, para o homem, em adotar uma posição feminina. Lacan (1973),
como veremos futuramente, mostrará que o empuxo-à-mulher é resultante da não
inserção do psicótico na norma fálica. Das duas possibilidades existentes na partilha
sexual, o lado feminino, devido à inscrição da falta radical de um significante, acaba por
constituir-se como um dos lugares mais favorecidos de localização para o psicótico.
Essa será, como veremos a seguir, a solução adotada por Schreber, ao aceitar sua
transformação em mulher: “na falta de poder ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a
solução de ser a mulher que falta aos homens” (Lacan:1957-58:566). É importante
ressaltar que as mulheres também sofrem as conseqüências do empuxo-à-mulher na
psicose. Czermak (2004) tece um interessante comentário sobre a feminização nas
mulheres psicóticas. Conta, de forma anedótica, que Henri Ey já havia, em sua clínica,
batizado o fenômeno de Síndrome VVP (vagabunda, vaca, puta).

7
A partir do caso do Homem dos Lobos de Freud, Lacan mostra que o paciente não somente se recusou a
ocupar a posição edípica, mas também tudo o que é do plano da realização genital. É neste texto que
Lacan pinçará o termo Verwerfung e proporá a utilização do termo foraclusão para designar a operação
em jogo nas psicoses. (S1: 36 ou E: 389). A frase em questão é: “um recalque é algo muito diferente de
uma rejeição” (XVII:102), no original: "Eine Verdrängung ist etwas anderes als cine Verwerfung". (S1:
36 ou E: 389).
33

As mulheres, quando começam, não dizem: “querem me tornar homossexual”.


Não. “Estão me chamando de vagabunda, vaca, puta”, e depois dizem: “E além
disso, eu sou a Virgem Maria”. Quer dizer que, de certa forma, se tomarmos
pelo ângulo feminino, entretanto, sob o ângulo do horizonte estrutural e
topológico, isso visa uma completude purificada, plena (64).

Gostaríamos, por último, de salientar os riscos de uma leitura da psicose


centrada na teoria da homossexualidade. Essa perspectiva nos parece pouco eficiente e,
até mesmo, equivocada em termos clínicos. De fato, considerar os fenômenos da
psicose a partir da homossexualidade pode, por exemplo, autorizar interpretações sobre
a temática sexual do delírio ou servir de justificativa para dificuldades no manejo da
transferência. Essa não nos parece uma boa via de condução clínica, na medida em que
consideramos que as pretensas manifestações homossexuais da psicose, e
principalmente aquelas que se dirigem ao analista ou a algum membro da equipe
cuidadora, comportam, na grande maioria das vezes, uma tentativa particular do sujeito
de explicar os abusos, traições ou paixões que desperta em suas transferências
delirantes.
Voltemos a Freud de forma a depreender quais os elementos fundamentais que
podemos extrair da teoria da homossexualidade na clínica da psicose. Como dissemos,
ocorre, a partir dos textos metapsicológicos, um deslocamento de foco no estudo sobre a
causalidade das psicoses. Se antes o que se buscava era depreender o encontro sexual e
a experiência de gozo resultante, agora será valorizado o tipo de escolha de objeto e a
maneira como ela incide na forma de o sujeito relacionar-se.

Dois casos de psicose e sua relação com a homossexualidade

A partir da análise de dois casos trabalhados, por Freud, nesse período de


construção do conceito de narcisismo, destacaremos alguns pontos que julgamos
importantes para a discussão clínica da psicose. Freud tentou, na época, desdobrar sua
tese sobre a homossexualidade na paranóia a partir de um postulado, segundo o qual, o
perseguidor eleito pelo sujeito no delírio deveria necessariamente ser do mesmo sexo
que o perseguido. Queremos ressaltar que, embora Freud tenha insistido sobre a
34

veracidade desse postulado, ele não é empiricamente verificável na clínica.


Com o texto intitulado Um caso que contraria a teoria psicanalítica da
paranóia (1915), Freud tenta comprovar sua teoria acerca da igualdade de gênero entre
perseguidor e perseguido. Mostra que, em um primeiro momento, o caso parece
contrariar sua teoria, já que o perseguidor em questão não é do mesmo sexo biológico
que o perseguido. Esse impasse é, entretanto, solucionado após a retomada da história
de vida da paciente e a verificação de que, na realidade, o primeiro perseguidor que ela
havia instaurado em sua vida compartilhava o seu sexo biológico.
Vejamos rapidamente o caso. A paciente, uma mulher, no momento de sua
primeira relação sexual, ouve um barulho vindo da cômoda. Interpreta que seu amante
queria fotografá-la, sente-se perseguida. Como dissemos, o caso contraria
aparentemente a tese da homossexualidade, a não ser por um detalhe que Freud, em uma
análise mais apurada, acaba revelando. Remontando a história persecutória da paciente,
chega à conclusão de que ela havia primeiramente instaurado sua chefe – substituta da
mãe – como perseguidora.
No dia seguinte, após o primeiro encontro da moça com o amante, este havia ido
ao escritório delas e havia travado uma conversa com sua chefe. A paciente começou,
então, a achar que eles falavam dela e que, portanto, sua chefe sabia de seus encontros e,
por isso, fazia insinuações misteriosas sobre ela. Apenas em um segundo momento é
que a paciente interpreta que seu amante havia contado tudo a sua chefe e, por isso,
também era seu perseguidor.
O que nos interessa aqui é mostrar que o encontro com o sexo foi
desestabilizador para esta paciente. Se até então ela parecia manter-se na existência sem
nenhuma grande reviravolta, a entrada de seu amante vem abalar o curso ulterior de sua
vida. Talvez possamos inferir que a chefe da paciente tenha servido para ela, durante um
tempo, de identificação imaginária, fornecendo-lhe indícios de como se comportar na
existência. Apreendemos com Lacan (1955-56) que é sempre interessante procurarmos
clinicamente quais as situações que possibilitaram ao sujeito compensar-se no mundo,
antes do desencadeamento. Ter acesso aos fatores estabilizantes pré-desencadeamento
pode fornecer-nos pistas preciosas das soluções não delirantes, inventadas pelos sujeitos
para lidar com a sua vida cotidiana, assim como auxiliar-nos na detecção do estilo de
transferir do paciente. Nossa hipótese é a de que a entrada em cena do amante e a
35

contingência do encontro sexual vieram desestabilizar o eixo identificatório, exigindo


uma resposta sobre o seu sexo para essa paciente.
Um outro caso, trabalhado por Freud (1916) neste momento de sua teoria, parece
ir em uma direção semelhante. Um jovem médico começa a sentir-se perseguido por seu
melhor amigo, um médico anatomista, e pelo pai deste, um professor universitário.
Acusa-os de uma série de infortúnios, inclusive de haverem causado a primeira guerra
mundial. Essa idéia é lentamente construída quando, após uma relação sexual com uma
mulher, o jovem médico sente uma pontada no crânio, como se alguém estivesse
fazendo uma incisão em seu cérebro. Essa sensação é relacionada a uma autópsia e,
como seu amigo é médico anatomopatologista, o paciente conclui que certamente a
mulher foi enviada pelo amigo para seduzi-lo.
O paciente tinha uma relação de longa data com seu amigo médico, “sua afeição
por ele era ainda tão intensa que lhe paralisou a mão quando, em uma ocasião, teve a
oportunidade de fulminar seu inimigo com um tiro à queima-roupa”(1916:416). O que
desestabilizou a tal ponto este paciente? O amor que sentia por seu amigo médico? O
que impediu seu ato?
Em primeiro lugar, é preciso assinalar que tanto no primeiro quanto no segundo
caso não há apenas um, mas ao menos dois perseguidores. A explicação que Freud vai
nos dar em seu texto é a de que na psicose é freqüente a substituição de um perseguidor
por outro. Mas o que dita essa substituição? Freud assinala, então, que o sujeito troca a
figura de seu perseguidor – a pessoa do mesmo sexo que o sujeito mais amava – por
qualquer outra, desde que uma condição necessária seja mantida: ocupar uma posição
similar na relação com o sujeito: “por exemplo, um pai por um professor ou por algum
superior” (1916:495). Vemos, então, que o foco da perseguição não incide tanto no sexo
do perseguidor – o que fica explicito no primeiro caso – mas no lugar simbólico que ele
ocupa para o sujeito.
No que concerne ao manejo da psicose é vetado, do ponto de vista psicanalítico,
ao clínico ou, até mesmo, à equipe de cuidados encarnar no trato com o paciente esse
lugar persecutório. O perseguidor é, então, de uma maneira mais geral, todo aquele que
legitima o sujeito na posição de objeto de gozo, que foi instituída pelo delírio. A
viabilidade do trabalho com a psicose depende, assim, de uma certa recusa, por parte do
clínico, em ocupar o lugar quase inevitável de perseguidor que a transferência delirante
36

suscita.
A seguir, trabalharemos três possibilidades de coincidência entre o sujeito e o
objeto, de forma a verificar os riscos que elas comportam. Grosso modo, poderíamos
dizer que esse momento de coincidência entre o sujeito e o objeto corresponde à fase de
instauração do delírio. O caso do jovem médico, que acabamos de abordar, evidenciou o
quanto esse tipo de situação comporta o risco de passagem ao ato. Como dissemos, o
jovem chegou a apontar uma arma para o seu perseguidor, ou seja, por pouco não
chegou, em uma tentativa de se desvencilhar do lugar de objeto de perseguições imposto
pelo delírio, a aniquilar seu semelhante.
Embora, o risco de agressão estivesse evidente no caso, o jovem recuou de seu
ato homicida. O que podemos depreender dessa situação? Como dissemos, é comum na
psicose que o personagem persecutório se decomponha em vários outros que ocupam,
na relação com o sujeito, uma posição similar. Freud aponta que há um deslocamento
próprio à estrutura da psicose, a decomposição, que marca os investimentos de objeto
dos sujeitos. Devemos ter em vista que, ao nos referirmos à decomposição, estamos
também assinalando a possibilidade de que um mesmo objeto se subdivida e encarne
traços distintos do próprio eu do sujeito. Isso faz com que o lugar do perseguidor em um
delírio persecutório, que não foi ainda sistematizado, não seja necessariamente fixo e
permanente, podendo ser passível de mutação e de transferência.
A grande contribuição freudiana, em relação ao manejo clínico da psicose,
encontra-se justamente na elucidação desse ponto: no delírio, aquilo que
paradoxalmente se configura como um risco, traz em seu cerne a possibilidade de
trabalho clínico com a psicose. Há uma manobra clínica que permite para quem for
posto no lugar de perseguidor, poder deslocar-se dessa posição. O próprio trabalho do
delírio pode, igualmente, fazer a posição do perseguidor vacilar. Não é incomum, que
um psicótico queira obter, daquele que ele crê ser seu perseguidor, uma confirmação,
uma reiteração de sua posição, a revelação de suas verdadeiras intenções. Esse pedido,
quando endereçado a um analista, pode abrir um meio de manobra no delírio. O trabalho
clínico consiste justamente em não reiterar a perseguição, de forma a apreender a
tentativa de cura que o pedido de confirmação revela. Pedir que o outro confirme a
perseguição que lhe é incutida pode abrir uma fresta na certeza delirante, possibilitando
37

a criação de uma brecha de trabalho, desequilibrando as certezas, forçando o sujeito a


fazer de seu delírio função de cura.
Podemos, com isso, inferir que o que impede o jovem médico de consumar o ato
homicida é justamente o início de um trabalho delirante. O trabalho de construção do
delírio pode eventualmente fazer algumas certezas vacilarem, protelando assim a
eminência de uma passagem ao ato. Podemos, então, afirmar que a distância entre o eu,
o objeto e o outro é o que mantém o sujeito a parte do ato agressivo. A passagem ao ato
seria, nessa mesma direção, o instante em que esses pontos se encontram, mortífera
coincidência que pode culminar na destruição do amor, do sujeito ou de seu objeto.
Retomemos alguns pontos fundamentais sobre o delírio persecutório na psicose:
1 - A perseguição dá a chave da transferência, na medida em que situa onde não
devemos nos posicionar;
2 - Podemos dizer, a rigor, que a perseguição só é total quando a passagem ao ato é
consolidada. O manejo da transferência consiste em detectar um ponto de abertura no
delírio de onde seja possível manobrar;
3 – O personagem persecutório é sempre desdobrável e multiplicável, constituindo,
como veremos, uma série a partir de um protótipo inicial.

Delírios de amor

A partir do momento em que Freud deixa de procurar um trauma sexual na


origem da psicose, a força das pulsões e o papel da fantasia passam a ser tomados em
consideração e ganham papel de destaque na economia da psicose. Vejamos como isso
se dá. Retomemos brevemente o papel da fantasia, lembrando que o modelo proposto,
por Freud, para pensar a psicose é, neste momento, o da neurose. A fantasia é, para a
neurose, um recurso possível para lidar com o desligamento da libido, devido à
frustração ou a um impedimento de vínculo com um objeto. Apresenta-se, então, como
um recurso de substituição do objeto perdido, de forma a possibilitar que o sujeito
continue investindo em suas relações eróticas.
A partir da paranóia, Freud construirá a idéia de que, na psicose, a fantasia não
faz a manutenção dos vínculos libidinais com o mundo. Isso acontece, segundo ele,
38

porque o sujeito rejeita a fantasia, recusando-se, assim, a ocupar o lugar por ela imposto.
A libido desliga-se dos objetos anteriormente investidos e retoma o caminho regressivo
do narcisismo. A seqüência lógica é a seguinte: a frustração pela não realização de uma
fantasia de desejo homossexual provoca uma regressão da libido até o narcisismo, ou
seja, na medida em que os investimentos são retirados dos objetos, a libido fica livre
para fixar-se novamente no seu ponto disposicional. A fantasia na paranóia não
viabiliza, portanto, o retorno da libido aos objetos. A fixação disposicional do paranóico
no narcisismo dificulta esse retorno, fazendo com que a libido seja utilizada de um
modo muito especial, “vincula-se ao eu e é utilizada para o engrandecimento deste”
(96).
O delírio seria, então, uma alternativa possível para reinvestir a libido nos
objetos e solucionar o conflito gerado pela emergência da fantasia homossexual.
Espécie de construção acessória e posterior, o delírio funcionaria como uma prótese na
relação com os objetos, localizando o sujeito em uma nova ordem de organização do
mundo. Essa nova ordem carrega, entretanto, as marcas do narcisismo: constitui-se
como uma invenção particular do sujeito, não sendo, portanto, passível de ser
compartilhada no senso comum.
Freud utiliza o modelo dos dois tempos da neurose – recalque e retorno do
recalcado – para depreender as etapas da psicose. Retomemos brevemente este ponto. A
primeira etapa da psicose corresponde, segundo Freud (1911), ao recalque propriamente
dito e consiste em um desligamento da libido em relação ao mundo e seu retorno ao eu.
Esse período de desligamento ocorre silenciosamente e não deixa marcas passíveis de
serem observadas. Ele só pode ser inferido em um segundo momento, quando a libido
torna a ser reinvestida no mundo.
A segunda etapa é para Freud ruidosa e corresponde ao trabalho do delírio.
Nesse segundo tempo, acontece a tentativa de reconstrução do mundo que foi abalado
pelo surto. Esse tempo não é sem percalços para o psicótico, já que, como dissemos, o
delírio não será necessariamente eficaz na reconstrução do mundo. Poderíamos, a rigor,
afirmar que não basta delirar, é preciso que o sujeito, no seu trabalho de significação,
consiga inventar uma distância que o separe um pouco do lugar de objeto, única
condição para que o delírio seja bem sucedido.
Retomemos esquematicamente o trabalho do delírio:
39

Tempo 1: recusa em ocupar a posição imposta na fantasia, desligamento da libido das


pessoas e objetos anteriormente amados e retorno da libido ao eu.
Tempo 2: delírio, como uma tentativa de cura, visando promover o retorno do
investimento da libido nos objetos.

A condição de êxito do delírio é, então, a promoção de uma reconciliação entre o


sujeito e o mundo, designando para o sujeito um lugar possível de ocupar. É preciso,
para que o segundo tempo chegue ao seu termo, que o sujeito consiga criar um ponto
onde possa situar sua existência no mundo. Deixaremos momentaneamente de lado o
desenvolvimento teórico acerca de como essa tarefa se executa. Queremos, neste
momento, priorizar o momento inicial de retomada do investimento da libido nos
objetos de forma a depreender como se dá a operação de retorno daquilo que foi
rejeitado na psicose.
Retomemos o tempo de irrupção da fantasia de desejo homossexual na psicose.
Freud assinalou que o sujeito nega essa fantasia, recusando a posição aí indicada.
Vejamos como essa negação vai diferir da negação na neurose. Na neurose, aquilo que é
negado se estrutura como uma linguagem no nível do sintoma, mantendo-se na ordem
simbólica. Os chistes, os atos falhos e os lapsos são assim considerados como
formações do inconsciente na neurose.
Na psicose, aquilo que é negado pelo sujeito aparece em um outro registro. Isso
significa que algo ficará para sempre perdido da ordem simbólica e não será passível de
ser retomado em termos dialéticos. Lacan (1954) dirá que o registro no qual aquilo que
foi recusado pelo sujeito retorna é o real, a negação na psicose estabeleceria assim um
percurso de fora para dentro do sujeito. Essa idéia já se encontra no início da obra
freudiana, a partir da idéia da recusa da crença na auto-recriminação primária na
paranóia: a hostilidade retorna do exterior para o sujeito.
O delírio é, para Freud, uma tentativa de solução frente aos impasses do amor
(homossexual) na psicose. Cabe lembrar que nos ocuparemos, neste ponto, do momento
de desencadeamento do delírio, atendo-nos, portanto, mais no conflito do que em sua
solução. As razões metodológicas desse caminho repousam nas próprias características
de um delírio já constituído: ser uma construção singular de um sujeito, não sendo
possível de ser compartilhado na vida ordinária. Como só é possível, portanto, tratar do
40

delírio como solução de cura no caso a caso, optamos por adiar o desenvolvimento deste
ponto até termos explanado sobre o caso Schreber.
Voltemos ao momento de eclosão do delírio. Freud reduzirá primeiramente a
fantasia de desejo homossexual, para o homem, a uma fórmula gramatical: EU O AMO.
Será em torno dessa sentença, que a negação na psicose incidirá. Dela derivarão três
formas de negação: sobre o sujeito, sobre o verbo ou sobre o complemento, assim como
três tipos de delírio: perseguição, erotomania e delírio de ciúmes.
Retomemos esquematicamente como as três formas de delírio da paranóia se
conjugam nessa contradição:

‘EU (UM HOMEM) O AMO (UM HOMEM)”


Tipo de delírio Negação Sentença
Perseguição Verbo ‘Eu não o amo – eu o odeio, porque ELE ME PERSEGUE.’
Erotomania Complemento ‘Eu não o amo – eu a amo, porque ELA ME AMA.’

Ciúme Sujeito ‘Não sou eu quem ama o homem – ELA O AMA.’

Vemos que, embora Freud utilize a projeção para explicar o delírio persecutório
e a erotomania, ela fica excluída do ciúme. Neste último, a negação incide sobre o
sujeito, logo o próprio eu é suprimido: “não sou eu... é ela que...”, prescindindo do uso
da projeção. Dentre os outros motivos já abordados, essa constatação leva Freud a
abandonar a ênfase no mecanismo de projeção como explicativo dos fenômenos
psicóticos.
O que isso nos ensina sobre o amor na psicose? Retomando a escolha de amor
narcisista, veremos que essa fórmula corresponde ao sujeito que ama no outro aquilo
que ele mesmo é. As virtualidades mortíferas do amor pelo igual na psicose são
exploradas, por Freud, mostrando que este amor acaba invariavelmente por ocupar, no
delírio, o lugar do perseguidor, do amante ou do traidor. O amor pelo igual, portanto,
carrega em si três riscos: a destruição da paixão, do sujeito ou de seu objeto.
Do nosso ponto de vista, o aspecto mais importante da formulação gramatical
freudiana é possibilitar a extração de três modalidades diferentes de relação do sujeito
psicótico com o outro. Cabe ressaltar que o sujeito psicótico recebe sua mensagem do
Outro encarnado, muitas vezes, em um pequeno outro, porta voz de uma mensagem que
41

o sujeito não reconhece como sua. Essa alienação da mensagem, tratada por Freud sob
a forma do “não sou eu... é ele que...” indica que o delírio instaura na relação sujeito -
Outro uma espécie de mistura, de fusão.
Que tipo de objeto escolhe o sujeito no delírio da paranóia? Lacan (1955-56)
dissecará a relação entre o sujeito e o seu semelhante, na psicose, a partir das teorização
freudianas, mostrando as conseqüências da alienação da mensagem nos três tipos de
delírio. Coloquemos em um esquema as relações do sujeito com o outro do delírio nas
três formas de delírio da paranóia:

‘Eu (um homem) o amo (um homem)”

Delírio Alienação Outro

perseguição convertida decomposto

erotomania divertida neutralizado

Ciúme invertida interversão


do signo da sexualização

Que semelhantes escolhem o psicótico para neles tentar fazer encarnar o Outro?
No ciúme psicótico, o que está em jogo é uma identificação ao outro com interversão do
signo da sexualização. Trata-se para o ciumento de “sua própria mulher, a quem vocês
fazem mensageira de seus próprios sentimentos não para um outro homem, mas, como
mostra a clínica, para com um número de homens mais ou menos indefinido”
(Lacan:1955-56:54). É um delírio indefinidamente repetível, que tende a incluir
qualquer um que se coloque no horizonte. Como veremos, no segundo capítulo, não se
trata, no ciúme psicótico, propriamente de triangulação e, portanto, a rivalidade não é o
traço predominante.
Na perseguição, ocorre uma alteração profunda de todo o sistema do Outro, sua
decomposição. O delírio de perseguição é uma forma de alienação convertida da
mensagem, no sentido em que ocorreria uma conversão do amor em ódio. O Outro é
decomposto na paranóia em vários pequenos outros perseguidores, que, por sua vez, se
42

subdividem de tal forma que a perseguição pode abarcar todas as explicações sobre o
que acontece para o sujeito no mundo.
Na erotomania, o Outro é neutralizado, despersonalizado. Chamada, por Lacan,
(1955-56) de alienação divertida da mensagem, nela, o outro escolhido não tem
nenhuma relação concreta com o sujeito: “um objeto afastado, com o qual o sujeito se
contenta em comunicar-se por meio de uma correspondência de que nem mesmo ele
sabe se ela chega ao seu destinatário.”(54) Por isso, a escolha freqüente de pessoas
famosas, celebridades ou figuras públicas.
Lacan opõe mais especificamente a forma persecutória da psicose da forma
passional, mostrando que se na primeira, a ênfase recai sobre a relação do eu e do outro,
na forma passional, a inércia dialética coloca-se muito mais do lado do eu, do sujeito.
Tyzler (2005) acrescenta que na forma passional da psicose os dois tempos de
construção do delírio (por nós já trabalhados) não se apresentam com tanta clareza
como na forma persecutória: “o postulado se impõe e a certeza é imediata. O paciente
não parece descentrado em sua subjetividade. A inclinação fixa não é jamais
considerada estranha, xenopática” (103).
É preciso, contudo, assinalar que é a dimensão mortífera do amor que se
apresenta na forma persecutória da psicose. Como assinala Soler (1991), o amor na
paranóia não se apresenta tanto como uma solução delirante, com um apaziguamento
subseqüente de gozo, mas aparece na vertente de um gozo mortífero do Outro, que a
autora propõe chamar de ‘eroticomania persecutiva’.

1.3 Schreber e o amor

O caso Schreber é, sem dúvida, uma referência central para o estudo da psicose.
É a partir da análise de seu delírio que Freud construirá algumas das premissas
fundamentais de sua teoria da psicose. O caso ganha, assim, estatuto de paradigma. É
interessante notar que, apesar do caso Schreber já ter sido intensamente abordado na
literatura psicanalítica, continua sendo investigado, conservando até hoje um certo
ineditismo. Essa característica não é exclusiva apenas desse caso, ela se repete de uma
maneira mais geral em todos os casos freudianos. Acreditamos que isso se deva ao
43

próprio método de construção de caso: ele se estrutura justamente a partir de um ponto


de inapreensível, toda a lógica do caso é montada em torno de um vazio, de algo que, do
encontro com o paciente, não pôde ser assimilado. Ao caso, caberia, assim, bordejar o
real da experiência. Ao conter em seu centro o impossível de ser apreendido, o caso
conserva-se para sempre inacabado, fazendo com que sejamos levados a retornar a ele,
sem cessar.
O fio condutor do caso é o delírio, que Schreber expõe ao longo de seu livro de
memórias. Teçamos primeiramente algumas pequenas considerações em torno da
escolha freudiana por um relato escrito ao invés de um caso clínico. Em primeiro lugar,
Freud justifica seu material de análise, dizendo que, na psicose, os pacientes mostram,
mesmo que de forma distorcida: “exatamente aquelas coisas que outros neuróticos
mantêm escondidas, como um segredo” (1911:23). Podemos deduzir, a partir dessa
constatação, que Freud vê na psicose uma fonte de estudo para o campo da clínica
psicanalítica, em geral. Façamos deste comentário freudiano uma chave de leitura
clínica. Podemos depreender que, se os fenômenos da psicose esclarecem e ilustram
determinados pontos da clínica da neurose8, a recíproca não é, entretanto, verdadeira.
Em suma, se a clínica da psicose pode auxiliar a compreender a neurose, a clínica da
neurose não se mostra, entretanto, eficiente em desvendar a psicose. Como veremos, no
terceiro capítulo, Lacan faz da esquizofrenia, ao final de seu ensino, a referência central
para o estudo da clínica. Por ser a posição subjetiva que menos se defende contra o real,
ela se torna paradigmática do caráter facultativo da realidade.
Freud acrescenta que devemos "tomar o exemplo, como sendo a coisa real, a
citação ou a glosa, como a fonte original"(1911:53), ou seja, proceder na clínica,
tentando verificar o que da estrutura aparece no fenômeno9. É por isso que, na

8
Um exemplo claro disso é o delírio de observação, lançando luz ao que Freud chamará, mais tarde, de
supereu. Ao empreender a investigação acerca da psicologia do eu e suas relações com a realidade,
(1917b), Freud focará o supereu: “há realmente no eu uma instância que incessantemente observa, critica
e compara, e desse modo se contrapõe à outra parte do eu.” (499).
9
Freud propôs essa fórmula também em suas notas sobre o caso do “Homem dos Ratos” de forma a
mostrar que na neurose obsessiva “o exemplo é a coisa original e real que tentou esconder-se por trás da
generalização”. FREUD, S. “Notas sobre um caso de neurose obsessiva” (1909), ESB, v. X., p. 168. A
esse respeito, ver também o comentário de ASSOUN: “Logo, a coisa nada mais é que outro nome do
exemplo, mas ela é também o próprio momento do pensamento, o que requer precisamente uma posição
metapsicológica sui generis. Na clínica, não se deve pensar na coisa, e sim pensar a própria coisa,
fenomenalizada, é verdade, na rede de fenômenos e relações em que ela se «exemplifica»”. ASSOUN
P.L., “O Exemplo e a Coisa”. In: Metapsicologia freudiana: uma introdução. Rio de Janeiro:Jorge Zahar,
1996:49.
44

psicanálise, o fenômeno não pode ser considerado como algo já dado e cuja existência
se definiria em si mesma. Freud partiu do fenômeno, única via de acesso à estrutura,
mas não fez deste o fundamento de sua teorização, já que, paradoxalmente, o fenômeno
só pode ser apreendido através da estrutura. A chave de acesso à clinica constrói-se,
portanto, nessa via de mão dupla, mas não sem articulá-la ao singular do caso. A
psicanálise visa, assim, extrair do caso uma certa lógica, de modo a reordenar e explicar
os fenômenos que se apresentam em termos mais gerais.
Freud dá mais um passo importante nesse texto, no que concerne ao tratamento
da psicose, ao afirmar que é “legítimo basear interpretações analíticas na história clínica
de um paciente (...) a quem nunca vi, mas que escreveu sua própria história clinica e
publicou-a. (1911:23). Ora, se o paciente escreveu sua história clínica é porque é ele
quem detém o saber sobre o seu caso, ou seja, o saber, na psicose, aparece do lado do
paciente. De fato, não é comum que um psicótico procure um analista, acreditando que
este possa deter um saber sobre seu ser, capaz de livrá-lo de seu sofrimento (que pode
ser o caso do neurótico). Ao contrário, a procura por um analista, na psicose, assevera-
se como uma tentativa de compartilhar um saber que veio de fora e com o qual o sujeito
não sabe muito bem o que fazer, um saber que pode, muitas vezes, aparecer como
insuportável, mas cujo estatuto de certeza contribui para afirmá-lo. Aprofundaremos
esse ponto ao analisar a carta que Schreber dirigiu ao seu primeiro médico, Dr. Flechsig.

Breve história

Retomemos brevemente o caso Schreber tal como Freud o construiu. O caso gira
em torno do delírio de Schreber, em um percurso que vai de seu desencadeamento à
estabilização. Schreber teve, ao longo de sua vida, três graves surtos psicóticos,
culminando com internações psiquiátricas. Em suas memórias e, portanto, na análise do
caso, feita por Freud, só constam os dois primeiros, já que o terceiro episódio só se deu
quatro anos após a publicação do livro. Voltaremos a ele posteriormente.
É importante notar que as duas primeiras crises correspondem a momentos de
vida, em que Schreber tentava obter promoções profissionais (ele era doutor em direito).
O primeiro episódio, em 1884, culminou na sua internação na clínica do Dr. Flechsig,
45

obtendo o diagnóstico de uma grave crise hipocondríaca. Há relatos (Carone:1995:12)


de que já, na época, Schreber apresentava delírios não-sistematizados, chegando a ter
tentado, por duas vezes, o suicídio. Após a alta, sucede-se um tempo em que Schreber
parece estar recuperado. É durante esse período, entre a primeira e a segunda etapa da
doença, que acontece um evento que marcará o curso ulterior da doença: entre “o sono e
a vigília, ocorreu-lhe a idéia de que, afinal de contas, deve ser realmente muito bom ser
uma mulher e submeter-se ao ato da cópula”:

Uma vez, de manhã, ainda deitado na cama (não sei mais se meio adormecido
ou já desperto), tive uma sensação que me perturbou da maneira mais estranha,
quando pensei nela, depois, em completo estado de vigília. Era a idéia de que
deveria ser realmente bom ser uma mulher submetendo-se ao coito (...) não
posso afastar a possibilidade de que ela me tenha sido inspirada por influências
exteriores que estavam em jogo (Schreber: 1995:54).

Em 1893, quando de sua nomeação como Senatpräsident, retorna à clínica do


Dr. Flechsig (por quem, diga-se de passagem, era grato por tê-lo curado de sua primeira
crise) com idéias hipocondríacas: “queixava-se de ter um amolecimento no cérebro, de
que cedo morreria” (Freud:1911:28). Logo aparecem idéias de cunho persecutório junto
a alucinações, cada vez mais freqüentes. Schreber achava-se, então, morto: “passou
pelos piores horrores, que alguém possa imaginar, e tudo em nome de um intuito
sagrado” (Freud:1911:29). Posteriormente, tomam lugar idéias de cunho místico e
religioso, chegando a acreditar que vivia em outro mundo. Durante sua segunda
internação, Schreber é transferido para a clínica do Dr. Weber, onde redige suas
memórias.
Freud assinala que a idéia de ser transformado em mulher corresponde ao delírio
primário, persistindo inclusive após o seu restabelecimento. Acrescenta que o segundo
elemento principal de seu delírio, sua relação favorecida com Deus, conecta-se
estreitamente com sua transformação em mulher: tornar-se mulher de Deus. É
justamente a partir dessa idéia de transformação futura, em mulher, que Freud aponta a
manifestação de uma libido homossexual como causa ativadora da psicose, embora não
tenha deixado de alertar aos psiquiatras para que tirem uma lição do caso: “ao vê-lo
tentando, apesar de seus delírios, não confundir o mundo do inconsciente com o da
realidade” (1911:62).
46

No início, Schreber encarava sua transformação em mulher como uma grave


injúria e perseguição, só passando a aceitá-la quando surge a idéia de tornar-se mulher
de Deus. Freud considera, então, que ocorre uma passagem de um delírio persecutório
a um delírio religioso de grandeza. Deixemos de lado, por ora, a questão da resolução
do conflito, destacando apenas que o delírio localiza para Schreber uma posição a ser
ocupada – ser a mulher de Deus – ao mesmo tempo em que adia à transformação pela
qual isso se daria a um futuro não determinado. Pelo bem da humanidade, Schreber
consente em vir a ser a mulher de Deus: espera sua transformação, em mulher, que virá
pela emasculação, quando os órgãos masculinos se retrairão para o interior do corpo e
os internos se modificarão.

Amar a Flechsig: o conflito

Freud constrói o caso Schreber à luz da paranóia. Como já assinalamos


anteriormente, na época, sustentava a idéia de uma conexão entre paranóia e
homossexualismo. O delírio persecutório dirigido contra o Dr. Flechsig, primeiro
médico de Schreber, vem, então, sinalizar, dentro dessa perspectiva, a emergência de
uma libido homossexual. Como vimos, a idéia de transformar-se em mulher era
insuportável para Schreber. Seu segundo médico, Dr. Weber, dá um interessante
depoimento a esse respeito:

Não se deve supor que ele deseje ser transformado em mulher, trata-se antes de
um dever baseado na Ordem das Coisas, ao qual não há possibilidades de fugir,
por mais que, pessoalmente, preferisse permanecer em sua própria honorável e
masculina posição na vida (Weber apud Freud:1911: 32).

Segundo Freud (1911:60), Schreber manteve relacionamentos cordiais com


Fleschig, após o seu primeiro restabelecimento. Sua esposa, que nutria pelo médico
uma imensa gratidão, chegou a manter, por anos, um retrato dele sobre sua
escrivaninha. Durante a segunda internação, os sentimentos hostis, por Fleschig,
passam a predominar, Freud interpreta que estes eram decorrentes dos impulsos
homossexuais do paciente em relação ao seu médico. Embora, Freud afirme não ser
possível explicar a irrupção da libido homossexual de Schreber “na ausência de um
47

conhecimento mais preciso de sua vida” (1911:65), considera como relevantes no


episódio do segundo desencadeamento, a ausência da esposa, que estava de férias
cuidando da saúde, e o climatério pelo qual passava Schreber.
A hipótese que prevalece, entretanto, no artigo freudiano é derivada da
emergência da transferência de Schreber, por seu médico:

O sentimento amistoso do paciente para com o médico bem pode ter sido
devido a um processo de ‘transferência’, por meio do qual um investimento
emocional se transpôs de alguma pessoa que lhe era importante para o médico
que, na realidade, era-lhe indiferente; de maneira que o último terá sido
escolhido como representante ou substituto de alguém muito mais chegado ao
paciente (Freud.:1911::66)

Vimos que, na psicose, a fantasia não dá suporte para a manutenção dos


investimentos do sujeito nos objetos, fazendo com que a libido termine por retornar
sobre o eu. As conseqüências desse retorno da libido se verão na transformação do
próprio eu do sujeito em um objeto como os outros, e na via oposta, já impulsionada
pelo trabalho do delírio, a transformação dos objetos em partes decompostas do eu.
Freud mostra que a paranóia tende, como vimos anteriormente, à
decomposição. Há, assim, no movimento delirante da paranóia persecutória, uma
tendência ao desdobramento do personagem hostil. Em determinado momento do
delírio, Schreber chega a efetuar entre 40 e 60 subdivisões da alma de Flechsig. Freud
mostra que o perseguidor (Fleschig e Deus), tanto Fleschig (superior e médio) quanto
Deus (superior e inferiror) decompõem-se para ele em várias figuras. Esse processo é,
para ele, marca da paranóia: “a paranóia decompõe tal como a histeria condensa”
(Freud:1911:69). Devemos, portanto, tomar a decomposição como um importante
aspecto da transferência na psicose.
Freud, assim, coloca, em série, o irmão de Schreber, Flechsig e Deus,
mostrando que as relações do paciente com estes personagens derivam de um protótipo
inicial: a relação de Schreber com seu pai. É por isso que a forma final do delírio, que
institui Deus no lugar de parceiro, provoca uma resolução do conflito: “esse
sentimento, na medida em que se referia ao irmão, passou, por um processo de
transferência, para o médico, Flechsig; e quando foi devolvido ao pai, chegou-se a uma
estabilização do conflito” (Freud:1911:70).
Uma carta aberta, dirigida ao Dr. Fleschig, primeiro médico e também
48

personagem persecutório essencial do delírio, abre as Memórias de um doente dos


nervos (Schreber:1995). A análise desse documento é fonte indispensável para a
compreensão do caso, pois nos permite localizar as diretrizes principais do delírio,
além de elucidar questões relativas à transferência de Schreber, por seu médico.
É interessante observar que, mesmo o delírio concluído, alguns traços da relação
transferêncial com Flechsig insistem em Schreber. Sua carta aberta ao professor
Flechsig é uma prova cabal a esse respeito: embora Schreber acuse Flechsig de ter sido
em grande parte responsável pelas perseguições das quais é alvo, abre a carta pedindo
que Flechsig leia o livro e “o submeta a um exame benévolo” (1995:25). Desculpa-se
por citar seu nome “em contextos que poderiam ferir sua suscetibilidade” (1995:25) e
afirma não ter “a menor intenção de atingir sua honra” (1995:25). Diz não possuir
nenhuma espécie de sentimento rancoroso por Flechsig. Afirma ter consideração pela
pessoa do médico, “de cuja honorabilidade e valor moral não tenho o menor direito de
duvidar”(1995:26).
A carta se estrutura da seguinte forma: Schreber apresenta um enigma, propõe
uma solução e pede que Flechsig confirme a veracidade de sua exposição. Diz esperar
ganhar, com essa confirmação, credibilidade geral diante do mundo que passaria a ver
seu caso “como um problema científico sério a ser aprofundado por todos os meios
possíveis”(1995:27).
O enigma diz respeito às perseguições que Flechsig lhe incutiu. Schreber
apresenta essa perseguição em termos de enigma e propõe uma explicação para
resolvê-lo.
A princípio, quero crer, apenas com finalidades terapêuticas, o senhor manteve
com meus nervos, mesmo à distância, uma relação hipnótica, sugestiva, ou
como quiser denominá-la. Através dessa relação, o senhor pode ter percebido
que falavam comigo de outra parte, através de vozes que indicavam uma origem
sobrenatural. Como conseqüência dessa surpreendente percepção, o senhor, por
interesse científico, pode ter prosseguido durante um tempo a relação comigo
até que a coisa se lhe tornou, por assim dizer, estranha, o que lhe teria dado a
oportunidade de romper a relação. Mas então pode ter acontecido algo mais:
uma parte de seus nervos saiu de seu próprio corpo e subiu ao céu como alma
provada, adquirindo um certo poder sobrenatural. Essa “alma provada”ainda
carregada de falhas humanas,(...)se teria deixado levar apenas pelo impulso
desconsiderado de auto-afirmação e sede de poder (1995:26).

A explicação da perseguição, que Schreber sofreu de Flechsig, repousa na


subdivisão efetuada por Schreber da figura de Fleschig. Efetivamente, Schreber separa
49

o nome da pessoa, o hipnotizador do homem de ciências, os nervos que deram origem à


alma provada, do médico que o tratou. Podemos inferir que a decomposição do médico
em vários personagens é uma tentativa do sujeito de restituir algum lugar possível à
Flechsig na transferência. É, além disso, a prova de que o delírio, embora tenha tido um
efeito de apaziguamento, não faz sozinho função de cura.
Como mostra Hanna (2000), é fundamental para o sucesso do delírio, a resposta
do destinatário na função que lhe é dada: “o destinatário tem por função firmar essa
separação (entre o eu e o objeto), oferecendo uma acolhida que (...) permita uma
retomada das vacilações e oscilações, que atravessam o terreno do sentido” (52-53).
Acreditamos, portanto, que não basta criar uma solução delirante, é preciso que esta
seja endereçada a alguém e que este alguém seja capaz de acolhê-la. Nas palavras de
Schreber: “não preciso salientar a incalculável importância que teria alguma forma de
confirmação de minhas suposições, anteriormente indicadas”(1995:27).
Como aponta Carone (1995), a última crise de Schreber aconteceu em 1907,
cronologicamente após o falecimento de sua mãe, o adoecimento de sua esposa e a
solicitação dos membros das Associações Schreber de que ele os reconhecesse como os
legítimos herdeiros da obra de seu pai. O delírio não pôde mais, após estes
acontecimentos, continuar a fazer função de cura. Schreber morre em 1911, mesmo ano
da publicação de seu caso por Freud, no sanatório de Dösen, em um estado gravíssimo.

