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ESTÊVÃO MONTEIRO GUERRA

O PROCESSO ELABORATIVO NA CLÍNICA


PSICOTERÁPICA DE ALINHAMENTO PÓS-MODERNO:
UM ENFOQUE MULTIDIMENSIONAL E
TRANSDISCIPLINAR

Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica


Núcleo de Família e Comunidade

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA


SÃO PAULO
2007
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ESTÊVÃO MONTEIRO GUERRA

O PROCESSO ELABORATIVO NA CLÍNICA


PSICOTERÁPICA DE ALINHAMENTO PÓS-MODERNO:
UM ENFOQUE MULTIDIMENSIONAL E
TRANSDISCIPLINAR

Tese de Doutorado apresentada à banca examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como
exigência parcial para obtenção do título de Doutor em
Psicologia Clínica

Área de concentração: Família e Comunidade


Orientadora: Profa. Dra. Rosa Maria Stefanini. de Macedo

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA


Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica
São Paulo
2007

ii
TERMO DE APROVAÇÃO

Estêvão Monteiro Guerra

O Processo Elaborativo na Clínica Psicoterápica de Alinhamento Pós-Moderno: um


enfoque multidimensional e transdisciplinar.

Tese de Doutorado aprovada como exigência parcial para


obtenção do título de Doutor em Psicologia Clínica – Núcleo
de Família e Comunidade da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo.

São Paulo,..........de........................de 2007

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________________________
Rosa Maria Stefanini de Macedo – Doutora em Psicologia – PUC-SP
(ORIENTADORA)

_________________________________________________________________________
Ida Kublikowski – Doutora em Psicologia – Doutora em Psicologia – PUC-SP

_________________________________________________________________________
Marilene Aparecida Grandesso – Doutora em Psicologia – PUC-SP

_________________________________________________________________________
Rosane Mantilla de Souza – Doutora em Psicologia – PUC-SP

_________________________________________________________________________
Luciano Caldas Camerino – Doutor em Filosofia - UGF

iii
DEDICATÓRIA

Dedico esta tese aos meus pacientes,


os que já foram e os que ainda são.
Foi com eles que aprendi e continuo
aprendendo sobre o complexo processo elaborativo.
Também dedico esta tese a todos os meus terapeutas,
alguns muito sábios e outros nem tanto,
mas que sempre contribuíram tão decisivamente
na reconstrução de minha história e na compreensão
sensível do complexo processo de elaboração.
Sem ambos, a construção desta tese não teria sido possível.

iv
AGRADECIMENTOS

À minha mãe Therezinha, por ter oferecido prontamente os recursos financeiros necessários
para o pagamento das mensalidades iniciais. Sem a sua ajuda, este doutorado não teria sido
concluído.

À minha esposa Francine, por sua permanente compreensão nesta empreitada árdua que é
estudar tão longe de nossa terra natal. Por sua compreensão quanto ao arrocho financeiro o
qual vivemos, decorrente das diversas e pesadas despesas geradas neste processo. Também
agradeço pelas dezenas de horas dedicadas à leitura do texto, sugerindo importantes
reformulações gramaticais.

À Marilene Grandesso, por ter apontado a porta do núcleo de Psicologia Clínica da PUC-
SP. Sem a sua sugestão, esta tese não teria sido construída nesta tradicional instituição.

À Ceneide Cerveny, por ter me aberto a porta e me aceito como orientando no primeiro ano
de curso. Também agradeço sua inestimável ajuda na obtenção da bolsa de estudo oferecida
pela CAPES. Sem esta bolsa, este doutorado não teria sido concluído.

À Ida Kublikowski, por ter acreditado neste ousado projeto, por ter me acompanhado como
orientadora em grande parte desta caminhada e por ter oferecido respeitosa aceitação e
flexibilidade quanto aos rumos e arranjos teóricos adotados por mim no transcurso da
construção desta tese.

À José Ignacio Xavier, pela inestimável e cuidadosa ajuda em relação aos aspectos
neurocientíficos e pela valiosa amizade estabelecida no decorrer deste processo de
doutoramento.

v
RESUMO

GUERRA, Estêvão Monteiro. O processo elaborativo na clínica psicoterápica de


alinhamento pós-moderno: um enfoque multidimensional e transdisciplinar. São Paulo,
2007. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica). Programa de Psicologia Clínica, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.

O processo elaborativo pode ser considerado como uma das etapas centrais da clínica
psicoterápica. Em todas as correntes da psicologia contemporânea que se ocupam
diretamente com as etapas constitutivas deste processo, seja ele individual ou grupal-
familiar, encontram-se as mais diversas conceituações e preocupações referentes ao tema.
Logo, também neste contexto, não poderíamos estar isentos da pluralidade conceitual, tão
inerente às diversas correntes das ciências humanas e, conseqüentemente, do saber psi.
Seriam através destas diversidades conceituais, muitas vezes paradigmáticas e
aparentemente excludentes uma das outras, que se buscariam os fatores fundamentais para
compreensão e definição satisfatória deste processo de reconstrução de significados. Sendo
assim, não temos a pretensão de esgotar esta discussão e, muito menos, de concluí-la
categoricamente. Também não seria relevante arrogarmos quais seriam as formas ideais de
reflexão que buscariam compreender os meandros percorridos pelo paciente em seu
processo de elaboração e reconstrução de sua dinâmica de vida. Exatamente por
considerarmos o processo elaborativo imerso em uma complexidade desafiante, buscamos
uma posição cautelosa e desprovida, sobretudo, de uma arrogância cientificista, herdeira de
esquemas positivistas claudicantes. Temos assim, enquanto intenção fundante, expandir e
problematizar o conceito de elaboração a partir de multidimensionalidades e
multisequencialidades contextuais, características estas que ocupam a centralidade
epistêmica nas práticas clínicas pós-modernas, tendentes a um projeto de molde
transdisciplinar. É neste contexto que se alicerçam os objetivos centrais da tese, ou seja,
inserir o processo elaborativo na recursividade dialógica e multifacetada da dinâmica
psicoterápica sob moldes de uma epistemologia pós-moderna, refletindo sobre possíveis
“transgressões” conceituais do termo elaboração, alargando seu sentido não só enquanto
processo que se realiza na artificialidade da clínica, mas enquanto um processo intrínseco
do desenvolvimento sensório-motor, afetivo e cognitivo. Neste sentido, mapear uma
compreensão do processo elaborativo a partir da aceitação de que a complexidade humana
pode ser melhor integrada enquanto uma unidade psicossômica, sugerindo uma
metodologia em moldes construtivistas. Por sua vez, se faz imprescindível refletir sobre
algumas possibilidades de “resgate” da unidade psicossômica. A compreensão dos fatores
que levam ao “adoecimento” desta unidade devem ser reavaliados a partir de
procedimentos que sejam coerentes às práticas clínicas inspiradas pelos valores de uma
epistemologia pós-moderna.

vi
ABSTRACT

GUERRA, Estêvão Monteiro. The elaborative process of the post-modern


psychotherapeutical clinic: a multidimensional and transdisciplinary focus. São Paulo,
2007. Thesis (Doctorate in Clinic Psychology). Clinic Psychology Program, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.

The elaborative process may be considered as one of the main stages of the
psychotherapeutical clinic. In all of the schools of thought of the contemporary psychology
which deal closely with the step which make up this process, either individual or group-
family, the most diverse concepts and concerns related to the theme can be found. Thus, in
this context, we could not be exempted from the plurality of concepts, which underlie the
several schools of Human Sciences and, therefore, of the psychological knowledge. The
fundamental factors for the satisfactory understanding and definition of this process of
reconstruction of meanings would be sought by means of those conceptual diversities
which, most of the times, are paradigmatic and apparently exclude one another. Hence, we
do not intend to treat this discussion completely, nor do I intend to settle it down definitely.
It would not be relevant assume which would be the ideal forms of reflection which would
try to understand the meanders trailed by the patient in his/her elaboration and
reconstruction process of his/her life’s dynamics, either. It is precisely because I understand
the elaborative process drenched in a challenging complexity, we look for a cautious
positioning devoid of a purely scientific arrogance, which is an heir of poor positivistic
schemes. Therefore, my foremost intention is to expand and question the concept of
elaboration from the contextual multi-dimensions and multi-sequences, features which
occupy the epistemic center in the post-modern clinical practices, tending towards a
transdisciplinary project. It is in this context that the main objectives of this thesis are
founded. i. e., inserting the elaborative process in the dialogical and multifaceted
recursivity of the psychothepeutical dynamics based on a post-modern epistemology,
reflecting on the probable conceptual transgressions of the term elaboration, broadening its
sense not only as a process which is performed in the artificiality of the clinics, but as an
intrinsic process of the sensory-motor, affective and cognitive development. In this sense,
mapping the comprehensive approximation of the elaborative process from the acceptance
that human complexity can be better integrated as a psychosomic unit, suggesting a
constructivist methodogy. It is of foremost importance to reflect upon some possibilities of
redemption of the psychosomic unit. The understanding of the factors which lead to the
“sickening” of this unit must be revaluated from the procedures which are coherent with
clinical practices inspired by the values of a post-modern epistemology.

vii
viii
SUMÁRIO

UNIDADE – I

1 - Aproximações contextuais e conceituais do termo “elaboração” (1)

1.1 - O “corpo traído” – Algumas reflexões sobre o decaimento


da corporeidade na cultura ocidental (12)
1.2 - Algumas considerações sobre o corpo na Psicologia do
século XIX e início do século XX (16)
1.2.1 - Freud e o abandono do “ego-corporal” (19)

2 - Em busca de um contexto psicoterápico pós-moderno (23)

2.1 - Delimitações histórico-filosóficas para uma fundamentação


epistemológica (23)
2.1.1 - Os referenciais histórico-filosóficos da cultura e da
ciência moderna – Elementos essenciais para uma crítica
epistemológica pós-moderna (24)
2.1.2 - Os referenciais histórico-filosóficos da cultura e da
ciência pós-moderna – Delineando as bases teóricas
para um novo paradigma científico (27)

3 - O enfoque pós-moderno em psicoterapia – Em busca de novas


propostas epistemo-metodológicas (36)

3.1 - A clínica psicoterápica referenciada por uma “metodologia


complexa” (38)
3.2 - Metodologia transdisciplinar - Para uma compreensão
complexa do processo elaborativo (46)
3.3 - Construtivismo – Uma via transdisciplinar para a compreensão do
desenvolvimento cognitivo-afetivo (59)
3.3.1 - Um breve transcurso histórico (62)
3.3.2 - Construtivismo e contemporaneidade (65)

Conclusão - Unidade I (69)

UNIDADE - II

4 - Desenvolvimento cognitivo a partir de uma visão transdisciplinar –


Fundamentações para uma compreensão do processo elaborativo (71)

4.1 - Proto-cognição fetal –

ix
Gênese do aparelho cognitivo? (71)
4.1.1 - Proto-cognição fetal – Uma cognição
sensório-motora? (77)

5 - A epistemologia genética piagetiana enquanto plataforma


para um modelo transdisciplinar do desenvolvimento humano (82)

5.1 - O estágio sensório-motor piagetiano (91)


5.1.1 - Os seis sub-estágios sensório-motores (94)
5.1.1.1 - As adaptações sensório-motoras elementares
- A primeira sub-fase sensório-motora (94)
5.1.1.2 - As primeiras adaptações adquiridas
e a reação circular primária – A segunda sub-fase
sensório-motora (96)
5.1.1.3 - As adaptações sensório-motoras intencionais
e a reação circular secundária – A terceira sub-fase
sensório-motora (100)
5.1.1.4 - A coordenação dos esquemas secundários
e a sua aplicação às novas situações –
A quarta sub-fase sensório-motora (101)
5.1.1.5 - A “descoberta de novos meios por experimentação
ativa” e a reação circular terciária –
A quinta sub-fase sensório-motora (102)
5.1.1.6 - A invenção de novos meios por
combinação mental – O sexto sub-estágio
sensório-motor. (103)

6 - Novos elementos para uma teoria do desenvolvimento


de molde transdisciplinar (105)

6.1 - Para uma compreensão neurocientífica do sistema nervoso (107)


6.1.1 - O sistema nervoso e sua clausura operacional (107)
6.1.2 - Afetividade, cognição e neurociência (119)
6.1.2.1 - Emoção e cognição – revisitando a
fase sensório-motora piagetiana (131)
6.1.1.2 – Adaptação, organização,
emoção e sentimento (136)
6.2 - Afetividade, cognição e singularidade
segundo a biologia do conhecer (144)
6.2.1 - Inevitáveis confluências entre os aspectos
ontológicos e epistemológicos dos processos
cognitivos (144)
6.2.1.1 - A organização dos seres vivos e o ato cognitivo (145)
6.2.1.1.1 - Uma aproximação “ontológica”
da cognição (153)
6.2.1.1.2 - Uma nova ontologia –

x
Corporeidade e essência do ser (155)
6.2.2 - Aleatoriedade e teleonomia (157)
6.2.3 - Autopoiese e sistemas sociais (162)
6.2.4 - Emoção, cognição e singularidade –
revisitando Piaget e a fase sensório-motora
segundo o construtivismo radical (169)
6.2.4.1 - Cognição incorporada - Fundamentações
para uma compreensão da singularidade
sensório-motora (169)
6.2.4.2 - Revisitando Piaget e a fase sensório-motora
a partir do construtivismo radical (174)

7 - O adoecimento psicossomático do sistema afetivo-cognitivo –


Para uma compreensão pós-moderna do processo
elaborativo-reconstrutivo na clínica (187)

7.1 - O normal e o patológico - do que se trata? (188)


7.1.1 - Reflexões sobre o processo de adoecimento –
o que sugerimos? (196)
7.2 - De seres vivos à máquinas danificadas – Contribuições para
uma compreensão etiológica das psicossomatopatologias em
sistemas auto-organizados (202)
7.2.1 - Análise do caráter, vegetoterapia e o funcionalismo
orgonômico – Uma breve incursão
ao pensamento reichiano (208)
7.2.1.1 - A couraça caracterial (216)
7.2.1.2 - A formação da couraça caracteriológica (218)
7.2.1.3 - As contribuições de Frederico Navarro
para uma compreensão terapêutica da
couraça caracteriológica (222)
7.2.1.3.1 - Princípios básicos da
somatopsicodinâmica (226)
7.2.2 - Genética, ambiente e complexidade –
Algumas reflexões fundamentais para uma
compreensão etiológica do processo
de encouraçamento (232)
7.2.3 - Uma aproximação neurocientífica da couraça muscular (244)
7.2.4 - O resgate da unidade psicossômica a partir
de uma proposta neurodinâmica (253)
7.2.4.1 - Para “além” dos AcMes (265)

8 - Sobre o processo elaborativo afetivo-cognitivo a partir de uma


mente incorporada (272)

Palavras finais (279)

xi
Bibliografia (283)

xii
SUMÁRIO DE FIGURAS E QUADROS

Quadro 2.1 ___________________________________________________ (34)


Figura 3.1 ___________________________________________________ (54)
Figura 3.2 ___________________________________________________ (56)
Quadro 3.1 ___________________________________________________ (66)
Figura 6.1 ___________________________________________________ (110)
Figura 6.2 ___________________________________________________ (110)
Figura 6.3 ___________________________________________________ (113)
Figura 6.4 ___________________________________________________ (116)
Figura 6.5 ___________________________________________________ (129)
Quadro 6.1___________________________________________________ (134)
Quadro 6.2___________________________________________________ (147)
Figura 7.1 ___________________________________________________ (235)
Figura 7.2 ___________________________________________________ (246)
Quadro 7.1 ___________________________________________________ (256)

xiii
UNIDADE – I

1 - Aproximações contextuais e conceituais do termo


“elaboração”

Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento;


onde está o conhecimento perdido na informação?

T.S. Eliot

O que significa o “ato de elaborar” na clínica psicoterápica? Aceita esta premissa, se


for elaborado algum conteúdo, seja ele cognitivo ou afetivo, como se elabora? Por sua vez,
o que se elabora? O quanto se elabora? O que nunca se elabora? Podemos detectar o melhor
momento para se elaborar? Sendo assim, como o psicoterapeuta deve proceder diante deste
processo elaborativo? O quanto nós, psicoterapeutas, somos responsáveis? De que forma
“controlamos” este processo? Afinal, devemos controlá-lo? Será que poderíamos controlá-
lo? Este processo é permanente? O processo elaborativo incide localmente ou todos os
âmbitos da vida se beneficiam? Será que devemos considerar o ato elaborativo como um
processo totalmente positivo? Se não é totalmente positivo, quando, como e por que não o é
positivo? Elabora-se fora da clínica? Elabora-se somente através da dor e da perda?
Elabora-se na hora da morte?
Como o leitor poderia suspeitar, esta introdução ao tema de nosso estudo configura-
se, propositalmente, a partir de um emaranhado conjunto de interrogações de perfil retórico.
Em primeiro lugar, porque este conjunto de interrogações retrata a angústia do autor diante
deste caleidoscópico frenesi de possibilidades conceituais que envolvem o termo
“elaboração”. Por fim, o conjunto destas interrogações, as quais não esgotam de forma
alguma todo o repertório, introduz o leitor na complexidade do tema.

1
A princípio, somos levados a considerar que a compreensão do termo “elaborar”
incide, inexoravelmente, na necessidade de aceitarmos sua “circunstancialidade
conceitual”, já que ao se definir o termo ele estará atado aos parâmetros epistemológicos e
paradigmáticos da corrente em questão. Por sua vez, estas conceituações também se
adequarão aos recortes particulares de cada autor. O que podemos inferir inicialmente, e de
forma generalizada, é que o processo elaborativo se refere a uma etapa da mais alta
significação do processo psicoterápico. Vejamos algumas conceituações do termo a partir
de seu uso originário.
O conceito clínico de “elaboração” foi introduzido por Freud (1914g/1977) em um
trabalho sobre “Recordar, repetir e elaborar”, e a meta do processo psicanalítico seria a de
oferecer os meios necessários para superação das resistências o que, conseqüentemente,
levaria à elaboração dos conflitos. Logicamente, este conceito passou por uma série de
reformulações no decorrer da evolução da teoria psicanalítica. Vejamos alguns:
- Fenichel (2000) considerava que a elaboração resultava na liberação de energia
ligada à representação e que a interpretação tinha o efeito de educar o paciente no sentido
de produzir derivados cada vez menos distorcido.
- Kris (apud SANDLER; DARE; HOLDER, 1986) assinalou que a “interpretação dos
conteúdos do analisando levaria, por fim, à reconstrução de seu passado, a qual levaria a
modificações em sua estrutura psíquica” (p. 115).
- Loewald (1980) acrescentou que o analista funcionaria como um mediador que
propiciaria um estado organizativo mais elevado através da análise e interpretação do
material fornecido pelo paciente. Também ressaltou a importância de uma adequação entre
interpretação e o ‘momento’ oportuno para que seja devidamente reconhecido e elaborado
pelo paciente o conflito em questão.
- Novey (apud SANDLER; DARE; HOLDER, 1986) acrescentou um fator
importante para nossa compreensão deste processo ao referir que a elaboração é feita,
preponderantemente, fora da sessão analítica, “e que o paciente necessita de um tempo
‘real’, na vida cotidiana, para que experimente e reexperimente intelectual e afetivamente o
que emerge na clínica através das interpretações” (p. 114).
- Greenson (1981) considera fundamental que o paciente tenha, inicialmente, uma
compreensão interna profunda, pois o objetivo central da elaboração é tornar eficaz esta

2
compreensão interna. Por fim, a elaboração destes conteúdos profundos levaria o paciente a
mudanças significativas. Este trabalho deve ser feito pela análise consistente das
resistências e das transferências.
- Klein (1975) considera que o processo de elaboração é o trabalho gradual de
desligar a libido de tensões organizadas e que tendem para a regressão.
- Para Laplanche e Pontalis (1988) a noção de elaboração psíquica poderia ser
distinguida em dois aspectos: “a) a transformação da quantidade física em qualidade
psíquica; b) O estabelecimento de caminhos associativos, que supõem uma condição prévia
dessa transformação” (p. 197).
Em um contexto psicanalítico, podemos então considerar que o termo “elaboração”
designa um processo que se realiza:

“Na árdua tarefa proposta à pessoa em análise e a ‘prova de paciência’ que se


submete o analista, ao trilharem o mesmo caminho, vezes e vezes sem conta, ao
traçarem as ramificações dos impulsos, conflitos, fantasias e defesas inconscientes.
À medida que estes aparecem e reaparecem no material do paciente, parecem
constituir a essência da elaboração” (SANDLER; DARE; HOLDER, 1986, p.
117).

A princípio, o leitor poderia considerar arbitrária nossa escolha de se partir da


psicanálise enquanto plataforma reflexiva sobre o conceito de elaboração. Mais uma vez
enfatizamos nossa intenção de contextualizar historicamente o nascimento deste conceito.
Também devemos aceitar que por ser um termo tradicionalmente oriundo da psicanálise foi
muito mais trabalhado didaticamente nesta corrente. Por fim, a partir deste contexto
originário, obtemos o contraponto necessário para iniciarmos nossa reflexão, já que neste
contexto epistemológico, o conceito de elaboração restringe-se à operações essencialmente
mentais.
Devemos ressaltar que, para a psicanálise, o termo “elaboração” vem
tradicionalmente seguido de outro termo, ou seja, um processo elaborativo é sempre um
processo de elaboração psíquica. Paulina Cymrot (1999), em sua tese de mestrado
Elaboração psíquica – teoria e clínica psicanalítica, defendida na PUC-SP, nos auxilia
quanto ao entendimento desta questão:

3
“No decorrer do desenvolvimento da Psicanálise, o conceito de elaboração ganhou
alguns significados. Desde ‘Estudos sobre histeria’, existe a idéia de que o
analisando realiza um certo trabalho mental, e que deste depende a elaboração
psíquica. Evidentemente, que o que está suposto em 1895 não é o mesmo que está
postulado e 1914 ou 1937. Laplanche e Pontalis assinalam que a utilização do
termo Arbeit (trabalho) aplicado às operações mentais é um emprego original de
Freud, que fez dele um uso em diversas ocasiões: Traumarbeit (trabalho do sono),
Trauerarbeit (trabalho do luto), Durcharbeit (perlaboração). Vários termos como
Verarbeitung, Bearbeitung, Ducharbeitung, foram traduzidos por Elaboração. Ao
empregar o termo Arbeit (trabalho), Freud referiu-se a uma quantidade de trabalho
exigida pelo psiquismo , e a elaboração psíquica expressaria o conjunto destas
operações” (p. 57).

Cymrot apresenta um minucioso estudo sobre as vias do processo elaborativo


(psíquico), aprofundando na teoria de alguns dos principais nomes da psicanálise (Além de
Freud, a autora percorre as obras de Bion e Klein). No entanto, é curioso o fato da autora
não ter mencionado, uma só vez no decorrer das 200 páginas de sua dissertação, que o
processo elaborativo também se faz, recursivamente, por via somática1. Seguramente, não
podemos criticar a autora, já que ela está sendo fiel à teoria psicanalítica.
Em um primeiro momento, pensamos que esta aproximação compreensiva do
processo elaborativo, que incide preponderantemente a partir do campo das representações,
não supre teórica e tecnicamente nossas necessidades para compreendermos a
complexidade deste processo. Alguns psicanalistas poderiam reagir a esta colocação,
argumentando que a psicanálise já estabeleceu um forte laço teórico e prático com a
psicossomática através de autores como Donald Winnicott (1978) e Joyce Macdougall
(1991). Ainda que não seja tema deste estudo, devemos então alertar àqueles que defendem
tal postura, que este tipo de “associação” provém de propostas inter e transdisciplinares, e
que não poderíamos mais considerar “assepticamente” o campo da psicanálise a partir
destes cruzamentos. Enfim, se a psicanálise se “camufla” na psicossomática (ou vice-versa)
é, epistemologicamente falando, “outra” psicanálise. Tais procedimentos incorreriam,
necessariamente, na revisão do conceito de “elaboração psíquica” e, em último sentido, no
sentido epistêmico do termo “psicanálise”.
Devemos ressaltar que as discordâncias que surgem quanto à aceitação das inúmeras
definições do termo, entre os próprios psicanalistas, se avolumam tão logo se ampliam os
desdobramentos conceituais. Isto nos alerta, como propomos, para os problemas

4
epistemológicos intradisciplinares, ou seja, internos à própria psicanálise, em “definir” uma
etapa tão fundamental do processo psicoterápico. Sandler, Dare e Holder (1986) sugerem
que tal “falha” resulta de os muitos e eminentes autores de obras psicanalíticas não
estabelecerem uma distinção clara entre “a elaboração enquanto descrição de uma parte
importante do trabalho terapêutico psicanalítico e os processos psicológicos que ocasionam
a necessidade de elaboração que ocorrem desta” (p. 117). Contudo, seria digno de menção
acrescentarmos que para este conceito se situar no campo da psicanálise, deve estar
associado à interpretação dos conteúdos inconscientes e na consideração dos processos
resistenciais e transferenciais. Ainda assim, os autores citados acima ressaltam uma
importante questão: “Entretanto, isso não significa que a elaboração não possa
desempenhar um papel em outras formas de terapia, particularmente naquelas que
envolvem um elemento de ‘reabilitação’ ou ‘reeducação’” (p. 118). Nesta breve citação, os
autores nos oferecem as condições necessárias para que também nos apropriemos do termo
sem, no entanto, estarmos “atados” ao paradigma psicanalítico. Sendo assim, neste longo
processo de construção e alargamento compreensivo do termo “elaboração”, utilizaremos
esta nomenclatura sem incidirmos, necessariamente, em contextualizações provindas da
psicanálise. Também devemos enfatizar que esta pequena introdução ao conceito de
elaboração, em seu contexto originário, cumpre a tarefa de nos situar historicamente. Ainda
que não neguemos inteiramente as articulações provindas de autores alinhados ao
paradigma psicanalítico, pensamos que o termo “elaboração”, em sua contextualização
clássica, não abordou temas centrais para uma compreensão mais “ecológica” deste
processo. Mesmo assim, não discordamos ou temos a intenção de depreciar todas as
contribuições provindas da psicanálise quanto ao entendimento do termo, o que seria
absurdo, assim como de sua operacionalização técnica. Como será proposto em nossa
introdução epistemo-metodológica, esta tese anseia por uma abordagem transdisciplinar, e
não nos intimidaremos em lançar mão destas contribuições, quando necessário.
Por outro lado, encontramos em outros autores, até mesmo advindos do movimento
psicanalítico, como Wilhelm Reich (1986, 1989), um esforço mais consistente, tanto
teórico quanto técnico, em relacionar funcionalmente o mental e somático enquanto via

1
- De início, devemos acrescentar que os aspectos neurobiológicos estão contidos no campo somático.

5
constitutiva para a consolidação dos processos elaborativos vividos na clínica. Vejamos
mais detalhadamente esta questão em dois argumentos:

a) Mesmo com toda insistência de Wilhelm Reich (1989) em defender uma unidade
funcional mente/corpo, grande parte dos teóricos mais ortodoxos do movimento
psicanalítico continuou a levar ao “pé da letra” o termo elaboração psíquica2. Talvez
seja este o ponto inaugural das sucessivas desarticulações teóricas que se sucederam
entre Reich e o movimento psicanalítico europeu da década de 20 e 30, pois
observou-se que era na importância dada à corporeidade enquanto fator estruturante
do psiquismo onde se encontravam as mais severas críticas ao pensamento reichiano.
Reich não pôde admitir que a “elaboração psíquica” de seus pacientes se fizesse
apenas pela via das representações mentais, e que este processo deveria ser
estimulado por técnicas que não incidissem somente no campo das expressões
verbais. Seria essencial, no contexto do funcionalismo reichiano, exercitar a unidade
soma/psique em busca de maior integração e, conseqüentemente, para a elaboração
dos conteúdos conflitantes.
Em um contexto contemporâneo, contamos com um generoso arcabouço de pesquisas
provindas da neurociência que “sustentam” a tese reichiana de que seria inviável
compreender a psique sem considerar recursivamente sua base somática3
(CHANGEUX, 1985; DAMÁSIO, 1996; LAKOFF, 1987; LEDOUX, 1998;
JOHNSON, 1992; MATURANA & VARELA, 2002; VARELA, THOMPSON &
ROSCH, 1992). De acordo com o neurologista Antônio R. Damásio (2004), a relação
mente-corpo se sustenta nas seguintes afirmações:

2
- Consideramos que este “resgate do corpo” feito por Reich foi o mais articulado esforço teórico para se
inserir os processos somáticos no campo da saúde mental na primeira metade do século XX. Todavia, pelo
fato de apresentarmos a relevância da dimensão corporal no processo elaborativo a partir da teoria reichiana
não implica, necessariamente, em não considerarmos outras abordagens mais contemporâneas e que se
aproximam desta questão a partir de outros referenciais.
3
- Gostariamos de enfatizar que ao se fazer tal observação não propomos, a princípio, maiores aproximações
ou aprofundamentos entre estas duas áreas, já que devemos considerar devidamente toda a especificidade
teórica e prática que permeia tanto as pesquisas da neurociência quanto da teoria reichiana, neo-reichiana e
pós-reichiana. Enfim, encontraremos pontos em comum entre estes dois campos mas, seguramente, devemos
salientar as inúmeras diferenças teóricas e práticas que existem entre eles.

6
“1 – o cérebro humano e o resto do corpo constituem um organismo indissociável,
formando um conjunto integrado por meio de circuitos reguladores bioquímicos e
neurológicos mutuamente interativos (incluindo componentes endócrinos,
imunológicos e neurais autônomos); 2 – o organismo interage com o ambiente
como um conjunto: a interação não é nem exclusivamente do corpo nem do
cérebro; 3 – as operações fisiológicas que denominamos por mente derivam desse
conjunto estrutural e funcional, e não apenas do cérebro: os fenômenos mentais só
podem ser cabalmente compreendidos no contexto de um organismo em interação
com o ambiente que o rodeia. O fato do ambiente ser, em parte, um produto da
atividade do próprio organismo apenas coloca ainda mais em destaque a
complexidade das interações que devemos ter em conta” (p. 17).

Em pesquisa posterior, Damásio (2000) também defendeu a tese de que o sentido de


“self” têm um precedente biológico pré-consciente, denominado por ele enquanto
proto-self, sendo estruturado a partir de “um conjunto coerente de padrões neurais que
mapeiam, a cada momento, o estado da estrutura física do organismo nas suas
numerosas dimensões” (p. 201).
Também devemos mencionar todas as contribuições para a psicologia do
desenvolvimento, oferecidas pelo psicólogo e epistemólogo suiço Jean Piaget (1970,
1971, 1978, 1990, 1996). De acordo com as concepções básicas do construtivismo
piagetiano, os processo cognitivos superiores são produtos de sucessivas
transformações de “esquemas de ação” originadas de uma etapa sensório-motora.
Nestes termos, consideramos que o processo elaborativo só pode ser efetuado, em
toda sua amplitude, enquanto uma elaboração psicossômica4.
b) Também observamos que uma contextualização estritamente psíquica dos
processos elaborativos, não releva devidamente a complexidade deste processo. Como
um segundo passo em direção ao alargamento conceitual do termo, aceitamos a
relação mente/corpo enquanto uma díade retroalimentada, característica esta
intrínseca dos sistemas complexos5. Devemos considerar a complexidade de um

4
- Guardando as devidas proporções quanto ramificação conceitual que está implicada no termo
“psicossomática” (DEJOURS, 1988; JEAMMET, 1989; MELLO-FILHO, 1986; MACDOUGALL, 1989;
WINNICOTT, 1978), adotaremos em alguns pontos de nosso estudo a sobreposição dos termos
“psicossomático” e “psicossômico”.
5
- Segundo Mariotti (2000, p. 96), um sistema complexo pode ser caracterizado, introdutoriamente, como:
“Segundo a ótica da complexidade, o mundo natural é constituído de opostos ao mesmo tempo antagônicos e
complementares; toda ação implica um feedback; todo feedback resulta em novas ações; vivemos em círculos
sistêmicos e dinâmicos de feedback, e não em linhas estáticas de causa-efeito imediato; por isso, temos
responsabilidade em tudo o que influenciamos; o feedback pode surgir bem longe da ação inicial, em termos
de tempo e espaço; todo sistema reage segundo a sua estrutura; a estrutura de um sistema muda

7
sistema, seja psicossômico ou social, enquanto manifestações das mais diversas
ordens que apontam para a vida cotidiana, se referindo à multiplicidade de
entrelaçamentos dos fenômenos que nos cercam. Compreender este movimento
requer, necessariamente, uma nova aproximação epistemológica que ultrapasse regras
simplificadoras, típicas de explicações que se amparam na díade causa-efeito e,
portanto, que enrijecem a complexidade humana. Neste contexto, aceitamos o
trabalho elaborativo imerso em múltiplas interações e retroações, e que este processo
não se inscreve em causalidades lineares, mas sim em recursividades. Para se
entender o termo elaboração segundo a ótica da complexidade é necessário, como nos
alerta Morin (2003), darmos conta de que quando dizemos: “é complexo”, não
estamos dando uma explicação, mas sim assinalando uma dificuldade em se abrir
mecanicamente todas as portas explicativas. Pensamos que a clínica psicoterápica de
alinhamento pós-moderno se inscreve epistemologicamente em um movimento
intrinsecamente construtivista. Propomos então, neste segundo momento, uma re-
significação do termo. Quando nos referirmos ao processo elaborativo, nos
remeteremos necessariamente a uma elaboração complexa, a qual, logicamente,
engloba os aspectos somáticos deste processo6. Seguramente, nos empenharemos em
introduzir adequadamente a dimensão somática do processo elaborativo para que
possamos, gradualmente, apresentarmos outros elementos constitutivos da
complexidade deste processo. Estes dois itens serão centrais enquanto vetores
reflexivos para um alargamento compreensivo de nosso objeto de estudo.

A epistemologia, em suas mais diversas contextualizações, se propõe a tratar do


conhecimento tanto em seus aspectos fundamentais quanto em seus complexos

continuamente, mas não a sua organização; os resultados nem sempre são proporcionais aos esforços iniciais;
os sistemas funcionam melhor por meio de suas ligações mais frágeis; uma parte só pode ser definida como
tal em relação a um todo; nunca se pode fazer uma coisa isolada; não há fenômenos de causa única no mundo
natural; as propriedades emergentes de um sistema não são redutíveis aos seus componentes; é impossível
pensar num sistema sem pensar em seu contexto (seu ambiente)”.
6
- A princípio, pode se considerar que estamos sendo redundantes ao separar o somático do complexo.
Estamos cientes que ao fazermos uma leitura do fenômeno humano a partir do paradigma da complexidade
estamos nos referindo, necessariamente, ao campo somático. Mas como bem nos lembra Edgar Morin (1999),
quando nos referimos à complexidade não estamos dando, a princípio, uma explicação, mas sim ressaltando
uma profundidade intrínseca a esta abordagem. Cabe-nos então explicitar nossos “recortes” quanto a um
aprofundamento desta complexidade.

8
desdobramentos e influências. Todas as questões metodológicas e teóricas envolvidas na
construção ou na “solução” de problemas que incidem na investigação científica foram
relevadas, preponderantemente, como objeto de estudo da Filosofia ou, mais
especificamente, por este importante ramo da Filosofia. Mas a partir do século XIX, as
preocupações sobre a gênese e a construção do conhecimento tornaram-se objeto de
pesquisa de outras disciplinas, o que podemos considerar como “epistemologias regionais”
(BUNGE, 1980, p. 16). Segundo Bunge, a epistemologia da psicologia trataria, dentre
outras questões, das diversas conceituações e interrogações do que viria a ser a mente em
suas diversas relações, sejam elas indicadores fisiológicos ou condutivos. Podemos
considerar este processo de “regionalização” da epistemologia como algo inevitável, caso
consideremos que as novas e diversas ramificações disciplinares, que despontavam no final
do século XIX, requisitavam formalmente parâmetros epistemológicos que delimitassem
sua abrangência operacional.
Logo, poderemos considerar a epistemologia genética de Jean Piaget como uma
destas construções, decorrente deste processo histórico de regionalização da epistemologia
e, em última instância, como uma reação ao tipo de “especulação pura” por muito da qual
se conhecem apenas os estados superiores do conhecimento. Ora, o mérito de Piaget reside
exatamente em ter situado a epistemologia no campo da experiência. Em outros termos, o
método genético “equivale a estudar os conhecimentos em função de sua construção real,
ou psicológica, e a considerar todo conhecimento como relativo a um certo nível de
mecanismo desta construção”(DOLLE, 1981, p. 45).
Segundo um postulado de Piaget (1978), os fenômenos humanos são biológicos em
suas raízes, sociais em seus fins e mentais em seus meios. A teoria piagetina, em toda sua
envergadura, já forneceu e continua fornecendo prolífico material de estudo e pesquisa para
as mais diversas áreas do conhecimento, seja ao se fazer uma crítica a esta teoria, seja por
reorganizá-la e aplicá-la a partir de propostas inter e transdisciplinares. Seguramente,
aproveitaremos inúmeros pontos do pensamento piagetiano no fortalecimento de nossa
compreensão do processo elaborativo. Todavia, nesse momento, o que pretendemos com
essa ínfima introdução à teoria genética piagetiana é apenas fornecer os elementos
fundamentais para uma nova aproximação conceitual do termo “elaboração”. Ora, da
mesma forma que Piaget considerou a epistemologia filosófica como uma aproximação

9
“final” no estudo do conhecimento, consideraremos o processo elaborativo na clínica
apenas como uma etapa sui generis do ininterrupto processo de aquisição, organização e
“elaboração” empreendido pelo aparelho cognitivo-afetivo. Em outros termos, o contexto
clínico será aquele que, imerso na produtiva “artificialidade” técnica, propiciará outras
variações do ato de se elaborar. Sendo assim, para que se cumpram nossas intenções de
situar o processo elaborativo a partir de uma mirada transdisciplinar, devemos considerá-lo
em sua “gênese”. Isto implica em algumas interrogações fundamentais:

a) Já que também estamos considerando como “elaboração” o processo de


organização e reorganização cognitiva que todo ser humano experimenta na vida, e
não apenas o “trabalho elaborativo” feito na clínica, isso implicaria em
reorganizações conceituais?
b) Seria sensato considerarmos que os traços e características fundamentais de nosso
“proceder elaborativo” estão imersos em nossa constituição-construção filo e
ontogenética?
c) Sendo assim, estes fatores demarcariam as possibilidades históricas essenciais dos
organismos em sua busca de adaptação? Por sua vez, seria decorrente da natureza
qualitativa de seus acoplamentos estruturais? Será de acordo com estas premissas
básicas que avançaremos na compreensão das possíveis recursões entre fatores inatos
e adquiridos.
d) O “ato de elaborar” deve se referir, exclusivamente, a conteúdos emocionais
traumáticos passíveis de serem reorganizados? Ou será que todo o processo evolutivo
e operacional do ser humano, seja ele: sensório-motor, pré-simbólico, simbólico ou
proposicional tende a ser configurado em contínuo processo elaborativo? Somente a
partir da compreensão dos sucessivos desdobramentos elaborativos do complexo
processo de desenvolvimento humano, poderemos propor algumas questões que nos
auxiliarão quanto ao entendimento dos fatores que contribuem para um processo de
adoecimento.
e) Logo, seria sensato propor que o “ato de elaborar” insere-se como um dos fatores
que possibilitam a construção dos processos cognitivo-afetivos em geral, e faz parte
de um amplo processo de desenvolvimento humano?

10
f) Nesse sentido, o processo elaborativo na clínica deve ser considerado sempre a
partir desta história de sucessivas construções cognitivas, de suas “ancoragens”
psicossomatopatológicas, assim como de suas características constitutivas, as quais
demarcam uma “singularidade” intrínseca a todo e qualquer processo elaborativo?
g) Por fim, para compreendermos um pouco mais sobre processo elaborativo, em sua
ampla envergadura, devemos inseri-lo em um contexto epistemológico complexo?

Caso consideremos o processo elaborativo estritamente enquanto uma etapa do


processo psicoterápico, poderíamos estender o uso deste termo para todas as correntes e
escolas da psicologia clínica7. Nesse sentido, seria um projeto de extrema pretensão e,
acima de tudo, destituído dos propósitos metodológicos que delimitam a produção de uma
tese, catalogarmos todas as atribuições e contribuições quanto à definição do termo assim
como empreendermos um exaustivo levantamento de técnicas que visam facilitar e otimizar
o trabalho elaborativo. Será mais proveitoso e, sobretudo, academicamente viável,
introduzirmos nossas considerações teóricas e técnicas sobre o complexo conceito de
elaboração.
Como já nos posicionamos, o processo elaborativo deve ser compreendido não só a
partir de seus aspectos mentais e representativos, mas também de acordo com seus
substratos somáticos. Ao considerarmos soma e psique enquanto estruturas que se explicam
recursivamente, estamos aptos a introduzir uma visão do processo elaborativo que se
inscreva em uma complexidade sistêmica. Neste contexto, devemos voltar nossa atenção
para os sucessivos desdobramentos do desenvolvimento cognitivo-afetivo humano para
que, então, possamos introduzir algumas propostas que nos auxiliarão a configurar nossa
compreensão do processo elaborativo.
A título de enriquecimento e fortalecimento de nossa intenção em considerar
inicialmente os aspectos biológicos da cognição, apresentaremos algumas reflexões sobre o
longo processo de descrédito, abandono e adoecimento da “corporeidade ocidental”.

7
- Também de acordo com Grandesso (2000), “todas as terapias, mesmo não explicitando isso, atuam na
reconstrução dos significados” (p. 33).

11
1.1 – O “corpo traído” – Algumas reflexões sobre o
decaimento da corporeidade na cultura ocidental

É curioso, e um tanto estarrecedor, observarmos o extenso descaso quanto a


fundamental importância de se considerar, inicialmente, qualquer tipo de abordagem
psicológica a partir de nossa matriz biológica. Ora, porque? Simplesmente por que somos
corporeidade na mais profunda definição de nosso ser. Mas não sejamos ingênuos. Este
proceder diante à corporeidade, lança suas raízes há mais de 2300 anos de história da
civilização ocidental. Suspeitamos que este seria um dos elementos contraídos na transição
da “filosofia da natureza” (cosmológica), ou o que se nomeia enquanto período “pré-
socrático”, para o que ficou considerado como uma “filosofia antropo-social”, proposta
inicialmente por Sócrates e posteriormente consolidada por Platão. Na filosofia socrática, o
homem, e não mais a physis, seria o vetor para o entendimento do ser. É curioso
observarmos que os gregos, ao realizarem esta transição ao antropológico, passaram a
relegar a um segundo plano os atributos assim chamados “naturais”, ou seja, nossa
dimensão instintiva e orgânica. Enfim, ao jogarem fora a água do banho, também jogaram
fora o bebê. Vejamos mais detalhadamente esta nevrálgica questão.
Para o mundo grego, a hipervalorização da mente e do espírito implicava em uma
depreciação dos instintos. Logicamente, a conotação depreciatória não consistia na
maldição do pecado ou, como diria Agostinho de Hipona, na transmissão do pecado
original. O “pessimismo corporal grego” (BROWN, 1990), ligado à idéia de contenção,
derivava basicamente de certas técnicas e posturas filosóficas que almejavam proporcionar
maior controle da vida instintiva no intuito de se obter “elevação” espiritual. Também
derivavam de considerações médicas da época, pois os homens, segundo Pitágoras, eram
prejudicados pelas práticas sexuais exercidas em “tempos inadequados”. Acompanhando
essa forma de pensamento, ainda podemos citar Xenofonte, Platão, Aristóteles, Hipócrates

12
e os estóicos. Todos valorizavam as técnicas de continência e controle das atividades
orgânicas, para que se prevalecesse o domínio da mente sobre o corpo.
O pensamento platônico consolidou as tendências já existentes no pensamento
pitagórico para uma secção entre mente e corpo, delineando determinantemente os
contornos da metafísica clássica, medieval e moderna. Foi oportunamente aproveitada pelo
cristianismo e, neste sentido, permeou quase toda a história da cultura ocidental. No Fédon,
Platão (1999) expõe suas idéias sobre a alma, a qual também deveria ser compreendida
como princípio de conhecimento. As almas pertencem ao “mundo inteligível” ou “mundo
das idéias” (real, imutável, eterno). As idéias teriam, por sua vez, uma realidade objetiva,
substancial, e seriam os modelos arquetípicos de todas as coisas que existem no “mundo
sensível”, com base nas quais as coisas foram criadas ou tendem a ser realizadas. Os
corpos, por sua vez, pertenceriam ao “mundo sensível” ou “físico” (mutável, ilusório). As
coisas que existem neste mundo seriam mais ou menos perfeitas, conforme a sua
semelhança com os respectivos modelos.
De acordo com a metafísica platônica, a dimensão corpórea deveria ser considerada
apenas enquanto atributo imperfeito e aprisionado numa realidade espaço-temporal. Neste
contexto, o corpo, enquanto mero utensílio, servia apenas como veículo de uma sublime
alma imortal. Platão (1999), em sua metafísica, defendia a tese de que a alma imortal
residiria na cabeça (mente), e uma segunda alma, mortal, residiria no tronco. Por sua vez,
esta alma mortal se subdividiria em duas, sendo que as emoções e virtudes consideradas
nobres se localizariam no peito, e as emoções mais “baixas” e viscerais se estabeleceriam
no ventre. Para manter os cidadãos sob um controle otimizante, e distantes de seus impulsos
mais “viscerais”, implantar-se-ia uma tirania aristocrática, a qual Platão acreditava ser ideal
na defesa e proteção da moralidade e da virtude, sendo que estas prevaleceriam sobre os
mal-falados desejos carnais.
Estas considerações nos levam a propor que foi através da filosofia platônica que seria
lançada, de forma mais elaborada, a base “racional” de uma já crescente secção entre
corpo/mente. As sensações, os sentidos e os prazeres mundanos seriam questões
secundárias diante de um mundo idealizado e habitado por seres “perfeitos” e “acabados”.
Posteriormente, Aristóteles (1988) viria a reagir contra esta separação entre corpo e alma,
defendendo a tese de que é somente no corpo enquanto possibilidade que se dá à

13
inteligência enquanto causa do conhecimento. Como propôs Aristóteles, sem os sentidos
não haveria entendimento.
Como já acrescentamos, também o estoicismo, a maior escola de filosofia da
Antigüidade, foi considerado como uma corrente severamente intolerante com o corpo e,
em última instância, com os prazeres sensuais (BROWN, 1990). Logicamente, no decorrer
da consolidação do cristianismo, esses pressupostos estóicos foram usados com freqüência
na busca de “elevação espiritual” e na sustentação de uma doutrina ascética e rigorosa para
com os “prazeres da carne”. É interessante percebermos que os instintos sexuais,
biológicos por natureza, embora manipulados pela cultura, já eram destituídos de sua
função erógena através de uma enganosa suposição de que, reprimindo-se a sexualidade,
alcançar-se-ia maior elevação do espírito. No cristianismo, isso apenas chegou ao ápice.
Também devemos estar cientes que a metafísica racionalista cartesiana, retratada
magnanimamente na célebre máxima cógito, ergo sum, e com sua conformação do ser
enquanto res-cogitans e res-extensa, deve ser considerada como produto intelectual tardio
da filosofia antiga e medieval e, em âmbitos gerais, de uma cultura ocidental quase
totalmente cristianizada. Foi sobretudo na filosofia de Friedrich Nietzsche que
observaremos um esforço intelectual articulado e em busca de um resgate de nossas
dimensões “orgiásticas” e “dionisíacas”. Segundo Nietzsche (1996), este deveria ser o
ponto de partida para qualquer historiador da moral, ou seja, deveria se perscrutar a
genealogia da moral munido de um “espírito histórico”. Isto subentendia ir além das meras
aparências do que a moral dominante considerava como virtude, ou do que viria a ser
considerado como “bom” ou “mau”. Nesta linha, Nietzsche argumentou que o cristianismo
nasceu imerso na opressão do povo judeu e no ódio frente às classes dominantes, ainda que
trouxesse as mensagens de paz e bem aventurança do Messias. Mas para Nietzsche (1996),
este novo domínio da pureza, da “luz sublime”, perseguiu os mesmos fins que o ódio, pois
nasceu de um povo imerso em um profundo rancor. A ideologia institucionalizada da
cristandade assumiu, gradativamente, o lugar dos antigos poderosos: O cordeiro
transformou-se em ave de rapina. Nietzsche argumentava, já no século XIX, que a
cristandade abasteceu-se de uma crueldade “espiritualizada”, e que sem ela não haveria
gozo. Neste contexto, o castigo era uma festa e, segundo suas colocações, o homem cristão
necessitava ver seu semelhante sofrer. Ao negar sua corporeidade, seus odores, sua

14
procedência via útero e canal vaginal, sua sexualidade, os cristãos ascetas se martirizavam
no “lodaçal” da vida terrena, além de já nascerem contraindo o pecado original. Esta
profunda negação do corpo e da sexualidade foi uma herança religiosa judaica, daquele
Deus masculinizado, beligerante e punitivo, e que tanto influenciou o imaginário cristão.
Para Nietzsche (1996), a origem da “má consciência” se encontrava nos atos repressores
dos instintos humanos, que foram defendidos indiscriminadamente pelas instituições
judaicas e, posteriormente, pelas instituições cristãs. Vejamos uma de suas colocações:

“Acerca desta medicina sacerdotal pululam comentários. Quem ousaria pretender


que tamanha exaltação do sentimento, ainda revestido dos nomes mais santos, fosse
nunca útil ao enfermo? Antes de tudo, seria preciso convir no sentido da palavra
“útil”. Quer dizer que tal terapêutica fez o homem melhor? Não direi eu ao
contrário; mas acrescentarei que, para mim, “melhorar” significa “domesticar”,
“debilitar”, “desalentar”, “refinar”, “abrandar” (...) de modo que melhoria consiste
no aumento da doença (...) em resumo, o ideal ascético e o seu culto da moral
sublime, esta sistematização engenhosa e ousada de tudo o que tende à exaltação do
sentimento, exercida, sob máscaras de um fim sagrado, está escrita com caracteres
terríveis em toda a história da humanidade” (NIETZSCHE, 1996, p. 360).

Nietzsche se antecipou a Freud ao identificar a origem da “má consciência” nos atos


repressivos dos instintos. Enfatizou uma “deslealdade” subjacente perante os instintos, tão
inerente aos contornos que o cristianismo asceta incorporou em suas práticas socioculturais.
Este “cristianismo” sempre lançou mão da fúria que espreitava e sempre espreitou as
“dóceis almas”, direcionando-as para ideais que, supostamente, consideravam como “bons”
e moralmente corretos. Para isto, basta recordarmos que a Igreja patrocinou e incentivou as
barbaridades das cruzadas, dos tribunais da “Santa Inquisição”, da caça às “bruxas”, de
todas as atrocidades cometidas em nome de uma suposta colonização das Américas, enfim,
do martírio impiedoso que sofreram as minorias (hereges, judeus, homossexuais,
prostitutas, índios escravizados, doentes mentais e leprosos) da Idade Média e Moderna.
Este tema nos é velho conhecido. Todos sabemos das atrocidades supostamente
“moralizantes” defendidas pelas instituições religiosas cristãs, sejam elas católicas ou
protestantes.
Ainda que acreditemos ser um tema fascinante e de máxima importância histórica,
filosófica e, logicamente, para a psicologia, não nos adentraremos demasiadamente nestas
reflexões quanto às origens e conseqüente obscurecimento de nossas dimensões orgânicas.

15
Contudo, devemos acrescentar que esta negação do corpo incidiu diretamente na
desvalorização do feminino, da mulher, da sexualidade e, como propormos, solapou as
possibilidades de se considerar recursivamente a complexidade do funcionamento
cognitivo-afetivo. Sendo assim, também consideramos que todos estes desdobramentos
culturais influenciaram consideravelmente os “primeiros passos” da Psicologia enquanto
disciplina “autônoma”. Será na reflexão de algumas destas características que
direcionaremos nossa atenção neste momento.

1.2 – Algumas considerações sobre o corpo na Psicologia do


século XIX e início do século XX

Descartes já havia sugerido que uma substância material sutil – os “espíritos


animais”– transmitia influências da mente ao corpo, propondo um peculiar
“interacionismo” entre mente/corpo. Todavia, Descartes nunca deixou de considerar o
corpo enquanto mera extensão de uma substância pensante8. O mecanicismo cartesiano,
enquanto um dos típicos projetos da modernidade, delineou decisivamente o panorama dos
programas de assistência à saúde no Ocidente. Forneceu os fundamentos dualistas para um
modelo epistemológico que colocava de um lado os médicos, que tratavam apenas do corpo
sem considerarem os aspectos psíquicos da doença e, por sua vez, os profissionais das áreas
psi, que enfatizavam e se preocupavam exclusivamente com os estados mentais e
emocionais enquanto fatores de desorganização do comportamento. Colocamos os verbos
no passado pois observamos nas últimas décadas uma forte oposição quanto à visão
separativista para um entendimento do “funcionamento humano”, tanto em sua dimensão
estruturante quanto nas práticas que se propõe a resgatar os organismos enfermos. As
propostas interdisciplinares estão à mão para aqueles que conseguem romper com a

8
- Por outro lado, a neurobiologia contemporâna vem refutando contundentemente a separatividade entre
razão e emoção. Segundo Antônio R. Damásio (2004), “A aparelhagem da racionalidade, tradicionalmente
considerada neocortical, não parece funcionar sem a aparelhagem da regulação biológica, considerada
subcortical. Parece que a natureza criou o instrumento da racionalidade não apenas por cima do instrumento
de regulação biológica, mas também a partir dele e com ele” (p. 157).

16
preguiça intelectual de compartimentar o humano apenas por um recorte disciplinar.
Todavia, também devemos alertar o leitor que, embora à mão, os projetos interdisciplinares
são exaustivamente mais abordados enquanto temas de debate do que enquanto uma
pragmática institucional. Basta ver o projeto de lei aprovado pelo Senado onde se avaliza
uma suposta autoridade da classe médica sobre as outras áreas disciplinares que também
atuam na saúde.
A psicologia, desde seu nascimento, viveu de outras ciências e, para ser mais exato,
dependia das amplas bases teóricas fornecidas pela filosofia, pela física e pela fisiologia
para a construção de seu objeto de estudo. Observou-se de início o que Figueiredo (1997)
considerou como um atomismo ou mecanicismo intrínseco aos pesquisadores desta
psicologia nascente. Esta matriz orientava o pesquisador para a procura de relações
deterministas ou probabilísticas, segundo uma direção unilinear e direcional de causalidade.
O real era elemento que, em combinações diferentes, “causava” mecanicamente os
fenômenos complexos, de natureza derivada. Logicamente, teremos como pontos negativos
desta matriz o “aprisionamento” do sujeito e uma continuidade das já consideradas
disjunções mente-corpo, preconizadas pelo pensamento cartesiano.
Neste proceder diante do fenômeno humano vê-se uma continuação da tradição
fisiológica e anatômica que tinha como tema a atividade reflexa involuntária. Como um dos
principais representantes desta matriz, Wilhelm Wundt recorria aos métodos experimentais
das ciências naturais, particularmente às técnicas usadas pelos fisiologistas, para adaptar os
seus métodos científicos de investigação aos objetivos da psicologia (FIGUEIREDO,
1997). Desta forma, a fisiologia e a filosofia ajudaram a moldar tanto o objeto de estudo da
nova ciência com os seus métodos de investigação9. Os estudos de Wundt abrangeram os
domínios da sensação, percepção, atenção, sentimentos, reação e associação e, com todas
estas contribuições, Wundt foi considerado por muitos o "pai da psicologia experimental".
Todavia, Wundt considerava mente e corpo sistemas distintos e independentes, podendo-se
estudá-los em si mesmos. Assim, evitou discussões sobre a “imortalidade da alma” e sua
relação com a finitude do corpo. Segundo Figueiredo (1997), “a orientação elementarista
encontrou seu ponto culminante na obra filosófico-psicológica do físico E. Mach e na obra

9
- O método de “introspecção” proposto por Wundt veio da física, onde tinha sido utilizado para estudar a luz
e o som. Também encontraremos outros elementos metodológicos na fisiologia, em que fora aplicado ao
estudo dos órgãos do sentidos.

17
psicológica-experimental de um discípulo inglês de Wundt, Edward B. Titchener” (p.66).
Este movimento foi duramente criticado por seu artificialismo, devido à sua tentativa de
analisar os processos conscientes através de sua decomposição em elementos. Os críticos,
sobretudo os teóricos da Gestalt, alegaram que a totalidade de uma experiência não pode
ser recuperada por nenhuma associação das suas partes elementares. Para estes críticos, a
experiência não ocorre em termos de sensações, imagens ou estados afetivos, mas em
totalidades unificadas. Algo da experiência consciente é inevitavelmente perdido em
qualquer esforço artificial de analisá-la e a Gestalt fez uso desta crítica para fortalecer o seu
movimento.
Como herdeiro direto do associacionismo de Thorndike e Pavlov, também
consideramos que o behaviorismo de Watson encontrou fortes influências no mecanicismo.
Fundado em 1913, sua originalidade não se deu tanto pelas descobertas, mas sim pela
eliminação de métodos que não se adequavam ao compacto modelo de estímulo e respostas
(E-R). Em outros termos, esta teoria consistia na aplicação direta da psicologia animal,
proposta inicialmente por Thorndike e Pavlov, ao comportamento humano. Mais uma vez,
a psicologia como foi vista pelos comportamentalistas, era apenas um ramo puramente
objetivo e experimental da ciência natural. Sua meta era prever e controlar o
comportamento, separando o sujeito do objeto (HEIDBREDER, 1969; SCHULTZ, 1975).
Podemos ressaltar que o “elemento de fundo” que percorre esta breve análise das
principais escolas da psicologia do século XIX e início do século XX é o mecanicismo.
Todavia, devemos mencionar que o movimento funcionalista americano, preconizado por
William James e Dewey, já apresentava fortes reações a estas abordagens, considerando-as
na maior parte como destituídas de uma unidade por negarem os aspectos funcionais10 e,
conseqüentemente, biológicos. Mesmo assim, devemos demarcar o aspecto estritamente
pragmático desta reação funcionalista, o que caracterizava o próprio zeitgeist americano.
Também devemos mencionar os esforços da fenomenologia, primeiramente com Husserl, e

10
- Uma das maiores contribuições de William James foi a sua Teoria das Emoções (James-Langue).
Supunha-se que a experiência subjetiva de um estado emocional precede a expressão ou a ação corporal
física; por exemplo, se vemos um urso assustamo-nos e fugimos, logo o medo surge antes da reação corporal
de fuga. James inverte esta noção, afirmando que o despertar de uma resposta física precede o surgimento da
emoção, especialmente nas emoções que designou de "mais rudes" como o medo, a raiva, a angústia e o amor.
De acordo com James, vemos o urso, fugimos, e então temos medo. Para validar a sua teoria, James recorreu
à observação introspectiva de que, se as mudanças corporais como o aumento dos batimentos cardíacos, a
aceleração da respiração e a tensão muscular não ocorressem, não haveria emoção.

18
do movimento gestaltista, preconizado por Max Wertheimer, Wolfgang Köhler, Kurt
Koffka. Tanto Husserl quanto os teóricos da Gestalt reagiram contra esta concepção
atomista, estruturalista e associacionista, invertendo o processo explicativo. Enquanto estas
escolas partiam das sensações elementares para construir as percepções, os gestaltistas
consideravam as estruturas das formas, defendendo a tese de que nós percebemos conjuntos
organizados em totalidades (HEIDBREDER, 1969; SCHULTZ, 1975). A teoria da gestalt
considerou a percepção como um todo, e teve que partir deste todo para explicar as partes,
enquanto os estruturalistas partiam das partes para explicar o todo11.
Mas também observamos que, mesmo ao “inserir” a corporeidade enquanto elemento
constitutivo da gestalt humana, estas escolas não se aprofundaram, de fato, na importância
crucial de se considerar os fatores somáticos enquanto vetores primordiais para o estudo
dos processos cognitivos e, especificamente, no campo da “psicossomatopatologia”12. De
fato, só iremos usufruir de tal análise nos estudos iniciais de Freud, enquanto psicanalista, e
nos posteriores aprofundamentos de Wilhelm Reich.

1.2.1 – Freud e o abandono do “ego-corporal”

Como já apresentamos, a(s) psicanálise(s) se preocupa(m) fundamentalmente com os


fenômenos psíquicos. Curiosamente, Freud iniciou seus estudos com Charcot investigando
os funcionamentos somáticos “anormais”. Estes problemas compunham: a histeria, a
neurose de ansiedade, a neurastenia e o comportamento obsessivo-compulsivo. Como nos
informam os bons estudos biográficos (GAY, 1988), Freud ficou, inicialmente, bastante
absorvido pelo conceito de energia física. Além de suas pesquisas em zoologia com Brüke,
e de ter despontado internacionalmente enquanto um eminente neurofisiologista,
aprofundou nos estudos de Johannes Müller e Helmholtz, que haviam aplicado o princípio

11
- Os teóricos da Gestalt defendiam o princípio do isomorfismo, ou seja, deveria ser considerada uma
correspondência entre a experiência psicológica e a experiência cerebral subjacente. Este princípio já demarca
uma importante contribuição para uma unificação do campo mental e de seus correlatos neurológicos.
12
- Este é um termo o qual o leitor irá se deparar algumas vezes no decorrer deste estudo. É um neologismo
que sugerimos e que visa suprir a lacuna que a nomenclatura “psicopatologia” não cumpre, ou seja, inserir de
fato a dimensão somática no contexto de uma estrutura “psicopatológica”.

19
da conservação da energia à fisiologia. Segundo Boadella (1985), Freud chegou a visualizar
essa excitação enquanto:

“capaz de aumentar e diminuir, deslocar e descarregar, e que se estende através de


traços de memória de uma idéia como uma carga elétrica na superfície do corpo.
Podemos aplicar esta hipótese no mesmo sentido que o físico se utiliza da
concepção de corrente elétrica” (p. 18).

Ao aprofundar nos estudos da “neurose de angústia” em 1893, Freud considerou que


este distúrbio estava associado intrinsecamente com a qualidade da vida sexual ou, em
outros termos, com todo o repertório de frustrações que poderiam estar presentes na vida
sexual daquele que padecia de tal enfermidade. Estes estudos vieram a ser corroborados, já
que Freud veio a afirmar em 1894 que a carga elétrica, conceituada por ele como “libido”,
não se concentrava somente nas genitálias, mas se deslocava e se concentrava em outras
zonas erógenas.
Segundo Alexander Lowen (1977), Freud definiu um dos aspectos centrais da
sintomatologia histérica de acordo com “a capacidade psicofísica de transmutar grandes
quantidades de excitação em intervenção somática” (p. 35). Também acrescentou que os
sintomas representavam uma forma anormal de descarga para determinadas quantidades de
excitação que não haviam sido descarregadas de outro modo. Logicamente, estes aportes se
referiam à teoria da libido em suas primeiras versões. Freud ao considerar que o ego é antes
de tudo e principalmente um ego corporal, indicou a possibilidade de se encontrar as
respostas para formação do ego no campo da biologia.
Segundo Boadella (1985), Wilhelm Reich veio a considerar a “teoria da libido como a
energia viva da psicanálise” (p.19). Fazemos esta menção porque, como se percebe na
história subseqüente da psicanálise, toda esta ênfase atribuída aos aspectos psicofísicos da
energia libidinal foi sendo relegada ao descaso tanto por Freud quanto por grande parte de
seus seguidores. Como acrescenta Boadella (1985):

“coube a Reich se dedicar a essa teoria inicial, de confirmá-la e de desenvolvê-la; e


utilizá-la como trampolim para seu trabalho posterior (...) A psicanálise e a
economia sexual tomaram direções opostas, uma vez que a primeira passou a não
dar atenção à quantidade emocional e a se concentrar cada vez mais nos conteúdos
da vida psíquica e a se desenvolver em direção a uma psicologia das idéias

20
(psicologia do ego); enquanto que o foco de Reich na quantidade de excitação
deveria levá-lo ao campo da pesquisa da energia física” (p. 19).

Acreditava-se que Reich havia confundido genitalidade com sexualidade, e que


estava “tentando fazer a psicanálise regredir e limitar o conceito de sexualidade ao que
havia existido antes de Freud” (MELLO WAGNER, 1996, p. 61). Segundo Mello Wagner
(1996) “Reich era acusado de genitalizar tudo. Ele, por sua vez, contra-atacava, dizendo
que os analistas estavam alargando em demasia o conceito de sublimação” (p. 62). Estas
posições, de início conciliáveis, se tornaram no decorrer da história da psicanálise e do
consecutivo fundamento da vegetoterapia, questões mutuamente excludentes, já que havia
se estabelecido um profundo fosso entre os aspectos dinâmicos e econômicos da libido.
Não temos a intenção, enquanto proposta central de pesquisa, aprofundar nas
pendências conceituais entre a psicanálise e o pensamento reichiano, assim como de todos
os desdobramentos sucedidos deste nevrálgico ponto teórico13. Seguramente, a direção
tomada por Reich ao considerar, preponderantemente, os aspectos físicos e quantitativos da
energia libidinal, fundamentaria não só a “pedra angular” de seu pensamento mas
ofereceria estímulo necessário para grande parte dos movimentos pós e neo-reichianos.
Estes sucessivos desdobramentos originados das idéias de Reich, os quais consolidaram
definitivamente o campo das práticas corporais em psicologia, teriam pelo menos um ponto
inegavelmente unificante: a base psicossomática enquanto via mestra para o
entendimento da complexidade humana.

Com os modestos limites explicativos que acompanham qualquer aproximação


sucinta e resumida, esperamos apenas ter estimulado no leitor a sensibilidade necessária
para que se considere a importância de uma aproximação inicial dos aspectos biológicos
dos processos cognitivos e, conseqüentemente, para um alargamento compreensivo do
processo elaborativo. Também esperamos ter argumentado suficientemente que neste longo
percurso histórico, observamos uma crescente separatividade mente-corpo a qual pôde ser
encontrada em todos os âmbitos culturais, seja na religião, na filosofia e nas ciências

13
- Segundo Mello Wagner (1996) “mesmo que Reich possa ter exagerado a importância do aspecto
econômico da teoria psicanalítica, e mesmo que se pense que tenha assim desprezado os outros aspectos (o
que não é verdade), sua função foi para seus contemporâneos (e ainda é) a de não permitir que se esqueça que

21
humanas em geral. Em termos mais amplos, podemos dizer que estes também eram os
preceitos da modernidade. Enquanto tradição filosófica, a modernidade instala o “homem”,
confortavelmente, no centro do universo. Mas esta virada antropocentrista renega, como já
apresentamos, a dimensão subjetiva deste “homem”. Os preceitos de objetividade, certeza,
verdade e razão, tão caros à modernidade, não podem conviver, lado a lado, com dimensões
humanas que, por sua natureza própria, contrastam frontalmente estes valores.
Como bem acrescenta Grandesso (2000) as narrativas da modernidade “configuram-
se enquanto metanarrativas cujos temas sustentam a emancipação progressiva da razão e da
liberdade, do trabalho, da tecnociência e, até mesmo da salvação das almas (...)” (p. 49).
Sendo assim, a mente observa o mundo, soberana, desencarnada, “isenta” de conflitos
orgânicos. Mas devemos ressaltar que um movimento contrário à modernidade, em seus
valores instrumentais, foi tomando vulto a partir das reflexões de Schopenhauer e
Nietzsche, gerando um poderoso, ainda que fragmentado, movimento filosófico que viria a
solapar os alicerces da cultura moderna. Em termo gerais, este movimento “contra-cultural”
confronta os critérios epistemológicos de objetividade e realidade e, como desfecho tardio
desta crítica à modernidade, iremos encontrar uma epistemologia que se norteia pela
impugnação da separatividade entre sujeito e objeto, logo, entre mente e corpo. Alguns
autores, que citaremos a seguir, nomeiam esta virada cultural enquanto “pós-moderna”.
Termo complexo, admirado e adotado por uns, denegrido e descartado por outros, deve
retratar, segundo nossas pretensões, uma oportuna e essencial reformulação dos valores
ontológicos e epistemológicos que acompanham a cultura contemporânea e,
especificamente para nós, os valores que permeiam as ciências humanas e biológicas.
Como vimos, a psicologia ao lançar suas raízes em um solo quase que totalmente semeado
por valores da modernidade, arcou com um pesado ônus, levando à fragmentação a
complexidade humana em toda sua envergadura biológica, antropo-sociológica, psíquica e
física. Sendo assim, de acordo com as prementes emergências que se fazem no campo das
ciências humanas e biológicas, devemos apresentar uma epistemologia que seja condizente
com esta complexidade que se evidencia no fenômeno humano. Neste contexto, as
metanarrativas cedem seu lugar para a singularidade dos sistemas observantes e de sua

a origem da libido, tanto quanto da própria teoria psicanalítica, é a sexualidade. Pois, uma vez esquecido isto,
a psicanálise passa a ser uma psicologia como outra qualquer” (p. 67).

22
vertiginosa e oportuna rede de significados. Devemos, contudo, compreender em maiores
detalhes a urgência desta reformulação compreensiva do fenômeno humano para que
possamos aceitar com naturalidade o papel do psicólogo como um agente de
“transformação social para qual contribuem o pessoal, o político e o profissional,
implicando necessariamente uma ética das relações, cujos traços mais significativos são a
consciência da auto-reflexividade” (GRANDESSO, 2000, p. 55). Acreditamos que, ao
empreendermos inicialmente uma consistente reflexão que vise à reintegração dos
elementos somáticos na configuração dos processos cognitivos, estamos contribuindo para
o enriquecimento da uma epistemologia pós-moderna da psicologia.
Como próxima etapa, devemos nos concentrar em apresentar, histórica e
epistemologicamente, porque consideramos fundamental partirmos da unidade mente-corpo
para o delineamento de um contexto pós-moderno na clínica. Esta aproximação nos
oferecerá os elementos necessários para um alargamento compreensivo da complexidade do
processo elaborativo.

2 – Em busca de um contexto psicoterápico pós-


moderno

O absoluto é verdadeiro inimigo do gênero humano.


Friedrich Schlegel

2.1 – Delimitações histórico-filosóficas para uma


fundamentação epistemológica

A importância de se fazer, primeiramente, uma reflexão histórico-filosófica da teoria


da pós-modernidade se fundamenta no papel crucial de se contextualizar e compreender

23
conceitualmente este termo, assim como situá-lo em suas diversas inserções conceituais.
Referente a este conceito devemos discernir, sucintamente, três nomenclaturas envolvendo
o prefixo “pós”: pós-modernidade, pós-modernismo e pensamento pós-moderno. Em uma
primeira aproximação, pós-modernidade faz referência às condições sociais e históricas;
por sua vez, pós-modernismo, refere-se às expressões culturais e estéticas da etapa pós-
moderna; por último, o pensamento pós-moderno refere-se ao discurso filosófico e
científico desta etapa. Nossas opções quanto a uma escolha categorial deste conceito assim
como os atributos e características que consideramos mais relevantes, serão apresentados
paulatinamente no decorrer desta introdução.
Esta tarefa de reflexão conceitual sempre foi bem desempenhada pela filosofia e, até
mesmo poderíamos dizer que, até o século XIX, refletir sobre as teorias do conhecimento
ou sobre as delineações intelectuais que demarcavam um determinado “espírito do tempo”,
eram tarefas preponderantemente filosóficas14. Pensamos que ao se apresentar um quadro
histórico-filosófico coerente sobre a teoria da pós-modernidade, proporcionaremos os
elementos necessários que demarcarão a importância de se contextualizar a clínica
psicológica a partir deste referencial. Conseqüentemente, também esperamos alicerçar as
bases conceituais de nossa reflexão posterior, ou seja, apresentar a relevância
epistemológica de se adotar uma metodologia coerente com os valores referenciados por
este paradigma. Respeitando necessariamente um encadeamento histórico-filosófico,
devemos ter como ponto de partida uma compreensão geral de alguns fatores determinantes
da modernidade assim como contextualizarmos, panoramicamente, os elementos
epistemológicos centrais a este paradigma. Posteriormente, buscaremos fundamentar uma
crítica a estes valores a partir da teoria da pós-modernidade.

2.1.1 - Os referenciais histórico-filosóficos da cultura e da ciência


moderna – Elementos essenciais para uma crítica epistemológica pós-
moderna

14
- Este cenário só veio a se alterar, em parte, com o surgimento das diversas ramificações das ciências
humanas, ocorridas a partir do século XIX.

24
Jürgen Habermas (2000) nos propõe que o conceito de “modernização” consolidou-se
em um processo cumulativo demarcado, sobretudo, pela ascensão da burguesia, na
formação do capital e no desenvolvimento das forças produtivas e do trabalho. Também
observou como fatores delineadores da modernidade a centralização do poder político
estabelecido na formação dos estados nacionais e, conseqüentemente, da expansão da vida
urbana. Estes fatores também contribuíram, em maior ou menor grau, para um crescente
processo de secularização ética e de uma formação escolar formal na Europa. Segundo
Habermas, foi Hegel quem desenvolveu, filosoficamente, um conceito profano e claro de
modernidade15. A grandeza dos tempos modernos demarcou para Hegel a real possibilidade
de uma “subjetividade por meio da liberdade e da reflexão” (HABERMAS, 2000, p. 25), e
que comportaria quatro conotações: o individualismo, o direito a crítica, a autonomia da
ação e, por fim, a filosofia idealista. Estes foram os frutos colhidos da semeadura da
reforma protestante, do iluminismo e da revolução francesa. Seguramente, estes preceitos
também se referem a uma “modernidade científica”, a qual despe a natureza e centraliza o
poder do conhecimento à sistemas e leis objetivas. Especificamente neste contexto,
observa-se o prevalecimento dos conceitos kantianos onde a razão é o supremo tribunal
ante o qual deve se justificar tudo aquilo que, em princípio, reivindica validade.
Sucintamente, podemos considerar “três lógicas” da racionalidade moderna que irão se
desdobrar historicamente: a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a
racionalidade moral-prática da ética e do direito; e a racionalidade cognitivo-instrumental
da ciência e da técnica.
Todavia, logo se apresentaram acusadores que se dirigiam contra uma razão fundada
nos princípios desta subjetividade, pois esta razão - decorrente de uma subjetividade
dilatada em falso absoluto - só denuncia e mina todas as formas abertas de opressão e
exploração, de degradação e alienação, para implantar em seu lugar a dominação inatacável
de sua racionalidade. Segundo estes críticos do idealismo hegeliano, a emancipação da

15
- Fugiria ao escopo teórico deste trabalho aprofundar na complexidade filosófica apresentada por Habermas
quanto à tese hegeliana sobre o conceito de modernidade. Fazemos esta modesta “inserção” meramente para
nos situarmos historicamente e apresentarmos posteriormente o conceito de pós-modernidade. Contudo,
devemos alertar ao leitor que Habermas é um crítico da teoria da pós-modernidade. Segundo Fredric Jameson
(1997), “devemos a Jürgen Habermas essa reversão dramática a essa rearticulação do que resta da afirmação
do valor supremo do moderno, e do repúdio da teoria e da prática do pós-modernismo” (p. 83).

25
individualidade na subjetividade era experimentada como alienação em relação à vida em
comunidade, pois se prendia a um ideal de objetividade inatingível. Foram pelas reflexões
de Nietzsche que ocorreu uma radical alteração do discurso da modernidade e, neste
contexto, buscou-se na arte, em contato com as fontes arcaicas do mito, o elemento
necessário para uma integração social esgotada pela modernidade. Observamos então um
“renascimento” do culto a Dionísio, das dimensões telúricas e orgiásticas do período órfico,
tão severamente reprimidas pelos ideais ascéticos da Igreja e por um racionalismo
intolerante. Na filosofia nietzschiana, o mundo se abre somente no abandono da metafísica
clássica, das normas estereotipadas; quando a dimensão sensória nos surpreende e nos
revela toda amplitude estética da vida. Para se falar do ser, deve-se compreendê-lo
enquanto um “horizonte de eventos” e, como acrescentou Gianni Vattimo (2000),
amparado pela analítica do Dasein heideggeriana, “a ontologia nada mais é que a
interpretação de nossa condição ou situação, já que o ser não é nada fora do seu ‘evento’,
que acontece no seu e nosso historicizar-se” (p. VIII).
O pensamento de Nietzsche antecipou a crítica da razão instrumental de Adorno e
Horkheimer (2002), onde foi questionada a pretensa autoridade dos ideais de objetividade e
positividade ou de um projeto ético/moral que se pretendia universalizante, já proposto por
Augusto Comte (1990). A crítica instrumental, realizada por estes autores, denunciou os
imperativos de autoconservação e dominação em que as ciências também são tragadas e,
por fim, moldadas por uma razão fundamentalmente utilitarista.
Ainda que esta reflexão possa se estender mais profundamente e por outros autores,
pensamos que a crítica da razão instrumental nos proporciona os elementos necessários
para ser nosso “ponto de entrada” para uma breve reflexão sobre a viabilidade teórica da
pós-modernidade. Devemos esclarecer ao leitor que ao optarmos por referenciais
epistemológicos sustentados por uma teoria pós-moderna estamos cientes do terreno
movediço pelo qual nos aventuramos. Todavia, devemos lembrar que, neste contexto, os
estatutos científicos devem ser considerados por critérios consensuais dos experts, e não
como “meta-verdades absolutizantes”. Optamos por este paradigma por nos fornecer a
possibilidade de se negar os limites, as categorias e as reduções impostas pelo pensamento

26
moderno16. Devemos fazer, progressivamente, uma “redução” no campo de nossa análise,
já que nosso objeto de reflexão refere-se, preponderantemente, a uma analise
epistemológica da clínica psicológica e, especificamente, sobre a relevância de adotarmos
uma postura terapêutica referenciada por valores pós-modernos.

2.1.2 – Os referenciais histórico-filosóficos da cultura e da ciência pós-


moderna – Delineando as bases teóricas para um novo paradigma científico

Se a modernidade também pode ser caracterizada pelo processo de industrialização, a


pós-modernidade, por sua vez, se caracteriza por um processo de “fadiga pós-
industrialização”17. Segundo Lyotard (2004), foi a partir da década de 50 que um cenário
pós-moderno delineou seus contornos ao dizer que o “saber científico é uma espécie de
discurso” que versa sobre a linguagem e sobre as inúmeras teorias da informação18.

16
- Para um estudo mais elucidativo deste tema sugerimos: Anderson (1999), Freyre (2001), Lyotard (2004),
Habermas (2000), Jameson (2000), Morin (2002), Rouanet (2000), Santos (2001).
17
- Devemos delimitar, oportunamente, o que almejamos teoricamente quando dizemos que pretendemos nos
referenciar pelo paradigma da pós-modernidade, exatamente por ser um termo que comporta em seu bojo
conceitual uma complexidade caleidoscópica. Deve-se ter claro que ao se buscar referências filosóficas neste
paradigma não temos a intenção exaltá-lo eticamente ou fazermos qualquer tipo de apologia técnica.
Decorrente das profundas críticas às meta-narrativas da modernidade, devemos refletir sobre algumas
propostas intrínsecas a pós-modernidade as quais nos interessam: a tendência a tolerância, o respeito às
diferenças humanas, o pluralismo radical (ou seja, “sem inimigos a derrotar”), pela implementação de práticas
pedagógicas e de pesquisa referenciadas pela transdisciplinaridade e que não cultuam um ideal de “progresso”
da razão. Todavia, como acrescenta Rouanet (1998) devemos estar atentos a outras perspectivas da pós-
modernidade: “O pós-moderno é muito mais a fadiga crepuscular de uma época que parece extinguir-se
ingloriosamente que o hino de júbilo de amanhãs que despontam. À consciência pós-moderna não
corresponde uma realidade pós-moderna. Nesse sentido, ela é um simples mal-estar da modernidade, um
sonho da modernidade. É literalmente, falsa consciência, porque consciência de uma ruptura que não houve,
ao mesmo tempo, é também consciência verdadeira, já que alude, de algum modo, às deformações da
modernidade (...) Na pós-modernidade a perversão e o estresse são sintomas resultados da falta-de-lei, da
falta-de-tempo, e da falta-de-perspectiva de futuro, porque tudo se desmoronou (do muro de Berlin a crença
nos valores e na esperança). Tudo se tornou demasiadamente próximo, promíscuo, sem limites, deixando-se
penetrar por todos os poros e orifícios” (p. 47). Referindo-nos a uma dimensão sócio-econômica da pós-
modernidade, lembremo-nos que a raiz da produção de bens de consumo supérfluos está na transformação de
“necessidades” humanas básicas - alimento, roupas, objetos de uso - em “preferências” humanas - tal alimento
e não outro, tal roupa e não outra, em uma espécie de lógica agressiva da descartabilidade e do obsoletismo,
mote da superindustrialização e da superdistribuição - globalização - de objetos de consumo que caracteriza,
exatamente, esta etapa do capitalismo.
18
- Ainda que passados 25 anos, Lyotard antecipa acertadamente a funesta e perpetuada condição de domínio
dos países assim chamados “desenvolvidos”, exatamente por monopolizarem os meios de informação e da

27
Também sugerimos que este processo teve suas origens nas profundas reformulações
epistemológicas que acompanharam a física, a química, a biologia e as ‘ciências humanas’
já no final século XIX. Podemos demarcar tal transição com o abalo do pilar central da
modernidade e do racionalismo ocidental: a noção de ordem promulgada pela necânica
newtoniana. Com a crise da noção de “ordem”, assistimos a rediscussão da noção de
“desordem”, o que por sua vez torna impossível submeter todos os discursos (ou jogos de
linguagem) à autoridade de um metadiscurso que se pretende à síntese do significante, do
significado e da própria significação, isto é, universal e consistente. Alfred Whitehead
(1987) também já havia sugerido que o cenário pós-moderno se delinearia
fundamentalmente pelo seu caráter informacional, e que a ciência teria a incumbência de
organizar, estocar e distribuir certas informações. Logo, o saber, o know-how, assumiu-se
enquanto força de produção.
Lyotard inicia sua crítica à modernidade por perceber a insustentabilidade dos meta-
relatos legitimadores, pois vivemos em muitas encruzilhadas lingüísticas que não são
necessariamente estáveis; a homogeneidade epistemológica, sustentada por meta-relatos,
pode demarcar mais uma “otimização oportuna” da eficácia científica. Intrínsecas às
propostas metodológicas pós-modernas, estão os “muitos jogos de linguagem diferentes;
trata-se da heterogeneidade dos elementos. Somente darão origem à instituição através de
placas; é o determinismo local” (LYOTARD, 2004, p. XVI)19, e os estatutos científicos
devem ser considerados por critérios consensuais dos experts. Decorrente destes critérios,
seria mais proveitoso para nossos objetivos que considerássemos o paradigma da pós-
modernidade não como uma tendência que deva ser delimitada cronologicamente, mas sim
como um modo de operar. Por não possuir um “ideal cultural” comum e homogêneo,
devemos considerá-lo como um amplo movimento contrário às tradições da modernidade.

produção intelectual como um todo. Também no cenário pós-moderno, as discrepâncias sociais, culturais,
políticas e econômicas se alargam e realimentam negativamente a supremacia dos mais fortes sobre os mais
fracos.
19
- Complementando este comentário, vemos: “Com a ciência pós-moderna, dois novos componentes
aparecem na problemática da legitimação. De início, para responder a questão: como provar a prova?, ou,
mais geralmente: quem decide sobre o que é verdadeiro?, desvia-se da busca metafísica de uma prova
primeira ou de uma autoridade transcendente, reconhece-se que as condições do verdadeiro, isto é, as regras
do jogo da ciência, são imanentes a este jogo, e que elas não podem ser estabelecidas de outro modo a não ser
no seio de um debate já ele mesmo científico, e que não existe outra prova de que as regras sejam boas, senão
o fato delas formarem o consenso dos experts” (p. 54).

28
No campo epistemológico, o sujeito pós-moderno desconfia dos “grandes sistemas
teóricos” ou da “grande idéia” que, no fundo, é de inspiração religiosa. Afinal, são as
religiões que sempre prometem a felicidade; uma “idade de ouro” num tempo futuro. Logo,
o melhor desempenho pode estar incorporando valores utilitaristas típicos de uma razão
instrumental, relegando à marginalidade a intrínseca heterogeneidade dos “jogos do saber”
os quais, por questões próprias, não satisfazem as necessidades selvagens do capitalismo
contemporâneo20. Também pelas leituras de Marcuse (1990), ressalta-se os potenciais
equivocados da técnica e da ciência contemporânea enquanto emancipação sócio-cultural.
Para este autor, os avanços tecnológicos continuam sendo vetores para a repressão das
classes menos favorecidas, demarcando uma continuidade dos valores preconizados pela
modernidade.
Encontramos este “despotismo legitimador” diante do saber/conduta nos mais
diversos setores sociais. Como acrescenta Lyotard (2004), a legitimação é um processo pelo
qual um legislador é autorizado a promulgar alguma lei como norma. Logicamente,
deduzimos que este tipo de legitimação também está inserido nos critérios de julgamento
das produções científicas, já que esta produção está submetida a regras e condições que se
arregimentam institucionalmente. Em última instância, os critérios avaliativos são
simétricos aos códigos valorativos dos legisladores responsáveis pela pertinência ou
consistência interna das produções científicas para que sejam relevantes21. Pode-se concluir
que saber e poder são dois lados de uma mesma moeda, pois quem decide o que é saber, e
quem sabe o que convém decidir?
Quando Wittgeinstein (1988) abandonou suas teses iniciais sobre a linguagem,
apresentadas no Tractatus Logico-Filosoficus, passou então a centralizar sua atenção nos
efeitos do discurso. Segundo Lyotard (2004), algumas destas regras são dignas de menção:

“a) as regras da linguagem não possuem legitimação nelas mesmas, mas constituem
objeto de um contrato ou não entre os jogadores. b) na ausência de regras não existe
jogo, e que a modificação, por mínima que seja, de uma regra, modifica a natureza

20
- Segundo Lyotard (2004), “os jogos de linguagem científicos vão se tornar jogos de ricos, onde os mais
ricos têm mais chances de ter razão. Traça-se uma equação entre riqueza, eficiência e verdade” (p. 81).
21
- Seria no mínimo curiosa uma pesquisa que demonstrasse ampla diversidade valorativa a qual as
produções acadêmicas estariam sujeitas caso fossem avaliadas não somente por uma banca de três (ou cinco)
“legisladores”. Arriscamos em prever que tal análise se depararia mais com conflitos sócio-políticos do que
com problemas intrinsecamente epistemológicos ou metodológicos.

29
do jogo, e que um lance que não satisfaça as regras, não pertence ao jogo definido
por elas. c) todo enunciado deve ser considerado como um ‘lance’, feito um jogo
(p. 75)”.

