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INVENTAR O AMOR:
UM DESAFIO NA CLÍNICA DAS PSICOSES.
2005
UFRJ
Rio de Janeiro
Julho de 2005
INVENTAR O AMOR: UM DESAFIO NA CLÍNICA DAS PSICOSES.
Aprovada por:
_______________________________
_______________________________
Prof. Luciano Elia.
_______________________________
Prof. Marcus André Vieira.
_______________________________
Prof. Octavio Domont de Serpa Junior.
_______________________________
Prof. Angélica Bastos.
Rio de Janeiro
Julho de 2005
FICHA CATALOGRÁFICA
A minha família que me ajudou, de diversas formas, a concluir esta tese. Em especial a
Marcus Telles, leitor crítico e paciente, por ter me apoiado e incentivado a prosseguir e
a Catarina Telles, pela companhia durante a escrita da tese e por ter podido, a sua
maneira, me esperar.
RESUMO
Rio de Janeiro
Julho de 2005
ABSTRACT
This thesis seeks to discuss the possibilities of love in the context of psychosis,
addressing both its modes of engagement with a partner and the transferential aspect of
the bond with the analyst.
The foundation for this research lies on the Freudian theory and the further
developments of Lacan in order to examine the role of love in the relationship
established by the psychotic with the world. Classic psychiatry will be used to identify a
few possible solutions – through the paths of delusion and acting out – for love in the
context of psychosis.
Rio de Janeiro
Julho de 2005
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..............................................................................................................................10
2.2. EROTOMANIA.......................................................................................................................... 66
O debate Dide/Clérambault
O caso Aimée
2.3. CIÚME.................................................................................................................................... 76
Sobre o delírio de ciúme na psiquiatria
O ciúme e a paranóia
2.4. O DELÍRIO COMPARTILHADO....................................................................................................80
Folie à deux de Lasègue e Falret
O crime das irmãs Papin ou o mal de ser dois na psicose
CONCLUSÃO..............................................................................................................................167
BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................................175
INTRODUÇÃO
portanto, de casos onde a vertente delirante aparece como uma das primeiras saídas para
lidar com o encontro com o Outro do amor. Optamos por apresentar os casos ao final da
tese, de modo a liberar os relatos de excessivas referências e justificativas teóricas.
Acreditamos assim ter diminuído o risco de tornar muito densas as construções, o que
poderia turvar aquilo que pretendemos com elas demonstrar: o percurso clínico destes
pacientes na procura e na construção de uma solução possível para o amor.
O primeiro sujeito foi por mim atendido no ambulatório do Instituto de
Psiquiatria - IPUB/UFRJ ao longo dos meus dois anos no curso de especialização em
Atendimento Psicanalítico em Instituição. Marcelo, como escolhi chamá-lo, veio me
procurar logo após a eclosão de seu primeiro surto, não tendo sido preciso recorrer a
nenhuma internação psiquiátrica durante o tempo em que o atendi. O tratamento foi
interrompido pelo paciente quando este disse finalmente ter compreendido “a história da
Virgem”1, forma como se referia aos acontecimentos que sucederam ao
desencadeamento de sua psicose.
Os dois últimos sujeitos foram atendidos por mim no Centro de Atenção
Psicossocial 2(CAPS) Arthur Bispo do Rosário, localizado na antiga Colônia Juliano
Moreira, onde trabalho há três anos. Os dois estão em atendimento comigo desde o
início desse trabalho, sendo que o primeiro destes, a quem eu chamei de Ricardo, é
1
O caso de Marcelo foi abordado anteriomente em um artigo intitulado “Um amor morto: considerações
acerca de um caso de paranóia". In: QUINET A. (org.), Na mira do Outro: a paranóia e seus fenômenos,
Rio de Janeiro: Rios ambiciosos, 2002.
2
O Centro de Atenção Psicossocial Arthur Bispo do Rosário foi inaugurado pela Secretaria Municipal de
Saúde em agosto de 1998, no âmbito do processo de reestruturação da assistência no Município e de
implantação dos CAPS nas diversas áreas da Cidade. Situa-se na antiga Colônia Juliano Moreira, criada
nos primeiros anos da década de 20. Em 1996 a Colônia Juliano Moreira e o Hospital Jurandyr
Manfredini foram municipalizados e tornaram-se unidades independentes. A antiga CJM passou a
denominar-se Instituto de assistência a Saúde Juliano Moreira. O IMAS Juliano Moreira ficou
responsável pelo cuidado dos cerca de 800 pacientes de longa permanência institucional, residentes dos
antigos núcleos e em residências terapêuticas situadas dentro da área geográfica da antiga Colônia e na
comunidade externa. O Hospital Municipal Jurandyr Manfredini manteve-se como unidade psiquiátrica
responsável por atendimentos em regime de ambulatório, internação e emergência psiquiátrica, sendo o
Pólo responsável pelas internações na Área de Planejamento que compreende Jacarepaguá e sub-bairros
(AP 4). Ao HMJM ficaram subordinados administrativamente o CAPSI Eliza Santa-Roza e o Centro de
Atenção Psicossocial Arthur Bispo do Rosário (CAPS).O CAPS é um serviço de atenção diária para
pacientes psicóticos e neuróticos graves adultos. Oferece as seguintes atividades: atendimento individual,
oficinas terapêuticas, visita domiciliar, acompanhamento de pacientes em projetos de trabalho assistido e
oficinas geradoras de renda, lazer assistido, atendimento em grupo, acompanhamento familiar,
atendimento de recepção e triagem, acompanhamento terapêutico. Atualmente, o CAPS tem 187
pacientes matriculados.
12
atualmente atendido por mim em meu consultório particular. Os dois pacientes, Ricardo
e André, já precisaram ser hospitalizados em momentos críticos.
Minha atuação no CAPS restringe-se, há mais ou menos um ano, ao atendimento
individual de alguns pacientes e à condução de uma oficina3 de ouvidores de vozes.
Concentro a maior parte de minha carga horária nas atividades ligadas à coordenação da
especialização em Saúde Mental no nível de residência do Instituto Municipal de
Assistência em Saúde Juliano Moreira (IMASJM) e do Hospital Municipal Jurandir
Manfredini (HMJM) em parceria com o IPUB/UFRJ.
Meu trabalho no CAPS me fez repensar algumas questões importantes referentes
ao trabalho da psicanálise em instituição. Qual a contribuição da psicanálise para o
campo da saúde mental? Como a psicanálise pode auxiliar o trabalhador em saúde
mental a repensar o cotidiano da clínica ampliada? Parece-me que uma das maiores
contribuições da psicanálise no que se refere ao trabalho do coletivo institucional
encontra-se na elucidação de aspectos relativos à transferência e seu manejo nas
diferentes posições subjetivas. A psicanálise, ao se ocupar do amor produzido na relação
transferencial, lhe dá outros destinos, diferentes das respostas do senso comum,
tornando-o um importante motor no tratamento.
Desde o início de meu trabalho com a psicose em instituição, pareceu-me
inevitável não restringir minha prática clínica à psicanálise na instituição, ou seja,
procurei não me ater a fazer apenas atendimentos individuais no CAPS. Ao contrário,
procurei trabalhar com a psicanálise em instituição, enfrentando desafios clínicos no
coletivo da equipe de saúde mental e tentando, no que se refere aos casos que
acompanho individualmente, assumir a responsabilidade ética de trazer a clínica do caso
para o coletivo da instituição. Os casos por mim construídos nesta tese, inserem-se
portanto, em um trabalho de psicanálise aplicada ao campo da saúde mental. Analisarei,
sempre que se fizer necessário, a articulação do trabalho clínico em duas vertentes:
atendimento individual e o manejo de situações institucionais.
3
Esta oficina se insere no projeto de pesquisa sobre ouvidores de vozes, coordenado pelo professor
Octávio Domont de Serpa Junior, do Laboratório de Psicopatologia e Subjetividade, do IPUB/UFRJ.
13
1
Lacan retomará esse ponto de vista sob um outro ângulo ao final de sua obra ao afirmar que não há
relação entre os sexos e, portanto, não há equivalência possível de um sexo a outro. Colette Soler afirma,
por exemplo, que não há, para todo e qualquer sujeito, discurso estabelecido para o amor: “Por essa razão,
Lacan pôde dizer que as questões do amor, as coisas do amor, são privadas de todo laço social, ou seja,
que não há discurso estabelecido para dizer a um sujeito o que ele deve fazer diante do outro sexo” (2001:
242). Voltaremos a essa questão no terceiro capítulo.
18
seguir, de que as defesas em jogo possuem certas particularidades que as fazem diferir
radicalmente das defesas utilizadas nas neuroses, tratando-se de “uma espécie de defesa
muito mais poderosa e bem sucedida” (1894: 63).
A defesa na psicose
(...) foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para
o exterior: a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que
foi internamente abolido retorna desde fora. (1911:95)
2
Como indica Bruno (1993), para Kraeplin haveria, na demência precoce, um delírio desorganizado, sem
nexo, instável. Bleuler, ao contrário, acreditava haver significação psíquica nos delírios e nas alucinações
da esquizofrenia, mas o acesso a essa significação seria negado ao esquizofrênico, deixando-o incapaz de
compreender e de elaborar o que experimenta. Nesse mesmo ano, Freud mostrava que há uma lógica
inerente à constituição do delírio a partir de seu caso Schreber.
20
(...) a mãe que adoeceu pela perda de seu bebê e que agora embala
incessantemente um pedaço de madeira nos braços, ou a noiva rejeitada que,
adornada com seus trajes nupciais, espera durante anos pelo noivo. (1894:65)
3
Consideramos a psicose histérica como uma tentativa freudiana de explicar a presença de determinados
fenômenos de desordem imaginária em histéricos. Sobre psicose histérica, ver Steyaert, M. Hystérie, folie
et psychose. Lês empêcheurs de penser em rond, Paris, 1992. O autor mostra que o delírio histérico é um
sintoma comparável às produções oníricas, utiliza os mecanismos de deslocamento e de condensação e
configura-se como uma resposta a uma perturbação no nível da imagem narcísica.
21
recalcado, ou seja, aquilo que foi recalcado assumiria o domínio, fazendo surgir
alucinações hostis ao eu.
Na confusão alucinatória, o afeto e conteúdo da idéia intolerável são afastados
do eu, ocorrendo uma conseqüente perda da realidade. As alucinações visam apoiar a
defesa e, em conseqüência, são agradáveis ao eu. Na psicose há, portanto, um sucesso
da defesa, ao passo que na histeria é o fracasso do modo de defesa que possibilitará o
aparecimento de fenômenos imaginários. Vemos demarcada aí a idéia de que o
fenômeno não é suficiente para detectar a estrutura que o condiciona. Voltaremos a esse
ponto ao longo de nosso terceiro capítulo.
Se a confusão alucinatória é posta em oposição comparativa à histeria, a
paranóia será analisada à luz da neurose obsessiva. Vimos que o que está em jogo, para
Freud, na determinação dos quadros clínicos, são os diferentes modos de resposta dos
sujeitos frente ao encontro com o sexo. Freud sugere que tanto na paranóia quanto na
neurose obsessiva ocorreria um excesso de prazer no encontro sexual. Ao recordar a
experiência, surge uma recriminação primária que gera desprazer. É neste ponto que se
interrompem as semelhanças entre essas duas modalidades clínicas.
Na neurose obsessiva, o sujeito recalca a recriminação e a lembrança
desprazerosa. Com o retorno do recalcado, a recriminação acaba por ligar-se a um outro
conteúdo, substituindo a idéia intolerável por outra aceitável para o eu: “uma idéia
obsessiva é produto de um compromisso, correto quanto ao afeto e à categoria, mas
falso devido ao deslocamento cronológico e à substituição por analogia” (1896b:312).
Na paranóia, não ocorre o recalque da recriminação primária. Freud situa a
resposta paranóica em uma operação denominada de descrença (Unglauben), que
produz, como sintoma primário, a desconfiança. A desconfiança e a causa do desprazer
são assim atribuídas a outras pessoas (não sou eu..., é ele que...). O elemento
determinante na paranóia é, portanto, a recusa da crença na recriminação primária. Em
seu retorno, a recriminação primária aparece como distorcida e desde fora. Como
vimos, essa constatação encontra grande relevo clínico, na medida em que aponta para o
caráter exterior dos sintomas psicóticos.
A modificação pela qual a idéia rejeitada passa, quando do seu retorno, responde
a dois movimentos em seu conteúdo. O primeiro, distorcerá o conteúdo nas alucinações
e o segundo, fará com que o conteúdo seja referido não à experiência, mas à
22
Vemos, portanto, que as duas modalidades de retorno atuam sobre o vivido do sujeito: a
certeza delirante aparece em termos de verdade para o sujeito. Teçamos, então, algumas
considerações sobre o delírio. Freud já o situa, neste ponto inicial de sua obra, como
uma tentativa de explicar o retorno do rejeitado. O sujeito, através do delírio, torna
coerente o que, a princípio, não tem sentido, mas que se apresenta na ordem do vivido
para o sujeito (uma voz, um gesto, a perplexidade). O delírio seria um exercício de
significação da experiência de retorno do rejeitado. Para o psicótico que segue a via
delirante, o “outro é repleto de significação, tudo é interpretável” (1901:221).
A solução delirante conserva, no entanto, para Freud, um furo irremediável: a
perda de um pedaço da realidade. O delírio substitui, embora não plenamente, esse
pedaço perdido da realidade, criando uma realidade que venha a ser mais condizente
com a nova posição subjetiva do sujeito. Nota-se aqui uma antecipação do conceito de
narcisismo, desenvolvido em 1914. Com esse conceito, Freud poderá indicar com mais
clareza o que ele já via acontecer na clínica da paranóia: o delírio reconcilia o sujeito
com o seu eu:
23
Em todos os casos a idéia delirante é sustentada com a mesma energia com que
uma outra idéia, intoleravelmente penosa, é rechaçada do eu. Assim, essas
pessoas amam seus delírios como amam a si mesmas. É esse o segredo
(1895:296).
Como veremos posteriormente, o delírio é uma solução possível, mas nem por
isso, menos problemática, de compromisso entre o eu e o mundo. Mesmo que o delírio
forneça um lugar possível para o sujeito, conserva a sua posição narcisista. No delírio, o
eu conserva seu lugar de objeto, ainda que promova, em sua forma final, uma certa
distância que retifica um pouco esse lugar. Como veremos no caso Schreber, há um
longo e importante percurso entre o lugar de objeto de abusos do outro ao de objeto
indispensável ao Outro.
Embora Freud não tivesse, neste ponto de sua obra, desenvolvido plenamente
sua teoria sobre o narcisismo, aponta na Carta 125, que a escolha das neuroses pode se
dividir em duas correntes. As neuroses serão consideradas alo eróticas, tendo como via
principal a identificação com a pessoa amada. Na paranóia, ao contrário, a via auto
erótica predominaria: “A paranóia desfaz novamente a identificação; restabelece todas
as figuras amadas da infância, que foram abandonadas, e dissolve o próprio eu em
figuras externas” (1899:384). Freud já mostrava, assim, as conseqüências do retorno da
libido sobre o eu e a decomposição imaginária subseqüente. Voltaremos a esse ponto.
Freud nos brinda, portanto, com dois casos cuja importância clínica maior
reside, segundo nosso ponto de vista, no fracasso terapêutico que eles veiculam. O que
podemos aprender através desses dois casos? É certo que os resultados obtidos não
foram significativos, que os efeitos alcançados foram ínfimos e não se sustentaram por
muito tempo, acabando por resultar em um abandono do tratamento analítico pelos
25
pacientes. A primeira lição que pode ser retirada da análise dos casos, parece-nos ser a
do fracasso da interpretação analítica, quando aplicada à psicose. Revendo os casos, fica
claro que as interpretações freudianas parecem não ter nenhum efeito benéfico sobre as
alucinações, chegando quiçá a intensificá-las. Tal é o caso do segundo exemplo, onde as
sensações físicas “participavam da conversa”:
Amor e desejo
exemplo clássico é o daqueles sujeitos masculinos que “quando amam não desejam, e
quando desejam, não podem amar” (1910:166). A impotência psíquica sobreviria, por
exemplo, se, por ventura, algum traço do objeto sexual relembrasse o objeto incestuoso.
Uma das saídas possíveis para essa clivagem da vida amorosa seria a depreciação do
objeto sexual e a supervalorização do objeto incestuoso (corporificadas, por exemplo,
nas figuras da santa e da puta).
O outro exemplo da psicologia da vida amorosa masculina repousa na eleição de
um tipo especial de escolha de objeto. A escolha, nesses casos, estaria subordinada a um
conjunto de condições determinantes do amor (Freud:1912a). São elas: 1) a existência
de uma terceira pessoa prejudicada (atração por mulheres comprometidas); 2) o ‘amor à
prostituta’ (interesse por mulheres sexualmente de má reputação); 3) procura por
objetos com características similares entre si (substituição do objeto por outro com
traços idênticos, formando uma série de réplicas a partir do primeiro objeto); 4) ânsia de
salvar a mulher amada. Voltaremos a esse ponto ao examinarmos o ciúme neurótico.
No que concerne à vida sexual feminina, Freud indica que o conflito da vida
amorosa aparece como conseqüência da manutenção edípica da ligação entre atividade
sensual e proibição. Dentre as possibilidades sintomatológicas derivadas dessa ligação,
estão a frigidez feminina, o gosto, em algumas mulheres, em manter seus
relacionamentos em segredo ou, de procurar, através de ligações extra-conjugais,
manter relações proibidas. Resta a saber se o que Freud chamou de manutenção do
segredo na vida sexual feminina encontra apoio naquilo que Lacan (1960) teorizará,
mais tarde, como uma tendência à erotomania na mulher4. A manutenção do segredo
possibilitaria, assim, à mulher, conservar sua posição de amada, não assumindo o seu
amor sem ter a certeza de que o Outro a ama primeiro.
A dessimetria entre amor e desejo repousa em uma falha estrutural inaugurada
pela própria falta do objeto primeiro de satisfação. Lembremos com Freud (1895)5 que o
objeto é desde sempre perdido, não sendo, portanto, passível de ser reencontrado. Essa
4
É interessante notar que Lacan se utiliza no texto em questão da psicose para esclarecer questões
concernentes ao amor na neurose. Cf. LACAN, J. “Diretrizes para um congresso de sexualidade
feminina” (1960:742). Voltaremos a esse ponto na nossa análise do caso Schreber.
5
No Projeto, Freud apresenta a formação de uma teoria da memória inconsciente, baseada na lembrança
da experiência de satisfação, especificamente no que concerne à clivagem entre a fração não-assimilável
do objeto e a fração revelada ao eu por sua própria experiência. Das Ding, a coisa, pode ser considerada,
então, como o não-representável, como aquilo que escapa ao juízo, mas também como aquilo em torno do
28
qual se organiza toda representação, na medida em que a coisa é também o que há de comum a toda
representação, a, furo em torno do qual se organiza a linguagem.
29
Com o advento do narcisismo, Freud mostra que o eu, agora constituído, passará
a se medir a partir de um ideal. Com o estudo da paranóia, Freud demonstrará que existe
em todos os sujeitos a presença de um agente crítico - podemos supor que se trata de
uma antecipação do supereu de 1923 – que procura assegurar a satisfação narcisista do
ideal do eu. Retomemos brevemente o sumário construído por Freud (1914:107) acerca
das diferentes possibilidades de amar.
Interessa-nos aprofundar o estudo do tipo narcisista já que será através deste que
Freud empreenderá a análise das psicoses, mais particularmente, da melancolia. As
teorizações a respeito do ideal do eu nos darão a chave de compreensão dessas
diferentes possibilidades de escolha de objeto. O texto freudiano deixa entrever que
ideal e objeto estão intrinsecamente ligados, já que é através de suas satisfações tocantes
ao objeto e da realização de seu ideal que o eu se enriquece. Estar apaixonado será,
então, nessa lógica, compreendido como uma transformação do objeto sexual em ideal,
ou melhor, como o ponto onde objeto e ideal se equivalem. O eu deve, portanto, ser
concebido, a partir do narcisismo, como um objeto como os outros, já que, como vimos,
é possível amar a si mesmo nos outros. Isso esclarecerá, em grande parte, alguns
fenômenos transitivistas da psicose, onde o sujeito pode repartir traços do eu nos
30
A hipótese da homossexualidade
Em seus primeiros escritos, Freud procurou estabelecer uma relação causal entre
o trauma gerado pelas primeiras experiências sexuais e a eclosão da psicose
propriamente dita. Em seus casos clínicos, procurou depreender a cena sexual
traumática, relacionando o delírio e as alucinações a esse evento. Embora em termos
clínicos suas intervenções não pareçam ter tido grandes efeitos terapêuticos, no plano
teórico pôde, como vimos, detectar aspectos importantes acerca da dinâmica em jogo na
psicose.
A partir dos fenômenos alucinatórios e das idéias de auto-referência, Freud
evidenciou que, por uma espécie de rejeição radical, o sujeito experimenta na psicose
aquilo que lhe concerne como vindo desde fora. Com isso, Freud marca que tanto a
experiência alucinatória quanto o delírio são vividos pelo sujeito em termos de certeza.