Amar a Deus: a solução do conflito

Vejamos quais os elementos principais presentes no desencadeamento, de modo


a verificar como eles se resolvem com a construção do delírio:

1) É nomeado como presidente do Tribunal de Apelação;


2) Surge o devaneio de como seria bom ser uma mulher , submetendo-se à cópula;
3) É tomado de intensas poluções noturnas à noite.

Vemos, então, que esses três elementos aparecem aqui dissociados e que caberá
ao trabalho do delírio encontrar uma forma de coordená-los. O delírio, deste modo, vai
atar aquilo que no desencadeamento se apresenta sem elo aparente. É por isso que
50

Freud considera o trabalho delirante como “uma tentativa de restabelecimento, um


processo de reconstrução” (1911:95) e, mostra que, embora, a reconstrução do mundo
nunca seja inteiramente bem sucedida, é a “maneira a poder viver nele mais uma vez”
(94).
Retomemos como os elementos principais presentes no desencadeamento, serão
resolvidos ao final da construção delirante:

1) Aceita ser a mulher de Deus;


2) Veste-se com roupas femininas;
3) Obtém um gozo transexual.

Queremos defender a idéia de que, se o delírio é tentativa de cura, a tentativa só


pode ser considerada como um sucesso em sua fase final, ou seja, quando o sujeito
consegue efetuar uma construção lógica capaz de lhe permitir sustentar suas relações
com o mundo. Como veremos posteriormente, é o que Lacan (1957-58) chamará de
solução elegante, ou seja, a invenção de uma criação original e singular de sentido, que
amarre as relações entre o imaginário, o simbólico e o real.
Para Schreber, era inadmissível tornar-se mulher para satisfazer Flechsig, ao
passo que tornar-se a mulher de Deus achava-se “dentro dos limites da possibilidade, e,
na verdade, muito provavelmente pode proporcionar a solução do conflito
(Freud:1911:35). A solução do conflito consiste, portanto, na mudança de foco em
relação à perseguição: se antes era encarnada pelo dr. Flechsig, ou seja, por um
personagem real da vida do sujeito, passa, em um segundo momento, a ser
conseqüência do vínculo indissolúvel entre Schreber e Deus.

Uma das modificações foi a substituição de Flechsig pela figura superior de


Deus. Isto parece, a princípio, um sinal de agravamento do conflito, uma
intensificação da perseguição insuportável, mas logo se torna evidente que
preparava o caminho para a segunda mudança e, com esta, a solução do conflito
(Freud:1911:67).

Transformar-se em mulher era, para Schreber, inadmissível, ser mulher de Deus


torna suportável a emasculação. Ser o objeto de gozo de Fleschig era para Schreber
intolerável, ao passo que fornecer as sensações voluptuosas a Deus, como sua mulher,
torna-se um sacrifício nobre e necessário para a manutenção da humanidade. Se, no
51

início das construções delirantes, Fleschig aparecia como o perseguidor, no ponto de


amarração do delírio, Deus será nomeado como parceiro indissolúvel de Schreber.

(...) adiar a solução do presente para o futuro remoto, e contentar-se com o que
poderia ser descrito como uma realização de desejo assintótica. A qualquer
momento, previa ele, sua transformação em mulher ocorreria; até então, a
personalidade de Schreber permaneceria indestrutível . (Freud:1911:68).

Vemos que a solução do delírio adia a relação amorosa do sujeito e do Outro ao


infinito e, com isso, promove uma reconciliação do sujeito com o mundo. Vejamos
agora se a solução assintótica deixa algum lugar para a emergência do amor no laço
com um parceiro na realidade.

Sobre o amor após o delírio

O delírio, chegado a seu termo, promove uma reconciliação de Schreber com o


mundo:

Aconteceu que, por um lado, ele havia desenvolvido uma engenhosa estrutura
delirante, na qual temos toda razão de estar interessados, ao passo que, por
outro, sua personalidade fora reconstruída e agora se mostrava, exceto por
alguns distúrbios isolados, capaz de satisfazer as exigências da vida cotidiana.
(Freud:1911:30)

O delírio religioso de grandeza possibilita uma estranha parceria entre Schreber


e Deus. Vínculo indissolúvel, Schreber e Deus encontram-se em estranha fusão. Para
Schreber, a estabilização de seu delírio faz equivaler volúpia e beatitude, permitindo-lhe
obter um gozo de sua relação com Deus:

Antes de sua enfermidade, o Senatpräsident Schreber fora homem de moral


estrita. (...). Após o severo combate espiritual, do qual os fenômenos de sua
moléstia foram os sinais exteriores, sua atitude para com o lado erótico da vida
se alterou. Chegara a perceber que o cultivo da voluptuosidade lhe incumbia
como um dever e que somente pelo cumprimento desse dever é que poderia
terminar o grave conflito que irrompera dentro dele – ou, como pensava, a seu
respeito. (Freud:1911:49)
52

Se Schreber goza com Deus, ele afirma, entretanto, continuar a amar a esposa.
Lembremos da divisão da vida amorosa do obsessivo: onde amam não desejam, e onde
desejam, não podem amar. A versão psicótica do conflito da vida amorosa exclui o
desejo, enquanto sexual, fazendo surgir a dimensão gozosa em suas relações com o
Outro. A solução encontrada, por Schreber, consiste em separar o amor do gozo,
localizando o gozo na sua relação com Deus, de um lado, e o amor marital, de outro:

Aqui impõe-se, para mim, uma discrição particular, especialmente com relação
à minha esposa, para com a qual conservo inteiramente intacto o meu antigo
afeto. É possível que a esse respeito eu tenha cometido alguns erros, falando ou
escrevendo de maneira excessivamente franca. Minha esposa, naturalmente, não
pode compreender inteiramente o curso das minhas idéias; ela não pode deixar
de ter grande dificuldade em continuar a me dedicar o mesmo afeto e o mesmo
respeito de antes, ao ouvir dizer que me ocupo da idéia de minha iminente
transformação em mulher. Posso lamentá-lo, mas não modificá-lo; mesmo aqui;
devo me precaver contra qualquer falso sentimentalismo (Schreber:1995: 149 –
nota 76).

Lacan (1957-58) demonstrou que o desarranjo ao qual Schreber foi submetido,


em sua psicose, não pressupôs a exclusão da relação de amor com sua esposa. O fato de
amar a esposa constitui para Schreber um dos pontos fortes de sua estabilização, mas é,
como dissemos, um amor que tem como particularidade a exclusão do sexual e,
portanto, um amor que abole a dissimetria entre os sexos. Apesar do delírio e dos efeitos
catastróficos que ele provocou em sua eclosão na sustentação do mundo, o laço de
Schreber com sua esposa não foi abalado.
Houve, então, uma simultaneidade entre a relação de Schreber com Deus e com
a esposa, mas como isso ocorreu? O que possibilitou e, até mesmo, sustentou a
compatibilidade entre essas duas relações? De fato, Schreber consegue, apesar da
relação de mistura entre o seu ser e Deus, relacionar-se com a esposa enquanto
semelhante:

Toda a volumosa correspondência, que troquei durante anos com minha esposa,
poderia demonstrar o terno amor a que a ela dedico e o quanto sofro com o fato
de que ela tenha ficado profundamente infeliz com minha enfermidade e com a
dissolução, de fato, do casamento, e como é grande o interesse que tenho pelo
seu destino pessoal (Schreber:1995:317).
53

Parece que a solução delirante, embora não possa ser compartilhada, possibilita a
reconciliação do sujeito com os seus semelhantes, permitindo ao sujeito viver no mundo
mais uma vez. Freud não prega a supressão do delírio, já que considera que ele é em si
uma potente tentativa de cura. Mostra, ao contrário, que a própria finalização da
estrutura lógica, que compõe o delírio, pode fazer com que ele perca poder de
investimento.

Estudando certos casos de paranóia, pude estabelecer o fato de que as idéias de


perseguição se formam precocemente, existem por longo tempo, sem qualquer
efeito perceptível, até que, em resultado de determinado acontecimento
precipitante específico, recebem quantidades de investimento suficientes para
levá-las a se tornarem dominantes. Também a cura de tais crises paranóicas
residiria, não tanto na solução e correção das idéias delirantes, quanto numa
retirada delas do investimento que lhes foi emprestado. (1927: 387)

O efeito de cura do delírio faz com que ele prescinda da libido, que era antes
dirigida à sua consecução, permitindo ao sujeito reinvestir em seus objetos. Isso ficará
mais claro no terceiro capítulo, quando abordaremos as teorizações de Lacan sobre o
gozo. A função do analista visará justamente atuar nos modos de gozo do sujeito,
permitindo, através de sua redução, que o sujeito possa investir sua libido no mundo.

1.4 O amor: um divisor de águas

Vejamos agora como o tipo de reação à perda de um objeto, o ciúme e a relação


transferencial, permitem, em Freud, uma leitura que possibilite uma certa delimitação da
relação do sujeito com a alteridade. Lembremos que, segundo Lacan (1955-56), o Outro
pode se apresentar, na psicose, em sua heterogeneidade radical e que isto abole o
sujeito. A seguir, tentaremos sinalizar o que, da obra freudiana, pode ter servido de base
a Lacan para caracterizar o amor na psicose como um amor que aniquila o psicótico
enquanto sujeito.
54

A perda do objeto

Freud constituirá em torno da perda de objeto uma diferença diagnóstica entre


neurose e psicose. A manutenção ou a supressão do sentimento de auto-estima será, em
1917, um traço diferenciador importante entre o luto e a melancolia. Retomemos a
definição freudiana da melancolia:

Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente


penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de
amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos
sentimentos de auto-estima, a ponto de encontrar expressão em auto-
recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de
punição (1917a.:276).

Como mostra Soler (1991), os fenômenos de auto-recriminação e auto-


envilecimento devem ser considerados como a vertente delirante da melancolia, já as
perdas (da capacidade de amar, da realização de atividades, de auto-estima) são
fenômenos da ordem do retorno no real e evidenciam, portanto, os efeitos da rejeição na
melancolia. Podemos retomar os escritos iniciais de Freud e ver que este já destacava a
dimensão de empobrecimento libidinal da melancolia: "inibição psíquica com
empobrecimento pulsional, e dor em conseqüência" (1895a:288). Freud ressalta que há,
na melancolia, um empobrecimento situado na esfera psíquica, comparável a um buraco
por onde desaguaria a energia pulsional, provocando uma hemorragia interna.
A perda do objeto, na melancolia, não é detectável como no luto. Ela tanto pode
apresentar-se como perda de um objeto amado, ou como uma perda de natureza "mais
ideal" (1917a:277), ou ainda, como uma perda impossível de ser localizada, ou seja, na
qual o doente "sabe quem perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém" (1917a:277). Ao
contrário do luto, onde o mundo externo se empobrece, na melancolia é o eu que se
torna vazio.

O investimento de objeto provou ter pouco poder de resistência e foi liqüidado.


Mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para o eu.
Ali, contudo, não foi empregada de maneira não especificada, mas serviu para
estabelecer uma identificação do eu com o objeto abandonado. Assim, a sombra
do objeto caiu sobre o eu, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente
especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado (1917a.:281).
55

O que significa um investimento de objeto com pouco poder de resistência?


Freud vai mostrar que, na melancolia, ocorre uma regressão da escolha de objeto à
identificação. Retomemos brevemente as formulações freudianas sobre esse ponto, de
modo a poder apreender como funciona esse tipo particular de identificação. Freud vai
mostrar que na identificação narcísica, o investimento de objeto pode ser facilmente
abandonado, ao passo que na identificação histérica, ele persiste. A identificação
narcísica não é, portanto, adequada para fixar o investimento nos objetos, fazendo com
que a escolha de objeto seja passível de regressão à primeira identificação.
A identificação narcísica carrega a ambivalência entre a ternura e o desejo de
destruição como marca da identificação primeira, comportando “um derivado da
primeira fase oral da organização libidinal, na qual incorporávamos, ao comer, o objeto
desejado e apreciado, sendo dessa maneira, aniquilado” (1921:133-4). No Eu e o Isso,
Freud nomeia a primeira identificação como identificação ao pai da pré-história pessoal.
Ele mostra que essa identificação é “direta e imediata, mais precoce do que o
investimento de objeto” (1923:47). Na neurose, o atravessamento do Édipo promoveria,
para Freud, uma fixação do sentido a partir da identificação simbólica. Essa amarração
entre as duas identificações, resultante do complexo de Édipo, não ocorreria na
melancolia, possibilitando, no momento do desencadeamento, a desunião pulsional.
Neste ponto de suas elaborações, Freud já havia proposto sua segunda dualidade
pulsional. Recolocando aquilo que, do aparelho psíquico, tende ao mais além do
princípio do prazer, Freud formula a pulsão de morte, em oposição ao grupo das pulsões
de vida, estas últimas reunindo as pulsões sexuais e as pulsões do eu. Vale lembrar que
Freud (1925) atribui às desuniões pulsionais a responsabilidade sobre determinados
fenômenos, como é o caso do negativismo de alguns psicóticos.
A delimitação diagnóstica entre neurose e psicose será explicitada no texto
“Neurose e Psicose” (1924 [1923]), a partir de uma diferença de gênese entre neurose e
psicose. A primeira seria resultante de um conflito entre o eu e o isso, ao passo que a
segunda, de um impasse entre o eu e o mundo externo. A melancolia é aqui alçada à
categoria única de neurose narcísica, diferenciada do campo das psicoses (esquizofrenia
e paranóia) e relacionada a um conflito entre o eu e o supereu. Lembremos que é a partir
das identificações que as instâncias psíquicas eu e supereu se diferenciam do isso. O
supereu é visto como instância de prolongamento da influência parental, dos primeiros
56

anos de infância, tem como função a auto-observação, a consciência moral e o ideal do


eu.
Vemos que a dimensão do parceiro não está tão enfatizada nesta modalidade de
conflito, a dialética do “ou eu ou outro” não se apresenta tão explicitada como na
paranóia persecutória. Isso não nos impede, entretanto, de inferir que a melancolia
realiza, de certa forma, a ameaça de abolição do eu presente na relação dual: nela o eu
passa a se tomar como outro. A realização do luto do objeto perdido torna-se, assim,
uma impossibilidade na melancolia.
Retomando a segunda dualidade pulsional, Freud demonstrará que na
melancolia, a destruição concentra-se no supereu, que passa a atacar o eu. A pulsão de
morte age, assim, livremente no aparelho psíquico, fazendo com que o supereu acabe
por se tornar o lugar de conjunção das pulsões de morte: “uma pura cultura da pulsão de
morte” (Freud:1923:69), podendo levar à destruição do eu. Freud adverte para o risco de
suicídio, na melancolia, pois, com a desunião pulsional, o caminho para a
autodestruição parece não sofrer nenhuma barreira, podendo ser impulsionado pelo
supereu e seu ditatorial “farás”: “o ressentimento do paciente atinge de um só golpe seu
próprio eu e seu objeto amado e odiado” (Freud:1923::498). Como veremos no terceiro
capítulo, o suicídio melancólico será retomado, por Lacan, através de suas teorizações
sobre o ato.
A identificação narcísica pode ser concebida, a partir da obra freudiana, como
um tipo de vínculo com um objeto, no qual o eu assume as características do objeto. É
preciso, contudo, assinalar que, na histeria, o campo dos investimentos e das
identificações também não pode ser totalmente diferenciado. O sujeito toma emprestado
do outro do amor, um elemento: a tosse de Dora (Freud:1905[1901]), por exemplo,
configura-se como um traço tomado de empréstimo ao pai que é, ao mesmo tempo, um
objeto amoroso.
A diferença com a melancolia residiria, para Freud, no fato de que, nesta última,
o eu incorpora o objeto. Essa incorporação provoca uma cisão no eu, fazendo com que
uma parte passe a vociferar contra a outra. Na melancolia, o sujeito toma o seu eu como
um outro. Uma questão se coloca: o amor na melancolia sempre toma o sujeito como
um outro ou, em outras palavras, o abole?
57

Maleval (2000) questiona as propriedades terapêuticas do delírio na melancolia.


Mostra que, embora em sua forma final, o delírio melancólico ganhe um caráter
megalomaníaco, não faz cessar a angústia do sujeito. A imortalidade, tema central de
alguns delírios melancólicos, faz com que o sujeito se perceba como eternamente
horrível e monstruoso, infinitizando seu sofrimento. Retomaremos a questão da
temporalidade na melancolia, no terceiro capítulo.

Sobre o Ciúme

Em Psicologia da vida amorosa, vimos que Freud (1912a) tratou do caso do


amante, que escolhe mulheres de ‘vida fácil’, ou seja, mulheres que possuem vários
parceiros amorosos. É interessante notar que o ciúme é, para estes casos, condição
importante do gozo. Para que as condições determinantes do amor sejam cumpridas, é
necessário que exista um rival, ocupando o lugar de igual, na sua relação com o sujeito
traído: “o amante (...) quase sempre exibe as feições do próprio eu do menino, ou mais
exatamente, de sua própria personalidade idealizada” (1910:155).
Em relação às mulheres, Freud vai dizer que o ciúme desempenha um papel
ainda maior. Vejamos, primeiro, os principais pontos do complexo de Édipo. No caso
do menino, Freud assinala que ele quer ser como seu pai e ter sua mãe como objeto
amoroso, fazendo com que sua identificação ao pai assuma um caráter hostil. A visão do
órgão feminino virá instalar a ameaça de castração, dissolvendo o Complexo de Édipo.
Abandona seu antigo objeto de amor e entra no período de latência.
O complexo de Édipo virá dar sentido à primeira identificação, levando o sujeito
a assumir um colorido hostil, em relação a uma das duas figuras parentais. Freud vai
acentuar o caráter assimétrico do Complexo de Édipo para os dois sexos. Em um
primeiro tempo, na pré-história do complexo, a mãe constitui para os dois sexos o
objeto de amor.
Se, no menino, o ciúme deve ser considerado como um resto do Complexo de
Édipo, nas meninas, ele se liga, segundo Freud, à inveja do pênis. Há algo, entretanto,
que permanece ininteligível no ciúme das mulheres e que se liga ao que Freud chama “o
enigma da feminilidade” (Freud: 1933 [1932]:144). Lembremos que a mãe é o primeiro
58

objeto amoroso de escolha da menina a sofrer um rebaixamento. A partir da visão do


órgão masculino, a menina se vê castrada e abandona a mãe como objeto de amor, por
também ser portadora dessa falta. O Complexo de Castração introduz, então, a menina
no Complexo de Édipo, que passa a amar o pai e a atribuir, à mãe, a responsabilidade
sobre sua falta.
A menina deve, portanto, trocar de objeto de amor. Na situação edipiana, passa
sua vinculação para o pai. No entanto, o primeiro objeto de amor, a mãe, deixa um resto
na vida amorosa da menina: “fica-nos a impressão de que não conseguimos entender as
mulheres, a menos que valorizemos essa fase de vinculação pré-edipiana à mãe. (Freud:
1933 [1932]:148). A psicose feminina também deverá ser analisada à luz da ligação
ambivalente pré-histórica à mãe, ou seja, mais além da dialética fálico-edípica:

(...) o medo de ser assassinada ou envenenada, o qual posteriormente poderá


formar o núcleo de uma doença paranóide, presente já nesse período pré-
edipiano, em relação à mãe (Freud: 1933 [1932]:148).

Retomemos rapidamente o ciúme neurótico. Nos homens, o ciúme deve ser


compreendido em relação à problemática edípica. É, muitas vezes, condição do sujeito
masculino referido não ao pai, mas ao eu idealizado no semelhante. Em relação as
mulheres, Freud vai dizer que elas são mais acometidas pelo ciúme do que os homens,
por conta da inveja do pênis. A mãe, como primeiro objeto de amor, será rebaixada por
não possuir um pênis, a menina escolherá o pai, esperando dele, pela equivalência
simbólica, um pênis-bebê. O amor dá, assim, à mulher, uma ilusão de completude e, por
isso, o ciúme será proporcional, na mulher, ao seu temor de perdê-la.
Retomemos agora o ciúme na psicose. Freud havia indicado que o ciúme é
ressentido na psicose por alguém do mesmo sexo do sujeito. Por uma inversão do signo
de sexuação, o sujeito faz um terceiro (a mulher ou o homem) assumir o amor que o
sujeito sente. ‘Não sou eu quem ama o homem – ELA O AMA.’ Freud explicou, até este
ponto de sua obra, os impasses do amor na psicose em relação à emergência de
impulsos homossexuais. No entanto, Freud corrigirá seu ponto de vista ao analisar a
escolha de objeto homossexual.
Retomando às origens do amor homossexual no Complexo de Édipo, Freud vai
mostrar que no caso do homem, o sujeito teria sido fixado na mãe. Ao invés de escolhê-
59

la como objeto, o menino se identifica com ela, passando a procurar objetos amorosos
que lhe permitam amá-los como a mãe os amou. Antigos rivais (possivelmente irmãos),
antes dignos de ciúme e ódio, tornam-se objetos amorosos. É aqui que a diferença com a
paranóia torna-se evidente, deixando a hipótese da homossexualidade, como causa das
psicoses, cair por terra:

(...) antes de tudo, ele [o homossexual] é um contraste completo com o


desenvolvimento da paranóia persecutória, na qual a pessoa anteriormente
amada se torna o perseguidor odiado, ao passo que aqui os rivais odiados se
transformam em objetos amorosos (1922:280).

O amor de transferência

Retomemos brevemente alguns aspectos fundamentais relativos ao manejo da


transferência na teoria da clínica freudiana. Por transferência, Freud entende a reedição
de impulsos e fantasias infantis na relação com o analista. Essa reedição não deve,
entretanto, ser compreendida simplesmente como o retorno de um passado, mas como
uma atualização, na sessão analítica, da forma como o sujeito se relaciona com seus
objetos. O amor de transferência é, portanto, amor. E como todo amor é, no que
concerne ao seu elemento de verdade, colocado, por Freud, no mesmo nível que os
outros tipos de amor. O que marca a diferença do amor de transferência é o destino que
lhe é dado pelo analista, ou seja, como o analista resolve, no tempo da sessão e na
presença do analisante, o que, desse amor, ali se apresenta.

Não temos o direito de contestar que o estado amoroso, que faz seu
aparecimento no decurso do tratamento analítico, tenha o caráter de um amor
genuíno. Se parece tão desprovido de normalidade, isto é suficientemente
explicado pelo fato de que estar enamorado na vida comum, fora da análise, é
também mais semelhante aos fenômenos mentais anormais que aos normais
(1915 [1914]: 218).

A transferência é, para Freud, um forte fator de resistência ao trabalho de


análise, mas também, paradoxalmente, a mola propulsora do tratamento analítico. Os
sentimentos transferidos podem tanto tomar um colorido amistoso em relação ao
médico, auxiliando na condução do tratamento, quanto serem tingidos de hostilidade e
60

de impulsos eróticos recalcados, servindo à serviço da resistência. Ao analista, cabe


uma manobra capaz de remover as resistências provocadas pela transferência negativa,
utilizando a transferência positiva em favor do trabalho de rememoração do sujeito. O
sujeito deve prosseguir, em seu trabalho de significação, produzindo um novo saber,
vindo a se haver com aquilo que, do amor transferencial, copia e repete de suas relações
anteriores de objeto. Freud diz que é necessário, para este fim, acrescentar:

(...) a dose necessária de paciência a estes argumentos, [de forma a] superar a


difícil situação e continuar o trabalho com um amor que foi moderado ou
transformado; o trabalho visa, então, a desvendar a escolha de objeto infantil da
paciente e as fantasias tecidas ao redor dela (1915 [1914]:217).

No que concerne às psicoses, Freud vai mostrar-se incrédulo quanto à


possibilidade da transferência agir em favor do tratamento analítico, embora assinale
que a análise alcançou inegáveis “êxitos com depressões cíclicas, ligeiras modificações
paranóides e esquizofrenias parciais” (1925:76). A paranóia, entretanto, parece ter um
destino menos feliz:

Onde a capacidade de transferência tornou-se essencialmente limitada a uma


transferência negativa, como é o caso dos paranóicos, deixa de haver qualquer
possibilidade de influência ou cura. (1912b:142).

Vimos, ao longo deste capítulo, que a psicose exige novas construções e


desdobramentos teóricos no que concerne ao seu tratamento. Embora Freud tenha se
mantido bastante cético em relação às possibilidades de trabalho com a psicose, sua
obra constitui fonte riquíssima de material para a sedimentação de uma clínica possível
da psicose. Como veremos nos próximos capítulos, Lacan refez os passos freudianos,
trazendo contribuições fundamentais para o tema.
Queremos, no entanto, indicar, a partir da obra freudiana, alguns pontos que
consideramos fundamentais para nosso futuro desenvolvimento, nos atendo àqueles que
dizem respeito ao trabalho clínico com a psicose, e que concernem, portanto, à
transferência:

1 – Vimos que, na psicose, o sujeito vive, muitas vezes, aquilo que lhe concerne e que
foi rejeitado como vindo desde fora. O amor de transferência pode se apresentar, nessa
61

via, como a certeza de que o analista ama o sujeito (ou o odeia). A erotomania e a
perseguição podem, assim, anunciar-se como riscos transferenciais no horizonte de uma
análise. O sujeito, quando submetido ao outro do delírio, pode tornar-se vítima de suas
paixões. Isso acontece porque na psicose o sujeito pode viver a paixão não enquanto
agente, mas enquanto vítima dela. Pode ser, portanto, amado, traído ou odiado por
aquele que aceita ser por ele colocado no lugar de parceiro do delírio.

2 – Como indicou Freud a respeito de Schreber, o saber está do lado do psicótico, é ele
quem interpreta os seus fenômenos. Devemos, portanto, procurar, na própria
sistematização dos fenômenos da psicose, linhas de força que nos permitam discernir a
dinâmica, a lógica da psicose. Em uma das operações delirantes da paranóia, a
decomposição, aparece um ponto chave de manobra na psicose. A decomposição
provoca cisões nos personagens delirantes, é aí que a manobra do analista pode se dar:
reiterando ou rejeitando as soluções inventadas pelo sujeito para dar conta de suas
transferências.

3 – Caberá, portanto, ao analista, posicionar-se de maneira a fazer o trabalho da psicose


prosseguir. Alguns lugares foram detectados, por Freud, como prejudiciais à análise
com psicóticos: o lugar do saber, do semelhante, do homem de ciências, do
hipnotizador, do mestre.

4 - O delírio, embora tenha um efeito de apaziguamento, não faz sozinho função de


cura. Acreditamos que não basta criar uma solução delirante, é preciso que esta seja
endereçada a alguém capaz de acolhê-la, fazendo-se destinatário de suas produções.

Como veremos no terceiro capítulo, a condição maior de viabilidade da


transferência no tratamento clínico da psicose depende não tanto do paciente, mas do
desejo do analista. Com isso, finalizamos o capítulo, enfatizando aquilo que
assinalamos em seu início: para a psicanálise, a perspectiva estrutural deve ser cotejada
com a dimensão transferencial, pois o que interessa não é tanto a descrição
psicopatológica, mas a investigação das soluções singulares de cada sujeito, para atar
suas relações com o mundo. Não tomar em conta a transferência corresponderia a
62

excluir aquilo que é próprio ao campo psicanalítico e que, precisamente, o distingue,


por exemplo, da psicopatologia psiquiátrica.
Faremos, no próximo capítulo, um retorno aos clássicos da psiquiatria e aos
primeiros escritos de Lacan tentando conservarmos essa direção. Como assinala Milner
(1983), é necessário que o psicanalista, ao retomar os nomes dados pela psiquiatria,
saiba que “do que se trata aí é de semblante: algo, para além, subsiste e não se esgota na
classe representada. Algo que diz (...) aquilo que cada um deles tem de insubstituível”
(119). O caso assume, portanto, uma função de extrema importância para a psicanálise.
É o que veremos a partir de alguns exemplos clínicos, trabalhados por Lacan. A partir
da singularidade do caso, extraem-se lições gerais que orientam uma prática, sem,
entretanto, dela excluir a surpresa, o inusitado, o real que a clínica promove. Isso, sem
dúvida, trará conseqüências importantes para o manejo clínico da psicose.
63

2. SOBRE O PASSIONAL NAS PSICOSES: LACAN E A PSIQUIATRIA.

Os primeiros escritos de Lacan, ainda como psiquiatra, determinam sua entrada


no campo psicanalítico. Pelo viés do estudo da psicose, aprofundou-se na investigação
das relações entre paranóia e estrutura. Valeu-se, em sua abordagem inicial da psicose,
de duas importantes noções tomadas da obra de Clérambault: o automatismo mental e a
erotomania.
A tese de doutorado de Lacan marca, pela utilização do método de análise de
caso, uma primeira aproximação com o campo psicanalítico. Credita ao estudo da
psicose seu interesse pela obra de Freud: “pois a fidelidade ao invólucro formal do
sintoma, que é o verdadeiro traço clínico pelo qual tomávamos gosto, levou-nos ao
limite em que ele se reverte em efeitos de criação” (Lacan:1966a:70).
Em um primeiro momento, faremos uma breve revisão histórica das conexões
entre amor e loucura para a psiquiatria. Utilizaremos autores da psiquiatria clássica que
contribuíram, com a limpidez de seus relatos clínicos, para a elucidação de questões
relativas ao tema do amor e do ódio nas psicoses. Lacan dialogou extensamente com
alguns desses autores ao longo de sua tese de doutorado. Tentaremos, portanto, sinalizar
as continuidades e rupturas de Lacan com a psiquiatria no que diz respeito à abordagem
do amor na loucura. Objetivamos assim depreender as conseqüências de determinadas
concepções sobre o passional na abordagem clínica da psicose e de seus fenômenos.
Dividimos metodologicamente o capítulo a partir da análise de três quadros
clínicos que possuem relação estreita com a questão do passional nas psicoses: a
erotomania, o delírio de ciúme e a folie à deux. Recorreremos, no que diz respeito aos
autores do campo psiquiátrico, respectivamente: ao debate entre Dide e Clérambault, às
teorizações de Daniel Lagache e à descrição clínica de Lasègue e Falret, cotejando com
os trabalhados iniciais de Lacan das décadas de trinta e de quarenta. Vale dizer que os
escritos iniciais de Lacan sobre a psicose têm como eixo principal as elaborações acerca
do estágio do espelho e do registro imaginário. Uma seção consagrada ao estudo do
64

papel do crime na economia das psicoses se fará necessária a partir da retomada dos
casos analisados por Lacan (Aimée e irmãs Papin), onde se constatará a prevalência de
atos impulsivos na psicose. Faremos, para isso, referência ao trabalho de Paul Guiraud
sobre os crimes imotivados na psicose.

2.1 Loucura e amor: da psiquiatria à psicanálise

A ligação entre amor e loucura foi apontada desde a psiquiatria clássica. No


início do século XIX, Pinel e Esquirol, conforme descreve Garrabé (1989), assinalaram
o papel da paixão na gênese da alienação mental. Pinel considerava que, dentre as
causas morais da loucura (responsáveis por mais da metade de seus casos), estavam “as
paixões intensas e muito contrariadas ou prolongadas” (Bercherie:1989:39). Esquirol,
por sua vez, descreveu, segundo Bercherie, as monomanias como uma classe de
afecções mentais comparáveis “a uma paixão patológica que reagiria sobre a
inteligência, fixando a atenção” (1989:50).
Com Karepelin e sua conceituação da paranóia, inicia-se um debate acerca do
lugar nosográfico a ser ocupado pelas patologias do amor. Alguns autores, como
veremos, tendem a aproximar as psicoses passionais da paranóia, outros as afastam e
proclamam sua independência, tentando criar uma categoria nova que as abarque.
Tomemos o exemplo do ciúme patológico. Kraepelin o considerava como um
sintoma específico da psicose alcoólica. Chaslin, interessando-se pela semiologia das
idéias de ciúme, acaba por aproximá-lo das idéias de perseguição da paranóia. No que
concerne à folie à deux, Lasègue e Falret estabelecem como condição diagnóstica que
ao menos um seja paranóico. Sérieux e Capgras, em 1906, influenciados por Kraepelin,
agruparam os delírios de reivindicação e os delírios de interpretação. Erotomania, ciúme
e idealismo apaixonado aparecem aqui como sintomas do delírio reivindicativo. Há,
para estes dois autores, unidade nosológica entre interpretação e reivindicação, embora
afirmem que, em termos clínicos, não seja possível sobrepô-las.
Dide (1913), ao contrário, tentou excluir os idealistas apaixonados da categoria
da paranóia, conferindo autonomia aos estados passionais. Pôs ênfase, assim, na
diferença entre delírios de interpretação e estados passionais. Tentou, além disso,
65

separar delírio de reivindicação e idealismo apaixonado. Embora possuam a inclinação


fixa como um elemento em comum, Dide destaca o terreno altruísta no qual os últimos
se desenvolvem. Lagache (1947) assinala que Dide tentou fazer um paralelo entre
estados passionais e psicoses periódicas, comparando o ardor passional com o estado
maníaco e a fase pessimista da paixão com o estado depressivo.
Clérambault, em 1921, recusa a filiação das patologias do amor à paranóia.
Amor e loucura se entrelaçam formando um novo grupo clínico, as psicoses passionais.
Reúne assim os delírios de ciúme, de reivindicação e a erotomania, e os opõe à
paranóia. Lagache (1982) aponta que há uma analogia bastante marcada entre a
concepção de fenômeno passional em Clérambault e a reação sensitiva em Kretschmer
(reações próprias a eventos de forte carga afetiva).
No que tange à psicanálise, Freud, seguindo o debate da época, ressaltou que
“todo estado amoroso, mesmo fora da situação analítica, se parece com os fenômenos
psíquicos anormais” apontando para a relação existente entre loucura e amor. (Freud:
1915) Como vimos no primeiro capítulo, constrói, a partir do caso Schreber, uma
gramática amorosa para explicar a formação do delírio na paranóia. Com a negação da
sentença 'eu o amo', ergue uma lógica da paranóia, dela derivando três tipos de delírio:
perseguição, ciúmes e erotomania.
Lacan, em sua tese de doutorado em psiquiatria, também aproxima as psicoses
passionais da paranóia. A partir de um caso de psicose, analisa o papel da autopunição
na paranóia. A paciente em questão é renomeada por Lacan de Aimée, ressaltando a
direção erotomaníaca de seu delírio. Em seu seminário sobre as psicoses, dá ênfase à
paranóia, mas distingue a forma persecutória, da forma passional, assinalando que a
inércia dialética se apresenta, em cada uma, de modos totalmente distintos. Lacan dirige
com isso uma crítica ao campo psiquiátrico, mostrando que ao tentar objetivar os
fenômenos da psicose, esquece-se daquilo que é central na posição de todo indivíduo:
“precisamente por ter sempre radicalmente desconhecido, na fenomenologia da
experiência patológica, a dimensão dialética, é que a clínica se perdeu”. (1955-56:32).
66

2.2 Erotomania

O debate Dide/Clérambault

O termo erotomania é utilizado pela primeira vez, como mostra Broca


(1985:122), em 1810 por um criminalista chamado Zieller. Revela-se, portanto, já na
origem histórica de seu aparecimento, a proximidade entre psicose passional e passagem
ao ato. Retomada pela psiquiatria, destacam-se, dentre os autores que a abordam, Dide e
Clérambault. Vejamos o debate empreendido por estes dois autores.
Dide opõe, em 1913, a interpretação apaixonada e a interpretação delirante. Ao
passo que a primeira tem sua gênese em uma perturbação do afeto, a segunda encontra
sua explicação na esfera intelectual. Os idealistas apaixonados distinguem-se, portanto,
dos paranóicos. A característica principal da interpretação apaixonada é sua inclinação
fixa, causada pela intensidade do idealismo do paciente.

A sistematização afetiva deixa subsistir intacta a noção do mundo externo,


assim como a integridade da personalidade, mas ela constituirá uma canalização
da atividade em um sentido muito determinado; notaremos nesses psicopatas
uma redução de toda a vida intelectual a um ideal pré-formado, a vida interior
transbordará de todos os lados e a hipertrofia do impulso afetivo em torno da
sucessão dos fenômenos objetivos será inalterável. (1993:32)

A paixão gera, segundo Dide, um distúrbio no equilíbrio psicológico,


enfraquecendo o julgamento e a autocrítica. Rompendo o equilíbrio, a vida afetiva
ganha exclusividade e sistematização, até adquirir fixidez. Dide distingue, com isso, os
idealistas apaixonados dos interpretadores. Nestes últimos, pode haver inicialmente uma
instabilidade afetiva consciente para o sujeito e uma constante criação de interpretações.
A interpretação terá uma riqueza delirante muito grande, o centro de cristalização será
tardio, a idéia diretriz secundária. Quando a personalidade tiver sido transformada, o
interpretador sistematizará seu esforço intelectual em concepções megalomaníacas. O
tema delirante é absurdo, o ponto de partida é falso.
No caso dos apaixonados a revelação é súbita e o alcance, de convicção
imediata. O ponto de partida é único, há uma inclinação fixa. Não chegam nunca à
megalomania, mas a exageração do caráter traz confiança e poder de convicção. Os
67

idealistas funcionam dentro do domínio do plausível, mas seus defeitos morais


favorecem fantasias sórdidas. A febre de ação constitui um elemento de desagregação.
Clérambault irá, em 1923, ao encontro da tese de Dide no que tange à noção de
paixão. Opor-se-á, entretanto, à tese idealista e excluirá o platonismo como traço
diferencial do diagnóstico. Para este autor a presença do platonismo não é definitiva, já
que o próprio paciente pode dissimular intenções de conotação sexual: “é um dado
acessório, inconstante, incerto, instável, não pode, portanto, ser um termo de
discriminação”. (1993:59-60)
Clérambault cria uma entidade nosológica nova, as psicoses passionais, reunindo
o delírio de reivindicação, a erotomania e o delírio de ciúme. O traço diferenciador do
passional é que ele tem desde o início um objetivo preciso, esforçando-se para cumprir
sua vontade. Produz-se um nó ideo-afetivo inicial, a concepção de si mesmo não se
modifica com o delírio.

(...) o delirante passional avança em direção a um objetivo, com uma exigência


consciente, completa desde o início, ele só delira no domínio de seu desejo: suas
cogitações são polarizadas, da mesma forma que o é a sua vontade e em razão
de sua vontade” (1993:73).

A erotomania é definida como uma síndrome de idéias com reações típicas


(perseguições, viagens) e evolução regrada (otimismo, perseguição, esboço de
querelas). A paixão erotomaníaca consiste em um postulado ao qual se acrescentam, por
via dedutiva, proposições derivadas que podem ser evidentes ou demonstradas. O
orgulho sexual é a fonte do postulado fundamental, o amor é apenas acessório.

Postulado fundamental: é o Objeto quem começou e que ama


mais ou que ama sozinho.

Temas derivados e vistos como evidentes:


O Objeto não pode ser feliz sem o aspirante.
O Objeto não pode ter um valor completo sem o aspirante.
O Objeto é livre. Seu casamento não é válido.

Temas derivados e que se demonstram:


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Vigilância contínua do Objeto.


Proteção contínua do Objeto.
Trabalhos de aproximação por parte do Objeto.
Conversas indiretas com o Objeto.
Recursos fenomenais dos quais dispõe o Objeto.
Simpatia quase universal que suscita o romance em curso.
Conduta paradoxal e contraditória do Objeto. (1993:67)

O postulado fundamental consiste, portanto, na convicção de ser amado por um


personagem mais nobre, cujo amor e investidas têm anterioridade cronológica à paixão
do sujeito. A atitude paradoxal do objeto é interpretada pelo erotomaníaco em termos de
ódio, mas nunca de indiferença. Aparece também a convicção de que, apesar do ódio, o
amor do objeto ainda persiste. Clérambault assinala ainda como traços marcantes desta
síndrome:

(...) a idéia da atenção geral dirigida à delirante e uma colaboração universal


assegurada a seu parceiro; a interpretação incessante dos fatos atuais e dos fatos
antigos; interpretação onde, segundo a regra, a imaginação toma mais lugar do
que o raciocínio (1993:57).

