Você está na página 1de 107

1

PUC-SP
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA
SOCIAL

Emilene Duarte Rocha Cardoso

A construção do caso clínico, os impasses no laço do sujeito


psicótico e a direção psicanalítica de tratamento em um
dispositivo de saúde mental do SUS

São Paulo
2022
2

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO


PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA
SOCIAL

Emilene Duarte Rocha Cardoso

A construção do caso clínico, os impasses no laço do sujeito


psicótico e a direção psicanalítica de tratamento em um
dispositivo de saúde mental do SUS

Dissertação apresentada ao Programa de


Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo como exigência parcial para a obtenção
do título de MESTRE em Psicologia Social, sob
orientação do Prof. Dr. Raul Albino Pacheco
Filho.

São Paulo
2022
3

Autorizo a reprodução total ou parcial desta Dissertação de Mestrado, por processos de


fotocopiadoras ou eletrônicos, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, e desde que
citada a fonte.

Assinatura: ________________________________________

Data: ___/___/_____

E-mail: ___________________________________________
4

Emilene Duarte Rocha Cardoso

A construção do caso clínico, os impasses no laço do sujeito psicótico e a direção


psicanalítica de tratamento em um dispositivo de saúde mental do SUS

Dissertação apresentada à Banca Examinadora


da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo como exigência parcial para a obtenção
do título de MESTRE em Psicologia Social, sob
orientação do Prof. Dr. Raul Albino Pacheco
Filho.

Aprovada em: ___/___/2022.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________
Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho (Orientador)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Teresa Cristina Endo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

____________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Monteiro Guedes de Almeida
Universidade Federal do Tocantins (UFT-TO)
5

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho aos meus filhos,


Mariana e Vitor, um laço de amor.
6

AGRADECIMENTO

O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento


Científico e Tecnológico (CNPq), ao qual agradecemos a concessão da Bolsa Integral
Produtividade, modalidade GM. Número do processo: 130343/2020-0.

This work was conducted with the support of the National Council of Scientific and
Technological Development (CNPq), to which we thank the granting of an Integral Productivity
Scholarship, GM modality. Process number: 130343/2020-0.
7

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho, que apostou na minha proposta
de trabalho e no meu desejo de pesquisar. Com generosidade e disponibilidade, trouxe
apontamentos precisos, com o rigor técnico necessário para o desenvolvimento de um trabalho
acadêmico.

À minha banca de qualificação, pelo interesse e disponibilidade em aceitar compô-la,


pelo cuidado na leitura da minha escrita e contribuições preciosas para o desenvolvimento da
minha pesquisa.

À Prof.ª Dra.ª Teresa Cristina Endo, pelo cuidado atencioso e generosidade em suas
contribuições e apontamentos.

Ao Prof. Dr. Ricardo Monteiro Guedes de Almeida, pela leitura atenta e precisa para
propor importantes articulações no desenvolvimento deste trabalho.

Ao meu pai e à minha mãe por incentivar sempre e contribuir para a continuidade dos
meus estudos. Especialmente, à minha mãe, que em muitos momentos me apoiou e se fez
presente nas minhas escolhas e direções de vida.

Ao meu irmão, Dailton, pelo apoio incondicional e torcida constantes na minha


trajetória e por me acolher em seu espaço de trabalho, cuidando para que não me faltasse nada
do eu que eu precisasse. À Denise, pela torcida e à Rafinha, pelos momentos em que sua
presença veio encher a casa de alegria.

Aos colegas do Núcleo de Psicanálise e Sociedade da PUC-SP: Ana Carolina, Débora,


Aline, Daniel, Marina, Michele, Natália, Renan, Gustavo, Gabriel, Karla, Luísa, Lucas,
Vinícius, Tomás, Paulo. Muito obrigada por todas as leituras do meu trabalho, pelos momentos
de aprendizagem e pelas transmissões psicanalíticas.

À Rede de Pesquisa em Psicanálise e Saúde do Forúm do Campo Lacaniano SP, pela


participação nos encontros e transmissão em psicanálise, que me fizeram ir na direção do meu
desejo de saber.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC-SP,


muito obrigada pelas preciosas contribuições e aprendizagens.
8

À Marlene, presença fundamental, por sua disponibilidade, atenção e prontidão em


atender nossas solicitações.

À equipe Entrelaços: Edilson, Victoria, João, Thomas e Sandra, pelas leituras,


conversas, risadas, desabafos e a importante parceria de trabalho.

Ao querido Maurício Hermann, pela escuta atenta, paciente, presença afetuosa e ímpar,
que conferiu com nuances distintas para a construção da minha clínica e de um projeto de vida.

Aos amigos Celinha e Juarez, que, mesmo à distância, me acompanharam nessa


caminhada, fazendo-se presentes nas telas on-line, muito obrigada pelas conversas, conselhos
e risadas. À tia Conça, pela oferta da sua presença e prontidão em ajudar sempre.

Aos amigos e colegas que fiz nas equipes do CAPS Adulto e CAPS Infanfil, com quem
tanto aprendi a desenvolver um trabalho de tão alta complexidade. Compartilhando as dores e
alegrias, com boas doses de comprometimento, bom-humor, dedicação, oferta de cuidado e
senso crítico necessários na saúde mental.

Aos meus pacientes, por depositarem a confiança em compartilhar suas histórias


singulares, ressoando no meu exercício da clínica.

À Marcele Flores pela fundamental ajuda, organização, olhar criterioso e dedicação


dirigidos à minha escrita.

Aos meus filhos, Mariana e Vitor, pela doce presença e por tornarem os momentos mais
leves, sempre com alegria e brincadeiras.

Ao Tadeu, pelo apoio, paciência, torcida, amor e carinho dedicados a mim. E por
exercer a paternidade com tanto amor e cuidado.
9

RESUMO

CARDOSO, E. D. R. A construção do caso clínico, os impasses no laço do sujeito psicótico


e a direção psicanalítica de tratamento em um dispositivo de saúde mental do SUS. 2022.
107f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Programa de Estudos Pós-Graduados em
Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022.

Esta pesquisa busca compreender quais são os elementos essenciais para a construção do caso
clínico do sujeito psicótico, tendo em vista a escuta de seu desejo inconsciente e a
engendramento do laço social no contexto institucional da atenção psicossocial. Para tal,
partiremos da escuta de adolescentes com estrutura psíquica psicótica em um dispositivo clínico
do Sistema Único de Saúde (SUS) — os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
equipamentos de saúde mental substitutivos —, uma proposta de desinstitucionalização, assim
como de desconstrução e crítica epistemológica ao saber médico e hospitalocêntrico
constituinte da prática psiquiátrica. Essa ideia representa uma das facetas da concepção e da
produção de cuidado, capazes de ofertar diferentes possibilidades transferenciais para os
impasses de subjetivação no laço. O Projeto Terapêutico Singular (PTS) apresenta-se como
uma estratégia de cuidado, ou seja, um conjunto de propostas de cunho terapêutico que são
discutidas e concebidas por uma equipe multiprofissional. Ressaltamos que tais questões foram
se delineando a partir das narrativas observadas na clínica com sujeitos psicóticos, quando se
formaram algumas indagações acerca dos impasses na construção do caso clínico, refletindo-
se no laço. Entre tais indagações estão as implicações da escuta clínica do sujeito na psicose e
a posição do analista na direção de tratamento psicanalítico. Ou seja, o que está implícito dentro
desse contexto institucional para a realização da escuta do desejo do sujeito, partindo do
pressuposto da construção do caso clínico. Para tanto, alcançar uma conexão entre uma clínica
que se sustente através dessa escuta e a clínica do SUS é um ponto importante, que pode
viabilizar a manutenção de um operador clínico psicanalítico possível na atenção psicossocial.

Palavras-chave: CAPS. Psicanálise. Construção do caso clínico. Psicose. Laço social.


10

ABSTRACT

CARDOSO, E. D. R. The clinical case study building, the stalemate in the bond of the
psychotic subject, and the psychoanalytic direction of treatment in a unified health system
mental health resource. 2022. Dissertation (Master’s Degree in Social Psychology) –
Postgraduate Study Program in Social Psychology. Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2022.

This research aims to understand which are the essential elements to the bu the
psychoanalyticilding of a clinical case study of the psychotic subject, taking into account its
unconscious desire and social bond begetting in the institutional context of psychosocial
attention. To achieve this, we start by listening to teenagers with psychotic psychic structure in
a clinical resource from the Unified Health System (SUS), — the Community Mental Health
Centers (CAPS), equipment of mental health substitutes —, a deinstitutionalization proposal as
well as epistemological deconstruction and critique regarding the medical and hospital-centered
knowledge that is part of the psychiatric practice. This idea represents one of the facets of the
production and conception of care capable of offering different transferential possibilities to the
stalemates of bond subjectification. The Singular Therapeutic Project (PTS) presents itself as a
care strategy, namely a set of therapeutic proposals that a multi-professional team debates over
and conceives. We highlight that such questions were outlined from narratives observed in the
clinic with psychotic subjects. These moments gave birth to some questions regarding the
stalemates in clinical case study building and reflecting itself in the bond. Between these
questions lie the clinical hearing implications of the subject in psychosis and where the analyst
stands regarding psychoanalytic treatment. In other words, what is implicit in this institutional
context to the listening to the subject's desire from the assumption of the clinical case study
building. To do it so, an important point is the achieving of a connection between a clinic that
supports itself through this listening and the SUS clinic. This can enable the keeping of a
possible psychoanalytic clinic operator in psychosocial care.

Keywords: CAPS. Psychoanalysis. Clinical case study building. Psychosis. Social bond.
11

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 — Esquema L .......................................................................................................... 59

Figura 2 — Esquema R .......................................................................................................... 60

Figura 3 — Esquema I ........................................................................................................... 61

Figura 4 — O sujeito na cadeia significante ......................................................................... 69

Figura 5 — Estrutura de um discurso .................................................................................. 69

Figura 6 — Matemas dos discursos ....................................................................................... 71

Figura 7 — Discurso do analista ........................................................................................... 76


12

LISTA DE SIGLAS

ABA Análise do Comportamento Aplicada (Applied Behavioral Analysis)

CAPS Centro de Atenção Psicossocial

CAPS AD Centro de Atenção Psicossocial Adulto

CAPS IJ Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil

CID Classificação Internacional de Doenças

CT Comunidade Terapêutica

DSM Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais

ECA Estatuto da Criança e do Adolescente

MS Ministério da Saúde

NASF Núcleo Ampliado de Saúde da Família

PNH Política Nacional de Humanização

PTS Projeto Terapêutico Singular

RAPS Rede de Atenção Psicossocial

RP Reforma Psiquiátrica

RPB Reforma Psiquiátrica Brasileira

SMRJ Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro

SUS Sistema Único de Saúde

UBS Unidade Básica de Saúde


13

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 15

1 UM BREVE RESGATE HISTÓRICO DA


DESINSTITUCIONALIZAÇÃO MANICOMIAL E SUAS
INFLUÊNCIAS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ................... 31

1.1 Um pouco de história ..................................................................................................... 31

1.2 Reformas e propostas antimanicomiais na reconsideração de um lugar social


para o sujeito em sofrimento psíquico ......................................................................... 35

1.3 Redemocratização brasileira:


Reformas sanitária e psiquiátrica — institucionalização do SUS ............................. 39

2 VERTENTE BRASILEIRA NO CONTEXTO DA SAÚDE MENTAL


E A POLÍTICA NACIONAL DE HUMANIZAÇÃO ...................................................... 42

2.1 Os Centros de Atenção Psicossocial ............................................................................. 42

2.2 Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil ........................................................... 44

2.3 Proposta do Projeto Terapêutico Singular .................................................................. 45

2.4 Por quais ventos nos chegam as implicações atuais na saúde mental? ..................... 47

3 A CLÍNICA PSICANALÍTICA COM O SUJEITO PSICÓTICO .......................................... 49

3.1 O complexo de Édipo e a foraclusão da castração na psicose .................................... 49

3.2 A estruturação psíquica do sujeito na psicose ............................................................. 52

3.3 O caso Schreber e a construção do seu delírio: A retomada do laço social .............. 56

3.4 Dimensão do Desejo na psicose ..................................................................................... 63

4 A DIREÇÃO PSICANALÍTICA DE TRATAMENTO NA PSICOSE


PELA VIA DOS DISCURSOS ........................................................................................... 65

4.1 A via discursiva .............................................................................................................. 66

4.1.1 Elementos estruturantes dos matemas discursivos .................................................... 68

4.1.2 Implicações no contexto institucional da atenção psicossocial ................................. 72

4.1.3 A clínica enquanto discurso: A construção do caso .................................................. 74


14

5 VINHETAS CLÍNICAS ..................................................................................................... 77

5.1 O desejo do analista como operador lógico clínico ..................................................... 81

5.2 Endereçamento institucional: PTS para quem? ......................................................... 81

5.3 O caso Matheus .............................................................................................................. 83

5.3.1 Primeiro momento ..................................................................................................... 83

5.3.2 Segundo momento ...................................................................................................... 84

5.3.3 Terceiro momento ...................................................................................................... 85

5.4 O caso Joaquim .............................................................................................................. 86

5.4.1 Primeiro momento ..................................................................................................... 86

5.4.2 Segundo momento — “Dia de Oficina” ..................................................................... 87

5.4.3 Terceiro momento ...................................................................................................... 88

5.5 O caso Cecília ................................................................................................................. 89

5.5.1 Primeiro momento ..................................................................................................... 89

5.5.2 Segundo momento ...................................................................................................... 89

5.5.3 Terceiro momento ...................................................................................................... 90

5.6 Proposições em articulações clínicas de intervenção psicanalítica ............................ 91

5.7 Bem-dizer o sintoma na psicanálise .............................................................................. 97

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 99

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 102


15

INTRODUÇÃO

Ao apresentar este projeto de pesquisa consideramos importante, antes de tudo, falar a


respeito do percurso feito pela pesquisadora para se autorizar e sustentar sua função desejante
de saber. Em sua inserção em saúde mental, deparou-se com novas e relevantes questões, e o
desejo de rever e estudar a inserção institucional, tendo a psicanálise como direção, trouxe o
interesse em realizar esta pesquisa de Mestrado. A participação no Núcleo de Pesquisa
Psicanálise e Sociedade, do Curso de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC-SP,
ofereceu elementos essenciais para a abordagem da questão e para que a mestranda assumisse
sua posição diante do seu desejo.

O contato com a área de saúde mental deu-se através de uma equipe multidisciplinar em
um Centro de Atenção Psicossocial — CAPS Adulto, em São Paulo. O cotidiano de trabalho,
juntamente com o fazer clínico e as trocas constantes com a equipe multidisciplinar, assim
como com a equipe intersetorial, trouxe marcas, questionamentos e inquietações que justificam
o desenvolvimento desta pesquisa.

Trabalhando durante alguns anos no CAPS Adulto, para então ser transferida para uma
equipe multidisciplinar do CAPS Infantojuvenil situado igualmente na Grande São Paulo, foi
possível ter uma aproximação maior com adolescentes e crianças. Além da aceitação desse
novo desafio, essa experiência reativou inquietações que também estavam presentes no fazer
clínico no CAPS Adulto. Nessa trajetória, o trabalho institucional na área de saúde mental fez-
se presente também na articulação com a rede intersetorial, onde o diálogo tornou-se
constante. Principalmente em sua atuação no CAPS Infantojuvenil, em que eram comuns as
trocas entre os setores da Assistência Social, Conselho Tutelar, Educação, Judiciário etc. Poder-
se-ia pensar ser esta a ideia de transdisciplinaridade que se configura na sustentação das
diferenças na direção de trabalho do fazer clínico.

No cotidiano de trabalho, verificou-se que a direção de tratamento partia do pressuposto


do discurso médico/hospitalocêntrico-organicista, o que implicaria na exclusão da
subjetividade. Bursztyn e Figueiredo (2012) afirmam que: “os sintomas, que são
significativos para identificar um diagnóstico, ficam retidos na objetividade descrita dos
manuais, desconsiderando a maneira singular de interrogar o sofrimento psíquico revelado
através dos sintomas” (BURSZTYN; FIGUEIREDO, 2012, p.133).

Assim, assentar a direção de tratamento somente no plano organicista, de direitos e/ou


16

assistencialista, revela a não abertura de espaço para o acontecimento e a não escuta do sujeito
do inconsciente, não havendo, portanto, como trabalhar com esse imperativo.

Contudo, diante de uma nosografia médica em constante mudança e fundamentada na


universalização dos termos relacionados aos transtornos, através dos métodos
estatísticos, tal como encontramos no Manual de Diagnóstico e Estatística da
Associação Norte-Americana de Psiquiatria (DSM) e na Classificação Internacional
de Doenças (CID), a noção de um sujeito que apresenta, como tentativa de solução do
próprio adoecimento um sintoma singular que escapa da dialética do geral-particular,
certamente não interessa a esses manuais diagnósticos que têm como objetivo trazer
um consenso quantitativo. O que vem a reforçar a necessidade de uma clínica, tanto
da psicanálise quanto da psiquiatria que esteja pronta a identificar e acolher esses
sintomas, ou seja, uma prática em que cada caso seja efetivamente tomado como um
caso único. (ALMEIDA, 2015, p.28).

Como afirma Elia (2013):

A atenção psicossocial não pode ser entendida, como sua própria composição nominal
indica, uma modalidade de atenção em saúde, no caso, saúde mental. No entanto, se
o primeiro termo do binômio insere esta categoria no campo da saúde — ela é uma
modalidade de atenção em saúde, o segundo termo — psicossocial — está destinado,
senão a retirá-la deste campo, pelo menos a fazê-la transbordá-la, extravasá-la, tanto
quanto a própria loucura o extravasa. E aqui uma primeira verificação importante:
sem transbordar o campo da saúde, qualquer tipo de invenção/intervenção com a
loucura estará destinado ao fracasso. [...] o CAPS trata tanto melhor quanto menos ele
for concebido como um lugar especializado em tratar. Ele tratará sempre melhor,
clinicamente, de seus usuários, quanto mais fiel ele for aos princípios que os fundam
e fundamentam: um pólo de direitos e de encarnação de uma política de sustentação
da loucura no laço social e avessa e combativa a toda prática de exclusão, segregação
e internação não acompanhada. (ELIA, 2013, p.03;07).

O dispositivo de tratamento CAPS se propõe a ser um espaço de asserções que


subsidiem ao sujeito uma pluralidade de caminhos e interconexões e, por que não dizer,
amarrações que propiciem o encontro com a sua singularidade. Recordando uma das oficinas
realizadas no CAPS Adulto, houve a oportunidade de elaborar um grupo de atividades com
pacientes psicóticos, em que se desenvolvia a escrita. Acreditamos que pode ter surgido um
meio de articulação entre o delírio e a escrita, pois onde havia silenciamento construiu-se uma
ação, uma impressão, um apaziguamento do real. O que se pretende é ir além da reabilitação
e dar ênfase à experiência subjetiva do sujeito para a produção de novos contornos e
reposicionamentos.

A medicina organizou-se em departamentos e práticas ultraespecializadas e a saúde


mental vem seguindo o mesmo caminho, ao traçar uma linha divisória entre os campos
de atuação por doenças ou transtornos mentais, subdivididos ainda em modalidades
de atenção, ou seja, em casos graves, moderados e leves. Criaram-se assim: aos
psicóticos e neuróticos graves, o CAPS Adulto; aos autistas, o CAPS Infantil; e aos
17

dependentes de drogas, o CAPS Álcool e Drogas. O risco seria, a partir destes apontar
uma clínica específica para cada tipo de equipamento. (ENDO, 2017, p.126, grifo do
autor).

A essa questão, Quinet (2003) ressalta que o saber através do olhar clínico, da
composição do quadro clínico em sua minuciosa descrição faz visível o enunciado da doença,
aproximando assim o ver e o saber, o visível e o enunciável, tendo como resultado a produção
do patológico.

Na cena atual, é essencial pensar a saúde pública e sua faceta política de mal-estar,
alienação e higienismo, que a mantém num estado de degradação moral e institucional. Fazer
frente a posições radicais de poder dos autonomeados “guardiões da ordem e limpeza” — e que
configuram o que podemos constatar ser da ordem do retrocesso — é uma transgressão
benéfica e necessária. Freud já nos alertava a respeito do que chamou de “impossível” de
educar/governar/analisar, o que não quer dizer que não se eduque, governe e analise. Isso
porque a cena política não está ausente na clínica entre pacientes e analistas. Pacheco Filho
(2015) aponta “que a intenção de uma saúde universalizada, com equidade, integralidade e
participação social, choca-se, necessariamente, com os interesses dos que têm a saúde como
negócio-mercadoria” (PACHECO FILHO, 2015, p.84).

Em um primeiro momento, nomear uma direção de tratamento para o CAPS


Infantojuvenil, quando da minha inserção na equipe multiprofissional, não foi algo tão
simples, pois a direção de tratamento psicanalítica não era algo que se imprimia a essa clínica.
Ao chegar à unidade, foi percebido não existir tal orientação de trabalho com as crianças e
adolescentes.

Elia (2017) coloca o ponto de junção da intensão com a extensão no desejo do


psicanalista. E para isso o autor ressalta que:

Poderíamos supor que o desejo do psicanalista, por ser o ponto mais nobre, mas
avançado, do que se pode chegar em uma análise, diria respeito eminentemente ao
campo da intensão, da experiência analítica que se desenvolve entre psicanalisante e
psicanalista. Isso é verdade, mas justamente o que estamos propondo é que é esse
desejo, e não qualquer outro, que é exigível para que o psicanalista atue no campo da
psicanálise em extensão e incida no laço social para além dos limites estritos do laço
analítico com o sujeito em análise, presentificando a psicanálise no mundo, função
definida por Lacan como sendo a de sua Escola. (ELIA, 2017, p.01).

Nesse contexto, a instalação da escuta psicanalítica e a proposta de exercer a


psicanálise na instituição a partir do específico de sua posição, mostrou-se algo complexo
18

e, por vezes, polêmico, devido à outra direção de trabalho clínico ou por não haver
familiaridade com o campo da psicanálise.

Podemos pensar aqui sobre a própria reunião de equipe, realizada semanalmente, onde
havia muita resistência quanto a o manejo de alguns casos colocados em pauta. Não podemos
deixar de citar também que o trabalho com o Outro exige um trabalho interno pessoal
constante, nos fazendo assumir a condição paradoxal de sujeitos ao mesmo tempo
responsáveis e assujeitados. O ofício em saúde mental e/ou analítico reativa questões
psíquicas importantes que exigem de nós uma elaboração analítica pessoal.

Diante de tais fatos instalou-se uma questão acerca de quais discursos regeriam tais
relações. À direção psicanalítica de tratamento permanece o questionamento sobre como
efetivamente requerer o seu uso em espaços públicos de saúde. A escuta singular, que inclui
desde sempre o sujeito na direção de tratamento, é condição fundamental no acolhimento ao
paciente em sofrimento psíquico.

“Nessas configurações, a clínica do sujeito apresenta impasses importantes,


ocasionando um comprometimento no cerne mesmo da função clínica, ou seja, de sustentáculo
para o sujeito existir.” (OLIVEIRA; VERONESE; PALMA, 2009, p.1351).

Ou seja, o que está em questão é fazer a escuta do sujeito em seu desejo e não esquivar-
se às dificuldades por meio da desculpa fácil de que “ele não adere ao tratamento”!

Os princípios reguladores, numa instituição, são fundamentais. Entretanto, uma vez


que se refere ao campo de uma composição de sujeitos em sofrimento psíquico,
quando o funcionamento de reguladores se automatiza, se produzem impasses a uma
produção da singularidade, ou seja, em que o sujeito possa se construir um saber sobre
seu padecimento. Juntamente com “os pacientes”, “os funcionários”, ou seja, estes
plurais enunciados em terceira pessoa, também os enunciados “nós”, “a lei” são
ilustrativos desta face da impessoalidade numa razão instrumental. (OLIVEIRA;
VERONESE; PALMA (2009, p.1346).

Elia (2013) nos conta que:

O usuário começa por ir pouco, ou burocraticamente, ao CAPS. Quase sempre vai


porque precisa pegar remédio e o CAPS, este ambulatório psiquiátrico
multiprofissional, sustenta a prática de dispensação de remédios sem nenhuma
problematização da situação, sob alegação da equipe de que “já trabalha demais”.
Quando ele começa a perceber que vai entrar em crise, o usuário se afasta de um CAPS
que já está afastado dele há muito tempo, e em crise, dirige-se ao hospital psiquiátrico
e se interna. O hospital, quando algum enlace territorial já tiver existido no passado, ou
porque sua equipe (do hospital) tem, por acaso, algum grau de engajamento territorial,
telefona para o CAPS e informa que tem um paciente “seu”, do CAPS, internado. A
equipe registra o fato, comentando: “é mesmo, o fulano não vinha mesmo aparecendo
19

por aqui”, e espera o fim da crise e da internação para novamente receber o usuário
para voltar a pegar remédio no CAPS. (ELIA, 2013, p.08).

Figueiredo (2010) destaca que, para além deste embate constante e cotidiano, podemos
recorrer a três indicações da psicanálise para o trabalho em equipe: 1) a posição subjetiva dos
profissionais como “aprendizes da clínica”, algo que supõe um posicionamento, a priori, vazio
de saber; 2) uma organização coletiva da equipe que remeta ao trabalho com responsabilização
partilhada, fazendo circular o saber que advém do sujeito e não do profissional; e, como
corolário do processo, 3) proceder à construção do caso clínico, algo que se dá a partir dos
elementos fornecidos pelo sujeito e da convergência de saberes da equipe interdisciplinar,
porém, sem eclipsar o saber do sujeito.

Nesse sentido, Viganó (2010) ressalta que, no que diz respeito à construção do caso, que
esta não se dá pela fala direta, mas sim através da escuta de suas particularidades e das
coincidências escondidas em sua história, em que se revelam enigmas de seus atos falhos,
recaídas, ausências. Não podemos deixar de pontuar a importância da responsabilização e da
implicação do próprio paciente em seu tratamento.

No que se refere à especificidade do dispositivo de tratamento a que aludimos neste


estudo, um ponto importante a ser destacado diz respeito à característica deste CAPS
Infantojuvenil, com alta vulnerabilidade social e em uma área que concentra um grande número
de crianças e adolescentes em instituições de acolhimento. Esses dados são importantes, pois
recebe-se no CAPS uma alta demanda de pacientes que residem nessas instituições. Acolhe-se
os sujeitos com impasse no laço social advindos delas, além da rede intersetorial (Educação,
Assistência social, Unidade Básica de Saúde (UBS), Judiciário etc.), e, ainda, além da demanda
espontânea que chega diariamente.

Como operar com os efeitos de instituições que não se propõem a tratar? A questão da
institucionalização em acolhimento, por si só, já é um agravante, porque supõe uma ausência
de lugar e de vinculação com o outro. As crianças e adolescentes que são institucionalizadas,
assim o foram devido a uma situação de desenlace com a instituição familiar e de precariedade
social. Pensar nisso remonta à emblemática imagem da capa original do Seminário 4: A relação
de Objeto (1956-1957), de Lacan, com a obra Saturno devorando seu filho, do pintor Francisco
Goya.

Oliveira, Veronese e Palma (2009) ressaltam que, “quando ocorre a clínica do fechar
a porta, atender seus pacientes, e ir embora, ela é dissociada e puramente defensiva quanto
20

aos impasses institucionais.” (OLIVEIRA; VERONESE; PALMA, 2009, p.1346, grifo nosso).
E mais:

A partir deste entendimento, um trabalho clínico no cerne de uma instituição pública


está, em menor ou maior grau, atravessado por dispositivos institucionais, que podem
ser transformados em fundamentos burocráticos por excelência. Quando essa
configuração institucional se apresenta e, diante da possibilidade de se produzir
inibições e/ou angústias que inviabilizem um trabalho de escuta do sujeito em
sofrimento psíquico, faz-se necessário, entre outros dispositivos, uma reflexão acerca
da burocracia e seu efeito no trabalho clínico. (OLIVEIRA; VERONESE; PALMA,
2009, p.1346).

Partindo dessas experiências buscou-se formalizar uma questão que visasse contribuir
em três frentes de trabalho do analista, ou seja, na vertente clínica, na vertente institucional e
na questão política em saúde pública.

Pensando que a escuta do sujeito pelo analista pode ser promovida para além da clínica
convencional, estando em um movimento de ampliação, o tema-pesquisa refere-se à
interrogação sobre quais seriam as ressonâncias e vicissitudes da escuta psicanalítica do sujeito
psicótico em sua articulação com o âmbito institucional.

Ao levantamento dessas questões consideramos importante situar o contexto da


Reforma Psiquiátrica, momento em que houve um amplo processo de reformulação da
regulação das instituições de cuidado ao sujeito em sofrimento psíquico e com impasse no laço
social, além novas possibilidades de atuação e intervenções institucionais.

Sendo assim, desde meados da década de 1970 no Brasil — com os movimentos pela
Reforma Sanitária, seguidos pelo movimento da Luta Antimanicomial nos anos seguintes, até
a instauração da Lei 10.216 (Lei Paulo Delgado, que dispõe sobre a proteção e os direitos das
pessoas com transtornos mentais) — deu-se o redirecionamento do modelo assistencial, em que
todos os profissionais redefinem o seu modo de intervir.

É preciso reinventar a clínica como construção de possibilidades, como construção de


subjetividades, como possibilidade de ocupar-se de sujeitos com sofrimento, e de
efetivamente, responsabilizar-se para com o sofrimento humano — e na cidadania
enquanto princípio ético [...] Também a clínica, no contexto da reforma psiquiátrica,
é um processo. Algo permanente, que aprende e constrói, cotidianamente, novas
formas de lidar, de escuta, de reprodução social dos sujeitos. (AMARANTE, 2003,
p.60).
21

De acordo com Figueiredo (2010):

O profissional “psi” redireciona seu trabalho para a rede pública de saúde mental, para
o ambulatório que deve ser renovado com atendimentos coletivizados como a
recepção; para o trabalho com egressos de internação — incluindo o processo de
desinstitucionalização de pacientes de longa permanência nos hospitais psiquiátricos;
para a atenção a usuários com abuso de drogas; para os novos dispositivos de atenção
psicossocial, e, hoje cada vez mais, para o trabalho de construção da rede de atenção
psicossocial que se impõe. (FIGUEIREDO, 2010, p.02).