Segundo estas considerações, seria no mínimo curioso considerarmos a


heterogeneidade dos discursos não enquanto um “jogo de combate” - característica esta tão
proeminente na ciência e na filosofia moderna - mas um jogo onde a diversidade, a
originalidade e a complexidade permitissem resgatar e reinventar o mundo, as falas e, em
um sentido específico, o saber psi em suas muitas encruzilhadas. Ao usarmos o termo
“encruzilhadas” enquanto metáfora, buscamos demarcar a diversidade dos fatores sócio-
culturais que delineiam, na dialeticidade, a construção da subjetividade. Como sugere
Lyotard, a partir de um processo de “atomização social”, nos deparamos com “flexíveis
redes de jogos de linguagem”, que privilegiam as amplitudes dos encontros em todos os
níveis, o que extrapolaria os discursos instituídos e normativos.
O conceito moderno de ciência, delineado inicialmente pela matemática e pela física
sob moldes “duros” e denotativos, regulavam a aceitabilidade de suas leis segundo critérios
rígidos de verdade e falsidade. Como Lyotard (2004) acrescenta, “a verdade do enunciado
e a competência do enunciador são assim submetidas ao assentimento da coletividade de
iguais em competência. É preciso, portanto, formar iguais” (p. 46). Estas dimensões, do
tipo apofânticas, ou seja, de um discurso denotativo que incide binariamente como algo
verdadeiro ou falso, cedem lugar à necessidade de compreensão dos diversos significados e
da relevância de se considerar o campo semântico/narrativo, da conduta sócio-cultural e
tecno-científica22. Também de acordo com E. Husserl (1988), um conceito de verdade,
fenomenologicamente considerado, deve ultrapassar os liames estabelecidos pelos estatutos
científicos das hard sciences, já que a linguagem cotidiana do senso comum não deveria se
remeter, necessariamente, a qualquer conceito matemático ou físico para adquirir
sustentabilidade. Como também acrescenta Dartigues (2003), “a verdade jamais é morta,
isto é, verdade em si ou para ninguém, mas verdade viva, pois possui-se a verdade numa
intencionalidade viva” (p. 83).

22
- A pluralidade dos jogos de linguagem incide nas diversas contextualizações dos enunciados denotativos,
dos enunciados ético-legais, dos enunciados que surgem dos valores sócio-culturais, dos enunciados que
questionam e interrogam as condutas, dos enunciados que avaliam e legislam, dos enunciados pragmáticos,
etc.

30
Em se tratando da psicologia, observa-se que as muitas escolas e correntes, com suas
distintas bases epistemológicas, geralmente não suportam compartilhar as diversas
coerências conceituais que transbordam das inúmeras leituras que permitem a
complexidade humana. Referenciadas pelos critérios epistemológicos da pós-modernidade,
estas escolas e correntes não estariam sujeitas a um isolamento típico das formas binárias
de conhecimento. Em uma contextualização, por assim dizer, pós-moderna da clínica
psicológica, a dimensão narrativa do discurso não se propõe a ser homogeneamente
legitimadora das condutas, mas sim um conjunto de enunciados que devem ser
contextualizados na vivência relacional. A verticalização do conhecimento tampouco teria
sentido, já que o enunciador de um determinado saber científico não deteria para si o
suposto privilégio decorrente da especificidade técnica deste conhecer. Como adverte
Lyotard (2004), a ciência em relação a outras narrativas sociais possibilita outras gradações
de jogos de linguagem, e pensamos que estes seriam fatores fundamentais na prática
clínica. Não devemos nos esquecer dos “jogos de poder” que estão imersos nos papéis
desempenhados pelos “iniciados”, tanto em seu sentido originalmente esotérico/religioso,
quanto em seu sentido análogo, o qual pretendo referenciar o cientista. O saber esotérico,
partilhado pelos “poucos escolhidos”, também pode ser considerado como um “monopólio
simbólico”, e o crente, ou aquele que se submete ao iniciado, deve permanecer em uma
relação socialmente verticalizada e, em muitos sentidos, paralisante. Será que este não seria
o lugar metamorfoseado do moderno técnico em saúde mental, que se eleva em sua “torre
de marfim”, resguardado por uma pretensa superioridade que lhe é creditada
institucionalmente por um imaginário “suposto saber”?
Segundo os pressupostos epistemológicos pós-modernos, o sentido de objetividade é
atingido frontalmente, já que “a verdade” é construída na particularidade de cada encontro.
O termo “verdade” deixa definitivamente de existir enquanto um conceito tipicamente
herdado de uma metafísica clássica para incorporar uma nova contextualização
paradigmática, estabelecida somente em um processo construtivo/relacional. Por isso, o
pós-moderno deve se caracterizar não por se tratar de uma novidade mas, sim, por trazer
uma dissolução nas noções de progresso, história e superação, características estas tão
evidentes na modernidade. A idéia de um processo histórico unitário se dissolve; onde a
história dos eventos, a história dos vencedores, se torna apenas uma história entre outras. A

31
lógica do discurso científico, assim como o saber narrativo, seria norteada pela pragmática
de sua transmissão, o que não implicaria em uma objetivação demarcada por moldes neo-
positivistas, propostos pelo Círculo de Viena no início do século XX. Considerar estas
múltiplas interseções enquanto fragmentações perniciosas do saber científico seria negar o
paradigma da pós-modernidade em toda sua complexa envergadura. Negar as dimensões
compreensivas que emergem da “desordem discursiva”, dos múltiplos horizontes dos jogos
de linguagem, seria querer perpetuar o paradigma de causa/efeito, núcleo central de toda
ciência moderna.
Partindo-se do referencial da pós-modernidade, também podemos considerar que os
campos científicos e suas delimitações disciplinares tornaram-se cada vez mais tênues já no
início do século XX, decorrente de profundas transformações na Física e na Biologia, além
de um espantoso alargamento na produção de conhecimento no campo das ciências
humanas em geral. Ainda que uma conduta inicialmente tímida, a prática da pesquisa sob
moldes inter e transdisciplinares passou a ser um posicionamento cada vez mais necessário,
sobretudo para todos que adotavam uma visão mais sistêmica quanto ao avanço da ciência.
Os limites epistêmicos de cada campo científico passaram a ser cada vez mais
questionados, “invadidos” e remodelados, decorrentes da flexibilidade e da multiplicidade
de linguagens que delineiam as pesquisas interdisciplinares, e que permitem constante
renovação nos arranjos deste “jogo científico”.
Especificamente nos estudos dos processos cognitivos, observou-se a partir da década
de 60 uma expansão vertiginosa de áreas e “sub-áreas” que apresentavam, em diversos
contextos, intrínsecas características interdisciplinares23. De acordo com Howard Gardner
(2003, p. 302), seria tarefa exaustiva, se não impossível, delimitar rigorosamente a Filosofia
da Mente, da Psicologia Cognitiva, da Inteligência Artificial, da Psicolingüística, da
Antropologia e da Neurociência. Esta tarefa se torna hercúlea à medida em que observamos
nestes “jogos de linguagens”, aparentemente delimitados, uma acumulação de
conhecimento onde novas teorias são, em muitas situações, acrescentadas às antigas.
Quando não atingem uma bem sucedida formulação revisionista, as regionalizações dos
avanços técnico/conceituais tornam-se, em inúmeros contextos, neologismos devedores de

23
- Abordaremos, oportunamente, a importância de delimitarmos com mais rigor os termos: interdisciplinar,
multidisciplinar, pluridisciplinar e transdisciplinar.

32
antigas estruturas de conhecimento ou puramente um “jogo semântico” que visa angariar,
injustamente, o status de originalidade. Todavia, não devemos desconsiderar a “ala cética”
de intelectuais e pesquisadores que insistem em preservar o seu campo de estudo
epistemologicamente “asséptico” e particularizado. Ainda que, segundo os moldes
metodológicos inter e transdisciplinares, estes pesquisadores estejam imersos nas limitações
conceituais delimitadas pelo intrínseco estreitamento disciplinar, não devemos menosprezar
os avanços conquistados nestes esforços científicos hiper-especializados. Tampouco
deveríamos requerer com esta proposta de uma clínica referenciada pelos valores da pós-
modernidade o status de originalidade. Bem sabemos que algumas correntes da psicologia
já se “situam” sob estes referenciais, ainda que não desenvolvam, mais pontualmente,
algum tipo de reflexão epistemológica de seu arcabouço teórico.
Por outro lado, estes remodelamentos da prática científica incidem, seguramente,
sobre a forma como utilizamos o conhecimento ou, em outros termos, em sua
aplicabilidade técnica. Isto significa que na prática psicoterápica referenciada pela teoria da
pós-modernidade, a técnica assume um caráter mais “pragmático”. As intervenções na
clínica seriam meros recursos, os quais devem estar sempre contextualizados,
singularizados e, sobretudo, “encarnados” nas aptidões exploradoras e idiossincráticas de
cada profissional. Estes recursos não requerem, obrigatoriamente, uma subordinação
inflexível à determinada corrente. Como bem nos lembra Grandesso (2000), as técnicas e
intervenções terapêuticas apresentam-se mais “como recursos para a exploração e
reconstrução de significados, a partir da compreensão de como as pessoas constroem as
‘verdades’ sobre si mesmas, sobre seus mundos e relacionamentos” (p. 57).
Esta postura a qual nomeamos pós-moderna, norteará nossas reflexões sobre a prática
clínica a partir de nossa constatação de uma intrínseca “imprevisibilidade” na relação
terapeuta/paciente, sempre determinada pelo estado local e contemporâneo de cada
processo. Esta contextualização epistemológica da clínica psicoterápica cumpre apenas o
papel de introduzir o leitor na linha mestra de nosso estudo, ou seja, de compreender a
complexidade do processo elaborativo. Refletir sobre o processo elaborativo a partir deste
referencial histórico-filosófico nos levará a percorrer os meandros conceituais que
delimitam este paradigma científico, como bem acrescenta Lyotard (2004):

33
“Interessando-se pelos indecidíveis, nos limites da precisão do controle, pelos
quanta, pelos conflitos de informação não completa, pelos ‘fracta’, pelas
catástrofes, pelos paradoxos paradigmáticos, a ciência pós-moderna torna a teoria
de sua própria evolução descontínua, catastrófica, não retificável, paradoxal. Muda
o sentido da palavra saber e diz como esta mudança pode se fazer. Produz, não o
conhecido, mas o desconhecido. E sugere um modelo de legitimização que não é de
modo algum o da melhor performance, mas o da diferença compreendida como
paralogia” (p. 108).

A título de ampliação compreensiva e no intuito de proporcionar um quadro sintético


dos contrastes até então sugeridos entre modernidade e pós-modernidade, pensamos ser
oportuno encerrarmos este tópico introdutório com um quadro esquemático que apresenta
algumas categorias preconizadas por estes paradigmas.

Quadro 2.1: Algumas relações entre o paradigma da modernidade e da pós-moderindade


(IRVINE, 2003)

Modernism/Modernity Postmodern/Postmodernity
Suspicion and rejection of Master
Master Narratives and Metanarratives
Narratives; local narratives, ironic
of history, culture and national identity;
deconstruction of master narratives:
myths of cultural and ethnic orgin.
counter-myths of origin.
Faith in "Grand Theory" (totalizing
Rejection of totalizing theories;
explantions in history, science and culture)
pursuit of localizing and contingent
to represent all knowledge and explain
theories.
everything.
Faith in, and myths of, social and
Social and cultural pluralism,
cultural unity, hierarchies of social-class
disunity, unclear bases for
and ethnic/national values, seemingly clear
social/national/ethnic unity.
bases for unity.
Skepticism of progress, anti-
Master narrative of progress through
technology reactions, neo-Luddism; new
science and technology.
age religions.
Sense of fragmentation and
Sense of unified, centered self;
decentered self;
"individualism," unified identity.
multiple, conflicting identities.
Idea of "the family" as central unit of Alternative family units, alternatives
social order: model of the middle-class, to middle-class marriage model, multiple
nuclear family. identities for couplings and childraising.
Subverted order, loss of centralized
Hierarchy, order, centralized control.
control, fragmentation.
Faith and personal investment in big Trust and investment in micropolitics,
politics (Nation-State, party). identity politics, local politics, institutional

34
power struggles.
Root/Depth tropes.
Rhizome/surface tropes.
Faith in "Depth" (meaning, value, content,
Attention to play of surfaces, images,
the signified) over "Surface" (appearances,
signifiers without concern for "Depth".
the superficial, the signifier).
Hyper-reality, image saturation,
simulacra seem more powerful than the
"real"; images and texts with no prior
Faith in the "real" beyond media and
"original".
representations; authenticity of "originals"
"As seen on TV" and "as seen on MTV"
are more powerful than unmediated
experience.
Disruption of the dominance of high
Dichotomy of high and low culture
culture by popular culture;
(official vs. popular culture);
mixing of popular and high cultures, new
imposed consensus that high or official
valuation of pop culture, hybrid cultural
culture is normative and authoritative
forms cancel "high"/"low" categories.
Mass culture, mass consumption, Demassified culture; niche products
mass marketing. and marketing, smaller group identities.
Art as process, performance,
production, intertextuality.
Art as unique object and finished
Art as recycling of culture authenticated by
work authenticated by artist and validated
audience and validated in subcultures
by agreed upon standards.
sharing identity with the artist.

Knowledge mastery, attempts to Navigation, information


embrace a totality. management, just-in-time knowledge.
The encyclopedia. The Web.
Interactive, client-server, distributed,
Broadcast media, centralized one-
many-
to-many communications.
to-many media (the Net and Web).
Centering/centeredness, Dispersal, dissemination,
centralized knowledge. networked, distributed knowledge
Determinancy Indeterminancy, contingency.
Seriousness of intention and purpose, Play, irony, challenge to official
middle-class earnestness. seriousness, subversion of earnestness.
Hybridity, promiscuous genres,
Sense of clear generic boundaries and
recombinant culture, intertextuality,
wholeness (art, music, and literature).
pastiche.
Design and architecture of New York Design and architecture of LA and
and Boston. Las Vegas
Clear dichotomy between organic and Cyborgian mixing of organic and
inorganic, human and machine inorganic, human and machine and

35
electronic
Phallic ordering of sexual difference, Androgyny, queer sexual identities,
unified sexualities, exclusion/bracketing of polymorphous sexuality, mass marketing
pornography of pornography

3 – O enfoque pós-moderno em psicoterapia – Em busca


de novas propostas epistemo-metodológicas

“Cada método é uma linguagem


e a realidade responde na língua que é perguntada.”

Boaventura de Souza Santos

Até o momento, nos preocupamos em introduzir o leitor a um panorama geral de uma


epistemologia referenciada pelos valores de uma teoria pós-moderna. Logicamente, esta
introdução se refere e se aplica às mais diversas áreas do saberes acadêmicos, já que este
enfoque pode fundamentá-las metodologicamente. Devemos deixar clara nossa intenção de
se continuar a fazer, primeiramente, uma reflexão teórica das possibilidades, condições e
“critérios de cientificidade” referenciados pela pós-modernidade para que possamos
estabelecer um quadro metodológico sobre como poderemos nos aproximar
compreensivamente do processo elaborativo na clínica psicoterápica.
Não se vão muitas décadas desde que o grupo das assim chamadas hard scienses
buscavam inviabilizar metodologicamente os esforços das então nascentes “ciências
humanas” de conquistar um lugar ao sol na restrita esfera do saber científico. Estas críticas
incidiam (e ainda incidem), geralmente, diante dos critérios epistemo-metodológicos que
estas disciplinas estipulavam em seu processo de pesquisa. Um ponto central era que estas
disciplinas não relevavam devidamente os parâmetros de pesquisa que exigiam conclusões
objetiváveis e quantificáveis. Conseqüentemente, alegava-se que os pesquisadores das
ciências humanas em geral incorriam em critérios de análise imersos em uma subjetividade

36
metodológica obscura24 e não refutável, assim como por utilizarem algumas técnicas de
pesquisa baseadas em analogias, imagens ou metáforas. Sendo assim, as escolas
psicológicas do final do século XIX e início de século XX, se preocupavam em estar
epistemologicamente próximas das áreas biológicas e exatas por serem estas a fornecer os
parâmetros metodológicos clássicos de qualquer projeto acadêmico que almejasse
aspirações científicas25.
Com as contribuições iniciais de Max Planck no campo da microfísica e,
posteriormente, as descobertas de Einstein no campo da astrofísica, revolucionaram-se as
concepções de espaço e de tempo ao se romper com o princípio de simultaneidade
universal, ou seja, o conceito de tempo e o espaço absoluto proposto na mecânica
newtoniana perdiam sua validade. Também no campo da microfísica, Heisenberg (1971)
alargava e fundamentava novos pressupostos da mecânica quântica, demonstrando a
impossibilidade de se observar ou medir um objeto sem interferir nele, ou seja: “não se
podem reduzir simultaneamente os erros de medição da velocidade e da posição das
partículas; o que for feito para reduzir o erro de uma das medições aumenta o erro da outra”
(p. 36). Neste ínterim, observou-se profundas e paradigmáticas reformulações
metodológicas nestas disciplinas, as quais se definiam exatamente pelo rigor quantitativo de
suas contribuições científicas, assim como pelos seus critérios rigorosos de objetividade. O
termo “paradigma”, conceitualmente desenvolvido em múltiplos sentidos na clássica obra
de Filosofia da Ciência de Thomas Kuhn (1998), A estrutura das revoluções científicas, é
um termo oportuno para designar a envergadura destes novos referenciais que despontaram
na Física e na Matemática26. Todavia, isto não quer dizer que a mecânica newtoniana
deixou de existir. Mas com estas revoluções na elaboração de determinadas pesquisas,

24
- Segundo Magro (1999, In VAITSMAN, J. & GIRARDI, S. (orgs) “A universalidade das afirmações, em
oposição à localidade de resultados e à particularidade de observações, tem sido historicamente preconizada
como condição essencial de respeitabilidade neste domínio (científico)” (p. 93). Todavia, vale lembrar, como
nos alerta, Dartigues (2003), “que essas ciências (humanas) não têm necessidade de serem exatas, como a
geometria, para serem rigorosas, seu rigor provindo ao contrário de uma ausência de exatidão, a qual é sempre
uma simplificação do dado” (p. 35).
25
- Fugiria ao escopo central de nossa pesquisa aprofundar nas inúmeras contribuições que uma investigação
histórica da ciência poderia nos oferecer. Todavia, como já apresentamos, estes referenciais epistemológicos
demarcaram qualquer empreendimento científico da modernidade, inaugurada, sobretudo, na física, pelas
fundamentações experimentais e empíricas do objeto de conhecimento visando objetividade (Galileu e
Bacon), no discurso do método cartesiano e, como culminação desta etapa, no mecanicismo newtoniano.
26
- Neste contexto, nos referimos a um sentido intradisciplinar do termo paradigma. Quanto às revoluções
epistemológicas no campo da matemática, podemos nos referir aos teoremas de Gödel.

37
devemos considerar como inapropriados os teoremas que definem as leis da mecânica para
responder as perguntas feitas pela física quântica e pela teoria da relatividade27. Entretanto,
de acordo com Ken Wilber (1995), seria inapropriado fazermos transposições conceituais
de disciplinas que pesquisam campos específicos da natureza, como a Física por exemplo,
para explicarmos as miríades do comportamento humano ou para se fundamentar
epistemologicamente nossas indagações sobre a complexidade psicossomática humana.
Concordamos em parte com estas pontuações, decorrente do risco de se incorrer em
equívocos e impropriedades metodológicas quando se propõe a aplicar determinado
“avanço” da física no campo da Psicologia. Mas desde que Wilber escreveu este artigo,
foram observadas contribuições as mais variadas, e em todos os campos, que viabilizam
aproximações responsáveis tanto em propostas interdisciplinares quanto transdisciplinares,
ainda que seja estabelecida em um nível metafórico. Em outros termos, pode ser
considerado “simplismo” em uma aproximação, por assim dizer, pós-moderna em
psicologia, separar rigidamente o sujeito de seu objeto, das características subjetivas e
objetivas, do biofísico e do antropológico, do neurobiológico e do cognitivo, do
comportamental e do social etc. Seriam nestas bricolagens necessárias que se
fundamentariam as bases da epistemologia da complexidade.

3.1 - A clínica psicoterápica referenciada por uma


“metodologia complexa”

Poderíamos propor que qualquer trabalho científico assume, inicialmente, os


contornos de uma pesquisa demarcada por uma preocupação epistemológica28. Como
Richard Rorty (1988) acrescentou, “este projeto de saber mais acerca do que nós
conhecemos e do modo como podemos conhecer melhor através do estudo de como

27
- Paradigmaticamente falando, devemos considerar distintamente todas as etapas na elaboração de um
projeto científico, ou seja, a pergunta pelo objeto, a exploração, a problemática, a construção de um modelo, a
observação, a análise e, por fim, as conclusões, deverão respeitar uma radical “novidade” em todas estas
etapas.

38
funciona a nossa mente veio a ser batizado com o nome epistemologia” (p. 137). Ao
delinearmos nossas bases epistemológicas, estamos demarcando nossa maneira de “ler” os
eventos do mundo, ou seja, estamos fazendo “teoria do conhecimento”. Logo, ao
especificar as “ferramentas” que usaremos para construir ou desconstruir nosso objeto,
estamos explicitando nossas crenças e nossos valores cognitivos ou, em outros termos,
também delineamos nossa metodologia científica. Logo, deduz-se que uma disciplina pode
possuir em seu “bojo disciplinar” um ou mais paradigmas ou estratégias epistemológicas as
quais, por sua vez, demandarão uma metodologia específica. Neste contexto, é curioso
observarmos que todas aquelas preocupações em delimitar rigorosamente o objeto de
pesquisa em dimensões quantificáveis, no intuito de adquirir um estatuto de “verdade
epistêmica”, ainda é perseguido largamente nas áreas biológicas e exatas e, por estranho
que pareça, em alguns campos da psicologia contemporânea. Não seria incomum
encontrarmos pesquisas na área da psicologia que se preocupam em seguir,
metodologicamente, critérios de validação científica que não incorram em sentidos
secundários, subjetivos, metafóricos, particulares ou contingentes. Como já acrescentamos,
não desconsideramos totalmente este posicionamento, mas sim o criticamos por se
considerar epistemologicamente totalitário, excluindo fundamentalmente uma
complexidade evidente que permeia qualquer “objeto” de pesquisa. Essas características do
método científico sob moldes “modernos”, tão entranhada no modus operandi do meio
acadêmico ocidental, delega ao pesquisador uma tarefa árdua, tanto em um sentido
intelectual quanto em âmbitos políticos, caso se queira empreender uma desconstrução
deste modelo. Todavia, ao se propor uma reflexão sobre a clínica psicoterápica sob moldes
pós-modernos29, não serão relevados aqueles modelos puramente representativos ou, em
outros termos, “desencarnados”. Vejamos mais detalhadamente estas questões.
Uma das características mais evidentes da ciência sob os moldes da modernidade é: 1)
romper incisivamente com o senso comum, no sentido de; 2) construir uma teoria; 3) com

28
- De acordo com Bateson (1986), o próprio senso comum em suas miríades cognitivas já teria uma
epistemologia. Todos aprendemos a aprender “no mundo”.
29
- Segundo Vasconcelos (2002), contamos com um razoável leque de opções que buscam fundamentar uma
prática pós-moderna em ciência: nas leituras de Freud por Jean Hyppolite, no paradigma estético de Felix
Guatarri, em obras que buscam uma inspiração wittgenstiana, na crítica da totalidade abstrata propostas por
Adorno e Horkheimer, na psiquiatria democrática de Franco Basaglia, no método de articulação circular dos
saberes de Edgar Morin, na epistemologia anárquica de Feyerabend e no processo de transição paradigmática

39
bases na constatação. Estes seriam os três atos epistemológicos fundamentais. Como
Bachelard (1947, p. 14) nos alerta:

“A ciência tanto em sua necessidade de acabamento como em seu princípio, opõe-


se absolutamente à opinião (...) a opinião pensa mal; ela não pensa; ela apenas
traduz necessidades sob a forma de conhecimento. Designando os objetos por sua
utilidade, ela se interdita de conhecê-los. Nada pode se fundar sobre opiniões:
importa destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a se superar” (p. 14).

Ora, é inegável que uma pesquisa fundamentada estritamente pelo senso comum
estará fadada ao fracasso. Um clínico que se ampara exclusivamente em suas intuições e
opiniões incorrerá, certamente, em sérios erros técnicos e metodológicos, ainda que
amparado pela flexibilidade epistemológica dos valores científicos pós-modernos. Neste
sentido, não devemos descartar tão afoitamente todos critérios de cientificidade
conquistados pelos positivistas e neo-positivistas pois, como bem nos lembra Piaget (1967),
em se tratando da psicologia, “temos o triste privilégio de lidar com matérias de que todos
se julgam competentes” (p. 24). Todavia, a ruptura epistemológica contra o senso comum,
defendida pela ciência sob moldes modernos, paga um alto preço quando nos referimos à
sensibilidade exigida na aquisição do conhecimento30. De acordo com Souza Santos
(2003,), devemos nos lembrar que estes critérios de cientificidade são conquistados
assumindo-se uma posição:

“contra o senso comum e de recusa às orientações da vida prática que dele


decorrem; um paradigma cuja forma de conhecimento procede pela transformação
da relação eu-tu em relação sujeito-objeto, uma relação feita de distância,
estranhamento mútuo e de subordinação total do objeto ao sujeito (...) um
paradigma que tende a reduzir o universo dos observáveis ao universo dos
quantificáveis e o rigor do conhecimento matemático do conhecimento, do que
resulta a desqualificação (cognitiva e social) que dão sentido à prática ou, pelo
menos, do que nelas não é redutível, por via da operacionalização, a quantidade
(...); um paradigma produz um discurso rigoroso, anti-literário, sem imagens nem
metáforas, analogias ou figuras da retórica (...)” (p. 34).

de Souza Santos. Seguramente, poderemos sugerir outras leituras, como a de uma epistemologia “auto-
organizativa” de Maturana e Varela e das abordagens contemporâneas da cibernética de segunda ordem.
30
- Segundo Souza Santos (2003), “o paradigma da ciência moderna, sobretudo na sua construção positivista,
procura suprimir do processo de conhecimento todo elemento não cognitivo (emoção, paixão, desejo,
ambição) por entender que se trata de um fator de perturbação da racionalidade da ciência” (p. 117). Seria

40
Devemos alertar o leitor de que nosso locus de referencia epistemológica se alicerça,
em âmbitos gerais, no campo das “ciências humanas”. Em outros termos, não estamos
lidando, de fato, com os cálculos de construção da engenharia, ou com as equações da
física, ou com as centenas de combinações da tabela periódica da química. Ainda que estas
disciplinas façam parte da complexidade cultural humana, e possam ser abordadas a partir
de uma metodologia qualitativa, elas possuem certos princípios metodológicos que devem
ser respeitados, e que são devedores de uma epistemologia de moldes preponderantemente
quantitativos31. É neste sentido que propomos, de acordo com Souza Santos (2003), uma
metodologia onde promova um reencontro responsável com o senso comum. Devemos ter
em mente que a vida cotidiana, imersa no senso comum, também constitui nossa
historicidade e nossas condições primárias de ação no mundo. Poderíamos até mesmo
antecipar um tópico de nosso estudo, o qual será aprofundado oportunamente, ao dizermos
que é através do senso comum, da vida cotidiana, que as “ilusões”, acarretadas pelas
leituras imersas na subjetividade, proporcionam um dos elementos da complexidade do
“jogo elaborativo”, já que “uma ilusão pode conduzir à verdade, quer porque corrige (e
neutraliza) uma outra ilusão, quer porque substitui uma interferência correta” (SOUZA
SANTOS, 2003, p. 39). Basta refletirmos sobre o famoso “jeitinho brasileiro” ou, em
outros termos, o processo criativo que emerge, exatamente, de nossa inconsistência sócio-
econômica e política, ou de nossa precariedade pedagógica, a qual acompanha os
estudantes em todos os níveis de formação. Portanto, o processo criativo também se faz na
decorrência dos erros e equívocos que estamos sujeitos na vida cotidiana32.
Seriam através destas reflexões que poderíamos propor uma frutífera relação entre
ciência e senso comum. Tudo nos indica que este seria um dos critérios que deve amparar a

fundamental ressaltarmos que estes parâmetros modernos de cientificidade consideram o campo afetivo como
“não cognitivo”.
31
- Ora, imaginem se os edifícios, pontes, casas, os produtos derivados do petróleo, os medicamentos etc,
fossem construídos e confeccionados a partir de estudos qualitativos? Qualquer pedreiro sabe muito bem que
uma massa para construção que seja confiável deve respeitar uma relação bastante de justa de água, areia e
cimento. Basta se romper estas convenções químicas para incorrermos em sérios desastres de engenharia
(podemos perguntar ao ex-deputado Sérgio Naya sobre isso!). Pensamos que estes campos do conhecimento
exigem um rigor distinto e que incidem, a priori, em maiores doses de pesquisa sob moldes quantitativos.
Todavia, não devemos nos esquecer de que quem utiliza e dá sentido ao mundo somos nós, humanos, imersos
em uma complexa rede de subjetividades e intersubjetividades que exigem, a posteriori, um dimensionamento
qualitativo dos produtos tecnológicos.

41
clínica psicoterápica pós-moderna. Devemos, no entanto, argumentar que a “positividade”
do senso comum só será possível se houver uma superação de si mesmo assim como dos
critérios epistemológicos da ciência moderna. Daí o conceito que Souza Santos nomeia
como uma dupla ruptura epistemológica, onde tanto o senso comum quanto a ciência
moderna se transformam. Esta proposta eleva o status do senso-comum enquanto uma
possibilidade de esclarecimento do mundo e das relações humanas e, por sua vez, os
critérios de cientificidade tipicamente modernos seriam revistos a partir da prudência e da
moderação de suas pretensiosas intenções quanto a um esgotamento cognitivo do objeto.
Logo, visa-se apresentar um proposta epistemo-metodológica que se aproxime do modo
operatório da hermenêutica, desconstruindo o nosso objeto e inserindo-o numa totalidade
que o transcende. Uma desconstrução que não é ingênua nem indiscriminada, porque se
orienta para garantir a emancipação e a criatividade da existência individual e social.
Ao propormos a relevância do senso comum na construção de nossa capacidade
compreensiva da clínica psicoterápica, também estamos fazendo referência às propostas
epistemológicas de Humberto Maturana e Francisco Varela (2002), as quais são centrais em
nossa pesquisa. Estes autores questionam os pressupostos de uma visão da realidade que
seja construída sem uma intrínseca participação daquele que observa “esta” realidade. Nas
experiências da vida cotidiana, vivemos inúmeras situações nas quais não diferenciamos,
pelo menos sem nos remetermos a um processo explicativo mais complexo, sobre aspectos
ilusórios ou perceptivos de fato. Estamos cotidianamente atuando sobre outras pessoas em
busca de validade de nossas construções cognitivas. Qual é a mais verdadeira? A nossa ou a
do outro? Portanto, Maturana e Varela propõe inicialmente que estamos sempre
reformulando nossas explicações da experiência, já que experienciar algo na vida e,
posteriormente explicá-lo, envolve dois momentos do processo cognitivo. Mas segundo os
autores, toda explicação deve envolver a aceitação de um observador para que possa ser
uma explicação. Logo, a capacidade explicativa depende ativamente do processo cognitivo
do outro em toda sua complexidade, pois só aceitamos ou entendemos determinada
explicação quando esta se encontra em ressonância com a capacidade estrutural ou
maturacional de nosso cérebro, com nossas construções afetivas, com a nossa cultura e

32
- De acordo com Souza Santos (2003), “no mesmo contexto, seria ainda de salientar a análise de
Kolakowski sobre os ‘erros felizes’ de Lênin, erros de avaliação da força revolucionária que, em parte, foram
responsáveis pelo êxito da revolução” (p. 40).

42
nosso sistema de crenças e com nossa bagagem intelectual-informacional. Também de
acordo com Wittgeinstein (1988) “o mundo é tudo aquilo que é o caso. O mundo é a
totalidade dos fatos, não das coisas” (p. 31). Neste sentido, um estado de coisas não se
constitui de coisas, mas de uma construção intencional e de interesses determinados que
direcionam nossa atenção. Enfim, as coisas não são significativas; por outro lado, os
“estados de coisas” sim. Como não podemos fazer referência ao mundo sem nos
referenciarmos a nós mesmos enquanto um todo complexo, aproximamos, de certa maneira,
a ciência do senso comum, já que o “critério de validação das explicações científicas é uma
formalização da validação operacional do fluir da práxis do viver dos sistemas vivos”
(MATURANA, 2001, p. 140).
Fazer referência a nós mesmos em busca de fundamentação epistemológica é nos
referirmos, a priori, a uma ontologia constitutiva, onde os fatores biológicos são nossos
referenciais epistemológicos, ou seja, será enquanto uma unidade psicossômica observante
que delimitaremos nossas fronteiras metodológicas e cognitivas quanto à compreensão do
processo elaborativo. Citando Maturana (2001), “o que fazemos enquanto cientistas se
relaciona com o que fazemos ao vivermos nossas vidas cotidianas, revelando o status
ontológico ou epistemológico daquilo que chamamos de ciência” (p. 126).
Alertamos o leitor que ao adotarmos tal metodologia não buscamos angariar uma
pretensiosa “universalização explicativa” do processo elaborativo. Como propomos, uma
explicação só se torna uma explicação de fato quando é aceita pelo outro, decorrente de
uma ressonância cognitiva ou, nos termos de Maturana e Varela, quando é possível
estabelecer, em alguma dimensão, um acoplamento estrutural entre aquele que “explica” e
aquele que “pergunta”. O que torna ainda mais complexa uma explicação sob esses moldes
é que, como acrescenta Maturana (2001):

“por serem experiências do observador, que surgem quando ele ou ela opera
em seu domínio de experiências, todos os domínios explicativos constituem
domínios de experiências expansíveis, nos quais o observador vive novas
experiências, faz novas perguntas, e inevitavelmente gera explicações de
maneira incessante e recursiva, se ele ou ela têm paixão de explicar” (p.
134).

43
Estabelecida nossa base epistemológica, apresentaremos a seguir alguns critérios de
validação científica segundo os parâmetros metodológicos o qual nomeamos “pós-
modernos”, os quais nortearão nossa busca compreensiva do processo elaborativo na clínica
psicoterápica. Estes critérios são condizentes às propostas apresentadas por Maturana
(2001, pp. 134-160) quanto às possibilidades de validação científica de uma explicação.

i) Devemos apresentar o processo elaborativo, tanto em suas origens evolutivas


quanto em uma delimitação técnica do trabalho realizado na clínica, a partir de nossa
prática psicoterápica cotidiana. Sendo assim, é fundamental enquanto observador-
padrão estarmos engajados “tecnicamente” na tarefa de observar o processo
elaborativo.
ii) Devemos reformular, compreensivamente, o que experienciamos do processo
elaborativo através de um mecanismo que Maturana conceitua como gerativo, ou seja,
o processo elaborativo é causador e produtor do próprio processo compreensivo, o
que nos permite obter um generoso leque de coerências operativas deste processo
elaborativo.
iii) Deduzir, a partir das etapas i e ii, as possibilidades compreensivas do processo
elaborativo.
iv) “Obtenção” da experiência do processo elaborativo, deduzidas das coerências
operativas. Logo, a reformulação da experiência, ou seja, do processo elaborativo, não
esgota a complexidade deste processo, já que não pode ser entendido distante da
coerência operacional do observador-padrão. Devemos ter em mente que: “o critério
de validação das explicações científicas é uma formalização da validação operacional
do fluir da práxis do viver dos sistemas vivos”33.

Como bem nos lembra Maturana, uma explicação científica será válida enquanto estas
condições se aplicarem e, logicamente, se a comunidade científica aceitar os critérios de

33
- Também de acordo com Souza Santos (2004), “podemos afirmar hoje que o objeto é continuação do
sujeito por outros meios. Por isso, todo conhecimento científico é auto-conhecimento. A ciência não descobre,
cria, e o ato criativo protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica no seu conjunto tem de se
conhecer intimamente antes que conheça o que com ele se conhece o real. Os pressupostos metafísicos, os
sistemas de crenças, o juízos de valor não estão nem antes nem depois da explicação científica da natureza ou
da sociedade. São partes integrantes desta mesma explicação” (p. 81).

44
validação desta explicação. Ainda que seja relevante a compreensão dos aspectos
ontológicos do processo elaborativo, e que serão abordados oportunamente, devemos
ressaltar que não corroboramos com critérios inflexíveis de causalidade ou de leis estanques
que pretendem esgotar a compreensão do processo elaborativo, já que estas leis se referem
a uma objetividade que despreza as idiossincrasias do observador. Os critérios de
cientificidade que nos acompanham aliam-se a uma metodologia sistêmica que considera a
relação psicoterápica por vias processuais afastados do equilíbrio, ou seja, sistemas abertos
a flutuações, e que desafiam o modelo de causa e efeito da ciência moderna. O processo
elaborativo é, antes de tudo, reflexo da complexidade histórica de cada um, sendo que
qualquer pretensão interpretativa deste processo com ambições teleológicas estará fadada
ao fracasso.
Sendo assim, esta proposta metodológica sugere, de início, ambições epistemológicas
“modestas”, caso nos refiramos aos modelos de pesquisa tradicionais (modernos) que se
fundamentam a partir de uma lógica dedutiva onde leis gerais explicam todos os eventos
particulares em questão. É necessário, portanto, rever semanticamente o termo “modéstia”
já que, segundo os referenciais epistemológicos adotados em nossa pesquisa, a “modéstia
explicativa” é o único caminho metodológico que podemos adotar. Só obteremos relevância
cognitiva em nossas explicações enquanto formos observadores especificados e
conduzidos pelos nossos domínios de experiências. Como acrescenta Maturana (2001),
“esta situação não é uma limitação das explicações científicas – pelo contrário, é sua
condição de possibilidade” (p. 137). Devemos lembrar ao leitor que o caráter local de uma
pesquisa científica é uma das características dos valores e condições epistemológicas da
pós-modernidade34.

34
- Segundo Vasconcelos (2002, p. 84), “os diversos tipos de prática científica, dentro de seus paradigmas
próprios, podem ser entendidos como empreendimentos baseados em regras racionais e relacionais
particulares. Isso que permite a estratégia que chamaremos de comparação contextualizada”.

45
3.2 – Metodologia transdisciplinar - Para uma compreensão
complexa do processo elaborativo

Não é incomum encontrarmos profissionais da área de saúde que só se informam,


estritamente, sobre seu campo de atuação ou sobre sua linha ou corrente clínica35. Sendo
mais “objetivo”, observamos que uma razoável parcela de clínicos da psicologia só se
interessa ou tem conhecimento a respeito dos autores aos quais escolheram se dedicar.
Muitos psicanalistas, junguianos, gestaltistas, reichianos, psicodramatistas etc, só
compreendem o humano a partir dos recursos teóricos ditados, preponderantemente, pelos
fundadores destas linhas. Esta conduta declaradamente limitada diante da riquíssima
fenomenologia humana pode ter sua origem em diversos motivos, desde aqueles que
retratam abertamente uma “preguiça intelectual” diante da complexidade humana, até
aquelas, e no nosso entender a mais prejudicial, que se baseiam em uma suposta crença de
que se sabe tudo o necessário para se compreender esta complexidade a partir de
determinado “recorte” que seus “gurus” lhes ofereceram. Mas que fique claro que o termo
“recorte” é de nossa responsabilidade, pois para este universo de profissionais, sua
compreensão sobre uma determinada enfermidade, por exemplo, representa uma espécie de
“verdade última”, e o fato de não saberem se posicionar sobre determinado aspecto seria
nada mais do que uma “verdadeira” impossibilidade decorrente da “ausência” de recursos
existentes na atualidade. Neste caso, estamos diante da ignorância em seu mais refinado
disfarce. Refinado por que estamos acostumados a atribuir sentido a este termo através de
condutas crassas, de um tipo rude e analfabeta. A ignorância “comum”, a que nos referimos
aqui, é aquela que observamos diante do baixo índice de alfabetizção de nosso país36. A

35
- O autor se baseia, primeiramente, em sua própria vida acadêmica. Propostas didáticas em moldes inter ou
transdisciplinares foram escassas desde o período de graduação até o presente momento, no processo de
doutoramento pela PUC-SP. Não caberia aqui conjeturarmos quais seriam os motivos específicos, mas
poderíamos dizer que eles se inscrevem, em maior ou menor grau, de acordo com os motivos que serão
apresentados a seguir.
36
- Segundo dados do IBGE, o índice analfabetismo seria inferior a 20%. Ora, não sejamos ingêuos. O que
significa ler e escrever? Será que aquele que sabe escrever o nome e um punhado mais de palavras, pode ser
considerado alfabetizado? E quanto ao nível de compreensão textual? Quando questionamos estas dimensões
do processo de alfabetização, as porcentagens são prontamente reformuladas, e para pior.

46
ignorância “letrada”, profundamente vaidosa, revestida de força política e econômica, é
aquela que possui autoridade suficiente para se impor enquanto “verdade inabalável”, e que
solapa outras formas de compreender os fenômenos da vida. Nos dizeres de Ortega y
Gasset (1970):

“Dantes os homens podiam facilmente dividir-se em ignorantes e sábios, em mais


ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser
subsumido por nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio porque ignora
formalmente tudo quanto não entra na sua especialidade; mas também não é um
ignorante porque é um ‘homem de ciência’ e conhece muito bem a sua
pequeníssima parcelas do universo. Temos que dizer que é um ‘sábioignorante’,
coisa extremamente grave pois significa que é um senhor que se comporta em todas
as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de
quem, na sua especialidade, é um sábio” (p. 173).

Este tipo de ignorância é muito “proveitosa”, para não dizer perversa. Por exemplo,
ela exime uma considerável parcela de psicólogos e profissionais de saúde de
compreenderem a etiologia das enfermidades psicossomáticas a partir de teorias que
adotam uma epistemologia sistêmica ou de qualquer outra área acadêmica que possa
contribuir com o tema de forma inter ou transdisciplinar. Adotar a cartilha do “inimigo”
pode significar estar arrumando “sarna para se coçar”, já que ao encontrar “substância
epistemológica” em campos alheios pode estar contribuindo para a derrocada de seu
próprio território de sentidos. Mas neste nosso exemplo, todo o inverso também é
proporcional. Uma boa parte dos neurobiólogos e psiquiatras também se negam a refletir
sobre os aspectos psico-sociais da enfermidade alegando que, ao tratá-las
preponderantemente com psicofármacos, encontrarão a saída, caso haja uma, da
enfermidade em questão.
Tudo nos leva a crer que uma generosa parcela de “homens letrados” possuim um
medo evidente: o medo da ignorância37. Para burlar a famigerada ignorância, refugiam-se
em seus horizontes de sentido mas, e este ponto é crucial, sem considerá-lo apenas
enquanto “um” horizonte. Ora, manter-se assepticamente afastado de outras formas de
saber seria evitar, consciente ou inconscientemente, a queda no “círculo virtuoso” e

37
- Devemos alertar o leitor para o “tom” retórico desta colocação. Todavia, ainda que não apresentemos
dados de pesquisa que abordem esta questão, podemos constatar empiricamente que esta conduta pulula pelos
corredores das instituições de ensino. Ademais, este é um problema típico da vaidade humana, e os
professores universitários não estão isentos dele.

47
ineludível de uma outra categoria de ignorância. De outro modo, aceitar o que se sabe de
forma que este saber se constitua apenas enquanto um horizonte de sentido é aceitar, a
priori, a existência de uma infinidade de outras leituras paralelas que transpõe, em muito, a
própria capacidade de se saber quais e quantos horizontes são estes. Tudo leva a crer que
estes “homens de letras” evitam, a todo custo, se defrontar com um determinado tipo de
ignorância que é intrínseca a vida, já que teremos de lidar com tantas outras leituras de um
mesmo evento e darmos conta de que não poderemos saber tudo sobre determinado evento.
Poderíamos arriscar em dizer que este tipo de atitude “evitadora” é, a miúde, considerada
como acadêmicamente louvável, para não dizer indicada, para o pesquisador ou estudioso
que queira lograr um lugar neste universo strictu sensu. Ora, a alegação é famosa e
enfadonhamente repetida nos meios acadêmicos: você não pode saber tudo sobre tudo38.
Sendo assim, é “melhor” saber tudo sobre a ponta de um dos dedos do pé esquerdo do que
não saber quase nada sobre o corpo humano em sua totalidade. É verdade que saber muito
sobre pouco levou a civilização ocidental ao seu apogeu tecnológico. Estes são os frutos da
pesquisa aplicada, iniciada por Galileu, Francis Bacon e outros filósofos, matemáticos,
físicos e biólogos. Mas e quanto à compreensão da complexidade humana? E quanto a
compreender que os dedos do pé pertencem a um contexto mais amplo, encaixada na
totalidade corporal, assim como o corpo está situado em um mundo repleto de variáveis das
mais diversas ordens? Ora, ainda são poucos os que querem saber sobre isso, e por serem
tão poucos, são estes os considerados “ignorantes”, generalistas e megalômanos.
Portanto, queremos chamar a atenção do leitor para duas situações:

a) Caso consideremos que saber tudo sobre pouco é um especialismo atrofiante


quanto à compreensão do humano, e que este tipo narcísico de saber pode, em muitas
situações, disfarçar a ansiedade diante de uma outra categoria de ignorância, ou seja,
ao dar-se conta de que há inúmeras outras leituras, ditas científicas, que concorrem
entre si.
b) Por outro lado, querer saber tudo sobre muito pode ser considerado um
superficialismo pouco enriquecedor e de moldes holisticamente utópicos, o que

38
- Bem, quanto a isto, somos obrigados a aceitar tal fato. Mas devemos nos posicionar e argumentar que nem
todas os anseios transdisciplinares são generalismos claudicantes.

48
também retrata uma ansiedade diante da necessidade de se aceitar que não se pode
abarcar todas as leituras sobre determinado objeto ou fenômeno e, por fim, aceitar
uma inevitável ignorância diante de uma real impossibilidade de saber tudo sobre
tudo.

Deve haver uma posição intermediária para este entrave epistemológico. Esta
introdução, um tanto panfletária por sinal, serve apenas a um fim: introduzir a
imprescindível necessidade de se compreender o humano ou qualquer outro campo do saber
a partir de esforços transdisciplinares.
Como caminhar no “fio da navalha”? Como poderemos aprofundar nossa
compreensão do processo elaborativo sem incorrermos em um reducionismo disciplinar
mutilante ou, por outro lado, sem sermos tragados por uma caleidoscópica tentação de
catalogarmos enciclopedicamente tudo que chegar a nós sobre o processo elaborativo? Em
outros termos, como poderemos articular proveitosamente o “élan” do racionalismo
moderno, superando sua “insensibilidade epistemológica”, sem sermos tragados pelas
traiçoeiras fragmentações sócio-culturais, também preconizadas pela pós-modernidade?
Edgar Morin (1999) nos alerta de que “o que é vital hoje não é apenas aprender, não apenas
reaprender, não apenas desaprender, mas sim reorganizar o nosso sistema mental para
reaprender a aprender” (p. 31). Logo, o paradigma da complexidade preconiza uma
“metodologia complexa”, a qual também nos alerta de que devemos negar “as falsas
clarezas” compreensivas do fenômeno elaborativo, geralmente extraídas de leituras
disciplinares estanques ou holisticamente utópicas. Neste sentido, devemos considerar o
processo elaborativo imerso em uma “complexidade transdisciplinar” e dialógica, que faz
comunicar os opostos sem “superá-los”. Como acrescenta Morin (1997):

"Complexus quiere decir, lo que está tejido en conjunto; la trama, el tejido de


constituyentes heterogéneos inseparablemente asociados que presenta a la vez la
paradoja de lo uno y lo múltiple. Tejido de eventos, acciones, interacciones,
retroacciones, determinaciones, azares que constituyen nuestro mundo fenoménico"
( p. 32).

Em busca de soluções, observamos que a partir da segunda metade do século XX,


diversos grupos de pesquisadores, também atormentados pelas contradições e limitações
geradas pelo isolamento dos diversos campos do saber, buscaram remediar esta situação ao

49
proporem quatro abordagens que refletissem sobre a transmissão do conhecimento e de
suas possíveis e necessárias interações. Vejamos então: o multidisciplinar, o
pluridisciplinar, o interdisciplinar e, por fim, o transdisciplinar. Não seria o tema central de
nosso estudo aprofundarmos exaustivamente no estudo destas abordagens. Partindo de
nossas necessidades, faremos oportunamente uma breve introdução à abordagem
interdisciplinar para, em seguida, nos centrarmos no conceito de transdisciplinaridade.
Acreditamos que uma abordagem transdisciplinar se adequará satisfatoriamente ao nosso
projeto de articular os diversos conceitos e teorias, isolados disciplinarmente, em uma
“meta-teoria” que nos auxiliará na compreensão do processo elaborativo na clínica
psicoterápica. Quanto às propostas pluri e multidisciplinar, devemos considerá-las
análogas. Segundo Olga Pombo (2004), ao se analisar estes prefixos etimologicamente, não
faria sentido distinguí-los. Sendo assim, consideramos que uma abordagem pluri ou
multidisciplinar estabelece algum tipo de coordenação disciplinar sem, no entanto,
ultrapassar um paralelismo de pontos de vista.
Também de acordo com os princípios epistemológicos da pós-modernidade, somente
uma transgressão metodológica será capaz de dar conta do “silêncio que persiste entre cada
língua que pergunta” (SOUZA SANTOS, 2004, p. 78). Ora, nos referimos a uma tendência
transdisciplinar inerente a este paradigma, e a tolerância discursiva é o outro lado da
pluralidade metodológica39. Esta tolerância discursiva se faz não por um capricho, mas por
darmos conta de que para se compreender a complexidade do processo elaborativo na
clínica, devemos transcender às “leituras regionais” para o entendimento dos processos
cognitivos e comportamentais. Como acrescenta Edgar Morin (2003), o desenvolvimento
da ciência ocidental a partir do século XVII foi intrinsecamente transdisciplinar, já que a
linguagem matemática (objetiva, formal e que “elimina” o sujeito que observa) adotada
inicialmente pela física, migrou peremptoriamente para outras disciplinas, como a biologia
e a química. Mas esta transdisciplinaridade, fomentada pela linguagem dura da matemática,

39
- Ainda com o autor: “E como Geertz, podemos perguntar se Foucault é historiador, filósofo, sociólogo ou
cientista político” (p. 45). Também devemos alertar o leitor que muitas disciplinas surgem de aproximações
de campos do conhecimento até então afastados. Citemos alguns: Neuropsicologia, a psicossociologia, as
diversas ramificações da psicossomática, a psicolingüística, a bioquímica, a geopolítica, dentre outras.
Vejamos um comentário de Japiassu (1976). “Multiplicam-se as disciplinas mistas, entrelaçam-se as
disciplinas mais afastadas e aparentemente mais díspares. Cada ciência rompe seu isolamento para cooperar
com as outras. E é nesta direção que se tenta alcançar certa unidade, pelo menos em nível da ação concertada
ou informada, pela instauração de vínculos cada vez mais numerosos entre as partes do saber” (p. 192).

50
foi também o ponto de maior entrave já que, “em outras palavras, essa unidade foi sempre
hiper-abstrata, hiper-formalizada, e só pôde fazer comunicarem-se as diferentes dimensões
do real abolindo essas dimensões, ou seja, unidimensionalizando o real” (MORIN, 2003, p.
136). Por sua vez, cada disciplina pergunta pelos fenômenos que abordam de acordo com
seus referenciais epistemológicos. Inicialmente, observa-se em geral nas “trocas”
interdisciplinares o que Edgar Morin denomina como “soberania territorial”, ou seja, cada
disciplina pretende demarcar sua superioridade cognitiva diante de um objeto comum. Os
resultados são, como acrescenta o autor, “magras trocas, onde as fronteiras confirmam-se
em vez de desmoronar” (p. 135). Também estamos cientes que a fragmentação do
conhecimento, causado pela hiper-especialização do saber, vem atrofiando nossa
capacidade de compreensão dos fenômenos humanos em toda sua amplitude40. Como
acrescenta Japiassu (1976), foi o trunfo do positivismo que suscitou a repartição do espaço
mental do saber em departamentos isolados e com fronteiras rígidas. Por sua vez, os
teóricos da Gestalt já argumentavam que para se compreender o todo não devemos
considerá-lo enquanto a soma das partes, mas sim enquanto um “quintessência” destas
partes.
É curioso observarmos que não estamos nos referindo somente a um distanciamento
disciplinar, como por exemplo entre a psicologia e biologia, mas também a um
distanciamento intradisciplinar41, o qual, em muitos momentos da história da Psicologia, se

40
- Vejamos outro oportuno comentário de Japiassu (1976): “O saber chegou a um tal ponto de
esmigalhamento, que a exigência interdisciplinar, mais parece, em nossos dias, a manifestação de um
lamentável estado de carência. Tudo leva a crer que o saber em migalhas seja o produto de uma inteligência
esfacelada. Nesse domínio, até parece que a razão perdeu a razão, desequilibrando a própria personalidade
humana em seu conjunto” (p. 30). Ainda com o autor vemos: “O especialista, ao cantonar-se em sua diminuta
parcela de saber, ciumentamente defendida e protegida por uma aparelhagem tecno-metodológica e por uma
linguagem hermética, escapa ao controle, ao confronto, à crítica e a todos os questionamentos que viriam
talvez a desmascarar a nulidade de seu pequeno ‘iceberg’ de saber flutuando em um vasto oceano” (p. 95).
Também em Oppenheimer (1955) vemos: “O conhecimento científico hoje não se traduz num enriquecimento
da cultura geral. Pelo contrário, é posse de comunidades altamente especializadas que se interessam muito por
ele, que gostariam de o partilhar, que se esforçam por o comunicar. Mas não faz parte do entendimento
humano comum. O que temos em comum são os simples meios pelos quais aprendemos a viver, a falar e a
trabalhar juntos. Além disso, temos as disciplinas especializadas que se desenvolveram como os dedos da
mão: unidos na origem mas já sem contacto” (p. 55).
41
- Japiassu considera este tipo de afastamento interno às disciplinas como um problema interdisciplinar.
Propomos contudo uma diferenciação de nomenclaturas, sendo que quando nos referirmos a questões internas
à determinada disciplina, usaremos o termo “intradisciplinar”.

51
tornaram extremamente severos e, por fim, destituídos de qualquer produtividade42. Ora,
não seria demais lembrarmos de algumas das diversas e inconclusivas celeumas que
perduram no próprio campo da psicologia clínica. A história da psicologia é marcada por
inúmeros rompimentos e consecutivos fundamentos de novas escolas. Referente à
psicanálise, Jung abandonou definitivamente, em 1912, o lugar de “filho escolhido” de
Freud para fundar sua própria escola. Freud e grande parte de seus seguidores rejeitaram-na
veementemente. Também devemos considerar as diversas “ramificações teóricas”
fomentadas por psicanalistas “não alinhados” (M. Klein, D. Winnicot, J. Lacan, Franz
Alexander, A. Adler, dentre outros), as quais apresentaram e continuam a apresentar, em
diversos contextos, complexas divergências técnicas e epistemológicas com a psicanálise
clássica. Também não devemos nos esquecer da expulsão de Wilhelm Reich do movimento
psicanalítico, em 1934, por sustentar uma série de divergências teóricas as quais, muitas
delas, só se tornaram excessivamente incompatíveis com a psicanálise por questões
narcisicamente intelectuais e políticas. Também observamos que o estruturalismo de
Titchener foi duramente criticado por funcionalistas como W. James e J. Dewey, os quais
foram criticados por comportamentalistas como Watson e posteriormente Skiner, os quais
foram criticados, respectivamente, pelos teóricos da Gestalt e pela escola cognitivista.
Enfim, a lista de dissidências e “incongruências” teóricas é longa, o que não ocorre com o
número de teóricos que se preocupam em encontrar pontos em comum que possibilitem um
avanço trans(intra)discilinar. Será que deveríamos desprezar todas as contribuições de
Wilhelm Reich à psicanálise por ele não ter concordado, dentre outras questões, com o
conceito de “pulsão de morte” e de suas repercussões psicopatológicas? Também
deveríamos nos desfazer dos avanços da neurociência por serem estes pesquisadores, em
sua maioria, materialistas convictos que buscam rejeitar os pressupostos de uma teoria da
mente? Tampouco propomos um “anarquismo epistemo-metodológico” do tipo
feyerabendiano43 ou defendemos a utilização indiscriminada de elementos teóricos diversos

42
- Como diria Japiassu (1976, p. 203): “De tanto fragmentar a totalidade humana em setores estreitos, de
tanto elaborar, para explicá-los, hipóteses prematuras sobre a ‘natureza humana’, as disciplinas positivas
acabaram por não mais perceber suas funções reais e por substituir as totalidades concretas por ficções”.
43
- Segundo Alberto Oliva (1990, p. 156), ainda que sejam relevantes alguns posicionamentos de Feyerabend,
não corroboramos com sua tese central, onde se defende uma radical derrocada da epistemologia em prol de
uma única regra: vale-tudo. “Feyerabend frisa corretamente que certas atividades intelectuais têm muito de
sua inteligibilidade definida pela forma de vida a que estão presas, e que por mais que sejam cognitivamente
defeituosas, constituem modos de darmos sentido à circunstância física e social na qual nos inserimos. Mas

52
sem uma análise prévia das possibilidades destes “amalgamas teóricos”. Seria proveitoso
conceituarmos o que consideramos como ecletismo, e esclarecermos que não corroboramos
com esta proposta. Segundo Vasconcelos (2002):

“por ecletismo entendemos a conciliação e o uso simultâneo, linear e


indiscriminado de teorias e pontos de vista teóricos e éticos diversos sem considerar
as diferenças e incompatibilidades na origem histórica, na base conceitual e
epistemológica, e nas implicações éticas, ideológicas e políticas de cada um desses
pontos de vista, o que sem dúvida é problemático (...). Entretanto, isso é diferente
de reconhecer a complexidade e multidimensionalidade dos fenômenos físicos,
biológicos, humanos, sociais e ambientais, que exigem um conjunto pluralista de
perspectivas diferentes de abordagem” (p. 108).

Almeida Filho (2005) também alega que “o movimento da transdisciplinaridade se


deve iniciar com algum grau de concordância dos estatutos de cientificidade dos objetos
nos respectivos campos” (p. 15). Nestes termos, propomos aticulações que possam
promover um diálogo entre os saberes, mas que não incorram em um reducionismo teórico.
De acordo com Morin, este diálogo permite distinções, separações e oposições disciplinares
sem, no entanto, descartar a complexidade que permeia os diversos campos do
conhecimento, “concebendo níveis de emergência da realidade sem os reduzir às unidades
elementares e às leis gerais” (MORIN, 2003, p. 138).
Naturalmente, podemos considerar a existência de uma “evolução” nestes horizontes
compreensivos que envolvem as sínteses interdisciplinares e transdisciplinares. Como a
pesquisadora portuguesa Olga Pombo (2004) sugere, devemos aceitá-los como uma espécie
de continum que é atravessado por alguma coisa que, no seu seio, vai se desenvolvendo.
Sendo assim, seria necessário que apresentássemos mais claramente o que consideramos
como um projeto interdisciplinar e, por sua vez, o paradigma mais contemporâneo da
transdisciplinaridade. Segundo Japiassu (1976), podemos conceituar interdisciplinaridade
como: “Axiomática comum a um grupo de disciplinas conexas e definidas no nível
hierárquico imediatamente superior, o que introduz a noção de finalidade” (p. 75).
Ilustramos esta cooperação no seguinte quadro:

deixa de levar em consideração o fato de que uma forma de vida permanece incompreensível se não
associamos intimamente ao processo de articuladamente seguirmos regras (...) o anarquismo, ao declarar-se
artificialmente contra todas as regras, corre o risco de estar não só tentando anular as diferenças de
significatividade entre os diversos estilos cognitivos, como também tornar incompreensível a ação intelectual
específica chamada ciência”.

53
Figura 3.1: Modelo interdisciplinar segundo Japiassu ( 1976, p. 74).

Psicologia

Medicina Antropologia Física

Com a lucidez que lhe é peculiar, Japiassu (1976, p. 53) nos enriquece com alguns
comentários sobre a importância de se considerar um projeto que privilegie a
interdisciplinaridade:

“a) Há uma demanda ligada ao desenvolvimento da ciência: a interdisciplinaridade


vem responder à necessidade de criar um fundamento ao surgimento de novas
disciplinas;
b) Há uma demanda ligada à reivindicações estudantis contra um saber
fragmentado, artificialmente cortado, pois a realidade é necessariamente global e
multidimensional: a interdisciplinaridade como símbolo da ‘anti-ciência’, do
retorno ao vivido e às dimensões sócio-históricas da ciência;
c) Há uma demanda crescente por parte daqueles que sentem mais de perto a
necessidade de uma formação profissional: a interdisciplinaridade responde à
necessidade de formar profissionais que não sejam especialistas de uma só
especialidade

54
d) Há uma demanda social crescente fazendo com que as universidades
proponham novos temas de estudo que, por definição, não podem ser encerrados
nos estreitos compartimentos das disciplinas existentes”44.

É digno de menção o fato de que já se vão 30 anos que esta citação foi publicada. No
entanto, ao resgatá-la, damos conta de sua atualidade. Talvez o mais coerente seria
considerarmos uma “atemporalidade” intrínseca ao projeto interdisciplinar, já que o
humano se revela em uma complexidade que sempre transcendeu as aproximações
estanques do “especialismo disciplinar”.
Mesmo que o projeto interdisciplinar apresente propostas salutares nos intercâmbios
científicos e que, em última instância, supere qualquer proposta puramente disciplinar ou
multidisciplinar para um entendimento da realidade, devemos argumentar que este projeto
pode ser complementado pelas urgências transdisciplinares que se apresentam na
contemporaneidade. De acordo com Basarab Nicolescu (2000), um dos mais destacados
articuladores do movimento transdisciplinar contemporâneo, na presença de vários níveis
de realidade, “o espaço entre as disciplinas e além das disciplinas está cheio, assim como o
vácuo quântico está cheio de possibilidades (...) A estrutura descontínua dos níveis de
realidade determina a estrutura descontínua do espaço transdisciplinar” (NICOLESCU,
2002, In: RANDON, p. 82). Pelo fato das pesquisas inter e transdisciplinares ultrapassarem
francamente as fronteiras da análise disciplinar, podem ser facilmente confundidas.
Contudo, a ilustração s seguir nos auxiliará na tarefa de diferenciá-las:

44
- Ainda com Japiassu, devemos acrescentar que “a interdisciplinaridade é, fundamentalmente, uma atitude
do espírito, feita de curiosidade, de abertura, de sentido da descoberta, de desejo de enriquecer-se com novos
enfoques, de gosto pelas combinações de perspectivas e de convicção levando ao desejo de superar os
caminhos já batidos (...) Ela é fruto de treinamento contínuo, de um afinamento das estruturas mentais” (p.
82).

55
Figura 3.2: Coordenação de todas as disciplinas e interdisciplinas do sistema de ensino inovado, sobre a base
de uma axiomática geral. Sitema de níveis e objetivos múltiplos ; coordenação com vistas a uma finalidade
comum dos sistemas (JAPIASSU, 1976, p. 74).

Biologia

Psicologia

Neurociência Sociologia

Matemática
Física
Lingüística

Economia
Antropologia Filosofia

Em um contexto transdisciplinar, os conceitos possuem autonomia, ou seja, sua


precisão configurativa, tão inerente ao âmbito disciplinar de origem, se transforma, se
regenera e até mesmo se transfigura nos sucessivos encontros de sua trajetória nômade, de
seus encontros e desencontros com conceitos até então análogos ou concorrentes. Como
adequadamente pontua Paula e Silva (2001), o conceito “ao inserir-se em novos territórios,
ao ser colhido em um novo jogo de relações, porta a memória de sua origem, ao mesmo

56
tempo que se redefine pela nova rede que o situa” (p. 40). Vejamos um exemplo desta
trajetória nômade de uma conceituação, citado por Paula e Silva (2001):

“Um caso exemplar foi lembrado pelo Dr. Ivan Domingues ao mencionar o destino
do conceito de energia. O percurso deste conceito começa na Física com Young,
em 1807, na Inglaterra. Freqüenta, em seguida, primeiro com Meyer, depois com
Helmholtz, os espaços da Fisiologia. É redescoberto por Freud, discípulo de
Helmholtz, o criador do conceito de ‘energia livre’. Mas ao retomar esse conceito e
fazê-lo migrar para psicanálise, Freud o insere numa rede que o faz significar
exatamente o contrário do que significava na ciência física de onde provinha” (p.
41).

Devemos considerar que a transdisciplinaridade é complementar à aproximação


disciplinar, pois faz emergir dos diálogos e confrontos disciplinares novos conceitos, novos
arranjos, a partir das próprias conceituações locais, nos oferecendo uma nova visão da
complexidade do processo elaborativo. Como também acrescenta Basarab Nicolescu
(2000), a transdisciplinaridade não é uma contestação das disciplinas já que, sem elas, não
existiria transdisciplinaridade. Contudo, ressalta que o excesso de especializações
impossibilita uma compreensão mais sistêmica da realidade. Uma proposta transdisciplinar
tão pouco buscaria o domínio sobre as várias outras disciplinas ou, em outro termos,
instaurar uma “homogeneização epistemológica imperialista” (VASCONCELOS, 2002, pp.
38-43). Sua essência se constitui numa abertura que atravessa e ultrapassa as fronteiras
disciplinares.
Mas por que tal empreitada? Como Domingues (2001) acrescenta, a razão se faz pela
necessidade face à pulverização do conhecimento e a um sentimento de “perda de
importância da atividade cognitiva, quando a pesquisa se pulveriza em detalhes mínimos e
gera o conhecimento paradoxal de que hoje, cada vez mais, se sabe tudo de nada nos
diferentes campos dos saberes especializados” (p. 54). Logo, buscamos uma reorganização
compreensiva do processo elaborativo na clínica psicoterápica, considerando
recursivamente as esferas que constituem o humano. Devemos ter em mente que nosso
objeto de pesquisa, com esta conformação, só pode se constituir a partir de uma perspectiva
transdisciplinar pois, só assim, a compreensão do processo elaborativo revelará suas
múltiplas trajetórias nômades.

57
Devemos, contudo, deixar clara nossa modesta pretensão de se refletir sobre a clínica
a partir das teorias dos diversos autores que serão “convidados” a contribuir com nosso
projeto transdisciplinar e de alguns estudos de caso que nos oferecerão um suporte
empírico. Alguns autores alegam que um projeto tanto inter quanto transdisciplinar, deveria
ser levado a cabo por um grupo de profissionais de diferentes áreas e especializações, e que
a pesquisa fosse executada a partir de um contexto institucional (ALMEIDA FILHO, 2005;
JAPIASSU, 1976; VASCONCELOS, 2002). Todavia, estas condições “ideais” extrapolam
as nossas pretensões, além do autor desconhecer qualquer esforço articulado no meio
acadêmico e institucional da psicologia brasileira que busque promover um enfoque
interdisciplinar - quanto menos transdisciplinar - em todos os seus aspectos metodológicos,
como um meio compreensivo do processo elaborativo na clínica. Sendo assim, partiremos
da excelência dos dados teóricos selecionados para, a partir daí, refletirmos sobre as
possíveis articulações e interlocuções no intuito de ampliarmos nossa compreensão do
processo elaborativo na clínica psicoterápica.
Ainda que saibamos não poder esgotar o entendimento de nosso objeto de pesquisa,
estamos cientes da inadequação de refleti-lo a partir de especialidades estanques. De acordo
com Vasconcelos (2002):

“as estratégias (de pesquisa) mais comuns têm sido a de se esconder no estágio
atual de competência ou supervalorizar um ponto de vista teórico-político que
direciona a priori e redutivamente o enquadramento dos fenômenos, de forma
dedutiva ou indutiva, recalcando e varrendo para debaixo do tapete as áreas de
desconhecimento, incerteza e conflito” (p. 92).

Nossas reflexões sobre o processo elaborativo serão construídas a partir de uma


complexidade epistemológica, as quais não devem ser reduzidas a um manual repleto de
“receitas” do que venha a ser ou não este processo. Ao contrário, devemos considerar este
projeto enquanto um desafio, imerso em incompletudes teórico-práticas e, sobretudo, em
busca de uma desestabilização do conhecimento de elaboração psíquica construído
disciplinarmente ou a partir de recortes intradisciplinares. Sendo assim, aceitamos a
angústia de lidar com estas incompletudes como afirmação de nossa insatisfação pelos
“especialismos mutilantes”, os quais “maquiam” a precariedade do entendimento do
“fenômeno humano” em uma pretensiosa arrogância do “suposto saber” que se esgota em si

58
mesmo. Bem sabemos que não há ciência que esgote o real e, como diria Morin (2003), “ao
aspirar a multidimensionalidade, o pensamento complexo comporta em seu interior um
princípio de incompletude e incerteza” (p. 176).

3.3 - Construtivismo – Uma via transdisciplinar para a


compreensão da complexidade do desenvolvimento cognitivo-
afetivo

Desde suas expressões culturais mais remotas, o homem vem demonstrando uma
característica que se confunde com sua própria “natureza”45: buscar conhecimento. Não
seria tarefa das mais difíceis compreender esta necessidade imperativa de aquisição de
conhecimento caso a consideremos como fator fundante na manutenção da sobrevivência.
Ora, para se sobreviver em meios muitas vezes inóspitos devemos “controlar” este meio.
Devemos conhecer as possibilidades de abrigo contra as intempéries naturais, de aquisição
de alimento e água, também devemos conhecer quais fatores oferecem perigo à
sobrevivência e, por fim, devemos conhecer nossos semelhantes. A história da civilização
também pode ser explicada nesta linha reflexiva, ou seja, na busca de conhecimento
empreendida pelos seres vivos para uma melhor adaptação ao meio. Todavia, neste
momento, o que nos interessa não é adentrarmos nas origens pré-históricas desta busca,
mas sim nos remetermos a um tipo de conhecimento único, sui generis, e que sabemos ter
origem na Grécia com os “filósofos da natureza”.
A peculiaridade desta forma de “conhecer”, nascido na antiga Jônia, já intrigou
muitos pesquisadores. Por que a busca do conhecimento na Grécia tomou ares distintos?
Por que a civilização grega conseguiu dar este “salto” que a separou, gradativamente, de
uma “leitura” animista de mundo, caracterizada por explicações míticas da natureza?
Sócrates, em sua teoria do conhecimento, questionou criticamente a relevância dos sentidos
e das opiniões na aquisição do “saber verdadeiro”. Estas seriam questões fundamentais para

45
- Adotamos, segundo Mora (1998), a seguinte conceituação de natureza: “O conceito de natureza é um
conceito da ‘física’ ou, se se quiser, da ‘ontologia da realidade corporal-orgânica” (p. 76).

59
que Platão consolidasse sua visão do “mundo das coisas” enquanto uma realidade
incompleta e devedora de formas ideais, onde somente o conhecimento intelectual poderia
ter acesso ao ser e à verdade. Logo, já demarcando uma das características fundamentais da
filosofia, Aristóteles propõe, contrariamente a Platão, que os dados sensoriais seriam os
vetores essenciais na constituição do conhecimento, e que os sentidos não se contradizem
ao intelecto, mas o enriquecem.
Seguramente, esta introdução à teoria do conhecimento é de pretensões modestas.
Contudo, para se propor uma introdução filosófica ao construtivismo, é necessário
acrescentar que a importância desta reflexão se origina exatamente dos inúmeros
desdobramentos que o “conhecer” assume na história da filosofia ocidental. Pensamos que,
também com os filósofos modernos do século XVII, influenciados severamente pelo
imaginário cristão, as questões entre conhecimento inato e adquirido assumiram, a
princípio, novas proporções paradigmáticas sem, no entanto, oferecer soluções destituídas
de conceituações separativistas entre mente/corpo.
Qualquer esforço filosófico que vise empreender a tarefa de conceituar uma postura
epistemológica como o “construtivismo”, requererá uma reflexão heurística e instrumental,
isto decorrente de sua ampla ressonância no campo das ciências humanas, exatas e
biológicas. Enquanto caráter precursor do construtivismo, no mínimo podemos considerar
que uma teoria do conhecimento imbuída desta atribuição, acompanha diversas escolas
filosóficas, seja através de reflexões mais sutis, seja por posicionamentos mais
contundentes e estritamente de acordo com a idéia de que o homem alicerça e desenvolve
suas capacidades cognitivas e afetivas em um ininterrupto processo ativo-vivencial. De
forma geral, uma leitura construtivista do conhecimento deve ter sob suas bases conceituais
alguns pressupostos fundamentais, ou seja, para que possa superar os impasses
apresentados pelas epistemologias tradicionais – ditas realistas – deve assumir o caráter
“não dado” do objeto. Isto se fez pela superação da tese de que possuímos conteúdos inatos
na mente, assim como pela superação da tese empirista, a qual defende a possibilidade de
extrairmos conhecimento pelas representações, espelhadas na natureza (RORTY, 1988), ou
pelos modelos experimentais objetivistas. Decorrente desta crítica, surge o binômio
conhecimento-experiência, onde nossas ações são passíveis de serem elaboradas e
reelaboradas em um mundo de fenômenos.

60
Este termo parece conter em seu bojo conceitual uma generosa amplitude
epistemológica que acaba por abarcar uma série de concepções filosóficas que se
aproximam, por assim dizer, das noções construtivistas contemporâneas. Encontramos na
história da Filosofia algumas escolas que adotam um posicionamento diante do
conhecimento, que podem ser atribuídos a este termo em seu contexto atual. Sendo assim,
tudo leva crer que o construtivismo, seja em seus antecedentes filosóficos, seja em sua
generosa amplitude conceitual contemporânea, suscita algumas questões:

a) É um intento de larga envergadura e propenso a dispersões e contradições.


b) Sobre seu amplo território conceitual e instrumental, observamos uma série de
denominações e concepções epistemológicas que podem ser remontadas aos
primórdios da Filosofia.
c) Constitui-se sempre enquanto um elemento epistemológico de interdependência
entre aquele que observa-constrói e o que é observado-construído.
d) Um termo de acesso tortuoso, decorrente dos vários sentidos adotados pelas
diversas abordagens contemporâneas, que o utilizam para estabelecer os elementos
centrais de suas epistemologias.

Sendo assim, rastrear rigidamente as origens do construtivismo, assim como querer


abarcá-lo sob apenas uma denominação, seria tarefa que destitui a complexidade que está
imersa na história deste “procedimento” epistemológico. Contudo, podemos percorrer
historicamente alguns posicionamentos filosóficos que nos auxiliarão a construir nossa
compreensão do que vem a ser estas “posturas construtivistas”.
Também devemos argumentar que nos limitaremos a resgatar apenas algumas
atribuições filosóficas desta postura epistemológica, para que então possamos nos focar,
mais especificamente, em um contexto “psicológico” atribuído contemporaneamente ao
“construtivismo”. Quanto à complexidade de se abordar as inúmeras leituras que este termo
vem suscitando, Grandesso (2000) acrescenta que “a diversidade e os questionamentos
seriam ainda maiores caso incluíssemos outros campos, como o do direito, o da biologia,
matemática, sociologia, filosofia e antropologia em suas vertentes construtivistas” (p. 58).
Seguramente, não seria nossa tarefa adentrarmos nas especificidades epistemológicas e

61
instrumentais a partir das inúmeras disciplinas, as quais incorporam em maior ou menor
grau, uma postura diante do conhecimento inerente ao construtivismo, qualquer que seja
ele. Todavia, ainda que nossa base disciplinar seja a psicologia, o que realmente queremos
dizer com isso? O termo “psicologia” pode ser considerado tão vago e obscuro quanto o
próprio conceito de construtivismo, caso o situemos a partir de um contexto pós-moderno.
As linhas e correntes de pensamentos que são denominadas (ou se auto-denominam)
“psicológicas”, seja em um sentido clássico, seja de outras escolas que emergiram destas,
podem deixar qualquer “psicólogo” atônito diante da vertiginosa ramificação
epistemológica de seu campo profissional46. Ao adotarmos uma postura metodológica onde
o biológico, o antropológico, o psicológico, o físico e o social são indissociáveis para uma
compreensão complexa do desenvolvimento cognitivo-afetivo, como poderemos nos referir
apenas aos aspectos psicológicos do construtivismo? Sendo assim, devemos ser cuidadosos
ao especificar a dimensão disciplinar na qual situaremos o construtivismo, já que um
projeto que almeje a compreensão do desenvolvimento cognitivo-afetivo a partir de uma
visão transdisciplinar requer, conseqüentemente, uma abertura conceitual deste termo para
que possa ser estendido a outras dimensões do humano, especificamente abordadas por
outras disciplinas. Tampouco o construtivismo deve se referir a uma teoria particular ou
"escola" psicoterapêutica, mas deverá ser utilizado no sentido de uma “metateoria”, isto é,
um "marco conceitual último que restringe mas não determina (dedutivamente) as teorias
substantivas" (MIRÓ,1994, p. 19). Ao final desta breve reflexão epistemológica47,
esperamos situar o construtivismo de tal maneira que nos possibilite integrar a
complexidade organizacional que constitui nosso aparelho cognitivo-afetivo.

3.3.1 – Um breve transcurso histórico

46
- Para maiores detalhes, remetemos o leitor ao minucioso trabalho de Figueiredo (1991 ) quanto à
densidade epistemológica que percorre a história do pensamento psicológico.
47
- Como acrescenta Dupuy (1996, p. 113) “o que mantém juntos, hoje em dia, os múltiplos programas de
pesquisa que são agrupados sob o nome ‘ciências cognitivas’ é o trabalho filosófico que é feito acerca deles.
Sem filosofia ‘cognitiva’, haveria trabalhos nas áreas de psicologia, da lingüística, da neurobiologia, da
inteligência artificial – não haveria ciência da cognição. A filosofia é que reflete e sistematiza a ou as atitudes
de base que constituem o único laço social no interior da área”.

62
Não há como sustentar uma visão da realidade que seja verdadeira para todos.
Todavia observamos, ironicamente, que grande parte da história da filosofia foi contrastada
em duas bases epistêmicas, as quais buscavam resolver o problema do conhecimento
estancando-o em posições extremas, seja advindo de uma estrutura cognitiva inata, seja
pela extração empírica do conhecimento pelos sentidos. Podemos considerar o termo
“construtivismo” enquanto um neologismo, caso ainda não queiramos situá-lo a partir de
qualquer especificidade conceitual surgida no século XX ou, mais pontualmente, segundo a
epistemologia genética de Jean Piaget e no sócio-interacionismo de L.S. Vygotsky. Logo,
esta “postura” diante do conhecimento pode ser encontrada nos primórdios da Filosofia.
Vejamos mais detidamente esta questão.
A essência conceitual do construtivismo pode muito bem ser remontada às reflexões
de Heráclito de Éfeso. Segundo Platão, “Heráclito diz em algum lugar, que todas as coisas
se movem e nada permanece, comparando as coisas existentes com a corrente de um rio.
Diz ele que não te poderias submergir duas vezes no mesmo rio” (PLATÃO, Crátilo, 402,
A). Seria neste sentido que somos os mesmos e não somos ao mesmo tempo; que o ser não
é e não pode ser. O fenômeno humano se encontraria intrinsecamente imerso em um
caudaloso processo natural de mudanças, que o remete a todo momento a refazer seus
princípios. Ora, isto alude a um ininterrupto processo de ser e vir a ser, e este pressuposto é
intrínseco a qualquer epistemologia sob moldes construtivistas.
Protágoras de Abdera (1973), pensador grego do período socrático, já dizia que em
todas as coisas há duas razões contrárias entre si. Também em sua obra Sobre a verdade,
observamos o caráter construtivista atribuído ao homem nesta célebre sentença: “O homem
é a medida de todas as coisas. Das que existem, como existentes, das que não existem,
como não existentes” (p. 82). Fica evidente o posicionamento relativista de Protágoras,
indo de encontro à Filosofia Socrática, então contemporânea, a qual tinha inspirações
universalistas e totalizantes do ser.
De acordo com Mora (1998), Pirrón de Ellis surge como uma figura de destaque em
nossa reflexão aos nos referirmos ao período helenístico. Considerado o fundador da escola
cética, este sofista argumentou sobre a impossibilidade de se conhecer a realidade objetiva,
assim como em determinar a verdade ou falsidade das coisas. Seria uma postura filosófica

63
adotada a partir de uma dúvida radical frente ao mundo e na impossibilidade de se
transgredir nossas capacidades perceptivas e sensórias. Segundo a escola cética, tampouco
estas apreensões dos sentidos nos permitem conhecer o mundo como tal, já que este contato
“vivido” apenas revela o que parece ser, não avalizando um testemunho direto do que é.
Sendo assim, não existe uma referência sólida quanto à construção do conhecimento, a não
ser a nossa própria construção do mundo.
Já no século XVII, Gianbattista Vico (apud GLASERSFELD, 1994) apresenta seu
“Principi de una Scienza nuova d'intorno alla commune natura della nazione”. Esta obra se
propõe a ser uma “ciência do homem”, já que concebe o conhecimento enquanto um mero
esforço humano e construído ativamente. Para Vico, o homem só pode saber sobre o
homem, pois o que é externo a ele não pode ser nem mesmo intuído. Logo, sua teoria do
conhecimento se rebela contra o famoso “Cogito, ergo sum” cartesiano em sua pretensa
suposição de que na mente se encontram nossas certezas primárias. Para Vico, a filosofia
cartesiana era sustentada por afirmações “desencarnadas”, o que levava a uma alienação da
consciência. A autoconsciência do “cogito” é arreflexiva e não pode ser a base para o
conhecimento científico. Para Vico, o princípio que deve nortear todo o conhecimento é o
verum factum, “a verdade corporificada”. Logo, só podemos conhecer o que criamos
enquanto humanos plenos de nossa sensorialidade. Uma vez que a mente humana não é sua
própria criação, o homem não pode ter uma idéia clara e nítida sobre ela e, a fortiori, a
autoconsciência da mente não pode ser um critério para o conhecimento.
Para finalizarmos este breve transcurso histórico das raízes conceituais e ideológicas
do construtivismo, um nome não poderia estar ausente. Podemos considerar que Friedrich
Nietzsche foi um dos mais contundentes pensadores de todos os tempos a se opor à frieza
filosófica do racionalismo, assim como dos preceitos repressores dos instintos, também
promulgados pelo cristianismo institucionalizado. Façamos apenas uma citação, retirada de
sua Genealogia da moral (NIETZSCHE, 1996):

“Este animal a quem se quer domesticar mas que se fere nos ferros da própria jaula,
e que se quer amansar, esse animal passando privação e devorado pela saudade do
deserto, (...) esse nostálgico e desesperado prisioneiro foi o inventor da “má
consciência”. Com ela, porém, foi introduzido o maior e mais inquietante
adoecimento, do qual a humanidade até hoje não convalesceu, o sofrimento do
homem consigo mesmo: como conseqüência de uma violenta separação do passado
animal, de um salto e mergulho, por assim dizer, em novas condições de existência,

64
de uma declaração de guerra contra os velhos instintos sobre os quais, até então,
repousara sua força, prazer e terribilidade” (p. 354).

À luz do construtivismo contemporâneo, tal colocação não só apresenta uma crítica


contundente aos valores separativistas mente-corpo do racionalismo e da prática cristã
européia, como aponta o caminho necessário para uma interlocução entre nossa dimensão
somática e psíquica.
Esta é apenas uma seleção arbitrária de pensadores que podem ter seus nomes
associados a um projeto precursor do construtivismo. Seguramente, não temos a intenção
de sermos exaustivos e muito menos categóricos quanto a objetarmos sobre outros
“arranjos” de pensadores48. Cumpre-se apenas o papel de instruir o leitor que este termo
pode ser aproximado a um amplo espectro de reflexões filosóficas.

3.3.2 - Construtivismo e contemporaneidade

Apresentamos alguns pensadores que podem ter seus nomes associados, em maior ou
menor grau, a alguns pressupostos gerais os quais virão a ser temas centrais das
epistemologias construtivistas no século XX. Esperamos ter esclarecido que seria uma
tarefa fadada ao fracasso querer encontrar uma única leitura desta “postura”
epistemológica. Ao focarmos nas diversas escolas e autores contemporâneos que utilizam
este paradigma, nos deparamos com um quadro um tanto delicado. Observamos
contemporaneamente, uma razoável variedade de abordagens que lançam mão, de uma

48
- A assim chamada “revolução copernicana na Filosofia” de Kant teve vários desdobramentos, gerando
interpretações construtivistas idealistas (como as de Hegel, Fitche ou ainda de Schopenhauer), pragmatistas
(como a de Hans Vaihinger) e realistas (como a de Karl Popper). Schopenhauer afirma na primeira frase de
sua obra prima O Mundo como Vontade e Representação : “O mundo é uma representação minha”. Hans
Vaihinger, em A Filosofia do “como-se”, argumentou que nossas teorias seriam ficções conscientes cujo
objetivo não é alcançar a verdade sobre o mundo, e sim, orientar nossas ações eficientemente,
pragmaticamente. Karl Popper, que dá o nome à escola filosófica fundada por ele de “Racionalismo Crítico”
em homenagem ao criticismo kantiano, acredita (Popper, 1977) que sua filosofia é uma interpretação realista
da filosofia kantiana.

65
forma ou de outra, da palavra “construtivismo”.Grosso modo, e de acordo com nossos
interesses, queremos nos referir a dois desdobramentos do movimento construtivista:

a) O construtivismo advindo da epistemologia genética de Jean Piaget e o


construtivismo radical de Ernest Von Glasersfeld. Enquanto fecunda variante do
construtivismo radical, ressaltamos a “biologia do conhecer” de Humberto Maturana e
Francisco Varela.
b) O construtivismo social ou mais comumente chamado de sócio-interacionismo,
desenvolvido inicialmente por L. S. Vygotsky e Luria, e de seus consecutivos
desdobramentos, através das escolas construcionistas sociais, tendo como suas
maiores expressões os psicólogos K.J. Gergen e J. Shotter.