O delírio erotomaníaco se desenvolve em três fases: esperança, despeito e


rancor. Os componentes do sentimento gerador do postulado são: orgulho, desejo e
esperança. O método sistemático de investigação diagnóstica de Clerambault consiste
em ‘acionar’ a síndrome através do elemento esperança.
O paranóico se distingue, segundo Clérambault, do passional, na medida em que
delira com o seu caráter. Há uma anterioridade da desconfiança sobre o delírio, o
começo não pode ser nitidamente demarcado e há mudança na concepção de eu. Além
disso, as interpretações têm um caráter circular e infinito e terminam por colocar a
personalidade do sujeito ou totalmente a mercê do mundo ou inteiramente exaltada.
Embora as psicoses passionais não tendam a uma megalomania tão intensa
quanto à paranóia persecutória, Clérambault afirma haver um traço inegavelmente
hipomaníaco na erotomania e na reivindicação, trata-se de “excitados excitáveis” (Ibid:
76). Se a interpretação for verdadeiramente invasora, Clérambault classifica o quadro de
caso misto.
69

Para o autor, o que distingue a paixão patológica da paixão normal? A paixão é


segundo ele uma emoção intensa que tende a passar às ações. No caso do delírio
passional, o traço fundamental é o esforço: “a vontade entra em jogo desde o primeiro
momento, todas as características ulteriores do delírio terão relação com esse traço
inicial” (1993:206). Não é, portanto, a veracidade do fato em si que distingue a paixão
normal da patológica:

(...) a idéia de que ‘deve ter acontecido algo’ é na maioria das vezes
injustificada; tivesse ela fundamento, o delírio advindo de realidades não seria
por isso menos delírio, assim como algumas Reivindicações, na origem das
quais ocorreu verdadeiramente um direito lesado, são delirantes. (1993:116-
117).

A paixão patológica tem, então, como elemento diferencial o esforço como um


traço inicial e constante. Todas as características ulteriores do delírio terão relação com
esse traço inicial. As psicoses passionais se asseveram, assim, aquelas categorias
clinicas onde o delírio se aproxima mais da normalidade, o que o leva a considerar que
são, por isso, de mais difícil diagnóstico.
Consideramos que é de suma importância a revisão crítica dessa categoria
diagnóstica para a clínica atual da psicose em instituição. Parece-nos que, justamente
por ser um tipo de delírio que se aproxima mais da pretensa normalidade (quem nunca
cometeu uma loucura de amor, afinal?), costuma passar com freqüência desapercebido
nas instituições de saúde mental. Reivindicadores, ciumentos e erotômanos são
facilmente classificados como histéricos ou borderlines. Para esclarecer essa pretensa
confusão faz-se imprescindível o recurso aos clássicos. A ênfase que a psiquiatria atual
dá ao delírio persecutório em detrimento dos delírios passionais, contribui para alguns
mal-entendidos no campo da saúde mental: como, por exemplo, achar que se um
psicótico faz cena, então ele não pode ser psicótico e sim histérico. Se ele demanda
incessantemente cuidados da equipe, reclama por não ter sido bem atendido, cria
confusão com pacientes, não é psicótico, é borderline.
O ponto que turva o diagnóstico de uma psicose passional é, ao nosso ver, aquilo
que Clérambault chamou de tendência a passar às ações e que é geralmente
compreendido como uma tendência a fazer cena. Lacan, como veremos no terceiro
capítulo, esclarecerá essa aparente confusão a partir da análise das relações entre
70

passagem ao ato e acting-out. Se, neste último, o sujeito se põe em cena, se exibe, se
mostra ao espetáculo, no primeiro, o sujeito se joga para fora da cena, ou seja, se deixa
cair como um objeto-dejeto.
Nas instituições de saúde mental, não é incomum que se assumam condutas
disciplinares a partir da pressuposição errônea de que temáticas passionais são
exclusivas ou até mesmo determinantes de um funcionamento neurótico. Chama-se,
assim, o sujeito a subordinar-se à lei, muitas vezes encarnando-a e exigindo do sujeito
que deixe de encenar o seu sofrimento. A psicanálise mostra que chamar um sujeito
psicótico à razão pode, paradoxalmente, agravar um acting-out ou até mesmo forçar
uma passagem ao ato.
Vejamos dois exemplos relativamente recentes a esse respeito. Uma paciente do
CAPS, após uma intervenção mais contundente de sua então técnica de referência,
mergulhou de cabeça de sua cadeira de rodas dentro de uma piscina vazia, ferindo-se
bastante. Pudemos, na instituição, inferir que o dito da técnica ganhou para a paciente
valor de interpretação, abrindo uma ambigüidade de sentido que foi impossível de
suportar para este sujeito.
Outro paciente faleceu ao se atirar do alto de um viaduto. Havia meses que ele
vinha aparentemente bem: suas automutilações haviam cessado, parecia mais
organizado em sua fala, aceitando melhor o contato com outras pessoas. Cabe dizer que,
durante anos, este paciente bateu a cabeça nas paredes do CAPS, marcando com sangue
o espaço institucional e deixando uma ferida eternamente aberta em sua testa. Após
meses de internação psiquiátrica, durante a qual não deixou de freqüentar o nosso
serviço, sua ferida cicatrizou e seu cabelo cresceu. O paciente estava tão bem que lhe foi
concedida uma licença para visitar sua família. Na volta, pôs fim à sua vida. A saída
trágica deste paciente nos obrigou a falar e a repensar nossas condutas. A melhora de
seu quadro produtivo talvez nos tenha impedido de enxergar que, para ele, gerir a sua
vida, tal como o quisemos começar a restituir com essa visita, o livrava a uma angústia
perigosa e intensa. Tinha-nos passado desapercebida a possibilidade de este paciente
poder adoecer com a sua melhora e, infelizmente, nos demos conta tarde demais.
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O caso Aimée

Abriremos esta parte com o depoimento de Lacan, um pouco mais de dez anos
após ter escrito sua tese:

Relendo nesta ocasião a observação em que me apoiei, parece-me que posso dar
o testemunho de que, como quer que se possam julgar os frutos dela, preservei
por meu objeto o respeito que ele merecia, como pessoa humana, como doente e
como caso. (1946:179)

Lacan encontra Aimée aos 38 anos, na ocasião de sua segunda crise psicótica.
Vejamos alguns dados fundamentais de sua história. Teve três irmãos e três irmãs. Sua
mãe sofre de delírios persecutórios. A paciente tem uma ligação muito intensa com ela,
“éramos como duas amigas” (...) “deveria ter ficado ao lado dela” (1932:220). Quando
estava grávida de Aimée, a mãe viu a filha mais velha morrer queimada. Após o
incidente, se recolhe e imputa a responsabilidade do ocorrido a seus vizinhos.
Os primeiros sinais da psicose de Aimée remontam, segundo Lacan, à idade de
17 anos. Ao menos dois fatos se destacam nessa ocasião: um fracasso escolar e a morte
da sua melhor amiga. Três sintomas chamam a atenção de Lacan: uma abulia
profissional, uma ambição não adaptada à sua realidade e a necessidade de direção
moral, revelando características da ambigüidade de sua personalidade.
Aimée vai trabalhar na administração de uma companhia ferroviária, em uma
província afastada de seu domicílio de origem, onde reside sua irmã mais velha. É
nesse trimestre passado na casa de sua irmã que a paciente conhece o seu primeiro
amor. Após um breve romance, permanece durante três anos apaixonada. Não confia
nem mesmo à sua segunda grande amiga – segundo Lacan, alguém advinda do mesmo
meio cultural que a paciente - o objeto único de seus pensamentos. Quando muda de
cidade, passa a odiá-lo: “eu passo rapidamente do amor ao ódio” (1932:225).
Muda de domicílio, onde passa a residir até a sua primeira internação. Lá
empreende uma ligação íntima com uma colega de trabalho, uma nobre decadente,
figura muito diferente dela e de seu entorno: “Era a única, nos diz ela, que saia um
pouco da mesmice, no meio de todas essas mulheres feitas em série” (1932:227) . É essa
amiga quem fala a Aimée sobre Mmme Z., atriz famosa que a paciente agredirá, e sobre
Sarah Bernardt, ambas alçadas ao papel de perseguidoras essenciais. Lacan assinala que
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as duas amigas se opõem “como ao objeto, uma imagem invertida no espelho”


(1932:226) e que “uma era a sombra da outra” (1932:227).
Aimée decide casar-se, apesar de sua inapetência sexual “se eu não o pegar,
outra o pegará” (1932:228). As brigas são freqüentes entre ela e seu marido, costumam
trocar acusações derivadas das confissões que fizeram de aventuras passadas. Oito
meses mais tarde, sua irmã mais velha vai morar com eles: “minha irmã era muito
autoritária. Ela nunca ficava do meu lado. Sempre esteve do lado do meu marido.
Sempre contra mim” (1932:228).
Após cinco anos de casamento, Aimée dá a luz, aos 28 anos, a um bebê
natimorto. Na gravidez sentia-se triste, achava que as pessoas criticavam sua conduta,
anunciavam desgraças, fofocavam a seu respeito, a caluniavam. Havia alusões a seu
respeito nos jornais. “Querem a morte de meu filho. Se essa criança não viver, eles
serão os responsáveis” (1932:159). Alguns episódios heteroagressivos com a vizinhança
acontecem nessa ocasião.
Acusações constantes são proferidas por Aimée a seus inimigos, mas ela termina
por concentrar a responsabilidade do ocorrido em um personagem feminino, sua antes
querida amiga Mlle. C de la N., que lhe telefona pedindo notícias. Lacan indica que essa
amiga vem substituir, no delírio, a sua irmã mais velha: “era ao mesmo tempo a amiga
mais querida e a dominadora da qual se tem inveja” (1932: 233).
Uma nova gravidez transcorre, nasce um menino. Durante o aleitamento da
criança vai tornando-se hostil, querelante, achando que querem fazer mal a seu filho.
Seu marido descobre que ela pediu demissão e pretende ir aos EUA tornar-se escritora,
mesmo que tenha que abandonar seu filho. Aimée começa a ter atitudes estranhas em
relação à criança. Sua irmã passa, então, a cuidar do filho. “Roubaram meu filho”
(1932:235), diz ela, chegando ao auge do conflito que desemboca em sua primeira
internação. Acusa as pessoas de proferirem injúrias contra ela, de acusarem-na de levar
uma vida de depravações, queria fugir para os EUA.
Ao sair, após seis meses de internação, retoma os cuidados com o filho, mas em
seguida decide mudar-se para Paris. As visitas regulares ao filho vão se espaçando,
Aimée começa a se isolar cada vez mais. Ao menos dois episódios com a polícia.
Assediava um jornalista comunista para que este publicasse artigos onde expunha suas
idéias delirantes acerca de uma escritora famosa, Mme C. Em outro momento, ataca
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uma funcionária de uma editora que lhe transmite a recusa de publicação de seu livro.
Aimée se livra do processo que lhe é imputado. Lacan assinala que talvez uma
internação tivesse tido efeitos mais benéficos. As ameaças contra seu filho ganham
potência em seu delírio: “eu tinha muito medo pela vida do meu filho, escreve a doente,
se não lhe acontecesse desgraça agora, seria mais tarde, e por minha causa, eu sou uma
mãe criminosa” (1932:163). Um dia lê no jornal que iriam matar seu filho “porque a
mãe era maldizente, má e se vingariam dela” (1932:163).
Lacan aponta que a perseguidora principal de seu delírio é “o tipo de mulher
famosa, adulada pelo público, de posses, vivendo no luxo” (1932:164). Acrescenta que
o vínculo com o perseguidor principal, o escritor P.B., podia haver sido inicialmente
erotomaníaco, estando, no momento do exame, na fase de despeito. Achava que os
livros de P.B. falavam dela. Assim como este último, a paciente escrevia romances e
desejava ser uma escritora famosa. Artistas, escritores, poetas, jornalistas são odiados
pela paciente, formam uma rede que quer destruir a humanidade.
Apela ao Príncipe de Gales e este se torna objeto de sua erotomania. Coleciona
recortes de jornais sobre seus deslocamentos, recobre suas paredes com fotos do
príncipe, lhe envia seus poemas e cartas. Neste ponto, Lacan, embora considere
Clérambault seu único mestre em psiquiatria, toma o partido de Dide: “Encontramo-nos
em presença do tipo mesmo de erotomania, segundo a descrição dos clássicos, retomada
por Dide. O traço maior do platonismo se mostra com toda a clareza desejável”
(1932:169). Leguil (1993) aponta que a falta de realização sexual e a satisfação
ocasionada pela manutenção de um platonismo radical ilustram “uma das formas da
psicose de dar conta dos embaraços do sexo” (21-22). Queremos ressaltar que a escolha
por uma figura distante, afastada, sem qualquer contato com a paciente, denota uma
tentativa de fazer desvincular o amor do ódio. Idealizando o Príncipe de Gales, ela
procura encontrar uma função pacificadora do amor. Como vimos, seus relacionamentos
passam rapidamente do amor ao ódio, demonstrando que para ela, o amor abole
qualquer possibilidade de diferença: o outro é, para ela, o mesmo ou o seu contrário.
Aimée ataca Mme. Z, atriz famosa, com uma faca. Diante do delegado de
polícia a paciente declara que há anos a atriz a ameaça, faz escândalos. Está associada
em suas perseguições a P.B. Justifica seu ato dizendo: “fiz isso porque queriam matar
meu filho” (Lacan:1932:157), este parece ser o único objeto de suas preocupações. A
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paciente não obtém nenhum alivio após o ato, continua a criticar sua inimiga. Após
vinte dias, o delírio cai, começa a chorar e a dizer que a atriz não lhe fez mal algum, que
ela não devia ter feito o que fez.
Lacan assinala que as perseguidoras são apenas cópias sucessivas de um
protótipo inicial, cujo valor é duplo: afetivo e representativo. Por valor afetivo, Lacan
entende a relação de Aimée com sua irmã mais velha e por valor representativo, a
imagem da mulher que goza de liberdade e de poderes sociais. Seus duplos realizam a
mulher idealizada pela paciente. Ela ataca, portanto, no outro aquilo que ela gostaria de
ser:

Esse tipo de mulher é exatamente o que ela mesma sonhava em tornar-se. A


mesma imagem que representa seu ideal é também objeto de ódio. Aimée
golpeia então em sua vítima seu ideal exteriorizado, como a passional golpeia o
objeto único de seu ódio e de seu amor. Mas o objeto que atinge Aimée tem
apenas o valor de puro símbolo, e ela não obtém de seu gesto nenhum alivio.
Entretanto, pelo mesmo golpe que a torna culpada diante da lei, Aimée golpeou
a si mesma, e, quando ela o compreende, sente então a satisfação do desejo
cumprido: o delírio, tornado inútil, se esvai (1932:253).

Lacan marca o caráter ambíguo das explicações dadas por Aimée sobre porque
acreditava que ameaçavam seu filho: “para me castigar”. “Mas porquê?”. Aqui ela
hesita. “Porque eu não cumpria minha missão...”. Porque meus inimigos se sentiam
ameaçados pela minha missão...”(1932:252).
Aimée construirá seu delírio em torno da idéia de ser separada de seu filho.
Parece-nos que o delírio surge inicialmente como uma espécie de proteção contra o ato
de matar o filho, ou seja, como uma reação de fuga diante de um possível ato agressivo
contra o bebê. O deliro persecutório teria como função protelar um possível ataque de
Aimée ao seu filho (lembremos aqui a fórmula freudiana do delírio persecutório: não
sou eu... é ele que...). Já no segundo surto, ela tenta se isolar em Paris.
Sua paranóia de autopunição revela duas tentativas de suprir o ato agressivo:
uma pelo delírio e uma pelo afastamento. Infelizmente, essas tentativas se mostram
pouco eficientes, sendo necessário um ato, o ataque a Mme Z, e sua conseqüência, o
encarceramento, para frear sua sede de punição. Mas, em torno de quê gira seu temor de
punição? Como dissemos, encontra-se, na história de sua mãe, um episódio que parece
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ter tido correspondência com o delírio da paciente: quando a mãe de Aimée estava
grávida dela, perdeu um de seus filhos de morte acidental.

(...) mostramos o quanto essa ligação exclusiva a sua mãe tinha marcado a
infância da doente. Essa mãe, nós sabemos, lhe retornou sua afeição (...) ela
está por outro lado há vários anos em posse de delírio, este eclodiu plenamente
quando dos eventos recentes sobrevindos à filha. (Lacan: 1932:282)

É em torno da idéia de ser mãe que Aimée construirá seu delírio. Todo seu
esforço parece girar em torno de sua maternidade. A paciente tentou por diversas vezes
cuidar de seu filho e é justamente sua dedicação extrema que constitui paradoxalmente
o seu ponto insuportável. Como desenvolve Izcovich, a paciente “vai girar todo o seu
desenvolvimento delirante em torno da idéia de se separar de seu filho, ao ponto em que
acaba por encontrar uma pacificação quando ela realiza uma separação, na ocasião de
sua passagem ao ato” (1994:333).
Essa coincidência histórica marca uma similaridade entre o delírio da mãe e o da
filha. Encontramos aqui a primeira referência de Lacan ao compartilhamento de um
delírio entre pessoas da mesma família. Este tema será melhor abordado quando
analisarmos as construções de Lacan sobre o crime das irmãs Papin. Queremos,
contudo, salientar que Lacan enfatiza em sua tese o caráter social do delírio a dois,
recusando a hipótese genética de contágio mental. Retomando um caso de
hereditariedade psicótica seguida por quatro gerações, de Legrand du saule, Lacan
afirma que não é de se espantar que a filha predileta de um paranóico hipocondríaco
tenha se tornado psicótica aos 50 anos: seu pai aterrorizava seus filhos com ameaças de
morte e, em particular, a obrigava a redigir suas memórias mas, “irritando-se com suas
próprias dificuldades de estilo” (1932:285, nota 41), impunha-lhe uma série de castigos
e torturas.
Lacan defende que a freqüência de delírios a dois envolvendo mãe e filha, ou pai
e filho, deve ser considerada pelo viés do “isolamento social a dois e da lei do reforço
da anomalia psíquica no descendente” (Lacan:1932:284). No final de sua tese, define a
personalidade em três pólos: individual, estrutural e social. No que tange ao social,
demonstra que ele se baseia nas leis de participação (Lacan:1932:313). Podemos, com
isso, inferir que o delírio não deixa de ser, para Lacan, um certo modo de participação
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social. Como dissemos, o delírio passional tem ainda a vantagem de ser mais
socialmente aceito do que o delírio persecutório, no sentido de poder ser mais
facilmente confundido e integrado no discurso do senso comum da paixão (seja de
ciúme, de reivindicação ou de amor).

2.3 Ciúme

Sobre o delírio de ciúme na psiquiatria

Para analisar as características principais do ciúme delirante para a psiquiatria,


recorremos às teorizações de Daniel Lagache (1947). Este autor aponta para o fato de
que o ciúme passional foi durante muito tempo assimilado à monomania afetiva de
Esquirol. Marcel e Karft-Ebing desenvolveram as relações entre ciúme e alcoolismo.
Por volta de 1900, o ciúme mórbido dá origem a múltiplas teses, inclusive a de Jaspers
que procura discernir o ciúme enquanto processo psíquico, do ciúme enquanto
desenvolvimento da personalidade. Como desenvolvimento dessas questões escapa ao
escopo desta tese, remeto os leitores ao livro de Lagache (1947). Vejamos a definição
de ciúme patológico:

Sem dúvida o ciúme permanece motivado e o estado ciumento penetrável


intelectualmente, em seu pensamento e em sua textura. Mas não é mais uma
reação adaptada, o conflito não tende a se resolver, ou ao menos só se resolve
muito lentamente: o ciumento permanece no conflito ambivalente. Nesse
sentido, o ciúme toma um valor funcional negativo: tudo acontece como se o
ciumento só buscasse o sofrimento sofrido ou infligido, ele se abandona ao
ciúme, sua conduta não se acomoda mais à situação e aos outros, a concentração
sobre o conflito e a diminuição espaço-temporal restringem seu contato com o
mundo. (...) O delírio propriamente dito começa quando o ciúme não é mais
uma reação a uma situação específica, quando o laço entre situação e reação não
é mais relacional e objetivo. (1947:362)

O ciúme patológico é sempre vivido como pessoal, os pacientes aderem


fortemente ao delírio, este se torna a “chave de seu destino”. Essa adesão do sujeito ao
delírio, faz com que Lagache teça um interessante paralelo com a erotomania. Assinala
que, em casos extremos, ciúme e erotomania encontram-se em uma relação de exclusão,
ao passo que, em casos intermediários, podem existir em uma proporção inversa.
77

No que concerne à erotomania, a convicção delirante de ser amado não deixa


lugar para a ocorrência do ciúme. Como vimos, a idéia de ser amado persiste, muitas
vezes, apesar do objeto ser comprometido ou de não corresponder às expectativas do
amado. O erotômano pode, ao contrário, ter a convicção de que o objeto sente ciúmes
dele, caso em que o ciúme funcionaria como proteção contra as investidas amorosas de
terceiros.
Embora a erotomania aparente ter uma estrutura bipolar, o objeto nunca
intervém nas situações objetivas, ou seja, a participação do objeto não é necessária na
erotomania. O orgulho, elemento essencial, possibilita, segundo Clérambault, a
continuidade do amor e a persistência da esperança. Em muitos pacientes verifica-se
uma ausência de conflito, na medida em que a simples certeza de ser amado torna-se
suficiente. Corresponde a uma satisfação fora da realidade, ‘desrealizada’.
O ciúme neurótico responde, como vimos no primeiro capítulo, a uma situação
triangular. Tem um caráter de conflito, corresponde a uma realidade dolorosa. Na
psicose, o que se estabelece é um contato direto entre sujeito e objeto, o traidor não
precisa necessariamente ser encarnado em um personagem. Persiste, no ciúme delirante,
a esperança de ser amado “que por momentos se transforma em certeza. Inclusive,
muitas vezes, aparece a idéia de que o ser amado foi o primeiro a amar, como
justificativa de um direito e como justificativa da vivência de estar sendo vítima de uma
injustiça” (Lagache:1947:169).
Não se pode falar, nos quadros psicóticos, de um “ciúme puro”
(Lagache:1947:217): o delírio de ciúme se mescla com temas de perseguição,
influência, proteção, grandeza e erotomania. Além disso, não é necessário que o delírio
se baseie em uma experiência real, ao contrário, as vivências de ciúme podem se
apresentar para o paciente sob a forma de vozes, visões, sentimentos de dominação
moral. Lagache traz uma contribuição clínica interessante ao sistematizar uma evolução
do ciúme em erotomania e incluí-la dentro da passagem clássica da perseguição ao
delírio de grandeza.

Mais o doente evolui, mais o ciúme se apaga. (...) em nossas observações


costumamos ver um ciúme interpretativo inaugurar uma psicose e se perder ao
mesmo tempo em que a psicose se transforma do ponto de vista estrutural,
temático e da experiência; nossas pesquisas sobre a passagem do ciúme à
erotomania são particularmente edificantes: a psicose evolui do conflito com a
78

realidade (idéias de perseguição e de ciúme) em direção da satisfação


desrealizada (idéias de grandeza, messianismo, proteção, filiação). (1947:348)

Por último, gostaríamos de salientar que o ciúme patológico é um ótimo


exemplo clínico de como o delírio não se define pela sua relação - ou falta de relação –
com a realidade. Como já mostrou Freud (1920), há perda da realidade na neurose e na
psicose. O que importa, portanto, são as modalidades de construção de substitutos dessa
realidade, para sempre perdida. É preciso fazer aqui justiça à psiquiatria e mostrar que
Jaspers indicou, nessa mesma linha, que “um delírio não deixa de ser delírio, mesmo se
a esposa do doente lhe é infiel” (2000:130) e Kurt Schneider que “nos ciúmes
psicóticos, trata-se de um delírio de referência que se reveste do aspecto de ciúmes e
não de sentimento de ciúmes propriamente dito” (1968:234-235). Este último o
aproxima, portanto, do grupo das psicoses paranóicas. Essa será também, como veremos
a seguir, a leitura de Lacan.

O ciúme e a paranóia

Em um escrito de 1938, Lacan formaliza a origem do ciúme no complexo de


intrusão. Este complexo corresponde ao estádio do espelho e é, portanto sucessor ao
complexo do desmame e anterior ao complexo de Édipo. Esse complexo é derivado do
momento em que a criança se vê entre irmãos e representa não uma rivalidade vital, mas
uma identificação mental: “o ciúme humano se distingue da rivalidade imediata, pois
mais constitui o seu objeto do que é determinado por ele; revela-se o arquétipo dos
sentimentos sociais” (Lacan:1938:50) . Lacan mostra que “o eu constitui-se ao mesmo
tempo que o outro no drama do ciúme” (1938:49).
Retomemos brevemente as teorizações sobre o estádio do espelho. Lacan
propõe, retomando o narcisismo freudiano, uma operação lógica de constituição do eu.
Em um momento determinado da história do sujeito, a partir do olhar da mãe e de sua
nomeação, a criança se vê no espelho e se reconhece como um indivíduo integrado: “de
uma imagem despedaçada do corpo a uma forma de sua totalidade que chamaremos de
ortopédica” (Lacan:1949:100). O eu se forma, portanto, a partir da imagem do outro,
seu duplo no espelho.
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A formação do eu é fundamentalmente paranóica na medida em que a imagem


do eu vem do outro, seu igual e rival. Esse momento corresponde à identificação
narcísica trabalhada por Freud como causa da paranóia. Essa identificação é, para
Lacan, situável no registro do imaginário e responsável pela constituição do eu ideal. Na
neurose, a identificação simbólica, virá regular, nesta fase do ensino de Lacan, a partir
do ideal do eu, as relações do sujeito com seus objetos.
O ciúme neurótico atualiza a confusão entre amor e identificação: o ódio pelo
rival é alimentado a tal ponto que pode por vezes dominar o interesse amoroso. Já o
ciúme delirante é posto em relação à identificação imaginária ao outro, com isso Lacan
mostra tratar-se aqui do sujeito que é rival de si mesmo, ou seja, o sujeito que nega a si
mesmo: “a suprema agressividade que encontramos nas formas psicóticas da paixão é
muito mais constituída pela negação desse interesse singular do que pela rivalidade que
parece justificá-la” (1938:45). Alguns anos mais tarde, Lacan (1955-56) corroborará sua
tese afirmando que, ao contrário do ciúme na neurose, na psicose a rivalidade não está
tanto em questão, mas a certeza da traição. Se o ciúme do tipo normal se recusa da
forma mais natural do mundo à evidência, no delirante, a certeza predomina, eximindo-
se da referência a um personagem concreto.
O complexo de intrusão desvela, na estrutura narcísica da relação com o outro,
um índice da relação do sujeito com a morte. Evocando a famosa citação de Santo
Agostinho, que descreve o ódio ciumento do menino vendo seu irmão mamando no
peito, Lacan assinala que a imagem do irmão não desmamado não pode ser reduzida a
uma mera disputa pelo alimento. A cena “só desperta uma agressão especial por repetir
no sujeito a imago da situação materna e, com ela, o desejo da morte. Esse fenômeno é
secundário à identificação” (1938:46).
A imagem no espelho carrega assim “o ideal da imago do duplo”, “o sujeito
saúda nela a unidade mental que lhe é inerente” (1938:48). Se a relação especular
confere unidade à imagem, o sujeito anseia por ver-se também completo. Alienando-se
na imagem do outro, o sujeito é captado imaginariamente, selando seu
desconhecimento: o outro é para o sujeito “ou obstáculo ou reflexo” (1938:50). Lacan
acentuará que a entrada de um terceiro torna-se essencial para a superação do complexo
de intrusão.
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A paranóia é ligada, assim, ao complexo fraterno. Seus fenômenos revelam a


estrutura narcísica na qual se sustenta: filiação, usurpação, espoliação, mas também,
influência, intrusão, fenômenos do duplo e fenômenos corporais. É interessante
observar que a explicação causal da paranóia é atribuída a ausência do pai no grupo
familiar: “a clínica mostra que efetivamente, o grupo assim desfalcado é muito
favorável à eclosão das psicoses, e que aí encontramos a maioria dos casos de delírio a
dois ”. (1938:51)
A admissão de uma lei simbólica vinda do Outro, ou de algum substituto que
venha lhe fazer suplência, serão formalizados futuramente por Lacan, como veremos no
terceiro capítulo, como freios possíveis para a báscula imaginária da relação dual. No
início de seu ensino, as manifestações da psicose respondem à inércia do imaginário. O
psicótico seria presa de uma relação dual onde o outro é seu igual e rival. O caso Aimée
e o crime das irmãs Papin – que veremos a seguir - são trabalhados dentro dessa
perspectiva, acentuando o risco de passagem ao ato na psicose.

2.4 O delírio compartilhado

Folie à deux de Lasègue e Falret

Laségue e Falret criaram, em 1877, a folie à deux para explicar casos de delírio
compartilhado. Essa categoria clínica pressupõe as seguintes características: que haja
um indivíduo ativo que exerça influência sobre outro, mais passivo, que o delírio tenha
alguma verossimilhança e que as duas pessoas envolvidas tenham vidas compartilhadas,
longe de influências externas.

O problema compreende dois termos entre os quais trata-se de estabelecer uma


equação: de um lado o doente ativo, do outro, o individuo receptor que sofre,
sob formas e graus diversos, sua influência. (1877:323)

Para os autores, trata-se sempre de um personagem indutor – o verdadeiro


delirante – e de um induzido – intelectualmente e moralmente débil. Se o alienado
impõe o seu delírio a seu cúmplice involuntário, este também pressiona o alienado com
81

suas “divagações, ele as encoraja, as coordena e as adapta mais ou menos à


verossimilhança” (1877:324). O induzido tem, além disso, um interesse pessoal, um
ganho em jogo no delírio.
O delírio que coteja a realidade terá mais poder de convencimento do que um
que em nada lhe faz alusão: “mais o delírio é coerente com a realidade, mais ele se torna
comunicável” (1877:327). O tratamento proposto pelos autores consiste em separar a
dupla do delírio. A prescrição da separação do personagem indutor do induzido visa a
verificar quem é o verdadeiro delirante, tarefa impossível de se realizar quando os
personagens estão reunidos.

A coabitação de um indivíduo fraco com um alienado, constante, sem remissão


e sem reticências, a participação das mesmas esperanças e dos mesmos medos,
solicitados por eventos de cuja porção não é sem ligação à realidade, manobram
a transição entre a razão falha e o delírio. (...) É pouco a pouco que se realiza
esse trabalho de solidariedade (1877:333)

O trabalho de Lasègue e Falret aponta para questões férteis do campo


psicanalítico, tanto sobre o delírio e sua evolução quanto sobre o tipo de ligação que ele
possibilita estabelecer entre sujeitos. Algumas premissas podem ser deduzidas do que
foi exposto:

1) Não é preciso ser psicótico para delirar, já que o induzido também delira.

2) O delírio pode ter funções diferentes para aqueles que o compartilham.

3) Há um endereçamento no delírio a um outro.

3) O que define que o delírio seja a dois é a existência de um convencido.

4) Compartilhar o delírio pode ser uma forma particular de laço social.

A folie à deux nos dá indícios importantes para desenvolver conseqüências da


relação transferencial na psicose, ou seja, o efeito que tem para um sujeito comunicar o
seu delírio para um outro. Como vimos no caso Aimée, ela constrói seu delírio em
torno da idéia de ser separada de seu filho. Na vida de sua mãe encontra-se um episódio
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que corresponde ao delírio de Aimée: quando sua mãe estava grávida dela, perdeu um
de seus filhos de morte acidental. O delírio traz assim, como já havia assinalado Freud
(1937), um “elemento de verdade histórica que ele insere no lugar da realidade
rejeitada” (303).
A partir de suas teorizações sobre a formação dos grupos, Freud mostrou que
este é um poderoso fator de desvio das pulsões amorosas de seus objetivos originais.
Nesse sentido, parece-nos que o grupo pode servir ao psicótico como uma espécie de
laço social protegido do sexual. Mas se o grupo pode proteger o psicótico de ter que se
haver com o sexo, pode – por outro lado – incentivar os efeitos imaginários da relação
em espelho e, em sua contrapartida, o ódio e a intolerância com o diferente. O exemplo
dado por Freud é o da relação hipnótica (como diz Freud, um grupo constituído de dois
membros). O hipnotizado investe em seu hipnotizador na mesma proporção em que
renuncia à realização sexual. O objeto é assim supervalorizado e a crítica afrouxada a
tal ponto que:

(...) as funções atribuídas ao ideal do eu deixam inteiramente de funcionar. A


crítica exercida por esta instância silencia; tudo que o objeto faz e pede é correto
e inocente. A consciência não se aplica a nada que seja feito por amor do objeto,
na cegueira do amor, a falta de piedade é levada até o diapasão do crime (...).
(Freud:1921:43)

Fica claro, portanto, que não é possível fazer um paralelo absoluto entre folie à
deux e relação analítica, pois incorreríamos no risco de “delirar com o doente”
(Lacan:1957-58a:581). Alguns aspectos importantes podem, entretanto, ser extraídos da
função que pode ter, para um psicótico, a possibilidade de transmissão de seu saber
delirante. Vimos com Schreber que apesar de seu retorno ao mundo ter sido
possibilitado pela construção de seu delírio, o pedido de que Flechsig desse sua opinião
a respeito do que expôs em seu livro de memórias, mostra um forte desejo de acolhida
do delírio. Para fazer, nas palavras de Freud, função de cura, é importante a presença de
um outro que auxilie o psicótico a sustentar a sua procura por uma construção delirante
que tenha a “coerência que equivale a uma lógica” (Lacan: 1946:168). A presença de
um analista pode ser muitas vezes indispensável para ajudar o psicótico a encontrar algo
que faça a função de ordenamento do sentido. Voltaremos a esse ponto.
83

É preciso, contudo, assinalar que não se trata no dispositivo analítico de


compartilhar a loucura, vide a potência mortífera que ganha um delírio a dois. A
situação analítica não se sustenta em uma lógica binária, ou seja, é contrária à
assimilação entre sujeito e objeto. Ao contrário, a manobra psicanalítica consiste em
introduzir uma distância entre eles, única condição para que um sujeito possa advir. Na
análise que Lacan faz do crime das irmãs Papin, fica evidente o quanto uma relação dual
pode abrir o campo para a passagem ao ato. Nesse sentido, a manobra da análise se
distancia daquilo que o compartilhamento do delírio propicia. Trata-se, na primeira, de
promover uma separação que permita ao sujeito circular no mundo; ao passo que a
segunda funcionaria na via oposta, tentando fazer de dois, apenas um.

O crime das irmãs Papin ou o mal de ser dois na psicose

Lacan analisa um assassinato brutal que entrou para os anais do crime. Ocorreu
no dia dois de fevereiro de 1933, na cidade de Le Mans. Duas irmãs, Christine e Léa,
então com correspondentemente 28 e 21 anos, empregadas domésticas, atacam a patroa
delas e a filha. Lacan assinala que “de um grupo ao outro, não se falavam” (1933:389),
ou seja, não havia intercâmbio possível entre os pares. Eis que, subitamente, o silêncio
mantido por patroas e empregadas vem se materializar na obscuridade gerada por uma
pane de eletricidade, que havia sido provocada acidentalmente pelas irmãs. Uma orgia
sangrenta se inicia quando as patroas chegam das compras. Sem dar-lhes tempo de se
desfazer de suas bagagens e luvas, elas atacam suas vítimas; ainda vivas, arrancam-lhes
os olhos, massacram e mutilam seus corpos. Fazem incisuras profundas nas coxas de
uma, e sujam a outra com seu sangue. Limpam a cena do crime, se lavam, e se recolhem
aos aposentos, deitando-se na mesma cama.
O crime, deslanchado, segundo Lacan, em um momento de coincidência entre
um evento objetivo e uma tensão pulsional, localiza-se na vertente paranóica. A psicose
das irmãs é situada como um delírio a dois, embora Lacan rejeite a tese clássica segundo
a qual seria possível discernir o personagem indutor do induzido. O paralelismo
delirante das irmãs é explicado por Lacan como uma resposta a um enigma:
84

(...) o mal de ser dois do qual sofrem essas doentes as libera muito pouco do mal
de Narciso. (...) Parece que entre elas as irmãs não podiam nem tomar a
distância necessária para se matar. Verdadeiras almas siamesas, formavam um
mundo para sempre fechado. (...) Com os únicos meios de sua ilhota, elas
devem resolver seu enigma, o enigma humano do sexo. (1933: 402)

Christine dirá na prisão que o que as animava quando massacravam suas vítimas,
quando as cortavam, era o ‘mistério da vida’. As irmãs, ao porem em ato o seu ódio
assassino, arrancam literalmente os olhos de suas vítimas, embora não tenham
conseguido responder ao enigma da relação com o outro, e, portanto, ao enigma do
amor e do sexo. Separadas, as irmãs são confiadas cada uma a seu destino: Christine
morre louca e Léa volta a morar com a sua mãe.
Comparando o crime das irmãs Papin ao crime de Aimée, Lacan os oporá
radicalmente, afirmando que “só há constância de estrutura” (1933:402). Aimée ataca
“o ser brilhante que ela odeia porque representa o ideal que ela têm de si mesma”
(1933:402). As irmãs, por sua vez, “misturam à imagem de suas patroas a miragem de
seu mal” (1933: 403). É algo contido no olhar da patroa que atualizará, para as irmãs, a
sua desgraça: é isso que elas odeiam e que irão atacar. O olhar da patroa desvela assim
um “você não presta” que vem instantaneamente condensar o mal que as assombra.

2.5 Algumas considerações sobre os atos criminosos nas psicoses

Uma sessão deve, portanto, ser consagrada ao estudo dos atos homicidas nas
psicoses. A referência principal utilizada por Lacan é o trabalho de Guiraud sobre os
crimes imotivados, e suas teorizações sobre o kakon, termo grego que significa
desgraça, perigo.
Guiraud assinala em 1928 que são raros os assassinatos cometidos por psicóticos
que se desvelam como “atos lógicos e motivados por idéias delirantes” (1993:96).
Nessas ocasiões, o sujeito premedita o ato, sabe, portanto, o que faz e executa com
lucidez a sua vingança. Mais freqüentes são, segundo o autor, os crimes que parecem
não ter sido motivados nem por alguma convicção delirante, nem por nenhuma cólera
patológica ou impulsão. Distingue, a partir da teoria freudiana, os crimes do Isso
85

(puramente pulsionais), dos crimes do Eu (crimes ditos de interesse). A idéia é a de que,


nos crimes do Isso, o sujeito fusiona ou simboliza sua doença pelo mal social:

Dizemos que a violência é a força dos fracos. Não é possível curar-se através de
um ato brusco liberador, mas o doente tem sempre esse desejo (...). Mas contra
o mal social, o ato brusco liberador é possível: alguns o crêem ao menos (...).
Matar o tirano era para ele matar a doença. (Guiraud:1993:99)

Em sua tese de doutorado, Lacan acrescenta uma terceira categoria, os crimes do


Supereu, para descrever os crimes ligados à querela e à autopunição. Mostra que
aqueles crimes psicóticos que não possuem uma estrutura de autopunição se revelam
muito mais brutais e impulsivos. O caráter imotivado dos crimes é tomado de
empréstimo a Guiraud para acentuar a persistência do delírio após o crime, mesmo que
este traga, posteriormente, algum alívio.
Os crimes do Isso ou crimes imotivados mostram como se distribui o perigo
social para estes sujeitos: “o sujeito não quer aqui matar seu eu ou seu supereu, mas sua
doença, ou mais geralmente, seu mal, o kakon de Monakow e Mourgue, (...) suas
vítimas são em geral, ou parentes próximos ou sujeitos totalmente desconhecidos”
(Lacan:1932:302). As irmãs Papin serão incluídas por Lacan (1950) nesta categoria,
mostrando o quanto a leitura psicanalítica diverge do senso comum:

A psicanálise soluciona um dilema da teoria criminológica: ao irrealizar o


crime, ela não desumaniza o criminoso. Mais ainda, pela mola da transferência
ela dá acesso ao mundo imaginário do criminoso, que pode ser para ele a porta
aberta para o real (Lacan:1950:137).

A leitura que circulou na época do crime era a de que o assassinato cometido


pelas irmãs Papin respondia a um contexto socialmente determinado (empregadas
humildes escravizadas pelas patroas). Ao contrário do que se divulgou na época, Lacan
demonstra que o crime comprova a alienação da realidade das criminosas:

(...) assim, como a tensão agressiva ao integrar a pulsão frustrada cada vez que a
falta de adequação do ‘outro’ faz abortar a identificação resolutiva, ela
determina com isso um tipo de objeto que se torna criminogênico na suspensão
da dialética do eu”. (1950:143)
86

O objeto criminogênico emerge, portanto, a partir de duas condições


precipitantes: o fracasso da identificação resolutiva e a suspensão da dialética. Não é
mais tanto a sua imagem, como vimos em Aimée, que o sujeito fere na passagem
agressiva ao ato, mas o seu ser. O ser do sujeito não coincide, portanto, com a imagem
que o sujeito tem de si mesmo: “não é outra coisa senão o kakon de seu próprio ser que
o alienado procura atingir no objeto que ele fere” (1946: 176). O sujeito ataca no kakon,
aquilo que ele identifica como sendo correspondente ao seu ser.