Nesse sentido, Pacheco Filho (2015) defende a ideia de que:

[...] em se tratando do contexto histórico particular da instalação e busca de


consolidação do SUS no Brasil, a questão da humanização em saúde tem de ser
desdobrada, aprofundada e matizada por nós, psicanalistas, mais do que apenas
convocar uma simples, imediata e radical oposição. Definitivamente, acho que uma
coisa é falar em humanização no sentido mais geral do termo ou, ainda, no de um
humanismo filosófico, psicológico, ou (o que seria isso?) psicanalítico. Outra, bem
distinta, é abordar o assunto no sentido específico da práxis psicanalítica no território
delimitado pelo campo da saúde pública no Brasil atual e no contexto do SUS. Aqui,
obrigatoriamente, a articulação com o âmbito institucional convoca sempre a
interlocução com outros campos de saber e com profissionais de áreas distintas
(médicos, assistentes, e auxiliares de enfermagem, dentistas, psicólogos,
fisioterapeutas, assistentes sociais, farmacêuticos, terapeutas ocupacionais, agentes
comunitários de saúde etc.). (PACHECO FILHO, 2015, p.84).

Diante desse cenário histórico pôde-se elencar três tempos da interlocução entre a
clínica psicanalítica e a Reforma Psiquiátrica. O primeiro tempo da clínica versava sobre o
exercício do ambulatório enquanto dispositivo de consulta, privilegiando a prática analítica.

Para tanto, Figueiredo (2010) acentua que esse momento, tratava-se de “tornar a clínica
partilhável, desprivatizando o consultório” (FIGUEIREDO, 2010, p.03).

No segundo tempo, verifica-se o destaque para o desenvolvimento de dispositivos de


convivência, em que se torna prioridade o compartilhamento e a construção do caso em equipe
com projetos de inclusão social, segundo a proposta dos CAPS. Importante salientar que o
Projeto Terapêutico Singular (PTS) deve estar referido ao desejo do sujeito, pois marca o que
é de todo singular a cada um.

E, ao falarmos em desejo, supõe-se que o sujeito na psicose pode estar muitas vezes
sendo confundido como alguém a quem não se identifica o desejo, e como alguém que
“demanda” alguma coisa. Lacan (1957-58/1999) nos lembra que o desejo está instalado numa
relação com a cadeia significante, que ele se instaura e se propõe inicialmente na evolução do
sujeito humano como demanda. “O que se produz da relação com o objeto mais primordial, o
22

objeto materno, efetua-se desde logo com base em signos, com base no que poderíamos chamar,
para dar uma imagem do que queremos dizer, de moeda do desejo do Outro.” (LACAN, 1957-
58/1999, p.262-3).

Voltando ao terceiro tempo de interlocução entre clínica e reforma psiquiátrica, soma-


se ao que é proposto o trabalho em equipe interdisciplinar e a abertura a dispositivos e setores
outros, para além da saúde, ou seja, a proposta de trabalho intersetorial com a educação, a
assistência social, a cultura, o jurídico.

Figueiredo (2010) situa essa nova configuração, destacando que:

A atenção psicossocial se expande para novas articulações e interseções, mas não deve
perder o fio condutor inicial e nem ser reduzida a estratégias educativas ou punitivas.
A clientela ou população-alvo é cada vez mais os jovens e adultos com
vulnerabilidade e risco social, além daqueles com graves transtornos psíquicos, como
os psicóticos e neuróticos graves com longo percurso psiquiátrico. [...] A contribuição
possível e importante a partir da orientação psicanalítica deve se dar na ampliação do
dispositivo da “construção do caso”, agora promovendo a “circulação do caso” como
meio permanente de sua construção. (FIGUEIREDO, 2010, p.05).

Em consonância com essas premissas, a proposta desta dissertação é aprofundar o ponto


do método da construção do caso clínico e a sua circulação em rede, como dispositivo central
que dá suporte aos demais para o trabalho em equipe na atenção psicossocial, através da
transmissão de um método clínico orientado pela psicanálise.

De antemão, para situar o método do caso clínico, trazemos uma definição em que
Viganò (1999), tomando a origem etimológica da palavra “caso” e da palavra “clínica”, nos
dimensiona o que seria o fazer clínico:

Caso vem do latim cadere, cair para baixo, ir para fora de uma regulação simbólica;
encontro direto com o real, com aquilo que não é dizível, portanto, impossível de ser
suportado. A palavra clínica vem do grego kline e quer dizer leito. A clínica é
ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente com a presença do
sujeito. É um ensino que não é teórico, mas que se dá a partir do particular; não é a
partir do universal do saber, mas do particular do sujeito. (VIGANÒ, 1999, p.40).

Nessa mesma orientação, Gianese (2015) nos fala de uma dupla operação: operação um,
construir-se; operação dois, formalizar.

Em suma a construção do caso clínico em psicanálise é o (re) arranjo dos elementos


do discurso do sujeito que “caem”, se depositam com base em nossa inclinação para
colhê-los, não ao pé do leito, mas ao pé da letra. [...] Incluímos aí também as ações do
23

sujeito, entendendo que são norteadas por uma determinada posição no discurso.
(FIGUEIREDO, 2004, p.79).

Dando seguimento à parte introdutória desta pesquisa, consideramos de grande


importância fazer uma breve conceituação a respeito da estruturação psíquica que passa pela
figura mítica do complexo de Édipo, dada a sua relevância para a constituição psíquica do
sujeito.

Lacan, em seu Seminário 5: Formações do insconciente (1957-58/1999), propõe pensar


o Édipo através do que ele chama de tempos lógicos, que não tem como característica uma
identidade de temporalidade cronológica e nem desenvolvimentista, mas sim, a disposição dos
seus elementos em cada tempo.

Faria (2014) assinala que o primeiro tempo possui a característica de ser um tempo de
“suspensão”, não apenas da articulação do falo como elemento simbólico que ordena o campo
da linguagem para a criança, mas igualmente da entrada do pai, que ainda não está para a
criança, mas que já está em potência de forma velada no Outro materno.

Assim, Lacan (1957-58/1999) ressalta que:

No primeiro tempo e na primeira etapa, portanto, trata-se disto: o sujeito se identifica


especularmente com aquilo que é objeto do desejo de sua mãe. Essa é a etapa fálica
primitiva, aquela em que a metáfora paterna age por si, uma vez que a primazia do
falo já está instaurada no mundo pela existência do símbolo do discurso e da lei [...]
Para agradar à mãe, se vocês me permitem andar depressa e empregar palavras
figuradas, é necessário e suficiente ser o falo. (LACAN, 1957-58/1999, p.198).

Nesse sentido, Quinet (2006) afirma que a criança é identificada ao objeto de desejo da
mãe: “Essa construção lógica é possível pela equivalência simbólica proposta por Freud,
bebê=falo, que permite colocar a criança em posição de identificação com o falo materno.”
(QUINET, 2006, p.09). Aqui, a criança estaria na posição de objeto de gozo da mãe.

Abordando a questão do falo, Lacan (1958/1998a) diz que:

Essa função imaginária do falo, Freud a desvelou como pivô do processo simbólico
que arremata, em ambos os sexos, o questionamento do sexo pelo complexo de
castração. [...] Essa é, com efeito, na economia subjetiva, tal como a vemos
comandada pelo inconsciente, uma significação que só é evocada pelo que chamamos
de metáfora, precisamente a metáfora paterna. (LACAN, 1958/1998a, p.561).

Dessa forma, o pai não se faz presença efetiva para a criança, mas se faz presente no
psiquismo da mãe, tal como é a representação que esta tem do seu próprio pai.
24

De acordo com Faria (2014), a questão do Édipo em Lacan pode ser pensada em como
a função paterna é transmitida à criança. Nesse sentido, o valor que o complexo de Édipo tem
é o da transmissão. A transmissão de um nome — o do pai — que se faz pelas vias do desejo
materno. No segundo tempo do Édipo, Lacan situa a saída da criança da posição de falo
materno, ao assumir a castração paterna, ou seja, uma alusão à função do pai. Assim, a
incidência da castração na criança depende de sua incidência enquanto falta no Outro materno.

Lacan (1957-58/1999) ainda coloca que:

Mas há de fato uma privação, uma vez que toda privação real exige a simbolização.
Assim, é no plano da privação da mãe que, num dado momento da evolução do Édipo,
coloca-se para o sujeito a questão de aceitar, de registrar, de simbolizar, ele mesmo,
de dar valor de significação a essa privação da qual a mãe revela-se o objeto. Essa
privação, o sujeito infantil a assume ou não, aceita ou recusa. Esse ponto é essencial.
Vocês o encontrarão em todas as encruzilhadas a cada vez que sua experiência os
levar a um certo ponto que agora tentamos definir como nodal no Édipo. (LACAN,
1957-58/1999, p.191)

O autor afirma que “a função do pai no complexo de Édipo é ser um significante que
substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno”
(LACAN, 1957-58/1999, p.180). E conclui dizendo:

É no lugar onde se manifesta a castração do Outro, onde é o desejo do Outro que é


marcado pela barra significante, aqui, é essencialmente por intermédio disso que,
tanto no homem quanto na mulher, introduz-se esse algo específico que funciona
como complexo de castração. (LACAN, 1957-58/1999, p.361).

Portanto, a aceitação dos efeitos da castração paterna por parte da criança, constitui o
registro simbólico, o ingresso no triângulo edípico propriamente dito.

Já no terceiro tempo, Lacan (1957-58/1999) define o Édipo como um ordenador da


sexualidade humana, como será visto no terceiro capítulo desta dissertação.

Ao posicionamento do sujeito em relação à castração é possível fazer distinção da


singularidade dos significantes marcados de forma estrutural. Estando, portanto, relacionado ao
fio condutor da organização psíquica em torno de três estruturas clínicas: neurose, psicose e
perversão. Assim, enquanto na neurose a castração sofre recalcamento, na perversão a castração
é desmentida e, na psicose, a castração é foracluída pelo sujeito. Para esta pesquisa faz-se objeto
de estudo, a partir das formulações clínicas de Lacan, a estrutura psíquica na psicose. Sendo,
logo, imprescindível a abordagem conceitual dessa estrutura.
25

Lacan retoma a concepção freudiana das psicoses, através do mecanismo da


Verwerfung, ou seja, a partir da foraclusão do significante do Nome-do-Pai, também chamada
de metáfora paterna. A ausência da inscrição psíquica do significante do Nome-do-Pai acarreta
ao sujeito a não interrupção, pela via do eixo imaginário, da relação entre o sujeito e o Outro,
necessário ao seu ingresso no registro simbólico. De acordo com Lacan, o que é foracluído no
simbólico retorna no Real. Mas o que significa a não inscrição da metáfora paterna?

No texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, Lacan


(1955-56/1998e) faz referência ao termo Verwerfung, que Freud conceituou como um
mecanismo de defesa que consiste na rejeição da representação de algo insuportável para o
sujeito:

A Verwerfung será tida por nós, portanto como foraclusão do significante. No ponto
em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode, pois responder no
Outro um furo e simples furo, o qual, pela carência do efeito metafórico, provocará
um furo correspondente no lugar da significação fálica. (LACAN, 1955-56/1998e,
p.564).

Ainda no mesmo texto, Lacan (1955-56/1998e) diz:

Ensinamos, seguindo Freud, que o Outro é o lugar da memória que ele descobriu pelo
nome de inconsciente, memória que ele considera como objeto de uma questão que
permanece em aberto, na medida em que condiciona a indestrutibilidade de certos
desejos. A essa questão respondemos com a concepção da cadeia significante, na
medida em que, uma vez inaugurada pela simbolização primordial (que o jogo Fort!
Da! evidenciado por Freud na origem do automatismo de repetição torna manifesta)
essa cadeia se desenvolve segundo ligações lógicas, cujas influência sobre o que há
por significar, ou seja, o ser do ente, se exerce pelos efeitos de significante descritos
por nós como metáfora e metonímia. É num acidente desse registro e do que ele se
realiza, a saber, na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro e no fracasso da
metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial,
com a estrutura que a separa da neurose. (LACAN, 1955-56/1998e, p.581-582).

Segundo Quinet (2006), falar “da psicose” ao invés de “as psicoses” é acentuar a psicose
como uma estrutura clínica, uma estrutura que se revela no dizer do sujeito e que corresponde
a um modo particular de articulação dos registros do real, do simbólico e do imaginário. O autor
também destaca que: “É acentuar que na psicose, assim como na neurose, trata-se da estrutura
da linguagem, ou melhor, da relação do sujeito com o significante.” (QUINET, 2006, p.04).

No Seminário 3, As psicoses, Lacan (1955-56/1998e) aborda a psicose fazendo sua


articulação com o fenômeno psicótico enquanto um significante em seu registro simbólico.
26

É a emergência na realidade de uma significação enorme que não se parece com nada
— e isso, na medida em que não se pode ligá-la a nada, já que ela jamais entrou no
sistema de simbolização [...] Que se passa, pois, no momento em que o que não é
simbolizado reaparece no real? Tem sua serventia empregar a esse respeito o termo
defesa. É claro que o que aparece sob o registro da significação e de uma significação
essencial, que diz respeito ao sujeito. (LACAN, 1955-56/1998e, p.102-103).

Nesta primeira parte, apresentamos as indagações que levaram ao tema abordado e à


questão de que a escuta do sujeito pelo analista pode ser promovida para além da clínica
convencional — que estaria atrelada à clínica do SUS. Ressaltamos que tais questões foram se
delineando a partir das narrativas com sujeitos psicóticos, na clínica, e formaram-se algumas
indagações acerca dos impasses na construção do caso clínico no âmbito institucional da saúde
mental. Entre elas, questões referentes ao posicionamento da escuta que se faz do sujeito na
psicose e a posição do analista na direção tratamento.

Tendo em vista tais proposições o tema-pesquisa desta dissertação refere-se à


interrogação sobre quais são as ressonâncias e impasses para a escuta do sujeito em sua
articulação com o âmbito institucional. Na psicanálise, o sintoma não adquire a conceituação
da clínica médica, em que o significante-sintoma adquire sempre o sentido patológico, mas sim
como uma manifestação subjetiva do sujeito do inconsciente.

Para tanto, levantamos a seguinte problemática, que vem nortear esta pesquisa: Qual a
escuta que podemos fazer do sujeito psicótico, tendo por princípio seu desejo? O que está
implícito no cenário institucional da atenção psicossocial, para realizar a escuta do desejo desse
sujeito? E quais os impasses no laço advindos da (não) escuta desse sujeito e das relações com
a rede intersetorial?

Assim a partir de tais questionamentos, lançamos como objetivo desta dissertação


compreender quais são os elementos essenciais para a construção do caso clínico do sujeito
psicótico, tendo em vista a escuta de seu desejo inconsciente no contexto institucional da
atenção psicossocial e da rede intersetorial. Nessa direção buscou-se alcançar tal objetivo com
base na escuta de adolescentes com hipótese diagnóstica de estrutura psíquica psicótica em um
CAPS Infantojuvenil, por meio da construção do caso clínico a partir da circulação do mesmo
no coletivo da equipe interdisciplinar e da rede intersetorial.

Entre a prática no campo da pesquisa em psicanálise, a implantação de uma metodologia


clínica que vise orientar o tratamento e, concomitantemente, a elaboração do Projeto
Terapêutico Singular (PTS) na perspectiva da atenção psicossocial produz uma racionalidade
clínica que opera no coletivo das equipes interdisciplinares e da rede intersetorial, preservando
27

a especificidade de cada profissional em seu modo de intervir e, ao mesmo tempo, obtendo


ferramentas para trabalhar numa mesma direção a partir das implicações do caso. Contudo, a
reflexão sobre o exercício da transmissão de um método de pesquisa clínica, põe em relevo o
seu caráter singular na abordagem de cada caso.

A pesquisa em psicanálise trata-se de uma pesquisa clínica, pois seu campo de atuação
é o inconsciente, que inclui necessariamente o sujeito.

A pesquisa é uma dimensão essencial da práxis analítica, em função de sua articulação


intrínseca, e não circunstancial, com o inconsciente. A esse respeito, evocamos a frase
escrita por Freud, sob sua forma habitual de recomendação, em um de seus escritos
ditos "técnicos": "A psicanálise faz em seu favor a reivindicação de que, em sua
execução, tratamento e investigação coincidam”. (ELIA, 2000, p.19, grifo do autor).
Princípios freudianos tais como tomar cada caso como se fosse o primeiro (cuja
tradução conceitual seria: o saber do inconsciente não é apreensível por uma mera
aplicação do saber acumulado pelo analista-cientista, mas se recoloca a cada vez,
inédito, único e singular, a ser lido segundo uma estrutura que, por sua vez, não
coincide com o saber universal e genérico da ciência clássica, mas inclui
necessariamente o real inapreensível pelo universal); ou como o analista deve manter
uma atenção uniformemente distribuída, equiflutuante na escuta de seus analisantes,
que definem a contrapartida, para o analista, da regra fundamental (a Grundregel) da
psicanálise, interditam que a escuta do analista seja guiada pelas qualidades valoradas
de sua consciência, ainda que tais qualidades se traduzam pelos interesses
"científicos" de um saber acumulado a progredir. (ELIA, 2000, p.23).

Referindo-se ao método para a construção do caso, é possível permitir recolher da


experiência clínica seus elementos de base, para podermos reter dessa experiência algo
transmissível e avaliável de cada caso, para tanto, o psicanalista Carlo Viganò (2010)
sistematizou o método e sua aplicação no trabalho em equipe multiprofissional de saúde.

De acordo com Figueiredo (2004), o que se trata de construir são as etapas, as escansões
(avanços, obstáculos, repetições e regressões) da dinâmica subjetiva do sujeito. Para tanto, são
consideradas a história clínica do sujeito; a ocasião do pedido de ajuda e endereçamento à
equipe de tratamento; tempos lógicos da condução do tratamento; escansões da posição
subjetiva (demanda, sintoma, angústia, repetição etc.); escansões na direção de tratamento
(arranjos sintomáticos que o sujeito reconhece nas manifestações do inconsciente); diagnóstico
de estrutura; escanções na equipe/equipamento de rede (discussão clínica da equipe,
reformulação do projeto terapêutico).

A partir dessas indicações são trabalhadas, com recorte metodológico, as diferentes


etapas da construção do caso, para melhor organização e elaboração dos chamados “binômios”
ou “balizadores”. Tais estruturas configuram-se em três eixos, subsumindo o método de
28

construção do caso clínico proposto por Viganò (2012) em sua aplicação ao trabalho coletivo,
e organizando uma síntese do método que funciona como enquadre, englobando os tópicos a
seguir: História-Caso; Supervisão-Construção; Conceitos-Distinções.

Para o binômio história-caso, faz-se importante discriminar os dois termos, a “história”,


que é a narrativa e trata-se do relato, cenas e conteúdo, difere do “caso”, que é o produto do que
se extrai das intervenções do técnico e/ou equipe na direção de tratamento.

Figueiredo (2004) aponta que se trata de colocar em jogo os elementos comuns


(significantes) que se destacam das palavras do sujeito, a partir da elaboração que ele pode fazer
em determinado momento e ao longo de seu tratamento (cortes transversal e longitudinal).

Em supervisão-construção, dá-se ênfase às discussões realizadas em equipe, servindo


de suporte para o método de construção, articulando-se com o dispositivo de supervisão clínico-
institucional como facilitador do processo. A supervisão permanece antes, durante e depois da
construção do caso, dando continuidade ao projeto terapêutico a partir da construção do caso
por uma equipe. O saber produzido em equipe é sistematizado em etapas e recolhido a cada vez
que o caso é retomado, tendo uma função formadora para o trabalho clínico. No binômio
conceitos-distinções faz-se uma articulação entre os conceitos que sustentam a psicanálise, que
é a direção de tratamento desta pesquisa e seu uso como operadores clínico.

Dessa forma, conceitos psicanalíticos foram postos em questão a cada passo do


processo. Figueiredo (2004) nos dá como exemplo a delimitação de um enunciado que pode ser
tomado como uma apresentação do sujeito, onde este revela melhor sua posição. Daí que
conceitos como identificação ou repetição podem ter um uso específico naquele momento para
auxiliar na formalização de um caso.

Assim, trabalhando os conceitos como distinções, não se pretendeu padronizar o uso da


conceitualização para a formalização dos casos, mas sim valer-se dela para possibilitar a
transmissão de cada caso.

Com o intuito de fazer uma apresentação inicial do conteúdo desta pesquisa, trazemos
os elementos-chave que compõem da dissertação através do desenrolar de seus capítulos, assim
como dos respectivos objetivos que permeiam cada um deles em suas contribuições para o
estreitamento das relações entre psicanálise, saúde mental e políticas públicas.

No Capítulo 1, por considerarmos importante situar o contexto das Reformas


Psiquiátricas — momento que se caracteriza por um amplo processo de reformulação e
regulação das instituições de cuidado à saúde mental e suas possibilidades de atuação e
29

intervenção institucional —, buscou-se trazer um breve relato do processo histórico ocorrido


durante as reformas psiquiátricas, seu desenvolvimento e influência na desinstitucionalização
manicomial no Brasil.

Já no segundo capítulo, voltamo-nos para o desenvolvimento dos conceitos


fundamentais no que tange à abordagem psicossocial e de consolidação do Sistema Único de
Saúde, fazendo um resgate quanto à institucionalização do próprio SUS e dialogando com as
transformações históricas ocorridas neste campo, inseridas aqui como: Política Nacional de
Humanização (PNH); Rede de Atenção Psicossocial (RAPS); e equipamentos substitutivos de
saúde mental.

A clínica psicanalítica com o sujeito psicótico, de que se trata no Capítulo 3, refere-se


às conceituações que estruturam esse sujeito, partindo da referenciação de autores como Freud
e Lacan, no que constitui à psicose, e onde seria possível pensar a proposição-base de ambos
os autores no que se refere à Verwerfung e foraclusão, respectivamente.

Além de Lacan, autores como Quinet e De Battista trazem contribuições valiosas quanto
à conceituação na constituição psíquica da psicose, assim como na formalização do delírio,
onde o sujeito assume uma outra posição possível no direcionamento para a cura, algo
considerado sob a chave do desejo. Como pode ser visto no caso Schreber, onde, “finalmente,
há uma recomposição da realidade com a reconstrução do mundo a partir do trabalho do
delírio”. (QUINET, 2006, p.55).

No quarto capítulo, abordamos a produção dos quatro discursos — implicados no laço


— em que Lacan (1969-70) propõe a direção de tratamento e designa que tais formações
discursivas operam no real do gozo através do simbólico. E, sendo assim: “Quando essa
configuração discursiva se torna dominante num discurso organizador numa instituição,
ocorrendo um comprometimento no saber a ser construído acerca do sujeito do inconsciente,
qual clínica é possível oferecer?” (OLIVEIRA; VERONESE; PALMA, 2009, p.1351).

O discurso detém os meios de gozar, na medida em que implica o sujeito. Não haveria
nenhuma razão de sujeito, no sentido em que falamos de razão de Estado, se não
houvesse, no mercado do Outro, o correlato de que se estabelece um mais-de-gozar
que é captado por alguns. [...] O mais-de-gozar é uma função da renúncia ao gozo sob
o efeito do discurso. É isso que dá lugar ao objeto a. Desde o momento em que o
mercado define como mercadoria um objeto qualquer de trabalho humano, esse objeto
carrega em si algo da mais-valia. (LACAN, 1968-69/2008, p.18-19).
30

Figueiredo e Alberti (2006) destacam algo abordado nas seções que compõem o quarto
capítulo, que diz respeito à relação da psicanálise com a saúde mental e que se revela como
uma aposta para as autoras.

No quinto capítulo nos debruçamos sobre o desenvolvimento das vinhetas clínicas, em


que, diante dos casos de Matheus, Joaquim e Cecília, discorremos sobre a construção do caso
clínico a fim de propormos uma articulação clínica e teórica sobre o que está em pauta nos
espaços institucionais dos serviços substitutivos na atenção psicossocial.
31

1 UM BREVE RESGATE HISTÓRICO DA DESINSTITUCIONALIZAÇÃO


MANICOMIAL E SUAS INFLUÊNCIAS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE
NO BRASIL

Neste primeiro capítulo buscaremos trazer um breve relato do processo histórico


ocorrido durante as reformas psiquiátricas, seu desenvolvimento e influência na
desinstitucionalização manicomial no Brasil.

Consideramos importante situar o contexto das Reformas Psiquiátricas, um momento


que se caracteriza por um amplo processo de reformulação e regulação das instituições de
cuidado à saúde mental e de suas possibilidades de atuação e intervenção institucional.
Pertinente destacar o quanto o processo histórico vinculado às reformas e ao contexto de
desinstitucionalização tornou possível uma nova forma de lidar com o sofrimento psíquico e o
seu cuidado.

A ênfase dirigida ao trabalho de cuidado em saúde mental, neste trabalho, aponta para
a vertente clínica psicanalítica, trazendo à discussão uma intersecção entre a vertente
institucional e as vicissitudes atreladas ao fazer clínico no laço social do sujeito psicótico no
campo institucional de saúde pública, direcionamento dado a esta pesquisa.

O sujeito de que se trata na reforma alude a uma dimensão política e social. Sabemos
que o imperativo com que se trabalha na saúde pública parte da necessidade e da demanda,
contrapondo-se à lógica da própria Reforma Psiquiátrica, na qual busca-se a inclusão do sujeito
em sofrimento psíquico no laço social e que, segundo Quinet (2009), vai na direção psicanalítica
de tratamento em que se propõe a inclusão da Foraclusão.

1.1 Um pouco de história...

O estatuto e dimensão do “louco” na sociedade, desde a Idade Clássica até os dias atuais,
é carregado de pluralidade em seus significados e de diversidade quanto aos setores sociais e
sua não homogeneidade.

A exclusão, ou melhor dizendo, os espaços ocupados por aqueles que traziam essa
marca psíquica, são inúmeros. Especialmente importante frisar que asilos, hospitais, prisões
constituem um lugar comum para a sua circulação.
32

Na contextualização do modo asilar, o hospital era tido como uma instituição de


caridade, ou seja, filantrópica, para os mendigos, desabrigados, pobres e doentes. Assim, “para
denominar tais instituições religiosas, utilizou-se a expressão ‘hospital’ que, em latim, significa
hospedagem, hospedaria, hospitalidade” (AMARANTE, 2007, p.21).

Essa concepção mudou no século XVII, com a criação de uma nova modalidade de
hospital, evidenciando um caráter segregacionista e deixando de assumir a exclusividade
filantrópica para “cumprir uma função de ordem social e política mais explícita”
(AMARANTE, 2007, p.23).

No Hospital Geral na França, em 1656, a chamada Grande Internação ocupou e


ressignificou um novo lugar social, no qual os chamados “loucos” encontravam-se recolhidos
junto a outros marginalizados da sociedade.

À Salpêtrière, reconstruída no reinado anterior a fim de abrigar um arsenal, Bicetrê,


que Luís XIII quis dar à confraria de São Luís para dela fazer uma casa de retiro
destinada aos inválidos do exército. “A Casa e o Hospital tanto da grande e da pequena
Misericórdia quanto do Refúgio, no bairro de Saint-Victor, a Casa e o Hospital de
Cipião, a casa da Savonnerie, com todos os lugares, praças, jardins, casas e
construções que deles dependem”. Todos são agora destinados aos pobres de Paris,
“de todos os sexos, lugares e idades, de qualquer qualidade de nascimento, e seja qual
for sua condição, válidos ou inválidos, doentes ou convalescentes, curáveis ou
incuráveis”. (FOUCAULT, 1972/2019, p.49).

Através de uma perspectiva histórica, Foucault nos diz que: “De início, à instituição
atribuía-se a tarefa de impedir a mendicância e a ociosidade, bem como as fontes de todas as
desordens.” (FOUCAULT, 1972/2019, p.63). Ainda:

Em toda a Europa, o internamento tem o mesmo sentido, se for considerado pelo


menos em suas origens. Constitui uma das respostas dadas pelo século XVII a uma
crise econômica que afeta o mundo ocidental em sua totalidade: diminuição dos
salários, desemprego, escassez de moeda. (FOUCAULT, 1972/2019, p.65).
É sabido que o século XVII criou vastas casas de internamento; não é muito sabido
que mais de um habitante em cada cem da cidade de Paris viu-se fechado numa delas,
por alguns meses. É bem sabido que o poder absoluto fez uso das cartas régias e de
medidas de prisão arbitrárias; é menos sabido qual a consciência jurídica que poderia
animar essas práticas. [...] mas nunca aconteceu de seu estatuto nelas ser claramente
determinado, nem qual sentido tinha essa vizinhança que parecia atribuir uma mesma
pátria aos pobres, aos desempregados, aos correcionários e aos insanos. É entre os
muros do internamento que Pinel e a psiquiatria do séc. XIX encontrarão os loucos; é
lá — não nos esqueçamos —, que eles os deixarão, não sem antes se vangloriarem
por tê-los libertado. (FOUCAULT, 1972/2019, p.47).
33

No contexto de profundas transformações ocorridas após a Revolução Francesa, o


hospital filantrópico passou por uma metamorfose perdendo a sua face original de caridade,
assumindo funções sociais e políticas e tornando-se em uma instituição médica. Com o advento
do Iluminismo, na Idade da Razão, nomear alguém de “alienado” dava o significado de “perda
da razão” e isso implicava que tal sujeito estaria impedido de participar da sociedade enquanto
cidadão. (LANCETTI; AMARANTE, 2006; AMARANTE, 2007).