Ambos os movimentos possuem alguns pontos que demarcam nitidamente sua ruptura
com o paradigma da modernidade. De acordo com Grandesso (2000) observa-se:

Quadro 3.1: Interface entre o construtivismo e o construcionismo social (GRANDESSO, 2000, p. 104)

- confronto da certeza e objetividade → ênfase na natureza construída do conhecimento


- compatibilidade metodológica → o observador age experimentando o mundo como
construção
- o observador é que cria as distinções a que chama de realidade
- o desafio da noção de mente como dispositivo para refletir a natureza
- descarte da visão correspondentista da linguagem como representação icônica do mundo
- ênfase na reflexidade e auto-referência na construção do conhecimento
- contexto social → território comum para a construção da realidade
- rejeição da noção essencialista de self

De início, talvez seja mais coerente inserir a idéia de que o construtivismo, em um


sentido geral, pode ser considerado enquanto um movimento heterogêneo, de ampla
envergadura ou, como diria Glasersfeld (1996, in: SHINITMAN, p. 82), “um modo de
pensar e não uma descrição do mundo”. Também seria conveniente considerarmos o
“movimento construtivista” enquanto um “metaparadigma” (FEIXAS & VILLEGAS,
1993), já que oferece consistentes possibilidades integradoras entre as diferentes áreas
acadêmicas. Também poderíamos considerar, de acordo com Paul Watzlawick (1994), que
o construtivismo não cria nem ‘explica’ nenhuma realidade exterior; ele revela que não

66
existe um interior e um ‘exterior’, um mundo de objetos que se encontre diante de um
sujeito. Seria neste contexto que consideramos o construtivismo, seja na linha piagetiana ou
radical, seja no construtivismo-construcionismo social, como epistemologias adequadas a
um projeto pós-moderno que visam uma compreensão transdisciplinar do desenvolvimento
cognitivo-afetivo e, especificamente, para a compreensão da complexidade do processo
elaborativo. Todavia, não podemos aceitar que estes dois movimentos, representados pelas
escolas citadas - as quais, por sua vez, também exigem reflexões epistemológicas internas -
compartilhem dos mesmos fundamentos construtivistas. Decorrente deste impasse, torna-se
uma tarefa árdua definir estes desdobramentos do construtivismo sob um mesmo aspecto e,
acima de tudo, adequá-los de forma clara aos nossos interesses. Quando nos aprofundamos,
primeiramente, nas particularidades epistemológicas destes dois grandes movimentos que
buscam romper com os preceitos científicos da modernidade, nos deparamos com alguns
pressupostos básicos que não podem ser colocados lado a lado tão rapidamente. Ao
confrontarmos as epistemologias tendenciosamente “sociais” do construtivismo – mesmo
não relevando suas evidentes particularidades – à epistemologia genética de Piaget,
observamos que, para o último, os desdobramentos maturacionais da estrutura orgânica
devem ser respeitados para que se possa haver uma evolução do desenvolvimento
cognitivo-afetivo. Pesquisas mais recentes que se preocupam em constatar os “universais
cognitivos” (BODEN, 1983), ou seja, se podem ser encontrados os mesmos estágios de
desenvolvimento em diferentes culturas, consideram que pode haver atrasos ou avanços em
relação às idades médias em que certas noções cognitivas são adquiridas. Todavia, a ordem
de construção destas noções, assim como de suas estruturas, é similar e constante. Esta
consideração corrobora um dado epistemológico genético da teoria piagetiana a qual, por
sua vez, contesta o fato de que seria nas interações sociais, em si mesmas, que se daria o
desenvolvimento cognitivo. Segundo Piaget, o desenvolvimento cognitivo-afetivo deve
estar em acordo com a existência de estruturas intelectuais prévias. Logo, devemos
considerar que as interações sociais suscitam novos arranjos cognitivos e afetivos, mas que
devem respeitar os fatores de auto-regulação e equilibração. Como Piaget (1978) propõe, os
processos cognitivos superiores são decorrentes de sucessivos processos adaptativos de
esquemas de ação.

67
Se nos referimos a um contexto construtivista radical e, especificamente, à “biologia
do conhcer” de Maturana e Varela (2002), observamos um aprofundamento ainda maior em
prol dos aspectos que ressaltam uma singularidade cognitivo-afetiva, demarcando os limites
desta construção em estreita relação com nossas particularidades bio-estruturais. Sendo
assim, também não podemos encontrar uma calorosa colaboração desta epistemologia com
as “vertentes sociais” do construtivismo, já que estas não aceitam o pressuposto básico de
que "selecionamos" as perturbações do meio segundo nossa organização estrutural, e de
que o sistema nervoso funciona a partir de uma “clausura operacional”. Esta posição é
central à “bilogia do conhecer” e define as fronteiras ontológicas e epistemológicas entre
estas duas abordagens.
Logo, devemos demarcar nosso posicionamento “construtivista” por um motivo
básico: será de acordo com esta escolha que definiremos o “alicerce” epistemológico de
nosso método transdisciplinar. Neste sentido, acreditamos que os profícuos desdobramentos
da cibernética de segunda ordem, bem representados no construtivismo radical e na
“biologia do conhecer”, nos fornecem as ferramentas necessárias para possamos
fundamentar um “arranjo” epistemológico que se adeque naturalmente a uma visão
transdisciplinar do desenvolvimento humano e, oportunamente, para a compreensão do que
chamamos de “elaboração”.
Devemos deixar claro que nosso posicionamento diante do desenvolvimento afetivo-
cognitivo e de nossas posteriores reflexões quanto à compreensão do processo elaborativo
na clínica se adequará, fundamentalmente, ao que se denomina enquanto um
“construtivismo radical” em seu amplo sentido, já que consideramos sobre as mesmas bases
epistemológicas a “biologia do conhecimento” de Maturana e Varela (2002). Acreditamos
que as vertentes construtivistas que se debruçam com afinco sobre as bases biológicas da
cognição, propostas inicialmente por Piaget e “radicalizadas” por Von Foester, Von
Glasersfeld, Henry Atlan, Maturana e Varela, estão aptas para compreender a singularidade
humana e, conseqüentemente, as singularidades inerentes a cada processo elaborativo.
Ao apresentarmos oportunamente algumas considerações sobre construtivismo
radical, devemos argumentar um pouco mais sobre a validade de nossa escolha, já que o
debate entre construtivistas e construcionistas sociais decorre de longa data. No lugar de
buscarmos “soluções” integradoras entre os dois movimentos, tentaremos esclarecer,

68
oportunamente, o mal entendido de que o construtivismo, seja representado pela
epistemologia genética de Piaget, seja pelo construtivismo radical, se encontra em um
extremo “individualista” ao empreender sua visão do desenvolvimento cognitivo-afetivo.
Em outros termos, ainda que defendamos uma base biológica da cognição, buscaremos
argumentar que isto, em hipótese alguma, coloca em “segundo plano” a esfera sócio-
cultural.

Conclusão – Unidade I

Os objetivos centrais desta unidade foram:

a) Problematizar o conceito de elaboração, questionando seus pressupostos e, acima


de tudo, argumentando sobre as tendências advindas de uma longa história de negação
do corpo e do descrédito dos intrínsecos elementos orgânicos do desenvolvimento
cognitivo-afetivo.
b) Conseqüentemente, busca-se uma rearticulação da corporeidade enquanto
dimensão constitutiva do processo elaborativo.
c) Decorrente destas problematizações, romper com os referenciais epistemológicos e
ontológicos da modernidade, apresentando, a partir desta ruptura, um ambiente
propício aos valores contemporâneos da clínica psicoterápica, os quais referenciamos
ao paradigma da pós-modernidade.
d) Propiciar um ambiente metodológico condizente aos valores pós-modernos,
associados a uma proposta de pesquisa transdisciplinar de molde construtivista.
e) Apresentar uma proposta compreensiva do desenvolvimento cognitivo a partir de
uma leitura sistêmica e de acordo com uma epistemologia construtivista que respeite
as bases biológicas do desenvolvimento cognitivo.
f) Introduzir a possibilidade de um alargamento do conceito de autopoiese,
apresentando alguns possíveis desdobramentos que visam situar o processo
elaborativo a partir de uma complexidade que transcende o contexto clínico.

69
Apresentamos nesta unidade I todas as ferramentas que usaremos para construir nossa
“obra de arte”. Juntamente às ferramentas, falamos de suas funções, de suas possibilidades
e, acima de tudo, falamos de ferramentas as quais consideramos inoportunas. Também
pensamos ter apresentado um razoável projeto de quais serão os passos a serem “seguidos”
na execução de nossa obra. Quanto à unidade II, resta-nos apenas colocar em prática nossa
capacidade, ou não, de sermos “artesãos”. Ser artesão não implica, somente, em ter as
ferramentas certas, ainda que consegui-las represente, seguramente, um grande passo. Mas
colocar em prática o ofício de “artesão” envolve nossos talentos “clínicos” e, sobretudo,
humanos. Envolve nossa compreensão do que consideramos enquanto “arte” ou, de forma
mais justa, o quanto de arte podemos produzir. Cabe-nos agora olhar para o horizonte de
nossa clínica, vislumbrar e recordar nossa própria história e de nossos pacientes; de nosso
desenvolvimento afetivo-cognitivo. Devemos ser observadores de primeira e segunda
ordem e usar as ferramentas para dar forma à nossa arrojada proposta de “complexificar” o
projeto elaborativo. Cabe-nos agora manusear as ferramentas, com otimismo de que nossa
construção possa, no mínimo, problematizar o que se considera por “elaborar”.

70
UNIDADE – II

4 - Desenvolvimento humano a partir de uma visão


transdisciplinar – Fundamentações para uma compreensão
do processo elaborativo

“Se difiro de ti, longe de te fazer mal, torno-te maior”


Saint-Exupéry

4.1 – Proto-cognição fetal – Gênese do aparelho cognitivo?

Este sub-capítulo é de pretensão modesta. Enquanto objetivo central, cumpre a tarefa


de introduzir o leitor a algumas questões fundamentais sobre o desenvolvimento humano e
de oferecer um razoável suporte compreensivo para os desdobramentos posteriores de
nossa pesquisa. Apresentamos a seguir alguns questionamentos que nortearão nossa
reflexão:

a) Podemos dizer que se apresenta no feto algum tipo de sistema cognitivo?

71
b) Se há algum tipo de cognição, qual o papel desempenhado pela gestação na
fundamentação do aparelho sensório-perceptivo?
c) Se há algum tipo de cognição, devemos considerar o desenvolvimento cognitivo a
partir desta etapa?
d) Até que ponto fatores hereditários, congênitos e ambientais interferem na
construção do aparelho sensório-perceptivo?
e) Esta etapa interfere nas possibilidades elaborativas futuras?

Seguramente, estes questionamentos não cumprem a tarefa de esgotar a complexidade


deste tema. Tampouco devemos considerar o aparelho sensório-perceptivo enquanto as
únicas estruturas a sofrerem interferência neste período. Ao adotarmos uma postura
construtivista para o entendimento humano, o sistema mãe-feto deve ser considerado em
sua totalidade e, de forma ainda mais abrangente, juntamente com todo o sistema familiar e
sócio-cultural. Todavia, focaremos “apenas” algumas interrogações quanto aos fatores
primários que fundamentam a construção de nosso aparelho sensório-cognitivo-afetivo.
Estas reflexões devem cumprir o papel de alertar ao leitor quanto à complexidade do tema.
A psicologia do desenvolvimento sempre foi marcada pela ainda existente
controvérsia sobre quais fatores seriam decisivos na constituição da complexidade humana,
ou seja, fatores genéticos ou fatores ambientais. Pensamos que nas reflexões anteriores, já
apresentamos alguns posicionamentos que delineiam uma possível compreensão do
assunto. Mas para que possamos formar um quadro mais elucidativo, tanto do período pré-
natal quanto pós-natal, devemos aprofundar um pouco mais nestas questões.
Segundo Vitor Geraldi Haase (2000), pesquisador do Laboratório de Neuropsicologia
do Desenvolvimento da UFMG, começaram a se acumular a partir dos anos 60, evidências
de que a influência ambiental atua enquanto um poderoso emissor de estímulos capazes de
interferir decisivamente sobre o código genético, co-determinando, inclusive, a própria
estrutura cerebral. Assim como Waddington (1957) acrescentou, o desenvolvimento
humano estaria em acordo com sua epigênese49. Neste contexto, se faz inevitável a

49
- Segundo Frota-Pessoa (1994), epigênese refere-se às interações entre genes e ambiente que dão origem ao
fenótipo. Um traço é epigenético se resulta de uma predisposição genética que se completa e revela, sob
influência ambiental. Confunde, portanto, o leitor, dizer que algo ‘amplia o alcance (...) para além da

72
intercessão entre os contingentes fatores ambientais e o repertório “programático”
genético. Sendo assim, o fenótipo, seja comportamental ou somático, é o resultado de uma
interação entre genótipo e ambiente. Devemos ter em mente até o final deste estudo, de
que quando nos referirmos ao desenvolvimento humano, estamos atados a uma
necessária compreensão epigenética deste processo.
Segundo Haase (2000), contamos atualmente com dois modelos disponíveis para
compreender a inter-relação entre fatores genéticos e ambientais: O selecionismo e o
construtivismo neural. A partir de experimentos com ratos, observou-se que, ao serem
fornecidos estímulos de qualidades diferentes, estes eram capazes de enriquecer ou
empobrecer o desenvolvimento neurológico. Logo, geravam modificações na estrutura
cerebral as quais seriam condizentes à natureza dos estímulos. Haase propõe então uma
distinção entre estas duas formas de compreensão quanto às mudanças na estrutura cerebral
a partir de estímulos ambientais. As mudanças ocorridas segundo os diversos fatores
culturais, comuns a todos os membros de uma espécie, foram chamadas “expectantes de
experiência ou típicas da espécie, sendo associadas às perdas seletivas de sinapses”
(HAASE, 2000, p. 26). O segundo tipo de informações selecionadas pelo cérebro seriam
aquelas “dependentes da experiência ou típicas do indivíduo, referindo-se às interações
com o ambiente que são ou podem ser específicas para um indivíduo. Estas iterações estão
associadas à formação de novas sinapses” (Id., ibid., p. 26). Os mecanismos expectantes de
experiência ilustram fatores selecionistas. Por sua vez, os mecanismos dependentes de
experiência seriam os fatores construtivistas neurais, os quais apoiam
neuropsicologicamente as teorias construtivistas e, no nosso entender, oferecem uma
razoável fundamentação à proposta de que o sistema nervoso funciona a partir de uma
clausura operacional50. Também já podemos intuir que, se há mudanças neurológicas
particulares, ocasionadas pelas contingências ambientais em inter-relação com o programa
genético, dedutivamente podemos aceitar a multidiversidade e, em última instância, a
“singularidade elaborativa” que cada ser humano estabelece em seu complexo processo de

genética, pois avança por terrenos epigenético’ e falar de hipóteses ‘tanto genéticas como epigenéticas’ ,
sugerindo que o que é epigenético não é genético e fica além da genética.
50
- Este ponto será abordado oportunamente.

73
construção cognitiva. Seguramente, este será um dos temas centrais de nossa pesquisa, o
qual procuraremos consolidar nos próximos capítulos.
Estes dois mecanismos de interação com o ambiente não podem ser compreendidos
separadamente. Até mesmo porque seria uma questão razoavelmente complicada
delimitarmos quais seriam as informações comuns a todos os membros e quais seriam
decorrentes das “singularidade relacionais” que cada um estabelece ou é imposta pelo meio.
Podemos aceitar, e com certa facilidade, que os mecanismos dependentes de experiência
também seriam constituídos de todos aqueles estímulos “aleatórios”, condizentes ao que
Atlan (1992) considera enquanto o “acaso organizacional”. Estes fatores parecem
contribuir, juntamente com fatores selecionistas, para uma espécie de “organização
neuronal singular”, delimitando áreas específicas do cérebro que serão mais exercitadas51.
Como Haase sugere, vêm aumentando a produção de diversas publicações de
psicólogos do desenvolvimento, teóricos e modeladores de redes neurais conexionistas que
buscam revitalizar o construtivismo piagetiano (EDELMAN, 1993; PLUNKETT, et al.,
1997; JOHNSON, 1997). Estas pesquisas vêm oferecendo importantes correlações
anatomo-clínicas em neuropsicologia do desenvolvimento52. A essência do construtivismo

51
- Vejamos uma citação de Haase (2000, p. 35): “Segundo Kolb e Fantie (1997), um escultor pode criar
uma estátua utilizando-se pelo menos de duas estratégias. A estratégia construtivista consiste em misturar
argila com água e ir modelando o objeto. Já o método selecionista consiste em tomar um bloco de pedra e,
utilizando o cinzel, proceder através da eliminaçäo de matéria rochosa até concretizar a forma almejada. De
acordo com a ótica selecionista, o repertório genético da espécie fornece então a matéria bruta, a partir da qual
o ambiente vai esculpir a forma que a experiência do indivíduo assumirá. As principais evidências para o
mecanismo selecionista dizem respeito à chamada morte neuronal programada ou apoptose (Rakic et al.,
1986), à eliminação de sinapses exuberantes e aos mecanismos competitivos entre sinapses. Contagens de
células e elementos sinápticos em fases distintas do desenvolvimento cerebral evidenciaram períodos em que
existem surtos de proliferação celular e depois de brotamento de novas conexões sinápticas, seguidos de
períodos em que ocorrem diminuições drásticas tanto da quantidade de células quanto da quantidade de
neurônios. A morte celular propriamente dita desempenha, no entanto, um papel apenas secundário neste
processo de epigênese da arquitetura neural cerebral. O papel funcional mais relevante está relacionado aos
mecanismos de competição sináptica, que determinarão as variações individuais finais assumidas pela
arquitetura de conectividade sináptica (Edelman, 1992). Estudos neurofisiológicos indicam que os neurônios
mantém uma espécie de constante competição entre si, no sentido de quais unidades vão conseguir formar
conexões umas com as outras. O nível de atividade e, mais importante, o grau de sincronia temporal nas
descargas de cada uma unidade é um dos fatores preponderantes: "those neurons wire together that fire
together" (Wong, 1992)”.
52
- Segundo Eicheler e Fagundes (2005), “Os estágios (elongação, ramificação subcortical, crescimento e
ramificação da matéria cinza, sinaptogênese, eliminação sináptica) são provavelmente a expressão de
programas celulares autônomos, mas eles necessitam ser desencadeados por sinais externos. A cada estágio,
ocorre um crescimento exuberante, seguido por regressão, ambas etapas provavelmente controladas por sinais
externos. O processo global é uma diferenciação condicional celular, resultando em uma diferenciação dos
circuitos neurais. Dessa forma, Innocenti entende que esse princípio tem a vantagem de ser aplicado a todos
os desenvolvimentos celulares e de sistemas, não somente ao sistema nervoso. Assim como tem a

74
estabelece que “a relação entre o estado inicial e o produto final somente pode ser
compreendida se for levada em consideração a construção progressiva de informação”
(HAASE, 2000, p. 29). Logo, a informação transmitida pelo código genético não especifica
completamente esta construção53, assim como ela não é especificada completamente pelos
fatores ambientais. Devemos considerar esta combinação não enquanto a soma das partes,
mas como um novo produto. Esta relação, ainda que remontasse às pesquisas de Piaget,
carecia de substratos neurobiológicos, os quais estão sendo supridos por estas pesquisas
contemporâneas em neuropsicologia.
Como o leitor pode se questionar, ainda não fizemos nenhuma alusão deste complexo
processo do desenvolvimento humano com o período fetal. Ora, esta correlação decorrerá
de uma passagem relativamente simples e dedutivamente lógica, caso aceitemos uma
continuidade aos princípios conceituais da cognição, propostos por Maturana e Varela
(2002). Todavia, antes de apresentarmos estas considerações, devemos contornar algumas
contradições. Em uma obra posterior ao clássico projeto desenvolvido em parceria com
Maturana54, Francisco Varela (1996) apresenta algumas reflexões cruciais. Na linha de
Piaget, Varela propõe acertadamente que a etapa sensório-motora deve ser considerada
como o “coração” dos futuros desdobramentos cognitivos, isto por questões bastante
evidentes. Em primeiro lugar, os esquemas sensório-motores são construídos a partir de
ações literalmente “encarnadas”, já que a criança, nesta etapa, ainda não manipula símbolos
e muito menos uma linguagem conceitual. Sendo assim, ele acrescenta que “as estruturas
cognitivas surgem de esquemas recorrentes da atividade sensório-motora” (VARELA,
1996, p. 18). Todas as estruturas cognitivas “mais elaboradas” irão surgir desta contínua
exploração sensória e motora que a criança estabelece em seus primeiros 18-24 meses. A
riqueza da complexa cadeia simbólica que o ser humano estabelece na vida alicerça suas
bases em experiências sensoriais primárias. Todavia, apresentaremos as seguintes questões:

desvantagem de não ser particularmente novo, embora tenha sido algumas vezes negligenciado por
neurobiólogos desenvolvimentistas” (p. 264).
53
- De acordo com Damásio (1996, p. 137), “o genoma humano (o total da soma dos genes existentes nos
cromossomas) não especifica toda a estrutura do cérebro. Não existem genes em número suficiente para
determinar a estrutura precisa e o local de tudo em nossos organismos, muito menos no cérebro, onde bilhões
de neurônios estabelecem os contatos sinápticos. A desproporção não é sutil: transportamos provavelmente
cerca de cem mil genes e possuímos mais de dez trilhões de sinapses no cérebro”.

75
a) Por acaso o autor está inferindo que não existe um “proto-cognição” anterior à
clássica etapa sensório-motora apresentada por Piaget?
b) Em outros termos, todas as diversas e complexas explorações sensórias e motoras
que o feto realiza no útero materno não podem ser consideras enquanto uma “proto-
etapa” sensório-motora?

De acordo com criativa conceituação de cognição, apresentada na obra conjunta de


Maturana e Varela (2002), “o comportamento não é uma invenção do sistema nervoso. Ele
é próprio de qualquer unidade vista num meio onde especifica um domínio de
perturbações” (p. 158). Sendo assim, até mesmo um vegetal possui “cognição”, já que pode
haver mudanças estruturais na planta a partir de suas interações com o meio. O exemplo
que os autores apresentam se refere às mudanças estruturais ocorridas na Sagitaria
sagitufolia. No meio aquático, este vegetal assume uma forma totalmente distinta quando
está na superfície, demonstrando que seu “comportamento estrutural” é condizente com os
estímulos do meio. Também podemos fazer referência ao comportamento de certos
protozoários, os quais estabelecem um mecanismo de seleção e, conseqüentemente, do
estabelecimento de uma ação condizente aos estímulos fornecidos pelo meio. Nesta mesma
linha de raciocínio, seguramente poderemos afirmar que o feto já apresenta um proto-
sistema cognitivo pois, por si só, a organização fetal é muito mais complexa do que um
vegetal ou um protozoário55.
Pode se objetar que todas as respostas do feto seriam decorrentes de mecanismos
instintivos, herdados geneticamente, e que ainda não estariam presentes um equilíbrio
progressivo entre um mecanismo assimilador e uma acomodação complementar e, muito
menos, representações mentais. Segundo Piaget (1978), deve se considerar que ao exercitar
um determinado reflexo, consolida-o por funcionamento, possibilitando uma

54
- MATURANA, H.R, VARELA, F. A árvore do conhecimento – as bases biológicas da compreensão
humana, São Paulo: Palas Athena, 2002.
55
- Segundo Changeux (1991) “um fato é certo: muito precocemente, circula uma intensa atividade
espontânea no sistema nervoso do embrião e do feto que se mantém durante todo o desenvolvimento. Por
volta do sexto mês de gravidez, o aparelho auditivo já quase adquiriu as disposições que virá a ter na fase
adulta. Os receptores do tato precederam-no, o sistema visual seguir-se-á. Todas as funções sensoriais do
adulto estão definidas muito antes do nascimento e manifesta-se muito precocemente uma atividade
espontânea. O comportamento não é ainda do adulto, mas surgem respostas evocadas que se misturam com os
‘sonhos do embrião’ e se intensificam durante as etapas do desenvolvimento que prosseguem além do
nascimento” (p. 225).

76
“generalização” ou “recognição” desta assimilação. Mas, ao que tudo indica, estes
mecanismos só seriam referenciados a partir do primeiro mês de vida, quando se inicia o
segundo sub-estágio sensório-motor. Piaget (1990) chega até mesmo a se referir a uma
“passagem do instinto à inteligência ou, dito de outro modo, o processo de irrupção dos
instintos” (p. 62)56. Estas questões poderiam ser contornadas a partir do momento que o
leitor amplia e revitaliza o conceito de cognição, levando em consideração as contribuições
de Maturana e Varela. Ainda que aceitemos a existência dos reflexos hereditários efetuados
pelo feto ou pelo nascituro (acomodação do corpo, encurvamento das costas, de
enlaçamento, succção, deglutição etc), devemos enfatizar que ao nos referirmos à
“cognição fetal”, nomeamos esta fase enquanto uma “proto-etapa” sensório-motora, e que
não deve ser confundida, na íntegra, com os mecanismos que vão ser estabelecidos e
desenvolvidos nos 18 meses da etapa sensório-motora piagetinana. Logicamente, se nos
situamos a partir de uma leitura construtivista do aparelho cognitivo, a cada mês vão sendo
acumulados e reformulados uma série de esquemas de ações. Mas este processo de
complexificação da cognição não implica que não haja uma “primitiva” seleção dos
estímulos externos ao útero e, sobretudo, no intenso “trânsito” bioquímico e afetivo
estabelecido pelo cordão umbilical e pelo meio uterino.
Apresentaremos a seguir alguns questionamentos que visam apenas a dar
continuidade ao criativo conceito de cognição, apresentados por Maturana e Varela em seus
trabalhos conjuntos, assim como propor ao leitor que o período fetal pode ser considerado o
verdadeiro início de uma proto-etapa sensório-motora.

4.1.1 – Proto-cognição fetal – Uma cognição sensório-motora?

56
- Curiosamente, Piaget (1990) faz as seguintes citações: “Por um lado, como já foi dito, o fenótipo
apresenta-se como uma resposta do genoma às ações do meio, e L.L. White chega mesmo a atribuir à célula
um poder de regulação das mutações” (p. 64). Também devemos citar: “O fenótipo é apresentado pelas
noções atuais como o produto de uma interação indissociável, desde a embriogênese, entre os fatores
hereditários e a influência do meio” (p. 59). A título de de demarcação conceitual, deve-se considerar como
influência hereditária aquelas provindas dos genes que procedem dos pais, já as influências inatas seriam
aquelas que são produzidas por mutações genéticas espontâneas ou induzidas pelo ambiente, e as influências
congênitas seriam decorrentes de fatores intra-uterinos que afetam o embrião humano.

77
Considerando inicialmente alguns fatores bioquímicos que estão presentes nos
sistemas mãe-feto57, fazemos menção, novamente, ao caráter qualitativo e quantitativo
desta relação, o qual incide, necessariamente, na natureza dos estímulos sensórios. Tanto
podemos nos referir à excessiva estimulação dos sistemas, quanto uma carência de
estímulos nutridores essenciais, seja por fatores exógenos ou endógenos58. Estes fatores
podem contribuir para graves alterações bioquímicas no cérebro fetal.
Rascovsky (1977) acrescenta que os hormônios maternos também atuam como
reguladores da expressão genética, e que mudanças agudas no nível hormonal materno
induzem mudanças neurológicas no feto, as quais são retidas até a vida adulta. Também se
observa, segundo o autor, que na liberação de corticotrofina e com o aumento do cortisol
plasmático na mãe, ou seja, decorrente de situações de estresse, podem ser produzidas
alterações intra-útero no cérebro do feto, exatamente por estar o mesmo em processo de
maturação. Em acordo com Pichon-Riviére (1950), os esquemas corporais pós-natais são
devedores de proto-esquemas, nos quais vão sendo elaboradas e organizadas sensações as
mais variadas. Não devemos nos esquecer que, desde cedo, o feto interage com o ambiente
externo e, principalmente, com estímulos provindos da mãe. Seria uma tarefa árdua, se não
inviável, refutar que o feto não capta as mudanças metabólicas decorrentes de estados
emocionais vividos pela mãe, como medo, raiva, tristeza ou alegria. Como sugerimos, os
estímulos traumáticos reiterativos são fatores importantes que influenciam na construção de
uma proto cognição fetal. Um estado de medo crônico vivido pela mãe, por exemplo, pode
se manifestar em complexo quadro de interações psicossomáticas as quais acarretam, dentre
outras formas de conseqüências, em um persistente estado simpaticotônico,
sobrecarregando o metabolismo da mãe e do feto com excessivas cargas de substâncias
estressoras.
Esta primitiva organização fetal, provindas de proto-esquemas interoceptivos,
proprioceptivos e exteroceptivos, são continuamente registradas, já que estes estímulos

57
- Caso consideremos esta relação a partir de um referencial sistêmico apresentado por Luhmann (1996),
devemos aceitar que a mãe atua enquanto ambiente para feto.
58
- Devemos considerar estes campos de forma bastante flexível e a partir uma lógica sistêmica de
funcionamento. Citando alguns fatores de risco, vemos: álcool, drogas lícitas e ilícitas, excessos físicos e
alimentares, desequilíbrios endócrinos”, radiografia, idade materna, doenças maternas (diabetes, tuberculose,
sífilis, toxoplasmose, rubéola etc), stress, dentre outros. Devemos considerar o stress do sistema mãe-feto
decorrente de um desenvolvimento seqüencial, acumulativo e de sucessivas reiterações. O trauma perinatal

78
seriam suas únicas fontes de estruturação. Como Pichon-Riviére (1950) sugere, este ser pré-
natal tem como único instrumento de registro seu próprio corpo, o que permite afirmar que,
no ser humano, o corporal implica no psiquismo. Devemos ter em mente que se
consideramos a “epigênese fetal”, devemos estar atentos à diversidade de estímulos
agressores provindos do ambiente (mãe-meio), assim como a história genotípica do feto.
Esta relação entre fatores herdados e congênitos se somarão às experiências infantis,
demarcando as tendências fenotípicas da criança.
Contamos na atualidade com generoso número de aparatos tecnológicos que nos
auxiliam na compreensão da vida intra-uterina. Por meio da ressonância magnética e da
ultrassonografia, podemos observar acuradamente uma grande diversidade de reações
sensoriais, como os vários tipos de reação perceptiva diante da variedade de estímulos
bioquímicos, sonoros e visuais. Apresentaremos então um quadro resumido do minucioso
estudo do comportamento fetal, apresentado por Maria Auxiliadora Gomes de Andrade (In:
MARGOTTO, 2004):

“A pele e o sentido do tato - Desde suas primeiras diferenciações, a pele


permanece em íntima conexão com o sistema nervoso (...) Quando o embrião tem
menos de seis semanas de vida, um leve acariciar do lábio superior, ou das abas do
nariz, fazem o pescoço se curvar e o tronco se afastar da fonte de estímulo. Com
nove semanas de vida fetal, se a palma da mão é tocada, os dedos se curvam
esboçando o gesto de agarrar. Em torno da 16ª semana de vida uterina o feto
apresenta sensibilidade em todo seu corpo. Existem vários sentidos táteis que estão
reunidos sob a denominação de tato; vários elementos participam do tato: pressão,
dor, prazer, temperatura, movimentos musculares da pele, fricção, etc.
Sistema vestibular - Não somente o sistema vestibular é maduro precocemente,
mas também suas interações com os outros sistemas sensoriais.
Audição - O bebê intra-útero e a música – Experiências têm demonstrado que o
bebê entre o quarto e o quinto mês de vida intra-útero acalma-se quando escuta
música de Vivaldi e Mozart e podem ficar agitados ao som de Brahms, Beethoven e
rock . A existência de condicionamento pré-natal para a música foi constatada em
recém-nascidos cujas mães cantarolavam cantigas populares ao longo do período
gestacional. Os bebês, nesses casos, evidenciavam preferência pelas melodias que
haviam escutado durante o período pré-natal, enquanto que um grupo controle de
bebês não evidenciavam a mesma preferência. O recém-nascido permanece mais
tempo com os olhos abertos quando escuta a voz que expressa alegria e não se
interessa pela voz que demonstra tristeza ou cólera. Tal fato demonstra que o
recém-nascido de apenas um dia de vida pós-natal pode reconhecer entonações de
vozes, e que ele prefere as entonações de alegria, havendo um aprendizado intra-

deve ser compreendido a partir da constância qualitativa e quantitativa de reiterações de natureza anômala dos
estímulos, seja da mãe, seja do meio-ambiente. Este quadro deve se organizar às predisposições genotípicas.

79
uterino de emoções expressas pelos pais. Marie-Claire Busnel demonstra, por meio
da sucção não nutritiva, que o recém-nascido de dois dias prefere escutar a voz
humana a qualquer outro som; a voz de sua mãe dentre outras vozes femininas.
Reações à ruídos - Pesquisas têm demonstrado que o bebê intra-útero, entre 16 e
32 semanas de gestação reage com um piscar de olhos ou com um estiramento do
corpo ou dos membros, a ruídos aplicados ao abdômen da mãe. Ultra-sonografistas
observaram que o feto pode reagir com sobressaltos a ruídos repentinos.
A voz materna e paterna – (...) Quando a voz materna é dirigida a ele, o feto
reage, diminuindo à freqüência cardíaca. Quando o bebê está calmo a voz materna
o alerta se dirigida para ele ou não e o acalma quando está chorando.
Olfato e paladar – Embora a sensorialidade fetal tenha sido negada pela ciência
porque o sistema nervoso ainda não estava anatomicamente completo, sabe-se hoje
que a partir da sétima semana de gestação aparecem o olfato e o paladar.
Líquido amniótico e aleitamento – O bebê prefere o cheiro e o sabor do líquido
amniótico de sua mãe (o odor e o sabor do líquido amniótico age como elemento de
ligação entre a vida intra-uterina e o leite materno). O líquido amniótico foi
provado e cheirado, pelo bebê, abundantemente no útero. (...) O bebê prefere o odor
do seio materno e do leite materno a qualquer outro odor, mesmo ao odor do seio
de outra mãe que esteja amamentando. Para verificar as preferências do bebê pelo
odor do seio materno e do leite materno, pesquisadores colocam em cada lado da
cabeça do bebê um chumaço de algodão com odores do leite ou do cheiro do seio
materno, giram a cabeça do bebê nas duas direções, para que este possa sentir os
odores de cada lado. O bebê vai passar a girar a cabeça para o lado que tem o odor
do seio ou do leite materno. O tempo que o bebê passa virado para cada um dos
odores é medido pelos pesquisadores.
A visão - A visão desenvolve-se alguns meses antes do final da gestação. O sistema
visual é o último a se desenvolver. Por volta da 26 a 30 semanas de vida uterina
pode-se obter resposta à luz. Se acendermos e apagamos uma luz brilhante diante
do ventre materno, pode-se observar, com a ajuda do ultra-som, que o feto pisca. O
mesmo pode ser observado em bebês muito prematuros, os quais podem nascer
com as pálpebras fundidas, mas fazem movimentos de piscar quando se acende
uma luz forte. Uma vez que a luz pode passar através da parede do útero e da
parede abdominal da mãe, o feto provavelmente já tem a experiência do dia e da
noite. O bebê prematuro de 30 ou 31 semanas de gestação já possui preferências
visuais. Quando se mostram a ele listras largas e finas, ele demonstra preferência
pelas listras largas.
A dor no feto – Michel Soulé remarca que atualmente a dor no feto é levada em
consideração pelos profissionais da área de saúde. A bradicardia no feto pode ser
provocada pela dor que ele venha a sentir durante um procedimento médico ou pela
dor que sua mãe venha a sentir. Michel Soulé acredita que não devemos
desconhecer a dor no feto tal qual aconteceu com a dor no recém-nascido, a qual foi
negada por muito tempo, o que fez com que muitos procedimentos dolorosos
tenham sido realizados sem que a dor do bebê fosse levada em consideração”.

Como viemos apresentando até o momento, uma abordagem epigenética do


desenvolvimento deveria ser considerada a partir dos meses iniciais de gestação. O
acoplamento mãe-feto já demarca contundentes interações no sistema bioquímico de ambos
e, seguramente, influenciam na evolução cognitiva-afetiva do feto até o nascimento e em

80
suas fases posteriores. Não há dúvidas de que este período do desenvolvimento requer
maiores cuidados, isto por alguns motivos muito evidentes:
a) o feto possui um primitivo sistema comunicativo que exige a maior demanda de
“sensibilidade materna” para a compreensão de suas mensagens.
b) o feto não pode dizer lingüisticamente o que lhe é necessário e tampouco possui o
primário recurso do choro, tão fundamental para sua sobrevivência, já que esta é a
primeira ferramenta audível que exprime desconforto e intromissão de seu sistema
orgânico e perceptivo.
c) Sendo assim, enquanto um sistema menos estruturado (o que incide em defesas de
preservação menos estruturadas), está mais vulnerável a todos os estímulos aleatórios
provindos do meio.

Ainda assim constatamos, na atualidade, um número ínfimo de autores interessados


pelo desenvolvimento humano que se dedicam a pesquisas sobre a cognição fetal. Será que
a maior causa deste descrédito não seria devido aos conceitos contemporâneos sobre
“cognição” não incidirem em questões aparentemente simples, como no caso dos
mecanismos de seleção e organização estrutural, efetuados por plantas ou protozoários?
Será que ainda não se aceita naturalmente o fato de que os processos cognitivos, em sua
imensa diversidade de expressões, não se restringem necessariamente à existência de um
sistema nervoso maduro e, ainda mais, de que este sistema nervoso não necessita
necessariamente se manifestar nas formas lingüísticas ou simbólicas, condizentes com
estágios mais avançados deste processo? Por fim, será que grande parte da comunidade de
pesquisadores das áreas de saúde ainda encontra dificuldade em aceitar a “complexidade”
em manifestações aparentemente simples e singelas, como a cognição fetal?
Como proposto inicialmente, este sub-capítulo tem pretensões modestas. Mesmo
assim, pensamos ter apresentado consistentes evidências que oferecem suporte necessário
para considerarmos esta etapa como norteadora dos sucessivos períodos pós-natais, os quais
nos deteremos a seguir.

81
5 – A epistemologia genética piagetiana enquanto
plataforma para um modelo transdisciplinar do
desenvolvimento humano

"Explicar, literalmente dispor num plano onde os


particulares possam ser prontamente vistos. Assim,
colocar ou arranjar numa terra plana, sacrificando
outras dimensões para fins de apresentação. Expor ou
explicitar ao custo de ignorar a realidade ou riqueza
do que é desse modo exposto. Assim, assumir uma
visão distanciada de sua realidade ou majestade
inicial, ou ganhar o conhecimento e perder o reino."

(G. Spencer Brown: Laws of Form)

De acordo com os pressupostos básicos do construtivismo, toda compreensão dos


fenômenos que nos cercam, independente da categoria à qual pertençam, envolve um
processo ativo de construção cognitiva. Por “processo ativo de construção” consideramos
que o sujeito cognoscente deve “agir” em busca desta compreensão. Devemos ressaltar que,
se consideramos o desenvolvimento cognitivo a partir de um ininterrupto processo de “ação
construtiva”, seria inconcebível não destacar a afetividade enquanto fator intrínseco a este
processo, já que seriam as emoções que demarcariam, preponderantemente, a natureza da
intencionalidade destas ações cognitivas. Indo mais além, não vemos nenhuma coerência
em falarmos do desenvolvimento cognitivo enquanto fator primário na formação da
inteligência sensório-motora, simbólica-concreta ou operatória formal, e considerarmos a
dimensão afetiva enquanto envoltório secundário desta construção. Nesta mesma linha
reflexiva, devemos retomar nossas argumentações anteriores e enfatizar que qualquer
construção afetivo-cognitiva requer não só uma interpretação de seus aspectos mentais e

82
“imagéticos” mas, na mesma proporção, de toda a complexidade biológica, devidamente
ressaltada pela “biologia do conhecer” de Maturana e Varela (2002) e pela neurociência.
Sendo assim, consideraremos, recursivamente, tanto os aspectos cognitivos quanto afetivos
a partir de uma complexidade somática ou, em outros termos, ações cognitivas
“encarnadas” pressupõem a presença de aspectos afetivos “encarnados”.
É inquestionável o fato de Piaget ter se interessado muito mais pelos aspectos
racionais-intelectuais do desenvolvimento cognitivo. Logicamente, ele não desconsiderou a
importância da afetividade no processo de construção da cognição humana e, até mesmo,
publicou em 1953-54, "Les relations entre l'intelligence et l'affectivité dans le
développement de l'enfant”. Mas para todos aqueles que já percorreram um generoso
número de títulos da extensa obra deste autor, ficará evidente sua maior preocupação
quanto à evolução da inteligência em todas as suas fases. Ao considerar inicialmente o
estágio sensório-motor, Piaget se refere ao desenvolvimento de uma “inteligência”
sensório-motora. Esta etapa, apresentada nestes termos, pode gerar sérias incompreensões
de quais seriam os fatores mais relevantes para a sua construção. Poderíamos ser atraídos
para uma armadilha epistemológica onde consideraríamos o desenvolvimento desta etapa a
partir de seus aspectos racionais-cognitivos, relegando a um segundo plano os aspectos
afetivos. Deixamos claro no parágrafo anterior que não seremos ludibriados por este
“embuste de linguagem” ou qualquer que tenha sido a intenção de Piaget ao se referir a esta
etapa lançando mão do termo “inteligência”, primeiramente, enquanto racionalidade.
Também devemos estar atentos para alguns posicionamentos, em parte
fundamentados, de que a epistemologia genética piagetiana já se apresenta ultrapassada por
argumentações advindas da neurobiologia e da neuropsicologia. Em outro contexto, Piaget
é considerado, segundo Freitag (1992), um pensador moderno, pois não superou a filosofia
kantiana. Também neste sentido, Rorty (1988) e Varela (2003) efetuam críticas à
epistemologia piagetina por não ter questionado a existência de um mundo já dado, de um
sujeito independente do conhecimento e nem da idéia de que o desenvolvimento cognitivo
possua um ponto de chegada lógico e dado de antemão. Como acrescenta Arendt (2000),
“as leis do desenvolvimento cognitivo, mesmo no estágio sensório–motor, consistem numa
assimilação e uma acomodação com relação a este mundo já dado”. A obra de Piaget
apresenta então uma tensão interessante entre um “agente cujo desenvolvimento é regido

83
pela enação, mas que evolui inexoravelmente para se tornar um teórico objetivista”.
(VARELA, THOMPSON & ROSCH, 2003, p. 240).
Poderia se questionar se esta posição de perfil marcadamente inatista não pertenceria
muito mais a Chomsky do que a Piaget. Ao que parace, ambos os autores defenderam a tese
de um “núcleo duro”, fixo e subjacente às atividades cognitivas. O debate não se faria tanto
pela aceitação desta tese, mas pela ênfase dada ao grau de sua especificidade. Piaget,
logicamente, assumiu uma posição mais moderada, apostando na direção de uma
minimazação destes fatores. Chomsky, por sua vez, adotou uma posição declaradamente
inatista, já que maximiza este posicionamento em sua gramática gerativa. Ainda que se
acredita-se na época que Chomsky havia saído vencedor deste debate (PIATTELI-
PALMARINI, 1987), contemporaneamente, o curso das evoluções neurocientíficas
parecem ter revertido nitidamente este placar em prol da tese construtivista. De acordo com
Bunge (1988), Chomsky não trabalhou adequadamente a diferença entre fatores inatos e
hereditários. Neste sentido, o que está programado é apenas nossa capacidade de aprender.
Logo, a aprendizagem ocuparia um papel evidente na “modelagem” deste reservatório
genético. Quanto a tese de Chomsky, certamente nascemos com um trato vocal (área de
Wernicke e Broca e sistemas neurônicos subsidiários), mas a complexidade dos fatores
culturais incidirão recursivamente na evolução da linguagem.
Portanto, devemos rever o caminho percorrido por Piaget e acrescentar, segundo
nossa compreensão do complexo desenvolvimento cognitivo-afetivo, três linhas reflexivas
que devem ampliar, revitalizar e atualizar, razoavelmente, a epistemologia genética
piagetiana. Vejamos então:
1 - Ainda que transcorridos 25 anos do falecimento de Piaget, sua epistemologia
genética continua oferecendo sólido suporte compreensivo quanto ao desenvolvimento da
cognição humana. Todavia, devemos ressaltar que na última década do século XX, assim
como neste novo milênio, evidentes contribuições provindas da neurociência vêm
requerendo cada vez mais espaço, tanto nas explicações dos fenômenos cognitivos, quanto
afetivos. Estas pesquisas no campo da neurobiologia e da neuropsicologia vieram não só a
corrigir algumas arestas deixadas por Piaget, mas também oferecer sólidos acréscimos
científicos que fundamentam “materialmente” o construtivismo piagetiano.

84
Promovendo um suporte mais substancial à compreensão da recursividade entre
cognição e afetividade ou, em outros termos, entre razão e emoção, Antônio Damásio
(1996) identificou, em pacientes com lesões pré-frontais, características comuns que
denunciavam um embotamento afetivo e que levavam a uma deturpação da realidade em
vários setores. Este empobrecimento emocional, causado por danos neurológicos, impedia
estes pacientes de tomarem decisões cognitivamente sensatas, já que alterava drasticamente
a compreensão das relações sociais e, até mesmo, do senso de auto-preservação. Isso o
levou a estabelecer consistentes relações entre determinadas áreas cerebrais que envolvem
raciocínio, tomada de decisões e emoções. Damásio constatou, pela neurobiologia, o que a
Psicologia já observava desde Freud, ou seja, que a vida afetiva constitui o alicerce sem o
qual os processos cognitivos racionais não podem operar adequadamente.
Outro neurologista que defende a tese de que os processos cognitivos e os processos
afetivos são indissociáveis é Joseph LeDoux. Segundo LeDoux (1998), o sistema da
amígdala governa a memória emocional inconsciente, enquanto o hipocampo se encarrega
da memória consciente de uma experiência emocional. Neste sentido, o autor propõe que,
primariamente, a influência das emoções sobre a razão é maior do que a da razão sobre as
emoções. Para ele, ambas as memórias se unem em nossa experiência consciente de um
modo tão imediato e rigoroso que não podemos analisá-la minuciosamente mediante a
introspecção.
2) Nesta mesma linha, a cibernética de segunda ordem, apresentada inicialmente por
Heinz von Foester, e de seus respectivos desdobramentos no construtivismo radical e na
“biologia do conhecer” de Maturana e Varela, veio a “corrigir” e acrescer à obra piagetiana
um aprofundamento fundamental quanto à compreensão dos processos cognitivos e afetivos
a partir do momento em que é inserido, dentre outros fatores, o conceito de clausura
operacional. Este conceito nos leva diretamente à noção de “singularidade cognitiva-
afetiva” e esta singularidade estaria imersa nos atos de conhecimento. Este procedimento
epistemológico seria condizente com um processo de organização que se estabeleceria por
“encaixes” (fit), e não por “correspondências” (match). Neste sentido, os estágios de
desenvolvimento cognitivo-afetivo, apresentados em primeira mão por Piaget, deverão ser
reavaliados a partir de uma relação de múltiplos “encaixes”, num conjunto de limitações as
quais Glasersfeld (1996) denominou enquanto uma complexa relação de “viabilidade”.

85
Outro elemento de extrema relevância, intrínseco ao construtivismo radical, se refere
ao conceito de “complexidade”. Por um lado, a complexidade de um sistema indica a
quantidade de elementos e por outro seus potenciais de interação. Logo, esta complexidade
é proporcional à variedade e a aleatoriedade de estímulos a qual está sujeito o próprio
sistema. A construção dos estágios de desenvolvimento cognitivo-afetivo deve ser
compreendida segundo os critérios condizentes a um “sistema aberto retroalimentado”, que
importa elementos de seu ambiente e os organiza segundo suas condições estruturais.
Vejamos passo a passo este procedimento epistemológico.
Podemos dizer que há algumas pré-condições necessárias para se estabelecer a auto-
organização no processo de desenvolvimento cognitivo-afetivo. Como sugere Palazzo
(1999)59, tais mecanismos são de certa forma redundantes e pouco definidos. Entretanto,
permitem avaliar intuitivamente o potencial de auto-organização dos sistemas. São eles:
Abertura Termodinâmica: Em primeiro lugar, todo sistema cognitivo-afetivo em
desenvolvimento deve trocar energia e informação com o ambiente. Todos os sistemas
vivos estabelecem este tipo de relação. Um bebê que mama no peito da mãe (ou não) estará
sujeito a um determinado quantum afetivo transmitido pela qualidade de “carga afetiva” e
por toda a complexidade do sistema bioquímico nutricional.
Comportamento Dinâmico: Todos os sistemas buscam, em maior ou menor grau,
um contínuo estado de “flutuação dinâmica” que os levem a um equilíbrio decorrente do
alívio de estímulos estressantes. Se um sistema não está em equilíbrio cognitivo-afetivo, a
única opção que resta para o seu comportamento é assumir algum tipo de dinâmica,
significando que o sistema se encontra em contínua mudança estrutural das mais variadas
formas.
Interação Local: em continuidade aos princípios do paradigma pós-moderno, todo
processo de desenvolvimento cognitivo-afetivo deve estar em acordo com interações locais.
Toda e qualquer relação estabelece novas recursividades auto-organizativas. Neste sentido,
é compreensível que não exista na deriva vivencial, pretensões compreensivas sob moldes
rigidamente teleológicos.

59
- Os tópicos a seguir forma adaptados de Pelazzo (1999, p. 55).

86
Dinâmica Não-Linear: a auto-organização afetivo-cognitiva pode ocorrer quando
existem laços de feedback entre as partes componentes do sistema e entre estes
componentes e as estruturas que emergem em níveis hierárquicos mais altos.
Grande Número de Componentes Independentes: uma vez que a origem da auto-
organização recai nas conexões, interações e laços de feedback e feedforward entre as
partes dos sistemas, torna-se claro que sistemas cognitivo-afetivos auto-organizáveis devem
possuir um grande número de componentes.
Comportamento geral independente da estrutura interna dos componentes: isto
quer dizer que não importa do que ou como são feitos os componentes do sistema, desde
que eles façam as mesmas coisas. Em outras palavras, isto significa que a mesma
propriedade emergente irá surgir em sistemas completamente diferentes.
Emergência: a emergência é provavelmente a noção menos conhecida dentre as que
se relacionam com auto-organização. A Teoria da Emergência diz que o todo é maior do
que a soma das partes e o todo exibe padrões e estruturas que surgem espontaneamente do
comportamento das partes. Como Varela (1996, 2003) apresenta, a psique é um sistema que
emerge de um sistema neuro-biológico, mas que não pode ser “reduzido” a este.
Comportamento geral organizado e bem definido: desconsiderando a estrutura
interna de um sistema complexo e observando-o apenas como um fenômeno emergente,
constata-se que seu comportamento é bastante preciso e regular.
Efeitos em Múltiplas Escalas: a emergência também aponta para interações e
efeitos entre múltiplas escalas nos sistemas auto-organizáveis. As interações em pequena
escala produzem as estruturas em grande escala, as quais por sua vez modificam a atividade
na pequena escala. Ora, estas características são condizentes aos “esquemas de ação”
piagetiano e, em última instância, a singularidade organizativa que cada indivíduo
experimenta em seu processo de desenvolvimento cognitivo-afetivo.
3) Ao considerarmos o desenvolvimento cognitivo-afetivo a partir de uma visão
sistêmica, devemos estar atentos a outro ponto de extrema relevância e que não foi
devidamente abordado por Piaget e, no nosso entender, também não lhe foi reservada a
devida importância no construtivismo radical. Não cabe aqui conjeturarmos os motivos
desta omissão, se é que podemos nos referir a este ponto através deste termo. Todavia, uma
compreensão mais ampla do desenvolvimento cognitivo-afetivo requer uma aproximação

87
dos fatores que agridem este sistema, perturbando-o prejudicialmente. Sendo assim, como
etapa final nesta releitura da epistemologia genética piagetiana, buscaremos compreender
um pouco mais como se estabelece o recrudescimento do sistema cognitivo-afetivo e quais
seriam seus efeitos no processo de desenvolvimento psicossomático. Devemos estar atentos
para o fato de que, se falamos de uma recursividade entre razão e emoção, não haverá
sentido seccionarmos a compreensão do adoecimento do organismo ou, em outros termos,
não existe um adoecimento mental que exclua um adoecimento somático e vice-versa.
Neste ponto, devemos estar atentos à história epigenética dos organismos para que
possamos compreender complexamente a recursividade entre fatores herdados e adquiridos,
introduzindo adequadamente a influência dos estímulos sócio-culturais no processo de
adoecimento dos organismos. Por fim, devemos nos concentrar nas condições que
delimitam as possibilidades de reconstrução do sistema cognitivo-afetivo adoecido.

A expressão “inteligência emocional” vem se tornando cada vez mais corriqueira nos
estudos e pesquisas que almejam uma compreensão mais sistêmica quanto à construção da
cognição e do desenvolvimento humano. Estas correntes adotam critérios epistemológicos
que estabelecem uma recursividade entre a dimensão racional e afetiva. Neste sentido,
devemos nos debruçar sobre as etapas do desenvolvimento cognitivo tanto em seus
aspectos tradicionalmente associados a uma inteligência sensório-motora, simbólica-
concreta ou formal, quanto em seus aspectos afetivos. O estágio sensório-motor deve
ocupar um lugar privilegiado em nossa pesquisa devido a alguns fatores que
apresentaremos a seguir:
a) o desenvolvimento cognitivo-afetivo se faz, primeiramente, por meios de ações
sensório-motoras, já que os recursos simbólicos irão se desenvolver paulatinamente a
partir da natureza qualitativa desta exploração sensória e motora. Isto lhe dá um status
de “base cognitiva-afetiva” e, conseqüentemente, exercerá a função de alicerce para
as futuras etapas que irão se estabelecer neste contínuo processo de transformação de
“esquemas de ação”.

88
b) Juntamente com o período de desenvolvimento pré-natal, o estágio sensório-motor
é o menos “organizado”, tanto cognitivamente quanto afetivamente60. O termo
“menos organizado” não deve ser considerado em um sentido pejorativo, já que em
um contexto construtivista, a base do desenvolvimento afetivo-cognitivo é
intrinsecamente proporcional em importância às futuras etapas que se sucederão.
Todavia, neste período inicial do desenvolvimento, o feto-bebê está tecendo as bases
estruturais de sua capacidade interativa com mundo.
c) Sendo “menos organizado”, possui menos “peso estrutural”, logo, é muito mais
vulnerável aos estímulos do ambiente, sejam eles quais forem. Pelo termo “peso
estrutural”, queremos nos referir à densidade das fronteiras do sistema que vão sendo
estabelecidas paulatinamente no processo de desenvolvimento. Um sistema
estruturado delimita suas fronteiras com o ambiente, possuindo por isso condições de
assumir uma distinção em relação ao meio. A criança, ao ingressar na linguagem,
possui uma ferramenta de seleção mais eficiente, podendo se defender com maior
eficácia da aleatoriedade dos estímulos que a circundam. Em outros termos, possui
fronteiras que visam lhe oferecer maiores condições de se proteger do ambiente. A
palavra “NÃO”, dita aos berros, é menos ambígua do que movimentos corporais ou o
choro, que querem dizer a mesma coisa nesta situação, mas que podem não ser o caso
em muitas outras situações. Logicamente, a compreensão destas expressões corporais
e guturais, que significam analogamente um determinado termo lingüístico, será
dependente do grau satisfatório de acoplamento que o bebê estabelece com o “sistema
cuidador”, seja ele a mãe, o pai, a babá, os avós, a instituição cuidadora, etc. Podemos
dizer que a linguagem falada exige “menos sensibilidade” dos sistemas cuidadores,
oferecendo maiores possibilidades de a criança ter seus limites respeitados.
d) Se, por um lado, a aleatoriedade dos estímulos provindos do mundo produz
originalidade e “aumento” da complexidade do sistema, por outro lado, também pode
ser fonte de "encouraçamento" do organismo, já que se trata de um período de maior

60
- Pelo termo “organização” reflitamos sobre a seguinte imagem: uma xícara de café que cai e se quebra
evidencia a passagem de um estado de maior ordem para a desordem. Todavia, nunca se foi observado o
contrário, ou seja, a xícara se recompondo, o que constituiria uma evolução de um estado de maior desordem
para uma maior ordem. Em “sistemas abertos”, como as organizações humanas, partimos contrariamente de
estados de maior desordem afetiva-cognitiva.

89
permeabilidade. Do período pré-natal ao estágio de aquisição da linguagem simbólica,
a criança possui poucas ferramentas para lidar com estímulos agressores.
e) Também devemos ampliar a compreensão semântica e conceitual do termo
“sensório-motor” a partir de seus referenciais teóricos apresentados na teoria
piagetiana, e isto por um motivo relativamente óbvio. Quando nos referimos, por
exemplo, a um termo como “a priori”, devemos estar atentos a sua amplitude
semântica. Como se sabe, este termo possui conceitualmente um lugar central na
Crítica da Razão Pura de Imanuel Kant e requer, metodologicamente, um rigor
específico em seu manejo. Com certeza, tal termo ainda continua a possuir em seu
leque de significados a idéia de se referir a algo ou a alguma situação antes de
qualquer outra. Contudo, devemos relevar que tal termo assume uma complexidade
específica de acordo com o volume significativo incorporado em determinado
contexto teórico. Da mesma maneira, quando nos referimos ao termo “sensório-
motor”, de acordo com a epistemologia genética piagetiana, estamos evocando
conceitualmente um arcabouço teórico específico e que compreende fronteiras
epistemológicas bem delimitadas. Todavia, o que podemos dizer deste termo em
outros sentidos? De que forma podemos ampliar conceitualmente a proposta
piagetiana em considerar o estágio sensório-motor não só enquanto uma das etapas de
construção da cognição mas, de forma mais ampla, na arregimentação permanente da
totalidade de nosso ser? Será que a criança, ao “ultrapassar” esta fase por volta dos
dois anos, deixa-a de fato para trás na forma de “organização transcendente” de outros
esquemas de ação61? Proporemos oportunamente algumas reflexões que visam
problematizar e ampliar significativamente o termo “sensório-motor” em sua
conotação piagetiana.
f) Por fim, de acordo com a ampliação conceitual proposta no item anterior,
acreditamos que lançando mão de recursos sensório-motores na clínica, obteremos
consistentes ferramentas técnicas que nos auxiliarão a oferecer ao paciente maiores

61
-Vejamos um comentário de Damásio (1996, p. 265). “Uma outra fonte de ceticismo vem da noção de que
o corpo teve efetivamente relevância na evolução do cérebro, mas que está ‘simbolizado’ de forma tão
profunda na estrutura do cérebro que já não necesssita fazer parte do ‘circuito’. Concordo que o corpo está
bem ‘simbolizado’ na estrutura cerebral e que esses ‘símbolos’ podem ser usados ‘como se’ fossem sinais
corporais reais. Mas prefiro pensar que o corpo se mantém no ‘circuito’ por todos os motivos apontados

90
possibilidades para um processo elaborativo-reconstrutivo realmente “encarnado”, o
qual denominamos elaboração complexa.

Devemos nos preocupar em introduzir, inicialmente, uma visão panorâmica da fase


sensório-motora através dos estudos apresentados por Piaget (1978) em sua obra clássica
“O nascimento da inteligência na criança”. Bem sabemos que o leitor poderia se remeter,
em primeira mão, à obra citada ou a diversas leituras e releituras desenvolvidas por
eminentes psicólogos e pedagogos. Todavia, ao apresentarmos nossa versão desta etapa,
amparados pela obra original de Piaget, buscaremos extrair os elementos os quais pensamos
ser os vetores fundamentais para empreendermos nossa releitura desta fase central do
desenvolvimento cognitivo-afetivo e, quem sabe um tanto pretensiosamente, para uma
revitalização e ampliação da obra piagetiana. Esta aproximação da obra original do autor
também nos oferecerá os elementos essenciais para que apresentemos uma outra visão do
que se compreende enquanto “elaboração” e quais seriam as influências desta construção
no contexto “artificial” da clínica.

5.1 - O estágio sensório-motor piagetiano

Em nosso estudo inicial da unidade II, buscamos apresentar algumas reflexões que
visam, de certo modo, problematizar a compreensão sobre a gênese do desenvolvimento
cognitivo-afetivo e, sobretudo, qual seria a amplitude das manifestações intra-uterinas que
poderiam ser consideradas enquanto “proto-expressões” cognitivas e afetivas. Bem
sabemos que este tema poderia ser, por si só, objeto de estudo para um promissor
aprofundamento compreensivo do desenvolvimento cognitivo-afetivo humano como um
todo. Seguramente, a relevância desta etapa não será desconsiderada nos próximos
desdobramentos de nosso estudo. Todavia, devemos voltar nossa atenção para outra etapa
central do desenvolvimento cognitivo-afetivo: a etapa sensório-motora.
De acordo com Piaget (1978, p. 13), a inteligência sensório-motora é devedora de
sistemas reflexos, e se “apóia em hábitos e associações adquiridos para recombiná-los”.

91
Piaget (1996) buscou ultrapassar a leitura lamarckiana de hábitos simplesmente adquiridos
por pressões ambientais pela proposta epigenética, defendida por Waddington (1957), onde
o fenótipo consiste no resultado da interação entre genótipo e meio ambiente. Piaget (1996)
nos surpreende, mais uma vez, pela proximidade teórica que estabelece com a cibernértica
de segunda ordem ao concluir seu estudo sobre “conhecimentos inatos e os instrumentos
hereditários do conhecimento”:

“Com os métodos de pensamento próprios da cibernética, começamos ao contrário


a compreender que as ações do meio sobre o sistema genético nada têm de
contraditório com sua auto-conversação nem mesmo com o caráter essencialmente
endógeno de suas recombinações. Porque, por mais autônomo que seja um sistema
regulador, não há razão para privá-lo de informação sobre os resultados de sua
atividade, muito ao contrário. Se o genoma é informado desses resultados em sua
ação morfogenética no curso do desenvolvimento, não há razão para considerá-lo
cego quanto aos múltiplos problemas, continuamente renovados propostos pelo
meio, porque o desenvolvimento fenotípico tem precisamente a tarefa contínua de
conciliar a programação genética com estas novas exigências do meio” (p. 346).

Piaget (1978) faz algumas observações fundamentais que visam estabelecer as


devidas distinções sobre os fatores hereditários que condicionam o que ele chama de
“inteligência”. Logicamente, somos remetidos a fatores apriorísticos do desenvolvimento,
os quais Piaget demarca :

a) Quando se refere a fatores estruturais que constituem o sistema nervoso e sensorial,


a hereditariedade demarca as possibilidades de nossas construções mais fundamentais.
Como exemplo, Piaget (1978, p. 13) menciona a nossa organização espacial. Mas
estas características são limitadas em relação a uma segunda consideração de seu
sentido biológico.
b) Ao se referir à atividade dedutiva e organizadora da razão, Piaget alega que
estamos ultrapassando a intuição de espaço, por exemplo, e que nestes termos, é
estabelecido um sentido distinto de hereditariedade. Aqui o autor se refere à
“hereditariedade do próprio funcionamento e não da transmissão desta ou daquela
estrutura” (Id., ibid., p. 14).

92
Nestes termos, as estruturas cerebrais, herdadas através de um complexo processo
evolutivo, organizarão, a priori, certas condições necessárias da cognição. Todavia, este a
priori estrutural da cognição não deve ser considerado como algo “feito e acabado” desde o
início do desenvolvimento, mas enquanto um processo de construção cognitiva que está em
ação desde suas fases mais primitivas. Logo, “o a priori não se apresenta sob forma de
estruturas necessárias senão no final da evolução das noções, nunca em seu início” (Id.,
ibid., 15. Grifo nosso).
É inegável que Piaget estabelece distinções fundamentais ao argumentar sobre as
particularidades biológicas estruturais da cognição, e que elas se diferem de seus aspectos
funcionais. Ele dá a impressão de querer colocar o apriorismo biológico em seu devido
lugar e superar, por assim dizer, os resquícios da filosofia kantiana. Ao defender a tese de
que os processos cognitivos vão se impondo gradualmente à consciência, decorrente de
sucessivas transformações estruturais, ainda assim, continua a adotar uma “visão
apriorística” do desenvolvimento no que ele considera enquanto o “final” da evolução
cognitiva. Bem, este é o ponto que autores como Maturana, Varela, von Foester, Atlan e
Glaresfeld irão contrapor, afirmando que o processo de organização do desenvolvimento
afetivo-cognitivo não se faz estritamente por “correspondências” e sim por “encaixes”
afetivo-cognitivos. Neste sentido, irão considerar Piaget um pensador da modernidade.
Mas, como propomos, intencionamos revisar alguns pontos da epistemologia genética no
intuito de adequá-la a nossos propósitos de contribuir para a fundamentação de uma clínica
amparada por uma epistemologia pós-moderna e, especificamente, quanto à compreensão
do que consideraremos enquanto “processo elaborativo”.
Segundo Piaget, o desenvolvimento mental possui elementos variáveis e invariáveis.
As invariantes funcionais seriam duas: a adaptação e a organização. Quando Piaget se
refere à adaptação, enfatiza seu caráter processual, ou seja, atento às possibilidades
adaptativas do organismo ao se transformar positivamente e, conseqüentemente,
conservando-se ao manter contato com determinado meio-ambiente. Quando totalidades
organizadas do organismo x (por exemplo, os comportamentos sensório-motores),
estabelecem relações com o meio y, obtendo um resultado b, dizemos então que houve uma
relação de assimilação. Se o organismo não se adapta a determinada relação, pode haver

93
uma ruptura do sistema62. Ao se obter “sucesso” nesta relação assimilativa do organismo
em relação ao meio, poderemos dizer que houve uma acomodação do sistema. Logo,
chegamos ao que consideramos um célebre aforismo de Piaget (1978): “adaptação é um
equilíbrio entre assimilação e acomodação” (p. 16). Podemos entender metaforicamente
este processo através da figura de uma espiral crescente, já que esta forma se define por sua
perpétua característica de retornar ao ponto de partida, mas sempre em “oitavas superiores”
e com um alargamento em relação à etapa anterior. Os atos sensório-motores nunca podem
ser “puros”, já que sempre incorporam esquemas de ações anteriores para ajustá-los a novas
situações que a vida apresenta, e a adaptação só será considerada estável quando houver
uma harmonia entre assimilação e acomodação
Introduzida a noção de adaptação, devemos nos voltar à função de organização.
Segundo Piaget (Id., ibid., p. 18) estes dois processos são inseparáveis e, sobretudo, são
complementares. O processo de organização se refere ao aspecto interno do ciclo e, por sua
vez, à adaptação ao aspecto externo. A organização sensório-motora se relaciona de uma
determinada forma que implica “significações solidárias” e os esquemas se implicam
mutuamente de tal forma que é impossível isolá-los. Portanto, chegamos a outro famoso
aforisma: “é adaptando-se às coisas que o pensamento se organiza e é organizando-se que
estrutura as coisas” (Id., ibid., p. 19).

5.1.1 – Os seis sub-estágios sensório-motores

5.1.1.1 – As adaptações sensório-motoras elementares – A primeira sub-


fase sensório-motora

A criança apresenta, logo nas primeiras semanas de vida, uma série de atos reflexos
herdados. Vejamos alguns deles: reflexo de sucção, de encurvamento das costas, de

62
- Aprofundaremos devidamente nestas relações dissonantes ao nos voltarmos para a compreensão dos

94
deglutição, de acomodação do corpo, de preensão, de fonação etc. Estes atos primários,
preponderantemente sensórios e motores, expressam uma reação total e articulada do
organismo em sua busca de sobrevivência63. Curiosamente, ao relatar alguns fatos
experimentais de sua pesquisa, observados no ato de sucção de um grupo de bebês, Piaget
(1978, p. 35) já salienta as variações ou, em outros termos, uma intrínseca singularidade
que é demonstrada nas diferentes formas de sugar. Foi observado que alguns bebês são
mais “agressivos” do que outros, e logo conseguem manter um contato mais prolongado
com o mamilo64. Neste contínuo processo reflexo de sobrevivência, foi observado que os
bebês começam a sugar não só o que lhe chega à boca, mas experienciar o ato de sucção
aleatoriamente, apenas enquanto movimentos “sem objetos” ou, em termos mais claros,
começam a sugar o vazio. Estes atos denotam não só a necessidade instintiva de busca de
alimento como revelam a intrínseca necessidade de obtenção de prazer, já que a boca
permanece mais tempo em contato com os diversos objetos ou partes do próprio corpo de
acordo com o grau de satisfação que determinado objeto ou parte do corpo lhe proporciona.
O processo de adaptação do reflexo de sucção se revela à medida que o bebê
“elabora” novas maneiras de sugar. Aquilo que se exibia enquanto um “mero” ato reflexo,
passa a revelar um contínuo processo de “refinamento” e complexificação do ato de sugar.
Em outros termos, ainda que a sucção esteja contida no patrimônio genético humano, ela
deve ser exercitada no intuito de se obter outras variáveis deste ato. A cada “emancipação”
e originalidade deste ato, requer-se uma boa dose de repetições que levam à contraparte do
processo adaptativo, o qual Piaget designa enquanto acomodação.
Piaget já ressaltava que este processo de adaptação e acomodação é modificável de
acordo com o objeto ou estímulo envolvido nos atos reflexos. Se um bebê for amamentado,
desde o início, com uma colher ou algum outro objeto que não seja o peito, este viverá
dificuldades em retornar ao seio, dando mostra dos aspectos contingenciais que estão
envolvidos no desenvolvimento humano. Enfim, tudo nos leva a crer que, ainda que os atos
reflexos se apresentem a priori enquanto manifestações herdadas e, assim, não aprendidas,

mecanismos que levam o organismo ao adoecimento.


63
- De acordo com Damásio (1996, p. 133) também devemos mencionar “que o conhecimento inato baseia-se
em representações dispositivas existentes no hipotálamo, no tronco cerebral e no sistema límbico. Podemos
concebê-lo como o comando da regulação biológica necessário para a sobrevivência”.
64
- Todavia, como bem sabemos, este não é o foco da pesquisa de Piaget, e sim a compreensão ontogenética
de desenvolvimento.

95
é necessária uma “sensibilização” gradual, “espiralada” e contínua, para que este ato
reflexo se consolide e possibilite variáveis do próprio ato. Estas variáveis adquiridas neste
primitivo processo de exploração do mundo fundamentarão, paulatinamente, outras ações
sensório-motoras condizentes a este “esquema de ação”. Este processo demonstra o
desenvolvimento de reações circulares primárias, logo, de experimentação, aprendizagem e,
por que não, de possíveis traumatizações do sistema sensório-motor. Como bem nos lembra
Piaget (1978), para toda “adaptação reflexa, há uma parte de acomodação, e essa
acomodação é indissociável de uma assimilação progressiva, inerente ao próprio exercício
do reflexo” (p. 41).
Todo processo de assimilação sensório-motora apresenta funcionalmente tanto um
aspecto fisiológico quanto psíquico. Considerando a região oral enquanto um complexo
conjunto de órgãos que envolve a boca, vias nasais, órgãos da garganta, esôfago e por fim o
estômago, observamos seu desenvolvimento inicial nos processos de incorporação de
alimentos, seja em seu aspecto alimentar, propriamente buco-estomacal, tanto quanto em
sua dimensão olfatória. O alimento, ao ser ingerido, além de propiciar os elementos
nutritivos essenciais à sobrevivência, estimula funcionalmente estes órgãos em sua
dimensão puramente sensória. Todo o aparelho que envolve a região oral possui uma
necessidade incorporadora de estímulos nutrientes e olfatórios assim como se desenvolve,
recursivamente, a assimilação de estímulos sensórios prazerosos que nos remetem, segundo
Piaget, à função psicológica deste processo. Assim, vida orgânica e psíquica se constituem
sistêmicamente em seus aspectos básicos de sobrevivência e prazer.

5.1.1.2 – As primeiras adaptações adquiridas e a reação circular primária


– A segunda sub-fase sensório-motora

A cada semana, o bebê vai integrando suas adaptações hereditárias, a princípio,


puramente reflexas, com atividades não-inatas ou, em outros termos, com atividades
corticais. Grosso modo, inicia-se um processo crescente de aprendizagem adquirida e de
ações sensório-motoras intencionais. Um exemplo curioso ressalta que o instinto de sugar,

96
enquanto busca de alimento, pode ser considerado um reflexo herdado. Todavia, o ato de
sugar o dedo requer uma aprendizagem adquirida no acúmulo de atividades corticais-
corporais que envolvem coordenação entre mão e boca e, por fim, a visão. De acordo com
Piaget (1978), “a protusão da língua e a sucção dos dedos constituem, assim, os dois
primeiros exemplos de uma conduta que prolonga o exercício funcional do reflexo (chupar
em vazio etc)” (p. 63). Este exercício funcional está de acordo com o que Baldwin
denomina enquanto uma reação circular primária, a qual deve ser concebida, certamente,
como uma síntese ativa da assimilação e acomodação. Devemos ter em mente que
diferentes tipos de esquemas de ação começam a se coordenar entre si, tal como a visão e a
sucção. Quanto à visão, observamos que a percepção da luz, de acordo com o potencial
funcional do órgão ocular, oferece os elementos necessários para a adaptação reflexa dessa
percepção. Quanto à adaptação da forma, tamanho, localização espacial, movimento,
atração etc, devem ser conquistados na recursividade entre reflexo e funções superiores. Da
mesma forma que os alimentos e objetos são excitantes da mucosa oral, a luz, as cores, as
formas e os movimentos são excitantes do órgão visual.
Da mesma maneira que o esquema de sucção, a passagem de uma assimilação visual
puramente reflexa requer uma assimilação generalizadora, ou seja, se desloca para
diferentes objetos que vão daqueles conhecidos aos desconhecidos. Da mesma forma que
os diferentes objetos experimentados no exercício de sucção, com suas texturas, tamanhos,
brilho e temperatura peculiares, e que irão estimular a mucosa bucal distintamente, também
a visão em seu processo de assimilação generalizadora dará lugar a esquemas particulares,
os quais fornecerão as ferramentas necessárias para a discriminação do mundo que cerca a
criança. Todavia, é necessário demarcar que a crescente “introjeção” e compreensão
cognitiva do mundo, especificamente a “entrada” do mundo pela visão, requer a
sincronização de uma ampla série de esquemas de ação que envolvem todos os sentidos. A
“totalidade” do mundo requer a utilização da totalidade das capacidades sensório-cognitivas
e, como Piaget (1978) acrescenta:

“A observação mostra-nos, com efeito, que muito cedo, podemos afirmar que desde
o início da orientação do olhar, existem coordenações entre visão e audição.
Subseqüentemente, aparecem as relações entre a visão e a sucção, depois entre a
visão e a preensão, o tato, as impressões cinestésicas” (p. 82).

97
Estas considerações são prontamente compreensíveis à medida que observamos a
transposição de um olhar que assimila o objeto simplesmente enquanto fonte de estímulo
visual para outra categoria de assimilação, a qual envolve agir sobre ele através de outros
esquemas de ação. A criança, ao ver o pequeno chocalho pendurado no berço, “vê” também
a possibilidade de puxá-lo, balançá-lo, sugá-lo, mordê-lo, ouvi-lo, cheirá-lo etc. Então “é a
organização progressiva que confere aos quadros visuais seus significados e os consolida,
inserindo-os num universo total” (Id., ibid., p. 83).
Tanto a fonação quanto a audição, funções inicialmente reativas a reflexos
hereditários, vão se transformando e adquirindo cada vez mais complexidade de acordo
com o surgimento de adaptações adquiridas. A partir do primeiro mês, os gritos emitidos
pela criança passam a estimulá-la circularmente a emitir outros gritos, assim como a
modulação do mesmo. Observa-se que a conquista desta função fonadora passa a nutrir a
função auditiva, já que a criança também pode chorar para ouvir a si mesma. Nesta altura,
não podemos nos referir a um estímulo que é captado isoladamente, já que um determinado
som emitido pelos pais, por exemplo, não só é identificado pelos ouvidos como pelos olhos,
pois observam as expressões emitidas quando o som é feito. E se a face dos pais estiver
suficientemente próxima, levará as mãos para explorar esta fonte de sons e estímulos
visuais, culminando, se possível, no ato de sucção da face do genitor, caso este se aproxime
suficientemente. Toda esta “sinfonia” dos esquemas de ação promove uma integração do
aparelho sensório-motor através de uma constante repetição, generalização e recognição
destas atividades.
De acordo com Piaget, todas essas adaptações sensório-motoras requerem um grau de
acomodação ao ambiente e, como viemos apresentando, um triplo aspecto assimilativo:

Assimilação por repetição: consistirá no que Piaget (Id., ibid., 94) considera enquanto
um ato de ouvir por ouvir, gritar ou gemer para ouvir estes sons etc.
Assimilação generalizadora: diversificar os diversos esquemas de ação para situações
as mais variadas. Devemos ressaltar o alto grau de contigências que está envolvido
nestas ações, já que a disponibilidade e recursos para que se empreenda esta
generalização será condizente ao meio em que o bebê vive.

98
Assimilação recognitiva: requer um processo de aprendizagem, já que este tipo de
assimilação consiste em reencontrar situações sensórias precisas, já experienciadas,
para adaptá-las a novas situações.

De início, estas atividades repetitivas, generalizadoras e recognitivas se organizam de


forma um tanto isoladas para que, pouco a pouco, possam ser integrados a uma organização
mais complexa, onde todos os sentidos passarão a funcionar, cada vez mais, de forma
recursiva e integrada.
Como já apresentamos, o foco da pesquisa de Piaget incide sobre a compreensão do
desenvolvimento da inteligência em sua forma ontogenética, ou seja, seus interesses de
pesquisa não se direcionam para fatores que se referem à singularidade deste processo, e
sim enquanto um processo em que todos os seres humanos vivem de forma mais ou menos
sincrônica em seu ciclo evolutivo de desenvolvimento. Todavia, em alguns momentos de
suas descrições, são mencionados alguns dados empíricos os quais demarcam que, embora
não invista tempo nestes fatores referentes à singularidade do desenvolvimento cognitivo,
tampouco os desconsidera. Vejamos uma citação:

“parece-nos que o aparecimento das coordenações essenciais entre a visão e a


preensão depende de toda a história psicológica do sujeito, e não de estruturas
determinadas por um desenvolvimento fisiológico inevitável. Assim, é a história, o
próprio processo assimilador que constitui o fator essencial e não a estrutura isolada
desta história. Parece mesmo que certo acaso intervém nas descobertas da criança e
que a atividade assimiladora que utiliza essas descobertas pode, segundo os casos,
ser mais ou menos retardada ou acelerada” (PIAGET, 1978, p. 120)

Piaget compartilha, ainda que modestamente, com um dos pontos que será destaque
nas reflexões do construtivismo radical. Também não devemos nos esquecer que as críticas
provindas de vygotskyanos mais afoitos, os quais alegam que Piaget não considera os
fatores ambientais no processo de desenvolvimento, é infundada.
Parece estar evidente que, até o momento, Piaget ainda se refere a um período de
transição para uma ação sensório-motora inteligente. Neste segundo sub-estágio,
caracterizado por reações circulares primárias, o bebê vai tecendo suas últimas
manifestações propriamente orgânicas e, sendo assim, reflexas, para o desenvolvimento de
uma crescente intencionalidade sensório-motora, estabelecento uma crescente conexão

99
entre meios e fins e que caracteriza os atos inteligentes. Em termos gerais, podemos dizer
que o principal fator deste período consiste na separação entre assimilação e acomodação.
Nas palavras de Piaget (1978):

“no reflexo, o novo é inteiramente assimilado ao antigo e a acomodação confunde-


se, assim, com a assimilação; na inteligência, há interesse pelo novo como tal e, por
conseguinte, a acomodação fica bem diferente da assimilação; nas condutas da fase
intermediária, o novo só interessa ainda na medida em que pode ser assimilado ao
antigo, mas já não cabe nos limites dos quadros antigos e obriga-os, assim, a uma
acomodação que é parcialmente distinta da assimilação”(p. 140).

5.1.1.3 – As adaptações sensório-motoras intencionais e a reação circular


secundária – A terceira sub-fase sensório-motora

A coordenação da visão e da preensão inaugura uma nova série de comportamentos:


as adaptações intencionais. Em acordo com esta proposta, corroboramos com o autor
quando este afirma que há inteligência anterior ao surgimento de representações mentais e
que a imagem mental “é um produto da interiorização dos atos de inteligência, não um dado
prévio em relação a estes atos” (PIAGET, 1978, p. 145). Nesta fase, observamos no bebê
uma crescente coordenação de diversos tipos de esquemas de ação e que envolvem todos os
sentidos. Este majestoso fenômeno, que se revela no contínuo processo de desenvolvimento
da inteligência, demarca as características fundamentais de assimilação e “captura” do
ambiente, já demonstrando uma complexa rede de combinações, as quais se revelam em
uma contínua mobilidade destes esquemas. Esta mobilidade, visualizada nas diferentes
combinações dos esquemas de ação que já estão à disposição do bebê, revela a natureza
intencional que é estabelecida com o mundo em suas incontáveis possibilidades de
estímulos. Esta intencionalidade pode ser verificada à medida que a criança reencontra em
seus esquemas de ação capacidades sensório-motoras específicas que lhe coloca novamente
em direção ao estímulo ou objeto que lhe proporcionou algum tipo de prazer.

100
Nesta terceira fase do estágio sensório-motor, surge a percepção espacial de que os
objetos deslocados podem ser revertidos ao ponto inicial da ação. A esta peculiaridade,
Piaget denominou como uma percepção de “grupos”. Esta fase revela a coordenação de
diversos espaços, como o espaço visual, tátil e bucal. Nas palavras de Piaget (1978):

“a reação circular secundária só começa quando um efeito fortuito da ação do


sujeito é entendido como resultado dessa atividade (...) assim como tudo, o
universo primitivo da criança é para chupar, ver, ouvir, tocar ou agarrar, tudo se
torna, pouco a pouco, coisa para sacudir, balançar, sacolejar, friccionar etc” (p.
169).

5.1.1.4 – A coordenação dos esquemas secundários e a sua aplicação às


novas situações – A quarta sub-fase sensório-motora

Piaget argumentou que as reações circulares secundárias ainda não constituem atos
completos de inteligência. Como exemplo, pode-se observar que o bebê descobre
fortuitamente que, ao se agitar, pode sacolejar o berço, ou, em outros termos, a necessidade
de se agitar para sacolejar o berço nasceu da descoberta, e não de uma necessidade que é
determinada por um propósito. Um outro ponto a demarcar que estas reações circulares
secundárias ainda não são, de fato, ações inteligentes, é que os atos sensório-motores desta
fase são movidos pela simples necessidade de repetição. A criança, ao ser colocada diante
de novos objetos e situações, promove a generalização dos esquemas secundários,
assimilando-os e aplicando sobre eles os esquemas de ação que estão à disposição. A isto se
soma o que Piaget denominou como um prolongamento da ação sensório-motora para que o
“espetáculo” dure. O exercício destas funções prepara a criança para que os esquemas de
ação sejam adaptados às situações novas.
Todavia, há uma ação intermediária ou, como Piaget prefere, um “esquema
transitivo” (Id., ibid., p. 214), que propiciará meios para a próxima sub-fase do estágio
sensório motor. Aqui nos referimos à quarta sub-fase, denotando a capacidade da criança
em articular dois ou mais esquemas de ação no intuito de procurar objetos desaparecidos,

101
assim como um aprimoramento na elaboração do campo espacial em correlação com os
objetos. A criança passa a demonstrar ações que visam solucionar os impedimentos que os
obstáculos interpõem entre a intenção e o resultado, sendo que estes seriam então os
primeiros atos propriamente inteligentes. A seguir, observaremos que a quinta sub-fase
sensório-motora consistirá na possibilidade de perceber os objetos que cercam a criança
enquanto fonte real de exploração e, conseqüentemente, independente da ação.

5.1.1.5 – A “descoberta de novos meios por experimentação ativa” e a


reação circular terciária – A quinta sub-fase sensório-motora

Duas circunstâncias limitam a eficácia da coordenação dos esquemas secundários,


procedidos na quarta subfase sensório-motora, e que serão superados nesta quinta sub-fase.
A primeira se refere à incapacidade de promover uma diferenciação do objeto por uma
“acomodação progressiva”. Em segundo lugar, as crianças desta fase não elaboram os
objetos independentemente da ação. A quinta subfase seria então a etapa onde a criança
possui os elementos necessários para promover a elaboração do “objeto”. A reação circular
terciária, característica desta etapa, é derivada das reações secundárias, sendo que a única
diferença é que, no caso das reações terciárias, “o novo efeito obtido fortuitamente não é
apenas reproduzido, mas também modificado, com o propósito de estudar sua natureza”
(PIAGET, 1978, p. 250). Em outros termos, vemos a acomodação pela acomodação,
havendo realmente toda uma variação e modulação na aplicação dos esquemas adquiridos
no intuito de explorar cada vez mais as possibilidades do objeto e descobrir suas limitações.
Há também a resistência inerente aos próprios objetos ao serem acomodados aos esquemas
que a criança tenta lhe impor. Em outros termos, a criança começa a perceber que nem tudo
é moldável à sua vontade exploratória.
As descobertas que a criança nos apresenta ao empreender novos meios por
experimentação ativa se revelam nas inúmeras tentativas exploratórias que devem ser
postas em práticas para a obtenção de um fim específico. Será neste sentido que objetos

102
intermediários assumem uma posição fundamental enquanto vetores que as levam de
encontro aos objetos desejados. Estas ações se mostram através de objetos que podem
exercer algum tipo de função intermediária, como uma manta, por exemplo, a qual
“suporta” em sua extremidade outros objetos que poderão ser alcançados ao se puxá-la.
Além de objetos que oferecem suporte intermediário, já que, ao serem manipulados,
permitem o acesso a outros objetos, observamos a existência de outros objetos que exercem
funções similares. Com um barbante ou uma vara, se pode puxar ou empurrar os objetos
desejados em direções que mais lhe convier. De acordo com Piaget (1978), devemos estar
cientes de que “a exploração por tentativa, que é no que essa acomodação consiste, é
cumulativa, isto é, cada ensaio sucessivo constitui um esquema de assimilação em relação
aos seguintes” (p. 272). A aprendizagem65 se faria exatamente no acúmulo das explorações
pelas inúmeras tentativas e, como Piaget (Id., ibid., p. 279) acrescenta, ainda que “dirigida
por esquemas anteriores de assimilação, a acomodação confere-lhe maior flexibilidade”.
Com a reação circular terciária, a acomodação passa a ser um fim em si mesma e
prepara a criança para a próxima subfase, onde a invenção por combinações mentais e
representações passarão a exercer um papel fundamental na estruturação do real.

5.1.1.6 – A invenção de novos meios por combinação mental – O sexto


sub-estágio sensório-motor

Devemos ressaltar, uma vez mais, que esta esquematização evolutiva do


desenvolvimento cognitivo não deve ser compreendida rigidamente em sua “linearidade”,
como se as subfases anteriores ficassem para trás e não se manifestasse mais aquele
conjunto de condutas, as quais foram nomeadas de reações circulares secundárias e
terciárias. Seguramente, são observados progressos no desenvolvimento cognitivos mas, e
isto Piaget (1978) acrescenta, “os fatos permanecem de tal modo entremisturados e a sua
sucessão pode ser tão rápida, que seria perigoso separar demais estas fases” (p. 311).