O sujeito não reconhece nessa desordem do mundo a própria manifestação de


seu ser atual, nem que o que ele sente como lei de seu coração é apenas a
imagem tão invertida quanto virtual desse mesmo ser. Ele desconhece
duplamente, portanto, e precisamente por separar a atualidade da virtualidade.
Ora, ele só pode escapar dessa atualidade através dessa virtualidade. Assim, seu
ser está encerrado em um círculo, a menos que ele o rompa por alguma
violência, na qual, desferindo seu golpe contra o que lhe parece ser a desordem,
atinge a si mesmo através do contragolpe social. (1946:173)

Resta dizer ainda que se o objeto criminogênico não é nem uma imagem, nem
uma palavra (como vimos, no assassinato das Papin, Lacan dá um lugar de destaque ao
silêncio), isso o aproxima, em nossa leitura, daquilo que será mais tarde teorizado por
Lacan como objeto a. Retomando o caso Aimée, Lacan muda o seu ponto de vista
dizendo que as perseguidoras não representam para ela aquilo que ela queria ser, mas “o
ideal de malignidade contra o qual sua necessidade de agressão vai crescendo”
(1946:169-170). Paralelamente, mantinha, como representação de si mesma, um ideal
de pureza, de mãe ideal, devotada.
Retomemos brevemente as teorizações lacaniana sobre o ser, de modo a verificar
qual é o alvo do ataque no crime psicótico. Paradoxalmente, a psicanálise considera que
o ser é desde sempre perdido e só pode existir concomitantemente ao advento da
palavra. Lacan teorizou o ser em relação ao que Freud chamou de umbigo do sonho,
ponto de impossível em torno do qual o sonho se estrutura. Para Lacan o ser só existe ao
falar, só a dito do ser. Apesar disso, a palavra só pode expressar o ser até um certo
ponto, pois ele não é redutível a nenhuma significação. Como sugere Lacan no
seminário I, “Antes da palavra, nada é, nem não é. Tudo já está aí sem dúvida, mas é
somente com a palavra que há coisas que são (...) e coisas que não são. (...) A palavra
introduz o oco do ser na textura do real”. (1953-54:254).
87

A partir do ser, a falta se cava, constituindo o sujeito como falta-a-ser. Esse


movimento instaura a busca sempre faltosa pelo objeto que viria completar o sujeito em
seu ser. É aí que entra a passagem ao ato agressiva na psicose. Como demonstra
Pequeno (2000), “o impossível reencontro com o objeto restauraria uma condição de
gozo pleno: a dimensão do ser é também a do gozo” (95). A autora sugere que, na
psicose, pode ocorrer uma coincidência entre o objeto e o ser, levando o sujeito a
realizar o encontro com o real do ser. Um dos trabalhos psicanalíticos com a psicose
consistiria, segundo a autora, em promover um esvaziamento do ser. O ser completo,
consistente, corresponde a um excesso de gozo, podendo levar, por exemplo, ao
assassinato, mas também à morte subjetiva na psicose.
Neste capítulo, fizemos uma revisão da relação entre amor e loucura na
psiquiatria, de modo a introduzir as teorizações iniciais de Lacan sobre o passional nas
psicoses. Acreditamos ter demonstrado o quanto é importante o resgate da categoria do
passional para a compreensão de alguns fenômenos da psicose (como o delírio
passional) e algumas manifestações da psicose na sua relação com os outros (como a
passagem ao ato). Queremos, indicar, entretanto, que concordamos com Lacan quando
considera que a categoria passional deve estar compreendida entre as psicoses
paranóicas.
Contudo, a ênfase dada na atualidade ao delírio persecutório, fez com que se
tornasse quase um sinônimo de paranóia. A nosso ver, essa sobreposição de termos
provocou um certo empobrecimento na compreensão desta modalidade clínica. O
estudo do delírio passional na paranóia permite avançar questões importantes relativas
ao laço que o psicótico estabelece com os outros, contribuindo para a depuração das
modalidades de trabalho que a transferência na psicose possibilita.
Resta dizer que a posição sugerida pela psicanálise a ser tomada no que concerne
aos atos criminosos na psicose, tenham sido eles ocasionados durante a manifestação de
um delírio passional ou não, é bem diversa da perspectiva judicial que considera o louco
inimputável, e é justamente por isso que não isenta o sujeito de seus atos. A psicanálise
busca a verdade de um sujeito e é precisamente por isso “que ela não pode fazer outra
coisa senão manter a idéia de responsabilidade, sem a qual a experiência humana não
comporta nenhum progresso”. (Lacan:1950:131)
88

3. O AMOR NA CLÍNICA LACANIANA DAS PSICOSES:


DOS IMPASSES ÀS INVENÇÕES.

Iniciaremos nosso capítulo apresentando a armadura conceitual de onde parte a


teorização lacaniana sobre a psicose. Escolhemos desenvolver aqui dois pontos teóricos
fundamentais para a compreensão das relações do psicótico com seus semelhantes, de
modo a introduzir o debate acerca das possibilidades do amor na psicose e delimitar
aspectos cruciais para a questão da transferência na clínica da psicose. Os pontos
selecionados referem-se ao esquema L e à teorização sobre o Nome-do-Pai, ou seja,
abarcam uma discussão mais geral entre a posição subjetiva do sujeito na neurose e na
psicose empreendida por Lacan nos anos cinqüenta.
A partir disso, procuraremos desenvolver algumas conseqüências da definição
que Lacan dá do amor na psicose como sendo um amor morto, tentando explicitar e
diferenciar, a partir das teorizações sobre o objeto a, o seu aspecto mortífero do seu
aspecto mortificado. O amor que une Schreber a Deus exemplificará a primeira vertente,
ao passo que a ligação de amizade estabelecida entre Schreber e sua esposa ilustrará a
segunda. Tentaremos esboçar alguns indícios do lugar a ser ocupado pelo analista na
transferência a partir dessas duas variantes do amor morto.
Com a teorização do objeto a e suas particularidades na psicose, analisaremos
suas relações com o ato e com a passagem ao ato, de modo a introduzir algumas
conseqüências do gozo na psicose. A teoria da sexuação nos permitirá verificar as
diferenças entre aquilo que concerne à identificação sexual e aquilo que se refere à
escolha de objeto no amor. Situaremos o lugar da psicose no que se refere à lei fálica e
apontaremos algumas saídas possíveis do fora do sexo na psicose. O empuxo-à-mulher
e o transexualismo serão revistos como maneiras de resolver o enigma do sexo na
psicose.
Por último, abordaremos as teorizações lacanianas relativas às formas de
amarração dos três registros: Real, Simbólico e Imaginário, das quais dependerão as
diferentes estruturações da subjetividade. A psicose passa a ser considerada como a
posição subjetiva paradigmática, pois, ao apontar para o desenlace dos três registros,
revela o quarto elo como um artifício que fixa o nó de três. A partir dessa mudança de
89

perspectiva, revisitaremos o tema do amor na psicose de modo a verificar se é possível


existir um amor desatrelado da ficção do falo. O amor em Joyce, por outro lado,
demonstrará a potência abolicionista de seu autor, indicando um modo singular de lidar
com a não inscrição dos sexos na psicose. Sua obra, e a análise que Lacan dela realizou,
nos abrirá um novo caminho de investigação das possibilidades do amor na psicose não
desencadeada, de um amor que não encontra, no delírio, uma solução. A philia será
revista a partir de Aristóteles como um amor, privado do sexual, que se baseia nas
normas da boa vizinhança, uma solução do amor pela via da institucionalização.
Proporemos, por último, a partir da philia, algumas questões acerca do amor de
transferência na psicose.

3.1 O amor na teoria da foraclusão do Nome-do-Pai

O esquema L na psicose

O esquema L pode ser considerado como a célula elementar de onde se


depreenderão as coordenadas estruturais mínimas do sujeito na neurose e na psicose. O
esquema possui a forma de um Z e apóia-se no entrecruzamento do eixo simbólico e do
eixo imaginário. Há, nessa época do ensino de Lacan, uma prevalência do registro
simbólico sobre o imaginário, o simbólico rege, de certa forma, o imaginário. Lacan
adverte que para que um termo pertencente ao registro imaginário possa ser analisado, é
necessário que ele seja posto em relação com o simbólico. A frase-chave que traduz
esse período é: “nenhuma formação imaginária é específica, nenhuma é determinante
nem na estrutura, nem na dinâmica de um processo” (1957-58a: 546).
No que concerne ao estudo das psicoses, Lacan se utiliza do esquema L tanto
em seu seminário sobre as psicoses (1955-6) quanto no texto dos Escritos que lhe é
contemporâneo, “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”
(1957-1958). Se no terceiro seminário de Lacan, o Outro é considerado como um
termo excluído do esquema da psicose, na Questão Preliminar, Lacan corrigirá seu
ponto de vista no esquema R, demonstrando que o que está excluído na psicose não é o
Outro, e sim o significante do Outro como lugar da lei.
90

O esquema L é utilizado, no seminário sobre as psicoses, para depreender a


estrutura geral da neurose. Por oposição comparativa, a psicose é trabalhada a partir de
um dos fenômenos específicos da paranóia: a alucinação auditiva verbal. É preciso, por
isso, levar em conta que Lacan concebe a exclusão do Outro em relação ao fenômeno
da alusão imaginária e da resposta alucinatória, e não como algo que aponta para um
defeito da psicose no que diz respeito à sua estruturação na linguagem de uma maneira
mais geral. Parece-nos importante ressaltar essa perspectiva de modo a evitar uma
generalização de um esquema, específico da alucinação, ao campo da psicose como um
todo, o que poderia dar margem a uma leitura neurótico-centrista da psicose, baseada
em uma compreensão deficitária da psicose em relação à neurose.
Antes de prosseguir nossa análise diferencial entre neurose e psicose, é preciso,
contudo, fazer um esclarecimento. Verifica-se, durante este seminário, uma mudança
no que se refere aos elementos do eixo imaginário que concerne, mais especificamente,
aos lugares do eu e do outro. No esquema apresentado na lição inaugural do seminário,
Lacan coloca o eu como a e o outro como a’ (1955-56:22).

Em sua quarta lição e, posteriormente, no texto Questão Preliminar (1957-58a),


essa configuração será alterada: o eu será considerado como a’ e o outro como a.
Podemos destacar ao menos duas razões para esta troca. Em primeiro lugar, a segunda
versão evidencia mais que o eu (a’) se forma a partir do outro (a). Em segundo lugar, a
partir do o outro enquanto a, Lacan iniciará seu trabalho de destaque daquilo que, mais
tarde, corresponderá ao lugar do objeto a.
91

Retomemos as coordenadas do esquema L. Lacan desenvolve, no que diz


respeito ao eixo simbólico, duas possibilidades para o sujeito: “- seja se endereçando
verdadeiramente ao Outro (...) e recebendo a mensagem que nos concerne sob forma
invertida, - seja indicando sua existência sob a forma de alusão” (1955-56:64).
Vejamos rapidamente a primeira possibilidade, ou seja, a da neurose. O
esquema L demonstra que, na neurose, haveria uma estrutura de reconhecimento do
Outro. O sujeito, ao falar, faria apelo a um mais além do outro, sua imagem especular,
de modo a ser reconhecido não pelo seu dito, mas naquilo que em seu dito o revela
fundado pela fala.
Essa estrutura de reconhecimento é, portanto, inconsciente e para além da
relação imaginária (a – a’), ou seja, ela visa o reconhecimento através do Outro. Lacan
acrescenta que, para que a estrutura de reconhecimento funcione, é necessária a
reciprocidade: para que o sujeito seja reconhecido pelo Outro é necessário, na via
oposta, que o Outro seja reconhecido pelo sujeito. Veremos, mais adiante, como essa
estrutura de reconhecimento se apresenta na psicose ao retomarmos o caso Schreber.
Lacan fornece um exemplo do reconhecimento na neurose a partir da frase ‘tu
és minha mulher’. Mostra que quando alguém diz ‘tu és minha mulher’, está dizendo
implicitamente ‘eu sou teu homem’ - embora diga primeiramente ‘tu és minha mulher’.
Visando o seu reconhecimento, o sujeito institui, assim, o outro na posição de ser por
ele reconhecido.
Vejamos, então, a segunda possibilidade, a da alusão na psicose. A alusão
“comporta uma exclusão do Outro” (Lacan:1955-56:64). Em nosso ver, devemos tomar
aqui o verbo ‘comportar’ como indicativo de um momento pontual, específico e
determinado da psicose, no qual o sujeito se vê sem o socorro do Outro enquanto lei
92

organizadora da linguagem. O circuito se fecharia, nessa ocasião, sobre o eixo


imaginário, ou seja, entre o outro que fala a mensagem do sujeito e o eu que, segundo
Lacan, é sempre um outro na psicose e fala por alusão.

Na fala delirante, o Outro está verdadeiramente excluído, não há verdade atrás


(...) o que concerne ao sujeito é dito realmente pelo outro com minúscula, pelas
sombras do outro (...). O outro com minúscula apresenta, com efeito, um caráter
irreal, tendendo ao irreal (1955-56:64-65).

A alucinação será considerada, nesse seminário, como uma ruptura do sistema


de linguagem. Se, como vimos no segundo capítulo, o ser é, em última instância,
indizível, a alucinação o alcança, de uma certa maneira, ao fixá-lo em um conteúdo. A
injúria poderia indicar assim uma nomeação para o ser do sujeito, localizando e
limitando em uma certa medida o retorno da libido sobre o eu. Mas esse recurso
alucinatório não chega a constituir por si mesmo uma solução, pois não atinge uma
função pacificadora, exigindo do sujeito novos desdobramentos significantes.
Podemos inferir, com Lacan, que a alucinação verbal da paranóia pode, em
determinadas circunstâncias, possibilitar o esboço de uma direção a ser seguida pelo
psicótico na construção de seu delírio. Como dissemos, Lacan analisa nessa época os
fenômenos psicóticos a partir da ótica da neurose. Considera que para a neurose, o pai
está, na passagem do Édipo, “no anel que faz manter-se tudo junto” (1955-56:358). A
psicose é pensada, por contraste, como aquela modalidade clínica que prescindiria desta
operação e, por isso, estaria mais exposta a sofrer o risco de um desenlace. Em
contrapartida, o psicótico, por não possuir de entrada esse anel fixador, não precisa se
limitar em seu caminho à estrada principal que lhe ordenaria suas relações com o
mundo, tendo acesso a pequenos caminhos.
93

Lacan indica com isso que o psicótico pode construir anéis que lhe permitam
situar-se na existência: uma das soluções possíveis para o desenlace é justamente o
ingresso no trabalho de construção delirante a partir das indicações das direções que lhe
oferecem suas alucinações. A alucinação sinalizaria, portanto, uma direção a ser tomada
no delírio. Lacan vai abandonando a idéia de que o Outro está excluído na psicose, na
medida em que considera que, se o psicótico consegue vagar e, eventualmente, se
localizar, sem o acesso à estrada principal que lhe forneceria a chave da relação entre o
homem e a mulher, é porque a linguagem opera na psicose, embora prescinda da
organização fálica.
Como dissemos, essa questão será definitivamente esclarecida na Questão
Preliminar, onde Lacan especifica que há Outro na psicose, embora o Outro em questão
não venha regido pela lei fálica. O esquema L não será, assim, mais utilizado por Lacan
como um esquema que esclarece as alucinações da psicose pela exclusão do Outro, mas
como uma via de investigação acerca da constituição do sujeito na neurose e na psicose.
Lacan propõe que o que define a condição do sujeito tanto na neurose quanto na psicose
depende da relação do sujeito com o Outro.
Isso envolve os quatro termos de seu esquema:

(...) a saber S, sua estúpida e inefável existência; a,


seus objetos; a´, seu ego e A, lugar de onde lhe pode ser
formulada a questão acerca de sua existência
(Lacan:1957-1958:555).

Podemos entrever que, a partir do momento em que Lacan se serve do esquema


L, não mais para explicar o fenômeno da alucinação na psicose, mas para problematizar
94

a questão da constituição de todo e qualquer sujeito na linguagem, o Outro não poderá


mais aparecer como um termo excluído da psicose. Há Outro na psicose, mas ele deve
ser considerado como um elemento que não possui de entrada o significante primordial
que o organizaria como Outro da lei: no surto psicótico verifica-se assim “a falência do
Nome-do-Pai, - isto é, do significante que, no Outro como lugar do significante, é o
significante do Outro como lugar da lei” (Lacan:1957-58:590).
Por último, gostaríamos de dizer que na Questão Preliminar, Lacan acaba por
rever também sua abordagem da alucinação: a ênfase não repousará mais tanto na
presença de um significante no real, mas na quebra da cadeia significante, ou seja, na
quebra da cadeia do sentido.

Esse exemplo [o caso Porca] é aqui destacado apenas para captar no ponto
essencial que a função de irrealização não é tudo no símbolo. Pois, para que sua
irrupção no real seja indubitável, basta que ele se apresente, como é comum, sob
a forma da cadeia rompida. (1957-58:542)

Esse pequeno giro conceitual alça os distúrbios da linguagem à condição de


fenômenos elementares e esclarece porque nem toda alucinação localiza o sujeito em
um conteúdo, como não deixam de demonstrar os fenômenos da esquizofrenia, onde o
significante isolado não é reconectado na cadeia delirante. O retorno de um significante
no real não se apresenta necessariamente com um significado, com uma roupagem
imaginária em forma de voz, mas como uma presença que pode, por exemplo, incidir no
corpo do esquizofrênico. Se na paranóia, como demonstra Lacan, o retorno do
foracluído se apresenta sob a forma mais usual de alucinação auditiva verbal, na
esquizofrenia, em contrapartida, a lacuna da foraclusão acarreta outra conseqüência:

Parece, ao ouvir Freud hoje, que é a hiância de um vazio que constitui o


primeiro passo de todo seu movimento dialético. É justamente isso que explica,
ao que parece, a insistência do esquizofrênico em reiterar esse passo. Em vão,
já que, para ele, todo o simbólico é real. (Lacan:1954:394)

Como indica Zenoni (2000), a esquizofrenia é posta, no período dos anos


cinqüenta, em contraste com a paranóia, como um equivalente no nível do corpo e da
língua, daquilo que acontece no nível do Outro e do sentido. No final do ensino de
Lacan, ela será alçada ao nível de paradigma por ser a posição subjetiva que menos se
95

defende contra o real, denunciando assim a natureza de semblante de tudo o que toma o
lugar do Outro. Essa perspectiva reorientará também a clínica da neurose na medida em
que o Nome-do-Pai será encarado como apenas um sintoma entre outros capazes de unir
Simbólico, Imaginário e Real.

Em torno do Nome-do-Pai

A construção da teoria das psicoses da década de cinqüenta foi articulada em


oposição à neurose. Lacan visava, com a teoria do Nome-do-Pai, dar primazia à ordem
simbólica, tendo como ponto central as leis do inconsciente e o Édipo. O Nome-do-Pai é
para Lacan o significante que, referido ao Édipo, ordena a neurose. A partir da análise
da alucinação e do delírio na psicose, Lacan centrará, por oposição, suas considerações
sobre a psicose em torno do conceito de foraclusão do Nome-do-Pai.
É então a partir dos fenômenos psicóticos que Lacan depreende o campo onde
eles se articulam e problematiza a operação primordial em jogo na psicose. Queremos
apontar, como indica Zenoni (2000), que Lacan, neste ponto de sua teoria, faz uma
leitura da psicose que enfatiza muito mais os problemas que ela ocasiona, do que as
soluções que ela constitui. Isso será modificado ao final de sua obra quando, ao analisar
a vida e a obra do escritor James Joyce, Lacan demonstrará que há outras possibilidades,
que não o delírio, que podem ser utilizadas pelos sujeitos psicóticos para se manterem
na existência, podendo até mesmo impedir ou frear a eclosão de um surto.
Atenhamo-nos agora à teoria da foraclusão do Nome-do-Pai. A partir do caso do
Homem dos Lobos de Freud, Lacan pinça o termo Verwerfung e propõe a utilização do
termo foraclusão para designar a operação em jogo nas psicoses. Retomando o caso,
Lacan vai dizer que Freud constatou que embora o Homem dos Lobos tivesse algum
acesso à realidade genital, esta permaneceu como letra morta no que diz respeito ao seu
inconsciente. Por haver assumido uma posição feminina na cena de sedução de sua
fantasia, a realidade genital carregava para ele a inevitável ameaça de castração.

Não se trata diz-nos [Freud], de um recalque (Verdrängung), pois o recalque


não pode ser distinguido do retorno do recalcado pelo qual aquilo de que o
sujeito não pode falar, ele o grita por todos os poros do seu ser. Da castração,
diz-nos Freud, esse sujeito nada queria saber no sentido do recalque – er vor ihr
nichts wissen wolte im Sinne der Verdrängung. E para designar esse processo,
96

ele emprega o termo Verwerfung, para o qual proporemos, pensando bem, o


termo ‘supressão’ (1954:388).

Em uma nota de rodapé, Miller esclarece que por sua sugestão, Lacan acaba
traduzindo o termo Verwerfung por foraclusão. A rejeição (Verwerfung) freudiana
transforma-se, assim, a partir do seminário sobre as psicoses, em um novo conceito: a
foraclusão. Representa um acidente no simbólico, um vazio no ponto onde a linguagem
se organiza. A linguagem é aqui considerada como um tecido que sustenta a realidade,
a foraclusão deixaria, portanto, em algumas condições que veremos a seguir, o sujeito
vulnerável ao seu abandono, provocando efeitos em sua realidade.
Vejamos primeiramente como Lacan aborda logicamente as etapas de
constituição do sujeito na neurose. O Nome-do-Pai ordena a linguagem na neurose,
servindo de ponto-de-basta. No primeiro tempo do Édipo, na etapa fálica primitiva, o
Nome-do-Pai age, mas a criança só pode assimilar o seu resultado: identifica-se ao falo
como objeto imaginário de desejo da mãe. Na segunda etapa, a criança recebe a lei do
pai como aquela que priva imaginariamente a mãe. A mãe passa a ser submetida a uma
lei terceira, de um Outro, ao qual o seu desejo também é reenviado. No terceiro tempo,
o pai intervém como sendo aquele que detém o falo e que pode, portanto, dar à mãe o
que ela deseja. O pai aparece aqui como suporte identificatório do ideal do eu para o
menino, que buscará como ele ter o falo, e como objeto de amor para a menina, que
procurará por sua vez alguém que, como o pai, tenha o que ela sabe que não tem.

É nessa medida que o terceiro tempo do complexo de Édipo pode ser alcançado,
quer dizer na etapa da identificação onde se trata para o menino de se identificar
ao pai enquanto possuidor do pênis e, para a menina, de reconhecer o homem
enquanto aquele que o possui.(1957-58b:196)

Os três tempos do Édipo serão resumidos por Lacan na operação da metáfora


paterna, uma equação de substituição significante que introduz a metáfora do Nome-do-
Pai. A metáfora paterna consiste em instituir algo que é da ordem do significante e que
está, por isso, a espera de ser significantizado. Isso equivale a dizer que o falo
desaparece para tornar-se significante, permitindo então que apareça no imaginário do
sujeito como (- ) e que o sujeito se situe na existência como falta-a-ser.
O Nome-do-Pai é um significante metafórico que vem substituir o significante
97

do desejo da mãe, interrompendo seu deslizar infinito. O Nome-do-Pai funda assim a lei
no Outro que impede que este último use o sujeito como objeto de seu desejo irrestrito.
A metáfora produz como efeito a produção de um novo significado, o falo como
resposta ao enigma do desejo da mãe e a indução da significação fálica como suporte
para o sujeito.
O amor é produzido, na neurose, a partir dessa falta primordial: vem no lugar
daquilo que falta ao Outro e visa o seu ser: “o que é assim dado ao Outro de completar e
que é propriamente aquilo que ele não tem, porque para ele também o ser falta, é o que
se chama amor” (1957-58:414-415). Amar é, na neurose, dar aquilo que não se tem, ou
seja, o amor vem em substituição a uma falta primordial.
Na psicose, o campo da realidade não se sustenta dessa forma tão amarrada,
trazendo, como veremos, diferenças na forma como o sujeito vivencia o amor. Dentre
outras coisas, é por isso que Lacan (1946) diz que o psicótico é o homem livre. Suas
possibilidades criativas não estão atreladas à norma fálica. Isso fica evidente durante o
surto psicótico, quando as significações, despidas da roupagem fálica, podem, por
exemplo, apresentar-se como um vazio absoluto ou como uma significação plena. A
foraclusão do Nome-doPai (Po) é, portanto, correlata à falta de referência fálica para a
organização do mundo ( ). Se como dissemos, o psicótico é, para Lacan, o homem
livre, essa liberdade não se faz, entretanto, sem um preço. É preciso para o psicótico um
trabalho de invenção solitário e particular que faça de “suplência à falta desse
significante que é o Nome-do-Pai” (1957-58b:147).

Impasses do amor na psicose a partir do caso ‘Porca!’

A partir do caso ‘Porca’, esclareceremos como se pode apresentar a estrutura da


alusão imaginária na relação do sujeito com o Outro. Veremos que o fenômeno da
alucinação auditiva verbal pode ser considerado como uma resposta que vem antecipar
uma questão que ainda não foi formulada. Essa antecipação da resposta é acompanhada
na psicose de certeza, ela concerne ao sujeito, diz de seu ser, mas com a sutileza de vir
veiculada pelo Outro. Como tentaremos sinalizar, o vínculo indissolúvel do sujeito com
o Outro repercute no modo como o psicótico vivencia o amor. A partir daí, algumas
indicações relativas ao manejo da transferência e ao lugar que deverá aí ser ocupado
98

pelo analista na psicose, poderão ser por nós discutidas.


Retomemos brevemente o caso. Trata-se de uma paciente examinada por Lacan
numa apresentação de paciente que se encontrava junto à sua mãe num delírio a dois.
Um comentário acerca do manejo do caso por Lacan merece aqui ser destacado. Embora
considere o caso como um delírio compartilhado, Lacan interessa-se apenas por um de
seus personagens. Talvez possamos a partir disso considerar que Lacan aponta, como
uma direção clínica a ser tomada em casos de folie à deux, a tomada em consideração de
cada um dos dois sujeitos em separado. Como vimos no segundo capítulo, embora o
delírio a dois constitua um tipo de elo possível entre pares, e até chegue a fornecer
assim uma certa estabilização para os sujeitos envolvidos, Lacan não parece reiterar
essa via como um caminho de tratamento para a psicose.
Encontraremos uma outra referência clássica ao comparar o caso a uma
erotomania. Lacan faz questão de esclarecer que, no que concerne ao delírio, o caso não
pode ser tomado como sendo propriamente erotomaníaco, mas afirma, entretanto, que é
certamente possível afirmar que essas pacientes “são habitadas pelo sentimento de que
se interessam por elas” (1955-56:61). Queremos demonstrar que Lacan se utiliza,
portanto, de um dos aspectos da erotomania de Clerambault: pinça, como vimos no
segundo capítulo, um de seus temas derivados, a saber, o interesse universal, para
caracterizar a relação destas pacientes com o mundo. É importante ressaltar assim que
Lacan não utiliza as referências clássicas enquanto síndromes, mas delas retira alguns
traços específicos de modo a se orientar na clínica da psicose paranóica.
A paciente vivia, com sua mãe, em uma relação fechada. Chegaram a fugir
juntas, pois acreditavam que o marido da filha pretendia cortá-la em pedaços. Em sua
nova moradia, passam a ficar ameaçadas pelas visitas de uma vizinha, antes bem quista,
que passou a incomodá-las constantemente com suas intrusões. É neste ponto que
aparece a alucinação: um dia, ao sair de sua casa, a paciente cruzou com o amante de
sua vizinha e este lhe disse: “Porca!”. A paciente esclarece ainda que, pouco antes de
escutar essa injúria, ela mesma teria dito a frase ‘eu venho do salsicheiro’.
É interessante destacar que Lacan anuncia que caiu no erro da compreensão, pois
perguntou à paciente se esta havia se referido, em sua frase, a porco, ao que a paciente
prontamente concordou. Pode-se depreender aí a estrutura da alusão, pois a paciente
quer fazer o outro compreender que se trata de uma referência a porco justamente por
99

não poder dizê-lo claramente. Lacan detecta rapidamente seu erro e percebe que o
sujeito “fala tão bem por alusão que não sabe o que diz” (Lacan:1955-56:64),
redirecionando a entrevista de forma fazer com que a paciente revelasse o que realmente
ouviu: ela alucina seu vizinho chamando-a de ‘Porca’. Demonstra, assim, que a
paciente não recebe sua própria mensagem sob forma invertida, mas que sua fala está no
outro especular.
Lacan tece, ainda, um interessante comentário acerca da questão da
temporalidade entre a frase da paciente e a do amante da vizinha: embora não se possa
precisar qual frase veio em primeiro lugar é, no entanto, possível considerar que a frase
‘eu venho do salsicheiro’ pressupõe a resposta ‘Porca’. Com isso, Lacan indica que a
paciente fala sem saber que está falando e nem o que está falando: “Eu a porca, eu
venho do salsicheiro, já estou disjunta, corpo despedaçado, membra disjecta, delirante
e meu mundo se vai em pedaços, como eu mesma.” (Lacan:1955-56:64) Vemos, portanto,
que a alucinação é uma resposta antecipada do sujeito, há uma modificação da estrutura
da retroação. O sujeito encontra no Outro uma significação prévia ‘Porca!’ que lhe é
endereçada e que o fixa em um conteúdo.

Retomemos o caso nos termos do Esquema L:

- a (outro): o amante da vizinha que diz Porca


- a’ (eu) : quem diz ‘eu venho do salsicheiro’
- S é o eu (je): de quem se diz que vem do salsicheiro

O caso Porca é retomado na Questão Preliminar, indicando que a frase “eu


venho do salsicheiro” deixava em suspenso o “eu” da frase. A alucinação Porca
interrompe essa incerteza situando o sujeito da enunciação e fechando a cadeia
significante. A alucinação auditiva da paranóia poderia, portanto, ser aqui considerada
como algo que vem suprir o sujeito da frase que ficava oscilante na alusão, que era
deixado em suspenso. O sujeito da frase faria para Lacan a função de shifter (1957-
58a:541), apontando o sujeito que fala, responsável pela passagem da dimensão do
enunciado para a dimensão da enunciação. A alucinação auditiva verbal viria, portanto,
em suplência à função do shifter, somando o sujeito do enunciado e o sujeito da
100

enunciação em um eu da frase.
A paciente, que havia utilizado a fuga e o afastamento para lidar com o episódio
traumático de seu casamento, se vê, a partir das investidas da vizinha, às voltas com o
retorno, no real, de algo que não pôde ser subjetivado. O delírio de vizinhança, como
assinala Laurent (1989), desencadeia a injúria alucinada. A vizinha encarna para a
paciente uma figura de vida fácil, ou seja, localiza um excesso de ordem sexual nessa
mulher que a ameaça. A partir desse exemplo, Laurent, por transposição, propõe pensar
que o problema da transferência na psicose coloca-se quando o analista começa a
ocupar o lugar do vizinho malvado: “a erotomania de transferência é a articulação entre
o amor e o gozo malvado que pode ser localizado, neste caso, do lado do vizinho”
(Laurent:1989:15). Podemos, com isso, inferir que a posição do analista pode ser vivida
como intrusiva na psicose, criando um obstáculo para a consolidação da transferência.
Como o analista poderia evitar ocupar essa posição na transferência psicótica?
Não responderemos por ora a essa questão. Queremos apenas indicar que a
transferência, tal como Freud a revelou, demonstra a relação entre amor e saber. Lacan
explicitou mais tarde que na neurose ama-se àquele a quem se supõe deter o saber que
viria a nos completar. Todo o problema da transferência na psicose gira em torno dessa
questão já que, na medida em que o amor e o gozo encontram-se aí intrincados, ocupar
o lugar de saber na transferência pode equivaler a firmar-se na posição de Outro
gozador. O saber na psicose está e deve permanecer, portanto, do lado do paciente e não
do analista. É ele quem sabe sobre as investidas do Outro, que podem se apresentar, por
exemplo, sob a forma de amor, de gozo desmedido ou de alucinação1.
Através da injúria alucinada ‘Porca’ algo do ser de gozo do sujeito veio a ser
localizado. Uma das saídas possíveis, tentativa de cura, segundo Freud, é inserir esse
significante na cadeia do delírio: eu, a porca, sou aquela que será cortada em pedaços....
Um exemplo mais claro dessa função da alucinação pode ser encontrado no caso
Schreber: lembremos que ele aceita sua transformação em mulher após ouvir a injúria
Luder. De uma situação intolerável, a transformação em mulher passa a ser um
sacrifício incontornável ao qual Schreber deve se sujeitar, de modo a preparar seu
encontro assintótico com Deus.

1
Sobre este último aspecto, remeto os leitores à minha dissertação de mestrado “O fenômeno alucinatório
na clínica psicanalítica das psicoses” (IPUB/UFRJ:2000).
101

A injuria vem designar, então, no lugar daquilo que não pôde ser simbolizado,
um nome para o sujeito em seu ser. A alucinação paradigmática da paranóia situa o
sujeito em uma posição subjetiva, apesar deste lugar muitas vezes o desmerecer ou o
denegrir. Através do insulto, o sujeito fixa uma identidade. É por isso que Lacan dirá em
seu seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise que o sujeito é
imanente à sua alucinação verbal (1964:232). Desenvolveremos, um pouco mais
adiante, as teorizações de Lacan acerca da questão do sujeito na psicose. Em oposição
ao sujeito da neurose, cuja aparição entre os significantes é pontual e evanescente,
Lacan proporá pensar o sujeito na psicose como sendo um sujeito de gozo.
O amor pode, na psicose, exercer uma função similar a injúria: “O que se passa
no nível da significação? A injúria é sempre uma ruptura do sistema da linguagem, a
palavra de amor também” (1955-56.:67). A palavra de amor e a injúria procuram
alcançar uma função de nomeação para o ser que é em si mesmo indizível, um nome
substitui assim “o objeto indizível” (1957-58a:541) que foi rechaçado no real e que
agora retorna como voz. Vemos, portanto, que o amor na psicose não está disjunto do
gozo excessivo e mortífero do Outro, mas ao contrário, pode convocá-lo.
Leguil (1987) aponta que devemos utilizar as teorizações lacanianas a respeito
da alucinação auditiva verbal como um contraponto para clínica psicótica do amor.
Tomando a questão pelo viés da paranóia vemos que, assim como a alucinação, o amor
pode ser vivido pelo sujeito em sua exterioridade mais radical. O amor interrogaria
assim a posição do sujeito em relação a um outro consistente e, por isso, radicalmente
Outro. A partir da alucinação, vemos que a problemática do amor na psicose deve ser
tomada em termos daquilo que é relativo ao sujeito: uma certeza “de que daquilo de que
se trata (...) lhe concerne” (Lacan:1955-56:88). O amor, o ódio e a alucinação veiculam,
portanto, uma certeza que concerne ao sujeito em seu ser.
Há algo na psicose que visa o sujeito, que fala dele, que o constrange, mas que,
por outro lado, pode impulsionar o sujeito em uma via de construção de um saber que
dê conta das investidas sem sentido do Outro ou na criação de um artefato que faça
barreira aos abusos do Outro. A argamassa simbólica da paranóia, tal como já nos havia
demonstrado Freud em seu comentário sobre Schreber, é feita de amor e de delírio. Pelo
mesmo laço que une amor e ignorância enquanto paixões do ser, é possível, por
exemplo, que o psicótico se ponha a construir uma teoria sobre o amor. Se o amor do
102

qual se trata aqui não é marcado pela armadura fálica, o laço inusitado com o saber
poderá re-situá-lo do lado da criação, como uma invenção de saber particular e original.

O amor morto

Tentaremos agora extrair algumas conseqüências da definição que Lacan dá ao


amor na psicose em seu terceiro seminário. Lembremos que Lacan afirma que se trata,
na psicose, de um amor morto e que é a partir daí que proporá investigar as diferenças
estruturais entre a neurose e a psicose. Retomemos o trecho em questão:

A que se vê a diferença entre alguém que é psicótico alguém que não o é? Ela se
deve a isto: para o psicótico, uma relação de amor é possível abolindo-o como
sujeito, enquanto ela admite uma heterogeneidade radical do Outro. Mas esse
amor é também um amor morto (1955-56:287).

Lacan tenta nesta lição depreender a especificidade da estruturação significante


na neurose e na psicose, de modo a explicar como age a linguagem dos sintomas para
cada um. Há, na neurose, um significante último que é o responsável e a fonte da
significação. É somente a partir desse significante último que os homens têm acesso às
vertentes macho e fêmea da sexualidade. Lacan considera que a realidade implica a
integração do sujeito em um certo jogo significante. Poderíamos dizer, portanto, que na
neurose é o Nome-do-Pai que dá a justa medida, aquela que permite ao sujeito circular
pelo sentido do senso comum.
Na psicose, o sujeito fica vulnerável à linguagem, podendo, durante o surto, ser
habitado por ela. Lacan tenta aqui ligar o núcleo da psicose a uma relação do sujeito
com o significante sob o seu aspecto mais formal, ou seja, o de significante puro.
Mostra, então, que, o ponto crucial da psicose de Schreber encontra-se na ausência do
“significante macho primordial” (1955-56:286). Frente a essa ausência não resta para
ele “nenhum outro meio de realizar-se, de afirmar-se como sexual, senão admitindo-se
como uma mulher, como transformado em mulher” (1955-56:286).
Lacan teoriza a desestabilização na psicose como ocasionando uma retração no
esquema L, o que tem por efeito fazer com que o eixo imaginário se recubra sobre o
eixo simbólico (Sa'----- Aa). Fazendo referência à teoria de Jung, Lacan assinala que
esse recobrimento acarretará toda uma série de fenômenos imaginários concernentes ao
103

ser sexual do sujeito e à representação do que é para ele, dependendo do sexo ao qual
pertença, ser homem ou ser mulher.

(...) devemos fazer recobrir-se em nosso esqueminha a relação amorosa com o


Outro enquanto radicalmente Outro, com a situação em espelho, de tudo o que é
da ordem do imaginário, do animus e da anima, que se situa segundo o sexo
num lugar ou em outro (1955-56:287).