Phillipe Pinel (1745-1826) destaca-se não apenas por sua obra de reformador, mas
sobretudo por fundar uma tradição clínica, com orientação consciente e sistemática. Ele
elaborou uma nosografia, isto é, uma primeira classificação das enfermidades mentais. Na
rotina de identificar as patologias, observá-las, descrevê-las e classificá-las, uma nova forma de
produção e construção do saber e da prática médica ganhou aspectos clínicos e sentidos
terapêuticos. Aos enfermos classificados de acordo com a sua sintomatologia, consolidou o
conceito de “alienação mental” fundando a psiquiatria. Porém, o hospital fundado por Pinel não
se apresentou como lugar de tratamento e cuidado para as pessoas em sofrimento psíquico,
caracterizando por vezes práticas iatrogênicas aos seus internados. Demarcando-se assim, o fio
condutor para proposições transformativas no que tange às reformas psiquiátricas.
(LANCETTI; AMARANTE, 2006; AMARANTE, 2007).

No Brasil, o início do movimento em direção à assistência aos chamados “alienados”


deu-se a partir da intervenção por parte do Estado. Com a chegada da Família Real em 1808 e
a Independência do Brasil em 1822, houve o aumento progressivo — e estimulado — da
importância das cidades. As mudanças sociais e econômicas, no período que se segue, exigiram
medidas eficientes de controle social, sem as quais tornaria-se impossível ordenar o crescimento
das cidades e das populações.

Convocada a participar desse reordenamento no espaço urbano, a medicina termina por


desenhar o projeto do qual emerge a psiquiatria brasileira. Em 1830, uma comissão da
Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (SMRJ) realiza um diagnóstico da situação dos
“loucos” na cidade. Na época, a prisão era o destino comum dos criminosos, arruaceiros, vadios
e loucos; e, nos casos mais evidentes de desarranjo mental, estes eram levados às enfermarias
dos hospitais da Irmandade de Misericórdia — conhecida associação filantrópica leiga católica
— o que não significava tratamento médico algum. Em 1852, foi inaugurado no Rio de Janeiro
o Hospício Pedro II, na Praia Vermelha. (AMARANTE, 1994; ODA; DALGALARRONDO,
2004).
34

Da criação do Hospício de Pedro II até a Proclamação da República, os médicos não


pouparam críticas ao hospício. Excluídos de sua direção e inconformados com a ausência de
um projeto assistencial científico, reivindicavam o poder institucional que se encontrava nas
mãos da Provedoria da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, assim como da Igreja,
com a ativa participação da Irmandade de São Vicente, pertencentes aos setores mais
conservadores do clero. Os alienistas compartilhavam dos ideais positivistas pinelianos e
aspiravam o reconhecimento legal, por parte do Estado, a legitimação e autorização de uma
intervenção mais ativa no campo da doença mental e assistência psiquiátrica. Na concepção
deles, o hospício deveria ter em sua direção o poder médico, para poder contar com uma
organização embasada por princípios técnicos, tornando-o um ambiente propício para a
produção de conhecimento. (AMARANTE, 1994; ODA; DALGALARRONDO, 2004).

Proclamada a República, a psiquiatria buscou modernizar-se. Em primeiro lugar, porque


o asilo, nos moldes arcaicos do Pedro II, assemelhava-se demais às instituições despóticas,
filhas autênticas do absolutismo político, o que a fazia destoar do ideário liberal veiculado nos
meios republicanos. Em segundo lugar, porque, sob a égide de uma nova ordem social que
então se constituia, a psiquiatria deveria atuar no espaço social, no espaço onde vivem as
pessoas, onde se estruturam as doenças mentais, e não se limitar apenas ao espaço cercado pelos
muros do asilo.

Surge a Assistência Médico-Legal de Alienados, primeira instituição pública de saúde


estabelecida pela República. São criadas as duas primeiras colônias de alienados, que são
também as primeiras da América Latina. Esse conjunto de medidas caracterizam a primeira
Reforma Psiquiátrica no Brasil, que tem como escopo a implantação do modelo de colônias na
assistência aos doentes mentais. A partir de 1903, com a direção de Juliano Moreira1, da
Assistência Médico-Legal de Alienados, dá-se continuidade à criação de novos asilos, à
reorganização dos já existentes e à busca de legitimação jurídico-política da psiquiatria
nacional. Um passo importante rumo a essa legitimação foi dado com a promulgação da Lei n°
1132, de 22 de dezembro de 1903, que reorganiza a assistência aos alienados. (AMARANTE,
1994).

1
Juliano Moreira ocupa essa direção por 27 anos até 1930, quando foi destituído pelo governo de Getúlio Vargas.
É conhecido como Mestre da Psiquiatria Brasileira e seus estudos na Alemanha vincularam a psiquiatria brasileira
à corrente alemã, dando um importante significado quanto à discussão etiológica das doenças mentais. O
biologicismo, tendência predominante da tradição alemã, passa a explicar não só a origem das doenças mentais,
mas também muitos dos fatores e aspectos étnicos, éticos, políticos e ideológicos de múltiplos eventos sociais.
35

Entre os anos 1930 e 1950, considerados a era dos choques e da psiquiatria comunitária,
o asilamento tornou-se mais frequente e a psiquiatria expandiu-se com a aparecimento dos
primeiros neurolépticos. Nesse momento, a assistência psiquiátrica continua a ser prestada em
seus moldes manicomiais.

1.2 Reformas e propostas antimanicomiais na reconsideração de um lugar social para o


sujeito em sofrimento psíquico

O advento das duas Grandes Guerras Mundiais fez com que a sociedade passasse a
refletir e reconhecer o caráter anacrônico e iatrogênico das práticas da psiquiatria convencional.
Durante a Segunda Guerra, houve urgência por tratamentos com maior eficácia clínica na
recuperação de soldados traumatizados em campos de concentração. Movimentos sociais
populares em prol de direitos civis e políticos para os inseridos nas chamadas instituições totais
passaram a movimentar processos revolucionários visando políticas de democratização no que
tange ao campo da saúde mental. Nas décadas de 1950 e 1960, no período pós-guerra, o
recrudescimento da crítica às instituições totais surgiu como um fenômeno em vários países e
a desativação gradual das instituições asilares — tanto para portadores de doenças contagiosas
quanto portadores de deficiências e de transtornos mentais — levou às primeiras experiências
de reformas psiquiátricas. (AMARANTE, 2007; VASCONCELOS, 2009).

Nesse contexto, a Reforma Psiquiátrica Brasileira desenvolveu-se a partir dos “ecos” de


um processo de ampla contestação ao tratamento dispensado aos considerados “doentes
mentais”. Tais experiências disruptivas em relação ao cânone asilar em grandes países
trouxeram reivindicações às transformações na assistência psiquiátrica do modelo vigente. Para
citar algumas das várias proposições que levaram a revoluções psiquiátricas, temos o Reino
Unido, com a comunidade terapêutica; a França, onde foi instituído o modelo de cooperativas
chamado de Psicoterapia Institucional; e a Itália, com o modelo de psiquiatria democrática
italiana.

Em suas intenções todas as reformas psiquiátricas dos anos 60 na Europa se


propunham a atingir a superação gradual da internação nos manicômios através da
criação de serviços na comunidade, do deslocamento da intervenção terapêutica para
o contexto social das pessoas, a prevenção, a reabilitação etc. (ROTELLI;
LEONARDIS; MAURI, 2001, p.20).
36

As iniciativas de movimentos reformistas antimanicomiais que influenciaram altamente


a desinstitucionalização no Brasil foram a Reforma Psiquiátrica Italiana, a Psiquiatria de Setor
e a Psicoterapia Institucional Francesa. Tais movimentos tiveram expressivos reflexos na
década de 1980, concomitantes à reforma sanitária que se deu com o processo de
redemocratização do país.

Tal cenário contou com empreendimentos de transformações institucionais, partindo de


importantes estudos e ações de autores como Tosquelles, Rotelli, Franco Basaglia, entre outros.

O movimento de Psicoterapia Institucional ocorrido na França, que refletiu na


instalação de processos reformatórios na saúde mental brasileira, teve por princípio solucionar
os revezes da psiquiatria hospitalar através de mudanças no interior da própria instituição,
proposta do seu entusiasta François Tosquelles. Ele acreditava que a instituição psiquiátrica
havia perdido seus ideais e apostava nas possibilidades de transformação para que o hospital
viesse a exercer sua verdadeira função terapêutica. A Psicoterapia Institucional busca propor a
“transversalidade” como encontro e, ao mesmo tempo, o confronto dos papéis profissionais e
institucionais, com o intuito de problematizar as hierarquias e hegemonias. A ampliação dos
referenciais teóricos de forma a não reduzir a escuta independente da corrente conceitual, junto
à noção de acolhimento pautando-se na importância da equipe e da instituição na construção do
suporte aos pacientes, foi o parâmetro de Tosquelles para a constituição da Psicoterapia
Institucional. A experiência no Hospital Saint-Alban, na França, oferecia possibilidades de
participação e de assunção de responsabilidades por parte dos internos. (AMARANTE, 2007).

O movimento de psicoterapia institucional, a despeito de também pensar seus


conceitos e limitar sua estratégia assistencial ao processo interno da instituição, teve
maior alcance conceitual e prático, pois sua teorização sobre os processos psíquicos
que se desenvolvem nas relações grupais e institucionais e suas implicações clínicas
e assistenciais podem claramente subsidiar práticas em serviços de atenção
psicossocial fora de seus muros, tanto em saúde mental como em outros campos.
(VASCONCELOS, 2009, p.76-77).

Na Psiquiatria de Setor, o modelo hospitalocêntrico é considerado esgotado e a sua


desmontagem foi feita a partir da construção de serviços assistenciais, qualificando o cuidado
terapêutico (hospitais-dia, oficinas terapêuticas, centro de saúde mental) e evidenciando a
necessidade de um trabalho externo à hospitalização, simultaneamente à superação do modelo
hospitalar psiquiátrico vigente. Criou-se os Centros de Saúde Mental, distribuídos nos
diferentes setores administrativos das regiões francesas, ou seja, de acordo com a distribuição
populacional das regiões, instituindo o princípio de setorização. Outra inovação foi o
37

acompanhamento terapêutico dos pacientes, que poderia ser realizado pela mesma equipe
multiprofissional, tanto no interior do hospital quanto no local de residência, dando destaque
para o trabalho em equipe de enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais, que passariam a ter
um novo protagonismo no contexto das políticas de saúde mental. (AMARANTE, 2007).

A influência da experiência francesa de substituição manicomial, que reflete a


setorização nesse percurso, trouxe elementos como a política de setor no Brasil e flertou com
um modelo parecido com o dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), tema que será
trabalhado posteriormente nesta dissertação.

Nos países anglo-saxões, uma experiência no sistema de saúde da Grã-Bretanha


preconizou uma forma alternativa de funcionamento, através das Comunidades Terapêuticas
(CT). Maxwell Jones, um idealizador das Comunidades Terapêuticas, propôs que a psiquiatria
social e seus métodos comunitários de tratamento estariam vinculados ao campo das ciências
sociais.

De acordo com Brandão e Carvalho (2019), Jones foi na direção da psiquiatria


comunitária, demonstrando-se contrário a qualquer tipo de segregação, defendia a integração
entre hospital e comunidade. Tal modelo de saúde dava ênfase à democratização das relações
entre equipe terapêutica e pacientes, buscando não as hierarquizar. Assim, os princípios
fundamentais que caracterizavam a organização da Comunidade Terapêutica centralizavam-se
em: estabelecer um ambiente terapêutico de corresponsabilidade entre os membros da
comunidade; na horizontalização da comunicação e no rompimento da hierarquização nas
relações; e na análise de papéis de cada um, buscando refletir sobre as expectativas e
necessidades de pacientes e funcionários. “A defesa da liberdade teria contagiado o ambiente
clínico; era necessário reduzir os efeitos negativos da organização hospitalar fundada na
hierarquia rígida e substituí-la por forças terapêuticas positivas resultantes da participação
social.” (BRANDÃO; CARVALHO, 2019, p.275).

O movimento de Reforma Psiquiátrica Italiana empreendido por Franco Basaglia (1924-


1980) — e que apresentou grande expressividade no Brasil —, foi chamado de “Psiquiatria
Democrática”, onde Basaglia propôs uma ruptura epistemológica e questionou as instituições
psiquiátricas, promovendo o encerramento definitivo do manicômio de Trieste. (SERAPIONE,
2019).

A experiência de Trieste foi muito importante e desencadeou um processo de mudanças


em toda a Itália onde, em 13 de maio de 1978, foi aprovada a Lei 180, conhecida como a Lei
38

da Reforma Psiquiátrica Italiana ou Lei Basaglia. Era a única lei nacional em todo o mundo a
prescrever a extinção dos manicômios em todo o território nacional, determinando que fossem
constituídos serviços e estratégias substitutivas ao modelo manicomial. (LANCETTI;
AMARANTE, 2006, p.624).

A concepção desenvolvida por Basaglia ampliou significativamente a compreensão e


a crítica das raízes profundas da instituição psiquiátrica, mostrando como ela
extrapola amplamente os muros de seus estabelecimentos especializados de
“tratamento”, atingindo o mandato social que a sociedade atribui à medicina e
psiquiatria para segregar e isolar a loucura, as políticas públicas que as organizam, e
chegando às relações sociais, às representações sociais e às relações jurídicas
associadas à sáude mental em toda a sociedade e no Estado, bem como o conjunto de
saberes especializados e o paradigma de conhecimento implícito a eles, que
sedimentaram essas relações. (VASCONCELOS, 2009, p.78).

Rotelli, Leonardis e Mauri (2001) analisam em um ensaio o contexto da


desinstitucionalização italiana: porque não se trata apenas de uma desospitalização, mas trata-
se da “única nas sociedades industriais que aboliu a internação no hospital psiquiátrico do
conjunto de prestações e serviços de saúde mental” (ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001,
p. 17).

A verdadeira desinstitucionalização em Psiquiatria tornou-se na Itália um processo


social complexo que tende a mobilizar como atores os sujeitos sociais envolvidos, que
tende a transformar as relações de poder entre os pacientes e as instituições, que tende
a produzir estruturas de Saúde Mental que substituam inteiramente a internação no
Hospital Psiquiátrico e que nascem da desmontagem e reconversão dos recursos
materiais e humanos que estavam ali depositados. (ROTELLI; LEONARDIS;
MAURI, 2001, p. 18).

É importante sublinhar que, também no modelo de saúde mental italiano, os Centros de


Saúde se caracterizam por unidades de saúde em que fora abolida a divisão de pessoas pela
especificidade de seu sintoma, ou ainda por sua gravidade.

O Centro está sempre aberto e qualquer um pode ter acesso a ele quando quiser. Não
existem consultas por agenda e muito menos lista de espera. Por isso, os pacientes
usam o centro como ponto de encontro, de socialização e de vida cotidiana. [...] O
dado mais importante de todas as atividades, e em particular dos laboratórios, é o fato
de que são utilizados conjuntamente por “normais”, por pacientes psiquiátricos, por
tóxico-dependentes (e sobretudo por jovens). Este é um exemplo concreto da
tendência de não compartimentalizar e, ao contrário, multiplicar as trocas sociais, que
são essenciais ao processo de desinstitucionalização. (ROTELLI; LEONARDIS;
MAURI, 2001, p.39-40).
39

Kyrillos Neto (2007), referindo-se a Basaglia, assinala que, por mais que se mudem as
técnicas, o psiquiatra relaciona-se com o paciente enquanto corpo doente, objeto de pesquisa
considerado em sua materialidade, cuja diferença deve ser catalogada, gerida e anulada. O
hospital psiquiátrico, encabeçado pelo princípio de autoridade, com sua meta de ordem e
eficiência, aniquila o doente mental que, prisioneiro desse corpo doente, perde sua identidade
pessoal e ganha identidade institucional. O mesmo autor nos diz que, o paciente psiquiátrico
reduzido à doença é um excluído que jamais poderá se opor àqueles que o excluem, pois todos
os seus atos serão compreendidos a partir de um quadro psicopatológico e de um código de
sintomas.

Tenório (2001) destaca que:

No campo da reforma vicejou-se uma outra posição, propondo que o sofrimento que
acompanha a experiência da loucura demanda um trabalho que não se resolve pelo
questionamento das instituições sociais que regulam o lugar social do louco. A
especificidade desse sofrimento e o fato de que ele se materializa de maneira
absolutamente singular na experiência de cada um fazem com que a clínica e suas
categorias sejam instrumentos de aproximação não apenas úteis, mas necessários para
o propósito de construir novas possibilidades de existência para o louco e outro lugar
social para a loucura. (TENÓRIO, 2001, p.23).

Dentro da perspectiva de desinstitucionalização enquanto desconstrução de um saber,


Barros (1994) afirma que é na perspectiva de desmontar os aparatos que se sustenta a doença
mental, começando pelo paradigma problema-solução. Isto é, as instituições racionalistas —
como é sabido — funcionam com base numa relação codificada entre definição de um problema
e uma resposta tendencialmente ideal. A crítica italiana atinge as bases da psiquiatria tradicional
e questiona a própria natureza ideológica da ciência em geral, absorvendo os ensinamentos de
Foucault, para quem o manicômio é mais que um sobrevivente arcaico, é um produto intrínseco
do Iluminismo e da própria sociedade capitalista.

1.3 Redemocratização brasileira: Reformas sanitária e psiquiátrica — institucionalização


do SUS

A herança do processo de redemocratização do Brasil e suas consequentes reformas


sanitária e psiquiátrica, trouxe amostras minuciosas. Seguindo alguns marcadores políticos e
teóricos dos anos de redemocratização do Brasil, nas décadas de 1980 e 1990, período que
40

corresponde a momentos de intensa reestruturação em relação à assistência psiquiátrica no país,


abriu-se uma grande diversidade de possibilidades dentro desse mesmo processo.

Em 1990 a Conferência Regional para reestruturação da assistência psiquiátrica


realizada em Caracas foi encarregada de trazer mudanças que circulariam e modificariam a
saúde mental nos países da América Latina, sendo a mesma intitulada “Declaração de Caracas”.
Nessa declaração está expresso o compromisso com as transformações trazidas por tal
perspectiva.

Comprometem-se a promover a reestruturação da assistência psiquiátrica, rever


criticamente o papel hegemônico e centralizador do hospital psiquiátrico,
salvaguardar os direitos civis, a dignidade pessoal, os direitos humanos dos usuários
e propiciar a sua permanência em seu meio comunitário. (HIRDES, 2009, p.298).

Trazer uma reflexão acerca da institucionalização do Sistema Único de Saúde (SUS),


suas diretrizes e legislação vigente, dialoga com as transformações históricas ocorridas no
campo das políticas públicas de saúde.

Segundo Cohn (2006),

na Constituição da República Federativa do Brasil, na seção II — Da Saúde, o artigo


198 reza que as ações e os serviços públicos de saúde constituem uma rede
regionalizada e hierarquizada de serviços de saúde, que conforma um sistema único
de saúde, organizado segundo três diretrizes básicas: descentralização; atendimento
integral, com prioridade para as atividades preventivas, mas sem prejuízo dos serviços
assistenciais; e a participação da comunidade. (COHN, 2006, p.254).

Tal artigo visa apresentar as diretrizes que organizam o SUS, assegurado pelo artigo 196
da CF/1988, que declara o acesso à saúde como direito de todos e um dever do Estado.

As proposições foram regulamentadas com a promulgação da Lei Orgânica da Saúde —


leis n° 8.080/1990 e 8.142/1990. No que tange à lei n° 8.080/1990, a disposição preliminar do
sistema único de saúde, no artigo 4° estão incorporadas as diretrizes que constituem a lei da
seguinte maneira:

Art. 4º O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições


públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das
fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).
§ 1º Estão incluídas no disposto neste artigo as instituições públicas federais, estaduais
e municipais de controle de qualidade, pesquisa e produção de insumos,
medicamentos, inclusive de sangue e hemoderivados, e de equipamentos para saúde.
§ 2º A iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde (SUS), em
caráter complementar. (BRASIL, 1990).
41

Estão incluídos na lei n° 8.080/1990 alguns dos princípios fundamentais do SUS, que
preveem as seguintes garantias: universalidade, integralidade e equidade no acesso à saúde. O
princípio da universalidade supõe o alcance e direito à saúde para todos, incluindo acesso aos
serviços de saúde em todos os níveis de assistência. O princípio da integralidade propõe a
necessidade de um atendimento à saúde resolutivo em todas as esferas. Quanto ao princípio da
equidade, este é norteado para a redução do impacto das diferenças, enfatizando o atendimento
aos indivíduos de acordo com as suas necessidades.

Como vimos anteriormente, as reformas psiquiátricas sofreram influência de correntes


teóricas e princípios conceituais de várias partes do mundo. No Brasil, a Reforma Psiquiátrica
está intimamente ligada à Reforma Sanitária Brasileira, processo político que mobilizou a
sociedade para propor novas políticas e novos modelos de organização de sistema, serviços e
práticas de saúde.

O SUS é resultado desse processo político, “uma realização importante deste processo
foi a inserção no texto constitucional da saúde como direito de cidadania e dever do Estado, o
que realçou e deu força jurídica de relevância pública às ações e serviços de saúde”
(VASCONCELOS; PASCHE, 2006, p.532).

A Reforma Psiquiátrica Brasileira se dá com a institucionalização do Sistema Único de


Saúde, pois, a partir dessa operacionalização, a política de saúde mental no país é estruturada
na produção de uma série de marcos legais que permitem e legitimam núcleos de militância,
gerando o movimento da luta antimanicomial e resultando em encontros regionais e nacionais2.

2
I Conferência Nacional de Saúde Mental (1987); Intervenção no Hospital Psiquiátrico Anchieta em Santos
(1989); II Conferência Nacional de Saúde Mental (1992); Encontro Nacional dos Usuários - I Encontro Nacional
em São Paulo (1991); II Encontro Nacional no Rio de Janeiro (1992); III Encontro Nacional em Santos (1993); IV
Encontro Nacional em Goiânia (2000); I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial em Salvador (1993); Lei
10.216 de 06/04/2001.
42

2 VERTENTE BRASILEIRA NO CONTEXTO DA SAÚDE MENTAL E A POLÍTICA


NACIONAL DE HUMANIZAÇÃO

Ao discutir o cenário na instauração de políticas públicas, instituídas a partir da crise


sanitária brasileira, fazemos o resgate de como institucionalizou-se o Sistema Único de Saúde
e dialogamos com as transformações históricas ocorridas nesse campo, inseridas como: Política
Nacional de Humanização (PNH); Rede de Atenção Psicossocial (RAPS); e os equipamentos
substitutivos na saúde mental.

Lançada em 2003, a Política Nacional de Humanização (PNH) busca pôr em prática os


princípios do SUS no cotidiano dos serviços de saúde, produzindo mudanças nos modos de
gerir e cuidar, e atuando a partir de orientações clínicas, éticas e políticas.

2.1 Os Centros de Atenção Psicossocial

Como foi visto na década de 1970, devido à sedimentação das transformações ocorridas
no Brasil e com a decorrente reformulação de um lugar social para a “loucura”, a partir da
Reforma Psiquiátrica Brasileira surgem mudanças na assistência à saúde mental, advindas do
processo de humanização da saúde no país com a Constituição de 1988 e da estruturação de
uma política de saúde que institucionalizou o Sistema Único de Saúde.

A Reforma Psiquiátrica Brasileira culminou com a promulgação da Lei 10.216/2001,


que visa assegurar um modelo de atenção na saúde mental onde há uma mudança de paradigma
com a possibilidade de uma assistência inclusiva e de proteção aos direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais, a partir da criação de modelos substitutivos ao cuidado na
atenção psicossocial.

Para tanto, tal reforma foi amparada pelos preceitos que fazem proposições em redes
alternativas de tratamento ao sujeito em sofrimento psíquico. Nesse sentido, a tessitura de uma
rede visando o agenciamento do cuidado à saúde mental foi imprescindível, sendo criadas
estratégias específicas através de dispositivos como os Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS), Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF), residências terapêuticas, hospitais-
dia, consultórios de rua, mecanismos que assegurassem a integralidade do atendimento sem o
direcionamento para as internações hospitalares.
43

Nesse contexto, a lei n° 10.216 de 6 de abril de 2001, também chamada de Lei Paulo
Delgado, dispõe sobre os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona
o modelo assistencial em saúde mental, constituindo, por sua vez, uns dos marcadores da
Reforma Psiquiátrica no Brasil.

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) representam uma das facetas dessa


proposta. São equipamentos de saúde substitutivos, herdados da Reforma Psiquiátrica como um
meio de desinstitucionalização, assim como de desconstrução e de crítica epistemológica ao
saber médico e hospitalocêntrico constituinte da prática psiquiátrica.

Logo, identificar parceiros e atores com potencial para constituir uma rede —
instituições, equipes, familiares e comunidade — tornou-se necessário.

O desafio da cidadania do louco exige, tanto quanto a intervenção e o questionamento


cultural e social mais amplos, o enfrentamento artesanal de cada situação, da
particularidade de cada sujeito e de cada momento de sua trajetória. Essa prática
singular junto ao paciente é a clínica, mesmo que consista em uma intervenção mais
ampla, acompanhando o sujeito para além dos espaços tradicionalmente descritos
como clínicos. (TENÓRIO, 2001, p.24).

Com a Portaria n° 3.088, de 23 dezembro de 2011, institui-se a Rede de Atenção


Psicossocial (RAPS) para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades
decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde
(SUS).

A fim de especificar o ponto de concentração da RAPS na atenção psicossocial


especializada, que é representado pelo Centro de Atenção Psicossocial, temos o art. 7° no qual
aborda-se o seguinte:

§1° O Centro de Atenção Psicossocial de que trata o caput deste artigo é constituído por
equipe multiprofissional que atua sob a ótica interdisciplinar e realiza atendimento às pessoas
com transtornos mentais graves e persistentes e às pessoas com necessidades decorrentes do
uso de crack, álcool e outras drogas, em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo,
semi-intensivo, e não intensivo. E de acordo com o caput § 4°, os Centros de Atenção
Psicossocial estão organizados nas seguintes modalidades: CAPS I; CAPS II; CAPS III; CAPS
AD; CAPS AD III; CAPS IJ.

O cuidado, de acordo com o caput §3°, no âmbito do Centro de Atenção Psicossocial é


desenvolvido por intermédio de Projeto Terapêutico Individual, envolvendo em sua construção
a equipe, o usuário e sua família, e tendo sua ordenação sob a responsabilidade do Centro de
44

Atenção Psicossocial ou da Atenção Básica, garantindo assim permanente processo de cogestão


e acompanhamento longitudinal do caso.

2.2 Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil

Os CAPS, enquanto dispositivos clínicos, são considerados como um equipamento de


saúde na produção de cuidado capazes de ofertar diferentes possibilidades transferenciais para
os impasses de subjetivação no laço. Para tanto, do ponto de vista da saúde mental
infantojuvenil, temos o Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPS IJ) e é
interessante trazer algumas diretrizes de produção de cuidado, dada a concepção que sustenta
esse dispositivo.

a) A criança e o adolescente são sujeitos e, como tal, responsáveis por sua demanda
e seu sintoma. São sujeitos de direitos e detentores de lugares autênticos de fala.
A noção de sujeito implica também a de singularidade, ou seja, não é possível
pensar em tratamentos e abordagens terapêuticas de forma homogênea e
prescritiva, pois vale a máxima de que “cada caso é um caso”;
b) Acolhimento universal: significa que as portas dos serviços devem estar abertas
a todos aqueles que chegam com alguma necessidade de saúde e de saúde mental;
c) Encaminhamento implicado e corresponsável: no caso de haver outro serviço
que melhor se ajuste às necessidades do usuário, os profissionais que fizeram o
acolhimento devem, de maneira implicada e corresponsável, promover o
acompanhamento em outro serviço (muito diferente de um procedimento
administrativo e burocrático de preencher uma guia de encaminhamento para
outro serviço);
d) Construção permanente da rede e da intersetorialidade: a partir da noção de
clínica ampliada e da complexidade das intervenções em saúde mental, álcool e
outras drogas, é fundamental a construção cotidiana de uma rede de profissionais,
ações e serviços para a garantia do acesso de crianças, adolescentes e jovens aos
cuidados nesta área.
e) Trabalho no território: trata-se de um conceito que extrapola os sentidos
meramente geográficos ou regionais, mas tem relação com as redes de relações e
afetos e com as redes sociais daquele que é cuidado, que inclui a família, os
vizinhos, a escola, a praça, o clube, os lugares de lazer etc.
f) Avaliação das demandas e construção compartilhada das necessidades de
saúde mental: as demandas que chegam aos serviços de saúde mental (vindas do
sujeito, da família, da escola e dos serviços da rede de saúde ou da rede
intersetorial) devem ser discutidas e elaboradas em conjunto pelas equipes, pelos
familiares e pelos usuários. (BRASIL, 2014, p.25).

Importante ressaltar que:

Desde 2002, entretanto, o Ministério da Saúde (MS) vem investindo recursos e


dispondo orientações para superar a lacuna histórica de assistência às crianças e
adolescentes por parte da saúde mental. Em 2005, estabeleceu orientações para
45

efetivação da política pública de saúde mental infantil e juvenil (BRASIL, 2005) que
vem impactando positivamente a construção da rede de serviços para esta população.
As diretrizes atuais da saúde mental estão alinhadas com os princípios estabelecidos
no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — que afirmam a criança e o
adolescente como sujeitos de direito; com as bases éticas do Movimento da Reforma
Psiquiátrica — que defende o direito à inclusão social da pessoa com transtorno
mental; e também com as deliberações da III e IV Conferências Nacionais de Saúde
Mental, realizadas respectivamente em 2001 e 2010 — que propõem a montagem de
um sistema intersetorial e abrangente diante da complexidade de demandas que
envolvem a saúde mental dessa população, nomeado Rede Pública Ampliada de
Atenção à Saúde Mental. (BRASIL, 2013, p.104, grifo do autor).