Queremos destacar que essa abordagem da psicose permite-nos pôr uma ênfase no
aspecto real do fenômeno: o que importa não é tanto o que o delírio ou a alucinação
veiculam de sentido, mas aquilo que, do vivido, apresenta-se para o sujeito em termos
de convicção imediata.
As teorizações sobre o narcisismo marcam uma nova abordagem das psicoses,
que passam a constituir uma modalidade clínica diferenciada do campo das neuroses. A
partir da teoria da libido, as neuropsicoses de defesa serão revistas e classificadas em
uma nova divisão diagnóstica que tomará como base a possibilidade ou a dificuldade do
sujeito de estabelecer vínculos com os objetos. Freud situa, assim, as neuroses de
transferência (histeria de angústia, histeria de conversão e neurose obsessiva) pela
capacidade de estabelecimento de vínculo com os objetos, e as neuroses narcísicas
(paranóia, esquizofrenia, confusão alucinatória e melancolia), pela dificuldade em
estabelecer essa relação.
O foco de análise repousa, no que concerne ao tratamento analítico, nas neuroses
de transferência. São elas que ditam os fundamentos da técnica analítica freudiana.
Vemos esboçar-se, a partir do narcisismo, um certo ceticismo em relação à possibilidade
de manejo da transferência na psicose. A psicose será pensada a partir do modelo da
31
(...) examinar a atitude do paciente para com o lado erótico da vida e para com
assuntos de indulgência sexual, pois nós, psicanalistas, até o presente, apoiamos
a opinião de que as raízes de todo distúrbio nervoso e mental devem se
encontrar principalmente na vida sexual do paciente (1911: 48).
6
Em 1925, Freud deixa, entretanto, claro o seu desejo de que a psicanálise venha a encontrar um método
eficiente de análise das psicoses (Cf. ESB, v. XX, p. 77).
32
se, portanto, levar em conta durante a condução de um tratamento de psicose que nem
todo ensaio delirante faz necessariamente função de cura. A ênfase na palavra tentativa
deve, portanto, colocar-se aqui em todo o seu rigor.
O delírio viria, então, em determinadas condições que trabalharemos
posteriormente, solucionar em Freud o conflito gerado pelo desejo homossexual na
psicose. É preciso no entanto assinalar que, se para Freud, a homossexualidade é
determinante na operação de rejeição, concordamos com Lacan (1955-56) quando
critica duramente essa posição. Seria errôneo, segundo ele, atribuir uma
homossexualidade de base à psicose, esta é apenas uma das conseqüências possíveis da
não inserção do psicótico na partilha sexual. O psicótico prescinde, para Lacan, da
norma (fálica) que o situaria na existência como homem ou como mulher. A colocação
por Lacan da homossexualidade no nível de efeito e não de causa das psicoses é uma
retificação conceitual importante. Onde Freud sinaliza a recusa do psicótico em ocupar
a posição edípica, podemos com Lacan7, ler a impossibilidade deste de situar-se na
partilha dos sexos.
Não é tanto uma escolha de objeto homossexual que está em jogo na psicose,
mas uma tendência, para o homem, em adotar uma posição feminina. Lacan (1973),
como veremos futuramente, mostrará que o empuxo-à-mulher é resultante da não
inserção do psicótico na norma fálica. Das duas possibilidades existentes na partilha
sexual, o lado feminino, devido à inscrição da falta radical de um significante, acaba por
constituir-se como um dos lugares mais favorecidos de localização para o psicótico.
Essa será, como veremos a seguir, a solução adotada por Schreber, ao aceitar sua
transformação em mulher: “na falta de poder ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a
solução de ser a mulher que falta aos homens” (Lacan:1957-58:566). É importante
ressaltar que as mulheres também sofrem as conseqüências do empuxo-à-mulher na
psicose. Czermak (2004) tece um interessante comentário sobre a feminização nas
mulheres psicóticas. Conta, de forma anedótica, que Henri Ey já havia, em sua clínica,
batizado o fenômeno de Síndrome VVP (vagabunda, vaca, puta).
7
A partir do caso do Homem dos Lobos de Freud, Lacan mostra que o paciente não somente se recusou a
ocupar a posição edípica, mas também tudo o que é do plano da realização genital. É neste texto que
Lacan pinçará o termo Verwerfung e proporá a utilização do termo foraclusão para designar a operação
em jogo nas psicoses. (S1: 36 ou E: 389). A frase em questão é: “um recalque é algo muito diferente de
uma rejeição” (XVII:102), no original: "Eine Verdrängung ist etwas anderes als cine Verwerfung". (S1:
36 ou E: 389).
33
suscita.
A seguir, trabalharemos três possibilidades de coincidência entre o sujeito e o
objeto, de forma a verificar os riscos que elas comportam. Grosso modo, poderíamos
dizer que esse momento de coincidência entre o sujeito e o objeto corresponde à fase de
instauração do delírio. O caso do jovem médico, que acabamos de abordar, evidenciou o
quanto esse tipo de situação comporta o risco de passagem ao ato. Como dissemos, o
jovem chegou a apontar uma arma para o seu perseguidor, ou seja, por pouco não
chegou, em uma tentativa de se desvencilhar do lugar de objeto de perseguições imposto
pelo delírio, a aniquilar seu semelhante.
Embora, o risco de agressão estivesse evidente no caso, o jovem recuou de seu
ato homicida. O que podemos depreender dessa situação? Como dissemos, é comum na
psicose que o personagem persecutório se decomponha em vários outros que ocupam,
na relação com o sujeito, uma posição similar. Freud aponta que há um deslocamento
próprio à estrutura da psicose, a decomposição, que marca os investimentos de objeto
dos sujeitos. Devemos ter em vista que, ao nos referirmos à decomposição, estamos
também assinalando a possibilidade de que um mesmo objeto se subdivida e encarne
traços distintos do próprio eu do sujeito. Isso faz com que o lugar do perseguidor em um
delírio persecutório, que não foi ainda sistematizado, não seja necessariamente fixo e
permanente, podendo ser passível de mutação e de transferência.
A grande contribuição freudiana, em relação ao manejo clínico da psicose,
encontra-se justamente na elucidação desse ponto: no delírio, aquilo que
paradoxalmente se configura como um risco, traz em seu cerne a possibilidade de
trabalho clínico com a psicose. Há uma manobra clínica que permite para quem for
posto no lugar de perseguidor, poder deslocar-se dessa posição. O próprio trabalho do
delírio pode, igualmente, fazer a posição do perseguidor vacilar. Não é incomum, que
um psicótico queira obter, daquele que ele crê ser seu perseguidor, uma confirmação,
uma reiteração de sua posição, a revelação de suas verdadeiras intenções. Esse pedido,
quando endereçado a um analista, pode abrir um meio de manobra no delírio. O trabalho
clínico consiste justamente em não reiterar a perseguição, de forma a apreender a
tentativa de cura que o pedido de confirmação revela. Pedir que o outro confirme a
perseguição que lhe é incutida pode abrir uma fresta na certeza delirante, possibilitando
37
Delírios de amor
porque o sujeito rejeita a fantasia, recusando-se, assim, a ocupar o lugar por ela imposto.
A libido desliga-se dos objetos anteriormente investidos e retoma o caminho regressivo
do narcisismo. A seqüência lógica é a seguinte: a frustração pela não realização de uma
fantasia de desejo homossexual provoca uma regressão da libido até o narcisismo, ou
seja, na medida em que os investimentos são retirados dos objetos, a libido fica livre
para fixar-se novamente no seu ponto disposicional. A fantasia na paranóia não
viabiliza, portanto, o retorno da libido aos objetos. A fixação disposicional do paranóico
no narcisismo dificulta esse retorno, fazendo com que a libido seja utilizada de um
modo muito especial, “vincula-se ao eu e é utilizada para o engrandecimento deste”
(96).
O delírio seria, então, uma alternativa possível para reinvestir a libido nos
objetos e solucionar o conflito gerado pela emergência da fantasia homossexual.
Espécie de construção acessória e posterior, o delírio funcionaria como uma prótese na
relação com os objetos, localizando o sujeito em uma nova ordem de organização do
mundo. Essa nova ordem carrega, entretanto, as marcas do narcisismo: constitui-se
como uma invenção particular do sujeito, não sendo, portanto, passível de ser
compartilhada no senso comum.
Freud utiliza o modelo dos dois tempos da neurose – recalque e retorno do
recalcado – para depreender as etapas da psicose. Retomemos brevemente este ponto. A
primeira etapa da psicose corresponde, segundo Freud (1911), ao recalque propriamente
dito e consiste em um desligamento da libido em relação ao mundo e seu retorno ao eu.
Esse período de desligamento ocorre silenciosamente e não deixa marcas passíveis de
serem observadas. Ele só pode ser inferido em um segundo momento, quando a libido
torna a ser reinvestida no mundo.
A segunda etapa é para Freud ruidosa e corresponde ao trabalho do delírio.
Nesse segundo tempo, acontece a tentativa de reconstrução do mundo que foi abalado
pelo surto. Esse tempo não é sem percalços para o psicótico, já que, como dissemos, o
delírio não será necessariamente eficaz na reconstrução do mundo. Poderíamos, a rigor,
afirmar que não basta delirar, é preciso que o sujeito, no seu trabalho de significação,
consiga inventar uma distância que o separe um pouco do lugar de objeto, única
condição para que o delírio seja bem sucedido.
Retomemos esquematicamente o trabalho do delírio:
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delírio como solução de cura no caso a caso, optamos por adiar o desenvolvimento deste
ponto até termos explanado sobre o caso Schreber.
Voltemos ao momento de eclosão do delírio. Freud reduzirá primeiramente a
fantasia de desejo homossexual, para o homem, a uma fórmula gramatical: EU O AMO.
Será em torno dessa sentença, que a negação na psicose incidirá. Dela derivarão três
formas de negação: sobre o sujeito, sobre o verbo ou sobre o complemento, assim como
três tipos de delírio: perseguição, erotomania e delírio de ciúmes.
Retomemos esquematicamente como as três formas de delírio da paranóia se
conjugam nessa contradição:
Vemos que, embora Freud utilize a projeção para explicar o delírio persecutório
e a erotomania, ela fica excluída do ciúme. Neste último, a negação incide sobre o
sujeito, logo o próprio eu é suprimido: “não sou eu... é ela que...”, prescindindo do uso
da projeção. Dentre os outros motivos já abordados, essa constatação leva Freud a
abandonar a ênfase no mecanismo de projeção como explicativo dos fenômenos
psicóticos.
O que isso nos ensina sobre o amor na psicose? Retomando a escolha de amor
narcisista, veremos que essa fórmula corresponde ao sujeito que ama no outro aquilo
que ele mesmo é. As virtualidades mortíferas do amor pelo igual na psicose são
exploradas, por Freud, mostrando que este amor acaba invariavelmente por ocupar, no
delírio, o lugar do perseguidor, do amante ou do traidor. O amor pelo igual, portanto,
carrega em si três riscos: a destruição da paixão, do sujeito ou de seu objeto.
Do nosso ponto de vista, o aspecto mais importante da formulação gramatical
freudiana é possibilitar a extração de três modalidades diferentes de relação do sujeito
psicótico com o outro. Cabe ressaltar que o sujeito psicótico recebe sua mensagem do
Outro encarnado, muitas vezes, em um pequeno outro, porta voz de uma mensagem que
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o sujeito não reconhece como sua. Essa alienação da mensagem, tratada por Freud sob
a forma do “não sou eu... é ele que...” indica que o delírio instaura na relação sujeito -
Outro uma espécie de mistura, de fusão.
Que tipo de objeto escolhe o sujeito no delírio da paranóia? Lacan (1955-56)
dissecará a relação entre o sujeito e o seu semelhante, na psicose, a partir das teorização
freudianas, mostrando as conseqüências da alienação da mensagem nos três tipos de
delírio. Coloquemos em um esquema as relações do sujeito com o outro do delírio nas
três formas de delírio da paranóia:
Que semelhantes escolhem o psicótico para neles tentar fazer encarnar o Outro?
No ciúme psicótico, o que está em jogo é uma identificação ao outro com interversão do
signo da sexualização. Trata-se para o ciumento de “sua própria mulher, a quem vocês
fazem mensageira de seus próprios sentimentos não para um outro homem, mas, como
mostra a clínica, para com um número de homens mais ou menos indefinido”
(Lacan:1955-56:54). É um delírio indefinidamente repetível, que tende a incluir
qualquer um que se coloque no horizonte. Como veremos, no segundo capítulo, não se
trata, no ciúme psicótico, propriamente de triangulação e, portanto, a rivalidade não é o
traço predominante.
Na perseguição, ocorre uma alteração profunda de todo o sistema do Outro, sua
decomposição. O delírio de perseguição é uma forma de alienação convertida da
mensagem, no sentido em que ocorreria uma conversão do amor em ódio. O Outro é
decomposto na paranóia em vários pequenos outros perseguidores, que, por sua vez, se
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subdividem de tal forma que a perseguição pode abarcar todas as explicações sobre o
que acontece para o sujeito no mundo.
Na erotomania, o Outro é neutralizado, despersonalizado. Chamada, por Lacan,
(1955-56) de alienação divertida da mensagem, nela, o outro escolhido não tem
nenhuma relação concreta com o sujeito: “um objeto afastado, com o qual o sujeito se
contenta em comunicar-se por meio de uma correspondência de que nem mesmo ele
sabe se ela chega ao seu destinatário.”(54) Por isso, a escolha freqüente de pessoas
famosas, celebridades ou figuras públicas.
Lacan opõe mais especificamente a forma persecutória da psicose da forma
passional, mostrando que se na primeira, a ênfase recai sobre a relação do eu e do outro,
na forma passional, a inércia dialética coloca-se muito mais do lado do eu, do sujeito.
Tyzler (2005) acrescenta que na forma passional da psicose os dois tempos de
construção do delírio (por nós já trabalhados) não se apresentam com tanta clareza
como na forma persecutória: “o postulado se impõe e a certeza é imediata. O paciente
não parece descentrado em sua subjetividade. A inclinação fixa não é jamais
considerada estranha, xenopática” (103).
É preciso, contudo, assinalar que é a dimensão mortífera do amor que se
apresenta na forma persecutória da psicose. Como assinala Soler (1991), o amor na
paranóia não se apresenta tanto como uma solução delirante, com um apaziguamento
subseqüente de gozo, mas aparece na vertente de um gozo mortífero do Outro, que a
autora propõe chamar de ‘eroticomania persecutiva’.
O caso Schreber é, sem dúvida, uma referência central para o estudo da psicose.
É a partir da análise de seu delírio que Freud construirá algumas das premissas
fundamentais de sua teoria da psicose. O caso ganha, assim, estatuto de paradigma. É
interessante notar que, apesar do caso Schreber já ter sido intensamente abordado na
literatura psicanalítica, continua sendo investigado, conservando até hoje um certo
ineditismo. Essa característica não é exclusiva apenas desse caso, ela se repete de uma
maneira mais geral em todos os casos freudianos. Acreditamos que isso se deva ao
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8
Um exemplo claro disso é o delírio de observação, lançando luz ao que Freud chamará, mais tarde, de
supereu. Ao empreender a investigação acerca da psicologia do eu e suas relações com a realidade,
(1917b), Freud focará o supereu: “há realmente no eu uma instância que incessantemente observa, critica
e compara, e desse modo se contrapõe à outra parte do eu.” (499).
9
Freud propôs essa fórmula também em suas notas sobre o caso do “Homem dos Ratos” de forma a
mostrar que na neurose obsessiva “o exemplo é a coisa original e real que tentou esconder-se por trás da
generalização”. FREUD, S. “Notas sobre um caso de neurose obsessiva” (1909), ESB, v. X., p. 168. A
esse respeito, ver também o comentário de ASSOUN: “Logo, a coisa nada mais é que outro nome do
exemplo, mas ela é também o próprio momento do pensamento, o que requer precisamente uma posição
metapsicológica sui generis. Na clínica, não se deve pensar na coisa, e sim pensar a própria coisa,
fenomenalizada, é verdade, na rede de fenômenos e relações em que ela se «exemplifica»”. ASSOUN
P.L., “O Exemplo e a Coisa”. In: Metapsicologia freudiana: uma introdução. Rio de Janeiro:Jorge Zahar,
1996:49.
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psicanálise, o fenômeno não pode ser considerado como algo já dado e cuja existência
se definiria em si mesma. Freud partiu do fenômeno, única via de acesso à estrutura,
mas não fez deste o fundamento de sua teorização, já que, paradoxalmente, o fenômeno
só pode ser apreendido através da estrutura. A chave de acesso à clinica constrói-se,
portanto, nessa via de mão dupla, mas não sem articulá-la ao singular do caso. A
psicanálise visa, assim, extrair do caso uma certa lógica, de modo a reordenar e explicar
os fenômenos que se apresentam em termos mais gerais.
Freud dá mais um passo importante nesse texto, no que concerne ao tratamento
da psicose, ao afirmar que é “legítimo basear interpretações analíticas na história clínica
de um paciente (...) a quem nunca vi, mas que escreveu sua própria história clinica e
publicou-a. (1911:23). Ora, se o paciente escreveu sua história clínica é porque é ele
quem detém o saber sobre o seu caso, ou seja, o saber, na psicose, aparece do lado do
paciente. De fato, não é comum que um psicótico procure um analista, acreditando que
este possa deter um saber sobre seu ser, capaz de livrá-lo de seu sofrimento (que pode
ser o caso do neurótico). Ao contrário, a procura por um analista, na psicose, assevera-
se como uma tentativa de compartilhar um saber que veio de fora e com o qual o sujeito
não sabe muito bem o que fazer, um saber que pode, muitas vezes, aparecer como
insuportável, mas cujo estatuto de certeza contribui para afirmá-lo. Aprofundaremos
esse ponto ao analisar a carta que Schreber dirigiu ao seu primeiro médico, Dr. Flechsig.
Breve história
Retomemos brevemente o caso Schreber tal como Freud o construiu. O caso gira
em torno do delírio de Schreber, em um percurso que vai de seu desencadeamento à
estabilização. Schreber teve, ao longo de sua vida, três graves surtos psicóticos,
culminando com internações psiquiátricas. Em suas memórias e, portanto, na análise do
caso, feita por Freud, só constam os dois primeiros, já que o terceiro episódio só se deu
quatro anos após a publicação do livro. Voltaremos a ele posteriormente.
É importante notar que as duas primeiras crises correspondem a momentos de
vida, em que Schreber tentava obter promoções profissionais (ele era doutor em direito).
O primeiro episódio, em 1884, culminou na sua internação na clínica do Dr. Flechsig,
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Uma vez, de manhã, ainda deitado na cama (não sei mais se meio adormecido
ou já desperto), tive uma sensação que me perturbou da maneira mais estranha,
quando pensei nela, depois, em completo estado de vigília. Era a idéia de que
deveria ser realmente bom ser uma mulher submetendo-se ao coito (...) não
posso afastar a possibilidade de que ela me tenha sido inspirada por influências
exteriores que estavam em jogo (Schreber: 1995:54).
Não se deve supor que ele deseje ser transformado em mulher, trata-se antes de
um dever baseado na Ordem das Coisas, ao qual não há possibilidades de fugir,
por mais que, pessoalmente, preferisse permanecer em sua própria honorável e
masculina posição na vida (Weber apud Freud:1911: 32).
O sentimento amistoso do paciente para com o médico bem pode ter sido
devido a um processo de ‘transferência’, por meio do qual um investimento
emocional se transpôs de alguma pessoa que lhe era importante para o médico
que, na realidade, era-lhe indiferente; de maneira que o último terá sido
escolhido como representante ou substituto de alguém muito mais chegado ao
paciente (Freud.:1911::66)
Vemos, então, que esses três elementos aparecem aqui dissociados e que caberá
ao trabalho do delírio encontrar uma forma de coordená-los. O delírio, deste modo, vai
atar aquilo que no desencadeamento se apresenta sem elo aparente. É por isso que
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(...) adiar a solução do presente para o futuro remoto, e contentar-se com o que
poderia ser descrito como uma realização de desejo assintótica. A qualquer
momento, previa ele, sua transformação em mulher ocorreria; até então, a
personalidade de Schreber permaneceria indestrutível . (Freud:1911:68).
Aconteceu que, por um lado, ele havia desenvolvido uma engenhosa estrutura
delirante, na qual temos toda razão de estar interessados, ao passo que, por
outro, sua personalidade fora reconstruída e agora se mostrava, exceto por
alguns distúrbios isolados, capaz de satisfazer as exigências da vida cotidiana.
(Freud:1911:30)
Se Schreber goza com Deus, ele afirma, entretanto, continuar a amar a esposa.
Lembremos da divisão da vida amorosa do obsessivo: onde amam não desejam, e onde
desejam, não podem amar. A versão psicótica do conflito da vida amorosa exclui o
desejo, enquanto sexual, fazendo surgir a dimensão gozosa em suas relações com o
Outro. A solução encontrada, por Schreber, consiste em separar o amor do gozo,
localizando o gozo na sua relação com Deus, de um lado, e o amor marital, de outro:
Aqui impõe-se, para mim, uma discrição particular, especialmente com relação
à minha esposa, para com a qual conservo inteiramente intacto o meu antigo
afeto. É possível que a esse respeito eu tenha cometido alguns erros, falando ou
escrevendo de maneira excessivamente franca. Minha esposa, naturalmente, não
pode compreender inteiramente o curso das minhas idéias; ela não pode deixar
de ter grande dificuldade em continuar a me dedicar o mesmo afeto e o mesmo
respeito de antes, ao ouvir dizer que me ocupo da idéia de minha iminente
transformação em mulher. Posso lamentá-lo, mas não modificá-lo; mesmo aqui;
devo me precaver contra qualquer falso sentimentalismo (Schreber:1995: 149 –
nota 76).