65
De acordo com Piaget (1978, p. 279) “a aprendizagem não é outra coisa, com efeito, senão uma reação
circular que se desenvolve por meio de assimilações reprodutivas, recognitivas e generalizadoras”.

103
Todavia, soma-se a estas condutas algo novo que, por sua vez, será o ponto de transição
para os estágios posteriores. Piaget se refere então à invenção por dedução ou combinação
mental. Diante desta fase, Piaget observa que a criança aprimora seu sentido de realidade, e
a inovação na resolução dos problemas e situações cotidianas devem ser realizadas
mentalmente. O fato da criança prever determinadas situações que a levarão ao sucesso ou
ao fracasso de determinada ação revela que esta pesquisa do ambiente é executada a priori,
ou seja, por representações e imagens, e não mais a posteriori, ao realizar a ação sensório-
motora quando se depara com os obstáculos.
A invenção de novos meios para a exploração do entorno revela a presença de
organização de imagens mentais. Mas devemos ressaltar que há uma continuidade das
ações precedentes ou, em outros termos, as explorações dirigidas, para as então inventivas e
representativas manobras mentais. De acordo com Piaget (1978), observamos que “a
invenção não seria outra coisa senão a reorganização rápida dos esquemas sensório-
motores, e a representação reduz-se a essa evocação, assim prolongando, uma a outra, os
mecanismos em ação no decorrer das condutas precedentes, em seu conjunto” (p. 322). A
criança, por exemplo, ao se deparar com uma caixa que contêm um objeto o qual deseja
pegar, mas que possui uma fenda muito pequena que impede que seus dedos passem por ela
para obter o objeto, simula, através de substitutos simbólicos (abrir e fechar a boca), uma
possível ampliação da fenda. Uma vez assimilado tal esquema mental, a criança passa à
ação com sucesso, alargando a fenda com os dedos e alcançando o objeto desejado.
Devemos encerrar esta recapitulação das seis subfases sensório-motoras enfatizando o
caráter construtivista inerente a este processo. O surgimento das “representações” mentais
delimita a fase sensório-motora da fase simbólica, a qual a criança ingressa por volta de 2
anos. Segundo Piaget, é devido às combinações mentais que o ser humano não necessita,
em tese, fazer explorações sensório-motoras para executar um plano de ação. Discordamos
em parte destas colocações de Piaget, pois aceitamos que a exploração sensório-motora
continua exercendo, mesmo na vida do adulto, papel crucial na “descoberta” do mundo em
todas as suas manifestações. Aprofundaremos, a seguir, nestas considerações.
Como propusemos no início deste tópico, esta síntese do estágio sensório-motor
deverá nos oferecer a base teórica necessária para que possamos então acrescentar um
conjunto de novos elementos, apresentados pelo construtivismo radical, pela neurociência e

104
por escolas que relevam, por sua vez, o desenvolvimento afetivo em primeiro plano. Será
nesta reflexão, de moldes transdisciplinares, que buscaremos consolidar um novo arranjo
compreensivo de como se desdobra o desenvolvimento cognitivo-afetivo, tanto em seus
moldes ontogenéticos, quanto oferecendo a devida atenção à singularidade evolutiva deste
complexo processo. Demonstraremos, por sua vez, que o adoecimento cognitivo-afetivo é
condizente com fatores qualitativos que se revelam neste complexo desdobramento do
desenvolvimento afetivo-cognitivo, e que nossas possibilidades elaborativas também se
inscrevem nas entrelinhas deste processo.

6 – Novos elementos para uma teoria do


desenvolvimento de molde transdisciplinar

“Não é apenas a separação entre mente e cérebro que é um mito.


É provável que a separação entre mente e corpo não seja menos fictícia.
A mente encontra-se incorporada, na plena acepção da palavra,
E não apenas cerebralizada”

Antônio R. Damásio

Como viemos apresentando nesta sucinta introdução aos aspectos biológicos das
emoções, seria indispensável um estudo mais abrangente dos componentes fisiológicos,
cerebrais e hormonais. Seria de acordo com estes componentes que poderíamos obter um
quadro mais completo das manifestações fisiológicas das emoções, reguladas pelo sistema
nervoso central e autônomo, pelas composições bioquímicas dos fluídos corporais e pelas
mudanças na atividade musculare. Neste sentido, poderíamos dizer que emoção e
manifestações fisiológicas são o mesmo processo. Pelos processos emocionais implicarem
um complexo sistema funcional, devem ser distinguidas das meras manifestações reflexas,
fruto de uma deriva filogenética, e serem consideradas, como argumenta Xavier (2004), um
processo multidimensional que não pode ser compreendido a partir de domínios isolados
(cognitivo, social ou biológico).
Referente à obra O nascimento da inteligência na criança, a qual representa,
seguramente, o pilar central da epistemologia genética piagetiana enquanto uma minuciosa

105
apresentação das adaptações sensório-motoras, observamos que se fizermos um
levantamento de quantas vezes Piaget se referiu a algum aspecto concernente à
singularidade do desenvolvimento sensório-motor ou da intrínseca relevância do campo
afetivo para o desenvolvimento da cognição (como prefere, da inteligência) ficaríamos
quase que inteiramente decepcionados. Quanto à primeira questão, é compreensível que se
alegue que Piaget se preocupou com os aspectos ontogenéticos do desenvolvimento, não se
detendo na compreensão deste processo em suas incontáveis singularidades. Quanto ao
segundo ponto, poderia ser alegado que a compreensão do desenvolvimento afetivo não
seria o “foco” de Piaget, assim como a compreensão do desenvolvimento cognitivo nunca
foi o foco de atenção da psicanálise em seu contexto tradicionalmente freudiano. Também
as pesquisas neurocientíficas que buscavam sedimentar dados consistentes entre emoção-
afetividade-cognição-cérebro não apresentavam os surpreendentes avanços os quais vem
sendo observados nos últimos dez anos e que, por este motivo, não despertavam a atenção
de grande parte dos pesquisadores do desenvolvimento humano. Bem, este também poderia
ser um motivo razoável para explicar algumas limitações nas pesquisas de Piaget. Contudo,
não desconsideramos em absoluto que Piaget propõe uma funcionalidade entre afeto e
cognição. Mas tampouco podemos dizer que Piaget é contundente em defender esta relação
enquanto ontogeneticamente constituiva ao processo de desenvolvimento humano no
decorrer de qualquer obra de sua autoria. O que queremos chamar a atenção do leitor é para
a discrepância entre a aceitação de Piaget para uma constitutiva funcionalidade entre
afetividade e cognição, que permeia o desenvolvimento humano em todas as suas fases, e
da misteriosa e completa omissão desta funcionalidade em obras centrais como, por
exemplo, na obra acima citada.
Ao seguirmos um modelo metodológico transdisciplinar, somos autorizados a
requerer para nossa pesquisa as contribuições de outras áreas de conhecimento as quais
consideramos essenciais para uma compreensão mais complexa do desenvolvimento
humano. É neste sentido que apresentaremos, inicialmente, algumas contribuições
contemporâneas da neurociência no intuito de propor a inviabilidade de se compreender o
desenvolvimento humano sem se considerar as emoções, os afetos e os processos
cognitivos enquanto intrinsecamente recursivos. Objetivamente, buscaremos demonstrar
que o esforço teórico apresentado por Piaget em apresentar o desenvolvimento da

106
inteligência sem levar em consideração, de forma contundente e constitutiva, os aspectos
afetivos da mesma, pode ser considerado, na atualidade, uma teoria essencialmente
equivocada. Vamos então a uma releitura da fase sensório-motora, munidos dos avanços da
neurociência.

6.1 – Para uma compreensão neurocientífica do sistema


cognitivo-afetivo

6.1.1 – o sistema nervoso e sua clausura operacional

Para que possamos apresentar alguns elementos que acreditamos serem cruciais neste
“original” arranjo transdisciplinar sobre o desenvolvimento cognitivo-afetivo, devemos
introduzir, inicialmente, o conceito de clausura operacional. A apresentação deste conceito
se faz necessária por ser um dos pontos teóricos centrais que oferece sustentabilidade à
“biologia do conhecer” de Maturana e Varela e, de forma mais ampla, ao projeto de
radicalização do construtivismo piagetiano. Logo, também devemos argumentar que
consideraremos o funcionamento do sistema nervoso a partir de operações que se sustentam
de acordo com uma “clausura operacional”. Neste sentido, todas as contribuições da
neurociência a serem apresentadas, as quais evidenciam adequadamente a recursividade
entre afeto e cognição, devem estar em sintonia com esta premissa básica.
O problema mente-corpo, também nomeado pelos “filósofos da mente” como um
problema de cunho ontológico, pode ser dividido, grosso modo, em duas tendências
paradigmáticas: materialismo e dualismo. Do lado materialista, as explicações sobre os
processos mentais devem ser “reduzidas” aos seus substratos neurológicos, ou seja, seriam
“estados sofisticados de um complexo sistema físico: o cérebro” (CHURCHLAND, P.,
1998, 17). Por sua vez, os defensores de uma teoria dualista da mente insistem que os

107
processos mentais não seriam exclusivamente de fundo material, ou seja, orgânicos, mas
também decorrentes de fatores essencialmente não-físicos66. Como ilustração deste
polêmico debate, uma questão corriqueiramente abordada entre estas duas correntes seria
na “desconfortável” conceituação do que viria a ser a sensação de “dor”. Para os dualistas,
a subjetividade deste estado seria intrínseca à multidiversidade de estados mentais (qualias)
que poderiam ser vivenciados, já que cada um de nós pode experimentar “particularmente”
as ínfimas gradações que se encontram submersas na sensação de dor. Por sua vez, os
materialistas defendem a hipótese de que a dor é, antes de tudo, um estado causado por
danos físicos, os quais, por sua vez, causam outros estados interiores, mas que seriam
publicamente observáveis. De um jeito ou de outro, é desalentador o fato de mal
arranharmos, de forma científica, a verdadeira complexidade do funcionamento mente-
cérebro. Devemos lembrar ao leitor que o cérebro possui aproximadamente 100 bilhões de
células nervosas as quais, por sua vez, se interconectam por uma rede de axônios e
dendritos que podem beirar a 10 trilhões de conexões (LENT, 2001). Sendo assim, assumir
uma postura cautelosa seria da maior conveniência, a qual nos sugere que descartarmos
afoitamente um dos lados desta polêmica querela entre dualistas e materialistas não seria
atitude cientificamente sensata. Como acrescenta Damásio (1996), descobrir que um certo
sentimento “depende da atividade num determinado número de sistemas cerebrais
específicos em interação com uma série de órgãos corporais não diminui o estatuto deste
sentimento enquanto fenômeno humano” (p. 16). Todavia, também devemos ser cautelosos
com argumentações apologéticas de ambos os lados, que reduzem o “fenômeno” humano a
bases estritamente neuroquímicas67 ou não-físicas.
Ao nos referirmos que todo sistema neuro-cognitivo opera a partir de uma “clausura
operacional”, estamos especificando e delimitando uma abordagem para o entendimento
dos processos cognitivos e, conseqüentemente, para o que nomearemos no decorrer do
estudo como “elaboração”. De acordo com a teoria biológica da cognição de Maturana e

66
- Como se não bastasse, estes dois grupos ainda se sub-dividiriam em mais cinco versões cada, as quais,
segundo Churchland (1998, p. 17), seriam radicalmente diferentes entre si.
67
- Segundo Churchland (1988) “Quando a neurociência tiver amadurecido, a ponto de a pobreza de nossas
atuais concepções sobre medos, crenças, desejos, sensações, dores, alegrias etc, terem se tornado manifestas a
todos, e a superioridade do novo arcabouço tiver sido estabelecida, poderemos, por fim, dar início à tarefa de
reformular nossas concepções das atividades e estados internos, no interior de um arcabouço conceitual
realmente adequado. Nossas explicações sobre os comportamentos uns dos outros irão recorrer a coisas como

108
Varela (2002), todo processo perceptivo seria configurado por estados específicos do
sistema nervoso. Exemplificando, quando observamos um fenômeno luminoso, este não é
“determinado” pela luz (comprimento de onda) que nos chega, mas sim pelos estados de
atividade neuronal. Logo, esta condição de nossos estados perceptivos nos informa que, de
acordo com Maturana e Varela, toda as nossas experiências são indissociáveis de “nossa”
estrutura neurológica. Geralmente, quando não se pode dar uma explicação que se sustente
por substratos físicos, no nosso caso, pela dimensão física da luz e de seu comprimento de
onda, atribui-se pejorativamente ao evento um status ilusório. Mas segundo os autores,
“fazer surgir um mundo é a dimensão palpitante do conhecimento” (MATURANA &
VARELA, 2002, p. 33), e este tipo de atribuição “objetivista” do evento deve ser relevado e
substituído por uma abordagem “fenomenológica”. Para uma aproximação ascendente do
que está sendo proposto, ou seja, de que o sistema nervoso opera a partir de uma “clausura
operacional”, consideraremos inicialmente a unidade autopoiética celular.
A célula, enquanto uma organização autopoiética68, é composta por diversos
componentes que se relacionam dinamicamente e que constituem o metabolismo celular.
Alguns destes componentes formam uma fronteira que limita sua rede de transformações.
Esta estrutura é considerada pela biologia como uma “membrana”, a qual não apenas
delimita os corpúsculos celulares, como participa ativamente de seu equilíbrio com o meio.
É curioso observarmos que este componente celular, que a separa do meio e delimita sua
identidade organizativa, também permite que ocorram transformações contínuas em sua
estrutura69. Vejamos a representação a seguir:

nossos estados neurofarmacológicos, nossa atividade neural em áreas anatômicas específicas e a outros
estados que forem relevantes para nossa teoria” (p. 82).
68
- De acordo com Maturana e Varela (1997, p. 71), “uma máquina autopoiética é organizada como um
sistema de processos de produção de componentes concatenados de tal maneira que produzem componentes
que:
i) geram os processos (relações) de produção que os produzem, através de suas contínuas interações
e transformações, e;
ii) constituem a máquina como uma unidade no espaço físico”.
69
- Segundo Henri Atlan (1992), para que uma mitocôndria produza energia necessária para a célula,
denominada como reações de fosforalização oxidativa, deve haver, necessariamente, uma estrutura
membranosa. Segundo o autor, “seria impossível reproduzi-las experimentalmente na ausência de estruturas
membranosas, mesmo que todos os elementos moleculares constitutivos das mitocôndrias estivessem
presentes. No mínimo, seria necessário fragmentos de membrana (...) As funções de síntese e de transporte
são estreitamente dependentes da estrutura global da membrana, cuja construção e renovação, por sua vez, são
reguladas, numa certa medida e numa escala de tempo diferente, por essas funções” (p. 87).

109
Figura 6.1: Representação gráfica do funcionamento da membrana celular

Dinâmica Fronteira
(Metabolismo) (Membrana)

ou

Figura 6.2: representação de uma unidade de primeira


ordem (MATURANA & VARELA, 2002, p. 86)

110
De acordo com George Spencer Brown (1979), um sistema seria a forma de uma
diferenciação onde, neste contexto biológico, possuiria o lado interno da forma (célula) e o
lado externo da forma (ambiente). Somente ambos os lados constituem a diferenciação e o
ambiente é tão importante quanto o sistema celular, pois somente nesta “confrontação”
pode se explicar a dinâmica celular. Logo, a membrana celular não deve ser considerada em
“nenhum” dos lados, já que é exatamente este limite que demarca a unidade celular.
Como Maturana e Varela (2002) acrescentam, a membrana celular deve possuir
suficiente plasticidade que permita auto-regular a entrada de substâncias afins com a
estrutura celular e que funcione ao mesmo tempo como barreira para qualquer outra
substância que ameace a organização celular. Toda molécula será incorporada à estrutura
celular na medida em que a célula identifica um “acoplamento otimizante” com
determinada molécula. Em outros termos, não é a molécula que define esta interação e sim
a organização celular. Curiosamente, Piaget (1996) parece ter antencipado estas
considerações na seguinte citação:

“Do ponto de vista embriológico, o desenvolvimento epigenético implica uma série


de trocas, mas com uma direção interna que impõe sua escolha aos alimentos
utilizados. Do ponto de vista fisiológico, o sistema das regulações atesta uma
atividade contínua que, mais uma vez, não sofre as trocas com o meio, mas as
canaliza e regula. Do ponto de vista neurológico, o sistema nervoso não se limita a
sofrer uma ação coercitiva por parte dos estímulos, mas demonstra atividades
espontâneas e não aceita os estímulos senão quando é sensibilizado a eles, isto é, se
os assimila a esquemas prévios de respostas” (p. 44).

Exemplificando, podemos observar que a membrana de uma célula transporta


regularmente íons de sódio e cálcio, revelando um acoplamento estrutural entre a célula e o
meio orgânico. Este acoplamento só permite que haja intercâmbio entre certos íons, pois se
outros íons, como césio ou mercúrio, forem introduzidos ao meio celular, as mudanças
estruturais desencadeadas não seriam coerentes com a realização da autopoiese desta célula.
Assim, todas as mudanças que ocorrerem na célula são produtos de sua interação molecular
mas – e isto é um ponto central para nós – é a estrutura celular que determinará as

111
mudanças produzidas por esta interação. Um outro exemplo muito curioso apresentado
por Maturana e Varela, refere-se ao acoplamento entre superfícies sensórias e motoras.
Observa-se que certos protozoários possuidores de flagelos definem seu movimento de
acordo com os estímulos provindos do meio. Na presença de açúcar, estes protozoários
movimentam seus flagelos em forma de hélice, ao passo que destituídos deste estímulo,
movimentam seus flagelos lentamente e aos solavancos. O que se passa com estes
protozoários é determinado pelas características especializadas de sua membrana, capazes
de interagir especificamente com os açúcares. Assim, como acrescentam Maturana e Varela
(2002), “quando há uma diferença de concentração em seu pequeno entorno, produzem-se
alterações no interior, que determinam a mudança de direção do giro do flagelo” (p. 166).
Neste contexto, devemos considerar que a ontogênese celular é desencadeada pelos
acoplamentos estruturais gerados tanto internamente quanto pelo meio ambiente mas que,
em última instância, é delimitado pelas classificações seletivas operadas pela própria célula.
Também o processo de auto-reprodução celular será determinado pela dinâmica
autopoiética da célula, gerando uma invariância organizacional mas, ao mesmo tempo,
proporcionando particularidades estruturais, já que duas novas células são geradas de uma
única célula70. Em âmbitos gerais, a história evolutiva dos organismos vivos seria
caracterizada por uma “invariância” organizacional assim como pelas modificações
estruturais decorrentes de uma “deriva seletiva”, e a fundamentação destas peculiaridades
seletivas observadas na ontogenia celular são frutos de um longo processo filogenético.
Os seres unicelulares são organizações designadas como unidades de primeira ordem.
Todavia, as unidades metacelulares ou, como os autores denominam, unidades de segunda
ordem, requerem uma fenomenologia distinta. Os seres humanos, enquanto unidades
autopoiéticas de segunda ordem, podem ser observados a partir de sua ação no mundo.
Dotado de um complexo sistema nervoso, introduz-se então uma diferença fundamental
entre aquelas espécies que detêm um operar ou um conhecer relativamente limitado. A
complexidade humana lhe permite estabelecer acoplamentos das mais diversas ordens e que
transcendem a nossa capacidade imaginativa de quais seriam suas limitações. Assim, nos

70
- Devemos então considerar que cada unidade carrega em si aspectos idênticos à estrutura original
(hereditariedade) e, ao mesmo tempo, aspectos diferenciados (variação reprodutiva).

112
termos das representações gráficas de Maturana e Varela, poderíamos propor os sistemas
autopoiéticos dotados de sistemas nervosos do seguinte modo:

Figura 6.3: representação gráfica de uma unidade de


segunda ordem (MATURANA & VARELA, 2002, p.200)

Todavia, refletem analogamente em sua dimensão macroscópica o padrão de


organização ontogênico das células. Este detalhe corriqueiro na obra de Maturana e Varela
deve ser enfatizado, já que consideramos o processo elaborativo enquanto um evento
“reverberativo”, ou seja, é na unidade recursiva soma-psique que se realiza o complexo
processo de elaboração cognitivo-afetiva71. Os sistemas autopoiéticos, do ponto de vista do
seu funcionamento, convergem biologia e cognição, já que transformam desordem em

71
- Piaget (1996) nos ajuda a consolidar tal posição com a seguinte citação: “O caráter cíclico do sistema é
particularmente necessário desde que a organização toma a forma de adaptação e assimilição. Por ora, importa
primeiramente mostrar em que este caráter necessariamente circular, e não somente hierárquico, do sistema
(por diferenciação da estrutura em possíveis subestruturas) caracteriza a organização cogniscitiva espontânea
tanto quanto a organização biológica” (P. 182). Também devemos citar que “se passarmos das adaptações
orgânicas às do comportamento, encontraremos as mesmas relações funcionais, embora aplicadas a estruturas
bem diferentes” (p. 204).

113
ordem ou ruído em sentido, na medida em que aquilo que são elementos perturbadores do
ponto de vista do sistema são, a posteriori da sua resposta estrutural, transformados em
conduta. Sendo assim, seria severamente incongruente com a “biologia do conhecer” se
desconsiderássemos as íntimas e orgânicas repercussões que são geradas pelos diversos
acoplamentos que experimentamos em nosso processo evolutivo, seja ele em nossas etapas
maturacionais intra-uterinas, extra-uterinas e em nossa vida enquanto seres “maduros”, a
qual podemos associar à aquisição de nossa capacidade “operatória formal”, nos libertando
(em tese) das até então necessárias mediações concretas com o mundo (PIAGET, 1990, p.
45).
Sugerimos que o funcionamento do sistema nervoso deve ser compreendido nesta
mesma linha reflexiva. Curiosamente, ainda que Antônio Damásio não adote
explicitamente o conceito de “clausura opereacional”, desenvolve um posicionamento
muito próximo ao defendido por Maturana e Varela (2002):

“os genes proporcionam a um dado componente cerebral sua estrutura precisa e a


outro componente uma estrutura que está para ser determinada. No entanto, a
estrutura a ser determinada só pode ser obtida sob a influência de três elementos:
1) a estrutura exata; 2) a atividade individual e as circunstâncias (nas quais a
palavra final cabe ao meio ambiente humano, assim como ao acaso; 3) as pressões
da auto-organização que emergem da extraordinária complexidade do sistema. O
perfil imprevisível das experiências de cada indivíduo tem realmente uma palavra a
acrescentar ao design dos circuitos, tanto direta como indiretamente, pela reação
que desencadeia nos circuitos inatos e pelas conseqüências que tais reações tem no
processo global da modulação do circuito” (p. 140).

Referindo-se às expressões emocionais, acrescenta que:

“as disposições emocionais (ainda que adquiridas) são obtidas sob a influência das
disposições inatas. Mesmo assim, aquilo que as disposições adquiridas incorporam
é a sua experiência única dessas relações ao longo da vida. Esta experiência pode
variar muito ou pouco; mas é só sua” (p. 166. grifo nosso).

Podemos sustentar inicialmente esta colocação apresentando o resultado de uma


experiência realizada nos E.U.A na década de 50 (MATURANA & VARELA, 2002, p.
140). Neste experimento, concluiu-se que ao modificar anatomicamente uma determinada
estrutura orgânica, devem ser esperadas mudanças comportamentais como resultado. Logo,
quando um sapo tem o seu olho “girado” 180 graus através de procedimentos cirúrgicos,

114
lançará sua língua sempre para trás em busca de insetos que estão, “na verdade”, diante
dele. Este experimento revela que não é o mundo (neste caso, o inseto) que determina a
ação do sapo, mas sim a estruturação de seu sistema ótico.
Nesta mesma linha reflexiva, não devemos desconsiderar as mais diversas ordens de
privações que podem ser experimentadas no processo maturacional humano, seja ele intra-
uterino ou extra-uterino72. Estes “estímulos agressores” também demarcariam
continuamente as possibilidades seletivas e organizativas de nosso aparelho cognitivo73.
Um bebê que é “cuidado”74 satisfatoriamente por seus genitores, tanto pelo toque quanto
pela fala, nutre-se de estímulos fundamentais para o seu desenvolvimento psicossomático e,
logicamente, para estruturação de seu sistema nervoso. Há muito, pesquisas relativas ao
processo de desenvolvimento humano constataram que as privações sensório-afetivas
vividas na tenra idade e na infância acarretam um recrudescimento generalizado no
desenvolvimento afetivo-cognitivo da criança. De acordo com LeDoux (1998), “o estresse
intenso pode produzir a atrofia dos dendritos no hipocampo (...) Em sobreviventes de um
trauma, como as vítimas de constantes agressões na infância, o hipocampo diminui de
tamanho” (p. 220). Estas questões podem ser nitidamente aceitáveis na medida que
consideramos:
a) O órgão epitelial, todo sistema motor-muscular, assim como nosso aparelho
sensorial, conectam-se por terminações nervosas periféricas, emitindo continuamente
uma ampla variedade de estímulos para o sistema nervoso central e, mais
especificamente, até os córtices somatossensorias iniciais.

72
Pelo termo “privação”, nos referimos às mais diversas ordens de experiências frustrantes que podem afligir
o ser humano, seja no campo afetivo, sensório-motor ou nutricional. Também de acordo que este
posicionamento, o epidemologista Prof. Dr. Luís David Castiel (1994), docente e pesquisador da Fundação
Oswaldo Cruz, acrescenta que “de acordo com Békei, diversos autores dedicados a estudar o desenvolvimento
psicológico nos primeiros anos de vida, como Spitz, Mahler, Winnicott, Lacan, Klein e Balint, concordam ao
demarcar as experiências precoces da infância como cruciais, a ponto deste período ser considerado o mais
provável para a instalação das manifestações psicossomáticas” (p. 72).
73
- Segundo Castiel (1994, p. 72), estas impressões, as quais também podemos associar ao conceito de
imprinting, desenvolvido por Konrad Lorenz, seriam determinadas em momentos precoces da infância.
74
- Devemos ser cuidadosos em definir este termo devido a sua complexidade cultural, assim como pela
extensa diversidade conceitual que abrange o campo das Ciências Humanas e Biológicas. Grosso modo,
pedimos ao leitor que considere enquanto uma atitude cuidadosa ao infante toda ação que o abasteça
suficientemente tanto no campo afetivo quanto no nutricional. Esta ações “cuidadosas” devem estar atentas as
possibilidades invasivas e violadoras da singularidade do infante assim como nos atos de cuidado que não o
abastecem suficientemente. Acreditamos que, por defendermos um projeto de “singularidade humana”, toda
relação de cuidado só poderá ser estabelecida nos devidos acoplamentos estruturais entre aqueles que cuidam

115
b) As diversas substâncias bioquímicas segregadas pelo corpo chegam ao cérebro
através da corrente sanguínea, estimulando-o.
c) Por sua vez, os neurônios se interconectam em uma vasta de rede de dendritos e
axônios através de “disparos” bioelétricos assim como por uma razoável variedade de
neurotransmissores.
d) Os contatos neuronais são estabelecidos pelas estruturas sinápticas as quais se
interconectam, novamente, com as múltiplas conexões de diversos tipos celulares, ou
seja, com o conjunto visceral (coração, pulmão, aparelho digestivo, excretor e
epitelial) motor-muscular, endócrino e sensorial, formando um circuito
retroalimentado. De acordo com Damásio (2004, p. 114), os agentes deste circuito são
o sistema nervoso autônomo e o sistema nervoso músculo-esquelético. O cérebro
também atua no corpo, interferindo na produção de hormônios.
e) Também devemos considerar os estímulos internos ao próprio organismo que
influenciam o sistema nervoso. Como Maturana e Varela (2002) acrescentam,
algumas artérias contam com células quimio-receptoras capazes de ser
“especificamente modificadas por mudanças de concentração de uma dada substância
no meio sanguíneo de um vertebrado. Estas células, por sua vez, modificam certos
neurônios, que contribuem com sua mudança de atividade para as alterações de
estados globais de toda rede”(p. 182).

Em termos gerais, devemos considerar que os sinais neurais desencadeiam reações


bioquímicas e endócrinas que alteram o funcionamento do organismo. Estes, por sua vez,
incidem retroativamente nos circuitos reguladores do sistema nervoso. Os organismos que
detêm sistemas nervosos produzem estados de mútuo acoplamento estrutural que também
poderiam ser descritos assim:

Figura 6.4: representação gráficad de uma unidade de terceira ordem


(MATURANA & VARELA, 2002, p. 200)

e os que são cuidados. Logo, uns precisam de mais cuidado, outros de menos, e seria um retrocesso conceitual

116
Observamos então que o meio pode “otimizar” ou não o processo maturacional do
sistema nervoso, já que não consideramos seu funcionamento a partir de mecânicas
extrações de representações objetivantes do mundo. Devemos estar cientes que um sistema
nervoso “bem nutrido”, tanto por estímulos sensórios “satisfatórios” quanto por uma dieta
adequada, selecionará e construirá o mundo de acordo com a evolução de suas capacidades
estruturais. Ao considerarmos que o sistema nervoso atua como modulador de estímulos
internos e externos, o aceitamos enquanto um sistema organizado a partir de uma clausura
operacional. Este termo, nada simpático por sinal, deve ser considerado segundo a
“biologia do conhecer” pois, se refletirmos etimologicamente sobre o termo clausura sem o
situarmos necessariamente a partir de uma seqüência lógica apresentada por Maturana e
Varela, corremos o risco de não compreendê-lo adequadamente. Quando recebemos um
estímulo sensório, são desencadeadas uma série de estados de atividades as quais, por sua
vez, desencadeiam outros estados de atividades, estabelecendo uma rede circular de
interações. O fato do sistema nervoso possuir uma certa plasticidade nos informa de sua
natureza enquanto um “sistema aberto”, ou seja, o meio desencadeia mudanças estruturais.
Por outro lado, ao funcionar a partir de uma circularidade operacional ou, como os autores
preferem, a partir de uma clausura operacional, o sistema nervoso “não capta informações.
Ao contrário, constrói um mundo ao especificar quais configurações do meio são
perturbações e que mudanças estas desencadeiam no organismo” (MATURANA &
VARELA, 2002, p. 188).
Ora, a vida se faz nas contingências de possibilidades internas e externas. Logo, só
poderemos compreender a etiologia das psicossomatopatologias, assim como de suas

normatizarmos rigorosamente o “ato de cuidar”.

117
possibilidades de elaboração, a partir desta recursividade. Neste contexto, consideramos
que o observador não pode avaliar as conseqüências de determinada interferência focando
somente as extremidades deste processo. Não poderemos compreender um quadro
depressivo grave, por exemplo, sem percorrermos a história de interações e acoplamentos
vividos com o meio, assim como não podemos deixar de considerar a constituição seletiva
da estrutura biofísica daquele que vive a depressão. De acordo com esta abordagem,
incorreríamos em severas limitações compreensivas caso nos satisfizéssemos em apenas
delimitar o quadro estrutural da enfermidade sem levar em consideração a intrínseca
particularidade imersa em cada caso. Segundo Castiel (1994), devemos considerar que se
nos referimos à ordem do humano, destacamos “a confluência de três fatores básicos que
co-participam da produção de sua particular singularidade: a herança genética75, a herança
cultural e os acontecimentos aleatórios, acasos e acidentes” (p. 193). Na linha de Maturana
e Varela, Castiel (1994) acrescenta que:

Para se abordar a singularidade do humano e seus modos de adoecer dentro de uma


perspectiva clínica, de maneira a incluir a multiplicidade (especialmente no sentido
da alteridade, ou seja, uma ordem cujo código ignoramos), é imprescindível, por
um lado, incorporar o aleatório, o acaso, o inesperado. Por outro, levar em conta
dois níveis básicos e interativos de complexidade: a) dos sistemas biológicos e b)
dos sistemas sociais” (p. 194).

Caso consideremos o meio ambiente, a cultura e qualquer tipo de organização social


como fator preponderante nas etiologias das psicossomatopatologias, incorreríamos em
uma abordagem parcial. Bem sabemos que perturbações e interações destrutivas que inibem
o “pulso vital” do organismo pode levá-lo a adoecer e, por fim, a morrer. Todavia, não
sabemos, a partir de considerações meramente quantitativas, quais seriam os
desdobramentos desta interação se não considerarmos a organização estrutural do indivíduo

75
- Segundo Changeux (1991), “o poder dos genes, como bem sabemos, garante a perpetuação dos traços
importantes da organização biológica, a forma do cérebro e das circunvoluções, a disposição das suas áreas, a
arquitetura geral do tecido cerebral. Mas escapa a este poder uma grande variabilidade, evidenciada nos
gêmeos verdadeiros (...) Esta variabilidade do fenótipo é intrínseca (...) A maneira como se constrói o
encéfalo dos vertebrados superiores, e particularmente do homem, implica uma variabilidade essencial (...) A
teoria proposta pela epigênese por estabilização seletiva dos neurônios e sinapses em desenvolvimento
considera esta variabilidade” (p. 248).

118
a ser observado, da mesma maneira que não sabemos, de fato, que fumar causa câncer76.
Ao nos referirmos ao tabagismo, não estamos desconsiderando o trabalho estatístico da
classe médica em constatar que tal hábito é um dos mais sérios desencadeadores desta
enfermidade. Mas, como é enfatizado, o tabagismo apenas desencadeia o quadro
cancerígeno em estruturas predisponentes a esta patologia. Da mesma forma, não podemos
aceitar que as informações contidas no “ato de linguajar” sejam estruturadas e
decodificadas a partir de um modelo binário, do tipo proposto pela “Lógica Simbólica”, já
que este modelo não supre o amplo leque semântico que qualquer mensagem pode
reverberar naquele que recebe o “estímulo linguajante”. Enfim, toda informação é
decodificada a partir de unidades estruturalmente “determinadas”.
Considerarmos que os organismos estabelecem um processo seletivo e maturacional a
partir de uma clausura operacional pode ser, por um lado, uma das mais ricas contribuições
para o entendimento do desenvolvimento cognitivo-afetivo e, por sua vez, da etiologia das
psicossomatopatogias. Todavia, também devemos considerar esta abordagem como uma
razoável fonte de inquietação para o clínico, já que um diagnóstico “tradicional” não
apreende, de forma alguma, a especificidade e a complexidade do quadro. Neste contexto,
estamos lidando com tantas manifestações psicossomatopatológicas quanto for o número de
quadros específicos de determinada “estrutura” psicossomatopatológica. Oportunamente,
buscaremos aprofundar na compreensão do complexo desenvolvimento cognitivo-afetivo
humano a partir de sua clausura operacional, assim como nos fatores que levam ao
adoecimento deste processo.

6.1.2 – Afetividade, cognição e neurociência

De início, estabelecemos o pressuposto de que o sistema nervoso funciona a partir de


uma clausura operacional. Devemos alertar o leitor que este posicionamento não se
encontra explicitamente abordado nas obras dos neurocientistas Antônio Damásio ou, mais

76
- Como Maturana e Varela divertidamente explicam, sabe-se que balas de chumbo podem causar sérias
mudanças destrutivas em estruturas humanas, mas que seriam apenas perturbações para a estrutura de

119
especificamente, na obra de Joseph LeDoux, os quais serão os autores que fundamentarão
nossas reflexões que irão se seguir. Na verdade, o fato dos autores aceitarem ou não este
pressuposto não interfere de forma alguma na intenção de se considerar o desenvolvimento
cognitivo em estreita relação com o desenvolvimento afetivo. Como o leitor pode estar
suspeitando, o conceito de clausura operacional será fundamental no momento em que
aprofundarmos na compreensão da intrínseca singularidade que acompanha o
funcionamento de cada sistema nervoso. Antes de adentramos na compreensão dos fatores
que revelam a intrínseca singularidade das construções cognitivas e afetivas, pensamos ser
necessariamente oportuno requerer os avanços da neurociência para que nos aproximemos
do estágio sensório-motor não somente sob a luz de seus aspectos cognitivos-racionais,
apresentados por Piaget, mas também de acordo com seus atributos neuro-emocionais.
Joseph LeDoux (1998) argumenta que a mente cognitiva é capaz de realizar tarefas
bastante complexas. Como exemplo, ele se refere à capacidade de computadores jogarem
xadrez e, até mesmo, superar o maior enxadrista humano de todos os tempos. Mas esta
mente cognitiva não se sente compelida a ganhar e tão pouco se emociona ao colocar o
adversário em posição de xeque-mate. Para ela, esta tarefa não se relaciona com
necessidades narcísicas de fama e vitória e tampouco se perturba por estes motivos. Esta
“mente” não tem cólicas abdominais geradas por ansiedade antes dos jogos e não se
desconcentra. Ela é sempre uniforme, “cartesiana”, pouco importando como “acordou”
naquele dia. Como acrescenta LeDoux (1998), ela pode até mesmo ser programada para
roubar, mas não se sentirá culpada por isso ou terá qualquer tipo de crise ética. É curioso
darmos conta de que ainda é comum, no campo das ciências cognitivas, separar a mente das
emoções, ou seja, para se estudar o funcionamento da mente seria relativamente desprezível
compreender o que se passa na esfera afetiva. Uma alegação comumente apresentada é que
as emoções seriam estados subjetivos da consciência, e que não seriam, de fato,
“processamentos de informação”. Ora, como já sugerimos, quem processa informações são
máquinas e, de acordo com LeDoux (1998), é chegado o momento de ressuscitar a
“cognição em seu contexto mental – reunindo cognição e emoção no seio da mente. A

vampiros.

120
mente possui pensamentos e emoções, e o estudo de qualquer um deles sem o outro jamais
será plenamente satisfatório” (p. 36)77.
Mas o que é uma emoção? Damásio (2004) apresenta introdutoriamente um precioso
relato de William James (1890) que vivifica a importância dos “sintomas corporais” nos
processos emocionais:

“É-me muito difícil, se não mesmo impossível, pensar que espécie de emoção de
medo me restaria se não se verificasse a sensação de aceleração do ritmo cardíaco,
de respiração suspensa, de tremura dos lábios e das pernas enfraquecidas, de pele
arrepiada e de aperto no estômago. Poderá alguém imaginar o estado de raiva não
ver o peito em ebulição, o rosto congestionado, as narinas dilatadas, os dentes
cerrados e o impulso para a ação vigorosa, mas, ao contrário, músculos flácidos,
repiração calma e um rosto plácido?” (JAMES, 1890, apud DAMÁSIO, 2004, p.
158).

O problema da teoria de James não se dá tanto pelo fato dele encerrar as emoções em
signos e sintomas corporais, mas por não ter relevado devidamente o papel da mente e da
cognição neste processo. Há, segundo Damásio (2004), duas categorias de emoções:

a) emoções primárias: emoções pré-organizadas que dependem da rede de circuitos


do sistema límbico e da amígdala.
b) emoções secundárias: o estímulo pode atuar na amígdala mas agora também é
analisado pelo pensamento, pelos registros mnêmicos formados a partir do hipocampo
e pelos córtices frontais.

Então, de acordo com Damásio (2004):

“a emoção é a combinação de um processo avaliatório mental, simples ou


complexo, com respostas dispositivas a esse processo, em sua maioria dirigida ao
corpo propriamente dito, resultando num estado emocional do corpo, mas também
dirigidas ao próprio cérebro (núcleos neurotransmissores no tronco cerebral),
resultando em alterações mentais adiocionais”. (p. 168).

77
- Também de acordo com Changeux (1991) “não é possível conceber o cérebro humano como mero
executante de um programa qualquer introduzido pelos órgãos dos sentidos” (p. 134).

121
Damásio também propõe nítidas demarcações conceituais entre emoções e
sentimentos. Como o autor sugere, todas as emoções podem gerar sentimentos, mas nem
todos os sentimentos provêm das emoções. Os sentimentos seriam então uma relação
subjetiva estabelecida pela percepção do mundo ou de “paisagens interiores”, da percepção
do estado corporal desencadeado por esta relação e da percepção das modificações do estilo
e eficiência do pensamento que ocorrem durante todo esse processo. Em termos mais
precisos, “a essência do sentir de uma emoção é a experiência das alterações corporais em
justaposição com as imagens mentais que iniciaram o ciclo” (DAMÁSIO, 2004, p. 175).
Segundo o autor, os sentimentos ainda apresentariam três variedades: sentimentos de
emoções universais básicas, sentimento de emoções universais sutis e sentimentos de
fundo.
Não há dúvidas de que vivemos em um contexto social e que incorporamos um
enorme sistema de símbolos e signos lingüísticos que visam facilitar os diversos tipos e
graus de regras e interações sociais. Desde a mais tenra idade, o ser humano encontra-se
em um contínuo processo de aprendizagem e incorporação desta vasta rede linguística que
o torna um ser cultural. Neste sentido, se somos em parte devedores dos códigos e valores
culturais, os incorporamos através de complexos mecanismos de aprendizagem. Nosso
aparato cognitivo-afetivo é instruído, por exemplo, a temer animais selvagens,
principalmente carnívoros ou peçonhentos, que não estejam separados de nós por algum
tipo de anteparo suficientemente forte que nos proteja. Logicamente, também devemos
fazer mensurações, advindas de aprendizagens, do que seria um anteparo suficientemente
forte para conter um lobo e não conter um leão. Esta pequena mostra nos informa, de
acordo com LeDoux (1998), de que “a atividade fisiológica deve ter uma representação
cognitiva para que possa influenciar uma experiência emocional” (p. 44). No entanto,
devemos ressaltar que um determinado processo de avaliação cognitiva não tem que ser
necessariamente consciente. Bem sabemos que possuímos um padrão de intenções e
desejos e, todavia, não sabemos, em muitas situações, explicar precisamente por que isto se
passa de uma forma e não de outra. Esta questão nos alerta para o fato de que nem sempre
deve se possuir cognição para se desencadear um quadro emocional. Um exemplo bastante
curioso, citado por LeDoux (1998, p. 56), refere-se a experiências que demonstram que
emoções não conscientes direcionam nossas coordenações cognitivas. Era proposto a um

122
grupo-controle que escolhesse livremente algumas palavras, fornecidas de antemão em
diversos cartões. Após esta escolha, sugeriu-se que escrevessem algumas sentenças onde
fossem utilizadas as palavras escolhidas. Observou-se que as pessoas que escolheram
escrever sobre a velhice, por exemplo, assumiam um comportamento psico-motor
“condizente” a esta etapa da vida logo após o experimento, caminhando mais lentamente,
ou assumindo uma atitude mais “encurvada” e reflexiva. O acesso ao estímulo era
consciente, assim como se acreditava ser a organização de idéias referente ao tema.
Todavia, algo implícito, de cunho emocional e que dirigia a intencionalidade destas
pessoas, revelou-se surpreendentemente nas atitudes posteriores, as quais foram observadas
pelos pesquisadores. Ora, este procedimento diante da organização de idéias, de tarefas ou
intenções inconscientes que assumimos na vida, as quais são geralmente associadas a
escolhas racionais, sempre foi o tema de investigação da psicanálise ou de escolas que
também passaram a atribuir significados para as condutas, segundo a manifestação de uma
instância inconsciente. Este exemplo demonstra, experimentalmente, que os conteúdos de
nossa história, de nossos valores, crenças e desejos, dão o “tom” de nossa organização
mental, de nossa racionalidade.
De acordo com Damásio (2004), o termo “raciocínio” vem acompanhado de algumas
implicações: a) da situação que requer uma decisão; b) das diferentes opções de ação
(respostas) e; c) das conseqüências de cada uma dessas opções (resultados), imediatamente
ou no futuro. Todavia, pouco se diz sobre as emoções e sentimentos que estão envolvidos
neste processo racional. No exemplo anterior, buscamos apresentar como sentimentos
inconscientes matizam as decisões ditas racionais. Neste sentido, será que o esforço
racional-intelectual de produzir uma tese, por exemplo, está isento de intenções mais
“obscuras”, subjetivas ou, em termos mais diretos, de serem declaradamente matizadas por
nossas construções afetivas? Ainda que consideremos relevantemente coerente, não
gostaríamos de recorrer, neste momento, a explicações em moldes psicanalíticos sobre a
importância de uma instância psíquica inconsciente. Para aqueles que possuem parcos
conhecimentos deste campo, ainda assim, perceberiam prontamente que não se pode
descartar, de modo algum, a influência do “passado” cognitivo-afetivo em qualquer decisão
em nossas vidas. Mas o que dizer sobre isso neurocientificamente? De início, devemos
argumentar que, de acordo com as pesquisas de Damásio, lesões no córtex ventro-medial

123
inibem e, em casos extremos, neutralizam o julgamento afetivo, o qual seria eticamente
valorativo em decisões cotidianas78. A dissociação entre razão e emoção pode causar os
mais sérios desastres na vida de qualquer ser humano. Não se colocar no lugar do outro,
não ter a capacidade de “sentir” a infelicidade e a dor alheia, assim como a própria dor, são
as principais características comportamentais daqueles que apresentam condutas
sociopáticas79. As razões que incidem sobre a vida pessoal e social são as que mais exigem
uma “inteligência emocional”. Decidir sobre nossa vida cotidiana, nossa relação familiar,
nossos amigos, colegas de trabalho, funcionários, etc, envolve capacidades as quais podem
ser balizadas mecanicamente por decisões convencionalmente éticas e legais. Mas podemos
argumentar que o fato de sermos “marionetes” da ética e da legalidade instituída não nos
faz seres “eticamente emocionais”. Decidir segundo os imperativos categóricos de uma
ética de moldes kantianos, de acordo sua Crítica da Razão Prática, não nos faz seres
necessariamente “vivos”. Não será este um mega-problema cotidiano? Agir de acordo com
uma perversa legalidade que neutraliza uma verdadeira “racionalidade” afetiva? Bem, estes
são temas ecológicos que se fazem mais presentes a cada dia que passa. Com ajuda de
Damásio (1996), apresentaremos o quadro em outros termos. Quando estamos lidando com
situações e decisões cotidianas, experimentamos, em muitas delas, sensações viscerais que
produzem determinados estados somáticos. Estes estados corporais oferecem singularidade
às decisões, as quais estão em consonância com a forma que incorporamos o mundo.
Devemos alertar o leitor de que há toda uma complexidade de fatores que devem ser
relevados para que se obtenha uma maior compreensão filosófica destas questões que
incidem sobre o “bem” e o “mal”. Vejamos então uma citação de Damásio (1996) que
esclarece sua hipótese sobre os marcadores-somáticos:

“os marcadores-somáticos são um caso de uso especial de sentimentos gerados a


partir de emoções secundárias. Essas emoções e sentimentos foram ligados, pela
aprendizagem, a resultados futuros previstos de determinados cenários. Quando um
marcador-somático negativo é justaposto a um determinado resultado futuro, a

78
- Devemos acrescentar que outros autores corroboram com a tese de Damásio. Segundo o famoso
neurocientista russo A.R. Luria (1978), doentes com lesões no lobo frontal apresentam uma razoável redução
da faculdade crítica, sendo incapazes de avaliar corretamente seu comportamento e julgar as próprias ações.
79
- Damásio conjectura que (1996), “em vez de resultar lesões macroscópicas súbitas que têm lugar na vida
adulta, a deterioração dos sociopatas evolutivos deve provir de redes de circuitos anômalas e de sinais
químicos também anômalos que se registram no início do desenvolvimento individual” (p. 210).

124
combinação funciona como uma campainha de alarme. Quando, ao contrário, é
justaposto um marcador-somático positivo, o resultado é o incentivo” (p. 206).

Podemos dizer que os marcadores-somáticos nos “encarnam” na vida e fazem nossas


decisões possuírem “cores”80. Este fator demonstra que “a simbiose entre os chamados
processo cognitivos e os processos geralmente designados por ‘emocionais’ torna-se
evidente” (LeDOUX, 1998, p. 245). Em acordo com Piaget, Damásio argumenta que
nascemos com uma circuitaria neural necessária à criação de estados somáticos em resposta
a determinadas categorias de estímulos. É neste sentido que este aparato neural, o qual nos
capacita a uma organização emocional primária, deve estar em consonância com a evolução
desta relação, inicialmente sensório-motora, com o ambiente. Desta relação se estabelecerá
nossas possibilidades emocionais secundárias. Como veremos em outro momento, um
organismo que goza de uma razoável saúde psicossomática tem ao seu dispor uma
“intuição decisória” que lhe permite economizar articulações racionalmente “distantes”.
Um dos avanços mais admiráveis para que a neurociência contemporânea chegasse no
ponto em que se encontra foi a descoberta de que o sistema límbico representa um
importante centro do cérebro visceral-emocional (MACLEAN, 1990). Todavia, a
neurociência, como qualquer outro campo que se nutre de pesquisas aplicadas, vem
demonstrando, progressivamente, consistentes avanços não só na compreensão das funções
cerebrais envolvidas na produção de emoções, mas também na compreensão de como
lesões em determinadas áreas, como no córtex pré-frontal, afetam a relação afeto-cognição
(DAMÁSIO, 1996). De acordo com LeDoux (1998):

“as estruturas do sistema límbico abrangem uma evolução neurológica


filogeneticamente primitiva que funciona de maneira integrada, na verdade como
um sistema, promovendo a sobrevivência do indivíduo e da espécie. Esse sistema
desenvolveu-se como um mediador das funções viscerais e comportamentos
emocionais, inclusive alimentação, defesa, luta e reprodução. E é fundamental para
a vida emocional e visceral do indivíduo” (p. 88).

O cérebro ainda pode ser considerado enquanto um produto decorrente de uma deriva
evolutiva extremamente longa, sendo que pequenas mudanças foram “acumuladas-

80
- Para um exemplo poético sobre as “cores” da vida, o leitor poderá assistir o filme “A vida em preto e
branco”. Em momento oportuno, aprofundaremos devidamente em alguns pressupostos que podem levar ao
adoecimento destes marcadores-somáticos.

125
transformadas”. Todavia, considerar na atualidade o sistema límbico enquanto “sede” das
emoções pode ser visto enquanto uma teoria razoavelmente obscura, caso nos refiramos a
qual seria sua localização precisa e quais regiões do cérebro estariam envolvidas. De acordo
com LeDoux (1998) e Changeux (1991), não pode haver um único sistema emocional no
cérebro, mas vários. Também se argumenta que o ser humano, em seu processo evolutivo,
acabou por desenvolver algumas emoções básicas, ou seja, inatas, como: medo, raiva,
angústia, alegria, tristeza, surpresa, interesse, aversão. Estas expressões seriam controladas
por sistemas cerebrais (TOMKINS, 1962). Este posicionamento foi compartilhado por
grande parte dos pesquisadores que defendem a existência de emoções primárias inatas,
mas a relação destas emoções poderia variar consideravelmente segundo as linhas de
pesquisa81. A partir da combinação de emoções básicas, poderia se observar “arranjos
secundários” de padrões e tipos emocionais que eram não-básicos, os quais seriam
estritamente humanos. Em contexto paralelo, este posicionamento em muito se assemelha à
posição de Piaget ao ressaltar que os reflexos herdados vão assumindo novas “roupagens” a
partir da repetição contínua e, por fim, de seu prolongamento não herdado ao dar forma a
esquemas de ação. O comentário a seguir se aproxima ainda mais do construtivismo
piagetiano ao considerar que as emoções básicas sofrem transformações adaptativas e
reorganizadoras em seu processo evolutivo:

“A estrutura básica do equipamento comportamental do homem assemelha-se à de


espécies infra-humanas, embora tenha sofrido modificações substanciais ao longo
da evolução, as quais permitiram que os mesmos fins fossem alcançados graças a
uma variedade muito maior de meios (...) A forma inicial não é substituída, mas
sim transformada, elaborada e ampliada, conquanto ainda determinado pelo padrão
geral (...) Considera-se que o comportamento instintivo nos seres humanos (...)
provém de determinados protótipos comuns a outras espécies.” (LeDOUX, 1998, p.
111)

Mesmo neste contexto, os construtivistas sociais não aceitam a tese de emoções


básicas, alegando que todo o repertório afetivo vai ser adquirido na vivência social com
suas peculiaridades culturais. Todavia, LeDoux (1998), sugere que:

“os construtivistas sociais podem estar interessados nas diferenças culturais


aprendidas dentro das expressões emocionais, enquanto que os teóricos das

81
- LeDoux (1998) acrescenta que, por fim, grande parte das discordâncias restringe-se às expressões
“limítrofes” como as emoções de interesse, desejo e surpresa.

126
emoções básicas têm-se concentrado nas expressões universais e não-apreendidas,
presentes nos movimentos de músculos faciais durante a ocorrência de emoções
básicas (inatas) em todas as culturas” (p. 106).

Damásio contribui com o tema das emoções primárias (inatas) ao propor que não
seria necessariamente obrigatório, por exemplo, identificar um animal ou uma situação para
ser desencadeada uma reação de medo. O medo pode estar vinculado não a uma
especificidade mas a uma categoria generalizável82. Logo, não tememos ursos
especificamente, mas tememos todo e qualquer ser vivo de grande porte, que exibem
garras, presas, que vive na natureza ou enjaulado, que ruge e come carne crua. Bem, estas
reações seriam inatas e poderiam ser desencadeadas por situações não identificáveis como,
por exemplo, o vulto de um possível grande animal. Enfim, como acrescenta Damásio
(1996), “sentir os estados emocionais, o que equivale a afirmar que se tem consciência das
emoções, oferece-nos a flexibilidade de respostas com base na história específica de nossas
interações com o meio ambiente” (p. 162).
As pesquisas de LeDoux (1998, p. 160) alegam que a amígdala e suas conexões
seriam responsáveis, em grande medida, pelas reações básicas de medo e, portanto, por
reações emocionalmente inconscientes. Estas reações automáticas são ativadas antes
mesmo que outras regiões do córtex comecem a processar cognitivamente a informação.
Seria interessante ressaltar, por exemplo, que mesmo protegidos por um vidro, saltamos
reflexamente para trás quando uma cobra dá um bote em nossa direção. Mas devemos
aprofundar um pouco mais na compreensão destas reações de defesa e auto-preservação
apresentando o seguinte exemplo. Um hipotético andarilho está a excursionar por uma
região agreste. De repente, é pego de surpresa com a visão de uma cobra, aparentemente
peçonhenta, já que a mesma se enrolou imediatamente e assumiu uma posição de ataque.
Mesmo não tendo nenhuma experiência concreta com tal animal, este andarilho já havia
aprendido pelos livros da escola e pelos meios de comunicação que determinadas cobras
são perigosas. Sua mente já estava organizada, secundariamente, com uma ampla carga de
imagens, representações e informações das mais diversas ordens taxonômicas do que
significava aquele animal que estava à sua frente. Ao se deparar com este animal, in totum,
começou a apresentar uma série de reações corporais desencadeadas pelo sistema nervoso

127
autônomo e, em termos gerais, por alguns setores de seu cérebro. O andarilho, de forma
reflexa, se afastou abruptamente. Para nós, que o estamos “observando”, notamos que ele
apresentava o rosto pálido, marejando uma fina camada de suor na testa e nas mãos.
Também apresentava um tremor generalizado e seu coração parecia estar saindo pela boca.
Ora, ele estava com medo.
Ao organizar a informação de forma mais elaborada, ou seja, identificando
cognitivamente o animal enquanto fonte de perigo, o estímulo deve seguir necessariamente
uma “via longa”, o qual passaria pelo tálamo sensorial, seguindo para o córtex sensorial e
daí chegando à amigdala. Bem, todo este processo também poderia ser desencadeado se
este hipotético andarilho tivesse se deparado com um galho “em forma de cobra”, ainda que
ele, de imediato, não soubesse que era um galho. Esta ação denota que nem sempre
reagimos aos estímulos a partir de cognições prévias. Este último exemplo nos fornece
evidências de que o estímulo também seguiria uma “via curta” que iria do tálamo sensorial
para a amígdala, enviando um sinal primário de alarme, “sem” cognição. De uma forma ou
de outra, os dois circuitos são ativados, mas parece estar evidente que a “via curta” leva
nítida vantagem em nosso sistema de auto-preservação. Isto quer dizer que “pulamos”
primeiro e depois identificamos cognitivamente o estímulo.
A partir de uma situação traumática, podemos compreender como os mecanismos de
defesas inatos e os diferentes tipos de memória podem se manifestar. Se o hipotético
andarilho tivesse sido picado pela cobra, provavelmente desenvolveria um reflexo
condicionado de medo sempre que avistasse alguma cobra. Mas também o ambiente onde
aconteceu o ataque da cobra poderia exercer influência nestas reações codicionadas de
medo. Neste sentido, o ambiente atuaria enquanto um condicionamento contextual. A
estrutura cerebral responsável por esta avaliação-lembrança contextual é o hipocampo.
Lesões no hipocampo podem inibir as reações de medo provocadas pelas imagens
contextuais ainda que as reações “primárias” de medo, desencadeadas pela amígdala ao nos
depararmos com cobras, galhos em forma de cobras, etc, continuem intactas.
LeDoux considera que uma memória traumática, além de ter uma manifestação
explícita, ou seja, a consciência assertiva e proposional de uma determinada lembrança,

82
- Um pintinho não sabe o que é um gavião para temê-lo. Mas ao avistar a sombra da silhueta desta ave,
geralmente com uma envergadura generosa, assume atitudes de defesa inatas.

128
pode possuir uma implicação implícita. Esta última, considerada por ele como memória
emocional, e não uma memória de uma situação emocional, vem acompanhada por uma
série de manifestações psicossomáticas, as quais são similares àquelas que foram
experimentadas pelo hipotético andarilho no traumático encontro com a cobra. Um outro
ponto extremamente curioso é que a descarga adrenérgica provocada pela estimulação do
sistema nervoso autônomo e da glândula supra-renal provoca numa espécie de imprinting
emocional, ou seja, é muito mais fácil lembrar dos fatos e imagens vividos em situações
onde ocorreram esta excessiva estimulação psicossomática83. Temos então:

Figura 6.5: sistemas cerebrais da memória emocional e da memória da emoção

SITUAÇÃO EMOCIONAL

SISTEMA DA AMÍGDALA SISTEMA DO HIPOCAMPO

(memória emocional implícita) (memória explícita de uma situação


emocional)

Estes sistemas são ativados simultaneamente e os dos sistemas parecem fazer parte de uma única função da
memória unificada. Só poderemos entender de que maneira os sistemas de memória funcionam em paralelo,
produzindo funções de memória independentes, se estabelecermos as diferenças entre esses sistemas,
especialmente através de estudos com animais de laboratório, mas também com pesquisas importantes em
raros casos em seres humano (LEDOUX, 1998, p. 223).

83
- Seguramente, devemos acrescentar que existe uma série de fatores que podem influenciar negativamente a
memória explícita. De acordo com LeDoux, os tópicos a seguir devem ser averiguados conjuntamente: a) A
memória é seletiva – o que implica em diversas situações focais de um mesmo evento; b) Memórias podem
ser reconstruções imperfeitas das experiências – Fatos irreais ou ilusórios podem ser acrescidos aos relatos de
determinada situação em diferentes épocas; c) Traumas emocionais levam a um bloqueio da memória – Pode
estar relacionado com a censura-repressão, caso adotemos um ponto de vista psicanalítico; d) Memórias
melancólicas – Podem ser melhor ativadas ao serem vivenciadas em situações semelhantes ao evento a ser
rememorado.

129
Então, de acordo com LeDoux (1998) “novas memórias explícitas, formadas com
base em lembranças do passado, também podem adquirir uma tonalidade emocional” (p.
186).
O exemplo acima citado visa retratar que não somos meras máquinas que aprendem a
fazer somente operações cognitivas “desencarnadas”, sejam elas sensório-motoras,
simbólicas, concretas ou formais, decodificando objetos, mensurando-os, interpretando-os,
etc, sem “senti-los” ao mesmo tempo. Devemos dispensar qualquer atribuição de moldes
cartesianos, onde um suposto “homúnculo” fosse responsável pela produção de nossa
subjetividade. Em vez disso, “haveriam estados sucessivos do organismo, cada um
neuralmente representado de novo, em múltiplos mapa concertados, momento a momento,
e cada um ancorando o eu que existe a cada momento” (DAMÁSIO, 1996, p. 226). As
reações emocionais não só seriam intrínsecas ao processo de construção e introjeção das
experiências do mundo, no caso a cobra, como seriam de máxima utilidade para nossa
preservação84. Como acrescenta Damásio (1996) “a redução das emoções pode constituir
uma fonte igualmente importante de comportamento irracional” (p. 78). Para tornar a
exposição um pouco mais complexa sobre decisões “racionais” ou “emocionais” vejamos o
seguinte: É numericamente inegável que morrem muito mais pessoas em acidentes de carro
do que de avião. Todavia, o número de pessoas que temem fazer uma viagem de avião é
muito superior àqueles que temem fazer a mesma viagem de carro. Um outro exemplo
muito curioso é que os tubarões despertam mais medo e aversão do que abelhas, sendo que
as últimas matam muito mais do que os pobres tubarões. Mas porque assumimos posições
que contradizem às realidades numéricas? Ou, em outros termos, porque somos tão
irracionais diante de dados quantitativamente racionais? Segundo Damásio (1996, p. 224),
este raciocínio defeituoso é decorrente de uma deficiência chamada “erro de

84
Para tornar a exposição um pouco mais complexa sobre decisões “racionais” ou “emocionais” vejamos o
seguinte: É numericamente inegável que morrem muito mais pessoas em acidentes de carro do que de avião.
Todavia, o número de pessoas que temem fazer uma viagem de avião é muito superior àqueles que temem
fazer a mesma viagem de carro. Um outro exemplo muito curioso é que os tubarões despertam mais medo e
aversão do que abelhas, sendo que as últimas matam muito mais do que os pobres tubarões. Mas porque
assumimos posições que contradizem às realidades numéricas? Ou, em outros termos, porque somos tão
irracionais diante de dados quantitativamente racionais? Segundo Damásio (1996, p. 224), este raciocínio
defeituoso é decorrente de uma deficiência chamada “erro de disponibilidade”. Nestes e em muitos outros
casos, somos dominadas pela imagem do evento. Parece que a imagem de um tubarão dilacerando um ser
humano o aterroriza muito mais do as “pequenas” picadas de abelha. Isto denota que a escolha é orientada
pela “emoção” de dilaceramento, e que esta supera um dado quantitativamente racional e evidente, no caso, o
maior perigo que as abelhas vêm oferecendo para a vida humana.

130
disponibilidade”. Nestes e em muitos outros casos, somos dominadas pela imagem do
evento. Parece que a imagem de um tubarão dilacerando um ser humano o aterroriza muito
mais do as “pequenas” picadas de abelha. Isto denota que a escolha é orientada pela
“emoção” de dilaceramento, e que esta supera um dado quantitativamente racional e
evidente, no caso, o maior perigo que as abelhas vêm oferecendo para a vida humana.
Não temos a intenção de aprofundar, de fato, nos estudos da neurociência. Mesmos
para aqueles que possuem um modesto conhecimento desta área, logo se evidencia o
generoso volume de informações, advindas de pesquisas experimentais e aplicadas, que nos
deixam atônitos diante do amplo leque de elementos bioquímicos, neuro-anatômicos e do
funcionamento dinâmico do sistema nervoso que devem ser compreendidos para se explicar
“modestas” questões do funcionamento cerebral-mental. Também devem ser ressaltadas as
discordâncias quanto às localizações das regiões cerebrais que estão envolvidas nas
diversas expressões cognitivas-afetivas, assim como na compreensão dinâmica do
funcionamento destas regiões. Todavia, um dado pode ser apresentado com segurança,
indiferente sejam as particularidades técnicas ou focais de cada pesquisador: o
desenvolvimento cognitivo deve ser compreendido, definitivamente, atrelado ao
desenvolvimento emocional.
Segundo LeDoux (1998), os sistemas emocionais surgiram “como uma maneira de
combinar reações físicas e as exigências do meio ambiente, não havendo outra maneira de
um sentimento pleno existir sem um corpo vinculado ao cérebro que tenta esboçar o
sentimento” (p. 269). Neste sentido, apresentaremos a seguir algumas reflexões que nos
ajudarão a compreender a fase sensório-motora, não somente em seus aspectos cognitivos-
racionais, mas também como as emoções se fazem intrinsecamente presentes no desenrolar
deste processo.

6.1.2.1 – Emoção e cognição – revisitando Piaget e a fase sensório-


motora com auxílio da neurociência.

131
No estágio sensório-motor, a organização biológica demarca uma reciprocidade com
as fases posteriores, ampliando a noção de adaptação. Seria de acordo com esta incessante
recursividade de ações, as quais são assimiladas, acomodadas e, portanto, adaptadas e
organizadas, que o bebê vai tecendo e ampliando gradativamente sua forma de “absorver” o
mundo. Como bem sabemos, o mundo é constituído das mais diversas classes e categorias
de seres vivos e de objetos, muitos dos quais estão ao nosso alcance. De fato, estão ao
nosso “dispor” milhares de utensílios eletrodomésticos85 e, em âmbitos gerais, toda uma
ampla variedade de objetos de consumo que vão desde produtos alimentícios até os
manufaturados das mais diversas ordens, cores, gostos, odores, sons, texturas, tamanhos e,
logicamente, preços. Também devemos ressaltar a vertiginosa evolução tecnológica dos
meios de comunicação que, de forma direta ou indireta, nos “informam” como proceder
com estes produtos. Seguramente, podemos ficar atônitos com a estrondosa amplitude de
elementos que constituem o mundo ao nosso redor, se compararmos com as comunidades
indígenas, rurais ou até mesmo em nosso próprio processo cultural, se voltarmos 100 anos
atrás86. Nos últimos anos, estes produtos tecnológicos parecem se multiplicar em
progressão geométrica, oferecendo uma ampla variedade de produtos que se avolumam
incessantemente e se insinuam de alguma forma, seja “concreta” ou virtualmente, para todo
cidadão o que vive “civilizadamente”. Não estamos certos se seria pela variedade de
objetos que estão ao nosso “dispor” que devemos iniciar nossa reflexão para se
compreender o que está envolvido no complexo processo de desenvolvimento sensório-
motor. Será que é a natureza tecnológica dos objetos que determina a evolução sensório-
motora? Não devemos nos esquecer que os jogos computadorizados revolucionaram a
organização mental das crianças que podem ter acesso a este produto. Tampouco podemos
nos esquecer de que a vida no campo pode propiciar uma ampla variedade de estímulos que
acalentam, de forma muito mais orgânica, nosso aparato perceptivo e sensório-motor.
É inquestionável que o desenvolvimento sensório-motor também variará segundo
estes dados. Só neste campo, poderiam ser feitas inúmeras pesquisas para se compreender

85
- Devemos fazer referência à severa desigualdade sócio-econômica vivida pelos sistemas capitalistas, onde
somente poucos podem ter acesso a uma infinidade de produtos e prazeres. A grande maioria deve se
contentar em ser um mero “vouyer” deste espetáculo tecnológico, caso não incorram na marginalidade para
obterem, pela contravenção, os mesmos produtos que a minoria abastada pode usufruir.

132
um pouco mais como os produtos de uma civilização globalizada e severamente capitalista
influencia o desenvolvimento cognitivo-afetivo. Ora, como bem sabemos, este é o tema
preferido dos construtivistas e construcionistas sociais e não devemos desmerecê-lo pois,
logicamente, este é um ponto de máxima importância. Todavia, neste momento, não iremos
nos focar nestes cruciais fatores, frutos da “evolução” civilizatória, mas sim como podemos
compreender, ontogeneticamente, a relação da criança com o mundo. Devemos argumentar
que não vemos sentido em refazer sistematicamente toda descrição do estágio sensório-
motor para compreender como é inserido os componentes emocionais deste processo. No
entanto, nos focaremos nas invariantes funcionais da inteligência e da organização
biológica.
Como dizia Piaget (1978) “o problema entre a razão e a organização biológica surge,
necessariamente, no início de um estudo sobre o nascimento da inteligência” (p. 13). Logo,
devemos considerar uma continuidade entre todos os desdobramentos posteriores da
inteligência com a fase sensório-motora. Piaget também buscou resolver, logo de início,
questões concernentes à hereditariedade, colocando nos devidos lugares o que se refere a
uma “hereditariedade especial” - inata, de ordem estrutural, da espécie humana - a qual se
organiza segundo dados internos e, por outro lado, um segundo tipo de hereditariedade, a
qual se refere a uma atividade dedutiva e organizadora. Como acrescentou Piaget (1978),
“esta (última) será uma hereditariedade do próprio funcionamento e não da transmissão
desta ou daquela estrutura” (p. 14). Será nesta invariância, expressa pela hereditariedade
funcional, que serão orientados os sucessivos desdobramentos da razão. Neste contexto,
Piaget então se aproxima, como já sugerimos, do a priori kantiano não enquanto estruturas
“acabadas” e fornecidas de antemão, mas somente no final da evolução da inteligência. A
inteligência se desenvolve através de um contínuo processo adaptativo com meio ambiente,
e para descrever “o mecanismo funcional do pensamento em verdadeiros termos
biológicos, bastará, pois, destacar as invariantes comuns a todas as estruturações de que a
vida é capaz” (PIAGET, 1978, p. 15). Estas invariantes são:

86
- Seria simplório de nossa parte dizer que um aborígene, por exemplo, não possui um amplo leque “natural”
de estímulos sensório-motores. Todavia, não abordaremos neste segmento quais seriam as expressões
qualitativas deste processo de desenvolvimento.

133
ADAPTAÇÃO – Haverá adaptação na medida em que os organismos se transformam
em relação ao meio, sendo que o meio contribui (ou não) para uma conservação do
organismo. Quando o bebê está apto a realizar determinados movimentos corporais
que, por sua vez, estão em sintonia com o ambiente, obtêm-se uma ação sensório-
motora. Dá-se o nome de assimilação à relação que une os movimentos do bebê com
o ambiente e produz uma ação específica. Quando se estabelece algum tipo de
variação destes movimentos corporais devido a pressões do meio e o organismo
consegue se adaptar a estas pressões, dizemos que houve uma acomodação. Neste
sentido, os movimentos corporais se modificaram ao fecharem em si mesmos. Logo,
“adaptação é um equilíbrio progressivo entre um mecanismo assimilador e uma
acomodação complementar” (PIAGET, 1978, p. 18). Devemos considerar que só
haverá verdadeiramente uma adaptação quando se estabelecer um equilíbrio entre
assimilação e acomodação.
ORGANIZAÇÃO – Como já vimos, a organização é inseparável da adaptação, sendo
que:

“o primeiro (a organização) se refere ao aspecto interno do ciclo do qual a


adaptação constitui o aspecto exterior (...) cada esquema está assim coordenado
como todos os demais e constitui, ele próprio, uma totalidade de partes
diferenciadas. Todo e qualquer ato de inteligência supõe um sistema de implicações
mútuas e de significações solidárias (...) A concordância do pensamento com as
coisas, a concordância do pensamento consigo mesmo exprimem esta dupla
invariante funcional da adaptação e da organização (...) É adaptando-se às coisas
que o pensamento se organiza e é organizando-se que estrutura as coisas”
(PIAGET, 1978, p. 18).

Todas as ações sensório-motoras serão transpassadas por estes dados epistemológicos.


A título de esquematização e complementação, apresentaremos o seguinte quadro (Id.,
ibid., p. 20):

Quadro 6.1: esquema representando as relações entre: funções biológica, funções intelectuais e
categorias (PIAGET, 1978)

FUNÇÕES BIOLÓGICAS FUNÇÕES INTELECTUAIS CATEGORIAS

134
ORGANIZAÇÃO FUNÇÃO REGULADORA A. TOTALIDADE X RELAÇÃO
(RECIPROCIDADE)
B. IDEAL (FIM) X VALOR (MEIO)

ADAPTAÇÃO ASSIMILAÇÃO FUNÇÃO IMPLICATIVA A. QUALIDADE X CLASSE


B. RELAÇÃO QUANTITA-
TIVA X NÚMERO

ACOMODAÇÃO FUNÇÃO EXPLICATIVA A. OBJETO X ESPAÇO


B. CAUSALIDADE X
TEMPO

A experiência consciente sempre foi um dos temas que mais intrigaram as ciências
cognitivas. Não é por menos que ainda continua a ser um ponto conceitualmente obscuro
para grande parte desses pesquisadores. Todavia, alguns esforços vêm sendo despendidos
no intuito de solucionar esta questão. A percepção consciente do mundo que nos envolve
requer a compreensão do que se encontra diante de nós. Perceber um gato, por exemplo, é
tomar consciência de que existe algo de concreto aí, na nossa frente. Mas como podemos
compreender conceitualmente este processo? LeDoux e colaboradores vêm apostando no
conceito de memória de trabalho, a qual pode ser considerada enquanto um mecanismo de
armazenagem temporária que possibilita a manutenção, na mente, de diversos trechos de
informação “ao mesmo tempo, que podem ser comparados, contrastados e também inter-
relacionados (...) um mecanismo de processamento ativo que é usado no pensamento e
raciocínio” (LEDOUX, 1998, p. 246). Em linguagem dos teóricos da “Inteligência
Artificial”, a memória de trabalho pode ser compreendida, analogamente, enquanto um
mecanismo de armazenagem temporária denominado buffers. Este sistema funcionaria de
forma que, por exemplo, o que o leitor está lendo no momento possa ser associado com os
pontos anteriores. Além do mais, a memória de trabalho possibilita que estas informações,
contidas nestas linhas, possam ser conectadas, desconsideradas ou acrescidas a outros tipos
de informações coordenadas pelo leitor. Mas este tipo de memória, a qual vem até mesmo
angariando o status de consciência, requer outras categorias de informação que não podem
ser encontradas “aqui e agora”. Neste sentido, para que um gato seja um gato, não basta que
ele esteja, simplesmente, diante de nossos olhos ou que possamos ouvir o seu miado. Ora, o
conceito “gato” é construído assim como todos os conceitos que se encontram em nossa

135
mente. Em outros termos, depende de nossa memória de longo prazo ou, se quisermos ser
mais piagetianos, depende de uma ampla e complexa malha de assimilações, acomodações,
adaptações e por fim, da organização interna, para que olhemos para este animal e
possamos conceituá-lo de alguma forma. Logicamente, não devemos nos esquecer que este
intrincado processo construtivista possui uma história afetiva. Assim como a cobra, que o
andarilho temia, este gato que se encontra hipoteticamente diante de nós possuirá, por sua
vez, atributos valorativos, sejam bons ou ruins, que serão condizentes com nossas
construções afetivas ou “recheios cognitivo-emocionais”, com os quais iremos atribuir a
este animal ou qualquer outro objeto. Logo, podemos perceber que uma construção
cognitiva está associada, em grande parte, a algum tipo de construção emocional. Ao
“olharmos” um gato e conceituá-lo de alguma forma, por mais simples que seja, também
implica em possuirmos algum tipo de intencionalidade perante este animal.
Indiferente de quais sejam os desdobramentos e as particularides que a memória de
trabalho assuma nas diferentes áreas das ciências cognitivas, pode-se considerá-la,
basicamente, como uma plataforma na qual se firma a experiência consciente e onde as
emoções serão articuladas. Ora, e o que tudo isto tem haver com a teoria do
desenvolvimento proposta por Piaget? Observaremos que a compreensão destes conceitos
oferece, primeiramente, consistência neurocientífica aos dados epistemológicos
piagetianos.

6.1.2.2 – Adaptação, organização, emoção e sentimento

Pedro é um bebê saudável de 10 meses. Pelo termo “saudável” queremos dizer que
Pedro não desenvolveu, até o momento, nenhuma enfermidade genética ou nasceu com
alguma seqüela congênita. De acordo com uma leitura piagetiana, suas ações sensório-
motoras são condizentes à IV sub-fase, onde ele passa a organizar esquemas secundários e
os aplica a situações novas. Ele já adaptou e organizou razoavelmente sua capacidade de
acomodação visual aos movimentos rápidos, de preensão interrompida, de reconstituição de
um todo invisível a partir de uma fração visível e também da possibilidade de supressão dos

136
obstáculos que impedem a percepção. Ao agir sobre os objetos com a mão, Pedro já
aprendeu a utilizar as propriedades das coisas em si, se interessando pelas relações
espaciais que unem os objetos percebidos. Ao dificultar o acesso de Pedro a um
determinado objeto, percebe-se que ele pode remover intencionalmente, dentro de suas
possibilidades físicas, o obstáculo que se interpõe e anula a satisfação de sua ação no meio.
Mesmo assim, devemos notar que Pedro, como grande parte das crianças de sua idade,
ainda não tem consciência plena de suas ações, pois não são reguladas por normas
interiores.
Quanto à construção do “real” e da noção de objetos permanentes, Pedro não procura
apenas o objeto desaparecido ou ao seu alcance. Procura-o fora do campo de percepção, por
detrás de anteparos e, neste sentido, ele começa a estudar o deslocamento dos corpos.
Todavia, apenas tais descobertas ainda não marcam o advento definitivo da noção de
objeto, pois Pedro confere uma espécie de “posição absoluta” a estes, ou seja, ele não
consegue levar em consideração os deslocamentos sucessivos, pois acredita que encontrará
o objeto sempre em um lugar determinado. Pedro também descobriu que pode reverter suas
operações sensório-motoras, ou seja, ele já é capaz, espontaneamente, de esconder um
objeto sob um anteparo e de novo tirá-lo. Esta ação não é de todo objetiva, pois se o objeto
é deslocado, ele ainda o procura no primeiro esconderijo. Pedro também vem percebendo
que seu cavalinho de brinquedo possui uma grandeza constante, ou seja, suas dimensões
táteis são invariáveis. Também descobriu a perspectiva das relações em profundidade ou o
fato de que, deslocando a cabeça (e não o corpo), ocorrem mudanças de forma e de posição
dos objetos.
Como bem sabemos, Pedro ainda não pode articular palavras intelegíveis ou nomear
os objetos pela linguagem. Pedro ainda terá que aguardar alguns meses para tal proeza. Mas
Pedro já constrói algumas noções do que lhe é agradável ou não. Um certo dia, ao brincar
na cozinha, tentou pegar uma panela que estava no chão, a qual continha água fervida. Por
fim, derrubou-a em cima de si. Pedro não sabia que aquele objeto poderia lhe causar tanta
dor e, de fato, lhe causou queimaduras sérias, levando-o a uma obrigatória hospitalização87.

87
- Devemos argumentar sobre a complexidade de fatores que podem envolver uma situação traumática. A
situação central, ou seja, o acidente com a água, pode estar rodeada por agravantes ou atenuantes. Citemos
alguns: Pedro foi socorrido logo após o acidente ou ficou chorando sozinho, por muito tempo, até alguém lhe

137
Sua mãe não estava presente e, sendo assim, ele nem mesmo pode incorporar qualquer tipo
de sinal que significasse “proibição”. Ele teve que aprender a temer tal objeto através de
uma experiência traumaticamente prática.
Todo o conjunto de ações executadas por Pedro continuaram condizentes e adequadas
a sua organização de mundo e, logicamente, de acordo com suas capacidades sensório-
motoras. Todavia, Pedro passou a se comportar de forma muito diferente após o incidente.
Quando entrava na cozinha, principalmente quando sua mãe estava cozinhando, Pedro
geralmente chorava ou demonstrava uma evidente insatisfação. Ao ver panelas no fogo,
soltando vapores, Pedro gritava aos berros. Mas o que aconteceu com Pedro?
De acordo com LeDoux, recebemos informações que são transmitidas ao sistema
visual que, por sua vez, são transmitidas ao tálamo visual e ao córtex visual. Quando, por
exemplo, olhamos para o hipotético gato, uma imagem sensorial é criada e mantida em
nossa memória de trabalho que, por sua vez, se ativa e se integra às memórias de longo
prazo, referentes a todas nossas construções cognitivas e emocionais sobre gatos em geral.
Como apresentamos, nossa reação perante ao gato que se apresenta à nossa consciência,
dependerá, logicamente, deste conjunto histórico contido nestas imagens evocadas, e seria
dispensável acrescentar que cada um de nós irá se “aproximar” deste gato de forma
singular. Como acrescenta Damásio (1996), “é improvável que alguma vez venhamos a
saber, o que é a realidade absoluta” (p. 124), já que as disposições pré-frontais adquiridas e
fundamentais para as emoções secundárias são distintas das emoções inatas. Quando nossa
memória de longo prazo contém representações traumáticas com gatos, nosso sistema de
auto-preservação é informado sobre uma situação de “perigo” real ou potencial caso nos
encontremos diante de tal estímulo88. De simples construções cognitivas para alguns, os
gatos desencadeiam um processo neuro-biológico emocional (memória emocional) para
outros, disparando o sistema da amígdala89.

socorrer? Quem lhe socorreu foi alguém próximo? Ficou muito tempo no hospital? Ficou sozinho no hospital?
Teve carinho e atenção dos pais? Etc, etc, etc.
88
- O leitor pode alegar que manifestações tipicamente fóbicas dispensam a “concretude” do objeto que
estimula o medo, no caso, um gato. Só de se evocar imagens passadas de gatos, pode ser desencadeado um
quadro de pânico. Em um capítulo a ser desenvolvido oportunamente, buscaremos aprofundar, mais
especificamente, a compreensão do funcionamento dos mecanismos que se encontram presentes nas
manifestações emocionais.
89
- Segundo LeDoux (1998) “não é possível ter um sentimento completo de medo (com sentimentos de
apreensão) sem a ativação da amígdala” (p. 270).

138
Voltando ao exemplo de Pedro, podemos dizer que seu infeliz acidente,
evidentemente traumático (mais todos os fatores “secundários” que agravaram ou
atenuaram o trauma), foi arquivado em sua ainda pequena memória de longo prazo.
Quando ele voltou a estar diante de uma panela, até mesmo fria, seu sistema de defesa,
ainda em formação, disparou sinais de alarme. Segundo LeDoux (1998), devemos
considerar que:

“as emoções evoluíram não como sentimentos conscientes, diferenciados


lingüisticamente ou algo do gênero, mas como estados cerebrais e reações
corporais. Estes são os aspectos fundamentais de uma emoção, e os sentimentos
conscientes são o glacê que deu o toque especial ao bolo emocional” (p. 275).

Ora, se tivermos um pouco mais de atenção à “simples” vida de Pedro, observaremos


que todas as suas ações sensório-motoras, em seus ininterruptos processos de acomodação a
novas experiências vão adquirindo, conjuntamente, uma tonalidade matizada pela
construção de sua vida emocional. Neste sentido, o mundo se faz presente na qualidade do
cuidado afetivo que recebe, na qualidade “material” dos objetos90 e dos reforços que seus
genitores lhe oferecem diante destes objetos e de suas ações em geral. Não necessitamos
lançar mão de fatos extremos, como o citado acima, para se compreender como se formam
as relações entre construção cognitiva e construção emocional. Este processo pode ser
muito mais sutil e, amiúde, muito mais traumático. Devemos nos lembrar que pequenas
ações, repetidas centenas de vezes, se transformam em verdadeiros “elefantes” emocionais.
Sendo assim, seria absurdo crermos que Pedro executa, simplesmente, ações
desencarnadas. Ora, a vida, em muitos momentos, se impõe ao nosso aparelho perceptivo e
ao nosso sistema de arquivamento destas ações91. De que modo Pedro poderia evitar um
trauma daquele? Será que o ser humano possui, em todas as situações e todas as épocas de
sua vida, o livre arbítrio para se esquivar de certas emoções-aprendizados-traumas que lhes
são impostos? Para elucidarmos um pouco mais estas questões, devemos continuar com

90
- Os objetos são estes?: duro, quente, mole, frio, cortante, macio, áspero, pesado, leve, tem brilho, pisca, é
de quebrar, é de montar, é de comer, se é de comer, é doce, é salgado, é azedo, deu dor de barriga, etc, etc,
etc.
91
- O leitor poderá argumentar: o que significa “uma vida que se impõe”? Aprofundaremos oportunamente
nesta questão no próximo capítulo, quando buscaremos compreender como fatores aleatórios, das mais
diversas ordens, podem interferir no desenvolvimento cognitivo-afetivo.

139
nossas digressões sobre a importância de se considerar o desenvolvimento cognitivo
conjuntamente com o desenvolvimento afetivo.
Ao explorar o mundo sensorial e motoramente, a criança vai organizando uma série
de estimulações automáticas responsáveis pelo controle da expressão de variados tipos de
reações. Mesmo que, em sua obra, LeDoux exemplifique e atribua estas reações ao
indivíduo adulto, com toda segurança podemos argumentar que este sistema é construído,
passo a passo, de acordo com o desenvolvimento cognitivo-afetivo de cada ser humano92.
De acordo com LeDoux (1998), estas reações seriam:

“Reações específicas da espécie (luta e fuga, imobilização, expressões faciais),


reações do sistema nervoso autônomo (alterações da pressão sanguínea e nos
batimentos cardíacos, piloereção, suor) e reações hormonais (liberação de
hormônios do estresse, como a adrenalina e os esteróides supra-renais, bem como
uma série de peptídeos na corrente sanguínea)” (p. 265).

Quando todo este sistema entra em atividade, são criados sinais corporais que
retornam ao cérebro. Os feedbacks corporais influenciam o processamento de informações
pelo cérebro, e foi Willian James quem introduziu inicialmente a idéia de que, se tememos
alguma situação, é por que, primeiramente, foi desencadeada uma reação somática (por
exemplo, correr do objeto amedrontador), a qual, por sua vez, leva um sentimento de
medo93. Neste sentido, a implicação de todo o aparato somático seria fundamental para se
experienciar, de fato, as emoções. Isto porque é somente pela via somato-sensorial que
podemos ter, de fato, experiências que qualificam e quantificam as diversas emoções94.
Também de acordo com o inverso deste processo, como foi exemplificado na experiência

92
- Como já mencionamos, este processo se revela em seus aspectos universalmente ontogenéticos e,
especificamente, de acordo com a singularidade situacional de cada organismo.
93
Para aqueles que não corroboram com a importância do feedback corporal, alegando que diferentes
emoções podem estar em funcionamento com os mesmos elementos bioquímicos, LeDoux (1998) acrescenta
que: “Conquanto podemos correr para obter alimento e para fugir do perigo, o feedback das reações somáticas
e viscerais que retornam ao cérebro irão interagir como diferentes sistemas nesses dois exemplos. O feedback
da fuga do perigo encontrará o sistema de busca do alimento inativo, mas o sistema de defesa estará ativo” (p.
268).
94
- Segundo Damásio (1996), “que prova temos a favor da afirmação de que os estados do corpo provocam
sentimentos? Parte da prova encontra-se em estudos neuropsicológicos que correlacionam a perda de
sentimentos com lesões em regiões cerebrais necessárias à representação dos estados do corpo” (p. 178).
Também em indivíduos normais, foi observado que “quando foi dada instruções a indivíduos normais sobre o
modo de mover os músculos faciais, ‘compondo’ uma expressão emocional específica em seus rostos sem que
eles estivessem inteirados de sua intenção, o resultado foi os indivíduos experienciarem um sentimento
correspondente à expressão” (p. 185).