Na VIII Reunião Ordinária do Fórum Nacional de Saúde Mental Infantojuvenil


(BRASIL, 2009), que tratou da necessidade de constituição de estratégias para territórios
atingidos por vulnerabilidade e violência, foram levantadas questões salutares para dar ensejo
à assistência a essa população:

As noções centrais que orientaram a discussão foram a de vulnerabilidade da


população em questão a de iniquidade social, a complexidade implicada no consumo
de substâncias psicoativas por crianças e adolescentes e a necessidade de considerar
os contextos socioculturais e econômicos na abordagem do problema e na
construção das alternativas para enfrentá-lo. Especial atenção foi dedicada à
vulnerabilidade de crianças e adolescentes em situação de rua, as necessárias
interfaces entre a saúde mental e o sistema sócio-educativo, à qualificação das redes
de saúde, em especial da saúde mental e das redes de apoio social para a atenção
integral a esta população. (BRASIL, 2009)

2.3 Proposta do Projeto Terapêutico Singular

O Projeto Terapêutico Singular (PTS) deve construir-se conjuntamente com o usuário e


partir de seu ponto de vista. É interessante que se inclua na discussão alguma definição daquilo
que deve ou não ser tratado em termos sintomáticos — ou seja, o que pode ser considerado
como uma simples diferença, e o que deve ser considerado patológico — e de que modo a
pessoa com transtorno mental aceita que se tentem minimizar determinadas vivências ou
comportamentos. Essa decisão é pessoal e pode transformar-se ao longo de uma história, de
modo que apenas a experiência concreta pode fornecer as bases nas quais se constrói o
autocuidado.

Cumpre destacar a importância do Projeto Terapêutico Singular por estar referido ao


desejo do sujeito, mostrando-se um instrumento importante para demarcar a sua singularidade.
O PTS também pode ser sugerido nos casos que exigirem maior articulação da equipe e nas
46

situações em que há necessidade de ativação de outras instâncias, como os recursos


comunitários e outros serviços de saúde ou instituições intersetoriais.

A saída do circuito da “demanda e necessidade” — possibilitada por políticas de saúde


como o PTS — para entrar no circuito do “desejo pela via da direção psicanalítica de
tratamento” viabilizou a sustentação da singularidade do sujeito, o que poderemos constatar nas
vinhetas clínicas trazidas nesta pesquisa.

O PTS trata-se de uma estratégia de cuidado, ou seja, um conjunto de propostas de cunho


terapêutico, que são discutidas e construídas por uma equipe multiprofissional.

O exercício de uma clínica ampliada pressupõe a utilização de dispositivos como o


Projeto Terapêutico Singular (PTS), de maneira a deslocar-se do sintoma e da doença
para o sofrimento e o contexto em que estes aparecem. [...] O PTS pode ser definido
como uma estratégia de cuidado que articula um conjunto de ações resultantes da
discussão e da construção coletiva de uma equipe multidisciplinar e leva em conta as
necessidades, as expectativas, as crenças e o contexto social da pessoa ou do coletivo
para o qual está dirigido (BRASIL, 2007). A noção de singularidade advém da
especificidade irreprodutível da situação sobre a qual o PTS atua, relacionada ao
problema de uma determinada pessoa, uma família, um grupo ou um coletivo.
(BRASIL, 2014, p.55).

O conceito, inicialmente discutido, sobre a acessibilidade universal que o SUS teria em


seus princípios dá um sentido de organização para o PTS, estabelecendo um roteiro com
diagnóstico situacional, definição de objetivos e metas, divisão de tarefas e responsabilidades,
assim como a reavaliação do próprio PTS.

A utilização do PTS como dispositivo de cuidado possibilita a reorganização do


processo de trabalho das equipes de Saúde e favorece os encontros sistemáticos, o
diálogo, a explicitação de conflitos e diferenças e a aprendizagem coletiva. Coordenar
um PTS exige disponibilidade afetiva e de tempo para organizar e ativar diversas
instâncias. Por isso sugerimos a distribuição dos casos complexos entre os diversos
trabalhadores, de maneira a evitar sobrecarregar aqueles mais disponíveis e sensíveis
com os problemas de saúde mental. Lidar com o medo, o desconhecimento e a
incerteza fazem parte do trabalho em saúde, possibilitando a superação de desafios, o
exercício da criatividade e a reconfiguração contínua dos territórios existenciais onde
circula a subjetividade dos próprios trabalhadores. (BRASIL, 2013, p.57).

Tal prática instrumentaliza a efetividade na clínica do SUS, mas é essencial pensar a


proposta de articulação com a psicanálise para sustentar a singularização do cuidado de acordo
com a direção ética do analista.

[...] a clínica não é lugar de aplicação de saber, mas de produção, o que significa que,
havendo produção de saber, há necessariamente condições para a prática clínica, uma
47

vez que o saber produzido, não tem caráter especulativo, foi gerado a partir de uma
experiência em que o sujeito está necessariamente implicado. (ELIA, 1986/2000,
p.32).

Endo (2013) ressalta que a sustentação da conduta ética do analista está amparada no
sentido de buscar, no cotidiano das práticas, várias possibilidades de escuta do discurso do
paciente e de acompanhamento responsabilizado de seu tratamento. Aquilo que se distancia do
discurso traz à evidência somente a caracterização de sintomas, excluindo a subjetividade do
sujeito.

Nesse sentido, Dias (2019) aponta que dar um outro acento ao que tange ao PTS, como
diretriz norteadora da singularização do cuidado, enfatiza o desejo como um traço singular do
sujeito, dando destaque ao que é próprio de cada um.

Assim, ao ler “singular”, remetemos à dimensão singular do desejo e fugimos ao


engodo de engendrar uma nova cronicidade que poderia se instalar ao se criar uma
série de propostas anteriores ao sujeito, prévias a ele, norteando sua proposta de
tratamento por ideias de cura, indicando tratamentos pela vida toda orientados pelo
viés da assistência. (DIAS, 2019, p.48).

Compartilhar questionamentos e dialogar no sentido de um melhor manejo consensual


entre os agentes envolvidos na construção de um PTS — equipe multidisciplinar, rede
intersetorial e usuários — não é uma das tarefas mais fáceis. É importante levar em conta as
diferenças, os conflitos de interesses e impasses, pois a construção do PTS acontece a partir de
diferentes olhares, levando a pensar sobre qual sentido a construção do caso pode trazer. E, em
muitos momentos, questionar também para quem está ele sendo construído.

2.4 Por quais ventos nos chegam as implicações atuais na saúde mental?

Ainda que o compromisso da Reforma Psiquiátrica Brasileira venha acontecendo de


forma gradativa e continuada, como foi visto recentemente no encerramento das atividades de
internação do Instituto Nise da Silveira (RJ)3, há ameaças no sentido de efeitos de
recrudescimento da Lei 10.216/200.

3
“O Instituto Nise da Silveira encerra a internação de pessoas após 110 anos de funcionamento. No dia 26 de
outubro de 2021, o último paciente internado recebeu alta e foi transferido para uma residência terapêutica. As
portas do instituto estão abertas para visitação ao museu que foi nomeado Nise da Silveira e possui um acervo
48

Um exemplo, que está dentro da lógica de significante-mercantilizado, diz respeito ao


plano integrado de enfrentamento ao crack e outras drogas a partir do Decreto 7.179 de 2010,
e reafirmado em 2019 pela Nota técnica 11/20194. Tal plano gerou significativas mudanças na
Política Nacional de Saúde Mental, com o fortalecimento da lógica de mercado e a reversão
dos direitos garantidos constitucionalmente, desconsiderando o processo construído ao longo
da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB).

Com a entrada desse significante-mercantilizado vem se instalando um processo de


institucionalização de Comunidades Terapêuticas. Em sua origem, como foi dito no capítulo
anterior, essas comunidades possuem uma linha metodológica de tratamento que dialoga com
os pressupostos da RPB.

Na realidade, a instalação das CTs no Brasil é muito diferente da sua prática de


tratamento original, como confirmado por diversas investigações realizadas na atualidade.

De fato, uma boa parte das CTs no Brasil possui práticas tão desumanas e iatrogênicas
quanto as das antigas instituições asilares manicomiais, sem garantir minimamente a
preservação dos direitos humanos mais básicos. [...] O que sim fica evidente é a
necessidade de uma sistemática fiscalização e regulamentação das CT, a fim de que
somente permaneçam em atividade aquelas que, de fato, sigam o modelo proposto
originalmente, nascido no mesmo berço da Reforma Psiquiátrica. (PERRONE, 2014,
p.578).

histórico sobre psiquiatria no Brasil.” Disponível em: g1.globo.com/fantástico/noticia/2021/11/07 maio-e-mais-


antigo-hospital-psiquiatrico-do-brasil-fecha-as-portas-no-rio.ghtml. Acesso em: 07 nov. 2021.
4
A Nota técnica n°11/2019 do Ministério da Saúde (Secretaria de Atenção à Saúde / Departamento de Ações
Programáticas Estratégicas / Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras drogas), intitulada
Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional
sobre Drogas, delineia novas diretrizes para a RAPS, alternando propostas anteriores e incentivando a ampliação
em leitos de hospitais psiquiátricos, o que vai na contramão da proposta antimanicomial.
49

3 A CLÍNICA PSICANALÍTICA COM O SUJEITO PSICÓTICO

Ao abordar a clínica psicanalítica com o sujeito psicótico neste capítulo, busquei


fundamentá-lo sob a ênfase ― direcionada por Lacan ― ao conceito estrutural da constituição
psíquica do sujeito, dado o momento decisivo de subjetivação que passa pela figura mítica do
complexo de Édipo. Para tanto, iniciaremos através de conceitos centrais que trazem os
elementos constituintes da estrutura psíquica do sujeito, para então abordarmos a concepção de
sujeito e de desejo na psicose.

Apesar da alternância de paradigmas de Lacan ― em que há uma outra leitura quanto à


concepção de gozo e à não existência do Outro, da mulher, da relação sexual e de seu uso na
cadeia borromeana na abordagem da psicose ―, o enfoque nessa clínica é na perspectiva de
empreender maneiras alternativas quando se fala da foraclusão do Nome-do-Pai e da
articulação com o seu desejo.

3.1 O complexo de Édipo e a foraclusão da castração na psicose

O complexo de Édipo, de acordo com Freud (1924/1996c) em seu texto Dissolução do


complexo de Édipo, nos dá a perspectiva do declínio do Édipo através do complexo de
castração, de forma a reconhecer correlações entre a organização fálica, a ameaça de castração,
a formação do superego e o período de latência.

Não tenho dúvida de que as relações cronológicas e causais, aqui descritas, entre o
complexo de Édipo, intimidação sexual (ameaça de castração), formação do superego
e o começo do período de latência são de um gênero típico, porém, não desejo
asseverar que esse tipo seja o único possível. Variações na ordem cronológica e na
vinculação desses eventos estão fadadas a ter um sentido muito importante no
desenvolvimento do indivíduo. (FREUD, 1924/1996c, p.276).

No que se refere ao complexo de Édipo, Lacan (1957-58/1999), no Seminário 5: As


Formações do Inconsciente, propõe pensar o Édipo através do que ele chama de “tempos
lógicos”, que não tem como característica uma identidade de temporalidade cronológica e nem
desenvolvimentista, mas sim a disposição dos seus elementos em cada tempo.
50

Dessa forma, Lacan (1957-58/1999) nos diz que:

No primeiro tempo e na primeira etapa: o sujeito se identifica especularmente com


aquilo que é objeto do desejo de sua mãe. Essa é a etapa fálica primitiva, aquela em
que a metáfora paterna age por si, uma vez que a primazia do falo já está instaurada
no mundo pela existência do símbolo do discurso e da lei. [...] Para agradar à mãe, se
vocês me permitem andar depressa e empregar palavras figuradas, é necessário e
suficiente ser o falo. (LACAN, 1957-58/1999, p.198).

Faria (2014) assinala que o primeiro tempo possui a característica de ser um tempo de
“suspensão” não apenas da articulação do falo como elemento simbólico que ordena o campo
da linguagem para a criança, mas igualmente da entrada do pai, que ainda não está para a
criança, mas que já está em potência de forma velada no Outro materno.

Lacan (1949/1998c) formula no primeiro tempo lógico o que ele chamou de “o estádio
do espelho” como formador da função do eu, no qual ele destaca que:

A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na
impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse
estágio de infans parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz
simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na
dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no
universal, sua função de sujeito. (LACAN, 1949/1998c, p.97).

Quinet (2006) afirma que a criança é identificada ao objeto de desejo da mãe. “Essa
construção lógica e possível pela equivalência simbólica proposta por Freud, bebê=falo, que
permite colocar a criança em posição de identificação com o falo materno.” (QUINET, 2006,
p.09).

Lacan (1955-56/1998e), na abordagem à questão do falo, nos diz que:

Essa função imaginária do falo, portanto, Freud a desvelou como pivô do processo
simbólico que arremata, em ambos os sexos, o questionamento do sexo pelo complexo
de castração. [...] Essa é, com efeito, na economia subjetiva, tal como a vemos
comandada pelo inconsciente, uma significação que só é evocada pelo que chamamos
de metáfora, precisamente a metáfora paterna. (LACAN, 1955-56/1998e, p. 561).

Nesse cenário, o pai não se faz presença efetiva para a criança, mas se faz presente no
psiquismo da mãe, tal como é a representação que esta tem do seu próprio pai. De acordo com
Faria (2014), a questão do Édipo em Lacan pode ser pensada em como a função paterna é
transmitida à criança. Nesse sentido, o valor que o complexo de Édipo tem é o da transmissão.
A transmissão de um nome ― o do pai ― que se faz pelas vias do desejo materno.
51

No segundo tempo do Édipo, Lacan situa a saída da criança da posição de falo materno,
ao assumir a castração paterna, ou seja, a alusão à função do pai. Assim, a incidência da
castração na criança depende de sua incidência enquanto falta no Outro materno.

Quinet (2006) afirma que, no segundo tempo lógico do Édipo, dá-se a simbolização.
Lacan nos indica que o fato de poder representar a mãe não só pelo objeto carretel, mas por
fonemas, denuncia sua simbolização pela criança. A enunciação de um par de fonemas ― fort
(longe) e da (aqui) ― marca a entrada da criança na linguagem, no mundo simbólico. A mãe,
podendo ser simbolizada por uma palavra, passa de um estatuto de objeto primordial ao de
signo. A relação da criança com a mãe deixa de ser imediata, pois há uma mediação simbólica
pela linguagem.

Lacan, no Seminário 5 (1957-58/1999), ressalta que:

Mas há de fato uma privação, uma vez que toda privação real exige a simbolização.
Assim, é no plano da privação da mãe que, num dado momento da evolução do Édipo,
coloca-se para o sujeito a questão de aceitar, de registrar, de simbolizar, ele mesmo,
de dar valor de significação a essa privação da qual a mãe revela-se o objeto. Essa
privação, o sujeito infantil a assume ou não, aceita ou recusa. Esse ponto é essencial.
Vocês o encontrarão em todas as encruzilhadas a cada vez que sua experiência os
levar a um certo ponto que agora tentamos definir como nodal no Édipo. (LACAN,
1957-58/1999, p.191).

Lacan (1957-58/1999) afirma ainda que “a função do pai no complexo de Édipo é ser
um significante que substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante
materno” (LACAN, 1957-58/1999, p.180). A aceitação, por parte da criança, da castração
paterna, constitui o registro simbólico, o ingresso no triângulo edípico propriamente dito.

Referindo à instauração da metáfora do paterna, Quinet (2006) ressalta que o Nome-do-


Pai corresponde ao que, no discurso da mãe, é evocado, significando para a criança que o Desejo
da Mãe se encontra em outro lugar e que ela, por sua vez, também é submetida a uma lei. O
Nome-do-Pai é o pai enquanto função simbólica, é o pai simbólico, que vem metaforizar o lugar
de ausência da mãe; é o significante que faz a mãe ser simbolizada. A função significante do
Nome-do-Pai inscreve-se no Outro, que até então era, para a criança, ocupada inteiramente pela
mãe.

No terceiro tempo, Lacan (1957-58/1999) define o Édipo como um ordenador da


sexualidade humana.

Aqui intervém, portanto, a existência da potência no sentido genital da palavra ―


digamos que o pai é pai potente. [...] o pai se revela como aquele que tem. É a saída
52

do complexo de Édipo. Essa saída é favorável na medida em que a identificação com


o pai é feita nesse terceiro tempo, no qual ele intervém como aquele que tem o falo.
[...] No terceiro tempo, portanto, o pai intervém como real e potente. Esse tempo se
sucede à privação ou à castração que incide sobre a mãe imaginada, no nível do
sujeito, em sua própria posição imaginária, a dela, de dependência. É por intervir
como aquele que tem o falo que o pai é internalizado no sujeito como Ideal de eu, e
que, a partir daí, não nos esqueçamos, o complexo de Édipo declina. (LACAN, 1957-
58/1999, p. 200-201).

Quinet (2006) afirma que a “referência ao Édipo reinstaura a clínica da estrutura do


sujeito equivalente à estrutura de linguagem, na medida em que o Édipo é a armadura
significante mínima que condiciona a entrada do sujeito no mundo simbólico” (QUINET, 2006,
p.07).

Nas diversas maneiras de organização psíquica em relação à castração é possível fazer


distinção da singularidade, esta relacionada a cada sujeito na ordem simbólica com os
significantes marcados de forma estrutural. Tal organização está vinculada às estruturas clínicas
dos sujeitos, ou seja, gira em torno de três estruturas: neurose, psicose e perversão. Assim,
enquanto na neurose, a castração é sobre recalcamento e na perversão a castração é desmentida,
na psicose ela permanece foracluída pelo sujeito.

Para esta pesquisa faz-se objeto de estudo a abordagem, a partir de Lacan, da estrutura
psíquica na psicose, mas não sem antes trazer as contribuições de Freud, de onde Lacan partiu
para o desenrolar de sua teoria embasada no campo do simbólico.

3.2 A estruturação psíquica do sujeito na psicose

Na concepção inicial dada por Freud para se referir à paranoia, a Verwerfung, permitiu-
se vislumbrar a essência da estruturação psíquica na psicose. É a partir dessa referenciação de
Freud que consideramos importante trazer conceituações no que diz respeito à paranoia, onde
seria possível pensar a proposição de base lacaniana no que se refere à foraclusão.

Freud, em seus textos Neurose e psicose (1924/1996d) e Perda da realidade na neurose


(1924/1996b), evidencia o abandono do paradigma do recalque (Verdrängung) e de suas
modalidades de defesa para o modelo elucidativo dos fenômenos psicóticos. O mecanismo
específico da psicose será redefinido como “rejeição” (Verwerfung).
53

Nesses textos, acentua-se a diferença estrutural entre neurose e psicose, apontando uma
outra base conceitual para a especificação da psicose. Lacan, a partir do mecanismo específico
que Freud propõe, a Verwerfung, nos remete à foraclusão do significante do Nome-do-pai. Para
a melhor compreensão desse ponto, utilizamos um dos textos de Freud que levam a elucidar
posteriormente a proposição lacaniana da foraclusão, trazendo ― estruturalmente ― as
diferenças entre neurose e psicose.

Importante ressaltar que é sobre as diferenças estruturais de linguagem que se trata o


conceito e a relação do sujeito com o significante.

Falar da psicose ao invés de as psicoses é acentuar a psicose como uma estrutura


clínica, uma estrutura que se revela no dizer do sujeito e que corresponde a um modo
particular de articulação dos registros do real, simbólico e imaginário. É também
acentuar que na psicose, assim como na neurose, trata-se da estrutura de linguagem,
ou seja, da relação do sujeito com o significante. (QUINET, 2006, p.03-04).

Desse modo, Freud, em seu texto A negativa (Die Verneinung), de 1925, dá pistas a
respeito das formas lógicas e psicológicas da negação, assinalando que:

[...] o conteúdo de uma imagem ou ideia reprimida pode abrir caminho até a
consciência, com a condição de que seja negado. A negativa constitui um modo de
tomar conhecimento do que está reprimido; com efeito, já é uma suspensão da
repressão, embora não, naturalmente, uma aceitação do que está reprimido.
(FREUD,1925/1996a, p.182).

Para Freud (1925/1996a), através da Verneinung há o reconhecimento do inconsciente


por parte do ego expressando-o numa fórmula negativa. “Não há prova mais contundente de
que fomos bem-sucedidos em nosso esforço de revelar o inconsciente, do que o momento em
que o paciente reage a ele com as palavras ‘Não pensei isso’.” (FREUD, 1925/1996a, p.185).
O que nos evidencia o funcionamento do recalque no mecanismo da Verneinung.

É possível perceber os desdobramentos da linguagem ao tomar o referencial de negação


a fim de relacioná-lo ao mecanismo psíquico do recalcamento na castração. A negação é
atribuída por Freud a um juízo que representa o conteúdo recalcado no neurótico e, ao mesmo
tempo, revela uma marca de sua origem.

“A Verneinung é da ordem do discurso, e concerne ao que somos capazes de fazer vir à


tona por uma via articulada.” (LACAN, 1955-56/1998e, p.103).
54

Nessa perspectiva, Freud (1925/1996a) nos situa através de duas operações: a primeira
é a atribuição da afirmação, e a segunda está relacionada à expulsão, nas representações do
interno e do externo.

O estudo do julgamento nos permite, talvez pela primeira vez, uma compreensão
interna (insight) de origem de uma função intelectual a partir da ação recíproca dos
impulsos instintuais primários. Julgar é uma continuação, por toda a extensão das
linhas de conveniência, do processo original através do qual o ego integra coisas a si
ou as expele de si (Ausstossung), de acordo com o princípio do prazer. A polaridade
de julgamento parece corresponder à oposição dos dois grupos de instintos que
supusemos existir. A afirmação (Bejahung) ― como substituto da união ― pertence
a Eros; a negativa ― o sucessor da expulsão ― pertence ao instinto de destruição.
(FREUD, 1925/1996a, p.184, grifo nosso).

Lacan (1955-56/1988) vai nos dizer que a partir da Verneinung, ocorrem fenômenos que
devem provir da passagem de um registro para outro, e que se manifestam, curiosamente, com
o caráter do negado e do desmentido ― é posto como não sendo existente. “Aí está uma
propriedade primeiríssima da linguagem, já que o símbolo é como tal conotação da presença e
da ausência.” (LACAN, 1955-56/1998e, p.184).

A partir da leitura de tais termos em Freud, Lacan os aproxima de forma a determinar


as estruturas clínicas. Assim, para a determinação da estrutura psicótica, o autor parte do termo
conceituado por Freud de Verwerfung para nomeá-lo como Foraclusão.

Em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, Lacan (1955-


56/1998e) referencia o termo Verwerfung como um mecanismo de defesa que consiste na
rejeição da representação de algo insuportável para o sujeito.

A Verwerfung será tida por nós, portanto, como foraclusão do significante.


No ponto em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-pai, pode
pois, responder no Outro um furo e simples furo, o qual, pela carência do
efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação
fálica. (LACAN, 1955-56/1998e, p.564).

É a partir do mecanismo da Verwefung, ou seja, a partir da foraclusão do significante do


Nome-do-Pai, este último nomeado por Lacan ― também chamado de metáfora paterna ―,
que estaria evidenciada a ausência da inscrição psíquica do significante do Nome-do-Pai para
o sujeito psicótico, acarretando a este a não interrupção pela via do eixo imaginário,
funcionamento necessário ao seu ingresso no registro simbólico. Ou seja, de acordo com Lacan,
aquilo que foi foracluído no Simbólico retorna ao Real.
55

Ainda referindo-se ao termo Verwerfung, Lacan ― retomando o comentário de Jean


Hyppolite5 sobre a Verneinung de Freud ― nos diz que:

O processo de que se trata aqui sob o nome de Verwerfung, e que não tenho notícia
de que algum dia tenha sido objeto de um comentário um pouquinho consistente na
literatura analítica, situa-se muito precisamente num dos tempos que Sr. Hyppolite
acaba de destacar para vocês na dialética da Verneinung: tra-ta-se exatamente do que
se opõe à Bejahung primária e constitui como tal aquilo que é expulso. [...] A
Verwerfung, portanto, corta pela raiz qualquer manifestação da ordem simbólica, isto
é, Bejahung que Freud enuncia como o processo primário em que o juízo atributivo
se enraíza, e que não é outra coisa senão a condição primordial para que, do real,
alguma coisa venha se oferecer à revelação do ser, ou, para empregar a linguagem de
Heidegger, seja deixado-ser. (LACAN, 1954/1998d, p.389).

Santos e Oliveira (2012), referindo-se a Verwerfung, pontuam nesse mecanismo


psíquico a articulação da ausência da Bejahung (afirmação primordial) da dimensão da perda.
O que constituiria a estrutura na psicose seria resultado da ausência do mediador simbólico, que
permitiria atravessar os impasses relacionados à diferença sexual, à lógica fálica e à castração,
fenômenos estruturantes do sujeito da enunciação.

Partindo dessas conceituações, segundo as autoras Santos e Oliveira (2012), o


mecanismo da Verwerfung se distingue da Verdrängung na medida em que o recalque é
decorrência da inscrição fálica pela intervenção feita pela metáfora paterna na travessia da crise
edipiana.

A realidade recalcada, como fato de linguagem expressa na cadeia significante


estruturante do inconsciente, ordena-se e se desenrola como discurso do Outro, retornando e
causando as significações do sujeito, isto é, nos sintomas neuróticos e nas demais formações do
inconsciente.

Lacan (1955-56/1998e) diz que a realidade não é o que está em causa para o psicótico,
a questão não é da ordem da realidade. Mas o sujeito tem uma certeza radical de que sim, o é,
dando-nos assim a chave para a definição do fenômeno psicótico.

É a emergência na realidade de uma significação enorme que não se parece com nada
― e isso, na medida em que não se pode ligá-la a nada, já que ela jamais entrou no
sistema da simbolização. (LACAN, 1955-56/1998e, p.105).
Uma exigência da ordem simbólica, por não poder ser integrada no que já foi posto
em jogo no movimento dialético sobre o qual viveu o sujeito, acarreta uma
desagregação em cadeia, uma subtração da trama na tapeçaria, que se chama delírio.
Um delírio não é forçosamente sem relação com um discurso normal, e o sujeito é

5
O Comentário falado sobre a Verneinung de Freud, por Jean Hyppolite, encontra-se nos Escritos (LACAN,
1954/1998d, p.879-902).
56

bem capaz de nos participar, e de se satisfazer com isso, no interior de um mundo em


que toda comunicação não foi rompida. (LACAN, 1955-56/1998e, p.108).

Sendo assim, é ao nível da relação do sujeito com o significante que se dá a estruturação


psíquica e, no caso da psicose, é a Foraclusão que mantém o sujeito fora do discurso, mas não
fora da linguagem. Importante ressaltar a abordagem que faremos no próximo capítulo ―
Capítulo 4 ―, a partir da relação do sujeito fora-do-discurso, mas inserido na linguagem e com
enlaçamento nos discursos através do seu avesso.

Partindo dessa concepção, Quinet (2006) nos aponta a posição estrutural do sujeito
psicótico:

A posição estrutural do sujeito na psicose é a de ser objeto do gozo do Outro, objeto


de uso do Outro, este Outro absoluto que reproduz o primeiro tempo lógico do Édipo,
quando a criança se encontra identificada ao falo imaginário da mãe como objeto de
seu uso pessoal. Trata-se aqui de uma analogia, pois então há Édipo propriamente para
o psicótico. Pelo fato de o primeiro tempo do Édipo constituir o momento anterior à
inauguração da cadeia de significante do sujeito e logicamente antes de que o Outro
seja barrado, pode-se fazer uma analogia desta posição de ser objeto da mãe com a do
sujeito psicótico em relação ao Outro. Não havendo esta operação, a questão do
Desejo da Mãe permanece uma incógnita e volta ao sujeito como gozo enigmático do
Outro, situando-o como seu objeto. (QUINET, 2006, p.17).

3.3 O caso Schreber e a construção do seu delírio: A retomada do laço social

Freud (1911/2010), ao introduzir o sujeito na construção do caso clínico em suas


observações a respeito do caso Schreber, não faz um relato de um ponto de vista enquanto
“homem Schreber”, mas sim, faz observações na construção de um caso clínico.

Quinet (2006) afirma que “é necessária, pois, a construção de um saber sobre a


particularidade de cada caso para fazer prevalecer o sujeito”. Também que “tratá-lo como
sujeito é fazê-lo responsável, sujeito de direito ― o que se opõe a tratá-lo como objeto de
observação e cuidados, caracterizando assim uma questão ética” (QUINET, 2006, p.ix6). O caso
Schreber é uma exemplificação de autoresponsabilização do sujeito ao se apropriar de seu
delírio para escrever suas memórias em sua própria defesa.