Toda a volumosa correspondência, que troquei durante anos com minha esposa,
poderia demonstrar o terno amor a que a ela dedico e o quanto sofro com o fato
de que ela tenha ficado profundamente infeliz com minha enfermidade e com a
dissolução, de fato, do casamento, e como é grande o interesse que tenho pelo
seu destino pessoal (Schreber:1995:317).
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Parece que a solução delirante, embora não possa ser compartilhada, possibilita a
reconciliação do sujeito com os seus semelhantes, permitindo ao sujeito viver no mundo
mais uma vez. Freud não prega a supressão do delírio, já que considera que ele é em si
uma potente tentativa de cura. Mostra, ao contrário, que a própria finalização da
estrutura lógica, que compõe o delírio, pode fazer com que ele perca poder de
investimento.
O efeito de cura do delírio faz com que ele prescinda da libido, que era antes
dirigida à sua consecução, permitindo ao sujeito reinvestir em seus objetos. Isso ficará
mais claro no terceiro capítulo, quando abordaremos as teorizações de Lacan sobre o
gozo. A função do analista visará justamente atuar nos modos de gozo do sujeito,
permitindo, através de sua redução, que o sujeito possa investir sua libido no mundo.
A perda do objeto
Sobre o Ciúme
la como objeto, o menino se identifica com ela, passando a procurar objetos amorosos
que lhe permitam amá-los como a mãe os amou. Antigos rivais (possivelmente irmãos),
antes dignos de ciúme e ódio, tornam-se objetos amorosos. É aqui que a diferença com a
paranóia torna-se evidente, deixando a hipótese da homossexualidade, como causa das
psicoses, cair por terra:
O amor de transferência
Não temos o direito de contestar que o estado amoroso, que faz seu
aparecimento no decurso do tratamento analítico, tenha o caráter de um amor
genuíno. Se parece tão desprovido de normalidade, isto é suficientemente
explicado pelo fato de que estar enamorado na vida comum, fora da análise, é
também mais semelhante aos fenômenos mentais anormais que aos normais
(1915 [1914]: 218).
1 – Vimos que, na psicose, o sujeito vive, muitas vezes, aquilo que lhe concerne e que
foi rejeitado como vindo desde fora. O amor de transferência pode se apresentar, nessa
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via, como a certeza de que o analista ama o sujeito (ou o odeia). A erotomania e a
perseguição podem, assim, anunciar-se como riscos transferenciais no horizonte de uma
análise. O sujeito, quando submetido ao outro do delírio, pode tornar-se vítima de suas
paixões. Isso acontece porque na psicose o sujeito pode viver a paixão não enquanto
agente, mas enquanto vítima dela. Pode ser, portanto, amado, traído ou odiado por
aquele que aceita ser por ele colocado no lugar de parceiro do delírio.
2 – Como indicou Freud a respeito de Schreber, o saber está do lado do psicótico, é ele
quem interpreta os seus fenômenos. Devemos, portanto, procurar, na própria
sistematização dos fenômenos da psicose, linhas de força que nos permitam discernir a
dinâmica, a lógica da psicose. Em uma das operações delirantes da paranóia, a
decomposição, aparece um ponto chave de manobra na psicose. A decomposição
provoca cisões nos personagens delirantes, é aí que a manobra do analista pode se dar:
reiterando ou rejeitando as soluções inventadas pelo sujeito para dar conta de suas
transferências.
papel do crime na economia das psicoses se fará necessária a partir da retomada dos
casos analisados por Lacan (Aimée e irmãs Papin), onde se constatará a prevalência de
atos impulsivos na psicose. Faremos, para isso, referência ao trabalho de Paul Guiraud
sobre os crimes imotivados na psicose.
2.2 Erotomania
O debate Dide/Clérambault
(...) a idéia de que ‘deve ter acontecido algo’ é na maioria das vezes
injustificada; tivesse ela fundamento, o delírio advindo de realidades não seria
por isso menos delírio, assim como algumas Reivindicações, na origem das
quais ocorreu verdadeiramente um direito lesado, são delirantes. (1993:116-
117).
passagem ao ato e acting-out. Se, neste último, o sujeito se põe em cena, se exibe, se
mostra ao espetáculo, no primeiro, o sujeito se joga para fora da cena, ou seja, se deixa
cair como um objeto-dejeto.
Nas instituições de saúde mental, não é incomum que se assumam condutas
disciplinares a partir da pressuposição errônea de que temáticas passionais são
exclusivas ou até mesmo determinantes de um funcionamento neurótico. Chama-se,
assim, o sujeito a subordinar-se à lei, muitas vezes encarnando-a e exigindo do sujeito
que deixe de encenar o seu sofrimento. A psicanálise mostra que chamar um sujeito
psicótico à razão pode, paradoxalmente, agravar um acting-out ou até mesmo forçar
uma passagem ao ato.
Vejamos dois exemplos relativamente recentes a esse respeito. Uma paciente do
CAPS, após uma intervenção mais contundente de sua então técnica de referência,
mergulhou de cabeça de sua cadeira de rodas dentro de uma piscina vazia, ferindo-se
bastante. Pudemos, na instituição, inferir que o dito da técnica ganhou para a paciente
valor de interpretação, abrindo uma ambigüidade de sentido que foi impossível de
suportar para este sujeito.
Outro paciente faleceu ao se atirar do alto de um viaduto. Havia meses que ele
vinha aparentemente bem: suas automutilações haviam cessado, parecia mais
organizado em sua fala, aceitando melhor o contato com outras pessoas. Cabe dizer que,
durante anos, este paciente bateu a cabeça nas paredes do CAPS, marcando com sangue
o espaço institucional e deixando uma ferida eternamente aberta em sua testa. Após
meses de internação psiquiátrica, durante a qual não deixou de freqüentar o nosso
serviço, sua ferida cicatrizou e seu cabelo cresceu. O paciente estava tão bem que lhe foi
concedida uma licença para visitar sua família. Na volta, pôs fim à sua vida. A saída
trágica deste paciente nos obrigou a falar e a repensar nossas condutas. A melhora de
seu quadro produtivo talvez nos tenha impedido de enxergar que, para ele, gerir a sua
vida, tal como o quisemos começar a restituir com essa visita, o livrava a uma angústia
perigosa e intensa. Tinha-nos passado desapercebida a possibilidade de este paciente
poder adoecer com a sua melhora e, infelizmente, nos demos conta tarde demais.
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O caso Aimée
Abriremos esta parte com o depoimento de Lacan, um pouco mais de dez anos
após ter escrito sua tese:
Relendo nesta ocasião a observação em que me apoiei, parece-me que posso dar
o testemunho de que, como quer que se possam julgar os frutos dela, preservei
por meu objeto o respeito que ele merecia, como pessoa humana, como doente e
como caso. (1946:179)
Lacan encontra Aimée aos 38 anos, na ocasião de sua segunda crise psicótica.
Vejamos alguns dados fundamentais de sua história. Teve três irmãos e três irmãs. Sua
mãe sofre de delírios persecutórios. A paciente tem uma ligação muito intensa com ela,
“éramos como duas amigas” (...) “deveria ter ficado ao lado dela” (1932:220). Quando
estava grávida de Aimée, a mãe viu a filha mais velha morrer queimada. Após o
incidente, se recolhe e imputa a responsabilidade do ocorrido a seus vizinhos.
Os primeiros sinais da psicose de Aimée remontam, segundo Lacan, à idade de
17 anos. Ao menos dois fatos se destacam nessa ocasião: um fracasso escolar e a morte
da sua melhor amiga. Três sintomas chamam a atenção de Lacan: uma abulia
profissional, uma ambição não adaptada à sua realidade e a necessidade de direção
moral, revelando características da ambigüidade de sua personalidade.
Aimée vai trabalhar na administração de uma companhia ferroviária, em uma
província afastada de seu domicílio de origem, onde reside sua irmã mais velha. É
nesse trimestre passado na casa de sua irmã que a paciente conhece o seu primeiro
amor. Após um breve romance, permanece durante três anos apaixonada. Não confia
nem mesmo à sua segunda grande amiga – segundo Lacan, alguém advinda do mesmo
meio cultural que a paciente - o objeto único de seus pensamentos. Quando muda de
cidade, passa a odiá-lo: “eu passo rapidamente do amor ao ódio” (1932:225).
Muda de domicílio, onde passa a residir até a sua primeira internação. Lá
empreende uma ligação íntima com uma colega de trabalho, uma nobre decadente,
figura muito diferente dela e de seu entorno: “Era a única, nos diz ela, que saia um
pouco da mesmice, no meio de todas essas mulheres feitas em série” (1932:227) . É essa
amiga quem fala a Aimée sobre Mmme Z., atriz famosa que a paciente agredirá, e sobre
Sarah Bernardt, ambas alçadas ao papel de perseguidoras essenciais. Lacan assinala que
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uma funcionária de uma editora que lhe transmite a recusa de publicação de seu livro.
Aimée se livra do processo que lhe é imputado. Lacan assinala que talvez uma
internação tivesse tido efeitos mais benéficos. As ameaças contra seu filho ganham
potência em seu delírio: “eu tinha muito medo pela vida do meu filho, escreve a doente,
se não lhe acontecesse desgraça agora, seria mais tarde, e por minha causa, eu sou uma
mãe criminosa” (1932:163). Um dia lê no jornal que iriam matar seu filho “porque a
mãe era maldizente, má e se vingariam dela” (1932:163).
Lacan aponta que a perseguidora principal de seu delírio é “o tipo de mulher
famosa, adulada pelo público, de posses, vivendo no luxo” (1932:164). Acrescenta que
o vínculo com o perseguidor principal, o escritor P.B., podia haver sido inicialmente
erotomaníaco, estando, no momento do exame, na fase de despeito. Achava que os
livros de P.B. falavam dela. Assim como este último, a paciente escrevia romances e
desejava ser uma escritora famosa. Artistas, escritores, poetas, jornalistas são odiados
pela paciente, formam uma rede que quer destruir a humanidade.
Apela ao Príncipe de Gales e este se torna objeto de sua erotomania. Coleciona
recortes de jornais sobre seus deslocamentos, recobre suas paredes com fotos do
príncipe, lhe envia seus poemas e cartas. Neste ponto, Lacan, embora considere
Clérambault seu único mestre em psiquiatria, toma o partido de Dide: “Encontramo-nos
em presença do tipo mesmo de erotomania, segundo a descrição dos clássicos, retomada
por Dide. O traço maior do platonismo se mostra com toda a clareza desejável”
(1932:169). Leguil (1993) aponta que a falta de realização sexual e a satisfação
ocasionada pela manutenção de um platonismo radical ilustram “uma das formas da
psicose de dar conta dos embaraços do sexo” (21-22). Queremos ressaltar que a escolha
por uma figura distante, afastada, sem qualquer contato com a paciente, denota uma
tentativa de fazer desvincular o amor do ódio. Idealizando o Príncipe de Gales, ela
procura encontrar uma função pacificadora do amor. Como vimos, seus relacionamentos
passam rapidamente do amor ao ódio, demonstrando que para ela, o amor abole
qualquer possibilidade de diferença: o outro é, para ela, o mesmo ou o seu contrário.
Aimée ataca Mme. Z, atriz famosa, com uma faca. Diante do delegado de
polícia a paciente declara que há anos a atriz a ameaça, faz escândalos. Está associada
em suas perseguições a P.B. Justifica seu ato dizendo: “fiz isso porque queriam matar
meu filho” (Lacan:1932:157), este parece ser o único objeto de suas preocupações. A
74
paciente não obtém nenhum alivio após o ato, continua a criticar sua inimiga. Após
vinte dias, o delírio cai, começa a chorar e a dizer que a atriz não lhe fez mal algum, que
ela não devia ter feito o que fez.
Lacan assinala que as perseguidoras são apenas cópias sucessivas de um
protótipo inicial, cujo valor é duplo: afetivo e representativo. Por valor afetivo, Lacan
entende a relação de Aimée com sua irmã mais velha e por valor representativo, a
imagem da mulher que goza de liberdade e de poderes sociais. Seus duplos realizam a
mulher idealizada pela paciente. Ela ataca, portanto, no outro aquilo que ela gostaria de
ser:
Lacan marca o caráter ambíguo das explicações dadas por Aimée sobre porque
acreditava que ameaçavam seu filho: “para me castigar”. “Mas porquê?”. Aqui ela
hesita. “Porque eu não cumpria minha missão...”. Porque meus inimigos se sentiam
ameaçados pela minha missão...”(1932:252).
Aimée construirá seu delírio em torno da idéia de ser separada de seu filho.
Parece-nos que o delírio surge inicialmente como uma espécie de proteção contra o ato
de matar o filho, ou seja, como uma reação de fuga diante de um possível ato agressivo
contra o bebê. O deliro persecutório teria como função protelar um possível ataque de
Aimée ao seu filho (lembremos aqui a fórmula freudiana do delírio persecutório: não
sou eu... é ele que...). Já no segundo surto, ela tenta se isolar em Paris.
Sua paranóia de autopunição revela duas tentativas de suprir o ato agressivo:
uma pelo delírio e uma pelo afastamento. Infelizmente, essas tentativas se mostram
pouco eficientes, sendo necessário um ato, o ataque a Mme Z, e sua conseqüência, o
encarceramento, para frear sua sede de punição. Mas, em torno de quê gira seu temor de
punição? Como dissemos, encontra-se, na história de sua mãe, um episódio que parece
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ter tido correspondência com o delírio da paciente: quando a mãe de Aimée estava
grávida dela, perdeu um de seus filhos de morte acidental.
(...) mostramos o quanto essa ligação exclusiva a sua mãe tinha marcado a
infância da doente. Essa mãe, nós sabemos, lhe retornou sua afeição (...) ela
está por outro lado há vários anos em posse de delírio, este eclodiu plenamente
quando dos eventos recentes sobrevindos à filha. (Lacan: 1932:282)
É em torno da idéia de ser mãe que Aimée construirá seu delírio. Todo seu
esforço parece girar em torno de sua maternidade. A paciente tentou por diversas vezes
cuidar de seu filho e é justamente sua dedicação extrema que constitui paradoxalmente
o seu ponto insuportável. Como desenvolve Izcovich, a paciente “vai girar todo o seu
desenvolvimento delirante em torno da idéia de se separar de seu filho, ao ponto em que
acaba por encontrar uma pacificação quando ela realiza uma separação, na ocasião de
sua passagem ao ato” (1994:333).
Essa coincidência histórica marca uma similaridade entre o delírio da mãe e o da
filha. Encontramos aqui a primeira referência de Lacan ao compartilhamento de um
delírio entre pessoas da mesma família. Este tema será melhor abordado quando
analisarmos as construções de Lacan sobre o crime das irmãs Papin. Queremos,
contudo, salientar que Lacan enfatiza em sua tese o caráter social do delírio a dois,
recusando a hipótese genética de contágio mental. Retomando um caso de
hereditariedade psicótica seguida por quatro gerações, de Legrand du saule, Lacan
afirma que não é de se espantar que a filha predileta de um paranóico hipocondríaco
tenha se tornado psicótica aos 50 anos: seu pai aterrorizava seus filhos com ameaças de
morte e, em particular, a obrigava a redigir suas memórias mas, “irritando-se com suas
próprias dificuldades de estilo” (1932:285, nota 41), impunha-lhe uma série de castigos
e torturas.
Lacan defende que a freqüência de delírios a dois envolvendo mãe e filha, ou pai
e filho, deve ser considerada pelo viés do “isolamento social a dois e da lei do reforço
da anomalia psíquica no descendente” (Lacan:1932:284). No final de sua tese, define a
personalidade em três pólos: individual, estrutural e social. No que tange ao social,
demonstra que ele se baseia nas leis de participação (Lacan:1932:313). Podemos, com
isso, inferir que o delírio não deixa de ser, para Lacan, um certo modo de participação
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social. Como dissemos, o delírio passional tem ainda a vantagem de ser mais
socialmente aceito do que o delírio persecutório, no sentido de poder ser mais
facilmente confundido e integrado no discurso do senso comum da paixão (seja de
ciúme, de reivindicação ou de amor).
2.3 Ciúme
O ciúme e a paranóia
Laségue e Falret criaram, em 1877, a folie à deux para explicar casos de delírio
compartilhado. Essa categoria clínica pressupõe as seguintes características: que haja
um indivíduo ativo que exerça influência sobre outro, mais passivo, que o delírio tenha
alguma verossimilhança e que as duas pessoas envolvidas tenham vidas compartilhadas,
longe de influências externas.
1) Não é preciso ser psicótico para delirar, já que o induzido também delira.
que corresponde ao delírio de Aimée: quando sua mãe estava grávida dela, perdeu um
de seus filhos de morte acidental. O delírio traz assim, como já havia assinalado Freud
(1937), um “elemento de verdade histórica que ele insere no lugar da realidade
rejeitada” (303).
A partir de suas teorizações sobre a formação dos grupos, Freud mostrou que
este é um poderoso fator de desvio das pulsões amorosas de seus objetivos originais.
Nesse sentido, parece-nos que o grupo pode servir ao psicótico como uma espécie de
laço social protegido do sexual. Mas se o grupo pode proteger o psicótico de ter que se
haver com o sexo, pode – por outro lado – incentivar os efeitos imaginários da relação
em espelho e, em sua contrapartida, o ódio e a intolerância com o diferente. O exemplo
dado por Freud é o da relação hipnótica (como diz Freud, um grupo constituído de dois
membros). O hipnotizado investe em seu hipnotizador na mesma proporção em que
renuncia à realização sexual. O objeto é assim supervalorizado e a crítica afrouxada a
tal ponto que:
Fica claro, portanto, que não é possível fazer um paralelo absoluto entre folie à
deux e relação analítica, pois incorreríamos no risco de “delirar com o doente”
(Lacan:1957-58a:581). Alguns aspectos importantes podem, entretanto, ser extraídos da
função que pode ter, para um psicótico, a possibilidade de transmissão de seu saber
delirante. Vimos com Schreber que apesar de seu retorno ao mundo ter sido
possibilitado pela construção de seu delírio, o pedido de que Flechsig desse sua opinião
a respeito do que expôs em seu livro de memórias, mostra um forte desejo de acolhida
do delírio. Para fazer, nas palavras de Freud, função de cura, é importante a presença de
um outro que auxilie o psicótico a sustentar a sua procura por uma construção delirante
que tenha a “coerência que equivale a uma lógica” (Lacan: 1946:168). A presença de
um analista pode ser muitas vezes indispensável para ajudar o psicótico a encontrar algo
que faça a função de ordenamento do sentido. Voltaremos a esse ponto.
83
Lacan analisa um assassinato brutal que entrou para os anais do crime. Ocorreu
no dia dois de fevereiro de 1933, na cidade de Le Mans. Duas irmãs, Christine e Léa,
então com correspondentemente 28 e 21 anos, empregadas domésticas, atacam a patroa
delas e a filha. Lacan assinala que “de um grupo ao outro, não se falavam” (1933:389),
ou seja, não havia intercâmbio possível entre os pares. Eis que, subitamente, o silêncio
mantido por patroas e empregadas vem se materializar na obscuridade gerada por uma
pane de eletricidade, que havia sido provocada acidentalmente pelas irmãs. Uma orgia
sangrenta se inicia quando as patroas chegam das compras. Sem dar-lhes tempo de se
desfazer de suas bagagens e luvas, elas atacam suas vítimas; ainda vivas, arrancam-lhes
os olhos, massacram e mutilam seus corpos. Fazem incisuras profundas nas coxas de
uma, e sujam a outra com seu sangue. Limpam a cena do crime, se lavam, e se recolhem
aos aposentos, deitando-se na mesma cama.
O crime, deslanchado, segundo Lacan, em um momento de coincidência entre
um evento objetivo e uma tensão pulsional, localiza-se na vertente paranóica. A psicose
das irmãs é situada como um delírio a dois, embora Lacan rejeite a tese clássica segundo
a qual seria possível discernir o personagem indutor do induzido. O paralelismo
delirante das irmãs é explicado por Lacan como uma resposta a um enigma:
84
(...) o mal de ser dois do qual sofrem essas doentes as libera muito pouco do mal
de Narciso. (...) Parece que entre elas as irmãs não podiam nem tomar a
distância necessária para se matar. Verdadeiras almas siamesas, formavam um
mundo para sempre fechado. (...) Com os únicos meios de sua ilhota, elas
devem resolver seu enigma, o enigma humano do sexo. (1933: 402)
Christine dirá na prisão que o que as animava quando massacravam suas vítimas,
quando as cortavam, era o ‘mistério da vida’. As irmãs, ao porem em ato o seu ódio
assassino, arrancam literalmente os olhos de suas vítimas, embora não tenham
conseguido responder ao enigma da relação com o outro, e, portanto, ao enigma do
amor e do sexo. Separadas, as irmãs são confiadas cada uma a seu destino: Christine
morre louca e Léa volta a morar com a sua mãe.