140
traumática de Pedro, seria por esta via somática que se promoveriam sensações, as quais,
por sua vez, criariam memórias de emoções a curto e longo prazo. No caso específico do
nosso pequeno amigo, foi a emoção de medo.
Em acordo com estas reflexões, Damásio (1996) acrescenta que os organismos vivos
encontram-se em constante estado de modificação e “o cérebro e o corpo encontram-se
indissociavelmente integrados por circuitos bioquímicos e neurais recíprocos, dirigidos um
ao outro” (p. 113). De acordo com este autor, quando se pensa nas vias que interligam este
sistema, primeiramente são referidas vias motoras e as vias sensoriais periféricas. Uma
outra via é a corrente sanguínea, a qual se encarrega de transportar uma ampla variedade de
sinais bioquímicos, neurotransmissores, hormônios e neuromoduladores. Ora, se ainda
permanecemos fieis à base piagetiana de que a construção de nosso aparelho cognitivo se
faz, inicialmente, pela via sensório-motora, devemos argumentar que os desdobramentos
posteriores da cognição serão, não só, frutos destas modificações qualitativas sensório-
motoras, mas também deverão estar em consonância com toda a história dos incontáveis
registros somato-sensoriais. Estes registros poderão possuir ou não uma valência
emocional. Como já apresentamos, estes registros podem estar arquivados na memória
apenas enquanto:
a) uma memória explícita de uma situação emocional. Como já vimos, esta memória
é mediada pelo hipocampo e não seria necessário estar vinculada à amígdala.
b) uma memória emocional implícita. Este sistema envolveria a amígdala e regiões
correlatas, podendo estar associado ou não ao hipocampo. Neste circuito, haveriam
manifestações físicas desencadeadas pela reação de medo.

Também devemos argumentar que a memória é ativada, em grande parte, pela via
sensória. Este fator nos alerta da importância dos estímulos e técnicas psicoterápicas que
incidam, de fato, nas vias sensoriais. Bem, não nos apressemos, pois este tema será
devidamente aprofundado.
Em toda evolução cognitiva-afetiva, corpo e cérebro interagem entre si e, não menos,
interagem com o meio ambiente. De acordo com Damásio, os córtices sensoriais iniciais
são pontos de entrada circunscritos no cérebro e que recebem informação da visão, da
audição, das sensações somáticas, do paladar e do olfato. Estes cinco sistemas-órgãos

141
responsáveis pelos sentidos estariam envolvidos na “captura” do mundo. Curiosamente, as
imagens que vão sendo armazenadas no cérebro não devem ser representadas por metáforas
de um álbum de fotografia ou de fitas magnéticas que arquivam imagens, sons, odores,
gostos e sensações. Como acrescenta Damásio (1996), “se o cérebro fosse como uma
biblioteca convencional, esgotaríamos suas prateleiras à semelhança do que acontece nas
bibliotecas” (p. 128). Sendo assim, sempre que evocamos um rosto, por exemplo, não
obtemos uma representação exata, mas uma representação reconstruída do original que
pode, como bem sabemos, ser “modificada” inúmeras vezes no decorrer da vida. A criança,
antes mesmo de ter estabelecido sua capacidade de evocar imagens e símbolos (por volta de
18 meses) e, conseqüentemente, de linguagem verbal, já articula em sua memória uma
complexa rede de informações colhidas sensória e motoramente, decorrentes de uma
intensa, embora não aparente, exploração-aprendizagem do mundo. Como vimos em cada
sub-fase, a criança vai assimilando e ampliando os diversos esquemas de ações,
acomodando-os às mais variadas situações que vão se apresentando ao seu redor. Todo o
equipamento sensório-motor deve permitir que a criança “cuide” de si mesma, explorando
objetos que lhe dão algum tipo de prazer e se afaste, ou seja afastada por genitores
cuidadosos, daqueles objetos que podem lhe causar danos cognitivos, físicos e emocionais.
Serão nestas sucessivas aproximações sensoriais com o mundo que a criança vai
construindo um complexo edifício de valores. É por isso que o ursinho de pelúcia de Pedro,
tão macio, cheiroso e com o qual seus pais o estimulam tantas vezes ao dia, juntamente com
sons cálidos ou risadas, expressões faciais alegres, etc, é radicalmente diferente de sua
experiência com a água fervida. Neste contexto, não nos referimos ainda a mecanismos de
construção do mundo mais elaborados, os quais utilizam-se da linguagem ou da evocação
de imagens mentais previamente interpretadas. Nos referimos a “sinais” somato-sensoriais
básicos, sem conteúdos “representados” mas que, por sua vez, serão os pilares da
organização cognitivo-afetiva simbólica ou, como Piaget prefere, dos mecanismos
superiores da inteligência, e que estão para se desdobrar no decorrer da vida deste pequeno
ser humano.
Ao fazer algumas observações sobre o desenvolvimento do sistema neural, Damásio
contribui fundamentalmente com dados que são corroborados pela “biologia do conhecer”
de Maturana e Varela (2002), e que serão aprofundados no próximo tópico. Damásio alega

142
que o genoma humano não possui genes suficientes para determinar a complexidade do
sistema nervoso. Se nos referimos somente às conexões sinápticas, estas superam a 10
trilhões de conexões, ou seja, um número estrondosamente superior aos 200 mil genes.
François Jacob (in PALMARINI (org), 1979, p. 132), já em Royaumont, no memorável
encontro entre Chomsky e Piaget, também propunha as seguintes questões:

“Não existe informação genética suficiente no genoma para descrever em detalhe o


conjunto do indivíduo (...) os genes não contêm a descrição detalhada de um
indivíduo. Contêm um programa que especifica as estruturas celulares e a posição
das células. Mas a lógica interna deste programa é completamente desconhecida
por agora (...) Pode-se dizer que as células são confrontadas ao longo de sua
história, durante a ontogênese, com um certo número de escolhas binárias e
sucessivas. Após cada escolha, uma nova se apresenta de modo que as células
passam por uma série de estados sucessivos”.

É neste sentido que muitas das determinações do sistema nervoso e do organismo em


geral devem ser atribuídas à sua própria atividade no mundo. Ainda assim, os genes
determinam importantes setores cerebrais, como os circuitos do tronco cerebral e do
hipotálamo, os quais regulam atividades inatas do organismo sem recorrer à decisões
conscientes95. Como Damásio (1996) acrescenta, essas regiões “regulam os mecanismos
homeostáticos, sem os quais não haveria sobrevivência” (p. 138). Por fim, uma última
particularidade do desenvolvimento neural se refere à chegada tardia (infância e
adolescência) da influência genética a outros setores do cérebro. Neste sentido, o ambiente,
com toda a sua complexa rede de manifestações das mais diversas ordens, passa a ocupar
proeminente posição enquanto vetor que contribui para a “plasticidade”96 do sistema
enquanto um todo. Então, de acordo com Damásio (1996, p. 138), como o arranjo preciso
do sistema nervoso se estabelece? “Estabelece-se sob influência de circunstâncias
ambientais que são complementadas e restringidas pela influência dos circuitos

95
- Damásio (1996) nos fornece o seguinte exemplo: “algumas horas depois da refeição, o nível de açúcar no
sangue desce e os neurônios do hipotálamo detectam essa alteração; a ativação do padrão inato pertinente leva
o cérebro a alterar o estado do corpo para que a probabilidade de correção possa ser aumentada; sentimos
fome e empreendemos ações para satisfazê-la; a ingestão de açúcar acarreta uma correção no nível de açúcar
no sangue; por último, o hipotálamo volta a detectar uma alteração de açúcar no sangue, dessa vez uma
aumento, e os neurônios apropriados fazem o organismo passar a um estado em que a experiência associada é
a sensação de saciedade” (p. 144).
96
- Neste momento, não nos empenharemos em compreender criticamente esta plasticidade inerente a todo
organismo vivo em relação com o meio ambiente.

143
estabelecidos de forma inata e precisa, relacionados com a regulação biológica”. Em acordo
com Piaget, Damásio (1996) faz o seguinte comentário:

Assim, à medida em que progredimos da infância para a idade adulta, o design dos
circuitos cerebrais que representam nosso corpo em evolução e sua interação com o
mundo parecem depender tanto das atividades em que os organismos se empenham
como da ação dos circuitos bioreguladores inatos, à medida em que estes últimos
reagem a tais atividades. Essa abordagem sublinha a inadequação de conceber o
cérebro, comportamento (afetividade) e mente em termos de natureza versus
educação, ou de genes versus experiência”. (p. 140)

Nestes termos, toda progressiva evolução sensório-motora deve estar em


conformidade com a herança genética, com as atividades cerebrais inatas responsáveis por
um equilíbrio básico do organismo, e com as diversas peculiaridades que se fazem
presentes no ambiente da criança, as quais oferecem os recursos “materiais” para que o
exercício sensório-motor seja posto em ação. Por sua vez, sempre de acordo com um
complexo mecanismo recursivo, este processo incide na maturação de outros setores do
sistema nervoso (de acordo com Damásio, o néocortex) e, em âmbitos gerais, na
plasticidade ou na deterioração vivida pelo organismo como um todo.
Conclusivamente, o que é essencial para transformar uma reação emocional em uma
experiência emocional consciente?

“ - Temos um sistema emocional especializado que recebe informações sensoriais e


produz repostas hormonais, autônomas e comportamentais;
- Temos buffers sensoriais corticais que se vinculam a informações sobre estímulos
do momento;
- Temos um executivo da memória de trabalho que mantém-se a par dos buffers de
curto prazo, recupera informações da memória de longo prazo e interpreta os
conteúdos dos buffers de curto prazo à luz das memórias de longo prazo ativadas;
- Temos também a excitação cortical;
- E, finalmente, dispomos de feedback corporal – informações viscerais e somáticas
que retornam ao cérebro durante uma reação emocional. Quando todos esses
sistemas funcionam em conjunto, a experiência emocional é inevitável” (LeDOUX,
1998, p. 270).

Devemos lembrar ao leitor que, no momento, apenas nos interessa acrescer e


reformular alguns pressupostos da epistemologia genética piagetiana que não relevam,
contundentemente, a intrínseca importância de se considerar o desenvolvimento cognitivo
conjuntamente com o desenvolvimento emocional. Como esperamos ter esclarecido, esta

144
confluência imprescindível se sustenta em hipóteses articuladas pela neurociência
contemporânea. Contudo, seremos mais elucidativos quando aprofundarmos na
compreensão da singularidade destas relações que se estabelecem no processo de
desenvolvimento, assim como nos fatores que levam ao seu desenvolvimento. Como
próxima etapa, devemos nos concentrar em acrescer as próximas reflexões com os
pressupostos neurocientíficos apresentados até o momento. Também devemos argumentar
porque consideramos fundamental partirmos de nossa corporeidade, segundo os
pressupostos do construtivimo radical, para um alargamento compreensivo da
complexidade do processo elaborativo e de sua singularidade.

6.2 – Afetividade, cognição e singularidade segundo a


“biologia do conhecer”

6.2.1 – Inevitáveis confluências entre os aspectos Ontológicos e


Epistemológicos dos processos cognitivos-afetivos

Ao se propor uma aproximação compreensiva dos processos cognitivos a partir de


uma reflexão de seus aspectos ontológicos - a qual incidirá, necessariamente, na
compreensão do processo elaborativo em seu mais amplo sentido – devemos continuar
insistindo na relevância de situarmos os processos cognitivos a partir de seus aspectos
biológicos. Pensamos que no caminho explicativo da “objetividade entre parênteses”, nossa
corporeidade é dimensão fundante dos atos cognitivos e, como Francisco Varela (2003)
prefere se referir, constitui o meio dos mecanismos cognitivos. Conhecer é um fenômeno
“vivo”, e as condições constitutivas do ato de conhecimento são análogas às condições
constitutivas daquele que conhece. Maturana (2001) se refere a este processo como o
domínio das ontologias constitutivas, o que se contrapõe à idealidade característica do

145
domínio das ontologias transcendentes. Apresentar adequadamente estas questões, assim
como direcioná-las para os desdobramentos posteriores, serão nossas próximas metas.

6.2.1.1 – A organização dos seres vivos e o ato cognitivo

O construtivismo radical pode ser considerado como fruto tardio da série de


conferências Macy, as quais buscaram edificar uma ciência geral do funcionamento da
mente, e que veio a ser designada como cibernética, a partir de 1947, por Norbert Wiener.
A “cibernética de primeira ordem”, tal como se popularizou para se diferenciar do posterior
movimento iniciado por Heinz von Foester, denominado de “cibernética de segunda
ordem”, apresentou-se como ciência das analogias controladas entre organismos e
máquinas. Seria com von Foester que “a cibernética iria, com suas próprias palavras,
tornar-se uma cibernética dos sistemas observantes, e não mais dos sistemas observados”
(DUPUY, 1996, 98). Em termos gerais, também pode ser considerada uma reação ao
excessivo prestígio que os autômatos vieram a assumir e, conseqüentemente, de uma
antropomorfização da máquina. Sob a mesma orientação epistemológica, podemos associar
a cibernética de segunda ordem à, teoria dos sistemas de Bertalanfy, à teoria da auto-
organização de Henry Atlan e aos sistemas autopoiéticos de Maturana e Varela.
Outra questão que irá determinar conceitualmente o construtivismo radical refere-se à
dimensão que o ruído ou que a desordem informacional passa a ocupar na década de 60,
primeiramente para von Foester. Para este autor, a informação pode ser considerada ordem
subtraída da desordem. Curiosamente, como acrescenta Dupuy (1996), este tema já era
constante nos escritos de Wiener, então considerado como um dos fundadores da primeira
cibernética.
Com Ernest von Glaresfeld, o construtivismo radical demarcou definitivamente suas
fronteiras, sendo proposto que só podemos conhecer qualquer fenômeno do mundo a partir
das peculiaridades de nossa experiência. Tanto a um nível básico de sobrevivência e
evolução das espécies quanto na singularidade cognitiva que está imersa nos atos de
conhecimento, este procedimento epistemológico seria condizente com um processo de

146
organização que se estabelece por “encaixes” (fit). Como Glasersfeld (1996, In:
SHINITMAN) acrescenta, “é a esta relação de encaixe num conjunto de limitações que
chamamos de relação de viabilidade” (p. 79). Ao estabelecer esta base epistemológica
quanto à compreensão do desenvolvimento cognitivo, descarta-se conseqüentemente a
noção de “correspondência” (match). Logo surgiram opositores que defendiam um
posicionamento onde a realidade, ainda que inalcançável, seria dada como existente
(GRANDESSO, 2000). Para o “construtivismo crítico”, este procedimento epistemológico
apresentado por Glasersfeld pode ser comparado ao idealismo, já que não reverencia
qualquer tipo de realidade a não ser nossa singular interpretação do mundo (MAHONEY,
1991). Contra este posicionamento devemos argumentar que há uma diferença entre se
negar uma realidade ontológica transcendental e se aceitar uma realidade ontológica
constitutiva. Este tema será mais bem abordado por Maturana e Varela (1995), onde serão
aproximados os conceitos de epistemologia e ontologia. A noção de encaixe, proposto por
Glaresfeld, é análoga, em grande parte, ao conceito de “acoplamento estrutural”.
Apresentaremos a seguir um quadro elucidativo dos principais contrapontos entre
uma epistemologia construtivista radical e uma epistemologia que seja coerente com os
parâmetros objetivistas.

Quadro 6.2: Uma aproximação entre as epistemologias Construtivista e Objetivista (Grandesso, 2000, p.
75)

Critério de diferenciação Construtivismo Objetivismo


- Conhecimento - construído ativamente - construção da
pela experiência realidade
individual a partir da representação
- construção conceitual do mundo real por
por diferentes quadros correspondência
interpretativos - descobrimento da
- impossibilidade de realidade fatual
separar sujeito e objeto - sujeito e objeto
de conhecimento definidos como
entidades separadas
- descoberta da
realidade objetiva e
preexistente

147
- Validação do conhecimento - ajuste, viabilidade e - correspondência
coerência (fit) icônica entre a
- consistência interna representação e a
com o conhecimento realidade (match)
existente e conscenso - comprovação empírica
- diversidade de - um único significado é
significados e de correto – busca da
interpretações certeza
- Estrutura do conhecimento - captação de diferenças - definição de conceitos
- convive com a incerteza a partir das qualidades
e diversidade inerentes contidas no
objeto
- busca da certeza e do
universal

- Interação humana - encaixe mútuo entre as - interferência de um


pessoas por acoplamento organismo sobre o outro
estrutural - possibilidade de
- impossibilidade de interação instrutiva
interação instrutiva
- Noção de sujeito - ativo e pró-ativo: agente
intencional orientado
para metas
- reativo

Em acordo com os pressupostos da cibernética de segunda ordem, os chilenos


Humberto Maturana e Francisco Varela escolheram explicar a singularidade dos sistemas
observantes a partir de uma leitura biológica dos processos cognitivos. Em seu livro A
árvore do conhecimento, Maturana e Varela (1984) nos fazem um convite inicial:
“suspender nossas certezas a respeito do mundo” (p. 33). Esta postura diante da obra se faz
necessária, pois o conhecimento para estes autores só pode ser construído enquanto
enraizado em uma estrutura biológica “singular” e em um modo pessoal de conhecer.
Assim, toda experiência de certeza é um fenômeno “individual” e esta certeza só pode ser
estendida a outros indivíduos no momento em que estas estruturas singulares se “acoplam”.
No entanto, Maturana e Varela apresentam a originalidade de sustentar esta tese a partir da
biologia. Nossa proposta, neste momento, é apresentar sucintamente os pontos
fundamentais desta “teoria biológica do conhecer”.
Maturana e Varela (1984, 2002) defendem a tese de que os fenômenos perceptivos
são estruturados sempre a partir de uma configuração específica de estados de atividade no

148
sistema nervoso de cada um de nós. Logo, o conhecer é sempre, e em última instância, uma
experiência individual. Ainda que muitas escolas filosóficas ou psicológicas vejam com
desconfiança esta “redução” do conhecimento ao ato de conhecer, é exatamente neste
contexto que os autores enfatizam sua teoria cognitiva:

“Esse caráter do conhecer é a chave mestra para entendê-lo, não um resíduo


incômodo ou obstáculo. Fazer surgir um mundo é a dimensão palpitante do
conhecimento e está associado às raízes mais fundas de nosso ser cognitivo, por
mais sólida que seja a nossa experiência. E, pelo fato dessas raízes se estenderem
até a própria base biológica – como veremos -, esse fazer surgir se manifesta em
todas as nossas ações e em todo nosso ser” (MATURANA & VARELA, 2001,
p. 33).

Os autores fazem uma intrigante descrição das origens dos sistemas auto-organizados
em suas raízes filogenéticas, no intuito de especificar a fenomenologia biológica dos seres
vivos. O leitor interessado deverá se remeter à obra completa, citada na bibliografia.
Daremos continuidade a este estudo a partir da relevância de se considerar o homem
enquanto uma organização auto-estruturada, ou seja, aupoiética. Segundo Maturana e
Varela (1984), uma máquina autopoiética é organizada como um sistema de processos de
produção de componentes concatenados de tal maneira que: i) geram os processos
(relações) de produção que os produzem, através de suas contínuas interações e
transformações, e; ii) constituem a máquina como uma unidade no espaço físico. Para estes
autores, “os sistemas viventes são entidades autopoiéticas com uma estrutura dinâmica que
lhes permite interagir entre si de modo recorrente, gerando um tipo de acoplamento
estrutural ontogênico97, chamado domínio consensual. Neste contexto epistêmico, o que
caracteriza os seres vivos é sua organização autopoiética, ainda que a diversidade
inaugurada por cada ser vivente o distinga de seu semelhante por possuir estruturas
distintas. Tomando um exemplo, poderíamos dizer que existem várias imagens possíveis
que determinam um objeto específico, porém, todas elas devem “significar” o mesmo
objeto. Uma mesa sempre será uma mesa enquanto mantiver sua organização de “mesa”,

97
- Segundo Maturana e Varela (1984), considera-se ontogenia “o processo integral de desenvolvimento em
direção a um estado adulto, mediante o qual se alcançam certas formas estruturais que permitem ao organismo
desempenhar certas funções, em concordância com o plano inato que o delimita em relação ao meio
circundante. A ontogenia de um sistema vivo é a história da conservação de sua identidade através de sua
autopoiésis continuada no espaço físico” (p. 13).

149
mesmo que ela seja pequena, grande, média, de madeira, de plástico etc98. Não importa as
características estruturais para defini-la enquanto mesa, mas sim sua organização, a qual
deve permanecer “estável”. Então, se partimos do princípio que cada ser vivo se define
enquanto uma organização autopoiética, devemos considerá-lo uma unidade autônoma que
se assemelha em sua organização, mas difere em sua estrutura99.
Com certeza, podemos considerar o ser humano como uma unidade autopoiética, já
que se reproduz continuamente, mantendo sua organização e sua identidade através da
hereditariedade. Os seres vivos são “máquinas moleculares” que operam em redes fechadas
e que mantêm sua coerência organizacional enquanto suas mudanças estruturais
conservarem sua autopoiese. Segundo Maturana (2001), “um sistema vivo morre quando
sua autopoiese deixa de ser conservada através de suas mudanças estruturais” (p. 175)100.
Tudo o que acontece a uma unidade autopoiética implicará em transformações condizentes,
em última instância, a seus determinantes estruturais.
A princípio, poderíamos pensar que estamos retornando a algum tipo de teoria
inatista, onde tudo se revela e se organiza a partir de um “apriorismo biológico”. Em parte,
isto não deixa de ser verdade. Maturana e Varela defendem a tese de que o mundo nos afeta
e se transforma na medida de nossas possibilidades bio-estruturais, já que o sistema nervoso
funciona, como já vimos, a partir de uma clausura operacional. O ser vivo “está
constituído de tal maneira que quaisquer que sejam suas mudanças elas geram outras
modificações dentro dele mesmo, funcionando como uma rede fechada de mudanças de
relações de atividade entre seus componentes” (p. 183).
Neste contexto, o ato do conhecimento assume um “particularismo”, como se
retomássemos aos dizeres de Epicteto: Se algo te aflige em sua relação com o mundo, não é
este que o fere mas o teu próprio juízo a respeito dele. Quando ouvimos alguém, ouvimos

98
- Esta redução fenomenológica poderia ser criticada, já que o que consideraramos como uma “mesa”, em
último sentido, deve se referir apenas a um ato de distinção. Uma mesa partida ao meio ainda pode servir, de
alguma forma, como algum tipo de base que funcione como “mesa”. Mas se dirigirmos estas “violações
organizacionais” para o âmbito dos seres vivos, talvez não tenhamos tanto sucesso em manter coerente,
materialmente, esta pragmática funcional. Um ser vivo, cortado ao meio, não sobreviverá a esta
“perturbação”, e perderá sua funcionalidade organizacional.
99
- Devemos então definir, devidamente, o que os autores entendem por: ORGANIZAÇÃO: Relações entre
componentes que capacitam o observador a reconhecê-lo. ESTRUTURA: Componentes e relações que
constituem concretamente uma unidade
100
- Ora, quando perdemos um braço, uma perna, etc, ainda podemos ser identificados enquanto o “fulano de
tal”, pois ainda conservamos nossa organização mesmo que tenha havido mudanças estruturais.

150
um acontecer interno a nós, coerente com nossas crenças, ideologias, opiniões e conceitos.
Contudo, a elegância da teoria de Maturana e Varela está na dialética estabelecida entre
organismo e ambiente. Seria ingenuidade de nossa parte pensar que as estruturas
autopoiéticas não são congruentes ao meio em que elas existem a partir de interações
recursivas. Em um processo ontogênico, revela-se uma contínua modificação estrutural em
cada unidade autopoiética sem que se perca sua organização. Estas alterações são
desencadeadas por interações provenientes de outras unidades do meio ou por alterações
que resultam de sua dinâmica interna. A este intercâmbio com outras unidades
autopoiéticas, Maturana e Varela denominaram de acoplamento estrutural. Segundo os
autores, temos quatro domínios específicos de interação:

1) domínio das mudanças de estado;


2) domínio das mudanças destrutivas;
3) domínio das perturbações;
4) domínio das interações destrutivas.

A manutenção dos organismos se faz, logicamente, por fenômenos adaptativos, ainda


que estes mecanismos sejam das mais variadas ordens e, de forma corriqueira, são
socialmente ultrajantes. Seria no mínimo curioso observarmos que a demanda de
sobrevivência dos organismos não implicaria, primariamente, em considerações de
relevância ética desta adaptação101.
A esta altura o leitor poderia estar a questionar, impacientemente, como nossa
estrutura orgânica se relaciona com nosso comportamento ou com nossas propriedades de
conhecimento. Maturana e Varela acrescentam que o funcionamento do sistema nervoso
dos organismos superiores, especificamente do homem, está sempre em estreita relação
com sua estrutura de conexões intra e inter-sistêmicas. Logo, a ontogenia do ser humano
consiste em sua contínua transformação estrutural, sempre caracterizada pelas

101
- Um mendigo sobrevive graças às esmolas recebidas ou de outros mecanismos (Ex: restos de comida, etc.)
que utiliza para sua sobrevivência. Podemos dizer que há uma adaptação desta “unidade” (mendigo) com o
meio, pois ainda que estruturalmente este mendigo se estabeleça de forma distinta daquele jovem que sai
todas as manhãs com seu carro importado de sua elegante casa, mantém sua organização enquanto unidade
autopoiética. Ainda que a mendicância seja um problema de saúde mental, seguramente poderemos questionar

151
particularidades dos estímulos que cada ser experimenta. Estes seriam fatores fundamentais
na estruturação do comportamento e na aquisição do conhecimento. Conhecer e representar
o mundo, neste contexto paradigmático, é sempre decorrente de uma objetividade entre
parênteses.
Estas questões que se apresentam nos remetem para desconfortáveis reflexões.
Devemos considerar o funcionamento do sistema nervoso enquanto uma cadeia de
representações estritamente objetiváveis (positivismo lógico?) ou partirmos da extrema
solidão cognitiva de um posicionamento solipsista? Como os autores sugerem, caminhamos
no “fio da navalha”, e devemos considerar inseparáveis ambos os sistemas de
conhecimento. Como já apresentamos, o sistema nervoso opera circularmente ou, como os
autores preferem, a partir de uma clausura operacional. Todavia, estamos em constantes
mudanças estruturais devido às interações com o ambiente, através de nossos órgãos
sensoriais e efetores, que selecionam, “pertinentemente”102, os estímulos provenientes do
meio. Neste contexto, não devemos considerar válido o modelo computacional de que o
sistema nervoso estabelece cognições por “entradas e saídas” perceptivas103. O sistema
nervoso não foi projetado por ninguém, como um computador ou outro sistema artificial é
projetado. Segundo Maturana e Varela (1984), ele é resultado de uma deriva filogenética.
Assim, o adequado seria:

“reconhecê-lo como uma unidade definida por suas relações internas, nas quais as
interações só atuam modulando sua dinâmica estrutural, isto é, como uma unidade
dotada de clausura operacional. Enfim, não captamos informações, como os
representacionistas insistem, mas construímos um mundo ao especificar quais
configurações do meio são perturbações e que mudanças estas desencadeiam no
organismo” (p. 88).

Segundo esta “teoria do conhecimento”, apresentada por Maturana e Varela, todo ato
cognitivo acontece, inexoravelmente, em um contexto relacional. Não podemos dizer então

sobre as diferentes possibilidades adaptativas se este mendigo tivesse usufruído de um sistema sócio-político
justo. Este seria o contínuo jogo dos acoplamentos estruturais.
102
- Em um de nossos segmentos posteriores, nos dedicaremos a compreender até quando os organismos têm
condições de escolher ou não os estímulos adequados ao desenvolvimento cognitivo-afetivo.
103
- Segundo Varela (1989), “um input faz parte integrante da definição de uma unidade. Uma perturbação
embora possa estar acoplada a uma unidade não faz parte da sua definição. Os diversos modos como uma
perturbação pode ter lugar são em número indefinido. Um input dado não pode ter lugar senão de modo
específico” (p. 192).

152
que existem “informações transmitidas”, como insistem as teorias representacionistas.
Existe “cognição” cada vez que há coordenação comportamental num domínio de
acoplamento estrutural104. Também podemos dizer que uma explicação cognitiva tem
relação com a relevância da ação para a manutenção da autopoiese, e opera num domínio
fenomenológico distinto do domínio de conduta mecanicista determinado pela estrutura.
A respeito da linguagem, podemos dizer que sua função básica como sistema
orientador do comportamento não é a transmissão de informação ou a descrição de um
universo independente a respeito do qual se pode falar, mas a criação de um domínio
consensual de conduta entre sistemas, que inter-atuam lingüisticamente através do
desenvolvimento de um domínio cooperativo de interações. Conseqüentemente, o papel de
“escuta”, ao gerar o significado de uma expressão, está estreitamente relacionado com a
explicação dos domínios consensuais.
Portanto, podemos considerar que os processos cognitivos são condizentes a um
sistema autopoiético, uma vez que os atos cognitivos referem-se a um tipo de ação humana
“encarnada”. Nossa capacidade cognitiva empreende a tarefa de relacionar o organismo ao
mundo. Qualquer explicação completa da cognição e da linguagem exige uma compreensão
de como a mente/cérebro relaciona o organismo com a realidade. Sejam quais forem os
princípios para fornecer uma interpretação adequada do cérebro, terão de reconhecer a
realidade da intencionalidade do cérebro e explicar suas capacidades causais.

6.2.1.1.1 - Uma aproximação “ontológica” da cognição

104
- Também podemos dizer que esta conduta se difere da proposta darwinista de sobrevivência dos mais
aptos a partir da competição. Segundo Maturana e Varela (1984, p. 218) a existência do ser vivo em sua
deriva natural – tanto filogenética quanto ontogenética – não acontece somente na competição mas também na
conservação da adaptação. Esta proposta em muito se aproxima do que os etólogos denominam como
“conduta altruísta” observada em animais onde prevalece uma estruturação grupal de comportamento como as
abelhas, as formigas, os lobos, os antílopes, as baleias etc. Segundo estes etólogos, a comunidade destes
animais só é mantida pelo sacrifício de alguns.

153
Seria tarefa das mais árduas e, portanto, destituída de sentido, percorrer os tortuosos
caminhos da ontologia105 desde seus primórdios, com Parmênides de Eléia. Tampouco seria
nossa pretensão refletir sobre as diversas versões atribuídas ao termo nos diferentes
momentos da história da filosofia. Todavia, devemos introduzir o leitor à algumas
conceituações do termo para que, em breve, possamos propor algumas aproximações que
possibilitem refletirmos sobre inevitáveis imbricações entre ontologia e epistemologia com
a “biologia do conhecer”.
Marilena Chauí (1994), em sua obra Convite à Filosofia, conceitua o termo ontologia
enquanto o “estudo ou conhecimento do Ser, dos entes e das coisas tais como são em si
mesmas, real e verdadeiramente” (p. 210). Nos dizeres de Aristóteles (1988), esta
“Filosofia Primeira” se propõe, portanto, ao estudo do conhecimento da essência das coisas
ou do ser real e verdadeiro das coisas, daquilo que elas são em si mesmas, apesar das
aparências que possam ter e das mudanças que possam sofrer. A princípio, poderíamos
questionar se não estamos incorrendo em um grave equívoco ao buscarmos relações entre
atributos físicos do ser (biológicos) e ontologia. Como poderíamos propor que a essência
do ser (ousia) reside exatamente em sua corporeidade? Se nos referíssemos à metafísica
platônica, aristotélica, neo-platônica ou clássica, sem dúvida, estaríamos em sérios apuros.
Todavia, na metade do século XVIII, o filósofo inglês David Hume (1984) abalou
seriamente os alicerces dos estudos metafísicos, defendidos até então. Neste contexto, a
idéia de essência e substância “nada mais é do que um nome geral dado para indicar um
conjunto de imagens e de idéias que nossa consciência tem o hábito de associar por causa
das semelhanças entre elas” (p. 231). Para Hume, o “sujeito do conhecimento” opera
associando sensações, percepções e impressões recebidas pelos órgãos dos sentidos. Ora, a
pergunta: “O que é o ser?”, não deve mais anteceder o lugar ocupado por outra pergunta, ou
seja, “O que e como podemos conhecer?”, proposta pela teoria do conhecimento. Sem
dúvida, as bases da ontologia como se conhecia até então se tornou vulnerável, já que se
resgatava a impossibilidade de se refletir o ser sem se referir a entidades reais e
independentes do sujeito do conhecimento. A partir de Hume, tomar como ponto de partida

105
- Adotaremos o termo ontologia de forma análoga à metafísica por razões de praticidade. Como bem
acrescenta Marilena Chauí (1994), o termo ontologia foi usado primeiramente pelo filósofo alemão Jacobus
Thomasius no século XVII, considerando-o como o mais adequado para designar os estudos da Filosofia
Primeira.

154
ontológico a possibilidade de existência de uma realidade em si e por si mesma era
insustentável. Podemos dizer que para Kant (1988), a metafísica antiga e clássica foi
relegada à sua realidade numinosa, já que não pode ser atribuída a esta modalidade um
fenômeno que se apresenta ao sujeito do conhecimento na experiência em suas formas a
priori de sensibilidade e entendimento.
A fenomenologia de Husserl contribuiu com uma nova abordagem do conhecimento,
as quais refletiram no campo da ontologia. Neste contexto paradigmático, a percepção é
uma vivência, construída na atividade intencional do sujeito do conhecimento em suas
interações com o meio. Os fenômenos, além de sua materialidade, naturalidade e
idealidade, são manifestações cotidianas e culturais, construídas nas ações humanas. Seria
nesta ampliação do conceito de “fenômeno” que Husserl (1988) propôs que se investigasse
os diferentes tipos de fenômenos, criando-se então ontologias regionais (p. 238). Mesmo
assim, não será na fenomenologia de Husserl que encontraremos satisfatoriamente as
respostas que nos possibilitem refletirmos sobre o cerne biológico que acompanha qualquer
aproximação ontológica dos processos cognitivos. Será necessário que investiguemos
algumas propostas posteriores a Husserl, as quais, acredita-se, fundamentaram uma “nova
ontologia”.

6.2.1.1.2 - Uma nova ontologia – Corporeidade e essência do ser

Husserl não havia resolvido satisfatoriamente as velhas questões entre idealismo e


realismo, pois enfatizava a importância da consciência e do sujeito do conhecimento. Não
havia percebido, como Merleau-Ponty (1971) iria pontuar, que se tratava então do
enraizamento do homem no mundo, ou de seu “atolamento congênito”, o que justificaria,
como acrescenta Virgínia Moreira (2004), “a necessidade da utilização da redução

155
fenomenológica106 como um artifício lógico para que o pesquisador alcance a realidade,
ainda que não se possa esquecer que a maior característica da redução fenomenológica é
que esta nunca é completa” (449). Foi preciso que seu aluno, Martin Heidegger, assim
como a nova geração de filósofos que privilegiavam verdadeiramente a existência em
detrimento de uma essência ideal, libertasse a ontologia deste velho problema107. Só assim
poder-se-ia dar conta de que compreender os fenômenos do mundo significa nada mais do
que distinguir a singularidade de cada acontecimento. Para estes pensadores que defendiam
uma nova perspectiva para a ontologia, não havia sentido privilegiar o sujeito do
conhecimento, pois se eliminássemos o mundo não teríamos como agir concretamente
sobre nada. Contrariamente, também não havia sentido privilegiar o mundo, já que este
mundo só é reconhecido por uma consciência que o percebe. Neste novo contexto, segundo
Chauí (1994):

“não somos uma consciência reflexiva pura, mas uma consciência encarnada num
corpo (...) onde vivemos com os outros e rodeados pelas coisas, um mundo
qualitativo de cores, sons, odores, figuras, fisionomias, obstáculos, afetividades,
lembranças, esperanças... a (nova) ontologia investiga a essência do ente físico ou
natural, do ente psíquico, lógico, matemático, estético, ético, temporal, espacial etc.
Investiga seu modo próprio de existir, sua origem, sua finalidade” (p. 241).

Logo, não podemos nos referir a uma experiência independentemente do observador,


pois não há acesso privilegiado ao mundo que nos permita dogmatizar nossas explicações,
ainda que nossas categorias explicativas sejam, como dizia Piaget, invariantes. Como
acrescenta Maturana (2001), “na objetividade entre parênteses há tantas realidades quanto
domínios explicativos, todas legítimas” (p. 38). É neste contexto que podemos propor uma
estreita relação entre ontologia e biologia nos processos cognitivos. Na ontologia antiga e
clássica, o corpo é entrave, res extensa, mas nunca dimensão fundante de nosso
entendimento do mundo. Com o movimento existencialista notamos o resgate da dimensão

106
- A fenomenologia é o estudo da consciência e dos objetos da consciência. A redução fenomenológica (ou
"epoche") é o processo pelo qual tudo que é informado pelos sentidos é mudado em uma experiência de
consciência, em um fenômeno que consiste em se estar consciente de algo. Coisas, imagens, fantasias, atos,
relações, pensamentos eventos, memórias, sentimentos, etc. constituem nossas experiências de consciência.
107
- Novamente, devemos acrescentar a inconveniência de nos aprofundarmos nas particularidades filosóficas
dos inúmeros pensadores que contribuíram para esta “nova ontologia”, exatamente por ultrapassar as
pretensões reflexivas de nossa introdução aos aspectos ontológicos da “biologia do conhecer”. O leitor
interessado deverá se aprofundar nas obras de Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre, Camus, Ladriére, Gadamer e
Ricouer.

156
sensória, pois seria incabível uma ontologia que não considerasse a “corporeidade”. No
caminho explicativo da objetividade entre parênteses, proposto por Maturana e Varela,
nossa corporeidade é dimensão fundante dos atos cognitivos, porque todo ato de conhecer
é um fenômeno intrinsecamente vivo, e as condições constitutivas deste ato deve ser
análoga às condições constitutivas daquele que conhece. Poderíamos propor, neste ponto,
que nem mesmo o termo “relação” pode ser aplicado satisfatoriamente quando nos
referimos aos aspectos epistemológicos e ontológicos de uma aproximação biológica da
cognição. Estes dois domínios são indissociáveis, logo, não se explicam por vias paralelas
ou relacionais, mas sim por uma circularidade constitutiva. Por fim, falar sobre o conhecer
é falar sobre o ser em última instância e, especificamente, Maturana se refere a este
processo como o domínio das ontologias constitutivas (2001, p. 42), o que se contrapõe a
uma idealidade de um ser em si, característico do domínio das ontologias
transcendentes108.
Esta breve exposição sobre a “biologia do conhecer” e das inevitáveis confluências de
seus aspectos ontológicos e epistemológicos, cumpre apenas o papel de introduzir o leitor
na necessidade de se considerar, a princípio, que os processo cognitivos funcionam a partir
de uma clausura operacional delimitada por sua estrutura neuro-biológica. Sendo assim, o
complexo processo de construção e elaboração do conhecimento será determinado, em
última instância, pela estrutura do organismo, já que será esta estrutura que especificará
seus domínios seletivos de interação. Cabe-no agora aprofundar nestas considerações.
6.2.2 – Aleatoriedade e teleonomia

O tempo biológico é irreversível e ele escoa em direção única, desde o nascimento até
a morte. Como acrescenta Henri Atlan (1992), esta unidirecionalidade do tempo perpassa a
totalidade dos organismos vivos. Contudo, na física clássica, não haveria razão para se
considerar esta irreversibilidade do tempo se não fosse pela descoberta do segundo
princípio da termodinâmica. Este princípio estipula que a entropia, ou seja, a desordem,

108
- Devemos discordar veementemente de Glasersfeld (1991) quando este diz: “o construtivismo lida com o
conhecer, e não com o ser” (p. 17). Este também seria o ponto central de nossas dissonâncias com o
construtivismo piagetiano. Ainda que este autor considere a dimensão afetiva como participante do

157
seria uma evolução irreversível e irremediável da matéria e da energia. Um exemplo
clássico de difusão de energia nos esclarece que, se pingarmos uma gota de tinta em uma
jarra com água, observaremos um processo crescente de diluição da tinta, até que água e
tinta formem uma solução homogênea, isto sem que se aplique qualquer tipo de movimento
exterior ao sistema jarra-água-tinta. O movimento existente, imperceptível aos nossos
olhos, é gerado pela oscilação de temperatura no sistema, levando-o a uma desordem
molecular. Este seria o estado de máxima desordem molecular, assim conceituado como
estado de entropia máxima. A ordem inversa deste experimento não é observada na
natureza, ou seja, uma evolução que parta do estado homogêneo estabelecido pelas
moléculas da água e da tinta, para a estrutura outrora delimitada na gota de tinta. Este feito
seria, segundo Atlan (1992, p. 29), a reversibilidade da seta do tempo.
Ao aplicarmos esta lei a sistemas vivos, também devemos considerar que, juntamente
a uma “evolução” em direção ao envelhecimento e à morte, vem a somar-se uma outra
espécie de evolução, a qual se dirige para uma complexidade crescente ou, em outros
termos, para uma diminuição da entropia. Este fascinante paradoxo nos esclarece a
ininterrupta e crescente diversidade que permeia a vida na terra, pois a evolução das
espécies desafia terminantemente este tão afamado e contundente princípio da
termodinâmica. Segundo Atlan (1992), esta contradição deixa de ser tão escandalosa a
partir do momento que a lei do aumento da entropia só se aplica, de maneira absoluta, aos
sistemas isolados, ou seja, quando os sistemas não trocam nem matéria e energia com o
meio ambiente. Como viemos desenvolvendo até o momento, o ser humano é uma unidade
autopoiética de segunda ordem, definida em sua organização e cambiante em sua estrutura,
o que lhe confere o status de um “sistema aberto” e, conseqüentemente, sujeito à
diminuição da entropia. Mas se a entropia só diminui em sistemas que executam
continuamente trocas com meio, como ele pode ser auto-organizado? Como bem sabemos,
não pode haver “verdadeiramente” uma auto-organização, pois se considerarmos
etimologicamente este termo, segundo critérios lingüísticos mais rigorosos, incorreríamos
em uma conceituação falaciosa, já que todo sistema que se auto-organiza deve ser auto-
suficiente e, portanto, deve ser considerado um “sistema fechado” em uma circularidade

desenvolvimento da inteligência, seguramente ele não a reflete a partir de uma radicalidade ontologicamente
constitutiva.

158
tautológica. Todavia, na trilha de Maturana e Varela, Atlan (1992) faz a seguinte
observação:

“A série de acontecimentos que atuam sobre o sistema podem não ser organizadas;
trata-se de perturbações aleatórias, sem nenhuma relação causal com o tipo de
organização que aparecerá no sistema. Quando, sob efeito dessas perturbações
aleatórias, o sistema, em vez de ser destruído ou desorganizado, reage por um
aumento da complexidade e continua a funcionar, dizemos que ele é auto-
organizador (...) Em outras palavras, a propriedade de auto-organização parece
estar ligada à possibilidade de se servir de perturbações aleatórias, do ruído, para
produzir organização” (p. 139).

Atlan sugere que há uma “ingerência do observador” (Id., ibid., p. 140) quando se
trata de compreender os fenômenos que são aparentemente paradoxais, como aqueles que
aumentam a complexidade a partir da desordem ou, como citado acima, através do ruído109.
Em se tratando de estruturas moleculares, como as proteínas e o ADN, a complexidade só
pode aumentar quando uma certa dose de “ruído” interage na síntese molecular. Este seria,
segundo Atlan, o papel desempenhado pelas mutações no nível da evolução das espécies.
Também o prêmio Nobel de Química Ilya Prigogine (PRIGOGINE, 1996, p. 31), em sua
célebre teoria sobre as estruturas dissipativas em estados fora do equilíbrio, constatou em
laboratório, através dos “vórtices de Bérnard”, que “quando um sistema se afasta do
equilíbrio, assistimos ao surgimento de novos estados da matéria, cujas propriedades
contrastam marcadamente com os estados de equilíbrio” (p. 31).
O leitor menos inteirado com uma leitura transdisciplinar e, sobretudo, complexa do
desenvolvimento humano, pode estar a interrogar como todas essas leis e princípios que
explicam fenômenos da Física, Química e Biologia podem nos ajudar; como as
perturbações aleatórias podem produzir ordem em sistemas auto-organizados. Em se
tratando de fenômenos macroscópicos, ou seja, de eventos que se sucedem em nossa vida
cotidiana, podem ser observadas infindáveis manifestações. Como Henry Atlan (1992)

109
- Também podemos introduzir o seguinte comentário de Piaget (1996): “A abertura é pois o sistema de
trocas com o meio, mas isso em nada exclui o fechamento, no sentido de uma ordem cíclica e não linear. Este
fechamento cíclico e a abertura das trocas não se acham portanto no mesmo plano e podem ser conciliados da
seguinte maneira, inteiramente abstrata mas suficiente para a análise estrutural que quer conservar-se muito
geral” (p. 181). Também segundo Luhmann (1998) “cada auto-referência deve enfrentar o problema da
interrupção do círculo expressamente tautológico. A simples referência do si mesmo a si mesmo deve
enriquecer-se com um significado adicional, recrutado, por assim dizer, pelo círculo que só se significa a si
mesmo” (p. 414).

159
acrescentou, elas podem ser observadas não só “no desenvolvimento e no crescimento dos
organismos individuais, não apenas na evolução das espécies, mas também nos processos
de aprendizagem” (p. 141). Esta proposta de aprendizagem pelo “ruído” não seria absurda
e, muito menos estranha, se lembrássemos que a maior parte de nosso aprendizado na vida
é decorrente de situações “extracurriculares”. Uma outra versão deste tema também pode
ser encontrada no seguinte comentário, apresentado por Changeux110 (1991):

“A teoria proposta por uma epigênese por estabilização seletiva dos neurônios e
sinapses em desenvolvimento considera esta variabilidade. Constitui mesmo um de
seus grandes trunfos. O interesse do formalismo matemático introduzido a este
respeito foi precisamente demonstrar de maneira rigorosa que entradas diferentes
durante a aprendizagem podem provocar organizações conectivas e capacidade
funcionais neuronais igualmente diferentes, mas a mesma capacidade
comportamental, e isto, apesar do caráter determinista do modelo. Por outras
palavras, a experiência, que nunca é a mesma de um indivíduo para o outro,
conduz, de acordo com este esquema, a realizações comportamentais semelhantes a
partir de topologias neuronais e sinápticas diferentes (...). Logo, aprender é
estabilizar combinações sinápticas preestabelecidas e eliminar outras” (p. 248).

Seriam situações vividas através de eventos que levassem a “aprendizagens


inesperadas” e não-lineares (devemos remeter o leitor à experiência traumática de Pedro).
Também devemos argumentar que, de acordo com Changeux, mesmo aquelas situações
institucionalmente sistematizadas seriam passíveis de serem incorporadas de acordo com
uma sigularidade constitutiva e selecionadas por nossas contingências auto-organizadoras.
São os encontros e desencontros da vida, que em sua intrínseca aleatoriedade, nos
“desorganiza” e nos possibilita (ou não)111 novos arranjos cognitivos. Seguramente
devemos nos reportar ao aspecto construtivista desta e de outras formas de aprendizagens,
já que não podemos apreender o totalmente novo sem o estabelecimento de “pré-

110
- Devemos lembrar ao leitor que Changeux está mais alinhado às teses inatistas, como a gramática gerativa
de Chomsky, do que o construtivismo piagetiano. Todavia, ao defender a teoria de uma epigênese por
estabilização dos neurônios e sinapses, abre-se uma “zona dialogal” que merece maior aprofundamento
(CHANGEUX, 1991; DEHAENE-LAMBERTZ, G. & DEHAENE, S. 1997; QUARTZ, S. R. &
SEJNOWSKI, T. J. 1997).
111
- Não devemos desconsiderar as inúmeras possibilidades aleatórias de acoplamentos que levam ao
adoecimento do complexo sistema cognitivo. Este tema será devidamente aprofundado em etapas posteriores
de nossa pesquisa. Todavia, vejamos um comentário de Piaget (1996): “Não é preciso lembrar que esta
epigênese e estas regulações implicam uma interação indissociável e contínua com o meio, porque a
construção das estruturas exige alimentação, e se o organismo assimila sem cessar os alimentos energéticos
necessários às suas construções, a assimilação às estruturas internas encerra igualmente sem cessar a

160
conhecimentos” condizentes à estruturação de patamares operatórios psicogenéticos.
Devemos nos lembrar que o bebê, em seu contínuo processo de acoplamento no mundo,
organiza-se a si próprio e, organizando-se a si próprio, é que ele organiza seu mundo. Ao
novo deve-se somar o que chamamos de esquemas de ação ou, em outros termos, o que é
transponível, generalizável ou diferençável de uma situação à seguinte. O novo, para que
seja incorporado, deve possuir algo de comum às diversas repetições ou aplicações de
“antigas” ações. Mas, em última instância:

“Um certo grau de aleatoriedade é necessário para que haja aumento real do sistema
cognitivo, de tal modo que o que é aprendido e adquirido seja realmente novo, e
não uma simples repetição do que já é conhecido (...) A aquisição de novos
conhecimentos através da experiência é, portanto, um caso particular de aumento de
informação sob efeito do ruído” (ATLAN, 1992, p. 141).

Como podemos observar, esse princípio de “acaso organizacional” sugerido por Atlan
ou, em outros termos, de um contínuo processo de aquisição de ordem aos esquemas
cognitivos pela desordem oscilatória da vida, deve ser considerado em primeira instância ao
apresentarmos nossa visão do complexo desenvolvimento cognitivo humano.
Outra questão que deve ser abordada introdutoriamente refere-se ao controverso
conceito de “teleonomia”. O fato de o ser humano estar sempre a antecipar suas
experiências se deve, em parte, à sua necessidade de controle do ambiente. Este sempre foi
um excelente mecanismo de defesa e sobrevivência, já que nossa vontade se empenha em
direção a um objetivo que se deseja alcançar. Na verdade, este é o cerne conceitual do que
entendemos por “teleologia”. O conceito de teleologia nos chega através da filosofia e,
sobretudo, por Aristóteles (1988). Segundo este filósofo, seriam nos princípios que
encontraremos as causas e as definições do Ser. Em outros termos, a transitoriedade das
coisas se resume na passagem da potência ao ato, e será através de uma rede de
causalidades que, por exemplo, podemos ver o adulto em uma criança. Enfim, segundo
preceitos teleológicos, todo ser ativo é ordenado para um fim, já informado por sua
essência. Esta “ação misteriosa”, encontrada no finalismo teleológico e metafísico de
Aristóteles, foi substituída, na Biologia, “por um projeto seqüencial de estados os quais são
orientados para o futuro a partir da execução de um programa” (ATLAN, 1992, p. 24) e,

acomodação das últimas às situações favoráveis ou desfavoráveis do meio. No que a construção do fenótipo

161
como se espera, este programa seria determinado pelo código genético. Como já vimos,
Damásio e LeDoux discordam desta teoria totalitária assim como, especificamente,
Maturana e Varela. Estes autores nos informam que “noções teleonômicas” não seriam
necessárias para compreender a organização dos seres vivos. A finalidade ou o objetivo não
são aspectos da organização de qualquer máquina autopoiética. Tais noções devem ficar no
âmbito do observador e a teleonomia passa a ser somente um artifício para descrevê-lo.
Contudo, Maturana e Varela não discordam de que os fatores hereditários são elementos
que “disparam” (ou não) mudanças estruturais de acordo com o acoplamento estrutural.
Todavia, não se deve confundir organização autopoiética com hereditariedade, e este é um
ponto crucial112. Comumente, notamos que quando se quer falar de “características inatas”
recorre-se, com maior freqüência, a dados genéticos. Mas, segundo Maturana (1998):

“A estrutura inicial de um ser vivo não pode determinar suas características além do
momento inicial (...) um ser vivo é um ser vivo porque é um sistema constituído
como unidade em sua organização autopoiética, não porque esteja composto por
um tipo particular de moléculas” (p. 81).

Em outros termos, a “singularidade” não é explicada exclusivamente por fatores pré-


determinantes (genéticos), mas também por uma história ontogênica. Logo, como já
propomos, não seriam nem fatores ambientais nem fatores herdados que determinariam as
características dos seres vivos, já que as mudanças estruturais de qualquer organização
surgem no momento de suas histórias de interações. Os autores também denominam este
cruzamento enquanto uma epigênese. Vejamos um comentário:

“Nada ocorre em um ser vivo que sua constituição genética fundamental não
permita como uma possibilidade epigênica; também não ocorre nada em um ser
vivo se não se dá com ele uma história de interações na qual este se realize em uma
epigênese particular.” (MATURANA, 1998, p. 51).

não está inteiramente predeterminada é no genótipo que admite um sistema de trocas epigenéticas” (p. 99).
112
- Vejamos um comentário de Damásio (1996). “O genoma humano especifica com grande minúcia a
construção de nossos corpos, o que inclui o design geral do cérebro. Mas nem todos os circuitos se
desenvolvem ativamente e funcionam como se encontram estabelecidos os genes. Uma grande parte da rede e
circuitos do cérebro, em qualquer momento da vida adulta, é individual e única, refletindo fielmente a história
e as circunstâncias daquele organismos em particular” (p. 292).

162
Esta postura diante do processo de desenvolvimento dos seres humanos é coerente na
medida em que consideramos cada organização como “unidades individuadas” e que suas
interações com o meio serão demarcadas por suas possibilidades de manutenção de sua
organização e da qualidade e quantidade de mudanças estruturais. Realmente, seria
pretensão de qualquer observador pré-dizer o estado futuro de qualquer organização, já que
ele não tem a capacidade de prever quais seriam, qualitativa e quantitativamente falando,
as interações futuras de qualquer organização. A eliminação da teleonomia como aspecto
que define os sistemas viventes nos obriga a considerar a noção de “unidade autopoiética”
como questão central para a definição dos seres vivos. Portanto, a ontogenia é a expressão
da individualidade e de como esta se concretiza na estabilização da novidade ou, como
Atlan prefere, ancorada nos processos de utilização da desordem e do ruído.
Como o leitor pode suspeitar, ao se adotar uma visão epigenética do desenvolvimento
humano, desconsideramos qualquer explicação do funcionamento do sistema cognitivo-
afetivo que almeje compreendê-lo a partir de uma “leitura teleonômica”. Logo, se
aceitamos os fatores ambientais enquanto estímulos moduladores, e que são selecionados a
partir de um sistema que opera segundo uma clausura operacional, devemos aceitar o
princípio de acaso organizacional.

6.2.3 - Autopoiese e sistemas sociais

Em estudo anterior, buscamos demonstrar que o sistema nervoso opera enquanto um


“sistema fechado”, organizando as informações provindas do meio segundo seus critérios e
possibilidades adaptativas. Também nos referimos aos níveis de organização autopoiética,
que iriam das organizações unicelulares, passando pelos metacelulares e chegando, por fim,
às organizações de terceira ordem, as quais se referem aos acoplamentos entre organismos
possuidores de sistema nervoso. Estes acoplamentos de terceira ordem podem ser dos mais
variados níveis de complexidade mas - e isto é um ponto comum à diversidade de espécies
que compartilham deste intercâmbio - devem respeitar “a congruência de suas respectivas
derivas ontogênicas” (MATURANA & VARELA, 2002, p. 201). Aos nos referirmos à

163
organização humana, podemos considerar estes acoplamentos de terceira ordem enquanto
um fenômeno social. Então:

“O que é comum a todas essas diversidades de organizações de terceira ordem é


que quando se estabelecem acoplamentos, as unidades resultantes, embora sejam
transitórias, geram uma fenomenologia interna específica. Essa fenomenologia se
baseia no fato de que os organismos participantes satisfazem suas ontogenias
individuais principalmente por meios de seus acoplamentos mútuos, na rede de
interações recíprocas que formam ao constituir as unidades de terceira ordem” (Id.,
ibid., p. 214).

Decorrente de uma longa história de deriva filogenética, a linguagem vem a trazer


uma nova flexibilidade relacional à esfera humana. A linguagem irá oferecer os elementos
necessários para uma auto-reflexão que descreve e redescreve sucessivamente a si mesma.
A linguagem sempre ocupou papel central na estruturação do tecido social, e sem relações
sociais não há “entidade humana”. Denominamos enquanto “relações sociais” qualquer
intercâmbio estabelecido a partir da comunicação entre dois seres humanos ou mais, e este
comentário é tão óbvio que merece um exemplo à altura. O que seria de um bebê se fosse
abandonado em um quarto vazio e que fosse alimentado apenas por máquinas, não
recebendo mais nenhum outro estímulo lingüístico, afetivo e sensório? No que ele se
tornaria? Com toda certeza, não se tornaria um ser humano, caso nos refiramos à
impossibilidade de assimilar ontogênicamente a longa cadeia de construções sócio-
culturais, decorrente de milhares de anos de deriva filogenética. Ainda que dotado de todas
as estruturas neuro-anatômicas do homem contemporâneo, não estaria sujeito a corporificar
uma consciência de si ou, em outros termos, algum sentido de identidade, isto decorrente da
ausência de contato com outros humanos e com a cultura. Este é um exemplo drástico e
hipotético, mas poderíamos nos aproximar desta situação relatando um caso verídico e um
tanto bizarro.
Duas meninas indianas, residentes em uma aldeia bengali ao norte da Índia, viveram
experiências dramáticas113. Em 1922, foram resgatadas de uma família de lobos, que as

113
- Curiosamente, devemos fazer uma observação inicial: dramática para quem? Ao que pareceu, a situação
dramática foi vivida por elas ao serem retiradas à força de seu habitat. Este ponto é crucial enquanto uma boa
explicação de que os julgamentos provindos do observador, seja de primeira quanto de segunda ordem, estão
sempre de acordo com seus valores éticos e culturais e, em última instância, com seus critérios valorativos
auto-referenciados. Toda a dimensão “dramática” vivida pelas meninas não foi avaliada pela adaptação

164
criou sem nenhum contato com a civilização. Devido à criação lupina, estas crianças não
caminhavam em posição ereta, utilizando os membros superiores para se locomoverem de
quatro. Segundo os relatos daqueles que as resgataram, não possuíam nenhum tipo de
conduta humana e só comiam carne crua. A separação de sua família de lobos repercutiu
negativamente no comportamento e humor, levando a mais nova das meninas, com 5 anos,
a um quadro depressivo agudo e, por fim, à morte. A criança mais velha, então com 8 anos,
e que teve mais tempo de contato com humanos antes de se juntar à alcatéia, recuperou
alguns seus antigos hábitos, como andar sobre os dois pés e usar um vocabulário limitado
sem, no entanto, adquirir o uso da fala corrente. Este caso demonstra a fundamental
importância da cultura na formação de uma conduta propriamente humana114.
Bateson (1986) radicaliza, de certa forma, o conceito de epistemologia, pois sempre
que fazemos distinções, seja de que ordem for, estamos construindo teorias do
conhecimento. As explicações que estão de acordo com uma epistemologia construtivista
radical consideram que uma determinada estruturação ou grupo social admite um variado
espectro de racionalidades e objetividades. Referindo-se ao âmbito da produção científica,
o epistemológo Thomas Khun (1970) apresenta algumas reflexões que se aproximam de
uma postura construtivista. Ele sugeriu que nem a razão, seja em suas manifestações
inatistas ou empiristas, sustenta, de fato, as construções científicas. Para Kuhn, o

biológica, já que estavam em ótima saúde, mas sim por um contexto que extrapola a aceitação do homo
socius, que julgavam dramáticas tais situações de vida.
114
- Curiosamente, o comportamentalismo pode nos auxiliar a compreender um pouco mais sobre este ponto
básico do desenvolvimento filogenético. Na situação pavloviana, um estímulo conhecido (som) era associado
a uma resposta (salivar) em condições de reforço (recebimento de alimento). Skinner chamou de
comportamento respondente à resposta comportamental suscitada por um estímulo específico observável.
Todavia, chamou de comportamento operante a resposta que o organismo emitia aparentemente de modo
espontâneo. Isso não significava a ausência de um estímulo eliciador, mas tão somente que ele não era, à
primeira vista, detectável. Outra diferença com o comportamento respondente era que o operante operava no
ambiente do organismo. Na caixa de Skinner, o rato, privado de alimento, era deixado livre para explorar os
vários elementos do ambiente até que ao produzir uma resposta diante de um deles (por exemplo: pressionar
uma barra), era reforçado recebendo alimento. Cada vez que emitisse esta resposta era, invariavelmente,
reforçado, fato que tanto aumentava a freqüência da resposta selecionada previamente pelo experimentador
(pressionar a barra) como diminuía o tempo de reação do rato. O que queremos chamar a atenção é para o fato
de que um comportamento operante é condizente com a evolução filogenética daquele que se submete aos
estímulos. Skinner esperava pacientemente o momento oportuno para emitir o reforço e alegava que o
comportamento operante deve estar em acordo com a evolução de cada espécie. Um orangotango, por
exemplo, pode operar sobre o ambiente de forma muito mais complexa que um rato. Em termos gerais, uma
“menina lobo” pode “humanizar-se”, mas um lobo não pode. Este fator óbvio está de acordo com os
diferentes níveis de evolução dos humanos e dos lobos, e nos remete inexoravelmente para fatores evolutivos
do sistema nervoso.

165
conhecimento científico se faz e se sustenta, preponderantemente, no seio destas
comunidades de pesquisadores, onde determinado grupo “acredita” que suas criações estão
de acordo com a confiança que inspiram na sociedade. Logo, a ciência não é o
desvelamento da realidade, mas um conjunto de “leis” que devem se adequar às crenças de
um grupo e de uma pragmática social. Assim como no construtivismo radical,
argumentamos que a realidade nada mais pode ser, em último sentido, do que meras
construções daqueles que a observam. Também como acrescenta Niklas Luhmann (1996):

“Se é possível deste modo suportar a contingência de todas as determinações e


traduzi-la para as relações de observação de segunda ordem, isto, em verdade,
significa: abdicar de fórmulas conclusivas que procuram determinar o mundo no
mundo. Não existe mais então nenhuma ‘sabedoria’, cuja autenticidade se legitime
pela conduta de vida do sábio. E todas as concepções sobre um sentido normativo
de racionalidade precisam ser abandonadas ou respectivamente tratadas como
meros ‘procedimentos’” (p. 319).

Todo conhecimento do mundo é um conhecimento auto-referente e, logo, uma


construção decorrente de experiências sensórias, motoras, lingüísticas e afetivas115; nenhum
ser vivo pode desprezar a “si mesmo” no ato de conhecer. Aceitando as colocações de
Maturana e Varela (1990), onde “todo o fazer é conhecer e todo o conhecer é fazer” (p. 21),
consideramos que a construção de nossa identidade pessoal dará forma às construções e ao
acesso à realidade, sendo que ao se apresentar qualquer consideração sobre o mundo,
consistirá sempre numa construção que dirá tanto sobre o mundo como sobre nossa
identidade pessoal. Devemos considerar que nosso sentido de identidade se estabelece em
um universo de possibilidades relacionais que, por um lado, não pode se reduzir ao
biológico, embora este domínio seja necessário para que o relacional possa operar.
Como já nos referimos, a linguagem vem a inaugurar uma dimensão sui generis no
complexo processo de desenvolvimento cognitivo-afetivo, demarcando para muitos autores
o verdadeiro ingresso na “humanidade”. As diversas distinções que promovemos em nosso
cotidiano são provindas de nossa evolução sócio-linguística, imersas em coordenações
condutais de “terceira ordem” (sociais). Estas coordenações tornaram-se cada vez mais
complexas na medida em que se ampliou vertiginosamente o leque semântico e, por sua

166
vez, os sentidos de valoração de conduta que demarca nossas fronteiras psico-sociais.
Mesmo assim, ainda que emersas de uma unidade biológica, a linguagem não poder ser
reduzida a esta, já que é um produto sócio-cultural116. Naturalmente, a complexidade
linguística exige um nível de sustentação intrinsecamente autopoiético mas, como
acrescenta Francisco Texeira (1999):

“Para Maturana, devem distinguir-se nos sistemas autopoiéticos de segunda ordem


(compostos), dois domínios diferenciados e não intersectáveis de descrição: os
domínios da fisiologia e da conduta. O domínio da fisiologia diz respeito ao
domínio sistêmico estrutural, próprio dos vários componentes da unidade; já o
domínio da conduta diz respeito ao domínio fenomênico da unidade autopoiética,
que é especificado pelas interações da unidade composta com o ambiente, enquanto
unidade simples, quer dizer, percebida e entendida como uma totalidade: é o
domínio dos fenômenos percebidos como comportamentais, do ponto de vista do
observador externo à estrutura do sistema. Os dois domínios, como já vimos, os
domínios da fisiologia e da conduta, ou os pontos de vista do sistema e do
observador, não podem ser confundidos, sob perigo de ocorrerem nefastas
confusões epistemológicas” (p. 64).

As operações executadas pelos organismos não devem ser colocadas no mesmo plano
das descrições de condutas. Maturana e Varela recorrem a algumas figuras de linguagem
para explicitar este ponto. Imagine um ser humano, indiferente o gênero, o qual tenha sido
criado dentro de um submarino. Suas únicas referências com o mundo externo seriam feitas
por instrumentos. Ao emergir com o submarino, evita qualquer obstáculo segundo seus
referenciais computadorizados. Agora, imaginemos um curioso observador na praia,
maravilhado pela destreza do intrépido capitão (é assim que o observador resolveu nomeá-
lo). Ao ver o submarino na superfície, eles estabelecem um breve diálogo:
- Belas manobras, capitão. O senhor(a) conseguiu evitar todos os recifes e rochedos.
- Bem, em primeiro lugar, o que significa ser um capitão? E o que você quer dizer
com recifes e rochedos? Eu apenas acionei alavancas e fiquei atento ao computador!
Esta breve história revela alguns elementos fundamentais para a compreensão do
comportamento social. Em um primeiro momento, temos uma irresistível tendência a
atribuir significados às condutas alheias. Para o observador na praia, o submarino executava

115
- Ainda que a linguagem surja por último, devemos considerar estes fatores simultaneamente quanto ao
desenvolvimento cognitivo-afetivo. Este é um dos lemas construtivistas que adotamos.
116
- Pensamos ter esclarecido este ponto ao relatar o caso das meninas de Bengali.

167
certas manobras que lhes eram evidentes: emergir evitando os rochedos e recifes. Mas nos
damos conta, de acordo com a resposta do “suposto” capitão, que estas atribuições são
externas ao “seu” operar. Para este hipotético ser que “habita\é” o submarino não existe
mundo externo e muito menos rochedos e recifes.
Em muitas situações cotidianas, as mesmas situações que vivemos diariamente,
ocorrem acionamentos mútuos e semanticamente compreensíveis de mudanças estruturais
segundo aquilo que nossa história ontogênica “permite” ocorrer. Estas interações
inteligíveis demonstram nossas possibilidades de acoplamentos uma vez que, desse modo,
se produz uma “co-deriva” que respeita e reforça a manutenção das correspondentes
organizações autopoiéticas. Então, “a linguagem como um tipo especial de operação em
coordenações de ações requer a neurofisiologia dos participantes, porém, não é um
fenômeno neurofisiológico” (MATURANA & VARELA, 1997, p. 50). A linguagem deve
ser compreendida enquanto um fenômeno que se estabelece pelos fenômenos condutuais, e
que não deve ser tomada como uma ferramenta que transmite conteúdos determinados.
Tanto os sistemas sociais quanto os individuais estão sujeitos à recursividade
lingüística. Nesta circularidade, seriam estabelecidas as diversas possibilidades de
acoplamentos estruturais. Sem a recursividade, a linguagem, logo, a comunicação, corre um
sério risco: estagnação. E qual seria um dos mais contundentes meios de se produzir esta
recursividade lingüística? Bem, apostamos na afetividade em sua mais ampla conceituação,
já que coordenações lingüísticas envolvem ações encarnadas ou, como Maturana (1996)
acrescenta, “as interações na linguagem não têm lugar num domínio de abstrações, pelo
contrário, têm lugar no concreto do corpo físico dos participantes” (p. 146).
Como Damásio (2000) acrescenta, as emoções respondem “por modificações
profundas, tanto na paisagem corporal, como na paisagem cerebral” (p. 73). Todos os
acoplamentos com o ambiente que inibem a capacidade pulsátil do organismo devem ser
vistos, analogamente, como estímulos que restringem uma “natural”117 possibilidade de
expansão da vitalidade afetiva. Quando mudamos de emoção devemos esperar mudanças
condutuais e lingüísticas e, conseqüentemente, as distinções constitutivas do momento
devem oscilar, ou seja, a realidade da cena, do “aqui e agora”, vão ser constitutivamente

117
- O que significa para nós a palavra “natural”? Talvez possamos considerar o desenvolvimento cognitivo-
afetivo próximo a um desdobramento natural na medida que determinada organização autopoiética sofre
menos perturbações nocivas do ambiente.

168
diferentes das anteriores. Como acrescenta Maturana (1996), o processo de linguajar flui
em “coordenações de ações dos seres humanos num meio de emoções que constitui a
possibilidade operacional para o seu acontecer e especifica os domínios consensuais nos
quais este tem lugar” (p. 86).
Desta forma, o próprio processo reflexivo, assim considerado enquanto “puramente”
racional, deve ser situado a partir de um panorama afetivo. Caso retomemos as colocações
de Kuhn, quando nos referimos às “comunidades científicas”, também estamos procedendo
a partir de coerências operacionais “afetivamente” consensuais, dando origem ao que
Maturana denomina enquanto multiverso, ou seja, de acordo com a coerência operacional
dos observadores. Neste contexto, como já foi apresentado, devemos nos referir ao domínio
das ontologias constitutivas.
A teoria da autopoiese de Maturana e Varela contribuiu determinantemente para o
enriquecimento do paradigma construtivista. Também podemos dizer que suas reflexões
sobre os acoplamentos de terceira ordem e dos desdobramentos filogenéticos da linguagem
ofereceram substanciais elementos que reforçam a importância sistêmica para compreensão
da complexidade indivíduo-meio.

6.2.4 – Emoção, cognição e singularidade – revisitando Piaget e a fase


sensório-motora a partir do construtivismo radical

6.2.4.1 – Cognição incorporada - Fundamentações para uma compreensão


da singularidade sensório-motora

169
"Por falta de um prego, perdeu-se a ferradura; por falta de uma ferradura, perdeu-se
um cavalo; por falta do cavalo, perdeu-se o cavaleiro; por falta do cavaleiro, perdeu-se a
batalha; por falta da batalha, perdeu-se o reino!" Este provérbio medieval é geralmente
usada, contemporaneamente, para retratar um dos princípios elementares da teoria do caos.
Neste contexto, pequenas perturbações, as quais se manifestam em condições iniciais,
podem produzir, a partir de múltiplas retroalimentações e bifurcações do sistema, eventos
em larga escala. Na atualidade, uma outra metáfora, apresentada por Edward Lorenz
(1996), seria usada com mais freqüência: o simples bater de asas de uma borboleta, em
algum recanto do planeta, pode produzir catástrofes naturais em algum outro ponto. A
ciência clássica, arregimentada por Galileu Galilei e consolidada magnanimente por Isaac
Newton, se preocupou em adequar, sempre que possível, os eventos naturais em sistemas
fechados, para poder aplicar leis mecânicas que privilegiassem a previsibilidade do
fenômeno em detrimento das não-linearidades. Além disso, sistemas naturais que não
pudessem ser compreendidos por leis mecânicas, não mereciam atenção da comunidade
científica que se formou ao redor deste paradigma. A tradição filosófica ocidental sempre
se preocupou em aparar estas “arestas” epistemico-ontológicas no intuito de angariar
previsibilidade e, conseqüentemente, “segurança cognitiva” na observação dos fenômenos a
serem explicados. Seria inconcebível compreender os eventos do mundo, sejam eles
naturais, biológicos, sócio-políticos ou psicológicos, através de “micro leituras regionais”,
singulares, e sem uma “fundação cognitiva” objetivamente sólida. Referindo-se à
compreensão dos processos cognitivos, Varela, Thompson e Rosch (2003) chamam nossa
atenção para uma arraigada “ansiedade cartesiana” que subjaz à cultura ocidental, alegando
que “ou se têm uma base fixa e estável para o conhecimento, um ponto onde o
conhecimento se inicia, se baseia e se apóia, ou não se pode escapar de um certo tipo de
escuridão, caos e confusão”(p. 149).
Ora, caso retomemos o provérbio citado, bem poderíamos continuar a desdobrá-lo,
apresentando outras variáveis para se compreender como o pobre cavalo que “perdeu” o
prego da ferradura e atrasou o cavaleiro levou ao fatídico desastre do desconhecido reino.
Poderíamos questionar, hipoteticamente, qual foi o infeliz ferreiro que colocou a ferradura
e, deste ponto, iniciar o provérbio. Ou poderíamos conjeturar que o cavaleiro estava com

170
pressa e, por isso, não permitiu que o ferreiro executasse adequadamente seu ofício.
Poderíamos ficar neste torturante exercício ad nauseam, sem chegar a qualquer conclusão,
já que este procedimento é, por si só, o vicioso desejo de se instaurar lineridade e, portanto,
causalidade mecânica, a um paradigma que deve ser refletido por outras vias. Para isso,
devemos ter em mente, como já propusemos em segmentos anteriores, que a estrutura
inicial de um ser vivo não pode determinar suas características além do momento inicial
(escolhido arbitrariamente?) e que o mundo seria moldado sempre de acordo com os tipos
de ações, das mais “simples” às mais “complexas”, às quais nos engajamos momento a
momento.
Ainda não se sabe, em todos os detalhes, como o cérebro consegue transformar
padrões neurais em padrões mentais. Mas à semelhança de Damásio (2000), Johnson
(1992), Lakoff (1987), Maturana (2001), Rorty (1989), Searle (1995), Varella, Thompson e
Rosh (1993), concordamos com a tese de que o cérebro não registra ou espelha
simplesmente, o mundo externo como uma fotografia tridimensional, mas constrói uma
representação interna dos eventos físicos em acordo com experiências sensórias e motoras.
Neste contexto, quando elaboramos um conhecimento, estamos construindo um mundo
singularizado que surge em parceria com o ambiente, ou, conforme Najmanovich (1997), é
um mundo que convocamos a ser em nossa experiência interativa com o que está fora, mas
não separado de nós.
Ao propormos que o desenvolvimento afetivo-cognitivo, inicialmente sensório-motor,
está imerso em uma singularidade ontológica constitutiva, questionamos os tradicionais
conceitos de organização dos seres vivos que encontram fundamentação epistemológica nos
alicerces culturais promulgados por uma modernidade científica. Neste contexto, o conceito
de organização é sustentado pela crença de que a estrutura e o funcionamento do sistema
possuem padrões de formação e de evolução definidos, os quais, por sua vez, confeririam
identidade ao sistema (D’OTTAVIANO & BRESCIANI, 2004, p. 17). Por outro lado, ao
aceitarmos que os sistemas vivos se definem por uma singularidade constitutiva, os
consideramos sujeitos a processos auto-organizadores, já que não possuem padrões de
formação e de evolução rigidamente predeterminados. Sistemas auto-organizados estão
sujeitos à constante emergência de novos estados, como se ao abrirmos determinada porta
se inaugurasse um novo horizonte de portas as quais, por sua vez, levariam a outro

171
horizonte de portas. Esta metáfora, um tanto frenética, apenas retrata um sistema dinâmico
afastado do equilíbrio ou, mais sucintamente, um estado de comportamento caótico. Nesta
linha, Varela, Thompson e Rosch (2003) nos oferecem razoáveis hipóteses de que não
devemos mais considerar o funcionamento do sistema nervoso como um processador de
informações organizado por um aparato de imputs-outputs. Este sistema seria mais
adequado para explicar o funcionamento de máquinas triviais, como um computador, aos
quais recebem estímulos pelo teclado e o mouse (imputs) e se comportam de acordo com o
programa executado (output). Sendo assim, os seres humanos, enquanto organizações vivas
e, portanto, não triviais, se aproximam muito mais de leituras que o compreendam enquanto
sistemas que funcionam através de uma rede emergente, que opera de acordo com uma
clausura operacional e, por isso, goza de uma autonomia constitutiva. Como um
aprofundamento deste tema e como ponto de apoio para que nos aproximemos de nossa
proposta de compreender a etapa sensório-motora imersa em uma singularidade
constitutiva, apresentaremos resumidamente um minucioso estudo sobre as cores como um
valoroso ponto de partida para se compreender a tese de uma “mente incorporada”.
De acordo com Varela, Thompson e Rosch (2003), o estudo das cores oferece um
sólido suporte neurocientífico por ter sido exaustivamente estudada por neurocientistas,
psicólogos, lingüistas, filósofos e cientistas da IA, além de ter uma significação perceptiva
imediata na vida de qualquer ser humano. Em primeiro lugar devemos perguntar: como as
cores aparecem? Inicialmente foi detectado que existe três canais de cores no sistema
visual:

“um canal é acromático e indica diferenças no brilho. Os outros dois são cromáticos
e indicam diferenças nos matizes (...) Na retina existe três mosaicos diferentes, mas
entremesclados, de células cone, cujas curvas de absorção de fotopigmentos
sobrepostos têm seu pico em torno de 560, 530 e 440 manômetros,
respectivamente. Esses três mosaicos de cones constituem os chamados receptores
de onda longa, onda média e onda curta. Os processos excitatórios e inibitórios das
células pós-receptoras possibilitam que os sinais desses receptores sejam
comparados por acréscimo e-ou subtração” (Id., Ibid., p. 164).

Sucintamente, observamos que destas relações psicofísicas surgem as cores. Agora


deveremos fazer a próxima pergunta: as cores são atributos percebidos das coisas do
mundo? Inicialmente, podemos deduzir, com ajuda dos autores, que se vemos uma cor

172
específica, há uma determinada quantidade de luz incidindo em uma determinada área.
Caso não consigamos ver o verde, por exemplo, gerado pela diferença entre os sinais
receptores de onda longa e média que forma o canal vermelho-verde, nossa percepção não
estaria funcionando adequadamente. Todavia, como os autores acrescentam, “se de fato
medirmos a luz refletida a nossa volta, descobriremos que simplesmente não existe uma
relação entre o fluxo de luz de vários comprimentos de onda e as cores que vemos nas
diferentes áreas” (Id., ibid., p. 165). As cores poderão manter esta coerência psicofísica se
forem observadas isoladamente. Todavia, em cenas complexas, como o próprio mundo que
se desvela aos nossos olhos, o verde continuará a ser verde mesmo que refletir mais luz de
ondas longas e curtas do que ondas médias. Este independência entre luz e cor se deve a
dois fenômenos:

Constância aproximada das cores – apesar das grandes mudanças de iluminação, as


cores permanecem constantes.
Contraste simultâneo das cores – duas áreas que refletem a luz da mesma composição
de espectro podem ter cores diferentes, dependendo do meio onde ela está localizada.

Logo, como Varela, Thompson e Rosch (2003) acrescentam:

“Esses dois fenômenos nos levam a concluir que não podemos considerar nossa
experiência de cores como um atributo das coisas do mundo, apelando
simplesmente para a intensidade e a composição do comprimento de onda da luz
refletida por uma área. Em vez disso, precisamos considerar os processo
complexos, e apenas parcialmente compreendidos, da comparação cooperativa
entre os múltiplos conjuntos de neurônios no cérebro, que atribuem cores a objetos
de acordo com os estados globais emergentes que eles alcançam dada uma imagem
retiniana” (p. 166).

As cores também não são percebidas independentemente de outros fatores


perceptivos. Vejamos uma outra citação, apresentada de Johnson (1992), sobre um
intrigante comentário do pintor Kandinsky:

“Se dois círculos são desenhados e pintados respectivamente de amarelo e azul, um


breve exame irá revelar no amarelo um movimento de propagação para fora do
centro, e uma perceptível aproximação do espectador. O azul, por outro lado,
move-se para dentro de si mesmo, como uma lesma recuando para dentro de sua

173
concha, e afasta-se do expectador. O olho sente-se atormentado com o primeiro
círculo, enquanto é absorvido para dentro do segundo” (p. 84)

Como argumenta Johnson (1992), “o movimento se refere a estruturas em nossa


interação perceptiva nas quais formamos imagens unificadas e estabelecemos relações entre
vários elementos da obra” (p. 84). De acordo com Mesulan (1998), o sistema visual
humano não captura uma fotografia da realidade no cérebro, mas representações no lobo
occiptal que se construíram a partir de transduções analógicas e digitais ao longo do trajeto
subcortical e cortical da imagem visual. Logo, emoções e motivações modulam o impacto
neural dos eventos sensoriais de uma maneira que reflete o valor subjetivo desses eventos
para o indivíduo. Percebemos que as cores, associadas a outras modalidades perceptivas
como forma, propriedades de superfície, relações espaciais e de movimentos
tridimensionais, além de outros fatores não visuais como nossa intencionalidade afetiva,
sons, odores, tato e paladar, trabalham de tal maneira que nos ofereçem uma aproximação
coerente de um único objeto. Devemos ter em mente que estas diferentes modalidades
perceptivas emergem de sub-redes neurológicas concorrentes mas que, em última instância,
trabalham de forma que nos propiciem uma experiência unificada. Este “produto
perceptivo” decorre de ações construtivistas encarnadas e, de acordo com Varela,
Thompson e Rosch (2003), “percepção e ação, sensório e motor, estão ligados como
padrões sucessivamente emergentes e mutuamente seletivos” (p. 168). Um outro ponto de
considerável relevância, o qual não aprofundaremos, refere-se aos aspectos culturais e
lingüísticos que as cores assumem nas diversas culturas118. A título ilustrativo, considere
uma comunidade indígena que vive no interior da Amazônia (ainda preservada), cercada
pelos mais diferentes matizes de verde, e de uma comunidade de tuaregues, que vivem no
deserto do Saara, “cercados” pelo azul do céu e pelas diversas tonalidades de “areia”. Estes
fatores apontam, mais uma vez, para a natureza sócio-cultural e geográfica dos
acoplamentos estruturais enquanto um importante norteador dos mecanismos de construção
cognitiva.
Como já propusemos em outro segmento de nosso estudo, caminhamos no “fio da
navalha” cognitiva. Não consideramos que o mundo se impõe por categorias pré
determinadas, as quais devem ser recuperadas “adequadamente” pelo nosso sistema

118
- Para um aprofundamento deste tópico ver: Bret Berlim e Paul Kay (1969).

174
perceptivo, e tampouco consideremos que nosso sistema cognitivo projeta no mundo suas
“leis internas”. Por outro lado, consideramos que a experiência e o aparato neuro-cognitivo
se especificam mutuamente, o que aproxima, como já abordamos, epistemologia e
ontologia constitutiva. Nos dizeres do construtivismo radical, ser e conhecer se
retroalimentam em um “círculo virtuoso”. Neste ponto, acreditamos estarmos
razoavelmente embasados para compreender como a fase sensório-motora é, em última
instância, uma construção intrinsecamente singular.

6.2.4.2 - Revisitando Piaget e a fase sensório-motora a partir do


construtivismo radical

Como já sugerimos, Piaget não se “preocupou” em compreender o desenvolvimento


psicogenético humano enfatizando a singularidade deste processo. Ainda que não
desconsiderasse este fator, não o relevou enquanto norteador de sua pesquisa. Sendo assim,
todos nós, enquanto participantes de uma “mesma” humanidade, deveríamos experimentar
o desenvolvimento de nossas habilidades cognitivas de forma “inexoravelmente” herdada e
sendo desdobrada em três estágios psicogenéticos sucessivamente interconectados e
alicerçados em invariantes funcionais119. Ora, não nos esqueçamos da base epistemológica
kantiana que “assombra” a obra de Piaget. Todavia, não discordamos em absoluto de que o
desenvolvimento afetivo-cognitivo deve respeitar fatores estruturais que constituem o
sistema nervoso e sensorial. Decorrente de um complexo processo evolutivo filogenético, a
hereditariedade demarcará as possibilidades de nossas construções mais fundamentais.
Neste sentido, as aquisições sensório-motoras, simbólico-concretas e operatório-formais
devem ser consonantes a esta estruturação psicogenética. Mas será que podemos dizer que
este intricado processo ontogenético é experimentado, fundamentalmente, através de uma
singularidade constitutiva?

119
- Não devemos desconsiderar as valorosas contribuições de Vygotsky e Luria (1996), as quais
“problematizaram” a compreensão deste complexo processo de desenvolvimento humano e, portanto,
acrescentando importantes elementos que relevavam a vital importância do contexto sócio-cultural na
construção deste processo.

175
De acordo com Varela, Thompson e Rosch (2003, p.177), por ação incorporada
devem ser considerados dois pontos: “primeiro, que a cognição depende dos tipos de
experiência decorrentes de se ter um corpo com várias capacidades sensório-motoras, e
segundo, que essas capacidades sensório-motoras individuais estão, elas mesmas,
embutidas em um contexto biológico, psicológico e cultural mais abrangente”. Maturana
(1998) também parece estar certo de que “toda conduta em um organismo que envolve seu
sistema nervoso surge nele como expressão de sua dinâmica de correlações sensomotoras”
(p. 39). De certa forma, aqui se justifica o fato de nos preocuparmos em “recortar” a fase
sensório-motora das pesquisas de Piaget e, neste sentido, ultrapassar sua contextualização
conceitual propondo novos horizontes de sentido. Mesmo assim, não nos esqueçamos que
Piaget ressaltou o aspecto construtivista das assimilações, acomodações e adaptações dos
esquemas de ação, os quais sofreriam gradativas transformações qualitativas. Segundo o
autor, estes esquemas de ação, a princípio sensório-motores, seriam as plataformas de
outras construções as quais dariam seguimento aos estágios simbólico-concreto e
operatório-formal. Todavia, o que queremos enfatizar neste momento é: a ação sensório-
motora é fundamentalmente inseparável da cognição em todo o ciclo vital. Maurice
Merlau-Ponty (1971), um dos maiores expoentes da Filosofia do século XX, foi veemente
em argumentar que a experiência do corpo tem na motricidade a sua principal referência.

“a motricidade não é uma serva da consciência, que transporta o corpo ao ponto do


espaço que nós previamente representamos (...) A motricidade é a esfera primária
em que em primeiro lugar se engendra o sentido de todas as significações no
domínio do espaço representado” (p. 193 e 197).