6
Conforme paginado na fonte.
57

Traremos aqui uma transcrição presente no Seminário 3, em que Lacan (1955-56/1998e)


discorre sobre a história do caso Schreber:

Após uma curta doença, entre 1884 e 1885, doença mental que consistiu em um delírio
hipocondríaco, Schreber, então no exercício de um cargo bastante importante na
magistratura alemã, sai da casa de saúde do professor Flechsig, curado, parece que de
maneira completa, sem sequela aparente. Ele leva durante cerca de oito anos uma vida
que parece normal, e ele próprio afirma que sua felicidade doméstica só é
ensombrecida pelo desgosto de não ter um filho. Ao cabo desses oito anos, ele é
nomeado presidente do Tribunal de Apelação na cidade de Leipzig. Tendo recebido
antes do período de férias o aviso daquela promoção importantíssima, ele assume suas
funções em outubro. Ele é, parece, como acontece com bastante freqüência em muitas
crises mentais, um pouco ultrapassado por suas funções. Ele é jovem, 51 anos, para
presidir um tribunal de apelação daquela importância, e essa promoção o desnorteou
um pouco. Ele se encontra no meio de pessoas muito mais experientes, mais calejadas
no manejo de processos delicados, e durante um mês ele se estafa, como ele próprio
se exprime, e recomeça a ter problemas ― insônias, fuga de ideias, aparição no seu
pensamento de temas cada vez mais perturbadores que o levam a ter de novo uma
consulta. Mais uma vez o internamento. Em primeiro lugar, na casa de saúde, com o
professor Flechsig, depois, após uma curta estada na casa do Dr. Pierson em Dresden,
na clínica de Sonnenstein, onde ele permanecerá até 1901. É ali que seu delírio vai
passar por toda uma série de fases das quais ele nos dá um relato extremamente seguro,
parece, e extraordinariamente composto, escrito nos últimos meses de seu
internamento. O livro será publicado logo depois de sua saída. Ele não dissimulou,
portanto, a ninguém no momento em que reivindicava o direito de sair, que
participaria sua experiência à humanidade inteira, com o desígnio de transmitir a todos
as revelações capitais que ela comporta. É desse livro publicado em 1903 que Freud
se encarrega em 1909. Ele fala dele nas férias com Ferenczi, e é em dezembro de 1910
que ele redige uma Memória sobre a autobiografia de um caso de paranoia delirante.
(LACAN, 1955-56/1998e, p.36-37).

Partindo da análise realizada por Freud, das Memórias de Schreber7, Lacan referiu-se
ao fenômeno central das “Memórias”, tornando possível discernir a dialética imaginária
envolvida no processo desencadeante do delírio. “O estudo do delírio de Schreber tem o
interesse eminente de nos permitir discernir de maneira desenvolvida a dialética imaginária.
[...] a saber: a dialética do corpo espedaçado em relação ao universo imaginário, que é
subjacente na estrutural normal.” (LACAN, 1955-56/1998e, p.107).

Freud (1911/2010), ao fazer a análise das “Memórias”, apresenta a metáfora delirante


da “Mulher de Deus”, inaugurando o estudo das psicoses a partir da proposta da escuta do
delírio em sua etiologia, o que configura matéria-prima quando trabalhamos com o sujeito
psicótico.

Lacan (1955-56/1988e), abordando a significação do delírio, nos diz: “[...] a dificuldade


de abordar o problema da paranoia resulta precisamente de que ela se situa no plano da

7
A análise das “Memórias”, realizada por Freud, estão em Observações Psicanalíticas sobre um caso de paranoia
relatado em autobiografia (O caso Schreber), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913).
58

compreensão. O fenômeno elementar, irredutível, está aqui no nível da interpretação”


(LACAN, 1955-56/1998e, p.31). A partir disso podemos apreender que na sintaxe própria da
psicose não é o sentido que se compreende, pois o simbólico está além da compreensão.

Quinet (2006) traz os seguintes termos em relação ao delírio:

O trabalho do delírio até a construção da metáfora delirante dirige-se no sentido de


produzir um substituto do falo ― a mulher ― e um substituto da lei ― a Ordem do
Mundo. Graças à metáfora delirante, Schreber pode situar-se como sujeito: Mulher de
Deus e garantir a lei. Esses dois elementos que fundam sua posição de sujeito opõem-
se à ameaça fundamental de ser “deixado largado”: situação que designa a posição
que Deus assinala para Schreber ― a de objeto a em sua vertente de dejeto. Enquanto
objeto mais-de-gozar, ele é a “causa de desejo” de Deus que, por seu intermédio, tem
acesso a um gozo do corpo humano até então desconhecido. Sua posição de sujeito
enquanto “A Mulher” permite-lhe que uma parte de gozo sensual lhe seja atribuída
quando de seu comércio com Deus. (QUINET, 2006, p.42).

Referindo-se ao delírio pensado como uma significação que não se fecha, e também
como uma tentativa de cura, Quinet (2006) o revela como uma construção na tentativa de barrar
o gozo.

O delírio como tentativa de cura, segundo a expressão de Freud, é uma tentativa de


barrar o gozo do campo da realidade, delimitando-o e contendo-o no lugar do Outro.
O delírio localiza assim o gozo no campo do Outro. Schreber se exibe como mulher
diante do espelho do Outro para fazê-lo gozar. Essa configuração demonstra que o
registro do imaginário contém o real do gozo, como podemos inferir através da
jubilação do estádio do espelho. (QUINET, 2006, p.55).

A concepção do estádio do espelho, tal como Lacan (1949) nos introduz, como:

[...] um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação


― e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as
fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de
sua totalidade que chamaremos de ortopédica ― e para a armadura enfim assumida
de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu
desenvolvimento mental. (LACAN, 1949/1998c, p.100).

Lacan (1955-56/1998), referindo-se à estruturação do sujeito tanto na neurose quanto na


psicose, destaca que o inconsciente, sendo estruturado como uma linguagem, dependerá da
articulação que ocorre no campo do Outro.

Ensinamos, seguindo Freud, que o Outro é o lugar da memória que ele descobriu pelo
nome de inconsciente, memória que ele considera como objeto de uma questão que
permanece em aberto, na medida em que condiciona a indestrutibilidade de certos
desejos. A essa questão respondemos com a concepção da cadeia significante, na
59

medida em que, uma vez inaugurada pela simbolização primordial (que o jogo Fort!
Da! evidenciado por Freud na origem do automatismo de repetição torna manifesta),
essa cadeia se desenvolve segundo ligações lógicas cujas influências sobre o que há
por significar, ou seja, o ser do ente, se exerce pelos efeitos de significante descritos
por nós como metáfora e metonímia. (LACAN, 1955-56/1998e, p.581-582).

No esquema L (figura 1), elaborado por Lacan, podemos fazer a leitura da formalização
da relação com esse Outro do sujeito, tanto para o discurso neurótico quanto para o discurso na
psicose.

Figura 1 — Esquema L

Fonte: LACAN, 1955-56/1998e, p.555.

O esquema L é colocado como uma estrutura simplificada do estádio do espelho, que


significa que o estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro
A. Nas relações entre imaginário e simbólico, que são relações sustentadas por A (o Outro
simbólico), a cena do inconsciente reenvia a cena enunciada ao lugar de sujeito S. “O que nele
(inconsciente) se desenrola articula-se como um discurso (o inconsciente é o discurso do Outro),
do qual Freud procurou inicialmente definir a sintaxe relativa aos fragmentos que nos chegam
em momentos privilegiados, sonhos, lapsos, chistes.” (LACAN, 1958/1998a, p.555). “O eu
definido como ‘aquilo que se reflete da forma do sujeito em seus objetos’ nos leva a pensar em
um espelho entre a e a’, como se a’ fosse a reflexão de a, pois o eu é sempre segundo em relação
ao objeto imaginário: que funciona como eu-ideal.” (QUINET, 2006, p.50).

O que se constata na psicose é que, nela, a cena do inconsciente não é invertida, assim
como se apresenta na neurose. Em Schreber (esquema I, figura 3), ele recebe a mensagem direta
de Deus. O inconsciente como discurso do Outro indicaria ao psicótico que a relação
estabelecida por ele é de exterioridade à subjetivação do discurso do Outro. “Essa conjuntura
surge quando o Nome-do-Pai foracluído é chamado em oposição simbólica ao sujeito (S), isto
é, no lugar do Outro (A).” (QUINET. 2006, p.19).
60

No esquema R (figura 2), adquire-se o significado de um desdobramento do esquema


L, acrescido do Édipo e abordando a conceituação do esquema nos três registros ― do
simbólico, do real e do imaginário ―, tal como Lacan propõe verificarmos em De uma questão
preliminar (1958):

Assim é que, considerando os vértices do triângulo simbólico ― I, como ideal do eu,


M, como o significante do objeto primordial, e P, como a posição em A do Nome-do-
Pai ―, podemos apreender como o aprisionamento homológico da significação do
sujeito S sob o significante do falo pode repercutir na sustentação do campo da
realidade, delimitado pelo quadrilátero MimI. Os outros dois vértices, i e m,
representam os dois termos imaginários da relação narcísica, ou seja, o eu e a imagem
especular. (LACAN, 1958/1998a, p.559).

Figura 2 — Esquema R

Fonte: LACAN, 1955-56/1998e, p.559.

De acordo com Quinet (2006):

Ao triângulo S aa’ (esquema L) ele sobrepõe o triângulo mãe resultando o tripé criança
imaginário do esquema R: qp im. Não podemos nos habituar a pensar que a relação
dual exclui o três. Segundo o autor, para Lacan, o par imaginário é sempre no mínimo
três, tal como encontramos no triângulo imaginário do esquema R. [...] Na retroação
do Édipo, o estádio do espelho não se reduz a dois, mas indica a identificação da
criança ao falo imaginário da mãe que, por seu lado a simboliza no falo. É
estruturalmente a essa identificação com o falo que se encontra atrelado, no nível
imaginário, o sujeito da psicose antes do desencadeamento. (QUINET, 2006, p.51).

Nas considerações sobre o processo de estruturação e dos efeitos de estabilização e


solução da psicose em Schreber, Lacan formalizou o esquema I, também chamado de esquema
Schreber.
61

Figura 3 — Esquema I

Fonte: LACAN, 1955-56/1998e, p.578.

Quinet (2006) coloca que, para a restauração imaginária em Schreber, ele responderá de
duas formas diferentes: através da prática transexualista (imagem no espelho em que está
vestido de mulher); e da transformação em mulher, e que a partir de sua relação com Deus se
originarão os “homens schreberianos”.

Estas duas formas constituem o enquadramento da hiância imaginária representada no


esquema I de Lacan. O que recomporá, portanto, o imaginário de Schreber é uma
prática transexualista (i) e “uma fantasia sem mediação” da transformação em mulher
(m). No lado simbólico, em M temos o Criador (Deus) e as criaturas da palavra (uma
série de alucinações). Em I, o lugar da identificação ideal, o lugar vazio da lei.
Schreber situa a “Ordem do Mundo” da qual ele se considera o garante. Com isto há
uma restituição do campo da realidade e uma contenção pela imagem. A
recomposição do eixo a-a’ é o que lhe permite manter uma relação de amizade com
sua mulher, apesar da prática transexualista e da ideia delirante de ser a Mulher de
Deus. (QUINET, 2006, p.55).

Julieta De Battista (2020) acentua que:

[...] o esquema nos mostra como os dois furos em movimento marcam que houve certo
consentimento ao efeito da linguagem, e o resultado é que um novo mundo se
reconstruiu em torno desses furos-redemoinhos. Isso quer dizer que a distorção que
ele manifesta entre as funções aí identificadas pelas letras transpostas do esquema R
só pode ser apreciada em seu uso de retomada dialética. Apenas apontamos aqui, na
dupla curva da hipérbole que ele desenha, exceto pelo deslizamento dessas duas
curvas ao longo de uma das retas diretrizes de sua assíntota, o vínculo tornado
sensível, na dupla assíntota que une o eu delirante ao outro divino, de sua divergência
imaginária no espaço e no tempo com a convergência ideal de sua conjunção. Não
sem destacar que Freud teve a intuição dessa forma, uma vez que ele mesmo
introduziu o termo assíntota a esse respeito. (DE BATTISTA, 2020, p.220).
62

A autora (2020) ressalta que a dinâmica do caso Schreber é lida sob a chave do desejo.
A fantasia de Schreber, expressa na frase “como seria bom ser copulado como uma mulher”, é
o fator desencadeante de sua segunda crise. De Battista (2020) afirma que,

devido à recusa, originou-se o desinvestimento libidinal cuja expressão clínica é o


período hipocondríaco ― experiência de mortificação insuportável do corpo ― do
qual sai com uma primeira tentativa de laço, via persecutoriedade. Essa primeira
tentativa reparadora conserva a marca inicial tanto do desejo quanto da revolta. A
fantasia de desejo se transforma em perseguição e ali encontra expressão: o desejo é
atribuído a Outro. Não é ele quem pensa que seria bom ser uma mulher no ato do
coito, e sim outro que quer abusar dele e tomá-lo como uma “mulherzinha”, ao mesmo
tempo em que escuta vozes que lhe dizem “Miss Schreber ou puta”, e que sustentam
essa primeira tentativa delirante. (DE BATTISTA, 2020, p.183-184).

De Battista (2020) destaca, ainda, que:

Interessa-nos ressaltar que Schreber constrói um Outro que precisa dele e o deseja,
um Outro carente, ao qual ele faz falta. E o faz a partir de um Deus que não
compreende os homens vivos, que lida apenas com mortos: um Deus que não entende
nada do desejo. [...] Um Deus inicial em que Freud encontra a impostura do Pai que
se acha fazedor da lei. Schreber fura esse Deus ao lhe atribuir uma iniciativa que lhe
concerne, constrói um Outro ao qual pode faltar, ainda que não possa perdê-lo. A
fantasia de desejo, inicialmente recusada, se impõe, é aceita. Schreber já não se
defende dela e se transforma em mulher objeto do gozo divino, de um Deus carente,
imperfeito, ao qual faz falta. (DE BATTISTA, 2020, p.185).

Ao final do delírio, a melhora de Schreber se dá com a sua aceitação da erotomania


divina como suplência simbólica. (DE BATTISTA, 2020; QUINET, 2006).

Quinet (2006) levanta a seguinte questão: qual a realidade do sujeito na psicose? Ela
está na dependência da relação do sujeito com o significante e se declina da seguinte forma:
antes do surto, a realidade é sustentada por bengalas imaginárias; quando do surto, há uma
dissolução imaginária e uma catástrofe subjetiva equivalente ao fim do mundo; e, finalmente,
há uma recomposição da realidade com a reconstrução do mundo a partir do trabalho do delírio.
Uma vez restabelecida sua realidade, Schreber reivindica e consegue alta hospitalar e, voltando
ao convívio familiar, retoma o controle sobre sua vida.
63

3.4 Dimensão do Desejo na psicose

Na dimensão psíquica do desejo na psicose, no que se refere à sua prática clínica, De


Battista (2020) levanta pontos que não podem ser ignorados: as concepções negativas e
deficitárias em relação à psicose que, de acordo com a autora,

não é definida por uma circunstância da posição subjetiva do ser na linguagem. E


considerar a psicose como uma falha no imaginário leva a dirigir a cura a partir de
uma posição de um terceiro protético. Caracterizá-la a partir de uma carência de
simbólico deixa o analista no lugar daquele que supostamente garante o discurso do
senso comum, assim como defini-la pela ausência de desejo torna impossível uma
escuta propriamente analítica. (DE BATTISTA, 2020, p.58-59).

Lacan (1958-59/2016) destaca que o desejo não é algo que estaria vinculado a apenas
uma estrutura psíquica, mas a todas as estruturas.

A relação do desejo do sujeito com o desejo do Outro é dramática, na medida em que


o desejo do sujeito tem de se situar perante o desejo do Outro, o qual, no entanto, o
aspira literalmente e o deixa sem recursos. É nesse drama que se constitui uma
estrutura essencial não só da neurose, como de qualquer outra estrutura analiticamente
definida. (LACAN, 1958-59/2016, p.455).

Nos é proposta por Lacan (1958/1998a) uma articulação que estrutura o desejo a partir
de uma manifestação que que está aquém da demanda. Destacamos aqui, em suas palavras:

O desejo é aquilo que se manisfesta no intervalo cavado pela demanda aquém dela
mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia significante, traz à luz a
falta-a-ser com o apelo de receber seu complemento do Outro, se o Outro, lugar da
fala, é também o lugar dessa falta. O que é assim dado ao Outro preencher, e que é
propriamente o que ele não tem, pois também nele o ser falta, é aquilo a que se chama
amor, mas são também o ódio e a ignorância. É também isso, paixões do ser, o que
toda demanda evoca para-além da necessidade que nela se articula, e é disso mesmo
que o sujeito fica tão mais propriamente privado quanto mais a necessidade articulada
na demanda é satisfeita. (LACAN, 1958/1998a, p.633-634).
Com efeito, um dos princípios decorrentes dessas premissas é que: ― se o desejo
efetivamente está no sujeito pela condição, que lhe é imposta pela existência do
discurso, de que ele faça sua necessidade passar pelos desfilamentos do significante;
e ― se, por outro lado, como demos a entender anteriormente, abrindo a dialética da
transferência, é preciso fundar a noção do Outro com maiúscula como sendo o lugar
de manifestação da fala. [...] ― deve-se afirmar que, obra de um animal presa da
linguagem, o desejo do homem é o desejo do Outro. [...] Isso visa a uma função
totalmente diversa daquela da identificação primária anteriormente evocada, pois não
se trata da assunção das insígnias do outro pelo sujeito, mas da situação de o sujeito
ter que encontrar a estrutura constitutiva de seu desejo na mesma hiância aberta pelo
efeito dos significantes naqueles que para ele representam o Outro, na medida em que
sua demanda lhes está sujeita. (LACAN, 1958/1998a, p.634-635).
64

De Battista (2020) destaca a possibilidade de limitação do gozo na psicose partindo do


desejo nos seguintes moldes: “O desejo oferece uma chave de leitura daquilo que poderia
enodar real, simbólico e imaginário sem a referência ao Nome-do-pai e sem que isso se
constitua em uma condição deficitária, e sim apenas diferente.” (DE BATTISTA, 2020, p.193).
E ainda:

Cremos que é possível repensar a limitação do gozo em termos de desejo, e que a


reintrodução desse conceito na clínica analítica das psicoses possibilitaria apreender
como a incidência do desejo opera nas modificações da posição subjetiva que
permitem as passagens das crises às restaurações, na medida em que introduz uma
regulação do gozo pela falta; é um destino pulsional. (DE BATTISTA, 2020, p.198).

A direção de tratamento que constituirá o próximo capítulo será pela via dos discursos.
As formações discursivas que caracterizam os laços sociais são, de acordo com Quinet (2009),
formas de tratamento do real do gozo pelo simbólico. Com o emprego de matemas que
permitam escrever os quatro discursos que estruturam o Outro, ainda que o sujeito psicótico
permaneça fora do laço, a sua direção de tratamento é algo que se revela ― pelo avesso ―
através do discurso do analista.

[...] há também um avesso dos discursos como um todo que é representado pelo avesso
ao laço social estabelecido, que é o psicótico. Ele é esse fora que nos remete ao fato
de que nós estamos presos aos discursos. Nesse sentido ele é livre: livre dos discursos
estabelecidos e seus avessos. Isso significa que há uma impossibilidade real relativa a
seu gozo, real a ponto de fazê-lo entrar na circulação dos laços sociais. (QUINET,
2009, p.52).
65

4 A DIREÇÃO PSICANALÍTICA DE TRATAMENTO NA PSICOSE PELA VIA DOS


DISCURSOS

A Psicanálise inserida no campo público e, mais ainda, no que se refere à inserção no


campo público da saúde ― precisamente na atenção psicossocial ―, traz à direção de
tratamento a possibilidade de lançar a escuta do sujeito em outra perspectiva de sua
singularidade, ou seja, sob a chave do seu desejo e sob a aposta de um lugar na psicose.

O delírio como foi visto no capítulo anterior, ao falarmos do caso Schreber, inscreve-
se como uma tentativa de cura na psicose. O esquema I foi visto como a representação do
processo de estruturação e os efeitos de estabilização e solução da psicose em Schreber, sob a
articulação da sua metáfora delirante, em que se dá a transformação em “A mulher de Deus” e
acontece a reinserção no laço, retomando a sua vida familiar e profissional. O sujeito psicótico
permanece foracluído, mas operar na direção de tratamento é realizável, como veremos na sua
possibilidade pela via discursiva. O que nos dá a dimensão, enquanto analistas, de não recuar
frente à psicose, e é exatamente essa a concepção que a Psicanálise possibilita a partir de Freud
e Lacan.

A partir disso, constitui-se uma questão paradoxal nessa clínica pensar a possibilidade
de uma direção de tratamento na psicose pela via discursiva. Quanto a essa questão, Quinet
(2009) destaca o seguinte:

Se eles estão fora-do-discurso e, portanto, fora do laço social por estrutura, isto não
quer dizer que jamais entrem em relação com um outro sujeito dentro do marco de um
dos discursos do mestre, do universitário, da histérica e do analista? A vida cotidiana
e a clínica com sujeitos psicóticos nos mostram que eles entram numa relação em que
está em jogo o governo, o comando, a dominação, a submissão, a educação, a
burocracia, o fazer desejar, a sedução, a provocação de saber, o psicanalisar.
(QUINET, 2009, p.09).

Pensando a psicanálise como discurso, uma práxis e uma ética que sustenta e dá lugar
efetivo à loucura no laço social, quais são os impasses implícitos ― envolvidos dentro do
contexto institucional da atenção psicossocial ― para realizar a escuta do desejo do sujeito na
psicose? E qual o modo de se fazer operar a possibilidade/impossibilidade dessa escuta na
circulação em rede da atenção psicossocial?

Figueiredo e Alberti (2006) nos dizem que, na relação da psicanálise com a saúde
mental, revela-se como uma aposta.
66

[...] para propor tal relação é preciso apostar nela. É a aposta na causa freudiana, de
que o desejo ― índice da presentificação do sujeito ― é a Fênix que sempre renasce
― por maiores que sejam as dificuldades que encontramos dos discursos, passando
pelas dificuldades do trabalho em equipe, a resistência ao tratamento, os interesses
econômicos que nem sempre levam em conta o sujeito e a reação terapêutica negativa,
para citar somente algumas. Sem a psicanálise não é possível tratar verdadeiramente
dessas dificuldades, razão de não bastar haver sujeitos atravessados pela causa
freudiana para sustentar a relação da psicanálise com a saúde mental. É também
necessário o psicanalista. (FIGUEIREDO; ALBERTI, 2006, p.09).

Assim, a proposta deste capítulo é trazer a construção do caso clínico na perspectiva de


oferecer maneiras alternativas ao enlaçamento da psicose, empreendendo uma tentativa pela via
dos discursos.

4.1 A via discursiva

Ao falarmos de estrutura psíquica no campo dos discursos ― no que tange ao método


clínico, especialmente no contexto institucional onde a formação de uma racionalidade clínica
que opera no coletivo das equipes interdisciplinares e da rede intersetorial ― nos aproximamos
da concepção que fundamenta e é de interesse desta pesquisa, e que parte da lógica ao que
concerne à Psicanálise, ou seja, pela via da clínica do sujeito.

Ainda que a posição do sujeito na psicose seja de exterioridade ao discurso do Outro,


há a possibilidade de estabelecer contato com vários discursos no mundo, isso já foi dito. Assim,
para a escrita do laço e a escuta desse sujeito, cabe trazer aqui a contextualização na
formalização da cadeia significante que produzirá os quatros discursos propostos por Lacan.

No constructo teórico do laço social ― representado na forma de matemas, através de


uma escrita algébrica na qual os conceitos da psicanálise podem ser transmitidos em termos de
estrutura ― já é possível verificarmos quando Lacan proclama, na abertura do Seminário 16
(1968-69/2008): “A essência da teoria psicanalítica é um discurso sem palavras.” (LACAN,
1968-69/2008, p.11). E ressalta ainda: “Mediante o instrumento da linguagem instaura-se um
certo número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode inscrever-se algo bem
mais amplo, que vai bem mais longe do que as enunciações efetivas.” (LACAN, 1969-70/1992,
p.11).

Castro (2009), referindo-se ao Seminário 17 O avesso da psicanálise, nos diz que:


“Diferenciar a lógica, a ética e o modus operandi da psicanálise em relação à universidade e à
67

ciência é uma das lições, dentre muitas, que se pode tirar desse seminário. Para tal, a escrita do
discurso psicanalítico [...] formalizava” (CASTRO, 2009, p.248), ou seja, fornecia uma
formulação lógica para que os psicanalistas pudessem elaborar, de forma estruturada, a clínica
psicanalítica no mundo contemporâneo.

Quinet (2009) salienta que na clínica dos discursos, como propõe Lacan, permite-se um
acréscimo à clínica das estruturas subjetivas ordenadas pelo Édipo, e não a exclusão desta,
tratando-se de investigar não só a relação estrutural do sujeito e suas estratégias para lidar com
o desejo e o gozo do Outro, mas também se e como ele se insere nos discursos, sua relação com
a mestria (ou a autoridade), com o saber, com o outro do laço social, com o mais-de-gozar, ou
seja, os objetos pulsionais excluídos da civilização e sua posição com respeito ao gozo.

Ainda, referindo-se a acepções distintas de campo, o autor nos diz que, mesmo
ocorrendo a bipartição em dois campos no ensino de Lacan, esses não se excluem mutuamente.
“Assim como o âmbito do para além do princípio do prazer não exclui o inconsciente e a
metapsicologia, o campo do gozo com a teoria dos discursos e a nova concepção de sinthoma
não exclui o campo da linguagem com suas leis e a referência ao Nome-do-pai.” (QUINET,
2009, p.24).

Quinet (2009) nos sinaliza em qual campo estamos e nos interessa no que toca aos
discursos. “É um campo operatório cuja área é constituída por constantes e variáveis, sendo
estruturado por conceitos e matemas que lhe são próprios. [...] de acordo com a psicanálise é
uma operação no campo do gozo, ao qual Lacan batizou com o qualitativo de seu nome: o
campo lacaniano.” (QUINET, 2009, p.24).

O campo do gozo, sendo um campo operatório e conceitual estruturado pela linguagem,


em seu aparelhamento dá destaque à constituição dos discursos. Assim, segundo Quinet (2009),
“ao ser aparelhado pelos discursos onde se inscreve o ser falante, o falasser, como o gozo se
manifesta?” (QUINET, 2009, p.27).

Na repetição, como Freud detectara, que é a repetição significante, a qual constitui o


inconsciente como uma rede de saber. O gozo se presentifica como traço unário (S 1),
comemora a irrupção de gozo. Presentifica-se também como saber enquanto meio de
gozo, como mostra a fenomenologia hegeliana do senhor e do escravo, que se
manifesta na clínica do obsessivo. É a repetição do S1, que constitui o S2, como saber
inconsciente ― o que nos permite entrar na consideração de uma epistemologia
erótica. O gozo também se manifesta na entropia produzida pelo funcionamento do
aparelho. Trata-se da perdição do gozo, que é também apreendida como recuperação
68

na mais-valia8de gozo. A perda (entropia) e a produção de gozo própria à repetição


encontram-se representadas no objeto a9denominado como o mais-de-gozar. Se ele é
o elemento causal da linguagem, o caput mortuum do significante, no campo do gozo
ele representa a presença da libido nos discursos definidos como laços sociais.
(QUINET, 2009, p.27).

4.1.1 Elementos estruturantes dos matemas discursivos

A formalização da cadeia significante e o lugar em que o sujeito a ocupa em sua


formalização, ao ser “matematizada”, ilustram que o sujeito se forma a partir da relação entre
o S1 e o S2, sendo que ele origina o próprio S1 e se relaciona com o S2 que virá em seguida, tendo
sua existência de forma retroativa à cadeia.

Lacan (1969-70/1992) questiona como situar essa forma fundamental:

A partir da exterioridade do significante S1, aquele de onde parte nossa definição do


discurso tal como iremos acentuá-la, neste primeiro passo, com um círculo marcado
com a sigla do A, ou seja, o campo do grande Outro. Mas, simplificando, considerando
S1, e, designada pelo signo S2, a bateria dos significantes. Trata-se daqueles que já
estão ali, ao passo que no ponto de origem em que nos colocamos para fixar o que
vem a ser o discurso, o discurso concebido como estatuto do enunciado, S 1, é aquele
que deve ser visto como interveniente. Ele intervém numa bateria significante que não
temos direito algum, jamais, de considerar dispersa, de considerar que já não integra
a rede do que se chama um saber”. (LACAN, 1969-70/1992, p.11).

Quinet (2009) destaca que:

O S2 é a repetição do S1. A repetição, conceito fundamental da psicanálise, é retomada


por Lacan no campo do gozo, a partir de Freud. Trata-se da repetição da primeira
experiência de satisfação: estamos sempre buscando repeti-la e sempre fracassando

8
A mais-valia representa, no sistema capitalista, a desigualdade entre o valor produzido pelo trabalho e o que é
recebido pelo trabalhador, pois este estaria alienado ao seu valor de produção. Lacan recuperou em Marx, e extraiu
o conceito homólogo de mais-de-gozar no contexto da produção dos discursos. O discurso então, seria definido
por uma produção de mais-de-gozar. “O discurso detém os meios de gozar, na medida em que implica o sujeito.
Não haveria nenhuma razão de sujeito, no sentido em que falamos de razão de Estado, se não houvesse, no mercado
do Outro, o correlato de que se estabelece um mais-de-gozar que é captado por alguns. [...] O mais-de-gozar é uma
função da renúncia ao gozo sob o efeito do discurso. É isso que dá lugar ao objeto a. Desde o momento em que o
mercado define como mercadoria um objeto qualquer do trabalho humano, esse objeto carrega em si algo da mais-
valia.” (LACAN, 1968-69/2008, p.18-19).
9
O objeto a conceituado por Lacan como objeto causa do desejo e inassimilável como objeto concreto,
estabelecerá, segundo Quinet (2009), a principal identificação do sujeito com um traço unário vindo do Outro, o
S1, o significante-mestre, matriz da identificação simbólica, e o S2, o significante binário, como um outro
significante para o qual o sujeito está representado. O sujeito estaria entre estes dois significantes. Segundo o
mesmo autor, a conceitualização do objeto a é o que permite a Lacan dar esse passo a mais e propor um novo
campo estruturado por aparelhos de linguagem que determinam as relações entre as pessoas. Pois é, o objeto a que
tetraedra o campo do gozo em quatro discursos. Ele é o matema tetraédico desses discursos. (QUINET, 2009,
p.27).
69

em alcançá-la, sempre rateando, pois o gozo pleno é impossível. Quando S1 se repete


não é mais o S1, e sim o S2. Eis o paradoxo da repetição. É uma repetição de gozo,
mas que implica o reencontro com a falta de gozo. Essa repetição que não cessa forma
a própria rede de significantes ― eis o saber inconsciente (S2), o qual se constitui,
portanto, através da repetição do S1 comemorando o gozo. (QUINET, 2009, p.31).