Comparando o crime das irmãs Papin ao crime de Aimée, Lacan os oporá
radicalmente, afirmando que “só há constância de estrutura” (1933:402). Aimée ataca
“o ser brilhante que ela odeia porque representa o ideal que ela têm de si mesma”
(1933:402). As irmãs, por sua vez, “misturam à imagem de suas patroas a miragem de
seu mal” (1933: 403). É algo contido no olhar da patroa que atualizará, para as irmãs, a
sua desgraça: é isso que elas odeiam e que irão atacar. O olhar da patroa desvela assim
um “você não presta” que vem instantaneamente condensar o mal que as assombra.
Uma sessão deve, portanto, ser consagrada ao estudo dos atos homicidas nas
psicoses. A referência principal utilizada por Lacan é o trabalho de Guiraud sobre os
crimes imotivados, e suas teorizações sobre o kakon, termo grego que significa
desgraça, perigo.
Guiraud assinala em 1928 que são raros os assassinatos cometidos por psicóticos
que se desvelam como “atos lógicos e motivados por idéias delirantes” (1993:96).
Nessas ocasiões, o sujeito premedita o ato, sabe, portanto, o que faz e executa com
lucidez a sua vingança. Mais freqüentes são, segundo o autor, os crimes que parecem
não ter sido motivados nem por alguma convicção delirante, nem por nenhuma cólera
patológica ou impulsão. Distingue, a partir da teoria freudiana, os crimes do Isso
85
Dizemos que a violência é a força dos fracos. Não é possível curar-se através de
um ato brusco liberador, mas o doente tem sempre esse desejo (...). Mas contra
o mal social, o ato brusco liberador é possível: alguns o crêem ao menos (...).
Matar o tirano era para ele matar a doença. (Guiraud:1993:99)
(...) assim, como a tensão agressiva ao integrar a pulsão frustrada cada vez que a
falta de adequação do ‘outro’ faz abortar a identificação resolutiva, ela
determina com isso um tipo de objeto que se torna criminogênico na suspensão
da dialética do eu”. (1950:143)
86
Resta dizer ainda que se o objeto criminogênico não é nem uma imagem, nem
uma palavra (como vimos, no assassinato das Papin, Lacan dá um lugar de destaque ao
silêncio), isso o aproxima, em nossa leitura, daquilo que será mais tarde teorizado por
Lacan como objeto a. Retomando o caso Aimée, Lacan muda o seu ponto de vista
dizendo que as perseguidoras não representam para ela aquilo que ela queria ser, mas “o
ideal de malignidade contra o qual sua necessidade de agressão vai crescendo”
(1946:169-170). Paralelamente, mantinha, como representação de si mesma, um ideal
de pureza, de mãe ideal, devotada.
Retomemos brevemente as teorizações lacaniana sobre o ser, de modo a verificar
qual é o alvo do ataque no crime psicótico. Paradoxalmente, a psicanálise considera que
o ser é desde sempre perdido e só pode existir concomitantemente ao advento da
palavra. Lacan teorizou o ser em relação ao que Freud chamou de umbigo do sonho,
ponto de impossível em torno do qual o sonho se estrutura. Para Lacan o ser só existe ao
falar, só a dito do ser. Apesar disso, a palavra só pode expressar o ser até um certo
ponto, pois ele não é redutível a nenhuma significação. Como sugere Lacan no
seminário I, “Antes da palavra, nada é, nem não é. Tudo já está aí sem dúvida, mas é
somente com a palavra que há coisas que são (...) e coisas que não são. (...) A palavra
introduz o oco do ser na textura do real”. (1953-54:254).
87
O esquema L na psicose
Lacan indica com isso que o psicótico pode construir anéis que lhe permitam
situar-se na existência: uma das soluções possíveis para o desenlace é justamente o
ingresso no trabalho de construção delirante a partir das indicações das direções que lhe
oferecem suas alucinações. A alucinação sinalizaria, portanto, uma direção a ser tomada
no delírio. Lacan vai abandonando a idéia de que o Outro está excluído na psicose, na
medida em que considera que, se o psicótico consegue vagar e, eventualmente, se
localizar, sem o acesso à estrada principal que lhe forneceria a chave da relação entre o
homem e a mulher, é porque a linguagem opera na psicose, embora prescinda da
organização fálica.
Como dissemos, essa questão será definitivamente esclarecida na Questão
Preliminar, onde Lacan especifica que há Outro na psicose, embora o Outro em questão
não venha regido pela lei fálica. O esquema L não será, assim, mais utilizado por Lacan
como um esquema que esclarece as alucinações da psicose pela exclusão do Outro, mas
como uma via de investigação acerca da constituição do sujeito na neurose e na psicose.
Lacan propõe que o que define a condição do sujeito tanto na neurose quanto na psicose
depende da relação do sujeito com o Outro.
Isso envolve os quatro termos de seu esquema:
Esse exemplo [o caso Porca] é aqui destacado apenas para captar no ponto
essencial que a função de irrealização não é tudo no símbolo. Pois, para que sua
irrupção no real seja indubitável, basta que ele se apresente, como é comum, sob
a forma da cadeia rompida. (1957-58:542)
defende contra o real, denunciando assim a natureza de semblante de tudo o que toma o
lugar do Outro. Essa perspectiva reorientará também a clínica da neurose na medida em
que o Nome-do-Pai será encarado como apenas um sintoma entre outros capazes de unir
Simbólico, Imaginário e Real.
Em torno do Nome-do-Pai
Em uma nota de rodapé, Miller esclarece que por sua sugestão, Lacan acaba
traduzindo o termo Verwerfung por foraclusão. A rejeição (Verwerfung) freudiana
transforma-se, assim, a partir do seminário sobre as psicoses, em um novo conceito: a
foraclusão. Representa um acidente no simbólico, um vazio no ponto onde a linguagem
se organiza. A linguagem é aqui considerada como um tecido que sustenta a realidade,
a foraclusão deixaria, portanto, em algumas condições que veremos a seguir, o sujeito
vulnerável ao seu abandono, provocando efeitos em sua realidade.
Vejamos primeiramente como Lacan aborda logicamente as etapas de
constituição do sujeito na neurose. O Nome-do-Pai ordena a linguagem na neurose,
servindo de ponto-de-basta. No primeiro tempo do Édipo, na etapa fálica primitiva, o
Nome-do-Pai age, mas a criança só pode assimilar o seu resultado: identifica-se ao falo
como objeto imaginário de desejo da mãe. Na segunda etapa, a criança recebe a lei do
pai como aquela que priva imaginariamente a mãe. A mãe passa a ser submetida a uma
lei terceira, de um Outro, ao qual o seu desejo também é reenviado. No terceiro tempo,
o pai intervém como sendo aquele que detém o falo e que pode, portanto, dar à mãe o
que ela deseja. O pai aparece aqui como suporte identificatório do ideal do eu para o
menino, que buscará como ele ter o falo, e como objeto de amor para a menina, que
procurará por sua vez alguém que, como o pai, tenha o que ela sabe que não tem.
É nessa medida que o terceiro tempo do complexo de Édipo pode ser alcançado,
quer dizer na etapa da identificação onde se trata para o menino de se identificar
ao pai enquanto possuidor do pênis e, para a menina, de reconhecer o homem
enquanto aquele que o possui.(1957-58b:196)
do desejo da mãe, interrompendo seu deslizar infinito. O Nome-do-Pai funda assim a lei
no Outro que impede que este último use o sujeito como objeto de seu desejo irrestrito.
A metáfora produz como efeito a produção de um novo significado, o falo como
resposta ao enigma do desejo da mãe e a indução da significação fálica como suporte
para o sujeito.
O amor é produzido, na neurose, a partir dessa falta primordial: vem no lugar
daquilo que falta ao Outro e visa o seu ser: “o que é assim dado ao Outro de completar e
que é propriamente aquilo que ele não tem, porque para ele também o ser falta, é o que
se chama amor” (1957-58:414-415). Amar é, na neurose, dar aquilo que não se tem, ou
seja, o amor vem em substituição a uma falta primordial.
Na psicose, o campo da realidade não se sustenta dessa forma tão amarrada,
trazendo, como veremos, diferenças na forma como o sujeito vivencia o amor. Dentre
outras coisas, é por isso que Lacan (1946) diz que o psicótico é o homem livre. Suas
possibilidades criativas não estão atreladas à norma fálica. Isso fica evidente durante o
surto psicótico, quando as significações, despidas da roupagem fálica, podem, por
exemplo, apresentar-se como um vazio absoluto ou como uma significação plena. A
foraclusão do Nome-doPai (Po) é, portanto, correlata à falta de referência fálica para a
organização do mundo ( ). Se como dissemos, o psicótico é, para Lacan, o homem
livre, essa liberdade não se faz, entretanto, sem um preço. É preciso para o psicótico um
trabalho de invenção solitário e particular que faça de “suplência à falta desse
significante que é o Nome-do-Pai” (1957-58b:147).
não poder dizê-lo claramente. Lacan detecta rapidamente seu erro e percebe que o
sujeito “fala tão bem por alusão que não sabe o que diz” (Lacan:1955-56:64),
redirecionando a entrevista de forma fazer com que a paciente revelasse o que realmente
ouviu: ela alucina seu vizinho chamando-a de ‘Porca’. Demonstra, assim, que a
paciente não recebe sua própria mensagem sob forma invertida, mas que sua fala está no
outro especular.
Lacan tece, ainda, um interessante comentário acerca da questão da
temporalidade entre a frase da paciente e a do amante da vizinha: embora não se possa
precisar qual frase veio em primeiro lugar é, no entanto, possível considerar que a frase
‘eu venho do salsicheiro’ pressupõe a resposta ‘Porca’. Com isso, Lacan indica que a
paciente fala sem saber que está falando e nem o que está falando: “Eu a porca, eu
venho do salsicheiro, já estou disjunta, corpo despedaçado, membra disjecta, delirante
e meu mundo se vai em pedaços, como eu mesma.” (Lacan:1955-56:64) Vemos, portanto,
que a alucinação é uma resposta antecipada do sujeito, há uma modificação da estrutura
da retroação. O sujeito encontra no Outro uma significação prévia ‘Porca!’ que lhe é
endereçada e que o fixa em um conteúdo.
enunciação em um eu da frase.
A paciente, que havia utilizado a fuga e o afastamento para lidar com o episódio
traumático de seu casamento, se vê, a partir das investidas da vizinha, às voltas com o
retorno, no real, de algo que não pôde ser subjetivado. O delírio de vizinhança, como
assinala Laurent (1989), desencadeia a injúria alucinada. A vizinha encarna para a
paciente uma figura de vida fácil, ou seja, localiza um excesso de ordem sexual nessa
mulher que a ameaça. A partir desse exemplo, Laurent, por transposição, propõe pensar
que o problema da transferência na psicose coloca-se quando o analista começa a
ocupar o lugar do vizinho malvado: “a erotomania de transferência é a articulação entre
o amor e o gozo malvado que pode ser localizado, neste caso, do lado do vizinho”
(Laurent:1989:15). Podemos, com isso, inferir que a posição do analista pode ser vivida
como intrusiva na psicose, criando um obstáculo para a consolidação da transferência.
Como o analista poderia evitar ocupar essa posição na transferência psicótica?
Não responderemos por ora a essa questão. Queremos apenas indicar que a
transferência, tal como Freud a revelou, demonstra a relação entre amor e saber. Lacan
explicitou mais tarde que na neurose ama-se àquele a quem se supõe deter o saber que
viria a nos completar. Todo o problema da transferência na psicose gira em torno dessa
questão já que, na medida em que o amor e o gozo encontram-se aí intrincados, ocupar
o lugar de saber na transferência pode equivaler a firmar-se na posição de Outro
gozador. O saber na psicose está e deve permanecer, portanto, do lado do paciente e não
do analista. É ele quem sabe sobre as investidas do Outro, que podem se apresentar, por
exemplo, sob a forma de amor, de gozo desmedido ou de alucinação1.
Através da injúria alucinada ‘Porca’ algo do ser de gozo do sujeito veio a ser
localizado. Uma das saídas possíveis, tentativa de cura, segundo Freud, é inserir esse
significante na cadeia do delírio: eu, a porca, sou aquela que será cortada em pedaços....
Um exemplo mais claro dessa função da alucinação pode ser encontrado no caso
Schreber: lembremos que ele aceita sua transformação em mulher após ouvir a injúria
Luder. De uma situação intolerável, a transformação em mulher passa a ser um
sacrifício incontornável ao qual Schreber deve se sujeitar, de modo a preparar seu
encontro assintótico com Deus.
1
Sobre este último aspecto, remeto os leitores à minha dissertação de mestrado “O fenômeno alucinatório
na clínica psicanalítica das psicoses” (IPUB/UFRJ:2000).
101
A injuria vem designar, então, no lugar daquilo que não pôde ser simbolizado,
um nome para o sujeito em seu ser. A alucinação paradigmática da paranóia situa o
sujeito em uma posição subjetiva, apesar deste lugar muitas vezes o desmerecer ou o
denegrir. Através do insulto, o sujeito fixa uma identidade. É por isso que Lacan dirá em
seu seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise que o sujeito é
imanente à sua alucinação verbal (1964:232). Desenvolveremos, um pouco mais
adiante, as teorizações de Lacan acerca da questão do sujeito na psicose. Em oposição
ao sujeito da neurose, cuja aparição entre os significantes é pontual e evanescente,
Lacan proporá pensar o sujeito na psicose como sendo um sujeito de gozo.
O amor pode, na psicose, exercer uma função similar a injúria: “O que se passa
no nível da significação? A injúria é sempre uma ruptura do sistema da linguagem, a
palavra de amor também” (1955-56.:67). A palavra de amor e a injúria procuram
alcançar uma função de nomeação para o ser que é em si mesmo indizível, um nome
substitui assim “o objeto indizível” (1957-58a:541) que foi rechaçado no real e que
agora retorna como voz. Vemos, portanto, que o amor na psicose não está disjunto do
gozo excessivo e mortífero do Outro, mas ao contrário, pode convocá-lo.
Leguil (1987) aponta que devemos utilizar as teorizações lacanianas a respeito
da alucinação auditiva verbal como um contraponto para clínica psicótica do amor.
Tomando a questão pelo viés da paranóia vemos que, assim como a alucinação, o amor
pode ser vivido pelo sujeito em sua exterioridade mais radical. O amor interrogaria
assim a posição do sujeito em relação a um outro consistente e, por isso, radicalmente
Outro. A partir da alucinação, vemos que a problemática do amor na psicose deve ser
tomada em termos daquilo que é relativo ao sujeito: uma certeza “de que daquilo de que
se trata (...) lhe concerne” (Lacan:1955-56:88). O amor, o ódio e a alucinação veiculam,
portanto, uma certeza que concerne ao sujeito em seu ser.
Há algo na psicose que visa o sujeito, que fala dele, que o constrange, mas que,
por outro lado, pode impulsionar o sujeito em uma via de construção de um saber que
dê conta das investidas sem sentido do Outro ou na criação de um artefato que faça
barreira aos abusos do Outro. A argamassa simbólica da paranóia, tal como já nos havia
demonstrado Freud em seu comentário sobre Schreber, é feita de amor e de delírio. Pelo
mesmo laço que une amor e ignorância enquanto paixões do ser, é possível, por
exemplo, que o psicótico se ponha a construir uma teoria sobre o amor. Se o amor do
102
qual se trata aqui não é marcado pela armadura fálica, o laço inusitado com o saber
poderá re-situá-lo do lado da criação, como uma invenção de saber particular e original.
O amor morto
A que se vê a diferença entre alguém que é psicótico alguém que não o é? Ela se
deve a isto: para o psicótico, uma relação de amor é possível abolindo-o como
sujeito, enquanto ela admite uma heterogeneidade radical do Outro. Mas esse
amor é também um amor morto (1955-56:287).
ser sexual do sujeito e à representação do que é para ele, dependendo do sexo ao qual
pertença, ser homem ou ser mulher.
Para explicar a relação amorosa do sujeito com esse Outro radicalmente Outro,
ou seja, absoluto, sem furo, Lacan recorre à teoria medieval do amor, em particular
aquela que fala da relação extática com a alteridade. Quinet (1998:80) mostra que o
termo êxtase refere-se àquilo que está fora de si, que se transporta para fora de si
mesmo. Para essa teoria, o outro, enquanto diferente de si (ou em termos lacanianos
radicalmente Outro), é uma condição necessária para amar. Esse amor é mortificante,
nele o sujeito perde sua alma, sacrifica suas inclinações em nome das do Ser Absoluto.
A possessão espiritual do amor de Deus encontra equivalência com o gozo: se Deus
morreu por amor aos homens, então para amar é necessário anular-se frente ao Outro do
amor.
O amor-paixão do idealismo apaixonado e do platonismo é comparado, nessa
mesma via, à loucura. A paixão da imagem será comparada à fascinação que exerce o
cinema, lugar por excelência da loucura da pura miragem. Lacan cita o ditado popular
segundo o qual “quando se está apaixonado se é louco”(1955-56:166) de forma a
mostrar que na paixão à primeira vista, assim como em determinados momentos da
psicose, pode ocorrer uma coincidência entre o objeto de desejo e a imagem
fundamental. A ligação mortal da paixão refere-se, como desenvolveremos
posteriormente, a uma espécie de conjunção entre imagem e objeto.
Para tornar isso mais claro, relembremos rapidamente o exemplo da neurose. A
interrogação sobre o desejo do Outro desconecta o sujeito da fixidez das imagens. O que
libera o sujeito da captura das imagens na neurose é o falo. O falo é para a neurose uma
maneira de significar a falta vindo, portanto, a ocupar o lugar daquilo que falta às
imagens. O neurótico tem assim uma certa idéia de que as imagens recobrem o
desconhecido.
Na psicose as imagens não são recobertas com o brilho fálico, o desconhecido
pode, portanto, vir à tona e revelar-se, o que equivale, neste ponto das teorizações de
Lacan, a dizer que o significante torna-se real.
104
O psicótico não pode apreender o Outro a não ser na sua relação com o
significante, ele se fixa apenas numa casca, num invólucro, numa sombra, na
forma da fala. Ali onde a fala está ausente, ali se situa o Eros do psicotizado, é
ali que ele encontra seu supremo amor. (1955-56:289)
O supremo amor do psicótico deve ser entendido aqui como um amor morto,
como um amor que carrega a morte como tema central. A falta de colorido fálico na
imagem faz aparecer aquilo que ela mesma vela - i(a) – ou seja, o sujeito como a, como
dejeto, resto. Comparando a linguagem delirante de Schreber à linguagem do amor,
Lacan destaca a expressão “assassinato d’alma” demonstrando, em sua relação com a
linguagem de amor das preciosas, a aniquilação subjetiva pela qual passa Schreber em
seu amor a Deus.
O amor morto é aquele que pode exibir a morte do sujeito em seu horizonte.
Schreber vivenciou esse tempo de morte subjetiva após ouvir a injúria Luder que, dentre
outras acepções, pode significar carcaça. O significante no real acarreta, assim, a queda
da casca que recobre as imagens, fazendo emergir o objeto-resto. Há aí um tempo de
mortificação subjetiva até que o trabalho do delírio faça o sujeito construir um novo
nome de sujeito. Com o trabalho do delírio, Schreber passa de objeto a sujeito desse
gozo a partir da construção de uma denominação: Mulher de Deus. Entretanto, Schreber
não sai incólume desse amor, ficando, após sua morte subjetiva, mortificado em sua
existência.
Retomando a relação extática com o Outro, Lacan mostra que, na psicose, a
heterogeneidade radical do Outro corresponde a uma presença constante, a um Outro
real, que coexiste com o sujeito: “ao invés de estar só, quase nada há de tudo o que o
cerca que, de certo modo, ele não seja. Em compensação, tudo o que ele faz existir
nessas significações é de alguma maneira vazio dele próprio”. (1955-56:95) Nessa
mesma via, Lacan mostra que a relação de Schreber com Deus afigura-se “mais como
uma mistura do que uma união do ser com o ser” (1957-58a:582), mistura que reúne
voracidade e asco e que, nesse sentido, deve ser posta em oposição ao júbilo da
experiência mística. Veremos que o aspecto mortificante do amor poderá, com as
teorizações acerca do objeto a na psicose, ser considerado como um dos nomes do
efeito, no sujeito, do gozo do Outro na psicose.
105
A solução delirante
Tripé imaginário:
ϕ = falo
i = imagem especular
m = moi (eu)
P = Nome-do-Pai
M= Mãe (Outro materno)
I = ideal do eu
Numa famosa nota de rodapé, Lacan (1957-58a:559, n.16) mostra que o campo
da realidade, contida no quadrilátero iMIm, só se mantêm pela extração do objeto a. Isso
significa que o campo da realidade na neurose é sustentado pela fantasia e que a
estabilidade desse campo só é preservada se esse objeto for extraído.
Na psicose, o objeto não é extraído nesses mesmos moldes, o que torna o campo
106
2
É no seminário XI que Lacan situará o olhar e a voz como os objetos da pulsão escópica e invocante
perdidos na neurose, devido à extração do objeto a, e que retornam desvelados na psicose. Cf. LACAN J.,
Le Séminaire, livre XI: Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (1964), Paris, Seuil: 1973:
80 e 232.