Para explicar a relação amorosa do sujeito com esse Outro radicalmente Outro,
ou seja, absoluto, sem furo, Lacan recorre à teoria medieval do amor, em particular
aquela que fala da relação extática com a alteridade. Quinet (1998:80) mostra que o
termo êxtase refere-se àquilo que está fora de si, que se transporta para fora de si
mesmo. Para essa teoria, o outro, enquanto diferente de si (ou em termos lacanianos
radicalmente Outro), é uma condição necessária para amar. Esse amor é mortificante,
nele o sujeito perde sua alma, sacrifica suas inclinações em nome das do Ser Absoluto.
A possessão espiritual do amor de Deus encontra equivalência com o gozo: se Deus
morreu por amor aos homens, então para amar é necessário anular-se frente ao Outro do
amor.
O amor-paixão do idealismo apaixonado e do platonismo é comparado, nessa
mesma via, à loucura. A paixão da imagem será comparada à fascinação que exerce o
cinema, lugar por excelência da loucura da pura miragem. Lacan cita o ditado popular
segundo o qual “quando se está apaixonado se é louco”(1955-56:166) de forma a
mostrar que na paixão à primeira vista, assim como em determinados momentos da
psicose, pode ocorrer uma coincidência entre o objeto de desejo e a imagem
fundamental. A ligação mortal da paixão refere-se, como desenvolveremos
posteriormente, a uma espécie de conjunção entre imagem e objeto.
Para tornar isso mais claro, relembremos rapidamente o exemplo da neurose. A
interrogação sobre o desejo do Outro desconecta o sujeito da fixidez das imagens. O que
libera o sujeito da captura das imagens na neurose é o falo. O falo é para a neurose uma
maneira de significar a falta vindo, portanto, a ocupar o lugar daquilo que falta às
imagens. O neurótico tem assim uma certa idéia de que as imagens recobrem o
desconhecido.
Na psicose as imagens não são recobertas com o brilho fálico, o desconhecido
pode, portanto, vir à tona e revelar-se, o que equivale, neste ponto das teorizações de
Lacan, a dizer que o significante torna-se real.
104

O psicótico não pode apreender o Outro a não ser na sua relação com o
significante, ele se fixa apenas numa casca, num invólucro, numa sombra, na
forma da fala. Ali onde a fala está ausente, ali se situa o Eros do psicotizado, é
ali que ele encontra seu supremo amor. (1955-56:289)

O supremo amor do psicótico deve ser entendido aqui como um amor morto,
como um amor que carrega a morte como tema central. A falta de colorido fálico na
imagem faz aparecer aquilo que ela mesma vela - i(a) – ou seja, o sujeito como a, como
dejeto, resto. Comparando a linguagem delirante de Schreber à linguagem do amor,
Lacan destaca a expressão “assassinato d’alma” demonstrando, em sua relação com a
linguagem de amor das preciosas, a aniquilação subjetiva pela qual passa Schreber em
seu amor a Deus.
O amor morto é aquele que pode exibir a morte do sujeito em seu horizonte.
Schreber vivenciou esse tempo de morte subjetiva após ouvir a injúria Luder que, dentre
outras acepções, pode significar carcaça. O significante no real acarreta, assim, a queda
da casca que recobre as imagens, fazendo emergir o objeto-resto. Há aí um tempo de
mortificação subjetiva até que o trabalho do delírio faça o sujeito construir um novo
nome de sujeito. Com o trabalho do delírio, Schreber passa de objeto a sujeito desse
gozo a partir da construção de uma denominação: Mulher de Deus. Entretanto, Schreber
não sai incólume desse amor, ficando, após sua morte subjetiva, mortificado em sua
existência.
Retomando a relação extática com o Outro, Lacan mostra que, na psicose, a
heterogeneidade radical do Outro corresponde a uma presença constante, a um Outro
real, que coexiste com o sujeito: “ao invés de estar só, quase nada há de tudo o que o
cerca que, de certo modo, ele não seja. Em compensação, tudo o que ele faz existir
nessas significações é de alguma maneira vazio dele próprio”. (1955-56:95) Nessa
mesma via, Lacan mostra que a relação de Schreber com Deus afigura-se “mais como
uma mistura do que uma união do ser com o ser” (1957-58a:582), mistura que reúne
voracidade e asco e que, nesse sentido, deve ser posta em oposição ao júbilo da
experiência mística. Veremos que o aspecto mortificante do amor poderá, com as
teorizações acerca do objeto a na psicose, ser considerado como um dos nomes do
efeito, no sujeito, do gozo do Outro na psicose.
105

A solução delirante

Investigaremos a solução delirante schreberiana a partir do esquema I, que é o


esquema da estabilização do delírio de Schreber. Queremos com isso investigar se a
estabilização pelo delírio possibilita novos ordenamentos do sujeito em sua relação com
os outros, trazendo alguma possibilidade inusitada no que concerne ao amor. Vejamos
rapidamente o esquema que localiza o campo da realidade na neurose, o esquema R,
para depois nos atermos ao esquema I.
O esquema R é composto por dois triângulos: um imaginário ( , i, m) e outro
simbólico (P, M, I) que estão relacionados entre si.

Tripé imaginário:
ϕ = falo
i = imagem especular
m = moi (eu)

P = Nome-do-Pai
M= Mãe (Outro materno)
I = ideal do eu

Numa famosa nota de rodapé, Lacan (1957-58a:559, n.16) mostra que o campo
da realidade, contida no quadrilátero iMIm, só se mantêm pela extração do objeto a. Isso
significa que o campo da realidade na neurose é sustentado pela fantasia e que a
estabilidade desse campo só é preservada se esse objeto for extraído.
Na psicose, o objeto não é extraído nesses mesmos moldes, o que torna o campo
106

da realidade instável: os objetos olhar e voz2, perdidos na neurose, podem ser


desvelados. O objeto ‘indizível’ na neurose pode ser desvelado na psicose, retornando
por exemplo no real como voz e o objeto ‘invisível’ como olhar. Lembremos que o que
marca a incidência do real na psicose é uma presença, como assinala Lacan em relação
ao Deus de Schreber: “Ele é em primeiro lugar presença. E seu modo de presença é o
modo falante” (1955-56:146).
Em Schreber, a organização do delírio, sua escrita e publicação em livro
cumprem uma função de cura, vindo a servir por algum tempo de suplência ao Nome-
do-Pai. No que diz respeito à construção e organização do delírio, Lacan considera,
neste ponto de sua obra, que existe na psicose a possibilidade de criação de uma solução
similar à da neurose. É o que ele chama de metáfora delirante, que vem em substituição
à metáfora paterna ausente, organizando conseqüentemente o Outro. Como dissemos, a
teoria da psicose dos anos cinqüenta baseia-se, em grande parte, no modelo da neurose.
O delírio de Schreber é contido por Lacan no esquema I, uma retorsão do esquema R,
para tratar da estabilização de sua psicose.

A idéia de ‘ser uma mulher se submetendo à cópula’ era primeiramente


insuportável para Schreber. Ela anuncia o desencadeamento de sua psicose e, ao mesmo
tempo, indica uma solução “prematura” (1957-58a:572). Schreber passa então por um
período de desconstrução da realidade, assistindo a um verdadeiro crepúsculo do

2
É no seminário XI que Lacan situará o olhar e a voz como os objetos da pulsão escópica e invocante
perdidos na neurose, devido à extração do objeto a, e que retornam desvelados na psicose. Cf. LACAN J.,
Le Séminaire, livre XI: Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (1964), Paris, Seuil: 1973:
80 e 232.
107

mundo. Após ler a notícia de sua morte em um jornal e constatar seu falecimento,
Schreber segue por um período de reconstrução delirante e põe em ação o trabalho de
redação de suas memórias. O gozo é localizado no Outro, representado por Deus. Com a
metáfora delirante ‘mulher de Deus’, Schreber encontra um mundo possível de habitar,
e um lugar de onde pode obter um gozo por sua vez também possível, através de sua
prática transexual: “na impossibilidade de poder ser o falo que falta à mãe, resta- lhe a
solução de ser a mulher que falta aos homens” (1957-58a:572). É preciso assinalar,
contudo, que a morte subjetiva não deixou de rondar a estabilização de Schreber, como
ficou comprovado alguns anos mais tarde em sua história.
Retomemos rapidamente o esquema R da neurose. Lacan indica que o Nome-do-
Pai redobra, na neurose, no lugar do Outro “o próprio significante do ternário simbólico,
na medida em que ele constitui a lei do significante” (1957-58:578). O Outro se
desdobra, portanto, a partir dessa definição, entre o lugar do significante – o ponto M do
esquema R – e o lugar da lei – ponto P -. O objeto a, perdido com a inscrição do Nome-
do-Pai, será buscado pelo sujeito neurótico em sua fantasia.
Vimos que, na psicose, a extração do objeto a não se dá nos termos da neurose.
No que concerne ao delírio, vimos que ele promoveu para Schreber um movimento de
oscilação entre a posição de objeto que falta ao Outro, designado pela alucinação Luder,
e a posição de sujeito possibilitado pela metáfora delirante (Mulher de Deus). Por
analogia à neurose, o delírio tenta restituir a oscilação encontrada na fantasia: ∃&∀.
Entretanto, como indica Laurent (1989), a fantasia na psicose permanece do lado do
Outro e não do sujeito. Cabe dizer que, para o psicótico, o desejo do Outro pode
equivaler a uma vontade de gozo ilimitada, o que, mais uma vez, nos remete às
particularidades do amor e, mais especificamente, da transferência na psicose.
A solução delirante de Schreber consiste em criar um contorno para Po e , a
partir da deformação e da infinitização das linhas simbólica M-I e imaginária m-i. No
estágio final de seu delírio, o Ideal do eu (A Mulher) assume o lugar do Outro (Deus): a
Deus, enquanto Outro, faltará sempre Schreber, enquanto Mulher. Laurent (1989)
aponta ainda que a solução delirante é sempre parcial e, embora o delírio constitua em si
mesmo um universo, comporta sempre um elemento excluído de seu campo, aquilo que,
como dissemos, Lacan teorizará mais tarde como sendo o objeto a.
108

A solução delirante de Schreber parece separar os campos do gozo e do amor.


Como vimos no primeiro capítulo, apesar do delírio e dos efeitos catastróficos que ele
provoca na sustentação do mundo, o laço de Schreber com sua esposa não é abalado.
Lacan trabalha a estabilização delirante de Schreber, com a retomada conseqüente de
sua vida, a partir do esquema I.

No esquema I, a manutenção do trajeto Saa'A simboliza a opinião que


formamos, pelo exame desse caso, de que a relação com o outro como
semelhante, e até uma relação tão elevada quanto a da amizade, no sentido em
que Aristóteles faz dela a essência do laço conjugal, são perfeitamente
compatíveis com a relação fora-do-eixo com o grande Outro e com tudo o que
ela comporta de anomalia radical. (1957-58a:580)

Há então uma simultaneidade entre a relação de Schreber com Deus e com sua
esposa, mas como isso ocorre? O que possibilita e até mesmo sustenta a compatibilidade
entre essas duas relações? Se no eixo simbólico temos uma mistura do ser de Schreber
com Deus enquanto Outro, o que se produz no eixo imaginário? Que tipo de relação é
possível entre o psicótico e seu semelhante?
Como aponta Pequeno (2000), Lacan coloca em a’ o endereçamento de Schreber
à sua esposa como uma base sobre a qual se apóia o endereçamento mais geral em a.
Podemos inferir assim que a relação de Schreber com sua esposa está no cerne da
suplência que lhe permite retomar suas relações com o mundo. Queremos introduzir
como hipótese a idéia de que as cartas que Schreber escreveu à sua esposa, “a quem foi
dedicado o projeto inicial de seu livro” (Lacan:1957-58a:580), foram a experiência
piloto necessária para viabilizar a possibilidade da escrita mais geral de suas Memórias.
Parece-nos que se o delírio não impede o amor enquanto amizade é porque não
haja talvez uma relação tão estreita entre delírio e amor. A tendência com Freud seria
pensar que é a reorganização do mundo através do delírio que permite a Schreber
retomar seus laços amorosos. Ou seja, através de uma estabilização simbólica o sujeito
remaneja seus laços imaginários. Parece-nos, entretanto, que, para além do trabalho de
significação do delírio, como uma resposta possível ao gozo do Outro, o amor pelo
semelhante ajuda Schreber a escrever. Vejamos o que ele mesmo diz a respeito:

À medida que avançava no desenvolvimento do presente trabalho, ocorreu-me a


idéia de que ele talvez pudesse ter interesse também para círculos mais amplos.
109

Apesar disso, abandonei-a desde o início porque o seu primeiro motivo foi
orientar minha esposa sobre as minhas experiências pessoais e concepções
religiosas. Esta pode ser também a razão pela qual considerei conveniente sob
muitos aspectos dar explicações circunstanciadas de fatos cientificamente já
conhecidos, germanizar palavras estrangeiras etc., o que seria na verdade
dispensável para o leitor culto. (1995:Nota preliminar:29)

No trecho acima citado, fica claro que Schreber não colocava sua mulher como
uma figura do saber (ela não era uma leitora culta, como ele mesmo afirma).
Acreditamos que é justamente por ela não ter ocupado para o Presidente um lugar de
saber é que ele se viu impelido a instruí-la, redigindo suas memórias e dedicando-lhe o
projeto inicial do livro. Sabemos, entretanto, que Schreber faz, em carta aberta, um
pedido a Flechsig, seu primeiro médico, de que submeta seu livro a um exame
benévolo. Lembremos que Flechsig constituiu, por ter encarnado o lugar do saber, o
pivô do desencadeamento de Schreber, vindo a ocupar inicialmente o lugar do
perseguidor. Se o delírio cura Schreber de sua transferência avassaladora à Flechsig,
algo entretanto ainda resta e insiste, no final da escrita de seu livro, do endereçamento
transferencial que ele lhe fez.
A relação de Schreber com o seu primeiro médico e com a sua esposa nos dá
indícios do lugar a ser ocupado pelo analista na transferência na psicose. Sugerimos
adotar provisoriamente a seguinte fórmula: o analista não deve ser nem tão burro quanto
a esposa de Schreber e nem tão brilhante quanto seu médico. De todas as formas, há
algo na falta de conhecimento de sua esposa que incentiva Schreber a escrever. Além
disso, é através do endereçamento inicial à esposa que novos endereçamentos se
efetuam. Se o amor de Schreber por sua esposa, ao contrário do amor de transferência
por Flechsig, sobrevive à construção do delírio, a certeza de saber que era dirigida a
Flechsig ainda faz apelo para que este avalize sua solução.
Se o delírio remaneja as relações do sujeito com o mundo, ele não é em si uma
solução definitiva. Como já apontamos anteriormente, há uma fragilidade no delírio, um
ponto de suspensão que deixa o sujeito sempre no risco de se apagar. Indicamos, no
primeiro capítulo, que a carta ao professor Flechsig é um mapa importante da
transferência na psicose, evidenciando a importância, para a estabilização da psicose
pelo delírio, de que alguém se deixe ser colocado no lugar de destinatário de suas
produções.
110

Não digamos que o louco é alguém que vive sem o reconhecimento do outro. Se
Schreber escreve essa obra enorme é justamente para que ninguém ignore a
respeito do que ele sofreu, e mesmo para que, nessa circunstância, os
especialistas venham verificar em seu corpo a presença dos nervos femininos
pelos quais progressivamente ele foi penetrado, a fim de objetivar a relação
singular que foi a sua com a realidade divina. Isso se propõe justamente como
um esforço para ser reconhecido. Já que se trata de um discurso publicado, um
ponto de interrogação é suscitado pelo que pode bem querer dizer, nessa
personagem tão isolado por sua experiência que é o louco, a necessidade de
reconhecimento. O louco parece à primeira vista distinguir-se por não ter
necessidade de ser reconhecido. Mas essa suficiência que ele tem de seu próprio
mundo, sua autocompreensibilidade que parece caracterizá-lo, não deixa de
apresentar alguma contradição. (19555-56:94)

Justamente porque o delírio aponta uma contradição, é possível que um sujeito


psicótico seja levado a comunicá-lo a um analista, buscando um partenaire para suas
elaborações de saber. É o que desenvolveremos a partir das teorizações lacanianas
acerca da questão do gozo e da transferência na psicose a partir da elaboração do objeto
pequeno a.

3.2 Contribuições da teoria do objeto a para a transferência na psicose

Da erotomania mortífera a uma transferência possível na psicose

Nos anos cinqüenta, Lacan aponta como via de investigação para os analistas o
trabalho clínico com a psicose. Afirma que cabe ao analista “ouvir aquele que fala,
quando se trata de uma mensagem que não provém de um sujeito para além da
linguagem, mas de uma fala para além do sujeito” ( 1957-58a:581). Isso não o impede,
entretanto, de apontar para alguns riscos transferenciais, principalmente quando se toma
pré-psicóticos em análise. A situação analítica pode favorecer o desencadeamento de
uma psicose, na medida em que chama o sujeito a ‘tomar a palavra’:

Acontece de recebermos pré-psicóticos em análise, e sabemos no que isso dá –


isso dá em psicóticos (...) uma psicose (...) é desencadeada quando das primeiras
sessões de análise um pouco acaloradas, a partir das quais o sentencioso analista
se torna rapidamente um emissor que faz ouvir ao analisado durante o dia todo o
que deve fazer e não fazer (1955-56:285).

Com isso, Lacan aponta que a manobra do analista não deve ser a mesma no que
concerne ao tratamento de um neurótico e de um psicótico. Embora não desenvolva essa
111

questão nos anos cinqüenta, deixa algumas indicações importantes para serem
trabalhadas. Lacan justifica a sua decisão de interrupção na investigação do tema como
uma estratégia prudente, pois considera que qualquer teorização sobre o manejo da
transferência na psicose seria prematura, em um momento no qual toda a literatura
psicanalítica sobre o tema não fez nada além do que retornar a um ponto anterior à obra
de Freud. Assinala, entretanto, que, no que concerne ao tratamento das psicoses, é
impensável a utilização da técnica analítica tal como ela foi pensada a partir das
neuroses, pois isso seria “tão estúpido quanto esfalfar-se nos remos quando o barco está
encalhado na areia” (1957-58a:590).
Em seu seminário sobre as psicoses, fornece uma outra indicação pontual sobre
o papel do analista na psicose. Retoma, para isto, a questão do lado do analisante,
ressaltando que o psicótico “é um mártir do inconsciente, dando ao termo mártir seu
sentido, que é o de testemunhar. Trata-se de um testemunho aberto” (Lacan, 1955-
56:153). Mas de que lugar o analista recebe esse testemunho? Lacan aponta que
devemos nos contentar em passar por ‘secretários do alienado’ (1955-56:253) e tomar
ao pé da letra o que ele nos conta. Como indica Laurent (1997), fazer-se destinatário do
testemunho do psicótico é mais do que exercer a função de um simples ‘tomador de
notas’. O destinatário é aquele que, ao acolher e privilegiar algumas coisas em
detrimento de outras, toma uma certa posição.

Podemos entendê-la [a expressão secretário do alienado] no sentido de copista,


mas também no sentido de Hegel quando diz ‘O filósofo é o secretário da
história’. O secretário é aquele que detém o conceito, ele escolhe se fazer
destinatário da história, escutar isso ao invés daquilo (Laurent:1997:189).

Se em 1957, Lacan não queria ir para além de Freud no que tange a questão do
tratamento da psicose, em 1966, a partir de sua formalização do objeto a, introduz a
questão do gozo na psicose e suas conseqüências para a transferência, ainda tendo como
base o caso Schreber. Segundo ele, Freud teve o mérito de introduzir a questão do louco
enquanto sujeito, na medida em que dá credito à fala do próprio Schreber ao se utilizar
de suas memórias como história clínica. Mas Lacan, por outro lado, adverte que
“escancarar uma porta aberta não é, em absoluto, saber para que espaço ela se abre”
(1966:220), sendo necessária a formulação e a sistematização da lógica que rege a
psicose.
112

A partir da relação de Schreber com Deus, Lacan precisa que este último ocupa
para Schreber a posição de Outro gozador. A partir disso, Lacan chega à definição de
que o delírio identifica na paranóia o gozo no lugar do Outro. Vimos, entretanto, que ser
o objeto puro do gozo do Outro não chega em si a constituir uma estabilização possível
para Schreber, provocando, ao contrário, sua morte subjetiva. Em relação à
transferência, Lacan adverte que o laço de Schreber com seu médico Fleschig, o coloca
como objeto de erotomania mortífera, mostrando que esse não é o lugar a ser ocupado
pelo analista na psicose. Precisa assim, a posição de objeto de gozo para o sujeito
psicótico na paranóia, indicando que o Outro é aquele que goza do sujeito.
Retomemos a teorização acerca das operações de alienação e separação
desenvolvidas no seminário sobre Os quatro conceitos. Lacan vai dizer que num
primeiro tempo, na alienação, teríamos um sujeito que não é nada, estúpido e inefável,
ao qual virá se inscrever um primeiro significante ♦ que o petrifica no campo
significante. É preciso então que venha, na separação, se inscrever um segundo
significante ♥ para que possa aparecer o sujeito como falta ∃.
Por analogia, poderíamos considerar que, na psicose, a segunda operação
introduziria uma diferença. Lacan utilizará a holófrase para exemplificar o que
sucederia mais especificamente na paranóia em relação ao par significante primordial.
Haveria para Lacan uma tomada em bloco do primeiro par significante, ocasionando
uma solidificação do par ♦− ♥. Esse fenômeno é nomeado, retomando um termo
freudiano, por Lacan (1964:215) de Unglauben, a recusa de um dos termos da crença
que designaria a divisão do sujeito.
Retomado o exemplo de Schreber, verificamos que a alienação pode ser
caracterizada no exercício constante de pensar ao qual Schreber se submete, uma
espécie de ligação compulsiva ao Outro. A versão psicótica da separação seria, neste
caso, o seu deixar-se cair no momento em que pára de pensar e que evidencia um
fenômeno de gozo. O trabalho delirante da psicose faz Schreber deslocar-se do lugar de
objeto do Outro e sustentar uma posição de sujeito de gozo. Schreber deve fazer, assim,
um exercício constante de forma a “nunca deixar que cesse nele uma cogitação
articulada” (1966:221), pois isso provocaria que seu ser se tornasse um “texto
dilacerado” (1966:221). Cabe a Schreber, portanto, o trabalho de manter-se
113

permanentemente conectado, on-line com o simbólico, para não se ver cair como dejeto,
como resto.
Na conversação de Arcachon (1997), foi proposto tomar a clínica do
desencadeamento em contraposição à clínica do desligamento do Outro. Essa indicação
faz com que devamos, no que concerne ao psicótico, levar em consideração não
somente fenômenos que atestam o parasitismo da linguagem, mas também procurar
evidências do gozo e de seu retorno fora do discurso. Essa perspectiva esvazia um
pouco a importância dos fenômenos elementares no diagnóstico de psicose, e alarga o
alcance deste último. A separação pela qual passa Schreber no momento em que pára de
pensar, o deixar-se cair, pode assim servir de ilustração para o momento em que o
sujeito se desliga do Outro. Nesse sentido, a tarefa do analista se torna um pouco mais
complexa, na medida em que os signos de desligamento do Outro poderão ser ínfimos,
devendo o analista, em seu trabalho, estar atento a eles de modo a identificá-los e alçá-
los à condição de elementos fundamentais.
O analista deve se fazer de destinatário e de ponto-de-basta de signos que por
vezes são ínfimos, sendo preciso, portanto, que haja de sua parte uma decisão de
considerar que há nisso uma entrada possível. Queremos assinalar que o desejo do
analista verifica-se assim como um ponto essencial e definitivo para a viabilidade da
prática clínica com as psicoses. Lacan (1964) situa o desejo do analista, como um
desejo de “obter a diferença absoluta” (247), condição única para que possa emergir “a
significação de um amor sem limite” (248). O desejo do analista é assim posto por
Lacan em continuidade com o amor que, paradoxalmente, renuncia a seu objeto. Essa
nos parece ser a condição e a marca singular do dispositivo analítico com relação à
transferência. Como indica Laurent (1997), “o amor extrai um saber” (274),
evidenciando que aquilo que aparece no senso comum sob o nome de amor torna-se,
para o dispositivo analítico, instrumento de conhecimento.

Algumas considerações sobre o ato na psicose

Tomando as indicações de Lacan (1957-58a), podemos pôr em continuidade o


ato agressivo de Aimée, analisado no segundo capítulo, e o ato de defecar de Schreber.
114

O interesse por esse procedimento é revelar o ato de detenção que é produzido nos dois
exemplos. No caso Aimée (1946), Lacan considerou que foi somente após o ataque a
Mme Z que ela conseguiu se estabilizar. É interessante observar que Miller (2003)
contradiz um pouco esse ponto de vista, mostrando que Aimée não abandonou o delírio,
apenas o desenvolveu em um outro registro.

Lacan acreditava realmente que Aimée havia sido delirante e em um dado


momento deixou de sê-lo. E depois pôde trabalhar como empregada na casa do
pai de Lacan. De todas formas, há documentos dela que fazem pensar que o
delírio mudou de registro, mas não desapareceu, continuou discretamente.
(Miller:2003: 283)

A perspectiva de Miller indica que também o delírio deverá ser revisto com as
últimas teorizações do ensino de Lacan. Se antes o delírio era considerado em sua
tentativa de construção de uma metáfora delirante, parece agora ser considerado não
tanto pela vertente da significação, mas como uma ficção atuando no registro de um
saber-fazer com a linguagem. Essa perspectiva fará com que o delírio seja pluralizado e
seu alcance revisto. Voltaremos a esse ponto.
É interessante observar que tanto o ato agressivo de Aimée quanto o ato de
defecar de Schreber produzem um ponto de detenção que os separa do Outro
persecutório, mas também da cadeia significante. À infinitização do delírio, Lacan vai
opor a reunião do sujeito em seu ato. No ato de defecar, Schreber sente “reunirem-se aí
os elementos de seu ser cuja dispersão no infinito de seu delírio produz sofrimento”
(1957-58a:589-nota 40). Vemos, portanto, que, o psicótico pode, a partir de um ato,
tentar se separar do objeto imundo com o qual identifica o seu ser. A criação artística se
assevera, em contrapartida, como uma solução estratégica, demonstrando que pode ser
apaziguador condensar o gozo em um objeto fora do sujeito.

Os homens livres, os verdadeiros, são precisamente os loucos. Não há demanda


de pequeno a, seu pequeno a, ele o tem, é o que ele chama de vozes, por
exemplo. (...) Ele não se situa no lugar do Outro pelo objeto a, o a, ele o tem a
sua disposição. (...) ele tem a sua causa em seu bolso. (Lacan:1967)

Se o psicótico tem o objeto a à sua disposição, todo o problema residirá nas


manobras que o sujeito precisará realizar para poder lhe dar um uso. Ao psicótico
115

caberá, portanto, a difícil tarefa de lidar com essa não-extração. Lembremos que se o
Outro não está separado do gozo na psicose, isso significa que, para o psicótico, o Outro
pode ser real.
A passagem ao ato assinala um risco importante a ser considerado no caminho
empreendido pelo sujeito ao tomar a via do ato na psicose. A defenestração na
melancolia é um caso exemplar de passagem ao ato: nela, o sujeito se sente
impulsionado a se excluir da cena de sua fantasia e, ao pular pela janela para fora da
cena, cai como dejeto. Lacan chama de cena a cadeia significante da qual o sujeito se
desconecta no momento em que ele atravessa a janela. No momento em que se produz a
passagem ao ato, o sujeito se identifica com o objeto a.

Não é por nada que o melancólico tem uma propensão tal, e sempre realizada
com uma rapidez fulgurante, desconcertante, de se jogar pela janela. A janela,
enquanto nos lembra esse limite entre a cena e o mundo, nos indica o que
significa esse ato pelo qual, de algum modo, o sujeito faz retorno a essa
exclusão fundamental onde ele se sente, no momento mesmo em que se
conjuga no absoluto de um sujeito, do qual apenas nós, analistas, podemos ter
idéia, essa conjunção do desejo e da lei. (Lacan: 1962-3:126)

A idéia de Lacan é que o objeto a, suporte do desejo, não é visível para o


homem, só podemos, portanto, ter acesso a ele enquanto imagem i(a). O objeto a
encontra-se mascarado por uma imagem narcísica. O melancólico se ataca de forma a
tentar destruir em sua própria imagem aquilo que o transcende no objeto a. Já na mania,
é a não-função do objeto a que produzirá o descarrilhamento da trama significante:

Na mania é a não-função de a e não apenas seu desconhecimento que está em


causa. É essa alguma coisa pela qual o sujeito não é mais ancorado por nenhum
a, que o livra algumas vezes sem nenhuma possibilidade de liberdade à
metonímia infinita e lúdica pura da cadeia significante. (Lacan: 1962-3: 411)

Laurent (1989:118) assinala que a passagem ao ato da melancolia se junta com a


dispersão maníaca do sujeito na medida em que as duas atestam o parasitismo da
linguagem. Tanto a mania quanto a melancolia ligam-se à negatividade da linguagem,
seja em sua vertente de excitação mortal ou de passagem ao ato. Miller mostra que o
maníaco vive em “um presente demasiadamente estreito em relação aquilo que ele tem a
dizer, enquanto que o melancólico vive de certa forma um presente longo demais”
(2000:42). A relação com o objeto também é polarizada e comporta, nos dois extremos,
116

o luxo e o lixo: se o maníaco experimenta a si mesmo como um agálma delirante, o


melancólico, em contrapartida, ocupa o lugar de dejeto absoluto.

3.3 Fracassos e soluções do amor na psicose

Sobre a psicose e a sexuação

Em o Seminário livro 20, Lacan se dedica ao estudo das diferenças entre os


homens e as mulheres no que concerne ao sexual. Suas construções girarão em torno
das relações que cada sujeito entretém com o falo, mostrando que não há
complementaridade possível no amor. Alguns anos depois, Lacan, partindo da
dessimetria estrutural entre os sexos, propõe analisar a psicose sob a luz do amor:

Certamente que fui ao encontro da medicina porque eu tinha a suspeita de que


as relações entre os homens e as mulheres tinham um papel determinante nos
sintomas dos seres humanos. Isso me levou progressivamente em direção
daqueles que não conseguiram, já que podemos certamente dizer que a psicose é
uma espécie de fracasso no que concerne ao cumprimento daquilo que é
chamado ‘amor’. (Lacan: 1975:35)

De qual fracasso se trata aí? Com as últimas teorizações lacanianas, podemos


inferir que é do fracasso em adotar a solução típica, a norma padrão que viabilizaria o
encontro entre os sexos, ou seja, o amor como suplência à falta de relação sexual
(Lacan:1972-73:59). Chegamos aqui a um ponto importante de nossa tese: se há amor
na psicose, ele não se define como uma suplência à falta de relação sexual. Qual seria
então a função do amor na psicose? E o que dizer da transferência? Esperamos poder
desenvolver algumas indicações a esse respeito ao final de nosso trabalho.
Retomemos, por ora, as fórmulas da sexuação, tal como Lacan as desenvolveu
em seu seminário Mais, ainda:
117

Do lado esquerdo, temos a posição masculina e do lado direito, a feminina. Do


lado masculino, Lacan propõe que todos os homens sejam afetados pela castração. O
universal do conjunto dos homens existe, portanto, a partir de uma exceção: é preciso
que haja Um que venha fazer exceção a todo o conjunto dos homens. O pai da horda
primitiva aparece assim como o Homem não castrado, fazendo com que a função fálica
deva ter efeito para todo o resto do conjunto dos homens. O conjunto dos homens é,
portanto, finito.
Do lado feminino, não há um atributo que venha definir o conjunto das
mulheres, não há o significante do Outro sexo. Não há, do lado feminino, um
significante capaz de definir A Mulher: A Mulher, portanto, não existe. Falta a regra que
definiria o conjunto das mulheres a partir da exceção. Se não há universal que as reúna,
elas só podem ser definidas uma a uma. Por ter relação com o significante da falta no
Outro, as mulheres só podem ser logicamente não-todas inscritas na função fálica.
É somente a partir do falo enquanto significante que é possível apreender o que é
ser homem e o que é ser mulher. A relação entre homens e mulheres não pode ser
considerada como complementar já que não há uma relação possível de um sexo a
outro. O amor é, na neurose, aquilo que faz suplência à relação sexual que não existe
(Lacan:1972-73:59). O Nome-do-Pai é, portanto, a chave na neurose para a ausência de
relação entre os sexos.
118

Vimos que na psicose a função fálica é ausente, o recurso fálico não será,
portanto, utilizado pelo psicótico para se situar na partilha dos sexos. Há uma
impossibilidade lógica de que o psicótico se situe, no que concerne ao sexual, do lugar
de onde a proposição fálica é afirmada, ou seja, no conjunto dos homens. Do lado
feminino, vimos que também as mulheres são, mesmo que parcialmente, regidas pela lei
fálica. Os dois lugares restantes situam-se no alto da fórmula da sexuação. Do lado
masculino, o lugar do Pai primitivo, onde a função fálica é negada; do lado feminino, o
lugar de A Mulher que não existe. Vemos então que o psicótico será assim levado a se
posicionar no lugar daquilo que falta ao Outro.
Esse posicionamento trará também conseqüências no que concerne ao gozo, já
que o gozo enquanto sexual pressupõe que a lei fálica opere. Se o falo não faz efeito na
psicose, o gozo em questão será advindo de um Outro todo, absoluto ou, ao contrário,
de um Outro que não existe e, portanto, pulverizado, estilhaçado. Esse gozo é em si
mesmo fora-da-linguagem e só pode ser deduzido. Por recusar o falo, o sujeito psicótico
pode se ver compelido a encarnar o lugar da exceção. Vimos como Schreber foi levado
a encarnar A Mulher que falta aos homens, a Mulher de Deus.

Desenvolvendo a inscrição que fiz da psicose de Schreber por uma função


hiperbólica, poderia demonstrar, no que ele tem de sarcástico, o feito do
empuxo-à-mulher que se especifica pelo primeiro quantificador, depois de
precisar que é pela irrupção de Um-pai como sem-razão que se precipita, aqui, o
efeito sentido como de forçamento para o campo de um Outro a ser pensado
como o mais estranho a qualquer sentido. (1972:466)

O Nome-do-Pai se constitui, portanto, a partir de algo que lhe escapa, que


aparece aqui como o gozo hipotético do Pai da horda primitiva. A emergência de Um-
pai corresponde, portanto, à irrupção do Pai do gozo. Lacan indica que o gozo produz
como efeito uma passagem para um plano hiperbólico, ou seja, retomando o esquema I,
acarreta a invasão do infinito pelo gozo. Resta dizer que se os pontos convergem para o
infinito no plano hiperbólico, a estabilização do delírio de Schreber faz com que o
infinito em si mesmo continue inalcançável, fazendo como que o futuro seja adiado para
um para sempre assintótico.
Como mostra Pequeno (2000), há em Schreber uma coexistência com Deus, ao
passo que na neurose essa relação não é direta, pode-se apenas fazer acesso a alguns
representantes do infinito (profetas, oráculos...). O gozo transexualista de Schreber é
119

um gozo veiculado pela conjunção do objeto e da imagem. Ao olhar-se no espelho


vestido de mulher, Schreber goza. É interessante notar que, por exemplo, no caso
Schreber, não é apenas Schreber quem se feminiza, mas também seu Deus: "Esse Deus
parece ser também a sombra de Schreber. Ele é atingido por uma degradação imaginária
da alteridade, o que faz com que ele seja golpeado assim como Schreber de uma espécie
de feminização" (1955-56:116). Schreber é impelido a fazer um culto a feminilidade:
observa-se no espelho vestido em roupas femininas e através dessa prática obtém um
gozo:
(...) se me fosse possível estar sempre desempenhando o papel de mulher a jazer
em meus próprios abraços amorosos, estar sempre modelando minha aparência
em formas femininas, estar sempre contemplando retratos de mulheres, e assim
por diante. (Schreber:1995:284-5)

A hipótese freudiana acerca da homossexualidade schreberiana será superada


por Lacan que caracterizará o fenômeno como sendo uma prática transexualista, ligada
não a uma escolha de objeto, mas a uma tentativa de sexuação. Miller (2001) aponta na
mesma linha que o transexualismo em geral assevera-se como uma invenção de
identificação que consiste em se tomar por mulher quando na realidade anatômica se é
homem. Como apontou Lacan, o transexualismo deve ser considerado em sua relação
com a psicose e com a foraclusão:

Vocês sabem que o transexualismo consiste em um desejo muito enérgico de


passar de qualquer maneira ao Outro sexo, mesmo que seja fazendo-se operar,
quando se está do lado masculino. (lição de 20/01/1971: inédito)

O sujeito se mostra, no transexualismo, como detendo o objeto “cujo brilho,


cuja cintilação faria o interesse universal, daí o exibicionismo, o gosto pelo palco”
(Czermak:2004:53). O sujeito e o objeto permanecem ligados por um laço indissolúvel,
não há separação possível. Lacan demonstrou que a imagem corporal não é apenas uma
imagem, mas uma concepção de corpo i(a), a alma. Vemos, então que ao fazer coincidir
sua própria imagem com o objeto, o psicótico realiza a reunião impossível entre sujeito
e objeto. O transexualismo dá assim a idéia de como a paixão da alma pode anular o
amor, enquanto suplência de uma falta, na psicose. Se o amor é aquilo que supre a
ausência de relação sexual na neurose, o transexual faz existir, através da paixão da
120

alma, A Mulher. Note-se aqui que o gozo sexual é anulado, o transexual, ao contrário do
travesti, não parece interessar-se tanto pelo que diz respeito ao sexual.

A paixão do transexual é ali loucura de querer liberar-se desse erro: o erro


comum que não vê que o significante é o gozo e que o falo é, disso, apenas o
significado. O transexual não quer mais ser significado falo pelo discurso
sexual, que, eu o enuncio, é impossível. Ele só se equivoca por querer forçar o
discurso sexual, que, por ser impossível, é passagem para o Real, por querer
forçá-lo pela cirurgia. (Lacan: lição de 8/12/1971)

O transexual pode, movido pela paixão da alma, ser levado a extrair seus órgãos
sexuais na busca da infinitude, da anulação de qualquer furo possível. Czermak (1996)
assinala que a questão do transexual refere-se à busca de uma identificação sexuada e,
por isso, a retirada no real do corpo dos órgãos sexuais não costuma necessariamente
vir acompanhada de uma estabilização. Segundo este autor, o transexualismo deve
assim ser posto em continuidade com o empuxo-à-mulher que, como tal, tende a uma
infinitização. O transexual busca eternamente a imagem ideal que viria a corporificar A
Mulher que falta aos homens.
O transexual visa, com a operação cirúrgica, abolir qualquer falta. É preciso
assinalar, contudo, que as automutilações que acontecem com alguma freqüência em
pacientes psicóticos, revelam-se, na via oposta, como tentativas de fazer um furo se
operar a partir da extração de um resto no corpo. Justamente por não conseguir efetuar
essa operação no simbólico, o psicótico pode ser ver impelido a realizar essa operação
reiteradamente no real.
Ao considerar a saída do transexual diante do enigma do sexo, Lacan abre uma
outra via de investigação. Aponta que podem haver outras formas, que não apenas a
infinitização do empuxo-à-mulher, para dar conta das invasões do real do gozo. Isso
ficará mais claro no final do ensino de Lacan quando, a partir da solução joyceana, a
invenção ganhar papel de destaque na psicose.
O psicótico pode usar de recursos inventados para lidar com o corpo e com a
linguagem. Como indica Miller, “o sentido do termo ‘invenção’ é, nesse caso, o de
uma criação a partir de materiais existentes. Eu atribuiria de boa vontade à invenção o
valor de bricolagem” (2003:6). É preciso indicar que, como desenvolveremos a seguir,
trata-se, na psicose, de inventar algo que faça para o sujeito função de ponto de basta,
121

seja na sua relação com o corpo, caso do esquizofrênico, seja em sua relação ao Outro,
como o demonstra o paranóico.

Sobre a psicose e seus enlaces

O último ensino de Lacan baseado na teoria do nó borromeano reformula o


edifício teórico que sustentava a primazia do simbólico na constituição do sujeito e que
atribuía à psicose um déficit no nível simbólico em relação à neurose. Optamos por não
desenvolver os desdobramentos da teoria topológica dos nós nas modificações teóricas
sugeridas neste último período da obra de Lacan para o ensino da psicose, pois isto
alargaria e tornaria demasiadamente complexo o nosso estudo.
É importante indicar que, nos anos setenta, Lacan passa a conceber o simbólico
como um registro que se apresenta inicialmente como um enxame (homofonia em
francês entre essain e S un) de S1s desconexos. Se o significante não tem em princípio
significação, ele não pode fazer de início cadeia. Essa perspectiva despatologiza em
uma certa medida alguns fenômenos característicos da psicose, como a alucinação, e
retira seu traço deficitário em relação à neurose. O significante isolado é na verdade
uma marca da estrutura da linguagem e não de um processo mórbido.
A ênfase repousará, portanto, menos nos índices de uma falta de organização
prévia e definitiva da linguagem e mais nos artifícios utilizados pelos diferentes sujeitos
para fazer cadeia, ou seja, para produzir suas significações. A significação na linguagem
não pode mais ser concebida como algo dado a priori, devendo ser moldada a partir de
um elemento que será usado para ordená-la. É ai que o fenômeno elementar desvela a
relação primordial do sujeito à linguagem: tempo em que o simbólico não faz cadeia de
sentido e aparece como significante isolado.
Vimos que a estrutura da linguagem é considerada aqui como sendo
primordialmente desencadeada, fora da significação. A teoria do nó borromeano
modifica, portanto, o enfoque acerca da constituição do sintoma na neurose e na
psicose. A psicose torna-se o exemplo princeps, atestando, com a alucinação, a relação
primordial do sujeito ao significante. Essa teoria modifica, portanto, a ênfase acerca da
constituição do sintoma: ela não recai mais sobre os efeitos de significação (neurose) ou
sobre uma significação fora da dialética (psicose), o sintoma passa a ser pensado no
122

registro de uma escrita.