Assim, na cadeia significante visualizamos o lugar que o sujeito dividido ocupa na


própria relação entre o S1 e o S2. Percebemos, então a relação de circularidade que estrutura a
cadeia.

[...] o que se passa em virtude da relação fundamental, aquela que defini como sendo
a de um significante com um outro significante. Donde resulta a emergência disso que
chamamos sujeito ― em virtude do significante que, no caso, funciona como
representando esse sujeito junto a um outro significante. (LACAN, 1969-70/1992,
p.11).

Figura 4 — O sujeito na cadeia significante

Fonte: Elaboração própria.

Já a composição das trocas discursivas é fundamentada em quatro lugares, e tais trocas


são operadas de tal maneira que se mantêm uma ordem no sentido dos mesmos lugares, mas
com a troca de elementos em circularidade: agente ou (semblante), Outro/gozo, verdade e
produção.

Figura 5 — Estrutura de um discurso

Fonte: Elaboração própria.


70

No campo do gozo, os elementos que compõem os discursos ― S1, S2 e objeto a ―


são, portanto, modalidades de gozo, e o sujeito (S) é resposta do real. O significante
enquanto tal não é mais o significante que barra o gozo como Nome-do-Pai no campo
da linguagem. No campo do gozo, o Um do significante (S1) só existe como o
significante do transbordamento, significante do excesso e do fracasso, que, apesar de
mestre, não o domina. [...] O campo do gozo, com seus discursos, é a resposta de
Lacan ao mal-estar na civilização apontado por Freud, que afirma ser a relação entre
as pessoas a maior fonte de sofrimento humano. O mal-estar é representado, nos
discursos, por esse elemento heterogêneo, o objeto a, que significa a parte excluída da
linguagem e aquilo a que a civilização exige do homem renunciar, ou seja, a pulsão,
redefinida neste campo como “a deriva do gozo”. (QUINET, 2009, p.28).

Castro (2009) destaca que:

Na escrita desses discursos, Lacan lança mão de quatro letras (a: o objeto a, mais-de-
gozar, condensador de gozo e causa-do-desejo; $: o sujeito barrado pelo significante;
S1: o significante mestre, o sê-lo, o significante pelo qual os outros significantes são
ordenados; S2: o saber constituído enquanto cadeia significante), distribuídas em
quatro lugares, divididos dois a dois ao modo de quadrantes e separados por duas
barras ― a barra ( / ) aqui cumpre a função de ser o sinal que estabelece a resistência
à significação, ou seja, a operação do recalcamento. Para especificar cada um desses
lugares de apreensão do efeito significante pelo sujeito (não nos esqueçamos que se
trata de um esquema calcado na lógica quadripartito). (CASTRO, 2009, p.249).

Lacan (1969-70/2008) ressalta que: “Eis um exemplo, se parece legítimo que a cadeia,
a sucessão de letras dessa álgebra, não pode ser desarrumada, ao nos dedicarmos à operação de
quarto de giro, iremos obter quatro estruturas, não mais, das quais a primeira lhes mostra de
algum modo o ponto de partida.” (LACAN, 1969-70/2008, p.12). E constrói os quatro
discursos, dando a cada um deles a seguinte nomeação10: o Discurso do mestre; Discurso
universitário; Discurso da histérica; e o Discurso do analista.

As setas dão a orientação de sentido para o quarto de giro circular na cadeia significante.
Tendo, para isso, um operador de progressão (sentido horário) e de regressão (sentido anti-
horário), permitindo a circulação nos lugares que estruturam os discursos. A impotência é
representada pelas duas flechas que se cruzam entre os discursos, impedindo que a produção
encontre a verdade.

10
Os quatro elementos são formulados a partir de um conjunto ordenado, onde cada estrutura é mantida em sua
composição. Porém, a produção dos quatros discursos é dada pelo ¼ de giro entre os matemas, tanto no sentido
anti-horário, quanto no sentido horário, ocorrendo daí uma permutação cíclica.
71

Figura 6 — Matemas dos discursos

Fonte: Elaboração própria.

Partindo da representação dos matemas dos discursos, Quinet (2009) coloca que:

No discurso do mestre (S1/S), o governo parece se instaurar a partir de leis, projetos


de sociedades, programas etc. representados no matema (sua fórmula) pelo S 1. Mas,
na verdade, o que é escamoteado é que há sempre sujeitos (S) sustentando esse
governar, essa dominação que é imposta ou aplicada aos outros sujeitos que devem
cumprir as ordens; eles devem saber fazer, saber obedecer e saber produzir. No
discurso universitário, a educação se dá pela aplicação do saber (S2/S1) como saber
universal, sustentado, porém, por autores, inventores ou descobridores (S 1) desse
saber. No discurso histérico (S/a), se o agente do discurso é o sujeito do inconsciente
com seu sintoma e sua divisão (S), a verdade na qual esse discurso se embasa é o
objeto a, mais-de-gozar (a) escondido do qual o sujeito se esmera em ser o porta-
bandeira para atiçar o mestre. E no discurso do analista (a/S 2), o analista como
semblante de objeto a se sustenta em seu ato na verdade do saber sobre a castração, a
falta e a inexistência da relação sexual. (QUINET, 2009, p.33).
72

Assim, a partir do discurso do mestre os outros discursos são produzidos, podendo o S1


alocar-se em várias posições na cadeia significante.

O sujeito é aquilo que um significante representa para outro significante. Nesse


discurso, o significante (S1) representa o sujeito para a rede de todos os outros
significantes (S2), ou seja, para a rede de saber; no discurso da histérica, o sujeito é o
que representa o gozo para o mestre; no discurso universitário, o saber é que vem
representar o autor para o estudante, o aluno; e no discurso do analista, é o analista
como objeto a que representa o saber para o analisante. (QUINET, 2009, p.33).

Além disso, os discursos nos permitem verificar qual o elemento dominante no laço
social. O que é, segundo Quinet (2009), o determinante do agir do sujeito, ou seja, ele age de
acordo com a dominante do discurso em que está inserido.

Lacan vai formalizar com os discursos esse modo de ação da dominante: o mestre
(S1), o saber (S2), o sujeito (S) ou o objeto (a). Ao especificar a dominante de cada
discurso Lacan a designa muito precisamente. No discurso do mestre a dominante é a
lei, no da histérica é o sintoma, no do universitário é o saber e no do analista, o mais-
de-gozar. Eis o que confere a marca de cada discurso, agindo de modo imperativo,
irrecusável, exercendo diretamente a sua influência sobre todos os outros elementos.
Assim, o que caracteriza a ação de governar é a lei, a do educar, o saber; no caso da
histeria, ou seja, do fazer desejar, é a divisão do sujeito expressa no sintoma, e o que
vai dominar o discurso do analista é o próprio analista com seu desejo, pois é ele que
dirige o tratamento. (QUINET, 2009, p.34-35).

4.1.2 Implicações no contexto institucional da atenção psicossocial

Um dado importante levantado por Kyrillos Neto (2007) é que “o mal-estar na


instituição é sustentado pelo discurso do mestre, justamente o discurso que repousa sobre o
saber completo e da explicação definitiva” (KYRILLOS NETO, 2007, p.125). “Ao impedir a
produção de saber, o discurso do mestre incorpora a função alienadora do significante, à qual o
sujeito está assujeitado. O mestre não se preocupa com o saber, contanto que tudo funcione e
seu poder seja mantido.” (KYRILLOS NETO, 2007, p.124).

Quinet (2009) salienta que:

O mal-estar da civilização científica se apresenta hoje como doenças


predominantemente oriundas do discurso do capitalista, que é a nova e hegemônica
modalidade do discurso do mestre. São essas doenças que o psicanalista é chamado a
tratar. O discurso capitalista, efetivamente, não promove o laço social entre os seres
humanos: ele propõe ao sujeito a relação com um gadget, um objeto de consumo curto
e rápido ($ ← a). (QUINET, 2009, p.37).
73

No discurso do mestre, o objeto a ― causa de desejo ― entra no lugar da produção


como o excedente. Assim, através da exploração do desejo, o discurso capitalista coloca um
produto como resposta à demanda existencial do sujeito. O S1, passa a ser o significante-
mercantilizado que o capitalismo produz para cessar a angústia, como se fosse possível uma
resposta única para o sujeito. Em função da mais-valia, a produção de mercadorias insere os
sujeitos em um curto-circuito do mais-de-gozar, tornando tudo um objeto de consumo.

Na contramão dessa lógica de aparato mercantilista, Quinet (2009) nos faz um


questionamento importante:

Como respeitar a singularidade do sujeito e ao mesmo tempo responsabilizá-lo e fazê-


lo incluir-se na sociedade? E isto sem obedecer aos ideais de produtividade e utilidade
próprios à lógica do mercado de trabalho e ao discurso capitalista? Em outros termos:
como propiciar a inclusão do psicótico no campo social sem tentar adaptá-lo a um
sistema que impõe que todos marchem com o mesmo passo sob o apito do capital?
(QUINET, 2009, p.48).

Quinet (2009) nos dá indícios na direção da inclusão do sujeito foracluído. Segundo o


autor, ao incluir o sintoma no diagnóstico devemos abranger na clínica dos transtornos o
sintoma que remete à estrutura e ao sujeito, além de incluir o próprio sujeito no tratamento.

A histerização do discurso se apresenta como uma possibilidade. Esse discurso é o


responsável pela utilização do saber como uma forma de tratamento do mal-estar na civilização.
“A histeria como produção de saber provocado pelo sujeito é o que fez Lacan encontrar a
afinidade da ciência com o discurso da histérica ― que é o melhor que se pode esperar da
ciência.” (QUINET, 2009, p.37).

Um outro ponto crucial é a inclusão da foraclusão. Inclusão tal que a atesta como uma
diferença radical no seio da sociedade. Quinet (2009) ainda nos faz um alerta a respeito da
inclusão da foraclusão do Nome-do-Pai, indicando ao trabalhador de saúde que este deve
precaver-se em relação, tanto ao seu furor sanandi, quanto ao seu furor incluendi. “Isto significa
não exigir dele a todo custo aquilo que é valor fálico em nossa ordem social (trabalho, dinheiro,
sucesso, competição, competência etc.), e sim deixá-lo fazer sintoma sem Nome-do-Pai, um
sintoma que pode ir do delírio à arte, passando por todas as artimanhas.” (QUINET, 2009, p.50).
74

4.1.3 A clínica enquanto discurso: A construção do caso

No que se refere à construção do caso clínico, Viganò (2012) nos propõe uma primeira
abordagem, tomando a etimologia das palavras “caso” e “clínica”.

“Caso” vem do latim “cadere”, cair para baixo, ir para fora de uma regulação
simbólica; encontro direto com o real, com aquilo que não é dizível, portanto,
impossível de ser suportado. A palavra “clínica” vem do latim “klinein” e quer dizer
leito. A clínica é o ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente, com
a presença do sujeito. É um ensino que não é teórico, mas que se dá a partir do
particular; não é a partir do universal do saber, mas do particular do sujeito.
(VIGANÒ, 2012, p.116).

Viganò (2012) propôs quatro tempos distintos para a contextualização da construção do


caso clínico, que traremos aqui: alternativa entre terapia e reabilitação; caso clínico e caso
social; a construção como reverso da mercantilização da saúde; o trabalho em equipe como um
debate democrático; e autoridade clínica.

O mesmo autor fala de duas orientações analíticas, determinando dois tipos de


instituições psiquiátricas, onde uma delas estaria fundamentada na concepção da transferência
enquanto repetição e a posição do analista é colocada como o lugar do Outro do saber.

[...] tem como resultado a transformação do momento clínico em um instrumento


terapêutico, estruturado conforme uma hierarquia de saberes e funções. A um é
confiada a interpretação, a outro a intervenção pedagógica, a outro a assistência social;
tudo compondo um projeto terapêutico global. Todos os elementos do coletivo ― por
exemplo, desde as disposições práticas que têm a ver com saídas, as altas, até as
atividades ― são investidos de uma qualidade pedagógico-interpretativa que esvazia
qualquer possibilidade do sujeito fazer as seguintes perguntas: O que eu faço aqui?
O que torna a minha vida insuportável? O que posso fazer para encontrar uma
solução? (VIGANÒ, 2012, p.119, grifo do autor).

Nesse tipo de clínica institucional encontra-se uma orientação que vai tentar responder
a algum tipo de pacto que o laço social provoca. Casos de adolescentes, por exemplo, na saúde
mental são constantemente alvos de imagens de fragilidade, demandas sociais e objetalização,
sendo então comum a instrumentalização no âmbito público, a opção por soluções que não
consideram a escuta do sujeito. Podendo ainda fazer uma escuta a queixas que teria um viés de
amparo social através de proposições curativas, e levando, muitas vezes, a situações
cronificadas.
75

É nesse sentido que a psicoterapia põe relevo ao imperativo do significante-mestre,


enquanto a psicanálise nos diz sobre o seu avesso. A ordem médica está inscrita no campo do
discurso do mestre. Retomemos aqui que o significante-mestre está sobre o outro tomado
enquanto saber: S1 → S2. O mestre surge uno, completo, emanando sugestividades dos
significantes que ele profere.

No caso da segunda orientação analítica, a que nos interessa nesta pesquisa, Viganò
(2012) vai nos dizer para manter o vazio de saber, o que quer dizer, em suas palavras:

[...] de um vazio que pode permitir a passagem de qualquer um à posição de trabalho


de um analisante. De fato, esse vazio vai permitir o aparecimento daquelas perguntas.
Nesse caso, uma orientação analítica, em vez de sufocar o apelo à interpretação (o
qual é perfeitamente natural no sintoma analítico) como um programa terapêutico,
consiste, apenas em deixar ser o tempo clínico da demanda do sujeito a condição
preliminar ao começo de seu trabalho. Em síntese, trata-se de não colocar a pergunta:
O que podemos fazer por ele?, mas outra pergunta: O que ele vai fazer para sair
daqui? (VIGANÒ, 2012, p.120, grifo do autor).

Por fim, o autor propôs um terceiro ponto, que seria a construção do caso dentro dessa
orientação analítica. Viganò (2012) nos fala dessa construção como algo que deve restaurar a
topologia de um “furo originário [...] do furo da falta que causa o desejo” (VIGANÒ, 2012,
p.120).

A construção do caso clínico, segundo o mesmo autor, implicaria a existência de três


termos fundamentais, sendo eles a transferência, o sintoma e a demanda. Em outro momento, a
construção é a construção do ato.

O ato é um ponto de não retorno; é, pois, sempre alguma coisa eficaz. Pode-se pensar
que, quando se tenta fazer a exigência de falar de um tratamento, é porque se teme
que o êxito daquele ato seja infeliz. O êxito feliz de um ato é aquele por meio do qual
o sujeito no ato consegue dizer bem. Aprende a falar, se preferirem. É esse ato que se
trata de construir. [...] Para Freud, construir o caso era também construir a teoria. Em
outros termos, a construção de um caso é o discurso mesmo do psicanalista, que parte
sempre do particular. (VIGANÒ, 2012, p.122).
76

Relembremos, com a Figura 7 a seguir, o discurso do analista proposto por Lacan (1969-
70):

Figura 7 — Discurso do analista

Fonte: Elaboração própria.

O discurso analítico seria o único que se estrutura como um ato, ou seja, é a escrita de
uma ruptura de laço, para que aí se invente um outro tipo de laço.

No discurso do analista, o saber é colocado sob a barra, S 2, embaixo, à esquerda, no


lugar da verdade, sem que possa haver nenhuma conexão ― nem metafórica, nem
metonímica ― com o significante mestre da instituição, o S 1, que está embaixo, à
direita. Essa escritura do discurso do analista é o que constitui a construção do caso
clínico, portanto, o discurso do analista não se apresenta somente no momento em que
se inicia uma análise, mas é uma forma de trabalhar, que pode também ser reproduzida
na instituição [...] Logo, a posição do analista na instituição é aquela de construir o
caso clínico. (VIGANÒ, 2012, p.123).

Outro ponto importante proposto por Viganò (2012) é a construção de caso enquanto
trabalho de equipe dentro do âmbito da saúde mental. Nesse eixo, o significante-mestre é
substituído por um debate democrático. A equipe multiprofissional composta pela assistência,
psicologia, enfermagem, psiquiatria, fonoaudiologia, educadores e ― não poderíamos deixar
de incluir ― a rede intersetorial, todos somos atravessados pelo discurso do mestre. Mas na
proposta de construção de caso clínico, o autor se vale do que ele chamou de “autoridade
clínica”.

A construção do caso, dentro do grupo, é um trabalho que tende a trazer à luz a relação
do sujeito com o seu Outro, portanto tende a construir o diagnóstico do discurso e não
do sujeito. [...] Trata-se de um novo percurso profissional que, a partir do coletivo,
tem a função motor, para lançar novamente o desejo de cada membro da equipe,
evitando, inclusive, a segregação ― que, desta vez, é das profissões ― em relação
àquilo que, juridicamente, estamos autorizados a fazer. (VIGANÒ, 2012, p.124-
125;126).
77

5 VINHETAS CLÍNICAS

Este capítulo traz alguns fragmentos da articulação clínica e teórica a respeito do que
está em pauta nos espaços institucionais de serviços substitutivos da atenção psicossocial,
através de desdobramentos decorrentes da construção do caso clínico em uma equipe multi e
transdisciplinar.

O objetivo da apresentação de tais fragmentos11 é, também, retratar o atual momento em


que a RAPS expõe um esvaziamento significativo quanto à inserção de psicanalistas12,
sugerindo uma diminuição da escuta do desejo do sujeito e levando muitas vezes à cronicidade
em seu modo de funcionamento e à repetição de sintoma.

O Centro de Atenção Psicossocial infantojuvenil, ao qual esta pesquisa se volta, trata-


se de uma instituição pública de saúde que acolhe crianças e adolescentes com hipóteses
diagnósticas psíquicas diversas. Está localizado em uma região com alta vulnerabilidade social,
mas, mediante a atribuição de atendimento e acompanhamento realizado em conjunto com a
rede de saúde, propõe-se a atender a intensa demanda que se apresenta. Fazem parte de sua
composição diversas categorias profissionais como: enfermagem, psicologia, assistência social,
psiquiatria, terapia ocupacional, fonoaudiologia.

As propostas de trabalho versavam em torno do acolhimento através da demanda


espontânea de usuários13, ou por encaminhamentos de outros setores da rede de saúde, ou,
ainda, por outras secretarias. Constitui-se como prática da tradição clínica do SUS promover a
reabilitação onde há a oferta de oficinas terapêuticas, grupos operativos direcionados ao
acolhimento de demandas familiares, atendimentos individuais, visitas domiciliares.

Assim, diante de tal proposta, como estabelecer uma clínica no SUS ― tal como nos diz
Endo (2017) ― que dê embasamento para a escuta do sujeito? Uma vez que esta escuta se
caracteriza como um contraponto em face às propostas terapêuticas ofertadas que trazem em
sua essência a atmosfera do campo institucional, onde há cenários impregnados pela implicação

11
Os casos clínicos abordados referem-se à experiência clínica institucional em CAPS Infantojuvenil da
pesquisadora em um momento anterior à atualidade pandêmica que vivenciamos nos anos 2020-2021.
12
À reabilitação de usuários com transtorno do espectro autista, preconiza-se atualmente uma linha de cuidado
amplamente direcionada à Análise do Comportamento Aplicada, conhecida como ABA (Applied Behavioral
Analysis).
13
Os Caps têm como premissa ser de portas-abertas, ou seja, há o acolhimento da demanda espontânea feita pelo
usuário e não somente o atendimento a demandas advindas de outros equipamentos de saúde e/ou serviços de
diversos setores, protocolo a ser seguido a partir das portarias ministeriais sobre os CAPS.
78

da reabilitação psicossocial e, majoritariamente, prima-se pela proposição e cumprimento de


protocolos pré-estabelecidos pelas portarias ministeriais.

Importante observar o que Endo (2017) nos diz sobre o cotidiano das práticas, em que
se estabelecem pólos em contradição com a prática no âmbito da esfera de políticas públicas e
da clínica.

Esse contraditório pode ser visto nos ditames da Coordenação Geral de Saúde Mental
do Ministério da Saúde, local em que se produzem as diretrizes de atendimentos,
inseridos numa determinada política de saúde mental. Nesta construção do aparato
técnico para as ações de saúde mental, fica evidente a tentativa de uma aliança
harmônica entre a clínica e a esfera política. (ENDO, 2017, p.60).

Em que deve se basear a direção de tratamento do paciente 14, e onde entra o sujeito na
construção do seu saber no âmbito institucional? Isso bem poderia refletir a saída de cena da
clínica convencional, em que há a primazia do modelo médico. Tal modelo, conforme foi dito,
supõe prerrogativas protocolares pela de via de oficinas e atendimentos psicoterápicos, mas
também é direcionado pelas condutas administrativas e burocráticas.

Endo (2017) ressalta ainda que:

[...] a dimensão política pressupõe um norte a ser seguido, denominado Atenção à


Saúde Integral, capaz de abarcar o usuário do SUS em todas as suas necessidades. [...]
O que se pretende é um sujeito integral e ideal, aquele com nome e sobrenome,
inserido em sua família, em sua comunidade, ocupando os lugares de direito do seu
território, resgatando estudo, trabalho, lazer, cultura. Pressupõe-se um locus de
ocupação ou experiências de pertencimento, que se mostram na prática clínica,
principalmente com as pessoas com transtornos graves, distantes da “necessidade” do
indivíduo. Ou seja, o SUS almeja alcançar no tratamento metas como o resgate da
família, do trabalho, da educação e da moradia; no entanto, na clínica é preciso a
escuta singular, que pode ser, antes de mais nada, acolher o paciente em sua angústia.
(ENDO, 2017, p.61).

O que não deixa de evidenciar que a intersecção institucional tem suas especificidades,
principalmente em se tratando das vertentes que se articulam entre si ― ou seja, o viés político,
clínico e institucional com cunho burocrático ―, por estarem vinculadas a um cotidiano
sucateado, que pode não ser suficientemente capaz de prover avanços necessários no setor.

A partir deste entendimento, um trabalho clínico no cerne de uma instituição pública


está, em menor ou maior grau, atravessado por dispositivos institucionais, que podem
ser transformados em fundamentos burocráticos por excelência. Quando essa

14
Ao longo do texto, para referir-se ao sujeito, por vezes, adota-se o termo “paciente”, algo que nesse contexto
não assume a conotação de passividade do sujeito, mas sim de um usuário do dispositivo de saúde do SUS.
79

configuração institucional se apresenta e, diante da possibilidade de se produzir


inibições e/ou angústias que inviabilizem um trabalho de escuta do sujeito em
sofrimento psíquico, faz-se necessário, entre outros dispositivos, uma reflexão acerca
da burocracia e seu efeito no trabalho clínico. (OLIVEIRA; VERONESE; PALMA,
2009, p.1346).

Chama a atenção o destaque que as autoras dão para o discurso institucional em que é
verificado um determinado aspecto do cotidiano de trabalho dentro dessas mesmas instituições:
uma manifestação burocrática ― face do discurso de mestria ― e suas modalidades de
perversidade. Revela-se, assim, a atuação de um dispositivo cruel, expresso em configurações
discursivas em que se fazem protagonistas os efeitos burocráticos conferidos a tais discursos
institucionais.

Fingermann (2016, p.50) ressalta que:

esse discurso, ou laço, opera com a transferência de um saber a respeito do sujeito $


subposto, do S1 até o S2, ou seja, a partir do significante primeiro que representa o
sujeito, para um outro suposto completá-lo. O objeto, aquilo que nessa operação não
se subjetiva, permanece aqui na posição de produto, de dejeto. (FINGERMANN,
2016, p.50).
[...] ou seja, configurações discursivas em que estão em causa a Verleugnung
(desautarização), manisfestas em derivações enunciativas do: “Eu sei, mas mesmo
assim...” É neste ponto que estas reflexões se circunscrevem: nas incidências da
Verleugnung, manifestadas discursivamente. (OLIVEIRA; VERONESE; PALMA,
2009, p.1346-1347, grifo nosso).

Importante salientar que, no caso da saúde mental, o meio de barrar o gozo do sujeito
psicótico é através da criação de um efeito de barra à própria instituição, condição essencial
para que haja a escuta desse sujeito, onde o estar atento à construção do saber advém da
experiência clínica que é dada caso a caso.

Lacan (1969-70/1992) coloca, a respeito do “S1, significante-mestre que constitui o


segredo do saber em sua situação universitária, é extremamente tentador colar-se a ele. Ali,
fica-se preso”. (LACAN, 1969-70/1992, p.195).

O exercício da clínica no Sistema Único de Saúde (SUS), como ressalta Endo (2017),
“demarca um cenário a ser investigado, o que não significa estabelecer uma especificidade desta
prática, mas observação, reflexão e análise do clínico-pesquisador sobre seus afetos e o páthos
presente nas narrativas construídas sobre os atendimentos neste contexto”. (ENDO, 2017,
p.125).
80

Ainda sobre este ponto específico é importante observar que:

O olhar médico não encontra o doente, mas a sua doença, e em seu corpo não lê uma
biografia, mas uma patologia na qual a subjetividade do paciente desaparece atrás da
objetividade dos sinais sintomáticos que não remetem a um ambiente ou a um modo
de viver ou a uma série de hábitos adquiridos, mas remetem a um quadro clínico onde
as diferenças individuais que afetam a evolução da doença desaparecem naquela
gramática de sintomas, com a qual o médico classifica a entidade mórbida como o
botânico classifica as plantas. (ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001, p.92-93).

Pode-se admitir a universalidade formal que o SUS assume como uma de suas diretrizes,
mas o efeito do “um a um” em sua singularidade não deve ser perdido de vista. O sujeito vem
à análise ― ou a instituição solicita seu atendimento ― sob uma demanda de sentido
presentificado em seu sintoma, cabendo, através do discurso do analista, destacar que:

O ato analítico, com a não resposta à demanda de sentido que o sujeito traz com seu
sintoma, abre uma brecha no Outro, e a questão do desejo aparece no âmbito da pulsão
relacionado aos significantes da demanda que vão ser decifrados na história do sujeito.
A pulsão é um código pessoal do sujeito na medida de sua alienação ao Outro. A
pulsão está articulada com o Outro e se apresenta para o sujeito como uma alteridade
que toma a forma de uma demanda do Outro, demanda imperativa superegóica. Pois
a demanda do Outro é articulada a uma figura do Supereu, e o sujeito é ameaçado por
ela ― ele vive perigosamente a pulsão ― em virtude de sua consequência ser a
castração. É devido à pulsão, com sua exigência de satisfação, que o Outro demanda
sua castração. (QUINET, 2003, p.103).

O sintoma, pelo viés psicanalítico, é reconhecido através da direção de tratamento. Na


Psicanálise, o sintoma não é considerado como o é na clínica médica, em que o significante
sintoma adquire sempre o sentido patológico, mas sim como uma manifestação subjetiva do
sujeito do inconsciente.

Cabe enfatizar que o significante sintoma-doença é recorrente no âmbito da saúde, pois


o olhar médico identifica o sujeito em uma determinada classificação amparada pelos manuais
diagnósticos, assimilando como algo que o constitui e ficando, por vezes, circunscrito a
aspectos sintomáticos para a nomeação de um transtorno psiquiátrico.

Para que haja essa relação entre o sintoma e a doença, ou seja, o estabelecimento de
relação do significante com o significado, é necessária a intervenção de um ato que
será efetuado pelo olhar médico. Este transforma o sintoma em um significante que
significa imediatamente a doença como sua verdade, fazendo assim do sintoma um
sinal, um signo mórbido. [...] O ato médico constitui o saber através do olhar clínico,
da composição do quadro clínico em sua minuciosa descrição, fazendo do visível o
enunciado da doença. Ele aproxima assim o ver e o saber, o visível e o enunciável,
tendo como resultado a produção da verdade da patologia. (QUINET, 2003, p.119,
grifos do autor).
81

5.1 O desejo do analista como operador lógico clínico

Em A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958), Lacan nos diz que o
psicanalista certamente dirige o tratamento. E a partir disso podemos verificar o que Elia (2017)
coloca, referindo-se ao conceito de psicanálise em extensão. O autor aponta que a Psicanálise,
aplicada no campo público, não tem equivalência ao conceito de extensão, e que é o desejo do
analista que assegura que o seu trabalho em tal campo tenha efeitos de Psicanálise. Assim, é
através do desejo do analista que se dá o operador lógico do processo analítico.

Para Elia (2017), o psicanalista que atua no campo público não é uma mescla de
pesquisador com trabalhador social e/ou universitário, e também não se caracteriza como um
semi-psicanalista, onde os interesses seriam divididos entre a psicanálise de um lado e as
questões sociais de outro. Ele se constituiria como um psicanalista inteiro, o que não quer dizer
que estaria em sua totalidade ― não-todo ―, pois, segundo o autor, no espaço institucional (do
território e do público) demandas e outros fatores são direcionados ao psicanalista, que é
convocado a responder a partir desses diversos lugares.