107
mundo. Após ler a notícia de sua morte em um jornal e constatar seu falecimento,
Schreber segue por um período de reconstrução delirante e põe em ação o trabalho de
redação de suas memórias. O gozo é localizado no Outro, representado por Deus. Com a
metáfora delirante ‘mulher de Deus’, Schreber encontra um mundo possível de habitar,
e um lugar de onde pode obter um gozo por sua vez também possível, através de sua
prática transexual: “na impossibilidade de poder ser o falo que falta à mãe, resta- lhe a
solução de ser a mulher que falta aos homens” (1957-58a:572). É preciso assinalar,
contudo, que a morte subjetiva não deixou de rondar a estabilização de Schreber, como
ficou comprovado alguns anos mais tarde em sua história.
Retomemos rapidamente o esquema R da neurose. Lacan indica que o Nome-do-
Pai redobra, na neurose, no lugar do Outro “o próprio significante do ternário simbólico,
na medida em que ele constitui a lei do significante” (1957-58:578). O Outro se
desdobra, portanto, a partir dessa definição, entre o lugar do significante – o ponto M do
esquema R – e o lugar da lei – ponto P -. O objeto a, perdido com a inscrição do Nome-
do-Pai, será buscado pelo sujeito neurótico em sua fantasia.
Vimos que, na psicose, a extração do objeto a não se dá nos termos da neurose.
No que concerne ao delírio, vimos que ele promoveu para Schreber um movimento de
oscilação entre a posição de objeto que falta ao Outro, designado pela alucinação Luder,
e a posição de sujeito possibilitado pela metáfora delirante (Mulher de Deus). Por
analogia à neurose, o delírio tenta restituir a oscilação encontrada na fantasia: ∃&∀.
Entretanto, como indica Laurent (1989), a fantasia na psicose permanece do lado do
Outro e não do sujeito. Cabe dizer que, para o psicótico, o desejo do Outro pode
equivaler a uma vontade de gozo ilimitada, o que, mais uma vez, nos remete às
particularidades do amor e, mais especificamente, da transferência na psicose.
A solução delirante de Schreber consiste em criar um contorno para Po e , a
partir da deformação e da infinitização das linhas simbólica M-I e imaginária m-i. No
estágio final de seu delírio, o Ideal do eu (A Mulher) assume o lugar do Outro (Deus): a
Deus, enquanto Outro, faltará sempre Schreber, enquanto Mulher. Laurent (1989)
aponta ainda que a solução delirante é sempre parcial e, embora o delírio constitua em si
mesmo um universo, comporta sempre um elemento excluído de seu campo, aquilo que,
como dissemos, Lacan teorizará mais tarde como sendo o objeto a.
108
Há então uma simultaneidade entre a relação de Schreber com Deus e com sua
esposa, mas como isso ocorre? O que possibilita e até mesmo sustenta a compatibilidade
entre essas duas relações? Se no eixo simbólico temos uma mistura do ser de Schreber
com Deus enquanto Outro, o que se produz no eixo imaginário? Que tipo de relação é
possível entre o psicótico e seu semelhante?
Como aponta Pequeno (2000), Lacan coloca em a’ o endereçamento de Schreber
à sua esposa como uma base sobre a qual se apóia o endereçamento mais geral em a.
Podemos inferir assim que a relação de Schreber com sua esposa está no cerne da
suplência que lhe permite retomar suas relações com o mundo. Queremos introduzir
como hipótese a idéia de que as cartas que Schreber escreveu à sua esposa, “a quem foi
dedicado o projeto inicial de seu livro” (Lacan:1957-58a:580), foram a experiência
piloto necessária para viabilizar a possibilidade da escrita mais geral de suas Memórias.
Parece-nos que se o delírio não impede o amor enquanto amizade é porque não
haja talvez uma relação tão estreita entre delírio e amor. A tendência com Freud seria
pensar que é a reorganização do mundo através do delírio que permite a Schreber
retomar seus laços amorosos. Ou seja, através de uma estabilização simbólica o sujeito
remaneja seus laços imaginários. Parece-nos, entretanto, que, para além do trabalho de
significação do delírio, como uma resposta possível ao gozo do Outro, o amor pelo
semelhante ajuda Schreber a escrever. Vejamos o que ele mesmo diz a respeito:
Apesar disso, abandonei-a desde o início porque o seu primeiro motivo foi
orientar minha esposa sobre as minhas experiências pessoais e concepções
religiosas. Esta pode ser também a razão pela qual considerei conveniente sob
muitos aspectos dar explicações circunstanciadas de fatos cientificamente já
conhecidos, germanizar palavras estrangeiras etc., o que seria na verdade
dispensável para o leitor culto. (1995:Nota preliminar:29)
No trecho acima citado, fica claro que Schreber não colocava sua mulher como
uma figura do saber (ela não era uma leitora culta, como ele mesmo afirma).
Acreditamos que é justamente por ela não ter ocupado para o Presidente um lugar de
saber é que ele se viu impelido a instruí-la, redigindo suas memórias e dedicando-lhe o
projeto inicial do livro. Sabemos, entretanto, que Schreber faz, em carta aberta, um
pedido a Flechsig, seu primeiro médico, de que submeta seu livro a um exame
benévolo. Lembremos que Flechsig constituiu, por ter encarnado o lugar do saber, o
pivô do desencadeamento de Schreber, vindo a ocupar inicialmente o lugar do
perseguidor. Se o delírio cura Schreber de sua transferência avassaladora à Flechsig,
algo entretanto ainda resta e insiste, no final da escrita de seu livro, do endereçamento
transferencial que ele lhe fez.
A relação de Schreber com o seu primeiro médico e com a sua esposa nos dá
indícios do lugar a ser ocupado pelo analista na transferência na psicose. Sugerimos
adotar provisoriamente a seguinte fórmula: o analista não deve ser nem tão burro quanto
a esposa de Schreber e nem tão brilhante quanto seu médico. De todas as formas, há
algo na falta de conhecimento de sua esposa que incentiva Schreber a escrever. Além
disso, é através do endereçamento inicial à esposa que novos endereçamentos se
efetuam. Se o amor de Schreber por sua esposa, ao contrário do amor de transferência
por Flechsig, sobrevive à construção do delírio, a certeza de saber que era dirigida a
Flechsig ainda faz apelo para que este avalize sua solução.
Se o delírio remaneja as relações do sujeito com o mundo, ele não é em si uma
solução definitiva. Como já apontamos anteriormente, há uma fragilidade no delírio, um
ponto de suspensão que deixa o sujeito sempre no risco de se apagar. Indicamos, no
primeiro capítulo, que a carta ao professor Flechsig é um mapa importante da
transferência na psicose, evidenciando a importância, para a estabilização da psicose
pelo delírio, de que alguém se deixe ser colocado no lugar de destinatário de suas
produções.
110
Não digamos que o louco é alguém que vive sem o reconhecimento do outro. Se
Schreber escreve essa obra enorme é justamente para que ninguém ignore a
respeito do que ele sofreu, e mesmo para que, nessa circunstância, os
especialistas venham verificar em seu corpo a presença dos nervos femininos
pelos quais progressivamente ele foi penetrado, a fim de objetivar a relação
singular que foi a sua com a realidade divina. Isso se propõe justamente como
um esforço para ser reconhecido. Já que se trata de um discurso publicado, um
ponto de interrogação é suscitado pelo que pode bem querer dizer, nessa
personagem tão isolado por sua experiência que é o louco, a necessidade de
reconhecimento. O louco parece à primeira vista distinguir-se por não ter
necessidade de ser reconhecido. Mas essa suficiência que ele tem de seu próprio
mundo, sua autocompreensibilidade que parece caracterizá-lo, não deixa de
apresentar alguma contradição. (19555-56:94)
Nos anos cinqüenta, Lacan aponta como via de investigação para os analistas o
trabalho clínico com a psicose. Afirma que cabe ao analista “ouvir aquele que fala,
quando se trata de uma mensagem que não provém de um sujeito para além da
linguagem, mas de uma fala para além do sujeito” ( 1957-58a:581). Isso não o impede,
entretanto, de apontar para alguns riscos transferenciais, principalmente quando se toma
pré-psicóticos em análise. A situação analítica pode favorecer o desencadeamento de
uma psicose, na medida em que chama o sujeito a ‘tomar a palavra’:
Com isso, Lacan aponta que a manobra do analista não deve ser a mesma no que
concerne ao tratamento de um neurótico e de um psicótico. Embora não desenvolva essa
111
questão nos anos cinqüenta, deixa algumas indicações importantes para serem
trabalhadas. Lacan justifica a sua decisão de interrupção na investigação do tema como
uma estratégia prudente, pois considera que qualquer teorização sobre o manejo da
transferência na psicose seria prematura, em um momento no qual toda a literatura
psicanalítica sobre o tema não fez nada além do que retornar a um ponto anterior à obra
de Freud. Assinala, entretanto, que, no que concerne ao tratamento das psicoses, é
impensável a utilização da técnica analítica tal como ela foi pensada a partir das
neuroses, pois isso seria “tão estúpido quanto esfalfar-se nos remos quando o barco está
encalhado na areia” (1957-58a:590).
Em seu seminário sobre as psicoses, fornece uma outra indicação pontual sobre
o papel do analista na psicose. Retoma, para isto, a questão do lado do analisante,
ressaltando que o psicótico “é um mártir do inconsciente, dando ao termo mártir seu
sentido, que é o de testemunhar. Trata-se de um testemunho aberto” (Lacan, 1955-
56:153). Mas de que lugar o analista recebe esse testemunho? Lacan aponta que
devemos nos contentar em passar por ‘secretários do alienado’ (1955-56:253) e tomar
ao pé da letra o que ele nos conta. Como indica Laurent (1997), fazer-se destinatário do
testemunho do psicótico é mais do que exercer a função de um simples ‘tomador de
notas’. O destinatário é aquele que, ao acolher e privilegiar algumas coisas em
detrimento de outras, toma uma certa posição.
Se em 1957, Lacan não queria ir para além de Freud no que tange a questão do
tratamento da psicose, em 1966, a partir de sua formalização do objeto a, introduz a
questão do gozo na psicose e suas conseqüências para a transferência, ainda tendo como
base o caso Schreber. Segundo ele, Freud teve o mérito de introduzir a questão do louco
enquanto sujeito, na medida em que dá credito à fala do próprio Schreber ao se utilizar
de suas memórias como história clínica. Mas Lacan, por outro lado, adverte que
“escancarar uma porta aberta não é, em absoluto, saber para que espaço ela se abre”
(1966:220), sendo necessária a formulação e a sistematização da lógica que rege a
psicose.
112
A partir da relação de Schreber com Deus, Lacan precisa que este último ocupa
para Schreber a posição de Outro gozador. A partir disso, Lacan chega à definição de
que o delírio identifica na paranóia o gozo no lugar do Outro. Vimos, entretanto, que ser
o objeto puro do gozo do Outro não chega em si a constituir uma estabilização possível
para Schreber, provocando, ao contrário, sua morte subjetiva. Em relação à
transferência, Lacan adverte que o laço de Schreber com seu médico Fleschig, o coloca
como objeto de erotomania mortífera, mostrando que esse não é o lugar a ser ocupado
pelo analista na psicose. Precisa assim, a posição de objeto de gozo para o sujeito
psicótico na paranóia, indicando que o Outro é aquele que goza do sujeito.
Retomemos a teorização acerca das operações de alienação e separação
desenvolvidas no seminário sobre Os quatro conceitos. Lacan vai dizer que num
primeiro tempo, na alienação, teríamos um sujeito que não é nada, estúpido e inefável,
ao qual virá se inscrever um primeiro significante ♦ que o petrifica no campo
significante. É preciso então que venha, na separação, se inscrever um segundo
significante ♥ para que possa aparecer o sujeito como falta ∃.
Por analogia, poderíamos considerar que, na psicose, a segunda operação
introduziria uma diferença. Lacan utilizará a holófrase para exemplificar o que
sucederia mais especificamente na paranóia em relação ao par significante primordial.
Haveria para Lacan uma tomada em bloco do primeiro par significante, ocasionando
uma solidificação do par ♦− ♥. Esse fenômeno é nomeado, retomando um termo
freudiano, por Lacan (1964:215) de Unglauben, a recusa de um dos termos da crença
que designaria a divisão do sujeito.
Retomado o exemplo de Schreber, verificamos que a alienação pode ser
caracterizada no exercício constante de pensar ao qual Schreber se submete, uma
espécie de ligação compulsiva ao Outro. A versão psicótica da separação seria, neste
caso, o seu deixar-se cair no momento em que pára de pensar e que evidencia um
fenômeno de gozo. O trabalho delirante da psicose faz Schreber deslocar-se do lugar de
objeto do Outro e sustentar uma posição de sujeito de gozo. Schreber deve fazer, assim,
um exercício constante de forma a “nunca deixar que cesse nele uma cogitação
articulada” (1966:221), pois isso provocaria que seu ser se tornasse um “texto
dilacerado” (1966:221). Cabe a Schreber, portanto, o trabalho de manter-se
113
permanentemente conectado, on-line com o simbólico, para não se ver cair como dejeto,
como resto.
Na conversação de Arcachon (1997), foi proposto tomar a clínica do
desencadeamento em contraposição à clínica do desligamento do Outro. Essa indicação
faz com que devamos, no que concerne ao psicótico, levar em consideração não
somente fenômenos que atestam o parasitismo da linguagem, mas também procurar
evidências do gozo e de seu retorno fora do discurso. Essa perspectiva esvazia um
pouco a importância dos fenômenos elementares no diagnóstico de psicose, e alarga o
alcance deste último. A separação pela qual passa Schreber no momento em que pára de
pensar, o deixar-se cair, pode assim servir de ilustração para o momento em que o
sujeito se desliga do Outro. Nesse sentido, a tarefa do analista se torna um pouco mais
complexa, na medida em que os signos de desligamento do Outro poderão ser ínfimos,
devendo o analista, em seu trabalho, estar atento a eles de modo a identificá-los e alçá-
los à condição de elementos fundamentais.
O analista deve se fazer de destinatário e de ponto-de-basta de signos que por
vezes são ínfimos, sendo preciso, portanto, que haja de sua parte uma decisão de
considerar que há nisso uma entrada possível. Queremos assinalar que o desejo do
analista verifica-se assim como um ponto essencial e definitivo para a viabilidade da
prática clínica com as psicoses. Lacan (1964) situa o desejo do analista, como um
desejo de “obter a diferença absoluta” (247), condição única para que possa emergir “a
significação de um amor sem limite” (248). O desejo do analista é assim posto por
Lacan em continuidade com o amor que, paradoxalmente, renuncia a seu objeto. Essa
nos parece ser a condição e a marca singular do dispositivo analítico com relação à
transferência. Como indica Laurent (1997), “o amor extrai um saber” (274),
evidenciando que aquilo que aparece no senso comum sob o nome de amor torna-se,
para o dispositivo analítico, instrumento de conhecimento.
O interesse por esse procedimento é revelar o ato de detenção que é produzido nos dois
exemplos. No caso Aimée (1946), Lacan considerou que foi somente após o ataque a
Mme Z que ela conseguiu se estabilizar. É interessante observar que Miller (2003)
contradiz um pouco esse ponto de vista, mostrando que Aimée não abandonou o delírio,
apenas o desenvolveu em um outro registro.
A perspectiva de Miller indica que também o delírio deverá ser revisto com as
últimas teorizações do ensino de Lacan. Se antes o delírio era considerado em sua
tentativa de construção de uma metáfora delirante, parece agora ser considerado não
tanto pela vertente da significação, mas como uma ficção atuando no registro de um
saber-fazer com a linguagem. Essa perspectiva fará com que o delírio seja pluralizado e
seu alcance revisto. Voltaremos a esse ponto.
É interessante observar que tanto o ato agressivo de Aimée quanto o ato de
defecar de Schreber produzem um ponto de detenção que os separa do Outro
persecutório, mas também da cadeia significante. À infinitização do delírio, Lacan vai
opor a reunião do sujeito em seu ato. No ato de defecar, Schreber sente “reunirem-se aí
os elementos de seu ser cuja dispersão no infinito de seu delírio produz sofrimento”
(1957-58a:589-nota 40). Vemos, portanto, que, o psicótico pode, a partir de um ato,
tentar se separar do objeto imundo com o qual identifica o seu ser. A criação artística se
assevera, em contrapartida, como uma solução estratégica, demonstrando que pode ser
apaziguador condensar o gozo em um objeto fora do sujeito.
caberá, portanto, a difícil tarefa de lidar com essa não-extração. Lembremos que se o
Outro não está separado do gozo na psicose, isso significa que, para o psicótico, o Outro
pode ser real.
A passagem ao ato assinala um risco importante a ser considerado no caminho
empreendido pelo sujeito ao tomar a via do ato na psicose. A defenestração na
melancolia é um caso exemplar de passagem ao ato: nela, o sujeito se sente
impulsionado a se excluir da cena de sua fantasia e, ao pular pela janela para fora da
cena, cai como dejeto. Lacan chama de cena a cadeia significante da qual o sujeito se
desconecta no momento em que ele atravessa a janela. No momento em que se produz a
passagem ao ato, o sujeito se identifica com o objeto a.
Não é por nada que o melancólico tem uma propensão tal, e sempre realizada
com uma rapidez fulgurante, desconcertante, de se jogar pela janela. A janela,
enquanto nos lembra esse limite entre a cena e o mundo, nos indica o que
significa esse ato pelo qual, de algum modo, o sujeito faz retorno a essa
exclusão fundamental onde ele se sente, no momento mesmo em que se
conjuga no absoluto de um sujeito, do qual apenas nós, analistas, podemos ter
idéia, essa conjunção do desejo e da lei. (Lacan: 1962-3:126)
Vimos que na psicose a função fálica é ausente, o recurso fálico não será,
portanto, utilizado pelo psicótico para se situar na partilha dos sexos. Há uma
impossibilidade lógica de que o psicótico se situe, no que concerne ao sexual, do lugar
de onde a proposição fálica é afirmada, ou seja, no conjunto dos homens. Do lado
feminino, vimos que também as mulheres são, mesmo que parcialmente, regidas pela lei
fálica. Os dois lugares restantes situam-se no alto da fórmula da sexuação. Do lado
masculino, o lugar do Pai primitivo, onde a função fálica é negada; do lado feminino, o
lugar de A Mulher que não existe. Vemos então que o psicótico será assim levado a se
posicionar no lugar daquilo que falta ao Outro.
Esse posicionamento trará também conseqüências no que concerne ao gozo, já
que o gozo enquanto sexual pressupõe que a lei fálica opere. Se o falo não faz efeito na
psicose, o gozo em questão será advindo de um Outro todo, absoluto ou, ao contrário,
de um Outro que não existe e, portanto, pulverizado, estilhaçado. Esse gozo é em si
mesmo fora-da-linguagem e só pode ser deduzido. Por recusar o falo, o sujeito psicótico
pode se ver compelido a encarnar o lugar da exceção. Vimos como Schreber foi levado
a encarnar A Mulher que falta aos homens, a Mulher de Deus.
alma, A Mulher. Note-se aqui que o gozo sexual é anulado, o transexual, ao contrário do
travesti, não parece interessar-se tanto pelo que diz respeito ao sexual.
O transexual pode, movido pela paixão da alma, ser levado a extrair seus órgãos
sexuais na busca da infinitude, da anulação de qualquer furo possível. Czermak (1996)
assinala que a questão do transexual refere-se à busca de uma identificação sexuada e,
por isso, a retirada no real do corpo dos órgãos sexuais não costuma necessariamente
vir acompanhada de uma estabilização. Segundo este autor, o transexualismo deve
assim ser posto em continuidade com o empuxo-à-mulher que, como tal, tende a uma
infinitização. O transexual busca eternamente a imagem ideal que viria a corporificar A
Mulher que falta aos homens.
O transexual visa, com a operação cirúrgica, abolir qualquer falta. É preciso
assinalar, contudo, que as automutilações que acontecem com alguma freqüência em
pacientes psicóticos, revelam-se, na via oposta, como tentativas de fazer um furo se
operar a partir da extração de um resto no corpo. Justamente por não conseguir efetuar
essa operação no simbólico, o psicótico pode ser ver impelido a realizar essa operação
reiteradamente no real.
Ao considerar a saída do transexual diante do enigma do sexo, Lacan abre uma
outra via de investigação. Aponta que podem haver outras formas, que não apenas a
infinitização do empuxo-à-mulher, para dar conta das invasões do real do gozo. Isso
ficará mais claro no final do ensino de Lacan quando, a partir da solução joyceana, a
invenção ganhar papel de destaque na psicose.