Lacan compara neste ponto de sua obra a alucinação na psicose com o amor na
neurose. O psicótico, segundo Lacan, crê nas vozes, elas lhe falam e isso lhe concerne.
No amor da neurose, o homem pode crer em sua mulher ao ponto de tomar a sua fala
como a verdade de seu inconsciente: “acredita-se no que ela diz. É o que se chama
amor. E é no que qualifiquei, numa ocasião, de cômico. É o cômico bem conhecido, o
cômico da psicose: é por isso que nos dizem frequentemente que o amor é uma loucura”
(Lacan: lição de 21/01/75).
A organização da linguagem passa a não pressupor mais a primazia do simbólico
com o Nome-do-Pai, mas depende da amarração dos três registros: Real, Simbólico e
Imaginário. Em cada um dos três registros, encontram-se três termos: ex-sistência,
consistência e buraco. Esses três termos comuns fariam com que os registros ficassem
indistintos entre si. Lacan formula a partir disso que o nó de três tende a soltar-se, sendo
então preciso uma ação suplementar que ordene e permita a distinção dos registros.
Para que se faça nó é necessário supor que os três registros se desataram, ou
melhor, o nó só pode ser construído a partir de uma ruptura. Lacan demonstrou, em RSI,
que o nó de três tende a se soltar, sendo por isso necessária uma ação suplementar que
amarre os três registros, permitindo sua ordenação e sua distinção: “nosso Imaginário,
nosso Simbólico e nosso Real estão talvez para cada um de nós ainda num estado de
suficiente dissociação para que só o Nome-do-Pai faça nó borromeano e mantenha tudo
unido” (Lacan:lição de11/02/75).
Deste modo, podemos inferir que se a linguagem não é unívoca quanto ao
sentido, cada sujeito será levado em sua análise a produzir um sentido incomum. É nesta
corrente que Miller (1993) propôs que todos os discursos são formas de defesa contra o
real, o que ele nomeia de uma clínica universal do delírio. Todos deliram já que todos
falam do que não existe. A tese de Lacan supõe portanto uma foraclusão generalizada
própria à estrutura da linguagem. O falasser (parlêtre) cria artifícios para fazer
suplência ao furo irredutível da linguagem, fazendo nó dos três registros. Essa
perpectiva nos leva a considerar os neuróticos como aqueles que aderiram à solução
padrão, ao ‘delírio compartilhado’ do Pai.
No Seminário XXIII, “O Sinthoma” (1976), Lacan faz equivaler o Pai ao
sinthoma, ou seja, amplia a possibilidade de soluções estabilizadoras para os sujeitos,
123

fazendo da solução neurótica apenas mais uma entre outras. O sinthoma pluraliza a
possibilidade de invenções que sirvam de ponto de basta para os sujeitos. O sinthoma
faz de quarto elemento, responsável pela amarração dos registros do Real, do
Imaginário e do Simbólico, fixando um gozo. Nesse sentido, há uma relação entre o
sinthoma e a letra, na medida em que o primeiro também faz um laço de fixação entre o
significante e um resto de gozo.
Importa, portanto, recolher as soluções encontradas pelos sujeitos para gozar de
seu inconsciente. Cabe, então, ao sinthoma sustentar a articulação entre uma operação
significante e suas conseqüências sobre o gozo do sujeito. A solução neurótica localiza
um gozo que será tratado em termos de significado. O Nome-do-Pai é apenas um dos
recursos possíveis, embora não seja em si mesmo uma solução: é preciso saber-fazer
com o seu sinthoma. Isso equivale, então, a dizer, como assinalou Lacan, que o
sinthoma precisa alcançar uma função de nomeação, sendo então possível “prescindir
do Nome-do-Pai, à condição dele se servir”. (lição 13/04/1976)
Lacan analisa, a partir do estudo da obra de James Joyce, o valor de sinthoma
que toma a escrita para ele, através de sua relação com a linguagem, com sua arte. O
sinthoma evita o desencadeamento psicótico em James Joyce. As últimas formulações
teóricas acerca da psicose indicam direções a serem percorridas para o estudo da psicose
não desencadeada e suas formas de amarração dos três registros. Além disso, trazem à
tona a discussão acerca da diferença existente entre neurose e psicose não
desencadeada. Como dissemos, a neurose não será mais vista como paradigma, mas
como uma solução padrão para algo que concerne a todos os seres falantes.

James Joyce e o amor

Se, como vimos, o amor na neurose tem como função suprir a falta de relação
entre os sexos e, como assinalamos, a solução neurótica assevera-se apenas como uma
das soluções possíveis para dar conta da amarração do Real, do Imaginário e do
Simbólico, poderíamos então considerar que o amor, tal como o conhecemos, não passa
de um mito neurótico? Se, como indicou Miller (1993), todo o mundo delira, não seria
justamente o amor ‘normal’ um delírio de massa da neurose?
124

É um fato clínico que os psicóticos se ocupam do amor. Freud já demonstrou


que o delírio paranóico baseia-se em uma lógica amorosa onde o outro pode tomar o
lugar de rival, de amante ou de perseguidor. No primeiro capítulo, demonstramos que
essa não é a posição final do delírio, mas, ao contrário, configura-se como a posição
inicial na qual, como desenvolvemos ao longo deste capítulo, o sujeito se vê colocado
no lugar de objeto de gozo do Outro. Pudemos também demonstrar, ao longo dos três
capítulos, que a solução do delírio paranóico concilia o sujeito e o Outro, mas ao preço
de uma espécie de mistura entre o dois, na qual o sujeito é levado a ocupar o lugar de
sustentação do Outro. O sujeito, ao fazer-se de sujeito do gozo do Outro, pode encontrar
o amor como um nome compensatório para os estragos sofridos nesse trabalho de
construção de um lugar de onde lhe seja possível existir.
Contudo, o amor-gozo do Outro conserva a posição narcisista do sujeito: tudo
continua a girar entre o sujeito e o Outro, não havendo quase ou nenhum lugar para um
parceiro na realidade. Haveria então alguma possibilidade de amor por um semelhante
para aquele sujeito que construiu um delírio bem sistematizado? A esse respeito,
Schreber diz não somente ter conservado o antigo amor por sua esposa, como assinala
ter encontrado nela a motivação inicial para escrever seu livro de memórias. O amor por
sua esposa não foi, portanto, incompatível com os rearranjos ocasionados pelo delírio
entre o sujeito e o Outro. Como desenvolveremos posteriormente, esse tipo de amor é
comparável a philia, ou seja, à amizade no sentido em que foi veiculado pela filosofia
clássica, isto é, como um amor enfraquecido de seu aspecto sexual.
O fora do sexo não parece ser, entretanto, a única solução do amor na psicose.
Se assim fosse, não haveria na psicose nenhuma conjunção possível entre amor e sexo.
Embora a clínica nos informe que a castidade não deixa de ser uma saída bastante
comum na psicose (ou o platonismo, como demonstramos no segundo capítulo a partir
da obra de Dide), interessa-nos, entretanto, investigar algumas condições que permitem
incluir o sexo na vida amorosa da psicose.
Tomaremos as indicações que Lacan (1975-76) fez da relação de James Joyce
com sua esposa para desenvolver esse ponto. Algumas precisões biográficas se fazem,
entretanto, necessárias. Joyce conhece Nora, jovem do Condado de Galway, e camareira
do hotel Finn’s, em 1904, aos vinte e dois anos, época em que também começa a
escrever de uma forma mais sistemática. Antes de conhecê-la, Joyce só havia tido
125

contato com prostitutas. Joyce permanece com Nora durante toda a sua vida.
No mesmo ano em que conhece sua esposa, Joyce deixa, em um exílio auto-
imposto, a Irlanda. Vai morar com Nora em Póla e depois em Trieste, trabalhando como
professor de inglês, escrevendo artigos para jornais e dando palestras. Em 1905 nasce
seu filho, Giorgio, e em 1907 sua filha, Lúcia. Relatos biográficos (Elman:1989,
Maddox:1991 e O´Brien:1999) assinalam que suas idéias persecutórias e de ciúme
aguçavam-se a cada nascimento de seus filhos. As cartas de amor que escreveu para sua
mulher dão testemunho do quanto Joyce ficava conturbado, perseguido e ciumento
nesses momentos. Atormentado por acreditar que Giorgio seria filho de um conhecido
seu, Joyce acusa Nora de adultério, chegando a fugir para Dublin com seu filho. Um
outro aspecto fundamental de sua relação com Nora, revelado em suas cartas, é o da
vida erótica do casal, recheada de fantasias pornográficas que iam do sado-masoquismo
à escatologia.

Em 1915, com a eclosão da guerra, Joyce e Nora se mudam para Zurique. Em


1920, após a guerra, Joyce se muda para Paris e se casa oficialmente com Nora em
1931, já com a visão e a saúde bastante abaladas. Um ano depois, sua filha Lúcia é
diagnosticada como esquizofrênica, tendo como primeiro analista Carl Jung. Retorna a
Zurique em 1940, e morre no ano seguinte.

Gorog (1993) destaca em Joyce alguns traços de feminização, assim como nos
personagens principais de suas obras. Pela complexidade de sua análise, não
retomaremos aqui seus argumentos, remetemos, entretanto, o leitor que queira se
aprofundar neste aspecto, ao seu artigo. Destacaremos apenas que Gorog mostra uma
clara dificuldade de Joyce em recorrer à identificação sexuada, o que estaria
intimamente ligado à singular escolha de objeto que veio a fazer. Como veremos, Joyce
escolhe uma mulher, sua esposa Nora e a transforma em Uma mulher. Vejamos o que
ele mesmo diz a esse respeito:

Compreendes agora teu amante estranho errado caprichoso ciumento, não é,


caríssima? Ele te ama, acredita sempre nisso. Nunca teve uma palavra de amor
por ninguém a não ser tu. Foste tu que abristes um fundo abismo na vida dele.
(Joyce:1988:32)

É interessante constatar que Lacan considera essa relação um dos indícios da


psicose em Joyce, assim como sua relação com sua filha Lúcia, a surra ocorrida na
126

adolescência e suas conseqüências no imaginário do corpo e a desestabilização a cada


nascimento de um filho. Examinaremos a seguir os dois primeiros aspectos da vida de
James Joyce, pois eles constituem, em nosso entendimento, exemplos importantes de
como Joyce lidava com o amor.
Quanto à surra, faremos apenas uma breve menção. Em sua juventude, Joyce foi
agredido por seus colegas de turma, após uma discussão acerca de qual era o melhor
poeta de língua inglesa. Embora bastante machucado, Joyce não consegue experimentar
raiva, mas, ao contrário, sente que “alguma força o estava despojando daquela raiva
subitamente tecida tão facilmente quanto um fruto é despojado de sua casca madura”
(Joyce:1992:87).
Lacan não identifica nenhum episódio de desencadeamento da psicose em Joyce,
mas infere, a partir de algumas coordenadas a carência paterna. Como resposta à surra,
ocorre em Joyce um deslizamento do imaginário. O sinthoma de Joyce, se fazer um
nome através da escrita, vai justamente de encontro à falência da inscrição paterna,
dando uma nova amarração aos registros que se haviam desatado: “é a sua arte que faz
suplência à sua sustentação fálica. (...) é nisso que a sua arte é a verdadeira respondente
ao seu falo” (Lacan:lição de 18/11/1975:14).
Vejamos o que Lacan diz a respeito da relação de Joyce com sua mulher, Nora.
Lacan comenta que, para ele, o sintoma feito da carência própria à relação sexual toma
para ele uma forma dada pela sua relação com Nora, “ele a toma por sua mulher”
(Lacan:lição de 13/01/76:64). Entre todas as mulheres, Joyce faz de Nora a única,
transformando-a em Uma Mulher. Ele a eleva assim à categoria de eleita, fazendo
convergir em Nora sua idolatria e seu desejo sexual.
Lacan indica que a relação de Joyce com Nora é uma relação sexual – mesmo
que ela não exista - estranhamente estabelecida. Nas cartas de Joyce aparece um apelo
constante para que Nora forme com ele um único ser: “Eu gostaria de atravessar a vida
lado a lado contigo, contando-te mais e mais até que passássemos a ser um ser unido,
até que chegasse a hora da nossa morte” (Joyce:1988:46). O tom melodramático que se
faz sentir no trecho em questão prevalece ao longo de sua correspondência:

Nora, meu “verdadeiro amor”, precisas realmente tomar conta de mim. Por que
deixaste que eu ficasse neste estado? Caríssima, queres aceitar-me tal como sou
com meus pecados e loucuras e me abrigar da desgraça? Se não o fizeres sinto
que minha vida vai espatifar-se. (1988:34)
127

Lacan mostra que Nora é a luva revirada que serve a Joyce – toma para isso a
imagem de Kant de uma luva que, sendo revirada em seu avesso, pode ser utilizada na
mão oposta. É digno de nota o quanto se faz preciso, para Joyce, que sua mulher não
tenha nenhuma existência, a não ser a de servir-lhe.

Para Joyce há apenas uma mulher. Ela é sempre a mesma e ele só a usa [il ne
s’en gante] com a mais viva das repugnâncias. É sensível o fato de que não é
senão pela maior das depreciações que ele faz de Nora a mulher escolhida. Não
somente é preciso que ela lhe sirva como uma luva, mas é preciso que ela lhe
caia como uma luva. (Lacan: lição de 10/02/1976)

Joyce parece precisar ver-se completo de Nora. Há, portanto, no que diz respeito
à relação do casal, algo que aponta para a necessidade de manutenção de uma lógica
complementar. Nora deve dedicar sua vida a completar Joyce, ele deve se alojar nela.
Não há noticias, em suas cartas, de algo que aponte para o amor como uma suplência,
tal como seria o caso de uma escolha de objeto baseada na identificação sexuada. Para
Joyce, existe Uma Mulher e ela se chama Nora. Podemos ter indícios do caráter
particularmente bizarro dessa ligação quando Lacan (1975-76) assinala que Joyce tem
por Nora os sentimentos de uma mãe, querendo até mesmo carregá-la em seu ventre.
Esse é, segundo Lacan, “um dos piores equívocos que se possa experimentar em relação
a alguém que se ame” (Lacan:13/01/76:67).
Poderíamos pôr em série com essa estranha relação sexual, a intensa angústia
vivida por Joyce com a chegada de seus bebês? Como dissemos, aguçavam-se nessa
ocasião suas idéias de traição e de suspeita em relação à paternidade. Talvez
pudéssemos inferir que nessas ocasiões Nora deixava de fazer Um com Joyce. Este
último declara, em uma de suas cartas a Nora, acerca do nascimento de seu filho:

George é meu filho? A primeira noite em que dormi contigo em Zurique foi a
de 11 de outubro e ele nasceu em 27 de julho. São nove meses e 16 dias.
Lembro-me que houve pouco sangue naquela noite. Foste f... por alguém antes
de mim? (...) Fui um tolo. Pensei que todo o tempo tu te entregavas só a mim e
estavas dividindo teu corpo entre eu e um outro. (Joyce:1988:25)

A carência própria à relação sexual toma, portanto, uma forma – passa a ter
consistência - no caso de Joyce e essa forma é dada pela sua relação com Nora (Lacan:
lição de 13/01/76). Há um pedido de que ela venha a animar constantemente o seu
128

desejo. A correspondência com Nora se faz durante o período em que Joyce se vê


afastado de Nora. Há uma exigência permanente por parte de Joyce de que Nora
proponha comunicações eróticas e, assim, o estimule sexualmente. Será que, assim
como Schreber com seu delírio, Joyce deve se manter constantemente on-line com Nora
para evitar deixar-se cair como dejeto do Outro?
Nora parece também ser chamada por Joyce a manter seu desejo conectado em
linhas mais gerais. Joyce chega a se perguntar nas ocasiões em que é tomado por intenso
ciúme: “haverá alguma loucura em mim. Ou será amar, loucura?” (1988:34). A arte,
solução encontrada por Joyce, parece não poder prescindir da presença de Nora: “É
talvez na arte, caríssima Nora, que eu e tu vamos encontrar consolo para nosso amor”
(Joyce:1988:32). Joyce pede então que Nora o segure “em sua mão como um cascalho”
única condição para que possa assim se tornar “o verdadeiro poeta de sua raça”
(1988:37-38). Em outra passagem, explicita: “És meu único amor. Estou completamente
em teu poder. Sei e sinto que se eu tiver de escrever algo de elevado e nobre no futuro
só o conseguirei escutando às portas de teu coração”. (1988:43)
Como em Schreber, encontramos em Joyce a temática escatológica. Se em
Schreber o ato de defecar permitia-lhe ver reunidos os elementos que condensavam seu
ser, em Joyce a fantasia de ver Nora evacuar parece marcar um gozo ligado ao
esvaziamento do Outro. Embora não tenhamos elementos suficientes para explorar essa
perspectiva, parece-nos que o gozo em Joyce estaria ligado àquilo que descompleta o
Outro, um gozo extraído do ato de furar o Outro. Como vimos, o trabalho do psicótico
consiste em uma certa medida em um exercício de esvaziamento do gozo, e Joyce não
parece fazer aqui exceção.
Lacan acrescenta que mesmo que as práticas masoquistas não estivessem
excluídas das possibilidades de estimulação sexual de Joyce (por exemplo, na fantasia
de fazer-se surrar por Nora), não se pode dizer que ele fosse um verdadeiro perverso. O
nojo que ele experimenta em relação ao seu corpo ao receber a famosa surra de seus
colegas na adolescência, faz com que Lacan indique que “essa forma de deixar-cair a
relação com o próprio corpo é suspeita [de psicose] para um analista” (lição de
11/05/76:169).
Gorog (1993) encontra, ao longo da obra e da vida de James Joyce, episódios ou
padrões de comportamento que fazem alusão ao sobrenome de Nora, sugerindo que
129

Joyce tenha feito um uso particular do nome próprio de sua esposa. Barnacle,
sobrenome de Nora, tem, segundo Gorog, várias acepções, algumas das quais
encontram ecos na história do casal. O primeiro significado de Barnacle aponta, em
inglês, para o nome de um marisco que “passa a sua vida inteira colado ao mesmo
rochedo ou ao casco de um barco naufragado” (Gorog:1993:70). Interessante alusão ao
caráter servil que Joyce impunha a Nora. Um segundo significado é o de um
instrumento utilizado para domar os cavalos, de onde também derivou “a significação
em inglês de qualquer instrumento de tortura” (Gorog:1993:70), o que nos remete às
suas fantasias de fazer-se surrar por Nora. No plural, seu nome é um indicativo para
óculos, o que faria menção à cegueira crescente de Joyce e a relação dele com sua
mulher e com sua filha que, como veremos, foram os “óculos que lhe permitiram
acomodar sua visão ao mundo” (Gorog:1993:70).
Esse uso do sobrenome de Nora nos faz levantar a hipótese de que o amor de
Joyce por Nora possa ter lhe permitido alojar-se, a partir do nome de sua esposa, como
um Homem, o que, por sua vez, pode ter freado a feminização que Gorog avistou em
seu horizonte. Gostaríamos de destacar uma certa tendência à homogeinização em
Joyce, ao grude imaginário em suas relações (Cf. lição de 8/04/1975). Isso se demonstra
com Nora – na tentativa constante de fazer com ela Um – mas também se faz ver, de um
outro modo, como veremos a seguir, em sua relação com sua filha Lúcia.
Lacan mostra que havia uma recusa por parte de Joyce em engajar sua filha,
diagnosticada como esquizofrênica, em um tratamento e até mesmo em acreditar em sua
enfermidade. Não por acaso, compara Joyce a Gérard Primeau, esquizofrênico
examinado em sua apresentação de pacientes, que sofria de palavras impostas. Esse
exemplo é fundamental, pois revela o quanto a psicose torna-se o paradigma ao ser a
posição subjetiva que mais revela a dimensão parasitária da linguagem, “que a palavra é
a forma de câncer da qual o ser humano é afligido” (Lacan:17/02/76).
É aí que Lacan compara o paciente a Joyce. Retomando suas cartas, Lacan
mostra que Joyce acreditava que Lúcia tinha uma inteligência superior que lhe dava o
poder de adivinhar os pensamentos das pessoas. Para Joyce, o automatismo mental de
sua filha era resultado de seus dons telepáticos. Lacan assinala que, para defender sua
filha, Joyce lhe atribui algo que está no prolongamento de seu próprio sintoma, a saber,
que “no lugar da palavra, não podemos não dizer que não havia algo que não fosse a
130

Joyce imposto” (Lacan: lição de 17/02/1976).


O que nos interessa destacar é que Joyce explica o sintoma de Lúcia a partir de
seu próprio sintoma, já que a linguagem também o habita em uma certa medida e, que
Lacan assinala que isso é indicativo da carência do pai em Joyce (Lacan: lição de
17/02/1976). Poderíamos, então, dizer que o que liga Joyce a Lúcia é o real de uma
experiência (a imposição das palavras), traduzida em termos de certeza (o dom
telepático)? Poderíamos, então, dizer que a relação de Joyce com sua filha seria
sustentada por um saber em comum, mesmo que delirante?
Em nosso segundo capítulo, mostramos que o delírio compartilhado é um dos
nomes do amor na psicose. Entretanto, a psicanálise não atua nessa direção, já que seu
movimento vai contra a assimilação entre sujeito e objeto que a unificação do delírio a
dois realiza. A manobra introduzida pela psicanálise consiste em procurar introduzir
algo que faça existir uma distância entre os dois, apostando que, desse intervalo, um
sujeito possa advir.
Retomemos os dois tipos de amores que extraímos a partir de nossa leitura da
análise que Lacan fez da obra e da vida de James Joyce. Em relação a Nora, o amor
parece dar a Joyce um lugar: ele se aloja em Nora e em seu nome, fazendo de sua
presença o suporte de sua criação. Nora parece ocupar para Joyce o lugar de Outro
como parceiro, de um Outro que deve estar na base de um amor que visa a completude,
garantindo que se faça existir a relação sexual. Fazer-se um nome através da escrita,
sinthoma constituído por Joyce, parece ter sido fabricado em grande parte através de sua
ligação à Nora, do lugar que esta lhe concedeu ao longo de sua vida.
No que diz respeito a Lúcia, o amor é feito de crédito: ele crê em Lúcia assim
como crê naquilo que há de imposto nas palavras. Em Joyce, a vertente delirante do
amor aparece, em nosso ver, nessa certeza de saber compartilhada com Lúcia. Joyce
chegou a achar que sua filha não precisava de tratamento e que ela era verdadeiramente
uma telepata. Vemos o quanto o amor da folie à deux não deixa muita margem para um
trabalho de construção de saber, ao contrário, o saber compartilhado tem na psicose
força de certeza.
É curioso, entretanto, pensar que a transmissão de uma experiência de ‘saber no
real’ pode se ligar ao amor na psicose em uma outra vertente, a da amizade, tal como
desenvolveremos a seguir a partir de uma retomada do termo grego philia. Colocar
131

experiências delirantes e alucinatórias em circulação pode, segundo nossa aposta,


engajar os sujeitos na via de um trabalho solidário, baseado na troca de experiências e
no apoio mútuo frente à angústia que a emergência do real suscita.

Considerações sobre a philia

A partir da idéia de que cabe a cada sujeito psicótico inventar um amor que lhe
seja possível, ou seja, que não o mortifique enquanto sujeito, tentaremos retomar o fio
deixado por Lacan ao nomear o laço que une Schreber a sua esposa como sendo uma
philia, isto é, uma amizade no sentido aristotélico. Como dissemos, acreditamos que a
partir da análise desse laço em particular, poderemos deduzir algumas direções
interessantes relativas ao manejo da transferência na psicose em um aspecto mais geral.
Lembremos que a amizade presente em sua união marital foi, para Schreber, o protótipo
que permitiu definir suas relações com os outros no mundo após sua reconstrução pelo
delírio.
Iniciemos nossa análise com um breve comentário terminológico acerca da
palavra philia. É interessante observar que, segundo apontou Benveniste (1976 :335-
355), a palavra philos, que designa primeiramente tudo aquilo que é ‘caro’, foi
assimilada ao possessivo ‘meu’, tendo seu sentido reunido na expressão ‘meu caro’ . A
posse é assim expressa a partir de duas formas imediatas : o pertencimento e a
proximidade. Philos tem um caráter jurídico – um objeto é qualificado de philos pelo
seu proprietário. Tratar bem a alguém é philein, ou seja, não significa necessariamente
que seja tido em grande afeição, mas que os cuidados necessários lhe são prestados,
cumprindo as ações positivas que o pacto de hospitalidade implica.
Milner mostra que a ciência da linguagem esclarece assim o sentido da palavra
philia, cujas “insipidezes do vocabulário amistoso obscurecem seu verdadeiro alcance”
(1999:20). Mostra que philos remete originalmente a uma relação institucional não
afetiva. O termo philia não deve, portanto, ser considerado como sendo um termo
ligado, em suas origens, a uma relação afetiva. Caracterizava-se por um determinado
conjunto de comportamentos que um membro de uma determinada comunidade deveria
ter para com o seu hóspede estrangeiro. A philia permitia, assim, tratar como um dos
seus aquele que não o é, estando por isso, na base das relações de toda comunidade.
132

Ortega (2004) assinala, nessa mesma perspectiva, que o vínculo entre o


estrangeiro e seu hóspede intitulava-se philótes:

(...) uma ‘amizade’ de tipo muito definido, que estabelece vínculos e supõe
compromissos recíprocos com juramentos e sacrifícios. Trata-se de uma
relação de aliança ou de hospitalidade, que adota um caráter quase jurídico,
uma ética fortemente codificada (2004:18).

A filosofia clássica utilizou-se de duas palavras distintas para o amor: philia e


Eros. Platão deu, em sua obra, uma ênfase maior ao amor em detrimento da amizade.
Aristóteles, ao contrário, priorizou a philia, quase não se ocupando de Eros. Vejamos
brevemente as principais divergências entre esses dois autores no que tange ao debate
entre Eros e philia. Esse procedimento é importante na medida em que Lacan proporá
pensar o Sujeito Suposto Saber na neurose a partir das idéias contidas no Banquete de
Platão.
O termo Eros e seus derivados, quando utilizados no âmbito de uma relação
interpessoal, denotam para Platão um desejo sexual, diferentemente da philia que tem
uma amplitude maior e refere-se a sentimentos de carinho ou afeto, que podem por sua
vez ser independentes ou não das relações de caráter sexual. No Lísis, Platão afirma que
pode haver uma philia intensa sem a existência de Eros, tal como as relações filiais. A
philia parece ser uma versão mais atenuada de Eros, que, como dissemos, é assimétrico,
ao passo que a philia é, aparentemente, sempre recíproca.
Platão vai, entretanto, questionar a reciprocidade da philia (não há philia sem
antiphilein), mostrando que é possível ser amigo não apenas de uma outra pessoa, mas
também de um cavalo, da ginástica ou da sabedoria, condições onde a recíproca não
pode ser verdadeira (212 d). A não reciprocidade da philia será para Platão indicativa de
que ela deve ser considerada como estando para além do humano, ligada ao soberano
Bem (222a). A verdadeira amizade é para Platão, aquela que se abre para a
transcendência, e que é amada por si mesma.
No Lísis, embora centrada na amizade humana, a philia ainda conserva portanto
seus traços cosmológicos. Designa uma afinidade que liga todos os seres e os mantêm
unidos. A verdadeira amizade exige como seu fundamento o Primeiro Amigo, “em vista
do qual dizemos que todas as coisas são amigas” (219 d). O Primeiro Amigo é
identificado ao Bem absoluto, e a verdadeira amizade é sempre procura, desejo e meio
133

para se chegar ao Bem. O objeto da amizade é, no fundo, esse objeto último para o qual
todas as amizades tendem, o Bem absoluto, soberano. A verdadeira comunidade é assim
para Platão dada pela ordem cósmica, cabendo aos cidadãos submeter-se à ordem
exterior do mundo.
No Banquete, Platão afirma que o bom uso do amor é o Eros sublimado (211 b e
d), o que em certa medida, anula a diferença entre Eros e philia, “a última seria o bom
uso do primeiro” (Ortega:2004:35) No Banquete, Sócrates sustenta que Eros tem a sua
fonte na falta. Toda a verdade sobre os laços afetivos deve para Platão ser procurada do
lado de Eros, sobre um fundo de transcendência. O amor-desejo funda-se, portanto, em
um fundo de ausência, amamos aquilo que não temos, aquilo que nos falta. Eros tem um
caráter sempre assimétrico: o vocabulário erótico distingue o amado (erômenos), do
amante (erástes). Sócrates vai defender a idéia de que o lugar do amante, que era
primeiramente ocupado pelo mestre que desejava sexualmente seu pupilo, será, a partir
do bom uso desse amor, vindo a ser ocupado pelo jovem que, pelo amor à verdade, fará
de seu mestre um objeto de amor.
Aristóteles utilizará em sua Ética a Nicômaco, ao contrário de Platão, o apego
pelas coisas inanimadas para mostrar que ele não pode ser dito philia3. Justamente pelo
apego não configurar uma ligação recíproca (antiphilèsis), deduz-se que somente uma
relação recíproca pode denominar-se philia. Como mostra Voelken (1961), se a não
reciprocidade permite entender a philia para além do humano em Platão, a
reciprocidade exige restringir a philia na esfera humana para Aristóteles.
A amizade difere das coisas da natureza, centra-se no quadro das coisas
humanas: “deixemos de lado os problemas físicos, pois eles não se enquadram na
presente investigação, examinemos os problemas relativos ao homem”
(Aristóteles:1155b 10). Todas as dificuldades ligadas à amizade serão postas e
resolvidas por Aristóteles nos limites da ética, transformando um conceito que havia
sido considerado cosmológico pelo seu mestre Platão, em um conceito antropológico.
Como a philia designa uma vasta gama de relações humanas que podem ir da
simples simpatia entre membros de uma mesma comunidade até uma relação familiar,
Aristóteles precisa impor-lhe algumas condições de determinação. Ele as ligará ao bem,

3
“Seria ridículo desejar o bem de uma garrafa de vinho, mas em relação a um amigo dizemos que
devemos desejar-lhe o que é bom por sua causa” (1155 b 30).
134

entendido aqui não como algo transcendente, mas como um valor concreto. Aquilo que
aproxima os amigos é, para Aristóteles, aquilo que é bom, agradável ou útil (1155b 20).
As heterogeneidades que concernem a philia não são assim consideradas como tipos
diferentes de um mesmo fenômeno, mas como uma diversidade de contextos
necessários à eclosão, à manifestação e à realização desse comportamento social
singular chamado philia.
Philia ganha na obra de Aristóteles o sentido de amizade cívica, sentimento de
pertencimento que liga entre si os membros de uma mesma comunidade. Aristóteles cita
o antigo adágio “os bens dos amigos são comuns” (1159b 30), fazendo uma passagem
da ordem jurídica para ordem ética, mostrando que “a amizade depende da
participação” (1159 b 30). A amizade é definida sobre um fundo de presença e de
comunidade partilhada, a política de Aristóteles é baseada na experiência concreta da
comunidade. A amizade é um conceito ético que implica um pacto que supõe um
conjunto de ações que visam o bem do outro enquanto outro.
Uma última palavra se faz importante sobre a articulação entre a philia e aquilo
que é próprio de Eros enquanto sexual. Milner esclarece que, no que se refere ao coito
propriamente dito, “a philia não serve para nada, ela se detém onde começa o coito”
(1999:30). Para os gregos antigos, as leis de hospitalidade não estendiam seus domínios
sobre a copulação, embora pudessem cercar tudo aquilo que estaria referido ao encontro
que precede e prepara o ato, em uma espécie de imitação das leis de hospitalidade.
Nessa mesma linha, Lacan, no seminário Mais, Ainda, efetua uma interessante
aproximação entre o amor extático dos místicos e a philia Aristotélica (Lacan:1972-73:
101). Retira da amizade qualquer conotação sexual, mostrando que “é na coragem de
suportar a relação intolerável ao ser supremo que os amigos se reconhecem e se
escolhem. O fora do sexo dessa ética é manifesto” (Lacan:1972-73:107). A philia
parece ligar-se, assim, inevitavelmente, ao amor morto em sua versão mortificada, ou
seja, como um tipo de laço social possível para aquele sujeito que já sofreu em sua
subjetividade as conseqüências do delírio ou do desencadeamento psicótico.
A philia não tem nenhuma relação com o sexual, o que não significa que o sexo
esteja necessariamente excluído de uma relação amistosa, mas sim que, a partir do
momento em que o sexo faz entrada, a amizade em nada lhe faz recurso. Tomando o
exemplo de Schreber, sustentamos a hipótese de que seu casamento se edificou muito
135

mais em uma relação de amizade do que de amor (que, para ele, equivale ao gozo de
Deus), ou seja, manteve-se com base em uma relação solidamente institucionalizada,
com regras e deveres mútuos, o que provavelmente permitiu a Schreber ser bem
sucedido na adoção de uma criança após o seu restabelecimento.
Propomos, assim, pensar que, através do casamento, Schreber estabelece um
enlace com a lei, enquanto garantidora de uma certa amizade conjugal, interditando,
para sua esposa, o lugar de Outro absoluto. É inegável, como já demonstramos, que a
amizade conjugal esteve estritamente relacionada à estabilização de Schreber, e como
dissemos anteriormente, à confecção de suas memórias, que lhe permitiram por sua vez
alcançar um certo saber. Nesse sentido podemos concordar com Miller quando afirma
que “o fracasso, a fatalidade do psicótico do lado do amor – quando diz que é um amor
morto – pode estar acompanhado do êxito do saber, da produção” (2003:275).
Queremos, por último, especificar de qual amor morto faz-se referência aqui.
Parece-nos impossível pensar que se trata da versão mortificante do amor, posto que ela
aponta, na verdade, para uma invasão de gozo que ainda não pôde, de alguma maneira,
ser contida. A versão mortificada do amor parece-nos mais consoante com um trabalho
de construção de uma invenção que estabilize o sujeito. O esmaecimento do amor de
seu colorido sexual poderia talvez ser compreendido, tal como na proposta platônica,
como um preço a ser pago pelo sujeito, como um tributo necessário para o bem viver.
De fato, muitos psicóticos estabilizados dizem ter claramente renunciado ao sexual,
assim como outros não chegam nem a considerá-lo como uma possibilidade concreta
em suas vidas. Devemos, contudo, frisar que essa não é uma regra geral, e que há
depoimentos clínicos4 que mostram sujeitos que conseguiram inventar soluções para
construir um limite ou uma borda para lidar com o a mais que acompanha o sexual na
psicose.
Parece-nos que a philia ilustra, portanto, uma das possibilidades do amor na
psicose, mas poderíamos considerá-la como estando também na base da relação de
transferência na psicose? A partir de nossa leitura acerca da philia, tentaremos extrair
algumas conseqüências dessa formulação.

4
A esse respeito ver o excelente caso clínico de Jacques Borie. In: Miller (1994) L´amour dans les
psychoses.
136

Sobre a amizade de transferência

Precisaremos, antes de articular philia e transferência, fazer referência ao lugar


dado por Lacan ao Eros na transferência da neurose. Retomando, no seminário sobre a
transferência, o Banquete de Platão, Lacan destaca a novidade introduzida por Sócrates
no que diz respeito ao amor (Eros). Mostra que Sócrates estaria próximo à posição do
analista ao recusar a posição de erastès (amante) em relação a Alcebíades. Lacan extrai
uma metáfora desse procedimento, mostrando que, a partir de sua falta-a-ser, o sujeito
faz existir algo que o torna erôménos (amado), ou seja, objeto causa de desejo. É a partir
daquilo que não se tem, de um vazio, que o objeto, enquanto a, causa de desejo, é
constituído. Lacan vai mostrar ainda que o que liga Alcebíades a Sócrates é o saber que
lhe é suposto.
Lacan desenvolve, ao longo de o Seminário livro 11, o Sujeito Suposto Saber
como o pivô da transferência, ou seja, a mola propulsora que põe a transferência em
marcha. A partir do convite feito ao analisante de falar, instaura-se a suposição de um
Outro que detém o saber. O amor se dirige, portanto, na análise, àquele que se supõe
deter o saber sobre a verdade do inconsciente. O amor está, assim, intrincado ao Sujeito
Suposto Saber:
Em o Seminário livro 20, Lacan mostra que o amor, contrariamente ao que se
pensou na filosofia, não tem nada a ver com o saber sobre o ser. Ao contrário, é o ódio
que se aproxima da ex-sistência. O amor, para Lacan, nada quer saber do saber. Isso
pode parecer paradoxal posto que é nesse mesmo seminário que Lacan afirma que o
amor é ligado a uma suposição de saber: “aquele a quem eu suponho o saber, eu o amo”
(1972-73:91). Se o amor não tem nada a ver com o saber é na medida em que tende a
tampar seu furo. Por exemplo, quando suponho que um sujeito detém um saber sobre
meu ser é justamente para que não tenha que me haver com a incompletude. Supor que
alguém detém o saber é conferir-lhe uma consistência. No amor é, portanto, a vertente
imaginária do saber que está em jogo, ou seja, o que do amor se agarra a uma suposição
de saber. A análise visa operar no limite do impossível de dizer, fazendo com que cada
sujeito possa construir, frente a essa ausência, uma nova relação com o saber.
Retomemos agora a questão da transferência na psicose. Vimos que é a partir de
uma ausência, de um vazio, que o amor aparece na neurose. É justamente em torno
desse vazio que aparecerão as dificuldades de manejo da transferência na psicose.
137

Vimos que a não extração do objeto a do campo da realidade na psicose é concomitante


com a não localização da falta no lugar do Outro. Há, portanto, uma tendência na
psicose a ficar do lado do a, do amado, exigindo, para que o amor seja bem sucedido,
que o sujeito consiga diminuir, esvaziar o gozo de modo a possibilitar uma certa
distância dessa posição primeira em que o amor instantaneamente o coloca. A posição
erotomaníaca demonstra isso com clareza: se o Outro, enquanto absoluto, não barrado,
ama o sujeito, o platonismo, por exemplo, lhe faz barreira.
A manobra do analista na psicose visa diminuir a potência abusiva ou dispersiva
do Outro, auxiliando o sujeito a cavar uma distância que o separe do lugar de objeto,
através da invenção de um saber ou de um objeto que lhe permita apropriar-se daquilo
que lhe aparece como vindo do Outro. O saber não deve ser suposto ao analista na
psicose, na medida em que aparece inevitavelmente ligado ao Outro e, portanto,
intricado com o gozo. Propomos pensar que a suposição de saber, presente na psicose,
estaria mais do lado de uma suposição de saber-fazer com o gozo. Continuemos então a
problematizar a questão referente à transferência na psicose: se o analista, ao se fazer de
destinatário das produções do sujeito na psicose, possibilita que uma distância entre
sujeito e objeto se faça, esse procedimento poderia ser feito sem o amor, enquanto pivô
dessa relação?
Decerto que não. Mas, como vimos, o amor em questão não corresponde àquele
que visa o saber suposto no Outro. Será que poderíamos pensar em um amor articulado
com a suposição de um sujeito suposto saber-fazer com o gozo? Acreditamos que a
abordagem por nós proposta acerca das origens da philia na tradição grega possa nos
auxiliar nessa argumentação. Será preciso, para isso, tomar a amizade não em seu
sentido afetivo e sim institucional, tal como o veiculou Aristóteles.
A amizade enquanto mola propulsora de um tratamento analítico não pode estar
referida a um bem transcendental, caso em que o analista incorreria no risco de guiar-se
a partir de uma relação de compreensão que, como já demonstrou Lacan, turva a
abordagem da psicose ou a partir de uma relação pedagógica, onde o destino visado de
uma análise conduziria o sujeito nas vias de um único Bem. Não há bem último e,
portanto, não há padrão de melhora ou piora para a psicose. Entretanto, a prática clínica
demonstra que o esvaziamento de gozo é terapêutico para os sujeitos na psicose. O
analista pode ser útil nessa empreitada ao sustentar uma posição isenta de gozo,
138

ocupando cotidianamente o lugar de ‘ao menos um’ que não goza do sujeito. A amizade
pode assim ser construída na experiência empírica de uma análise, como um valor
concreto a ser buscado através da manobra constante de distanciamento entre o sujeito e
o Outro.
Aristóteles mostrou que a amizade enquanto philia está profundamente ligada a
idéia de comunidade, visando a concórdia (1167 b) na procura de um bem em comum.
Tem, portanto, como indica Ortega (2004), um caráter político, cívico e apóia-se na
camaradagem que, em sua origem, indicava, como vimos, uma relação baseada em ritos
e códigos específicos. Entendemos esta última afirmação, no que tange ao dispositivo
analítico, como sendo relativa ao lugar a ser ocupado pelo analista na transferência da
psicose, lugar feito em grande parte pelo respeito aos ritos e códigos específicos de cada
sujeito, ou seja, a sua subjetividade, mas também pela sustentação daquilo que o
dispositivo analítico impõe, a saber, o trabalho subjetivo. Cabe ao analista sustentar,
através de seu desejo, um lugar que propicie a construção de um saber inédito e singular
para cada sujeito.
Poderíamos ousar dizer que a posição do analista na psicose tem nisso uma
função política: visa, na contra-corrente do modernismo, criar uma distância para o
sujeito que lhe permita politizar o seu espaço público. Ortega assinala, nessa mesma
linha, que a amizade, enquanto fenômeno público, necessita “de uma distância
necessária (...), já que o espaço da amizade é o espaço entre os indivíduos, do mundo
compartilhado” (2004:162).
O espaço institucional pode ajudar o analista a garantir que os sujeitos possam
fazer circular o saber inédito e as invenções encontradas para lidar com as intrusões do
real, compartilhando suas experiências no espaço público. O dispositivo CAPS torna-se
um lugar estratégico para o analista na psicose que deve, como salientou Tenório
(2001), lembrar e ajudar a sustentar que a cidadania seja tomada como um pressuposto
ético e político, e não como ideal-padrão a ser imposto a todos os sujeitos. Nesse
sentido, o trabalho do analista em um dispositivo como o CAPS, é também um trabalho
institucional: cabe também ao analista ocupar junto à instituição a função de “suporte
dessa articulação entre intensão e extensão, respondendo a cada caso a partir de sua
atribuição e situando sua ação no referencial que o orienta” (Figueiredo:2001:96).
Concordamos com Laurent (1999) quando propõe que o analista dos dias de hoje deve
139

ser um ‘analista cidadão’, isto é, “um analista sensível às formas de segregação, que
ajuda a civilização a respeitar a articulação entre normas e particularidades individuais
(...) e transformá-las em algo útil, em um instrumento para todos” (14-15).
Propomos entender a philia como um tipo de laço social possível de ser
alcançado na psicose. A idéia de rede5 de cuidados, presente na Saúde Mental, pode ser
revista a partir das considerações Aristotélicas. ‘Fazer rede’ pode assim ser
compreendido como estando intrinsecamente ligado a capacidade de fazer amigos e,
nesse sentido, concordamos com Tikanory quando assinala que somos “mais autônomos
quanto mais dependentes de tantas mais coisas pudemos ser, pois isto amplia as nossas
possibilidades de estabelecer novas normas, novos ordenamentos para a vida”
(1996:57).
A partir do ponto de vista da psicanálise, podemos considerar que a distribuição
em rede pode ser um instrumento clínico interessante na psicose, na medida em que põe,
pela dispersão, uma distância do lugar do saber suposto. A psicanálise pode encontrar
ressonância com o campo da Saúde Mental, ao propor, partindo de um certo
esvaziamento no nível do saber, que o sujeito trabalhe na direção singular de encontrar
um lugar que lhe seja possível no mundo, tornando viável a construção de sua rede
particular.
Embora ainda muito incipiente, nossa experiência na oficina de vozes do CAPS
Arthur Bispo do Rosário tem demonstrado que é possível, através do compartilhamento
de experiências, extrair um certo saber coletivo. Esse saber situa-se muito mais na
vertente de um saber-fazer e promove a sustentação de um laço entre os sujeitos feito de
amizade e de trabalho solidário, onde o horror pode até vir a ser, em determinados
momentos, suplantado pelo riso ou pela surpresa, como nos fragmentos clínicos que
relataremos a seguir.
A proposta básica da oficina de ouvidores de vozes é oferecer um espaço de
discussão, investigação e troca de experiências sobre a escuta de vozes. Colhemos
relatos muito interessantes sobre esta experiência, dentre os quais destacaremos dois. O
primeiro é o de uma paciente que conta na oficina que sua sombra fala com ela. Por

5
Propomos tomar a definição de rede proposta por Pittta: “modelo de compartilhamento de recursos que
contempla a continuidade e complementaridade necessárias para pensar uma estratégia de cuidados que
tenha de responder a necessidades múltiplas de ordem afetiva, material, clínica, que requerem cada vez
mais ações solidárias de governos, voluntariado e cidadãos comuns. (2001:280)
140

isso, diz precisar andar sempre junto com o sol (para não fazer sombra). Na semana
seguinte, diz que o sol também fala com ela. Não sabe dizer o quê ele fala, é uma fala
sentida no corpo, uma presença: ele está em todas partes. Alguém pergunta: e falar com
a lua, você já falou? Ela diz que não. Então outra pessoa diz: será que existem pessoas
que falam com a lua? Outro responde: “Existe sim. São os lunáticos!”.
O segundo aconteceu durante uma conversa na oficina sobre a justeza ou não do
emprego do termo maluco para se referir a todo aquele que ouve vozes. Um paciente
concorda com o uso do termo, dizendo que não liga quando assim é chamado, pois o
dito representa a sua verdade: a sua palavra não tem valor. Justifica dizendo que faz
coisas, por vezes, das quais não se lembra, como quebrar sua casa inteira e que isso é
fruto da “tentação”. Outro paciente, conhecido institucionalmente pela sua
desagregação, pontua que se “de médico e de louco todo mundo tem um pouco”, ele
gostaria que sua palavra tivesse valor e diz, inclusive, ter um forte desejo de poder
transmitir os seus ideais. O primeiro então aquiesce e, pensativo, endereça a seguinte
questão ao coletivo: “como é que a gente faz para viver bem com as vozes?”,
redirecionando a sua posição.
Acreditamos que esses exemplos sejam paradigmáticos do saber que é possível
de ser retirado da clínica quando nos colocamos dispostos a recolher e trabalhar com os
pedaços de real que os pacientes nos dão a chance de conhecer. Mostra, além disso, que
a ironia pode ser uma arma interessante na psicose contra as investidas do real. Alguns
pacientes já manifestaram que a freqüência na oficina diminui o acossamento causado
por uma escuta alucinatória incessante. Dar voz aos que ouvem vozes é uma estratégia
clínica que não está desarticulada da política, pois tem no horizonte o objetivo de
disponibilizar um certo saber-fazer com as vozes para todos aqueles que dele
precisarem, além de coletivizar uma experiência que ainda hoje carrega o forte traço da
segregação.
141

4. O AMOR NAS PSICOSES: UMA INVENÇÃO?

4.1 Nota introdutória

A partir de agora, o texto passará a ser redigido na primeira pessoa do singular.