O autor traz a exemplificação do supervisor clínico-territorial em saúde mental:

Sua função na equipe de atenção psicossocial não poderia não ser orientada pela
psicanálise, e seu exercício não pode não ser regido pelo desejo do psicanalista. Essa
afirmação não seria aceita na e pela comunidade de trabalhadores de saúde mental
com facilidade, e talvez eu não afirmasse isso se não estivesse em uma jornada de
psicanalistas. A exigência de pluralismo nas referências teóricas de um campo de
políticas e práticas públicas torna essa afirmação inaceitável, e vejam que situação
aparentemente contraditória: eu estou inteiramente de acordo com esta exigência ética
de pluralismo, e consideraria detestável se a psicanálise fosse exclusiva ou mesmo
principal referência de saber nas políticas públicas. A questão é de outra ordem:
estamos diante de um impossível do real, pois não é possível que a função de
supervisor clínico-territorial não seja exercida com base no desejo do psicanalista. Por
exemplo, o supervisor ocupa uma função êxtima na equipe, sendo seu elo íntimo com
o exterior, com a rede, e só a psicanálise tem uma topologia que dá conta disso. (ELIA,
2017, p.03, grifo do autor).

5.2 Endereçamento institucional: PTS para quem?

Em se tratando de situar a dimensão psicanalítica de adolescentes com impasse no laço,


Alberti (2009) diz que o adolescente é um sujeito paradoxal, com tendência a agir. O sujeito é
colocado sob o paradigma dos impasses diante da confrontação com a impossibilidade de uma
relação de completude entre os sexos. O reencontro com a falta de significante no campo do
82

Outro, na puberdade, convoca o pai a partir do ponto sobre o qual ele não legisla. O sujeito
precisará inventar uma nova nomeação, uma nova inscrição no laço social.

A autora ressalta que “a questão do Pai como função simbólica é crucial na adolescência:
o adolescente faz um apelo ao pai na tentativa de dar conta do impacto do gozo que o invade.
Mas o pai será forçosamente incompetente para responder às questões cruciais do sujeito”.
(ALBERTI, 2009, p.14).

A partir das cenas expostas a seguir, pode-se pensar no desdobramento das dimensões
inerentes ao sujeito, que se orientam no tempo lógico e se estruturam como uma figura erótica
do tempo, diferindo do tempo cronológico.

Nesse sentido, Mandil (2014) se refere ao tempo lógico como

um forçamento, acusando o esforço teórico de fazer valer o tempo nos domínios da


dedução lógica, um terreno classicamente depurado do fator temporal. Pensar o tempo
na lógica poderia ser considerado como uma das primeiras tentativas de Lacan em
articular o campo simbólico ao campo de forças da libido. (MANDIL, 2014, p.01-02).

O mesmo autor nos diz que as referências ao instante de ver, ao tempo para
compreender, e ao momento de concluir, são apresentadas por Lacan com os mesmos termos
utilizados por Freud para referir-se à economia da libido, sendo as três modalidades de tempo
indicadas por Lacan como uma tensão temporal. O “momento de concluir” seria pensado a
partir do modelo da “descarga”, numa referência ao circuito de tensão/resolução que
acompanha a dimensão quantitativa do princípio do prazer. “Podemos perceber que essa
articulação de um tempo libidinal à lógica vai mais adiante, pois trata-se também da erotização
de um tempo epistêmico, no qual as instâncias do ver, do compreender e do concluir encontram-
se na dependência de uma tensão libidinal.” (MANDIL, 2014, p.02).

É nesse contexto de uma “tensão temporal” que encontramos a referência ao ato, uma
vez que, para Lacan, a conclusão ou resolução desta tensão não se faz sem a sua
incidência. Nos termos do sofisma dos três prisioneiros, nenhuma dedução lógica
permitiria a qualquer um deles chegar a uma “asserção subjetiva”, a uma afirmação
sobre si mesmo ― no caso, uma afirmação sobre a cor do disco que cada um carrega
em suas costas ― sem a interposição de um ato. Nesse sentido, não é a certeza lógica
que produz a conclusão, mas o ato de conclusão que produz uma certeza, a partir da
qual o sujeito poderá fazer uma afirmação. (MANDIL, 2014, p.02).

A seguir, apresentaremos breves construções de caso, a fim de localizar a história clínica


desses sujeitos em se tratando dos desdobramentos clínicos de adolescentes que apresentam
impasses no laço, e as implicações institucionais disso. Esses recortes clínicos incidem na
83

presença de um enredo em que emergem à cena questões tecidas a partir do “instante de ver”,
do “tempo de compreender” e do “momento de concluir”, representados respectivamente por
“primeiro”, “segundo” e “terceiro momento” em cada um dos casos mostrados.

Num primeiro momento, trouxemos a primeira articulação referente ao caso Matheus15,


para em seguida apresentar a construção de cenas clínicas dos casos Joaquim e Cecília,
respectivamente, assim como o resgate de diferentes momentos da formulação da direção de
tratamento.

5.3 O caso Matheus

5.3.1 Primeiro momento

No primeiro caso acompanhamos Matheus, um adolescente de 15 anos que veio ao


CAPS IJ para atendimento sob demanda do judiciário. Estando em instituição de acolhimento,
apresentava impasses importantes no laço, atribuídos ao seu uso esporádico de drogas. Havia
queixas por parte da instituição relacionadas às suas saídas constantes sem permissão para tal.
Ele não conseguia dar continuidade aos estudos e não apresentava interesse por qualquer
atividade. Manifestava o desejo de morar com o pai, embora este já houvesse declarado em
juízo não ter interesse em acolher o filho.

No primeiro contato com Matheus, ele se mostra muito irritado e alterado,


principalmente pela presença da técnica-psicóloga (responsável por seu caso) da instituição de
acolhimento em que se encontrava. “― Você não vai contar para o juiz o que eu te contar
aqui? Porque essa mulher que está aí fora, eu não gosto dela! Ela diz tudo o que eu faço para
o juiz.” Apresentava sentimentos de perseguição, onde dizia: “não se pode confiar em
ninguém”.

Durante as sessões o paciente trazia informações a respeito das suas incursões, pois, em
sua história, Matheus já havia passado por outras institucionalizações, e apresentava
descompensação emocional devido à transição recente da instituição de acolhimento a qual
pertencia.

Durante a infância, contou com os cuidados da avó, que recentemente havia falecido
(cerca de 1 ano). Seus pais eram separados e sua mãe havia perdido a guarda dos seus irmãos

15
A fim de preservar a identidade dos adolescentes, serão usados nomes fictícios para todos os envolvidos.
84

devido a envolvimento com drogas. Em sua história familiar, havia ocorrido o suicídio de sua
irmã mais velha, algo que o deixava, em seus relatos, muito perturbado. Fazia uso de drogas
em suas “fugas” da instituição, o que dava a entender que encontrou uma solução química para
suprir a falta da irmã. Em suas conversas comigo, dizia que tinha um bom relacionamento com
o pai, afirmando que o que o impedia de estar com ele era a madrasta.

5.3.2 Segundo momento

A demanda institucional trazida para o CAPS IJ era referente a uma cronificação do


padecimento de Matheus, pois tratava-se de uma direção de tratamento em que se convocava o
recurso medicamentoso em detrimento da práxis ― não médica ― na qual haveria a
possibilidade de envolvimento da equipe multidisciplinar como um todo.

A justificativa para tal demanda seria a de que o paciente estava “em situação
incontrolável dentro do abrigo”, após uma discussão em que Matheus arremessou tomates em
funcionários na cozinha. Por vezes se envolveu em situações de agressão com os funcionários
do abrigo, com outros acolhidos, com a madrasta, em outras instituições por que passou... Com
destaque para a dificuldade de Matheus de se situar dentro do discurso institucional e em
atender às demandas a ele dirigidas.

Em reunião com a equipe multidisciplinar para a construção de caso, buscou-se situá-lo


de forma a trazer a perspectiva de diagnóstico estrutural para traçar uma direção de tratamento.
Surgiu a questão de como não estabelecer a construção de um Projeto Terapêutico Singular
norteado pelos operadores do discurso do mestre, ou amparados pelo discurso universitário, em
detrimento da escuta do desejo de Matheus. Isso foi algo questionado a partir do
posicionamento da pesquisadora, enquanto psicanalista impactada em sua posição, para não
incorrer no equívoco de objetificá-lo, transformando-o em incapaz e indefeso. A partir disso
pôde ser colocado em pauta para quem estava sendo construído o PTS ― para o paciente, ou
para atender às demandas institucionais?

Em um outro momento de supervisão do caso e a partir das inúmeras atuações de


Matheus, constatou-se algo que se repetia não no simbólico, mas no real: suas “quebradeiras”
e ataques pareciam indicar uma “quebra e ataque” a algo que não operava no simbólico,
apontando assim para uma hipótese de psicose.
85

Lembremos, como visto em “Schreber”, que a foraclusão do NP 16, enquanto um


operador do laço, impede a instauração da significação fálica. E o significante primordial, não
estando submetido ao NP, traria a essa ausência de articulação da significação fálica a invasão
do Outro nesse sujeito, sendo o “trabalho” da psicose o de buscar alguma solução que forneça
anteparo à invasão de um gozo não barrado pelo significante fálico, de que o sujeito psicótico
carece em sua estrutura.

Fazendo uso da construção do PTS junto à equipe do CAPS IJ, estabeleceu-se o atendimento
clínico e psiquiátrico para Matheus. Evidenciando, pois, que não há uma proposta clínica
descolada da prática psiquiátrica e que, por vezes, limite a escuta do sujeito, por estar referida
apenas ao fato de “controlá-lo” organicamente através do ajuste medicamentoso. É nesse
sentido que o Projeto Terapêutico Singular assume a pertinência de uma representação de
“barra” a esse sujeito sem limites nem amarras.

Fingermann (2016) fala sobre a impotência do mestre em resolver esse “resto” que
permanece não subjetivável. O resto inapreensível da operação de subjetivação (alienação) do
discurso do mestre ― chamado objeto a ― passa a sustentar, enquanto verdade, o “semblante”.
O sujeito $ põe o significante mestre S1 para trabalhar, a fim de produzir um saber S2.

Esse saber que é uma produção que não é do sujeito, de acordo com Lacan (1969-70), e
que está na posição de uma pretensão insensata de ter como produção um ser pensante, um
sujeito.

5.3.3 Terceiro momento

Em outra reunião de equipe foram mobilizadas intensas resistências quanto à pertinência


do tratamento de Matheus no CAPS IJ. Isso se deu devido a um momento de crise em que ele
(Matheus) se desestabilizou com episódios de automutilação, ocasionando a diminuição da sua
circulação e prejudicando a sua locomoção até a unidade.

A partir dessa crise, foi colocada a possibilidade de encaminhá-lo a outra instituição de


tratamento ― a proposta inicial seria o CAPS AD. Mas, o que estava em pauta era o temor de
não se levar em conta a subjetividade de Matheus, focando somente no uso que ele fazia de

16
A abreviação NP refere-se ao Nome-do-pai.
86

drogas17, o que sinalizaria um mal encaminhamento, porque evidenciaria um não acolhimento


por trás de uma política que não ampara e não dá aceitação ao que é singular.

Importante ressaltar que nos atendimentos no CAPS IJ Matheus fazia-se presente com
queixas e falas: “― Esses remédios estão me matando!”. Enfatizando sua impossibilidade em
lidar com o insuportável da invasão medicamentosa.

Em outro momento, nas intermitências entre fuga do abrigo e uso de drogas, houve uma
possibilidade de reinvenção de si mesmo para Matheus e, com ele demonstrando receptividade
com a proposta, como um anteparo, foi ofertada a inserção em um grupo de capoeira e a
retomada dos estudos. Porém, em seus últimos atendimentos com a pesquisadora, Matheus
apareceu vestindo terno e gravata, dizendo ter se convertido a uma religião evangélica. Falava
que em “nome de Deus” iria conseguir sair das drogas. Parecia ter encontrado essa referência
para amarrá-lo nos encontros evangélicos de que participava. Talvez o Nome-de-Deus ao qual
Matheus se referia fosse uma amarração possível ao Nome-do-pai foracluído.

5.4 O caso Joaquim

5.4.1 Primeiro momento

Nesta segunda vinheta abordaremos o caso de Joaquim, um adolescente de 12 anos com


encaminhamento da UBS e com hipótese diagnóstica de autismo. Seus pais se separaram
quando ele ainda era um bebê, estando atualmente sob a guarda paterna. Ainda assim, ficava
sob os cuidados de uma tia com a qual tinha afinidade. Joaquim não falava, não se vestia ou
tomava banho sozinho. Por vezes, a tia o assessorava nos mínimos detalhes da vida cotidiana.
Ele permanecia a maior parte dos dias da semana aos seus cuidados, só retornando para a casa
do pai aos finais de semana. Nos espaços que ele frequentava e nas atividades que desenvolvia,
permanecia por todo o tempo acompanhado pela tia, não conseguindo frequentar a escola ou
mesmo desenvolver qualquer nível de autonomia. O gozo de Joaquim manifestava-se em
estereotipias gestuais e no balanço do corpo.

17
A inserção de pacientes psicóticos que fazem uso de drogas é dificultada por não haver, por vezes, um
diagnóstico que o sustente, ficando o usuário identificado ou reduzido ao “uso de drogas”.
87

O seu encaminhamento chegou através de uma profissional da equipe. Ao ler o seu


prontuário, observou-se que se tratava de um paciente que teve seu acolhimento desde a
infância, a partir da rede de saúde de referência de sua residência.

Foram feitas as primeiras entrevistas com a tia, já que todas as tentativas com o pai para
uma primeira abordagem foram em vão. Conversando com ela, a justificativa para o
encaminhamento de Joaquim era a sua inserção em um serviço de saúde que pudesse oferecer
um acompanhamento intensivo, já que ele não apresentava “aderência” à escola e a outros
equipamentos.

Havia queixas da tia em relação aos cuidados que o pai dispensava a Joaquim, que,
segundo ela, eram escassos... “― Ele mal fica em casa... Eu acabo ficando o tempo todo com
ele (Joaquim)”. Junto a isso havia inúmeras solicitações dela, direcionadas à equipe, para que
Joaquim fosse inserido em diversas atividades, assim como o acompanhamento intensivo com
a psiquiatria para conter a sua agitação.

5.4.2 Segundo momento — “Dia de Oficina”

Eis a seguir uma das cenas do cotidiano de atendimento com Joaquim. “Abre-se o
grande portão de entrada do CAPS IJ e lá está ele. Arrasta a tia pelo braço até a recepção, ao
que é recebido pela psicanalista/pesquisadora, e começa a fazer os seus diferentes trejeitos, tudo
isso para dizer que ele não queria subir. Circula pelo pátio, vai nos cavalinhos (brinquedos), e
é convidado a fazer uma atividade nos mesões de oficina. Os seus chamamentos são muitos.
Mas está na ordem do dia: hoje Joaquim vai circular por tudo!”

Nos dias de suas atividades, Joaquim fazia um circuito pelas dependências do CAPS IJ.
Certa vez, em um atendimento, ele quis tirar o tênis. Ao final, na hora de ir embora, foi pedido
que ele calçasse o tênis, ao que ele permaneceu parado. Ao ver a cena, a tia imediatamente veio
calçá-lo, dizendo: “― Se eu não calçar, ele não faz!” E, assim, seguia a sua rotina em casa
também, para tomar banho, ela precisa acompanhá-lo, “porque senão ele fica olhando a água
cair sem se molhar!”

Um ponto importante que se colocava era o de que, assim como no Caps e na escola,
Joaquim não conseguia ficar em sala de aula. Fazia o seu circuito também pelas dependências
da escola, permanecendo por poucas horas em aula (1 hora) ou, às vezes, nem conseguindo
88

manter-se lá, o que gerava um desconforto na gestão escolar. Essa era uma questão que trazia
grandes dificuldades para as professoras, no que diz respeito à inclusão, porque passa por uma
dimensão que o enclausura em um viés assistencial ou médico.

Também se faz relevante nos situarmos quanto ao discurso sustentado pela equipe
naquele momento, pois era dado de antemão um saber já conhecido.

5.4.3 Terceiro momento

Nas discussões em equipe, o PTS de Joaquim era revisto como algo cujo cuidado
pudesse ser direcionado a suas questões familiares. Por exemplo, reconsiderar o lugar de
impotência em que a cuidadora o colocava, se colocava e colocava a equipe, em sua busca
infindável, de uma demanda à outra em um mosaico de padecimentos.

Na busca por alternativas que contemplassem o acolhimento familiar e, ao mesmo


tempo, levassem à autonomia de Joaquim constituiu-se uma aposta a proposição de iniciativas
que incentivassem a sua independência ― como vestir-se sozinho (levando o tempo que fosse
necessário para tal) e deixá-lo fazer a circulação que desejasse ao chegar em qualquer ambiente.
Foi viabilizada a sua inserção à atividade de equoterapia em outro espaço vinculado à sua
proposta terapêutica.

Construir uma clínica não segregativa no campo da saúde mental, onde não seja imposta
a cronificação do sujeito, constitui um desafio. Mas é possível, desde que se proponha sair do
discurso da impotência, o que, aqui, implicaria em não deixar de fora qualquer expressão
subjetiva de Joaquim, ainda que não correspondesse às expectativas da sua tia, da gestão escolar
ou mesmo da equipe de saúde mental.
89

5.5 O caso Cecília

5.5.1 Primeiro momento

Cecília tinha 18 anos e frequentava o CAPS desde os 17, ocasião do seu primeiro surto.
Ficou um ano em isolamento e um mês trancada no quarto, só saindo para ser levada ao pronto-
socorro. Durante esse período houve uma notável precarização da sua higiene e prejuízos em
seu cuidado pessoal, momento em que permaneceu ao celular ― assistindo a séries adolescentes
― e em que desferiu constantes automutilações, expondo a sua fragmentação corporal. Ela não
aceitava contato, a não ser da própria mãe. Veio ao CAPS IJ sob encaminhamento da UBS de
referência.

A pesquisadora teve acesso aos atendimentos de Cecília a partir da sua inserção em


acompanhamento de grupo18, quando a paciente permanecia durante todo o tempo com o celular
e fone de ouvido. Através de seu prontuário, pôde-se observar uma hipótese diagnóstica de F20
CID10, e uma infinidade de prescrições medicamentosas antipsicóticas. Em um dos poucos
momentos em que se pronunciou no grupo, disse ter terminado o ensino médio em casa por não
conseguir frequentar a escola.

Constatou-se que, nesse primeiro momento, a direção de tratamento para Cecília


acenava para o tratamento sintomático ― psicofarmacológico, onde estava posta a sua
reabilitação. Para eliminar o significante-doença, foi proposta uma assistência medicamentosa,
passando o significante mestre a ser o significante-reabilitação, com a exclusão da sua dimensão
clínica.

5.5.2 Segundo momento

Nesse ponto Cecília já havia completado a maioridade, ou seja, estava com 18 anos e
isso implicaria em não poder continuar sendo assistida no CAPS IJ, pelas leis institucionais.
Pensar em um rearranjo de PTS que saísse do circuito significante doença-medicamento se fazia
urgente. Importante destacar que Cecília parecia buscar ― diante do seu corpo, que ela corta,

18
Esse grupo era realizado juntamente com a assistente social da equipe multiprofissional.
90

que adoece e que se dissolve ― o amparo, suporte e reconhecimento do Outro, numa tentativa
de se constituir, de se amarrar.

O discurso analítico estruturado como um ato é o que possibilita a ruptura de um laço,


para que se invente um outro laço.

5.5.3 Terceiro momento

Durante os atendimentos em grupo, Cecília comparecia a seu modo peculiar. Em um


atendimento familiar19, a construção do PTS atentou para um desejo que ela manifestou,
dizendo que “gostaria de começar a trabalhar!”

A essa demanda dirigida à equipe, houve ressonâncias no sentido de questionar como o


pedido seria escutado: ele seria tomado em sua concretude, ou apostaria-se em um a mais,
subvertendo para além da própria demanda do significante trabalhar?

Colocando o seu pedido em pauta, propôs-se que ela procurasse ajuda com a assistência
social sobre a possibilidade de “trabalho”, pois, segundo a equipe, ela mesma apontava para
este caminho.

Houve esforços da assistência social para inseri-la em um estágio, que Cecília iniciou,
mas, ao fim, não conseguiu sustentar, por questões de horário, assiduidade e demandas
medicamentosas.

Viganò fala: “Em síntese, trata-se de não colocar a pergunta: O que podemos fazer por
ele?, mas outra pergunta: O que ele vai fazer para sair daqui?” (VIGANÒ, 2012, p.120,
grifo do autor). A questão sobre um não saber do sujeito, que impõe um vazio e que pode
permitir a passagem à posição de trabalho de um analisante, poderia ser uma aposta para
Cecília.

19
Estavam presentes Cecília e a mãe, juntamente com a psiquiatria e a assistência social.
91

5.6 Proposições em articulações clínicas de intervenção psicanalítica

Na clínica psicanalítica as questões relativas ao tratamento da psicose orientadas para o


trabalho no campo da atenção psicossocial remetem à Psicanálise em intensão colocada em
extensão, pois, ao ocupar o lugar de extimidade, o analista evidencia a topologia que a
Psicanálise propicia ao fazer a escuta do sujeito de desejo.

Ao recordar as conceituações dadas quanto à psicose, constatamos que o que foi


foracluído não atravessa o aparelho simbólico, retornando no real, porque é impossível de ser
capturado pelo registro do simbólico. Quinet (2009) nos diz que, tanto na esquizofrenia quanto
na paranoia, a foraclusão do nome-do-pai (NP0) no simbólico correspondente à elisão do falo
(ᶲ) no imaginário. Portanto, não se faz o lastro de significação fálica na psicose na cadeia
significante.

Assim, o delírio, conforme podemos ver em “Schreber”, caracteriza uma estratégia de


cura, ao mesmo tempo em que denuncia o desejo do sujeito. É uma tentativa de dar conta de
uma realidade que desmoronou, e um modo de sustentação de sentido. Da mesma forma que o
autismo de Joaquim, as “quebradeiras” e fugas, e fragmentações do corpo de Matheus e Cecília
sinalizam saídas de encontro ao desejo.

Quanto às fragmentações do corpo, retratadas pelas automutilações de Cecília e


Matheus, é como se o corpo fosse um objeto estranho invadido pelo inominável diante do qual
não se tem recurso. Estabeleceu-se uma relação estrangeira com o corpo. Em momentos que
podemos chamar de “crise” desses sujeitos parece não haver nenhum tipo de barreira ou
censura, nenhum recurso para lidar com o mal-estar. Freud (1919/2019) nos diz sobre algo que
é infamiliar, coincidindo com o aterrorizante, o que suscita angústia e horror.

A questão colocada ― de como fazer laço num discurso no qual o sujeito psicótico está
foracluído ― passa pela criação de uma possível “gambiarra” que, aqui, se caracterizaria como
um PTS, sendo uma proposta que se opera em equipe e a partir da construção do caso. De
acordo com Viganò (1999), seria necessário reativar a relação do sujeito com o Outro,
precedendo o ato.

[...] construir escansões que considerem esses resultados já é um primeiro processo de


avaliação ou, se quiserem uma primeira avaliação do processo. [...] se caracteriza pela
sua intersubjetividade que apresenta, joga a interrogação do grupo de trabalho sobre
o paciente, sem retifícá-lo como um objeto conhecido, mas procurando sempre os
caminhos de uma possível subjetivação. (VIGANÒ, 2012, p.126).
92

Segundo Viganò (1999), ao construir o caso clínico é preliminar à demanda do paciente


colocá-lo em trabalho, registrar seus movimentos, recolher as passagens subjetivas que contam,
estar pronto a escutar a sua palavra quando esta vier. Ainda segundo o mesmo autor, na lógica
do caso clínico o paciente tem um lugar ativo, tendo uma concepção da clínica como um
discurso (T ↔ P).

Nesse sentido, ao incluir o sujeito no tratamento e sua dimensão desejante, destacamos


a proposição que Dias (2019) nos traz em relação ao PTS:

Alocar a psicanálise como balizadora para pensar a construção de PTS que tenham
como norte a dimensão do desejo ― intenta a sustentação de práticas clínicas nestes
equipamentos de saúde mental que preconizem o sujeito e não apenas a direção de
trabalho que os profissionais julguem necessária, e é um movimento no sentido de
assegurar estes serviços como espaços prioritários para a singularidade em sua
expressão mais particular, neste caso o sintoma. (DIAS, 2019, p.68).

A falta da escuta também fundamenta nossa atenção para as vacilações fantasmáticas


do sujeito, que podem desembocar em um acting out ou numa passagem ao ato, que são duas
facetas subjetivas.

O acting out, sendo uma das facetas de resposta subjetiva do sujeito, situa o seu sintoma
onde, a partir da conceituação feita por Lacan (1962-63/2005) no seminário A angústia, diz-se
que o desejo, para se firmar como verdade, envereda por um caminho em que só conseguiria
fazê-lo de uma maneira singular.

Remetendo à transferência selvagem através do acting out, no seminário A angústia,


Lacan (1962-63/2005) destaca a observação de Ernest Kris em A direção de tratamento, quando
diz:

Kris, por estar num certo caminho que talvez tenhamos que nomear, quer reduzir seu
paciente com os recursos da verdade; mostra-lhe da maneira mais irrefutável que ele
não é plagiador; leu o seu livro, e esse livro é realmente original; ao contrário, foram
os outros que copiaram. O sujeito não tem como contestá-lo. Só que não está nem aí
para isso. E, ao sair, que faz ele? [...] ele vai comer miolos frescos. [...] O sintoma é a
mesma coisa. O acting out é um sintoma. O sintoma se mostra como outro. (LACAN,
1962-63/2005, p.139).

A experiência analítica assegura a tarefa de conseguir dizer tudo. O acting out surge
como obstáculo interno a essa tarefa, isto é, mostra o que não se diz, porque é impossível dizê-
lo.
93

Lacan (1962-63/2005) coloca que:

Diferentemente do sintoma, o acting out é o começo da transferência. É a transferência


selvagem. Não é preciso análise, como vocês desconfiam, para que haja transferência.
Mas a transferência sem análise é o acting out. O acting out sem análise é a
transferência. Resulta daí que uma das questões formuladas acerca da organização da
transferência ― refiro-me com isso a sua handlung, seu manejo ― é saber como se
pode domesticar a transferência selvagem [...]. (LACAN, 1962-63/2005, p.140).

Lacan (1962-63/2005) diferencia o “acting out” da “passagem ao ato” como uma outra
resposta subjetiva. O autor ressalta que o momento da passagem ao ato é de maior embaraço
do sujeito. “É então que, do lugar em que se encontra ― ou seja, do lugar da cena em que, como
sujeito fundamentalmente historizado, só ele pode manter-se em seu status de sujeito ― ele se
precipita e despenca fora da cena.” (LACAN, 1962-63/2005, p.129).

Motta (2005) refere-se ao acting out como o surgimento do objeto a na cena, com seus
efeitos de perturbação e desordem, implicando em uma dinâmica subjetiva que faça com que o
sujeito traga à cena o objeto a. Diversa é a passagem ao ato, na qual é o sujeito que se encontra
fora da cena com o objeto a.

De acordo com Motta (2005):

O acting out é uma saída à maneira de um contorno. Trata-se de uma dejeção do


campo da fala pois “o objeto” se mostra. A ênfase é demonstrativa, orientada para o
Outro e, portanto, não requer interpretação. O acting out é já, em si mesmo, uma
interpretação do desejo. A passagem ao ato é o gesto de deixar para lá o que é
“impossível de dizer”. O sujeito devém o mais “apagado pela barra” e é dejetado da
cena analítica. No momento do maior embaraço frente a uma conjunção impossível
entre um “excesso de significantes no Outro e a falta de um único que possa
representá-lo” que, com a adição comportamental da emoção como desordem do
movimento, o sujeito precipita-se do lugar historiado que ocupava até então e bascula
“fora da cena”. (MOTTA, 2005, p.03).

Estando a castração foracluída em razão da não inscrição do Nome-do-pai, na psicose


o inconsciente está a “céu aberto”, havendo uma tendência a operar diretamente sobre o real,
como forma de barrar o Outro em sua dimensão invasiva e excessiva, fazendo lançar o sujeito
à passagem ao ato. O sujeito psicótico experimenta uma fragmentação corporal devido ao
fracasso da função unificadora da imagem especular. Essa carência do significante fálico
impressa por estrutura, incide em desordens a nível do corpo, o que não deixa de ser uma
solução à invasão de um gozo não barrado pelo significante fálico.
94

Importante a observação de Mandil (2014) em A clínica das urgências, na qual a


passagem ao ato evoca uma fusão entre o instante de ver e o momento de concluir, que também
nos permite associar uma dimensão infindável da análise com um tempo para compreender em
que jamais seria capaz de convocar o momento de concluir (num certo sentido, podemos dizer
que o tempo para compreender alimenta-se de si mesmo).

Mandil (2014) diz:

Trata-se aqui de referir o ato não apenas a uma conjuntura epistêmica mas também a
uma dinâmica libidinal. Talvez não seja exagero dizer que a precipitação, a aceleração
temporal, a pressa, a passagem pelo “desfiladeiro do eu-não-penso” ― todas elas
figuras de linguagem que procuram captar o momento imediato que antecede ao ato
― indicam a entrada do sujeito numa zona de radiação máxima do objeto (a), com
seus efeitos de desregulagem do tempo. (MANDIL, 2014, p.04).

É nesse sentido que, diante dos impasses clínicos apresentados nos casos de Matheus,
Joaquim e Cecília, e da condução dos desdobramentos institucionais, buscou-se trazer
discussões para o atendimento psicanalítico de adolescentes, advindos de outros setores
institucionais e/ou mesmo por demanda espontânea, imprimindo facetas possíveis de
articulação com a rede intersetorial.

Essa instrumentalização, que muitas vezes opta por soluções que não consideram uma
possibilidade de escuta singular, termina por reforçar as condições de anonimato da
queixa. Quem escuta essas queixas frequentemente está mais interessado em como
será possível amparar seu lugar na instituição, ou mesmo no “social”, a partir de
propostas curativas. Muitas vezes, as políticas propostas vão beneficiar mais àquele
que propõe do que propriamente terem efeitos de uma escuta singular daquele que
está demandando alguma coisa. (COSTA, 2006. p.161-162).