O psicótico pode usar de recursos inventados para lidar com o corpo e com a
linguagem. Como indica Miller, “o sentido do termo ‘invenção’ é, nesse caso, o de
uma criação a partir de materiais existentes. Eu atribuiria de boa vontade à invenção o
valor de bricolagem” (2003:6). É preciso indicar que, como desenvolveremos a seguir,
trata-se, na psicose, de inventar algo que faça para o sujeito função de ponto de basta,
121
seja na sua relação com o corpo, caso do esquizofrênico, seja em sua relação ao Outro,
como o demonstra o paranóico.
fazendo da solução neurótica apenas mais uma entre outras. O sinthoma pluraliza a
possibilidade de invenções que sirvam de ponto de basta para os sujeitos. O sinthoma
faz de quarto elemento, responsável pela amarração dos registros do Real, do
Imaginário e do Simbólico, fixando um gozo. Nesse sentido, há uma relação entre o
sinthoma e a letra, na medida em que o primeiro também faz um laço de fixação entre o
significante e um resto de gozo.
Importa, portanto, recolher as soluções encontradas pelos sujeitos para gozar de
seu inconsciente. Cabe, então, ao sinthoma sustentar a articulação entre uma operação
significante e suas conseqüências sobre o gozo do sujeito. A solução neurótica localiza
um gozo que será tratado em termos de significado. O Nome-do-Pai é apenas um dos
recursos possíveis, embora não seja em si mesmo uma solução: é preciso saber-fazer
com o seu sinthoma. Isso equivale, então, a dizer, como assinalou Lacan, que o
sinthoma precisa alcançar uma função de nomeação, sendo então possível “prescindir
do Nome-do-Pai, à condição dele se servir”. (lição 13/04/1976)
Lacan analisa, a partir do estudo da obra de James Joyce, o valor de sinthoma
que toma a escrita para ele, através de sua relação com a linguagem, com sua arte. O
sinthoma evita o desencadeamento psicótico em James Joyce. As últimas formulações
teóricas acerca da psicose indicam direções a serem percorridas para o estudo da psicose
não desencadeada e suas formas de amarração dos três registros. Além disso, trazem à
tona a discussão acerca da diferença existente entre neurose e psicose não
desencadeada. Como dissemos, a neurose não será mais vista como paradigma, mas
como uma solução padrão para algo que concerne a todos os seres falantes.
Se, como vimos, o amor na neurose tem como função suprir a falta de relação
entre os sexos e, como assinalamos, a solução neurótica assevera-se apenas como uma
das soluções possíveis para dar conta da amarração do Real, do Imaginário e do
Simbólico, poderíamos então considerar que o amor, tal como o conhecemos, não passa
de um mito neurótico? Se, como indicou Miller (1993), todo o mundo delira, não seria
justamente o amor ‘normal’ um delírio de massa da neurose?
124
contato com prostitutas. Joyce permanece com Nora durante toda a sua vida.
No mesmo ano em que conhece sua esposa, Joyce deixa, em um exílio auto-
imposto, a Irlanda. Vai morar com Nora em Póla e depois em Trieste, trabalhando como
professor de inglês, escrevendo artigos para jornais e dando palestras. Em 1905 nasce
seu filho, Giorgio, e em 1907 sua filha, Lúcia. Relatos biográficos (Elman:1989,
Maddox:1991 e O´Brien:1999) assinalam que suas idéias persecutórias e de ciúme
aguçavam-se a cada nascimento de seus filhos. As cartas de amor que escreveu para sua
mulher dão testemunho do quanto Joyce ficava conturbado, perseguido e ciumento
nesses momentos. Atormentado por acreditar que Giorgio seria filho de um conhecido
seu, Joyce acusa Nora de adultério, chegando a fugir para Dublin com seu filho. Um
outro aspecto fundamental de sua relação com Nora, revelado em suas cartas, é o da
vida erótica do casal, recheada de fantasias pornográficas que iam do sado-masoquismo
à escatologia.
Gorog (1993) destaca em Joyce alguns traços de feminização, assim como nos
personagens principais de suas obras. Pela complexidade de sua análise, não
retomaremos aqui seus argumentos, remetemos, entretanto, o leitor que queira se
aprofundar neste aspecto, ao seu artigo. Destacaremos apenas que Gorog mostra uma
clara dificuldade de Joyce em recorrer à identificação sexuada, o que estaria
intimamente ligado à singular escolha de objeto que veio a fazer. Como veremos, Joyce
escolhe uma mulher, sua esposa Nora e a transforma em Uma mulher. Vejamos o que
ele mesmo diz a esse respeito:
Nora, meu “verdadeiro amor”, precisas realmente tomar conta de mim. Por que
deixaste que eu ficasse neste estado? Caríssima, queres aceitar-me tal como sou
com meus pecados e loucuras e me abrigar da desgraça? Se não o fizeres sinto
que minha vida vai espatifar-se. (1988:34)
127
Lacan mostra que Nora é a luva revirada que serve a Joyce – toma para isso a
imagem de Kant de uma luva que, sendo revirada em seu avesso, pode ser utilizada na
mão oposta. É digno de nota o quanto se faz preciso, para Joyce, que sua mulher não
tenha nenhuma existência, a não ser a de servir-lhe.
Para Joyce há apenas uma mulher. Ela é sempre a mesma e ele só a usa [il ne
s’en gante] com a mais viva das repugnâncias. É sensível o fato de que não é
senão pela maior das depreciações que ele faz de Nora a mulher escolhida. Não
somente é preciso que ela lhe sirva como uma luva, mas é preciso que ela lhe
caia como uma luva. (Lacan: lição de 10/02/1976)
Joyce parece precisar ver-se completo de Nora. Há, portanto, no que diz respeito
à relação do casal, algo que aponta para a necessidade de manutenção de uma lógica
complementar. Nora deve dedicar sua vida a completar Joyce, ele deve se alojar nela.
Não há noticias, em suas cartas, de algo que aponte para o amor como uma suplência,
tal como seria o caso de uma escolha de objeto baseada na identificação sexuada. Para
Joyce, existe Uma Mulher e ela se chama Nora. Podemos ter indícios do caráter
particularmente bizarro dessa ligação quando Lacan (1975-76) assinala que Joyce tem
por Nora os sentimentos de uma mãe, querendo até mesmo carregá-la em seu ventre.
Esse é, segundo Lacan, “um dos piores equívocos que se possa experimentar em relação
a alguém que se ame” (Lacan:13/01/76:67).
Poderíamos pôr em série com essa estranha relação sexual, a intensa angústia
vivida por Joyce com a chegada de seus bebês? Como dissemos, aguçavam-se nessa
ocasião suas idéias de traição e de suspeita em relação à paternidade. Talvez
pudéssemos inferir que nessas ocasiões Nora deixava de fazer Um com Joyce. Este
último declara, em uma de suas cartas a Nora, acerca do nascimento de seu filho:
George é meu filho? A primeira noite em que dormi contigo em Zurique foi a
de 11 de outubro e ele nasceu em 27 de julho. São nove meses e 16 dias.
Lembro-me que houve pouco sangue naquela noite. Foste f... por alguém antes
de mim? (...) Fui um tolo. Pensei que todo o tempo tu te entregavas só a mim e
estavas dividindo teu corpo entre eu e um outro. (Joyce:1988:25)
A carência própria à relação sexual toma, portanto, uma forma – passa a ter
consistência - no caso de Joyce e essa forma é dada pela sua relação com Nora (Lacan:
lição de 13/01/76). Há um pedido de que ela venha a animar constantemente o seu
128
Joyce tenha feito um uso particular do nome próprio de sua esposa. Barnacle,
sobrenome de Nora, tem, segundo Gorog, várias acepções, algumas das quais
encontram ecos na história do casal. O primeiro significado de Barnacle aponta, em
inglês, para o nome de um marisco que “passa a sua vida inteira colado ao mesmo
rochedo ou ao casco de um barco naufragado” (Gorog:1993:70). Interessante alusão ao
caráter servil que Joyce impunha a Nora. Um segundo significado é o de um
instrumento utilizado para domar os cavalos, de onde também derivou “a significação
em inglês de qualquer instrumento de tortura” (Gorog:1993:70), o que nos remete às
suas fantasias de fazer-se surrar por Nora. No plural, seu nome é um indicativo para
óculos, o que faria menção à cegueira crescente de Joyce e a relação dele com sua
mulher e com sua filha que, como veremos, foram os “óculos que lhe permitiram
acomodar sua visão ao mundo” (Gorog:1993:70).
Esse uso do sobrenome de Nora nos faz levantar a hipótese de que o amor de
Joyce por Nora possa ter lhe permitido alojar-se, a partir do nome de sua esposa, como
um Homem, o que, por sua vez, pode ter freado a feminização que Gorog avistou em
seu horizonte. Gostaríamos de destacar uma certa tendência à homogeinização em
Joyce, ao grude imaginário em suas relações (Cf. lição de 8/04/1975). Isso se demonstra
com Nora – na tentativa constante de fazer com ela Um – mas também se faz ver, de um
outro modo, como veremos a seguir, em sua relação com sua filha Lúcia.
Lacan mostra que havia uma recusa por parte de Joyce em engajar sua filha,
diagnosticada como esquizofrênica, em um tratamento e até mesmo em acreditar em sua
enfermidade. Não por acaso, compara Joyce a Gérard Primeau, esquizofrênico
examinado em sua apresentação de pacientes, que sofria de palavras impostas. Esse
exemplo é fundamental, pois revela o quanto a psicose torna-se o paradigma ao ser a
posição subjetiva que mais revela a dimensão parasitária da linguagem, “que a palavra é
a forma de câncer da qual o ser humano é afligido” (Lacan:17/02/76).
É aí que Lacan compara o paciente a Joyce. Retomando suas cartas, Lacan
mostra que Joyce acreditava que Lúcia tinha uma inteligência superior que lhe dava o
poder de adivinhar os pensamentos das pessoas. Para Joyce, o automatismo mental de
sua filha era resultado de seus dons telepáticos. Lacan assinala que, para defender sua
filha, Joyce lhe atribui algo que está no prolongamento de seu próprio sintoma, a saber,
que “no lugar da palavra, não podemos não dizer que não havia algo que não fosse a
130
A partir da idéia de que cabe a cada sujeito psicótico inventar um amor que lhe
seja possível, ou seja, que não o mortifique enquanto sujeito, tentaremos retomar o fio
deixado por Lacan ao nomear o laço que une Schreber a sua esposa como sendo uma
philia, isto é, uma amizade no sentido aristotélico. Como dissemos, acreditamos que a
partir da análise desse laço em particular, poderemos deduzir algumas direções
interessantes relativas ao manejo da transferência na psicose em um aspecto mais geral.
Lembremos que a amizade presente em sua união marital foi, para Schreber, o protótipo
que permitiu definir suas relações com os outros no mundo após sua reconstrução pelo
delírio.
Iniciemos nossa análise com um breve comentário terminológico acerca da
palavra philia. É interessante observar que, segundo apontou Benveniste (1976 :335-
355), a palavra philos, que designa primeiramente tudo aquilo que é ‘caro’, foi
assimilada ao possessivo ‘meu’, tendo seu sentido reunido na expressão ‘meu caro’ . A
posse é assim expressa a partir de duas formas imediatas : o pertencimento e a
proximidade. Philos tem um caráter jurídico – um objeto é qualificado de philos pelo
seu proprietário. Tratar bem a alguém é philein, ou seja, não significa necessariamente
que seja tido em grande afeição, mas que os cuidados necessários lhe são prestados,
cumprindo as ações positivas que o pacto de hospitalidade implica.
Milner mostra que a ciência da linguagem esclarece assim o sentido da palavra
philia, cujas “insipidezes do vocabulário amistoso obscurecem seu verdadeiro alcance”
(1999:20). Mostra que philos remete originalmente a uma relação institucional não
afetiva. O termo philia não deve, portanto, ser considerado como sendo um termo
ligado, em suas origens, a uma relação afetiva. Caracterizava-se por um determinado
conjunto de comportamentos que um membro de uma determinada comunidade deveria
ter para com o seu hóspede estrangeiro. A philia permitia, assim, tratar como um dos
seus aquele que não o é, estando por isso, na base das relações de toda comunidade.
132
(...) uma ‘amizade’ de tipo muito definido, que estabelece vínculos e supõe
compromissos recíprocos com juramentos e sacrifícios. Trata-se de uma
relação de aliança ou de hospitalidade, que adota um caráter quase jurídico,
uma ética fortemente codificada (2004:18).
para se chegar ao Bem. O objeto da amizade é, no fundo, esse objeto último para o qual
todas as amizades tendem, o Bem absoluto, soberano. A verdadeira comunidade é assim
para Platão dada pela ordem cósmica, cabendo aos cidadãos submeter-se à ordem
exterior do mundo.
No Banquete, Platão afirma que o bom uso do amor é o Eros sublimado (211 b e
d), o que em certa medida, anula a diferença entre Eros e philia, “a última seria o bom
uso do primeiro” (Ortega:2004:35) No Banquete, Sócrates sustenta que Eros tem a sua
fonte na falta. Toda a verdade sobre os laços afetivos deve para Platão ser procurada do
lado de Eros, sobre um fundo de transcendência. O amor-desejo funda-se, portanto, em
um fundo de ausência, amamos aquilo que não temos, aquilo que nos falta. Eros tem um
caráter sempre assimétrico: o vocabulário erótico distingue o amado (erômenos), do
amante (erástes). Sócrates vai defender a idéia de que o lugar do amante, que era
primeiramente ocupado pelo mestre que desejava sexualmente seu pupilo, será, a partir
do bom uso desse amor, vindo a ser ocupado pelo jovem que, pelo amor à verdade, fará
de seu mestre um objeto de amor.
Aristóteles utilizará em sua Ética a Nicômaco, ao contrário de Platão, o apego
pelas coisas inanimadas para mostrar que ele não pode ser dito philia3. Justamente pelo
apego não configurar uma ligação recíproca (antiphilèsis), deduz-se que somente uma
relação recíproca pode denominar-se philia. Como mostra Voelken (1961), se a não
reciprocidade permite entender a philia para além do humano em Platão, a
reciprocidade exige restringir a philia na esfera humana para Aristóteles.
A amizade difere das coisas da natureza, centra-se no quadro das coisas
humanas: “deixemos de lado os problemas físicos, pois eles não se enquadram na
presente investigação, examinemos os problemas relativos ao homem”
(Aristóteles:1155b 10). Todas as dificuldades ligadas à amizade serão postas e
resolvidas por Aristóteles nos limites da ética, transformando um conceito que havia
sido considerado cosmológico pelo seu mestre Platão, em um conceito antropológico.
Como a philia designa uma vasta gama de relações humanas que podem ir da
simples simpatia entre membros de uma mesma comunidade até uma relação familiar,
Aristóteles precisa impor-lhe algumas condições de determinação. Ele as ligará ao bem,
3
“Seria ridículo desejar o bem de uma garrafa de vinho, mas em relação a um amigo dizemos que
devemos desejar-lhe o que é bom por sua causa” (1155 b 30).
134
entendido aqui não como algo transcendente, mas como um valor concreto. Aquilo que
aproxima os amigos é, para Aristóteles, aquilo que é bom, agradável ou útil (1155b 20).
As heterogeneidades que concernem a philia não são assim consideradas como tipos
diferentes de um mesmo fenômeno, mas como uma diversidade de contextos
necessários à eclosão, à manifestação e à realização desse comportamento social
singular chamado philia.
Philia ganha na obra de Aristóteles o sentido de amizade cívica, sentimento de
pertencimento que liga entre si os membros de uma mesma comunidade. Aristóteles cita
o antigo adágio “os bens dos amigos são comuns” (1159b 30), fazendo uma passagem
da ordem jurídica para ordem ética, mostrando que “a amizade depende da
participação” (1159 b 30). A amizade é definida sobre um fundo de presença e de
comunidade partilhada, a política de Aristóteles é baseada na experiência concreta da
comunidade. A amizade é um conceito ético que implica um pacto que supõe um
conjunto de ações que visam o bem do outro enquanto outro.
Uma última palavra se faz importante sobre a articulação entre a philia e aquilo
que é próprio de Eros enquanto sexual. Milner esclarece que, no que se refere ao coito
propriamente dito, “a philia não serve para nada, ela se detém onde começa o coito”
(1999:30). Para os gregos antigos, as leis de hospitalidade não estendiam seus domínios
sobre a copulação, embora pudessem cercar tudo aquilo que estaria referido ao encontro
que precede e prepara o ato, em uma espécie de imitação das leis de hospitalidade.
Nessa mesma linha, Lacan, no seminário Mais, Ainda, efetua uma interessante
aproximação entre o amor extático dos místicos e a philia Aristotélica (Lacan:1972-73:
101). Retira da amizade qualquer conotação sexual, mostrando que “é na coragem de
suportar a relação intolerável ao ser supremo que os amigos se reconhecem e se
escolhem. O fora do sexo dessa ética é manifesto” (Lacan:1972-73:107). A philia
parece ligar-se, assim, inevitavelmente, ao amor morto em sua versão mortificada, ou
seja, como um tipo de laço social possível para aquele sujeito que já sofreu em sua
subjetividade as conseqüências do delírio ou do desencadeamento psicótico.
A philia não tem nenhuma relação com o sexual, o que não significa que o sexo
esteja necessariamente excluído de uma relação amistosa, mas sim que, a partir do
momento em que o sexo faz entrada, a amizade em nada lhe faz recurso. Tomando o
exemplo de Schreber, sustentamos a hipótese de que seu casamento se edificou muito
135
mais em uma relação de amizade do que de amor (que, para ele, equivale ao gozo de
Deus), ou seja, manteve-se com base em uma relação solidamente institucionalizada,
com regras e deveres mútuos, o que provavelmente permitiu a Schreber ser bem
sucedido na adoção de uma criança após o seu restabelecimento.
Propomos, assim, pensar que, através do casamento, Schreber estabelece um
enlace com a lei, enquanto garantidora de uma certa amizade conjugal, interditando,
para sua esposa, o lugar de Outro absoluto. É inegável, como já demonstramos, que a
amizade conjugal esteve estritamente relacionada à estabilização de Schreber, e como
dissemos anteriormente, à confecção de suas memórias, que lhe permitiram por sua vez
alcançar um certo saber. Nesse sentido podemos concordar com Miller quando afirma
que “o fracasso, a fatalidade do psicótico do lado do amor – quando diz que é um amor
morto – pode estar acompanhado do êxito do saber, da produção” (2003:275).
Queremos, por último, especificar de qual amor morto faz-se referência aqui.
Parece-nos impossível pensar que se trata da versão mortificante do amor, posto que ela
aponta, na verdade, para uma invasão de gozo que ainda não pôde, de alguma maneira,
ser contida. A versão mortificada do amor parece-nos mais consoante com um trabalho
de construção de uma invenção que estabilize o sujeito. O esmaecimento do amor de
seu colorido sexual poderia talvez ser compreendido, tal como na proposta platônica,
como um preço a ser pago pelo sujeito, como um tributo necessário para o bem viver.
De fato, muitos psicóticos estabilizados dizem ter claramente renunciado ao sexual,
assim como outros não chegam nem a considerá-lo como uma possibilidade concreta
em suas vidas. Devemos, contudo, frisar que essa não é uma regra geral, e que há
depoimentos clínicos4 que mostram sujeitos que conseguiram inventar soluções para
construir um limite ou uma borda para lidar com o a mais que acompanha o sexual na
psicose.
Parece-nos que a philia ilustra, portanto, uma das possibilidades do amor na
psicose, mas poderíamos considerá-la como estando também na base da relação de
transferência na psicose? A partir de nossa leitura acerca da philia, tentaremos extrair
algumas conseqüências dessa formulação.
4
A esse respeito ver o excelente caso clínico de Jacques Borie. In: Miller (1994) L´amour dans les
psychoses.
136
ocupando cotidianamente o lugar de ‘ao menos um’ que não goza do sujeito. A amizade
pode assim ser construída na experiência empírica de uma análise, como um valor
concreto a ser buscado através da manobra constante de distanciamento entre o sujeito e
o Outro.
Aristóteles mostrou que a amizade enquanto philia está profundamente ligada a
idéia de comunidade, visando a concórdia (1167 b) na procura de um bem em comum.
Tem, portanto, como indica Ortega (2004), um caráter político, cívico e apóia-se na
camaradagem que, em sua origem, indicava, como vimos, uma relação baseada em ritos
e códigos específicos. Entendemos esta última afirmação, no que tange ao dispositivo
analítico, como sendo relativa ao lugar a ser ocupado pelo analista na transferência da
psicose, lugar feito em grande parte pelo respeito aos ritos e códigos específicos de cada
sujeito, ou seja, a sua subjetividade, mas também pela sustentação daquilo que o
dispositivo analítico impõe, a saber, o trabalho subjetivo. Cabe ao analista sustentar,
através de seu desejo, um lugar que propicie a construção de um saber inédito e singular
para cada sujeito.
Poderíamos ousar dizer que a posição do analista na psicose tem nisso uma
função política: visa, na contra-corrente do modernismo, criar uma distância para o
sujeito que lhe permita politizar o seu espaço público. Ortega assinala, nessa mesma
linha, que a amizade, enquanto fenômeno público, necessita “de uma distância
necessária (...), já que o espaço da amizade é o espaço entre os indivíduos, do mundo
compartilhado” (2004:162).