Ao adquirirmos a capacidade de manipular símbolos ou de realizarmos as mais


prodigiosas abstrações, devemos ter em mente que este “espetáculo humano” está imerso
em ações cotidianas, encarnadas em corpos repletos de sensações viscerais, desejos,
intenções e emoções. Este espetáculo simbólico só terá “sentido”120 se for vivido, atuado,
encenado. Como Cândido e Piqueira (2002) acrescentam, “para que haja sentido, um
sistema de signos não basta; é necessário um corpo, em que o gesto e o afeto estejam

120
- Alertamos o leitor para a complexidade semântica deste termo. Citemos algumas e, por sinal, aceitamos a
todas. Vejamos: SENTIDOS – referindo aos cinco órgãos dos sentidos; SENTIDOS – enquanto compreensão
lingüística, de significação; SENTIDOS – orientação no tempo e no espaço; SENTIDOS – enquanto rede de
emoções-afetos que “sentimos” ao estarmos incorporados na experiência vivida.

176
intimamente ligados” (p. 679). O leitor poderia estar argumentando: Ora, tudo isto é óbvio!
Concordamos plenamente com tal reflexão. Apenas ficamos intrigados como algo tão óbvio
passou desapercebido para tantos estudiosos do desenvolvimento humano e, ao que tudo
indica, ainda continua desapercebido121.
Em uma primeira aproximação para a compreensão da singularidade sensório-motora,
a qual percorrerá a estruturação de todos os atos sensórios e motores, devemos aceitar que
os fatores organizadores serão condizentes à complexidade do organismo (genótipo), assim
como da complexidade dos inúmeros fatores que se apresentam no ambiente. Neste sentido,
os esforços auto-organizadores serão condizentes a um processo epigenético. Podemos
então considerar, nos dizeres de Maturana e Varela, que a história auto-organizadora de
cada ser humano é um retrato de sua ontogênese, e a fase sensório-motora deverá ser
compreendida segundo estes parâmetros epistêmico-ontológicos.
A abordagem atuacionista preza uma ação incorporada e desconsidera a idéia de que
os processos cognitivos “recuperam” imagens fixas e predeterminadas do mundo. Como
Varela, Thompson e Rosch (2003) acrescentam, “as estruturas cognitivas emergem de
padrões sensório-motores recorrentes que possibilitam à ação ser respectivamente
orientada” (p. 177). Neste contexto, a localidade das ações, do ser em situação, demarcará
os limites de suas construções. Como Merleau-Ponty (1975) já havia antecipado:

“a forma do estimulador é criada pelo próprio organismo, por sua maneira própria
de se oferecer às ações de fora. Sem dúvida, para poder subsistir, ele precisa
encontrar ao seu redor um certo número de agentes físicos e químicos. Mas é o
próprio organismo – segundo a natureza adequada de seus receptores, segundo os
limiares de seus centros nervosos e segundo os movimentos dos órgãos. O meio
(Umwelt) se destaca no mundo segundo o ser do organismo, – estando claro que
um organismo não pode existir, salvo se ele conseguir encontrar no mundo um
ambiente adequado. Seria um teclado que se move a si mesmo, de maneira a
oferecer – e segundo ritmos variáveis – esta ou aquela de suas teclas à ação, em si
mesma monótona, de um martelo exterior” (p. 38).

121
- Certa vez na PUC-SP, ao participar de um curso sobre as obras de alguns psicanalistas não-alinhados
(especificamente Balint), foi ressaltada a atenção que este autor dedicou aos “fatores viscerais” do
desenvolvimento humano, especificamente na fase oral, refletindo-se extensamente sobre o conceito de “falha
básica”. Quando questionei o professor se Balint se aproximava fisicamente de seus pacientes, no intuito de
“suprir” de fato, na transferência, os preciosos e edificantes estímulos sensoriais não vividos por seus
pacientes na tenra idade, tive como resposta, em tom surpreso e denotando a obviedade da questão, que na
psicanálise não existe tal aproximação entre analista e analisando.

177
Um exemplo clássico desta abordagem atuacionista também pode ser apreendido
pelas palavras lapidares de Alfred Korzybski (1948): o mapa não é o território que ele
representa. A lei da individualidade de Korzybski afirma que duas pessoas, ou situações, ou
estágios do processo não são as mesmas em todos os detalhes. Korzybski observou que nós
temos menos palavras e conceitos do que experiências únicas, e isso tende a conduzir para a
identificação ou “confusão” de duas ou mais situações (o que é conhecido como
“generalização” no metamodelo). A palavra “gato”, por exemplo, é comumente aplicada a
milhões de animais individuais diferentes, para o “mesmo” animal em diferentes épocas da
sua vida, para as nossas imagens mentais, para ilustrações e fotografias, metaforicamente
para o ser humano (“um hep-cat”), e mesmo para as letras combinadas g-a-t-o. Assim,
quando alguém usa o termo “gato”, não está claro se está se referindo a um animal de
quatro pernas, uma palavra de quatro letras ou um hominídeo de duas pernas. Também
podemos alegar que ao se estudar um determinado mapa rodoviário, o qual nos instrui por
seu conjunto de representações gráficas como chegar a determinado destino, ele não nos
revelará, em hipótese alguma, como percorreremos determinado trajeto. De forma alguma o
mapa revelará em quantos buracos cairemos (nos referimos a uma estrada brasileira), ou o
que ou quem encontraremos na estrada, ou com quantos veículos cruzaremos, ou quantas
árvores avistaremos, ou quais os estados afetivos que experimentaremos ao entrar em
contato com todas estas variáveis. Acima de tudo, o mapa não irá se referir à forma como
foi construído “nosso proceder” em estradas (territórios). Não temos a intenção de desfazer
da utilidade destas noções básicas de orientação, já que as palavras, enquanto signos
lingüísticos, ocupam este mesmo lugar. Mas devemos colocá-las em seus devidos lugares,
caso nos refiramos à complexidade semântica e experiencial que nos envolve.
Segundo Maturana (1998), a percepção não é a captação de uma realidade
independente do observador, e o fenômeno perceptivo não pode ser distinguido tão
prontamente do que se denomina por “ilusório”, já que ambos são configurados pela
conduta do organismo. Em acordo com estas premissas, Umberto Eco (2003) acrescenta
que os textos ficcionais, à diferença do mundo e ainda quando ambíguos, revelam uma
margem considerável de certeza, conduzindo-nos a um paradoxo muito interessante: a
ficção “desrealiza” o real para criar um “novo” real mais seguro, portanto “mais real”, do
que aquele que se encontrava no ponto de partida. Ao dedicarmos atenção especial (de

178
segunda ordem) à nossa vida cotidiana, tantas vezes a “ficção” se mostrará mais apta a nos
aproximar do que chamamos de real. Imaginemos uma cena psicodramática, onde os atores
e os objetos apenas “representam” situações reais e que, em muitos contextos, são apenas
ressonâncias simbólicas distantes de algum drama vivido. Em muitas destas cenas
“artificiais”, vemos o protagonista se comover profundamente e até mesmo presenciamos
uma profundidade afetiva a qual não foi vivenciada na cena real relacionada. Quando, por
exemplo, não podemos realizar o luto, isto é, tornar real esta morte por ainda não se
suportar a realizar a própria realidade, o personagem dramático o qual é incorporado em
outro momento, pode suspender toda a descrença prévia para que possamos realizar a dor.
Ao aceitarmos que nossas representações do mundo são construções derivadas de
nossos acoplamentos estruturais, seria plenamente coerente considerarmos a seguinte
experiência enquanto via explicativa de uma “cognição incorporada”: Held e Hein (1963) e
Held (1965) tomaram dois grupos de gatinhos e os criaram na escuridão, sendo que a
exposição à luz era em condições controladas. Um primeiro grupo de animais poderia
circular quase que normalmente. Todavia, foi atrelado em cada um deles um pequeno
“reboque”, sendo que cada gatinho do primeiro grupo rebocava um gatinho do segundo
grupo. Os dois grupos experimentavam a “mesma” experiência visual, mas o segundo
grupo, como vimos, era inteiramente controlado motoramente pelo primeiro grupo. Depois
de algumas semanas, quando foram expostos à luz em condições regulares e receberam
autonomia de movimento, os gatinhos do primeiro grupo comportavam-se com muito mais
desenvoltura sensório-perceptiva do que os gatinhos que tinham sido carregados. Estes
pareciam que estavam “cegos”, já que estavam trombando constantemente em objetos,
além de não possuírem a firmeza nos membros, como os gatinhos do primeiro grupo
possuíam. O que podemos considerar desta experiência, de acordo com os pressupostos de
uma teoria cognitiva incorporada, é a idéia de que “ver o mundo” não consiste apenas em
extrair traços visuais, mas guiar visualmente uma ação sensório-motora dirigida a eles. Não
há percepção sem ação no real, sem movimento, sem comportamento efetivo-afetivo que
especifica e configura “nosso” mundo. Sendo assim, cada mundo é, em última instância,
um mundo singularmente construído na história cognitiva de acoplamentos estruturais.
O leitor pode suspeitar de que tais experimentos são eficazes somente com animais.
Quanto a esta questão, Varela, Thompson e Rosch (2003) fazem a seguinte contribuição:

179
“Existe, de fato, crescentes evidências de que esse tipo de dinâmica rápida (como a
dos gatinhos) pode estar subjacente à configuração de conjuntos neuronais. Isto foi
relatado no córtex visual dos gatos e macacos, associada à estimulação visual; ainda
foi encontrada em estruturas neurais radicalmente diferentes como o cérebro das
aves e mesmo os gânglios dos invertebrados Hermissenda. Esta universalidade é
importante, pois indica a natureza fundamental desse tipo de mecanismo sensório-
motor e, conseqüentemente, da atuação” (p. 179, grifo nosso).

Em busca de elementos que sustentem uma observação empírica da comunicação,


Lakoff e Johnson (1987) também pontuam a importância do corpo para a linguagem ao
identificar que “as experiências básicas da orientação espacial humana, oriundas da
percepção visual, dão origens a metáforas orientacionais, e que nossas experiências com os
objetos físicos constituem as bases para uma variedade extremamente ampla de metáforas
ontológicas” (p. 15). Seria neste sentido que quando usamos uma expressão do tipo: hoje
estou para “baixo”...estou “down”, está em consonância com uma postura corporal
encurvada, inclinada, pois a retração corporal é típica da fisiologia da angústia, da
depressão. Abordaremos oportunamente na compreensão do porque o prazer está para a
expansão biofísica assim como a dor a e angústia esta para sua contração.
Oferecendo suporte neurobiológico a este posicionamento, as áreas do córtex
cerebral, associadas com processamentos cognitivos superiores, são mais receptivas que
outras partes do cérebro ao crescimento neural relacionado ao enriquecimento ambiental.
Em outros termos, ainda que o cérebro possua uma macro-organização, produto de uma
complexa evolução filogenética, o córtex cerebral apresentará variações em suas
microestruturas, as quais são formadas por experiências intra-uterinas e, de fato, em todo o
ciclo vital. Estes experimentos foram comprovados em laboratório, através de mensurações
químicas e anatômicas de ratos. O que dizer da esfera humana, já que gozamos de um
poderoso recurso de escolhas sócio-culturais? Quando colocamos duas crianças exatamente
da mesma idade para interagirem, observaremos que elas executam ações mais ou menos
condizentes ao seu estágio de evolução psicogenética. Observaremos que elas executam
ações sensório-motoras que respeitam uma lógica interna ao construtivismo piagetiano.
Ora, mas o mundo não é assim tão controlado, tão artificial. Ainda que tenham a mesma
idade, não mencionamos que, de acordo com nosso exemplo, são filhos de pais diferentes e,
portanto, possuem uma estrutura genética-biológica distinta, assim como são educados em

180
contextos sócio-culturais que se organizaram e continuam a se organizar de forma
distinta122. Ainda que realizem os “mesmos” esquemas de ação como, por exemplo,
empilhar pequenos cubos, observaremos que as ações sensório-motoras são condizentes a
uma singularidade estrutural. Vejamos então:

a) Como ponto de partida, devemos compreender todo o processo de desenvolvimento


humano segundo parâmetros da auto-organização. Logo, aceitamos que: FENÓTIPO
ONTOGÊNICO123 = GENÓTIPO + AMBIENTE
b) Assim, a forma assumida pela pilha de cubos será singular;
c) O tamanho da pilha será determinado por fatores singulares de cada criança;
d) A cadência de empilhagem será condizente ao timing interno de cada uma;
e) A paciência em reconstruir uma pilha que desmorona será determinada por fatores
singulares;
f) A criatividade e a engenhosidade empregada será singular, ainda que respeite uma
lógica crono-evolutiva psicogenética;
g) Querer ou não repetir tal tarefa será determinado por fatores singulares;
h) Ter inveja ou não da pilha do companheiro será uma característica singular;
i) Agredir o “colegüinha” pela inveja sentida, ou por qualquer outro fator, será
demarcado por características singulares.

Enfim, a lista acima poderia estender-se indefinidamente e, com segurança,


poderíamos aplicá-la a qualquer esquema de ação. Piaget já havia mencionado sobre estas
peculiaridades que cada criança apresenta. No entanto, o estudo destas peculiaridades
enquanto via mestra de pesquisa, assim como averiguar as proporções que elas assumiam
para se retratar a complexidade humana, foi severamente desconsiderada.

122
- Gostaríamos de enfatizar que a construção desta singularidade também está presente, com certeza, entre
os membros de uma mesma família e até mesmo, em último caso, entre gêmeos univitelinos. De acordo com
Maturana (1998), o ser vivo se realiza na história de suas interações, e mesmo se possuir uma mesma
estrutura inicial, mas com diferentes histórias de interações, suas ontogenias serão diferentes. Devemos
recordar que, de acordo com uma leitura epigenética do desenvolvimento humano, o organismo forma-se
através de uma seqüência de transformações, assumindo em cada estágio formas bem distintas, onde cada
etapa é possível a partir de sua anterior, formando uma cadeia. A história de qualquer ser vivo é sempre
contingente da dinâmica entre estrutura e ambiente.
123
- Maturana (1998, p. 96) define como “fenótipo ontogênico” o modo de viver que se estabelece a partir de
um processo epigenético.

181
Para autores como Edgar Morin (2003), a construção do real se faria na recursividade
entre uma computação lógica, a qual permitiria a distinção, e por associação analógica, que,
por sua vez, permitiria a significação. Estas seriam operações distinguíveis mas que seriam
componentes de uma circularidade constitutiva, onde agiriam sobre si mesmas. Em um
primeiro momento, haveria assimilação do novo em ressonância com as construções
anteriores, oferecendo novas possibilidades de acomodoção dos esquemas de ação. Mas a
partir do momento que relevamos, na mesma proporção, uma capacidade intrínseca do
sistema afetivo-cognitivo de executar operações sensório-motoras que se realizam por
“encaixes” de significação, devemos aceitar uma especificidade constitutiva a cada nova
experiência que os sistemas executam. Neste sentido, todas as interações de sistemas
viventes não podem ser consideradas como meras resoluções de problemas. Qualquer
comportamento sensório-motor deve ser compreendido segundo a história de interações de
cada criança e não enquanto uma ação desencarnada que é dirigida ao objeto. Ainda que
realizem esquemas de empilhar e, sendo assim, compartilham de uma organização
psicogenética compatível com as capacidades constitutivas determinadas por um processo
evolutivo que respeita uma cronologia neurocognitiva e funcional, deve ser relevada, em
última instância, a singularidade constitutiva de cada “esquema de empilhar”. Ainda que
cada criança compartilhe de invariantes organizacionais, serão suas determinações
estruturais que darão o “tom” de suas ações sensório-motoras.
No exemplo acima, a relação da criança com os cubos deve ser relevada através de
um repertório de condutas adquiridas em suas interações consigo mesma e com outros
organismos, sejam vivos ou não. Sendo assim, ao mencionarmos termos como criatividade,
inteligência, paciência, rapidez, engenhosidade, etc, devemos estar cientes de que estas
interações não são diretamente observáveis, já que resultam da história de interações dos
organismos e, conseqüentemente, de suas mudanças estruturais. Nos dizeres de Maturana
(1998), o que se propõe em relação à inteligência e, especificamente neste contexto, uma
inteligência sensório-motora, são:

“instâncias de consensualidade ou de adaptação ontogênica em forma de


comportamento inteligente. Desta maneira, nós, ao falarmos de comportamento
inteligente, estamos nos referindo ao comportamento de um organismo que implica
o estabelecimento, a expansão ou o operar dentro de um domínio de acoplamento
estrutural ontogênico já estabelecido” (p. 21).

182
Qualquer ação passa a ser compreendida a partir de uma contextualidade definida
pelo domínio de adaptação ontogênica em que ocorre. A plasticidade construtivista
sugerida por Piaget seria levada ao extremo, já que as invariantes funcionais da inteligência
e da organização biológica estariam em conformidade com os acoplamentos estruturais dos
organismos e com seus domínios consensuais que lhe permitem um operar singular. Ao
permanecermos fiéis a esta leitura, a forma como os esquemas de ação são construídos é
condizente à “plasticidade estrutural orgânica, tanto anatômica quanto fisiológica, que torna
possível para cada organismo sua participação no estabelecimento e no operar dentro de
domínios ontogênicos de acoplamento estrutural” (MATURANA, 1998, p. 22). Como
buscamos sustentar no capítulo anterior, seria inconcebível compreender a singularidade
deste processo sem destacar a afetividade enquanto fator recursivamente constitutivo.
Devemos argumentar que as agressões sofridas pela criança ou, nos termo de Maturana, ao
se estabelecer interações destrutivas em seu processo de desenvolvimento, poderão matizar
negativamente seus acoplamentos estruturais e sua forma de articular seus esquemas de
ações.
Então, o que podemos dizer sobre a aprendizagem? Sabemos que todo o processo
psicogenético piagetiano comporta internamente a noção de aprendizagem. Não é por acaso
que a obra deste brilhante autor foi e continua sendo tão transmitida na área pedagógica.
Mas por outro lado, o que dizer de um processo de aprendizagem que deve ser inscrito em
uma singularidade constitutiva? Para Maturana (1998), há aprendizagem “quando a conduta
de um organismo varia durante sua ontogenia de maneira congruente com as variações do
meio, e o faz seguindo um curso contingente a suas interações nele” (p. 31). Neste
contexto, o meio não informa ao aprendiz, já que o meio será selecionado segundo a
estrutura deste aprendiz. Seria por esta característica angular para a “biologia do conhecer”
que compreenderíamos que o processo de aprendizagem é determinado a cada momento na
relação do sistema com o meio e que “somente pode ser adequada ao meio se tal estrutura é
congruente com a estrutura do meio e sua dinâmica de mudança” (MATURANA, 1998, p.
32). Nestes termos, parece ser muito mais difícil descobrir o que a realidade é do que saber
o que a realidade não é. Paul Watzlawick (1994) explica esta dificuldade através da
seguinte metáfora: o capitão de um navio deve cruzar um estreito de mar durante uma noite

183
de tempestade. Todavia, o capitão não conhece a configuração do estreito. Se bater contra
os recifes e perder seu barco, o naufrágio demonstrará, sem sombra de dúvida, que o roteiro
escolhido não era o correto. Se o capitão passar pelo estreito com o navio, só está
demonstrado que o roteiro escolhido não o levou a se chocar com nenhum recife. O êxito
não ensina muito ao capitão sobre a verdadeira configuração do estreito: ele não tem como
saber se esteve, ou não, próximo da catástrofe. É fácil imaginar que haveria roteiros muito
mais seguros. De certa maneira, o naufrágio é mais pedagógico: ensina onde há recifes.
Vamos complexificar um pouco mais esta metáfora: será que se o mesmo capitão
tentasse cruzar o estreito pelo mesmo caminho, mas com barcos diferentes, ele teria o
mesmo sucesso? Parece que a metáfora de Watzlawick não releva devidamente um outro
fator, ou seja, a natureza do acoplamento estrutural. Imaginemos uma outra metáfora: a
organização de um sistema é estabelecida pelas relações de seus componentes. Estas
relações designam uma identidade de classe semelhante. Logo, um rebocador e um
transatlântico gozam de uma mesma organização, a qual os leva a serem nomeados,
genericamente, de embarcação ou “máquinas flutuantes”. Ainda assim, sabemos que sua
estrutura de casco, motor, dimensão, peso e, em último sentido, sua serventia, é
diametralmente oposta. Por possuírem configurações estruturais diferentes, um rebocador
se comportará de forma muito diferente de um transatlântico ao cruzarem o mesmo estreito
e, em caso extremo, mesmo se um estiver sendo rebocado pelo outro e, com isso, seguirem
exatamente a mesma rota. O rebocador poderia ter sucesso nas partes rasas do estreito, as
quais o transatlântico não teria. Esta relação entre organização, estrutura e ambiente
amenizará ou não a necessidade de se ter um capitão mais experiente e, em último sentido,
isto não fará a menor diferença.
Voltando ao exemplo anterior, onde sugerimos que se duas crianças fossem colocadas
para exercitarem seus esquemas de empilhar, observaríamos que a faculdade de aprender a
empilhar objetos estaria em consonância com suas histórias ontogênicas, e que seria uma
violência se fosse impingido a elas empilhar cubos segundo a forma que acreditamos ser a
mais criativa ou inteligente para ambas. Ainda que possuam organizações similares isto não
quer dizer que devam compartilhar de uma mesma estrutura. De acordo com nossa
metáfora, há “crianças rebocadores” assim como há “crianças transatlântico”. Acreditamos
que haverá sempre uma violação do sistema auto-organizador quando for interrompido ou

184
ultrapassado o limite da capacidade de mudanças estruturais de cada indivíduo. Ao
respeitarmos esta singularidade construtivista, fica mais simples compreender por que uma
pilha de cubos deve ser, em último sentido, sempre diferente da outra.
De acordo com Maturana (1998), o sistema nervoso satisfaz as necessidades
relacionais entre estrutura e ambiente através de sua dinâmica de correlações internas, as
quais observadores de segunda ordem percebem enquanto ações sensório-motoras. Assim
assegura:

“a) um conjunto de correlações sensomotoras capazes de gerar as necessárias


condutas recorrentes;
b) a possibilidade de novas correlações sensomotoras, ao admitir que as novas
coincidências de relações internas de atividade que surgem das mudanças
estruturais das superfícies sensoriais do organismo disparem mudanças estruturais
locais; e
c) que estas últimas mudanças resultem em que configurações novas de
perturbações substituam as configurações antigas de perturbações no disparar de
sua correlação diante às novas perturbações ambientais, recorrentes ou não”
(MATURANA, 1998, p. 46).

As relações com o meio, que devem ser determinadas pelas possibilidades estruturais
de cada indivíduo, podem gerar dois domínios os quais queremos ressaltar:

Domínio das perturbações: de acordo com nosso exemplo, a criança poderá


“flutuar” em sua relação com os cubos, gerando modificações internas ou, em termos
piagetianos, assimilando, acomodando e organizando suas experiências, de forma que
possa adaptá-las a outras situações etc. Podemos considerar que as mudanças de
estado são processos inexoráveis de aprendizagem e, sendo assim, da permanente
acomodação e “transcendência” de esquemas, a princípio, sensório-motores. Em
último sentido, a criança mantém sua organização, ainda que mude sua estrutura de
assimilações e acomodações ao interagir com os cubos.
Domínio das interações destrutivas: Neste domínio, haverá modificações estruturais
que levarão à perda da organização do sistema. Imaginemos que as crianças estão
brincando com cubos de chumbo. Imaginemos que o cubo mais alto da pilha caia na
cabeça da criança. Podemos dizer que esta é uma real possibilidade de a criança
morrer e, conseqüentemente, perder sua organização.

185
Quanto a este domínio, devemos fazer uma digressão necessária, já que Maturana e
Varela não cumprem satisfatoriamente nossas intenções de compreender, em outra
escala, a destruição (adoecimento) do sistema vivo. Bem sabemos que vida não se
impõe desta forma em todos os momentos e que a destruição não se revela sempre de
forma tão crassa. Experimentamos situações “destrutivas” da vida e da saúde, todos
os dias, sem sermos levados, necessariamente, a situações agudas ou de perda
imediata de nossas organizações. Tampouco podemos considerar estas situações
enquanto meras perturbações, já que podemos sofrer com processos crônicos de
interações destrutivas do sistema, que podem levar a modificações estruturais internas
e da conduta. Podemos considerar uma violação do sistema vivo, especificamente ao
processo de organização dos esquemas sensório-motores, quando o genitor agride o
filho física ou verbalmente quando este não organiza os cubos da forma que sugere
sua própria capacidade de organização e, portanto, de sua história ontogênica.
Devemos considerar que todo o processo de agressão que incide sobre as estruturas
vivas leva-as a estabelecer , mais ou menos, interações destrutivas com o meio, e que
podem acarretar em psicossomatopatologias. Este tema será devidamente trabalhado
ao aprofundarmos na compreensão dos fatores que levam ao adoecimento da
capacidade auto-organizadora.

Toda organização autopoiética possui um limiar de tolerância quanto às perturbações


que recebem do meio externo ou interno. Estas interferências são passíveis de observação
por serem, exatamente, perturbações que incidem e geram transformações materiais, sendo
que estas transformações nos informam, em parte, sobre a qualidade destas perturbações.
Qualquer perturbação que ultrapasse o limiar suportado por determinada organização
incorrerá em adoecimento e, em casos extremos, na desintegração do sistema. Neste
sentido, não podemos desmerecer o papel das perturbações nocivas que desencadeiam
inúmeros processos de adoecimento nas organizações autopoiéticas sem, no entanto, levá-
las à morte. Todas estas questões apresentadas por Maturana e Varela nos informam, de
certa forma, sobre a importância de se averiguar a capacidade “pulsátil” destas
organizações. Metaforicamente falando, pode-se subentender que, se apertarmos demais as
cordas da cítara, elas arrebentarão. Caso não apertemos o suficiente, não obteremos

186
afinação. Da mesma forma, Maturana e Varela nos alertam para importância do
entendimento das perturbações que incidem sobre as organizações vivas para que possamos
observar a “qualidade de vida” desta organização. Ora, pensamos que seja este o ponto
crucial de nossa próxima reflexão, ou seja, sobre a etiologia dos processos
psicossomatopatológicos em suas várias manifestações. Será na observação qualitativa dos
fenômenos perturbadores que poderemos intuir sobre os possíveis desdobramentos que se
sucedem nas organizações autopoiéticas em seu viver. Devemos então nos aprofundar na
conceituação e no entendimento do que Maturana e Varela consideram como “acoplamento
estrutural”.
Todo acoplamento estrutural nos informa da “teia de relações” que qualquer
organismo estabelece com o meio. No caso das organizações humanas, observaremos que
falar de acoplamento estrutural nos remete diretamente a contextos sócio-culturais, e que
as organizações autopoiéticas estabelecerão tantos acoplamentos quanto forem a
diversidade de contextos. Esta proposta, em um primeiro momento, pode ser assustadora
para qualquer psicólogo ou cientista social que não compartilhe das idéias de Maturana e
Varela. Eles poderiam questionar que, em tal situação, seria tarefa impossível se estruturar
teorias do desenvolvimento, da personalidade e, até mesmo, qualquer sistema
psicodiagnóstico. Na verdade, qualquer proposta que solape a idéia de uma objetividade
clássica seria desastroso para a “mente” destes pesquisadores. Para compreendermos
melhor a “natureza” desta miríade de “acoplamentos”, devemos considerar a história das
interações possíveis entre sistemas viventes e seu ambiente.
Nos desdobramentos que se seguirão, proporemos que qualquer sistema diagnóstico
não deve condizer a uma cadeia de representações semiológicas estritamente objetiváveis e,
tampouco, se recolher à extrema solidão cognitiva de um posicionamento
fenomenologicamente solipcista.

7 - O adoecimento psicossomático do sistema afetivo-


cognitivo – Para uma compreensão pós-moderna do processo
elaborativo-reconstrutivo na clínica

187
LEONE: Ah, Venanzi, é muito triste quando se
aprendem todos os movimentos do jogo.
GUIDO: Que jogo?
LEONE: Esse...ora! O jogo inteiro, o jogo da vida.
GUIDO : Você já aprendeu?
LEONE : Sim, há muito tempo

Luigi Pirandello

Sempre que adoecemos, adoecemos integralmente. Não aceitarmos este pressuposto


já seria, de início, uma profunda incoerência com a proposta transdisciplinar a qual viemos
desenvolvendo até o momento para se compreender o desenvolvimento afetivo-cognitivo.
Neste sentido, o adoecer é um fenômeno complexo e que envolve uma rede de fatores,
visíveis e invisíveis, os quais exigem do observador que se debruça na compreensão de sua
etiologia, diagnose, prognose e terapêutica, habilidades que iriam muito além daquelas
prescritas na literatura científica “clássica”. Isto porque qualquer processo de adoecimento
é, em última instância, produto de nossa singularidade constitutiva. Ora, não existe “um”
jogo da vida, mas os jogos da vida são infinitos. Na epígrafe acima, o problema de Leone é
típico daqueles que não se “encontram” mais na corrente da vida por estarem
impossibilitados de fluir nas incertezas da existência. Seria neste sentido que todo sistema
diagnóstico amparado por uma epistemologia moderna visa, em última instância, reduzir a
complexidade do fenômeno-doença no intuito de angariar, objetivamente, um “plano de
ataque” para eliminá-la. Foi assim que a cultura médica ocidental se preocupou apenas em
construir um sistema semiológico e nosológico em que retratasse parâmetros diagnósticos
rigorosamente circunscritos e, nos termos da “biologia do conhecer”, acabou por incorporar
um sentido de objetividade que se isentou de aspas ou parênteses.
Refletir criticamente sobre a história das ciências médicas seria tema para um trabalho
à parte. O que nos cabe neste momento é introduzir algumas problematizações no sentido
de averiguarmos até quando podemos utilizar de um sistema diagnóstico clássico que se
pauta em uma circunscrição “habilidosamente” delimitada e objetivamente pragmática ou,
por outro lado, nos atermos à tese de que devemos abandonar qualquer sistema referenciado

188
por modelos linearmente teleológicos que visam oferecer uma objetividade científica que
abarca homogeneamente o real.

7.1 - O normal e o patológico – do que se trata?

Segundo Thomas Szasz (1979), um dos mais sérios entraves epistemológicos


contraídos pela psiquiatria e pela psicanálise, já em seu alvorecer, seriam suas
características historicistas, as quais desejam atribuir influências causais difusas do
comportamento a um único tipo de “causa” e circunstância humana. De acordo com o
próprio projeto epistemológico da modernidade, este tipo “preditivo” de construção do
sujeito já o levaria a fracassar enquanto um modelo passível de refutação. Mas por que
razão as comunidades ocidentais aceitaram e continuam a aceitar largamente este modelo
médico “oracular”? Por que se atribui tanto poder àqueles que se dizem dotados destes
atributos visionários, teleológicos? Szasz (1979) é contundente: “as respostas parecem estar
no fato de que as doutrinas historicistas funcionam como religiões que se disfarçam em
ciência” (p. 21). Ora, não entraremos nos méritos específicos do que Szasz define enquanto
“ciência médica” ou de qual sejam suas idéias sobre a relevância de um projeto
interdisciplinar para compreensão das ciências psi. Este ponto abriria para outras questões
as quais devemos abandonar neste momento124. Mas seguramente podemos constatar que
este autor é um crítico contundente das metanarrativas as quais queremos nos livrar para
compreensão do humano. Segundo Szasz (1979), as doutrinas historicistas visam suprir o
“vazio ontológico que o homem carrega e as ameaças de mudanças imprevistas e
imprevisíveis” (p. 21). Neste contexto, o projeto linear dos sistemas diagnósticos

124
- De acordo com o que viemos apresentando até o momento, o desenvolvimento de nossas capacidades
afetivas e cognitivas devem ser compreendidas como um movimento constitutivamente recursivo que, em
hipótese alguma, privilegia a vida simbólica-mental em detrimento das ações sensório-motoras. Neste ponto,
discordamos de Szasz ao alegar que uma doença só pode incidir no corpo. Como o autor alega, “estritamente
falando, a doença ou a enfermidade só podem afetar o corpo; portanto, não pode haver nenhuma doença
mental” (SZASZ, 1979, p. 234). Ora, este posicionamento já nos coloca muito distantes da tese de Szasz.
Mesmo assim, este autor nos ofereceu uma das mais contundentes e valorosas críticas à construção da idéia de
“doença mental” e que ainda percorre largamente os meios acadêmicos e institucionais em todo o mundo.

189
“modernos” ainda visam, em um primeiro momento, retratar ou acompanhar os métodos da
física e da biologia em sua linearidade mecânica. Todavia, se esqueceram de que o
paradigma quântico, relativista e não linear, já havia despontado no panorama científico
desde o início do século XX.
Assim como Foucault (1984), Szasz nos alerta para o fato de que compreender a
história da doença mental sem lançarmos uma mirada crítica sobre a construção dos valores
sócio-culturais ocidentais seria uma perda de tempo. É um episódio recente o fato de a
medicina conceder aos desequilíbrios mentais o status de doença. Até a metade do século
XIX, o conceito de doença, estritamente falando, remontava a alguma disfunção orgânica.
Logo, até o advento de um “positivismo médico”, a loucura era retratada como algum tipo
de possessão demoníaca e, sendo assim, relegada à ignorância das práticas exorcistas cristãs
ou ao tipíco ostracismo das práticas institucionais encarcerárias. É verdade, como alega
Foucault (1984), que a medicina grega já dedicava uma certa tolerância a estes
“comportamentos desviantes”, exatamente por compreenderem algo de patológico nestas
condutas. Até mesmo na renascença, atribuída aos avanços da medicina árabe, a loucura era
“experimentada em estado livre, ou seja, ela circula, faz parte do cenário e da linguagem
comum (...) havendo até mesmo loucos célebres com os quais o público e o público culto
gosta de se divertir” (FOUCAULT, 1984, 78). Mas a partir do século XVII, a relação com o
“mundo da loucura” se tornou mais sinistra. Criam-se depósitos de humanos desviantes,
daqueles que não são apenas “loucos”, mas a escória da então nascente sociedade burguesa:
mendigos, inválidos, velhos miseráveis, prostitutas, leprosos, portadores de doenças sexuais
transmissíveis, hereges. Neste mesmo contexto, Szasz (1979) alega que a igreja, ao
normatizar o que vinha a ser ou não uma conduta herética, buscava dominar os diversos
males da natureza:

“Incapazes de admitir a ignorância e o desamparo, e igualmente incapazes de


adquirir a compreensão e o domínio de diversos problemas físicos, biológicos e
sociais, os homens de poder procuravam refúgio em explicações expúrias. As
identidades específicas do bode expiatório são legiões: bruxas, mulheres, judeus,
negros, doentes mentais e assim por diante” (p. 166).

Observaremos que algumas de suas propostas podem ser consideradas enquanto a base reflexiva a qual veio a
fundamentar a compreensão do “adoecer” sob um ponto de vista sistêmico.

190
Como Foucault (1984) acrescentou, não havia vocação médica nestas instituições e
“Hospitais Gerais”. O internamento não seria refletido sobre os parâmetros de
“normalidade médica”, mas revelaria a relação da sociedade consigo própria, com suas
sansões políticas e morais. Neste contexto sócio-histórico, a exclusão dos condenados
sociais estava em relação com sua incapacidade de produção ou do quanto ameaçavam a
então nascente classe burguesa com suas condutas imorais. A loucura, no internamento,
criou laços mórbidos e estranhos. Neste caldeirão dos excluídos, o “louco” assimilou nesta
obscuridade uma ampla rede de signos e expressões que irão perdurar até nossos dias,
intorpecendo a fenomenologia da “doença mental”.
As estratégias médicas que se estabeleceram no alvorecer da psiquiatria, com Pinel,
continuaram a ser estarrecedoras. Ainda era imperativo aplacar as idéias e humores
desviantes, e para isso, usava-se agora uma parafernália de apetrechos tecnológicos no
intuito de repreender e “curar” o delirante. As duchas frias deviam aplacar o ânimo dos
mais “excitados”, as cadeiras rotatórias deveriam “reverter” o fluxo da alucinação e do
delírio. Como Foulcault (1984) argumenta:

“O essencial é que o asilo fundado na época de Pinel para o internamento não


representa a ‘medicalização’ de um espaço social de exclusão; mas a confusão no
interior de um regime moral único cujas técnicas tinham algumas um caráter de
precaução social e outras um caráter de estratégia médica” (p. 83).

Como observamos, a “psicologização” da loucura não contribuiu muito para sua


compreensão e muito menos para aplacar seu estigma social. Com o início dos estudos de
Charcot, a histeria ganhou o status de uma doença funcional e não propriamente uma
doença estrutural, como uma paralisia, devido a causas neurológicas. De alguma forma,
observamos um “rebaixamento” do limiar de sensibilidade à loucura. Mas esta
“indulgência” social não reduziu expressivamente um certo tipo de tirania mais refinada.
Como Szsaz (1979) acrescenta, o interesse médico de Charcot e de seu mais famoso aluno,
Sigmund Freud, era identificar, descrever e classificar as doenças do sistema nervoso.
Neste sentido, consolidaram um lugar social para aqueles que sofriam de doenças
funcionais. Segundo Szsaz (1979), Charcot e Freud “usaram seu prestígio e conhecimento
médico para a propagação dessa imagem socialmente auto-acentuada do que era então a
histeria e do que em nossos dias tornou-se o problema da doença mental” (p. 35). Szasz

191
alega que Freud reivindicou à histeria a nomeação de doença mental exatamente por não
conter seqüelas físicas. Era uma forma de encobrir as diferenças existentes entre as doenças
orgânicas e as então nomeadas doenças mentais.
A construção do conceito freudiano de “superego”, instância psíquica reguladora da
ação social, foi duramente criticado por Szasz, já que pretendia estabelecer sistemas
normativos de conduta os quais, internamente, comportavam parâmetros filosóficos frágeis
quanto ao que deveria ser uma conduta “flexivelmente” moral. Realmente, não precisamos
ir muito longe para compreender que os estatutos éticos ou morais variam fortemente
segundo os diferentes contextos culturais e religiosos, e que a definição de doença mental
só poderá ser realmente compreendida segundo o contexto específico. De acordo com
pressupostos psicanalíticos, é através da sublimação dos instintos que se permite o processo
de desenvolvimento cultural. Para Freud (1977, vol. XXIII), estes foram fatores inexoráveis
no processo de evolução. Contudo, como argumenta Herbert Marcuse (1990), não foi
relevantemente levado em consideração o sofrimento causado por esta suposta relação entre
repressão de Eros e cultura, como notamos através de uma de suas colocações:

“Para Freud, ‘a felicidade não é um valor cultural’. A felicidade deve estar


subordinada à disciplina do trabalho como uma ocupação integral, à disciplina da
reprodução monogâmica, ao sistema estabelecido de lei e ordem. O sacrifício
metódico da libido, a sua sujeição rigidamente imposta às atividades e expressões
socialmente úteis, é cultura” (p. 27).

Segundo a teoria psicanalítica, o florescimento cultural estaria em estrita correlação


com a supressão de satisfações integrais, associadas ao que Freud (1975, vol. XVIII)
nomeia enquanto princípio de prazer. Os instintos deveriam estar sujeitos a transformações
de sua própria natureza para que o ser humano se constituísse verdadeiramente como um
“ser cultural”, governado por uma consciência, sobretudo reflexiva. A esta transformação
atribuiu-se o termo princípio da realidade125 . Como nos lembra Marcuse, o princípio de
realidade freudiano materializa-se em um sistema institucional, onde se entrelaçam direitos
e deveres do cidadão e que se manifestam em um “produto cultural acabado”, o qual J.L.

125
- “Um dos princípios que, segundo Freud, regem o funcionamento mental, forma par com o princípio do
prazer, e modifica-o; na medida em que consegue impor-se como princípio regulador, a procura de satisfação
já não se efetua pelos caminhos mais curtos, mas toma desvios e adia o seu resultado em função das
condições impostas pelo mundo exterior (...)” (LANPLANCHE & PONTALIS, 1988, p. 470).

192
Moreno (1986) denominou de “conserva cultural”. Estas considerações nos facilitam,
sobremaneira, compreender a manutenção dos sistemas legais, institucionais, sociais,
simbólicos, enfim, os “princípios de realidade” que foram sendo sedimentados no longo
processo de desenvolvimento da cultura européia e, mais tarde, no processo de colonização
das Américas126. De forma mais sutil, também podemos observar estes mesmos processos
de filtragem na imposição da ideologia cristã a partir do século IV, quando se tornou o
sistema religioso oficial do estado romano. Estes eram artifícios de um princípio da
realidade que se preocupava em manter o “ego cristão” seguro de valores proibidos, neste
caso, os valores instintivos e orgânicos da sexualidade, assim como em estipular códigos de
moralidade que puniam severamente o “desviante”.
Vale notar que os termos freudianos não diferenciam fundamentalmente entre
“vicissitudes biológicas e as histórico-sociais” (MARCUSE, 1990. p. 51). É neste contexto
que podemos afirmar, segundo os postulados freudianos devidamente relidos por Marcuse,
que toda cultura repressiva dos instintos, instaurou, em grandes níveis, não só
transformações básicas e necessárias, o que se denominou princípio da realidade, mas
violentou e restringiu, às custas da opressão e dos inúmeros mecanismos de dominação
social, grande parte de conteúdos nomeados pela psicanálise de instintuais127. Marcuse
classifica este fator com o termo de mais-repressão. Este termo se define, basicamente,
pelas modificações peculiares e excessivamente repressivas do princípio da realidade
freudiano que as culturas ocidentais e seus sistemas ideológicos sustentam, sempre
vinculadas a algum interesse específico de dominação. Sendo assim, Marcuse define estas
características “adaptativas” do princípio da realidade como controles adicionais, sempre
mantidos pelas instituições dominantes128. Vale lembrar, como argumenta Foucault (1984):

126
- De acordo com Marcuse (1990), “os vários modos de dominação (do homem e da natureza) resultam em
várias formas históricas do princípio da realidade. Por exemplo, uma sociedade em que todos os membros
trabalham normalmente pela vida requer modos de repressão diferentes dos de uma sociedade em que o
trabalho é o terreno exclusivo de um determinado grupo. Do mesmo modo, a repressão será diferente em
escopo e grau, segundo a produção social seja orientada no sentido do consumo individual ou não do lucro;
segundo prevaleça uma economia de mercado ou uma economia planejada; segundo vigore a propriedade
privada ou a coletiva” (p. 52).
127
- Neste contexto, seria imprescindível que refletíssemos sobre o conceito moreniano da espontaneidade, já
que os inúmeros fatores mais-repressivos propostos por Marcuse limitam severamente a capacidade
expressiva ou, espontânea, das comunidades ocidentais.
128
- Segundo Marcuse (1990, p. 53), “as modificações e deflexões de energia instintiva necessária à
perpetuação da família patriarcal-monogâmica, ou uma divisão hierárquica do trabalho, ou o controle público

193
“Compreende-se que as fixações ou regressões patológicas só são possíveis numa
certa cultura; que se multiplicam na medida em que as formas sociais não permitem
liquidar o passado, e assimilá-lo ao conteúdo das experiências. As neuroses de
regressão não manifestam a natureza erótica da infância, mas denunciam o caráter
arcaizante das instituições que lhe conferem” (p. 92).

Este fatores mais-repressivos, como bem salienta Marcuse, também podem ser
compreendidos de acordo com as críticas de Reich a uma psicanálise que já concebia a
existência da vida psíquica sem relação com a economia somática dos impulsos libidinais:

“Ignorando a sociologia e a biologia Freud isenta o processo civilizatório, a


sociedade como conhecemos, de qualquer responsabilidade na produção da
destrutividade humana. Neste sentido é interessante observar a resposta de Reich a
Freud e dezembro de 1929, quando o mal estar entre ambos já estava instalado:
‘Freud ainda defende que a cultura depende da supressão dos instintos. Isto pode
ser verdadeiro para a cultura existente. Mas, argumenta Reich, depende a cultura
per se desta supressão?’” (XAVIER, 2004, p. 79)129.

Como havia proposto Moreno (1986), a conserva cultural se forma a partir de atos
espontâneos que se moldam em formas permanentes. Logicamente, a conserva cultural
seria uma espécie de “porto-seguro”, onde todos os indivíduos podem convergir a bel-
prazer e sobre a qual pode ser que se assente a tradição cultural. Assim, a conserva cultural
é uma categoria tranqüilizadora. Mas seria fundamental uma profunda reflexão sobre quais
valores e ideologias as comunidades ocidentais vêm convergindo através dos séculos. Só
assim podemos compreender por que as instituições de “poder” obtiveram não mais do que
uma situação generalizada de mais-repressão. Nos deparamos com estes resíduos a todo
instante, ao nos defrontarmos com nossas próprias comunidades que sustentam
orgulhosamente o status de uma ilusória “modernidade” psicológica e social. Enquanto
houver desigualdades gritantes entre os sexos, as raças, os credos, as economias, enfim, em

da existência privada do indivíduo, são exemplos de mais-repressão concernente às instituições de um


determinado princípio da realidade”.
129
- Reich (1977) se antecipa a Marcuse, em muitas décadas, com a seguinte citação: “Ao enunciar o
‘princípio de realidade’, Freud reuniu nele todas as limitações e todas as pressões sociais que tendem a
menosprezar as necessidades ou a retardar-lhes a satisfação. Este ‘princípio de realidade’ opõe-se, pois em
parte ao princípio do prazer, na medida em que impede completamente determinadas satisfações; mas também
o modifica na medida em que obriga o indivíduo a procurar satisfações de substituição ou a retardar uma
determinada satisfação” (p. 46).

194
todos os âmbitos sócio-culturais, nos defrontaremos incondicionalmente com nossos
“resíduos” históricos.
Na contemporaneidade, o regime mais-repressor exprime-se não só nas condutas
religiosas tradicionais – que ainda vigoram sustentadas pelos mesmos princípios
dogmáticos, os quais perduram como a mil e quinhentos de anos – mas também na
alienação do trabalho, na normatização da “sanidade mental”, na utilização selvagem dos
bens de consumo e na produção indiscriminada de “objetos desejantes”. Como podemos
averiguar, estes também são traços definidores da contemporaneidade, ou seja, apresentar-
se de forma “caleidoscópica” e “camaleônica”, onde muitos fatores se mesclam, onde
conteúdos de mentes “saudáveis” se camuflam por detrás de discursos eticamente
ambivalentes. Estas são características que podemos associar contemporaneamente ao
“caldeirão” da pós-modernidade cultural, ao que Marcuse denominou como uma
“manipulação da consciência” (MARCUSE, 1990, p. 95). Contudo, perceberemos que o
que prevalece sempre são os antigos fatores adicionais, ou seja, mais-repressivos, embora
cada vez mais “disfarçados” por muitas roupagens culturais. Ao que tudo indica, o século
XX proporcionou um grande “guarda-roupa” para todos estes fatores, os quais Marcuse
denominou de mais-repressão. Isto explica, em parte, por que as comunidades tipicamente
ocidentalizadas “necessitam” estar acorrentadas a qualquer tipo de dominação ou conserva,
seja ela sexual, religiosa, política, econômica e, por fim, que regula seu sentido de sanidade.
As personificações psicopatológicas acabam por criar um jogo culturalmente
compartilhado, onde os técnicos em saúde mental definem os parâmetros de normalidade
para uma sociedade que necessita e pede insistentemente estas compartimentações. Como
argutamente acrescenta Foucault (1984), “é somente na história que se pode descobrir o
único a priori concreto, onde a doença mental toma, como abertura vazia de sua
possibilidade, suas figuras necessárias” (p. 96).
Será que a civilização ocidental contemporânea suportaria a “libertação” do que Freud
e Marcuse designam enquanto “Eros”, das amarras repressivas dos códigos neoliberais e
capitalistas? Como nossa sociedade, estruturada sob moldes estritamente consumistas, se
sustentaria sem o alto índice de alienação, que promove exatamente a normatização do
“normal” e do “patológico” em saúde mental, da indústria pornográfica e militarista, o
“anti-intelectualismo”, além da total subserviência à mídia manipuladora dos “objetos

195
desejantes”? Será que podemos conjecturar que a atual civilização ocidental se esfacelaria
sem os mecanismos mais-repressivos? A repressão do que a psicanálise nomeia enquanto
“Eros” interessa, e sempre interessou, a todo e qualquer sistema de dominação, por que é do
indivíduo alienado, da sociedade alienada, que a voraz “caldeira” capitalista se alimenta.
Aqui observamos a total ausência de ética social, sempre a favor do desempenho, da
produção, do consumo e do trancafiamento daqueles que nos assustam com suas
“peculiaridades comportamentais”. Aquele velho modelo patriarcal judaico-cristão lança
agora seus “tentáculos” não só em figuras “individualizadas”, como “o pai”, “o sacerdote”,
“o Deus”, mas se envereda pelo “sistema”, na impessoalidade e no anonimato burocrático.
O indivíduo manipulado em sua consciência, aquele que se diz “feliz” por obter maior
número de itens desejantes, não se dá conta desta “alteração do conteúdo da felicidade”. O
indivíduo alienado já não sabe mais quem ele é, pois se tornou a sombra do sistema, dos
valores decadentes que também permeiam as conservas culturais. Como Marcuse (1979)
acrescentou, “a felicidade não está no mero sentimento de satisfação, mas na realidade
concreta de libertação e satisfação. A felicidade envolve ‘conhecimento’: é a prerrogativa
do animal rationale” (p. 102). Neste contexto de alienação, a angústia existencial deve ser
evitada. O afastamento da consciência de si desloca a massa em busca de um falso sentido
de normalidade, que também se envereda na busca metafísica da eternidade, do “nirvana”
religioso, onde o ser “alienadamente normal” anseia, desesperadamente, por maior consolo
da vida cotidiana.
O reconhecimento da “loucura” ou de “sanidade” não é uma tarefa simples e
imediata. Como vimos, está imersa em uma temporalidade sócio-cultural e segundo seus
valores de aceitação e exclusão de convívio social.

7.1.1 - Reflexões sobre o processo de adoecimento psicossomático – O


que sugerimos?

Ao destituir-nos de roupagens psicopatológicas arcaicas, estigmatizantes e


desumanizantes, o que nos sobraria enquanto modelos diagnósticos? Ainda que não

196
incorramos em erros crassos, como o de conceituar a doença mental segundo estigmas
circunscritos que enclausuram aqueles que nos buscam, será que poderíamos encontrar “um
processo psicossomapatológico” no devir humano? Não devemos esquecer que, de uma
forma ou de outra, o surgimento de uma área acadêmica chamada Psicologia é produto
deste emaranhado sócio-cultural, o qual também foi produtor do fenômeno da “doença
mental”. Como alegou Foucault (1984), “todo saber está ligado a formas essenciais de
crueldade” (p. 84). Ao situarmos qualquer conceituação sobre normalidade e psicopatologia
enquanto produto de intrincadas tramas sócio-culturais mais abrangentes, devemos aceitar a
hipótese de que há uma linha tênue entre estes conceitos. Logo, torna-se tarefa árdua
discriminarmos adequadamente o que diz respeito aos mitos culturalmente compartilhados
que visam estigmatizar os “desvios” sociais segundo uma complexa rede de índices
valorativos e o que poderíamos aceitar enquanto um processo de adoecimento. Os
movimentos anti-psiquiátricos e anti-manicomiais vêm revelando insistentemente a
desumanização que acompanha as práticas médicas institucionais e, como Szasz (1979, p.
217) argumenta, “sem que ninguém se desse inteiramente conta do que estava realmente
acontecendo, os limites entre o jogo psiquiátrico e o jogo da vida se tornaram cada vez
menos nítidos”.
Uma análise fenomenológica do transtorno mental recusa uma distinção a priori entre
o normal e o patológico. Mas, seguramente, não nega o obscurecimento e o abandono do
mundo e da perda de significações. A doença seria então “esta unidade contraditória de um
mundo privado e de um abandono à inautenticidade do mundo (...) é a retirada da pior das
subjetividades, e queda na pior das objetividades” (FOUCAULT, 1984, p. 68). Uma atitude
razoável para os técnicos em saúde mental seria a de optar pela extinção de categorizações
normatizantes enquanto pré-requisitos para se propor um processo psicoterápico. De fato, a
escolha de se compartilhar com o psicoterapeuta qualquer tipo de resgate ou reconstrução
de valores afetivos e crenças morais só existe por que determinadas pessoas optaram por
isso. Nos dizeres de Canguilhem (1982), em sua célebre tese O normal e o patológico, o
que se chama de doença só pode ser contextualizada dentro de um aspecto experiencial,
subjetivo e qualitativo. O adoecimento é, em outros termos, um estado vivencial da
totalidade orgânica e biográfica. Neste sentido, nem tudo que é “anômalo” pode ser
considerado patológico. Nem toda diversidade que experimentamos na vida, anômala ou

197
não, se constitui enquanto um sofrimento ou sentimento de impotência de qualquer ordem.
Canguilhem parece até mesmo antecipar em muitas décadas a tese central da “biologia do
conhecer”, já que para este autor a normalidade não seria atributo exclusivo de um
organismo consigo mesmo, mas o produto de sua interação com o meio. Então o anômalo
exprime-se apenas enquanto uma singularidade ontogênica, e se determinada ontogenia não
supre suas necessidades básicas em seus acoplamentos estruturais, desenvolve-se uma
patologia. Chegamos então a um ponto crucial dessa nossa reflexão sobre o “normal” e o
“patológico”: ao não descartarmos a singularidade da existência humana, tampouco
desprezamos o adoecimento destas existências singulares.
Também não poderíamos dizer, em parâmetros gerais de conduta, o que agride um
sistema objetivamente, ou quais seriam as repercussões objetivas, por exemplo, das injúrias
sensório-motoras que uma criança sofre e, conseqüentemente, se estas agressões lhes
causaria uma “psicossomatopatologia”. Hipoteticamente falando, será que a surra que João
e Maria levaram por não empilhar cubos de acordo com os anseios de seus respectivos pais
gerariam os mesmos prejuízos? De acordo com o que desenvolvemos até agora, só
podemos ter uma resposta: não sabemos, já que o processo de adoecimento está sempre de
acordo com a singularidade estrutural de cada organismo. Como Canguilhem (1982)
acrescenta, aquele que adoece perde sua capacidade “normativa” ou, nos nossos termos, de
auto-organização. A saúde seria então “a margem de tolerância que cada um estabelece às
infidelidades do meio” (CANGUILHEM, 1982, 159. Grifo nosso). O doente, para
continuar sua vida, deve percorrer outros caminhos, ainda que chegue ou não no mesmo
destino de outrora. Vista positivamente, a doença é um estado de existência que, ao diferir
da saúde, exige consciência, trabalho, “alquimia”. Para aqueles que não gozam mais do
“silêncio dos órgãos”, lhe resta o aprendizado que a dor lhe impõe.
O projeto da clínica, ainda que amparada pelos mais variados artifícios teóricos e
técnicos, é um projeto de singularidade terapêutica que se estabelece em um domínio
consensual entre terapeuta e terapeutizando. Este seria um processo feito em “mão dupla”.
Os perigos de tal incursão já estão implícitos, já que o terapeutizando pode estar à mercê de
“rituais” psicoterápicos que podem lhe afastar cada vez mais de sua existência. Mas seria
tarefa estapafúrdia inventariarmos as “singularidades” da prática profissional ou, nos
dizeres de Maturana e Varela, dos acoplamentos estruturais que são estabelecidos em cada

198
relação psicoterápica. O que podemos fazer neste momento é refletir sobre a prática do
psicoterapeuta em âmbitos gerais, mas atentos que, em última instância, a relação estará
marcada pela natureza qualitativa destes acoplamentos estruturais.
Como já mencionamos, os mais eminentes pensadores do construtivismo radical não
se posicionaram extensamente sobre a compreensão do adoecimento sistêmico.
Obviamente, isto não quer dizer que diversos grupos focados em saúde mental não
utilizaram deste paradigma. Bastaria citar nomes como: Anderson, Andolfi, Cecchin,
Elkaïm, Fuks, Goolishian, Guattari, Sluzki, além de um substancioso grupo de terapeutas
brasileiros que se dedicam à compreensão sistêmica deste processo de adoecimento. Mas é
expressão comum no meio sistêmico desconsiderar, quase que totalmente, pelas propostas
diagnósticas. Como acrescenta Grandesso (2000):

“O estabelecimento de padrões de comportamento em categorias diagnósticas,


tomadas como critérios de referência para classificação, julgamento e avaliação da
funcionalidade e aceitabilidade de determinadas formas de conduta, leva os
profissionais da saúde a provocarem efeitos iatrogênicos nas vidas dos clientes à
medida que acabam estabelecendo práticas normatizadoras (Doan, 1988; Gergen,
1994; White & Epston, 1990). Tais práticas restritivas, baseadas na visão cultural
dominante estruturada em torno de patologias e disfunções definidas pelas
categorias diagnósticas – herança da tradição de pensamento moderno –, confinam
e estigmatizam as pessoas, limitando sua organização, de acordo com seus
projetos” (p. 245).

Ora, estamos em total acordo com Grandesso e já nos posicionamos neste sentido ao
refletirmos brevemente sobre a história da construção sócio-cultural da doença mental. Mas
será que podemos nos desfazer totalmente da diagnose130? Contamos com uma hipótese a

130
- Vejamos um comentário de muita sobriedade de Maia (1998). “Este esforço de caracterização, descrição,
explicação e compreensão dos quadros psicopatológicos não tem sido muito profundo na maioria dos autores
que têm contribuído para a formalização de alternativas pós-modernas e pós-racionalistas em psicologia e
psicoterapia. Contrariamente ao que acontecia com as perspectivas mais racionalistas, em que as
características de processamento de informação ou organização esquemática relacionadas com a
psicopatologia eram de todo evidentes na maioria dos trabalhos apresentados ao público por autores com
preocupações clínicas, a primeira constatação que é possível fazer quando se consultam as obras mais
recentes sobre construtivismo em psicologia e psicoterapia, é a quase total omissão da palavra
“psicopatologia” ou “desordem” (Mahoney, 1995; Neimeyer & Mahoney, 1995). Ora não é possível
promover-se processos de organização ou re-organização (terapêutica) sem se aceitar a dimensão
desordenadora dos processos ditos patológicos que podem considerar-se factores desordenadores. Se este
facto pode ficar a dever-se ao reconhecimento de que ‘a abordagem construtivista é mais complexa e abstracta
do que a racionalista’ (Mahoney, 1995, p.9), parece-nos que nos próximos tempos terá de haver um esforço
no sentido de aprofundar as condições que estão relacionadas com o desenvolvimento de padrões de
construção de significado que, por terem características específicas, impedem a coerência entre as formas de
construção do sujeito e o contexto em que se insere, e que são normalmente designadas por psicopatológicas.

199
qual buscaremos consolidar nas páginas que se seguirão: a clínica sob moldes pós-
modernos, ao jogar fora a água do banho do “bebê-diagnose”, repleta de resíduos da
modernidade, também jogou fora o “bebê-diagnose”. O fato de humanizarmos nossas
diretrizes para compreensão do adoecimento não que dizer que não devamos ter diretrizes.
A homeopatia é um exemplo clássico de como se reformula a compreensão da enfermidade
sem negar os signos da enfermidade. O diagnóstico homeopático se baseia no
conhecimento da singularidade constitutiva da cada pessoa, relacionando a enfermidade
não em sua localidade sintomática, mas em acordo com a globalidade e dinamicidade
estrutural mente-corpo-ambiente. Assim como a homeopatia, a acupuntura busca “capturar”
uma leitura da distribuição energética do organismo para formular uma aproximação
compreensiva, diagnóstica, da totalidade de cada indivíduo e, assim, buscar reintegrar e
harmonizar os organismos em sua globalidade estrutural. Todas as práticas médicas, ditas
“alternativas” e, em nossa compreensão, também sob moldes pós-modernos, buscam
romper com a “superficialidade” diagnóstica da díade adoecimento-sintoma, comum na
prática médica alopática, para reintegrar a compreensão do estado-complexidade de
adoecimento do indivíduo em sua singularidade e integralidade constitutiva. Todavia,
devemos ser cautelosos em nos desfazer da água repleta de resíduos da modernidade. Ao
optarmos por atribuir à própria cultura ocidental toda sua depauperação orgânica, social,
política e psicológica, devemos estar atentos que, na altura do jogo da pós-modernidade,
não mais podemos nos desfazer tão prontamente desta ambígua relação tecnologia-
degradação fomentada pela própria história da cultura ocidental. Sabemos que os
homeopatas, ao lidarem com certos tipos de enfermidades, não se farão de rogados em
lançar mão dos mais modernos antibióticos ou práticas cirúrgicas. Os psicólogos tão pouco
se farão de rogados em encaminhar ao psiquiatra o paciente que apresente um quadro
psicossomático “grave”, por assim dizer, e que coloca em risco a vida deste paciente.
Logicamente, sabemos que este paciente fará uso de medicamentos e utensílios de última
geração, produzidos sob os moldes da tecnocracia neo-liberal.

Neimeyer (1997), comunicação pessoal), reconhecendo esta necessidade, propôs-se organizar uma obra
convidando vários autores identificados com os modelos construtivistas e construcionistas a pronunciarem-se
sobre a legitimidade do diagnóstico e o conceito de psicopatologia” (p. 167).

200
Como propomos em seção anterior, a construção da idéia de doença mental no
Ocidente sofreu severamente com as desarticulações sócio-culturais, políticas e religiosas
que permearam a história da medicina européia. Contemporaneamente, ainda presenciamos
um grave quadro de estigmatização social decorrente da parafernália de nomenclaturas
desumanizantes que acompanham a classificação dos transtornos, ainda considerados em
grande medida como “transtornos da mente”. Este panorama, que ainda permeia as práticas
médicas e psicológicas, dificulta sobremaneira a encontrarmos uma via média que nos
possibilite diagnosticar sem estigmatizar e encarcerar o humano em uma manifestação
comportamental que é muito inferior à sua totalidade existencial. Mas devemos insistir que
não podemos desconsiderar os signos do adoecimento e que estes signos respeitam uma
organização funcional entre a estruturação de uma linguagem viciosamente circular e de
seus correlatos afetivos e somáticos-neurológicos. Neste sentido, ao usarmos nomenclaturas
como, esquizofrenia, transtorno bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo etc, não
intencionamos ultrapassar a singularidade constitutiva de cada manifestação destas
estruturas assim como, em hipótese alguma, corroboramos com práticas diagnósticas que
ultrapassam a compreensão da totalidade existencial humana ao lançar mão destas
classificações. Ao adotarmos termos como estes buscamos estratégias mais adequadas que
devem acompanhar a terapêutica, seja farmacológica, seja psicoterápica. Por outro lado, se
dispensamos qualquer parâmetro diagnóstico não podemos capturar os signos diferenciais
que permeiam as diversas manifestações de diferentes processos de adoecimento. Sem estes
instrumentos não poderíamos fazer uso das substâncias psicofarmacológicas por acharmos
irrelevante a funcionalidade que permeia os “discursos adoecidos” e seus devidos correlatos
afetivos, somáticos e neurológicos. Neste sentido, não poderiam ser indicados o uso de
antidepressivos, por exemplo, porque não acreditamos nesta nomenclatura ou em qualquer
estado estrutural que possa ser denominado, ou melhor dizendo, diagnosticado, enquanto
depressão. Com certeza, não devemos incorrer no esquecimento de que o diagnóstico é
uma abstração, não uma realidade externa e concreta. Aceitando-o como abstração,
podemos inseri-lo na dinâmica da vida para tratar dos problemas humanos, que estão em
constante mudança. Como argumenta Lopes (et.al. 2006):

“isso possibilita que o diagnosticar torne-se uma hipótese de trabalho (Hercovici,


1997, p.72), dando-nos uma orientação probabilística que, somada a uma relação

201
terapêutica cooperativa, abra novas possibilidades de exploração dos aspectos que
condicionam o sofrimento”. Como muito bem sinalizou Hercovici (1997, p. 73):
“Será uma entidade em evolução, que se utilizará para guiar a prática” (p. 8).

Ampliando a discussão, como já se posicionou o sociólogo português Boaventura de


Sousa Santos (2003):

“A metodologia racionalista constitui um avanço irreversível no aprofundamento


da consciência científica moderna. As críticas que se lhe podem dirigir não são por
não ter feito avançar essa consciência, mas por não ter feito tanto quanto podia e
devia. Assim, não se critica a metodologia racionalista por ser racionalista, mas tão
só por não o ser suficientemente. A linha geral da crítica hermenêutica
desenvolvida nesta seção é que a metodologia racionalista não retira (ou não aceita)
todas as implicações da concepção do conhecimento como construção teórica
levada a cabo num dado contexto social” (p. 75).

Também com Morin (2003):

“qual é o erro do pensamento formalizante-quantificante que dominou as ciências?


Não é, de forma alguma, o de ser um pensamento formalizante e quantificante, não
é de forma alguma, o de colocar entre parênteses o que não é quantificável e
formalizável. O erro é terminar acreditando que aquilo que não é quantificável e
formalizável não existe, ou só é a escória do real. É um sonho delirante porque nada
é mais louco do que a coerência abstrata” (p. 189).

Especificamente ao que viemos abordando, Maturana, Méndez e Coddou (1998),


adotam um posicionamento próximo ao qual buscamos apresentar:

“Em efeito, não dizemos que avaliações tais como saúde, doença ou patologia
tenham um lugar vazio operacional ou sejam simples fantasias. Pelo contrário,
estamos dizendo que para um observador que coloca a objetividade entre
parênteses, tais avaliações constituem a situação em que o distinguido, o
diagnóstico, se estabelece e define o domínio de ações possíveis do observador
diante do pedido de ajuda” (p. 155, grifo nosso)

Encontrarmos uma via média para compreensão do adoecimento requer então em não
desconsiderar o que Grandesso (2000) nomeia enquanto uma abordagem que respeita a
“localidade contextual” do sofrimento. Neste sentido, “o problema seria considerado como
um sistema de significados organizados pelo sofrimento do qual fazem parte todos os que
contribuem para esse sistema” (p. 246). Mas a compreensão estrutural do problema, ainda
que imersas em sua singularidade ou, nos termos de Grandesso, em uma “localidade

202
contextual”, requer uma inserção estrutural adequada. Nossa proposta, a seguir, é encontrar
uma “via média” para a compreensão do adoecimento e, sendo assim, um sistema
diagnóstico que não incorra nos resíduos promulgados pela modernidade e nem tampouco
no que consideramos anseio de um “romantismo fenomenológico” da clínica pós-moderna
em desconsiderar as diretrizes simbólicas da diagnose.

7.2 – De seres vivos a máquinas danificadas - Contribuições


para uma compreensão etiológica das psicossomatopatologias
em sistemas auto-organizados

De acordo com os pressupostos até então apresentados para se compreender o


desenvolvimento afetivo-cognitivo, assim como a complexidade de fatores que levam a um
adoecimento deste sistema, seria um equívoco considerável buscar esta compreensão nas
extremidades da díade mente-corpo. Pensamos ter explicitado suficientemente sobre esta
impossibilidade no decorrer de nosso estudo. Neste sentido, a integralidade humana só pode
ser continuamente explicada através de uma recursividade constitutiva entre mente e corpo.
Caso continuemos fiéis a estas considerações, seremos levados a incongruências
epistemológicas internas à psicologia que se manifestam, já de início, no contraditório
sentido etimológico do termo que designa este campo. Estas contradições internas, assim
como em suas relações com outros campos de conhecimento, se encontram longe de serem
solucionadas epistemologicamente e, em último sentido, institucionalmente.
Quando nos situamos teoricamente em um campo acadêmico, como a psicologia, e
aceitamos que este campo se concentra na área de “ciências humanas”, o que estamos
dizendo com isto? Bem, o que podemos dizer, com certeza, é que a psicologia não pertence,
tradicionalmente, ao campo das “ciências médicas” ou “biológicas” e vice-versa. Ora, a
princípio, este é um problema de cunho epistemológico, mas que ganha vertiginosa
envergadura sócio-cultural, política e econômica quando propomos compreendê-lo mais a
fundo (LATOUR, 1992). Como acrescentou Figueiredo (1997), a psicologia enquanto um

203
projeto independente é contraditório. Tudo leva a crer que a fragmentação da psicologia em
diversas escolas e matrizes psicológicas se revelou muito mais produtiva, já que perdura
contemporaneamente esta própria fragmentação. Logo, seria mais coerente criar no lugar de
uma psicologia “diversas áreas de estudos psicológicos adjacentes às disciplinas básicas:
biologia evolutiva, fisiologia, medicina, sociologia.” (FIGUEIREDO, 1997, p. 202).
Logicamente, a pesquisa se beneficiaria com a vocação interdisciplinar inerente a este
projeto e, em último sentido, com a transdisciplinaridade131. Como ainda acrescenta
Figueiredo, “não haveria um projeto de psicologia, mas vários projetos a partir dos quais se
definiriam diferentes objetos e procedimentos” (p. 203). E neste sentido questionamos:
como situaremos adequadamente este nosso estudo, caso adotemos as “compartimentações”
acadêmicas em vigor? Segundo a ótica transdisciplinar que viemos percorrendo para
compreender nossas construções afetivo-cognitivas, para “quem” devemos apresentar as
reflexões abordadas neste trabalho? Se esta tese for aprovada e, sendo assim, arquivada em
uma biblioteca universitária, deverá pertencer ao espaço reservado às ciências humanas ou
biológicas? Ao nos situarmos no campo da “psicossomática”, em acordo com os
parâmetros conceituais do paradigma da complexidade, rompemos, inexoravelmente, com
as compartimentações entre ciências humanas e biológicas.
Em uma conceituação clássica, todo distúrbio que comporta em seu determinismo um
fator psicológico interveniente, não de modo contingente, como pode ocorrer em qualquer
afecção, mas por uma contribuição essencial à gênese da doença, deve ser considerado
enquanto psicossomático (JEAMMET, et. al., 1989). Mas fiquemos atentos que ao
lançarmos mão deste termo não adotamos um posicionamento circunscrito, já que viemos
nos referindo, a todo momento, a uma construção afetivo-cognitiva que se inscreve nas
entrelinhas do campo mental e somático ou, nestes termos, em uma construção
“psicossomática”. Neste contexto, nos aproximamos mais do que Castiel (1994, p. 60)
considera enquanto “psicossômico”. A relação entre o psicossômico englobaria, em sua

131
- Segundo Bibeau (1992), “paralelamente (e contraditoriamente) à superespecialização assistimos a um
apagamento de fronteiras (pessoal-político; privado-público; local-global; individual-coletivo; sagrado-
profano; objeto-sujeito) que faz com que seja cada vez mais difícil ao pesquisador reencontrar-se nas práticas
de pesquisa. Não mais se sabe a que disciplina pertence o autor de uma dada pesquisa ou artigo científico.
Esta situação parece provocar um duplo efeito contrário. De um lado, encontra-se ambigüidade, caos e
incoerência seguida de fenômenos de fusão,mistura, hibridização e mestiçagem entre métodos e teorias; e de
outro lado, uma abertura de fronteiras, uma consideração dos contextos, uma desinsularização das
disciplinas”.

204
totalidade, processos integrados de transações entre diversos sistemas: somático, psíquico,
social e cultural. Indo mais além, Castiel (1994) alega que “não poderíamos nem mesmo
nos referir à doenças psicossomáticas, sugerindo que incorreríamos em formulação
tautológica, já que somos constituídos psicossomicamente” (p. 61). Esta é também a
posição de Dejours (1991, p. 94):

“Não há separação a fazer entre algumas doenças do corpo, que seriam mais
psíquicas, e outras, também do corpo, que o seriam menos. As doenças somáticas
são doenças do corpo que, na maioria das vezes, tem lesões orgânicas. Não é a
doença que é psicossomática e, sim, a abordagem clínica e teórica. (...) nem
existem, portanto, nem doenças psicossomáticas nem doentes psicossomáticos. Ou,
então, se fizermos questão dessa denominação, diremos, o que dá na mesma, que
todas as doenças são psicossomáticas, assim como todos os doentes” (p. 94).

Em uma concepção sistêmica, não seria coerente considerar o adoecimento em uma


relação verticalizada do tipo psico-somática ou somato-psíquica132, mas sim a partir da
totalidade do ser em sua intrínseca recursividade constitutiva. Logo, para uma compreensão
psicossômica da complexidade humana, não se deve se tratar de uma nova especialidade
médica ou psicológica, mas sim de uma visão integradora do “humano”, que é, em grande
parte, desconsiderada ao se compartimentar o estudo do Homem em campos “vaidosamente
autônomos”, como “ciências humanas” e “ciências biológicas”. Mas de acordo com Castiel
(1994), “a falta de conhecimentos consistentes sobre essa ordem de fenômenos mantém, de
forma inconclusiva, as controvérsias entre as teorias explicativas sobre a causalidade em
psicossomática” (p. 68). As leituras parecem oscilar, preponderantemente, pela psicologia
médica, subordinada à Medicina, pela a psiconeuroimunologia, pelas diversas leituras
psicanalíticas que buscam uma compreensão da relação soma-psique e,
contemporaneamente, com as pesquisas oriundas da neurociência. Surpreendentemente,
observamos um severo descrédito das escolas “psico-corporais”, advindas, sobretudo, das
extensas pesquisas do psiquiatra alemão Wilhelm Reich, enquanto valorosa fonte teórica
para a compreensão etiológica das “psicossomatopatologias”, assim como em seu amplo

132
- De acordo com Castiel (1994), “mesmo apregoando sua pretensão holística, a psicossomática
subordinada à medicina (com muitos pontos de contato com a corrente chamada psicologia médica)
permanece dicotomizada nos domínios do mental e do físico, reproduzindo de modo implícito o dualismo
corpo-mente. Na esfera do corpo, são descarregados os motivos inconscientes, emoções e postulados
irracionais, que devem ser controlados por um suposto eu racional para o qual as terapias são dirigidas” (p.
65).

205
leque de recursos técnicos para o tratamento das mesmas133. Ora, talvez tenha passado
desapercebido ao leitor que todas as escolas e correntes acima citadas e não filiadas ao
paradigama reichiano, refletem sobre as relações entre soma e psique mas, em hipótese
alguma, trabalham in totum nesta relação. Sendo mais específico, somente as escolas
advindas do paradigma reichiano, isto nos referindo ao campo da psicologia, refletem
teoricamente sobre as relações entre soma e psique para que, tecnicamente, possam agir
“concretamente”, sensorialmente, nesta relação. Como acrescenta José Ignácio Xavier
(2004), a clínica psicoterápica de enfoque corporal parece levar algumas vantagens sobre os
métodos predominantemente verbais:

“os procedimentos que implicam em experiência corporal no ambiente clínico são


padronizados e baseados em comportamentos filogeneticamente estabelecidos que
participam da ontogênese da singularidade enquanto plataformas universais e
invariantes das experiências infantis primitivas (...). A clínica corporal leva em
conta a expressão somática dos traços de caráter, isto é, a fenomenologia do corpo
como instrumento de rastreio da evolução terapêutica, o que torna a experiência
clínica acessível à quantificação e à geração de experimentos cegos e controláveis.
Além disso, a evolução dos casos no plano subjetivo pode ser confrontada com as
variações observáveis mediante tecnologias de imagem (vídeo), de neuro-imagem
cerebral e através de instrumentos de monitoração de parâmetros autonômicos ao
longo da evolução dos processos terapêuticos”(p. 49).

É neste sentido que devemos optar, enquanto uma valorosa fonte teórica para nossas
futuras reflexões, pelas propostas advindas do pensamento reichiano, assim como das
contribuições de pós e neo-reichianos. Estas escolas nos oferecerão um dos suportes
necessários para uma melhor compreensão dos aspectos etiológicos das afecções que

133
- Mesmo que fortemente inspiradas no “paradigma” reichiano, estas escolas apresentam inúmeras
pretensões originais. Neste contexto, podemos nos referir aos diversos movimentos neo-reichianos, que já
sustentavam um considerável alargamento das idéias originais de Reich, a partir novas aglutinações teóricas.
A designação neo, atribuída às inúmeras escolas que nascem a partir de grandes pensadores como Reich,
Freud ou Jung, carregam em seu bojo problematizações intrínsecas, caso se reflita epistemologicamente sobre
este termo. Segundo as inúmeras propostas “neo” teóricas apresentadas por “neo” reichianos, observa-se
generalizadamente uma ausência de concordância quanto às inovações. Têm-se conhecimento desde
propostas mais “conservadoras”, como a retomada da vegetoterapia por Frederico Navarro, até profundas
transformações estruturais do pensamento reichiano, apresentas pela bioenergética de Alexander Lowen. E
não paramos por aí. O pensamento reichiano também influenciou largamente a Biodinâmica de Gerda
Boysen, a Biossíntese de David Boadella, a Energética da essência de John C. Pierrakos e a Psicologia
Formativa de Stanley Kelemann. Também influenciou pensadores como Eric Fromm, Herbert Marcuse e o
pedagogo A.S. Neill, fundador da escola Summerhill e sua inovadora proposta pedagógica. Partiremos do
pensamento “puro” de Reich para que possamos, em espiral crescente, acrescentar algumas correlações
significantes e “originais”, condizentes ao contexto das afecções psicossomáticas.

206
afligem nossa unidade psicossômica134. Com isso não queremos dizer que nossa escolha
seja mais eficaz teórica ou tecnicamente. Optamos por estas escolas exatamente por
observarmos sua coerência não só teórica, mas técnica, com todo o discurso que viemos
sustentando até então. Ora, não basta refletirmos filosoficamente, como os fenomenólogos,
sobre como a percepção e a motricidade são os campos de revelação do mundo, campos de
experiências onde se fundem sujeito e objeto, e não um simples ato psíquico. Não basta
aceitarmos o “toque” das palavras e seus efeitos no corpo. Seguramente, não queremos
desconsiderar o “toque” da via simbólica, ainda porque ela é intrínseca a qualquer toque,
sensorialmente falando, que incide sobre o corpo. Bastaria citarmos a obra de Levi-Strauss
(1991) e de suas surpreendentes pesquisas sobre “eficácia simbólica” e as curas xamânicas
ou dos recursos técnicos advindos da psicanálise. Todavia, devemos estar aptos a vivenciar
esta jornada com aqueles que nos buscam não só pela linguagem, mas também pelo
“exercício” das vias sensórias e motoras. Seja no olhar, com o toque das mãos, na
compreensão e “manipulação” dos signos corporais que acompanham as falas; não basta
simplesmente pensar ou falar sobre a relação mente-corpo. Devemos vivê-la sensorialmente
no setting psicoterápico. Como acrescenta Xavier (1997):

“A partir da perspectiva da psicoterapia corporal, utiliza-se estímulos que remetem


à evocação das paisagens corporais ligadas a diferentes etapas evolutivas do
processo de amadurecimento da personalidade. Ao proporcionar a autopercepção
de variadas paisagens corporais, favorece o reconhecimento de padrões cognitivo-
comportamentais de crenças disfuncionais, tornando possível a continuidade do
amadurecimento da personalidade a partir de suas bases neurobiológicas e
lingüísticas” (p. 15).

Seguramente, não seria oportuno ao contexto deste estudo refletirmos extensamente


sobre as polêmicas que envolvem a proposta reichiana para a compreensão da relação
soma-psique. Como todo fundador de um movimento e como todo pensador de grande
envergadura, Wilhelm Reich não foi um homem de seu tempo, indo além das

134
- Diferentemente de linhas que também buscam resgatar a relação soma-psique, como o psicodrama, e que
trabalham essencialmente na dinamicidade desta relação através de diversas técnicas “corporais”, devemos
esclarecer ao leitor que qualquer formação séria em análise reichiana deve constar em sua grade curricular
disciplinas da área médica e, no mínimo, de anatomia e fisiologia. Tradicionalmente, o profissional com
formação nesta área deve deter pleno conhecimento da localização e funcionamento das cadeias musculares,
assim como compreensão das manifestações triviais do sistema nervoso autônomo e as conseqüentes
manifestações vegetativas.

207
possibilidades de aceitação e compreensão de sua obra por parte do meio acadêmico
tradicional. Foi expulso de vários países por defender uma “política sexual” que
desacobertava toda uma estrutura social vitoriana e que não suportava ir além dos modelos
representativos da libido, já divulgados pela psicanálise. Também tentou chegar a uma
síntese entre a base materialista da psicanálise e o marxismo dialético. Todavia, foi
criticado pelos marxistas, que não conseguiam ver uma interação entre sociedade e
sexualidade, assim como pelos analistas burgueses, que rejeitavam as implicações políticas
da saúde sexual/emocional. Propôs uma sólida base funcionalista, onde a “doença
emocional” não poderia estar separada de suas contrapartes orgânico/sociais. Foi
perseguido e considerado por muitos um charlatão, por pesquisar e defender a existência de
uma energia que preenchia todo o universo, a qual ele denominou como energia orgônica.
Com certa flexibilidade, poderíamos até mesmo propor que Reich foi, a sua maneira,
um pensador “sistêmico”, ainda que sua teoria, em “estado puro”, não possa gozar do status
epistemológico alcançado pelas correntes imersas no paradigma da complexidade. Mesmo
com todas as ampliações feitas por Reich para o entendimento das psicossomatoses a partir
da funcionalidade soma/psique, não foram abordadas adequadamente as dimensões
neurobiológicas destas relações, assim como a complexidade epigenética que parece
fundamentar este processo. Como acrescenta Xavier (2004):

“Na medida em que as explicações de ordem energética e de uma memória


emocional inscrita no corpo e não no cérebro me soavam insatisfatórias, abriu-se o
problema das bases neurobiológicas da relação entre atenção e as experiências
corporais que, na parte corporal do processo terapêutico, deixam a franja para
ocupar o centro da consciência” (p. 9).

O leitor poderá argumentar do porque de se lançar mão de um modelo que, em parte,


não satisfaz aos nossos propósitos. O motivo de tal escolha se alicerça, em primeiro lugar,
por desconhecermos algum outro projeto em psiquiatria-psicologia que fundamente tão
substancialmente as relações psicossomáticas, tanto em seus aspectos teóricos quanto
técnicos. Também devemos argumentar que este modelo é passível de ser refutado
exatamente por suas bases “materiais”, orgânicas, e que os avanços tecnológicos das
últimas décadas que vêm incrementando a compreensão das relações das bases materiais-
orgânicas e seus correlatos mentais contribuíram decisivamente para uma necessária

208
atualização do pensamento reichiano. Também fugiria às pretensões desta tese alicerçar
completamente um novo modelo que reflita sobre a teoria e a prática do campo
psicossomático.
Neste sentido, cabe-nos resgatar os elementos teóricos do pensamento reichiano que
são afins aos princípios básicos do paradigma construtivista, assim como devem ser
compreendidos e remodelados os limites conceituais da teoria reichiana a partir de
referenciais construtivistas, dos avanços da neurociência e da genética contemporânea.

7.2.1 – Análise do caráter, vegetoterapia e o funcionalismo


orgonômico – Uma breve incursão ao pensamento reichiano.

Não seria coerente aos propósitos deste trabalho refletir sobre todas as ramificações
teóricas e técnicas que emergiram da obra reichiana e tampouco sobre todas as
possibilidades de “atualização” de sua obra a partir das “releituras” e pesquisas de pós e
neo-reichianos. Como situamos brevemente o leitor, a obra de Reich se enveredou, a partir
da psiquiatria-psicologia, em relações interdisciplinares com a filosofia, a sociologia, a
biologia, a bioquímica, a medicina e a física, as quais o levaram a uma original
compreensão da arquitetura bioenergética humana. Cabe-nos, neste momento,
apresentarmos algumas reflexões que deverão nos orientar para uma compreensão mais
abrangente dos fatores etiológicos das afecções psicossomáticas.
Como alega Castiel (1994, p. 128), a noção de estresse desfruta da difusão em vários
contextos e que iria do senso comum, passando pelo campo das pesquisas biomédicas até as
epidemiológicas. Nesta contextualização, o índice de fatores estressores que incidem sobre
os organismos vivos seria o vetor explicativo central para a compreensão dos processos
psicossomatopatológicos. Bem, pensamos que este seria “um” dos pontos centrais que
contribuiria para uma melhor compreensão sobre a etiologia das psicossomatopatologias
em sistemas que deveriam estar aptos a se auto-organizarem ou, em termos reichianos, que
deveriam manter preservadas a capacidade pulsátil e auto-reguladora de seus sistemas

209
orgânicos135. O leitor poderia argumentar que se “organizar” na enfermidade ainda seria um
processo auto-organizador. Em parte, concordamos com esta colocação, já que a
enfermidade também reflete sobre um certo tipo de “otimização funcional” dos organismos.
Como Ramos (1994) acrescenta, se a totalidade implica saúde mais doença, a presença
desta última é inevitável. Uma doença não precisa necessariamente estar vinculada a um
processo “patológico”, pois pode ser a expressão de um novo símbolo que precisa ser
integrado, conscientizado, como parte do processo de individuação. Mas será que devemos
nos conformar passivamente com esta categoria de auto-organização? Caso nos
conformemos, porque insistir em sermos clínicos? Para compreendermos melhor todos
esses pontos, devemos fazer uma rápida e sucinta incursão ao pensamento reichiano para
que possamos, por fim, apresentar um quadro razoável sobre alguns fatores que contribuem
para uma compreensão etiológica das psicossomatopatologias.
Um dos fatores cruciais que levou Wilhelm Reich à “psicossomática” foi a ruptura
com a tese freudiana de que a libido se inscreve, preponderantemente, no campo das
representações. Devemos recordar que a psicanálise, em seus anos iniciais, esteve bastante
absorvida com o conceito de energia física (BOADELLA, 1985, p. 18). Mas, com o passar
dos anos, Freud voltou a se concentrar, preponderantemente, nos conteúdos e
representações da vida psíquica. Reich se negava a abandonar a relação entre sexualidade e
angústia e foi neste sentido que apresentou em 1924, no congresso psicanalítico de
Salzburgo, um minucioso estudo sobre a função do orgasmo e de como o potencial de
descarga orgástica estava em consonância com a possibilidade pulsátil do organismo e,
conseqüentemente, com sua capacidade auto-reguladora (REICH, 1986). A potência
orgástica, em moldes reichianos, seria retratada pela “capacidade de abandonar-se, livre de
quaisquer inibições, ao fluxo da energia biológica; capacidade de descarregar
completamente a excitação sexual reprimida, por meio de agradáveis convulsões do corpo”
(REICH, 1986, p. 94). Esta teoria foi recebida com severa frieza por seus colegas e não

135
- Devemos ser cautelosos em aproximar dois conceitos que, em essência, não são exatamente
correspondentes. A auto-organização, enquanto um conceito oriundo da cibernética, designa a capacidade de
alguns sistemas de tenderem dinamicamente para um estado de equilíbrio. Estes sistemas são capazes de
corrigir desvios do equilíbrio introduzidos por estímulos. Nos sistemas vivos, faz mais sentido falar-se em um
desvio de um equilíbrio dinâmico, e de uma auto-eco-regulação, ou seja, uma auto-regulação comum e mútua
do oganismo/meio ambiente. A auto-regulação foi um conceito usado por Reich na compreensão da economia
da energia do organismo (cf. OLIVEIRA, 2000). Todavia, desconhecemos qualquer aproximação de Reich

210
caberia, neste contexto, avaliarmos as repercussões epistemológicas, políticas e sócio-
culturais deste retorno ao corpo e a sexualidade no cenário da cultura européia e,
especificamente, do meio psicanalítico da década de 20 e 30. Mas devemos esclarecer ao
leitor que o conceito de “potência orgástica” deveria ser compreendido a partir da
globalidade dos diversos elementos que envolvem as relações humanas. Sistemicamente
falando, a experiência orgástica revelou para Reich a recursividade estabelecida entre as
diversas capacidades expressivas da sexualidade com seus correlatos psicológicos e
comportamentais. Logo, a teoria do orgasmo, proposta por Reich, não deve ser
compreendida isoladamente, fora do conjunto de fatores que constituem a fenomenologia
humana em toda sua amplitude.
A partir destas reflexões sobre a natureza econômica e dinâmica da energia sexual e
de seus sucessivos desdobramentos, deslocamentos e transformações no processo de
desenvolvimento humano, Reich se alertou para o papel fundamental dos fatores externos e,
sendo assim, sócio-culturais, que incidiam sobre as organizações humanas. A natureza das
relações humanas, com seus códigos de moralidade e legalidade, contribuía sobremaneira
para uma espécie de congelamento do sistema vivo e, conseqüentemente, da capacidade
auto-reguladora. Estes conflitos sócio-culturais, que eram experienciados nas diversas fases
do desenvolvimento humano, deixavam marcas específicas segundo as características
estruturais de cada fase. A estas manifestações psicossomatopatológicas, devidamente
retratadas não só pelos aspectos psíquicos e representacionais, mas também na unidade
biofísica, Reich introduziu o conceito de “blindagem de caráter” (REICH, 1989). Em sua
obra mais conhecida, Análise do Caráter, Reich (1989, p. 187) faz uma introdução
elucidativa sobre a formação e função do caráter. Sucintamente podemos conceituar o
termo “caráter” como sendo as características fundamentais de uma personalidade. Ao que
comumente nos referimos como manifestações comportamentais de brandura, severidade,
orgulho, nobreza etc, devemos considerar, em seu extremo, como sendo as diversas
manifestações da blindagem do ego136. O “caráter”, nos dizeres de Reich, é uma mudança
crônica do ego que se caracteriza por um enrijecimento e que tem como função primordial

com a teoria dos sistemas ou com a ciebernética, ainda porque Reich faleceu em 1957, quando estes campos
despontavam no cenário acadêmico.