Não posso deixar de realizar esta mudança ao apresentar a construção de três casos de
minha clínica com a psicose, procurando explicitar os efeitos que o encontro com o
amor produziu para cada sujeito, assim como os remanejamentos que cada um deles, à
sua maneira, realizou para poder, retomando a expressão freudiana, voltar a viver no
mundo mais uma vez.
Tomei as precauções necessárias para ocultar a identidade dos sujeitos, dando-
lhes nomes fictícios e excluindo dados que pudessem facilmente identificá-los. Como
assinalei na introdução, apenas o primeiro sujeito não permanece mais em tratamento
comigo. Não pretendo em absoluto dar os casos como encerrados, restringindo minha
abordagem apenas a um recorte temporal de suas vidas. Os três sujeitos foram por mim
atendidos em instituições de saúde mental (ambulatório do IPUB/UFRJ e CAPS Bispo
do Rosário). Minha atuação não se resumiu, portanto, a atendê-los individualmente,
incluindo a responsabilidade de trazer a clínica do caso para o coletivo da instituição, de
forma a auxiliar na condução de suas inserções institucionais. Os casos inserem-se,
portanto, em um trabalho de psicanálise aplicada ao campo da saúde mental. Analisarei,
sempre que se fizer necessário, a articulação entre a clínica individual e o manejo
clínico de situações institucionais.
Os três casos se inserem no que Lacan definiu como ‘amor morto’, mas
poderemos verificar que a morte rondou diferentemente cada um desses sujeitos. O
paciente André é bem explicito a esse respeito, pontuando, aos quinze anos, sua morte
subjetiva. Procurar um amor possível na psicose se insere, portanto, na problemática
maior de construir um enlace eficiente para a realidade. O delírio, entretanto, não
parece mais ser a única saída possível, como demonstram as discussões atuais acerca
do sinthoma, e nem a mais eficiente. A busca do amor deve ser posta em continuidade
com a construção de um saber inédito, capaz de fazer barreira contra o gozo. O
encontro com o analista pode introduzir uma dimensão nova, pois, ao liberar
142

deslocamentos de libido e possibilitar modificações nas modalidades de gozo, abre uma


distância entre o sujeito e o seu objeto que é condição mínima para que o psicótico se
faça sujeito do amor.

4.2 A virgem que chora pelos olhos

O fim de uma história amorosa, onde o amor se apresentou em toda a sua


vertente de devastação, fez Marcelo procurar, aos quarenta anos, uma análise. É em
torno da instabilidade do amor que se situa para Marcelo o drama de sua relação com o
mundo: articulado ao olhar, o amor vem com um ‘a mais’ que o torna mortífero,
extirpado do sexual, o amor, sendo cego, não permite apreender os contornos do objeto.
Um amor ‘à primeira vista’ impulsiona Marcelo a ir ao ambulatório de psiquiatria do
IPUB/UFRJ, em busca de uma resposta para os males que passaram a afetar o seu corpo
e a sua mente, adoecidos de amor.
Ao longo dos dois anos em que o atendi, Marcelo realizou, sob transferência, um
trabalho de sistematização em gráficos de sua experiência amorosa, dela conseguindo
extrair um certo saber que lhe permitiu continuar o seu caminho sozinho. Não posso
dizer que Marcelo empreendeu propriamente uma via de construção delirante, mas a
sistematização dos estragos causados pelo amor em sua vida e em seu corpo pôde conter
o desarrimo do gozo. A partir desse trabalho de mapeamento de seus sintomas, disse ter
podido “sair do ciclo” onde se encontrava preso. O recorte do caso será feito através do
seu trabalho de invenção do amor, que escolhi tratar em quatro momentos: o amor
platônico, o amor universal, o amor à primeira vista e o amor infinito.

Amor platônico

O primeiro tempo é referido à sua juventude e mostra como este sujeito pôde se
defender de um desencadeamento, evitando a assunção de qualquer atitude viril: nunca
trabalhou, nunca namorou, “apenas vegetou”. Sempre viveu “fora da sociedade” em
razão das perseguições que ele e sua mãe sofriam de seu pai, “um tirano, um neurótico
de guerra”.
143

Para Marcelo, seu pai carrega em muito os traços do Pai da horda, um pai
“unilateral e monstruoso” (1955-6: 232), em face do qual permanece em uma posição
intimidada, acuada. Seu pai, “agressivo e tarado”, recitava poesias eróticas aos berros e
ameaçava seus filhos e sua esposa com “facas e injúrias”. A solução encontrada para se
proteger da ferocidade do gozo paterno foi para Marcelo unir-se à mãe, “somos do tipo
fraco, vítimas”. Decide então viver para a mãe, acompanhando-a nas constantes fugas
motivadas pelas ameaças repetidas de morte feitas por seu pai.
Fica claro nos primeiros atendimentos o quanto Marcelo dedicou sua vida a fugir
do olhar do pai, refugiando-se na relação especular com a mãe. Será no nível do olhar
que se situarão os fenômenos elementares de sua psicose, mostrando que para este
paciente o gozo está localizado no olhar implacável do Outro: “tem muito olho nessa
história”, dirá ele.
No início da adolescência tem uma sensação de “afundamento” do olho após
sofrer uma pancada causada por uma jogada de bola acidental no colégio. É nessa
passagem que situa o abandono dos estudos e a decisão de se refugiar em casa, ao lado
da mãe. Esse objeto, externo e enigmático, que vem do Outro, será recheado de
intencionalidade por Marcelo, como um indício de que ele não era ‘bem-vindo na
sociedade’.
Vai morar em outro estado com sua mãe e lá permanece até o adoecimento de
seu pai. Longe dele, Marcelo insere-se na comunidade messiânica, lá conhecendo seu
primeiro amor. Conta que teve um amor platônico por uma moça da comunidade, mas
esse amor limitou-se a “umas trocas de olhares”, pois se sentia muito “irresponsável”
para ter um compromisso. “Responsabilidade” indica para Marcelo tudo aquilo que se
refere para ele a uma posição fálica na vida: trabalhar, casar e ter filhos, ou seja, tudo
aquilo que representaria para ele ocupar o lugar do pai.
Se o amor dessa moça não deflagra para ele um gozo insuportável, é justamente
por manter o olhar à distância, através do platonismo, dando ao objeto um lugar
inatingível. A imagem idealizada do objeto tem assim a função de protegê-lo,
escamoteando, nos limites do Belo, o horror que este estaria suposto provocar.
Nessa mesma época, é levado pelos seus colegas da igreja a um bordel onde tem
sua primeira e única relação sexual. Disse que só conseguiu consumar o ato com muita
dificuldade e acrescenta que isso só foi possível porque considerou que a prostituta não
144

era uma mulher, mas “uma profissão”, deixando claro que o encontro com o sexo só se
deu porque não houve encontro, e sim uma “prestação de serviço”.

Amor universal

A morte do pai liberará o olhar do Outro do frágil anteparo que a relação em


espelho com sua mãe materializava. O falecimento do pai de Marcelo promove uma
encruzilhada em sua história a partir da qual a realidade começa, para ele, a se
desestabilizar. Marcelo se vê, de uma hora para outra, impelido a “ingressar no mundo”:
arranjar trabalho, casar, ter filhos. Vemos aqui o clássico chamado de Um-pai que vem
desestabilizar o eixo imaginário que mantinha o sujeito na existência. É preciso dizer
que sua mãe, que havia constituído para ele até então uma importante muleta
imaginária, precisa submeter-se a uma intervenção cirúrgica, pois corria o risco de ficar
cega. O chamado a ‘ingressar na sociedade’ vem em um momento em que Marcelo,
mais do que nunca, se achava sem o socorro de uma imagem de onde se mirar.
Reproduzo, a seguir, um trecho de uma das cartas que a mim endereçou:

Dra Nuria,
Tenho várias carências: de amigos sinceros, de familiares sinceros, meus
irmãos não são bons e por ter me enrolado no passado com a família
(perturbações com meu pai) não estudei, namorei, enfim vegetei, e em junho de
96 quando fui lutar por mim, foi acontecendo aquela história que me deu
depressão, estava antes doente do estômago, ouvido, coluna, fígado e sexo e sem
óculos, fiz um pedido, como muitas pessoas fazem e fui à luta.

O pedido de Marcelo é feito à Virgem de Fátima, “a Virgem que chora pelos


olhos”. Um dia antes da operação e desesperado pelo temor de que sua mãe perdesse a
visão, recebe uma carta da igreja católica, sua religião de origem, oferecendo pedidos a
Nossa Senhora de Fátima. Ele então pede “amor universal”, expressão que utiliza para
reunir os instrumentos necessários ao seu ingresso no mundo: “simpatia mental, rosto
bonito, corpo exercitado, saúde dos órgãos, um trabalho e uma namorada”.
145

Amor universal é uma expressão contida na carta que lhe foi endereçada, da qual
Marcelo se apropria, fazendo-se assim destinatário desse amor. Como trabalhamos ao
longo da tese, o amor na psicose é muitas vezes invocado como uma tentativa de evitar
a iminência de uma relação mortífera. O “amor universal” surge como um apelo
dirigido ao Outro frente a essas perdas (do pai, da visão da mãe), na tentativa de
inscrever algum instrumento (o amor da religião católica) que matize para ele o olhar da
sociedade que, com suas cobranças, “mata”.
Após a morte do pai, o Outro se feminiza na figura da Virgem, que nada mais é
do que um dos nomes do Pai. A certeza de saber que Marcelo atribui à Virgem retorna,
no momento em que ele responde a essa carta, como enigma. Para ele, é “o começo de
tudo”. Escreve: “Tudo de ruim aconteceu logo a seguir comigo, parece até castigo. Não
tenho sorte”.
Ao invocar o amor universal, obtém uma resposta inusitada do real. Ao tentar,
pela primeira vez, enxergar (sem óculos e sem falo), a vida com seus próprios olhos, seu
olhar é capturado no Outro. A contingência do encontro com Um olhar fará o gozo
retornar em um fulminante “amor à primeira vista”. O apelo ao simbólico, ao amor
universal, não é, portanto, suficiente, descortinando o campo escópico e desvelando o
olhar sedento do Outro que visa o sujeito.

Amor à primeira vista

Ao lançar seu primeiro olhar-solo ao mundo, Marcelo se apaixona. O objeto de


paixão é a professora de um sobrinho que conhece ao assumir o lugar de sua mãe,
convalescente, no acompanhamento dessa criança ao colégio. Conta que ela mudava
estranhamente de aparência física toda vez que ele a encontrava. O enigma do feminino
aparece, sem nenhuma referência ao falo, como uma metonímia incessante da qual
Marcelo tentará escapar. Cifrando seus encontros com o real em gráficos, consegue
fugir do ciclo mortal do qual tornara-se presa.
Marcelo me conta que, “desconcertado e perplexo” com essa moça que seus
olhos viam cada dia de um jeito, resolveu procurar um oculista para “ver a moça
melhor”. O encontro com a moça, esse “amor à primeira vista”, é vivido como vindo
desde fora, como sendo emanado pela moça que “olha e enfeitiça”. Torna-se assim
objeto dos feitiços de um Outro que ainda não consegue plenamente localizar. Os óculos
146

servem como um primeiro anteparo frente à instabilidade imaginária, uma primeira


invenção para tentar dar ao seu corpo alguma consistência.
O amor causa efeitos que incidem diretamente sobre seu corpo, que passa a
sofrer um processo de cadaverização: sua pele cai e seu rosto envelhece “dez anos em
um dia”. O amor morto da psicose é vivido por ele como advindo de um olhar mortífero
que age sobre seu corpo despedaçando-o. Os estragos no nível do corpo são listados:
língua podre, urologia não resolvida, bactéria no olho, envelhecimento facial, implosão
neuronal. Vive nesse momento um processo de cadaverização, um corpo cuja pele cai e
revela um rosto envelhecido.
Em um segundo momento, o amor se reverte em perseguição e vem trazer a
certeza delirante de que aquilo lhe concerne. Começa assim a se deparar com sinais “do
feitiço da moça”: vê o nome dela pichado em um banco de ônibus, faz um exame
médico com uma moça de mesmo nome, passa por uma loja de música onde toca “o
pagode da professora”, que é a profissão da tal moça. Embora acredite que esse feitiço
possa ser “fruto do espiritual”, não consegue precisar de que forma isso ocorreria e
levanta a hipótese de que seu pai talvez tenha nisso alguma participação.
Essa idéia o leva a recorrer a várias religiões, na esperança de que lhe forneçam
explicações acerca do que viveu. Ele, porém, considera-as negligentes. Procura médicos
para se submeter a exames físicos e os acusa de serem incompetentes, pois nunca
encontram nada. Escreve para mim, a esse respeito, em uma carta:

Quero viver com saúde física e psicológica e finalmente conseguindo poderei ter
o que queria anteriormente, simplesmente amor universal que é a simpatia e
felicidade, saúde plena, porque sem saúde não há como viver, trabalho para ser
independente. Uma morena só quando estiver bem.

Amor infinito

O amor desencadeia em Marcelo um tempo de morte subjetiva e, por isso,


qualquer tentativa sua de encontrar um amor nos “moldes da sociedade” fracassa. Se a
sua psicose torna um fracasso a efetivação daquilo que se costuma chamar amor,
Marcelo obtém sucesso em sua invenção particular de saber sobre o amor. Começa a
147

confeccionar gráficos e a colecionar materiais que possam instruí-lo sobre o ocorrido.


Procura em livros, jornais, revistas e enciclopédias explicações para o que teria vivido.
Faz anotações, copia trechos que lhe interessam, dedica-se a um verdadeiro trabalho de
pesquisa.
Passei a arquivar, a seu pedido, alguns desses documentos, ficando com “a
guarda das provas da história da Virgem”: fitas cassete, gráficos e recortes de jornais e
revistas. Marcelo desiste de seus “planos de recuperação”, dizendo ter descoberto que
seus males físicos eram derivados de uma “transformação cerebral” que havia ocorrido
em sua mente: “sofri um colapso cerebral e por isso não posso mais ingressar no mundo,
não há cura para danos cerebrais”. Avalizei sua decisão de não mais procurar uma
namorada e de se dedicar ao estudo dos “poderes das ervas e da medicina natural”.
Ao final do meu curso de especialização, decide continuar seu
acompanhamento no CAD do IPUB/UFRJ para ter mais “contatos sociais”. É preciso
dizer que ele encontrou uma interessante solução para resolver a inexistência de sua
vida amorosa. Decidiu adiar uma relação de amor ao infinito, interpretando, de forma
singular, o “amor morto” da psicose. Sua invenção consiste em fazer existir a relação
sexual, mas em um ideal projetado, assintótico, após a morte. Para isso, Marcelo, que
havia procurado “o bem-falar” nos Testemunha de Jeová, decide contrariá-los, pois,
para eles, os homens, no paraíso, são como anjos e não têm relações sexuais. Torna-se
espírita, pois esta religião lhe permite acreditar que, no paraíso, se casará com uma
Mulher.
Para finalizar, gostaria de tecer alguns comentários sobre o lugar reservado ao
analista na transferência neste caso. Devo dizer que no início de seu atendimento,
Marcelo tendeu a me colocar em um lugar próximo ao da Virgem de Fátima: uma
analista de “olhos grandes” que iria curá-lo de sua “urologia não resolvida”, expressão
que utilizava para designar sua dificuldade sexual. Depositava em mim um saber sobre
o amor e sobre o sexo que poderia com muita facilidade se converter em certeza e
perseguição. O amor de transferência me colocava em uma posição próxima ao Pai
gozoso que tudo pode e tudo vê.
Isso repercutirá, nos primeiros meses de nosso atendimento, no aparecimento de
uma transferência de claro conteúdo persecutório. Achava que se eu, por vezes, mudava
de sala de atendimento – coisas do serviço público... – era para testá-lo, chegou a dizer
148

sentir-se “um rato de laboratório” de meus “experimentos científicos”. Via indícios em


qualquer gesto ou palavra minha, achava que fazia parte de meu trabalho testar suas
reações, colocá-lo em situações inusitadas, dizia não conseguir entender no que
consistia o meu trabalho.
O tempo, a presença e a disponibilidade foram instrumentos importantes para
dissipar a transferência persecutória. Foi preciso que eu deixasse claro, em alguns
momentos, que pouco entendia sobre aquilo que ele estava me contando ou, em outros,
que eu mesma não tinha a menor idéia de como se poderia curar sua ‘urologia não
resolvida’ – nome que dava para sua impotência sexual –, mas que me dispunha a ouvir
sua história e a ajudá-lo a encontrar algum caminho. Abriu-se assim uma outra
possibilidade para mim na transferência. A partir de minhas intervenções, Marcelo me
designou a seguinte posição: “ajudar ouvindo”. Mostrou-se satisfeito e pôs-se ao
trabalho, confeccionando gráficos e cartas a mim endereçadas sobre sua história.

Dra Nuria,
GOSTO DAS PESSOAS QUE ME TRATAM BEM. Não demonstro isso
por estar muito doente e psicologicamente afetado. Sei que é uma
profissional e deseja subir na profissão, espero que suba, mas não
esqueça que apesar do mundo ser materialista, quando subir, trate seus
pacientes com carinho e sem esquecer do dinheiro. Acho que é possível
unir as duas coisas. Que Deus te abençoe.

Em sua carta, mostra o quanto o analista não deve se situar nem do lado do
‘amor’ e nem do lado do ‘profissional’. “Carinho” e “dinheiro” representam,
separadamente, nomes do gozo do Outro para Marcelo. A posição de ‘carinho’ lembra
em muito a posição de ‘amor universal’ da Virgem de Fátima, um Outro Todo, que
detém aquilo que viria completar o sujeito. Já o ‘profissional’ remete ao lugar das
prostitutas, que pelos serviços sexuais prestados, colaria a analista no lugar daquela que
detém a “cura da urologia não resolvida”. O lugar híbrido sugerido por ele parece mais
próximo daquele prenunciado pela philia aristotélica: um laço de trabalho capaz de
operar uma distância que o auxilie a encontrar formas de “enxergar o mundo de frente”.
149

4.3 Um anjo caído

Ricardo amava suas vozes como a si mesmo. Esse primeiro amor foi
descortinado por uma perda: após uma mudança de medicação, parou subitamente de
ouvir vozes. Sem elas, viu-se desertado do Outro, lançado em um mundo desprovido de
semblantes. Freud assinalou que, na esquizofrenia, a alucinação é tentativa de cura, pois
pode, por vezes, fixar o sujeito em um conteúdo que estanque a dispersão, dando-lhe um
nome que lhe permita situar-se em sua existência. As vozes o diziam “anjo” e, como
veremos, a direção de sua estabilização girará em torno de uma invenção singular feita a
partir dessa designação, redimensionando para ele o amor.

O fim das vozes

Quando comecei a atender Ricardo no CAPS, há aproximadamente três anos, já


havia passado por duas internações no HMJM. Aos 23 anos, o suicídio se apresentava
como sua única saída possível, pois sem as vozes não sabia mais o que fazer, o que
dizer, o que sentir. Perdido, não sabia como agir, o que pensar e, muito menos, como se
relacionar com as pessoas. Trouxe, nessa ocasião, escrita em um papel, a seguinte frase:
"Não consigo entender o que as pessoas falam, não consigo ter amigos, não sei o que é o
amor, é risível, é de rir".
O suicídio, saída apontada por ele como única, encontrava ressonância na
identificação de Ricardo com um cantor de rock que havia recentemente morrido de
overdose. Costumava comportar-se como se fosse o vocalista dessa banda:
“depressivo”, “só gosta de beber cerveja”, “se liga em pensamentos de morte”. A forma
como descreve seu encontro com o cantor em um show de rock permite-nos considerá-
lo como um fenômeno elementar que lembra aquilo que é experimentado pelo sujeito no
instante de olhar da paixão: “a perfeição absoluta”, “o mundo todo passou a fazer
sentido”. Essa experiência é vivida com perplexidade e sideração.
Dois episódios erotomaníacos são desencadeados sob transferência. Vejamos
como isso se deu. O primeiro foi aos dezoito anos, quando ouve, após algumas sessões,
vozes que lhe afirmam que sua psicóloga estava interessada nele. Conta ter tentado em
150

vão argumentar com as vozes que a achava gorda e feia, mas elas continuavam a lhe
ordenar “que ficasse com ela, pois iria emagrecer e ficar bonita”. Sua descrição aponta
para o caráter externo da erotomania, ressaltando o quanto o sujeito se vê impelido a se
colocar no lugar de objeto de gozo do Outro.
Sua família pede sem sucesso o auxílio de um pastor para libertá-lo dessas
vozes, mas, segundo Ricardo, sua freqüência na igreja evangélica só fez intensificá-las
ainda mais e aumentar seu consumo de bebida alcoólica. As vozes lhe diziam que só
havia ódio no mundo e que ele era um anjo, já acenando para o lugar de redentor, de
mensageiro, posição que ficará mais clara no decorrer do tempo de seus atendimentos.
Após a internação, é encaminhado ao CAPS. Lá começa a conversar, com uma
certa regularidade, com uma estagiária de psicologia. No período próximo ao fim do
estágio, uma voz lhe diz que deve tentar salvar essa moça. Segundo a voz, ela teria
sofrido abuso sexual por parte de seu pai. Ricardo passa então a achar que deveria ter
relações sexuais com a estagiária para fazê-la superar o suposto trauma. È internado
novamente no HMJM.
Mais uma vez, ele é chamado a “salvar a moça”. Podemos inferir que este
chamado situa-se na vertente psicótica da degradação da vida amorosa para o homem.
Como vimos, Freud mostrou que a escolha de objeto do homem pode repousar em uma
depreciação do objeto que visa, com isso, afastar o objeto incestuoso da cena sexual. O
interessante deste caso é que a idéia de salvar a mulher lhe vem do real, ou seja, vem
como um mandamento tirânico do supereu. O Outro lhe exige amor e salvação, mas
Ricardo, desprovido do atributo que completaria o Outro, se vê impelido a responder
com o seu ser.
Começo a atendê-lo após essa segunda alta. Falava o tempo todo em se matar
para pôr fim à falta de sentido de sua vida. Sentia falta das vozes, dizia-se sozinho sem
elas, não sabendo mais como se comportar e nem o que dizer. Posso inferir que as vozes
lhe conferiam uma certeza de ser amado que o situava na existência. Com as vozes,
Ricardo tinha a certeza sobre o desejo do Outro: o Outro quer o seu amor. O fim das
vozes o arranca da certeza de ser amado, não conseguindo mais entender o que as
pessoas falam e não vendo mais nenhum sentido nas relações sociais.
Os diálogos banais e cotidianos ganham, em contrapartida, uma potência
absurda de non sense. Achava-se diferente de todo o mundo, completamente “errado”.
151

Ficava nervoso com a presença das pessoas, entrava em pânico quando tinha que falar
com alguém: começava a tremer, suar, ficava paralisado. Nessa época, Ricardo mal
podia erguer o rosto, evitando a todo custo cruzar com o olhar do outro. Se as vozes
eram abusivas e intrusivas, a falta delas o deixava totalmente sem recursos para
responder à vontade de gozo do Outro. Ricardo fica, nesse tempo, entregue a uma
angústia mortal.
Mostrou-se reticente com a idéia de voltar a ser atendido por uma psicóloga,
provavelmente por temer que a exigência de amor se repetisse. Acredito que ao ter
acolhido seu amor pelas vozes, ou seja, ao não tentar persuadi-lo da idéia de querer
voltar a ouvi-las, pude evitar fazer lhes concorrência, isentando-me de ocupar, para ele,
um lugar de mestria. Suas tentativas anteriores de tratamento me fizeram ter bastante
cautela na abordagem deste paciente, pois temia que a oferta de um trabalho subjetivo
pudesse ser tomada por ele como uma exigência de amor. Coloquei-me à sua
disposição, dizendo perceber o quanto essa história do fim das vozes o aborrecia.
Ricardo passou a vir regularmente às suas sessões, deixando aos poucos de falar da
saudade das vozes. Pelo que me disse, percebeu que as vozes “não eram tão legais
assim”, pois também “falavam muitas besteiras” e o deixavam muito confuso, fazendo-
o, por vezes, “tirar conclusões erradas dos fatos”.

Ser um boy

Sua estranheza em relação ao mundo passa a ser o tema central de nossas


conversas. Ricardo diz não entender as pessoas, as relações sociais, sente-se diferente.
Conta que nunca teve uma namorada e acha que o sexo não é para ele. Diz ser “todo
complicado”, tímido, envergonhado. Deixa clara sua indefinição quanto aos seus
interesses sexuais, não sabe se gosta de homens ou mulheres. Sua liberdade frente a uma
possível escolha de objeto lhe é incômoda e o impulsiona, nesses momentos, a uma
errância suicida.
Tem, além disso, um outro “problema com os objetos”. Quando vê sujeiras ou
imperfeições em algum objeto, limpa-os violentamente. O objeto marcado ou desbotado
após a sua limpeza “fica” em sua cabeça. Os objetos alterados invadem assim o seu
pensamento, fazendo com que ele se veja obrigado a se livrar deles, única forma de
152

fazer com que eles “desocupem” seu pensamento. Se o psicótico carrega, segundo
Lacan, seu objeto a no bolso, Ricardo não fica atrás. Ocupa-se da impossível missão de
proteger seus objetos de arranhões ou sujeiras, o que faz com que tenha muita
dificuldade em lhes dar um uso. Situa seu exercício como algo que se opõe à “ordem
natural das coisas”, uma “compulsão”. A não extração do objeto a faz existir um a mais
de gozo nos objetos que ele quer, pela limpeza, livrar-se. Esse gozo, oposto “à ordem
natural das coisas”, deve ser posto como estando mais além do principio do prazer.
Parece-nos que a problemática dos objetos encena para Ricardo toda a sua
dificuldade e o seu esforço em lidar com o furo a partir da não-extração do objeto a. A
imperfeição dos objetos aponta para uma fenda impossível de ser suportada pelo
paciente. Inferimos que, nos momentos em que o furo aparece, vive algo da ordem de
um desligamento do Outro, uma espécie de morte subjetiva que o precipita em uma
angústia avassaladora.
Paralelamente, sua indefinição quanto à escolha de objeto vai se revelando
secundária a uma impossibilidade maior de situar-se como homem ou como mulher na
partilha dos sexos. A solução indicada pelas vozes, o “ser um anjo”1 dá conta e
esclarece o “ser estranho” (fora do sexo): “anjo não tem sexo”, dizia ele. Por ser um
anjo caído na terra, Ricardo acreditava nada “entender da vida, do sexo e dos homens”.
Essa idéia parece apaziguá-lo por um bom tempo e o protege de uma escolha de objeto,
o que o lançaria na problemática da partilha sexual.
É através do trabalho que Ricardo encontra uma via estabilizadora. Sua função,
ser um boy, entregando biscoitos na cantina do HMJM, coloca-o em um caminho que
freia a tendência de feminização que começava a aparecer em seu discurso. Não me
parece ser por acaso que esse trabalho como boy (garoto em inglês) tenha contribuído
para sua estabilização, dando-lhe uma possibilidade de conviver em um ambiente
masculino, do qual dizia antes nada entender.
Uma vez encontrada uma identificação (boy), através de seu exercício
profissional, que lhe possibilita circular pelo universo dos homens, o trabalho vem mais
uma vez prestar-lhe socorro, permitindo, através do dinheiro ganho, apropriar-se de
alguns objetos. O dinheiro, como valor de troca, possibilita que mantenha uma distância

1
No seminário Mais ainda, Lacan trabalha coincidentemente a homofonia entre étrange (estranho) e être
ange (ser anjo).
153

apaziguadora de seus objetos. Com a remuneração alcançada pelo seu trabalho, começa
a circular pela cidade, tentando trocar, vender e comprar novos cds. Passa a colecionar
cds, substituindo suas errâncias por uma “vagabundagem” salutar nas horas de almoço.
Seu universo musical se amplia. Descobre que existem algumas outras bandas
que lhe interessam, põe-se a fazer listas de músicas que gosta, “músicas perfeitas”, “sem
nenhum defeito”. Economiza dinheiro para, no final do mês, procurar em lojas e em
camelôs músicas que segundo eles ninguém gosta, pois são “diferentes, fogem do gosto
popular”. Passa a colecioná-las e a escutá-las, sentindo “prazer em ser diferente dos
outros”. Relata rir muito ao ouvir essas músicas, acha muito engraçado “escutar músicas
que dizem a verdade que ninguém quer ouvir”. Se os objetos anteriormente gozavam de
Ricardo, parece que, neste segundo tempo, consegue apropriar-se um pouco de um gozo
ligado aos objetos, de um gozo que parece predominantemente ligado ao que, neles,
revela do não sentido. Os objetos visados entram assim no circuito das trocas, objetos
parciais intercambiáveis, colecionáveis um a um.
Ricardo permanece quase um ano nesse trabalho protegido, decidindo ir
trabalhar, ainda como boy, na empresa de um conhecido de sua família. Seus
compromissos profissionais fazem com que Ricardo deixe de freqüentar o CAPS,
interrompendo, temporariamente, o seu atendimento comigo.

Mais uma vez, o amor

O amor fará mais uma irrupção na vida de Ricardo fazendo com que ele me
procure, alguns meses depois, no CAPS, bastante aflito. Desta vez, não se trata de uma
erotomania, mas de um encontro amoroso com uma ex-paciente – como ele – do CAPS.
O namoro engatado o deixa extremamente perturbado e ele se vê sem nenhum saber
diante “desse negócio de sexo”. O seu pedido de que eu o atenda em meu consultório, já
que seu trabalho o impede de comparecer no horário de funcionamento do CAPS, é
avaliado e avalizado pela equipe como importante de ser acolhido.
Passo a atender regularmente Ricardo que me conta que tentou procurar, nesse
meio tempo, outro psicólogo, mas que não conseguiu falar das coisas que fala comigo:
“aqui dentro é diferente, lá fora as pessoas não vão entender”. Apaixonado, diz não
saber o que fazer frente aos pedidos de sua namorada. Seu impasse pode ser explicitado
154

a partir de dois problemas derivados que se interligam: sua namorada lhe pede
desempenho sexual e palavras de amor.
Quanto ao primeiro pedido, Ricardo acredita que “amor não tem nada a ver com
sexo”. Para ele, portanto, é impossível fazer sexo com ela, já que ele a ama e sexo é
“filme pornô, putaria”, o que para ele não tem nenhuma relação com o amor. Quanto à
segunda demanda, que fale de amor, Ricardo também não pode responder, pois não
acredita nas “besteiras do amor, nesse negócio de que todo o mundo se ama e se quer
bem, na família feliz”. Suas tentativas de corresponder às expectativas sexuais de sua
namorada parecem expô-lo ao fracasso em assumir uma atitude viril: “eu não posso
transar com ela, esse negócio de ser o fodão não tem nada a ver comigo”.
A invenção de um novo nome vem re-arranjar sua impossibilidade de relação
com o amor e resolver sua indefinição quanto à sua identificação sexuada. Se o trabalho
lhe permite ser boy, Ricardo não encontra, entretanto, nenhum significante que lhe
permita ocupar no amor um dos dois lugares disponíveis na partilha dos sexos. Acredito
que a invenção de Ricardo tenha consistido em se difamar: ele passa a se dizer o
‘demônio’ e com isso evita mais uma vez a feminização. Lembremos que Lacan (1972-
73), fazendo um jogo de palavras no que diz respeito ao nome que um homem dá a uma
mulher, diz que “ele a difama”, brincando com a homofonia em francês entre difamá-la
e dizê-la fêmea (“on la dit-femme, on la diffâme” , cf. 1972-73:114).
Se o significante ‘anjo’ não o protegia da selva fálica, ao intitular-se “o
demônio”, Ricardo consegue fazer valer um certo semblante fálico. Essa nomeação
enigmática é acolhida pelo seu grupo e lhe confere um certo poder oculto que o ajuda,
por exemplo, a sair pela tangente toda vez que seus colegas falam sobre sexo. Quando
fala de uma situação na qual não sabe o que fazer, exclama: “sexo é o caralho, eu sou o
demônio!”.
A partir do término de sua relação amorosa, cessam os pesadelos de separação
que se haviam tornado freqüentes: “as pessoas correm e eu também devo correr.
Quando elas se encostam, devem vomitar para evitar explodir. Sai uma coisa gosmenta,
nojenta, lá de dentro”. Se antes vinha cultivando a idéia de “ir beber cerveja no
cemitério, com os mortos”, a partir de sua nova nomeação passa a freqüentar um bar
cujo nome curiosamente evoca, assim como seu novo nome, a dimensão de um enigma.
Passa a atacar cada vez mais, em suas sessões, o senso comum que ele chama de
155

“fingimento, mentira”. Acha tudo muito engraçado e ri muito quando me conta as


mentiras nas quais as pessoas acreditam, pontuando seu discurso com suas estranhas
interjeições: “eu sou o demônio!”.
O namoro de Ricardo acenou para um amor que, por exigir “dar o que não se
tem” o colocava em um risco irremediável de desaparecimento, abolindo-o como
sujeito. Após o término dessa relação, decide que não quer mais namorar uma menina
qualquer, mas alguém que seja sua “igual”, ou seja, que não lhe peça para dar aquilo
que ele não tem. A esperança de que venha a existir alguém igual a ele, faz com que
consiga suportar o quanto “é irônico não ter um lugar, ser o demônio, um anjo caído na
terra”.
O amor que ele pleiteia é um amor do “igual”, “uma menina roqueira de cabelo
vermelho” que faça Um com ele. O problema é que, o amor, ao estar para ele
profundamente conectado à imagem, torna sua fixação impossível. A instabilidade da
imagem faz, assim como no caso de seus objetos, que o amor não se sustente,
fracassando constantemente. Podemos supor que o amor que Ricardo almeja é
contrário ‘a ordem natural das coisas’. Visando à sua conservação, impõe uma inércia
que retira dos objetos sua marca de viventes. A concepção de amor que parece
impulsionar a procura de Ricardo é o de um amor da forma, e por isso, estanque,
estéril, morto.
Isso não o impede, entretanto, de sustentar há quase dois anos um trabalho onde
pode, como boy, habitar e circular pela cidade. Embora julgue deter a verdade sobre o
seu ser, Ricardo sabe que ela não pode ser toda dita: “só aqui é possível falar, as
pessoas não estão preparadas para ouvir”. Endereça-me, por achar que estou preparada
para ouvir, a sua verdade, “a sua mensagem”, pedindo-me para ajudá-lo a sustentar a
sua nova invenção. Embora mortificado, diz que atualmente consegue, como
‘demônio’, “se virar, sobrevivendo no meio de pessoas que acreditam nessa porra
toda”. Como um anjo caído de Wim Wenders2, continua, entretanto, a sua procura por
uma maneira de poder sentir o que é o amor, única condição de poder, para ele,
encontrar, no mundo, um lugar onde alojar a sua existência.