O espaço institucional pode ajudar o analista a garantir que os sujeitos possam
fazer circular o saber inédito e as invenções encontradas para lidar com as intrusões do
real, compartilhando suas experiências no espaço público. O dispositivo CAPS torna-se
um lugar estratégico para o analista na psicose que deve, como salientou Tenório
(2001), lembrar e ajudar a sustentar que a cidadania seja tomada como um pressuposto
ético e político, e não como ideal-padrão a ser imposto a todos os sujeitos. Nesse
sentido, o trabalho do analista em um dispositivo como o CAPS, é também um trabalho
institucional: cabe também ao analista ocupar junto à instituição a função de “suporte
dessa articulação entre intensão e extensão, respondendo a cada caso a partir de sua
atribuição e situando sua ação no referencial que o orienta” (Figueiredo:2001:96).
Concordamos com Laurent (1999) quando propõe que o analista dos dias de hoje deve
139
ser um ‘analista cidadão’, isto é, “um analista sensível às formas de segregação, que
ajuda a civilização a respeitar a articulação entre normas e particularidades individuais
(...) e transformá-las em algo útil, em um instrumento para todos” (14-15).
Propomos entender a philia como um tipo de laço social possível de ser
alcançado na psicose. A idéia de rede5 de cuidados, presente na Saúde Mental, pode ser
revista a partir das considerações Aristotélicas. ‘Fazer rede’ pode assim ser
compreendido como estando intrinsecamente ligado a capacidade de fazer amigos e,
nesse sentido, concordamos com Tikanory quando assinala que somos “mais autônomos
quanto mais dependentes de tantas mais coisas pudemos ser, pois isto amplia as nossas
possibilidades de estabelecer novas normas, novos ordenamentos para a vida”
(1996:57).
A partir do ponto de vista da psicanálise, podemos considerar que a distribuição
em rede pode ser um instrumento clínico interessante na psicose, na medida em que põe,
pela dispersão, uma distância do lugar do saber suposto. A psicanálise pode encontrar
ressonância com o campo da Saúde Mental, ao propor, partindo de um certo
esvaziamento no nível do saber, que o sujeito trabalhe na direção singular de encontrar
um lugar que lhe seja possível no mundo, tornando viável a construção de sua rede
particular.
Embora ainda muito incipiente, nossa experiência na oficina de vozes do CAPS
Arthur Bispo do Rosário tem demonstrado que é possível, através do compartilhamento
de experiências, extrair um certo saber coletivo. Esse saber situa-se muito mais na
vertente de um saber-fazer e promove a sustentação de um laço entre os sujeitos feito de
amizade e de trabalho solidário, onde o horror pode até vir a ser, em determinados
momentos, suplantado pelo riso ou pela surpresa, como nos fragmentos clínicos que
relataremos a seguir.
A proposta básica da oficina de ouvidores de vozes é oferecer um espaço de
discussão, investigação e troca de experiências sobre a escuta de vozes. Colhemos
relatos muito interessantes sobre esta experiência, dentre os quais destacaremos dois. O
primeiro é o de uma paciente que conta na oficina que sua sombra fala com ela. Por
5
Propomos tomar a definição de rede proposta por Pittta: “modelo de compartilhamento de recursos que
contempla a continuidade e complementaridade necessárias para pensar uma estratégia de cuidados que
tenha de responder a necessidades múltiplas de ordem afetiva, material, clínica, que requerem cada vez
mais ações solidárias de governos, voluntariado e cidadãos comuns. (2001:280)
140
isso, diz precisar andar sempre junto com o sol (para não fazer sombra). Na semana
seguinte, diz que o sol também fala com ela. Não sabe dizer o quê ele fala, é uma fala
sentida no corpo, uma presença: ele está em todas partes. Alguém pergunta: e falar com
a lua, você já falou? Ela diz que não. Então outra pessoa diz: será que existem pessoas
que falam com a lua? Outro responde: “Existe sim. São os lunáticos!”.
O segundo aconteceu durante uma conversa na oficina sobre a justeza ou não do
emprego do termo maluco para se referir a todo aquele que ouve vozes. Um paciente
concorda com o uso do termo, dizendo que não liga quando assim é chamado, pois o
dito representa a sua verdade: a sua palavra não tem valor. Justifica dizendo que faz
coisas, por vezes, das quais não se lembra, como quebrar sua casa inteira e que isso é
fruto da “tentação”. Outro paciente, conhecido institucionalmente pela sua
desagregação, pontua que se “de médico e de louco todo mundo tem um pouco”, ele
gostaria que sua palavra tivesse valor e diz, inclusive, ter um forte desejo de poder
transmitir os seus ideais. O primeiro então aquiesce e, pensativo, endereça a seguinte
questão ao coletivo: “como é que a gente faz para viver bem com as vozes?”,
redirecionando a sua posição.
Acreditamos que esses exemplos sejam paradigmáticos do saber que é possível
de ser retirado da clínica quando nos colocamos dispostos a recolher e trabalhar com os
pedaços de real que os pacientes nos dão a chance de conhecer. Mostra, além disso, que
a ironia pode ser uma arma interessante na psicose contra as investidas do real. Alguns
pacientes já manifestaram que a freqüência na oficina diminui o acossamento causado
por uma escuta alucinatória incessante. Dar voz aos que ouvem vozes é uma estratégia
clínica que não está desarticulada da política, pois tem no horizonte o objetivo de
disponibilizar um certo saber-fazer com as vozes para todos aqueles que dele
precisarem, além de coletivizar uma experiência que ainda hoje carrega o forte traço da
segregação.
141
Amor platônico
O primeiro tempo é referido à sua juventude e mostra como este sujeito pôde se
defender de um desencadeamento, evitando a assunção de qualquer atitude viril: nunca
trabalhou, nunca namorou, “apenas vegetou”. Sempre viveu “fora da sociedade” em
razão das perseguições que ele e sua mãe sofriam de seu pai, “um tirano, um neurótico
de guerra”.
143
Para Marcelo, seu pai carrega em muito os traços do Pai da horda, um pai
“unilateral e monstruoso” (1955-6: 232), em face do qual permanece em uma posição
intimidada, acuada. Seu pai, “agressivo e tarado”, recitava poesias eróticas aos berros e
ameaçava seus filhos e sua esposa com “facas e injúrias”. A solução encontrada para se
proteger da ferocidade do gozo paterno foi para Marcelo unir-se à mãe, “somos do tipo
fraco, vítimas”. Decide então viver para a mãe, acompanhando-a nas constantes fugas
motivadas pelas ameaças repetidas de morte feitas por seu pai.
Fica claro nos primeiros atendimentos o quanto Marcelo dedicou sua vida a fugir
do olhar do pai, refugiando-se na relação especular com a mãe. Será no nível do olhar
que se situarão os fenômenos elementares de sua psicose, mostrando que para este
paciente o gozo está localizado no olhar implacável do Outro: “tem muito olho nessa
história”, dirá ele.
No início da adolescência tem uma sensação de “afundamento” do olho após
sofrer uma pancada causada por uma jogada de bola acidental no colégio. É nessa
passagem que situa o abandono dos estudos e a decisão de se refugiar em casa, ao lado
da mãe. Esse objeto, externo e enigmático, que vem do Outro, será recheado de
intencionalidade por Marcelo, como um indício de que ele não era ‘bem-vindo na
sociedade’.
Vai morar em outro estado com sua mãe e lá permanece até o adoecimento de
seu pai. Longe dele, Marcelo insere-se na comunidade messiânica, lá conhecendo seu
primeiro amor. Conta que teve um amor platônico por uma moça da comunidade, mas
esse amor limitou-se a “umas trocas de olhares”, pois se sentia muito “irresponsável”
para ter um compromisso. “Responsabilidade” indica para Marcelo tudo aquilo que se
refere para ele a uma posição fálica na vida: trabalhar, casar e ter filhos, ou seja, tudo
aquilo que representaria para ele ocupar o lugar do pai.
Se o amor dessa moça não deflagra para ele um gozo insuportável, é justamente
por manter o olhar à distância, através do platonismo, dando ao objeto um lugar
inatingível. A imagem idealizada do objeto tem assim a função de protegê-lo,
escamoteando, nos limites do Belo, o horror que este estaria suposto provocar.
Nessa mesma época, é levado pelos seus colegas da igreja a um bordel onde tem
sua primeira e única relação sexual. Disse que só conseguiu consumar o ato com muita
dificuldade e acrescenta que isso só foi possível porque considerou que a prostituta não
144
era uma mulher, mas “uma profissão”, deixando claro que o encontro com o sexo só se
deu porque não houve encontro, e sim uma “prestação de serviço”.
Amor universal
Dra Nuria,
Tenho várias carências: de amigos sinceros, de familiares sinceros, meus
irmãos não são bons e por ter me enrolado no passado com a família
(perturbações com meu pai) não estudei, namorei, enfim vegetei, e em junho de
96 quando fui lutar por mim, foi acontecendo aquela história que me deu
depressão, estava antes doente do estômago, ouvido, coluna, fígado e sexo e sem
óculos, fiz um pedido, como muitas pessoas fazem e fui à luta.
Amor universal é uma expressão contida na carta que lhe foi endereçada, da qual
Marcelo se apropria, fazendo-se assim destinatário desse amor. Como trabalhamos ao
longo da tese, o amor na psicose é muitas vezes invocado como uma tentativa de evitar
a iminência de uma relação mortífera. O “amor universal” surge como um apelo
dirigido ao Outro frente a essas perdas (do pai, da visão da mãe), na tentativa de
inscrever algum instrumento (o amor da religião católica) que matize para ele o olhar da
sociedade que, com suas cobranças, “mata”.
Após a morte do pai, o Outro se feminiza na figura da Virgem, que nada mais é
do que um dos nomes do Pai. A certeza de saber que Marcelo atribui à Virgem retorna,
no momento em que ele responde a essa carta, como enigma. Para ele, é “o começo de
tudo”. Escreve: “Tudo de ruim aconteceu logo a seguir comigo, parece até castigo. Não
tenho sorte”.
Ao invocar o amor universal, obtém uma resposta inusitada do real. Ao tentar,
pela primeira vez, enxergar (sem óculos e sem falo), a vida com seus próprios olhos, seu
olhar é capturado no Outro. A contingência do encontro com Um olhar fará o gozo
retornar em um fulminante “amor à primeira vista”. O apelo ao simbólico, ao amor
universal, não é, portanto, suficiente, descortinando o campo escópico e desvelando o
olhar sedento do Outro que visa o sujeito.
Quero viver com saúde física e psicológica e finalmente conseguindo poderei ter
o que queria anteriormente, simplesmente amor universal que é a simpatia e
felicidade, saúde plena, porque sem saúde não há como viver, trabalho para ser
independente. Uma morena só quando estiver bem.
Amor infinito
Dra Nuria,
GOSTO DAS PESSOAS QUE ME TRATAM BEM. Não demonstro isso
por estar muito doente e psicologicamente afetado. Sei que é uma
profissional e deseja subir na profissão, espero que suba, mas não
esqueça que apesar do mundo ser materialista, quando subir, trate seus
pacientes com carinho e sem esquecer do dinheiro. Acho que é possível
unir as duas coisas. Que Deus te abençoe.
Em sua carta, mostra o quanto o analista não deve se situar nem do lado do
‘amor’ e nem do lado do ‘profissional’. “Carinho” e “dinheiro” representam,
separadamente, nomes do gozo do Outro para Marcelo. A posição de ‘carinho’ lembra
em muito a posição de ‘amor universal’ da Virgem de Fátima, um Outro Todo, que
detém aquilo que viria completar o sujeito. Já o ‘profissional’ remete ao lugar das
prostitutas, que pelos serviços sexuais prestados, colaria a analista no lugar daquela que
detém a “cura da urologia não resolvida”. O lugar híbrido sugerido por ele parece mais
próximo daquele prenunciado pela philia aristotélica: um laço de trabalho capaz de
operar uma distância que o auxilie a encontrar formas de “enxergar o mundo de frente”.
149
Ricardo amava suas vozes como a si mesmo. Esse primeiro amor foi
descortinado por uma perda: após uma mudança de medicação, parou subitamente de
ouvir vozes. Sem elas, viu-se desertado do Outro, lançado em um mundo desprovido de
semblantes. Freud assinalou que, na esquizofrenia, a alucinação é tentativa de cura, pois
pode, por vezes, fixar o sujeito em um conteúdo que estanque a dispersão, dando-lhe um
nome que lhe permita situar-se em sua existência. As vozes o diziam “anjo” e, como
veremos, a direção de sua estabilização girará em torno de uma invenção singular feita a
partir dessa designação, redimensionando para ele o amor.
vão argumentar com as vozes que a achava gorda e feia, mas elas continuavam a lhe
ordenar “que ficasse com ela, pois iria emagrecer e ficar bonita”. Sua descrição aponta
para o caráter externo da erotomania, ressaltando o quanto o sujeito se vê impelido a se
colocar no lugar de objeto de gozo do Outro.
Sua família pede sem sucesso o auxílio de um pastor para libertá-lo dessas
vozes, mas, segundo Ricardo, sua freqüência na igreja evangélica só fez intensificá-las
ainda mais e aumentar seu consumo de bebida alcoólica. As vozes lhe diziam que só
havia ódio no mundo e que ele era um anjo, já acenando para o lugar de redentor, de
mensageiro, posição que ficará mais clara no decorrer do tempo de seus atendimentos.
Após a internação, é encaminhado ao CAPS. Lá começa a conversar, com uma
certa regularidade, com uma estagiária de psicologia. No período próximo ao fim do
estágio, uma voz lhe diz que deve tentar salvar essa moça. Segundo a voz, ela teria
sofrido abuso sexual por parte de seu pai. Ricardo passa então a achar que deveria ter
relações sexuais com a estagiária para fazê-la superar o suposto trauma. È internado
novamente no HMJM.
Mais uma vez, ele é chamado a “salvar a moça”. Podemos inferir que este
chamado situa-se na vertente psicótica da degradação da vida amorosa para o homem.
Como vimos, Freud mostrou que a escolha de objeto do homem pode repousar em uma
depreciação do objeto que visa, com isso, afastar o objeto incestuoso da cena sexual. O
interessante deste caso é que a idéia de salvar a mulher lhe vem do real, ou seja, vem
como um mandamento tirânico do supereu. O Outro lhe exige amor e salvação, mas
Ricardo, desprovido do atributo que completaria o Outro, se vê impelido a responder
com o seu ser.
Começo a atendê-lo após essa segunda alta. Falava o tempo todo em se matar
para pôr fim à falta de sentido de sua vida. Sentia falta das vozes, dizia-se sozinho sem
elas, não sabendo mais como se comportar e nem o que dizer. Posso inferir que as vozes
lhe conferiam uma certeza de ser amado que o situava na existência. Com as vozes,
Ricardo tinha a certeza sobre o desejo do Outro: o Outro quer o seu amor. O fim das
vozes o arranca da certeza de ser amado, não conseguindo mais entender o que as
pessoas falam e não vendo mais nenhum sentido nas relações sociais.
Os diálogos banais e cotidianos ganham, em contrapartida, uma potência
absurda de non sense. Achava-se diferente de todo o mundo, completamente “errado”.
151
Ficava nervoso com a presença das pessoas, entrava em pânico quando tinha que falar
com alguém: começava a tremer, suar, ficava paralisado. Nessa época, Ricardo mal
podia erguer o rosto, evitando a todo custo cruzar com o olhar do outro. Se as vozes
eram abusivas e intrusivas, a falta delas o deixava totalmente sem recursos para
responder à vontade de gozo do Outro. Ricardo fica, nesse tempo, entregue a uma
angústia mortal.
Mostrou-se reticente com a idéia de voltar a ser atendido por uma psicóloga,
provavelmente por temer que a exigência de amor se repetisse. Acredito que ao ter
acolhido seu amor pelas vozes, ou seja, ao não tentar persuadi-lo da idéia de querer
voltar a ouvi-las, pude evitar fazer lhes concorrência, isentando-me de ocupar, para ele,
um lugar de mestria. Suas tentativas anteriores de tratamento me fizeram ter bastante
cautela na abordagem deste paciente, pois temia que a oferta de um trabalho subjetivo
pudesse ser tomada por ele como uma exigência de amor. Coloquei-me à sua
disposição, dizendo perceber o quanto essa história do fim das vozes o aborrecia.
Ricardo passou a vir regularmente às suas sessões, deixando aos poucos de falar da
saudade das vozes. Pelo que me disse, percebeu que as vozes “não eram tão legais
assim”, pois também “falavam muitas besteiras” e o deixavam muito confuso, fazendo-
o, por vezes, “tirar conclusões erradas dos fatos”.
Ser um boy
fazer com que eles “desocupem” seu pensamento. Se o psicótico carrega, segundo
Lacan, seu objeto a no bolso, Ricardo não fica atrás. Ocupa-se da impossível missão de
proteger seus objetos de arranhões ou sujeiras, o que faz com que tenha muita
dificuldade em lhes dar um uso. Situa seu exercício como algo que se opõe à “ordem
natural das coisas”, uma “compulsão”. A não extração do objeto a faz existir um a mais
de gozo nos objetos que ele quer, pela limpeza, livrar-se. Esse gozo, oposto “à ordem
natural das coisas”, deve ser posto como estando mais além do principio do prazer.
Parece-nos que a problemática dos objetos encena para Ricardo toda a sua
dificuldade e o seu esforço em lidar com o furo a partir da não-extração do objeto a. A
imperfeição dos objetos aponta para uma fenda impossível de ser suportada pelo
paciente. Inferimos que, nos momentos em que o furo aparece, vive algo da ordem de
um desligamento do Outro, uma espécie de morte subjetiva que o precipita em uma
angústia avassaladora.
Paralelamente, sua indefinição quanto à escolha de objeto vai se revelando
secundária a uma impossibilidade maior de situar-se como homem ou como mulher na
partilha dos sexos. A solução indicada pelas vozes, o “ser um anjo”1 dá conta e
esclarece o “ser estranho” (fora do sexo): “anjo não tem sexo”, dizia ele. Por ser um
anjo caído na terra, Ricardo acreditava nada “entender da vida, do sexo e dos homens”.
Essa idéia parece apaziguá-lo por um bom tempo e o protege de uma escolha de objeto,
o que o lançaria na problemática da partilha sexual.
É através do trabalho que Ricardo encontra uma via estabilizadora. Sua função,
ser um boy, entregando biscoitos na cantina do HMJM, coloca-o em um caminho que
freia a tendência de feminização que começava a aparecer em seu discurso. Não me
parece ser por acaso que esse trabalho como boy (garoto em inglês) tenha contribuído
para sua estabilização, dando-lhe uma possibilidade de conviver em um ambiente
masculino, do qual dizia antes nada entender.
Uma vez encontrada uma identificação (boy), através de seu exercício
profissional, que lhe possibilita circular pelo universo dos homens, o trabalho vem mais
uma vez prestar-lhe socorro, permitindo, através do dinheiro ganho, apropriar-se de
alguns objetos. O dinheiro, como valor de troca, possibilita que mantenha uma distância
1
No seminário Mais ainda, Lacan trabalha coincidentemente a homofonia entre étrange (estranho) e être
ange (ser anjo).
153
apaziguadora de seus objetos. Com a remuneração alcançada pelo seu trabalho, começa
a circular pela cidade, tentando trocar, vender e comprar novos cds. Passa a colecionar
cds, substituindo suas errâncias por uma “vagabundagem” salutar nas horas de almoço.
Seu universo musical se amplia. Descobre que existem algumas outras bandas
que lhe interessam, põe-se a fazer listas de músicas que gosta, “músicas perfeitas”, “sem
nenhum defeito”. Economiza dinheiro para, no final do mês, procurar em lojas e em
camelôs músicas que segundo eles ninguém gosta, pois são “diferentes, fogem do gosto
popular”. Passa a colecioná-las e a escutá-las, sentindo “prazer em ser diferente dos
outros”. Relata rir muito ao ouvir essas músicas, acha muito engraçado “escutar músicas
que dizem a verdade que ninguém quer ouvir”. Se os objetos anteriormente gozavam de
Ricardo, parece que, neste segundo tempo, consegue apropriar-se um pouco de um gozo
ligado aos objetos, de um gozo que parece predominantemente ligado ao que, neles,
revela do não sentido. Os objetos visados entram assim no circuito das trocas, objetos
parciais intercambiáveis, colecionáveis um a um.
Ricardo permanece quase um ano nesse trabalho protegido, decidindo ir
trabalhar, ainda como boy, na empresa de um conhecido de sua família. Seus
compromissos profissionais fazem com que Ricardo deixe de freqüentar o CAPS,
interrompendo, temporariamente, o seu atendimento comigo.
O amor fará mais uma irrupção na vida de Ricardo fazendo com que ele me
procure, alguns meses depois, no CAPS, bastante aflito. Desta vez, não se trata de uma
erotomania, mas de um encontro amoroso com uma ex-paciente – como ele – do CAPS.
O namoro engatado o deixa extremamente perturbado e ele se vê sem nenhum saber
diante “desse negócio de sexo”. O seu pedido de que eu o atenda em meu consultório, já
que seu trabalho o impede de comparecer no horário de funcionamento do CAPS, é
avaliado e avalizado pela equipe como importante de ser acolhido.
Passo a atender regularmente Ricardo que me conta que tentou procurar, nesse
meio tempo, outro psicólogo, mas que não conseguiu falar das coisas que fala comigo:
“aqui dentro é diferente, lá fora as pessoas não vão entender”. Apaixonado, diz não
saber o que fazer frente aos pedidos de sua namorada. Seu impasse pode ser explicitado
154
a partir de dois problemas derivados que se interligam: sua namorada lhe pede
desempenho sexual e palavras de amor.