211
defendê-lo dos “ataques” do mundo externo e, logicamente, de conteúdos internos. Esta
“blindagem” possui uma certa flexibilidade. Como acrescenta Boadella (1985):

“Reich, mais tarde, expressou sua compreensão do papel da blindagem do caráter


como uma ‘história congelada’. Um conflito básico que uma pessoa experienciou
em determinado estágio da vida deixava marca em seu caráter sob forma de uma
rigidez defensiva de atitude, comportamento e expressão. A rigidez do caráter
aprisionaria a carga emocional do conflito original, e protegeria contra as fortes
emoções surgidas na ocasião. Se agora a rigidez do caráter poderia ser interpretada
e dissolvida, a emoção congelada poderia fluir novamente. Havia assim uma
relação precisa entre a teoria econômico-sexual da emoção aprisionada e o conceito
de estrutura de caráter: a emoção era aprisionada na estrutura de caráter” (p. 45).

De acordo com Boadella (1985), “as conclusões teóricas de Reich sobre a relação
entre sexualidade e angústia, e o seu trabalho clínico na dissolução das couraças de caráter,
levaram-no às fronteiras do campo psicológico” (p. 101). Como a liberação da angústia
passou a ser promovida pelo trabalho direto nas cadeias musculares, assim como na análise
do caráter, Reich aprofundou suas pesquisas nas respostas vegetativas desencadeadas por
esta técnica, realizando inúmeros experimentos em busca de uma leitura qualitativa e
quantitativa do potencial biolelétrico. Em resumo, segundo Boadella (1985, p. 107), os
quatro campos pesquisados exaustivamente foram:

A fisiologia do sistema nervoso autônomo – As reações simpáticas eram idênticas à


resposta da angústia ou aos efeitos da adrenalina. As reações parassimpáticas eram
idênticas à resposta de prazer e aos efeitos colinérgicos.
A química da angústia – Foi constatado que injeções intramusculares de acetilcolina
contra-atacava os estados de angústia.
A eletrofisiologia dos fluídos do corpo – As propriedades eletrolíticas dos fluídos
corporais eram funcionalmente idênticas às propriedades do sistema nervoso
involuntário.
A hidro-mecânica dos movimentos plasmáticos dos protozoários – O processo de
expansão e contração na ameba era funcionalmente paralelo aos processos

136
- O termo “blindagem” é um tanto corriqueiro na obra de Reich. Por ele devemos entender, grosso modo,
como um processo de “enrijecimento crônico”, que assola não só o ego mas também, funcionalmente, toda a
organização somática.

212
desencadeados nos animais superiores e no homem pela rede mais vasta e complicada
de nervos vegetativos.

O objetivo terapêutico da análise do caráter, assim como do manuseio das respostas


vegetoterápicas, seria o de recobrar, através da funcionalidade soma-psique, o potencial de
descarga e auto-regulação dos organismos. Ao atuar nas “blindagens corporais” com
técnicas de massagem aprimoradas no decorrer da década de 30, Reich observou uma
espécie de “renascimento” da vida afetiva de seus pacientes, bem como de suas respostas
orgânicas. Uma capacidade de respiração mais plena, expressa por uma “onda” que partia
do diafragma para o tórax e de volta para o diafragma, passou a ser observada em pacientes
que se submetiam a um trabalho sistemático de desbloqueio das couraças caracteriais. Os
sentidos proprioceptivos e as sensações interoceptivas também experimentavam radicais
transformações devido ao trabalho profundo das cadeias musculares. Expressões
emocionais profundas e variadas eram experimentadas no processo vegetoterápico devido à
funcionalidade dos aspectos somáticos, psíquicos e emocionais. Um novo sentido de
corporeidade e de existência surgia no decorrer do trabalho.
Em trabalhos posteriores, Reich realizou exaustivos experimentos para uma
compreensão mais minuciosa da atividade bioelétrica da pele e mucosas e como estas
cargas se manifestavam de acordo com o nível de prazer e angústia, assim como seu
deslocamento pelo corpo. Foi observado que em estruturas corporais “angustiadas”, ou sob
estímulos que geravam medo ou desprazer, observava-se quedas acentuadas no
eletrográfico. Sentimentos de excitação agradável provocavam elevação (BOADELLA,
1985). Logicamente, todo o quadro bioelétrico registrado pelo oscilógrafo era
acompanhado por uma reposta funcional do aumento ou diminuição da respiração e da
tonicidade muscular. Seria neste sentido que as regiões corporais mais “encouraçadas”
responderiam com certas peculiaridades aos estímulos, e que facilitariam uma diagnose
funcional aproximada com os distúrbios psíquicos.
Os experimentos com a bioeletrecidade direcionaram seus trabalhos, cada vez mais,
para uma pesquisa pura, aplicada, em moldes laboratoriais. Já equipado com modernos
microscópios para sua época e equipamentos para fotografias seqüenciais, Reich observou
em soluções estéreis a presença de vesículas que se aglomeravam rudimentarmente. A estas

213
formas foi dado o nome de bion. Também observou outras formas menores, em forma de
lanceta, nomeando-as como bacilos-t. Os bions-pa, nome dado para diferenciar dos bacilos-
t, que eram maiores e com forma amebóide, demonstrava um aspecto energético saudável,
sendo que a inoculação em camundongos não gerava nenhum dano orgânico. Por sua vez, a
inoculação de bacilos-t gerava disfunções orgânicas graves no outro grupo-controle de
camundongos. A partir destes experimentos, Reich passou a verificar a vitalidade biológica
dos tecidos e do sangue137.
Dos desdobramentos destas pesquisas, Reich verificou, a partir de análises
microscópicas, três tipos de manifestações energéticas do sangue (BOADELLA, 1985, p.
185-186).

Teste de desintegração - O interesse de Reich volta-se para a aparência visual dos


corpúsculos vermelhos do sangue e seu ritmo de desintegração. No sangue de ratos
cancerosos, a desintegração começa imeditamente. No sangue de ratos saudáveis,
somente depois de três ou quatro minutos.
Teste de cultura do sangue – Uma gota de sangue é inoculada em um meio para
cultura, em situação esterilizada. O sangue de ratos cancerosos apresentava bacilos-t,
deixando a infusão pútrida. Em contrapartida, o sangue de ratos saudáveis deixava a
infusão com uma aparência clara e sem manifestação de putrefação.
Teste de resistência biológica – O sangue doente se desintegrava e degenerava
rapidamente após ser aquecido. O sangue saudável se desintegrava em grandes flocos
acastanhados que se degeneravam lentamente.

Pelo fato de o sangue ser o tecido mais dinâmico do corpo humano, há um processo
contínuo de renovação. Do ponto de vista reichiano, o sangue seria um indicador do vigor

137
- Uma descrição mais aprofundada deste período de pesquisas experimentais de Reich extrapola nossas
pretensões neste momento. No entanto, podemos compartilhar com o leitor que toda esta pesquisa foi
minuciosamente documentada em periódicos da época e foi compartilhada com outros estudiosos, dentre eles,
Dr. Louis Lapique do laboratório de Fisiologia Geral da Sorbonne e de Roger du Teil, da sociedade de
Filosofia Natural de Nice, recebendo pareceres positivos (BOADELLA, 1985, p. 142). Também devemos
acrescentar que, a partir destes experimentos, Reich ingressou em pesquisas que constatavam a possibilidade
de uma “energização artificial” dos bions por irradiação, o que levou-o a nomear esta irradiação que partia
dos bions energizados de orgônio. Daí nasce também seu interesse em “manipular” o orgônio atmosférico
através de acumuladores (caixas espaciais, construídas com materiais específicos para acumulação do orgônio
atmosférico) no intuito de atuar na “descongestão” energética das biopatias.

214
biológico do organismo, devido as propriedades que possuem os eritrócitos para transportar
energia orgônica. As hemácias seriam responsáveis pela distribuição desta energia para
todo o organismo. Um sangue saudável, com boa mobilidade e luminescência, é um bom
indicador de saúde.
Com os avanços da neurociência e com os acréscimos trazidos pelas diversas leituras
que emergiram de uma compreensão complexa das organizações vivas, poderíamos
questionar se paradigma energético (libidido) introduzido por Freud e, posteriormente,
apropriado e reformulado por Reich a partir da vegetoterpia, seria o único fator na etiologia
das psicossomatopatologias. Ainda que a teoria do orgasmo seja a “pedra fundamental” do
pensamento reichiano – já que a compreensão econômica da libido é considerada enquanto
fator central para o entendimento da saúde e da doença psicossomática – não deixaremos
de destacar a possibilidade de outros fatores que, no nosso caso, referem-se às propostas
contemporâneas da neurociência e do construtivismo radical. Como acrescenta Xavier
(2004, p. 7):

“a posição de Reich acaba desembocando num radicalismo energético e


reducionista, pois, nesta perspectiva final o corpo fica reduzido a um tubo por onde
circula ou pára a energia e a subjetividade emerge como um mero epifenômeno de
uma desordem energética de tipo hidráulico: restaura-se o fluxo e o balanço entre a
entrada e a saída de energia e tudo estará resolvido” (p. 7).

Devemos considerar que os organismos se estruturam seletivamente e sempre a partir


de suas possibilidades estruturais. Lembremos que a história interativa do organismo nos
fala dos fatores desencadeados pelo meio mas determinado pela estrutura do sistema.
Ainda assim, podemos considerar a “função orgástica” enquanto um importante vetor de
saúde, já que a sexualidade é, seguramente, uma das mais profundas e essenciais
manifestações humanas. Quando Reich se refere à potência orgástica, não está se limitando
a uma simples manifestação mecânica da sexualidade, mas à sua intima relação com nossa
capacidade de amar e trabalhar. Para reichianos mais ortodoxos, poderá parecer que
estamos inviabilizando a teoria econômico-sexual de Reich já que não a consideramos,
fundamentalmente, como “o” aspecto central na consolidação da saúde ou na gênese das
enfermidades psicossomáticas, e sim como fator complementar à complexidade humana.
Mesmo assim, acreditamos que a teoria econômico-sexual proposta por Reich demarca,
para o observador, o “caminho trilhado” pelos organismos em seu viver, em sua conduta e

215
capacidade afetiva. Neste sentido, a compreensão do que Reich define enquanto
manifestações de caráter “genital” ou “neurótico” deve ser flexibilizada e inserida em um
contexto diagnóstico coerente aos parâmetros epistemológicos a partir dos quais viemos
fundamentando nossa pesquisa.
Como já nos posicionamos, não consiste dos propósitos de nossas investigações
abordar a obra de Wilhelm Reich em todos os seus aspectos teóricos, que iriam desde suas
intrigantes celeumas com a psicanálise até a relevância de se perscrutar a consistência
científica que permeia, ou não, seus experimentos da fase orgonômica. Para que a obra
reichiana possa ser compreendida em toda sua envergadura, deve-se contar com esforços
acadêmicos ou de pesquisas aplicadas que rumem a um detalhamento e aprofundamento
das inúmeras reformulações conceituais inspiradas na psicanálise freudiana e, logicamente,
do paradigma da funcionalidade soma-psique edificado no período da análise do caráter, da
vegetoterapia e da orgonomia. Estes seriam esforços mínimos para se sobrevoar os efeitos
interdisciplinares ou, até mesmo arriscamos em dizer, transdisciplinares, arregimentado na
obra de Reich e a partir dos esforços pós e neo-reichianos. Exatamente por ser uma obra
que possibilita múltiplas entradas de pesquisa, devemos delimitar o território a ser
abordado. Neste sentido, focaremos os seguintes pontos:

a) O papel da consolidação da couraça caracterial e de suas repercussões no sistema


sensório-motor e, conseqüentemente, na cristalização do sistema cognitivo-afetivo.
b) Nas técnicas corporais de bases neurofisiológicas, inspiradas sobretudo na
somatopsicodinâmica de Frederico Navarro (1995a, 1995b,1996a, 1996b)

7.2.1.1 – A couraça caracterial

De acordo com Elsworth F. Baker (1980), um dos mais destacados colaboradores e


continuadores da obra de Reich, o estudo de um protozoário, como a ameba, pode nos
ajudar a compreender como se instala o processo de encouraçamento em organizações

216
humanas. Ora, devemos lembrar que a base funcionalista que percorre a obra de Reich nos
permite a aplicação de experimentos, em escala microscópica, para a compreensão do
comportamento humano. Este tipo de reflexão não nos é estranha, já que Maturana e Varela
fazem uso do mesmo método para explicar a diversidade dos acoplamentos estruturais que
iriam desde organizações microscópicas até organizações humanas.
Uma ameba se locomove por “pulsações”, alternando entre a expansão e a contração
de seus pseudópodos. Este movimento é decorrente da transformação do alimento em
energia motora, e a ameba se configura estruturalmente para envolver as partículas
alimentares. Quando uma ameba sofre uma agressão do meio como, por exemplo, uma
alfinetada, há uma contração defensiva imediata. Caso seja apenas uma alfinetada branda, e
de forma que não rompa com sua organização vital, a ameba voltará, em um breve espaço
de tempo, à sua rotina natural de expansão e contração em busca de alimento. Caso o
estímulo agressor perdure, a ameba apresentará um padrão locomotor “anômalo”, já não
demonstrando sua harmonia e capacidade pulsátil inata. Se os ataques persistirem, a ameba
permanecerá em contração, exibindo um comportamento defensivo crônico, retratado por
um “encouraçamento” locomotor. Caso os ataques perdurem ainda mais, mesmo com a
ameba em um estado de contração crônica, haverá a interrupção da produção de energia no
interior de seu organismo, o que a levará à morte. De acordo com a visão funcionalista de
Reich, esta demonstração é comparável aos mecanismos básicos de agressão do meio
contra qualquer vida animal. O corpo humano, ainda que infinitamente mais complexo do
que uma ameba, também se encontra, mais ou menos, em um ininterrupto processo de
expansão e contração. Este processo é facilmente observável na respiração, nos batimentos
cardíacos, na locomoção, na curva orgástica (tensão-carga-descarga-relaxamento) e no
sistema sanguíneo. O sistema nervoso central e periférico estabelece a direção do fluxo
bioquímico e energético que atua na abertura e no fechamento de vários sistemas orgânicos.
Este fluxo “energético” é vivenciado como emoção. Como Baker (1980) nos esclarece, a
raiva decorre “de um fluxo de energia para os músculos; o prazer, semelhante à expansão,
resulta de um fluxo energético para a superfície da pele; e a ansiedade acontece se o fluxo
se dirige para dentro dos órgãos, causando necessariamente uma contração do organismo”
(p. 34).

217
Como vimos no exemplo da ameba, a contração é uma atitude orgânica reflexa que
retrata o mecanismo de defesa frente a uma agressão. No caso do homem, se determinado
padrão de defesa - o qual se expressa através de uma plasticidade corporal - se torna
crônico, observamos a instauração de uma couraça muscular e, funcionalmente, uma
couraça caracterial, principalmente se as agressões incidem em seu período de
desenvolvimento afetivo-cognitivo. A princípio, o enrijecimento do sistema muscular seria
essencial enquanto mecanismo inicial de autopreservação e do estabelecimento de uma
resposta de luta ou fuga. Todo este sistema, coordenado pelo sistema nervoso central e
periférico, deve possuir mobilidade e plasticidade suficientes para nos adaptar às inúmeras
situações cotidianas que nos cercam, isto nos mais diversos ambientes e culturas do planeta.
Os organismos vivos devem regular o excesso energético através do exercício da vida
mental, emocional-sexual, excretória, térmica e sensório-motora no intuito de evitar uma
sobrecarga do sistema. Todavia, a cultura, o “princípio da realidade” e, em seu extremo, a
desvirtuação “mais-repressiva” dos ditames sócio-culturais levaram a um quadro
generalizado de encouraçamento civilizatório. Não caberia, neste contexto, refletir sobre as
culturas que promoveram condições sócio-culturais mais adequadas para a auto-regulação
das expressões humanas, mas com certeza podemos dizer que este não é o caso de nossas
bases judaico-cristãs. Mesmo assim, se não podemos interceder tão prontamente a nível
social, podemos interceder, até um certo ponto, em nossas consciências e em nossas
relações mais próximas. Podemos interromper a cadeia compulsiva dos atos maquinizados,
que nos são passados de geração para geração familiar, e assim atenuar, de alguma forma,
este poderoso ciclo sócio-cultural de encouraçamento.
Mas como se realiza o processo de encouraçamento? O que podemos compreender
deste processo em maiores detalhes? Para se compreender integralmente a teoria da
formação do caráter proposta por Reich, deve ser aceito paralelamente o modelo do
desenvolvimento psicossexual proposto por Freud. Este modelo consistiria, em termos
gerais, em se aceitar a existência de uma “energia sexual” denominada libido, a qual se
expressaria “secundariamente” ao instinto de sobrevivência. Decorrente de um processo
evolutivo, a libido estaria “ancorada” inicialmente na zona oral, deslocando-se
posteriormente para a zona anal e, por fim, genitalizando-se, sendo que este transcurso seria
vivenciado das mais diversas maneiras e com as mais diversas possibilidades de

218
estruturação afetivo-cognitiva. Também deve ser enfatizada a trama simbólico-mitológica
vivenciada pela criança, segundo a psicanálise, em seu período de genitalização da libido,
denominada complexo de Édipo.
Não há duvida de que esta compreensão do desenvolvimento humano merece nosso
devido respeito, muito pelo fato de um generoso número de destacados estudiosos adotarem
tal modelo na compreensão da consolidação das inúmeras variáveis possíveis de
manifestações do desenvolvimento afetivo. Contudo, não temos a intenção de privilegiar
este modelo de perfil “psicossexual”, assim como de sua “culminância edípica”, além das
variáveis simbólicas e conceituais que envolvem este paradigma energético. Optamos por
compreender a formação da couraça caracterial por uma aproximação “fenomenológica”
das manifestações etológicas, rumo a um aprofundamento que se norteará
preponderantemente pelas contribuições neurocientíficas e construtivistas.

7.2.1.2 – A formação da couraça caracteriológica

Reich (1989) define “caráter” enquanto:

“um fator essencialmente determinado de modo dinâmico, manifesto no


comportamento característico de uma pessoa: o andar, a expressão facial, a posição
dos pés, a maneira de falar e outros comportamentos. Esse caráter do ego é
moldado por elementos do mundo exterior, a partir de proibições, inibições do
instinto e as mais variadas formas de identificação” (p. 150).

A princípio, a formação do caráter deve ser compreendia enquanto uma etapa natural
do processo civilizatório vivido pela criança, ou seja, a introjeção da cultura se faz
inevitável. Mas Reich (1989) nos chama a atenção para a maneira como este processo se
estabelece: “se o encouraçamento do caráter excede um certo grau (?); se utilizou
principalmente os impulsos dos instintos que em circunstâncias normais (?), servem para
estabelecer o contato com a realidade; se a capacidade de satisfação sexual tem sido muito

219
restrita (?)138 – então existem todas as condições para a formação do caráter neurótico” (p.
167). A seguir, são enumerados os seguintes critérios que apontam para a severidade como
será construído o caráter, logo, para uma “patologização caracterial”:

- a fase na qual o impulso é frustrado;


- a freqüência e a intensidade das frustrações;
- os impulsos contra os quais as frustrações são principalmente dirigidas;
- a correlação entre indulgência e frustração;
- o sexo da pessoa principalmente responsável pela frustração;
- as contradições nas próprias frustrações.

Decorrente dos aspectos qualitativos e quantitativos dos estímulos recebidos pela


criança em seu processo de desenvolvimento, seria demarcada a natureza de sua
organização afetivo-cognitiva ou, em termos reichianos, sua organização caracterial. Logo,
Reich (1989, p. 149) considerou que características comportamentais como: a severidade
ou a brandura, a nobreza ou a vileza, o orgulho ou a subserviência seriam formas diversas
que, em seu extremo, denotariam o encouraçamento do ego contra os perigos do mundo e
também o que Reich considerou enquanto exigências instintivas reprimidas do Id. O caráter
seria então uma “mudança crônica do ego que se poderia descrever como
enrijecimento”(Id., ibid., p. 149). Este enrijecimento protegeria a consciência139 dos perigos
externos e internos, restringindo a mobilidade das funções afetivas e cognitivas.
O modo de funcionamento da couraça é proporcional à relação de prazer e desprazer
estabelecida nas diversas situações vivenciais. Análogo ao funcionamento de uma ameba,
em situações de prazer há expansão e, no desprazer, há contração. Então, “o grau de
flexibilidade do caráter, a capacidade de se abrir e se fechar ao mundo exterior, dependendo
da situação, constitui a diferença entre uma estrutura orientada para a realidade ou uma
estrutura de caráter neurótico” (REICH, 1989, p. 149).

138
- Quanto às interrogações, estas se referem a nossa dúvida sobre o que Reich quer dizer com “excesso”,
“normais” ou “restritas”. Buscaremos contribuir com algumas reflexões, oportunamente, para uma melhor
apresentação destas relações na estruturação do caráter.
139
- Usaremos o termo “consciência” no lugar de “ego” por ser mais afim com as construções teóricas e
conceituais das ciências cognitivas.

220
Os fatores etiológicos que levam ao estabelecimento da couraça caracteriológica são
decorrentes da má resolução entre as necessidades-intenções das mais diversas ordens que
habitam qualquer organismo humano em relação com as proibições culturais das mais
diversas ordens. Conseqüentemente, o medo da punição leva o organismo a se organizar de
forma contida que, por sua vez, ameaça a consciência na possibilidade de uma irrupção. A
solução se faz na transformação da consciência, ao se estabilizar por meio de seu
enrijecimento, promovendo a manutenção de traços de caráter. Estes traços visam, em
último sentido, camuflar e restringir as necessidades passíveis de serem punidas. Então, de
acordo com Reich (1989):

“a frustração contínua das necessidades naturais primárias leva à contração crônica


do biosistema (couraça muscular, simpaticotonia). O conflito entre os impulsos
primários inibidos e a couraça produz impulsos secundários anti-sociais (sadismo
etc); no processo de irrupção através da couraça, os impulsos biológicos
transformam-se em sádicos-destrutivos” (p. 154).

No trabalho empreendido na “análise do caráter”, as atitudes comportamentais estão


relacionadas diretamente com uma configuração corporal específica, e o espasmo de um
grupo muscular é o dado somático do processo de repressão e a base de sua contínua
preservação. Neste sentido, há uma funcionalidade entre a manifestação de uma
“consciência encouraçada” e seus correlatos corporais; a couraça do caráter e a couraça
muscular são funcionalmente idênticas. Os sete segmentos do corpo, passíveis de serem
encouraçados, seriam:

1 nível – olhos, ouvidos, nariz


2 nível – boca
3 nível – pescoço
4 nível – tórax e braços
5 nível – diafragma
6 nível – abdômen
7 nível – pélvis e pernas

221
De acordo com Navarro (1996a), “nesses níveis é possível localizar as instâncias
psicológicas ‘bloqueadas’ (e não apenas no sentido simbólico) que podem expressar na
linguagem do corpo as problemáticas dos indivíduos mesmo que ele não verbalize” (p. 16).
Como Reich (1986) alegou, se um impulso de chorar é reprimido, não somente os lábios se
tornam tensos, “mas toda a musculatura da boca e do queixo, e assim a musculatura da
garganta; em suma, todos os órgãos que entram em ação como uma unidade funcional, no
ato de chorar” (p. 256). Qualquer emoção não expressa ficará retida a nível muscular e
visceral, promovendo, neste sentido, fecundas reflexões para o campo da psicossomática.
Reich (1986), portanto, defendeu a tese de que:

“dissolvendo atitudes crônicas de caráter, produzimos reações no sistema nervoso


vegetativo. A irrupção no campo biológico é muito mais completa e carregada de
energia, quanto mais completamente tratamos não só as atitudes de caráter, mas
também as atitudes musculares correspondentes” (p. 254).

A doença emocional seria para Reich uma perturbação crônica do equilíbrio


vegetativo e da motilidade. A reestruturação deste panorama energético incorreria “em uma
mudança na interação das forças no mecanismo da vida vegetativa” (REICH, 1986, p. 255).
Todavia, como já propomos, Reich se fixou excessivamente no paradigma energético
herdado, em parte, da psicanálise. Também não contava com suporte científico que o
esclarecesse da importância dos fatores genéticos para a contribuição etiológica das
variadas estruturações caracteriais, além de não atribuir devida importância ao sistema
nervoso central, focando-se exclusivamente nos aspectos periféricos do sistema nervoso
autônomo.

7.2.1.3 - As contribuições de Frederico Navarro para uma compreensão


terapêutica da couraça caracteriológica

222
Frederico Navarro, um dos nomes mais destacados do cenário pós-reichiano
contemporâneo, ofereceu valorosas contribuições teóricas e técnicas sobre a etiologia e
manuseio terapêutico da couraça caracteriológica. De início, demarcou os limites de sua
filiação ao discurso reichiano, intitulando-se “vegetoterapeuta”. Atribuiu a esta a decisão, e
concordamos em parte com ela, o fato das pesquisas da fase orgonômica de Reich
carecerem de uma fundamentação científica mais consistente (NAVARRO, 1996a, p. 8).
Como ponto dissonante de nossa proposta inspirada no paradigma da complexidade,
Navarro “acreditava” (este seria o termo mais adequado) em uma “miraculosa”
previsibilidade do processo psicoterápico, em moldes teleológicos, propiciada pelo trabalho
“linearmente” sistemático dos anéis de couraça. Sendo assim, defendia a possibilidade de
uma espécie de “nirvana” terapêutico pós-desbaratamento da couraça caracterial e,
conseqüentemente, a instauração do “caráter genital”. Vejamos uma citação deste autor:

“Se não fosse (e é!) por temor à presunção, poderia dizer que nossa metodologia
reichiana ‘cura’, entendendo por cura que ela não se limita a analisar e a relaxar ou
compensar, mas que – considerando todo o aspecto da psicopatologia como uma
expressão da imaturidade psicológica e caracterial ligada ao corpo – o trabalho
terapêutico com o corpo proporciona sua maturação funcional, chegando a
genitalização” (NAVARRO, 1996a, p. 10)140.

Ainda que Navarro não se intitule enquanto um pensador inspirado nos parâmetros
cientificistas da modernidade, fica claro que ele não percebe as armadilhas conceituais, de
base epistemológica, às quais acaba sendo envolvido. Neste sentido, talvez seja mais
proveitoso demarcarmos outro ponto básico que é destoante com nossas propostas para
então apresentarmos algumas valorosas contribuições de Navarro. De acordo com Xavier
(2004):

“Navarro mantém fidelidade ao paradigma energético reichiano (...) Embora


buscasse a aproximação com o modelo neurofisiológico de MacLean, sua
perspectiva ainda se mostrava tolhida pela visada energética e periferialista de

140
- A técnica reichiana é perigosamente sedutora por ser “ontologicamente” tangível em sua “materialidade”.
Neste sentido é compreensível, até um certo ponto, a contundência de Navarro. Esta talvez seja a típica
contundência observada em um substancioso número de terapeutas corporais. O trabalho no-com o corpo, em
moldes ou tendências reichianas, oferece ao terapeuta uma compreensão “material” da evolução (ou não) do
tratamento que dificilmente é experienciado por outras correntes preponderantemente verbais.

223
Reich, localizando no corpo a sede dos processos emocionais e perpetuando um
dualismo do tipo corpo x cérebro ou razão x emoção” (p. 154).

Curiosamente, este não deveria ser mais um problema para Navarro, já que poderia ter
acesso as mais recentes pesquisas em neurobiologia e neuropsicologia. Enquanto um
neuropsiquiatra de formação, é um tanto destoante a crença de que “a memória intelectiva é
fixada nas células nervosas e a memória emotiva é inscrita nas estruturas musculares que
expressam determinada emoção” (NAVARRO, 1996a). Tampouco fez uso dos avanços das
pesquisas genéticas, em relação as quais aprofundaremos oportunamente, na compreensão
da relação recursiva que é estabelecida entre hereditariedade e fatores ambientais. Navarro
ainda continua na trilha de Reich, enfatizando preponderância dos fatores ambientais na
consolidação das afecções psicossômicas.
Por outro lado, Navarro contribuiu com aportes valorosos que enriqueceram
substancialmente a obra reichiana, especificamente aquela relativa ao período
vegetoterápico. Uma de suas mais importantes contribuições refere-se ao método
sistemático de intervenções corporais, em acordo com os sete segmentos, denominados
actings. Esta técnica consiste em propor ao analisando determinados exercícios corporais, e
que seriam intencionalmente organizados segundo parâmetros etológicos. O trabalho com
os actings possui a intenção básica de “fazer vibrar” o segmento em questão e, neste
sentido, desencadear alguma manifestação emocional, assim como seus correlatos
neurovegetativos. Cada segmento possui, funcionalmente, um “leque” de actings, os quais
devem ser aplicados conscienciosamente, em silêncio, respeitando um tempo determinado o
qual vai sendo progressivamente aumentado e de acordo com um encadeamento que deve
respeitar um sentido céfalo-caudal, ou seja, começa-se com actings do primeiro segmento
e, paulatinamente e de acordo com o sucesso do desbloqueio do segmento em questão,
passa-se ao próximo. Segundo Navarro (1996a), para uma compreensão mais elucidativa no
trabalho dos actings, em acordo com os respectivos segmentos, deve ser pontuada uma
confusão conceitual que se estabelece entre afeto e emoção. De acordo com o autor, “as
emoções são expressões de uma reação, e os afetos são expressões de uma motivação” (p.
43). Vejamos a sequência a seguir, proposta por Navarro (Id., ibid., p. 43), das emoções e
afetos funcionalmente “ancorados” nos respectivos segmentos, assim como os respectivos

224
actings141 que devem mobilizar esta relação funcional. Devemos estar atentos para a
dinamicidade relacional que não é retratada nesta estática esquematização:

1º nível : (olhos, ouvidos, nariz)


Emoção: alarme, medo, terror, pânico
Afeto: surpresa, espanto, embaraço, desorientação
Actings: mãos em “conchas” sobre as orelhas; olhar para um ponto de luz (pequena
lanterna) fixo; etc.

2º nível : (boca)
Emoção: comoção, nojo, gosto, separação, agressividade
Afeto: depressão, ressentimento, raiva, apego, dependência
Actings: olhar para um ponto de luz em movimento de aproximação (convergência
dos olhos) e afastamento; rotação dos olhos; ficar com a boca aberta; sugar o ar com a
boca em forma de bico e soltar ar com sonoridade; morder uma toalha olhando para
os lados; etc.

3º nível : (pescoço)
Emoção: abandono, medo de cair, medo de morrer, inibição
Afeto: simpatia, antipatia, interesse, orgulho, isolamento
Actings: olhar ponto de luz em movimento de lateralização da esquerda para direita e
vice-versa, mastigando uma toalha; ficar com a cabeça suspensa para fora do divã.

4º nível : (tórax, braços e mãos)


Emoção: nostalgia, ira, angústia
Afeto: tristeza, solidão, felicidade, amor-ódio, incerteza, ambivalência
Actings: abrir e fechar as mãos com as costas das mãos apoiadas no divã; bater os
punhos no divã dizendo “eu”.

141
- Devemos esclarecer ao leitor que esta exposição é meramente ilustrativa e panorâmica. Não serão citados
todos os actings relacionados aos segmentos, a forma como devem ser utilizados, assim como as expressões
emocionais-afetivas que surgem deste trabalho. Para maiores detalhes, e que são muitos, remetemos o leitor à

225
5º nível : (diafragma)
Emoção: angústia, ansiedade
Afeto: hostilidade, serenidade
Actings: “respiração de remador”, inspirando e puxando os joelhos até o peito e
expirar sonorizando um “haaaaa”; inspiração longa e profunda, vocalizando um
“haaaaa” descendo os ombros e levantando a pélvis do divã.

6º nível : (abdômen)
Emoção: agitação, desespero
Afeto: dor, cólera
Actings: com as pernas dobradas e apoiadas no divã, levantar pévis sem reter o ar e
movimentá-la transversalmente.

7º nível : (pévils, pernas e pés)


Emoção: excitação, apego, prazer, destrutividade
Afeto: potência, moralismo-repressão, autoritarismo
Actings: com as pernas esticadas, dar chutes no divã dizendo “não”.

E o que seria considerado enquanto um desbloqueio bem sucedido? Nos termos de


Navarro (1996a), “a condição do desbloqueio realiza-se quando o indivíduo, que no
princípio percebia aquele acting como desagradável ou indiferente, passa a senti-lo como
agradável” (p. 18). Consiste ao terapeuta “ler” para o paciente a forma e o conteúdo das
manifestações corporais promovidas pelos actings, buscando associações com sua história
de vida, seu cotidiano e sua cultura.
Um outro ponto de relevância da releitura da obra reichiana promovida por Navarro
refere-se à importância concedida ao período embrionário, fetal, neonatal e pós-natal do
desenvolvimento. Ainda que, novamente, Navarro privilegie preponderantemente as
interferências ambientais enquanto fatores que determinariam a “saúde energética” destas

obra acima citada. Oportunamente, observaremos a relevância deste trabalho segundo aportes
neurocientíficos.

226
etapas, os actings dos primeiros segmentos, relativos às manifestações emocionais mais
primitivas, podem promover ab-reações as quais, funcionalmente, podem levar a uma
compreensão psicodinâmica. Nestes períodos pré-verbais, os actings são, seguramente,
preciosas ferramentas por oferecerem ao analisando um veículo de expressão condizente à
ausência de signos lingüísticos. A própria vivência sensorial e emocional promovida pelos
actings podem ser salutarmente restruturantes e, até mesmo, dispensando o uso
“esclarecimentos” verbais.
Como propusemos em segmento anterior, todo o período pré-verbal do
desenvolvimento que estaria compreendido nas fases: embrionária, fetal, neonatal e pós-
natal (sensório-motor), merecem uma atenção especial por serem etapas extremamente
sensíveis a perturbações, as quais são geradas a pelos acoplamentos estruturais com a mãe e
com o ambiente. Se nos referimos a todo tempo sobre uma unidade funcional soma-psique
seria, da maior importância, e coerência, compreender como se desdobra o
desenvolvimento humano desde a fecundação. Neste sentido, devemos fazer uma breve
incursão aos princípios básicos da somatopsicodinâmica de Navarro (1996b).

7.2.1.3.1 – Princípios básicos da somatopsicodinâmica

Navarro (1996b) relata que de acordo com experiências em microbiologia realizadas


na Universidade de Boulder, nos EUA, com auxílio de um poderosíssimo microscópio
eletrônico, foram observados alguns dados importantes sobre o comportamento celular em
situações adversas :

“no interior da célula viva, há uma rede trabercular formada principalmente de


actina e miosina. Quando as condições ambientais se tornam negativas para a vida
da célula (baixa temperatura, presença de determinadas substâncias etc), esta se
contrai, adotando uma forma esférica para reter melhor a energia necessária à
sobrevivência. Se as condições negativas duram pouco tempo, a célula retorna sua
morfologia primitiva; caso contrário, permanece esférica e, após certo período,
morre” (p. 16).

227
Neste sentido, Navarro argumenta que o encontro entre espermatozóide e óvulo já
poderia ser considerado enquanto uma “psique primordial”, a qual se estabeleceria em
sintonia com as perturbações e agressões do meio e que a emoção decorrente desta agressão
seria o medo. Ora, esta não seria uma leitura equivocada se também retomarmos a tese de
Maturana e Varela de que não seria necessário, de fato, haver uma “mente” para ocorrer
cognição. Ainda que Navarro “ventile” a possibilidade de deficiências genéticas enquanto
vetores de algumas afecções graves, como síndrome de down e fenilcetonúria, ainda assim,
privilegia a ação do ambiente sobre o embrião. Não discordamos em absoluto de que os
fatores estressores (endocrinológicos, intoxicações, distúrbios emocionais graves) poderiam
interferir negativamente na maturação do embrião e do feto, já que “as funções enzimáticas
são alteradas e o DNA recebe e envia mensagens distorcidas”. Como observaremos
oportunamente, esta relação entre gen e ambiente é bem mais complexa e as pesquisas
contemporâneas desabonam a forma generalista com que Navarro trata a questão dos traços
herdados, atribuindo às condições estressoras do ambiente o veículo responsável na
instauração das psicossomatopatologias.
Em continuidade, Navarro alega que no período fetal, “igualmente fusional”, o
desenvolvimento também pode ser afetado em decorrência dos fatores estressores.
Adotando o modelo do cérebro triúnico apresentado por MacLean, filogeneticamente
desdobrado em cérebro reptiliano, cérebro límbico e neocórtex, Navarro (1996b)
novamente estabelece saúde maturacional destas três etapas em relações funcionalmente
organizadas, de acordo com as possibilidades energéticas do feto e ao estabelecer sua
relação com a mãe. Caso esta relação se estabeleça em condições estressoras “o feto se
defenderá do medo ativando o sistema neurovegetativo do ortossimpático, que responde
com uma hiper-secreção de adrenalina, com um mecanismo de contração de todo o
organismo, de fechamento para o exterior” (p. 18).
Quanto à fase neonatal, é inicialmente ressaltada a importância das condições em que
é realizado o parto. Esta separação do ambiente uterino deve se estabelecer “suavemente”,
em acordo com técnicas obstétricas que não agridam o nascituro. Um contato cálido com a
mãe e com o bico do seio seria de extrema importância neste momento de transição do feto.
Segundo Navarro (1996b) o período neonatal compreenderia o período que iria do décimo
dia ao nono mês de vida do bebê, “isto é, quando está completando o desenvolvimento

228
ósseo-muscular da mandíbula, implicando, fisiologicamente, o início da função intencional
dos músculos masseteres para a mastigação” (p. 21).
Por fim, o período pós-natal se instalaria a partir do nono mês e se estenderia até a
puberdade, englobando, segundo o modelo piagetiano, as fases sensório-motoras,
sombólico-concretas e operatórias-formais, sendo que sua estruturação estaria em
consonância com a “qualidade” das vivências anteriores. Em outros termos, as fases
posteriores do desenvolvimento estariam funcionalmente “atadas” a estas vivências iniciais.
Navarro (1995a) também amplia a caracteriologia reichiana propondo diferenciações
entre “temperamento” e “caráter”. Segundo o autor:

“o conceito de temperamento deve estar ligado ao de constituição, isto é, as bases


congênitas do indivíduo. Trata-se das particularidades fisiológicas e morfológicas
que diferenciam os indivíduos e, precisamente, como diz MacDougall, da soma de
seus efeitos sobre a vida mental (e afetiva) do metabolismo, das trocas químicas
que se efetuam no organismo” (p. 11).

As seqüelas deixadas no período de formação do “temperamento” seriam as mais


danosas, comumente associadas aos transtornos de fundo psicótico. Por sua vez, “é a
funcionalidade neuromuscular que provoca a formação da caracterialidade e, depois, do
caráter” (p. 11), e sua formação estaria vinculada ao período de desmame. Segundo
Navarro, a personalidade seria a soma dos efeitos do temperamento e da caracterialidade, e
para se ter um “caráter” é necessário, segundo Navarro, possuir um princípio de identidade
básica denotada na aquisição da noção de “eu”. As fixações decorrentes de agressões,
vividas por um esforço prematuro da neuromuscularidade à ação, poderia levar o
organismo a estabelecer “coberturas caracteriais”, as quais podem encobrir um núcleo
psicótico. Como Navarro alega, o temperamento pode estar sob o controle decorrente da
função de defesa exercida pela cobertura caracterial. Neste sentido, Navarro alega que o
único caráter maduro seria o “caráter genital”, e que os “invólucros” defensivos, aqueles
nomeados de caráter por Reich, seriam na verdade manifestações da “caracterialidade” que
podem ser “neuroticamente” expressas em atos e sintomas ou “normalmente” compensadas
pela inconsciência de si.
Em resumo:

229
“com o desmame se inicia a atividade neuromuscular ativa, intencional, e se
verifica a passagem da motilidade à mobilidade (nono mês). Esse é momento em
que se inicia a formação do caráter, que já encontra, na muscularidade do recém
nascido, muito freqüentemente, as potencialidades psicopatológicas induzidas pela
intensificação de determinados aspectos do temperamento difíceis de resolver”
(NAVARRO, 1995b, p. 14).

As suposições de Navarro são intuitivamente interessantes e não é por outro motivo


que ainda são usadas como referência por boa parte do meio reichiano brasileiro. No
entanto, há um abuso de predições dos possíveis desdobramentos do desenvolvimento
afetivo-cognitivo, em moldes mecanicamente deterministas, além da insuficiência de dados
neurocientíficos atualizados142. Também não se observam as devidas preocupações em
corroborar estas suposições do “paradigma energético” de acordo com parâmetros de
controle, condizentes com uma pesquisa aplicada. Como veremos, os traumas que incidem
sob o desenvolvimento fetal, neonatal e pós-natal são, de fato, fatores de risco, e estes
fatores são aceitos por comunidades de pesquisadores que respeitam parâmetros básicos de
pesquisa aplicada (FROTA-PESSOA, 1989; GRAEFF, 1993; OJOPI, 2004; PLISKA,
2003). Mas a relação causa-efeito do tipo “x causa y” é perigosa, sendo que Navarro abusa
destas construções. Quando ele faz, por exemplo, o seguinte comentário: “o desmame
prematuro provoca, como indicaremos, alterações na formação de uma psique saudável,
criando um núcleo psicótico distímico (borderline)”. Devemos então questionar:

a) O que significa, “realmente”, um desmame prematuro?


b) Será que poderemos considerar o que é prematuro ou não sem “avaliarmos”
distintamente cada situação que se estabelece no acoplamento mãe-bebê?
c) Mesmo que tenhamos “sucesso” em tal observação, como saberemos, de fato, que
este fator seria “o” causador de complexa enfermidade?

142
- O modelo de desenvolvimento neurológico adotado por Navarro já sofreu consistentes correções. Como
acrescenta LeDoux (1996, p. 90), “esse tipo de neurológica evolutiva sustentou-se por um longo tempo e
figurou-se perfeitamente razoável para Herrick, Papez, MacLean e muitos outros aferrarem-se nela. Contudo,
no princípio da década de 70, essa concepção começou a desmoronar. Anatomistas como Harvey Karten e
Glenn Norhcutt mostraram que as chamadas criaturas primitivas na verdade possuem áreas que satisfazem os
critérios estruturais e funcionais do neocórtex (...) Com o resultado dessas descobertas, tornou-se impossível
afirmar que certas partes do córtex mamífero eram mais antigas do que outras. E uma vez demolida a
distinção entre velho e novo córtex, o conceito de evolução do cérebro mamífero como um todo foi por terra”
(p. 90).

230
d) Pelo fato de se desconhecer, corriqueiramente, a configuração genética do
nascituro e, neste sentido, desconhecer alguns índices importantes que predispõe às
variadas afecções psicossomáticas, até que ponto é fidedigna a leitura de que os fatores
ambientais são “os” causadores destas afecções?

Novamente o leitor poderá argumentar sobre o motivo de nos dedicarmos a um


modelo teórico que pode ser considerado:

a) um modelo, em parte, ultrapassado, já que não releva os avanços da genética e da


neurociência contemporânea.
b) um modelo pouco rigoroso cientificamente, já que Navarro não fundamenta
exaustivamente a sua “somatopsicodinâmica”.
c) um modelo que apresenta contradições frontais quanto à nossa concepção
construtivista dos transtornos psicossômicos.

Neste sentido, usaremos de uma metáfora para explicar o motivo de nossa insistência
em adotar alguns elementos da teoria pós-reichiana de Navarro: imaginemos um exímio
motorista, de perfil profissional, e que possui raras habilidades técnicas de pilotagem.
Também possui um prodigioso controle do equipamento interno do automóvel, como
acelerador, freio, aparatos eletrônicos etc. Ele também sabe até quanto deve forçar o carro
em uma curva ou em uma ultrapassagem. Contudo, este piloto desconhece a “mecânica” de
funcionamento do motor e de outras peças que estão sob o caput. Ele ainda “acredita” que
um motor a explosão possui peças, engrenagens, fluídos que, na verdade, não possuem. Ele
acredita que as peças do motor entram em ação por mecanismos específicos, mas que um
mecânico bem informado sabe que acreditar neste tipo de funcionamento não seria mais
razoável, exatamente porque já se descobriu, por meio de aparatos tecnológicos, que um
motor entra em ação por outros mecanismos. Bem, de qualquer forma este detalhe “pouco
importa”, já que ele pilota com maestria, mesmo desconhecendo a “fisiologia” do
“coração” de sua máquina.
Bem, da mesma forma, pensamos que a técnica desenvolvida por Navarro oferece ao
terapeuta excelentes ferramentas para se “pilotar”, junto com o paciente, o processo

231
psicoterápico. Todavia, as reflexões que incidem sobre os dados microbiológicos,
fisiológicos e neurobiológicos do organismo humano requerem importantes reformulações.
Podemos inferir que Reich, assim como Navarro, focalizou suas pesquisas segundo
suas crenças científicas e, neste sentido, a seleção do material de pesquisa pode ter sido
arbitrária. Não há dúvidas que estas questões deixam lacunas a serem preenchidas.
Concernente à teoria reichiana, podemos suspeitar de seu desconhecimento frente às
pesquisas de sua época143. Além disso, podemos afirmar com segurança sobre a limitada
tecnologia neurocientífica de seu tempo em relação ao dias atuais. Todavia, nosso papel
consiste em promover novos diálogos, sobretudo com outras leituras contemporâneas as
quais, acreditamos, poderão contribuir com novos incrementos e, em último sentido,
promoverão uma revitalização das idéias originais destes autores. Neste sentido,
problematizando aspectos de base sobre a etiologia das psicossomatopatologias e,
especificamente, sobre o processo de encouraçamento caracterológico, devemos refletir
inicialmente sobre:

a) os posicionamentos extremos que defendem a tese de que o ambiente é o vetor


central na estruturação afetivo-cognitiva ou, por outro lado, que esta estruturação seria
demarcada preponderantemente pela herança genética. Neste sentido, devemos voltar
nossa atenção para algumas contribuições das pesquisas que buscam uma
compreensão mais pontual dos fatores genéticos no desenvolvimento das afecções e
dos processos de adoecimento;
b) uma reformulação da somatopsicodinâmica de Navarro de acordo com propostas
da “psicoterapia neurodinâmica” (PN) proposta por Xavier (2004) e Haldane (2004)
enquanto meios de resgate das unidades biofísicas enfermas;
c) por fim, também proporemos que outras escolas, como o psicodrama, que
privilegiam não só os aspectos verbais mas também a plasticidade corporal enquanto
veículo de resgate do “organismo enfermo”, também compartilham do princípio
funcional entre aspectos sensório-motores, afetivos e cognitivo.

232
7.2.2 - Genética, ambiente e complexidade – Algumas reflexões
fundamentais para uma compreensão etiológica do processo de
encouraçamento

Reich considerava a influência do ambiente, em todas as suas manifestações, como


fator central na etiologia das psicossomatopatologias. Em alguns momentos, questionou
sobre fatores hereditários responsáveis pela natureza e dinâmica das enfermidades:

“Não negamos o papel desempenhado pela hereditariedade ao determinar os modos


de reação. A criança recém-nascida tem o seu ‘caráter’ – isto é claro. A nossa
discordância, contudo, está em que o ambiente exerce influência decisiva e
determina se uma inclinação existente será desenvolvida e fortalecida ou se não lhe
será permitido desenvolver-se completamente. O argumento mais forte contra o
ponto de vista de que o caráter é inato é fornecido por doentes em que a análise
demonstra que um modo definitivo de reação existiu em uma certa idade e que
depois se desenvolveu um caráter completamente diferente (...) Esta controvérsia
não ficará finalmente resolvida até que um importante instituto decida levar a cabo
uma experiência de massas (...)” (REICH, 1989, p. 158).

Com esta argumentação, Reich parece confirmar nossas suspeitas de que o patrimônio
genético merece a devida atenção para a compreensão da fundamentação das estruturas de
caráter. Contudo, como ele sensatamente pontuava, a tecnologia de sua época não oferecia
os dados necessários para acrescer suas teorias sobre a estruturação do caráter e que este
ponto deveria ficar ao encargo de pesquisas futuras. Ora, neste sentido, Reich parece ter
considerado oportuno (?) continuar a atribuir às influências ambientais o papel decisivo na
consolidação destas estruturas. Mas a ciência e seus produtos tecnológicos evoluíram
assustadoramente desde a década de 30, quando Reich publicou Análise do Caráter. Parece
que as controvérsias a que Reich se referiu entre hereditariedade e ambiente na estruturação
do caráter vêm sendo parcialmente elucidadas nas duas últimas décadas.
Qualquer característica comportamental evolui a partir da representação nos genes da
espécie (LEDOUX, 1998). É por esse motivo que o sistema de defesa, por exemplo, possui

143
- Xavier (2004) alega que um número razoável de neurocientistas já contribuiam com pesquisas que
poderiam ter orientado Reich em um aprofundamento bem mais seguro e proveitoso para a compreensão da
funcionalidade soma-psique.

233
características semelhantes entre várias espécies, decorrente de uma estabilização e
conservação do sistema nervoso. Este estudo da genética procura compreender o “terreno
comum das reações emocionais entre indivíduos e entre as espécies – aqueles aspectos que
a evolução de sistemas emocionais específicos procurou cumprir” (Id., ibid., p. 122), e se
aproxima dos estudos da etologia e da psicologia evolucionista. Mas como poderemos
compreender um pouco mais sobre a genética das diferenças individuais?
De acordo com LeDoux (1998), estudos sobre o padrão de medo em ratos revelam
que se um destes roedores for colocado em uma “arena” aberta, apresentará uma resposta
instintiva, e determinada geneticamente, de correr o mais breve possível para próximo das
paredes da arena. Mesmo nunca tendo sido submetido a situações estressoras de medo, o
rato traz em sua bagagem evolutiva um comportamento automático de defesa. Também se
observa em situações como essas, que as atividades excretórias destes roedores apresentam
maior sensibilidade, decorrente da estimulação do sistema nervoso autônomo (SNA). Em
outros termos, os ratos defecam quando estão com medo, e que o número de bólitos fecais
revelam uma boa medida na compreensão da atividade do SNA. Mas como LeDoux (Id.,
ibid., p. 124) argumenta, o número de bólitos fecais podem variar de roedor para roedor.
Caso seja feita uma triagem, selecionando os ratos que, a nível do funcionamento do SNA,
aparentam menos medo por defecarem menos, pode ser criada uma linhagem de ratos “mais
corajosos”.
Estudos sobre a genética do comportamento vem apresentado dados promissores
sobre a compreensão das diferenças individuais (PLOMIN, 2000). Afinal, são os genes que
“oferecem matérias primas a partir das quais podemos erigir nossas emoções. São eles que
definem o tipo de sistema nervoso que vamos ter, os modos de funcionamento mental que
este poderá desenvolver e os tipos de funções corporais que ele poderá controlar”
(LEDOUX, 1998, p. 125). Também de acordo com Frota-Pessoa (1989, p. 3):

“Outra investigação (revisão em Holden, 1987) com gêmeos mono e dizigóticos,


criados juntos e criados separados, mostrou herdabilidade de 39% a 58%, no caso
das onze dimensões primárias da personalidade que foram estudadas: bem-estar,
autoridade, desempenho, sociabilidade, reação a tensões, alienação, agressividade,
autocontrole, prevenção de dano, tradicionalismo e absorção” (p. 3).

234
Logicamente, deve se considerar que estudo do genótipo, feito isoladamente, terá
pouco sentido. Por outro lado, sua relação com o ambiente se faz da maior importância, já
que a carga genética parece impor certas restrições sobre o tipo de variáveis ambientais que
serão selecionadas por cada estrutura singularmente constituída. Neste sentido, o que
podemos compreender das relações entre gen e ambiente na etiologia dos transtornos
psicossômicos?
De acordo com Pliska (2003, p. 107), os transtornos psicossômicos144 são, em grande
medida, relacionados uns aos outros, e seria improvável que fosse encontrado um gen
específico para a depressão ou para o transtorno de déficit de atenção-hiperatividade
(TDAH). Seria neste sentido que podemos compreender que uma área cerebral, como o
córtex pré-frontal, pode estar associada com diversos transtornos diferentes. Logo, é
discutível se o que se herda é a enfermidade enquanto um “produto acabado” ou um modo
particular de funcionamento do sistema nervoso que, ao ser submetido a certas influências
ambientais, enfatizaria o aparecimento de enfermidades “distintas” (GRAEFF, 1993).
Frota-Pessoa (1989) defende a tese de que os distúrbios da afetividade e o alcoolismo
podem ser determinados pela mesma “nuvem” de gens, e que o transtorno específico seria
matizado pelo ambiente e suas atribuições sócio-culturais. Estas questões nos alertam que
pelo fato de serem constatados evidentes avanços no campo do seqüenciamento genômico,
ainda assim estes dados não conseguem dar conta totalmente da complexidade e da
diversidade de manifestações do adoecimento da unidade psicossômica. De acordo com
Ojopi (et.al., 2004), observamos que:

“A informação genética deve ser usada como um “mapa”, a partir do qual


começamos a compreender a base das doenças e da variação genética através da
análise da complexidade e comportamento das regiões reguladoras, genes e
proteínas, funções gênicas e sistemas celulares. É crucial cruzarmos as informações
genéticas com os dados clínicos, étnicos e informações ambientais, a fim de
obtermos uma visão ampla do quadro” (p. 9).

144
- Pliska não faz uso deste termo, preferindo o tradicional “transtorno mental”. Mas na altura de nosso
estudo, podemos nos rebelar contra esta nomenclatura por percebermos que não pode haver um transtorno da
mente sem que este seja recursivo ao corpo e ao cérebro. Sendo assim, usaremos o termo “transtorno
psicossômico” ou “transtorno psicossomático”. De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM-IV-TR), os transtornos ditos “mentais” podem ser divididos nas seguintes
categorias: Transtornos comportamentais, Transtornos do humor e da ansiedade, Transtornos de tique,
Transtornos de desenvolvimento difuso, Transtornos esquizofreniformes, Transtornos cognitivos, Transtornos
relacionados ao abuso de substâncias.

235
Para uma aproximação compreensiva mais detalhada sobre a etiologia dos diversos
tipos e categorias de transtornos psicossômicos, devem ser exploradas as seguintes questões
(PLISKA, 2003, p. 110):

a) Qualquer embasamento genético conhecido.


b) Os resultados de estudos de neuroimagem e neuroquímica dos mesmos.
c) O impacto dos fatores psicossociais.
d) Os mecanismos pelos quais os transtornos poderiam operar.

Ainda que não explicitamente, Pliska parece ser um “simpatizante” da teoria


epigenética, já que estes fatores interagem dinamicamente na consolidação dos transtornos
psicossômicos na seguinte sequência: predisposição genética, experiências precoces
(traumas pré-natais ou abuso e negligência) e fatores psicossociais. Para uma melhor
visualização, apresentamos o seguinte quadro:

Figura 7.1 - Interação entre fatores genéticos e ambientais (PLISKA, 2004)

1 y 2 y 3 y

x x x

Suponha que há um transtorno no qual considera-se que haja fatores genéticos envolvidos. A linha em
negrito representa os indivíduo com esse risco; aqueles sem ele são representados pela linha normal. O eixo
y mostra a probabilidade de desenvolver o transtorno ou a severidade dele quando o mesmo se expressa. O
eixo x representa a severidade de um fator psicossocial (crescente para a direita). No gráfico esquerdo,
predominam os fatores genéticos. Aqueles com risco genético alto desenvolverão o transtorno mesmo em
níveis muito baixos de adversidade social, enquanto aqueles sem risco genético raramente o desenvolvem,
mesmo em níveis de adversidade psicossocial muito altos. O gráfico do meio mostra a situação na qual o
gene e o ambiente interagem. Ambos os grupos têm um índice mais alto de transtorno conforme aumenta a
adversidade social, mas aqueles com risco genético mais alto o desenvolverão em níveis mais baixos de
adversidade do que aqueles sem esse risco. Finalmente, no gráfico da direita, a genética é irrelevante para o
risco geral do transtorno; somente o grau de adversidade psicológica está relacionado à expressão da
doença (PLISKA, 2004, p. 111).

236
Segundo Pliska (2003, p.119), os estudos genéticos corroboram que o transtorno de
défcit de atenção-hiperatividade (TDAH) possui consistente fator neurobiológico. Caso um
dos pais tenha este transtorno, o filho tem mais de 50% de chances de ter também. Segundo
variados estudos, de 60% a 80% da variância de traços como desatenção, impulsividade, e
hiperatividade resultam de fatores genéticos (HUDZIAK & cols, 1998; SHERMAN & cols,
1997; LEVY & cols, 1997; GJONE & cols, 1996; GILLIS & cols, 1992; GOODMAN &
STEVENSON, 1989a, 1989b, apud PLISKA, 2003, p. 119). Nestes estudos, os fatores
ambientais parecem influenciar menos na determinação do transtorno, mas seguramente o
TDAH, em consonância com um ambiente familiar adverso, pode levar a comportamentos
anti-sociais, os quais fazem parte de outro subgrupo de transtornos comportamentais.
Curiosamente observamos que o fato de os fatores ambientais serem pouco determinantes
em alguns transtornos não quer dizer que não possam ser potencializados e, sendo assim,
serem levados à variações até mesmo mais danosas socialmente (FROTA-PESSOA, 1989).
Com relação aos distúrbios de comportamento e especificamente o comportamento
anti-social, Pliska (2003) constatou em experimento controlado com 95 delinqüentes
encarcerados que 83% deste grupo sofreu ou tinha testemunhado abusos ou violências
graves. Curiosamente, “o abuso físico ou a negligência também era experimentado com a
falta de vínculo, contato ocular e estimulação da linguagem” (PLISKA, 2003, p. 137). A
influência genética aparece como um fator menos decisivo nos transtornos anti-sociais
ainda que os bêbes de pais considerados anti-sociais adotados por pessoas “normais”
manifestassem uma incidência maior de desenvolver o transtorno do que outros bebês
adotados e que não eram filhos de pais com este transtorno. Ainda que a herança genética
seja um importante fator, a relação com o meio deve ocupar um espaço mais significativo,
inclusive na alteração da produção de serotonina. Baixos índices de serotonina, convertida
em ácido 5-hidroxindoleacético (5-HIAA), aumentam substancialmente a propensão à
agressão inadequada e prolongada (PLISKA, 2003, p. 139).
Quanto aos transtornos de humor, estes parecem ser, a nível epidemiológico, mais
freqüentes e também os que mais aparecem nos consultórios. A influência genética é
claramente demonstrada através de estudos familiares. De acordo com Pliska (2003), “10 a
20% das mulheres e 5 a 12% dos homens apresentarão um episódio de transtorno
depressivo maior (TDM) em algum momento de suas vidas, sendo que a prevalência ao

237
longo da vida do transtorno bipolar é de 1 a 2%” (p. 159). Ora, estes são números
alarmantes. Os transtornos de humor são complexos pela sua heterogeneidade, além de
carregarem uma morbidade significativa também podendo estar associados ao abuso de
substâncias diversas e suicídio. Segunda Pliska (2003), estudos dos transtornos do humor
em famílias “implicam fatores genéticos de forma clara. Os parentes de pessoas com
transtorno bipolar apresentam um risco de desenvolvê-lo que vai de 3 a 8%, enquanto os
parentes daqueles com TDM têm chances de 8 a 17% de desenvolverem a depressão” (p.
161). As evidências neurobiológicas são praticamente incontestáveis, pelos menos no que
corresponde à baixa distribuição de serotonina nos casos graves de depressão unipolar
(OGILVIE, et al, 1996). Novamente, os eventos adversos provindos do ambiente podem
contribuir para a eclosão dos transtornos de humor. Devemos estar atentos ao dado de que
quanto maior a incidência de fatores genéticos que predispõem a uma organização
neurobiológica da depressão, menor será o papel do meio enquanto vetor central na
estruturação desta enfermidade. Esta herdabilidade se dá provavelmente através de
mecanismos neurofisiológicos que produzem variações funcionais nos sistemas cerebrais,
acarretando padrões afetivos e neuropsicológicos vulneráveis ao surgimento do transtorno
(MESSAS, 1999). Mas como nos demais casos, os fatores ambientais são de extrema
relevância quando nos focamos nas possibilidades de resgate ou não daqueles que sofrem
deste transtorno. Evidências clínicas disponíveis apontam para o componente familiar como
um dos principais fatores de risco para o aparecimento desses quadros (GOODWIN &
JAMINSON, 1990).
Como é observado por ressonância magnética (RM) e pela espectroscopia de
ressonância magnética (ERM), os múltiplos episódios de transtornos do humor podem levar
à atrofia neuronal. Um trabalho de extrema relevância na corroboração desta abordagem
pode ser constatado na seguinte pesquisa, dirigida por Martin Teicher e colaboradores do
Mclean Hospital (apud PLISKA, 2004), onde observam a relevante influência do abuso
precoce, a nível neurológico, vivido por crianças que davam entrada neste hospital:

“Foram encontradas quatro anormalidades cerebrais nessa última:


a) anormalidade do EEG do hemisfério esquerdo; b) evidências
neuropsicológicas e de neuroimagens de déficit do funcionamento desse
hemisfério; c) corpos calosos menores, sugerindo menos comunicação com
os hemisférios; e d) aumento da atividade do vermis cerebelar” (p. 164).

238
Devemos estar atentos não só aos que sofrem com o transtorno depressivo mas às
características organizativas dos que estão, de alguma forma, envolvidos neste quadro. O
trabalho com o grupo familiar tem se revelado da maior importância enquanto abordagem
sistêmica na intervenção das relações estabelecidas e na peculiaridade da distribuição de
papéis configurada nestes grupos. A potencialização dos quadros graves e do
desenvolvimento de co-morbidades, como transtornos anciogênicos em geral, parece estar
em estreita consonância com a impossibilidade de amparo ou de uma melhor visualização
que o grupo familiar pode fazer de si mesmo enquanto participante e mantenedor direto de
determinada estruturação psicossomatopatológica. A distribuição de papéis sociais
específicos àqueles que sofrem com esta enfermidade, como o de “bode expiatório”, pode
ser conveniente a um grupo que não permite ventilar suas próprias frustrações, elegendo
uma válvula de escape que mantenha o “equilíbrio” grupal via descargas secundárias as
quais, por sua vez, retroalimentam a estrutura complexa de quem sofre a depressão. Enfim,
quadros que apresentam severos desequilíbrios neurobiológicos podem se tornar ainda mais
graves segundo as relações estabelecidas pelo ambiente, e tudo leva a crer que o seu inverso
também é verdadeiro.
Quanto aos transtornos psicóticos, observa-se uma elevada influência genética para o
estabelecimento desta doença. De acordo com Pliska (2003) “gêmeos monozigóticos têm
índice de concordância de 48% para esquizofrenia (...). A hereditariedade tem sido
calculada em 0.68%. Se ambos os pais têm esquizofrenia, o risco de desenvolver a doença é
de 46%” (p. 178). Estes dados impressionam, mas devem ser somados a outros fatores
predisponentes, como as situações adversas vividas pelo feto em seu período de
desenvolvimento uterino, assim como complicações obstétricas e nas primeiras semanas de
vida (NAVARRO, 1996b; GRAEFF & BRANDÃO, 1993). Estes fatores podem contribuir
decisivamente para algum tipo de dano cerebral145, geralmente apresentado na RM de
esquizofrênicos. Nos termos de Pliska, esta relação entre predisposição genética e

145
- De acordo com Ojopi (et. al., 2004), “em ESQ já é bem estabelecido que a desordem primária é causada
por uma falha no desenvolvimento do sistema nervoso e não por um processo neurodegenerativo. Uma
análise do genoma humano, usando o Banco de Ontologia dos Genes (Gene Ontology Bank - fevereiro de
2003 - http://www.godatabase.org/ cgi-bin/go.cgi) indica a presença de 366 genes já relacionados à
neurogênese (GO: 0007399)” (p. 15).

239
adversidade ambiental seria denominada de “golpe duplo”146. Por ser um transtorno que
eclode geralmente na adolescência, seria somado um “terceiro golpe”, ou seja, além da
predisposição genética e dos fatores estressores vividos na tenra idade, e que imprimiram
em algum grau o dano neurológico, as tensões vividas na adolescência podem “gatilhar”
decisivamente o desenvolvimento deste grave transtorno.
Todas estas considerações a respeito do grau de prevalência de fatores genéticos na
estruturação desta variedade de manifestações do adoecimento da unidade psicossômica
parecem não influenciar decisivamente o estabelecimento do processo psicoterápico em si,
já que o trabalho deve ser feito de um jeito ou de outro. Aliás, é ínfimo o número de
pacientes que chegam nos consultórios com algum tipo de mapeamento genômico de seus
transtornos ou com estudos neurológicos por neuroimagens para contribuírem na diagnose
de seus tormentos emocionais. Talvez isso não leve muito tempo, mas até lá teremos que ir
tateando pelos signos corporais, comportamentais e linguísticos. Mesmo assim, isto não
quer dizer que não devamos ter consciência destes fatores e, neste sentido, podermos
compreender um pouco mais sobre as diferentes possibilidades de evolução da enfermidade
e nos fatores que influenciam as peculiaridades evolutivas do tratamento. Será que os
paciente que sofrem de enfermidades com forte carga genética e, neste sentido, com
possíveis seqüelas neurais mais definidas, não estariam sujeitos a limites mais severos
quanto ao resgate destes transtornos no processo psicoterápico? Se alguns estudos
corroboram a tese de que a “baixa qualidade” das estimulações sensoriais vividas na tenra
idade, potencializada por fatores genéticos ou não, pode levar à atrofia de setores cerebrais,
não seria coerente exercitarmos nossos pacientes com técnicas que incidem sensório e
motoramente? Mesmo adotando esta estratégia, porque alguns pacientes são mais
“eficazes” do que outros em suas elaborações? Parece que, novamente, se intercalam
fatores complexos para uma maior compreensão deste processo. Nestes termos, devemos
retormar nossas reflexões construtivistas.
Em uma de suas obras de fundamentação teórica, Maturana e Varela (1997) defendem
a tese de que todos os sistemas viventes se organizam, fundamentalmente, não por suas
estruturas constitutivas, ou seus componentes, mas por sua “organização mecanicista”. Um

146
- De acordo com Pliska (2003), “um fator genético prejudica o desenvolvimento do cérebro, enquanto
outros fatores desencadeiam outros eventos que levam a diminuições ulteriores no volume do cérebro” (p.
181).

240
dos fatores definidores dos seres vivos é a capacidade de se reproduzirem continuamente e
serem delimitados por sua organização, o que também nos informa sobre sua constituição
homeostática e retroalimentativa. Os sistemas viventes são caracterizados, essencialmente,
por serem autopoiéticos, os quais continuamente se especificam e produzem suas próprias
organizações através da produção de seus componentes. Devemos enfatizar, novamente,
que todos os sistemas autopoiéticos se definem por serem constituídos de elementos físicos
concatenados, auto-reprodutores e que se delimitam enquanto “unidades fechadas”, já que
aceitam perturbações, mas não são definidos por elas. Contudo, estes autores não
discordam de que os fatores hereditários são elementos que “disparam” (ou não) mudanças
estruturais de acordo com o acoplamento estrutural. Também deixam claro que este dilema
entre fatores genéticos ou ambientais como determinante das características
comportamentais dos seres humanos é “um dos temas de controvérsia mais ‘típicos’ na
breve história da psicologia moderna” (MATURANA, 1998, p. 10). Mas estes autores não
confundem organização autopoiética com hereditariedade, e este é um ponto crucial.
Comumente notamos que quando se quer falar de “características inatas” recorre-se, com
maior freqüência, a dados genéticos. Mas, segundo Maturana e Varela (2002), a estrutura
inicial de um ser vivo “não pode determinar suas características além do momento inicial
(...) um ser vivo é um ser vivo porque é um sistema constituído como unidade em sua
organização autopoiética, não porque esteja composto por um tipo particular de moléculas”
(p. 52). Então, segundo estes autores, não seriam nem fatores ambientais nem fatores
herdados que determinariam as características dos seres vivos, já que as mudanças
estruturais de qualquer organização surgem momento a momento de suas histórias de
interações. Os autores também denominam esta recursividade enquanto uma epigênese.
Logo, “nada ocorre em um ser vivo que sua constituição genética fundamental não permita
como uma possibilidade epigênica; também não ocorre nada em um ser vivo se não se dá
com ele uma história de interações na qual este se realize em uma epigênese particular”
(MATURANA, 1998, p. 51).
Ora, tudo leva a crer que os aportes da “biologia do conhecer” estão muito próximos
do que autores como Steven R. Pliska, neurobiólogo e psiquiatra, apresentam em sua
compreensão de alguns transtornos psicossômicos. Contudo, os teóricos da “biologia do
conhecer” parecem não refletir devidamente o grau de comprometimento hereditário

241
envolvido nestas afecções. Também desconhecemos quaisquer estudos de Maturana e
Varela que se preocupem em focar a relação entre gen e ambiente de forma mais criteriosa.
Neste sentido, cabe-nos acrescentar que por não termos acesso teleonômico aos processos
ontogênicos e, por isso, não ser possível prever o desenrolar do drama da vida a não ser
momento a momento, nem por isso não devemos estar atentos aos aspectos qualitativos e
quantitativos estabelecidos na relação entre gen e ambiente.
Mas o que queremos dizer com tudo isso? Usemos um exemplo: Vamos partir de um
modelo da cibernética, primeiramente de acordo com os princípios de uma
“retroalimentação negativa”. Imaginemos, novamente, dois rebocadores onde os capitães
corrigem suas rotas em acordo com as flutuações das correntes marítimas. Ora, mas
devemos fazer uma pergunta fundamental e que geralmente não é feita: que barcos são
estes? Como já sugerimos em outro segmento de nosso estudo, embora a organização dos
barcos possam ser similares, suas estruturas materiais são, em última instância, singulares.
Mesmo assim, imaginemos dois rebocadores, construídos na mesma fábrica e pela mesma
linha de montagem. Só que por ordem do acaso, do destino, da aleatoriedade da vida, um
dos rebocadores veio com uma “predisposição” a ter problemas no leme147, e que “poderia”
ser deflagrado com algum tempo de uso, principalmente em situações adversas (?), como
uma tempestade (?). Bem, isto veio a acontecer após uma tempestade, e o rebocador que
havia saído da fábrica com predisposição a ter problemas no leme consolidou
materialmente sua sina ao fazer uma viagem com o outro rebocador. No decorrer da
jornada, começou a apresentar uma anomalia em seu sistema de correção das perturbações
do ambiente, ficando gradualmente para trás. A anomalia de seu leme só lhe permitia virar
para a direita, o que acabava acarretando um movimento circular. Por fim, não lhe era
possível corrigir adequadamente as perturbações das correntezas e continuar a viagem com
o outro rebocador, tendo que ser socorrido por outra embarcação e ser rebocado para o
estaleiro, onde seria avaliada a possibilidade de restauração de seu aparato orientador. O
leitor poderia argumentar que ficar rodando em círculos também possui um “sentido

147
- Será que temos realmente controle de todas as situações do processo de produção do tipo hard?
Duvidamos muito, já que o índice de problemas que podem ocorrer em diferentes unidades de um mesmo
processo de produção é relativamente comum. Podemos argumentar que o lote dos acessórios eletrônicos não
era o mesmo, ou os operários da linha de produção foram trocados, ou estavam com dor de barriga e,
portanto, mau humorados, no dia em que produziram o rebocador que apresentaria problemas no leme, etc,
etc, etc.

242
existencial”, e que ter uma avaria é uma questão de referência do observador. Mas será que
deveríamos adotar uma leitura tão singela? Um rebocador parece ter que estar apto para
exercer funções relativamente específicas, ainda que alguns sejam mais aptos que outros.
Mas rebocadores que só podem ficar girando em círculos geralmente “sofrem” por isso, já
que ele “observa” ao seu redor outros de sua classe realizarem manobras amplas, em todos
as direções e que, com certeza, acabam gozando de mais liberdade148. Talvez pudéssemos
argumentar que o problema não seria o de ficar girando em círculos, mas que este
movimento não lhe permite, de forma alguma, ter o livre arbítrio de rumar para outros
mares, outros portos149.
Tomemos agora o mesmo exemplo, mas a partir de uma compreensão do sistema
segundo os parâmetros de uma “retroalimentação positiva”. Neste contexto, as seqüências
de estímulos não seriam corrigidas, mas ampliadas. Em outros termos, os rebocadores não
corrigiriam mecanicamente os fluxos da correnteza, mas ampliariam seus movimentos em
acordo com eles. Metaforicamente, poderíamos dizer que suas rotas seriam escolhidas no
próprio navegar e a escolha dos portos seria condizente à relação estabelecida na flutuação
do sistema. Neste contexto, o ato de navegar seria uma constante relação entre a ordem e a
desordem ou, nos termos de Prigogine, uma “retroalimentação evolutiva” (PRIGOGINE &
STENGERS, 1984). Mas fiquemos atentos que este processo também é estabelecido em
estreita relação com as possibilidades estruturais do sistema. Um rebocador com leme
avariado de fábrica, ou avariado no percurso de suas flutuações, geralmente não possui uma
condição estrutural que lhe permita “evoluir” prazeirosamente em acordo com as flutuações
do ambiente. O leitor poderia argumentar, como no outro modelo, que a flutuação que lhe é
permitida por sua limitação estrutural é, em último sentido, a “sua” flutuação, e não
deveríamos recorrer a estigmatizações ou formalizações comportamentais sobre o que
venha a ser a “melhor” forma de flutuar. Mas a amplitude de flutuação de uma estrutura
com algum tipo de “avaria” é muito mais limitada, e se nos conformamos com isso,

148
- Em muitas situações, aqueles que “sofrem” de alguma disfunção psicossomática não têm condições de
avaliar criticamente sua inserção no mundo exatamente pela gravidade da afecção que lhe aflige. Mas com
certeza há aqueles que estão ao seu redor e sofrem por ela, seja por expressões típicas da inconformidade ou
por um sofrimento “sublimado” e até mesmo produtivo.
149
- Considerando que as dimensões centrais da matriz discursiva são a coerência, a diversidade e a
complexidade, Gonçalves, Korman & Angus (no prelo) associam a psicopatologia com a dificuldade de
construção de narrativas com estrutura coerente, diversas nos seus processos e complexas no seu conteúdo.

243
devemos fechar os estaleiros-clínicas e “flutuarmos” cada um por si. Bem, não é nisso que
pensamos, depois de tudo o que já foi apresentado até o momento.
A conclusão que chegamos é que as correções do ambiente estão em estreita
correlação com as condições constitutivas das “máquinas”. Tudo leva a crer que quanto
maior a “precariedade” destas possibilidades constitutivas, menor será a capacidade de
reagir “livremente” às diferentes flutuações do ambiente em suas diferentes magnitudes. De
acordo com este exemplo, quanto maiores são os coeficientes genéticos de uma anomalia,
maiores serão as possibilidades de “avaria”, de acordo com as adversidades ambientais.
Seria neste sentido que insistimos em uma criteriosa compreensão da magnitude dos fatores
que são herdados para uma melhor compreensão de suas relações com o ambiente.
Fiquemos atentos que este procedimento não incorreria em fins teleológicos já que, em
última instância, e em acordo com uma retroalimentação positiva, não sabemos como o
ambiente se apresentará no curso do tempo. Também não sabemos exatamente qual a força
da “adversidade”150 que causará a materialização da avaria predisposta. Mas isto não
implica que devemos cultuar a total ignorância, como se fôssemos meros fantoches de uma
“charmosa” deriva autopoiética. Em nossa opinião, há fatores que podem ser melhor
compreendidos, e se ainda não o são satisfatoriamente, acreditamos que em um futuro
próximo este quadro poderá mudar significativamente. Por fim, de acordo com o que
viemos apresentando, o estabelecimento dos transtornos psicossômicos devem ser avaliados
não somente em decorrência da aleatoriedade das ingerências do ambiente, mas pela
constituição genética predisponente. Neste sentido, tais fatores seriam estabelecidos na
complexidade recursiva e epigenética dos acoplamentos estruturais.
Ao adotarmos tais posicionamentos, são estabelecidos novos parâmetros para a
compreensão da formação da couraça caracterial e seus devidos correlatos a nível sensório-
motor, tanto em seus aspectos afetivos quanto cognitivos. Será por uma compreensão
epigenética do desenvolvimento que buscaremos fundamentar a intricada relação entre

150
- Este conceito só pode ser definido na vivência. De acordo com Oliveira (2000), é conhecida a história da
escrivaninha e das prateleiras entulhadas de livros e documentos. Estes, aparentemente, acham-se empilhados
de qualquer maneira. No entanto, seu dono sabe perfeitamente encontrar, se for preciso, o documento que
procura. Ao contrário, quando, por infelicidade, alguém ousa "pôr ordem neles", é possível que o dono se
torne incapaz de encontrar o que quer que seja. É evidente, neste caso, que a aparente desordem era uma
ordem, e vice-versa. Aqui, trata-se de documentos em sua relação com seu usuário. A desordem aparente
oculta uma ordem determinada pelo conhecimento individual.

244
fatores herdados e adquiridos na formação da couraça caracterial em seus aspecots
neurodinâmicos.

7.2.3 - Uma aproximação neurocientífica da couraça muscular

Como observamos em segmento anterior, a couraça caracteriológica se revela através


de uma funcionalidade entre as expressões somáticas e seus correlatos afetivos, cognitivos
e comportamentais. Em outros termos, se observamos que o paciente vive um período
depressivo, este quadro não só expressará uma constelação de fatores comportamentais e
mentais que retratam as crenças disfuncionais do humor depressivo, mas também o corpo
acompanhará, funcionalmente, este estado depressivo, através de expressões sensório-
motoras, neuroquímicas e viscerais correspondentes. No sentido de consolidar nossa
aproximação à teoria reichiana para a compreensão do adoecimento da unidade
psicossômica, apresentaremos a seguir o processo de encouraçamento e formação do
caráter respaldado pelos avanços da neurociência.

a) O bebê, logo nos primeiros momentos de vida extra-uterina, busca instintivamente


preencher as lacunas geradas pelo ambiente se acoplando com a mãe, ou com aqueles que
exerçam este papel. Será de acordo com a natureza deste acoplamento, com a capacidade
afetivo-cognitiva daquele que exerce a função de “nutridor” das necessidades básicas do
nascituro em sua singularidade estrutural, que serão delineados continuamente os contornos
básicos para as posteriores construções-constituições da estrutura de caráter. Contudo, não
devemos nos esquecer da fundamental importância da configuração epigenética. Também
nos termos de LeDoux (1998):

“Nem todos aqueles que são expostos a um episódio traumático151 desenvolvem


uma fobia. O cérebro de algumas pessoas, devido à composição genética ou a

151
- Curiosamente, observamos que nem mesmo um autor desta envergadura não conceitua suficientemente o
que ele quer dizer com “episódio traumático”. Como viemos apresentando, esta relação entre os diversos tipos

245
experiências do passado, deve ter uma predisposição para reagir às experiências de
aprendizado traumáticas de maneira específica” (p. 234).

Neste sentido, tanto nos referimos aos desdobramentos evolutivos filogenéticos que
moldaram uma configuração peculiar quanto aos mecanismos emocionais inatos, ou seja,
emoções primárias, assim como às mutações deste código que forneceram as bases para
uma variação emocional secundária. Em último sentido, devemos estar atentos para a
“singularidade” das configurações epigenéticas retratadas, em parte, pelos estudos com
gêmeos e famílias. Mais uma vez, recordamos o leitor que ao se assumir um
posicionamento onde se considera a epigênese enquanto veículo compreensivo para o
desenvolvimento humano, são relegados a um segundo plano os aportes em moldes
teleonômicos.

b) Como também observamos, até mesmo estruturas monocelulares, como a ameba,


reagem negativamente aos impulsos agressores do meio, podendo apresentar uma
“contração” generalizada de sua organização levando-a, em casos extremos, à morte.
Funcionalmente, o nascituro que é submetido a estímulos agressores do ambiente poderá
apresentar um recrudescimento de suas “reais” e singulares possibilidades de
desenvolvimento sensório-motor e, conseqüentemente, estruturação de suas capacidades
afetivo-cognitivas. Devemos argumentar que o bebê possui parcos mecanismos de
“evitação”, já que não pode “correr” do estímulo agressor ou expressar lingüisticamente do
que se trata seu desagrado. Como sabemos, o choro é uma de suas únicas vias de expressão.
Dando respaldo neurocientífico a este posicionamento, LeDoux (1998) argumenta que
estados persistentes de estresse podem resultar em experiências traumáticas de aprendizado.
Também argumenta que os estímulos estressores podem causar sérios danos ao hipocampo.
Um destes mecanismos se fariam da seguinte forma:

de acoplamento e interações que uma organização autopoiética pode fazer ou não são condizentes com sua
organização estrutural.

246
Figura 7.2 – Trilha do Estresse

SENSORIAL CÓRTEX TRANSICIONAL


- CÓRTEX PERIHINAL
- C. PARAHIPOCAMPO
- C. ENTORHINAL

TÁLAMO
SENSORIAL AMÍGDALA HIPOCAMPO
(+) (-)

PVN
HIPO

CRF
ESTÍMULO
EMOCIONAL

PIT

CORT ACTH CORT

CÓRTEX
SUPRARENAL

“Estímulos associados ao perigo ativam a amígdala. Por meio das trilhas que vão da amígdala até o
núcleo paraventricular do hipotálamo (PVN Hipo) o fator de liberação da corticotrofina (CRF) é
enviado à glândula pituitária que, por sua vez, libera o hormônio adrenocorticotrópico (ACTH) na
corrente sanguínea. O ACTH, por seu turno, tem sua ação no córtex supra-renal, fazendo-o liberar
hormônios esteróides (CORT) no sangue. O CORT atravessa livremente a corrente sanguínea rumo ao
cérebro, onde se vincula com receptores especializados nos neurônios da região do hipocampo e
amígdala, e também outras regiões. Graças ao hipocampo, o CORT inibe a liberação posterior de CRF
pelo PVN. Contudo, enquanto estiver presente o estímulo emocional, a amígdala tentará provocar
liberação de CRF pelo PVN. O equilíbrio entre as informações excitatórias da amígadala (+) e as
funções inibitórias do hipocampo (-) para a PVN determina a quantidade de secreção de CRF, ACHT e,
finalmente, de CORT”( LEDOUX, 1998, p. 221).