Endo (2017) coloca:

Como não fundir numa mesma prática a experiência de pertencimento, a escuta do


sofrimento, o resgate da cidadania e a clínica numa realidade de atendimento no SUS?
A noção de estar à margem atravessa necessariamente o trabalho na clínica no SUS,
não apenas pela realidade social e psíquica da clientela atendida, que perdeu, na
maioria dos casos, referências fundamentais de pertencimento a uma família, a um
grupo, a um gênero, e até mesmo à sua condição humana, mas fundamentalmente
porque, ao não prescindir do termo inclusão, pressupõe como cliente privilegiado a
população que se encontra fora do Sistema. (ENDO, 2017, p.27, grifo da autora).

E, na mesma direção:

Assim, tanto no que se refere à “anulação do indivíduo” quanto à “obediência cega a


regulamentos”, se apresenta uma face do sujeito relegado a uma condição de objeto.
95

Ou seja, o sujeito, tal como concebido pela psicanálise, que na sua condição de
linguagem pode advir a uma condição desejante, é legado a uma face objetal, uma vez
que a obediência cega a regulamentos indica um princípio de automatismo dos atos,
sem uma intermediação da linguagem. Este é o próprio funcionamento da alienação,
de uma posição ― lugar e função ― precisamente apresentada por Lacan no Estádio
do Espelho. Assim, se configura um funcionamento em que um está a serviço, numa
condição objetal, do gozo do Outro, se produzindo uma relação de instrumentalidade.
É neste ponto que é possível aproximar burocracia e modalidade de perversidade: uma
instrumentalidade no plano discursivo expressa em derivações da forma gramatical
“Eu sei, mas”. (OLIVEIRA; VERONESE; PALMA, 2009, p.1348).

Deve-se privilegiar a direção de tratamento no sentido do singular do sujeito na


construção do seu saber tomando tais sujeitos como dotados de um saber que escapa ao discurso
do mestre e ao discurso universitário ali em jogo. A proposta é buscar fazer uma leitura da
escrita desses corpos na cena institucional, deixando inscritas as marcas de sua presença no
Outro social. Isso implicaria em sair da clínica convencional, onde há a primazia do modelo
médico e o destaque para prerrogativas protocolares de atendimentos pela via medicamentosa
e/ou atendimentos psicoterápicos. Evidenciando que a interface institucional na atenção
psicossocial se utiliza de operadores estabelecidos, que abarcam a direção médica
hospitalocêntrica.

Costa (2006) destaca ainda algo pertinente em relação aos trabalhadores da saúde
mental. Segundo a autora:

Um dos elementos que me parece de extrema relevância ― colocando quem trabalha


nessas instituições diante de uma responsabilidade muito grande ― é que as pessoas
que procuram esses serviços, com queixas variadas, entram muito facilmente naquilo
que se denomina “políticas públicas”. Essas políticas, que compõem uma formação
discursiva peculiar, abarcam tanto trabalhos ligados ao Estado, à Prefeitura, quanto às
Instituições Particulares. O que nos leva a pensar a maneira como se constrói o
“âmbito público”. (COSTA, 2006, p.157).

Não é sem efeito o fato de o tratamento acontecer dentro de um dispositivo de saúde


mental. Por suas especificidades, se faz necessário, em sua construção, tentar extrair das ficções
institucionais um saber capaz de regular o gozo.

Quando pacientes fragilizados psiquicamente têm que obedecer às normas


institucionais adotadas em forma de procedimentos burocráticos que efeitos podem
ser situados? É possível indicar que, para determinadas estruturas psicopatológicas,
uma “servidão mais que voluntária” é uma forma de continuidade à alienação ao
imperativo do Outro, próprio fundamento de seus padecimentos. (OLIVEIRA;
VERONESE; PALMA, 2009, p.1351).
96

Nesse ponto, é importante destacar a pertinência da supervisão clínico-institucional


inerente às reuniões de equipe, em sua intersecção a outras faces institucionais.

A supervisão deve ser “clínico-institucional”, no sentido de que a discussão dos casos


clínicos deve sempre levar em conta o contexto institucional, isto é, o serviço, a rede,
a gestão, a política pública. Assim, ao supervisor cabe a complexa tarefa de
contextualizar permanentemente a situação clínica, foco do seu trabalho, levando em
conta as tensões e a dinâmica da rede e do território. Em outras palavras: buscando
sustentar o diálogo ativo entre a dimensão política da clínica e a dimensão clínica da
política. (BRASIL, 2007).

Na extimidade inerente ao psicanalista e no cumprimento dessa função na dimensão


política da clínica estaria a rede e, ao mesmo tempo, a própria dimensão clínica. Nesse lugar do
analista é possível retomar a representatividade da topologia que assume a estrutura de
linguagem, sendo a fronteira entre a teoria e a clínica.

Essa representatividade topológica é apresentada pela banda de Moebius, uma


representante do irrepresentável, que dá conta da estrutura do sujeito e permite subverter a
relação significante/significado, pois seu avesso e seu direito são contínuos. Propor um olhar
sobre a dicotomia “interno x externo”, essa figura topológica, permite uma reflexão de tal
dicotomia com a propriedade de transformar-se em uma superfície bilateral, quando seccionada.

Hermann (2009) nos diz que a banda de Moebius trata-se de uma figura topológica que,
ao realizarmos uma torção em uma tira de papel e fixarmos suas extremidades, teremos sua
representação. O autor cita a figura de Escher, que, segundo ele, permite perceber o andar das
formigas em um contínuo, de modo que o lado externo e o lado interno desaparecem.
Caminhando sob a superfície da banda, a formiga retorna ao mesmo ponto após realizar duas
voltas, estabelecendo então uma continuidade entre o lado interno e externo.

Assim, é preciso percorrer uma volta na banda para que o sujeito se encontre no avesso
de sua posição original. Mas são necessárias duas voltas para que ele retorne ao mesmo ponto,
perdendo uma cota de gozo, na forma de dívida simbólica ou causa desejante, para reinscrever-
se no pacto civilizatório e ao preço de fazer de sua perda condição mínima de desejo.
97

5.7 Bem-dizer o sintoma na psicanálise

Lacan (1959-60/2008a), no seminário A ética da psicanálise, através da tragédia de


Antígona20 nos diz que “não é possível reduzir a função do desejo fazendo-a surgir, emanar, da
dimensão da necessidade” (Lacan, 1959-60/2008a, p.248).

Nesse sentido e em ressonância à Antígona, Lacan (1959-60/2008a) nos mostra como a


partir da tragédia é possível ver o ponto de vista que define o desejo. A busca do seu desejo,
representada por Antígona, constituiria uma representação da ética da psicanálise. “Antígona é
a heroína. É aquela que fornece a vida dos deuses. É aquela que, traduzem do grego, é feita
mais para o amor do que para o ódio.” (LACAN, 1959-60/2008a, p.310).

E aqui, é o polo do desejo que se opõe à ética tradicional, como é possível destacar
nesta citação:

Para fazê-los compreender, tomei o suporte da tragédia, referência que não é evitável,
como o prova o fato de que, desde seus primeiros passos, Freud teve de tomá-la. A
ética da análise não é uma especulação que incide sobre a ordenação, a arrumação, do
que chamo de serviço dos bens. Ela implica, propriamente falando, a dimensão que se
expressa no que se chama de experiência trágica da vida. É na dimensão trágica que
as ações se inscrevem, e que somos solicitados a nos orientar em relação aos valores.
(LACAN, 1959-60/2008a, p.366).

Lacan (1959-60/2008a) também dá destaque para a dimensão cômica na ética da


psicanálise, e acentua que tal dimensão é criada pela presença de um significante que está
escamoteado:

É preciso simplesmente lembrar que o que nos satisfaz na comédia, nos faz rir, nos
faz apreciá-la em sua dimensão humana, não excetuando o inconsciente, não é tanto
o triunfo da vida quanto sua escapada, o fato de a vida escorregar, furtar-se, fugir,
escapar a tudo o que lhe é oposto como barreira, e precisamente as mais essenciais, as
que são constituídas pela instância do significante. (LACAN, 1959-60/2008a, p.367).

Referindo ao sintoma como bem-dizer, Quinet (2003) destaca que a ética da psicanálise
é o bem-dizer o sintoma.

20
A tragédia de Antígona trata-se de uma das peças da trilogia, de Sófocles, em que a partir da interdição de
Creonte ― que representa a ética tradicional ― interdita-se o sepultamento de Polinices ― traidor da pátria ― de
acordo com os ritos sagrados onde este seria deixado a esmo. É invocada a partir disso a cena trágica de Antígona,
com um único desejo que é prover as homenagens funerárias para o seu irmão. Antígona nos revela uma posição
de radicalidade, pois ela não cede em seu desejo, ainda que às custas da própria vida.
98

O bem dizer do sintoma é um dizer de verdade que toca o real, é um dizer sobre o
núcleo irredutível do real do sintoma. Eis a dimensão ética do sintoma, que a
psicanálise inaugura. [...] Diferentemente da medicina e da psiquiatria, onde se tenta
abolir o sintoma a todo custo, a psicanálise não promete a abolição do sintoma, pois
este é um signo do sujeito. Bem dizer o sintoma equivoca com abençoar o seu sintoma,
que aponta para a conciliação com o sintoma. Trata-se de uma conciliação distinta do
compromisso neurótico de recalcar a verdade da castração do sujeito. A verdade,
segundo Lacan, nós a recalcamos e com o real habituamo-nos. A conciliação com o
sintoma no final da análise implica, por um lado, em não recalcar a verdade do
sintoma, e sim bem dizê-la, e, por outro lado, em se habituar ao seu real, reduzido aqui
a um caroço ou núcleo irredutível. E qual o efeito dessa redução? É um efeito sobre o
mal-estar que o sintoma provocava. Bem dizer o sintoma é a condição para aquilo que
Lacan propôs para se referir à relação do sujeito com seu sintoma no final de análise:
savoir y faire, saber lidar com o sintoma. O bem dizer do sintoma a que leva uma
análise conduzida até seu final é a condição de saber lidar com ele. (QUINET, 2003,
p.141).
Um dos caminhos que essa discussão sugere é o trabalho com os dejetos institucionais.
Ou seja, a escuta daquilo que retorna como efeito de um discurso automatizado,
circunscrito à impessoalidade. Escutar e apontar para uma palavra que indique a
dimensão subjetiva parece ser um recurso fundamental. Servir como suporte para a
construção de um arranjo singular, no lugar de uma fala automatizada e subserviente,
é um trabalho que exige esforços de várias ordens. (OLIVEIRA; VERONESE;
PALMA, 2009, p.1351, grifo das autoras).

Entretanto, a questão não é fazer oposição às duas construções entre si, mas de alcançar
uma conexão entre a clínica no SUS, que supõe a construção do caso clínico no bem-dizer do
sintoma, e a clínica do SUS, que se ordena através de significantes organicistas burocráticos.
Este é o ponto de conexão importante, que pode permitir a sustentação de um operador clínico
psicanalítico viável na atenção psicossocial.
99

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta desta pesquisa foi norteada por questões implícitas, pertencentes ao


contexto institucional da atenção psicossocial, focando na realização da escuta do desejo e a
partir dos impasses no laço do sujeito na psicose, ambos envolvidos na construção do caso
clínico pela equipe interdisciplinar, assim como pela rede intersetorial.

Do ponto de vista histórico, a partir das reformas e políticas públicas de saúde mental
que viabilizaram a desinstitucionalização de sujeitos em sofrimento psíquico, podemos pensar
que há uma direção no que remete aos espaços de referenciamento e às proposições de
tratamento — como os CAPS —, como foi visto na década de 70, devido ao estabelecimento
das transformações ocorridas no Brasil.

A reformulação de um lugar social para a loucura trouxe mudanças na assistência na


saúde mental, advindas do processo de humanização da saúde no país com a Constituição de
1988 e com a estruturação de uma política de saúde que institucionalizou o Sistema Único de
Saúde e a consequente Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Ao mesmo tempo, isso não deixou de trazer paradoxos. Pois para a instrumentalização
da efetividade da clínica do SUS, não se pode perder de vista a articulação da psicanálise para
sustentar a singularização do cuidado ao sujeito psíquico, de acordo com a direção ética do
analista.

O discurso institucional que, por vezes, representa a burocratização do cotidiano de


trabalho dos próprios funcionários da rede de saúde mental, pode revelar — como foi levantado
nesta pesquisa — uma faceta perversa da instituição.

O lugar da saúde mental é um lugar de conflito, confronto e contradição. Talvez esteja


aí uma certa característica ontológico-social, pois isso é expressão e (é também)
resultante de relações e situações sociais concretas. Por qualquer perspectiva que se
olhe, tratar-se-á sempre de um eterno confronto: pulsações de vida/pulsações
mortíferas; inclusão/exclusão; tolerância/intolerância. (COSTA-ROZA; LUZIO;
YASUI, 2003, p.29).

A psicanálise enseja discussões clínicas e políticas que abordam o CAPS e a própria


rede intersetorial, instituições que constituem espaços simbólicos para os usuários. Na prática
da clínica ampliada, o PTS se configura como uma estratégia de cuidado e um conjunto de
propostas de cunho terapêutico que são discutidas e construídas por uma equipe
100

multiprofissional, de maneira a deslocar-se do sintoma concebido como doença para voltar-se


ao sofrimento e ao contexto em que ele aparece. Nesse sentido, no trabalho com a equipe
interdisciplinar e com a rede intersetorial na clínica do SUS, a instituição assumiria, nessa
perspectiva — um viés psicanalítico —, a função de bem-dizer o sintoma desse sujeito.

Para a Psicanálise, o bem-dizer do sintoma é também tratar de construir com o sujeito


fórmulas para entrar no circuito do desejo, podendo viabilizar a sustentação de sua
singularidade.

O sujeito na psicose, como foi visto nas vinhetas clínicas, experimenta a fragmentação
corporal em razão da falta do significante primordial do Nome-do-pai, e o exercício do papel
institucional estaria na transmissão da lei simbólica. Pois, suas respostas subjetivas vinculadas
ao sintoma, evidenciadas por actings e passagem ao ato, apontam para a circularidade da “não
escuta” singular nesses espaços institucionais.

Nas situações referidas, em determinados funcionamentos institucionais que tratam


de sujeitos constitutivamente assujeitados, esta subserviência é correlativa, também,
a um déficit de recursos subjetivos às defesas na presença da promessa de um
“Soberano Bem”. Quando os dispositivos institucionais são transformados em normas
rígidas, prevalecendo a impessoalidade e a desautorização da construção de um saber,
e o paciente as obedece subservientemente, se coloca numa posição autônomata,
cronificando seu padecimento. (OLIVEIRA; VERONESE; PALMA, 2009, p.1351).

É nesse sentido que Elia (2000) nos diz:

As formas de aplicação da psicanálise são inúmeras. A psicanálise não é sensível a


certas formas e critérios de ordenação dos sujeitos, como classe social, nível cultural
(de instrução), gostos, partidos políticos, credo, raça e cor. Não: ela lhes é indiferente.
Atravessa todas essas categorias, visando o sujeito que, se as escolhe, não é por elas
acessível ou não à experiência analítica. A psicanálise é sensível a outros critérios, aos
quais ela é diferente: posição do sujeito em face de seu desejo, de seus pontos de gozo,
nível de sua divisão em relação ao que o determina, pontos de angústia, pedido ao
Outro, modo de funcionamento fantasmático e de organização (ou desorganização)
sintomática etc. É possível, assim, fazer psicanálise em qualquer estrato social, em
qualquer ambiente institucional, desde que haja analista, de um lado, e_sujeito
dividido, de outro. (ELIA, 2000, p.28).

A respeito da junção da intensão com a extensão no desejo do psicanalista, Elia (2017)


ressalta que o psicanalista incide no espaço social e político de outras formas, permitindo
estabelecer amplas possibilidades de intervenção no laço social.

Por fim, esta pesquisa buscou abordar a viabilização de uma prática do analista — em
um contexto institucional, político e clínico — que vise a ampliação de paradigmas. Não é
101

possível esgotar o tema, mas, sim, a ampliação e abertura de novas frentes para possíveis
articulações entre a psicanálise e as práticas no âmbito da saúde mental.
102

REFERÊNCIAS

ALBERTI, S.; FIGUEIREDO, A. C. Psicanálise e saúde mental: Uma aposta. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 2006.

ALMEIDA, R. M. G. O ego particular de Joyce: Da experiência epifânica ao sinthoma. Revista


Subjetividades. Fortaleza, v.15, n.1, p.24-36, abr. 2015.

AMARANTE, P. Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Nau,


2003.

AMARANTE, P. Asilos, alienados e alienistas: Pequena história da psiquiatria no Brasil. In:


AMARANTE, P. (Org.) Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz,
1994.

AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Temas em Saúde. 3. ed. Rio de


Janeiro: Fiocruz, 2007.

BARROS, D. D. Cidadania versus periculosidade social: A desinstitucionalização como


desconstrução do saber. In: AMARANTE, P. (Org.) Psiquiatria social e reforma
psiquiátrica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1994.

BRANDÃO, B.; CARVALHO, J. Comunidade terapêutica democrática ou nova racionalização


de operação do poder psiquiátrico: Referências históricas de sua emergência. Revista Ingesta.
São Paulo, v.1, n.1, p. 268-282, mar. 2019.

BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Constituição Federal Da Saúde (1988). Art.196-200.


Brasília, DF, 1988. Disponível em: conselho.saude.gov.br. Acesso em: 12 set. 2020.

BRASIL. Decreto 7508/11, de 28 de junho de 2011. Dispõe sobre a organização do SUS.


Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil 03/ato 2011-2014/2011/Decreto/D7508.htm.
Acesso em: 12 set. 2020.

BRASIL. Emenda Constitucional n°95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das


Disposições Constitucionais Transitórias para instituir o novo Regime Fiscal, e dá outras
providências. Brasília, DF, 2016.

BRASIL. Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. Acesso em: 12 set. 2020.

BRASIL. Lei 8142/90, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da


comunidade no SUS. Disponível em: http: // www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8142.htm.
Acesso em: 12 set. 2020.

BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional do Ministério Público. Atenção psicossocial


a crianças e adolescentes no SUS: Tecendo redes para garantir direitos. Brasília, DF, 2014.
103

BRASIL. Ministério da Saúde. Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras


Drogas. Fórum Nacional de Saúde Mental Infantojuvenil. Documento síntese da VIII
Reunião Ordinária. Brasília, DF, 25 e 26 de março de 2009.

BRASIL. Ministério da Saúde. Lei n.10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção
e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo
assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União, seção 1, Brasília, DF, 2001.

BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica, 2012. Disponível em:
http:// 189.28.128.100/dab/docs/publicações/geral/pnab.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n°3.088/11, de 23 dezembro de 2011. Institui a Rede
de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades
decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde
(SUS). Brasília, DF, 2013.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações


Programáticas Estratégicas. Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas.
Nota Técnica n°11. Brasília, DF, 2019.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção


Básica. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Cadernos de Atenção Básica,
n.34, 176p. Brasília, DF, 2013.

BRASIL. Portaria n°154, de 24 de janeiro de 2008. Política Nacional de Atenção Básica


(PNAB). Conhecimentos Específicos. Política Nacional de Práticas Integrativas e
Complementares (PICS). Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF). Brasília, DF, 2008.

BURSZTYN, D. C.; FIGUEIREDO, A. C. O Tratamento do Sintoma e a construção do


caso na prática coletiva em saúde mental. Tempo Psicanalítico. Rio de Janeiro, v.44.I, p.131-
145, jun. 2012. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382012000100008.
Acesso em: 20 set. 2020.

COHN, A. O estudo das políticas de saúde: Implicações e fatos. In: CAMPOS, G. W. de S. et


al. (Org.) O estudo das políticas de saúde: Implicações e fatos. São Paulo: Hucitec / Rio de
Janeiro: Fiocruz, 2006. p.231-258.

COSTA-ROSA, A.; LUZIO, C. A.; YASUI, S. Atenção psicossocial: Rumo a um novo


paradigma na saúde mental coletiva. In: AMARANTE, P. (Org.) Archivos de saúde mental e
atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Nau, 2003. p.13-44.

DE BATTISTA, J. O desejo nas psicoses. São Paulo: Lavartus Prodeo, 2020.

DIAS, A. C. A. L. O desejo na psicose e a construção do Projeto Terapêutico Singular:


Considerações psicanalíticas sobre a direção de tratamento na Saúde Mental Pública. 2019.
Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Programa de Estudos Pós-Graduados em
Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.
104

ELIA, L. Centro de atenção psicossocial como dispositivo de atenção à crise: Em defesa de


uma certa (in)felicidade inventiva. In: II COLÓQUIO INTERNACIONAL NUPSI/USP –
Invenções democráticas: construções da felicidade / XI COLÓQUIO DE
PSICOPATOLOGIA E SAÚDE PÚBLICA, 2013, São Paulo. Anais ... São Paulo: NUPSI-
USP, 2013.

ELIA, L. O desejo do psicanalista presentifica a intensão na extensão e se estende à política.


Correio APPOA. n.268, ago. 2017. Disponível em:
https://appoa.org.br/correio/edicao/268/sumario/478. Acesso em: 13 out. 2020.

ELIA, L. Psicanálise: Clínica e pesquisa. [1986] In: ALBERTI, S.; ELIA, L. (Orgs.) Clínica
e pesquisa em psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000. p.19-37.

ENDO, T. C. A Saúde mental à margem do SUS: Experiências de vastidão e confinamento


nas práticas clínicas. 2013. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica). Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.

ENDO, T. C. Sofrimento psíquico à margem do SUS: Vastidão e confinamento na clínica.


São Paulo: Zagodoni, 2017.

FARIA, M. R. Constituição do sujeito e estrutura familiar: O complexo de Édipo, de


Freud a Lacan. 3. ed. Taubaté: Cabral Editora / Livraria Universitária, 2014.

FIGUEIREDO, A. C. A construção do caso clínico: Uma contribuição da psicanálise à


psicopatologia e à saúde mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia
Fundamental. v.7, n.1, p.75-86, mar. 2004.

FIGUEIREDO. A. C. Três tempos da clínica orientada pela psicanálise no campo da saúde


mental. In: GUERRA, A. M. C.; MOREIRA, J. O. (Orgs.) A psicanálise nas instituições
públicas: Saúde mental, assistência e defesa social. Curitiba: Editora CRV, 2010.

FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica. 12. ed. São Paulo: Perspectiva,
2019.

FREUD, S. A negativa. [1925] In: FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund


Freud: Edição Standard Brasileira. Vol. 19 – O ego e o Id e outros trabalhos de Josef Breuer e
Sigmund Freud. [1923 – 1925] Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996a.

FREUD, S. A perda da realidade na neurose e na psicose. [1924] In: FREUD, S. Obras


psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira. Vol. 19 – O ego e o
Id e outros trabalhos de Josef Breuer e Sigmund Freud. [1923 – 1925] Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1996b.

FREUD, S. Dissolução do complexo de Édipo. [1924] In: FREUD, S. Obras psicológicas


completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira. Vol. 19 – O ego e o Id e outros
trabalhos de Josef Breuer e Sigmund Freud. [1923 – 1925] Rio de Janeiro: Imago Editora,
1996c.
105

FREUD, S. Neurose e psicose. [1924] In: FREUD, S. Obras psicológicas completas de


Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira. Vol. 19 – O ego e o Id e outros trabalhos de Josef
Breuer e Sigmund Freud. [1923 – 1925] Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996d.

FREUD, S. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (Dementia Paranoides)


relatada em autobiografia (O caso Schereber) [1911]. In: FREUD, S. Obras Completas. Vol.
10 [1911-1913]. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

FREUD, S. O Infamiliar – Edição Bilíngue [Das Unheimliche, 1919]. In: Obras incompletas
de Sigmund Freud. Tradução: Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares. Posfácio: Christian
Dunker. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

GIANESE, A. P. L. Construção e formalização do caso clínico em psicanálise. A peste:


Revista de Psicanálise e Sociedade. São Paulo, v.7, n.2, p.37-45, jul./dez. 2015. Disponível
em: https://revistas.pucsp.br/apeste/article/view/30456. Acesso em: 10 out. 2019.

HERMANN, M. C. A banda de Moebius e o tempo do sujeito para a construção da fantasia


inconsciente. Revista de Psicanálise Stylus. São Paulo, n.18, p.115-132, 2009.

HIRDES, A. A reforma psiquiátrica no Brasil: Uma (re)visão. Ciência e Saúde Coletiva. v.14,
n.1, p.297-305, 2003.

KYRILLOS NETO, F. Efeitos de circulação do discurso em serviços substitutivos de saúde


mental: Uma perspectiva psicanalítica. 2007. Tese (Doutorado em Psicologia Social).
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.

LACAN, J. A direção de tratamento e os princípios do seu poder: Relatório do Colóquio de


Royaumont, 10 a 13 de julho de 1958. [1958]. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998a. p.585-652.

LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. [1957-1958]


In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998b. p.591-652.

LACAN, J. O Estádio do espelho como formador da função do eu. [1949] In: LACAN, J.
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998c. p.93-103.

LACAN, J. Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud. [1954]


In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998d. p.383-401.

LACAN, J. O seminário, livro 3: As psicoses. [1955-1956] Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Editor, 1998e.

LACAN, J. O seminário, livro 4: As relações de objeto. [1956-1957] Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Editor, 1994.

LACAN, J. O seminário, livro 5: As formações do inconsciente. [1957-1958] Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

LACAN, J. O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. [1958-1959] Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Editor, 2016.
106

LACAN, J. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. [1959-1960]. Rio de Janeiro: Zahar,


2008a.

LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia. [1962-1963] Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

LACAN, J. O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. [1968-1969] Rio de Janeiro: Zahar,
2008.

LACAN, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. [1969-1970] Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1992.

LANCETTI, A.; AMARANTE, P. Saúde mental e saúde coletiva. In: CAMPOS, G. W. de S.


et al. (Org.) O estudo das políticas de saúde: Implicações e fatos. São Paulo: Hucitec / Rio de
Janeiro: Fiocruz, 2006. p. 615-634.

MANDIL, R. Tempo e ato analítico. Ornicar? Belo Horizonte. Disponível em:


wapol.org/ornicar/articles/157 man.htm. Acesso em: 20 out. 2021.

MOTTA, M. B. da. Angústia: Acting-out e passagem ao ato. Latusa digital. Ano 2, n.19, out.
2005. Disponível em: silo.tips/download/latusa-digital-ano-2-n-19-outubro-de-2005-5. Acesso
em: 20 out. 2021.

ODA, A. M. G. R.; DALGALARRONDO, P. O início da assistência aos alienados no Brasil


ou importância e necessidade de estudar a história da psiquiatria. Revista Latino-americana
de Psicopatologia Fundamental. História da Psiquiatria. v.7, ano 7, n.1, p.128-141, mar. 2004.

PACHECO FILHO, R. A. Humanização no Sistema Único de Saúde: O que a psicanálise


tem a dizer sobre isso. A peste: Revista de Psicanálise e Sociedade. São Paulo, v.5, n.1/2,
p.13-17, jan./jun. 2015. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/apeste/article/view/30466.
Acesso em: 15 out. 2019.

PERRONE, P.A.K. A comunidade terapêutica para recuperação da dependência do álcool e


outras drogas no Brasil: Mão ou contramão da reforma psiquiátrica? Ciência & Saúde
Coletiva. Rio de Janeiro, v.19, n.2, p.569-580, 2014.

QUINET, A. A descoberta do inconsciente: Do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro: Zahar,


2003.

QUINET, A. Psicose e laço social: Esquizofrenia, paranoia e melancolia. 2. ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 2009.

QUINET, A. Teoria e clínica da psicose. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

ROTELLI, F.; LEONARDIS, O.; MAURI, D. Desinstitucionalização, uma outra via: A reforma
psiquiátrica italiana no contexto da Europa Ocidental e dos “países avançados”. In: ROTELLI,
F.; LEONARDIS, O.; MAURI, D. Desinstitucionalização. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2001.
p.17-59.
107

SANTOS, T. C. dos. Acting-out: O objeto causa do Desejo na sessão analítica. Opção


Lacaniana Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo, n.30, p.01-11, out.,
2001. Disponível em: isepol.com/bibliotecavirtual/5acting_out.pdf. Acesso em: 20 out. 2021.

SANTOS, T. C. dos; OLIVEIRA, F. L. G. de. Teoria e clínica psicanalítica em Freud e Lacan.


Psicologia em Estudo. Maringá, v.17, n.1, p.73-82, jan./mar. 2012.

SERAPIONI, M. Franco Basaglia: Biografia de um revolucionário. História, Ciências, Saúde


– Manguinhos. Rio de Janeiro, v.26, n.4, p.1169- 1187, out./dez. 2019.

SOLER, C. O que faz laço? São Paulo: Escuta, 2016.

TENÓRIO, F. A psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Rios


Ambiciosos, 2001.

OLIVEIRA, I. M. A. de; VERONESE, L. G.; PALMA, C. M. de S. A servidão mais que


voluntária: Dispositivos burocráticos em instituição de saúde mental. Revista Mal-Estar e
Subjetividade. Fortaleza, v.9, n.4, p.1343-1354, dez. 2009.

VASCONCELOS, E. M. Abordagens psicossociais: História, teoria e trabalho no campo.


Vol.1. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2009.

VIGANÒ, C. A construção do caso clínico em saúde mental. Revista Curinga. Escola


Brasileira de Psicanálise – MG, n.13, p.39-48, set. 1999.

VIGANÒ, C. Novas conferências. In: ALKIMIM, W. D. (Org.) Novas conferências. Belo


Horizonte: Scriptum Livros, 2012.

Você também pode gostar