2
O filme em questão é Asas do desejo de 1987.
156

4.4 Ninguém me ama... porque eu cheiro mal

O amor aparece em toda sua negatividade para André, cujo sentimento de


inadequação e estranheza marca primordialmente sua relação com o mundo. Localiza,
com agudeza, em sua mais tenra infância o aparecimento daquilo que ele reconhece
como um desejo mortífero por parte de sua mãe: “como é possível viver quando sua
própria mãe deseja a sua morte?” O desejo não parece, de fato, ter sido orientado para
André pela versão do pai que viria barrá-lo, deixando-o à mercê do amor-gozo mortífero
e ilimitado da mãe.
Lacan demonstrou os estragos causados na criança que é implicada no sintoma
da mãe como correlata da fantasia. A criança torna-se assim o objeto a da mãe, vindo a
“realizar sua presença na fantasia” (1969:369-370). O problema maior na condução do
caso encontra justamente ligação com esse aspecto mortífero do desejo da mãe: para
André um desejo equivale a uma ordem e como, para ele, o desejo é mortífero, é levado
a pôr sua morte constantemente em ato. Como dissemos, Lacan assinala que, na psicose,
a versão do pai que poderia barrar o desejo ilimitado do Outro não operou.
Encontramos, na história do paciente, ecos da fragilidade paterna: André, que não
chegou nem mesmo a conhecer o nome de seu pai, teve como único recurso para
designá-lo uma vaga caracterização de sua adição: “só sei que era um alcoólatra”.
O início de seus problemas é situado por ele aos quatorze anos, quando se
apaixona por uma menina de sua turma que “era”, segundo ele, o nome dele no
feminino. Tomado de amores, passa a exalar um cheiro “muito forte, ruim” que o leva a
se afastar progressivamente das meninas e da escola. Confrontado com a versão
feminina de seu nome, parece se ver desprovido de recursos para significar a diferença
sexual e, conseqüentemente, de se situar na versão masculina da divisão dos sexos. O
desejo sexual parece produzir um odor, provavelmente ligado ao advento da puberdade,
impossível de fazer signo, para André, de sua masculinidade.
O amor o confronta com o enigma da partilha dos sexos, fazendo surgir um
fenômeno elementar, o cheiro ruim, que marcará sua posição delirante de objeto-dejeto
do Outro. Pode-se dizer que no caso dele o advento do amor foi fatídico, lançando-o,
aos quinze anos, em uma morte subjetiva. Tentando em vão livrar-se de seu cheiro
através de produtos cosméticos, tenta o suicídio pela primeira vez: “coitado daquele que
157

não sabe morrer. Eu morri aos quinze anos”. Com rigor, explica, refazendo os passos de
Freud: “Mas não é uma morte física não, Nuria. É uma morte subjetiva!”.
O diagnóstico bromidrose, dado por um dos inúmeros dermatologistas que
procurou, parece promover através desse nome uma pequena organização para ele após
a sua morte subjetiva. A definição encontrada no Dicionário Aurélio “secreção de suor
fétido”, parece corroborar nossa hipótese de que esse fenômeno veio em resposta à
emergência do sexual para este sujeito. André acaba, contudo, abandonando qualquer
atividade por sempre sentir que as pessoas “riem de seu mau odor”. A não extração do
objeto a é vivida por ele como um excesso olfativo: objeto pútrido que invade com sua
presença as narinas alheias.
A primeira internação decorre de um episódio heteroagressivo em resposta a
uma situação de rivalidade imaginária. Aos dezoito anos, é chamado a servir o exército,
ou seja, a ocupar uma posição de submissão ao falo. Conta que se sentia muito triste e
perdido na caserna, e que não conseguia dormir. Um dia, se recusa a obedecer às ordens
de seu superior imediato, dizendo “só obedecer a Deus”. Fazendo valer sua liberdade
mais radical, André contesta qualquer autoridade já que para ele, na falta da lei paterna,
a lei é vivida em sua mais profunda arbitrariedade. Esse episódio acaba em agressão
física: “apanhei muito, mas também bati” e desencadeia sua primeira internação.
É encaminhado ao antigo CAD do HMJM indo, posteriormente, para o CAPS3,
durante uma dentre as inúmeras internações pelas quais passou. Sua história
institucional é de inúmeras tentativas de suicídio e automutilações, recheada de uma
enorme dificuldade em vincular-se a atividades terapêuticas, laborativas ou até mesmo
em seguir com regularidade um acompanhamento médico ou psicanalítico. São
constantes suas queixas de que o mundo, mas principalmente seus vizinhos e os técnicos
e pacientes do CAPS, o humilham por causa de seu cheiro. Sente não ser bem quisto no
seu bairro e no CAPS, crê que tudo de ruim que acontece é atribuído a ele. Chegou,
bastante exaltado, a dizer numa sessão: “se o mundo parar de girar agora em torno do
sol a culpa também vai ser minha?”
Há aproximadamente seis meses a freqüência de suas internações diminuiu. Em
compensação, ele pouco vai ao CAPS ou ao trabalho protegido na livraria do HMJM da

3
O CAD, serviço que se propunha a funcionar nos moldes de um hospital-dia para atender pacientes
egressos de internações psiquiátricas do HMJM, deu origem, em 1998, ao atual CAPS Bispo do Rosário.
158

qual é funcionário. Sua regularidade nos atendimentos psicanalíticos tem se mantido


precariamente estável há pelo menos dois anos e, atualmente, começa a esboçar um
trabalho delirante. Apesar disso, a morte continua a rondá-lo com freqüência, exigindo
dele o empreendimento de uma luta diária, ou melhor, noturna, pela sua sobrevivência:
todas as noites, o diabo bate em sua porta e lhe arranca os dentes, fazendo com que
André tenha de sustentar o trabalho incessante de reimplantá-los novamente a cada dia.
Entretanto, há algo que o faz resistir e continuar a lutar: a idéia de que no inferno não
poderá mais ler seus livros.

Amar os livros

O amor pelos livros começou cedo para André: lembra-se de ter gostado muito
de ler durante sua infância, tendo sido, até o abandono dos estudos, o melhor aluno de
sua classe. É um paciente muito culto, que herdou de um falecido vizinho uma extensa
biblioteca. Dedica a maior parte de seu tempo à leitura e é a ela que recorro enquanto
analista naquelas situações críticas nas quais André manifesta o desejo de morrer. Por
exemplo, em uma ocasião em que disse que ia cortar os pulsos porque a vida não tinha
nenhum sentido, relembrei-lhe que estava lendo um livro intitulado O sentido e o valor
da vida, incentivando-o a continuar o seu trabalho de leitura.
Apesar de todas as dificuldades em se manter vivo, André trabalha como livreiro
no HMJM, recebendo uma bolsa por esta atividade. Este caso ilustra o quanto sustentar
o lugar de um paciente em um trabalho protegido, apesar dele quase nunca comparecer,
pode ser, acima de tudo, um dever ético. Como dissemos, sua freqüência no CAPS,
assim como no trabalho, sempre foi bastante irregular. Sua permanência na livraria já
esteve várias vezes posta em questão pela equipe, pois ele quase não consegue participar
da reunião semanal da livraria e poucas vezes cumpre o seu horário de trabalho. “A
livraria é meu único elo com o mundo”, diz ele, fazendo-nos entender o quanto é
preciso rever constantemente a posição institucional diante de suas faltas ao trabalho. A
solução encontrada pela equipe do CAPS foi, em acordo com André, definir que suas
faltas seriam descontadas de seu salário.
As dificuldades clínicas que este caso evoca são relativas ao fato de que toda
exigência de trabalho é insuportável para este paciente, trazendo constantemente à cena
159

o risco de uma batalha imaginária semelhante ao episódio da caserna. Todas as vezes


que algum membro da equipe de cuidados assumiu uma posição de fazer valer regras
institucionais, André reagiu com atos. Evade de suas internações, nunca consegue
cumprir acordos de tratamento, falta aos seus compromissos de trabalho. Quando se
tentou agir com ele de uma maneira mais disciplinar, fugia, para retornar, em um
segundo tempo, todo cortado e ensangüentado.
Esvaziar as relações transferenciais e os investimentos libidinais de um excesso
de gozo é a direção clínica na qual se sustenta a prática no acompanhamento de André.
Este caso revela o quanto o analista é chamado a se posicionar na psicose, pois se a
exigência de trabalho pode ser persecutória, a neutralidade conduz, nessa mesma via, a
um excesso mortífero. O silêncio é tomado, por exemplo, por André muitas vezes como
permissivo e indiferente ganhando um valor mortal, signo de que o Outro
verdadeiramente quer o seu desaparecimento.
A fala, por outro lado, toma muitas vezes a forma de uma injunção e, por isso,
demandar a André que fale, pode desestruturá-lo ainda mais. Sua dificuldade em
freqüentar as reuniões da livraria situa-se nessa problemática, assim como sua
convivência institucional no serviço. Tomar a palavra é vivido por André como uma
injunção fálica, lançando-o em um abismo incontornável, diante do qual só lhe resta
entregar o seu corpo. Restringir os espaços de fala de André aos seus atendimentos foi
uma estratégia institucional importante para tentar dar à sua fala um suporte, um
continente.
As inúmeras passagens ao ato que acompanharam sua freqüência institucional
no CAPS e a observação da diminuição de tentativas de suicídio com o seu afastamento
do convívio cotidiano no serviço indicam que o coletivo tem um efeito muito dispersivo
e mesmo devastador para André. Isso não nos isenta, entretanto, de tentar inventar
recursos que lhe permitam suportar o laço social ofertado pela instituição sempre que
André assim o desejar. Sobre seus cortes e tentativas de suicídio realizadas sob
endereçamento transferencial à instituição, diz claramente ter querido chamar a atenção
dos técnicos e dos pacientes para o seu sofrimento. Além de ter se jogado do segundo
andar do HMJM, sofreu graves intoxicações por ingestão de “chumbinho”, vindo a ser
internado por diversas vezes em um hospital geral para submeter-se a lavagens
gástricas.
160

Por André suportar muito pouco o confronto com suas próprias decisões, é
preciso evitar, no manejo institucional de seu caso, encarnar para ele qualquer postura
que possa ser tomada como uma injunção fálica: não o estimulamos a trabalhar ou a
manter acordos que ele mesmo propõe, mas que, na maioria das vezes, não consegue
cumprir. Tentamos nos manter isentos frente aos seus projetos, dizendo-lhe apenas que
“é bem-vindo” e que o CAPS se mantém disponível para ajudá-lo. Obtivemos, com isso,
uma diminuição considerável de seus acting-outs. Chegou a verbalizar em análise, um
pouco antes, a esse respeito: “as pessoas querem que eu freqüente o CAPS, mas não
entendem que meu caso é muito grave. Eu já tentei várias vezes o suicídio”.
Suas atuações dirigidas à equipe diminuem assim como a sua freqüência no
CAPS: se antes André chegava todo ensangüentado ou batia a cabeça na parede até
fazer enormes hematomas, agora diz não querer mais “protagonizar cenas bizarras”,
pedindo que eu o atenda no ambulatório do HMJM. “É menos promiscuo”, argumenta
ele, não me deixando outra saída se não aceitar o seu pedido. Essa distância do CAPS
fez com que André passasse a poder, muito eventualmente, recorrer a ele quando não se
sente bem: seja para pedir uma medicação injetável, seja para “tomar um suco e
conversar um pouco”.

Uma amizade de transferência: ler para alguém

O caso de André parece, portanto, corroborar a tese de Lacan de que a psicose é


um fracasso na efetuação daquilo que se chama amor, além de evidenciar o aspecto
mortífero do amor morto. Autorizada pela clínica, poderia ter intitulado sua história
como: “André, um caso de desamor”. No entanto, posso dizer que este caso adquiriu
para mim valor de paradigma no que se refere às possibilidades de invenção do amor na
psicose. Aprendi com André que o desejo do analista na psicose é aquilo que há de mais
determinante em um tratamento. Lembremos, com Lacan, que o desejo do analista está
intrinsecamente ligado à diferença absoluta, ou seja, ao advento do sujeito enquanto
falta-a-ser. A amizade de transferência só pode ser inventada na psicose a partir da
criação de um vazio, de uma distância, condição única para que um sujeito possa vir a
advir. Remontemos os passos de seu tratamento no que diz respeito à construção de uma
philia enquanto laço de trabalho entre paciente e analista.
161

Este caso me remete diariamente ao ensinamento de Lacan sobre a psicose como


sendo ‘aquilo diante do qual um analista não deve recuar’. Parece que um pequeno
recuo pode significar para o paciente a sua vida inteira, “tudo ao mesmo tempo agora”,
de uma vez só. Aprendi com André que é preciso também ter muita paciência, esperá-lo
apesar de suas ausências, acolhê-lo apesar de sua não vontade, assim como
disponibilizar o telefone de minha casa e eventualmente aceitar suas ligações a cobrar.
Comecei a atender André a pedido de seu antigo analista que precisou sair do
CAPS para trabalhar em uma outra instituição. André já era, entretanto, para mim um
velho conhecido do período em que trabalhei na emergência do HMJM. Freqüentes
foram às vezes em que atendi André antes de suas inúmeras internações. Ao ver-me no
CAPS à sua espera, disse contente: “eu conheço ela!”. Acredito que esses encontros
prévios tenham facilitado o início do tratamento, já me colocando do lado daqueles que
não desejavam a sua morte.
Triste com a saída de seu antigo analista, André compra o livro que este acabara
de publicar e lê trechos para mim em suas sessões, pontuando com comentários sobre o
que entendeu ou sobre o que pensou a respeito. Esse procedimento marca sua
transferência comigo: o livro de seu ex-analista inaugura uma série, trazendo com
freqüência livros de psicanálise, filosofia ou literatura dos quais costuma extrair um
trecho que lê para mim. Entre uma frase e outra escolhida de sua leitura, André começa,
como quem não quer nada, a me contar a sua história: “Sabe, Nuria, eu não estou
querendo me matar não, acabar com a vida, tomar veneno de rato, beber detergente...
está tudo bem!”. O recurso que André encontra para falar seja de seus repetidos cortes e
mordidas nos braços, que ele chama de “seus estigmas”, seja de suas inúmeras
tentativas de suicídio é retirando-se de cena enquanto sujeito. “Isso aqui não é nada não,
só uns cortezinhos nos braços, só. Nada de mais, só uma vontade de morrer que dá
assim nas pessoas”.
Em muitos momentos precisei colocar-me veementemente contra suas tentativas
de auto-agressão. André tentou cortar-se algumas vezes durantes os meus atendimentos
e cheguei a precisar segurá-lo para impedi-lo. As negociações para interná-lo eram
então intermináveis e exaustivas, exigindo paciência e determinação. André insistia:
“Uma pessoa não tem o direito de tirar a sua própria vida? Se eu não ligo, porque você
está ligando? Porque você se importa comigo?” Deslocando-me do lugar de lhe querer o
162

bem – que seria equivalente a lhe querer o mal – frisava meu dever ético de sustentar a
continuidade de seu trabalho subjetivo.
As passagens ao ato de André puderam ser localizadas em resposta a situações
nas quais é chamado a sustentar uma posição desejante, o que não facilita em nada o
trabalho analítico. Desde o episódio de seu primeiro amor, a dimensão do desejo
aparece correlata, para ele, ao gozo do Outro. A radicalidade de sua posição de objeto
do Outro faz com que qualquer possibilidade de ocupar uma posição desejante lhe seja
interditada. Aos dezessete anos, por exemplo, queria ser astrônomo. Seu desejo faz, sem
nenhuma trégua, irrupção no real: um dia, vê, do alto de sua laje, formar-se uma
mensagem cifrada no céu, indicativa de algo “profundo e misterioso” que marcará todo
o seguimento de sua vida.
Através de suas leituras em análise, foi incorporando, em sua fala, um colorido
maneirista. Sua família o acusa inclusive de querer “bancar o psicólogo e de falar
difícil”, mas André situa sua invenção particular de fala como uma solução por ele
encontrada para evitar “palavrões”, afastando assim “energias ruins”. O linguajar
teórico ‘psi’, extraído de suas leituras, tem para André um uso bastante singular. Situa,
por exemplo, sua doença como “psicossomática” (que é a soma de todas as doenças
psíquicas) ou então suas tentativas de suicídio e automutilações como “psicodramas”
(dramas com conteúdo psicológico). Para ele, que não conhece nem mesmo o nome do
pai, o nome ganha um valor de condensador de gozo. Em sua história, pudemos
verificar que o diagnóstico de ‘bromidrose’ teve um efeito apaziguador em relação a sua
alucinação olfativa.
Sua freqüência aos atendimentos, inicialmente bastante irregular, passa, em um
segundo tempo, a ser preenchida por seus telefonemas à minha casa sempre que falta,
seja para perguntar, confirmar ou remarcar suas consultas, ou simplesmente para me
contar algo que leu. Por duas vezes, André me ligou para dizer que tinha tomado
comprimidos em excesso e pedir minha ajuda. Felizmente pude contatar seus familiares
e estes o hospitalizaram a tempo de evitar o pior. Penso a posteriori que estes momentos
críticos marcaram o início de uma nova fase na qual começou a falar de suas vivências
propriamente psicóticas: de sua alucinação auditiva na qual ouve “o barulho da
atropina”, remédio injetado no soro durante a desintoxicação por veneno de rato, ou dos
espíritos que o seguem em casa.
163

As construções delirantes têm começado a aparecer timidamente no discurso de


André que, muito desconfiado, pergunta se vou “rir ou chamá-lo de debilóide” antes de
conseguir falar. O trabalho de construção é delicado e cotidiano. Ele recusa a posição
feminizante na qual o delírio o coloca, queixa-se das “forças neurolépticas malignas”
que tomam o seu corpo, mas consegue por vezes recontar suas tentativas de suicídio.
Sobre estas últimas, é preciso dizer que as intoxicações por chumbinho cessaram há
alguns anos. Consegue localizar em análise a invenção que barrou essa forma de
empuxo-à-morte: através de um poema de Manuel Bandeira, identifica-se “ao homem
que está por detrás do rato”. Reproduzo a seguir o poema em questão, intitulado “O
bicho” (27/12/1947):

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,


Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,


Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

O homem por detrás do rato é, na interpretação de André, um mendigo, “uma


pessoa à margem, um sujeito sem lugar fixo”. Situo, neste ponto de sua análise, o
afastamento do CAPS e da livraria e sua aproximação de alguns “alcoólatras” que
vivem em uma pracinha perto de sua casa, indo ler e beber cachaça com eles nos
momentos em que se sente muito só. Lembremos que o significante alcoólatra não deixa
de evocar o pai de André, a única versão do pai à qual ele pôde ter acesso. Fazer laço
torna-se possível para ele na margem, resgatando, com a sua única conexão simbólica
ao pai, uma defesa, mesmo que precária, contra o desejo do Outro: “prefiro ser
ninguém, ninguém não precisa morrer”.
Curiosamente, André me fez compreender e me ensinou muito sobre a
transferência na psicose. Quando fiquei grávida, economizou dinheiro para comprar um
164

mordedor de presente para o meu bebê, marcando seu voto de que este novo ser pudesse
ter mais socorro do que ele frente ao impossível de dizer. Recentemente, leu para mim
uma história na qual um amigo salva o outro da morte, apesar de todos os percalços
pelos quais precisa, para isso, passar. Um pouco depois disse: “Eu não tenho amigos”.
Após um breve silêncio, falou: “Você é minha amiga. Só venho ao CAPS em
consideração a você”.
Penso que o lugar que André me concedeu na transferência foi algo da ordem da
philia, da amizade, não enquanto relação afetiva, mas enquanto uma relação que deve
ser solidamente institucionalizada. “Você atua em prol da pessoa, não fica me
sofismando”, disse a respeito do lugar que ocupo para ele no trabalho analítico. Aceitar
ser tomado como semelhante por alguém que, para ele, não o é, é sem dúvida,
apaziguador para André. Tento oferecer a ele um lugar onde possa compartilhar os
efeitos e os destinos que o gozo do Outro causa em sua vida, esvaziando-me de qualquer
desejo de saber sobre o seu delírio. Sei que o trabalho com André é trabalho de uma
vida inteira, aposta de que algum dia ele venha a poder libertar-se um pouco do ciclo do
qual é prisioneiro. Estranho ciclo, que faz com que em uma hora esteja mortificado,
apático e, em outra, suicida, tramando ou tentando se matar. Há pouco tempo, uma
mudança importante se operou em seu discurso e, fazendo uso de um tom confessional,
me disse: “sabe, Nuria, eu digo sempre que quero morrer, mas na verdade eu tenho
muito medo, acho que eu não quero morrer não... ou pelo menos não quero me matar,
quero morrer de morte morrida”.
Como disse, é uma aposta e, como toda aposta, compreende alguns riscos. Em
uma época em que estava em dúvida quanto à minha permanência no trabalho do
CAPS, me assegurou: “se você não puder estar mais aqui não tem problema não, é só
me encaminhar para outra pessoa”. Indicando, a seguir, como, para ele, se sustenta a via
de uma transferência que não o aniquile enquanto sujeito: “Você pode ir embora, o que
importa é que eu continue tendo o meu lugar... o meu lugar de poder ler um pouco para
alguém”.
165

4.5 Inventar o amor: algumas conclusões

A partir do exame de nossos três casos clínicos e da localização das invenções


que cada sujeito realizou para tentar construir um amor que lhe seja possível de
suportar, tentaremos, antes de nossa conclusão final, extrair alguns pontos em comum
relativos à clínica do amor na psicose.
O encontro amoroso foi um elemento desencadeador nos três casos relatados. O
primeiro teve relação com a dimensão escópica, marca do gozo invasivo do Outro para
este sujeito. No segundo, o gozo do Outro aparece na transferência erotomaníaca,
exigindo uma resposta viril para este sujeito. Já para o terceiro, o amor se liga
primordialmente ao desejo da mãe, enquanto desejo não limitado e, portanto, mortífero,
o que nos deixa pouco seguros de localizar o desencadeamento de sua psicose. É
interessante observar que as construções desses sujeitos girarão em torno de cada um
desses três elementos principais: olhar, virilidade e desejo, tentando, pela via do amor,
encontrar um caminho apaziguador que lhes permita separar-se um pouco desse objeto
que carregam no bolso, tornando o gozo menos intrusivo.
O sexo é localizado pelos sujeitos como estando intimamente ligado com suas
mortes subjetivas, tempo em que o sujeito desaparece para ser reconstruído, apesar de
suas seqüelas (no primeiro, situadas na imagem do corpo; no segundo, no sentido da
linguagem e no terceiro, no real do corpo) a partir de pedaços, restos e fragmentos
extraídos do retorno do simbólico no real. Por essa mesma razão, embora um de nossos
sujeitos já tenha tido uma experiência sexual, os três evitam o sexo e o localizam como
um elemento desestabilizador.
O amor é almejado como garantia de que o Outro não goza do sujeito, embora
quase nunca consiga fazer essa função. Entretanto, a transferência de gozo, dirigida a
um semelhante, pode fazer com que o psicótico faça de seu analista um parceiro. O
suporte do laço transferencial com o analista parece, assim, promover uma sustentação
mínima que, pela invenção de uma amizade de transferência, laço surgido através do
trabalho de barragem do gozo e de localização de um objeto ou de uma invenção que
lhe faça borda, inaugure uma possibilidade de laço social para o sujeito. Marcelo e
Ricardo conseguiram fazer laço social fora da situação analítica, ancorados pelas suas
166

invenções de identificação (espírita e demônio) e André parece ensaiar essa direção


através de sua busca na margem, pelo pai (alcóolatra).
Nosso primeiro sujeito pôs o amor em um futuro assintótico, como um anteparo
ao gozo escópico do Outro, adiando o encontro com o sexo para um futuro após a
morte. Ricardo busca o amor do igual, um pouco como parece ter sido o caso de Joyce,
alguém que faça Um com ele, garantindo-lhe um lugar. André tem caminhado na
direção de sustentar com o analista o amor como philia, doando um pouco de seu saber
através de suas leituras.
Se o amor e o saber estão indissociavelmente ligados ao gozo na psicose, seu
apaziguamento pode trazer novos remanejamentos da relação do amor com o saber e é
aí que a tarefa do analista encontra na psicose, toda a sua função.
167

CONCLUSÃO

Há amor na psicose? Acreditamos ter demonstrado, ao longo desta tese, que sim.
Entretanto, o amor do qual se trata não pode ser considerado a partir da ‘normalidade’,
ou seja, não pode ser tomado a partir da ficção do falo. Evidenciou-se para nós que
Freud, ao partir da neurose para a compreender a função do amor, obscureceu seu olhar
para as possibilidades transferenciais da psicose e acirrou seu ceticismo em relação as
possibilidades terapêuticas da psicanálise quando empregada às psicoses. A obra
freudiana deixou, apesar disso, inegáveis indícios da transferência na psicose - mesmo
que em sua vertente de risco transferencial - servindo de base à Lacan para sustentar um
tratamento possível da psicose.
A transferência foi um fio condutor importante de nossa tese. Marca singular do
tratamento analítico e condição de sua produção, permite que resgatemos, apesar das
diferenças estruturais, uma certa continuidade entre os campos da psicose e da neurose.
O amor na psicose não pode mais ser posto assim em dúvida e, do mesmo golpe, a
neurose e seu amor não podem mais servir como modelos de nossa ação. Atribuo a
Freud, e ao seu ato de fazer de Schreber um caso, um legado fundamental acerca do
tratamento da psicose.
O amor na psicose, ao requisitar o sexual, carrega o risco de desestabilização.
Freud desvelou o seu aspecto real ao demonstrar que, ao retornar desde fora, traz um
caráter externo ao sujeito. Tomando a paranóia persecutória como paradigma, Freud
demonstrou que ela nos dá a chave da transferência, na medida em que situa onde não
devemos nos posicionar.
O amor de transferência pode se apresentar na psicose como a certeza de que o
analista ama o sujeito (ou o odeia). A erotomania e a perseguição podem assim
anunciar-se como riscos transferenciais no horizonte de uma análise. O sujeito, quando
submetido ao outro do delírio, pode tornar-se vítima de suas paixões. Isso acontece na
medida em que o sujeito pode viver, na psicose, a paixão não enquanto agente, mas
168

enquanto vítima dela. Pode ser, portanto, amado, traído ou odiado por aquele que aceitar
ser por ele colocado no lugar de Outro do delírio.
Com a decomposição, Freud mostra que há um movimento, no delírio ainda não
sistematizado, que tende a deslocar o personagem hostil. Podemos dizer, a rigor, que a
perseguição só é total quando a passagem ao ato é consolidada. O manejo da
transferência consiste em detectar um ponto de abertura no delírio de onde seja possível
manobrar. A decomposição provoca cisões nos personagens delirantes, e é aí que a
manobra do analista pode se dar: reiterando ou rejeitando as soluções inventadas pelo
sujeito para dar conta de suas transferências e de suas relações com o mundo.
Em Schreber, a decomposição de seu médico em vários personagens foi por nós
considerada como uma tentativa do sujeito de restituir algum lugar possível a Flechsig
na transferência. Prova, além disso, que o delírio, embora tenha tido um efeito de
apaziguamento, não faz sozinho função de cura. Para o sucesso do delírio, é
fundamental uma resposta por parte do destinatário, uma espécie de confirmação de
recebimento. Acreditamos, portanto, que não basta criar uma solução delirante, é
preciso que esta seja endereçada a alguém e que este alguém seja capaz de acolhê-la do
lugar de destinatário. Defendemos, portanto, a idéia de que o delírio como tentativa de
cura só pode ser considerado um sucesso se a sua produção tiver um endereçamento.
Retomando o fio deixado pela psiquiatria clássica, Freud optou por aproximar as
psicoses passionais da paranóia. A melancolia permaneceu, entretanto, em um lugar um
pouco marginal em sua obra, abrindo uma interessante via de investigação da diferença
entre aqueles sujeitos psicóticos que colocam em seu delírio uma ênfase na relação eu -
outro (paranóia persecutória) e aqueles que se ocupam mais do eu do sujeito. A
melancolia é um bom exemplo a respeito desse último caso, na medida em que o retorno
no real não se mostra com tanta clareza como na forma persecutória. A dimensão do
parceiro não está tão enfatizada, a dialética do “ou eu ou outro” não se apresenta tão
explicitada.
Nossa hipótese é que a melancolia realiza a ameaça de abolição do eu presente
na relação dual: nela o eu passa a se tomar efetivamente como outro. A realização do
luto do objeto perdido torna-se assim uma impossibilidade na melancolia. Se, na
melancolia, o sujeito toma o seu eu como um outro, uma questão se coloca: o amor é
169

impossível na melancolia? Amar é, neste caso, tornar-se necessariamente um outro


faltante?
Como demonstramos, ao revisarmos o papel da paixão na psiquiatria clássica, o
delírio passional é o que mais se aproxima da pretensa normalidade, colocando, por
isso, uma dificuldade maior relativa ao diagnóstico diferencial entre neurose e psicose.
Consideramos que é de suma importância a revisão crítica dessa categoria diagnóstica
para a clínica atual da psicose em instituição. Por ser um tipo de delírio que se aproxima
mais da pretensa normalidade, induz a erros diagnósticos importantes. Como abordamos
no segundo capítulo, a solução encontrada por um autor como Clérambault foi a de
destacar o esforço como traço inicial, constante e determinante das características do
delírio erotomomaníaco, exigindo a sua presença para fechar o diagnóstico de psicose
passional.
A ênfase que a psiquiatria atual dá ao delírio persecutório em detrimento dos
delírios passionais contribui paralelamente para acirrar esse mal entendido no campo da
saúde mental. O ponto que turva o diagnóstico de uma psicose passional é, ao nosso ver,
aquilo que Clérambault chamou de tendência a passar às ações e que é geralmente
compreendido como uma tendência a fazer cena, o que poderia se confundir com um
quadro histérico.
Um outro preconceito teórico concerne à idéia de que o delírio é apenas marca
de uma patologia ou, na melhor das hipóteses, trabalho individual de cura. A própria
psiquiatria clássica desmonta essa idéia ao evidenciar, com a folie à deux, que o delírio
pode também ser um tipo de amor. O delírio a dois mostra, além disso, que não é
preciso ser psicótico para delirar, já que o personagem induzido também delira.
Mostramos, a partir do caso Aimée de Lacan, que compartilhar o delírio pode ser
uma forma particular de laço social. Lembremos que sua paciente construiu o seu delírio
em torno de uma coincidência histórica ligada à maternidade – a morte acidental de uma
irmã de Aimée quando sua mãe estava grávida dela - que veio marcar uma similaridade
entre o seu delírio e o de sua mãe. Podemos, com isso, inferir que o delírio não deixa de
ser um certo modo de participação social. É preciso esclarecer, contudo, que não se
trata, no dispositivo analítico, de compartilhar a loucura, vide a potência mortífera que
ganha um delírio a dois. Alguns aspectos importantes devem, entretanto, ser extraídos
170

da função que pode ter, para um psicótico, a possibilidade de transmitir o seu saber
delirante.
Como dissemos, o delírio passional costuma ser mais socialmente aceito do que
o delírio persecutório, no sentido de poder ser mais facilmente confundido e integrado
no discurso do senso comum da paixão (seja de ciúme, de reivindicação ou de amor).
O ciúme é um ótimo exemplo a esse respeito: não pode ser definido pela sua
relação - ou falta de relação – com a realidade. Como mostramos a partir das teorizações
de Lagache, o erotômano não costuma sentir ciúme de seu objeto de amor. A convicção
delirante de ser amado pode não deixar lugar para a ocorrência do ciúme. A idéia de ser
amado persiste, muitas vezes, apesar do objeto ser comprometido ou de não
corresponder às expectativas do amado. É interessante observar que, por outro lado, o
ciúme atribuído ao objeto pode ser, na erotomania, um excelente antídoto contra as
investidas amorosas de terceiros.
Concordamos com Lacan quando considera que a categoria passional deve ser
compreendida dentro das psicoses paranóicas. Contudo, a ênfase dada na atualidade ao
delírio persecutório, fez com que se tornasse quase que um sinônimo de paranóia. Ao
nosso ver, essa sobreposição de termos provocou um certo empobrecimento na
compreensão desta modalidade clínica. O estudo do delírio passional na paranóia
permite avançar questões importantes relativas ao laço que o psicótico estabelece com
os outros, contribuindo para a depuração das modalidades de trabalho que a
transferência na psicose possibilita.
Queremos frisar a idéia de que se Lacan vê na psicose uma posição subjetiva
que, por prescindir da metáfora paterna, faz com que o sujeito esteja mais exposto ao
desenlace dos três registros, mostra, em contrapartida, que justamente por não possuir
de entrada essa amarração, não precisa limitar o seu caminho à estrada principal que lhe
ordenaria suas relações com o mundo. A psicose é assim considerada como a
modalidade clínica que mais revela a natureza de semblante das relações humanas.
Mostra, radicalmente, como o parceiro pode ser tomado em sua heterogeneidade mais
absoluta. Desvela o quanto o amor se liga ao saber mortífero do outro sobre o ser do
sujeito. Desnuda o sexo de todos os seus véus imaginários, mostrando a ligação última
do prazer com a morte.
171

O amor é, na psicose, segundo a fórmula lacaniana dos anos cinqüenta, um amor


morto. Propomos entendê-lo como um amor que carrega a morte como tema central,
podendo, por vezes, exibir a morte do sujeito em seu horizonte. Schreber vivenciou esse
tempo de morte subjetiva após ouvir a injúria Luder. Refazendo seu lugar no mundo
através da metáfora delirante Mulher de Deus, passou a existir enquanto sujeito em uma
relação de coexistência com Deus.
Com as teorizações sobre o objeto a, fica claro que o amor morto pode ser
considerado como um dos nomes do efeito, no sujeito, do gozo do Outro. A separação
pela qual passa Schreber no momento em que pára de pensar, o deixar-se cair, serve de
ilustração para o momento em que o sujeito se desliga do Outro. O desligamento do
Outro indica que devemos, no que concerne ao psicótico, levar em consideração não
somente fenômenos que atestam o parasitismo da linguagem, mas também procurar
evidências do gozo e de seu retorno fora do discurso.
Essa perspectiva esvazia um pouco a importância dos fenômenos elementares no
diagnóstico de psicose, e alarga o alcance deste último. Nesse sentido, a tarefa do
analista se torna um pouco mais complexa, na medida em que os signos de
desligamento do Outro poderão ser ínfimos, devendo o analista, em seu trabalho, estar
atento a eles de modo a identificá-los e alçá-los a condição de elementos fundamentais.
Como assinalamos no terceiro capítulo, Lacan assinalou, no final de seu ensino,
que a psicose é um fracasso na efetivação daquilo que chamamos amor. O psicótico
fracassa em adotar a solução típica, a norma padrão que viabilizaria o encontro entre os
sexos, na medida em que o amor não pode na psicose fazer suplência à falta de relação
sexual. Se o psicótico não se posiciona na partilha dos sexos, o amor poderá ser tido
como complementar, ao invés de resultar de uma suplência criada a partir de uma
ausência (a relação sexual). O amor se liga na psicose ao empuxo-à-mulher, ou seja,
responde ao lugar inexistente de A Mulher. A homossexualidade, o transexualismo e o
platonismo asseveram-se como soluções para o sujeito frente ao impossível de
estabelecer a relação sexual.
Embora tenha se protegido de se identificar com A Mulher, mostramos que a
análise que Lacan fez da vida de James Joyce a partir de suas cartas, denotou que este
estabelecia em seus laços amorosos e familiares uma relação de complementaridade. Tal
parece ser o caso de sua relação com sua mulher, a quem ele veste como a uma luva, e
172

de sua relação com sua filha, com quem compartilha delírios. Demonstramos, ao longo
da tese, que estas posições não são avalizadas pelo analista como lugares a serem
ocupados na transferência, pois não distanciam o sujeito de seu objeto, deixando-o à
mercê das irrupções no real.
A philia parece-nos ser a posição mais interessante a ser ocupada e trabalhada
pelo analista no que se refere à transferência na psicose. A partir do conceito de amizade
na filosofia clássica, vimos que a philia protege o sujeito da emergência gozosa do
sexual. A conjunção entre desejo sexual e amor que poderia, na psicose, mobilizar o
gozo do Outro fica assim afastada. A philia permite ainda estabelecer um interessante
enlace com a lei, enquanto garantidora de uma certa hospitalidade entre estrangeiros,
que evita a posição de Outro absoluto ao submeter o analista a essa mesma lei. Aliança
de trabalho, a philia introduz uma dimensão social, visando, com a circulação de
saberes, transformá-los em algo útil para um sujeito ou para um conjunto.
Retomemos brevemente as possibilidades do amor na psicose indicadas ao longo
desta tese:

1) Amar o delírio como a si mesmo: o amor do narcisismo reconcilia o sujeito com o


seu eu e com a sua imagem.
2) Amor pelo Ideal: surgido através de uma construção que põe o Outro no lugar de
Ideal, caso, por exemplo, da erotomania, cujo objeto é mantido a distância, mas em
um lugar extático. Não impede, necessariamente, que uma ligação de amizade se
efetue paralelamente.
3) O delírio compartilhado: um saber pode fazer laço entre dois sujeitos semelhantes
em sua posição de objeto em relação a um Outro, isto é, uma construção em torno
de uma experiência partilhada pode ter função de ligação. Deixa pouca margem
para a diferença, tendendo a reunir os sujeitos, a fazer Um.
4) Amor morto: amor cujo surgimento provoca efeitos de mortificação no amante,
ligado ao tempo de desligamento do Outro e a queda do sujeito enquanto objeto.
5) Amor que faz existir a relação sexual: a partir do amor de James Joyce por sua
esposa Nora, abriu-se a possibilidade de categorizar um tipo de amor capaz de fazer
existir uma relação entre os sexos, amor da completude, exige que o parceiro se
173

coloque no lugar do Outro como garante do amor, e que o sujeito o assuma como
objeto único, eleito.
6) Philia: laço de amizade entre semelhantes, contrário a assimilação entre sujeito e
objeto, pode ter efeitos sobre o espaço público, redimensionando as experiências
com o real.

A psicose nos ensina a apreender a potência criacionista de suas soluções. As


invenções psicóticas prescindem, assim, do pai, daquela versão do pai que é dada pelo
senso comum da neurose. Trazem, por isso mesmo, a marca de sua absoluta liberdade,
confrontando-nos ao ineditismo do caso a caso. Lançam um desafio para o saber
psicanalítico que é o da transmissibilidade da solução psicótica, já que paradoxalmente
esta não deixa lugar à cópia, não é possível a sua reprodução.
O amor na psicose, embora tenha uma potência devastadora, pode instruir o
clínico acerca das invenções possíveis de serem realizadas por aquele sujeito cujo objeto
não foi extraído de sua relação com o Outro. Um amor construído não a partir de um
vazio, mas apesar de uma presença, muitas vezes excessiva, incômoda, intrusiva. Os
sujeitos, abordados no quarto capítulo, nos deram testemunhos interessantes sobre seus
impasses e soluções relativas ao amor. O lugar oferecido como possível por cada um ao
analista na transferência encontrou ressonâncias naquilo que Lacan chamou de posição
de secretário do alienado.
Como desenvolvemos no terceiro capítulo, Lacan privilegiou e acentuou em sua
leitura o ato de Freud de fazer, do texto schreberiano, a invenção particular de um
sujeito. Nessa via, podemos também ler a análise freudiana do livro de Schreber, como
a marca de um desejo inédito de Freud em relação ao campo da psicose. O desejo do
analista verifica-se com Lacan como um ponto essencial e definitivo para a viabilidade
da prática clínica com as psicoses.
O desejo do analista pode, com Lacan, ser posto em continuidade com o amor
que, paradoxalmente, renuncia a seu objeto. Essa nos parece ser a condição e a marca
singular do dispositivo analítico com relação à transferência. Aquilo que aparece no
senso comum sob o nome de amor torna-se, para o dispositivo analítico, instrumento de
conhecimento, mola propulsora do tratamento.
174

O secretário do alienado, posição por excelência do analista na psicose, é assim


revista como a posição na qual o analista investe em um tipo especial de saber, no saber
para além das classificações vigentes, sem Outro e, por isso, não todo. O desejo do
analista comporta assim a aposta de que haja, na psicose, um saber a ser sabido,
escolhendo fazer-se o destinatário dos pedaços de real que retornam para o sujeito, de
modo a possibilitar que o sujeito venha com eles a fabricar um novo saber-fazer. O
dispositivo analítico revela, com o manejo da transferência, que há uma manobra capaz
de agenciar deslocamentos libidinais e de gozo. O trabalho do analista na psicose pode
incidir, portanto, na busca de um amor apaziguado de seu aspecto mortificante para o
sujeito.
O amor é de certo uma invenção, mas isso não anula o seu aspecto real. A
psicose nos mostra, por vezes, na própria carne, a sua inconfundível marca. Esperamos
poder ter contribuído para a elucidação de algumas questões relativas a transferência e
ao amor na psicose. Propomos, para concluir esta tese, a seguinte fórmula: produzir um
sujeito é um dos nomes do amor para a psicanálise.
175

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