247
De acordo com LeDoux (1998), caso este funcionamento “contraditório” seja
excessivamente intenso, poderá gerar atrofia dos dendritos no hipocampo e no córtex pré-
frontal, levando ao déficit de memória e resistência à extinção das prováveis experiências
condicionadas de medo. Caso os estímulos sejam suspensos, as mudanças no hipocampo
serão reversíveis. Curiosamente, LeDoux também associa a depressão à perda de memória
e, conseqüentemente, a lesões no hipocampo. Neste contexto relacional entre organismo e
ambiente, pedimos ao leitor que resgate nossas reflexões sobre os quatro domínios de
interações propostos por Maturana e Varela (2002) que poderiam ser estabelecidos por uma
unidade autopoiética.
Um outro dado relevante abordado por LeDoux (1998) é que se houve algum tipo de
condicionamento do medo por estímulos estressores, ainda que haja uma “extinção” de
grande parte deste mecanismo a nível neuronal e do funcionamento das estruturas cerebrais
envolvidas, um determinado grupo de células pode resistir à extinção destes estímulos.
Neste sentido, seria o que Donald Hebb (apud LeDoux, 1998, 230) chamou de “conjunto de
células”, e que seriam resistentes à extinção. Curiosamente, esse “conjunto de células” seria
ativado não somente pelos estímulos envolvidos no condicionamento do medo específico,
mas também pelo aumento de estímulos extressores em geral.
Um outro fator de extrema relevância à manutenção de um “circuito estressor” na
unidade psicossômica se refere ao feedback corporal (LEDOUX, 1998, p. 265). A ativação
da amígdala também repercute no funcionamento do sistema nervoso autônomo (SNA) e
em diversas reações hormonais. Estas seriam respostas viscerais que, por sua vez,
retornariam ao cérebro, retroalimentando o sistema como um todo. Como já vimos, mesmo
que reações viscerais desencadeadas pelos SNA e pelas reações hormonais não sejam
inteiramente responsáveis pelos quadros emocionais, ainda assim ocupam um papel crucial
na totalidade do sistema emocional humano. Como bem nos lembra Tomkins (1962), os
músculos estriados levam muito menos de um segundo para reagirem a um estímulo e para
que as sensações destas respostas alcancem o cérebro. Logo, podemos suspeitar que a
história ontogênica de cada organização autopoiética, vivenciada inicialmente enquanto
comportamentos sensório-motores, organizados recursivamente tanto em seus aspectos
afetivos quanto cognitivos, vão imprimindo na unidade psicossômica uma cadeia de

248
memórias somato-sensoriais que, se traumáticas, também podem levar ao funcionamento
inadequado do SNA. Este quadro contribui para o engessamento da capacidade auto-
reguladora e auto-organizadora da estrutura autopoiética. Em segmento posterior,
demonstraremos através de casos clínicos, que os Actings-MeSAs152 oferecem, exatamente,
os recursos técnicos que levam os organismos a experimentarem feedbacks corporais.
É interessante notarmos que a existência de memórias inconscientes não seria
descartada neste modelo neurocientífico. Contudo, o funcionamento deste “banco de
dados” não estaria atrelado a termos como “repressão”, “Id”, dentre inúmeros outros
conceitos metapsicológicos da psicanálise, para se explicar a dificuldade de acesso a uma
memória implícita. Mas também devemos ressaltar que autores como LeDoux e Damásio,
os quais estão absorvidos na compreensão neurobiológica das emoções e da cognição, não
relevam devidamente os fatores simbólicos e “metafóricos” que podem estar envolvidos
neste processo ou, melhor dizendo, a relação entre significado e significante que pode
permear os processos neurobiológicos de eclosão das fobias e de outros transtornos. Por
exemplo, uma aparente fobia de elevadores que não possua, enquanto fator condicionante
desta fobia nenhum estímulo traumático vivido em elevadores, pode estar vinculada não
especificamente ao elevador, mas a outras memórias traumáticas que estejam relacionadas a
lugares analogamente estreitos, fechados, eventualmente lotados ou vazios, ou de lugares
“altos” e dentro de estruturas em movimento por uma passagem “estreita”, etc.

152
- De acordo com Xavier (2004), “na perspectiva neurodinâmica, os actings de Navarro são melhor
designados como MeSAs (Metáforas Somáticas Ativadoras) ou auto-estimulações somatossensoriais em
razão do presumido papel por elas exercido no recrutamento dos diversos mapas corporais inscritos no
cérebro por ocasião da sua experiência. As MeSAs consistem em posturas, atitudes e ações corporais de
ordem etológica, filogeneticamente herdadas e parecem estar implicadas na produção das memórias
emocionais de procedimento ou implícitas (priming model) por ocasião das experiências infantis primitivas
que formam o estrato mais arcaico de nosso acervo de memória individual. A flutuação produzida no padrão
dos mapas corporais sensitivos e motores pela experiência das MeSAs parece repercutir sobre a atividade do
foco atencional, fazendo com que ele flutue além dos parâmetros de base delimitados pelas defesas
caracterológicas” (p. 9). A diferença entre o conceito de acting - desenvolvida inicialmente por Navarro - e
MeSAs não se faz tanto pelo procedimento técnico destas estimulações somatossensoriais. A técnica
neurodinâmica de Xavier e Haldane também não parece contribuir com outras manobras sensoriais além das
citadas e também das não citadas. No entanto, como fica claro, a compreensão neurodinâmica enfatiza outras
relações a nível neurobiológico e mais uma vez pedimos ao leitor que reflita sobre a metáfora do “piloto”.
Neste sentido, usaremos os dois termos para enfatizar a parceria desta construção através da sigla “AcMe”.
Alegamos não querer angariar qualquer tipo de autoria teórica ou técnica com este neologismo, já que
buscamos apenas explicitar, de forma mais contundente, uma relação mais estreita entre os actings de Navarro
e os MeSAs de Xavier e Haldane.

249
c) Quando há o prevalecimento de estímulos agressores no processo de aprendizagem
da criança, pode-se gerar um progressivo estado de “paralização”, “fixação” ou “má
resolução” de certas etapas do desenvolvimento sensório-motor, afetivo e cognitivo. Por
exemplo, se o infante com três ou quatro anos de idade já sofre “severas” repreensões de
cunho moralista-religioso por manusear seus genitais, podemos sugerir, com razoável
margem de segurança, que possuem maiores condições de desenvolver algum tipo de
“sofrimento” afetivo-cognitivo ao praticarem a sexualidade quando ingressarem na
adolescência. Quando a criança e o púbere não suportam confrontar ou “burlar”153 os
estímulos agressores por medo de punição, maiores serão as probabilidades de viverem as
ambivalências comportamentais retratadas nos traços de caráter. Estas ambivalências
seriam expressas por ações secundárias, alavancadas por desejos primários distorcidos ou
não vividos. De acordo com Reich, o impulso sexual deverá experimentar, nestes casos,
deformações em sua base primária, ou seja, um impulso natural de tocar os genitais deve
ser reprimido e “transformado” em outras ações substitutas. Neste sentido, é compreensível,
até certo ponto, observarmos que os violadores são, em maior ou menor grau, violados de
alguma forma em seu processo de desenvolvimento afetivo-cognitivo.
LeDoux (1998) parece contribuir neurocientificamente com as considerações
reichianas que sustentam que o organismo encouraçado se encontra parcialmente
aprisionado em compulsivas repetições de seu drama afetivo-cognitivo. Relativo à ativação
de estruturas do SNC responsáveis por uma espécie de “circuito do medo”, este autor
propõe que estas estruturas podem apresentar um funcionamento “vicioso” e fechado em si
mesmo. Como vimos no quadro 8.1, LeDoux sugere que, diante de uma situação de
estresse, a amígdala fica repetindo “liberação” e o hipocampo “redução”. Como vimos,
também sugere, em acordo com Hebb, que mesmo havendo uma substancial extinção de
determinados estímulos estressores, um conjunto de células que formam uma “rede
condicionada” acaba por incidir preponderantemente sobre as memórias implícitas e, neste
sentido, serem resistentes à extinção do estímulo. Em situações estressoras diversas, como

153
- Um exemplo clássico de “burlagem” de condutas normativas impostas por contextos culturais repressores
refere-se aos adolescentes que conseguem manter um “comportamento inocente” com os pais e educadores
moralistas e, em suas vidas privadas, dão vazão aos seus impulsos eróticos, realizando plenamente suas vidas
sexuais. Logicamente, sempre há um preço a se pagar em uma cultura moralmente ambivalente e repressora,
já que a vida sexual deve ser furtiva e com pouca instrução higiênica e preventiva. Este é um tema central na
agenda de todo terapeuta reichiano.

250
um exame de vestibular por exemplo, este circuito pode ser ativado gerando um quadro de
sofrimento excessivo advindo de uma ansiedade sem “causas aparentes”.
Devemos estar atentos que não nos referimos, até o momento, a qualquer transtorno
específico, mas sim a uma modesta compreensão de como seria possível desencadear
alguma forma de adoecimento da unidade psicossômica ao estancar suas manifestações
naturalmente instintivas, primárias e passíveis de auto-regulação. Aqui também devemos
ser veementes em sugerir que os desdobramentos deste processo de adoecimento são
compatíveis com uma leitura epigenética.

d) Decorrente deste processo progressivo de encouraçamento, podemos esperar os


habituais “traços de caráter”, sugeridos por Reich, e que perfazem grande parte da conduta
comportamental do ser humano. Quando há o prevalecimento de insatisfações154 mais
severas das necessidades expressivas que deveriam ser em grande parte auto-reguladas,
como os impulsos eróticos, agressivos, de alegria, de tristeza, dentre outros, o ser humano
construído na recursividade epigênica experimenta condutas “substitutivas” que podem
levá-lo a adoecer. Logo, a bestialidade humana não parece ser fruto da “primariedade” de
suas emoções, como no caso de grande parte dos mamíferos de reino animal, mas sim pela
“inversão” destes impulsos primários em condutas mascaradas por satisfações secundárias,
também promovidas pela cultura de perfil “mais-repressivo” (MARCUSE, 1990). Os traços
de caráter, em suas manifestações extremas, expressam o recrudescimento generalizado da
unidade psicossômica. Como os recursos básicos (primários) de reação do organismo não
podem ser totalmente estancados ainda que progressivamente deterioradas, o organismo
encouraçado em suas expressões sensório-motoras, afetivas e cognitivas lança mão dos
“traços de caráter”, em todas as suas dimensões, como mantenedores de um “falso self”,
assim com os rituais compulsivos buscam manter, a todo custo, um duvidoso equilíbrio da
consciência. Como acrescenta Xavier (2004):

“começa a haver a necessidade de uma ‘cascata’ de formações reativas (operações


neurodinâmicas de tipo top-down) que respondem pela fuga psíquica – afetiva e

154
- Podemos sugerir que qualquer processo de acoplamento estrutural gera satisfações parciais, já que a total
satisfação das necessidades humanas, a nível cutural-relacional, é francamente utópica. O que parece se passar
com organismos psicossomaticamente encouraçados é que, nestes casos, há a prevalência de estímulos
agressores, acarretando em desequilíbrio da atividade auto-reguladora da unidade autopoiética.

251
cognitiva – com o objetivo de manter o perigo afastado da consciência e preservar a
capacidade de continuar operando no mundo. Entretanto, a formação de camadas
sobre camadas de formações reativas vai embotando progressivamente a
capacidade de sentir (sentience), de pensar e de se movimentar de forma livre e
espontânea, pois a sustentação das operações de recalcamento, além de estreitar a
margem de flutuação dos parâmetros de ordem e estereotipar os padrões neurais da
rede de osciladores não-lineares (THOMPSON e VARELA. 2001), requer o
consumo contínuo de energia produzida pelo próprio organismo” (p. 304, entre
travessões nosso).

e) O que também podemos esperar de um organismo encouraçado refere-se a um


“engessamento da atenção” (XAVIER, 2004), da memória de trabalho ou, em outros
termos, um funcionamento deficiente da vida consciente. Como Damásio (2004)
argumenta, raciocinar sobre as situações cotidianas e decidir sobre elas envolve nossas
capacidades afetivas. Um exemplo claro da importância desta questão refere-se a uma de
suas teses centrais, ou seja, lesões no córtex pré-frontal têm grandes chances de estabelecer
um embotamento emocional permanente o qual, por sua vez, repercute negativamente nos
processos decisórios e de raciocínio. Devemos recordar que um dos signos centrais da
sociopatia não seria relativo aos déficits de organização das idéias ou da inteligência, mas
sim o de não valorar adequadamente o grau de sofrimento que é impingido naqueles que
estão submetidos a suas ações. Damásio (2004) também alega que nestes casos, quando os
danos cerebrais não são tão evidentes e macroscópicos, a deterioração das estruturas
cerebrais envolvidas neste processo “deve provir de redes de circuitos anômalos e de sinais
químicos também anômalos que se registram no início de desenvolvimento individual” (p.
210).
O funcionamento afetivo-cognitivo correspondente ao encouraçamento da unidade
psicossômica seria caracterizado por uma circularidade comportamental que impeliria os
processos decisórios e de raciocínio a uma repetição de fundo afetivo-cognitivo
enclausurante. Com restrições, poderíamos até mesmo aproximar este peculiar
funcionamento do sistema afetivo-cognitivo ao conceito de compulsão à repetição, tão
conhecido dos psicanalistas. Nestes casos, o processo de auto-regulação seria deficiente,
sendo que o organismo seria “auto-regulado” pela/na manutenção de sua “enfermidade”
estrutural. Por fim, como acrescenta Xavier (2004), “o efeito-moldura exercido pela
estrutura caracteriológica parece exercer uma função de filtro perceptivo-cognitivo
adicional ao filtro de seleção intrínseco às propriedades da rede neural” (p. 325).

252
Adotamos uma postura epistemo-metodológica a qual nomeamos no início de nosso
estudo como pós-moderna, transdisciplinar e que aceita naturalmente a funcionalidade
construtivista para a compreensão da unidade psicossômica. Logo, tanto as expressões
sensório-motoras quanto a conduta afetiva-cognitiva devem ser condizentes com uma
recursividade estrutural. Em outros termos, para aqueles que vivem períodos depressivos
bem demarcados, devemos esperar uma organização afetivo-cognitiva pertinente a uma
estruturação corporal análoga. Por exemplo:

a mímica facial de alguém que vivencia um período depressivo mais severo deve
acompanhar o tom e as crenças disfuncionais do discurso;

o tom do discurso deve acompanhar a ausência de vitalidade gestual-corporal assim


como de possíveis transtornos metabólicos os quais seriam centrais na consolidação
de mecanismos auto-reguladores deficientes, gerando o que se nomeia, comumente,
enquanto transtornos de fundo psicossomático;

por sua vez, esta ausência de vitalidade pode acompanhar um desejo comportamental
de reclusão e encolhimento corporal e verbal;

que por sua vez pode acompanhar o desejo de permanecer em ambiente fechado e/ou
escuro que, em casos extremos, podem acompanhar um desejo incontrolável de
suicídio.

253
Esta e outras “cascatas funcionais” acompanham as unidades psicossômicas em suas
singularidades estruturais. Damásio (2004) corrobora este posicionamento no seguinte
comentário:

“A essência da tristeza ou da felicidade é a percepção combinada de determinados


estados corporais e de pensamentos que estejam justapostos, complementados por
uma alteração no estilo e na eficiência do processo do pensamento. Em geral,
porque tanto o sinal do estado do corpo (positivo ou negativo) como o estilo e a
eficiência do conhecimento foram acionados pelo mesmo sistema, esses
componentes tendem a ser concordantes (...) Quando os estados corporais negativos
se repetem com freqüência, ou quando se verifica uma estado negativo persistente,
como sucede numa depressão, aumenta a proporção de pensamentos suscetíveis a
serem associados às situações negativas, e o estilo e a eficiência do raciocínio são
afetados.” (p. 177).

7.2.4 – O resgate da unidade psicossômica a partir de uma proposta


neurodinâmica

Como buscamos aclarar com a metáfora do “piloto”, o aprimoramento da técnica


reichiana empreendida por Navarro merece um pouco mais de nossa atenção. Caso ainda
tenhamos a intenção de sustentar a posição de que o trabalho com a unidade psicossômica
deva ser levado a cabo pela via corporal, a aplicação do conjunto de “manobras corporais”
denominadas por Navarro como actings pode ser considerada uma das mais valiosas
técnicas psico-corporais da história da psicologia. Isto pelo fato de que o conjunto de
expressões sensório-motoras focadas por esta técnica busca estar em consonância com os
aspectos etológicos humanos, assim como com as particularidades ontogênicas de cada
terapeutizando. Neste sentido, por exemplo, quando se propõe ao paciente o acting de
“sugar”, busca-se recuperar a “memória corporal” desta ação sensório-motora, a qual esteve
envolvida na amamentação, assim como das particularidades ontogênicas que são
estabelecidas nesta relação de cada bebê com sua mãe. Logo, o trabalho com os actings
requer “paciência” e perseverança daqueles que, comumente, são chamados de “pacientes”,
assim como do terapeuta, para que estas etapas do desenvolvimento possam ser exploradas

254
com suficiente magnitude cognitiva e emocional e, conseqüentemente, promover uma
reestruturação funcional entre corpo, afeto e cognição.
Com as consistentes contribuições da neurociência contemporânea, o paradigma
energético preconizado por Reich, e continuado por Navarro, requer revisões. Neste
sentido, os esforços empreendidos pela leitura neurodinâmica de Xavier155 (2004) e
Haldane (2004), em estabelecer novas bases neurodinâmicas para os actings de Navarro,
são da maior importância. Segundo Haldane (2004) uma proposta neurodinâmica para a
compreensão da unidade psicossômica não seria de todo novidade, já que em 1927 Luria
sugeria “uma psicoterapia que adotasse uma leitura ‘neurodinâmica’, pretendendo dessa
forma realizar o desejo inicial, posteriormente abandonado por Freud, de integrar a
psicanálise e a neurologia” (p. 45). Esta proposta se pautaria nas possibilidades de serem
resgatados danos neurológicos causados por traumas ou estresse através de técnicas
psicocorporais, como os actings. Cozzolino (apud XAVIER, 2004) observa que:

“as defesas precoces tomam forma em todos os níveis do sistema nervoso,


tornando-se codificadas em todo nosso ser e são, como o ar que respiramos,
invisíveis. As defesas identificas por Reich refletem memórias emocionais das
experiências pré-verbais primitivas que se encontram armazenadas nas redes das
memórias motoras, sensoriais e emocionais precoces” (p. 181).

Como Xavier (2004) e Haldane (2004) enfatizam, uma proposta psicoterápica


neurodinâmica (PN) requer um outro modelo teórico que não seja estruturado através de
uma perspectiva “hidráulica”, onde simplesmente se “soltam” ou “descarregam” emoções.
Uma psicoterapia de moldes catárticos, virtualizados no corpo, também não seria, para uma
leitura neurodinâmica, a protagonista central no trabalho de reconstrução-elaboração de
nossas dimensões afetivo-cognitivas, mas sim coadjuvante que auxiliaria a composição da
cena, embora não a definiria. Então, nos termos de Xavier (2004), uma perspectiva
efetivamente neurodinâmica deve:

155
- A referência central para a apresentação que se seguirá fundamenta-se basicamente na tese de
doutoramento de José Ignácio Xavier intitulada: Atenção a si e psicoterapia corporal: Efeitos da auto-
estimulação somatossensorial sobre a atenção e suas implicações para o corpo, as emoções e a cognição.
Xavier se refere a Sean Haldane enquanto co-participante deste projeto. No entanto, por termos pouco acesso
aos trabalhos de Haldane, nos referiremos preponderantemente à tese acima mencionada e seu respectivo
autor.

255
“considerar de que maneira a excitação e a inibição afetam-se mutuamente,
provocando mudanças nos ciclos de regulação organísmica, de acoplamento
sensório-motor com o ambiente e de interação intersubjetiva; assim
dependendo do ângulo que se queira rastrear a flutuação dos parâmetros os
índices parecem ser:
1 – a “pulsação”, para a neurodinâmica dos ciclos de regulação organísmica;
2 – a dinâmica corporal durante a realização das MeSAs, para a
neurodinâmica dos ciclos de acoplamento sensório-motor e ambiente, e;
3 – flutuação da atenção e a emergência de conteúdos reportáveis, para a
neurodinâmica dos ciclos de interação intersubjetiva, que apresenta dois
planos simultâneos: o plano intrasubjetivo, isto é: da pessoa consigo mesma,
que aparece no exame dos auto-relatos, e o plano da intersubjetividade
propriamente dita que, na clínica, remete ao eixo da elaboração
intersubjetiva ou fase relacional do processo da PN” (p. 189).

Ao buscar superar o modelo hidráulico-energético proposto por Reich e levado a


diante por Navarro, a PN se aproxima, por outras vias, de uma leitura construtivista-
sistêmica do processo psicoterápico, concebendo uma atitude intrinsecamente relacional
entre terapeuta e paciente além de não relevar uma linha divisória entre ação sensório-
motora, emoção e cognição. A fim de situar o leitor neste trânsito de paradigmas, Xavier
(2004, p. 191) propõe o seguinte quadro:

256
Quadro 7.1 : Diferenças entre a VCA-N de Navarro e a PN de Xavier (2004) e Haldane (2004)

VCA-N PN
Paradigma energético: Paradigma neurodinâmico:
bioenergética da subjetividade neurociência da subjetividade

Fluxos e bloqueios de 'energia' regulando o Sinapses excitatórias e inibitórias e sistemas


funcionamento da personalidade de transmissão humoral (neuropeptídeos)
regulando o funcionamento da personalidade

Cérebro 'triuno' de MacLean Redes neurais acentradas com


(Rcomplex/límbico/neocórtex) processamento em paralelo Dinâmica
Dinâmica linear de conflito entre os 3 caótica, não-linear de competição x
cérebros cooperação entre os SEOs (Panksepp), o
Ênfase periférica (SNA) sistema de transmissão neuropeptidérgica e
os módulos cognitivos
Ênfase central (SNC)

Traços de caráter: Traços de caráter:


memória emocional ancorada no corpo; memória emocional reverberante nos
memória intelectual ancorada no cérebro. circuitos frontosubcorticais
Dualismo razão x emoção (memória de procedimento).
Interação dinâmica entre o ‘Softwiring’
(acervo de memórias pessoais) e o
‘Hardwiring’ (etologia humana)

Foco na experiência corporal Foco na experiência corporal, na linguagem


e na relação entre a dupla terapêutica

Interpretação analógica Interpretação cognitivo-psicodinâmica


(neurodinâmica)

Um aspecto técnico que muito nos interessa na PN, coerente aos que viemos
desenvolvendo até então, é que este modelo consiste em enfatizar o trabalho no/com o
corpo via AcMe enquanto mobilizador de perfil “ascendente” (botton up), os quais
fomentam a construção da auto-imagem e da memória do paciente. Ao considerarmos que
os traumas vivenciais incidem em uma unidade psicossômica constitutivamente sistêmica e
que não secciona os aspectos sensório-motores, cognitivos e emocionais, então podemos
aceitar tranqüilamente que o trabalho com os AcMes nos oferece consistentes
possibilidades técnicas para atuar diretamente no “encouraçamente” afetivo-cognitivo .

257
Como Navarro (1995a) havia acrescentado, o trabalho com os actings são
significativos por que, primeiramente, atuam em construções sensório-motoras
filogeneticamente estruturadas e etologicamente constatadas. O AcMe da “concha”156, por
exemplo, tem como finalidade básica estimular as vivências uterinas do paciente enquanto
feto – memória emocional implícita – e da natureza construtivista, em seus aspectos
qualitativos, que foram estabelecidas no útero entre o paciente-bebê e sua mãe. Como
enfatiza Cozzolino (apud XAVIER, 2004), as memórias pré-verbais primitivas
identificadas por Reich “ficam registradas nos sistemas sensoriais, motores e emocionais e
é em torno das experiências da extremidade do corpo que as memórias e as barreiras de
contato primitivas se engendram” (p. 197). A título de ilustração, apresentaremos a seguir
alguns fragmentos de casos clínicos onde foi aplicado o trabalho com os AcMes. Não serão
feitos relatos “pontuais”, enfatizando seções específicas ou de acordo com uma cronologia
exata. Buscar-se-á retratar o processo terapêutico de forma mais fluída, no sentido de
proporcionar ao leitor um quadro de perfil “gestáltico” do processo terapêutico em questão.
Posteriormente, fundamentaremos a relevância neurocientífica dos procedimentos técnicos
utilizados.

Caso 1 - Lauro é um rapaz de 26 anos, formado em administração. É o segundo de uma


família de quatro filhos. Buscou a terapia por estar sendo acometido por severas crises de
ansiedade em diversas situações sociais. Logo nas primeiras seções, propus-lhe o AcMe da
concha, no sentido de pesquisar sensorialmente qualquer manifestação promovida por este
estímulo. Não lhe foi oferecido qualquer explicação teórica dos possíveis significados que
poderiam emergir desta vivência, e que o importante seria que ele esvaziasse a mente dos
pensamentos cotidianos e estabelecesse maior contato sensorial, perceptivo e afetivo consigo
e com a experiência. No início desta primeira sessão, Lauro ficou bastante assustado,
arregalando os olhos e olhando ao redor como se procurasse “alguma coisa”. Com o passar
dos minutos, a expressão de “assustado” foi cedendo e dando lugar a uma expressão mais
suave, de relaxamento. Concomitantemente, sua respiração se “avolumou”, tornando-se mais
“redonda” e profunda. Já no final da vivência, seu olhar estava sonolento e sua face e suas
mãos apresentavam um tom mais rosado, promovido, logicamente, pelo maior fluxo de

156
- Posicionando-se atrás do paciente, que está deitado em decúbito dorsal, aplica-se as mãos em forma de
concha na região de seus ouvidos. O setting terapêutico deve estar em penumbra, propiciando um ambiente
simbólico que remeta à fase uterina.

258
sangue que irrigava as extremidades. Como sabemos, o medo possui uma dinâmica
fisiológica que se manifesta em reações centrípetas, ou seja, para o centro do organismo.
Estas reações são deflagradas pelo SNC e SNA levando, dentre inúmeras manifestações
somáticas observáveis e não-observáveis, a um empalidecimento da face e ao esfriamento das
extremidades. O tom rosado da face e das mãos de Lauro é um signo seguro de prazer, de
expansão biofísica e, seguramente, da ausência da emoção de medo de perfil severo (pânico),
nos informando que podemos continuar com o AcMe da concha sem incorrermos em perigo
de proporcionarmos estresse excessivo ao paciente. Em sessões seguintes, o tempo de
trabalho com o AcMe da concha foi sendo aumentado paulatinamente até chegar a 15
minutos. A sensação de relaxamento progressivo e profundo era evidente, expressa em signos
corporais e em seus relatos ao final da sessão. Também propôs analogias:
Lauro: “sinto-me como se estivesse envolvido por uma “gosma”...é tão silencioso...ainda que
eu não tenha nenhuma lembrança de nada parecido. Sinto-me afastado do mundo, protegido,
e sinto que minha ansiedade diminui quando fazemos este exercício”.
Em sessões que se seguiram, Lauro manifestou um impulso de pôr o polegar na boca
enquanto fazia o AcMe da concha. Foi incentivado a sugar o polegar. Em seguida, Lauro teve
o impulso de assumir uma posição encolhida, que muito se aproximava da posição fetal. Foi
incentivado a assumir esta posição. Enfim, trabalhamos com este AcMe durante alguns
meses, onde se sucederam os desdobramentos acima citados e que retrataram nitidamente
uma “evolução” das ações sensório-motoras, caso avaliemos estes desdobramentos a partir do
desenvolvimento ontogenético. Como foi observado, suas necessidades instintivas se
deslocaram para outros segmentos, como a boca. Este exercício foi sugerido até que Lauro,
naturalmente, relatou a diminuição da ansiedade generalizada que lhe acossava. Ao trazer
outros conteúdos, outras angústias, outras vivências, demos continuidade à terapia através de
outros AcMes.
Em seções posteriores, foi sugerido a Lauro o AcMe da boca aberta olhando para um ponto
fixo. Este AcMe introduz o paciente ao trabalho com segmento da boca e aos vários outros
AcMes que serão sugeridos posteriormente e que também estão relacionados a este segmento.
O paciente deve permanecer em decúbito dorsal, mantendo a boca aberta e fixando em um
ponto fixo no teto. O objetivo de se manter a atenção em um ponto fixo consiste em oferecer
melhores possibilidades de focar as sensações, emoções, associações e lembranças. De início,
relatou que ficar de boca aberta é desconfortável e que a salivação aumentava
consideravelmente. Peço-lhe que viva este desconforto e que busque compreendê-lo um
pouco mais através de suas sensações, emoções, associações e lembranças. Depois de alguns

259
minutos, relatou que lhe vinha uma imagem de estar no deserto e que estava com “água na
boca” de tanto desejo de beber água. Em seções posteriores, as imagens vão se transformando
e também suas sensações e sentimentos. Algumas vezes sentiu uma raiva “inexplicável”, e
157
queria morder o que tivesse na frente . Em outros momentos, vieram angústia e solidão,
como se tivesse a sensação de estar “vazio” por dentro. Especificamente neste dia, onde
experimentava uma sensação de “vazio”, vinha-lhe a imagem de uma grega com um cântaro
de barro, o qual continha leite de cabra muito branco e denso. Na seqüência, a grega
derramava o leite em sua boca, sendo que o conteúdo da jarra nunca terminava e que sua
158
barriga nunca se enchia . Pedi-lhe, como sempre, sensações, emoções, associações e
lembranças que esta imagem lhe causava. Aos poucos, sessão após sessão, Lauro começou a
trazer lembranças de sua infância e de sua relação com seus pais. Passou a expressar na
terapia o medo que sentia quando criança e de como se sentia desprotegido e não “nutrido”
pela mãe159. A lembrança que vinha da mãe era de uma mulher “apática”, a qual não sabia
identificar suas necessidades emocionais mais sensíveis, estando sempre distante dele a maior
parte do tempo. O pai, por outro lado, era sentido como extremamente severo. Toda sua
história começava a fazer sentido, e Lauro, pouco a pouco, foi montando parte do quebra-
cabeça de suas vivências infantis, relacionando as metáforas que lhe vinham durante os
trabalhos com os AcMes com cenas “reais” de sua vida. Nesta fase de seu processo
psicoterápico, eram lembranças emocionais de “fome” e “sede” insaciável, de abandono, de
medo de estar só e desprotegido. Trabalhamos durante quatro anos, ininterruptamente, estes
dois segmentos. Por que? De acordo com Navarro, só devemos ir adiante quando o paciente
pode ir adiante com suas próprias pernas. Este foi o tempo que Lauro necessitou para
resgatar, organizar, reconstruir e elaborar algumas vivências afetivas e cognitivas que lhe
assombravam, e que estavam associadas com estes dois AcMes. Atualmente, Lauro está bem
mais confiante de suas potencialidades profissionais e afetivas. Estabilizou-se em um bom
emprego, comprou seu apartamento, passou a morar sozinho e está com casamento marcado.

157
- O AcMe da mastigação (morder uma toalha) é posterior ao de boca aberta. O ato de morder, segundo
Navarro, se relaciona a um momento ontogenético posterior, já que se relaciona a transição da sucção para a
mastigação oral.
158
- Em uma leitura de perfil psicanalítico, esta associação sugere um considerável bloqueio oral, retratado
por uma insatisfação e uma voracidade severa. A personagem grega com o cântaro pode ser associada ao
desejo do peito que lhe satisfaça eternamente, imobilizando a ação de Lauro para que não busque seu próprio
“alimento”. Indivíduos que possuem uma estruturação básica de caráter que se ancoram em um “bloqueio oral
insatisfeito”, revelam características básicas de conduta que podem ser retratadas por metáforas como:
“eterno(a) faminto(a)”, “menino(a) abandonado(a)”, “o mundo deve lhe abastecer sempre, sem que dê nada
em troca”. Estes eram os traços de personalidade mais evidentes em Lauro.
159
- Curiosamente, a mãe de Lauro trabalhava numa creche em tempo integral.

260
Pediu para interromper o tratamento individual e permanecer apenas nos encontros
terapêuticos de grupo.

Inicialmente, devemos esclarecer ao leitor alguns pontos de ordem teórica e técnica.


Ainda em acordo com Reich e Navarro, respeitamos um sentido céfalo-caudal para a
execução dos AcMes, ou seja, trabalha-se inicialmente os telereceptores com seus AcMes
específicos para, posteriormente, dar continuidade a outras regiões do corpo como: boca,
pescoço, tórax, diafragma, abdômen e pélvis. Esta seqüência deve ser preservada já que
podemos observar no bebê a mesma evolução em moldes construtivistas, que parte dos
reflexos de orientação ocular e de sucção (reação circular primária e secundária). A cada
semana, o bebê vai integrando suas adaptações hereditárias, a princípio, puramente
reflexas, com atividades não-inatas ou, em outros termos, com atividades corticais.
Um outro ponto de extrema relevância é relativo ao tempo de execução de um AcMe.
Navarro sugeria que os actings fossem executados em tempo crescente, podendo variar de 5
a 25 minutos. Ainda que não corroboremos com a rigidez metodológica de Navarro,
devemos aceitar que qualquer processo terapêutico que queira levar este nome deve se
preocupar com um nível de desestabilização das defesas do paciente para que suas
memórias traumáticas possam aflorar. Nos termos de Andolfi (1996), o terapeuta deve
promover “desestabilizações estratégicas” no paciente. Neste sentido, o fator tempo é
crucial, já que ao aumentar o tempo de vivência no AcMe busca-se gerar um determinado
“estresse” cognitivo-emocional e, assim, possibilitar algum tipo de
resgate/reconstrução/elaboração de situações existenciais traumáticas.
Devemos ressaltar que as lembranças, as associações, as emoções e os impulsos
sensório-motores que emergem da experiência com os AcMes serão condizentes com a
singularidade ontogênica de cada paciente. Também devemos nos recordar que os
estímulos provindos do ambiente (AcMes) gatilham mudanças condizentes à estrutura das
organizações autopoiéticas mas que, em hipótese alguma, a determinam. Logo, a vivência
de Lauro com os AcMes é correlacionada à sua estruturação epigenética.
Ao se trabalhar com AcMes, a fidedignidade das lembranças não seria tão relevante.
Assim como Bartlett (1932) defendia:

261
“A recordação não é a reestimulação de inúmeros vestígios fixos, sem vida e
fragmentários. Ela é uma reconstrução, ou construção, imaginativa, feita a partir da
relação de nossa atitude para com toda uma massa ativa de experiências passadas
(...) Assim, ela quase nunca é realmente exata, mesmo nos casos mais rudimentares
de recapitulação mecânica, e não é nada importante que ela o seja. A atitude é
literalmente um efeito da capacidade do organismo de se voltar para seus próprios
esquemas e é uma função direta da consciência” (p. 96).

Logo, se o paciente vive ou não determinado trauma160 em determinada fase de seu


desenvolvimento, se lembra ou não do evento, se inventa ou não fatos “inexistentes” que
podem ser atenuantes ou maximizadores da vivência traumática, enfim, todas estas
questões parecem ser secundárias diante da emergência sensório-motora e afetiva que é
retratada nas vivências com os AcMes. Em outros termos, são as vivências sensório-
motoras, afetivas e cognitivas que fazem a diferença. Seria neste sentido, como argumentou
Navarro, que sabemos que um determinado segmento encontra-se “satisfatoriamente”
trabalhado, ou seja, quando o paciente passa a sentir prazer ao realizá-lo. Acrescentamos
por nossa conta que, além do prazer, quando o paciente “se recusa” a fazer determinado
AcMe, assim como o bebê que cospe a chupeta ou pára de sugar o peito quando está
saciado, esta ação pode estar retratando um signo positivo de crescimento do paciente.
Seguramente, esta postura de “recusa” deve ser avaliada consistentemente.
Em busca de sustentação neurocientífica para as estimulações somatossensoriais,
Xavier (2004) argumenta que:

“os MeSAs parecem facilitar o desencapsulamento de certos conteúdos através da


promoção de ressonâncias neurodinâmicas subcorticais entre os sistemas de ação e
os sistemas de memória de procedimento, e destes com o sistema de memória
declaratória; a memória declaratória, por sua vez, promove a integração ascendente
desses conteúdos ao campo cognitivo, o que amplia a ressonância neurodinâmica.
O conjunto desses eventos simultâneos (descritos em seqüência por uma mera
limitação da nossa capacidade lingüística) pode incrementar a eficácia terapêutica”
(p. 195).

Na linha de LeDoux (1998), também podemos sugerir que o trabalho com os AcMes
pode atuar enquanto um estímulo potencializador de memórias explícitas e implícitas. Os

160
- Devemos enfatizar que, em um contexto sistêmico nos moldes de Maturana, Varela, Glaresfeld, enfim,
em acordo com parâmetros construtivistas pós-modernos, um trauma só pode ser considerado enquanto tal se
aquele que vive determinado estímulo apresenta posteriormente correlatos estruturais que apontam para este
evento. Neste sentido, não podemos considerar o trauma de forma arbitrária, já que o que agride a uns é

262
estudos realizados por Ekman (1980) corroboram incisivamente a importância do feedback
corporal. Em experimento controlado, foi sugerido a um grupo de pessoas que
mobilizassem certos músculos faciais que retratassem, sem que soubessem, expressões
típicas de emoções básicas de raiva, medo ou alegria. Ao responderem algumas perguntar
básicas de seus estados de espírito, verificou-se que os sentimentos haviam sido
influenciados pelo fato de adotarem estas expressões faciais. Ao comentar os experimentos
de Ekman, Damásio (2004) sugere que um fragmento do padrão corporal característico de
um estado emocional pode produzir um sentimento, caso aquele que vivencia tal
experimento encontre-se em “consonância” afetiva com determinada mímica. Mesmo
assim, não podemos esperar as mesmas tonalidades emocionais ao se experimentar uma
mímica que componha uma emoção de raiva, por exemplo, já que as memórias, os eventos
cotidianos das mais variadas ordens que compõem a vida de cada indivíduo, serão
matizadas por uma singularidade estrutural pertinente a cada experimentador. Neste
sentido, seria sensato aceitarmos que o trabalho com os AcMes exige um razoável número
de repetições, as quais seriam executadas a cada encontro. Algumas vezes, uma única
vivência com um determinado AcMe deflagra memórias e intensas emoções correlatas.
Mesmo assim, estas experiências devem ser amadurecidas e sedimentadas em repetições
posteriores do mesmo AcMe.
Por serem os AcMes estímulos sensório-motores com características que tendem a
serem análogos a invariantes comportamentais vividos no processo de desenvolvimento,
nos oferecem consistentes elementos que podem nortear o processo psicoterápico ao
deflagrar memórias implícitas as quais, necessariamente, não contam com avaliações
cognitivas mais elaboradas ou conscientes. Como LeDoux (1998) acrescenta, as células do
hipocampo, responsáveis pelas memórias explícitas, precisam de um tempo maior de
maturação. Todavia, outros sistemas, como a amígdala e suas conexões, já se encontram
preparados para registrar emoções traumáticas vividas na primeira infância. Estas
considerações podem ser observadas quando o paciente experimenta estados emocionais de
“medo inexplicável”, acompanhados de reações físicas, ao exercitarem determinados
AcMes. Como já observamos, se a reação de medo vem acompanhada de sensações

indiferente para outros. Lembremos do clássico exemplo de Maturana e Varela ao dizer que balas de chumbo
são meras perturbações para vampiros mas que para humanos são interações destrutivas.

263
orgânicas, um estado emocional implícito e desencadeado pela amígdala está vigorando.
Todavia, nem sempre o paciente tem lembranças conscientes deste estado. Mesmo assim, a
vivência deste estado emotivo pode ser da maior importância para que o paciente
reconstrua e elabore possíveis experiências traumáticas da primeira infância, e que são
gatilhadas inconscientemente nas diversas situações cotidianas.
Por sua vez, a produção simbólica e lingüística emergeria da história de interações
sensório-motoras a quais, segundo Xavier (2004), e em acordo com Lakoff e Johnson
(1999), “guardaria viva em seu núcleo as modalidades de um modo precedente de
operações a partir do qual estabelecerá um registro categorial que irá engendrar a
percepção, a linguagem e a própria experiência corporal” (p. 205). O leitor deve notar que o
trabalho com os AcMes está em estreita consonância com as teorias da cognição que
buscam estar alinhadas com as bases construtivistas piagetianas, assim como acrescidos da
intrínseca recursividade da dimensão neuro-afetiva e contextualizados a partir de uma
singularidade estrutural defendida pelo construtivismo radical.
Damásio (2000, 2004) também contribui valorosamente com seus aportes
neurocientíficos para a sustentação de que os AcMes nos oferecem ricas possibilidades
técnicas de resgate das unidades psicossômicas. O autor propõe que, além dos sentimentos
de emoções universais básicas (medo, raiva, alegria, nojo etc) e dos sentimentos de
emoções universais sutis, derivado de combinações e/ou gradações dos sentimentos de
emoções básicas (a euforia e o êxtase são variações da felicidade; o pânico e a timidez são
variantes do medo; etc), haveria um “estado emocional de fundo”, um sentimento de fundo,
o qual deve nos oferecer um quadro cognitivo geral de nosso estado afetivo-corporal.
Através daquela famosa pergunta: como você se sente? e que grande parte dos psicólogos
fazem aos seus pacientes, podemos ter uma compreensão mais fina do que Damásio quer
sugerir com sentimento de fundo. Este estado não se refere àqueles “transbordamentos
emocionais”, observáveis nas manifestações de emoções básicas ou sutis, mas um estado
difuso, podendo ser positivo ou negativo, e que retrata “a imagem da paisagem do corpo
quando essa não se encontra agitada pela emoção” (DAMÁSIO, 2004, p. 181). Sem os
sentimentos de fundo, a representação de “identidade” ou uma “consciência de si” seria
impossível. Este seria um dos sintomas que acometem aqueles que sofrem de anosognosia
prototípica devido a algum acidente vascular cerebral, trauma ou tumor que tenha afetado

264
as regiões responsáveis pela manutenção de um sentimento de fundo161. Os anosognósicos
não conseguem articular as informações que provém do corpo e, neste sentido, não podem
atualizar a representação das “paisagens” corporais. Nos casos graves de anosognosia,
podemos esperar um severo desrespeito pelo sentido de auto-preservação, já que os que
sofrem deste transtorno não estão aptos a avaliar emocionalmente os fatores que podem
colocar sua vida em risco. Segundo Damásio (2004), tampouco devemos esperar destas
pessoas maiores sensibilidades pela dor alheia.
Nesta linha de raciocínio, podemos inferir que o trabalho com os AcMes propicia um
ambiente sensório-motor fecundo para a mobilização da atenção e da consciência do
paciente. A interrupção da linguagem verbal e a focalização da atenção no AcMe levam o
paciente, paulatinamente, a uma aproximação do que Damásio nomeia enquanto
“marcadores-somáticos”. Nos termos de Damásio (2004), um marcador-somático seria
responsável por uma síntese cognitiva-afetiva primária que nos orientaria de forma sutil,
filtrando os diversos cenários que podem estar envolvidos nos processos decisórios.
Curiosamente, Damásio sugere que os marcadores-somáticos foram criados durante o
processo de socialização primária e secundária, o que nos leva em cheio à estruturação dos
traços de caráter, apresentados inicialmente por Reich. Vejamos um comentário de
Damásio:

“A constituição de marcadores somáticos adaptativos requer que tanto o cérebro


como a cultura sejam normais162. Quando o cérebro ou a cultura são deficientes, é
improvável que os marcadores-somáticos sejam adaptativos. Um exemplo do
primeiro caso é o encontrado em alguns doentes afetados por um estado conhecido
por sociopatia ou psicopatia evolutiva” (p. 210).

Ora, parece estar evidente que Damásio se refere à incapacidade dos organismos
manterem sua capacidade auto-reguladora ou, em outros termos, de manterem afinados
seus marcadores-somáticos, caso sejam excedidos os níveis de tolerância à agressão que
cada unidade autopoiética pode suportar em sua singularidade estrutural. O trabalho com os

161
- Segundo Damásio (2004), as regiões responsáveis situam-se “na ínsula, no lobo parietal e na substância
branca que contém as ligações entre elas e, além disso, as ligações para e do tálamo, para e do córtex frontal e
para os gânglios basais” (p. 184).
162
- Assim como LeDoux, Damásio parece não desdobrar devidamente a noção de “normalidade” segundo os
pressupostos do construtivismo radical. Afinal, o que ele quer dizer com este termo? Todavia, podemos intuir
que Damásio se refere ao nível excedente de agressão do meio às unidades psicossômicas, ainda que não
releve explicitamente a singularidade deste processo (epigênese).

265
AcMes oferece, neste sentido, consistentes possibilidades de resgate dos princípios auto-
reguladores:

“ao provocar oscilações nos fundamentos mais arcaicos da rede difusa que
engendra a consciência e o sentido de si. Operando a partir dos substratos mais
profundos da core consciousness e do sentido de si, a fase corporal do processo
terapêutico expresso pelas experiência das MeSAs atua como gatilho para a
oscilação neurodinâmica dos processo de agenciamento bottom-up, enquanto a
elaboração intersubjetiva dos efeitos provocados pelos MeSAs constitui a faceta
top-down do processo clínico” (XAVIER, 2004, p. 358).

7.2.4.1 - Para “além” dos AcMes

O trabalho com os actings, proposto inicialmente pela vegetoterapia caracterio-


analítica de Navarro, ou com os MeSAs de Xavier e Haldane, que buscaram revitalizar e
contextualizar a técnica dos actings a partir de um enfoque neurodinâmico (PN), seguem,
em maiores ou menores proporções, um procedimento metodológico relativamente
sistemático (céfalo-caudal). Como vimos, estes procedimentos buscam atuar e, em muitos
momentos, resgatar/reconstruir/elaborar nossas construções afetivo-cognitivas, a princípio
exclusivamente sensório-motoras, e que seguem um sentido organizacional de perfil
etológico, decorrente de uma deriva filogenética e que se singularizam na história
ontogênica de cada indivíduo. Logo, as experiências com os AcMes repercutem
diretamente na atividade atencional do paciente, podendo gerar uma flutuação afetivo-
cognitiva a qual, por sua vez, pode repercutir beneficamente em “desenlaces” do
funcionamento da unidade psicossômica que esteja atrelada à defesas caracteriológicas.
Estas defesas parecem ser condizentes a um sistema operacional fechado e que se
retroalimenta da própria estrutura caracteriológica. Como acrescenta Xavier (2004):

“A atenção (attention) responde pela sustentação de conteúdos na memória de


trabalho e viabiliza o ‘dar-se conta’ (awarness), isto é: que os conteúdos
privilegiados da atenção alcancem um estado de reportabilidade consciente. A
reportabilidade, entretanto, não é a consciência em si mas a sua articulação com as
propriedades de agenciamento (agency), autoposse (ownership) e discursividade
sobre alguns dos aspectos da consciência, que constitui o campo de colheita dos
atos da atenção” (p. 376).

266
Contudo, podemos observar que outras correntes que lançam mão de metáforas
corporais no auxílio do resgate-reconstrução-elaboração da unidade psicossômica, também
podem alcançar resultados positivos. Ainda que não sigam uma sistematização teórica e
técnica na utilização dos estímulos corporais, propostas pela vegetoterapia e pela PN, e nem
se preocupem em compreender os substratos neurobiológicos que alicerçam tais
procedimentos, as técnicas psicodramáticas oferecem recursos surpreendentes na
desconstrução dos “efeitos-moldura” (XAVIER, 2004) observados na funcionalidade dos
aspectos afetivos, cognitivos e somáticos que constituem a couraça caracteriológica. Como
se sabe, as técnicas psicodramáticas, arregimentadas inicialmente por J.L. Moreno (1986),
lançam mão de recursos dramático-teatrais no intuito de dinamizar os alicerces psico-
sociais (jogos de papéis) que são estabelecidos no processo de desenvolvimento, devendo
se ressaltar que os “papeis psicossomáticos”163 são os precursores dos papéis sociais e
psicodramáticos. Curiosamente, Moreno (1986) também alertava, em outros termos, para a
perda da capacidade de auto-regulação decorrente do conjunto de fatores inibidores
existentes na família e na sociedade. Neste sentido, “os recursos inatos do homem são a
espontaneidade, a criatividade e a sensibilidade” (GONÇALVES, WOLFF & ALMEIDA,
1988, p. 45). Assim como Reich, Moreno atribuiu ao social os meios que seriam essenciais
no processo de enrijecimento destas naturais “disposições” humanas. Moreno (1986)
denominou enquanto “conserva cultural” todos os produtos, sejam materiais ou imateriais,
que se mantém relativamente estáveis, para não dizer estáticos, os quais podemos buscar ao
bel prazer enquanto uma “categoria tranqüilizadora”. Assim como Reich defendia que os
traços de caráter eram manifestações comportamentais promovidas pela cultura e
fomentados em grande parte pela moralidade burguesa-cristã, Moreno, por sua vez, alegava
que a perda dos recursos inatos de espontaneidade, criatividade e sensibilidade eram
decorrentes do excessivo prestígio dos valores cristalizados da cultura.
Como acrescenta Gonsalves, Wolff e Almeida (1988), “a dramatização é o método
por excelência, segundo Moreno, para o auto-conhecimento, o resgate da espontaneidade e
a recuperação de condições para o inter-relacionamento” (p. 78). Ao exercitar os diversos

163
- Moreno (1986) considera a sedimentação dos papéis psicossomáticos a partir do exercício das funções
vitais: alimentação, excreção, exploração sensório-motora, dentre outros.

267
“papéis” que estão à disposição, ou seja, as diversas funções que podem ser naturalmente
apropriadas nas relações sociais, o terapeutizando se predispõe a aproximar de suas “zonas
de conflito” as quais, até então, poderiam estar encobertas exatamente pela impossibilidade
de romper com o círculo vicioso de sua estrutura de caráter. A título de ilustração desta
promissora possibilidade de articulação teórica e, sobretudo, técnica, entre o psicodrama e o
trabalho com os AcMes, apresentaremos mais um estudo de caso.

Caso 2 – Regina está em processo psicoterápico há 10 meses. Têm 40 anos, é advogada,


divorciada e têm uma filha de 13 anos. É a filha mais velha de uma família de 6 irmãos.
Buscou a terapia para se “conhecer melhor” e também para elaborar a morte do parceiro, com
o qual viveu 2 anos, ocorrida em um acidente automobilístico. Logo de início, Regina
apresentava uma atitude ambivalente diante ao seu tratamento. Mesmo sendo uma pessoa que
havia chegado ao cume da vida acadêmica (era doutora em Direito) e também bastante aberta
para atividades mais sensíveis e “alternativas” (tocava um instrumento musical, se tratava
medicamente pela antroposofia, gostava de acampar), Regina apresentava uma dureza
comportamental evidente diante de qualquer comentário que aventasse a possibilidade de
alguma “falha” ou “fraqueza” de seu caráter. Certa vez, enquanto Regina relatava um
episódio de sua infância, foi observado em suas feições um “mix” de expressões (raiva, nojo,
tristeza) que retratava um evidente desagrado diante da lembrança. Quando foi feita uma
sugestão de associação entre a “careta” e o relato, no intuito de propiciar maior integração-
consciência entre a mímica facial e sua emoção subjacente, o terapeuta recebeu a seguinte
reposta:
Regina: não estou percebendo nada...também se estiver fazendo uma careta, qual o
problema? Muita gente deve fazer caretas!! Não vejo mal algum nisso!!
No decorrer de seu processo psicoterápico, ficou bastante evidente que este comportamento
reativo era proveniente, em parte, de uma imposição dos pais para que ela assumisse
responsabilidades de cuidado e indulgência perante as necessidades dos irmãos mais jovens.
No decorrer das sessões, Regina se deu conta que eram responsabilidades “descabidas” e,
acima de tudo, que não deveriam ser-lhe atribuídas. Aos poucos, foi percebendo que estas
exigências de “perfeição”, abnegação e indulgência perante aos desejos dos mais novos
também acabaram por levá-la a um enrijecimento crônico de caráter. Neste sentido, a mágoa e
a raiva pelos pais deveriam ser em grande parte “sublimadas” para se evitar o estigma de ser

268
rotulada como uma irmã “má” e filha “irresponsável”. Também expressava uma considerável
raiva, em grande parte velada, pela figura masculina. Dizia que seu pai sempre protegia os
irmãos, até mesmo sustentando alguns deles até os dias de hoje. Esta relação com as figuras
masculinas parece ter contribuído para matizar um “ar de desesperança” com os homens em
geral e, veladamente, com uma atitude de considerável reserva para com o terapeuta. Também
relatou severas desarticulações afetivas com a mãe desde criança, alegando que esta era
extremamente impaciente com suas queixas e até mesmo “brutal” quando tinha que
repreendê-la. Certa vez, relatou que sua mãe lhe enfiou debaixo do chuveiro frio com roupa e
tudo por não querer usar tal roupa. Em termos gerais, falou de uma distância sensório-afetiva
considerável de seus pais, e que teve que se “bastar” afetivamente desde muito cedo (a
paciente se acarinha nos cabelos com certa freqüência durante a sessão, principalmente
quando relata algum conteúdo que esteja associado com sua vida emocional). O que chamava
a atenção no relato de Regina é a constante ausência de emoção ao relatar episódios
visivelmente duros e tristes (visão do terapeuta). Algo corriqueiro observado no decorrer
destes relatos eram algumas feições recorrentes na boca de Regina. Estas feições pareciam
retratar algum tipo correlação subjetiva com toda sua história. Por ser uma paciente
extremamente defensiva e reativa ao serem marcados seus traços de caráter, adotou-se uma
estratégia de aproximação mais branda, periférica, aprofundando nas relações funcionais de
suas expressões psicossomáticas na medida em que se estabelecia uma aliança de trabalho
mais sólida e positiva. Após algumas sessões de AcMe da concha, demos continuidade com o
AcMe da boca aberta olhando para um ponto fixo. Como foi observado, a boca parecia ser
um excelente ponto de “entrada” para se explorar suas memórias traumáticas. Depois de um
razoável número de sessões onde foram trabalhadas/contornadas/elaboradas algumas
resistências164 mais severas em exercitar este AcMe, começaram a surgir um rico material que
poderia lhe propiciar uma melhor compreensão de sua história emocional. Em uma destas
sessões, depois de ficar com a boca aberta durante 15 min e olhando um ponto fixo no teto,

164
- Este foi e está sendo um AcMe bastante explorado por Regina, já que a quantidade de emoções,
lembranças e associações são extremamente significativas. Observam-se várias manifestações somáticas que
parecem ser desencadeadas por este AcMe. O reflexo do bocejo surgiu com bastante frequência, assim como
a necessidade de ficar mexendo com a boca de alguma forma enquanto exercitava o AcMe. Estas
manifestações pareciam retratar uma considerável resistência em aprofundar nas emoções que poderiam ser
suscitadas por este AcMe, já que o bocejo e o movimento lhe tiravam a atenção dos conteúdos afetivos-
cognitivos que poderiam estar à espreita. Prova disto é que depois de várias execuções e sendo marcadas com
cautela e cuidado estas expressões resistenciais, Regina pode aprofundar um pouco mais nos conteúdos
emocionais, como veremos a seguir.

269
165
Regina relatou que sentia uma sensação esquisita na “boca do estômago” (é importante
ressaltar que Regina “protegia” esta região durante todo o exercício mantendo as mãos
cruzadas sob esta área). Sugeri então que fizesse uma “viagem interna” (psicodrama interno),
percorrendo seu “mundo interior” como se fosse uma “exploradora”, munida de uma lanterna
imaginária e o que mais fosse preciso para fazer esta incursão. Sugeri que desse “vida” a esta
jornada, deixando a mente livre para criar imagens espontâneas. Fez o seguinte relato
(resumido):
Regina: estou descendo pelo esôfago. Está muito escuro e escorregadio. Tenho a sensação de
que esta região é muito apertada166. Estou chegando no estômago. Aqui, tudo é mais claro e
molhado. Me sinto melhor aqui. Vou continuar descendo até o útero. Bem, aqui no útero já é
mais escuro. As paredes são bem vermelhas e macias. Há um lago aqui, um lago escuro e
fundo, como se a água fosse uma espécie de óleo. Ponho a mão no óleo e sinto algo viscoso.
Bem, é isso...quero voltar.
Ao retornar de sua “viagem interna”, começamos a desdobrar os simbolismos de seu “mundo
orgânico”. Logo, chegamos à imagem do “lago de óleo” no útero. Daí surgiram associações
com sua gravidez, com os problemas alimentares e bucais vividos pela filha e com a morte de
seu marido (o marido morreu em um acidente de automóvel, o que também poderia sugerir a
imagem do óleo).
Parece que a partir da vivência propiciada pelo psicodrama interno, algumas imagens e
emoções mais primitivas foram mobilizadas e que pareceram reverberar para outras sessões.
Em sessão seqüente, relatou um sonho com o pai. Eles estavam em um restaurante, mas que a
comida havia acabado. Todavia, o pai tinha conseguido fazer um belo prato de salada. Pediu-
lhe que dividisse com ela a salada, mas o pai se negou veementemente a dividir sua comida.
Relatou que acordou chorando, ansiosa e com raiva do pai. Em uma de suas últimas sessões,
sugeri novamente que exercitasse o AcMe da boca aberta fixando um ponto no teto. Após 15
minutos, encerramos o exercício e passamos a buscar as emoções, sensações, lembranças e
associações que poderiam estar relacionadas. Regina disse que a partir de um determinado
momento, sentiu que sua boca se “expandia”, como se o corpo todo virasse uma grande boca
(curiosamente, o tema da “grande boca” parece voltar por outra via), como se ela fosse uma
“cumbuca”. Sugeri então que ela “fosse” a cumbuca (técnica psicodramática - concretização)

165
- É importante ressaltar que alguns autores, dentre eles Navarro (1995a) e Hortelano (1997), chamam a
região do plexo solar como a “grande boca”. Segundo estes autores, esta região possui intrínseca correlação
com a fase uterina e que sensações provindas desta região podem estar reportando ao tipo de vivência desta
etapa do desenvolvimento.

270
e que, ao assumir este “personagem”, nós conversaríamos um pouco. Já no “lugar” da
cumbuca, assumindo um posição corporal condizente (Regina coloca as mãos e as pernas em
semi-círculo, se aproximando ao máximo da forma de um objeto que contém “coisas”),
iniciamos o seguinte diálogo (resumido):
Terapeuta: Olá cumbuca, como vai você? Gostaria de conhecê-la melhor! Quem é você? O
que você faz da vida?
Regina: eu sou uma cumbuca e contenho muitas coisas dentro de mim.
Terapeuta: hamm....então quer dizer que nada sai de você!
Regina: é...tudo fica girando, girando, girando.....dentro de mim nasce um rio (o tema da
água-óleo novamente), um rio que fica girando sem transbordar.
Terapeuta: Então quer dizer que você não é como seus parentes? Eu conheço algumas
cumbucas que permitem que algumas colheres peguem um pouco de seus conteúdos!!
Regina: É....mas eu não!!
Ao voltar da “concretização”, Regina falou um pouco de sua vida afetiva, e de como ela é
auto-suficiente. Neste momento, Regina volta a acariciar os cabelos, mas logo se “dá conta”
desta ação e fica um pouco defensiva. Conversamos um pouco sobre esta ação, associando
com sua vida afetiva. Enfim, parece evidente uma “evolução” de seu processo.

Como parecem demonstrar, os recursos técnicos oferecidos pelo psicodrama podem


auxiliar consistentemente na exploração dos AcMes e vice-versa. Neste contexto, realidade
e fantasia se relacionam funcionalmente, sendo constitutivas de uma esfera mais ampla,
psicodramática, que envolve pessoas, objetos e situações culturais e cotidianas. O
psicodrama, assim como o trabalho com os AcMes, oferece ao terapeutizando um amplo
leque de recursos técnicos para seja vivenciada suas “realidades suplementares”167. Ao se
exercitar a linguagem e o discurso do analisando pelas vias sensório-motoras (dramáticas)
enquanto um “realismo experiencial”168 (JOHNSON, 1987), retratado nas miríades de uma

166
- Regina sempre demonstrou uma severa dificuldade em chorar. Como certa vez ela comentou
metaforiancamente, o choro ficava retido em um nó na garganta.
167
- Moreno (1986) considera enquanto “realidade suplementar” aqueles papéis que não são desempenhados
em função da censura das “conservas culturais”, por serem fantasmáticos, mitológicos, sonhados, alucinados,
dentre outros.
168
- De acordo com Silva (2004), “a arquitetura da linguística cognitivo-funcional envolve, esclarece
Langacker, o reconhecimento do estatuto fundacional das funções semiológica (cognoscitiva) e interacional
da linguagem e dos fatores situacionais, biológicos, psicológicos, históricos e sócio-culturais que a
determinam; uma agenda complexa e multifacetada, incluindo domínios tão diversos como discurso, variação
e mudança, tipologia, aquisição e bases neurológicas da linguagem; e naturalmente diversas metodologias,

271
“semântica cognitiva psicodramática”, nos aproximamos de uma “radicalidade vivencial”
da própria experiência lingüística. Como acrescenta Marmaridou (2000):

“Um dos princípios básicos do realismo experiencial e da lingüística cognitiva é que a língua
não é representação de uma realidade objetivamente existente, mas da realidade como é percebida e
experienciada pelos seres humanos. Vista desta perspectiva internalista de realidade (PUTNAM,
1981), a significação lingüística é corporificada; ela emerge de nossas capacidades biológicas e de
nossas experiências físicas e sócio-culturais como seres atuando em nosso meio-ambiente” (p. 4).
Ora, os AcMes e o ato psicodramático parecem se constituir enquanto uma
“radicalização”, logo, vivência, do que autores como Lakoff e Johnson (2002) nomeiam
enquanto um “realismo experiencial”. Nessa linha, a metaforização é o modo constitutivo
da representação simbólica do mundo já que, como figura de linguagem, transfere as
representações de uma esfera de significação para outra. Nos dizeres de Pêcheux (1999), a
metáfora estaria na base da significação das coisas – de uma palavra por outra:
“os sentidos só existem nas relações de metáfora dos quais certa formação discursiva vem a
ser o lugar mais ou menos provisório: as palavras, expressões, proposições recebem seus sentidos
das formações discursivas nas quais se inscrevem. A formação discursiva se constitui na relação
com o interdiscurso (a memória do dizer), representando no dizer as formações ideológicas. Ou
seja, o lugar do sentido, lugar da metáfora, é função da interpretação, espaço da ideologia” (p. 21).
A essência da metáfora consiste, então, em compreender e experienciar um tipo de
coisa em termos de outra, aproximando conceitos de espécies distintas. Por sua vez, as
“metáforas vivenciadas” oferecem ao terapeutizando o substrato corporal, podendo
iluminar e tornar mais coerentes certos aspectos de vida afetivo-cognitiva. Logo, Regina, ao
vivenciar sensório-motoramente a “metáfora da cumbuca”, se aproxima vividamente dos
conteúdos simbólicos e emocionais promulgados por este objeto da vida cotidiana. Mesmo
assim podemos esperar que a “vivência da cumbuca” guarde outras possíveis transposições
representacionais que poderão levá-la a outras significações de sua vida afetiva e cognitiva.
Como um autêntico produto simbólico, a “cumbuca” de Regina enovela-se em outras
construções afetivo-cognitivas que, oportunamente, poderão vir à consciência. Como
propôs Whitehead (1987), os símbolos enquanto metáforas ou analogias “aguardam”

mas cumprindo todas os princípios de evidência convergente a partir de múltiplas origens e de coerência
geral.

272
alguma qualidade da realidade a qual, por sua vez, possa ser engrandecida no processo de
simbolização. No psicodrama, assim como no trabalho com os AcMes, há sempre um corpo
que se mostra enquanto signo e que se constitui por significantes. Por fim, “o valor que têm
a realidade e a fantasia no psicodrama dependem da quantidade de realidade que pode ser
dada à fantasia e da quantidade de fantasia que pode ser emprestada à realidade no palco
psicodramático” (SOLIANI, 1993, p. 58).

8 – Considerações finais sobre o processo elaborativo


afetivo-cognitivo a partir de uma mente incorporada

Como argumenta Damásio (2000), o sentido de “eu” (self) em nossa consciência


“muda continuamente conforme avança no tempo, mesmo que conservemos uma impressão
de que o self permanece o mesmo enquanto nossa existência prossegue” (p. 278). Ora,
parece que Damásio chegou à compreensão, por outras vias, do que o filósofo grego
Heráclito já havia intuído há 2500 anos atrás, ou seja, o ser não é mais nem menos do que o
não-ser e o “verdadeiro” se revela apenas enquanto a unidade dos opostos. Heráclito ainda
dizia: “Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo (...) o devir é e também não é”.
Daí Heráclito compara o fluxo da vida com a corrente de um rio - que não se pode entrar
duas vezes na mesma corrente.
Damásio (2000) alega que as estruturas responsáveis pela “permanência” da
consciência e de um sentido de “eu” e, por outro lado, do permanente fluxo da consciência
que leva o “eu” a se atualizar, são sustentados por estruturas neurológicas diferentes. O eu
sempre em mudança é o sentido de um self central. Nas suas palavras, este self “não muda,
mas é transitório, efêmero, precisa ser refeito, precisa renascer continuamente” (p. 278), e
são as constantes explorações sensório-motoras as quais a criança vai ampliando em seu
processo de desenvolvimento que organizam a consciência central. Por sua vez, o sentido
de “eu” que “permanece” é o self autobiográfico, isto por se basear em um complexo banco
de dados, representado pela memória dos fatos e objetos que permeiam qualquer existência

273
singular. Estes dados podem ser reativados e, neste sentido, oferecerem uma aparente
“permanência” de nossa identidade. Logo, um funcionamento minimamente satisfatório da
consciência requer a preservação das estruturas neurológicas envolvidas nesta complexa
“dança” entre um “presente permanente” que escoa diante de nossos sentidos e de nossa
extensa cadeia de construções alojadas em nossa memória. Sem a memória biográfica não
teríamos a noção de passado, futuro e “intencionalidade” diante dos eventos que surgem a
cada momento diante de nossos sentidos. Mas sem a narrativa da consciência central, não
teríamos nenhum conhecimento do momento. Logicamente, a consciência central precede a
consciência ampliada. Como bem sabemos, houve um longo período de maturação
orgânica e civilizatória para que o homem se organizasse na linguagem, e assim também o
é, analogamente, no processo de desenvolvimento ontogenético.
Estas duas “instâncias conscientes” parecem se organizar recursivamente no sentido
de oferecer uma experiência consciente unificada. Neste sentido, o presente, o momento,
são devedores da biografia, já que o presente parece se organizar na simultaneidade das
possibilidades intencionais alojadas na memória afetivo-cognitiva. Novamente, Damásio
(2000) revela sua aproximação com o construtivismo piagetiano e radical ao sustentar que a
memória de um martelo, por exemplo, “não está situada em um lugar único em nosso
cérebro onde encontraríamos um verbete intitulado ‘martelo’ com uma clara definição
dicionarizada dessa ferramenta” (p. 282). Por outro lado, existiriam vários registros e em
diferentes áreas do cérebro que corresponderiam às diferentes interações com esta
ferramenta. Estes registros seriam construídos, como já vimos, na evolução dos recursos
afetivo-cognitivos, a princípio sensório-motores169 e, posteriormente, na continuidade da
vida sensório-motora mas ampliada pela capacidade de simbolização. Estes registros
podem estar, em grande parte, dormentes, implícitos, e se fundamentam em sítios neurais
separados. Corroborando esta questão, devido a algumas lesões cerebrais circunscritas,
podemos ver um martelo e não reconhecê-lo até que seja tocado. Mesmo assim, salvo estas
situações extremas, estes sítios seriam passíveis de integração assim que fosse evocada uma
imagem do objeto.

169
- Todavia, Damásio parece desconhecer a obra de Piaget, já que não situa adequadamente o processo de
manuseio dos objetos a partir de acomodações e generalizações dos esquemas de ação. Em outros termos, o
manuseio do martelo não se limita somente ao passado das experiências com o martelo, mas também com

274
Como já propusemos, a etapa sensório-motora do desenvolvimento pode ser
considerada como uma fase extremamente sensível. Por possuir “menos” peso estrutural,
está sujeita a maiores flutuações e, em último sentido, a agressões do ambiente. Quanto
mais sensibilidade, mais sujeito a flutuações, danosas ou não, se encontra o sistema
cognitivo da criança170. Ao considerarmos que cada vivência sensório-motora deve ser
abordada e compreendida segundo uma singularidade constitutiva, estamos mais aptos para
aceitar a existência de uma ampla faixa de flutuações sensório-motoras. Estas flutuações
seriam decorrentes de um processamento afetivo-cognitivo potencialmente auto-organizado
e, conseqüentemente, segundo as peculiaridades e padrões auto-organizadores de cada
criança.
Como vimos, Piaget nos apresenta, ainda que de uma forma bastante “esterilizada”,
como as fases do desenvolvimento da criança vão sendo construídas e, nos nossos dizeres,
elaboradas e reelaboradas, segundo uma lógica psicogenética. Todavia, ao tentarmos
explicar como estas interações entre sistema e ambiente se fazem, estivemos em busca de
aptidões que nos autorizem a organizar um quadro explicativo das inúmeras possibilidades
de acoplamentos estruturais. Varela, Thompson e Rosch (2003) fazem a seguinte
colocação: “Como podemos saber quando um sistema cognitivo está funcionando
adequadamente? Quando ele passa a ser parte de um mundo continuado existente ou molda
um novo mundo” (p. 210). Neste sentido, também poderíamos refletir quais seriam os
fatores que agem na “contra-mão” de um processo elaborativo razoavelmente saudável.
Como bem sabemos, a otimização deste processo seria algo utópico. No entanto,
argumentamos nos segmentos anteriores de nosso estudo sobre algumas possibilidades de
acoplamentos e interações que podem levar a um adoecimento deste processo elaborativo e,
em casos extremos, ao seu colapso.

esquemas de ação mais primitivos de “bater”, por exemplo, que seriam exercitados com outros objetos e em
diferentes situações emocionais.
170
- Certa vez, uma paciente relatou que tinha resolvido o “problema de choro excessivo” de seu bebê. Ela
percebeu que quanto mais o deixava chorar mais se espaçavam os episódios de choro. E num “belo dia”
(segundo seu relato), o bebê parou de chorar “totalmente”, se tornando um bebê “comportado”. Podemos
considerar este exemplo como um caso clássico onde o sistema afetivo-cognitivo da criança sofre uma séria
agressão com o “abandono” e com a severa incapacidade da mãe compreender suas mensagens. Bem, este
também poderia ser considerado um exemplo clássico de um acoplamento estrutural possivelmente danoso
entre aquele que cuida e o bebê. Podemos considerar, segundo esta leitura, que a interrupção do choro denota
um “fechamento” do sistema cognitivo-afetivo do bebê, tornando-o menos apto a flutuações auto-
organizadoras.

275
Uma idéia interessante, também debatida por Varela, Thompson e Rosch (2003), é a
de que a concepção de um sentido de “eu” enquanto uma instância sólida e rigidamente
delimitada é apenas fruto de nossa ansiedade existencial. Segundo os autores, o mundo não
pode ser encontrado separadamente de nossa incorporação. Oferecendo, mais uma vez, um
suporte neurobiológico para este posicionamento, Cândido e Piqueira (2002) acrescentam
que:

“Correlacionando a vivência de um “eu” individualizado à dimensão neuronal,


Kandel (1999) aponta evidências que indicam que nosso cérebro não é uma série
imutável de circuitos invariantes, mas sim um fluxo do ponto-de-vista estrutural e
funcional. Também para Black, Scott, Robertson e Zachary (1990), as sinapses
emergem de uma entidade dinâmica inesperada, que se transforma a todo momento.
Segundo os autores, a essência da vida envolve o fato de que níveis mais altos do
sistema cerebral transformam continuamente os níveis mais baixos, nos quais os
mais altos estão baseados. Esse fenômeno não admite centro, mas gira em torno de
uma evolução organizada recursivamente, imprevisível e espontânea, própria dos
sistemas dinâmicos não-lineares” (p. 668).

Mas se não deveríamos possuir a crença de que existem “fundações” que retratem
uma instância consciente sólida e imóvel, como teríamos sentido de identidade? Bem,
Damásio (2000) apresentou algumas considerações de como esta relação poderia se
estabelecer. Mas tudo nos leva a crer que o sentido imóvel de identidade, de “fundação”,
parece estar baseado, em grande medida, em nossos “traços de caráter” ou, nos dizeres de
Varela (2003), do que o budismo chama de “os cinco agregados”. Os cinco agregados são:
Formas, Sentimentos-Sensações, Percepções-Impulsos, Formações disposicionais,
Consciência. De acordo com o budismo, aqueles que procuram um “self” nos agregados
sairão de mão vazias. É por esta razão que os agregados são denominados de “agregados do
apego”, já que nos aferramos a eles e, com isso, acreditamos que aí se encontra nosso
sentido de “eu”. Segundo o budismo, ao acreditarmos que nosso sentido de identidade (self)
é estabelecido por estes apegos, instaura-se a roda viciosa do sofrimento e da compulsão. O
apego excessivo a estes agregados poderia nos fazer crer que somos apenas determinadas
manifestações “imóveis”, até mesmo compulsivas, que se repetem dia após dia como num
“feitiço do tempo”. Como Cândido e Piqueira (2002) acrescentam:

“Quando o “eu” percebe que não controla tudo, pode haver pane no sistema como
um todo; contudo, muitas das produções psíquicas acontecem justamente nos hiatos

276
caracterizados pela falta de controle total do ego. Nos apegamos às representações
egóicas e recusamos a idéia de modificação. Compreendemos que uma certa
desordem é necessária, mas, afetivamente, resistimos à idéia até o último segundo.
Sem mudanças, os processos psíquicos vão aderindo ao real, e, sem imaginação,
não se criam novos significados; em suma, se não há reciclagem do “eu”, as
experiências novas adquirem características de um filme já visto. Caso contrário, o
sistema não se complexifica e há aumento do acesso a um maior número de
estados, o que significa unicamente que o repertório aumenta em quantidade de
estados, mas que há uma qualidade diferente em cada estado que se sucede no
processo de auto-organização” (p. 681).

Logo, um estado de raiva, por exemplo, experimentado por indivíduos mais


“pulsáteis”, móveis e com sua capacidade de auto-regulação mais preservada, se difere em
essência do ódio cristalizado, “irremovível”, sedimentado na memória biográfica do
indivíduo encouraçado. Emoções cristalizadas, constitutivas de estruturas encouraçadas
severas, contam com parcos recursos psicossômicos para sua transmutação. Por mais que
agrida ou, nos casos extremos, mate o semelhante, estas estruturas não estão aptas a se
“esvaziar” e dar espaço para novas emoções.
Um determinado caminho só existe porque ele é aberto com o caminhar. Ainda que
possamos trilhar caminhos abertos por outros, as pegadas que deixamos neste caminhar
terão, em última instância, as marcas de nossa singularidade. Da mesma maneira, ainda
que o processo evolutivo psicogenético apresentado por Piaget “respeite” uma lógica
interna aos organismos e que corresponda (match) à invariantes funcionais comuns a todas
as estruturações de que os organismos humanos são capazes, enfatizamos que não foram
relevados os mecanismos que, em seu sentido “fino”, se alicerçam por encaixes (fit)
decorrentes de uma singularidade ontogênica. A partir destas considerações, propomos
algumas reflexões finais para uma aproximação do que compreendemos enquanto
“elaboração”:

a) Ao se considerar que o processo elaborativo é decorrente de construções afetivo-


cognitivas “incorporadas” do/no mundo, devemos aceitar categoricamente os aspectos
somáticos e, portanto, neurobiológicos deste processo;
b) Ainda que respeite uma lógica psicogenética, apresentada nas pesquisas de Piaget,
o processo elaborativo afetivo-cognitivo se revela, em última instância, na
singularidade (fit) do “trilhar” de cada organismo;

277
c) Este “trilhar” singular também é produto da recursividade entre genótipo e meio.
Neste sentido, devemos considerar enquanto fator determinante do desenvolvimento
ontogênico esta singularidade fenotípica e, conseqüentemente, a natureza dos
acoplamentos estruturais;
d) Logo, o processo elaborativo não deve ser compreendido teleonomicamente e
tampouco devemos considerar que a história de acoplamentos estruturais podem ser
otimizantes para as necessidades do sistema. Como diria Varela, Thompson e Rosch
(2003), “elas são simplesmente viáveis” (p. 209);
e) Logo, se compreendemos o intricado processo elaborativo afetivo-cognitivo
enquanto orientado por sua história ontogênica, qualquer ação que não “viole” a
integridade do organismo é passível de ser “mais ou menos” elaborada. Se ações
elaborativas, a princípio sensório-motoras, são dirigidas por estruturas afetivo-
cognitivas que funcionam a partir de uma clausura operacional, a história elaborativa
do sistema terá a dimensão da capacidade recursiva entre estrutura e meio. Um
sistema “naturalmente” aberto, como o organismo humano, tende a incorporar o que
lhe falta (de que ordem for) e se fechar para o que não necessita. Assim, nos dizeres
de Varela, Thompson e Rosch, (2003), “qualquer ação feita pelo sistema é permitida,
desde que não viole a integridade do sistema (...) assim como coloca os problemas
quanto especifica os caminhos que devem ser trilhados ou abertos para uma solução”
(p. 209);
f) Nesta linha, podemos começar a compreender como as peculiaridades estruturais
dos indivíduos e do ambiente restringem as ações “evolutivas-elaborativas” dos
sistemas humanos, assim como estas restrições são passíveis de serem “digeridas” ou
não pelos sistemas de acordo com suas singularidades estruturais;
g) Por fim, seria na incapacidade dos sistemas se auto-organizarem satisfatoriamente
(encouraçamento) que se abriria espaço para o trabalho psicoterápico;
h) Por sua vez, a idéia de elaboração na clínica seria, em último sentido, propiciar a
recuperação do “fluxo” da consciência;
i) Nestes termos, um sentido de identidade em movimento seria, de certa forma, a
antítese de um self rígido e imóvel, perdido numa história de acoplamentos

278
agressores, os quais o levaram ao adoecimento e a um parcial “fechamento” de suas
capacidades afetivas e cognitivas;
j) Os procedimentos técnicos empregados no processo psicoterápico de perfil pós-
moderno, segundo nossas pretensões, consistiria em promover ressonâncias
neurodinâmicas subcorticais (XAVIER, 2004) decorrentes do trabalho com os
AcMes, visando maior integração entre os sistemas implícitos e declaratórios da
memória ao “provocar oscilações nos fundamentos mais arcaicos da rede difusa que
engendra a consciência e o sentido de si” (Id., ibid., p. 358). Também ao se exercitar
psicodramaticamente nossa organização sensório-motora e simbólica enquanto um
“realismo experiencial” (JOHNSON, 1987), nos aproximamos de uma “radicalidade
vivencial” da própria experiência lingüística;
k) Por fim, o ato de resgatar/reconstruir/elaborar afetiva e cognitivamente se
sustentaria pela capacidade de nossos organismos voltarem a gozar de uma condição
“duradoura” de auto-organização, de atualização do ser, que nos dê uma suave
sensação de sermos “novidade” a cada encontro, a cada momento.

Chegando ao “fim” de nossa jornada, também nos damos conta da precariedade do


termo “elaboração” ao ser usado isoladamente enquanto via explicativa de um processo tão
complexo. Para se elaborar uma determinada ação ou situação de nossa história de vida
devemos, em muitos contextos, “resgatar” memórias traumáticas para que possam ser
“reconstruídas” e “elaboradas”. Em algumas situações psicoterápicas, as vivências parecem
estar sendo “construídas” literalmente em um “solo virgem”, como se não tivesse nem
mesmo alicerces precários a serem “reconstruídos”. Aliás, como apresentamos em
segmentos anteriores, o próprio processo de desenvolvimento afetivo-cognitivo em moldes
construtivistas segue, psicogeneticamente, uma entremeada rede de assimilações,
acomodações e generalizações dos esquemas de ação que, em outros termos, explicitam um
funcionamento constitutivamente dinâmico na aquizição da afetividade e da inteligência.
Logo, ao usarmos termos como, “construção”, “elaboração”, “resgate”, “reconstrução”,
estamos atados a um círculo virtuoso de ações aparentemente distintas mas, ao que tudo
indica, que não podem ser compreendidas isoladamente. Em outros termos, voltamos
novamente a considerar um parâmetro básico da epistemologia construtivista, ou seja, todo

279
o processo de “evolução” afetivo-cognitiva é constitutivamente recursivo e, portanto,
devedor de ações anteriores.

Palavras finais

Não há duvida de que os pressupostos epistemológicos e metodológicos sustentados


pelo caudaloso paradigma da pós-modernidade contribuem, no mínimo, com uma “lufada
de ar fresco” no embolorado ambiente científico contemporâneo. Promovendo diferentes
graus de inter-articulações, aqui, especificamente, no campo da saúde mental, novos
modelos teóricos, formas de análise e categorias epistemológicas estabeleceram novos
parâmetros de aproximação compreensiva. Foi nesse sentido que nos rebelamos contra o
modelo analítico-cartesiano de decomposição e fragmentação do objeto de estudo.
Enquanto fruto maduro da análise e decomposição do objeto de estudo, promulgado
pelo método cartesiano, foi estabelecida a noção de “especialidade” e, conseqüentemente, a
noção de “disciplinaridade”. Ainda comungamos, contemporaneamente, com este
assombroso leque de especialidades ao ingressarmos em uma instituição universitária171,
sendo que, internamente, haveria outras sub-especializações e sub-disciplinas que
ampliariam freneticamente o afunilamento do conhecimento. A manutenção destas
fronteiras não é um fenômeno tão simples de se compreender quanto se pode imaginar. As
fronteiras disciplinares, como bem argumentou Bibeau (1996), são defendidas por motivos
pessoais, políticos e econômicos, o que impossibilita, precisamente, maiores esforços inter
e transdisciplinares. Curiosamente, todo esse frenesi “especializante” e analítico, adotado
em grande medida pela ciência moderna, acabou por levá-la, paradoxalmente, à sua parcial
derrocada. O cientista ao adotar tal metodologia, decompondo indefinidamente seus objetos
para exaurir suas possibilidades de compreensão analítica, acabou por deparar-se com a
intrínseca complexidade que percorre a apreensão dos mesmos objetos. Nesse sentido, fez-

171
- Uma instituição como a USP consta com o assombroso número de 213 graduações.

280
se imperativo o alargamento e a superação do reducionismo das práticas hiper-especialistas
em prol da complexidade.
A idéia de complexidade, de um “paradigma da complexidade”, poderia ser
considerada como um “eixo central”, um “guarda-chuva”, onde se acomodariam outros
movimentos ou modelos que adotam, em maior ou menor proporção:

a) uma dinamicidade para compreensão dos sistemas, já que os mesmos são abertos,
retroalimentados e, por isso, em constante transformação;
b) modelos teóricos baseados em funções caóticas, emergentes e não-lineares;
e) a noção de “borramento” dos limites inter e intra-sistêmicos e da delimitação entre
observador e observado.

Estes seriam apenas alguns pressupostos da complexidade. Todavia, neste contexto, a


análise fragmetária do objeto, em seu sentido clássico, seria considerada uma “operação
simples”, já que reduz as relações do mesmo, reduzindo drasticamente sua “sistemicidade”.
Ao propormos uma aproximação do fenômeno de elaboração, tanto em seu transcurso
desenvolvimentista e social quanto em seu contexto “artificial” e psicoterápico,
apresentamos ao leitor um arranjo teórico transdisciplinar. Neste sentido, buscamos
estabelecer um diálogo mais estreito com os “matizes” construtivistas afins, em busca de
suporte epistemológico e metodológico necessário para uma aproximação complexa do
processo elaborativo. Como ponto inteiramente positivo deste esforço, concluímos que uma
aproximação do fenômeno elaborativo que não queira ser considerada enquanto mero
exercício analítico deve rumar em busca de articulações disciplinares que ofereçam os
elementos necessários para uma construção de molde transdisciplinar. Também não houve
dúvidas de que essas articulações contam com uma generosa possibilidade de diferentes
arranjos, pois podem ser apreendidas em múltiplos estados de existência, dado que operam
em distintos níveis de realidade. Como sugere Almeida Filho (2005), “o objeto complexo é
multifacetado, alvo de diversas miradas, fonte de múltiplos discursos, extravasando os
recortes disciplinares da ciência” (p. 38). Logo, nosso arranjo foi condizente com o nosso
“operar”, com nossa história de escolhas teóricas e vivenciais, as quais culminaram neste
estudo de doutoramento.

281
Mas houve pontos negativos, e acreditamos termos optado pelo pior deles. Uma
empreitada transdisciplinar não deve ser um esforço solitário, um esforço onde a “primeira
pessoa do plural”, exercitada em toda a extensão desta tese, não tivesse como justificativa
apenas o fato colocar a minha “voz” em diálogo com obras impressas. Em outras palavras,
um esforço transdisciplinar não deve ser, exclusivamente, um árido exercício teórico, onde,
com a ajuda dos orientadores, colocamos os autores a dialogarem e fornecerem a “tessitura”
de nossas suposições. A primeira pessoa do plural deveria ser exercitada quando há, de
fato, outras vozes que se aproximam da nossa. Um projeto transdisciplinar deve ser uma
empreitada viva, onde diversos profissionais, das mais diversas áreas do conhecimento,
olhem para o objeto em questão e construam, juntos, um novo olhar, uma nova
compreensão. Como Almeida Filho acrescenta (2005), “é preciso operações de síntese,
produzindo modelos holísticos de determinação complexa, e para designá-lo
apropriadamente é necessário o recurso à polissemia resultante do cruzamento de distintos
recursos disciplinares”. O trabalho solitário apresenta outros entraves e que se referem,
exatamente, à nossa incapacidade de saber tudo sobre tudo, exigindo um esforço hercúleo
de articulação entre vários níveis e campos teóricos, mas sempre com uma finalidade
comum. Afinal, como um psicólogo pode se aventurar tão bem no campo da neurobiologia
como um médico? Como um médico pode se aventurar tão bem na prática psicoterápica
sem ter uma formação nesta área? Deve haver, portanto, um “compartilhamento
simbólico”, e só há tal compartilhamento quando estabelecemos um campo lingüístico de
troca, rumo à construção de uma “nova linguagem”, de uma “nova observação”.
Como apresentamos, o elevado número de campos especializados ainda podem ser
fragmentados em diversas sub-especilizações, levando a um quadro bizarro de hiper-
especializações. Em termos mais próximos de nós, há os cinco núcleos que constituem o
departamento de Psicologia Clínica da PUC-SP. Quanto a esta questão, Almeida Filho
(2005) nos auxilia argumentando que os campos disciplinares não constituem estruturas,
mas que seriam instituídos por uma práxis. Em outros termos, não seriam campos
disciplinares, ou intra-disciplinares, que interagem (ou não) entre si, mas estes seriam, de
fato, produtos de uma práxis acadêmica. Nestes termos, a produção do conhecimento psi
“se realiza em uma complexa rede institucional operada por agentes históricos concretos,
ligada estreitamente ao contexto sócio-político mais amplo” (p. 41). Caso aceitemos este

282
posicionamento, perguntamos: se não há entidades inteiramente abstratas (correntes,
modelos, conceitos etc), de que forma os “sujeitos da ciência” que compõem o quadro
institucional do saber psi da PUC-SP vêm (ou não) promovendo atualmente algum tipo de
esforço rumo a soluções integradoras do conhecimento? Será que aquele “ideal dialogal”
habermasiano, do consenso, pode ser aplicado tão rapidamente às relações, no mínimo,
interdisciplinares (inter-núcleos)172? Existe atualmente algum esforço “metateórico”
articulado destes cinco núcleos para a compreensão de temas comuns? Será que o conceito
de “elaboração” não poderia ser recriado incessantemente (DELEUZE & GUATTARI,
1998), como um objeto híbrido, mestiço, errante, complexo, que exige o diálogo disciplinar
para sua construção? Ao que parece, a solidariedade científica ainda é largamente sepultada
pelas disputas de poder, pela arbitrariedade e pela hegemonia paradigmática. Por fim, deixo
o leitor tecer suas próprias considerações.

172
- O núcleo de psicossomática da PUC-SP possui uma peculiaridade curiosa (sectária?). Só é permitida aos
alunos do próprio núcleo ou do núcleo junguiano freqüentarem as disciplinas oferecidas.

283
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