Quanto ao primeiro pedido, Ricardo acredita que “amor não tem nada a ver com
sexo”. Para ele, portanto, é impossível fazer sexo com ela, já que ele a ama e sexo é
“filme pornô, putaria”, o que para ele não tem nenhuma relação com o amor. Quanto à
segunda demanda, que fale de amor, Ricardo também não pode responder, pois não
acredita nas “besteiras do amor, nesse negócio de que todo o mundo se ama e se quer
bem, na família feliz”. Suas tentativas de corresponder às expectativas sexuais de sua
namorada parecem expô-lo ao fracasso em assumir uma atitude viril: “eu não posso
transar com ela, esse negócio de ser o fodão não tem nada a ver comigo”.
A invenção de um novo nome vem re-arranjar sua impossibilidade de relação
com o amor e resolver sua indefinição quanto à sua identificação sexuada. Se o trabalho
lhe permite ser boy, Ricardo não encontra, entretanto, nenhum significante que lhe
permita ocupar no amor um dos dois lugares disponíveis na partilha dos sexos. Acredito
que a invenção de Ricardo tenha consistido em se difamar: ele passa a se dizer o
‘demônio’ e com isso evita mais uma vez a feminização. Lembremos que Lacan (1972-
73), fazendo um jogo de palavras no que diz respeito ao nome que um homem dá a uma
mulher, diz que “ele a difama”, brincando com a homofonia em francês entre difamá-la
e dizê-la fêmea (“on la dit-femme, on la diffâme” , cf. 1972-73:114).
Se o significante ‘anjo’ não o protegia da selva fálica, ao intitular-se “o
demônio”, Ricardo consegue fazer valer um certo semblante fálico. Essa nomeação
enigmática é acolhida pelo seu grupo e lhe confere um certo poder oculto que o ajuda,
por exemplo, a sair pela tangente toda vez que seus colegas falam sobre sexo. Quando
fala de uma situação na qual não sabe o que fazer, exclama: “sexo é o caralho, eu sou o
demônio!”.
A partir do término de sua relação amorosa, cessam os pesadelos de separação
que se haviam tornado freqüentes: “as pessoas correm e eu também devo correr.
Quando elas se encostam, devem vomitar para evitar explodir. Sai uma coisa gosmenta,
nojenta, lá de dentro”. Se antes vinha cultivando a idéia de “ir beber cerveja no
cemitério, com os mortos”, a partir de sua nova nomeação passa a freqüentar um bar
cujo nome curiosamente evoca, assim como seu novo nome, a dimensão de um enigma.
Passa a atacar cada vez mais, em suas sessões, o senso comum que ele chama de
155
2
O filme em questão é Asas do desejo de 1987.
156
não sabe morrer. Eu morri aos quinze anos”. Com rigor, explica, refazendo os passos de
Freud: “Mas não é uma morte física não, Nuria. É uma morte subjetiva!”.
O diagnóstico bromidrose, dado por um dos inúmeros dermatologistas que
procurou, parece promover através desse nome uma pequena organização para ele após
a sua morte subjetiva. A definição encontrada no Dicionário Aurélio “secreção de suor
fétido”, parece corroborar nossa hipótese de que esse fenômeno veio em resposta à
emergência do sexual para este sujeito. André acaba, contudo, abandonando qualquer
atividade por sempre sentir que as pessoas “riem de seu mau odor”. A não extração do
objeto a é vivida por ele como um excesso olfativo: objeto pútrido que invade com sua
presença as narinas alheias.
A primeira internação decorre de um episódio heteroagressivo em resposta a
uma situação de rivalidade imaginária. Aos dezoito anos, é chamado a servir o exército,
ou seja, a ocupar uma posição de submissão ao falo. Conta que se sentia muito triste e
perdido na caserna, e que não conseguia dormir. Um dia, se recusa a obedecer às ordens
de seu superior imediato, dizendo “só obedecer a Deus”. Fazendo valer sua liberdade
mais radical, André contesta qualquer autoridade já que para ele, na falta da lei paterna,
a lei é vivida em sua mais profunda arbitrariedade. Esse episódio acaba em agressão
física: “apanhei muito, mas também bati” e desencadeia sua primeira internação.
É encaminhado ao antigo CAD do HMJM indo, posteriormente, para o CAPS3,
durante uma dentre as inúmeras internações pelas quais passou. Sua história
institucional é de inúmeras tentativas de suicídio e automutilações, recheada de uma
enorme dificuldade em vincular-se a atividades terapêuticas, laborativas ou até mesmo
em seguir com regularidade um acompanhamento médico ou psicanalítico. São
constantes suas queixas de que o mundo, mas principalmente seus vizinhos e os técnicos
e pacientes do CAPS, o humilham por causa de seu cheiro. Sente não ser bem quisto no
seu bairro e no CAPS, crê que tudo de ruim que acontece é atribuído a ele. Chegou,
bastante exaltado, a dizer numa sessão: “se o mundo parar de girar agora em torno do
sol a culpa também vai ser minha?”
Há aproximadamente seis meses a freqüência de suas internações diminuiu. Em
compensação, ele pouco vai ao CAPS ou ao trabalho protegido na livraria do HMJM da
3
O CAD, serviço que se propunha a funcionar nos moldes de um hospital-dia para atender pacientes
egressos de internações psiquiátricas do HMJM, deu origem, em 1998, ao atual CAPS Bispo do Rosário.
158
Amar os livros
O amor pelos livros começou cedo para André: lembra-se de ter gostado muito
de ler durante sua infância, tendo sido, até o abandono dos estudos, o melhor aluno de
sua classe. É um paciente muito culto, que herdou de um falecido vizinho uma extensa
biblioteca. Dedica a maior parte de seu tempo à leitura e é a ela que recorro enquanto
analista naquelas situações críticas nas quais André manifesta o desejo de morrer. Por
exemplo, em uma ocasião em que disse que ia cortar os pulsos porque a vida não tinha
nenhum sentido, relembrei-lhe que estava lendo um livro intitulado O sentido e o valor
da vida, incentivando-o a continuar o seu trabalho de leitura.
Apesar de todas as dificuldades em se manter vivo, André trabalha como livreiro
no HMJM, recebendo uma bolsa por esta atividade. Este caso ilustra o quanto sustentar
o lugar de um paciente em um trabalho protegido, apesar dele quase nunca comparecer,
pode ser, acima de tudo, um dever ético. Como dissemos, sua freqüência no CAPS,
assim como no trabalho, sempre foi bastante irregular. Sua permanência na livraria já
esteve várias vezes posta em questão pela equipe, pois ele quase não consegue participar
da reunião semanal da livraria e poucas vezes cumpre o seu horário de trabalho. “A
livraria é meu único elo com o mundo”, diz ele, fazendo-nos entender o quanto é
preciso rever constantemente a posição institucional diante de suas faltas ao trabalho. A
solução encontrada pela equipe do CAPS foi, em acordo com André, definir que suas
faltas seriam descontadas de seu salário.
As dificuldades clínicas que este caso evoca são relativas ao fato de que toda
exigência de trabalho é insuportável para este paciente, trazendo constantemente à cena
159
Por André suportar muito pouco o confronto com suas próprias decisões, é
preciso evitar, no manejo institucional de seu caso, encarnar para ele qualquer postura
que possa ser tomada como uma injunção fálica: não o estimulamos a trabalhar ou a
manter acordos que ele mesmo propõe, mas que, na maioria das vezes, não consegue
cumprir. Tentamos nos manter isentos frente aos seus projetos, dizendo-lhe apenas que
“é bem-vindo” e que o CAPS se mantém disponível para ajudá-lo. Obtivemos, com isso,
uma diminuição considerável de seus acting-outs. Chegou a verbalizar em análise, um
pouco antes, a esse respeito: “as pessoas querem que eu freqüente o CAPS, mas não
entendem que meu caso é muito grave. Eu já tentei várias vezes o suicídio”.
Suas atuações dirigidas à equipe diminuem assim como a sua freqüência no
CAPS: se antes André chegava todo ensangüentado ou batia a cabeça na parede até
fazer enormes hematomas, agora diz não querer mais “protagonizar cenas bizarras”,
pedindo que eu o atenda no ambulatório do HMJM. “É menos promiscuo”, argumenta
ele, não me deixando outra saída se não aceitar o seu pedido. Essa distância do CAPS
fez com que André passasse a poder, muito eventualmente, recorrer a ele quando não se
sente bem: seja para pedir uma medicação injetável, seja para “tomar um suco e
conversar um pouco”.
bem – que seria equivalente a lhe querer o mal – frisava meu dever ético de sustentar a
continuidade de seu trabalho subjetivo.
As passagens ao ato de André puderam ser localizadas em resposta a situações
nas quais é chamado a sustentar uma posição desejante, o que não facilita em nada o
trabalho analítico. Desde o episódio de seu primeiro amor, a dimensão do desejo
aparece correlata, para ele, ao gozo do Outro. A radicalidade de sua posição de objeto
do Outro faz com que qualquer possibilidade de ocupar uma posição desejante lhe seja
interditada. Aos dezessete anos, por exemplo, queria ser astrônomo. Seu desejo faz, sem
nenhuma trégua, irrupção no real: um dia, vê, do alto de sua laje, formar-se uma
mensagem cifrada no céu, indicativa de algo “profundo e misterioso” que marcará todo
o seguimento de sua vida.
Através de suas leituras em análise, foi incorporando, em sua fala, um colorido
maneirista. Sua família o acusa inclusive de querer “bancar o psicólogo e de falar
difícil”, mas André situa sua invenção particular de fala como uma solução por ele
encontrada para evitar “palavrões”, afastando assim “energias ruins”. O linguajar
teórico ‘psi’, extraído de suas leituras, tem para André um uso bastante singular. Situa,
por exemplo, sua doença como “psicossomática” (que é a soma de todas as doenças
psíquicas) ou então suas tentativas de suicídio e automutilações como “psicodramas”
(dramas com conteúdo psicológico). Para ele, que não conhece nem mesmo o nome do
pai, o nome ganha um valor de condensador de gozo. Em sua história, pudemos
verificar que o diagnóstico de ‘bromidrose’ teve um efeito apaziguador em relação a sua
alucinação olfativa.
Sua freqüência aos atendimentos, inicialmente bastante irregular, passa, em um
segundo tempo, a ser preenchida por seus telefonemas à minha casa sempre que falta,
seja para perguntar, confirmar ou remarcar suas consultas, ou simplesmente para me
contar algo que leu. Por duas vezes, André me ligou para dizer que tinha tomado
comprimidos em excesso e pedir minha ajuda. Felizmente pude contatar seus familiares
e estes o hospitalizaram a tempo de evitar o pior. Penso a posteriori que estes momentos
críticos marcaram o início de uma nova fase na qual começou a falar de suas vivências
propriamente psicóticas: de sua alucinação auditiva na qual ouve “o barulho da
atropina”, remédio injetado no soro durante a desintoxicação por veneno de rato, ou dos
espíritos que o seguem em casa.
163
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
mordedor de presente para o meu bebê, marcando seu voto de que este novo ser pudesse
ter mais socorro do que ele frente ao impossível de dizer. Recentemente, leu para mim
uma história na qual um amigo salva o outro da morte, apesar de todos os percalços
pelos quais precisa, para isso, passar. Um pouco depois disse: “Eu não tenho amigos”.
Após um breve silêncio, falou: “Você é minha amiga. Só venho ao CAPS em
consideração a você”.
Penso que o lugar que André me concedeu na transferência foi algo da ordem da
philia, da amizade, não enquanto relação afetiva, mas enquanto uma relação que deve
ser solidamente institucionalizada. “Você atua em prol da pessoa, não fica me
sofismando”, disse a respeito do lugar que ocupo para ele no trabalho analítico. Aceitar
ser tomado como semelhante por alguém que, para ele, não o é, é sem dúvida,
apaziguador para André. Tento oferecer a ele um lugar onde possa compartilhar os
efeitos e os destinos que o gozo do Outro causa em sua vida, esvaziando-me de qualquer
desejo de saber sobre o seu delírio. Sei que o trabalho com André é trabalho de uma
vida inteira, aposta de que algum dia ele venha a poder libertar-se um pouco do ciclo do
qual é prisioneiro. Estranho ciclo, que faz com que em uma hora esteja mortificado,
apático e, em outra, suicida, tramando ou tentando se matar. Há pouco tempo, uma
mudança importante se operou em seu discurso e, fazendo uso de um tom confessional,
me disse: “sabe, Nuria, eu digo sempre que quero morrer, mas na verdade eu tenho
muito medo, acho que eu não quero morrer não... ou pelo menos não quero me matar,
quero morrer de morte morrida”.
Como disse, é uma aposta e, como toda aposta, compreende alguns riscos. Em
uma época em que estava em dúvida quanto à minha permanência no trabalho do
CAPS, me assegurou: “se você não puder estar mais aqui não tem problema não, é só
me encaminhar para outra pessoa”. Indicando, a seguir, como, para ele, se sustenta a via
de uma transferência que não o aniquile enquanto sujeito: “Você pode ir embora, o que
importa é que eu continue tendo o meu lugar... o meu lugar de poder ler um pouco para
alguém”.
165
CONCLUSÃO
Há amor na psicose? Acreditamos ter demonstrado, ao longo desta tese, que sim.
Entretanto, o amor do qual se trata não pode ser considerado a partir da ‘normalidade’,
ou seja, não pode ser tomado a partir da ficção do falo. Evidenciou-se para nós que
Freud, ao partir da neurose para a compreender a função do amor, obscureceu seu olhar
para as possibilidades transferenciais da psicose e acirrou seu ceticismo em relação as
possibilidades terapêuticas da psicanálise quando empregada às psicoses. A obra
freudiana deixou, apesar disso, inegáveis indícios da transferência na psicose - mesmo
que em sua vertente de risco transferencial - servindo de base à Lacan para sustentar um
tratamento possível da psicose.
A transferência foi um fio condutor importante de nossa tese. Marca singular do
tratamento analítico e condição de sua produção, permite que resgatemos, apesar das
diferenças estruturais, uma certa continuidade entre os campos da psicose e da neurose.
O amor na psicose não pode mais ser posto assim em dúvida e, do mesmo golpe, a
neurose e seu amor não podem mais servir como modelos de nossa ação. Atribuo a
Freud, e ao seu ato de fazer de Schreber um caso, um legado fundamental acerca do
tratamento da psicose.
O amor na psicose, ao requisitar o sexual, carrega o risco de desestabilização.
Freud desvelou o seu aspecto real ao demonstrar que, ao retornar desde fora, traz um
caráter externo ao sujeito. Tomando a paranóia persecutória como paradigma, Freud
demonstrou que ela nos dá a chave da transferência, na medida em que situa onde não
devemos nos posicionar.
O amor de transferência pode se apresentar na psicose como a certeza de que o
analista ama o sujeito (ou o odeia). A erotomania e a perseguição podem assim
anunciar-se como riscos transferenciais no horizonte de uma análise. O sujeito, quando
submetido ao outro do delírio, pode tornar-se vítima de suas paixões. Isso acontece na
medida em que o sujeito pode viver, na psicose, a paixão não enquanto agente, mas
168
enquanto vítima dela. Pode ser, portanto, amado, traído ou odiado por aquele que aceitar
ser por ele colocado no lugar de Outro do delírio.
Com a decomposição, Freud mostra que há um movimento, no delírio ainda não
sistematizado, que tende a deslocar o personagem hostil. Podemos dizer, a rigor, que a
perseguição só é total quando a passagem ao ato é consolidada. O manejo da
transferência consiste em detectar um ponto de abertura no delírio de onde seja possível
manobrar. A decomposição provoca cisões nos personagens delirantes, e é aí que a
manobra do analista pode se dar: reiterando ou rejeitando as soluções inventadas pelo
sujeito para dar conta de suas transferências e de suas relações com o mundo.
Em Schreber, a decomposição de seu médico em vários personagens foi por nós
considerada como uma tentativa do sujeito de restituir algum lugar possível a Flechsig
na transferência. Prova, além disso, que o delírio, embora tenha tido um efeito de
apaziguamento, não faz sozinho função de cura. Para o sucesso do delírio, é
fundamental uma resposta por parte do destinatário, uma espécie de confirmação de
recebimento. Acreditamos, portanto, que não basta criar uma solução delirante, é
preciso que esta seja endereçada a alguém e que este alguém seja capaz de acolhê-la do
lugar de destinatário. Defendemos, portanto, a idéia de que o delírio como tentativa de
cura só pode ser considerado um sucesso se a sua produção tiver um endereçamento.
Retomando o fio deixado pela psiquiatria clássica, Freud optou por aproximar as
psicoses passionais da paranóia. A melancolia permaneceu, entretanto, em um lugar um
pouco marginal em sua obra, abrindo uma interessante via de investigação da diferença
entre aqueles sujeitos psicóticos que colocam em seu delírio uma ênfase na relação eu -
outro (paranóia persecutória) e aqueles que se ocupam mais do eu do sujeito. A
melancolia é um bom exemplo a respeito desse último caso, na medida em que o retorno
no real não se mostra com tanta clareza como na forma persecutória. A dimensão do
parceiro não está tão enfatizada, a dialética do “ou eu ou outro” não se apresenta tão
explicitada.
Nossa hipótese é que a melancolia realiza a ameaça de abolição do eu presente
na relação dual: nela o eu passa a se tomar efetivamente como outro. A realização do
luto do objeto perdido torna-se assim uma impossibilidade na melancolia. Se, na
melancolia, o sujeito toma o seu eu como um outro, uma questão se coloca: o amor é
169
da função que pode ter, para um psicótico, a possibilidade de transmitir o seu saber
delirante.
Como dissemos, o delírio passional costuma ser mais socialmente aceito do que
o delírio persecutório, no sentido de poder ser mais facilmente confundido e integrado
no discurso do senso comum da paixão (seja de ciúme, de reivindicação ou de amor).
O ciúme é um ótimo exemplo a esse respeito: não pode ser definido pela sua
relação - ou falta de relação – com a realidade. Como mostramos a partir das teorizações
de Lagache, o erotômano não costuma sentir ciúme de seu objeto de amor. A convicção
delirante de ser amado pode não deixar lugar para a ocorrência do ciúme. A idéia de ser
amado persiste, muitas vezes, apesar do objeto ser comprometido ou de não
corresponder às expectativas do amado. É interessante observar que, por outro lado, o
ciúme atribuído ao objeto pode ser, na erotomania, um excelente antídoto contra as
investidas amorosas de terceiros.
Concordamos com Lacan quando considera que a categoria passional deve ser
compreendida dentro das psicoses paranóicas. Contudo, a ênfase dada na atualidade ao
delírio persecutório, fez com que se tornasse quase que um sinônimo de paranóia. Ao
nosso ver, essa sobreposição de termos provocou um certo empobrecimento na
compreensão desta modalidade clínica. O estudo do delírio passional na paranóia
permite avançar questões importantes relativas ao laço que o psicótico estabelece com
os outros, contribuindo para a depuração das modalidades de trabalho que a
transferência na psicose possibilita.
Queremos frisar a idéia de que se Lacan vê na psicose uma posição subjetiva
que, por prescindir da metáfora paterna, faz com que o sujeito esteja mais exposto ao
desenlace dos três registros, mostra, em contrapartida, que justamente por não possuir
de entrada essa amarração, não precisa limitar o seu caminho à estrada principal que lhe
ordenaria suas relações com o mundo. A psicose é assim considerada como a
modalidade clínica que mais revela a natureza de semblante das relações humanas.
Mostra, radicalmente, como o parceiro pode ser tomado em sua heterogeneidade mais
absoluta. Desvela o quanto o amor se liga ao saber mortífero do outro sobre o ser do
sujeito. Desnuda o sexo de todos os seus véus imaginários, mostrando a ligação última
do prazer com a morte.
171
de sua relação com sua filha, com quem compartilha delírios. Demonstramos, ao longo
da tese, que estas posições não são avalizadas pelo analista como lugares a serem
ocupados na transferência, pois não distanciam o sujeito de seu objeto, deixando-o à
mercê das irrupções no real.
A philia parece-nos ser a posição mais interessante a ser ocupada e trabalhada
pelo analista no que se refere à transferência na psicose. A partir do conceito de amizade
na filosofia clássica, vimos que a philia protege o sujeito da emergência gozosa do
sexual. A conjunção entre desejo sexual e amor que poderia, na psicose, mobilizar o
gozo do Outro fica assim afastada. A philia permite ainda estabelecer um interessante
enlace com a lei, enquanto garantidora de uma certa hospitalidade entre estrangeiros,
que evita a posição de Outro absoluto ao submeter o analista a essa mesma lei. Aliança
de trabalho, a philia introduz uma dimensão social, visando, com a circulação de
saberes, transformá-los em algo útil para um sujeito ou para um conjunto.
Retomemos brevemente as possibilidades do amor na psicose indicadas ao longo
desta tese:
coloque no lugar do Outro como garante do amor, e que o sujeito o assuma como
objeto único, eleito.
6) Philia: laço de amizade entre semelhantes, contrário a assimilação entre sujeito e
objeto, pode ter efeitos sobre o espaço público, redimensionando as experiências
com o real.
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